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AUGUSTO BOAL.

| 200
EXETCÍCIOS € Jogos |
- “pdrd c
— € O nao-ator
com vontade de —
dizer algo através -
— do featro
42 EDICAO

CCCCCCCC
TEATRO PARA TODOS

O brasileiro Augusto Boal é hoje


um notável cidadão do mundo. Sua
concepção do Teatro como instru-
mento de progresso social foi sem-
pre tão profunda, tão liberta de 1}—
mitações nacionais, que muitos pai-
ses além do Brasil — notadamente
o Peru, o Chile, a Argentina e Por-
tugal — o estimam e respeitam seu
trabalho, que é inovador e conse-
qiiente.
Se um Barrault, por exemplo, tor-
nou-se grande no mundo teatral
pela consolidação das formas tradi-
cionais, ou por invenções destinadas
a se transformarem em tradição no
momento mesmo de serem postas
em pratica, Boal fez-se grande por
quebrar com essas tradições e trans-
formar o espago cénico num campo
aberto para a criacdo de um teatro
novo, de contexto basicamente poli-
tico, no que se mostra ilustre conti-
nuador do trabalho pioneiro de
Brecht e Piscator. Suas realizagdes
no Teatro de Arena de Sdo Paulo
se contam entre as mais sérias ten-
tativas de renovação do teatro bra-
sileiro.
O sistema “Coringa”, por ele cria-
do, foi basico na formação dos es-
quemas que tornaram vidveis as
mais frutiferas experiéncias dos
grupos teatrais que agitaram a ce-
na brasileira, principalmente o Tea-
tco Oficina. No centro das preocupa-
ções de Boal estava a de desbravar
os caminhos que trouxessem o tea-
tro ao encontro do povo, pelo qual
e para o qual ele era feito. Para
Coleção
TEATRO HOJE
Volume 30 Augusto Boal

200 exercícios e jogos


para o ator € o não-rator
com vontade de dizer algo
através do teatro

4.2 EDICAO
Sumairio
Apresentagao 9

Introdugdo 13
Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX I — Entrevistas 13

I — Histéria do Teatro Arena de São Paulo 28

Jogos e exercicios 58
Direitos desta edição reservados, 1 Aquecimento fisico 58 *
com exclusividade para o Brasil, à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA I Aquecimento ideológico 91
S.A.
Rua Muniz Barreto, 715-721
M Aquecimento vocal 92
RIO DE JANEIRO — RJ
v Aquecimento emocional 93

v Jogos de integração do elenco 95

VI Exercicios de mdscaras e rituais 97

VII Quebra da repressdo 106

Exercicios gerais sem texto 108


1982
Ensaios de motivagdo com texto 112
Impresso no Brasil
Printed in Brazil Segiiéncia e ensaios “pique-pique” 121
Apresentação

Esm LIVRO é o terceiro de uma série que começa com


TEATRO DO OPRIMIDO, onde apresento a teoria de um teatro que
seja realmente libertador e que comece por libertar o espectador
da sua passividade, da sua condição de testemunha, e que o
converta em ser ativo, em protagonista do fenômeno teatral.
Segue-se TÉCNICAS LATINO-AMERICANAS DE TEATRO POPULAR,
onde sistematizo todas as principais formas latino-americanas
de teatro do povo: teatro de agitação, teatro-debate, teatro in-
visível, teatro-Bíblia, etc. Formas em que o povo passa a uti-
lizar o teatro em proveito próprio. Finalmente, 200 EXERCICIOS
E JOGOS PARA O ATOR E PARA O NAO-ATOR COM VONTADE DE
Dizer ALGO ATRAVES DO TEATRO completa o ciclo, oferecendo
exercicios e jogos que ajudem o néo-ator (operério, camponés,
estudante, paroquiano, empregado piblico, todos) a desentor-
pecer o corpo, alienado, mecanizado, ritualizado pelas tarefas
quotidianas da sociedade capitalista.
Os trés livros, em conjunto, visam ajudar a restituir ao
povo aquilo que lhe foi roubado: no comego, sempre, em toda
a parte, o teatro era uma festa popular, cantada e dançada a
céu aberto. Na Grécia, no Yucatan ou nas selvas de Mato

9
Grosso, sempre assim foi. Vieram depois as classes dominantes uma arte combativa. Pensamos que se facilitaria a compreensdo
e erigiram muros de pedra (para que o teatro fosse feito apenas das condições em que os exercicios foram concebidos e prati-
dentro dos teatros — um absurdo!) e muros estéticos que se- cados, se pudéssemos juntar uma introducdo que oferecesse,
parassem os atores (ativos) dos espectadores (receptivos). Uns embora sumariamente, um panorama geral de certas idéias,
conceitos, experimentagdes e opgdes politicas que presidiram a
produzindo, outros consumindo. O que? A ideologia dominante.
todas as experiéncias do Teatro Arena de Sdo Paulo. Esta
Agora, por toda a parte, vê-se que os muros estão ruindo.
introdução consiste em entrevistas publicadas por La Pdtria,
Por toda a parte faz-se teatro e todo o mundo o faz. Porque na de Manizales, Colombia; L’Est Republicain, de Nancy, Franga;
luta contra a opressão devem-se usar todas as armas. O teatro e Le Monde, de Paris. Existem algumas repeticdes, que re-
e todas as demais artes também são armas. É preciso usá-las!
fletern o proprio processo reiterativo da investigagdo. Juntamos
É preciso que o povo as use!
também uma resenha histérica e outras informagdes.
O propésito deste livro é sistematizar todos os exercicios Esta edigdo brasileira € a mais completa de todas as que
utilizados pelo Teatro Arena de São Paulo (Brasil) entre 1956 este livro já teve. Acrescentei novos exercicios que comecei a
e 1971, perfodo durante o qual fui o seu diretor artistico. utilizar em Portugal, com os meus alunos do Conservatério de
Os exercicios pertencem às diversas fases por que passou Lisboa e com atores profissionais. Procurei também explicar
esse teatro: realismo naturalista, nacionalizagdo dos classicos, melhor alguns exercicios que talvez não estivessem muito claros
sistema “coringa”, teatro-jornal. A maior parte destes exerci- nas edições anteriores.
cios foi inventada no préprio Teatro de Arena (especialmente Este livro comegou a ser escrito no Brasil, em bom bra-
os de rituais e mdscaras); alguns serviam para solucionar pro- sileiro. Foi editado pela primeira vez em Buenos Aires, em es-
blemas especificos do momento ou de determinada obra, en- panhol, isto é, em portenho. Aportuguesou-se para a edição
quanto outros tinham uma aplicagdo mais duradoura. lusitana e aparece agora, outra vez, na nossa lingua. Isso ex-
Também se incluem exercicios inventados por Stanislawsky plica possiveis desunidades estilisticas.
e Brecht (as nossas principais fontes em todas as nossas etapas)
e por outros diretores e grupos, especialmente latino-ameri-
canos. Nestes casos, explicamos os exercicios tal como eram Lisboa, abril de 1977
praticados no nosso teatro, e não nas suas versões originais.
AUGUSTO BOAL
Nesta seleção incluem-se, principalmente, os exercicios que
podem ser praticados por atores e ndo-atores (estudantes, ope-
rérios, etc.) quando estes desejem utilizar o teatro como forma
vilida de comunicação ou diretamente como manifestagio po-
litica. Certos exercicios, como por exemplo os de “integragio
de elenco”, são indicados para atrair e estimular um “elenco”
de ndo-atores a representar. São exercicios que mais parecem
jogos de saldo do que um laboratério artistico: situam-se pre-
cisamente nos limites entre o jogo e a arte. O ndo-ator intervém
no jogo: mas jogard melhor na medida em que se disponha a
representar, ainda que sem se aperceber disso.
Estes apontamentos são uma descricdo “a frio” de exer-
cicios inventados e praticados “a quente”, durante os ensaios
em que se lutava pela criagdo de uma arte nacional e popular,

10 1.
Introdução

1 — Entrevistas

Numa comédia de Moliêre um personagem declara que


os doentes foram feitos para a medicina e não a medicina
para os doentes. Quem dizia isto era um médico. Também há
gente que pensa que os espectadores foram feitos para O
teatro e não o teatro para os espectadores. Quem diz isto é
cretino. O teatro é uma forma de comunicação entre os homens;
as formas teatrais não se desenvolvem de maneira autônoma,
antes respondem sempre a necessidades sociais bem determi-
nadas e a momentos precisos. O espetáculo faz-se para o es-
pectador e não o espectador para o espetáculo; o espectador
muda, logo o espetáculo também terá de mudar.
O imperialismo pretende universalizar as formas de arte,
da mesma maneira que universaliza a moda e a coca-cola, fa-
zendo no entanto com que a origem da moda esteja nos próprios
países imperialistas. O reacionário Marshall Mcluhan afirma
que, nesta época de tecnologia tão desenvolvida, o mundo se
transformou numa aldeia global. Através do satélite, as notícias
correm o mundo no mesmo instante em que se produzem. Sa-
télite em mão única: de lá para cá tudo; de cá para 14, nada.
13
Num número da revista The Drama Review dedicada ao
teatro latino-americano, afirma-se que por aqui o teatro anda atividade isolada do resto. Uma pessoa pode fazer amor e es-
muito atrasado, porque ainda se utiliza o “palco à italiana”. crever uma pega sobre o amor; uma coisa não invalida a outra.
Em primeiro lugar, isso não é verdade, porque em alguns dos De igual modo, uma pessoa pode fazer politica e escrever uma
nossos paises, especialmente o Brasil e a Colômbia, o teatro peca sobre politica. Quem o impede? Por que excluir um tema
popular há muito que encontrou o caminho das ruas, dos es- tão importante e amplo como a politica e não excluir temas
tadios, dosA circos, e quaisquer outros locais onde o povo se menores? Todo o teatro é politico, ainda que nao trate de
possa reunir. Em segundo lugar, o teatro niilista norte-ameri- temas especificamente politicos. Dizer “teatro politico” é um
cano, caótico e anarquista, pode ter grande valor para esse pleonasmo, como seria dizer “homem humano”. Todo o teatro
pais como arma de luta eficaz, mas não tem o menor interesse é politico, como todos os homens são humanos, ainda que al-
para nés. O teatro ianque realiza espetaculos niilistas, portanto guns se esquegam disso.
todqs os paises devem segui-lo: este- pensamento está cheio Pergunta — Hé quem afirme que um teatro verdadeira-
de imperialismo cultural. Em terceiro lugar, T.D.R. confundiu mente revoluciondrio deve apresentar-se sob uma forma igual-
as diversas broadways latino-americanas (tão reacionérias como mente revoluciondria. Serd assim?
a original) com o verdadeiro teatro latino-americano, politico
e atuante, que encontra as suas proprias formas sem tutela es- Boal — Essa afirmagéo ¢ prépria dos que estdo acostu-
trangeira, de acordo com as suas préprias necessidades, apre- mados a trabalhar para o establishment. Afirmam que é pre-
sentando-se em locais públicos quando é possivel ou trabalhando ciso criar novas formas porque as velhas estdo viciadas
na clandestinidade quando necess4rio. pelos contetidos que habitualmente transmitem. Isso pode ser
verdade sob certo ponto de vista e pode ser válido para alguns
Convém repetir: quando os operérios estiverem no poder paises. Mas fazer teatro popular na América Latina já im-
na Argentina, ndo vejo porque não deverdo fazer espeticulos
plica praticar um ato revolucionario, quando se faz tal teatro
no palco “a italiana” do Teatro Colén. Quando Perén abriu
. para o povo. Neste caso, qualquer forma é revoluciondria, já
esse teatro ao povo desengravatado, o Colén foi popular apesar
que, de um modo geral, o público a que se destina nunca viu
dos seus veludos. Quando a Revolugio Cubana resgatou as nenhuma espécie de teatro: a presenca do ator (a presenga
bz'ut:s burguesas, o povo comegou a dancar à meia-luz. Por que fisica) é um fato absolutamente novo, por contraposicio as
não? e
formas que esse público possivelmente já conhece: cinema
Sempre gostei de fazer teatro nas ruas e nos cam'nhdes, televisão (quando a vê nas vitrinas das lojas). O conteudo é
mas parece-me ingenuidade pensar que ndo se pode fazi-lo o que realmente importa: Tenessee Williams é igualmente mau
em teatros convencionais. num teatro burgués ou num caminhdo.
O teatro popular pode ser feito em qualquer lugar: até Há que procurar sempre formas novas? Claro que sim:
nos próprios teatros da burguesia; e por qualquer pessoa: a realidade é sempre nova. Mas ndo devemos correr como
até
por atores. bobos em busca da ultima moda. Devemos responder com
Pergunta — 'liklguém já lhe perguntou: “se vocé gosta formas novas aos novos desafios da realidade.
tanto de teatro politico, porque não abandona o teatro e não
Pergunta — Entao V. é contra o aproveitamento das técni-
vai diretamente para a rua fazer politica?” cas desenvolvidas noutros paises?
Boal — E eu já respondi a isso: 3 “se algué
lguém apreciai o Boal — De modo nenhum. Sou contra a utilizagdo “res-
teatro de boulevard francés, porque não abandona o teatro e peitosa” dessas técnicas. Olhe, no recente Festival de Mani
não vai diretamente para a cama fazer amor?”. Que diabo!
que tem a ver uma zales (1972), o Equador apresentou-se com dois espetdculos
coisa com a outra? O teatro não & uma muito “bons”: uma obra de Jorge Diaz, representada num es-
14 i)
tilo “Marcel Marceau”, com excelentes atores fazendo
uma mí- e qualquer forma de colonialismo cultural: “isto estána moda,
mica invejável, e “As Tentações de Santo Antônio”. Este
grupo então façamo-lo para habituar o nosso público à última moda
apresentou-se num teatro muito grande, mas ignorou a platéia da Europa ou dos Estados Unidos”, Isso é que não! O povo
¢ armou um pequeno teatro de 80 lugares, ou 90 (já não me não pode ser “domesticado” ou “amestrado” para aprender
lembro), para fazer uma experiéncia de “elite” teatral, segundo a gostar de formas ou espeticulos que ndo tém nada a ver
técnicas que o diretor aprendera com o polonés Grotowsky. com ele. Por isso temos que dizer NAo, terminantemente
Por essa altura, existia no Equador uma ditadura de direita, NÃO! a várias modas muito em voga atualmente. Quantas ve-
havia e ainda há exploragdo norte-americana e um povo fa- zes se ouviu dizer que o povo de determinadas cidades “não
minto, mas esse elenco preocupava-se com os mitos estd preparado” para certa pega ou espeticulo? Isso é mentira;
subcons-
cientes de Santo Antônio; quer dizer, apresentava-se como o que sucede é que esse espetdculo ou essa peça não lhe agra-
uma
vitima passiva do colonianismo cultural; diz-se que o mais da, não lhe interessa.
avan-
¢ado é trabalhar com os mitos subconscientes, e assim o elenco
Primeiro NAo: ndo aos “atores sagrados”, preparados
abandona as realidades conscientes e visiveis, esquecendo-se desde criancas para o seu sacerddcio; mas SIM às técnicas
de lutar pela sua transformagdo.
que ajudam qualquer pessoa a utilizar o teatro como meio
É Grotowsky que tem culpa? Claro que não. Ele valido de comunicagdo.
pró- Na América Latina, o ator que se
prio diz que não quer que o imitem. E acrescenta:
quem quiser especializa é utilizado pela burguesia; profissionalmente, vive
que procure os mitos inconscientes do seu pafs ou do que a burguesia lhe paga no teatro, no cinema ou na tele-
sociedade.
Mas isso também não interessa, porque o importante visão. NAO ao ator profissional, especializado, e sim 3 arte
nos pai-
ses latino-americanos não é procurar mitos para uma purifi- de representar como manifestagéio possivel para todos os homens
cagdo espiritual, mas sim oferecer ferramentas muito (não existem “atletas”: todos os homens são atléticos e há que
concretas
e conscientes para que o espectador popular se “purifique” desenvolver as potencialidades de todos, e não só de alguns
das
classes que o oprimem. A presenca do imperialismo eleitos que se especializam, enquanto os outros ficam relegados
. norte-ame-
ricano não é mitica, é algo muito concreto, muito a simples espectadores). Podemos assistir a um bom jogo de
presente e
visivel nas fábricas que são propriedade sua, nos policiai futebol, mas devemos sobretudo aprender a jogar futebol. Não
s que
são por eles treinados, nas formas de comunicagio de massas, é necessdrio que o ator comece a sua educagdo aos 8 ou
nas séries que nos trazem à televisio o pensamento 12
dos ban- anos; qualquer pessoa pode comegar a fazer teatro quando
queiros ianques, nos jornais e nas agincias noticios
as, nas uni- sentir necessidade disso. O adulto que não teve oportunidade
versidades controladas por eles, etc. Tudo
isto & muito con- de aprender a ler em crianga (mais de 50% da populagio da
creto, objetivo e nada subconsciente. E tem que ser combati América Latina), terd por isso perdido o direito de alfabetizar-se
do
e destruido. na idade madura? A alfabetizagdo teatral é necessaria porque
Pergunta — Mas no Teatro Arena de São Paulo, ¢ uma forma de comunicação muito poderosa e útil nas trans-
sob
a sua direção artistica, utilizou-se durante anos o formações sociais. Ha que aprender
método a ler. Há que lutar pelos
de Stanislawsky. . . nossos direitos, hd que utilizar todas as formas possiveis para
Boal — Repito: o espectador é o elemento fundamental promover a libertagdo; por isso devemos dizer NAo aos “atores
da comunicagio através do teatro. Podemos sagrados”. Não estou contra os profissionais. Mas estou contra
utilizar técnicas,
métodos e sugestdes de qualquer pessoa: o fato de as representagdes se limitarem a profissionais! To-
Stanislawsky,
Brecht, velhos atores de circo, etc... Se para melhor dos devem representar!
ar a
comunicação com determinado público é preciso utilizar NAo aos mitos subconscientes; temos que falar direta-
Artaud,
que se utilize Artaud. Não me oponho. Mas sou mente à consciéncia do povo, mostrar-lhe os rituais que as
contra toda
16 17
classes dominantes utilizam para continuar a exploração. A dade do espectador exige um nariz postigo, fagamos também
sobrevivência anacrênica e desumana da propriedade privada B postica a barriga. Por que não?
dos meios de produção determina rituais de posse, obediên- Mas a máscara social não é um clichê, não é arbitrária,
cia, caridade, resignação, etc., que devem ser desmistificados nem é uma convenção. É o resultado de uma profunda in-
e destruídos. Não devemos “ritualizar” as relações humanas, vestigação dos rituais, que a personagem desempenha; a más-
mas sim mostrar que já estão ritualizadas e indicar como po- cara social forma-se a partir desses rituais.
deremos destruir esses rituais para que se destrua o sistema As ordens que um general distribui e todos os rituais de
injusto e se possa criar um novo. hierarquia e obediência determinam a sua maneira de andar,
Não às “máscaras psicológicas”, que determinam que de
falar e de pensar, e também a forma especial das suas
OS nossos rostos sejam “ferozes” ou “fleumáticos”, “bons” ou relações com a mulher, os filhos e os vizinhos. Os contra-
“maus”, ou seja lá o que for. Pelo contrário, devemos almirantes têm todos cara de contra-almirantes. Porque, como
pro-
curar as “máscaras sociais de comportamento referido”, que dizia Simone de Beauvoir, quando os Viscondes se encontram
mostram como os rituais de uma dada sociedade, ao exigir conversam assuntos de Viscondes, comportam-se como verda-
certas respostas predeterminadas, acabam por impor a cada deiros Viscondes, e acabam-se transformando em Viscondes
um a sua “máscara social”. Somos o que somos porque perten- verdadeiros.
cemos a uma determinada classe social, cumprimos determi-
Todos os operários que realizam o mesmo trabalho ter-
nadas funções sociais e por isso “temos” que desempen minam por parecer-se até mesmo muscularmente. Todos os
har
certos rituais, tantas e tantas vezes que por fim a nossa cara,
datilógrafos acabam por ter alguma semelhança na maneira
a nossa maneira de andar, a nossa forma de pensar,
de rir, de sentar. Todos os latifundiários acabam por montar nas
de chorar ou de fazer amor, acabam por adquirir uma forma
rigida, preestabelecida, uma “méscara social”, É horrivel,
cadeiras em que se sentam, como se montassem em seus ca-
mas valos. É natural. Todos os artistas de teatro acabam por ter
é verdade: se ndo nos precavemos, até mesmo na cama aca-
alguma coisa (sutil ou grosseira) de exibicionista, pois que
bamos por nos mecanizar; até o carinho acaba perdendo
a são forçados a se exibirem nos palcos todas as noites. É na-
graga; até o amor se ritualiza, tural. O contrário sim, não seria possível.
Pergunta — Qual é a diferença entre a “máscara social” Não é possível que um contra-almirante faça amor da
e o clichê? mesma maneira que um operário ou um ex-padre... À ação
Boal — O clichê, utilizado em certos tipos de teatro (mão concreta é a mesma, mas a forma particular que assume em
no coração, para significar amor, rostos dulcíssimos para Jesus cada caso é determinada pelos rituais sociais que impõem uma
e Maria...), é sempre adotado idealmente, sem nenhuma
ve- máscara a cada ser humano, quer dizer, “matam” 90% das
rificação de rituais sociais. Quer dizer, convenciona-se que
tais suas possibilidades de resposta e mecanizam-no; uma pessoa
gestos significam tais idéias ou emoções, que tais expressõ sempre fará as mesmas coisas, da mesma maneira (o ser social
es
fisionômicas significam isto ou aquilo; trata-se de convençõ condiciona o pensamento social), andará do mesmo modo, sen-
es.
Uma convenção, um clichê, em si mesmo, não é nem tar-se-á, amará, jogará futebol, tudo da mesma maneira. As
bom nem
mau, nem branco nem preto; depende do uso que dele se
faz. Dbessoas que pertencem à mesma classe social possuem caracte-
Um nariz postiço, uma barriga grande, óculos enormes,
ma-
tisticas comuns que fazem parte da máscara. Todas estas pessoas
quilagem exagerada, nenhum destes elementos é bom agem, não em função das suas caracterfsticas “psicolégicas”,
ou mau.
É puritanismo pensar-se o contrario; julgar que tais mas em fungdo das suas “necessidades sociais”; estas necessi-
recursos
não prestam significa pensar que a arte é auténoma, dades são o “nicleo” da mascara. O nicleo fará com que os
quando
na verdade deve responder a desafios da realidade. espectadores compreendam que todos os burgueses agirdo sem-
Se a reali-
18 19
pre como tais, seja qual for a diferença individual entre eles. A não a “encarne” em nenhum ator: a necessidade social aparece
ação dramática deve mostrar-se não como um “conflito de assim com mais clareza.
vontades livres”, como pretendia Hegel, mas sim como uma É preciso que isto fique claro: hd uma diferenga pro-
“contradição de necessidades sociais”, tal como é explicado pelo funda entre o “cliché” e o “particular tipico”, que é a mascara
materialismo histórico. social. O primeiro pode conter, por convenção, a “essincia”
Talvez eu possa explicar isto de outra maneira. Um per- do universal, e nada mais: Tio Sam, o Burguesdide, etc... A
sonagem pode ser revelado a nível “universal”, como os anjos méscara contém não só a esséncia do universal (que funciona
da Idade Média, os deménios, como seu nicleo), mas também outras caracteristicas não-
os vícios, as virtudes, etc. São
também de nível “universal” o “patrão” e o “operário” de essenciais e mais circunstanciais, existenciais.
certo teatro didático contemporâneo. Pelo contrário, podem ser Trata-se de um “determinado” burguesóide, um Tio Sam,
apresentados a nível “singular” em certo teatro psicologista, um latifundidrio, e nao outro. A necessidade social pode, in-
realista, que se dedica à apresentação de casos especiais. Po- clusive, entrar em conflito aberto com a vontade individual;
dem finalmente ser apresentados a nível do “particular típico”, o que se deve mostrar é que a necessidade é sempre a força do-
quer dizer, da forma que inclui o indivíduo singular e ao mesmo minante, e a ação dramatica (como a Histéria) move-se de-
tempo todas as características do universal dessa espécie. vido a uma contradição de necessidades e não a um conflito
de vontades.
Este “particular típico” pode dar-se a dois níveis: o do
Por outro lado, no que diz respeito aos clichés, ideo-
realismo empático, do tipo de Arthur Miller (por exemplo,
gramas e narizes posticos, tudo depende do uso que deles se
A Morte de um Caixeiro Viajante) em que o personagem é
fizer. Não são categorias malditas. O que importa é saber o
simultaneamente ele préprio e um representante da sua classe,
que se vai dizer, a quem e para qué, e entdo utilizar a linguagem
mas no qual a necessidade social se apresenta na sua con-
mais conveniente.
creção psicoldgica e individual, ou ao nivel nao-empitico, como
Pergunta — Como se poderia definir um “ritual”?
costuma acontecer nas obras de Bertolt Brecht, onde se mostra
claramente o caráter “sujeito” da necessidade social e o caréte Boal — Um ritual é todo um sistema de agoes e reagoes
“objeto” da vontade individual. Este é um problema muito predeterminadas. Para atravessar a rua há que aguardar a luz
delicado, porque é simultaneamente um problema de dram - verde. Ao entrar na igreja, fala-se em voz baixa. As relagoes
entre os seres humanos processam-se segundo ações e reagoes
turgia e um problema de interpretagdo: uma obra de Brecht
mais ou menos preestabelecidas pelas leis, tradicoes, hib.tos,
pode ser interpretada a nivel empético e uma obra de Miller costumes, etc... Estas relagoes predeterminadas .izem com
a nivel ndo-empitico. Por isso interessa (como se faz no sis- que os fendmenos sigam caminhos mais ou menos previsivels.
tema “Coringa”) eliminar a identificagdo ator-personagem, que
Quando dois militares se encontram, pode-se prever que fardo
é responsavel pelo fato de ser muitas vezes dificil para o es- a continéneia; quando dois carros se cruzam, passardo pela
pectador distinguir entre a necessidade social e a vontade indi- direita; quando o capitalista trata dos seus negécios, procurard
vidual, uma vez que a mascara social tende a diluir-se no corpo obter o maximo lucro; quando o crente se confessa, o padre
do ator, na sua personalidade. O espectador vê um homem que absolvé-lo-4. Estes rituais são absolutamente necessarios para
fala e portanto ¢ levado a atribuir-lhe tal psicologia, que pode que os homens se possam relacionar uns com os outros, amnda
ser o carater de uma classe, de uma fungio social, e não apenas que eliminem numa proporcdo assustadora a possibilidade de
desse homem. No sistema “coringa”, este óbice é eliminado, “respostas originais”: o militar que faz uma careta, o padre
porque a mdscara social da personagem ¢ interpretada em cadu que repreende o fiel aos gritos, o capitalista que distribui os
cena por um ator diferente, o que faz com que o espectador lucros pelos operarios, o carro que prefere subir pela calcada.

20 21
Por isso estes rituais são absolutamente necessários e ao mesmo
tempo devem ser constantemente destruídos e substituídos por Para que os transformadores da realidade possam trans-
outros, a fim de que a relação entre os homens possa evoluir. formé-la, precisam conhecé-la através do estudo, da partici-
A atitude conservadora consiste em não desejar nenhuma mu- pação politica e também através do teatro. A arte pode re-
dança de rituais; a atitude anarquista consiste em não desejar velar a realidade a dois niveis: o dos fenômenos e o das leis
nenhum ritual. que regem os fenémenos. O realismo — e ainda mais, o natu-
O comportamento ritualizado é o comportamento morto: ralismo — tende a apresentar os fenémenos, ocultando as leis;
o homem não cria, apenas desempenha um papel sem criati- certo teatro de “idéias” tende a discutir as leis sem a produção
vidade. O conjunto de papéis desempenhado por cada indi- de fendmenos (idéias abstratas). O problema basico do sis-
viduo na sociedade cria nele uma “máscara”. tema “Coringa” consiste em ‘“coisificar” as leis que regem os
Muitos rituais são abstratos. A hierarquia militar, por exem- fenémenos. O operdrio pode informar-se da situacdo politica
plo, é um conjunto de rituais determinados por leis abstratas. do seu pafs através dos jornais (se souber interpretar os jornais
Porém, a arte é o cdnhecimento que se transmite através dos das classes dominantes), e pode igualmente conheci-la através
da representagdo teatral, ritualizada, que lhe mostra cada fase
sentidos; por isso é necessário “coisificar” a hierarquia para a
revelar através dos sentidos. O ritual apresentado teatralmente da luta de classes no seu desenvolvimento. Isso é importante:
é a “coisificação” das leis, dos costumes, etc... toda peça deve mostrar os dois niveis. O nivel concreto dos
fendmenos particulares, porque essa é a matéria da arte, que
Dentro do sistema “Coringa”, o espetáculo deve apre- trata de coisas reais, e o teatro trata de gente de carne e 0sso,
sentar rituais realizados por um conjunto de máscaras que pas- trata de seres humanos, trata da vida social — é preciso mos-
sam de ator para ator, de modo a que o espectador possa ve- tré-la. Mas deve mover-se tambsm ao nivel das leis que regem
rificar que todos os rituais (mesmo os absolutamente neces- êsses fendmenos, porque a arte deve mostrar a organização
sários) devem ser constantemente destruídos, para que outros interna da realidade. Deve mostrar as coisas como são, sim,
sejam criados e destruídos, para dar lugar a outros, que serão mas deve mostrar também porque são como são.
igualmente destruídos, a fim de que o tempo e a vida não sejam
detidos. Pergunta — Pelo que diz, uma “máscara” tem algo que
ver com a mecanizagdo, com o “ato reflexo” de Pavlov, ou
O teatro deve modificar o espectador, dando-lhe consci-
coisa do género. Serd assim?
ência do mundo em que vive e do movimento desse mundo. O
teatro dá ao espectador a consciência da realidade; é ao es- Boal — Não. O animal não tem “méscara”, ainda que
pectador que cabe modificá-la. possa obedecer a certos estimulos sempre da mesma maneira;
Pergunta — Acredita na função política do teatro? o animal ndo se aliena. As suas ações e reagdes podem ter razoes
biol6gicas, climaticas, etc., mas nunca sociologicas. Pode me-
Boal — Toda a ação humana modifica a sociedade e a
canizar certas reações, mas estas mecanizagbes não são mas-
natureza. A arte e a ciéncia modificam a natureza de uma
caras, ndo obstante todas as mdscaras serem mecanizagdes. O
forma organizada, ndo-episédica, segundo as suas préprias leis.
homem é o único animal aliendvel. Isto pode ver-se com cla-
Mas há uma diferenca fundamental entre a ciéncia e a arte.
reza numa corrida de touros. Neste ritual, o toureiro move-se
Quando Fleming descobriu a penicilina, ndo precisou da
segundo regras preestabelecidas, ao passo que o touro reage
consciéncia do doente para curd-lo. A ciéncia atua direta-
mente sobre sem nenhum condicionamento ritualizado. O toureiro repre-
a realidade, modificando-a. Pelo contrério, a arte
modifica os
senta rituais (quer dizer, a sua vida e o seu estilo são deter-
modificadores da sociedade, transforma os trans-
formadores. A sua agdo é indireta, exerce-se sobre a consci-
minados e limitados por regras, costumes e tradigoes, perfei-
tamente integrados já no seu carater, na sua personalidade,
éncia dos que vdo atuar na vida real. na sua máscara), ao passo que o touro atua limitado apenas
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23
ca... Na Franca também existem proletérios e a estes (ainda
por motivos e estímulos físicos: cor, movimento. Neste sentido, que de forma diferente) pode servir o teatro dos nossos paises;
poderíamos dizer que o toureiro é alienado, enquanto o touro também eles sdo explorados, ainda que mais suavemente, com
é autêntico (acrescento que não há aqui vantagem em ser menos brutalidade, mas com mais malicia,
autêntico).
Há que compreender o ponto de vista do terceiro mundo,
Posso-lhe contar um caso explicativo e trágico: Mano- totalmente oposto ao ponto de vista das sociedades
lete morreu porque tinha fama de nunca recuar um passo de con-
sumo. Os Estados Unidos, a Alemanha, o Japio, sio paises
para fugir do touro. Esta fama fez a sua fortuna. Manolete extremamente desenvolvidos, mas sob o ponto de
alienou-se a essa fama. Ao ritual das corridas juntou mais vista da
Revolugdo, que é o que nos interessa, estio infinitamente
Um: nunca recuar um passo. Quando às cinco da tarde do dia atra-
sados; Angola, Mogambique, estão em movimento muito
da sua morte viu que o touro lhe ja cair em cima e que a sua mais
acelerado em relação à meta suprema do nosso século:
única possibilidade de escapar era recuar uns passos, a más- a li-
quidação do sistema pré-histórico que é a propriedade privada
cara do toureiro que nunca recua impediu que se salvasse. dos meios de produção.
Manolete teria podido escapar, mas o ritual do toureiro ousado t
cumpriu-se. Manolete morreu. As pessoas têm de compreender que a Revolução não e
Pergunta — Mas se V. é antiimperialista e repudia um éden cheio de mercadorias (geladeiras e carros que caem
for- do céu) e sim um movimento contínuo em direção a uma
mas e (écnicas estrangeiras, como pode querer exportar as
sociedade humana e justa; nesse sentido, os países da Amé-
suas proprias técnicas e as suas próprias formas? Por que é
rica Latina são muito mais desenvolvidos, ainda que aos impe-
que sistematicamente se apresentam tantQs agrupamentos la-
tino-americanos em festivais de teatro na Europa (especial- rialistas custe abdicar da sua visão do Paraíso como um super-
mercado. A população dos países imperialistas não é “homo-
mente em Nancy) e nos Estados Unidos?
geneamente” imperialista. Os países superdesenvolvidos
Boal — Não, não desejamos fazer uma forma de “impe- tam-
bém possuem as suas classes subdesenvolvidas e os países
rialismo as avessas”. Ndo. Há dois tipos de agrupamentos que
subdesenvolvidos também possuem as suas classes superdesen-
se deslocam a esses festivais. Um apresenta-se como produto
volvidas. Os paises são economicamente dominados por outros
de consumo. Os europeus e norte-americanos gostam muito de paises, precisamente porque para as suas burguesias nacionais
reduzir a arte dos paises do terceiro mundo a manifestacoes o conceito de dinheiro é muito mais importante que o conceito
“folcléricas”. Muitos grupos se prestam a desempenhar esse de pátria ou de nagdo. A burguesia de um pais economicamente
papel. Mas outros não!
forte une-se & burguesia de um pais economicamente débil para
Existem também os grupos que compreendem que as na- explorar especialmente o povo deste último. E assim acontece.
ções imperialistas ndo resolveram os seus problemas de classe. na realidade, que também lucram os explorados do pais forte.
O imperialismo não elimina a luta de classes dentro dos seus Por isso muitos operdrios
paises: apenas a anestesia. A burguesia dos paises imperialistas de paises imperialista manifestam
tendéncias reaciondrias, tão reaciondrias como as suas burgue-
pretente fazer crer aos seus proletdrios que o pais estd esta- sias. São explorados, mas ganham mais alguns dolares, um
bilizado, equilibrado, que as reivindicacdes operarias devem
automével, bilhetes para o cinema, ou para o beisebol, etc. . .
ser do género da aposentadoria aos 30 anos de trabalho, ou
A isso se vendem.
coisas assim de menor monta, enquanto nos paises subdesen-
volvidos há conflitos precisamente porque sdo paises “em vias Nos Estados Unidos, recentemente, os estivadores dos por-
de desenvolvimento”, como dizem eufemisticamente. tos do Pacífico recusaram-se a descarregar os barcos peruano
s,
Porque o Peru aprisionou navios-piratas norte-americanos nas
Bem, todos os pafses estão em vias de qualquer coisa, Suas águas territoriais. Esses navios-piratas davam trabalho e
alguns em vias de subdesenvolvimento, como se diz da Fran-

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lucros a uma parte das populações desses portos. Os estivadores
adotaram uma atitude nitidamente imperialista, carente de con- I:ergunta — Segundo Luca Ronconi, o diretor italiano,
teúdo ideológico da sua própria classe, defendendo o seu direito o autêntico teatro popular, o único, é o que se faz na praça
à pirataria marítima. Também George Meany, presidente da pública, que é o verdadeiro lugar do povo. Compartilha
esta
AFLCIO, a maior organização operária dos Estados Unidos, opinião?
proclamou repetidas vezes o seu apoio à política assassina de Boal — Há um poema brasileiro que diz: “A praça é
do
Nixon no Vietname. povo como o céu é do condor”. Entretanto, neste momento
,
Por isso não se pode falar de conceitos muito gerais e as praças do Brasil não estão ocupadas pelo povo. Hoje
em
amplos que excluam a luta de classes. E quando se fala de dia, favz,er. teatro popular nas praças públicas brasileiras seria
uma arte imiperialista, temos que ter consciência de que ela é um suicídio. As condições políticas vigentes expulsaram o povo
dirigida não só contra os povos oprimidos, mas também contra das ruas, mas não o eliminaram. E como não se pode eliminar
o seu próprio povo, ao qual aliena. As idéias dominantes numa o povo, também não é possível destruir as suas manifes
tações,
sociedade são as idéias da classe dominante, disse Marx. O a sua arte, o seu teatro. O mais importante é fazer
um teatro
teatro, que na América Latina procura explicitar os mecanismos que tenha a perspectiva do povo, a perspectiva da mudança.
da luta de classes e pretende mostrar a necessidade e os ca- Se se puder fazer esse teatro nas pragas publicas, muito
bem:
minhos possíveis para a mudança social, pode igualmente ser se só se puder fazé-lo na casa humilde de um operério
, ou
eficaz dentro dos países imperialistas, que têm a sua luta de para poucos operdrios de cada vez, igualmente muito bem; se
classes anestesiada, mas não eliminada. O único risco da nossa se puder, com um espeticulo apenas, chegar a 5 0CO operarios,
atividade nesses paises é o folclorismo. Ai o nosso teatro serd ótimo. Se houver necessidade de se fazerem 500 reunides
vélido, ndo na medida em que for “aceito”, mas na medida em teatrais, em pequenos locais para se chegar aos mesmos 5 000,
que possa ser “utilizado” pelos explorados contra os explo- ‘lambemleslé bem. O teatro, para ser “popular”, tem de ser
radores. “revolucionário”, ndo importando onde se realiza o ato teatral.
E 0 teatro chega ao seu maior grau revolucionario quando
Pergunta — O seu teatro é caracteristicamente latino-ame- o
proprio povo o pratica, quando o povo deixa de ser apenas
ricano? o
inspirador e o consumidor para passar a ser o produtor. Quando
Boal — Nós, os membros do juri do IV Festival de Ma- se comunica através do teatro. Por acreditar nisso, o Teatro
nizales (1971), José Monléon, Emilio Carballido e eu, fizemos Arena de São Paulo desenvolveu uma série de técnicas,
todo o possivel para desmistificar os conceitos folcléricos de Jjogos e exercicios para o ator e para o não-ator com vontade de
latino-americanismo. Declaramos: “de que arte latino-ameri- dizer alguma coisa através do teatro.
cana se fala? No nosso continente convivem o latifiindio e a
miséria, os torturadores e os torturados”. Convivem também o
teatro venenoso da burguesia.e as formas populares. Não temos
nada a ver com o teatro burgués da América Latina, e temos
muito em comum com os “chicanos”, porto-riquenhos e neg:os
dos Estados Unidos. As nossas obras e as nossas técnicas não
servem para os teatros oficiais da América Latina, ou da Euro-
pa, mas com certeza Servem para os grupos marginais, opera-
rios, minorias étnicas oprimidas, estudantes revoluciondrios e
lumpen-proletariado sejam eles de cá ou de lá. O nosso teatro
e as nossas técnicas ou são do povo ou não sdo nada.

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o jovem ator decidiu imitá-lo e depois de algumas hesitações
Il — História do Teatro largou também a sua improvisação, por certo uma piada
muito grosseira. O resultado foi sensacional e todo o público
Arena de São Paulo e os seus colegas começaram a rir; só a vedeta ficou muito
séria e compenetrada. No fim do espetáculo, os atores espera-
vam a mais feroz censura para o jovem estreante, mas a vedeta
No Teatro Arena de São Paulo, Brasil, funcionava o La- fechou-se no seu camarim e não disse nada, absolutamente
boratório de Interpretação, que deu origem à maior parte destes nada.
jogos e exercícios. É necessário conhecer os gêneros de inter-
pretação que se praticavam em São Paulo por volta de 1956,
No outro dia, quando todos se preparavam já para entrar
quando o Arena iniciou as suas atividades, numa nova fase em cena, a vedeta mandou ir ao seu camarim o jovem ator,
como teatro de equipe. De um lado estavam os “monstros morto de medo pela sua ousadia da véspera. Foi recebido
sagrados” populares e do outro os novos “monstros sagrados” com grande amabilidade. A vedeta falou-lhe da sua arte, dos
burgueses: os primeiros destinados a adormecer o povo, os se- anos que já tinha de palco, etc., etc. Após um longo discurso
gundos ao deleite da burguesia. perguntou-lhe:
— Lembras-te da improvisação de ontem?
— Sim, sim — respondeu o jovem. — Não gostou?
MONSTROS SAGRADOS “POPULARES” — Gostei muitíssimo, parece-me uma piada muito boa.
— Obrigado — suspirou, aliviado, o jovem. — Muito obri-
Havia nessa altura no Brasil uma certa quantidade de gado. Parece-me que o público também gostou. Riram-se muito.
vedetas que reuniam à sua volta uns tantos atores e atrizes Os meus colegas felicitaram-me. Foi um éxito.
e obtinham grande êxito popular graças ao seu histrionismo — Sim, sim — disse a vedeta. — O piblico riu-se muito
pessoal. Ao público não interessavam os personagens e as porque é realmente uma 6tima piada. Mas hoje quem a diz
obras, mas apenas olhar e ouvir os seus atores preferidos. sou eu e não tu, porque sou eu o dono da companhia. Com-
Os espetáculos consistiam num puro exibicionismo individual preendido?
das estrelas, geralmente proprietárias das respectivas compa-
nhias teatrais. Não havia preocupação estética e politicamente Muito antes deste, houve outro monstro sagrado, Leopol-
esses espetáculos refletiam uma do Frées, hoje arduamente estudado pelos alunos de teatro,
mentalidade reformista e em
nenhum caso rebelde ou remotamente revolucionária. que na sua época se sentia demasiado importante para par-
ticipar dos ensaios. Nunca ensaiava. O assistente (nessa altura,
Posso contar alguns casos reais que ilustrarão bem esse tipo no Brasil, ndo se usava o encenador...) fazia a marcagdo.
de ator nessa época particular. Uma das maiores vedetas de Os atores, depois de terem estudado e decorado o texto, faziam
então, estava em excursão pelo interior de São Paulo com uma alguns ensaios de marcação e o assistente dizia-lhes:
pequena companhia. Sabia o texto de cor, mas gostava de in-
— A senhora fica neste lugar, porque o Doutor (o Dou-
troduzir novas frases todos os dias, dependendo da platéia e
tor era Leopoldo Frées) ficara aqui, nesta cena. O senhor nao
de como decorria o espetáculo. O público deliciava-se. Os outros
se aproxime tarto da janela porque ai estd o Senhor Doutor.
atores, ao contrário, perdiam a sua segurança e alguns riam
Vocé, jovem, ndo se ponha tão perto da mesa, porque ninguém
em cena, pelo que eram imediatamente censurados. No elenco
havia um jovem ator que estava a dar os primeiros passos e pode estar a menos de dois metros do Senhor Doutor. . .
que se entusiasmava com as novas piadas que a vedeta intro- E eram assim os ensaios. Um dia antes da estréia fazia-se
duzia no espetáculo. Certa noite, muito estimulado pelo patrão, um ensaio-geral com a presenga do Senhor Doutor. Enquanto

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os atores diziam os seus papéis o melhor que podiam, Leopol maravilhosa noite cheia de estrelds. A cena comegou e o pú-
do
Fróes murmurava o seu texto criticando a marcação feita blico conteve a respiração: pela primeira vez na histéria do
pelo
assistente. Por certo que a modificava totalmente: os teatro paulista as duas maiores damas, as mais ilustres, tra-
que esta-
vam sentados tinham de se levantar, e os que estavam jadas com vestidos mais dernier cri europeu e com as jóias
de pé
tinham que se sentar. Os da direita iam para a esquerda e vi- mais sul-africanas, pisavam o mesmo palco. Ao principio, tal
ce-versa. Claro que se gerava uma enorme confusão e era muito como nas lutas de boxe, as duas contendoras analisaram-se du-
difícil o elenco poder decorar os novos movimentos e as rante as primeiras trocas de palavras. Depois comegou uma
novas
posições. Por isso, no dia da estréia, era cada um ardua luta pelo centro da cena, as duas aproximando-se peri-
por si e
Deus por todos: uma correria pelo palco, todos procur gosamente uma da outra (até sentirem reciprocamente as res-
ando
não ser atropelados pelo implacável Senhor Doutor, que pectivas respiragdes), cada uma procurando forcar a outra a
im-
provisava sempre novos movimentos. Os atores encost abandonar a área “teatral” do palco. Depois, quando uma delas
avam-se
o mais possível às paredes do cenário, procurando conseguiu afirmar-se no centro, a outra, muito esperta, come-
sempre guar-
dar a obrigatória distância de dois metros da çou a recuar, colocando-se quase de costas para a primeira;
vedeta, a qual
por sua vez, improvisava extensos monólogos, usando o texto esta viu-se entdo forgada a torcer o seu delicado e sensivel pes-
como simples roteiro ou sugestão, cogo para poder dialogar. Ambas se agarraram à mesma tatica.
Por mais que andasse, Leopoldo Fróes ficava sempre Em cada troca de palavras, a vedeta que falava recuava alguns
to do centro da cena. Todas as vedetas fazem per- passos, colocando-se mais atrds e submetendo a adversária a
o mesmo. E uma posi¢do incémoda. O didlogo progredia, progredindo a
Oos seus interlocutores têm de estar sempre mais
perto do pú-
blico: Qquando dialogam, o interlocutor é luta: uma troca de palavras dois passos atrás, outra frase e era
obrigado a olhar
para trás voltando as costas ao público, a outra que recuava, novo didlogo e novos passos, mais poesia
enquanto a vedeta fica
sempre de frente. e mais passos atrás, tudo isto no cenário belamente iluminado,
.
com a sua formosa janela que mostrava uma linda noite cheia
Lembro-me de uma história que ilustra bem
cia que alguns têm de se apropriarem do que
esta tendên- de estrelas mas que tinha o parapeito baixo demais: na sua
julgam ser as ansia de recuar e conquistar o centro do palco, as duas damas
áreas “quentes” do cenário. Um dia em São Paulo,
um empre- cairam de costas, precipitando-se na bela noite. . .
sário conseguiu reunir num mesmo elenco as duas
vedetas mais Esta história verdadeira é muito conhecida dos atores da
em voga na época. Custou-lhe muito trabal
ho, porque teve de velha guarda do teatro paulista. As duas damas lutavam pela
enfrentar árduas reuniões sobre remunerações,
cartazes, publi- parte “quente” da cena, e isso nem sequer é uma verdade: o
cidade, etc.,: as duas queriam tirar o melho
r partido possível
da publicidade. Durante todo centro não é necessariamente a parte mais “quente”, a que
o espetáculo havia uma única
cena em que as duas atrizes, sozinhas no palco, se enfrentavam. atrai a atenção do espectador, a mais densamente teatral. Tudo
Por isso não havia grande problema: quando uma estava depende da cenografia que pode valorizar diversamente cada
em
cena, os outros atores retiravam-se prudentemente para a pormenor, da luz que pode conduzir a atengdo do espectador
peri-
feria e as damas ficavam no centro do palco e na sua e a relagdo entre os corpos dos atores em cena. Mas ainda
parte
alta, mais distante do público. No dia da estréia, a disput que consideremos um palco uniformemente iluminado e vazio,
a pelos
favores do público foi dura e intensa. O espetáculo progre ainda assim não é o centro a zona mais densa, mas sim a parte
dia
prevendo-se um honroso empate para ambas, quand esquerda do palco, vista da platéia. Por alguma razão, a parte
o começou
a famosa cena, um longo diálogo entre as vedetas.
Tudo: era direita do nosso corpo é mais desenvolvida que a esquerda: a
muito bonito no cenário, que representava um nossa perna direita da passos mais compridos que a esquerda, o
enorme salão de
baile, tendo ao fundo uma grande janela aberta nosso olho direito vé melhor que o esquerdo, etc. Uma pessoa
sobre uma
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no deserto, julgando que anda em frente, andará em círculos
em direção à esquerda. A parte direita, mais forte, empurra-nos ta de cima, do Olimpo artístico. Procurava-se o “belo em si”.
para a esquerda. Mas Isto chegava a produzir resultados absolutamente fantásticos.
as duas damas lutavam pelo centro, e
por causa do centro cafram. Lembro-me da montagem simultânea de duas Antígonas: a de
Sófocles e a de Anouilh, obras tão extremamente diferentes
Era a época em que, para além das velhas vedetas, os uma da outra, com própósitos tão opostos, escritas em épocas
atores estavam divididos em categorias físicas que se especiali- tão distintas, mas que, nesse teatro burguês, se transformavam
zavam em determinados papéis: o galã, o centro, o
centro- ambas simplesmente em “bom teatro”, e o bom teatro tinha
cômico, a dama-galã, a dama-caricata, a senhora nobre, uma maneira “bela” de ser iluminado, uma “bela” coreogra-
etc.
Representantes de todas estas categorias reuniam-se num bar fia, “belas” roupas, “belas” interpretagoes — tudo muito belo
central de São Paulo à espera dos empresários teatrais e muito falso.
ou de
circo. Em muitos circos representava-se uma peça por dia,
de Esta visão do teatro como algo acabado e conhecido,
maneira que um bom ator tinha mais ou menos decorado o transformava os artistas em artesdos: não podiam criar verda-
texto e a história de umas cingiienta obras. Claro que a me-
móng não era demasiado rigorosa, havendo lugar deiramente, mas sim reproduzir segundo um modelo, preesta-
para a im- belecido. E esse modelo era o “estilo”. O artista criador con-
provisação. Não era raro que um ator, selecionado
no bar du-
rante a tarde, se enganasse no seu papel, e à noite entrasse sulta o seu povo, dialoga com o seu povo, inter-relaciona-se
cena represe
em com ele e descobre as formas estéticas para o didlogo artistico.
ntando o personagem de outra Peça que ríada tinha
a ver com esta. Mas estas coisas sempre Aqui não acontecia isso. O artista, transformado em arteséo,
se remediavam, para ndo se preocupa com o seu povo e só dava atengdo aos trajes
satisfação do público fiel.
da época. Se a obra era de Shakespeare, mostravam toda a
sua fidelidade a Lawrence Olivier e a John Gielgud. Quando
MONSTROS SAGRADOS a semelhanca se aproximava da identidade, a interpretagdo es-
BURGUESES
tava pronta para a estréia.
De um lado estavam esses monstros sagra Na Escola de Arte Dramática aprendia-se a recitar Sha-
dos “popula-
res” e do outro os monstros burgueses que kespeare, Goldoni e os cldssicos portugueses: aprendia-se a
atingiram a sua
plenãtude quando se desenvolveu mais rapid andar no “estilo”, a estar de pé com o corpo a 3/4 para o
amente uma bur-
guesia “r_xacional" (na realidade, testa publico, etc., etc., etc. Numa palavra: impunha-se uma “forma”
-de-ferro dos grandes in-
teresses internacionais, quando os consó e, dentro desta forma e dos seus estreitos limites, o ator tinha
rcios norte-americanos
e as grandes empresas multinacionais comegaram que criar a sua personagem sem prejudicar a forma preesta-
a apertar o
seu dominio sobre a indústria brasileira). Essa
belecida nos livros de histéria do teatro.
burguesia ten-
tou reproduzir no Brasil o “bom” teatro que Dai a importéncia que tinha entdo a chamada “técnica”.
tinha visto na
Europa e nos Estados Unidos. Estabeleceu-se Todos os atores procuravam afanosamente adquirir “técnica”.
o conceito de
“bom teatro” em geral, e a preocupagd Mas que técnica era essa? Do mesmo modo que os objetos
o méxima de entdo era
igl:\alar Barrault, Olivier e Vilar, sem nenh
uma preocupação
fisicos se parecem com formas geométricas bem definidas
prioritária com o público ao qual esse teatro (tridngulos, quadrildteros, esferas, cubos, etc.), também a voz
se destinava. Não
tinham aprendido, porém, a verdade elementar
e os movimentos dos atores tinham que se parecer com formas
de que nada é
“estético” em si mesmo: o que existe é a comunicação estética. bem definidas. Tratava-se de um conjunto de técnicas geomé-
E a comunicação exige a existência
trico-temporais.
de uma ica relação dialét
artista-público. Aqui, pelo contrário, a obra Quero exemplificar para que isto fique mais claro, des-
de arte era impos-
crevengo alghmas das “técnicas” mais em voga nessa época:
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1 — Pausa de tensão: consiste em reter durante alguns
segundos a última ou as últimas palavras que vão dar sentido ap6s alguns segundos, o quarto atrasado. O públjcp ri-se. Buster
a toda a frase. Tornou-se célebre uma pausa de tensão do Keaton foge da policia, corre assustado por várias ruas e en-
ator que interpretava o protagonista da obra de Arthur Miller cruzilhadas e, quando por fim se distancia do “tira”, fica todo
Panorama Visto da Ponte, contente, limpa a roupa, compõe a gravata, e levanta a perna
na cena em que descobre o amor
da sobrinha pelo hóspede. Após um longo monólogo em que para atravessar a rua: nesse preciso momento, a cf‘xm_ara fnc
falava dos seus cuidados com a sobrinha e do seu ódio ao a mão do policial no ombro de Buster Keaton. O público ri-se.
rapaz, o ator suspendia a respiração e dizia: “E vem-ma roubar, Em Tempos Modernos, o operario Carlitos passa oito horas por
esse. .. filho da putal” dia a apertar porcas metdlicas numa linha de montagens de
Quase todas as noites o publico en-
tusiasmado aplaudia freneticamente. Creio que terd sido o pri- uma fabrica; quando sai para a rua, quer apertar os botoes
n;)eim palavrdo aplaudido em teatro, e com delirio, de todas as senhoras e policiais que se cruzam no seu caminho.
em cena O publico ri.
aberta,
4 — Timbre de voz predeterminado: esta era uma das
2 — Quebra de ritmo: consiste em dizer com rapidez a
primeira parte de uma frase e a seguir diminuir a velocidade “técnicas” mais comuns, que quase se transformou numa es-
pécie de marca registrada: cada vedeta tinha o seu timbre de
ao proceder inversamente. Pode também utilizar-se a quebra voz particular, mas que ndo devia coincidir com a sua verda-
de tom, mudando bruscamente o tom duma parte da frase,
com o que se obtém mecanicamente o mesmo efeito. deira voz para uso caseiro. Uma conhecida atriz falava com
timbre arquejante, revelando sempre angistia e ansiedade em
tudo o que dizia. Outro conhecido ator falava sempre, em
i B Automa}ism : usado com muita freqiiéncia nas obras
comicas. Bergson tinha notado que o riso é a reação natural todas as obras, fossem de que estilo fossem, com um trémulo
a vocal que o caracterizava. A obra tanto podia ser um Arlequim
todo o acontecimento que revele o automatismo de uma ação
humana. _Nuncu nos rimos de algo que não seja humano; quan- de Goldoni como um Soldado Tanaka de Kaizer.
do nos rimos de um macaco no Jardim Zoolégico é porque
o 5 — Movimentos rápidos em cenas climaticas, até ao fun-
macaco se assemelha a um ser humano: rimos dos seres hu- do da cena e depois um répido regresso ao publico; movimen-
manos cujas mecanizagdes e automatismos surgem por
com- tos triangulares, com o ator que desenvolve a agdo principal
paração com o macaco na jaula. As formas porque se
revela colocado no vértice mais distante da platéia, etc.
o automatismo sdo variadas, desde as mais simples
das co- Nio se trata de dizer que nos faltavam grandes atores
médias dos Trés Patetas (uma mulher elegantemente vestida,
carregando muitos embrulhos de compras, que escorrega numa nessa época; pelo contrario, havia uma grande quantidade de
casca de banana e quebra o automatismo do seu andar on- atores muito bons, até mesmo excepcionais. Porém a apre-
dulante, a torta que se esmigalha na cara de um senhor vestido dizagem era deformada por uma visdo artesanal, puramente
dg fraque, automaticamente elegante, etc.) até formas formal, quase sempre servil, que a maioria dos encenadores
supe- tinham do teatro. Nada fez tanto mal ao teatro brasileiro como
riores, como o pensamento automatizado dos médicos de Mo-
o conceito abstrato do “bom teatro”. Não se compreendia que
liêre, para quem os doentes existem porque existe a medicina, o Brasil, a Argentina, a Europa, a Indonésia, o Japao, a China,
e não o contrário. Qualquer forma de quebrar ou revelar o
a Coréia, cada continente, cada pais e as vezes cada regido con-
automatismo provoca o riso. Cinco ladrões fogem da polí
saltam um muro todos ao mesmo tempo e momentos depois, creta de um pais, devia encontrar o seu “bom teatro”, que &
rãtmicamente, começam a aparecer as cabeças dos ladrões por util em determinadas circunstancias especificas e nao neces-
cima do muro: o primeiro, o segundo, o terceiro, o quinto e, sariamente noutras. O colonianismo cultural consiste precisa-
mente nisso: em aceitar como “universais” os valores da cultura
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do colonizador. Então o bom teatro europeu e o bom teatro
norte-americano deveriam ser o bom teatro de todos os países desfilar infinito de sensagées. An_dar de bicicleta lmphcda um;j
colonizados mas nunca o inverso. complicadissima estrutura de movimentos musculares cl e scª»]g
Se o teatro burguês no Brasil dava absoluta prioridade à sações táteis, mas os seqtidos sclecionam os ;sumu :s d?sd‘e
forma, o Teatro Arena de São Paulo, de origem popular, importantes para essa atividade. Cada auvu%ade : uman‘ ,éo .
dava absoluta prioridade à emoção. Com o tempo chegamos a mais comum, como por cxemp]ro andf’xr, é uma operag: B
a compreender a identidade do trinômio IDÉIA-EMOÇÃO-FORMA. tremamente complicada que só é possivel porque os se;xe;mm
Mas quando começávamos a trabalhar, partíamos são capazes de selecionar; -.n”du‘quc captem tgda; cªsrminada
da emoção
da personagem e permitíamos que esta se expressasse ções, apresentam-nas à consciência segundo uma detel
livremente i
no ator, determinando a sua própria forma. Esta forma hierarquia
a que
se chegava a partir da emoção não era “geometrizáv I‘s]to torna-se mais claro quando uma pessoa sai do'dseu
el”; pelo
contrário, era uma emoção real, profundamente ambiente habitual, quando visita uma cidade desconheci 1:,
dialética, rica,
contraditória, humana, única. nomeadamente de um puís desconhecido: as pessoas vesterfãê
de maneira diferente, falam com um ritmo dlferente,h osfn:nm'ls
não são 0s mesmos, as cores sap oulras_. as caras tefm t? t'c(o
A EMOÇÃO PRIORITÁRIA diferentes. Tudo parece maravilhoso, mesperac_io, antás! le.
Fica-se excitadíssimo ao absorver tantas sensações novas.seln.
Em 1956 comecei a trabalhar no Teatro Arena, do fim de alguns dias, os sentimentos aprençlcm novamente ªmege
qual
fui diretor artístico até à data em que tive que sair &
do Brasil, cionar e volta-se à rotina anterior. Imaginemos o gL.le acâ
em 1971. Os atores e tu fizemos um Laboratório e/ãxºs.
de Inter- quando um índio vem à cidade ou quando um h'abgtante
pretação no qual começamos a estudar metodicamente os tra- grande centro urbano se perde na selva. Para o 1vndlo, os rlul &
balhos de Stanislawsky. A nossa primeira proposta foi esta: da selva são perfeitamente naturais e os sentidos nãos umi
que a emoção seja prioritária, que ela possa
determinar, livre- ram-se a seleciond-los: consegue orientar-se pelo snrr? o ch )
mente, a forma final, nas árvores e pela ]umiuosidade/ do sol entre à fç[hagerã e:
Mas como poderíamos esperar que as contrapartida, o que para nés é na}uml e rntlnefrq pode o
emoções se mani-
festassem “livremente” através do corpo do ator, se precisa louquecer o indio, incapaz de selecionar as sensacoes prof us
mente tal instrumento (o corpo) está -
mecanizado, muscular- zidas por uma grande cidade. O mesmo nos acon!ccefm se no:
mente automatizado e insensível em 90% perdéssemos na selva. : i@
das suas possibili-
dades? Uma nova emoção descoberta corria
o risco de ser ca- ) Esta seleção produzida pelos sentidos leva a’mcc‘amf.:»
nalizada pelo comportamento mecanizado
do ator. ção, porque os sentidos selecionam sempre da mesma maneira.
Por que é que o corpo do ator está mecani
zado? Pela enor-
me capacidade que tém os sentidos para registrar sensagoes, Quando comegamos com os Laborçtórios de lnte’rpxtet'w
aliada a uma igual capacidade para selecionar e hierarquizar ção no Teatro Arena ainda ndo pensdvamos nas mascaras
essas sensacges. Por exemplo: o olho pode captar uma infinita sociais; naquela época, a mecanizacio era entendida sob un;z
variedade de cores, qualquer que seja o objeto da sua atenção: forma puramente fisica: ao desenvolver sempre os mes;rl: À
uma rua, uma sala, um quadro, um movimentos, cada pessoa mecaniza o seu corpo para mevã
animal,
muitos milha- Há
res de cores verdes, de tonalidades de verde, os efetuar, privando-se então de uma atuação ongmal em ca ":
perfeitamente per-
ceptiveis pelo olho humano. O mesmo se passa com o ouvido oportunidade. Podemos rir de mil maneiras diferentes, n‘m;m
€ 0s sons, e com os restantes sentidos e suas quando nos contam uma piada não nos pomos a pensar n *
ficas. Uma pessoa Sensações especi- modo original de rir, portanto fazêmo-lo sempre da mesma
que conduz um carro tem a sua frente
um maneira.
36
37
As rugas aparec em porqn ue os
as suas expressdes fisiono; micas
noss
nossos ro: a variam terd que recordar os gostos e manifestar fisicamente todas as
habituais; a repe
Pttiçã o de de- reagdes que acompanham a ingestao de açúcar, sal, mel, etc.
terminadas estruturas mus: icula
res acaba Por deixar a sua Não se trata de fazer mimica: cara feia para o sal e rosto
sobre 0s nossos rostos. marca
angélico para o açúcar e o mel, mas sim de sentir novamente
Que € o sectário sendo uma pessoa as mesmas sensações, “de memoria”. O mesmo se pode fazer
esqu d
(de direita ou de
querda) Ue
que mec
me anizou todos os S seus
seus com cheiros.
pen
pe; samentn os e toda:
odas
i g O ator, com Um exemplo: púnhamos misica a tocar, e vdrios atores
c o todo sser
er huh mano, b tem a melodia, e também
“de&; I::melacan.lzidas, as sua: s ações
õ e escutavam-na, prestando muita atengdo
POr isso é necessdrio comecar
q anização”, pelo seu amaciamento, pâa sua a0 ritmo e ao compasso. Depois todos em conjunto tentavam
e assumir as meca “ouvir’ mentalmente a mesma musica, dentro do m¢smo ritmo
e compasso. Ao meu sinal, os atores tinham que comecar
imediatamente a canta-la na parte que estava a ser “ouvida™
mentalmente: se havia coincidéncia era porque todos estavam
concentrados e haviam reproduzido com perfeicio a música
(melodia, ritmo e compasso).
o ator, depois de relaxar 3 — Exercicios de meméria: faziamo-los muito ficeis e
e de tomar consciéncia de quotidianamente. Antes de dormir, cada qual procurava lem-
brar-se minuciosamente e cronologicamente de tudo o que se
passara durante o dia, com o maximo de detalhes: cores, for-
mas, fisionomias e tempo, repensando quase fotograficamente
tudo o que se vira, re-ouvindo tudo o que se ouvira, etc. Era
mas agora devia recorrer freqiiente, também, que ao chegar ao teatro se perguntasse a
a me-
m objeto do chão, ativando um ator o que se passara desde a noite anterior, o que ele
e
mbrar-se da operação ante tinha de relatar com todos os pormenores. Era particularmente
Faziam-se muitos exercici 0s dest rior.
e gine
ro, variando o obje- interessante fazer esse exercicio quando dois ou mais atores
to (uma chave, uma cadeira,
um sgpatlo) ou tornando-o tinham participado do mesmo acontecimento: uma festa, uma
complexo: vestir-se ou despi mais
;— se, primeiro com roupa assembléia, um espetdculo teatral ou um jogo de futebol. Com-
sem ela. Ou andar de biciclet e depois
a sem bicicleta, deitado de cost parava-se as duas versoes e fazia-se um esforco para se chegar
sobre o solo para libertar os bragos as
e as pernas. a uma conclusão objetiva quando havia discordâncias. Os
i Emcox:sog?s 95 €xercicios,
ici :
? importante era que o ator to- exercicios de memoria podiam igualmente referir-se a coisas
o lência dos Seus misculos, da enorme de variedade passadas hd muitos anos. Por exemplo, cada ator fazia um
que poderia realizar. Qutros exercicios:
como
cor fulano, ), o
rir como 0 beltr. ano, b el te. andar relato pormenorizado de como tinha sido o seu casamento.
. Não se visav
isa : a a exata
visav quem assistiu, que música se tocou, que se comeu, como era
;nâfo s_obretudo a compreensão
interior dos a casa, etc. Ou como tinha sido o enterro de um ente querido.
> vimento. Que é que leva fula
desta maneira? Qu no a andar Qu como foi no dia em que o Brasil, jogando contra o Uruguai
que faz com que beltrano ria deste modo?
perdeu o campeonato Mundial de Futebol, em 1950, no Está-
. 2— Iãxercícios sensoriais: dio Maracana: em que rádio ouviu o jogo? Assistiu a ele? As
O ator ingere uma colher de
mel; a seguir um pouco de sal; depois agiicar, Seguidamente pessoas choravam? Que pessoas? Como dormiu naquela noite?
38 39
T hos:
de memória, , etc. Nos exercícios
o mais importante é haver uma grande riqueza primeiro as emoções da personagem e essas emoções encontra-
rão, no corpo descontraído do ator, a forma adequada e mais
glu;steº Íiºom; ro;ina diária, eficaz de ser transmitida ao espectador, com vista a despertar
de preferência em determ
1a. Serve pararé desenvolv inado mo- nele emoções iguais.
g?ar;is:uér;e:fig; à atencdo: er a memoéria, i mas também
cada qual sabe que terd Os exercícios de emoção passaram a ser rotineiros no
- e de O que vê, . ouve À e sente, À de lem- Teatro Arena; os atores praticavam-nos no palco ou em qual-
traordina riamente
e assi im aumentará á ex- quer lugar, no escritório, na rua, nos restaurantes. Todos
a sua capacidade de atengdo, concentragio os dias cada ator fazia pelo menos dois ou trés exercicios de
laboratério. Nessa época, a grande maioria dos nossos atores era
Ihant:s ; sE);remcl?s Lãe imaginação: muito jovem, sem grandes problemas financeiros, podendo,
faziam-se muitos seme-
são descritos mais adiante portanto, dedicar todas as horas do dia aos exercicios e aos *
contar uma história, (cã i espetdculos. Tiveram assim a possibilidade de praticar em con-
etc.)
NE E junto, com os seus corpos e as suas emogdes, sem terem que
. atoí s—e—mleãx:rclcxfos
de f:ª.mot;ãm: há um abandonar os estudos teéricos. Freqiicntemente alguns atores
: a forma final como > exp muro entre o que
ressa esse sentim fazem como a maioria dos profissionais liberais: estudam en-
ftsosre sr:::;o :; f:rmaglo
;:ielas mecanizagoes do i ento.
Ppr quanto freqiientam as escolas e as faculdades, depois profis-
n moç¢ões de Hamlet: h assim, , s Sem
opr io ator . O
sionalizam-se e passam a sua vida profissional sem fazer ne-
pressard as emoçõeões s de Ha mlet na forma o quer er, i ex-
do Ppro: pririo o nhuma investigação, estudando apenas os didlogos das suas
Mas o ator Poderia igu
almente escolher, entr ator . personagens. No Teatro Arena, pelo menos durante alguns
e as mri,l manei-
anos, isso nao aconteceu. E ao longo desses anos podemos com-
provar como é falso e antiartistico o sistema de produgées iso-
ladas, em que o ator trabalha numa produção e a seguir noutra,
e noutra ainda, sem a possibilidade de aprofundar o seu es-
tudo conjuntamente com outros atores empenhados na mesma
pesquisa. Pelo contrário, ¢ extraordinariamente importante para
os atores o trabalho coletivo, orientado para uma pesquisa
g:rs:;;%:;s ;oubxt'e tesse MUr
o e essas mecanizagdes; comum. A producao isolada serve aos interesses empresari
= 5 rtanto
into,, quequ as duas Anti, não era os grupos mais ou menos permanentes servem à arte teatral,
e âã:% ígª:n;e:aªr%s:ªªlã no gonas, tdo ão didiferentes
palco; que a Peça Sub aos atores e a função social e politica do teatro.

= ! terrâneos
igual à de um Person
4 com uma cadéncia ritm itmjica de voz Os exercicios de emogdo, além disso, são fascinantes de
agem de Goldoni ou ver e de praticar. Em dado momento do nosso desenvolvimento,
de Benavente.
O nosso ponto de vista chegamos a atribuir uma importancia desmedida à emoção (to-
era diferente s queriamos
7
ator pudesse anular que o
de saida todas as suas davia, não era muito clara para nés a importancia da “idéia”).
carac
A partir de 1960, Stanislawsky passou a ser largamente
utilizado também em varios outros elencos teatrais brasileiros.
aª Personalidade” da Por vezes sucediam casos curiosos e aplicagdes discutiveis dos
Personagem, a sua for ensinamentos
Bar a essa forma? Nes ma. Mas como che- stanislawskianos sobre a “memória emotiva”.
sa altura respondíamos Lembro-me do que aconteceu num teatro universitario da ci-
: há que sentir
40 dade de Salvador, Bahia, Um encenador norte-americano foi

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convidado a ensinar Staníslawsky
e a montar uma obra; esco- — “Olhem, enquanto falávamos de sexo e de como Stanley
lheu então Um Bonde Chamado Dese
jo de Tennessee Williams. era maravilhoso na cama, lembrei-m? de uma tarde cheia de
Os ensaios iam bastante adiantados,
quando o encenador de. sol, quando comi três sorvetes seguidos debaixo de um co-
cidiu trabalhar “em laboratório” a cena
de Stella e Blanche du queiro na praia de Itapoã...”
Bois no dia seguinte à tremenda luta entre as duas
Kowalsky. Não havia maneira de cons e Stanley Estes casos de “transferência” extrema não são raros.
eguir fazer a cena; en-
saiavam e tornavam a ensaiar, mudava Na verdade, é absolutamente inevitável um grau me:ior ou me-
m tudo, improvisavam,
mas não havia maneira: a cena saia nor de “transferéncia”: uma pessoa recorda a emoção que sen-
Sempre sem a menor con- tiu em determinadas circunstancias, que lhe aconlecergm a ela
viegao. Até que o encenador decidiu reco
rrer a improvisações de e só a ela e que são circunstâncias absolutamente smgulal'ef
memdria emotiva. Ainda desta vez a cena não resultou. O que, ao serem transferidas mudam um pouco. Eu nunca matei
encenador explicou então & atriz que fazia o papel de Stella:
ninguém, mas tive vontade disso: procuro lembrar-me da von-
— “Vês? O problema é este: Stella tade que tive e faço a transferência para Hamlet quando mata
Iutou mortalmente
com o marido, defendendo sua irmã. o tio. A transferência é inevitável, mas não creio que se d;va
Mas ele pôs-se a chorar,
ela comoveu-se muito ao vé-lo tdo ir tão longe como no caso que conta Robefl Lewis, relativa-
fragil, ele tomou-a nos bra-
Çços, levou-a para o quarto, fizeram mente a um ator famoso, que fazia o púb!lco chorar quandç
amor durante toda a noite,
foi uma noite de loucura, e depois ela puxava do revólver durante uma cena patética e o apontava à
pôs-se a dormir. ..
Ora
bem: a cena comeca na manha segui cabeça, preparando o dedo enquanto falava da inutilidade da
nte. Ela acorda depois de
uma noite maravilhosa com muito sua vida, quase disparando.o balaço final. O ator emocionava e
sexo, estd ainda um pouco
cansadinha mas contente, sorri todo o emocionava-se a si próprio; os espectadores choravam quando
tempo, esta feliz. É uma
mulher feliz. E isso é precisamente o viam chorar, soluçavam quando ouviam a sua voz solugante.
o que eu não sinto na tua
interpretação. Façamos assim: um Quando Lewis lhe perguntou como conseguira tal i","
exercício de memó.ia emo-
tiva. Procura recordar a noite mais bela pacto, tal transbordo de emoção, tal tremendo choque no pú-
da tua vida, a noite
mais plen amente
sexual, porque é isso que falta à cena blico e nele próprio, o ator respondeu:
...”
A pobre moça fitou-o por instantes — “Memória emotiva, meu velho. Não lestes Stanis-
e confessou:
lawsky? Pois aí está”.
— “Eu sou virgem, mister”,
— “Ah, sim. ..” — disse Lewis — “outrora tivesse von-
Houve um momento em que ning
uém soube o que dizer. tade de matâr—te, usaste a memória emotiva e pronto... Foi
Parecia que em tal caso a memória assim?”
emotiva stanislawskiana não
se poderia utilizar. Então, certo ator
deu uma sugestão: — “Vontade de me matar? Eu amo a vida, meu velho.
— “Não importa. Ela pode tentar lembr Nada disso.”
ar-se de algo que
lhe proporci onou a maior felicidade... e
pronto. . . depois — “Então?” :
faz-se a transferéncia. .. sei lá..
.”. Q encenador aceitou a pro-
Posta, fizeram o exercício e em — “A coisa passa-se assim: quando levo o revélve:r a
seguida a cena, que saiu mara- cabega, tenho que pensar em algo triste, ameagador, terrivel.
vilhosa. Todos ficaram contentes, felizes, excitados
ram à jovem como havia conseguido,
e pergu
nta- Bom. E é isso que fago. Lembras-te que quando aponto o
o que fizera para adquirir revélver olho para cima? Aí estd. Lembro-me de quapdp era
aquele rosto tão sensual, tão feliz,
tão atraente. Ela disse a ver- pobre e vivia numa casa sem aquecimento ou luz elétrica, e
dade: sempre que tomava banho era de água fria. Aponto o revól-
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ver à cabeça, olho para cima, para
a ducha, penso na água
fria a cair-me sobre o corpo... Ah, nunca deixei de ver e analisar as coisas estranh’asl que a:{)on—
meu velho, como sofro,
como me vêm as lágrimas aos olhos!. ..” tecem em rituais como a missa, o enlegní eo velono.‘Ler;]_ro-
Apesar dos excessos, os exercícios de memória me de como mudavam as flores no caixdo e d{a maneira nâ e
são bons e emotiva objetiva com que o homem explicava a necessidade dedmu a;
úteis. Praticávamo-los sempre, especialme
versões que nte nas as flores para o caixão ficar mais bonito. Lembrzi-me la Cª;a
adiante se explicam da “Quebra da Repre
em todas as ssão” e de cada uma das pessoas que nos davam os pêsames, ca
suas variantes.
qual refletindo a sua maior ou menor amizade para conosco,
para com a nossa família; lembro-me da expressão do rosão
RACIONALIZAR cansado do padre, talvez fosse o quarto ou quinto e?!el-'r(: dg
A EMOCAO dia a que assistia. Lembro-me.de tudo porque analisei :'o-
Mas um exercicio
no momento em que acontecia, sem que por isso me emoci
intenso de meméria
emotiva, ou qual- ;
quer exercicio de emoção em geral, é nasse menos.
muito perigoso se não se
fizer, posterio rmente uma “racionalizagio” Dou este exemplo que se passou comigo, Mmas isso acon-
passou.do que se
O ator descobre coisas quando se aventura tece, ou pode acontecer, a toda a gente. Talve_z aconlt-eça m%í
a sentir emoções
em determinadas circunstancias. Há casos fregilentemente aos escritores, uma vez que são ana é1s‘las %
extremos. Vivien vocação. O exemplo de Dostoievsky é extraordindrio. Em
Leigh deixava-se levar de tal modo pela
emoção no papel de O Idiota o autor descreve com perfeição e riqueza §e lãcorme—
Blanche Dubois que
acabou Por ser internada num
para doentes mentais. Isso não quer dizer hospital nores os ataques de epilepsia do protagonista. Dostoievsky ÍrzÍ
que devemos rejeitar
0s exercicios de emoção; pelo contrério: há que faz3- epilético e conseguia manter, durante os seus ataques, uma :s
los, mas cidez e uma objetividade suficientes para reom:d]ar as su
com o objetivo de “compreender a experiénci
a, e não só com emoções e sensações e para ser capaz de descrevê-las.
o de senti-la. Há que saber Pporque é que uma
pessoa se emo-
ciona, qual a natureza dessa emoção, quais as suas causa Neste caso, o autor descreve as suas emoçõs_s depois âiie
s, e não
apenas saber como ela se emociona. O “porque” as ter sentido; mas o caso de Proust é ainda mais extraordi-
é fundamental,
pois para nós a experiência é importante; mas nério, mais fantéstico e não obstante real: enquanto e;)stava
o “significado” da
experiência é ainda mais importante. Queremos morrendo, ditava à sua secretdria um longo.capítulo. sobre la
conhecer os fe-
nômenos, mas sobretudo queremos conhe morte de um escritor — ele próprio! E ltmha objetividade
cer as leis que regem
os fenômenos. Para isso serve a arte: para dizer à secretária em que pág,'x.nas devia entrar çssef ca-
não só para mostrar como
é o mundo, mas também para mostrar Porque é assim Pítulo, em que novela, e as alterações que ela deveria fazer
pode transformá-lo. Espero que ninguém e como se
esteja satisfeito com nas novas edições: agora que realmçme estava morrendo, cor-
o mundo tal qual é: por isso há de trans rigia a morte fictícia que tinha descrito an'tenormente. E quan-
formá-lo.
A racionalização da emoção não se proce do acabou de descrever a agonia do escritor, morreu,
ssa apenas de-
pois da emoção desaparecer, ela é imanente Não nos interessa se há aqui verdadeira_ simulganeldade.
também ocorre enquanto ela dura. Existe à própr ia emoção:
uma simultaneidade ou uma rapidissima intermitência razão-emoção. O importan-
entre o sentir e o pensar. te € assinalar o erro e corrigir os atores para quem tudo con-
Dou um exemplo que se passou comigo. Senti siste em “emocionar-se”. Quando um ator se mostra _incapaz
mais fortes emoções da minha vida uma das de sentir, durante os ensaios, uma verdadeira emogdo, estd
quando morreu o meu
pai. Durante o velório, o enterro e a missa do seguramente a laborar em erro. Mas o ator que se descontrola
embora sétimo dia, ndo comete erro menor. Muitas vezes o descontrole é falso,
estivesse verdadeira e profundamente emocionado, tratando-se de puro exibicionismo. Certo ator tornou-se fa-
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