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Práticas dramátic as e formaçã o

Tradução CÁSSIA RAQUEL DA SILVEIRA


JEAN - PIERRE RYNGAE RT

COSACN AIFY ·

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SUMÁ RIO

Prefácio 9
Maria Lúcia de Souzo Borras Pupo

INTROD U ÇÃO 2J

1. A CAPACID ADE DE J OGO


29

11 . PROCED IMENTO S DE J OGO


71

JJJ . INDUTO RES DEJOGO I l)

IV. JOGO E SENTID O


195

ANEXO /FORA- DO -JOGO


245

Notas 265
Bibli~gra.fia 271
Sobre o autor 275
. ' CIO
PREFA


POR UMA PEDAG OGIA DO TEAT RO

As duas décadas que nos separam do apareci mento deste livro


trazem consigo perspec tivas qu e o ilumina m de modo particu -
lar, aguçand o a curiosid ade do leitor disposto a mergulh ar em
suas páginas.
Profess or na Universidade de Paris UI e diretor teatral,

Jean-Pi erre Ryngae rt é também autor profícu o de uma natu-
reza peculiar . Os livros e artigos que assina d ão testemu nho
de uma co~petência à qual muitos aspiram : neles a reflexão
teórica e à exp erimen tação se aliment am recipro cam ente d e
tal modo, que vêm sendo reconhe cidos como valiosas contri-
buições para o avanço da pesquis a em teatro.
Joaar, representar (I 9 8 s) é seu segundo livro. Alguns anos
antes, O joao dramático no meio escolar ( 197 7) começa va sua lon-
ga carreira de repercu ssões positiva s, inicialm ente no meio
acad êmico, logo d epois d entro do sistema educaci onal e em
seguida no ambien te teatral francês . Entre as várias traduçõ es
através das quais passou a ser conheci do em diferentes cantos

.9
do mundo, figura uma versão-portu~esa editada em Coimbra, em parceria com Julie Sermon (2oo6), aprofundam e radicali-
infelizmente rara entre n6s. zam o tratamento de questões já apontadas de modo agudo no
No período compreendjdo entre I 990 e nossos dias, pr esente livro. A primeira diz respeito a diferentes formas do
Jean-Pierre publicou uma série de livros nos quais se volta diálogo em cena, através da discussão de conceitos e do exame
para o exame do teatro moderno e contemporâneo, focalizan - de textos bastante recentes. Uma nova noção ganha o primeiro
do especialmente a análise dramatúrgica. Dando continuidade plano, a de "partilhamento das vozes no teatro". Na segunda
a posições delineadas em seus primeiros trabalhos, o autor se os autores tratam das inovações dramatúrgicas s?b o ângulo
vale de um crivo original para essa análise. Passagens de textos das transformações na definição e no estatuto do personagem
são examinadas através da 6tica do mretor teatral, atento às teatral, indicando suas novas configurações.
lacunas, às brechas, ao que é dito ou não dito, às didascalias e _ Lançando um olhar retrospectivo para o percurso do au-
ao potencial de jogo que essas peculiaridades encerram . tor, pode-se afirmar que O Joao dramático no meio escolar foi um
No que diz respeito à dramaturgia francesa mais recen- dos principais responsáveis pela notável disseminação dessa
te, muitas vezes marcada por certa opacidade à primeira vista modalidade do fazer teatral, tanto dentro do sistema escolar
desconcertante, esse eixo de análise se revela particularmente quanto na esfera da chamada educação não formal, a partir dos
fecundo, dado que nesses casos, mais do que nunca, os t~xtos anos I 970, na França e em vários outros países.
carecem da experiência do jogo para se re~elarem. A afirma- No entanto, a terminologia Joao dramático surge muito
ção feita por Umberto Eco em Lector in Jabula, de que "todo antes, na esteira de uma linhagem de homens de teatro fran -
texto quer que alguém o ajude a funcionar" sem dúvida é uma ceses preocupados com a renovação do teatro de seu tempo.
premissa já incorporada nas obras de Ryngaert. O primeiro deles. sem dúvida é Jacques Copeau ( 1 879-1949),
Dois de seus livros - Introdução à análise do teatro (I 9 9 I) fundado;r do Vieux Colombier. Ao considerar o ator como o cen-
e Ler o teatro contemporâneo (1 993)..!... ambos pe~a editora Mar- tro do fenômeno teatral, Copeau passa a sistematizar diretri-
tins Fontes, focalizam os desafios engendrados atualmente pelo zes para a sua formação gradual e progressiva, dando origem
confronto entre o texto e a cena e vieràm a se constituir refe- a uma verdadeira pedagogia permeada por preocupações d e
rências na esfera dos estudos teatrais e literários. caráter ético.
Suas obras mais recentes, Nouveaux territoires du dialogu~ Outro nome de relevo para uma análise · das origens da
( 2 o os), com textos oriundos do grupo de pesquisa Poética do Dra- prática do jogo dramático é o de Charles Dullin (1 88s- 1949),
ma Moderno e Contemporâneo filiado à Universidade de Paris criador do Atelier. SU:a busca de uma metodologia que con-
I.
III eLe personnaae théâtral contemporain:décomposition, recomposition I
duza à $lceridade do ator, o leva a preconizar a improvisação

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teatral como o caminho por excelência para que o aluno des- popular, na perspectiva de que os bens culturais pudessem
cubra seus próprios recursos expressivos. ser apropriados por todos. PoHticas culturais visando à sen -
É Léon Chan cerel ( t 886 - 196s), h omem d e teatro oriun- sibilização de públicos jovens são efetivadas através de m eios
do das aventuras cênicas de Cop eau e engajado com a formação associativos, comitês de empresa e movimentos de juventude.
dos joven s, que forja o t ermo joao dramático na d écada de 1930. Destaca-se nesse contexto a atuação de Miguel Demuynck
Apoiar -se n a infância e juventude para renovar a arte teatral é a (1921 -2ooo), que, ao longo de décadas, forma monitores d e
sua meta; para tanto encoraja o nascimento e ap erfeiçoamento colônias de férias e professor es do ensino fundamental para
de grupos teatrais e atua em locais pouco convencionais, como a prática d os jogos dramáticos dentro dos CEMÉA [Centro
subúrbios, hospitais , cidades do. interior e zona rural. É nesse de Treinamen to para os Métodos Ativos), impor tante núcleo
.
quadro que os jogos dramáticos tiveram papel importantís- fran cês d e renov~ção educacional . A originalidade dos pro-
simo entre escoteiros e movimentos de juventude da ép oca. cessos artísticos lev~dos a efeito por D emuyn ck é n ítida : p ara
Na origem, eles se caracterizavam como uma modalidade de além do treinamento em vista de um teatro amador, ou da
improvisação teatral cercada por regras precisas, baseada na realização de um catálogo de exercícios, sua concepção d e
formulação prévia de um r ot eiro, seguida p.e lo ·ato de jogar jogo dramático privilegia a qualidade da experiência de ex -
propriamente dito. Quando jogos dramáticos er am propostos, pressão e comunicação d entro do grupo.
a expectativa era a de que os jovens, ao·invés de copiarem ges- É p ortanto dentro desse panorama históriço que a prática
tos, entonações, movimentos do professor, fqssem levados a do jogo dramático se insere, privilegiando uma atuação im-
en contrar por si mesmos as caract erísticas das situações e p er- provisada que se contrapõe à simples r eprodução de formas
sonagens experimentados. teatrais · consagradas. Essa perspectiva, inicialmente dirigida
Além da atuação d e Chancerel como diretor e professor, para a atuaçã~ junto às j oven s gerações, estende-se pouco a
um meio importante para a disseminação d essa prática foi a pouco·também aos adultos.
publicação contínua dos Cahiers d' art dramatique. Cabe lembrar Quando R yngaert aborda a quest.ã o em seu primeiro
que mais tarde ela acabou inspirando, no Rio de Janeiro, a cria- livro, o faz a partir de sua experiência como professor do
ção dos Cadernos de teatro do Tablado, coordenados por Maria ensino secundário e de coordenação de grupos universitários
Clara Machado, importante fonte de formação e reflexão tea- voltados para a formação continuada d e docentes daquele
tr~. pelo Brasil afora, sobretudo durante os anos I 960-70. me~o nível. Sem estabelecer rigidamente fronteiras etárias
No pós-guerra as práticas do jogo dramático ampliam- que delimitariam as improvisações d e càráter lúdico, a <;>J>ra
se e se diversificam no âmago de organizações de educação trata da tipologia das práticas e analisa o discurso sustentado

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pelo jogo. Atravess ado por question amentos relevante s em da capacida de de jogo, tendo em vista todo aquele que estiver
torno do papel do teatro .na formaçã o do jovem, O jogo dra- disponív el para essa aventura . Tentativa s consagra das de deli-
mático no meio escolar discute criticam ente princípio s valiosos mitação de territóri o e de reserva de m ercado, que acarretam
p ara a elaboração de uma pedagogia do teatro. Assim o jogo a dicotomi a embolorada entre o s profissionais e "os outros",
dramátic o dá um salto consider ável no contexto francês : mais sofrem aqui um rude golpe. Os desafios tratados dizem res-
do que uma prática bem-inte ncionada , passa a ser objeto de peito a todos que desejam avançar na exploraç ão do que existe
r eflexão e pesquisa universitária, dando origem a múltipla s de intrinsec am ente lúdico dentro do jogo t eatral, para além
investiga ções no campo da chamada ação cultural. de qualquer ilusionis mo.
jogar, representa r retoma várias questões já configur adas, · Estamos pqrtanto no avesso do d omínio da técnica, dado
lança outras e as expande sob o ponto de vista da formação. qt:J.e n ão há pré-requ isitos para jogar. O interesse do acúmulo
Não se trata d e uma continuid ade da obra anterior, m as de das experiên cias com improvis ação ou a relevânc ia da recepção
n ovas formulaç ões em torno das relações entre o indivíduo teatral sistemáti ca, no entanto, não são descartad os, visto que
e o jogo, à luz de experiên cias diversific adas com adultos e das processo s teatrais atentos a esses fatores tendem certamente
transform ações experim entadas pela cena daquele momento . a possuir maior densidad e. A relação entre fazer e ler o que é
Em Jogar, representar o termo jogo dramátic o quase desapa- feito pelo outro, assim como o desenvol vimento da escuta na
r ece; as práticas enfocada s são agora designad as como modali- relação com o parceiro de jogo, constitue m algumas das preo-
dades de improvis ação t eatral de caráter lúdico. Permanece o cupações centrais manifesta s no texto.
destaque no jogo, mas o adjetivo "dramáti co" provavel mente "Tomar consciênc ia do papel do inconscie nte e do sensível
deixa de correspo nder àquilo que se d eseja agora enfatizar. na relação do indivíduo com o mundo" é o projeto ao mesmo
A r elação entre o sujeito e o jogo, por wn lado, e os signos de tempo ousado. e sutil que mo~e R yngaert. Para tanto, ele discute
uma teatralida de organica mente engendra da, por outro, são os a natUreza da improvis ação teatral e a problema tiza.sob diferen-
. temas que ganham o primeiro plano. tes aspectos. Os pontos de partida lançad.os pelo coordena dor
Uma das proposta s que chamam a atenção na leitura é à - aqui designado s como instruçõe s de jogo -, as condiçõe s da
derrubad a das fronteira s entre os atores· e os chamado s "não emergênc ia do lúdico, o interesse da retomada das improvis ações,
atores", ou seja, aqueles que, independ entemen te de idade ou as funções e as modalida des da avaliação são trazidos à tona.
inserção , se dispõ~m. à experiên cia teatral, sem vinculá-l a a Assumin do posições radicais, Ryngaert contesta a via does-
qualquer pretensã o de carreira. Nesse sentido, este livro é tabelecim ento de um roteiro e sua posterior "realização lúdica".
sem dúvida um divisor de águas. Seu eixo é o desenvol vimento Pretensas oposiçõe s entre forma e conteúdo são . portanto

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...
demoli das na raiz, o'que configu ra urpa das marcas fortes desta
Os vínculo s entre a percep ção sensor ial e a formaç ão do
obra. Mais: a noção de fábula, em crise no rúvel do texto dramát i-
indivíd uo vão para a b erlinda , config urando um projeto de
co, aqui não é enfatiz ada. Nos proced imento s exanún ados, quase
ordem estétic a. Estamo s pois no coraçã o de muitos dos prin -
sempre a fábula resulta da explora ção de caráter lúdico; no mais
cípios que fundam entam uma reflexã o pedagó gica, questã o
das vezes ela não con stitui ponto de partida para o ato de jogar.
central hoje no Brasil se pensar mos na profus ão de situaçõ es
O espaço é destaca do de modo particu lar como potent e
e contex tos nos quais a aprend izagem teatral tem estado em
induto r para o jogo (e a cena brasile ira atual vem nos dando
pauta. É o caso de proces sos de aprend izagem que vêm ocor-
demon straçõe s especi almente férteis nesse sentido ).
rendo em escolas , centro s cultura is, prisões e organiz ações
A criação do person agen: é propos ta a par~r de um pro-
não-go vernam entais, entre outros .
cesso cumula tivo, no qual um esboço · inicial mente tênue vai
Se as ~anifestações teatrai s na contem porane idade não
adquir indo enverg adura, d efinind o-se pouco a pouco a partir
cessam de se afirma r como frágeis , mutáve is, permeá veis à
do encont ro com o outro. A relação d e alterid ade constit ui o
sua própri a contes tação, o que essas página s trazem de mais
âmago da propos ta. Para além de qualqu er constru ção psicoló -
relevan te não pode ser traduz ido em termos de receita s para
gica, é o jogo com o outro- com tudo o que ele pode c~mpor­
proces sos de criação bem-su cedido s. O questio namen to con-
tar de aleatór io - que delinei a os contor nos do person agem.
tínuo das prática s, a recusa do apazig uamen to proven iente de
O confro nto do jogado r com obras artístic as é valoriz ado
fórmul as já assegu radas, a consta nte vigilân cia no que tange
enquan to amplia ção d e seu quadro de referên cias. Nesse senti- ·l
às mais diferen tes manife stações de rigidez estão no centro das
do, a descob erta do. texto em ação- ou melho r, em jogo- que
preocu pações de Rynga ert. Tratam -se, antes de ~ais nada, de
~ria a ser objeto de publica ções poster iores do autor,
já está princíp ios de trabalh o valioso s, a serem retoma dos e interp re-
aqui precon izada e discuti da. ···· tados segurid 9 a singula ridade de cada circuns tância.
Desejo s, temas, situaçõ es não são estabe lecidos a priori,
Dentro das salas aperta das e enfuma çadas da Univer sidade
m~s emerg em. do próp:i o grupo, como respos ta aos
desa- de Paris Ill, nós, os partici pantes do grupo de pesqui sa Jogo
fios embut idos nas instruç ões, cuidad osame nte formul adas.
Dramá tico e Pedago gia, do qual Rynga ert era um dos. coorde -
O grau de envolv imento dos particip~tes nas improv isações , '·
nadore s, trabàlhfl.lllos com afinco e afeto ao longo de anos em
a escolh a dos riscos tidos como passíve is de ser~m encara dos
torno dessa temáti ca e de seus desdob rament os.
são sempr e prerrog ativas deles, embor a a amplia ção da capa-
Além· dos própri os france ses, nós, estuda ntes e pesqui -
cidade de jogo esteja consta nteme nte n<? horizo nte de todos,
sadore s canade nses, belgas , alemãe s, argelin os, tunisia nos e
coorde nador e jogado res.
brasile iros mais ou menos de passag em, cótejáv amos nossas

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. 17
práticas e compartilhávamos nossas interrogações em um
clima d e entusiasmo e produtiva inquietação. D e lá para cá,
como não poderia deixar d e ser, essa reflexão não cessa de
se transformar e ~~ r amificar, abrindo novas p e r spec tivas em
função dos contextos específicos em que passamos a nos ins-
crever. O diálogo com Ryngaert no entanto, apesar de se travar
agora em outras condições, permanece igualmente vivo.
Enfim acessível em terras brasileiras , esta obra traz con-
tribuições férteis p ara a consolidação da esfera ~a pedagogia
do teatro, constH.uindo uma referência valiosa para aqueles que
vêm nessa arte os desafios de uma investigação p erpetuamente
renovada sobre o humano.

MARlA LÚCIA D E SOU ZA BARROS PUPO

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O risco de histrionismo na formação e na educação, pesa sobre
as práticas dramaticas, ~empre vistas com desconfiança. Para
alguns, pouco sérias, para outros, impregnadas do peso peda-
gógico, as práticas artísticas relacionadas ao aprendizado são
cercadas por uma rede de mal-entendidos. Ao lado daqueles
que desconfiam, os que esbravejam obviedades contribuem
para obscurecer o debate.
Evidentemente, dizem, todos sabemos que "jogamos" o
tempo todo,_que o inundo é um teatro, que não passamos de
atores de inúmeros papéis, que ... Sua meditação, vagamente
filosófica, l ogo simplifica-se e reduz os desafios a alguns objetivos
técnicos. Então, que todas as profissões emprestem ao ator, uma
voz e um corpo expressivo, e tudo estará certo! O professor,
sussurr am-me, não é um eterno ator cuja sorte ingrata é a de
<?'lptar, de todas as formas, a atenção vacilante de públicos cada
vez mais exigentes quanto à qualidade da espetáculo, que ~ofre
concorrência perigosa ~os meios modernos de comunicação?

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E o representa nte come!cial? E a aeromoça? E o político? Assim) estamos em constante p esquisa de soluções provisórias . Neste
todos precisaríam os das téc;:nicas teatrais para vender mercado- livro gostaria de fornecer refer ências para algumas prátkas,
rias mais ou menos fr escas a clientelas muito fa.miliarizadas com est ab elecer uma descrição de m eu próprio trabalho, com seus
as técnicas de maiketing. Indo um pouco mais longe: já transfor- meandros e hesitações . Por isso, não t entarei compartim entar
mados em atores uns para os outros) nós teríamos como objetivo as respostas em função de grupos de idade ou de especialida des.
coletivo aperfeiçoa r as técnicas de prestação de serviço artístico A qu estão central incide sobre a importânc ia do joao na atuação
universal) vendendo- nos mutuamen te quinquilha rias. teatral e diz r espeito tanto ao ator, como ponto de referência ,
É claro que est ou perplexo diante de intenções tão redu- quanto ao não-ator, adulto e criança. Não porque as práticas
toras. O teatro é alvo de preconceit os) ele exi~e sua imagem devessem ser . as mesmas para t odo mundo, mas por tratar-
· d e caixa de r essonância ) de arte da imitação) ele é tido como se de delimitar a relação com o jogo como m ot or, e de tir ar
um kit de máscaras cuj o uso correto deve ser d ominado. proveito disso p ar a os diferentes setores que nos interessam .
Mas será q u e não estaríamos con siderando apenas a super fície Portanto não abordarei as questõ~s institucion ais, amplamen te
de abordagen s bem mais diversifica das? tratadas em outras ocasiões muito diversas para serem con side-
É verdade que as práticas dramáticã s na formação evo - radas aqu i em d etalhe.
luem tanto em função das demandas sociais quanto das modas As experiênc ias nas quais basearei meu discurso têm
. teatrais. Os estágios d e forma ção se multiplica m sem que âmbitos diferentes . Graduado em estudos teatrais) trabalho
"seu s objetivos sejam sempre esclarecid os. O direito à criati- com estudantes e professore s numa equipe que se interessa
vidad e) caro aos anos 1 96o) n ão faz sonhar mais do q ue o tea- pelos usos do jogo dramático na educação e na formação. Tanto
tro obrigatóri o para todos com o qual Karl Valentin tinha se na França como. no estrangeiro , tive contato com experiênci as
divertido antes de nós. As técnicas de comunicaç ão centradas_ diversas, às_vezes anál?gas, às vezes contraditó rias. Também
no humano p erdem um po~co d e terreno para as máquinas. tirei pro:veito, na França, dos trabalhos de Richard Monod,
O entusiasm o por uma "forma ção teatral" permanec e, t~to Miguel Demuync k, Jean-Gabr iel Carasso, Augusto Boal; no
entre os atores aprendize s como entre todos os outros que Quebec, de Gisele Barret; de amigos portugues es, holandese s
não têm ambição profission al. O que se deseja é "entregar- se e brasileiros . No entanto sempre tive n ecessidade de questionar
ao jogo" nesses espaços privilegiad os que são as oficinas tea- essas práticas de formação~ de dar a elas novo impulso dentro
trais e os estabeleci mentos de formação. de aventuras teatrais no âmago das quais, agora na posição de
Não pretendo resolver de uma vez por .todas a questão dos encenador , a experiênci a insubstituí vel dos atores me colocasse
objetivos, estab elecendo urna hierarquia rígida. Pelo contrário, em contato com o jogo, no interior da representa ção. Quando
._,
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23
retorno às oficinas, persigo a ideia de encontrar ali espaços que autoriza a multiplicaçã o das tentativas com menores ris-
de criação de outra ·natureza , onde as formas experimenta das cos . D esse m o do, n ão vou propor receitas_. Não existe rela-
estão ligadas às razões profundas da presença dos jogadores. ção evidente e unívoca entre a dramaturaia e a pedaaoaia. As
Por isso o que me importa é questionar essa r elação com experimenta ções co~siderad as aqui atualizam os laços entre
o teatro e com a ficção. Não gost aria que essa relação fosse as dramaturaias e as pedaooaias, com a esperança de escapar das
compreendi da como apr endizado de simulacros, como .rep e- reduções mecanicistas .
tição, dentro de um quadro fechado, de situações artificiais D everia ser considerado também o prazer de inventar, a
destinadas a estimu lar a h abilidade d e jogar papéis sociais toma.da d e con sciência da espessura sensual de um momento
ulteriores. Isso seria enfatiza~ abu sivamente a exterioridad e, fugaz, como s_e , apesar de tudo, o sensível tivesse a ver com
. .
as receitas e os artifícios, o aspecto mais chamativo do teatro. a formação.
Ao contrário, desejo que o sur gimento de ficç~es suscite uma
reflexão sobre a interioridade do sujeito e sua expressão, sobre
a manifestação de emoções e de sensações em formas codifi-
cadas. No mesmo movimento, a conscientiza ção dos modos
a
de produção artísticos, individuais ou co]etivos, ajuda sair da
oposição muito estrit a entre processo e produto. · ·
A propósito do jogo, falaremos tamb ém de terapia. A onda
t erapêutica, da qual já era possível medir os e feitos n os anos r 9 7 0,
não parou de ·se propagar. Atualmente é difícil não considerar
a busca individual, a importância dada à "biografia" de cada UD'l
n o grupo d e jogo. A busca de soluções pessoais para um bem-
estar imediato modificou as oficinas d e for mação e, às vezes,
aprimor ou as imagens do m undo que se esp erava fazer surgir.
Portanto, trataremos de terapia se e~carar.mos como t al uma
busca d e equilíbrio entre o fora e o dentro, entre o ipterior e
o exterior, e o jogo como um insubstituíve l espaço it:ttermediá-
rio. O interesse pelo jogo provém dessa situação de entrelugar,
nem no sonho n em na realidade, mas-numa zona intermediári a

lJ
AS ETIQUET AS: JOGO , TEATRO, COMUN ICAÇ ÃO

Não retomar ei aqui o debate em torno das etiqueta s que


qualifica m as práticas dramátic as na educaçã o e formaçã o .
Teatro, expressã o dramáti ca, jogo dramáti co, expressã o -
comunic ação, evidente mente, não abrange m a s mesmas
realidad es. Mas a palavra teatro, tomada isoladam ente, refe -
re-se, de fato, às mesmas práticas , se tivermo s em mente
o teatro naturalis ta, a represen tação brechtia na, os sonhos
de Arta';ld, uma noite no bulevar ou uma peiforma nce con-
temporâ nea? Não faz parte de meu projeto nem hierarqu i-
zar nem excluir. Gostaria de mudar de perspect iva, centrar
a reflexão em torno da dimensã o de jogo que existe nas
diferent es práticas e me preocup ar com a relação do indi-
víduo com o jogo e com o mundo. Encontr aremos, por-
tanto, se desejarm os, referênc ias às dramatu rgias existent es,
mas somente em filigrana . Não me cabe fazer a. escolha de
um teatro que seria particul armente convenie t?-te a !}OSSOS
projetos . A transpos ição d emasiado exclusiva de um modelo

.-...
artístico no _domínio pedagógico só serviria para empo- total da rep-r esentação, como a manutenção excessiva dos
brecê-lo . ou. caricaturá-lo. Além .disso, o teatro se submete participantes em um casulo que os excluía definitivamente de
cada vez menos a regras i~utáveis. Como diz Georges Banu, uma comunicação mais ampla. É evidente que a representa-
o teatro está sobretudo à procura perpétua de "saídas de ção encontra seu sentido em contextos diferentes, os quais
ernergência" para escapar de um estado de crise permanen- não cabe a mim avaliar. Acho simplesmente inútil a oposição~.-,
te. 1 Cabe a cada um definir suas práticas em função de situa- radical entre o processo e o produto, entre exercícios e repre-
ções diferentes. Entre as qualidades do instrumento teatral, sentação, cada vez que ela se apresenta em torno de desafios
darei prioridade. a sua flexibilidade. que nada têm a ver com a formação dos indivíduos. A reflexão
Isso significa qu·e tudo se equivale e que nada caracteriza sobre a capacidade de jogo nos levará justamente a conside-
as práticas examinadas aqui? rar, no caso muito particular do teatro, as relações complexas
Sempre vou me referir, de maneira implícita ou explíci- entre processo e produto.
ta, a um olhar dirigido para os jogadores, e isso será um elo A representação teatral não é um processo permanente;-··,
indiscutível com o fenômeno teatral. Em uma oficina, nem um trabalho «em andamento", que não acaba nunca de exibir
todo mundo está em atividade simultaneamente; a natureza sua fragilidade e que não exclui, no entanto, nem a serieda-
e as funções dos olhares lançados para os jogadores deter- de nem o esforço? Se a finitude é um valor tranquilizador
minam as práticas. Joga-se para si diante dos .outros , e as na pedagogia tradicional, o jogo autoriza .tentativas e formas
remessas incessantes de olhares caracterizam as atividades. ) flexíveis que abrem outras portas. Não darei exemplos de
No entanto, não vOu me referir à representação teatral- tal ''boas" representações. Continuo pensando que uma das pers-
como é entendida tradicionalmente- que "distingue estatu- pectivas .d as .oficinas consiste em definir, em cada circuns-
tos diferentes para atores 'e espectadores. No quadro da f~r­ tância; formas . de "apresentação" que diversificam o~ rituais
mação, julgo indispensável que essas funções sejam ocupadas· _' de ·acordo com os objetivos estabelecidos pelo grupo. Mais
alternadamente por todos os participantes. vale exibir ~ exercício que se apresenta como tal e tende
Trata-se então unical'Xlente de laboratórios fechados, orgu-: ao espetáculo, d<;> <}Ue uma representação ambiciosa demais
lhosos de suas experiências Íntimas e bem decididos a nunca que esbarra no .ridículo, ao enrijecer suas regras de funcio -
compartilhá-las? Questionei no passado o processo da repre- namento e vangloriar-se inutilmente. Da experimentação a
sentação escolar tradicional ·e das diferentes festas de fim de qualquer preço às imitações do espetáculo obrigatório, exis-
ano que marcam o encerramento das atividades de diferentes t.e todo tipo ~e a.bertura para o exterior, todo tipo de relação
·grupos não-profissionais. Isso foi traduzido como uma recusa com os olhares. Consideremos, portanto, a abertUra para um.

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31
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público como uma possibilidade~ não como um objetivo final
que deve ser atingido a qualquer preço, sobretud o em detri-
mento dos indivídu os. O acabame nto de um trabalho (sem -
pre provisór io) é uma eventual idade, não uma exigênci a que
I Joga-se para si, joga-se para os outros, joga-se diante dos ,
o utros. A ausência de um desses element os, ou sua hip·e r-
trofia, desequil ibra o jogo. O individu alista arrebata do não
partilha nada. O grupo fechado em seu prazer abandon a-se ·,,
impõe a ditadura de resultado s visíveis. ao narcisism o. Mas, de tanto querer projeta~ para o exte- \ '·
Em nossa reflexão sobre o jogo, portanto , serão encon- rior uma emoção frágil, corre-se o risco de fazer dela uma
tradas constantemente imagens do teatro. No entanto, não caricatu ra, de dissolve r uma experiên cia sensível em signos
farei r e ferência s ao figurino , à maquiag em, ao palco como grosseir os; preocup ados demais em transmit ir, eles só for ~
tal. Meus interesse s estão m ais voltados para os jogadore s necem banalida des.
do que para os diferent es· compon entes dás linguage ns dra- Por outro lado, a linguage m artística não garante a cla-
máticas. O reconhe cimento da teatralid ade começa aqui reza da mensage m. Por seu estatuto, o artista é um inventor
com sinais discreto s, às vezes baseados no cotidiano, como capaz de propor ao público formas inéditas e desconc ertantes
marcas preciosa s e pouco visíveis de nossas culturas . Um que o colocam fora das leis da comunic ação tradicion al. Tra-
teatro mais atento às pequena s músicas do que às grandes_. dicional mente o jogador não é consider ado um criador, mas
sinfonia s, talvez porque o domínio da ~xpressão me pareça nós não pensamo s que ele deva estar condena do à continui -
sujeito a excessos caricato s. Desse modo, gostaria de ficar dade e à mera reproduç ão. Descrev eremos as interven ções
atento as " pequena s vozes" .
\
legítima s dos espectad ores em direção aos jogadore s durante
Além das relações privileg iadas com o teatro, nossas as fases de verbaliza ção. Mas não acredito na aprendiz agem
práticas pertenc em ao vasto campo da expressã o-comu- exclusiv a de regras da comunic ação no jogo, pelo menos se
nicação por suas relações com a pedagog ia e pelo fato de eJe tende a uma densidad e artística . Na verdade, tratando -se
diz~rem respeito a um maior número de pessoas. Serão
também de comunic ar uma emoção, os critérios de análise
encontr ádos inúmero s exemplo s dessa preocup ação com habituais se mostram insuficie ntes.
a comuniC ação, embora eu não deseje que e la se dilua na
Por fim , não tentarei excluir totalmen te nossas· práti-
ânsia por clareza. :•vocês não compree nderam o que nós cas do campo da terapia, na medida em que o jogo é uma
jogamos , foi muito longo, mas nós tivemos imenso prazer atividad e .central dentro dela. Pode-se lamenta r ou ficar
em improvis ar, então, azar." Essa reação de jogadore s ao ter-
satisfeito com isso, mas parece-m e que, para ser claro acer-
minar uma imprqvis ação ao ar livre diante do resto da ofi-
ca dos objetivo s, é imposs~vel edificar barreira s artificiai s
cina, gél~do, ilustra uma dificulda de da comunic ação teatral. entre as áreas. ·

32
33
Teatro, comurucaç~o, terapia - o jogo, tal como o enca-
O JOGO CO MO EXPER I ~NCIA DO MUNDO
. ramos, mántém relações naturais com esses três campos d e
NUM ES PAÇO INTERME DIÁRIO
atividade . Concent rando nossas preocup ações no jogo e na
capacida de de jogo dos particip antes, ele nos interessa ao
mesmo t e mpo como experiên cia sensível, experiên cia artis-
tica e r elação com o mundo.

Jog? e terapia

Nunca devemos esquecer que jogar é uma terapia em si.


Fazer o neçessári o para as crianças serem capazes de jogar
é uma p sicoterap ia com aplicação imediata e univer sal; ela
comporta o estabelec imento de uma atitude social positiva
em relação_ao jogo. Mas é preciso admitir que o jogo está
sempre a ponto d e se transform àr em alguma coisa assusta-
dora. E pode-se considera r os jogos fsames] , com o que eles
comporta m de organizad o, como uma tentativa d e manter a
distância o aspecto aisustado r do jogo [playina].
[ .. . ] o que me importa, antes de tudo, é mostrar que jogar
é uma experiênc ia: sempre uma experiên cia criativa, uma
experiên cia situada nó continuum espaço-te mpo, uma forma
fundamen tal da vida. 2
,.

Essa longa citação de Winni cot~ resume bem a inquietação Farto das questões incessantes sobre o aspecto p sicodra-
· produzida entre os teóricos e praticantes do jogo. Ela dá ao mático do jogo dramático, tentei, não sem alguma ingenuida-
jogo toda a sua importância, sem minimizar ·s eus riscos e enfa- de, colocar em evidência distinções formais que garantiriam
tizando que ainda assim valem a pena. a inocência das oficinas de teatro, apresentando -as como um
· Certamente Winnicott aborda aqui o jogo infantil, tanto em lugar onde o inconsciente , d e algum modo, teria sido manti-
suas formas espontâneas como nos aspectos de .que se reveste do no cabresto. 3
em seu consultório de terapeuta, por ocasião de consultas nas S-erá que é para confessar que admito agora a confusão,
quais ele convida as crianças para jogar. Ele não se refere nem ao entrando como muitos outros, por minha vez, no campo da
jogo teatral, nem às formas que o jogo assum_e para os adultos psicoterapia selvagem?
fora de qualquer objetivo terap êutico· declarado. Não é menos Nesses últimos anos, com a evolução das práticas, enfa-
verdade que sua análise, desde então célebre, do "espaço poten- ti~ei o engajamento dos participantes no jogo, assim como a
cial" é um ponto de referência ao qual não deixarei de me referir. carga emocional indispensáve l para que a irn~ginação escape
Atualmente é bastante conhecido o debate entre os adep- do lugar-comum , se confronte declaradame nte com os clichês
tos do "jogo" e os responsáveis pelas instituições educativas, as e aborde os problemas de frente. O engajamento sensível no
quais gostariam de se assegurar de que a terapia não penetra trabalho artístico conduz também a discursos pessoais mais ou
por contrabando nas vias do saber. A tradição educativa fran - menos simbolizados .
cesa desconfia de toda pedagogia que diz respeito à intimidade Aliás, o reconhecime nto da afetividade está na ordem do
do sujeito. Se a educação artística tem ainda tanta dificulda- dia. Os temas das improvisaçõe s evoluíram, sua dimensão social
de em penetrar nas instituições educativas, é também porque · ou política foi reduzida. Nas oficinas de teatro encontram-s e
seria desejável ter certeza de que ela não concerne de mo_do vestígios da~ preocupaçõe s pessoais dos jogadores, sinais de urna
algum à vida privada dos alunos, não desencadean do nenhum inclinação para ternas mais íntimos. Trata-se, às vezes, de um
drama interior. O jogo teatral é parti~armente suspeito em verdadeiro movimento pendular, se pensarmos no destaque
razão de operar em uma zona intermediári a entre o sonho e a dado à inspiração dos grupos, em detrimento daquela dos
realidade e por recorrer, de forma implícita, às fantasias. Aliás, indivíduos..A1guns estágios do Teatro do Oprimido denunciam
acredita-se ainda, aqui e ali, que o texto literário e o selo artís- cada vez mais opressões íntimas, da ordem do microcosm<? ,
tico consigam manter o jogo e o teatro em campos seguros, refletindo também essa tendência "de levar em conta o pon-
assim como se acredita que eles barram firmemente o famige- to de vista sensível dos participantes , da mesma forma que as
rado psicodrama , fantasma do setor educativo. reações pertencentes sobretud.o ao mundo social:

37
Nem todo investim·ento pessoal dos jogadores, evident~- Nesse caso, os artistas profissionais suportariam sozinhos o peso
. mente, dá lugar a um psicodrama . Uma improvisação que escapa das preocupações afetivas de uma socied ade que os marginali-
dos lugares-comWls, e que se manifesta entre os participantes zaria, louvando-os de longe quando assumem, e pisodicamente,
com grande concentração e engajamento flsico e mental, não em rituais espetaculares, todas as funções catártic as.
deve ser traduzida em termos analíticos. Winn.icott, indo na con-
tramão das distinções habituais, no caso do jogo infantÚ chega a
relativizar a importância dada tradicionalmente à interpretação: Jogar é faz e r

Me u objetivo é simplesmente lembrar que o jogo das crian- Há muito tempo os teóricos do j ogo chamam atenção para seu
ças contém tudo nele mesmo, de modo que o psicoterapeu - caráter insubstituível nas aprendizagens . O jogo fadlita uma
ta trabalha sobre o material, o conteúdo do jogo. [ ... J Mas espécie de experimentação sem riscos do real, na qual a criança
compreendemos melhor nosso trabalho se sabemos que o se envolve profundamente. Ele se caracteriza pela concentra-
que está na base do que fazemos é o jogo do paciente, uma ção e engajamento (o jogador seria uma espécie de sonhador
experiência criativa que se inscreve no tempo e ~o espaço e acordado), mas permite o afastamento rápido dos protagonistas
que é intensamente real para o paciente. em caso d e necessidade, isto é, se esses fore~ ameaçados pela
[... 1 angústia. Winnicott vai além, d efin indo um espaço-tempo que
A interpretação dada quando o material não está maduro é seria próprio do j ogo. Para isso, ele se apoia em suas conheci-
doutrinação que produz submissão. 4 das t_eorias do objeto transicional, exp eriência essencial para a
criança que, de~se modo, cria seus pontos de referência entre
Nem p or isso nós vam os confWldir tudo ou renunciar à distin- ela e a mãe,_entre o eu e o não-eu. Constatando que o jogo não
ção entre os lugares do j ogo teatral e os lugares da terapia." Seria provém ?em da realidade p síquica interior (ele se distingue do
preciso, no entanto, parar de temer qualquer manifest.a ção da sonho e da fantasia), n em da realidade exterior (ele não se c on-
afetividade na atividade teatral e de co:onsiderá-la uma situação funde com a experiência r eal), que ele n ão está nem dentro nem
psicodramática. A manifestação pública d.e um estado sensl- fora, Winnicott o situa em uma zona intermediária, um esp~ço
vel não d eve ser classificada ·com o rótulo da psicanálise: pois potencial definido como o campo da experimentação criativa .
~os condenaríamos a nos ii~teressar por um tràbalho artístico Esse espaço é essencial ao d esenvolviment9 e se confunde com
apenas abstrato, árido, que imita em vão os desafios dos vivos o espaço cultural , o das pulsões criativas, sem as quais o indiví-
depois que t odos os vestígios hutnanos tivessem desaparecido. duo não encontra mais sentido para sua existência.
Ele (o jogo) ·não está· dentro, qualquer que seja o sentido da Jogar leva a estabelecer relações de grupo; o jogo pode ser
palavTa. Ele também não se situaJora, ou seja, ele não é uma uma forma de comunicaç ão na psicoterapi a e, para finalizar,
parte repudiada do mundo, o não-eu, desse mundo que o eu diria que a psicanálise desenvolve u-se como uma forma
individuo decidiu reconhecer (qualquer que seja a dificuldade muito especializad a do jogo, colocada a serviço da comunica-
ou mesmo a dor encontrada ) com o estando verdadeira mente ção con sigo mesmo e com os outros. 6
no exterior e escapando ao controle mágico. Para controlar o
que está fora, é preciso Jazer coisas e não simplesme nte pen - Portanto, não delimitare i minuciosa mente os respectivo s cam -
sar ou desejar; ejazer coisas leva tempo. Jogar é fazer. 5 pos do teatro e da terapia para que, assim, cada um encontre
neles sua esp~cificidade . Também não farei d istinções num
Essa ú ltima síntese faz tudo pender do lado do j0gador e não passe de mág~ca, demonstra ndo que não h á terapia a partir do
do lado do terapeuta. Ao invés de o jogo ser encarado como momento que não há terapeuta. O jogo coloca-se acima do t ea-
uma "conduta mágica" c u jos riscos seriam identificad os, ele tro e acima da terapia, como uma experiênci a sen sível funda -
é, ao contrário, um vasto campo de experi~entação do real . dora do desenvolvi men to do indivíduo em sua relação com o
Fazer, tal como o entende Winnicot t, deve ser considera do mundo, no âmago do campo cultural. O trabalho do jogo, como
num sentido bastante amplo e se disting ue d a criação artís- o da arte, se situa entre o subjetivo e o objetivo, a fantasia e a
tica tomada isol_a damente. Fazer depende de uma pulsão de realidade, o interior e o exterior , a expressão e a comunicaç ão.
v ida que leva o indivíduo a criar de todas as maneiras, e m
seu jardim ou em su a cozinha, já que a criação é "inerente O lugar em que se situa a experiênci a cultural é o espaço
ao fato de v iver" e permite ao indivíduo a abordagem da potencial entre o individuo e seu meio · (originalm ente o
realidade exterior. objeto)_. Pode-se dizer o mesmo do jogo. A exp eriência cul-
Não cito tão longamen te Winnicott para torná-lo garantia · tural começa com um modo de vida criativo que se manifesta
de ativid ades que se situam, no que nos diz respeito, ao lado Pt:"imeiro no jogo. 7
da experiênci a terapêutic a. Um dos interesses de seu trabalho
teórico· é que ele não anexa o jogo ~ t erapia, fazendo dele um Quan_do, nuina redução simplifica dora, falo do "jog~'' para
material a partir do qual o analista trabalharia . Ao contrário, designar o jogo teatral ou me r eferir às ·praticas dramática s,
e~e deixa claro que a terapia já se encontra no j ogo, indepen - não pretendo reduzir toda experiênc ia lúdica apenas a es$aS
d e ntemente de qualquer intervençã o externa . Cabe aó tera- manifestaç ões. Nas práticas de formação que nos interessam
peuta, inclusive, "saber jogar'' com seus p acientes: aqui, enfatizarei a dimensão de jogo e considerar ei o aumento

41
da capacidade de jogo dos indivíquos como uma maneira prio- A CAPACIDADE DE JOGO

ritária d-e trabalhar o real. e de escapar da alternativa introver-


são/ extroversão.
A trama do jogo se constitui no intervalo, a partir de
materiais informes, de pulsõcs criativas , motoras e sensoriais.
Do mesmo modo que o analista não interpreta esses m~teriais
produzidos pela experiência individual, o formador não esco-
lhe os "jogos certos", nem os assimila a um conjunto de técni-
cas teatrais. Oferecedor de jogo, mais do que <7ondutor de jogo,
jogador ele pr6prio, no sentido em que corre os mesmos riscos
vivendo experiências paralelas às dos participantes, o form ador
não é terapeuta. No entanto, ele não exclui as funções terapêu- As c~pacidades definidas tradicionalmente no ator não corres-
ticas do jogo. Quando os participantes aumentam suas possi.bi- pondero exatamente àquelas que se esperam do não-ator. Os
lidades de expressão e comunicação e multiplicam suas expe- participantes de uma oficina de jogo não têm ambição de adqui-
riências no grupo, é porque eles desejam se entregar .ao jogo. rir um savoirjaire profissional. Entretanto, desde que se trate de
Essa preocupação de encontrar espaços pótenciais favo- jogo teatral, aparecem modelos implícitos e com eles a ideia de.
ráveis ao trabalho será encontrada na descrição das práticas. que há ''bons jogadores" e "maus jogadores". Seria ilus6rio negar
Os indutores de jogo não se encontram nem totalmente no diferenças ou anular as aquisições de uma formação profissional.
interior dos indivíduos, nem totalmente no exterior. Uma No entanto, a n<?ção de capacidade de jogo ultrapassa a simples
parte de no~~a reflexão recai sobre as zonas intermediárias distinção en~e especialistas e não-especialistas e não diz respei-
entre o dentro e o fora, sobre a manifestação de subjetivida- to apena~ à técnica teatral. Escondidos atrás de seu savoirjaire,
des que vão ao encontro de imagens do mundo, por ocasião alguns atores. têm, no entanto, "dificuldade d e j~gar". A .c apaci-
do processo de cri~ção. ·dade de jog_o se ·a plica a eles do mesmo mqdo que aos jogadores
das oficinas, ainda que seja uma noção diflcil de delimitar.
Quando se tenta descrever o jogo teatral, a tendência é reter
apenas os aspectos .mais visíveis, ou mesmo. os mais evidentes. Tão
evidentes que às vezes o jogo é confundido com seus exce~sos.
Certamente é dificil ignorar a disposição corporal ou o domúúo

43
t'

vocal. No entanto, esses últimos dizem mais respeito a sinais de Os obstáculos ao jogo
uma formação que desenvolveu as ferram e ntas expressivas
de um indivíduo, do que à sua capacidade de jogo propria- Algumas das dificuldades de jogo descritas aqui são evid entes.
mente dita. Emrnanuelle Gilbert e Dominü]ue Oberlé , colocan- Elas são ainda mais perniciosas quando alimentam o senti-
do-se no terreno dos não-especiali stas, apresentam o problema mento de que o jogo existe, enquanto se d esenvolvem apenas
em outros termos e não aprovam a distinção entre bons e maus simulacros. Para além das disputas d e escolas e de opções esté-
jogadores. O que elas consideram é a atividade, e não o indiví- ticas, somos levados a nos interrogar sobre o jogo quando ele
duo. Elas propõem substituir o preconceito "eu jogo mal, eu sou é definido em primeiro lugar n egativamente , isto é, quando
um ator ruim" por "eu tenho ~ficuldade para j~gar", que coloca pen;:ebido apenas p ela sua ausência.
em questão a atividade e ás instruções dadas inicialmente:
A inibição
Ora, o que deve ser buscado por cada um . .. não é o r esultado
mas o próprio movimento do jogo que está ·sendo realizado, A paralisia é uma dificuldade familiar ao jogador iniciante, tal -
m ovimento em que o indivíduo experimenta sua criatividade. vez a mais comum. Comodamen te definida como um " blo-
Essa experiência é acompanhada de maneir a muito ·m arcante queio", ela se traduz, sobretudo , p or uma impossibilid ade de
e visível de uma reapropriação do jogo p elos jogadores, que superar a angústia causada pelo o lhar do outro ou o sentimen-
podem, então, jogar para si mesmos diante dos outros, e não to de ser ridículo a seus pr6prios olhos, a famosa consciência
m ais para os outros. Passamos então do "eu joguei mal" para de si. Essa "timidez" difícil de superar ímp~de toda mani-
"eu tenho dificuldade para jogar''. 8 festação vocal ou motora, torna desajeitados sujeitos que
habitualmen te não o são. Ela se manifesta tanto em c~ian­
· .Atacando de frente a questão do joao, corre-se o risco de apreen- ças como em adultos e não se explica somente pela cômoda
der apenas o v~o e de construir algumas quimeras. O s maiores noção d e "pânico". Ela poderia ser resumida por uma hiper-
atores são discretos sobre os m ecanismos que lhes são familia- trofia do "interno" e uma impossibilid ade de abertura para o
res, às vezes porque não conseguem descrevê:.los. Sabendo que exterior. O jogador gostaria de ter a possibilidade de não se
talvez estejamos diante do· inefável, tentemos, no entanto, com- mostrar, de não falar, de não "ser".
preender alguns d os critérios que definem a capacidade de jogo, Uma ·das funções do jogo é derrubar uma parte das
começando pelos mecanismos que freiam as possibilidade s de· d efesas que provocam a inibição. Mas a inibição impe~e a
se empenhar nele. situáção de jogo d e se realizar, criando assim um círculo

. 4-S
vicioso. Muitas soluções são vistas como possíveis. Alguns Em um trabalho com adolescent es num centro de forma-
. pensam, como Gisele Barret, q~e uma prática de expressão ção de aprendizes , tudo começou com o medo manifesto do
sem olhar externo cria· condições favoráveis à diminuiçã o grande vazio central consagrad o ao jogo. Nada estimulava a
das tensões. 9 que se revelassem . Inquietos, os adolescent es não retiraram o
Desse modo, é comum começar uma oficina de jogo por blusão à guisa de carapaça protetora. O silêncio acolheu as pri-
meio de exercícios de "aquecime nto" ou de interação éntre os meiras manifestaç ões, gargalhada s e gracejos marcaram algu-
participan tes, utili~ando diversas instruções que favorecem a mas tentativas de jogo. A situação evoluiu quando, negligen-
atuação de personalid ades mais reservadas. Aqui não se ataca ciando as progressõe s tradicionai s e o aquecimen to preliminar ,
diretamen te a razão profunda de uma recusa de jogo, quais- eles, por co~ta própria, escolheram a improvisaç ão para jogar
quer que sejam suas manifestaç ões. Às vezes, alguns adoles- situações oriundas de sua própria experiênc ia (e todas, aliás,
centes a expnmem d"1zen d o "é besta , ou (( nao
0
- serve para n a d a , . tinham a ver, diretamen te ou não, com a dificuldade de comu-
A ausência de desafios claros e o sentim ento de uma expres- nicação). Eles jogaram em verlan , 10 deixando bem claro o fato
são gratuita ou manipulad a favorecem a inibição, remetem à de p ertencerem a um clã, assim como sua vontade de utilizar
loucura. Toda manifestaç ão expressiva "gratuita" é como que uma linguagem que lhes conviesse, ou uma linguagem que fos-
implicitam ente ameaçada pelos riscos da loucura ; uma vez se menos compreen dida pelos "visitantes ". Esses adolescent es,
que jogar passa também por "bancar o louco". Nessa situação, na verdade, não estavam inibidos, mas sim assustados com uma
a presença ou ausência de olhares externos não altera em qua- ferramenta que não sabiam como utilizar, tomando posse dela
se nada a inquietaçã o. quando compreen deram que podiam escolher suas formas de
Desse modo, sou prudente sobre as m·aneiras de supe- jogo e decidir .eles mesmos a importânc ia dos desafios.
rar essa paralisia. A recusa de expressão manifesta ora uma
Há·poucos exemplos de inibição propriamente dita, exceto
falta de co~ança em sí mesmo (não sei fazer, não sei o em _casps extremos que apenas raramente aparecem em nos-
que fazer), ora uma falta de confiança no grupo. Ou ainda, sas oficinas .. Por outro lado, para que a paralisia das primeiras
como já ·foi dito, u:r;na· falta d~ compreen são do que está em horas seja eliminada de maneira durável, devem ser definidos
jogo. Em todos os casos, · O tempo aparece como critério desafios claros para que a abertura para o ·exterior ganhe i.un
essencial. Deve ser possível reservar a cada ·um o direito ao sentido para os participan tes. A capacidade de jogo não é uma
retraimen to e ao silêncio, o direito. a uma expressão míni- qu alidade intrínseca, que·paira no ar. Ela se manifesta quando
ma, patamares que levam à manifesta ção. sem risco de julga- a oc~sião real permite representar para si diante dos outros, fora
mento ou de condenaçã o. de qualquer nóção. de prova ou de exercício.

47

·'
A extroversão esfor.ço. Cabe ao responsável' pela oficina propor as instruções
que r elancem o jogo, enfatizando o engajamento individual , o
No m ínimo tão frequentes quanto a inibição, mas mais difí - risco pessoal e a concentr ação. Trata-se, também nesse caso, de
ceis de m ensurar, as manifestações de cabotinismo prejudicam tomar consciência dos desafios e de partilhar a id eia de que uma
r adicalmente a capacidade de jogo. É mais comum o cabotinis- oficina de te~tro não se restringe à aprendizagem de alguns tru-
mo se manifestar na criança por um desejo d e "bancar o louco" ques. O histrionismo causa estragos. O aumento da capacidade
e por uma grande agitação, por uma expressão transbordante de jogo começa com a aceitação da experiência sensível.
que nunca leva em conta a existência de parceiros. Tanto no
adulto como n a criança, tra~a-se de brilhar a qualquer preço. A neoação do joao
Tudo então se volta para o "exterior", e a recompensa espera-
da reside nos risos e n as m anifestações de prazer dos o utros. Numa situação de jogo na qual o participante parece eng:1jado,
Enquanto a inibição é reparada por todos e interpretada nega- de repente, por diversos in ~:Hcios, ele m ostra que não se deixa
tivamente p or um .excesso de timidez, o cabotinismo é muito iludir com aquilo que faz , estando a ponto de cessar seu enga-
m enos notado e até é julgado positivamente, pois corresp onde jamento a qualquer momento. Essa p erda repentina da con cen -
aos modelos espeta·c ulares divulgados p ela mídia. ·A expres- tração se manifesta por diferentes atitudes: a "piscadinha" ou o
são se reduz a algumas condutas estereotipadas cuja eficácia é sorriso dirigido aos espectadores , alusões verbais à realidade
medida p elo efeito produzido naqueles que assistirem a elas, a imediata, ao aqui e agora do jogo, exprimem um mal-estar ou
gags tiradas diretamente dos esquetes ou a outras atuações de buscam um encorajamento, restabelecem o contato com aqueles
atores conhecidos. O cabotinismo normalmente ·agrada, mes- que estão fora do jogo, na esperança de que eles manifestem seu
mo em suas manifestações mais espalhafatosas. assentimen~o, ou pelo menos sua presença . Esse. engajamento
É difícil fazer com que um indivíduo e um grupo avaliem parcial é 'a prova da existêhcia de um espaço intermediário esp e-
por que e ssas manifestações expressivas grosseiras destroem cífico ao jogo; que é vivido perigosamente p elos participantes. O
d e modo quase certeiro toda possibilidade de jogo, como elas abandono total. a um "estado de jogo" não é vivido facilmente por
reduzem o jogo a mecanismos su~ários que suprimem t oda um adolescente ou um adulto que não tem tal hábito de concen-
invenção. O desejo de fazer rir é legítimo, ainda que corres- tração. Os jogadôres P.arecem verificar a existência de passagens
panda, sobretudo nas situaÇões de oficina, a o~tra manifesta- ~e segurança, querem ter a certeza de serem capazes de inter-
ção .de inquietação diante do olhar do outro, de quem é preciso romper a ilusão que proporcionam aos··outros e a si mesmos.
conseguir a aprovação. Encontrar um~ alternativa exige muito Um pouco como um nadador ne6fito que verifica, ap6s algumas

49 o
braçadas, que ainda tem o poder qe tomar pé e não corre o risco simplesmente, e com toda a boa-fé, porque está persuadido
de se afógar caso suas forças venham a falhar. de que é preciso fazer desse modo. Tal jogador, há pouco tem-
Essa necessidade de manter o contato com a realidade é po iniciado na pantomima, refaz obstinadamente um número
legítima. No entanto, qualquer que seja a estética adotada, o de manipulação de uma porta imaginária ou de um teclado de
engajamento no jogo é indispensável. Essa capacidade de engaja- telefone. Um outro, treinado no teatro de bulevar, dá grandes
mento cresce quando as razões da concentração são compreen- passadas vociferando. Outro ainda substitui todo envolvimento
didas e quando instruções de jog~ diversificadas podem ser emocional por efeitos d e voz que servem para simular. Nenhum
mobilizadas para que se passe rapidamente do não-jogo ao jogo. deles joga, mas estão convencidos do contrário. qs professores
As formas teatrais corais e épicas, assim co~o procedimentos das escolas de ~eatro conhecem bem as deformações de jovens
de distanciamento, são como um parapeito para atores que não alunos que de boa-fé demonstram uma parte de seu savoir-jaire
estão condenados à ilusão, mas nem por isso estão dispensados a cada vez que a ocasião se apresenta. Os atores veteranos não
da concentração. O jogo existe precisamente por esse estado estão isentos de tiques que os preservam do verdadeiro risco e
precário de tensão do jogador que faz como se ele estivesse total- da reinvenção que o jogo, no entanto, exige.
mente absorvido pela situação, quando- ele é capaz de escapar A cristalização parcial ameaça todos os atores e invade a
instantaneamente dela. É interessante que os dois e~tados não representação teatral ao final de alguns dias. Peter Brook ana-
se sobreponham, mas que eles possam se suceder ou se opor lisou bem a dificuldade que existe em recuperar o jogo em
com sutileza, quando se fizer necessário. A negação do jogo no um espetáculo enrijecido e junto a atores sem fôlego.'' Essa é
momento em que se joga anula o jogo e eJcige um esforço suple- uma razão suplementar aos que não são atores para que não se
mentar para que ele renasça. A capacidade de "fing1r" aume~ta apressem em imitar os aspectos do teatro profissional , quando
I

igualmente com os desafios, visto ser mais tentador indicar que "!' este se empobrece. Mais uma vez, não se trata de ir contra
não se joga "de verdade" quando se atribui um interesse apenas uma verdadeira formação teátral, mas de denunciar os male-
limitado ao que se está jogando. fícios de uma técnica parcial que se torna obstáculo ao jogo,
pois reduz tudo ·q~e provém da concentração e da invenção a
O savoir-faire limitado fenômenos puramente exteriores. .
.. Esses obstáculos ao aumento da capacidade de jogo, esco-
Uma formação parcial, restrita a alguns elem~ntos de técnica lhidos entre os mais flagrantes, desaparecem co~ o tempo e o
teatral, pode ser um c:>bstáculo ao jogo. O participànte reutiliza . aCÚJ'nulo d e experiências. Não desaparecem simplesmente por- .
ingenuamente o que sabe fazer, provando que "fez teatro" ou que foram observados ou denunciados por um olhar externo.

so sr

É do interior do jogo - ·veremos isso depois com mais deta- improvisação em que os atores inventam ao mesmo tempo
lhes - que o indivíduo é capaz de tomar consciência dessas seus textos e suas reações. Retornarei, em outro momento, ao
dificuldades . O jogo é um fenômeno precário, constante- tipo de invenção que se pode esperar de uma improvisação e
mente ameaçado pela rotina e por múltiplos artifícios, e é à discutida noção de espontaneida de. O que me interessa nos
indispensáve l tomar consciência dessas ameaças. . dois casos, e me leva a reduzir essa oposição, é a tentativa de
situar o jogo no movimento em curso, onde sempre há, em
quantidade desigual, invenção e reinvenção.
A favor do jogo Sabe-se que mesmo numa improvisação o jogador refaz,
em certa med~da, seus próprios gestos, encontra invenções
O movimento do joao em curso que lhe são fam_il_iares, ao menos inconsciente mente. No sen-
tido oposto, uma parte da reflexão atual sobre a representaçã o
No jogo teatral, uma soma de emoções, sensações, intenções, de consiste em atribuir a maior. parcela possível de invenção ao
signos vocais e gestuais se cristaliza no instante único da repre- ator, inclusive em um quadro bem rigoroso. Na verdade, essas
sentação. O principal interesse da arte viva resi de nessa capaci- invenções e reinvenções do ator quase sempre constituem sig-
dade de produzir instantes longamente preparados e,' no entan- nos·tão microscópico s que escapam à observação ordinária, e
to, arriscados, uma vez que, se a qualidade da apresentação no o observador mais meticuloso corre o risco de ser acusado de
aqui e aoora depende em grande parte da preparação, ela existe inventá-las no momento em que as descobre.
também pela aptidão dos atores para rifazer como se fosse a pri- O jogo desliza nos espaços mais ínfimos entre dois ato-
meira vez, com a mesma inocência, o mesmo prazer e o mesmo - res, dois jogadores; ele existe, de maneira precáda, apenas
frescor. Um grande instante de teatro existe na falsa redes_c o- no movime~to que· o faz nascer, no jorro do instante que
berta, em público, dos gestos, das emoções e dos movimentos possibilita seu surgimento. Se a língua falha para qualificar
preparados que jorram com força suficiente para que a cumpli- com exatidão esses fenômenos, ela arrasta, contudo, algu-
cidade e a adesão aconteçam. Eu afirmo falsa redescoberta com mas expressões já prontas que escapam ao vocabulário teatral,
prudência, pois os esforços dos atores e dos encenadores, que mas que, quàndo reaplicadas a tais fenômen~s, se tornam
influem precisament.e sobre a qualidade do jogo, são direciona- pertinentes. Assim, frequenteme nte ·se diz de mód? negati-
dos para que se trate quase de i.una ver_dadeira redescoberta.. vo que "tem jogo" quando um espaço existente _entre duas
Dentro desse quadr.o , talv:e~ fosse preciso opor a repre- peças de um mecanismo autoriza moVimentos não previs-
sentação de um texto memorizado , prepa~ado e ensaiado, à tos inicialmente , que não asseguram mais o funcionamen to
perfeito da máquina . Com o tempo, esses movi~entos cor-
represen tação, sem memóri a aparente daquilo que se pas-
·rem o risco de desgasta r perig~samente as peças do meca:
sou a!ltes e sem antecipa ção visível do que irá ocorrer no
nismo cuja adequaç ão fiéa cada vez menos satisfató ria. No
instante seguinte . Essa capacida de se apoia na disponib ilida-
e ntanto, propõe- se "dar jogo" quando as peças ajustadas de
de e no potencial de reação a qualque r modifica ção, ainda
maneira excessiv amente apertada apresent am risco de travar
que ligeira, da situação . Ela não abrange a totalidad e da arte
o movime nto, bloquean do o mecanis mo. do ator, mas é seu compon ente fundame ntal, interessa nte
Do mesmo modo, dizemos "que há jogo" quando numa
de ser desenvo lvido no não-ator . Precisem os as compet ên -
improvis ação e/ ou numa represen tação, os jogadore s, mesmo
cias que esperam os do jogador.
assumind o o que está previsto na encenaçã o ou no roteiro, dis-
põem de espaço suficiente entre as engrenag ens para que a invenção
A presença
e o prazer possam penetrar, assim dando a impressã o de reinven-
tar o movimen to no próprio moment o em que o efetuam. A presença é uma qualidad e misterio sa e quase indefinív el,
Tradicio nalmente os atores, em sua maioria, afirmam que
sobre a qu~l os jurados de admissão nas escolas de atores
nunca refazem exatame nte a mesma coisa, noite após noite, e
talvez cheguem a um acordo, apesar de ficarem embaraç a-
que levam mais ou menos em consider ação, de maneira incons-
dos para definir os critérios que permite m reconhec ê-la. Ela
ciente, as reações do público ou a atmosfer a do palco. De fato,
não existe se~pre pelas caracter: ísticas físicas do indivídu o,
existe uma tendênci a a recorrer às facilidad es da profissão , a
mas sim em uma· energia vibrante , da qual podemo s sentir
usar e abusar de artimanh as que minimi:z .am a dimensã o de
os efeitos m esmo antes de o ator agir ou tomar a palavra,
jogo, a reduzir o leve risco que correm os parc·e iros que se per-
no vigor de seu estar no lugar. A presença não se confund e
mitem uma determin ada flexibilid ade indispensáyel ao jogo.
com uma vo~tade de se mostrar de 'm aneira ostensiva . Não
A represen tação moderna , ao contrári o, confessa sua
se p~de esperar que ~odos os jogadore s tenham ~ssa qualida-
inconstâ ncia e sua fragilidad e. A cisão e a falha, as oscilaçõe s da
de excepcio nal cujis ma.Iúfes tações últimas provavelment~ só
.escrita; o palco de repente vazio, d~aturgias da ruptura e .d a sejam reservad as_- a ;alguns grandes atores, quase predesti na-
lacuna question am um tipc;> de repre~_entação que não esperaria dos, segundo alguns. Mas, sem brincar com as palavras, se é
mais nada do ator. · difícil aprende r a ter presença , creio ser possível aprende r a
A capacidad~ de jogo :de um indivídu o se define por
estar.presente, disp~iúvel, ao mesmo tempo imerso na situaçã?
sua aptidão de levar em conta o movime nto em curso, de
imediata , e, no çntanto, .~berto a tudo ? que pode modificá -
assumir totalme nte sua presenç a real a cada instante .d a
la . .De certa forma, a aptidão para a concentr ação age sobre a

H
,.

qualidade da presença a ponto d e algrms atores se entregarem A inoenuidade


a uma ver dadeira busca inkiática, a uma ascese que l eva ao
vazio por caminhos quas~ místicos. Mais modestamente, estar Exagerando um pouco, chamo de ingenuidade a capacidade
no jogo desencadeia uma disponibilidade sensorial e moto r a, do jogador de não antecipar o comport amen to do outro
libéra um potencial de experimentação. mediante suas pr6prias r eações. Ainda aqui, trata-se de estar
presente no instante, portanto, de fingir ignorar o que vai
A escuta se passar, a ponto de toda vez dar a impressão de uma des-
coberta. Inúmeros artifícios teatrais, às vezes grosseiros,
A palavra proliferou em todas as escol~ de teatro sem que t enha tornam os atores aptos p ara dar a ilusão de estarem d esco-
surtido efeito nos atores. Aparentemente nada mais simples: brindo o que ac<?n.tece e surpresos com os acontecimentos.
escutar um parceiro consiste em se mostrar atento a seu dis- Não estou certo d e q u e esses at·tifícios não sejam visíveis,
curso ou a seus atos e, consequentemente, teagir a eles. Muitos ou , pelo menos, de que n ão prejudiquem a qualidade do
atores simulam escutar, manifestam por algumas mímicas que jogo. Quando um ator prescind e de qualquer artifício, ele
são todo ouvidos o u opinam ostensivamente com a c~beça. Ora, se arrisca, já que aceita, literalmente, deixar-se surpreender
os bastidores estão repletos de histórias de infortúnios de atores pelo parceiro, o que exige dele uma mobilização maior do
que fingiam escutar, contavam os versos ou pegavam como refe- que quando rebate a bola d e maneira rotineira. O engaja-
rência uma palavra-chave da fala do outro e que acabaram por mento no jogo exige uma mobi1ização rápida de todos os
,-- se deixar enganar. A verdadeira escuta exige estar totalmente sentidos, sem antecipação.
: receptivo ao outro, mesino quando não se olha para ele. Essa· Parte do frescor da r e p resentação d epende da capa -
qualidade não se aplica somente ao teatro, mas é essencial ao cidade dds ~tores d e ser suficientemente "ingênuos" para
jogo, uma vez que assegura a veracidade da retomada e do enca- se deixarem surpreender. Em princípio, na improvisação,
deamento. A escuta do parceiro comanda, em larga m edida, a a ingenuidade d everia ser t otal , já que os jogadores não
··escuta da plateia. Estat alerta é uma forma de sustentação do · podem contar com um conhecimento prévio da partitura
outro, qualquer que seja a estética.da representação. Essa apti- do parceiro. be fato, a antecipação também é uma ameaça,
dão combina com a qualidade da presença (trata-se d e es.tar pre- na medida e~ que estruturas rotineiras persistem na maior
sente para o outro e para Ô mundo). O espaço de jogo, como parte das improvisações, m esmo quando elas não compor-
espaço potencial, é um lugar no qual se experimenta a escuta tam roteiro. A ingenuidade é portanto 'igual_mente mdispen-
do outro; como tentativa de relação ~ntre o dentro e o fora. sável na improvisação. ·

. S6
I
Reação, imaainação sido desagradáv el, em um fabuloso momento de jogo, integran-
do esse espectador na representa ção. Essas reações instantânea s
Na improvisaç ão, o jogador que escuta a fala do parceiro apro- de um grupo m uito acostumad o às práticas coletivas e à impro-
pria-se dela e a conduz como desejar, na direção que lhe pare- visação mostram como a realidade imprevi sta do palco pode
cer' mais propícia. O equilíbrio utópico seria aquele em que ser levad~ em conta no desenrolar previsto do jogo. Do mesmo
os parceiros assumiriam alternadam ente, e de maneira mais modo, ao invés de serem vítimas de pequenos contratem pos
ou menos igual, a direção dos acontecim entos. Na verdade, os na manipulaç ão de acessórios ou de pequenas falhas na conti -
"condutor es de jogo" ou distribuido res de jogo tendem a polà- nuidade da representa ção, os atores os integram e os utilizam
rizar as iniciativas e a relançar as propostas em direção a outros para gerar jogo, provan do, ao mesmo tempo , sua disponibili da -
jogadores que encontram seu lugar na partitura. Uma carica- i' . de ..e sua capacidade •de r eação. Indo mais longe, uma pequena
tura dessa atitude consiste em monopoliz ar o jogo e a atenção mudança de humor, uma percepção apurada da atmosfera ali-
mantendo a ascendênc ia sobre todos os parceiros a ponto de mentam o jogo, já que, ao invés de lutar para manter a qualquer
impedi-los de reagir de m odo autônomo . preço a partitura inicial , eles se servem d ela como trampolim
Na representa ção teatral contempo rânea, que em princí- que dará novamente frescor e vitalidade à representa ção.
pio tem partituras fixas, exist e uma tendência a desenvolve r a
autonomia do ator, tornando- o disponível a t0dos os aciden - Cumplicida de e júbilo .
tes de jogo. Ao invés de d ependerem de um ligeiro desvio em
relação ao que está fixado, os atores treinam utilizar a mínima O entendim ento entre os jogadores , a mobilizaç ão das capa-
variação percebida no palco, reagindo a ela de maneira criati- cidades de escuta e de reação criam um estado particular de
va, ainda que permanec endo no interior·do quadro geral fixa- cumplicid aqe que é ~a das dimensõe s do prazer do jogo.
do. Por exemplo, numa n oite de cabaré apresentad a no teatro Ne~sa. relação d e comunica ção privilegia da , os jogadores dis-
Bouffes du Nord pelo grupo que trabalh~ com Peter Brook, os poníveis. no espaço, atentos às .invenções repentinas , com -
atores levam em consideração~ coletivam ente, a saída preci- pre·e ndem com facilidade propostas que enriquece m o jogo
pitada de um espectado r p ouco familiariza do com o teatro, o e asse~am r~sposta da mesma natureza. Isso não é especí-
qu al acreditava que a representa ção tivesse terminado após uma fico do jogo t eatral; encontram os o equivalen te no esporte,
série de injunções que faziam parte do espetáculo . Os atores o . quando jog~dores de' uma mesma equipe parecem reinven-
rodearam, levaram-lh e urna mesa e uma cadeira, instalaram -no tar a cada ~tante as pr6 prias regras do jogo, superando seu
confortavelmente e transforma ram o incidente, que poderia ter savoirj"aire e sua bagagem técnica. Tudo parece então possível
,.

e isso provoca uma espécie dejúbÜo que se transmite aos No campo da criação artística, os homens d~ teatro que
espectadores. . trabalham com as aptidões para o jogo consideram-nas corno
A capacidade de jogo tal como tentei esboçar não se con- um meio de resistir à diminuição da criatividade do ator, que
funde com o jogo teatral. Ela é um dos componentes desse dá um caráter mecânico à representação. O jogo é um recur-
jogo que não equivale a uma formação técnica tradicional. Ela so contra a rotina da representação cotidiana, contra o fecha-
se desenvolve pelo apuro da consciência do jogador no interior mento do teatro numa rede de técnicas enrijecidas. Arte da
do jogo e por exercícios específicos, dentro dos quais, eviden- comunicação, o teatro preocupa-se com o empobrecimento
temente, é preciso manter o caráter lúdico. das redes de comunicação em benefício de formas espetacu-
A ambiguidade dos cri~érios considera~os reside no fato lares repetitiva~. Arte viva, o teatro constata qu'e transmite
de que eles se referem tanto a uma atitude do indivíduo "no vida e que sua capacidade de invenção permanece intacta. Um
mundo" quanto a uma atitude do indivíduo no jogo. A pre- indivíduo que fosse· incapaz de joaar, no sentido mais amplo,
sença, a disponibilidade, a escuta, a facilidade para acolher seria aquele que conheceria ,Je antemão todas as respostas e
as novidades s~o quaJidades reivindicadas por urna moral de todas as soluções. Ele s6 consideraria sua relação com o mun-
tendência humanista. Pode-se dizer que os objetivos do jogo do externo.a pa!'tir de formas premeditadas e estabelecidas.
iriam no sentido dà educação de um indivíduo idéal, aberto, Pouco aberto a novas experiências, negando a possibilidade de
passível de ser caricaturado numa espécie de disponibilidade novidade, ele vetaria todo contato seu com o mundo dos vivos
incondicional? e, assim, todo risco. O espírito de jogo, por sua vez, consiste
O jogo não anula a possibilidade de conflito e a dispo- em considera:- toda nova experiência como positiva, quaisquer
nibilidade não se confunde com a aquiescência irrestrita. ·se que ~ejam . os
riscos a que· ela nos expõe . Ele é contrário ao
nos referirmos novamente a Winnicott e ao jogo como a um sistem~tismo, já que 'espera soluções oriundas de experiências
espaço potencial, a aptidão principal do jogador consiste vividas num espaço intermediário que abrange também o cam-
em tentar experiências que tenham a ver com a realidade, po cultural. O jogador é aquele que "se experimenJ:a", mul-
sem se fundirem com ela. O jogo desenvolve no indivíduo tiplicando suas relações com o mundo. Numa perspectiva de
uma espécie de flexibilidade de . reações, pela diminuição formação, a aptidão para o jogo é uma forma de abertura e de
das defesas e pela multiplicação .das relações entre o fora e capacidade para comunicar. Ela dese~volve a conscientização
o dentro. O jogo é uin récur~o contra condutas rotineiras, de novas situações e um potencial de respostas múltiplas, ao
ideias preconcebidas, respostas pronta~ para situações novas invés de mn recuo a terrenos familiares e da aplicação sistemá-
ou· medos antigos. tica de estruturas preexistentes.

6o . 61
O I NVES TIMENTO E SEUS RISCOS: O PRAZER E A ANGÚST I A
Incidente de JOOO

Noite após noitl', pasl'guida por Sl'U pai Oronte, ela foge, rápida,
para os hastidon·s, abandonando Pourn·augnac perplexo. Falaram-
lhe tão maltk·ssa jon-m l' ele a acha tão sedutora ... Breve instante
de jogo mudo. Elt• tem medo l'. no entanto, gostaria de tê-la segui-
do, taln-1 lhl· falar, encontrar um momento para estar só com ela,
apesar da sua n·puta~·ão.
Orontc já está de volta, Pourceaugnac j.i
recompõe a fisionomia do pretendente que não se deixa enganar,
pronto para dis<.:utir negó<.:ios.
Naquela noitt', ela es<·orrcga, perde um sapato c fogc assim
m<'smo, .1handonando o objl'to sob a luz branca. O personagem não Em uma oficina de jogo o cerne é a própria pessoa. Ela é o
pode ignorá-lo, o ator quer disfarçá-lo para que ele não ocupe o desafio inevitável e o material principal do trabalho. É então
espaço, cena após nma. Dl· repente, ele agarra o sapato como lem- tentador agir de modo que os obstáculos sejam contornados,
brança da jml'lll vista apenas furtivamente. Sapato-fetiche, sapato trapacear se o prazer esperado não corresponde de imediato
de Cinclercla, jogo apenas t~sboçado de uma suave ternura, marca ao investimento exigido. Ainda mais quando a prática teatral é
dac1ucla que o atrai~· <)Ul' ele teml~. Orontc já está de ,·olta, é preciso vista como um lugar onde a pessoa não é ela mesma, ocasião de
esconder o sapato do olhar in<luiridor do pai e, sem vulgaridade, todos os disfarces. Talvez seja bom lembrar que a qualidade do
com a graç·a dl' certos c/o•~ns, faz o objeto desaparecer em seu bolso, disfarce depende da qualidade da presença atrás da máscara e
após um minuto dl• he:;itac;ão daquele que se achava perdido. da escolha da máscara propriamente dita. Através da literatura
Mantivemos o jogo do sapato. dramática, sabe-se também que a máscara às vezes cola à pele,
' Uma noite, da perdt•u os dois. Decidimos que seria demais brin- c que, por curiosa alquimia, ela pode deixar marcas indeléveis
car com o acaso, c um cordão fixou os limites do incidente. O jogo do na fisionomia daquele que a usou. Portanto, não colocamos
sapato foi intt·grado à partitura. qualquer máscara, não nos entregamos a qualguer simulação.
No entanto, a abordagem da criação exige um investi-
mento total no trabalho. O formador pode incitar os par-
ticipantes a joaar alto, isto é, a se engajarem decididamente
Monswur de PourccausncJc ( 1669), de Molicrc. no jogo. Essa noção de engajamento - com suas conotações
t'

políticas e militares-. está longe de ser clara. Ela é entendida as dificuldades encontradas. De resto, .o modo de avaliar os
como uma provoc~ção aos p~rticipantes para se colocarem riscos varia igualmente d e pessoa para pesso~. A qualidade do
de maneira Íntima demais. Ela também remete à ideologia olhar do grupo sobre o trabalho de cada urri é suscetível d e
e, simplesmente, à ideia de que cada um coloca em jogo su as facilitar os investimentos com conhecime nto d e causa.
relações com a sociedade, com o mundo. Portanto, o ape- Na negociação dos objetivos, o prazer não é oficialmente
lo ao en gajamento provoca medo. Em nome do pra~er e do reivindicado pelos participantes, sobretudo se a oficina acon-
jogo, do direito de cada um de decidir os seus atos , esse enga- tece <7m âmbito institucional. Os objetivos de formação são
jamento provoca resistências e faz temer manipulações. ex pli citados em primeiro lugar, como que para responder a
Cabe ao formador deixar claros os desafios, estar atento uma exigência difusa que devesse ser atendida. A reivindica-
aos riscos d a manipulação e às armadilhas das .crises que todo ção do prazer ~ó aparece com força quando se revela que e le
desvelamento artificial desencadeia. De minha parte tento su s- vai faltar. Uma r·uptura se opera na definição dos objetivos,
citar a avaliação do engajamento proporcionado por uma ins- entre os o bjetivos institucionais (se formar para, aprender a,
trução, procurando conscientizar acerca dos riscos e cuidando aumentar sua capacidade de) e objetivos pessoais (fazer teatro,
para que a instrução seja partilhada . Em função dos objetivos encontrar pessoas), e mesmo objetivos clandestinos, 12 expres-
estabelecidos e do-d esejo individual , cabe a cada inn ou sar ou sos ou n ão. O prazer parece ser uma evidência, estar natu-
não ousar engajar-se no jogo. É o jogador, e somente ele, que ralmente associado às práticas de jogo e d e improvisação. Ele
avalia progressivament e a medida do' que pretende jogar, das só é formulado clar amente, e portanto solicitado, quando sua
zonas em que deseja investir, das etapas que lhe são necessárias. ausência se torna manifesta.
Sempre que possível dou indicações de jogo bem abertas para
que p ossam ser reservad os cantos de sombra, degraus, recuos.
Ninguém pode decidir, no lugar do outro, o ritmo das apren-
dizagens. Cabe ao formador incitar sém m~pular, esclarecer
sem destruir toda possibilidade de invenção, autorizar todos
os recuos sem que sejam produ~dos julgamentos de valor. Na
p r ática é possível ~ue se produzam deslizes cuja gravidade vai
depender do ambiente de trabalho que foi constituído e da -
segurança que ele oferece. Quando as r~zões para que se cor-
ram riscos·são apresentadas com clareza, é mais fácil enfrentar
ln~truções St• um jogo de apresentação propõe aos jogadon:s que falcm
dl' sua identidade numa impro\'isa~ão, zonas de sombra "ão conscr-
Uma boa instru\ão permite que os jogadon•s optem entn· \árias ,·adas pela instrução. O jogador pode se t•ngajar e falar de sua idcn
soluções, qul' imt·ntem uma gama de respostas. Uma instru\·ão mui- tidack· social ou sexual. Pode também optar pelo anódino c ater-se
to fechada não possibilita o jogo, ela sugcn· qut• existe uma "boa res- a banalidades.

posta" prc\ista com antcct•dênCJa. F. la fornct c a solução no momt•nto


mesmo em qut• a in~trução t' formulada llm.1 instrução muito aber
ta não cria n·striç·ões e indu\·õt•s suficiente., para ajudar o jogador a
produzir, cl.1s o mantêm t•m uma zona demasiado indefinida.
"i um trabalho sobn• o espaço, por <'Xt'rnplo, uma instru\:ão
<JUC impõl' um lugar realista uma cozinha, uma cama indka
daramcntc as a\·ões que p()(km ser reali~oulas nesses lotais, inóta
à pi'Oduc;ão dt· clichês. A instruç·ão aberta qul' propôt• um t•spa-
ço muito abstrato ou muito 'ago (uma rt•gião ou uma zona mal
limitada) rt'llll'tt• a um imaginário indefinido. Uma instrução que
propõe um t•spac;o cot·rcitivo (um pratil'.ÍH·l pn.'l'isanwnt<' cali-
brado, um canto de sala, um drculo ck diânwtro hem indic.l<lo)
deixa aos jogadores o cuidado dt• dcciciJr o uso que quert•m fazer
da rcstri~·ão a llliC foram suhrnctidos. Fia torna possÍH•h dri.ts
soluções dt• jogo nesst• co,p.t~·o, ~em que n~nhuma st•ja prh ilegia-
cla pelo l'nunciado.
Do mt·smo modo, t'm um trabalho sohrt• o estilo dl' jogo, a
instrução <JUC impõe um estilo já clas.,ific<~do, nomC'ando-o (por
t•xemplo, o t•stilo clowm•sco), não ajuda -:-rn nada os jogadon•s. Por
outro lado, a instruc,:ão <lUl' llws propõe fl'lT.lll1COtaS dt· jogo, dei-
xando os escolht•r como farão uso ddas, permite aa1r dl' modo mais
tominccntt'. Ha incidirá sobre o cspa\·o ou sohr~· as modifiea\õt·s
lisicas dos jogadores, prmm<~rá deformações \Ocais.
,.

Prazer de estar presente renegam o menor prazer antes mesmo que ele tenha tido
tempo para aparecer. O prazer de adultos reunidos para joaar
A experiência de um grupo de jogo desenvolve-s e em rup- é anulado pelo risco de infantilização ligado a ele, obliterado
tura com o mundo exterior. A oficina de jogo é um lugar de antemão pela imagem de trabalho, esse sim, sério. Um
privi~egiado, fechado, em que as tarefas programadas não são erro clássico é "forçar o jogo" caricaturand o (jogando exage-
habituais para os participante s (jogar, improvisar). No caso . 1
ra d amente) esse s1mp es"e~tar presente, , ao 1nves
. ' d e encarar
d e uma sessão de formação, a ruptura se opera com as ati- a situação como ela se apresenta.
vidades de trabalho. No caso de uma oficina regular, ela se
impõe como um "alhures", onde, a priori, tudo é possível, já
que é designado como ~ lugar da invenção e_ do imaginário. Prazer dos encontros
Esse prazer do inabitual (da tarefa, do lugar, do grupo talvez)
é ameaçado pela inquietação daquele que não sabe como as O espaço de jogo é um lugar de encontros e trocas. Se o pra-
coisas vão se dese~rolar, por falta de referênci~s anteriores. zer de ver novas fisionomias, de cruzar outros corpos, outras
O prazer de t er tomado a iniciativa é perturbado pela ausên- imaginações existe, ele é negado por aqueles que se sentem
cia de programaçã o ou pelas incertezas a ela relacionadas . ameaçados por essa novidade ou se preocupam com o tama-
O próprio fechamento torna-se ameaçador.· Daí a importân- nho do grupo. Uma massa de gente nova não desperta natu-
cia dos primeiros minutos de uma oficina, das primeiras tare- ralmente reações positivas. Ela nos expõe ao risco de asfixia,
fas, a maneira como "isso começa". e para os participantes mais inquietos, ao risco de dissolução
A passagem do não-jogo ao jogo é um momento ambí- do "eu" dentro do grupo. O formador que procura provocar
guo em que o "divertiment o" muito exposto pode desorien - artificiàlme~te en~ontros e trocas cria fenômenos de rejeição.
tar. Aqueles que não escolheram inteiramente estar presentes A atitude "de escoteiro" é denunciada como a expressão de
(isso acontece em diferentes contextos institucionai s), e às manifestaçõe s de prazer e de acolhimento obrigatórios.
vezes até mesmo aqueles que realmente escolheram, denun- Sou partidário da neutralidade e da espera, e não acho
ciam então a futilidade do que se produz (ou do que esperam que se ·d eva fncitar relações às quais os participante s não este-
ser produzido) antes mesmo de terem percebido as mani- jam prontos para se entregar. Ainda aqui, o modo 'de começar
festaç~es dela : Ao "nós ·estamos aqui para jogar", expresso depende da análise da situação real, e não de receitas que ·
por alguns com uma energia às vezes su speita, opõe-se rapi- dissimulem eventuais incômodos e deiXem para mais tarde as
damente o "nada disso é muito sério~ de alguns outros que dificuldades reais.

68
Prazer dos corpos . dos desejos. Sua carga expressiv a não o inocenta , os rituais do
desejo e da sedução fazem parte dos desafios.
Nosso trabalho não atribui estatuto particula r ao corpo. Ele Do quase-de saparecit neilto à hipertrof ia, o corpo está
não é privilegi ado em relação ao verbo, nem designad o como presente em toda parte. Augusto Boal manteve , a propósit o do
o lugar de uma palavra indizível . Ele não é treinado para Teatro do O primido, um discurso sobre o corpo deforma do
técnicas específic as. O estatuto do corpo é, portanto , ain- pelo trabalho , que ele incita a desconst ruir m ediante jogos e
da mais ambíguo nas oficinas, já que não nos baseamo s em exercícios destinad os a lhe restituir uma flexibilid ade expres-
um corpo esportiv o e bem treinado , nem num corpo com siva. Mas esse ponto de vista ideol6gic o sobre o corpo dos tra-
competê ncias expressiv as desenvol vidas. "Ordiná rio" na ori- balhador es é tr!lnsfor mado em oficinas nas quais os objetivos
gem, o corpo do jogador .é, no entanto, revestido de uma inic:_i~is são esquecid os e nas quais os exercício s, retirados de
importân cia particul ar desde que confron tado com outros seu contexto d e origem, também autoriza m - as indicaçõ es
corpos e exposto aos olhares em um espaço vazio. Ele se tor- são feita s para ser transgredidas - os prazeres delicioso s de
na ainda mais vulneráv el no espaço de jogo na medida em conta~os corporai s , sob pretexto didático. Gisele Barret leva
que está excluído da .maior parte das atividade s de formação . os parti.c ipantes da expressã o dramátic a a um investim ento
Trabalhe i com grupos de adultos que hesitava m 'em tirar os corporal permane nte e a trocas cuja intensida de é renovada
sapatos. Com adolesce ntes protegid os por uma camada de através de inúmeras instruçõe s e por trechos musicais , muitas
blusas e jaquetas . Com "especialist.a s" exibindo roupas que vezes líricos, segundo a experiên cia que possuo.
pareciam preservá -los de qualque r engajam ento além dos No jogo dramátic o o engajam ento corporal varia de acor -
gestos que tinham aprendid o a fazer. Vi também crianças do com os.partic ipàntes e as improvis ações, mas apoia-se tam-
ou professo res se lançarem "impetu osament e" no espaço, bém na imagem de pessoas ."de bem com seu corpo", isto é,
apressad os para se libertare m de um universo escolar onde prontas p~ra o contato e a troca. Na falta de uma base técnica
são habitual mente "pessoas sentadas ". ou de aprendiz agem de uma gramá!ic a estrita, esses jogos do ·
O jogo cqrporal fragiliza os participa nte's e dá um poder corpo pertence m a uma zona um pouco "selvagem ", na qual se
exorbita nte àquele que oferece a~ instruçõe s. Os discurso s da espera que os participa ntes se lancem jogando pelo/com seu
moda sobre o lugar do corpo ou as brincade iras rituais sobre corpo e que· criem em função dele. Implicitament~, espera-se
as oficinas de teatro c<:'tno lugares onde as pessoas "se tocam" dos participa ntes que eles se engajem "de corpo inteiro", pois
aumenta m as dificulda des. O corpo entra em jogo com todos é dificil jogar sem essa espécie de excitação , metade in.o cente,
os tab~ a ele ligados, com o peso legítimo das inquietaç ões e metade esportiva , que dinamiza as atividade s.

71

..·
O s obje tivos permanecem complexos. A instituição que L; o teatro?
solicita um estágio espera que os participantes, "mais à von-
tade", re\'er tam os be ne ficios adquiridos para sua profissão. A práti<:a do jogo não está submetida à cultura tt·atral; no t•ntanto,
Os formado res contam com um jogo mais intenso para propor - os participantl.'s de.• oficinas ganham muito lrcqu~·ntando os tt•atros
cionar prazer c innmção. O s participantes podem partilhar todas l ' tornando· se conna1sseurs. Entre os obstáculos à capaddadc de jogo,

essas razões c culti,·ar outras, mais ou m enos clandestinas. seria necessário (e,·ar em conta a cultura teatral im·xistentl' ou limi-
O jogo é o lugar de todas as invenções c incita à cria- tada. St· não Sl' joga unicamente com o ohjctivo dt• tornar-se melhor
ção. Ele inquieta c seduz po r essas m esmas razões, pois exige l'spt•c.tador, as duas experiências estão, no entanto, ligadas.
que os participantes se arrisquem com tentativas que rompam Um contato sólido com o teatro contl·mporânt•o é indispl'll-
com seu savo~rfaire habitual. Existe um prazer e um júbilo da s.hd para que os jogadores constituam rt·fl-r~ncias c atl' mesmo
invenção, como existe um praze r de ver outros participantes mod1·los contraditórios. LerI escrever é um binim1io <(ut' a J><lrtir
apresentare m um trabalho original ou pessoal. dt• agora faz partl' do aprcndi"Zado do frand'·s. Jogar I assistir tam
b{·m dcwria Sl'r um binômio natural, visto C(Ul' as <.·xpcril'ndas do
t's(Wctador rt·mctt•m às do jogador, c vicc-\'l'rsa. A dupla t•xpniên ·
d.l SI' impi'í1• para c1uc sc.·jam superados os ~· xtmplos simplórios d~·
t' SC(Ut'tt•s impostos pela tclcYisão c para C(UI.' s~· ousl' no umfronto
c.·om formas contcmporâneas dt• escrita c ck jogo. E\'ickntcnwntt',
tal rda\·ão o1rn o teatro parece-me inclisp(.·ns.hd ao formador.
ENTRAR NO JOGO, POR-SE À PROVA

~ mais ou menos admitido. que uma boa oficina começa por


uma preparação , um aquecimen to corporal , jogos de comuni -
cação. Como coloquei em dúvida essas atividades preliminar es,
suspeitam que eu queira proceder·como aqueles professore s
de natação_ que lançam no meio da piscina suas infelizes víti-
mas, sob pretexto de ensiná-las a nadar. Na verdade, o que
eu questionav a e que continua a me preocupar é a maneira
como essas atividades se definem e como são recebidas pelos
participan tes. Passei demais por aquecimen tos absurdos ou
exercícios cuja razão de ser não compreen dia, por não estar
muito atento ao modb çomo tem início uma oficina. Acredito
também que a m~eira de começar é tão important e que não
se pode resõlver a questão por uma entrada m:tiforme, váli-
da para todas as situações. No limite, parece-me dificil pre-
ver totalment e o início de uma oficina se não se conhece o
grupo, a sala, se não se está sensível à ·atmosfera daquele dia,
daquele instante. Inúmeras oficinas co~eçam inevitavel mente

-~-

17
por algunsjogos e exercícios u~lizados e reutilizados de modo eficácia não está em xeque, mas a ligação que têm com a ati-
mais ou menos sistemáqco e terrivelmente enfadonho. vidade posterior às vezes é dificilmente perceptível.
Um grupo que não se conhece e não sabe nada sobre as ati- Recentemente observei um maestro alsaciano encarrega-
vidades que o esperam, naturalmente tem necessidade de ganhar do de animar um baile de província. Ele lidava com um audi-
segurança. A aplicação de um programa preestabelecido nem tório disposto a se divertir, pronto para seguir s~m pestanejar
sempre é a melhor maneira de atender à demanda dos jogadores. todas as instruções que pudesse dar. No entanto ele tomava
Em alguns casos particulares, grupos muito distantes de qualquer a precaução de segmentá-las o mais possível, de modo que
cultura teatral, de qualquer referência à expressão, dificilmente os participantes não soubessem nunca o que lhes aconteceria,
toleram exerdcios cujos fundamentos lhes esc:apam totalmente e seguindo de ~odo mecWco uma ordem aparentemente sem
que parecem provenientes da loucura. Em contrapartida, outros grandes consequências. Ele não dizia: "levantem-se e dancem",
aceitam as mais inesperadas instruções de jogo. A pedagogia da e se o fizesse talvez ninguém o tivesse obedecido. Ele propu-
situação, n esse domínio, é particularmente necessária. nha simplesmente que levantassem a taça, e era obedecido.
A abertura pode estar centrada no'a.q uecimento corporal. Que a colocassem sobre a mesa, sem dificuldades·. Depois, que
Nesse caso, ela se caracteriza sobretudo por seu ~aráter téc- afastassem a cadeira, se levantassem, gira_s sem para a direita
nico e exige uma formação apropriada do formador. A incor- e andassem ... Os participantes se encontravam no meio da
poração de exercícios pode se mostrar perigosa se eles forem pista sem jamais terem sido consultados se desejavam mesmo
reutilizados sem critério, com indivíduos cuja condição ffsica estar lá. Da mesma maneira, nunca dava ordem para aplaudir;
nem sempre é excelente. O que é bom para o trainino coti- ele propunha qpe levantassem os braços e batessem as mãos ...
diano de um ator pode não ser bom pcu:a os.. rião-especialistas. Algumas ~essõe~ de "introdução" (pode-se dizer também "pre-
Por outro lado, é desejável que esse aquecimento encontre paração'}~e parecem funcionar do mesmo modo. O animador,
um sentido em relação aos trabalhos segumtes e não fique emissor ~co, dá instruções incontornáveis, e provavelmente
suspenso no ar, sem que se saiba muito bem para que serve efi~es, que "criam uma at:lnosfera" ~ornando a pseudocomu-
esse dispêndio de energia. nicação quase obrigat6ria. É isso mesmo que queremos como
Muitos jogos e exercícios que transitaram pelo Teatro ponto de partida das oficinas de jogo e de expressão?
do Oprimido propagaram-se nas oficinas nesses últimos anos. Uma outra dificuldade concerne à proaressão, à relação
Tirados de seu contexto; .de seu significado ideológico pri- · · que existe- ou nã6 existe- entre uma sequência inicial, dita
meiro, às vezes eles se reduzem a alguns momentos m ecâni- de aquecimento, e á continuação do trabalho. Alguns jogado-
cos, a rituais que perderam boa parte de seu sentido. A sua res às vezes se espantam com a ruptura entre jogos agradáveis,

79
·i
I
I

nos quais são solidamente enquadrados por um grande núme- mesmo sentido. Entretanto, essa sequência inicial também
ro de instruções, e o seu quase abandono em situações pos- deve autorizar todos os recuos e todos os refúgios, jamais
t_eriores de improvisação. Talvez estejam mais descontraídos extorquir o bom humor ou a gentileza, que não têm nada a
para jogar... Talvez também não apreciem ser submetidos ao ver com as exigências reais do trabalho.
regime da ducha escocesa, de passar muito rápido da ajuda .i Receio não ser muito preciso sobre essas questões e
I
dirigida ao abandono. I não ter nenhuma lista de exercícios para transmitir. Talvez
Considero de grande importância, no começo, que os porque o ponto de partida me deixe muito pouco dogmá-
indivíduos tenham a ocasião de se situarem pessoalmente, tico, restrito a soluções sempre provisórias. Para reflexão,
de modo simples e concre~o, no espaço dejogo e. dentro do forneço a list~ de minhas ambições atuais a propósito do
grupo. Para isso, proponho jogos de apresentação que têm início de uma oficina.
como principal fun ção superar o anonimato do grupo. Pre-
ocupado em evitar a formalização, não proponho apresen -
tações sucessivas ac9mpanhadas de verbalização.sistemática.
Mas provoco situações em que cada um encontra ocasião
para realizar um ato individual simples dizendo . (jogando)
alguma coisa que equivale a uma apresentaçã'O, isto é, a afir-
mar que se está presente, e bem presente, tnesmo dentro de
um grupo uniforme ou barulhento. Essa apresentação, que
pode assumir a forma de uma imagem fixa, de um gesto, de
uma "prova" na qual cada um reage à instrução como quer,
. exige um esforço, supõe que sejam vencidos os primeiros
acessos de timidez. É preciso encontrar forças para esca-
par ao anonimato; é preciso suportar os primeiros olhares e
também realizar um ato respons~vel, voluntário, não obtido
pelo viés de uma instrução equívoca. Assim, tento introdu-
zir dificuldades numa sequência aparentemente fácil, procu- :
ro logo fazer entender que as propostas solicitarão pessoas
..
presentes, não um grupo cujo comprometimento não vá no
·'-
So SI
Começar uma iflcina Começar

• Disponho de um grande estoque de propostas de pontos de par- Começar sem brutalidade, o mais próximo da situação real. Servir-
tida, de jogos c de exercícios? Caso disponha, eu as rclembro. Do se dela como trampolim. Hoje talvez seja a timidez, a ausência um
contrário, releio meus autores favoritos, consulto fichas antigas. pouco dolorosa daqueles que escolheram estar aqui e, no entanto,
• Preparo cuidadosamente um encadeamento cronometrado de não dão mais a impressão de querer isso. Jogamos para dominar
propostas que me parecem adaptadas ao espaço c ao que ~ei sobre essa sala fria c nos dominar desaparecendo na sala, dissolvendo as
o grupo. Em seguida preparo outro, sobre bases totalmente dife- trinta presenças entre esses mw-os pouco acolhedores. Esconderi-
r<mtcs. Provavelmente não respeitarei nenhum deles ... jos, refúgios, cavidades, cortinas, véus, nichos, penumbra. O néon
• Entre as propostas previstas há algumas que, usadas e abusadas já também tem ausências. Fotografia do espaço esvaziado. Eles estão
se tornaram hábitos? aqui, olhares filtrados indicam isso sem insistência, e eles não estão
• No caso de utiüzar exercícios que ainda não domino bem, procu- mais inteiramente aqui, os corpos desapareceram, os rostos redes-
ro redigir de modo breve c claro as instruções correspondentes, cobriram a conhecida solução da avestruz. Logo mais jogaremos
sabendo que, chegado o momento, não as relerei. que estamos aqui de verdade, afirmaremos presenças menos insó-
• Não me preocupo com meus papéis, mas com os jogadores. litas, mais familiares. Decidiremos estar aqui por um gesto volun-
• Um dos meus jogos favoritos: transformar ligeiramente uma ins- tário. Estaremos aqui de um modo diferente c, tão logo iniciado o
trução gasta, um exercício batido, e adaptá-los ao terreno e à jogo, estaremos verdadeiramente aqui e tudo já terá começado.
situação. Num outro dia começaremos por tentar divisões nesse grupo
• Não me apresso no encadeamento das propostas de jogo; deixo heterogêneo, do qual destacaremos os componentes. Tentativas de
aos jogadores o tempo de respirar c de expressar rapidamente, divisão, de aproximações das diferenças; jogamos o jogo da separa-
no burburinho, o que se passou com eles. ção, e todos os critérios inventados serão adequados para que cada
• Sl' um exercício me entedia ou se eu o proponho por hábito, é um responda à instrução tal como a entender. Onde estão os altos,
melhor abandoná-lo do que deixar acreditar que eu o pratico há os baixos, os médios? Os jovens, os velhos? Os claros e os escuros,
muito tempo c que ele não me diverte mais. os loiros e os morenos? Crueldade das divisões vohmtárias quan.do
• Será que me lembro de que o formador está numa situação de cada um decide que pertence a um grupo rapidamente formado
jogo? e dissolvido. Divisões por escolhas sucessivas. Realidade das dife-
• Depois da oficina anoto o que se passou e as propostas que foram renças, jogo das diferenças. Começar por cisões é reconhecer uma
feitas, as instruções modificadas e as que devem sê-lo. realidade sem fa:r.er dela um drama.
A IMP ROV ISA ÇÃO EM QUE STÃ
O

A imp rov isaç ão, em toda s as suas form


as, per man ece nos sa
ferr ame nta de trab alho priv ileg iada
. Essa esco lha exig e ser
com enta da, na med ida em que a imp rov
isaç ão, víti ma da mod a
nos ano s I 97o , ban aliz ou-s e ap6 s ter
sido por tado ra das mai s
des med idas esp eran ças. Atu alm ente
neg lige ncia da em ben efí-
cio de um reto rno ao tex to e ao rigo
r cên ico, ela real iza, de
mo do ines pera do, o suc esso de esp etác
ulos com o os mat ches
de imp rovi saçã o, que não têm mai s
mui ta cois a a ver com o
que se esper~va dela .
Ape sar de sua init ific ação e de seus vínc
ulos com a noç ão
de esp ont ane idad e, a imp rov isaç ão
con tinu a par a n6s , em
situ açõ es de form açã o, um a form a de
trab alho insu bsti tuív el,
con tant o que seja enc arad a em seu con
text o e algu mas pre cau -
çõe s seja m tom ada s.
No final dos ano s 196 0, a imp rov isaç
ão tinh a se torn ado
inst rum ento da reno vaç ão· esp erad a
de um teat ro con side ra-
do acadê~ico dem ais, dep end ente sob
retu do do text o. Seu
sucesso provém de vários fatores. Enquanto instrumen to, ela Mitificada num determina do perfodo, a improvisa ção,
atribui ao ator um lugar esse~cial no processo criativo. Ele é que fazia parte havia muito tempo dos instrumen tos de forma-
ao mesmo tempo auto~ e executor da partitura e pode através ção, sobretudo nos jogos de papéis e técnicas de psicodram a,
d ela expressar suas ambições, contra aquilo que, às vezes, foi foi, em seguida, fortement e questionad a. Assim, um núme-
chamado de ditadura do texto e do enc,e nador. A imaginaçã o ro interessan te da Revue d'esthétiqu e, intitulado ''L'Envers du
do ator e su_a s qualidades pessoais poder;n se desenvólv er mais théâtre", trata longamen te da improvisaç ão tentando mostrar
amplamen te na improvisaç ão do. que em qualquer outro lugar. seus limites. Na introdução , Maryvonn e Saison escrevia:
Por outro lado, a tradição francesa atribui ao corpo do ator
uma importânc ia apenas limitada. O sucesso das estéticas rea- É absolu~am~nte ilusório acreditar que um grupo que tra-
listas e naturalista s, o gosto pelo teatro literário e pela bela balhe segundo os métodos "de improvisaç ão" possa produzir
dicção restringem o corpo a funçõ es de suporte expressivo fácil e diretament e alguma coisa interessant e. A improYisaç ão
secundário . A improvisaç ão, pelo contrário, permite encarar o se revela frequentem ente como uma reação não elaborada,
corpo como a própria fonte da invenção criativa. O choque foi mágica, um desejo de fazer outra coisa, de mudar a sociedade
violento, quando, sob influências como a do teatro americano e o mundo. O mito da improvisaç ão será denunciado através
(sobretudo o Livina Theatre), dos teatros-laborat6riÓ da Europa de todas as formas nas quais pode ser vivido, da depressão ao
do Leste Oerzy Grotowsk i), do teatro oriental, de Artaud, e conceito. Não se trata de ser arrogante: nenhum de nós pode
até q>.esmo de formas populares e de teatro ambulante ·redes- se acreditar suficientem ente forte para escapar ao fascínio
cobertas, o corpo e a improvisaç ão conhecera m uma voga que produzido por uma proposta de "se exprimir", de eliminar
raramente haviam tido antes na França. as convenções sociais e os estere6tipo s para libertar o id, de
Improviso u-se muito e de todas as formas: com ou sem deixarJal~ o não verbal, visto como capaz de revelar uma
roteiro, com ou sem máscara, com ou sem texto em mãos, pelo ver.c;lade, de encontrar o ver-dadeiro grito, o "puro", a nature-
prazer da liberação das energias e para alcançar criações cole- za, a esp~:mtaneidade etc. 2
tivas construída s, tanto a título de treinamen to do ator quanto
para alimentar os ensaios de um t~xto escrito previamen te. Alguns anos mais tarde a origem das críticas contra a improvisa-
Esse entusiasm o e os excessos inevitáveis que o cercaram ção obscureceu :.se um pouco; ao se banalizar ela deixou por si
tiveram como consequên eia sacralizar e banalizar alternada- · mesma de ser wn mito. Proponho fazer um balanço dos usos da
mente a "impro", 1 transform ada um pouco em serviçal de um impr~visação que me interessam , perguntan do a mim mesmo se
teatro à procura de um novo fôlego. as armadilhas regularme nte denunciada s há cerca de wna d écada

86
podem ser evitadas por aqueles que, paradoxalmente, não acre- Po~êmica à parte, proponho examinar alguns objetivos de
ditam n em na espontaneidade pura, nem na verdade absoluta. jogos improvisados precisando em qual contexto eles operam.
Partamos de uma boa definição dada por Michel Bernard, Pois, C?mo lembra igualmente Catherine Mounier, "A improvi-
que também se declara con~a os mitos da improvisação: sação é uma prática de grupo da qual é inútil gen eralizar as pro-
priedades; ela só adquire todo o seu sentido num detertninado
Improvisar [... ] é compor, executar ou fazer no instante, no contexto. O objetivo que lhe é atribuído é uma consequência
imediato, qualquer coisa imprevista, não preparada, sendo direta da ideologia daqueles que a adotam". 5
que, evid entemente, essa própria ausência de preparação
pode ser ela mesma preparada, premeditad.a, e que a margem
. de variação possível pode e, como diremos, deve ela mesma A improvisação c?.~O relacionamento entre
ser progr:1mada em relação a uni roteiro mais ou menos pre- o su jeito e um objeto
ciso, como se vê na com media delF arte. 3
CoJ?.vém examinar os pontos de partida da improvisação, a fim
Michel Bernard especifica o que se pode esperar desse de não restri~gi-la à expressão de um indivíduo que projeta na
imprevisto: página branca ou no espaço neutro os frutos de uma inspiração
em estado bruto, independenteme nte de qualquer instrução
. alguma coisa que ainda n ão foi vista, alguma coisa nova, criar ou contribuição exterior. Um ponto fundamental é a distinção
no sentido forte; entre um~ prática que suporia que tudo está de antemão no
• e/ ou realizar um ato não pensado ou refletido, rompendo interior do .indivíduo, como tantos materiais caóticos ou em
com qualquer conhecimen to racional; fusão que s6 e.s tariam esperando o momento de ganhar forma,
e/ ou realizar um ato não deliberado, involuntário. 4 e uma prática que admitiria que os conteúdos das improvisa-
ções passam por subjetividades que os iluminam dif~rentemen­
Haveria portanto uma espécie de paradoxo em utilizar a te. Nesse último caso, não se espera que o produto provis6rio
improvisação no quadr:o de uma fo~mação se ela se baseia uni- obtido seja totàlmente novo ou "autêntico". Em função dos
camente na busca de uma "~spontaneidade" sem relação com indutores de jogo propostos, a improvisação se define como
as aprendizagens, enquanto ·as normas ipstitucionais (escolares; o instante de confronto entre uma subjetividade assumida
por exemplo), que Michel Bernard encara como uma "codifi- como tal e elementos objetivos. Úma longa tradição do tra-
cação generalizada", se reforçariam. balho teatral, retomada especialmente pelo Théâtre du Soleil

88

'.
,
e pelo T~éâtre de 1'Aquarium, afirma que um improvisador como sua imaginação é convocada. Não se tr:ata de criar uma
se alimenta de inform~ções que sustentam seu jogo e aprofun- hierarquia, salientando que o objeto exterior (trate-se de uma
dam o sentido dele. A propósito de 1789, do Théâtre du Soleil, situação: de um espaço, de um texto, de um~ música) tem
Catherine Moun~er escreve: "Improvisa-se, alimenta-se a ima- mais ou menos importância do que a imaginação do improvi-
ginação de informações, examinando uma matéria analítica e sador, ou que o sujeito fará aparecer sentidos totalmente ino-
iconográfica considerável". 6 Philippe Ivernel comenta a tradi- vadores durante a experiência. Aposta-se, antes de mais nada,
ção da "improvisação proletária" nestes termos: na corifrontação entre uma proposta e o sujeito, num determi-
nado momento de sua experiência.
Uma comissão dramatúrgica é constituída para examinar essas As COI?tribuições respectivas dos elementos presentes
propostas, para estimulá-las, para arriscar outras. Ela remete geram produtos frágeis que se integram a uma construção
à trupe o resultado de !'uas cogitações. Cada um novamente artística cuja originalidade pede para ser exami~ada.
recorre à sua experiência, às suas leituras, sínteses, discussão.
No final dessa prim eira fase, "o esqueleto estava pronto" . A
improvisação vai lhe dar carne e sángue. 7 A improvisação em feixes

Certamente nada é simples num processo que distingue fases Um método q~e relativiza o narcisismo encorajado pela impro-
de reflexão e fases de jogo, ao mesmo tempo que reconhe- visação consiste em sempre trabalhar com um grande número
ce a heterogeneidade delas. Instala-se uma espécie de distin- de tentativas e com a confrontação entre elas. Cada improvi-
ção perigosa entre fundo e forma. Superándo as explicações sação é, portanto, considerada uma tentativa com riscos rela-
demasiado mecanicistas, compreende-se bem que é possível tivos, que !lão atribui cará"ter absoluto à expressão individual.
instaurar um vaivém, por exemplo, entre os temas de um tex- O ator.que tenta várias vezes não espera, absolutamente, chegar
to e a ·maneira como eles se prolongam em ecos nos atores que· a uma improvisação ideal. Ele entra em um processo de produção
improvisam confrontando-os com a sua sensibilidade. . de tentativas não hierarquizadas. Atrav~s de várias experiências
A improvisação me interes~a como o lugar do encontro ele produz uma espécie de espectro expressivo, um feixe de ten-
de um objeto estrangeiro, exte~ior a:o jogador, com o imagi- tativas cujo primeiro mérito é existir e que não são consideradas
nário deste. Ela provoca: o sujeito a reagir, seja no i!lterior da segundo uma escala de valores que exaltam o resultado, mas sim
proposta que lhe é feita, seja em torno da proposta, explorando o modo de produção. O interesse da improvisação é que ela repre-
amplamente a zona que se desenha para ele, segundo o modo senta uma experiênda para o sujeito, relativizada pela sua frequência
,
e pelo exame atento de seu desenrolar. -uma vez que não se espe- A improvisação é o contrário de uma abordagem estagnada
ra a aparição mágica de um produto excepcional, o interesse se ou sistemática. Ela engendra uma pluralidade e uma diversidade
desloca em direção à soma de processos que poderiam eventual- de respostas em shuações vizinhas, marcando suas diferenças.
mente levar a um produto provisório, também questionado.
· Um segundo modo de confrontação consiste em re unir
no mesmo espaço propostas provenientes d e vários indivíduos A improvisação, reflexo d e uma vivência
ou de vários g rupos. O s en contros, os atritos, as contradições que não é apenas afetiva
entre as tentativas que, às vezes, se desenvolvem em torno dó
mesmo objeto facilitam a a?ordagem desse ?bjeto submetido A vivência na qual normalmente a improvisação se apoia não
a imaginários diferentes. O risco do narcisismo .do grupo sub - se reduz à a.firmação do eu ou da afetividade do jogador. Ela se
siste, mas agui também a visão em perspectiva e a relativiza- estende igualmente a ·uma soma de experiências do mundo das
ção das propostas e das "criações" se efetuam por intermédio quais o sujeito é d epositário e das quais se en contram vestígios
de seus cruzamentos. nos roteiTos. As improvisações transmitem também ·as compe-
A abundância das tentativas diminui a importância d e cada tências de jogadores de origens diferentes, tendo, por exemplo,
uma, conferindo-lhes grande maleabilidade. Se me·for p ermi- experiências culturais ou profissionais diversas. Recentemente,
tido fazer aqui a apologia do rascunho (ou melhor, do esboço), algumas trupes tentaram captar as narrativas de populações que
eu destacaria o caráter polimorfo da improvisação. A multipli- têm preo~pações e vivências afastadas daquelas dos atores (I.:Âae
cação dos esboços não gera necessariamente um desenho, mas d, or, Théâtre du Soleil, 197s; La jeune ]une tient la vieille ]une
expõe -as variáveis que intervêm num processo criativo e eiúa- toute uru: nuit dons ses bras, Théâtre de L' Aquarium, 1 976). No
tiza sua fragilidade. Por sua natureza, a improvisação leva a Brasil; os atores do Teatro do Oprimido alimentaram suas impro-
considerar as variações, as distâncias.entre propostas, tanto ou visações com icl'ormações obtidas junto a operários, ca~po:t:teses
mais do que as propostas propriamente ditas. ou moradores de pequenas cidades com os qu~s ·trabalhavam
Nessa perspectiva, a improvisação é uma ferramenta que em teatro-fórum. Nesses exemplos, as informações obtidas são
permite multiplicar as relações e~tre o interior e o exterior retomadas e teatralizadas por atores que se tornam porta-vozes
e que leva o sujeito a se confrontar com um objeto variando dos ''contadores", em função de suas competências e savoir-faire.
os ângulos de abordagem. No mesmo movimento, os sujeitos Mas existem também exemplos de atores n~o -profissíonais que
estabelecem relação entre si pela mediação do objeto e pela colocam diretamente e.m jogo seus saberes:particular es em çer-
sua colocação em jogo. tas formas de teatro proletário ou de agit-prop.

93

Em estágio s qut; mistura m categor ias sociopr ofission ais Esses "primei ros esboços ", se não são criativos em termos de
dive!-sa s, assisti a improv isações que mostra vam de manei-
novidad e, oferece m uma abordag em subjetiv a ·precisa de infor-
ra inimitá vel c;:ondut as particu lares, experiê ncias íntimas . mações vividas que outros membro s do grupo não conhece m.
Eviden tement e podem -se criticar os limites técnico s dessas
"repres entaçõe s" pouco teatrali zadas, realizad as por pessoas
que não são atores nem pretend em sê-lo. No entanto , elas
Desse modo escapa m dos estereó tipos?
me surpree ndem pela precisã o, pertinê ncia e origina lidade,
ou seja, pelo ponto de vista particu lar que apresen tam do
A express ão de um grande número de clichês também é uma
mundo . Assim, profess ores encarr egados de formaç ão pro-
maneira de se ap:oxim ar da realidad e vivida, trabalha ndo sobre
fissiona l dão surpree ndente s exempl os· de seu savoir-f aire
. os espaços entre os clichês, sobre as ligeiras variaçõe s que sepa-
profissi onal aos colegas literári os que não tinham conhec i - ram--os modos de represe ntação de uma realidad e conside rada
mento direto de gestos cotidia nos vincula dos a determ ina- "comum". Assim, todos os membr os de um grupo de normali s-
das profissõ es e, assim, os d escobre m. tas que trabalha m sobre a entrada d e um profess or na classe têm
Em outra ordem d e ideias, profess ores primár ios uma ideia própria a esse respeito . A represe ntação da entrada na
improv isam sua maneir a d e entrar na sala de aula, t entam
classe no espaço real, p or cada um dos membr os do grupe, refe-
se lembr~r dela com precisã o e a teatrali z(\m. Criança s, se
rindo-s e à sua vivência , nos fornece dezenas de resposta s, todas
estende rmos o campo da experiê ncia vivida, represe ntam
diverge ntes. Isolad-a, cada urna dessas respostas passaria talvez
com minúci a person agens de pais ou d e profess ores com
por um clic~ê. Desmo ntando cada um dos elemen tos dessa
q uem convive m todps os dias. Eles "refaze m" gestos conhe-
entrada , nós. destac::amos alguns pontos em comum (man eira de
cidos ou familia res num espaço transici onal. Essa experiê n-
abrir a porta, de dar uma olhada circular pela classe, de colocar
cia é uma novida de para eles, como são novas as inform a-
livros ou p~sb) e algumas diferenç as (ritmo, atitude, atenção
ções que transm item por esse meio a seus parceir os, antes
dada à "máscar a" etc.). A confron tação de vivências ligeiram en -
de passar para tentativ as mais comple xas. De resto, mesmo • o

te diferent es é uma boa abordag em do clichê; ela permite atacá-


se essas improv isações ~ão sobretu do realista s, a realida de lo de frente trabalha ndo com ele, ao invés de denunc iá-lo sem
que elas comun icam é filtrada pelo .s ujeito que, represe n- que se saiba exatam ente o que o constitu i como clichê. 8
tando, d esenvo lve sempr-e um ponto de vista pessoal . Enfim,.
Portant o, a improv isação pode evocar vivên~ias muito
essas improv isações exprim em concre tament e dado.s que
diferen tes que deixam e$paço à afetivid ade, mas não se con-
serão retraba lhados em seguida .
centram exclusi vament e nela.

94
9S

,•
A improv isação, at? impens ado e irreflet ido? alguns provêm do inconsc iente·.. Em vista disso, os indutor es de
jogo recorre m alternad amente a elemen tos sensívei s já familia-
Entre as críticas dirigida s à improv isação, destaca -se a de se res, que se renovam , e a outros que atraem a atenção para áreas
fazer passar por um ato impens ado e irrefleti do, cujo caráter nas quais o jogador é menos seguro de suas resposta s. Assim, a
~novador seria garantid o porque ele escapa ao sujeito, a quem
provoca ção para "fazer'', a confron tação com objetos artístico s e
permite afirmar o "transb ordame nto de sua riqueza escondi da". a incorpo ração do aca'so não têm como ambição r evelar ao joga-
Com o a liberaçã o dos afetos t em lugar na desor~em, através da dor suas "riquez as escondi das", mas lhe dar acesso a uma gama
improvi sação, seria preciso ao mesmo tempo regê-la, e depurá- de possibil idades da qual ele n em sempre tem consciê ncia, sem
la, de modo a constru ir uma ordem superio r que fosse em par- que seja necessá rio se referir ao conceit o de esponta neidade .
te a express ão do inconsc iente.
A improv isação nem sempre f~nciona como armadil ha
Nos exempl os dados, situo paradox almente uma parte mistific adora de uma express ão espontâ n ea que reconci liaria
do trabalho de improvi sação em zonas familiar es ao jogador , o indivíd uo consigo mesmo . Certam ente o desejo de alcança r
nas quais ele encontr a pontos de r eferênc ia necessá rios a uma uma verdade "pura", livre das conting ências sociais, é uma ten-
express ão conscie nte. No entanto , a criativid ade não é totalme n-
tação p ermane nte para os jogador es estimul ados pela expres-
te indepen dente do inconsc iente, ela não se aliment a apenas qe são do "eu" a conduta s nardsic as. Contud o práticas modest as
elemen tos racionai s. A improvi sação afirma Q caráter insubsti - e contrad itórias que propõe m uma soma de experiê ncias no
tuível do sujeito, do contrár io seria melhor orienta r a formaçã o espaço de jogo estimul am o sujeito a descob rir uma gama de
p ara m étodos francam ente racionais, limitar- se a aprendi zagens resposta s que não se dão como inéditas , mas que ~nda não per-
técnicas ou a um trabalho de textos, organiz ado por um ence- t encem ao _campo de seu s conhec imentos ou de sua sensibil i-
.- nador que seria o único a ter acesso à express ão. Acredit o que
dade. Ele se encontr a, portant o, menos impelid o a se revelar,
o jogador deve ter contato ao mesm~ tempo com elemen tos afirman do unia esponta neidade anárqui ca, do que a se confron-
que lhe são familiar es e com outros que lhe são estranh os. Isso tar com situaçõe s ainda inéditas no seu campo d e experim en-
não para que ele se "revele a si mesmo" , mas para que faça nw:n tações. Trabalh a.n do com variáve is, a improvi sação encoraj a o
espaço determ inado um~ soma de experiê ncias entre as quais desenvo lviment o da flexibil idade da imagina ção e opõe-se ao
algumas o remeta m inevitav elmente a terreno s conheci dos e sistema tismo. Por sua ancorag em na afetivid ade, a improvi sãção
"outras o questio nem e problematize~ seu estoque de . certezas ~ não nega qualque r conduta raciona l, mas estimul a, no context o
\A apre~dizagem existe pela confron tação com elemen tos.novos de uma formaçã o, a tomar c~nsciência do papel do inconsc ien-
\,_~u em todo caso desconh ecidos pelo sujeito, entre os quais
te e do sensível na relação do indivídu o com o mundo.

91
A FLEXIBILIDADE DA IMAGEM

A origem do tra~ho com imagens é muito antiga; ela remonta


a uma tradição de "quadros vivos" utilizados na educação popu-
lar com resultados diversos. Servi-m e durante algum tempo
. de uma ferramenta que chamávamos d e "fotografia" e que, na
verdade, equivalia à construção de imagen s fixas. Augusto Boa}
deu um brilho novó aos trabalhos com a imagem no Teatro do
Oprimido e vamos nos referir a isso mais tarde. 9 As utilizações
da imagem são ~umerosas e a t écnica de base, muito simples.
A improvisação exige o enfrentamepto de diversos problemas
ao mesmo tempo. É preciso se movimentar num espaço, estar
atento _aos parceiros, inventar, falar, referir-se a um eventual
roteiro, num m esmo momento.
? trabalho com a imagem é uma maneira de fragmentar as
difiéuldades, de operar mais lentamente, eliminando a palavra
ou limitando-a a raras intervenções. Como diz Bernard Gros-
jean sobre as imagens: "A dificuldade e a força do teatro-imagem
residem em sua nudez, em sua quintessência. A palavra, ausente,

99

•'
não desempe nha mai.s seu papel apazigua dor de descomp ressão, todas as outras posturas. Em seguida eles se reúnem, sempre em
de explicaçã o, de refúgio". 10 Eu a utilizo como uma ferramen ta
silêncio, segundo as semelhan ças, as oposiçõe s, as afinidade s que
cômoda nas oficinas de iniciação e a integro, como será visto na percebem ,-estritam ente em função de critérios pessoais que não
descrição das práticas, a formas de interven ção muito diversas, precisam ser justificad os. Desse modo obtém~se 'uma série de
.como tantas outras falas que não passam pela linguage m verbal. grupos, de "famílias " de respostas que é preciso ob servar nova-
Apresen to aqui alguns exemplo s de utilização dessa ferramen ta. mente. Interroga m-se esses grupos introduz indo o movimen to,
propond o que cada uma das escultura s se mecanize ou repro-
duza indefinid amente um movimen to. Pode-se também pedir a
Imagens indiv iduais cada um dos participa ntes que emita um som que lhe pareça
convenie nte à sua resposta. Às vezes, pede-se que as escultura s
Reunido s em grande círculo, os participa ntes são convidad os a falem pelo sistema· de "balões", semelhan te ao das histórias em
reagir física e individua lmente a uma palavra pronunci ada pelo quadrinh os. Essas técnicas sip1ples reativam ou limitam a polis-
animador , sob a forma de uma imagem fixa (autoescu lpida). Eles sem ia da imagem primitiva , fazem variar o sentido, esclarece m
dispõem apenas dé um tempo de reflexão muito breve (alguns algumas respostas , refinando -as e desenvol vendo-as . O partici-
segundos ) para se. voltarem para o interior do drcillo e reagir ao pante fica isolado se quiser ou se não sentir afinidade com as ..
estímulo verbal por uma postura imobiliza da. Eles podem pro- outras imagens. As imagens produzid as são tantas quantas as res-
ceder por ilustraçã o ou por associaçã o, construi r uma imagem postas n ão-verbà is à proposta inicial. Todas as respostas do grupo
simbólic a ou uma imagem "real". Um fator importan te é a rapi- podem concretiz ar-se imediata mente sob os olhares de todos.
dez da resposta (a primeira ideia é a boa). A identifica ção com ...
um personag em não é obrigat6 ria, mas ela depende muito da
palavra indutora . A resposta é uma espécie de simboliza ção num
~magens coletiva s
flash que é necessar iamente simplific ador, uma vez que é preciso
dizer tudo em uma única.im agem fixa, inscrever tudo no corpo
Dessa vez não se trata de reagir a wn~ palavra, mas de traba-
singular de cada um dos p articipan tes. Vantagen s dessa simplifi-
lhar demorad amente em torno de um tema fixado pelo grupo.
cação: as respostas são diretas, s~m o refúgio do verbo. Cada um dos participa ntes é convidad o, quando o desejar, a
Num segundo moment o as respostas (as escultura s apre- construi r uma i~agem fixa na qual entram os corpos dos par-
sentadas ) são confront adas, cruzadas , compara das. Para isso, os ticipantes~ que ele organiza e esculpe no espaço da cla~se. A
participa ntes abandona m sua postw'a e observam sucessiva mente imagem deve ser organiza da em função do olhar exterior dos

100
BIBLÍOTfC.Á- 10 1

~~\ \~
m embros d o grupo que não entram no trabalho. Ela constitui REFERÊNCIA S PARA UM A TEATR ALIDADE DI SCRETA
a fala do p articipante sobre o t ema proposto e, segundo as
indicações, pode ser real ou ideal, concreta ou m ais simbólica.
Em função das necessidades , a imagem será modificada, reto-
mada, desenvolvid a, legendada, segundo o processo já descrito
para as imagens individuais, por ém , de forma mais complexa.

A imagem oferece inúmeras pistas novàs quando ma~ejada


regularmente e torna-se, então, mui to mais que uma simples
ferramenta a serviço da 'i mprovisação . Serão encontrados Os jogos improvisado s geram sobretudo um estilo pouco ela-
exemplos de trabalhos que u tilizam a imagem na descrição borado que, às vezes, leva em consideração algumas conven-
ulterior das práticas. M aleável e p olissêmica por natureza, ções e raramente um código consciente. O jogador que d ispõe
ela o ferece aos jogadores· um quadro no qual pódem se enga- d e poucos pontos de referência se fecha n a imitação, esforça-
ja~; oferece também, paradoxalm ente, um abrigo, já que a se para mimetizar. O que ele reproduz se apoia frequenteme n-
l eitura da imagem é deixada à apreciação de cada um. te numa soma de estereótipos, próximo do realismo abastar-
Modelo do real, ela permite, no entanto, todas as d esrealiza- dado d os folhetins. Entre as crianças, os jogos espontâneos
ções. Eficaz, obriga a fazer escolhas, enquanto·a palavra, por seu assumem form~s simples e breves, quase sempr e r ep etitivas.
excesso de nuances, acaba às vezes por erguer cortinas de fumaça. O adulto, mesmo quando dispõe d e ·urna cultura teatral à qual
Ela opera como uma espécie de código diretamente ligado .à tenta se !"ef~rir, não dispõe de meios técnicos que o ajudariam
expressão e um de seus interesses· provém do fato d e poder esca- a alcançar a simbolização . As pro duções que se desenvolvem.;
par à vontade de seu autor. E.n fim, como veremos especialment e sem instruções de jogo, na página em branco como no espaço ;
a propósito do trabalho sobre o espaço, ela permite uma pesquisa vazio, dificilmente atingem um estatuto artfstico, por falta de :
estética graças a toda urna bateria·de modificações instantâneas. tomada de consciência de seus autores em r elação aos sistemas ,
I

, I
A imagem encontra usos na maior parte das situações de de convenções e da importânci~ dos signos produzidos. ·
jogo que serão descritas ; sua riqueza es~á ligada às invenções A intervenção do formador é delicada. Fala-se com fre-
que propicia. quência da teatralização ou do acesso aos c6digos culturais que

102
permitiria m aos jogadores avançar na aprendiza gem e desen- ou em verdadeira s gramática s gestuais. Uma extensão a
volver a capacidade de jogo. Nessa perspectiv a, trata-se antes outros códigos nos leva para o lado do melodram a e m esmo
de uma transmissã o de conhecim entos. Têm-se como refe- da comédia musical, cujos estilos não são ma~s simples e cujo
rência ou representa ções teatrais vistas por todos, ou códigos conhecime nto é igualment e limitado. Recentem ente, em fun-
simples ensinados sistematic amente. Nesse caso o processo ção do sucesso do Théâtre du Soleil, manifesta- se um interes-
educativo muda de natureza e não se baseia mais na d esco- se pelo teatro oriental.
b erta experimen tal dos fenômeno s de jogo. O formador que Esses exemplos não se referem de forma direta ao não-
impõe um código e o faz entrar em prática cria uma identifica- ator, que dificilmen te consegue adquirir savoirjaire em pou -
ção entre sua tarefa e a de um encenador , o que coloca novos co t~mpo. .
problemas . Na verdade, c~nforme se refir~ a um trabalho de Por outro _lado, a teatralizaç ão às vezes é confundid a
t eatraHzaçã o, a uma pesquisa sistemátic a de códigos culturais com a deformaçã o obrigató ria das propostas iniciais, c omo
c omuns ou à observaçã o dos elementos de teatralidad e nos se o teatro se encaminha sse s.e mpre no sentido da ampliação
trabalhos produzido s , as ambições são muito diferentes . do gesto e de seu exagero, no sentido da deformaç ão dos
A adoção de um estilo d e jogo comum é um dos maiores traços. Meus objetivos, mais modestos, encaminh am-se para
obstáculos do trabalho teatral. Basta ir regularme nte ao tea- a conscienti zação daquilo que fundamen ta o teatro como
tro para se dar conta disso. Na França, a grande disparidad e tal, independe ntemente do texto e do diálogo. A indicação
do jogo correspon de em geral à diversidad e da formação dos de alguns sistemas de convençõe s já é uma etapa satisfatóri a,
atores. Por falta de exigências em matéria de direçã_o de jogo, que pode ser alcançada no interior do jogo por algumas "bri-
eles são seguidame nte levados a refazer o que já sabem fazer · colagens artísticas" . Meus objetivos não conduzem ao domí-
um pouco em todos os espetáculo s em que se apresenta m. nio absoluto. das convençõ es, mas conscient izam sobre sua
O acess~ de não-atores a uma unidade .de jogo parece ainda existência .
mais utópico. Nas escolas de teatro onde se tem por obje- Temo um ensino demasiado sistemátic o dos códigos se
tivo a aquisição de alguns elementos de códigos de jogo, as ele conduz à ideia de que os códigos são bons em si mesmos e
referência s geralment e provêm da história do teatro. Tradi- de que sua aplfcação mecânica é adequada a qualquer discurso.
cionalmen te trabalha-s e sobretudo o jogo farsesco, a comme- A escolha de um código . comp~Ómete muito· mais do que o
dia dell'arte, o jogo clownesco , os mais familiares , mas não faz um exercício de transposiç ão de um discurso existente em
os mais simples tecnicame nte, talvez porque desenvolv am um formas previamen te aprendidas . Se algumas transposiç ões .per-
estilo afetado, vislvel, que se apoia em máscaras e maquiagen s · manecem possíveis a título de treinamen to, sua sistematiz ação

104
105
habitua perigosamen te a separar fundo e forma e, no limite, a quando se passa, com um mesmo movimento e no m esmo
fazer. d á teatralização uma operação vazia de sentido, a fazer registro, d o jogo ao não-jogo. A noção d e transparênci a leva
do códígo um conjunto d e "artifícios" d estinados a embelezar a não fa zer diferença entre a pessoa e o personagem , a falar
uma ideia inicial. dela como se fosse verdadeira, a falar do jogo tal como se tra-
Ora, a pesquisa do c6digo acompanha a elaboração do tasse do mundo. Essa modesta aprendizagem estética fornece
discurso; ambos nascem do mesmo movimento e participam uma das chaves da sequ ência do trabalho. Toda representaçã o
da mesma necessidade. O código não é determinado em meio se inscreve no interior de um sistema, se dá como reconhe-
a um arsenal de possibilidade s; e le faz parte d a essência do cimento da mentira:-_ Portanto, não se faz "teatro" sem nunca
espetáculo. Quando atores estão acostumados a códigos que se perguntar de qual teatro se trata e sem saber que ele pode
lhes são transmitidos , p ede-se a eles n o momento de uma cria- assumir formas muito diferente~:-. Esses rituais de "passagem"
ção que inventem ou reinventem um código que supere seu não fazem d escobrir os c6digos; eles assinalam que as con -
savoir-Jaire, determinand o as condições de uma ruptura com venções existem e que sua e scolha é decisiva desde que se
aquilo que já existe. trate d e "mentir de verdade".
O prim eiro aspecto que :r::?e interessa ~ o que deter - O segundo aspecto - haverá exemplos na descrição das
mina a oposição jogo/não-jo go. Os participante s aprendem práticas - consiste em~ntroduzir no jogo instruções con cre-
a usar regras simples que marcam momen.tos d e passagem tas que provoquem a teatralidade no momento da produção
do estado d e disponibilid ade ao estado de jogq: Essa lei que dos signos e não em um "segundo tempo" d o jogo, como se
parece evidente é uma proteção, ela faz tomar consciên- o teatro fosse um envelope formal envolvendo tardiamente
cia da passagem para um sistem~ de convenções. Atribuo , um sentido preyiam ente conhecido] Todas essas instruções
p or tanto, bastante importância aos rituais de entrada e~ trabalham · s?bre a mater.i alidade do jogo, sobretudo as ins-
jogo que marcam essa ruptura. Em outras artes, o traço no truÇões espaciais , que impõem convenções rigorosas. Vou
papel, a ·emissão de um som demonstram claramente o início· me limitar ao exemplo de jogadores que deyem levar em
· d e um trabalho. No caso das atividades dramáticas o equívoco conta um espaço imposto não corresponde nte ao lugar real
é possível, já que a ferramenta· (o corpo, a voz, a pessoa) se no qual se desenrola a situação escolhida por e les . Tomando
confnnde com o produtor de signos. Pe ço então aos jogadores consciência do interesse da metáfora espacial; eles desco-
que marquem as transições, a passagem da realidade ao jogo· brem também· que~~ teatralização não se limita ao exagero
. e vic~-versa. Mediante esse ato, eles questionam a noção de ou ao efeito. Ela começa com a defasagem, o deslocamen-
transparência que paira o t empo todo sobre a atividade teatral to do sentido, a metáfora~ Quando as instruções provocam

106
107

,.
essas defasagens, elas vão no sentido ele uma teatralização O joao do açouaue
que jorra do cerne da invenção.
Antes de qualquer procedimento de teatralização, atribuo Manhã fria. Entram dt•zc.•nas de dientc.•s num açougut•. Algumas
importância à identificação da teatralidade naquilo que é pro- donas-dc-çasa, senhores idosos que compram um pedaço de filé, uma
duzido. Nos trabalhos sobre o espaço, assim como naqueles senhora em pantufas, pequena, atar racada, sem graça, com cabelos
sobre os rituais ou personagens, trata-se de atrair a atenção grisalhos um pouco sujos. Tudo se desencadeia muito rápido, faz-se o
dos jogadores para os elementos involuntários de teatralidade, pedido, a mercadoria é pesada, embalada, kvada ao caixa para pagar,
nascidos do lugar real ou das inabilidades dos jogadores, de um o troco 1.• dado c os parisienses passam apn•ssados na rua.
efeito de luz fortuito, de uma situação ligeiramente insólita. A O a\ougueiro rcconht•çcu na pequena senhora comum uma
teatralidade opera no cotidiano, ela não se limita ao palco c a cliente c inicia as trocas. Quantos pedaços? Um, dez? Ele finge não
seus artillcios. Trata-se aqui de uma longa educação do olhar, ter cntt·ndido, retira um pedaço brran<k de carne c diz "com esse
que se apoia tanto na observação sistemática dos trabalhos dos frio, é pn•dso comer". !'la pede um bife.• macio c ele insiste sobre
outros quanto no meio imediato. As práticas que descreverei essa "macic:t" 11 , batc·ndo a carne. Os outros sorrit•m, a ~cnhora
recorrem a referentes concretos, às vezes provenientes da paga a carne antes de recebê-la; a proprit•tária-caixa aproveita a
experiência direta dos jogadores. Assim, a observação atenta situação: "Como já pagou, pode partir", di:t, com um grandç sor
da entrada de professores na sala de aula, reapresentada diante riso. Todos 1·iem c a pequena senhora roli\·a protesta dizt·ndo que
de nós, é a ocasião de uma síntese elo que constitui sua tea- ela aceita sair sem pagar, mas não sem a t·arne. "Mas í.• a nova lei",
tralidade. Nunca com intenção de criticá-la ou de modificá- diz o aç'ougudro, "os clientes devem pagar c ir embora, não pre-
la, simplesmente para que os indivíduos tomem consciência e cisam da carne." Uma outra senhora vai ao caixa. Já munida de
que eles próprios tirem proveito dela. A teatralidade do espa- :.eu pacott•, finge não comprel•nder. "Ah, é, não precisa mais pagar,
ço não começa no teatro, como a do gesto ou da mímica; ela posso ir agora?", "Não", diz a açougut'ira, talvez um pouco mais
intervém no cotidiano. O fato de haver "jogo" no cotidiano diz séria, "como aquela senhora espera o Sl'U pacote, disst•mos a ela
respeito aos jogadores antes que eles produzam uma teatrali- que podc.•ria partir, já c1ue pagou, mas com a senhora é diferente."
dade forçada ou escandalosa. Trata-se de percebê-lo. "Ah, é", retorquiu a outra, assim-assim, "t·u tinha entt•ndido que a
partir dt• agora não precisava mais pagar...""Ele sempre me provo·
ca", diz a pt><Jlll'na senhora satisfeita, apontando o açougul'iro com
o queixo, "ele adora caçoar de mim ."
Não sl'i se isso se improvisa, mas tc.·m jogo...

r o8
A descri~ão das práticas, por mais discutíve l gue seja, parece-
me indisp en sável para a constituição de um material p ara a
reflexão te6rica. São poucas as oficinas totalm ente originais.
Elas se inspiram na experiência dos outros , adaptam-se a um
espaço particular, a objetivos mais precisos. A pesquisa come-
ça pelo modo corno o formador formula suas instruções e as
transforma. Na busca paciente de ligeiras modificações - na
ordem das pro postas, na verbalização das in stru ções , na apre-
sentação .<;le ~rn jogo:- consiste o interesse da pesquisa.
Ao invés de examinar um .grand~ número de exemplos
que p:udessem esgotar o assunto, escolhi apenas alguns deles,
procurando detalhar o máximo possível, pois são os d e ta-
lhes que fazem a diferença . O ·mesmo e xercício muda de
sentido· quan~o apresentado em contextos diferentes. Por·
outro lado, o prazer do formador, t ão importante para a
qualidade do trabalho, também nasce da experimentação de
novos elementos e da renovação do estoque de propostas .

113
·,

O que forneço, portanto, são marcos provis6rios de uma NARRATIVA, SITUAÇÃO, TEMAS:
vasta ..obra. O trabalho com ~eres vivos tolera mal a fossili - AS ARMADILHAS DO ROTEIRO
zação. A situação real .ime diata permanece como elemento
essencial de uma prática que vive do in~tante e que, parado-
xalmente, tem necessidade do recuo. É esse recuo indispen-
sável gue tento partilhar.

Na tradição de improvisação com roteiro, os jogadores inventam,


em linhas gerais, uma narrativa prévia gue em seguida tentam
jogar. O roteiro dá segurança para aqueles que ~e sentem para-
lisados pela improvisação sem nenhum ponto de referência e
faz parte das propostas mínimas de ponto de partida da impro-
visação. Portanto não retomarei suas vantagens nem insistirei
sobre sua função de proteção que mantém no campo do racio -
nal agueles que te~am medo de deslizes excessivos ou que não
saibam· como ~erminar uma improvisação. Por outro lado, gos·-
taria de _des~acar alguns de seus limites.
A invenção do roteirC? o mais das vezes consiste em estabe-
lecer de modo superficial uma "hist6ria" ou um "esquete", com
todas as consequências ligadas a narrativas simplistas, construi-
das em função de art:iflcios drarnáticos tradicionais. Em princí-
pio, o roteiro deveria ser apenas um ponto de partida em torno
do qual os jogadores são convidados a inventar. Nas práticas, a
improvisação quase sempre se limita a Ull'la ilustração sumária

I 14
•• s
·'
do que foi decidido, sem grande criatividad e. Os jogadores se narrativas mais complexas e mais modernas possam se impor
esforçam para respeitar a narrativa inicial e dedicam um cuida- depois? Nós nos reportamos à questão da clareza e da imitação
do particular a seu desenlace, às vezes assimilado a uma "queda" dos modelos que demonstra ram sua eficácia. É ambiÇão demasia-
cômica. Limitados por suas próprias instr~ções, é raro que os da achar que os roteiros possam escapar do lugar-com um?
participan tes ousem dar muito jogo à sua história. Esta está Algumas montagen s recentes, de Françoise Pillet e do
presa a modelos narrativos "bem construído s" e já consagrado s. Théâtre de la Pomme Verte provaram que ·e spetáculos sem
Desse ponto de vista, um treinamen to com o roteiro é uma fábula evidente eram muito bem recebidos pelas crianças, mes-
maneira de se apropriar das formas tradiciona is da narrativa mo as pequenas, e que vários níveis de sentido e imagens com-
dramática, de tomar consciência dafábula. Mas ao mesm o tem- plexas, _operanc:Io por associação , não chocavam. É difícil para
po, quando os esforços d~ todos se conce~tram no núcleo nar- não-profis sionais abrir mão inteiramen te do roteiro tradicional ,
rativo, isso se dá em detriment o da dimensão sensível do jogo mas c~:msidero muito important e que utilizemos indutores de
e de um investimen to real dos jogadores. jogo diferenciad os , que não conduzam exclusivam ente à teatra-
A instrução tracüciona l anterior ao roteiro transmite três lização pass_a ndo por uma narrativa prévia obrigatóri a e bana-
palavras de ordem, "lugar, situação, personage ns", que os joga- lizada. A título d e reflexão, proponho o exame de um roteiro
dores interpreta m à vontade, de acordo com seus· conhecimen- tradicional de várias sequências , construído por ur~a classe de
tos dramatúrg icos e com a ideia que têm do teatro. Às vezes a. sétima série de um colégio durante o trabalho semanal regular.
instrução determina que também é preciso inventar um coriflito
para que a situação ganhe corpo e evolua de maneira satisfatória .
Pergunto- me se os estereótipo s não se desenvolve m a partir des 7 Um exemplo d e roteiro nu~a classe de sétima série
sa transforma ção de desejos iniciais saídos da meswa fôrma. o
uso do roteiro depende, evidentem ente, dos objetivos almejados. O projeto c"onsistia em trabalhar, alternadam ente durante
Professore s que trabalham com alunos num enredo estão inte~ algumas se~anas, o esboço e o jogo para chegar a um roteiro
ressados num treinamen to do roteiro cujo donúnio pelos alunos elaborado em que todos os alurios pudessem participar. Dois
de colégio geralment e os satisfaz, pelo menos como pont~ de grupos preparam e jogam duas improvisa ções que devem ser ·
partida. Aí começam minhas dúvidas, na medida em que pude o ponto de partida Ha narrativa. A ideia das estátuas provavel-
constatar ser difícil aos jogadores bem treinad_o s no r<:>tciro tra- mente vem do trabalho com esculturas e imagens fixas ·reali-
dicional experimen tar formas narrativas -um pouco diferentes. A · zado no início do ano. Todas ·a s vezes forneço a sequência do
passagem.p ela tradição é uma etapa inevitávelp ara que invenções roteiro e a proposta de jogo correspon dente.

116
I 17
Narrati va
Narrati va

Escult uras de grande valor são ]evada s, por engano , a um Uma cliente de um superm ercado reclam a por não encon -
museu de miniat uras por transp ortado res decidid os a se livra- trar nas pratele iras a lata de ervilha s que precis a. A vende -
rem dá merca dória de qualqu er maneir a. O direto r do museu dora lhe afirma que espera m uma entreg a. Duran te o inter-
e seu vigia não sabem que decisão tomar. O direto r telefon a ao valo do almoç o, os transp ortado res apress ados entreg am as
minist ro (da Cultur a?). Este anunci a sua chegad a.
escultu ras no superm ercado que tomam por um museu . A
cliente retorn a e ouve-s e dizer que as ervil~as foram entre-
Jogo gues. Todos ~escobrem, espant ados, estátu as expost as no
meio da loja.
As escultu ras (figur adas p elos alunos ) são instala da; amon-
toadas num canto do espaço de jogo. Um barulh o enorm e
Jogo
vem do cômod o vizinho . Conve rsando , e com brutali dade, os
transp ortado res, descon tentes com a tarefa, transp ortam as
Monól ogo da cliente das ervilha s que reclam a do serviç o
estátua s, atraves sam a rua (ignor ando os carros ), coloca m -nas
medío cre da loja . . A g erente adorm ece, com a cabeça sobre
no saguão do museu , tocam a campa inha. ,O vigia adorm eci-
a mesa. Chega da espeta cular das est átuas num carrinh o con-
do está incom odado , ele abre arrasta ndo os pés, não entend e
. seguid o na cantina . Instalação das mesma s. Em determ inado
nada da situaçã o, chama seu chefe. O vigia se apoia de costas
mome nto, os transp ortado res tomam o chefe por uma estátua .
numa estátua de braços estend idos, acredi~a tratar- se d e ~
Em segui.d.a aç<?~dam a gerent e, são pagos (ela acredit a tratai'~se
revólv er, perceb e su a confus ão. O direto r telefon a ao minist ro .
das conser vas espera das) e saem com o carrinh o. Contem pla-
com respei to, explic a-lhe a situaçã o. O direto r .e o vigia, per-
ção das estitua s: ·a gerent e e a vended ora giram em torno delas ,
plexos , giram em torno das estátua s; os carreg adores querem
tentand o manipu lá-las. O que vão fazer?
ser pagos. O vigia se apaixo na por uma estátua sexy pareci da
Contra riamen te à intençã o primiti va, que erà a de escolh er ·
com Marily n Monro e. O telefon e toca, o minist ro anunc ia
entre essas duas sequên cias, elas foram mantid as em paralel o;
sua chegad a, provoc ando pânico no diretor .
depois os dois ramos da narrati va foram reunid os em um único.

118
I 1 .9

,.
,•'

Continua ção da narrativa


ladrões transfo rmados em estátuas : el e os toma por obras de
arte. Os dois saem para comer.
O conserv ador do museu e seu vigia ·procur am uma solução ,
Eles entram num café, instalam -se e acham que estão so-
endereç os de museu na Üsta telefôni ca. Eles escutam no rádio nhando ao descobr ir diante deles um grupo de persona gens ocu-
a história das escultu ras entregu es num superm ercado. Isso pados com uma comilan ça, que estranh amente se parecem com
lhes dá uma ideia ... as estátuas . Mari1yn, que vem lhes pedir fogo, deixa-o s um pou-
O ministr o decidiu transfo rmar o superm ercado em co mais tranquil os. Eles saem e as estátuas brincam de se pe~ifi­
museu e reunir ali todas as escultu ras entregu es por engàno. A
carem em torno da mesa, de ser e de não ser mais estátuas .
cerimô nia de inaugur ação é tumultu ada:
• pela briga entre o conserv ador do rriuse\,1 da miniatu ra e a
Análise do araumen to
diretor a do superm ercado, que disputa m a direção do novo
museu; A narrativ a tem como primeir a qualida de ter sido inventa da
• p elas entrada s sucessiv as da cliente das ervilhas , que insiste
pelo grupo de vinte e cinco crianças ; todas encontr aram nela
em fazer suas éompra s. um lugar que, em geral, as satisfaz. Ela é constru ída com solidez
O discurs o inaugur al do ministr o é perturb ado por um
a partir de um duplo quiproq u6 que desenca deia uma série de
indivíd uo que diz ser o verdad eiro rninistr o (o compo rta:
acontec imentos . Sua unidade gira em torno de uma convenç ão
mento do primeir o faz supor que se trata de uma fraude) e de jogo que diverte muito os jogador es: ser ou não ser estátua,
pela chegad a de um grupo de indivíd uos suspeit os que c?bi- conserv ar ou não conserv ar a imobili dade absolut a. Grossei ra-
çam as escultu ras. mente, pode-se dizer que pertenc e a um univers o imaginá rio
A noite, no museu, as estátua s desper tam e começa m a inspirad o ~:!OS quadrin hos, mesmo que a referên cia não tenha
se movim entar, manife stando a alegria de se re- encontr arem.
sido mencio nada. 'Inspira-se também nas narrativ as policiai s
Durant e esse tempo os ladrões prepara m um golpe e inva- para jovens e os persona gens pertenc em a esses universos con-
dem o museu para levar as estátua s. Estas retoma m a posição vencion ais: o falso ministr o.,. os ladrões , o vigia ingênuo e pre-
inicial, depois surpree ndem os ladrões , que são transfo rma- guiçoso facilme nte enganad o, o diretor ambicio so. A narrativ a
dos em estátuas , antes de fugirem . O vigia continu a dormin - utiliza recurso s estudad os em classe; por exempl o em Moliere
do profund amente . (o quiproq u6); faz bom uso d~s saltos tempor ais, .da elipse '(pas-
O vigia acorda, entra em pânico ao constat ar a ausênci a
sam diretam ente do duplo quiproq uó:pará a inauguraç~o) . O
das estátua s, alerta seu chefe , que o acalma , mostra ndo os desenla ce é divertid o, a pirueta final é uma maneira de fechar o

JlO
121
enredo, sem resolver o destino das estátuas. A narrativa utiliza o sobre os espetáculos, descobriram que existiam escrituras dra-
maravilhoso, retomando os clichês do gênero, reanimados pelo máticas diferentes, soluções dramatúrgicas não-uniformes. A
humor do jogo (as estátuas despertam durante a noite, elas têm aposta feita com esse grupo é que as crianças desenvolvam sua
o poder de transformar em estátuas aqueles que as tocam- caso imaginação pela prática e pela confrontação com modelos cul-
dos ladrões- de se tornarem humanas à vontade). Algumas gags turais diversificados. Em seguida elas se dedicarão a uma oficina,
de conotação sexual apimentam o todo (o vigia e Marylin Mon- confrontando claramente o jogo e a escritura, com a participa-
roe, o chefe dos transportadores considerado como estátua ... ). ção de um autor teatral. Portanto, não recuso o trabalho feito
As cdanças tiraram proveito disso? Elas se apagam atrás a partir de um roteiro, mas acho que devemos ser ambiciosos,
dos personagens de ficção emprestados .de narrativas "para questionando to.das as produções. Não para impor o universo
crianças" e de seus clichês. Ao longo do jogo e pelo humor dele dos adultos cedo demais, mas para que os jogadores se confron-
extraído, elas lançam um olhar irônico sobre esse universo (dis- tem rapidamente com os problemas da invenção e com poéticas
putas por pequenos poderes, falso ministro muito seguro de si, que não os confinem num sistema único de pensamento, que,
verdadeiro ministro paralisado pela timidez, chefes vaidosos). como sabemos, s~ torna muito rapidamente o único universo
Elas ficam radiantes por representarem persona~ens tradicio- de referên cia para toda uma vida adulta.
nais como os ladrões, e as estátuas têm como ponto de honra O exemplo de um trabalho de roteiro com crianças não
serem totalmente imóveis e concentradas a'o longo de todas restringe a discussão às aprendizagens escolares. As mesmas
as manipulaçõ.e s por que passam. Elas demonstram prazer em questões se colocam numa oficina de adultos,. onde as formas
desenvolver longamente uma narrativa aos saltos, sendo que referenciais, que surgem em primeiro lugar, são frequentem en-
muitos deles foram encontrados dentro do jogo. . te as mais tradiciopais. Acredito que devemos ser ambiciosos e
Um longo trabalho as conduziu ao domínio de uma nar- questionai- por meio do jogo tUdo o que é produzido nas oficinas.
rativa complexa e tradicional, e, desse ponto de vista, o rotei- Se a ela~or~ção de um roteiro muitas vezes é inevitável , outros
ro é satisfatório. Eu o questiono, pois estimo que esse grupo pontos de partida devem ser propostos p ara que os jogadores
deve superar as convenções narrativas e que pontos de parti- não se ·fechem :'la rotina e sejam suficientemente provocados
da diferentes poderiam levá-lo a trabalhos mais originais. É aí para inventar, a partir. de instruções diversificadas, que façam
que a questão dos modelos culturais interfere. Ao longo do ano referên cia, o mais possível, à escritura teatral contemporânea .
as crianças foram ao te.a tro e viram Monsi eur de Pourceaugnac Os exemplos seguintes propõem caminhos que rompem com
(1669), de Moliere, Esperando Godot (t9.P), de Samuel Beckett; o enredo inicial ou incitam à invenção de sistemas narrativos·
e O pupilo quer ser tutor (1969), de Peter Handke. Elas falaram menos diretamente construídos a partir de padrõ'es clássicos.

12'2 123
O ESPAÇO ENQUADRADO

Em geral. as primeiras improvisações não l evam muito em


conta o espaço. Nossa educação r estringe o teatro a uma rela-
ção frontal , nem claramente percebida, nem d e fato assumida
como tal. Os clichês sobre o teatro remetem a um "estra-
d o" ou a um "palco", sem que o espaço seja levado em conta
como um elemento do jogo teatral . A forte tradição literá-
ria de nosso teatro prevalece sobre a dimensão plástica ou a
limjta ;i noção vaga·de "cenário". A relação entre o lugar de
onde se vê e de onde se é :visto não é percebida nessa abor-
dagem do fenômeno teatral. Velhos hábitos, provenientes do
naturalismo, fazem o restante e, sem preocupações com as
convenções, o s jogadores escolhem espaços r eais para nele.
representarem como "se fosse verdade".
No ent~nto, o espaço é fundador do jogo teatral e
determina a educação plástica no quadrQ de uma interdis -
ciplinaridade que ~qui deveria ser perfeitamente natural. O
trabalho sobre o espaço é acompanhado de uma educação' do
olhar por intermédio de propostas que estimulem a enqua- Preliminares
drar ,os ·'elementos da rea1idade. Enfim, o espaço tomado
como indutor de jogo ensina a considerar a relação com o Em primeiro lugar trata-se de re-equilibrar os elementos
referente d e maneira que a metáfora teatral possa se esten- da improvisação. Diante da proeminência dos elementos
der livremente. textuais e narrativos, trata-se, ao contrário, de privilegiar o
O modelo teatral inspira e influencia nosso trabalho espaço, fazendo que os jogadores descubram a importância
sobre o espaço. O t e atro saiu d?s muros dos teatros; nesses da dimensão plástica. Para que o jogo teatral se fixe num
últimos anos ele ocupou todas as falhas do tecido urbano : espaço, é preciso criar condições para um trabalho rigoroso.
terrenos baldios, fábricas abandonadas, hangares e igrejas A prática ajl,lda a compreender como o espaço engaja pro-
desativadas. Essa tendência havia sido· iniciada nos festi - fundamente o jogo, pesa sobre os elementos do enredo e se
vais ao ar livre, nos quais imagens teatrais se confrontavam mostra determinan~e, mesmo do ponto de vista do sentido.
com espaços reais, raramente previstos ou equipados para A utilização de um espaço real bem enquadrado induz os
a representação. Essas novas situações, de início sofridas, corpos a se situarem e se expandirem dentro dele. O espaço
l evaram os criadores a refletir sobre a estética de um teatro é urri elemento flexível que convém às primeiras "bricolagens
obrigado a se adaptar a espaços que não lhe eram destinados. plásticas" .. Favoreço as manipulações de espaços diferentes no
A teatralização de lugares insólitos, logo depois, tor~ou-se a contexto das séries de tentativas. Não é mais possível imaginar
pesquisa privilegiada de diferentes encenadores, sobretudo um roteiro sem pensar em seu desenvolvimento no espaço, na
de André Engel. sua projeção concreta no l~cal.
Foi pensando nesses modelos, mas também por causa O tra~alho sobre o espaço é a oportunidade de edu-
da penúria dos locais de trabalho, que comecei a utilizar os car o olhar .dos jogadores e dos espectadores. Os enquadra-
espaços reais aonde o acaso me l evava, conforme os lugares mentos se realizam a partir de espaços reais. Como e onde
de formação: corredores, salas de aula, refeitórios, ginásios, colocai o olhar dos outros em relação a um determinado
jardins, terrenos baldios, prédios inteiros. Inicialmente não espaço? As duas coisas estão ligadas: como eu mostro e tam-
tinha nenhuma vontade definida de alterar esses lugares . bém como é percebido aquilo que mostro.
Antes de tudo, tratava-se de uma necessidade, a de fazer tea- Existe uma poesia do espaço. Uma ligeira modificação
tro de tudo, por toda parte, já que faltavam ·i nstrumentos e. de um espaço banal, ou já ~uito visto, lhe confere novo inte-
equipamentos. Posteri,o rmente o trabalho se sistematizou e resse. Às vezes basta uma mudança de ângulo para que tudo
definiu seus objetivo~. · se m~difique. A alteração do espaço assume formas diversas,

126
127

•'
exige que sejam superadas as soluções demasiado explídtas, Um processo de trabalho
que sejam descartados os mei~s excessivos ou grosseiros.
O espaço como trabalho sobre o sentido. Ele é o que O princípio
é representado, em sua realidade imediata; é também o que
representa ou aquilo que os jogadores se esforçam para fazê- Fornecer instruções que estimulem o s jogadores a improvisar
lo r epresentar. Assim começa o trabalho sobre a noção d e a partir d e espaços reais que lhes são indicados. Propor que a
m etáfora, as formidáveis variações em torno do sentido. Tudo qualidade desses espaços, seus volumes, suas relações com o
se torna possível a partir de w~ mesmo cadinho. exterior, sua iluminação natural ou artificial, a soma dos aci-
Por vez es , os espaços. institucionais onde nos instalamos dentes que· os cons.tituem seja~ matéria de jogo.
são excessivam ente carregados de sentido pelos participantes · Num primeiro momento, não espero que esses espa-
que vivem e trabalham neles. É ainda mais apaixonante d es- ços sejam designados como tais, nem que remetam de modo
construí-los e aproveitar todos. os cruzamentos de sentidos indireto e limitado a um lugar identificável na realidade. As
que aparecem. O jogo é um meio de "recarregar" os espaços. primeiras observações e os jogos decorrentes de tais espaços ·
Todos os formadores, quaisquer que sejam as disciplinas, estimulam a tomá-los pelo que são . Por isso, peço aos jogadores
têm r elações privilegiadas com o espaço. A desestrúturação e a que se relacionem com os espaços de modo diferente sem se
re-estruturação de um espaço real em função de uma situação preocuparem com o sentido, que se arrisquem numa explora-
de aprendizagem também se realizam por meio de um traba- ção sensível, fora de qualquer narrativa.
lho sobre o imaginário. Tornamo-nos mais maleáveis ao trei-
narmos r eações rápidas a condições ins6litas ou simplesmente Exemplos .de espaços
inéditas de espacialização.
No retorno ao cotidiano, o desvio pelo imaginário muda São escolhidos. no ambiente de tr~balho, e~ função da reali-
o
a percepção do espaço e a maneira como indivíduo se situa dade do locaL Entretanto, procuro variantes simp~es: gran-
num espaço familiar. Essa aprendizagem não diz respeito ape- de/pequeno, raso/profundo, largo/ estreito, claro/ escuro,
nas aos profissionais da arte., e seu impacto é enorme. aberto/fechad6 etc.· Os espaços são escolhid.o s na sala, de
acordo com figuras geométriças, ângulos particulares, em
função das aberturas. Quançlo possível, são escolhidos fora
da sal a, entre os prédios adjacentes, os corredores, o grall].a-
do, as árvores, os acidentes naturais do terreno. Em todos

128
os c asos são precisamente det~rminados, materializados, às consiste em entrar em contato com o espaço sem que os joga-
vezes, com linhas traça~as com giz. dores se preocupem com a narrativa ou com a fábula; eles o
Em seguida, começam as explorações. con sideram como tal em sua espessura concreta.
Na segunda fase dessa primeira exploração atribuím os ao
Exploração 1 espaço uma série de referentes escolhidos ao acaso, jogando "se
fosse ...". O s espaços assim evocados n ão t êm n ecessariamente
O grupo todo se encontra diante de um espaço delimitado relação com o espaço figurado, mas trabalhamos então o maior
como indicado acima. Os pontos de onde se pode ver tam- número de propostas possíveis. O banco, portanto, é designado
bém são definidos por mim. A indicação propõe que cad a um sucessivamente (J:'elos j ogadores e/ o u animador de jogo) como
reaja ao esp aço entrando nele livremente para se imobilizar e _um aeroporto, um deserto, um banheiro, uma jangada, uma
compor uma imagem, preocupando-se menos com o sentido sala âe aula ou uma igreja et c. O trabalho de con~trução d e
do que com a maneii·a como ele d eseja entrar em contato imagens é retomado a partir dessas novas propostas, segundo as
físico e sensível com o espaço de jogo. Os jogador~s n ão com- m esmas regras do jogo. É possível dar consistência ao exercício
binam; a imagem se complica e se modifica se as entradas se repassando uma série de imagens sem que nada seja mudado,
multiplicam. É possível fixar um número-limite de interven - mas propondo à leitura silenciosa individual novos referentes
ções. Assim, são feitas várias "tomadas" su cessivas, .sat urando puramente imaginários, como uma espécie de g inástica interior.
ou esvaziando alternadamente o espaço designado. O mesmo Toda essa nova série de tentativas se apoia nas aquisições das
trabalho pode ser recom eçado mudando d e lugar os olhares primeiras explorações.
externos. Desse modo , se o espaço proposto é um l o ngo
banco de m adeira ao longo de uma janela envidraçada qu,e dá Exploração 2 .

para uma vasta paisagem exterior livre, o olhar pode se situ-


ar diante do banco, a alguns metros, depois, muit'! próx imo, Os jogadores, reunidos em p equenos grupos, exploram
diante d o banco ou afastado. As diferentes tentativas refletem livremente um ou vários espaços, interiores ou. exteriores,
os desejos contraditórios dos jog~dores : eles entram no espa- durante um tempo fixado previamente. Para isso, retomam
ço pelo prazer de mu~tiplicar as linhas abstratas, integram-se indicações já utilizadas com o grupo maior ou improvisam
ou quebram o espaço, jogam com o espaço começando a lhe livremente em torno de espaços que lhes chamaram a aten-
dar sentido, voltam-se para o exterior ou para o interior, con- ção. O trabalho se dá sem nenhum olhar ~xterior, cada gru-
forme se dão conta ou não. dos olhares. Essa fase de trabalho po é autônomo. Em seguida, de volta ao interior da sala de
trabalho , os pequenos grup<?s prestam conta de suas explo- calcam suas propostas n o espaço real atribuído a eles. Assim
rações ao grupo maior por uma improvisação livre com o uma escada p ermanecerá a escada de um lugar imaginário, por
objetivo de partilhar as d escobertas. Esse trabalho exercita ex emplo d e um imóvel ; talvez se torne a passar ela de acesso a
os olhares que temos do meio, "enquadra" espaços insólitos um avião, mas deverá continuar a ser escada. N o segundo caso,
que são representados e explorados . Os jogadores começam a restrição é mais forte, já que se trata de jogar a aliança obri-
a apresentar dificuldades de transcrição ao serem obrigados a gatória entre o espaço e o r eferente. Ora, o devaneio, a ativi -
prestar con ta de um esp aço para pessoas que não o conhecem. dade artistica, o jogo, repousam num m ecanismo fundamental:
Assim, entramos n o trabalho teatral, já que se cruzam uma o deslocament o e a transformação. Desse modo, o acaso pode
experiência sen sível e sua expressão p ara o exterior, a visão fazer d e um grupo d e árvores uma sala de hospital; de um
interior de um espaço ~eal e sua transposição. As inúmer as retângulo de d?is metros por um , uma p ista de dança; de
t entativas criam jogo sem que jamais os participantes sejam uma escada, uma boate notur na; e d e um .banco, um esp aço
obrigados a se engajarem de maneira definitiva num trabalho aéreo. A r estrição é tipicamente propiciadora de jogo. Sem
de realização. Os esboços su cessivos faci litam a multiplicação que seja preciso se referir ao acaso-, e la cria as condições de
das exp eriências. uma espécie de desafio que estimula os j ogadores a_crer e
fazer crer que o espaço ocupado por eles é mesmo o lugar
Improvisações r fictício que lhes foi .i mpost o. Como disse Fre ud,

Uma série de improvisações coloca em jogo os espaços que É diffcil não se espantar com a semelhança do deslocam ento
foram considerados nas explorações e, eventualmente, álguns nos sonhos e no jogo. Essa constante substituição de objetos,
outros. Em vista disso, os jogadores r eunid_o s em p equenos eles próprios indifer entes aos objetos reais, essa maneira de
grupos sorteiam um espaço e dispõem de alguns minutos apresentar pessoas e coisas por substitutos que às vezes s6
para estabelecer um roteiro em função do que ele lhes inspira. apresentam com elas uma analogia distante, não seria o siste-
Eventualmente, num segundo sorteio, uma instrução um pou- m~ da cri~ça que joga e para quem um pedaço de pau entre
co mais complexa impõe um lugar referencial, realista ou não. as pernas· torna-se um cavalo...
Cabe ao grupo tirar partido da dupla espaço/lugar sorte~da,
quaisquer que sejam as dificuldades apresentadas. Quando o Às ~ezes as instruções propostas são um pouco voluntaristas.
trabalho se desenvolve, acho interessante que sejam vencidas Entretanto, acontece de o choque de elementos contradit9rios
as du~s etapas sucessivamente. No primeiro caso, os jogadores ser tão intenso que acaba dando origem a uma imagem forte.
As vezes o encontro não dá em nada, a exprimentação não é Improvisações 3
produti~a de imediato. O essencial é que a confrontação possa
ter lugar e quebre a r~tina da estrita imitação. Mesmo quando Na mesma perspectiva de uma troca entre os grupos, mas des-
a subversão do espaço se revela gratuita ou forçada, ela deixa ta vez dando mais consistência à proposta cenográfica, propo-
marcas nos jogadores que se arriscaram. nho a dois ou três grupos a organização de um determinado
espaço, transformando-o em "máquina para jogar". Segundo a
Improvisações 2 percepção que têm do espaço real, os participantes preparam
o terreno, modificam a disposição da mobília·, eventualmente
Refazer, retomar recomeçar nos fazem correr o risco de este-
) modulam a ilufl?.inação, incluem-se na proposta como querem.
rilizar os jogos, a menos que diversifiquemos os desafios. _Acho Ele.;s. carregam o lugar d~ sentido, orientando-o na direção que
interessante provocar cruzamentos do imaginário em todas as lhes interessa. O grupo convidado descobre o espaço que lhe é
situações possíveis, fazendo com que um grande número de designado, com suas transformações, e o "joga" imediatamente
jogadores se envolva numa mesma atividade. Para isso, ope- na improvisação. Em seguida, uma troca confronta as diferen-
ro uma redistribuição das cartas_, própondo que cada u~ d os tes reações ao mesmo espaço em função do que alguns previ -
roteiros improvisados uma primeira v_ez seja retomado, mas ram e outros imaginaram.
num espaço que anteriormente havia sido atribuído a um
outro grupo. É uma maneira de aumentar o desafio, já que
para os jogadores não é mais possível aproveitar o espaço da
mesma maneira, 'e já que eles têm por obrigação superar as A relação direta entre o corpo e o espaço é um bom aprendi-
primeiras reações rotineiras. É também uma proposta que se zado do rigo~ no jogo. No quadro da formação, esse tipo de
traduz em mudanças no roteiro. Enfim, a qualidade do olhar exigên_cia ~ssinala de imediato o interesse de uma contribuição
dos jogadores, testemunhas de uma nova proposta em um tipicamente pl~tica e teatral, que cria condições de uma J;uptu-
quadro que já lhes é famHiar, não é mais a mesma. As trocas ra com formas de jogo-narrativo exclusivamente literárias, com
de roteiro e de espaço, todo o movimento das substituições, uma tradição sobretudo verbal. Essa exigência também esti-
transformam os espectadores em parceiros de uma. aventura mula os jogadores a levar em conta convenções fundadoras do
coletiva na qual a variedade das respostas e a confrontação das jogo, ajuda-os na superação da relação palco/plateia tradicional.
soluções derrubam a tentação de respostas sistemáticas .e de Uma gama de instruções desse tipo sensibiliza para a exploração ·
toda "estratégia, no jogo. dessa relação, tornà concretas questões como o lugar do olhar

134 1 3S
e os tipos de comunicação in.d uzidos pelas escolhas espaciais. dimensões. Todo trabalho de exploração desse tipo traz nele pró-
Deixando de imaginar o teatro exclusivamente sobre um palco prio o risco de fazer crer que tudo é sempre possível e que todas
fixo, os jogadores tornam-se capazes de levar em conta espaços as respostas às instruções são equivalentes. Os exercícios gue
muito diferentes, trabalhando sobre a diversidade d e sua per - visam a ampliar o campo do olhar e suscitam r espostas múltiplas,
cepção do entorno e das suas reações a ele. A imaginação é sus- se não forem recolocados numa perspectiva de criação, correm
citada p ela r ealidade concreta. Os sonhos mais surpreendentes o risco de fazer perder de vi st~ a questão das escolhas. A ginástica
não são aqueles que trabalham o real no que este tem de mais da imaginação prova que existe um grande número de soluções
familiar, operando nele transformações ínfimas ou importantes , diante de um dado problema; ela não desemboca na problemáti-
mas sempre terrivelmen~e lógicas? Trata-se aqui de enguadrar ca da criação. Q artista, mesmo procedendo também por tatea-
elementos da realidade e de fazer com que var-iáveis interfiram, mento ou por ''J:>ricolagem", continua sendo aquele que faz esco-
para medir as suas consequências. Enfim, a diversidad e das ins- lhas e propõesua resposta, sua visão numa determinada situação,
truções abre um leque de propostas, que vão da maior restrição pensando que é a melhor. As colagens obtidas pela intervenção
(a utilização imperativa de um espaço designado arbitrariamen- do acaso, a busca. de soluções múltiplas, são uma etapa em ruptu-
te) à maior liberdade (operar as próprias escolhas num ambien - ra com a fabricação de clichês. Em seguida, cabe criticar também
te onde será preciso atuar alguns minutos. depois) : os clichês obtidos, mesmo pelas colagens, e tomar consciência
Em estágios de formadores e em escolas de teatro, só de que cada um deve fabricar a própria hierarquia de soluções.
realizei um trabalho tão sistemático com os adultos. Uma vez Enfim, o objetivo último desse trabalho talvez seja a bus-
adaptado, póde-se efetuar o :ô':l.esrno ·trabalho com as crianças ca da simplicidade. Os inúmeros desvios da criatividade inci-
ou adolescentes, contanto que .percebam o que está em jogo. tam a experiências por vezes artificiais enquanto permanecem
Tivemos uma experiência com crianças do maternal, em que .como exercí~ios. Como todos os trabalhos probatórios, estes
exploraram o espaço familiar do pátio interno e dos "cantos" ganham, a longo prazo, ao serem rigorosamente examinados,
já delimitados da sala de aula. Elas chegaram a um certo rigor e seus resultados ganham quando se tornam mais leves. Todo
ria relação coro o espaço, organizando-o, povoando- o à sua trabalho desse tipo está ameaçado pela sistematização, pelo ,
maneira e transformando-o com a ajuda de diversos materiais. ressurgimento de soluções artificiais que correspondem a uma
Em taJ.s oficinas, o condutor de jogo tem a responsabilida- estratégia da "resposta certa". o questionamento das instru-
de pela escolha dos espaÇos, pela maneira como ele passeia seu ções é unia dimensão da invepção, uma vez que se trata, e-q1
próprio olhar sobre lugares que sãó atribuídos ao grupo para · última instância, de perceber o espaço dispensando tótal]nen-
determinada tarefa, a fim de renová-los e de lhes atribuir outras te instruções que não passam d e muletas da imaginação.

. 1 37
A PEQUENA MÚSICA DOS RITUAIS

..

Determinados pontos de partida do j ogo teatral viriam da


observação da vida cotidiana. Segundo urna ideia muito
antiga, o ator, pela observação das silhuetas encontradas
diariamente, procuraria modelos d e comportamento dos
personagens que depois representaria no palco. Ele ali-
mentaria sua arte imitando habilmente aqueles exemplos
encontrados na rua ou nos salões.
A qualidade de observação assim mobilizada não garante a
q ualidad e da .transposição. Ela faz do ·ator apenas um observa-
dor exterior que se dispõe a uma imitação, mas não sabe como
participa dela.
. O trabalho que proponho sobre os rituais desloca o
interesse para o próprio jogador, que é, ao mesmo tempo, o
modelo e o instrumento expressivo. Entretanto, não se trata
de um estudo psicológico n"em de urna incitação disfarçada
ao psicodrarria. Nossos comportamentos cotidianos repeti-
dos;·às vezes de maneira inconsciente, passam a ser pontos

1)9

•'
,.

de partida de exercícios e ~e improvisações de acordo com importância para aquele que a executa, a ponto de se aproxi-
processos que engajam o trabalho de todo um grupo. mar de um cerimonial. A liberdade de escolha do jogador é
essencial. As trocas dentro do p equeno grupo de fala ajudam a
delimitar o campo dos rituais e a criar condições favoráveis ao
·um processo de trabalho jogo, dando vontade de partilhar sua exp.eriência.
. Cada um, após algum tempo de reflexão e de concentra-
Um rito é, no sentido figurado, uma prática regrada, invariá- ção solitárias, joga diante do grupo o ritual escolhido segundo
vel, uma maneira habitual de fazer. Que ações cotidianas repe- as seguintes regras:
timos regularmente de _ ac~rdo com uma ordem e um princí- O objeth:'O do jogo é reproduzir a maneira como cada
pio que nos são próprios? Além dos gestos habituais, comuns à um vive uma a_ç~o, ainda que banal, de acordo com hábitos
maioria dos indivíduos de mesma cultura (para se lavar, se ali - estritos, os q~ais, Justamente, fazem daquela ação algo maior
mentar, se vestir... ) , temos ainda outros mais pessoais ou que do que uma simples ação mecânica. Se o jogador escolhe o
executamos de alguma maneira particular? Como o conjunto ato de escovar os dentes de manhã, é preciso que ele encontre
desses gestos faz parte do tecido de nossa vida cotidiana? Essas todos os elementos que organizem sua ação de acordo com
questões preliminares alimentam a indicação e. enquadram a um ritmo e particularidades que fazem de tal ato seu ato. Isso
definição do ritual pessoal. significa também que ele está consciente da importância do
Num primeiro momento, formam-se p equenos grupos ato e sensív.el ao seu desenrolar.
e estabelecem -se trocas a partir de alguns rituais evocados Valem as mesmas regras se a ação for menos·banal. É pre-
por cada um. Defino o grau de implantação: os rituais dizem ciso que o jogador encontre o detalhe do desenrolar da ação
respeito ora a uma ação a priori banal (tomar uma xícara de para que po~sa partilhá-la com a maior exatidão possível.
café, com er geleia), ora a uma ação de caráter mais {ntimo, Essa noção de precisão pede um comentário. Ela não diz
que adquire um sen~ido mais preciso para "cada um (visitar o respeito à representação propriamente dita da ação, o que exi-
túmulo de um ente querido, visitar um parente). O interesse giria tiro grande savoir-faire. Fora do espaço real e sem os par-
está na maneira como nós executamos tal ação. Os jogadores ceiros e eventuais acessórios que fundam a realidade, o jogador
escolhem uma ação que lhes é pessoal (cada um ~ecide seu procuraria em vão dar uma imagem exata de sua. ação por téc-
grau de implicação, optan~o pelo tipo de ação que escolhe). nicas de pantomima. A precisão vem do respeito ao desenrolar
Insisto no fato de que a ação deve ser ritualizada, portanto que de ações sucessivas e do trabalho com a memória, não qa exe-
ela apresente um caráter repetiti~o e que se revista de alguma cução prop~iamente dita. A instrução especifica, de resto, as

140
condições de representação. Se o ritual exige vários persona- •· Adotar um estilo de jogo e um código de r epresentação,
gens, ; jogador se en_carrega deles sucessi:vamente, anunciando r etomando e de~envolvendo o ritual escolhjdo (espaço,
em voz alta, se o desejar, quem ele joga. D o mesmo modo personagens, situação... );
cabe a ele fornecer, através da narrativa, todas as precisões que • Inventar e desenvolver uma fábula que integre um ou vários
consid era Úteis para a localização, para as eventuais mudan- ritu,ak
ças de lugar, para a manip u lação dos acessórios. (Aqui estou
subindo no ônibus; aqui estou pegando a escova de dent e.) A Esse segundo ponto pode ser negligenciado se os jogado-
apresentação do ritual pode muito bem ser alternadamente res não se interessam de modo algum pela invenção de um
contada e jogada, de modo que as dific::uldades formai s não enredo. O m_esmo ponto d e par tid a pode ser escolhido por
prejudiquem a comunicação do acontecimento. vários g rupos.
Todos aqueles que d esejarem podem apresentar o ritual
q u e escolheram. Não d eixo isso preciso na instru ção, através
da qual, ao con trário, insisto n~ implicação, mas como sempre Exemplos d e rituais apresentados em um jogo
é possível infring ir uma instrução, um jogador p oderia inven-
tar de cabo a rabo um falso ritual (sem que ni~guém se aper- • Trajeto cotidiano de casa ao local de trabalho.
ceba disso?). Ao final das apresentações, nós acumulamos um • O café da manhã.
estoque d e "acontecimentos" que não o são d e fato , já. que p er - • Volta para casa após o trabalho.
tencem ao desen rolar ordinário de nossos dias "normais". Sua • Os últimos minutos antes de dormir.
importância vem do fato de que foram esd>lhidos e assumidos • Acord~r uma_criança na cama dela .
individualmente p elos jogador~s e observados por todos. Uma • Domingo de mahhã e os diferentes horários dos membros
lista de rituais é afixada no quadro da sala de.oficina, para que deumaf~ia~
sejam memorizados p or todos. · . • A visita a uma mãe "colocada" num asilo.
Quando todos aqueles que. quiseram já tiverem jogado, • O encontro cotidiano ·com os filhos.
são constituídos grupos em to~no de um ritual que os parcei- • As d elícias do banheiro.
ros escolhem d e comum acordo. Os grupos trabalham então • O trabalho com uma partitura ·musical ao piano.
num roteiro e preparam uma improvisação que tem por obJe- • Onde t o loquei ·a s chaves no· momento de entrar em casa?
tivo teatralizar o ponto de partida escolhido, privilegi~do as • Do despertar do filho ao caminho da escola: o esforço d e
seguintes direções: um pai.
,..

Assim estabelecida, essa lista não tem quase nenhuma originali- pesquisa de todos os componente s precisos desses microa-
dade a mais que os sempiternos temas de improvisação que dão contecimento s. A espessura da realidade se opõe às tentações
lugar a estereótipos quando se interpreta um café da manhã, um dos clichês, algumas diferenças deixam de parecer anedóti-
desgastante trajeto nos transportes coletivos, uma mãe comovi- cas (topografia do apartamento , música escutada, presença
da ou intratável. Qual o interesse desse trabalho, o que o dife- de crianças, de animais, estilo de vida ... ).
rencia da produção maciça d e clichês tirados do cotidiano? • A implicação : a decisão de partilhar com os outros um
momento pessoal implica riscos para o jogador que não se
esconde atrás dos estereótipos folhetinescos e simplesmen-
O interesse do ritual te se consagra a dizer coisas an6dinas de sua vida cotidiana
que, no entanto, são importantes: que ele tem um cachorro,
• A precisão e a abundância dos detalhes: o simples café-da - como ela molha as plantas, que ela tira os sapatos de salto
manhã de uma pessoa retém a atenção quando executado assim que abre ·a porta, que ele/ ela dorme só' etc.
com minúcia p e~a pessoa que sabe muito bem como toma • O anódino: o int~resse nem sempre está voltado para os
seu café, colocando-se diante de taJ janela, executando tais acontecimen tos excepcionais , os fatos surpreend~ntes. O
gestos, com determinado humor. O s acontecimen tos, anódi- teatro recupera os elementos banais (e sensíveis) do cotidia-
nos quando pintados com grossas pinceladas, ganham relevo no. Mesmo tendo nos afastado disso ultimamente , esse apa-
quando os vemos como no micro~cópio. nhado de acontecimen tos microscópico s constitui um esto-
• A presença e a concentração do executante: evidentemen te que de elementos capitais que alimentarão muitas fábulas.
o jogador conhece muito bem seu assunto; o cuidado com o • A teatral.ização : assemelha-se ao "mentir de verdade" de que
qual tenta partilhar um momento familiar lhe dá uma qua- falam Aragon e Antoine Vitez. Ela cria condições de um dis-
lidade de presença, uma concentração excepcional ligada ao tanciamento do vivido imediato e uma superação d a anedo-
desenrolar do ritual. Não há nenhuma necessidade de artifl- ta. A invenção, a mentira, a ficção sempre nos interessam.
cio para que ele se envolva na silhueta esboçada. Mas elas se .apoiam numa "verdade" que não é a Verdade
• A evidência das diferenças: sempre são encontradas v~rias definitiva, preestabelec ida, d aqueles que sabem; mas aquela,
versões muito diferentes de rituais aparentemen te vizinhos. modesta e espiritual, dos que t entam captar fragmentos de
E talvez se descubra que nenhum café da manhã s~ asseme-· conhecimen to e de informaÇão.
lhe mesmo a um outro, que nenhum retorno do trabalho . • Uma ::rrte náif: a soma de todos esses· rituais con's titui uma
seja executado da mesma maneira, desde que se dedique à espécie de rede de gestos do cotidiano, a vasta tela onde a

'.4S
arte naifreúne os mç:>mentos frágeis e pessçais de diferentes
clássico do psicodram a, o jogo teatral como ocasião de reviver
microcosm os. Arranjados diferentem ente, retomado s em
momentos passados, liberando sentiment os dolorosos. Pode-
"colagen s" no interior de uma visão mais global, os rituais
mos apenas constatar essa tentação, menos perigosa e menos
compõem uma trama viva em que se destacam os signos de
problemát ica do que geralment e dizem. Na verdade, é pos-
.um real que não deve nada a uma visão panorâmic a torna-
sível classificar as r espostas às mesmas indicações segundo
da de cim a. O s jogadores não falam do mundo acumuland o
diferentes tendências .
estereótip os ou colocando -se corno observado res externos.
• O jogador se engaja o menos possível. Opta por um ritual em
Situados no centro do que mostram, eles constituem um
que a afetividade é negada ou mascarada , enfatiza a reprodu-
ponto de vista à medida que as experiênc ias se acumulam e
ção atenta dos gestos "técnicos": como entra em seu carro toda
ganham em pertinênci a pelo confronto entre si.
m~phã, esperando que dê partida, como o aciona para sair.
• O jogador escolhe uma sequência deliberada mente otimista:
o maravilho so momento que representa o despertar de uma
Limites do ritual
criança. Ele representa sobretudo sua.felicid ade.
• O jogador escolhe de preferênci a uma sequênda pessimista: seu
• Os jogos teatrais em torno do ritual estão ameaçado s pela
despe r~ solitário, o café d a manhã solitário ·à m esa da cozinha
complacên cia e pelo narcisismo . Há risco. de descontro le
de um HLM; 1 tem dificuldade para acordar e acorda mal.
quando o ritual serve para dar um·a imagem favorável de si
O jogador fabr'i ca conscient emente um ritual: procura
mesmo, para ·s e exibir num oestus conscient emente fabrica-
fazér :rir mostrando (habilmen te) como é desastrado cozi-
do. Todo participan te pode perverter a relação de troca dos
nhando, por exemplo.
rituais a qualquer momento. . • O jogador escolhe uma sequência que envolve outros per-
• Num outro extremo, um risco de mesma na.tureza consiste
sonag~ns com os qu~s está ritualmen te em conflito. Seja um
em produzir uma imagem fortem ente negativa de si mes- .
conflito social (o chefe, o diretor, o zelador), seja íntimo (o( a
mo·, para que o grupo se apiede e o acolha. Assim, como
parceiro/a ou cônjuge, os filhos, os pais).
escrevia a participan te de uma oficina que havia desviado a
• Não enumero essas tendências em vista de uma classificaçã o
proposta, ela entendia "jogar por meio de instruções meus
ou de uma maneira correta de reagir às instruções . Interessa-
próprios problemas (rituais)"; . mas acrescenta va: "Vê-lo.s .
me tomar consciênci a da diversidad e das possibilida des e da
representad ç:>s por outros com uma outra ótica me permi-
dificuldad e da n eutralidad e. Todas as diferenças de envolvi-
tiu desdramat izá-los e rir deles"~ Vemos delineado o risco
mento são admitidas, são recebidas pelo grupo e não desejo

147
.'
'
que sejam comentadas verbalmente . O retorno, quando recebe uma visita inesperada. Ou então a xícara preciosa, na
existe, efetua-se pela teatralização dos rituais. Parte-se do qual ela habitualmen te tomava o café-da-manh ã, se quebra. Ou
interior para o exterior, acentuando de todas as maneiras os ainda, as delícias do banho são adiadas por um telefonema irri-
processos de expressão. tante. Várias soluções dramáticas inseridas na situação ritualís-
tica pela introdução de clichês circunstancia is. Passamos então
de uma escritura discreta, intimista, apenas inscrita numa for-
A teatralizaçã o dos rituais e seus desafios ma, à ideia de intriga, como se diz tradicionalm ente, com tudo
que pode carregar de lugares-comu ns narrativos. Situo aqui a
Apresentei o ritual, de n:'odo utópico, co~o o "grau zero" de aprendizagem no encontro de duas escrituras e, se não for mui-
uma realidade vivida de maneira ·repetitiva por aquele que a ta pretensão, de ·duas dramaturgias . Cabe aos participantes ava-
joga. O fato de ser mostrada aos outros, num código o mais liar seu interesse .e efeitos. Às vezes a intriga avança como um
simples possível, não a impede de ser "teatralizada" assim que rolo compressor e anula o interesse do ponto de partida. Rein-
surge. Atribuir po~ca importância ao código de jogo já é, como tegrando o leito da narrativa, os protagonistas varrem todas as
sabemos, uma e~pécie de escolha de código. Na apresentação d e notações discretas que haviam sido con servadas. Trata-se por-
um ritual por um grupo d e jogadores, quais são os desafios? tanto de avaliar as exigências narrativas para que o ponto de
Os participantes escolhem. um ritual que lhes int~ressa, partida, por mais sutil que seja, garanta seu lugar e mantenha
provavelmen te que lhes diz respeito, cujos ecos ressoam neles. u:rna motivação suficiente para a natureza sensível do jogo.
Portanto, o ponto de partida deles não é uma ação voluntaris- Diante dessa dificuldade, os jogadores preferem retomar
ta, racional, anunciada por um tema nitidamente formulado. um ritual sem introduzir elementos narrativos. O desafio
Trata-se antes de uma emoção partilhada, uma manifestação consiste· aq~i em trabalhar coletivamen te o que era, na ori-
de s~nsibilidades. Frágil, discreto, nem sempre bem defini- gem, apenas a expressão de uma só pessoa, não sem correr
do, esse ponto de partida é submetido a um tratamento teatral o risco de perder aí uma parte da fràgilidade da expressão
exercido de ·modo diverso. ou da emoção. Uma outra solução consiste em preparar uma
É possível que ó ritual seja _retomado no interior d~ uma colage~ de rituais justapostos ~
narrativa. O trabalho dramatúrgico consiste então em introdu- No caso das narrativas evocadas acima, personagens inter-
zir um incidente ou um éonflito naquilo que era apenas a evoca- vêm (tantos quantos são os jogadores!). No caso de uma cola-
ção estrita de uma continuidade sem caráter de acónteciínen to. gem, os atores combinam. vários rituais. Assim, vários "cafés da
Por exemplo, a pianista solitária, confrontada com se~ trabalho, manhã", que acontecem no mesmo espaço; criam diferentes

149
efeitos de sentido: repétição, diferenças, oposições e por uma Quando o jogador iniciador do ritual joga de novo sua propos-
dramatÚrgia do "ponto de vista" que não se inscreve numa fábula. ta dentro do grupo, ele avalia diretamente os desvios que se
As colagens também possibilitam a representação de conteúdos produzem. Às vezes é tentado a retornar ao padrão primitivo
di~erentes ou antagônicos, criando diferentes efeitos de sentido ou a envolver seus parceiros para fazê-lo. Mas tem também um
(acordar I dormir, lazer I trabalho, solidão I família ... ) . real prazer em apreender as diferenças de dentro da improvi-
A dramatização coletiva exige a escolha de um estilo de sação e dar sentido a elas. Quando esse mesmo jogador está
jogo. Acontece de um ritual muito lírico ser r etomado de modo fora do grupo, às vezes fica frustrado vendo que "sua" proposta
cômico, que uma evocação muda seja verbalizada, que um tra- lhe escapa, mas também pode ficar t ?cado pelas novas propos-
balho discreto seja exagerado. Essas mudanças são muito sen - tas. Nos dois casos, a circulação das experiências é fundamental,
síveis quando entram em jogo protagonistas que tinham sido evi_~ando o fechamento de cada um sobre o "seu" ritual e pro-
apenas indicados na versão inicial por uma única e mesma pes- ·· .. porcionando um confronto geral dos microcosmos.
soa. Aquele que jogava sozinho tinha uma exp eriência direta do
que entendia como representar, um conhecimento íntimo dos
personagens reais que fazia intervir. M as ele as jog~va segundo Utilização dos rituais
uma r egra que o Conduzia a assumir todos esses personagens,
sem jamais encarnar totalm.e nte nenhum . Por outro lado, a A noção de "ritual" no teatro não é nova. Seus empregos
entrada de personagens assumidos por tantas pessoas cria uma são múltiplos. Augusto Boal, que encara de modo diferen-
situação dramática mais pr6xima dos modelos habituais, mais te os rituais, conduz no Teatro do Oprimido, a "quebrar
exposta aos perigos de uma estética realista'ou ps.eudorrealista. os rituais". Na yida social ele vê nos rituais o reflexo de
Entretanto, do ponto de vista do primeiro jogador, esses per- pequenas ou_de grandes submissões cotidianas, a inscrição
sonagens afastam-se do padrão "real" dos quais os parceiros s6 de situações impostas à nossa revelia, às vezes contra nossa
tiveram conhecimento por intermédio de outras pessoas. vontade·, que se tornaram maneiras de aceitar opressões e
Esses vaivéns entre diferentes c6digos colocam bem os situações que ne111 percebemos de tão cravadas em nossos
problemas da transposição e de suas consequências artísticas. universos habituais .
No interior de uma mesma prática, essas diferenças retoma- Alguns dos rituais pelos quais Augusto Boal se interessa
das são a ocasião de desavenças e de interrogações que fazem figuram entre aquele.s que são jogados em nossas oficinas.
com que os jogadores descubram a complexidade dos proble- Geralmente não ·peço nem que sejam produzidos, nem que
mas de c6digo e os diferentes tipos d e relação com a realidade. s·e jarrt quebrados. Na visão deste trabalho, não considero

,.
os rituais negativamente ou exclusivamente em termos de se uma etiquetagem muito devotada as submete a um teatro
relações sociais, mas antes como signos de uma intimidade, do cotidiano ou ao psicodrama que não confessa seu nome. O
de uma atenção particular concedi da ao cotidiano. Contra gosto dessas "pesquisas" se mostrou para mim como uma indis-
uma tendência de ligar a ideia de teatro à reprodução de pensável descentralização, como o antídoto a uma "expressão
fatos excepcionais nunca vistos, à instauração de imagen s a qualquer preço" na qual, de tanto nos voltarmos para o exte-
brilhantes, gostaria de tornar os participantes sensíveis ao rior, não saberíamos mais de onde parte esse desejo de expres-
anódino, às marcas microscópicas das emoções apenas esbo- são, nem mesmo como ele se manifesta. Num trabalho sobre
çadas, a um conj unto de pequenos detalhes que tecem as as imagens do mundo, é bom que haja um lugar reservado à
existên cias. Ao invés de ~irigir a atençãopara o exterior (as miniatura, sobr~tudo se for uma maneira de escapar ao gosto
atitudes dos "outros", o esboço de silhuetas pitorescas ou exclusivo pelo <?"'?mo e, talvez, de renovar o afresco.
de situações "originais") ou exclusivamente para o interior
(os estados d e alma excessivos, as paixões), esse trabalho
se interessa pelo intervalo, pelos estratos anód1nos deixa-
dos pelos vivos atrás de si. Às vezes esses percursos l eves
quase não deixam mais marcas nas memórias do que passos
na poeira. Dedicados a recolhê-l~s, não temos a intenção
de lhes dar uma importância excepcional. Sua teatralização
nos leva a p erguntar como torná-las perceptíveis par'a que
sejam incluídas igualmente em nossas imagens do mÚm::io.
Para essa tarefa, sentimos a necessidade de inventar nosso's
instrumentos, de afiar nossos olhares, de nos sensibilizar-
mos para o inobservável. Nessas experiências desejo que os
participantes saibam que a teatralidade existe também além
da~ paradas sonoras ou dos tabl.a dos, .q ue as sinfonias não os
tornem surdos às pequenas músicas.
No tral;>alho com os· rituais, o desVio é provavelmente ine·~
vitável. Azar se o egocentrismo oculta aqui e ali as tentativas
discretas, quase antropológicas, de coleta dessas marcas. Azar
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. ::!Y.fl~;Jgg~ ~~-e e_st:á. se.ntada ao piaho :~ ·.de'cifra uma;pai,:~~~1i-~ i::~~r~-~-~', ·.
. _--:· ,:,.; :·;pf~i>*fd~-·. para um concerto. Trabalho árduo qué7:&ig~/'~~ftit~~~;:::_, : :
. • : .--é· _coB'~~n~r:ição. Ora, instigada p or u~ demônio fà~i1Í~f; -~i;~~~:·.:~<:
l_e vant~~e if}terrornj:>e o trab~lho c9ntin~o, para ·be~eç~~~~?~_a:.â,~.r ·

: ' ,;~;;~~t.El;~;~:::r;~~E~::.f:i~it~fi:~:;
. .. d~:·~~l~ ~-b.;;,~uet~-:onde ela: retpm~ a ·partifur~. o·_rí~ál.d~:,~ ~~? ..
· · ~,_:·)~ ;:~rê.l~~-~~~~-~- J·:é~f~t-~o; com·~ so~id~~::~á~vez c9;n-~--pi~i~t;:;:'~fsi't,~~ -~· :.·;.:
. i ?'iü~ ,Jigi q~e ·~stl·.'d ~itado perto'·d~:· s\i~ mulh~r- e: ;;>J-~li~e~.~~ã.êif.'· ' .
.·. t6câ ..MeiÓ ç!orrnindo, ele ·s~ I . ~tenta acordar.· ~ filho -~ati
.
·"

. Tarefa diflcil e que · 'ü~ pouco n1aL


: ~ã6·;~uitos
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··~
oi
: .
PESSOA E PERSONAG EM, UMA TESSJTURA DELICADA

Todo trabalho sobre o personage m feito por não-·a tores é muito


difícil. Ele exige um grande engajamen to pessoal e, por tabe-
la, uma atenção não menos important e por parte do formador.
Quaisquer ·que sejam os "métodos" e os "sistemas" referidos,
dificilmen te se escapa de considerar a psicologia da pessoa e
suas característ icas físicas. Devido à noção de. personage m ser
um pouca vaga, o teatro sonha regularme nte em abrir mão dela
ou de. encontrar para ela um estatuto diferente e provavelm en-
te menos exorbitant e. Quaisquer que sejam o estilo do jogo
considerad o; a multiplica ção dos personage ns, seu desdobra-"
ment~ ou seu recolhime nto, sua sustentaçã o por marionete s

ou ~uportes abstratos, retorna-se inevitàvel mente ao ator e a


seu engajamen to carnal, às questões que giram em torno da
identificaç ão.
Nas oficinas, por falta de consistênc ia, com frequência
os personage ns s6 aparecem comó silhuetas, arquétipos ou
sumários "cabideiro s" cuja comodida de quase não vai além

IS7
das funções tradicio.nais de agent es da narrativa . Alguns tra- no contexto que nos interessa, influxos do p ersonagem que está
balh os de improvisação dão mais importânci a ao roteiro e ao construindo. Portanto insist o, deliberadamente, na separação
enredo do que aos personagens, à imaginação coletiva do que tão pouco estanque que distingue pessoa e personagem , na cir-
ao engajamento individual. No trabalho com crianças ou ado- culação que se estabelece entre os dois, nas margens e nas dife-
-l escentes, aliás, ocultei quase totalmente esse aspecto do jogo renças que me interessam na relação realidade/ficção.
dramático e escolhi concentrar os esforços sobre a constru- Por outro lado, um trabalho centrado unicamente sobre um
ção de enredos e sobre formas narrativas que não desenvolves- personagem parece-me muit o improvável. Um personagem se
sem além das medidas o personagem individualizado, para que define P<?r uma soma de relações no interior de uma constela-
não fosse encorajada uma identificação precoce com modelos ção ficcional, p elo menos se nos recusarmos a examiná-lo como
adultos. No entanto, é difícil escapar da atração pelos heróis e se vive~se na r ealidade, como se não fosse, de todo modo, uma
modelos cinematográficos. O esboço de p er sonagens fictícios con~trução da imaginação. A presença d e um grupo de jogado-
agrava a tendência ao fingimento, à imitação dos estereótipos res dá todo o peso a essa con stelação. Os exercícios propostos
emprestados dos adultos, a um subteatro sobre o qual não me põem em contato dois conjuntos: o das pessoas do grupo e o
estenderei. Talvez seja preciso, como faz Gilberte Tsa1, destacar dos personagens de ficção, construídos ao longo dos encontros
as ..pequenas pessoas" no trabalho com as criançás, ao invés d e diversamente programados. Como reação, a relação pessoa/
incitá-las ao plágio de personagens que, de toda maneira, elas personagem, mais individualizada, desenvolve-se em paralelo.
têm muita dificuldade de assumir de modo convincente. Cabe Nem real , n em totalmente imaginário (por causa de seu supor-
a cada um sab er como pretende ocupar esse espaço. De minha te vivo), o personagem é um dos espaços potenciais que nos
parte, parece-me inútil encarar um trabalho sério em torno do intér~ssam. Seu de~eiwolvimento se efetua aqui a partir da livre
personagem sem avaliar os riscos individuais, sem con siderar o escolha d os in~víduos do grupo e de uma soma de elementos e
engajamento p essoal como motor indispensável. O artifício é de imponder~vei s dos quais o grupo se considera dep ositário.
sempre possível, mas com atores ou não-atores, é a pessoa que
inevitav"elmente está em jogo. Por esse motivo proponho esse
trabalho intitulado pessoa/personagem, o qual leva em conta os Procedimentos de jogo
dois termos que constituem em. definitivo o curioso cruzamen- .
to etiquetado "per son agem" e, sobretudo, as relações instituídas s~ u~ aquecimento se impõe, eventualmente o centramos em
entre os dois, nos dois sentidos. Todo p ersonagem deve muito à torno de perfis, por meio das clássicas "atitudes" num determi-
pessoa na qual se baseia e a p essoa r eceb e em troca, pelo menps nado espaço. Os participantes observam o que há de pessoal
.,
1

na atitude, na postura: eles trabalham posturas ligadas a um espécie de identidade "actancial". Além disso, para propiciar
estado interior. Eles explo~am outras a partir de modificações um pouco de jogo e sair da ab stração, a instrução propõe
físicas parciais. Trocam posturas com outros jogadores, per- que cada personagem seja definido por dois ou três aces-
dem o perfil inicial que é assumido por outras pessoas do gru- sórios e/ ou peças de roupa encontrados na oficina. Essas
po, tentam encontrá-lo e retomá-lo. 2 marcas, mais que uma caracterização, são uma maneira de
Esse preâmbulo não é capital e dá utna ideia de minha sublinhar o início da existência do personagem e de dife-
concepção de "aquecimento". Aqui me interessa introduzir a renciá-lo da pessoa cada vez que entra em jogo.
ideia de um interior e de um exterior, assinalar as ligações • A entrevista obedece a regras precisas. Num esp aço neutro
indispensáveis entre um "estado" e uma expressão. Desconfio e bem delimit~do, cada um dos personagens em potencial é
de todos os exercício.s que levam a produz~r sinais exterio - interrogado, por sua vez, pelo grupo de pessoas. Ele decide
res cortados de um estado interior, pois estimulariam a trans- se responde ou ti.ão , reage ou não às eventuais injunções.
formá-los a partir de um comando, como se os participantes As questões se limitam a um determinad o número, estabe-
fossem marionetes. As trocas de silhuetas são a manifestação lecido previamente, ou acontecem com uma duração deter-
d e uma comunicação de pessoa para pessoa e de personagem minada (dois, três minutos). Cada membro do grupo decide
para personagem; elas introduzem a temática que presidirá as as perguntas que deseja fazer. Estas podem ser biográficas
sessões seguintes. (idade, identidade, profissão ... ), anedóticas (gostos, amiza-
O personagem nasce e se d esenvolve em função de instru- des, atividades recentes ... ), filosóficas, políticas ... A perti-
ções de jogo que possibilitam a intervenção de escolhas indi- nência das questões se mostra muito desigual, dependendo
viduais, d e induções dadas pelo grupo durante uma sessão d~ da imaginação e da concentração do grupo. Responsável
entrevista e de um grande número de imp<?nderáveis. Essa pri- pelas respostas de seu personage~ (no interior do desejo
meira fase se encerra pela redação d e uma ficha de identidade. definido d.e início), a pessoa não poderá mais voltar atrás
sobre as decisões tomadas durante o questionário. Trata-se
• A primeira instrução propõe que cada um, durante um de uma verdadeira "partida" baseada parcialmente no acaso,
tempo de concentração, opte por uma identidade fictícia parcialmente nas escolhas operadas no jogo de perguntas
(nome, sobrenome) e defina o personagem por uma von- e respostas. O caráter instantâneo do procedimento evita
tade de ação, um desejo. Contra uma construção que parti- respostas muito elaboradas ou refletidas. .
ria de determinações físicas ou psicológic;as, o personagem • Na sequência dessa longa sessão de entrevistas, cada jogador
é definido nesse início por um desejo, uma vontade, uma se isola e redige a introdução de uma ficha de identidade que

160
acompanhará todo o seu percurso posterior. Esta depende Dois jogadores são sorteados para um encontro de per-
dos elementos colhidos n.o jogo de perguntas, respeita todas sonagens. Levam em conta os dados que já possuem e impro-
as lacunas biográficas e todas as imprecisões. Dados mais pre- visam então em função de uma "estrutura" individual, de uma
cisos também podem figurar, mesmo se não parecerem utili- soma de instruções fixadas por eles e que são restritivas de
záveis ao jogador que, pode-se observar, redige de memória. modo desigual. As variações não são mais inteiramente livres.
Nessa primeira relação pessoa/personagem todos os artifí- Às vezes é preciso saber se afastar de decisões iniciais muito
cios são autorizados. O jogador pode atribuir voluntariamen- rígidas para q~e um encontro possa se realizar. Às vezes o
te ao seu personagem dados biográficos ou anedóticos que personagem apenas esboçado se dissolve nesse primeiro con-
lhe dizem respeito como pessoa, ou pode misturar as pistas, tato porque se afasta demais dos dados iniciais que deveriam
orientando o perfil do personagem para dados que ~he pare- fazê -lo agir. E.s sas improvisações são completadas por entre-
çam tão distantes dele quanto possível. Nos dois casos são vistas que interrompem o jogo e a imagem. Então o grupo e
praticadas trocas entre a realidade e a ficção. o formador se dirigem novamente aos personagens, pedindo-
lhes informações biográficas complementares, fazem obser-
No fina] dessa fase dispomos de um estoque de esboços de per- vações "no calor da hora" sobre a situação, sobre as réplkas
sonagens fictícios, os quais têm um pequeno início de existên- trocadas, dirigindo-se exclusivamente ao-s personagens. Em
cia abstrata que serão desenvolvidos nas fases seguintes segun- seguida, o jogo é retomado.
do outras indicações, em função do jogo dos encontros. Também é possível fazer o sorteio de dois ou três persona-
gens que estão "à espera de jogo", os quais decidem entrar ou não
Encontros por improvisações na situação esbo!ada pelos dois primeiros jogadores designados.

Em função da mesma ideia diretriz, os personagens se desen- Improvisações com roteiro


volvem em função do quefazem, essencialmente por ocasião
dos encontros sorteados. O número de jogadores é variável.
Os participantes se escolhem ou obedecem de novo a um
Improvisações sem roteiro procedimento ·de sorteio. Os princípios do jogo são os mesmos;
trata-se de inventar variações a partir das informações já exis-
Após uma combinação muito breve para a escolha de um tentes e de elementos novos trazidos pelas novas situações e
espaço de jogo. novos parceiros. Pode-se tratar de encontros,. alianças, conflitos.

162
Algumas instruções de espaço (ver o que se refere a essa ques- rápido é uma maneira de "fazer escalas", de se experimen-
tão) pode m intervir em função do contexto e da distribuição tar n~ abordagem de u~ personagen) e de dominar ficções
geral do tempo. de 'uma maneira menos radical que na improvisação. Após
O número de improvi sações varia de acordo com a dura- acordo, os dois protagonistas mostram um caleidoscópio de
ção concedida ao conjunto do procedimento e com o desejo dos imagens fixas, esboços de roteiros que poderiam ser desen-
partidpantes. É desejável que cada jogador tenha várias experi- volvidos posteriormente. Essa etapa ajuda os participantes a
ências e que cada personage!D seja, portanto, confrontado com compreender melhor o "processo" dos encontros e a orientar
v.árias situações que têm protagonistas diferentes. Quanto mais seu trabalho a partir dele.
o jogo avança, mais a biografia de cada um dos personagens se
torna precisa e comple~a. O leque de póssibili_dades é vasto, na lmaaens individuais ·do personaaem
hipótese de haver uns trinta jogadores. A exploração se tor-
na cada vez mais apaixonante quando cada um está livre para Paralelamente às improvisações coletivas, alguns. exercícios aju-
uma soma de iniciativas (a parcela de invenção de cada pessoa, dam a deli~itar representações mais precisas dos personagens,
de "vida" para cada personagem), obedecendo a uma estrutu- fazendo o co!po das pessoas intervir concr:etamente. Por inter-
ra que se constitui progressivament e e que responde cada vez médio d e imagens fixas, os jogadores mostram o personagem, o
melhor à noção de personagem. Nenhuma fábula é fornecida tempo de uma pose, numa ocupação banal, a partir de uma ins-
de antemão, mas um enorme potencial narrativo se desenvolve trução fechada (despertar, sono, refeição... ) ou aberta (momen-
à medida que os encontros se multiplicam, relançando a cada tos agradáveis, desagradáveis ... ). Essas representações concretas
vez novas invenções e criando novos vínculos. desencadeiam um processo de teatralização que ser á continuado.
Uma outra proposta, sob forma de improvisação, enqua-
Exploração das possibilidades pela construção de imaaens dra-um min~to de intimidade do personagem. Es~e não é mais
mostrado num espaço social, mas é fixado' num momento de
Antes do aquecimento por improvisações, bastante 'delicado solidão escolhido pelo jogador, que dispõe de um tempo de
de ser realizado, às vezes proponho que explorações preli- reflexão para se preparar. Esse minuto ganha a forma de uma
minares sejam realizadas por intermédio de imagens. Nesses improvisação muda ou de um monólogo interior. Por sua r efe-
casos, os jogadores sorteados e~aminam ·em dupla um campo rência a convenções teatrais, o monólogo suprime, em parte
de relações possíveis entre seus personagens e as traduzem desse minuto, o que ele pode ter de penoso para as pe_ssoas
em imagens que.apresentam para o grupo. Esse procedimentó que temem se confrontar cóm o silêncio e com o risco qe
"vazio" de um jogo sem interlocutores. Uma tal "prova" é no vasto reser:ratório de ficções que lhes é apresentado, os jogado-
ent-anto muito positiva do ponto de vista da concentração e de res se limitam muitas vezes a uma expressão de _tipo "realista"
uma relação com o 'personagem em normas diferentes. adequada à busca biográfica vivida por eles. Desse modo, uma
etapa posterior desse trabalho consistiria em uma pesquisa
Variações temporais de transposições para que os personagens se desenvolvam, de
preferência, em universos estéticos diferentes do folhetim. No
No quadro de um trabalho mais sistemático, tentamos um entanto, fico perplexo diante da dificuldade de tais transposi-
aprofundamento dos p ercursos. Uma série de improvisações ções e, principalmente, desconfio da necessidade de proceder
comportava uma instrução suplementar. Todos os personagens por etapas su<?essivas, como se as pesquisas fo~mais fossem
deviam ter envelhecido dez anos. D esse modo, todos os esbo- ae.~nas o aperfeiçoamento de dados brutos inicialmente cole-
ços biográficos se viam projetados no futuro e ganhavam em cionados. Idealmente as duas pesquisas deveriam se desenvol-
complexidade. Por outro lado, tentativas de rejuvenescimento ver em paralelo, para que diferentes estéticas pudessem ser
(talvez porque voltem rápido à infância) não trouxeram nada esboçadas. Desde as primeiras improvisações, preocupo-me
de interessante. É preciso tentar o maior número possível de em propor instruções formais ou recomen_dações individuais
variações e _v er o que fornecem às instruções· formai s, como capazes, se não. de criar um "estilo de jogo" propriamente dito,
estimulam o afastamento do realismo. No entanto elas amea- ao menos de lançar suas bases, sensibilizando os jogadores
çam destruir os esboços pacientemente elaborados, forçando- para essas questões. Desse ponto de vista, a introdução de ele-
os a se inscreverem logo em quadros coercitivos. mentos espaciais é uma maneira de colocar o problema da tea-
tralidade das i~provisações, mesmo quando têm por objetivo
Elementos de teatralização principal -a ~laboração de personagens.

O trabalho evocado pende para o realismo, não se define unica- Encontro de todos os personaaens
mente pelo teatro ~ mesmo se é efetuado mediante improvisa-
ções e mediante a pesquisa de formas representáveis. A consti- Pressionado pelo tempo, tentei em uma ocasião provocar a reu-
tuição de um estoqpe de biografias imaginárias por acréscimos nião de todo~ os personagens numa .só improvisação .final, cons-
sucessivos e jogo de cómbinações poderia encontrar espaço no tituindo um pouco o fim de um longo processo. Dessa vez a
quadro de trabalho sobre o romanesco. Por outro lado, a ques- tentativa deu resultados inesperados, uma improvisação de qua-
tão do estilo de jogo raramente é .abordada. Apaixonados pelo se duas horas, cortada por interrupções destinadas a fazer uma

166

. ·'
síntese do conjunto do enredo por entrevistas: Assim, cada um simples "desejo" e vivem uma dinâmica que os incentiva a d esen-
dos trinta participantes recebia informações sobre tudo o que volver a estrutura do personagem cada vez que criam nova narra-
tinha se passado nos diferentes espaços de jogo, já que não era tiva. A rede de relações tecida entre os personagens é a metáfora
o caso de reunir tudo em torno de um único fio. A interrogação das relações que se instalam dentro do grupo: quanto mais cada
· do personagem permitiria conhecer o que ele h avia feito, seguir um dos participantes "conhece" personagens, mais se confronta Elas ganham
seu itinerário geral, tomar conhecimento dos lugares criados. com pessoas difet·entes sob a proteção de uma identidade empres- ~o: d!f encón-
Evidentemente, essa ficção não era comunicável sob formas tada. Assim, poderíamos reter uma tríplice bateria de objetivos nagern.
tradicionais. Ela ofereceu aos atores um prazer excepcional, para esse trabalho: o desenvolvimento do imaginário individual e
permitindo-lhes inventar todas as combi_n ações narrativas que coletivo pela construção dinâmica de um grande número de fic-
outros]
lhes interessavam. Nunca encontrei o equivalente em outras ções por intermédio do jogo; uma iniciação a questões de drama-
mente o dia
circunstâncias, sem poder, no entanto, explicar as razões disso. turgia pela análise da relação p ersonagem/ enredo; uma reflexão
perdido .~m ·
Após a divisão de um grupo em duas oficinas diferentes, sobre o funcionamento de um grupo pelo desenvolvimento de o trem para
também tentei o~ganizar o encontro de um grupo de pessoas uma malha de relações entre pessoas/personagens. e evitado o~
(que não havia acompanhado nada do trabalho) e de um grupo Uma oficina desse tipo não existe sem dificuldades. r-~e .me o fere-
de personagens. Mais uma vez, essa forma de "apresentação" se Acontece de uma pessoa se sentir presa na ·relação com um
mostrou uma boa ocasião de cruzar o real e•o imaginário, m es- p ersonagem que, no entanto, foi escolhido por ela e sobre ....
mo que o estatuto das pessoas não estivesse claro (elas estão o qual tem o sentimento de não mais poder dominá-lo .
fora da ficção e, no entanto, sempre no seu limite, tentadas a Fecha~ a numa dinâmica que se mostra infernal, ela tem a
responder às propostas de jogo vindas dos p ersonagens). ... impressão d e que o personagem se desenvolve à sua reve-
lia, à partir de uma informação inicial que, entretanto, lhe ·
parecia an6dina. Às vezes a entrevista bloqueia as informa-
Objetivos e dificuldades · ções a tal ponto que a pessoa sente qualquer evolução do
personagem corno impossível , de tão presa que está num
Os personagens são o reser vató;rio de uma soma inesgotável de sistema obsêssivo. Essa situação sur ge quando urna p essoa
enredos que poderiam não acabar jamais. Eles preeXistem à cons- tenta a abordagem de um p ersonagem de que "não gos-
trução do enredo e, n o entanto, .nunca existem independente- ta" e corr,t o qual trava uma batalha s~creta. Então é preci-
mente dele. Eles se estruturam na e através da ação, e não a partir so organizar as r egras do jogo para que uma pessoa possa
.de dados psicológicos anteriores à ele. Os at ores partem de um trocar de p ersonagem no meio do caminho ou até, se isso já

168

.~·
aconteceu, fazê-lo desaparecer. A propósito, podemos ainda Fichas de 1dent idade1

salientar a tentação do psicodrama. O trabalho descrito apela


à afetividade c aos desejos secretos das pessoas. Existe um Esses tn.•chos dt• lirhas de identidade foram n·dígidos pelos jogado-
pequeno risco, mas me parece indispensável correr esse risco res ao longo dt• um trabalho de ccrt·a dt• dozt• horas. Elas ganham
para que a noção de engajamento no jogo ganhe sentido. formas dilcrcntt•s; algumas dão conta ao m1.•smo tempo de encon·
Quando a escolha do ponto de partida se revela muito banal, tros, st•ntinwntos t' reflexões sobre a evolu~·ào do personagem.
o engajamento se mostra impossível c em geral o jogo se torna
desinteressante, tanto para o jogador como para os outros. HidNt jum pt:rsonaocm iso/aJo sem ncnhuma relação com os outros)
Surgem outros obstáculos no momento da entrevista. Sou uma mulhl·r de uma certa idade. Rnivo int·ansavclmcnt~· o dia
Nem sempre as questões ajudam o desenvolvimento do per dt· minha dt·porta~·ão l' minhas ohsl'ssÕl'S (no trt·m tinha perdido um
sonagem que está no banco dos réus. Em certas circunstâncias pé do ml'U sapato l', por causa dt•sst' inddt•ntt•, não desci do trem para
só pretendem provocar o riso c não abrem nenhuma possi - ir colher um pêss<>go... c, no <>ntanto, isso talvt•t tivesse evitado os
bilidade ao jogador interrogado. Portanto é desejável que o anos de c.:ampo). Fntrt·tanto, cspt•ro tncontrar algu{•m que me ofcrc·
grupo tome consciência de sua responsabilidade no ponto de ça CSSl' pt-sst•go, dt•pois então...
partida elo processo.
Outro obstáculo se define pela vontade irrevogável da 1'1.\ti'OUIOU !um pusonaocm ISolado que mcontra outros)
pessoa ele conseguir a qualquer preço o encontro com outros Sou brt•tã, tl·nho .vintt' anos. Sou a mais nma da familia c acabo de dei-
personagens c de só imaginar isso positivamente. Assim a xar ml'U \iiJrt•jo, ondt• moram minha mãt· l' llll'US irmãos, para procu-
improvisação leva diretamente à expressão de bons sentimen- rar trabalho t'lll Paris. El~·s scmpn' mt• prolt'gt·ram t' agora cu tenho
tos. Os encontros com outros personagens também existem dt• ml' virar sotinha. Em Paris reservei um <luarto no abrigo das jovens
por intermédio do conflito c ela agrcssividade, não apenas por bretãs por um mês. Mas em Paris eu não ronht·~·o ningu~·m, estou
uma espécie de gentileza obrigatória. p<>rdida, a cidade{· muito grande. Eu não sd onck {• o abrigo, perdi o
De modo geral, impõe-se uma extrema atenção ao jogo l'mlcn•\·o, não sei para onde me dirigir, não sl'i andar de metrô. Tenho
dos outros. O jogador deve tornar se capaz de estabelecer dis- ml·do, t•stou cansada. Tenho muita vontad~.· ck voltar, mas não posso.
tâncias <.'ntre pessoa e personagem, de esquecer todo esquema É prt•ciso qut• t'U t•ncontrc o abrigo, sl·não mu dormir na rua. E nin-
prévio de intervenção, sob pena de se recusar a aceitar no,·as guém salw me informar. Todo mundo i.· indili:rt•ntt·.lodo esse mundo...
proposta~ ou de querer incluir a qualquer preço o parceiro no Ao longo dt• dois dias de andança, encontrd numa pra\·a uma assistcn·
esquema por ele preparado. te sodal <JUl' me acolheu c dormi em st·guida num abrigo de jovens.

170
É muito importante ter um lugar para dormir, onde guardar seus pt·r I \"o final Jo percurso do personaaem. J R<.>cebo no nwu t•scritó-
tences, onde se prott·gcr da ddadc. E eu encontro uma menina tími- rio Justine Fradet. Ela fàla mal de Noémie: cu não dt'H'ria mais ml'
da, que· carn•ga minha mala t' uma st'nhora que me deu dois tíquetcs relacionar com ela. Chega Mareei, segundo de militante da ntre-
de metrô. [~las \àO mt· lc,ar, nw oril·ntar. ma direita de Anjou. Ele me propõe seus scn iç·os para ((>r mar uma
l'quipe dc colocadorcs de cartazes. O custo é alto. '\Jo cntanto, an·i-
SIMOZ'F [um pcrsonaacm que recusa qualquer relação) to, pois posso obter com isso preciosas informa~·iks dos R(;.

Sou uma nwncliga precon·. Fu ,·agava ... chovia. Fui beber algo no res- Em seguida, recebo um bando de punks à proçura de "hit-os"
taurante da estação. Llm.1 sc·nhora muito gentil ofereceu-me um pou- muito bem pagos c que me propõem militar no MJ.A. A t•ntre•vista
co ck Frontignan para lwlwr... Fu agradeci c saí sem destino. Parei ac,1ba mal, eks me ameaçam, eu os expulso.
numa entrada dt• mctr(> e• tiw vontade de dormir apoiada na garrafa. Man·o se apresenta para uma cntrevista a propósito de uma
Algut'm me anmlou contra a minha vontade e queria de qualquer lilmagt•m. Ek sai para recrutar atores. Um arquiteto passa com o
manrira mt• !alar de· rt·ligião, trabalho, deixar de beber, assistência. Eu braço t•ngl'ssado... Chega enfim Michel Blin. Doe•ntc, S(.'tn rc•cursos,
tentei ir rmhora, rscapar por in{•rc:ia dc•ssas intromissÕel; incômodas. ek part'<:t' procurar um protetor. Cedo ao charme• dessl' rapaz qut'
poderia, aos olhos de todos, tornat··sc meu protegido.
DOUTOR MARCH fiA<.:IIHO'l !JwribuiJor Je']oao'l
Tc·nho cinqut•nta anos, sou solteiro, homossexual (mas escondo isso I.ÍNA VI LOURS

socialmc•nte). Sou fundador de um movimento de extrema direita, o 'I~nho trinta anos. Sou filha Única de pais mais 'dhos, sou t'mprc-

\I LA (Movimento de 1 ilKra,·ão dt· 1\njou: para a exclusão de todos os gada de um cscritorio. Vivo sozinha com um gato num imó'd <:olc-
cstrangt'iros da região, para purificação política, para autonomia rco tl\0. li.·nho uma zeladora que me amedronta, no t•ntanto da me
nômica t•tc.) Sou t•x-médiw, banido do Conselho de Medicina. fun- ctut•r bem. Sou protegida por uma 'izinha de minha idacil-, mãe de
dei uma agência de publicidade para ganhar dinheiro. Sou diretor de trl-s uianças, de três, seis e oito anos. Eu viajo de Vt•losoil'x. 'Tc:nho
um complexo dm•mJtográfico, wm departamento de produção dt· sempn· ,·ontade de correr, mas não me permito. Procuro dt•st•spt·-
filmes pornográficos. Dirijo um jornal, o 4njoufeu. Ajudo com dona- radamt•ntc afeto. Tenho um companheiro qm• não mora comigo c
lhos a seita dos Filhos dt• Deus. Convidei para jantar um jovem ator nunca está presente.
dançarino, Marco Martello, cigano napolitano. Ele deve chegar tarde Sempre tenho medo de ser observada. Tenho st·mprc alguma
para não ser visto pda zdadora ou algum vizinho curioso. Preparei coisa macia comigo: pele, lenço de seda, shetlanJ, n·ludo... Uma noite,
um jantar suntuoso, vou propor a Marco produzir um filme, caso ele nwu namorado me leva a um médico, o Doutor Bach(•lot, <IUt' deve
ceda às minhas inn·stidas. 1... J Ih(• propor lazer um filme. A atmosfera é ambígua, parc~·o incomodar;
mt•u amigo, Marco, <(U('r ~t· Ih rar Jc mim; çomeço a beber demais; I t•NA VI I OURS

dt• não s.lht• mais o qul' fut••: I· .. J A noite h:rmina e no dia seguinte Para esse personagem, extraí o que é subtcrrâm·o ('m mim, que l'U
me acho sc)/inha ... cu huwo minha alma gêmea. Encontro um JOVem tenho wnsdência, e que se expressa pouco (ou nada) na \i ela wtidia-
doente, awmpanho o ao mnsultc'lric> do Doutor Bachelot. Depois na. Assim procedendo, sabia que corria rist·os:
'\!oi·mic quer ml' çomcnt'l'l' a ackrir à sua seita. Acabo prostrada num • o de não c:onseguir controlar algumas cmocjÕl's;
banw de jardim públim, onde um senhor me aborda ... • o de jogar para mim sem possibilitar o jogo aos outros.
Isto í:, na \'l·nlaclc, deixar a pessoa se sobrepor ao f'l'r:.<magt·m.
A relação peHoa I penonaHcm: comentcino1 Jas J08aJores Baseei voluntariamente meu comportaml·nto nus g(·stos, nos
olhan:.-., suprimindo ao máximo a palavra, deixando brotar as emo·
DOUTOit Bi\CIII I OT \'Õ('S. Mas logo perçchi que cu dominava bt•m tudo isso. I· .. 1
Esse personagem 1.• inspirado em pessoas conhcddas de Angc·rs,
das 9uais cmprt•stl'i algumas dl~ suas múltiplas Jacetas. São figuras Sohrt: C/ 1n11 rução dos acessórios:
públicas, <(Ut' têm algum prestígio no plano político c cultural.
Mt•u pcrsonagt•m era moYiclo pela amhi~·ão do poder c por DOUTOR !:IA(;H H.OT

uma ,·ida afetiva tumultuada, já que sua homossexualidade não deYia • um chapéu (feltro, de cidade);
em nenhum momento c:air em "domínio publico". • um pak·tó escuro, um pouco longo.
Esses dois motor<.·~ nw permitiram estabdcccr contato com Isso tnl' permitia a criação de um personagem de uma certa idadt·, de
muitos jogadon•s <fUl' tinham interesse em me encontrar ou com uma n·rta classe'social, um tanto séria: isso para o lado austtro. O
aqueles qut· t'U tinha intl·ressl' em st•du.lir. Assim, sobretudo na paktó longo, um pouco demais, dava o lado do11n, a derrisão possí-
imprO\ isação final, alwi dri.\s possibilidades de jogo a uns c a \ d ... b~t· 'estuário tamocni me da' a possibiliclack· d(• algum gl·sto, dt•
outros ... algumas atitudes, qw ajudam a compor um pcrsonagl·m (,mtl·s da fàla,
Compn•t•ncli, jogando, <jU(' sorncntt· o motor afetivo era essen- por l'Xl'tnplo). Eu, çomo pessoa, não uso nunca palctú ele terno, m•m
cial. O encontro n>m o jowm Michd Blin devia ser determinante t hapi·u, por causa do meu tamanho...
para<> m('U pcr~onagt•m: dl· <·omcçava a acl'itar (pensando em pro-
por ao jovem <jlll' S(' tornasse st·u proh·gido seu amigo) as razões I t N/\ VIl OliRS
profundas cl<' seu t·ornport<mwnto gt•ral. • um <.:asaço de pele;
• um k·nço de seda.
l:u tinha vontade de là'lcr um pcrsonagt•m que I(Jsst• ao ('nC"ontro dos
outros, ' h esse com os outros, mas, ao mesmo tempo, que fosse ini- ROIURT DUVAl

bido, cheio de contradi~·ões. O çasaw de pek tinha \'árias funções: a Músico. Um quinto dos jogadorc:; sente-se atraído por cll·, l"ntrc os
de uma marca (quando n-mos alguém com uma pele, temos \'Ontade guais duas mulheres: o componente "sexo" intent•m. I:le 'iaja c é
de to<:ar), a d~· pode•r mt• rt·trair numa concha sua,-e sempre que uma wguido. Valoriza-se o fato de que ele vai atuar no filmt·.
relação me par~·ccssl' pl·rigosa, a de ter permanentemente ao alcance
das mãos alguma coisa macia. 1.•. ) O lenço de seda também tem a \'lti\A ROBI·RT l!ONDOUX

função de· doçura: se·rw de· prote~·ão para as mãos, para o rosto; para Fala com todo mundo para oferecer vinho c contar sua 'ida. l~lcs a
o pescoço, para a cabt•\·a. Mas, sobretudo, posso jogar com ele, pode an·itam, a abandonam, nada muda no comportamento dos jogado-
scnir para exprl•ssar (st•m pala\ ras) diversos sentimentos.[ ... ) res.

Esquema Jas rclaçtics c.~tahclccJJa.~ entre os pcrsonaaens I Í,NA Vl'LOtiRS

[ wr quadro] f-uncionária de e•scrit6rio em busca de afeto. Aproximad;um•ntl' um


sexto dos jogadores se relaciona com da: ela ajuda, é abandonada,
• Alguns pt•rsonagt•ns sao atraente~ c se relacionam com vários abandona, se prostra c assim atrai um pt•rsonag('m.
jogadores.
MARt'O MARTll 1.0

DOUTOR SA<.:HI·I<l'l' l nçarH•gado de uma missão pelo doutor Bat helot (n•unir aton•s t'
F.k tem uma fun\·ão particular, a dt• "distribuidor de jogo". A pcr- muskos do filme), ele atrai e mantém um grupo dl" r~·rs<magcns
sonalidack qut• dl· n•prt•.,t•nta com :.uas componentes oficiais (pro d~·,e•josos dl· atuar nc:.se filme.
fissão, atividacks l'Xlraprofissionais \ariadas) c oficiosas atraiu quase \11'.11 1.\)011·

a mt·tadc dos jogMiorl's. I:ks passam ... partem mudados ou prepa- E'talajadcira, da atrai c reúne jogadores.
rados para agir.
• Dois "triângulos~ de personagens isolados Sl' destacam do conjunto:
PROSTITUTA :-:OI·.\111 Um pa1-a agir contra Bachclot;
Da seita elos Filhos dl· lkus. Um guinto dos jogadores se sente • Outros para reunirem suas solidões e se ajudarem mutuamente.
cnvoh ido por seu p<'rsonagem. Hcs che'gam, instalam-se c perma-
necem, scrn agir.
Quatro pt•rsonagt•ns não mantêm, voluntariamente, nenhuma
comunicação nlln ""outro-... A cst olha ck• ~uas personalidades exclui
a comunica\·ão: o
• um ermitão;
uma ml·ndiga e sua garrafa;
• uma dl·portada t' su.l ohst•ss:i:o;
• uma t•mprl'g.lda \ hcndo num mundo paraldo.

Um pl'rsonagl·m (justim· 1-radt·t) sé> Sl' relaciona com os outros em


funçâtl dt• um projt•to "nMCJUÍa\t'lko". Pt."rsonagem que observa,
recusa tudo l' todos <Jlll' Sl' opõl'm a seus desígnios.

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A ART E DOS OUTROS

As improvis ações a partir de rituais, como as ficções construí -


das a partir de personag ens, depende m da · imaginaç ão dos
participa ntes e dão muita importân cia à "vivência" deles , mes-
mo que transform ada. O confront o com obras artísticas abre
novos campos, rompe com os riscos de trabalho em circuito
fechadÓ e introduz novos desafios. As dimensõ es histórica s e
estéticas de obras escolhid as em domínio s muito diferente s
desencad ejam outras práticas do jogo. É preciso ainda definir
as relações que. se estabele cem entre as obras e os improvi-
sadóres. Qu~do o processo de trabalho está excessivamc;;nté
centrado na obra, a dimensã o do jogo perde sua especific idade,
confunde -se com um· trabalho de análise ou d e encenaçã o. f>o r
outro lado, por que introduz ir um~ obra no espaço de jogo
unicame nte para que ela sirva de pretexto a roteiros muito
afastados do verdadei ro interesse que ela contéln? A "obra-pr i-
ma" tem a reputaçã o de intimida r ·e de_acarreta r a submissã o
dos participa ntes a seus códigos e temas. Sua entrada em uma
oficina de teatro não corresponde nem a uma esder ose da um mercado onde cada um apresenta os motivos de sua esco-
imaginação nem a uma atitude hip6crita que daria boa cons - lha e onde grupos se formam em torno de um mesmo desejo.
ciência àqueles que su.stentam valores culturais tradicionais. É Essa fase pode até ser ritualizada por apresentaçõe s sistemá-
inevitável levar em consideração toda uma abordagem teatral ticas que são matéria de invenção e de teatralização . Pode-se
que se apoia no texto. A dificuldade é tornar efetivo esse tipo esperar todo tipo de surpresa; nenhuma coerência na progres-
de trabalho em grupos nos quais os participantes são nume- são ou nas escolhas dos materiais é previsível.
rosos e nos quais o contrato de formação não tem nada a ver · Se o formador propõe obras, ele escolhe um conjunto de
com trabalhos de encenação propriament e ditos. Portanto, é textos que lhe são familiares e representam um amplo l eque
preciso reinventar formas de abordagem do texto que rom - de possibilidad~s. É ele então quem decide as induções e intro-
pam com os hábitos (a entrada da obra tornaria imediatamen - du~ no grupo um universo sensível que lhe é pr6prio ou con-
te necessária uma "distribuição ", atores, um encenador, uma sidera "bom" para o grupo.
divisão clássica das tarefas?).
Sobretudo, como fazer face à perda de jogo provocada
pela influência do texto, o mais das· vezes dito - e maldito - Trabalho a partir de textos
do que reconhecido como partitura.pas sivel de ser jogada? Os
exemplos a seguir mostram que um ~abal~10 aprofundado não Como proceder, a partir de quais textos, segundo quais
pode ser realizado sem um bom conhecimen to da obra e de o rientações?
seu contexto, mas mostram também ser possível inspirar-se
em processos de trabalho que estimulam o contato com textos, • Texto/pretex to: o texto deve ser escolhido de preferên-
sem serem deles totalmente tributários e sem se entregarem a cia pelo se~ "sentido", pela sua rede temática. Há o risco de
um trabalho sistemático de encenação. '·
utilizá-lo apenas como um ponto de partida um tanto vago e
As obras podem ser levadas à oficina de teatro pelos par- sua materialidad e pode ser perdida de vista. E:rp. algumas ofi-
ticipantes ou escolhidas pelo fc:>rmad.ó r. .Quando se propõe aos cinas de teatro, fala-se, por exemplo, do·ciúme a prop6sito de
participantes que escolham as obras, é com o intuito de que Phedre, da guerra a propósito de Jean Giraudoux, da Argélia
elas sejam de seu interesse, que el~s tenham com essas obras por intermédio de Albert Camus. Os textos podem, efetiva-
uma relação intelectual e/ ou sen sível que lhes dê vontade de· mente, fomentar uma reflexão, mas às vezes também servem
. partilhar seus gostos e de executar um trabalho de descoberta . de "pretextos cUlturais" cuja necessidad~ não é inquestionáv el
em tÓrno delas. A escolha das obras é realizada por ocasião de no quadr~ de trabalhos breves.

182

/
• Texto integral ? Como represe ntar Madame Bovary ou a B.íblia desse modo, na abor~agem de uma obra, experim entand o
se forem sugerid os pelos particip antes? Ainda mais se esses diferen tes relaçõe s com o espaço, com o estilo de jogo. Eles
nunca leram a obra integ ral! Novam ente há o risco de se experim entam também vários persona gens porque a distri-
optar por um tema. Não é mais interess ante, então, isolar buição, que ainda não foi feita, será decidid a em parte dessa
um excerto curto para dramati zar?
• Texto para dramati zar. Um verdade iro trabalho dramatú rgico
é concebí vel, desde que o texto seja conside rado por si mesmo
e não apenas pelo que ele conta. Sua prosódi a, seu -v ocabulá rio,
I maneira . Esses ensaios são em parte compar áveis a um traba-
lho de esboço para um pintor. Tudo ainda é possíve l, nada está
definido , nenhum ângulo de abordag em está descart ado, todas
essas tentativ as prelim1 nares alimen tam a série de ensaios ,
a original idade de sua.sint axe, suas referênc ias históric as serão prepara ndo a versão definitiv a. Ela exige dos atores um certo·
conside radas nas represe ntações ? Considero. fecunda a passa- savoir1àire: é pr~ci so saber ler, desloca r-se, escutar e/ ou olhar
gem de uma forma não-dra mática a uma forma dramáti ca se seus parceir os·, com o texto em mãos. Essas improv isações
todas as resistên cias encontr adas forem de fato encarad as. permite m compre ender o texto em fricção com outros com-
• Conjun to de textos. Uma colagem , _em torno de um tema ponent es- ainda em gestaçã o - da represe ntação t eatral, sem
ou de uma narrativ a, pode reunir textos de origen s diversas . que sejam necessá rios longos ensaios para se "ter utna ideia"
A leitura dos ·textos também estimul a os particip antes a uma de como pode ser essa ou aquela cena.
criação coletiva , que no entanto não será jogada diretam en- Tal improvi sação tem seus inconve nientes . Ela deixa no
te. Assim, em um trabalho dessa naturez a sobre nossa relação corpo e na memóri a marcas por vezes difíceis de apagar. É preci-
com a comida , todos os textos examin ados e represe ntados so se preserv ar do impacto das primeir as experim entaçõe s, que
foram suprimi dos na versão final (com exceção de O casamento. . pesariam perigos amente na versão definitiv a, fazendo acredita r
do pequeno burouês [I 9 I 9], de Brecht) e substitu ídos. por tex- rapidam ente demais que elas abunda m em achados . Por todas
tos escritos pelos particip antes. No entanto , a presenç a desses essas razões, é indispen sável dispor de tempo para que sejam
textos foi muito útil numa certa etapa do trabalho . realizad as inúmera s tentátiv as e que a experim entação seja real.
:.
Numa oficina de teatro os particip antes abordam ~sim um
texto diretam ente no espaço, sem que seja realizad o um longo
'Impro visar com o texto em mãos? trabalho prelimi nar. É preciso saber que os desenvo lviment os
· serão limitado s, mas que se trata de uma maneira real de abrir
Essa forma de improv isação é praticad a por atores (o exempl o um canteiro de obras em torno de um texto, fazendo -o ser escu-
mais conhec ido é o do Théâtre du Soleil) que se aventur am , tado rapidam ente junto com elemen tos de j ogo.

I~S
Proponho como exemplo um trabalho sobre a primeira Segunda fase do trabalho: esclareço o que ~ei ·da identida-
seqüência de uma peça de Daniel Lemahieu, intitulada Beaux de dos personagens tendo em conta o conjunto da peça, e for-
draps (Em maus lençóis> 1984). neço o início de uma fábula comum a todos: uma jovem vai à

Processos de trabalho sobre uma sequência


l casa de um escritor que ela já havia encontrado. Ele tinha acei-
tado examinar alguns textos que ela havia escrito, que ela leva .
para ele. Talvez os ·grupos considerem também a possibilidade
de um texto dramático
l de colaboração. Os mesmos grupos retomam a mesma sequên-
cia em função dos elementos narrativos que têm em mãos. Eles
Cada um se dedica à leitura silenciosà ?a sequência, sobre a
qual não forneço nenhuma indicação. O excerto é considera-
do por si mesmo, a instrução exclui o contexto e cabe a cada
um inventar os elementos que lhe pareçam úteis ao jogo, ao
I apresentam de novo uma improvisação, lendo o texto. Novo
exame das soluções cênicas escolhidas e discussão.

Até aqui, ainda n~o dei instru ção de jogo. Os participantes


menos para esse trabalho inicial. A escolha dessa sequência que estão diante de um texto aparentemente simples que lhes per-
proponho é determinada pela escrita quase sem narrativa, que I mite uma grande liberdade, mas também exige deles muita
deixa muito espaço ao jogo e à imaginação. A d·ivisão do texto coerência. O trabalho prossegue pela proposta de instruções
entre dois personagens, a pontuaÇão reduzida e a ausência total estritas que são as mesmas para todos os grupos ou, ao con-
de indicações cênicas interferiram na escolha. Realizamos algu- trário, se diversificam em função das impressões dadas pelas
mas leituras em voz alta (sem nenhum comentário) para que os primeiras improvisações. Muito concretas, essas instruções
participantes se familiarizem com o texto: · · · incidem ~obr.e:
Reunidos em grupos de dois, os jogadores dispõem d7 • o espaço ~scolhido: variantes simples, grande/pequeno. Pro-
meia hora para improvisar com o texto em mãos, a partir de ~d~de, afastamento dos esp~ctadores;
elementos que e.s colherem. Eles devem obedecer a uma indi- • a materialidade do jogo: o s jogadores são proibidos de se
cação de ·espaço que impuseram a si mesmos. No final da eta- olharem e/ou se tocarem. Ou, ao contrário eles não devem
. '
pa de preparação, todos os gr:upos apresentam uma proposta nunca deixar de se olhar. Instruções de ritmo: lentidão /rapi-
de leitura dentro do espaço. Ess~s propostas são comentad~s dez da cadência;
e comparadas, as soluções são remetidas ao texto, questões • intençõ~s sistemáticas: cada réplica deve ser pronunciada
de sentido são evocadas, o interesse das soluções cênicas .é como se fosse carregada de sentido ou, ao contrário, totalmen-
sublinhado. te insignificante; cada réplica~ acompanhada obrigatoriamente

18 6
•' '· ..
~

de uma ação física ·sem rel~ção com o texto, ou, ao contrário, um trabalho de ensaio de unia peça comece um pouco dessa
ilustrativa dó texto (convidar para beber, manipulando garra- maneira . Observamos que as instruções se tornam mais pre-
fas, preparando uma máquina de escrever); cisas ao longo do tempo, mas elas sempre deixam aos joga-
• uma vontade do personagem: a ser jogada e mantida durante dores uma margem de liberdade e de invenção. Um trabalho
toda a sequência, quaisquer que sejam as réplicas e sem se criativo não é nem um trabalho em que os participantes estão
preocupar com o realismo. (Ela queria um trabalho, ou uma entregues a si mesmos, tampouco um trabalho no qual eles
opinião sobre seus textos, ou dinheiro, oú seduzi-lo ... Ele são submetidos a diretivas muito estritas. As experiências em
queria lhe oferecer trabalho, ou se)ivrar dela o mais râpido torno de um texto teatral permitem desencade-a r capacidades
possível, ou beijá-la.) Tudo deve ser jogado em função de de jogo e de in:aginação a partir de um objeto muito diferente
uma Única diretriz para cada um, e essa~ diretrizes podem ser das experiências pessoais várias vezes evocadas. Evidentemen-
completamente contraditórias; te, é desejável .qúe o texto seja do interesse dos jogadores ou
• estilos de jogo: conforme ·se trate de uma sequência extraí- lhes di&a respeito (ao meno.s em parte!) para que eles tirem
da de uma com.édia de bulevar, de uma peça de Strindberg, proveito dele e se engajem no processo.
d e uma novela de televisão... (com o problema habitual das
referências culturais, dominadas de modo desigual pelos
participantes).

Nenhuma dessas instruções corresponde de fato a uma inten-


ção de encenação. Elas se destinam a abrir perspectivas· aos .
jogadores que entreveem ao mesmo tempo a relação 'com o
sentido, mesmo que não conheçam o texto completo. Não se
tràta de um trabalho de direção ·d e atores que emana de uma
única pessoa, mas de urila série de preliminares propostas à : ~ .

curiosidade e à invenção dos j<?gadores. ··-


O trabalho s6· poderia prosseguir de modo proveitoso
após a leitura e o exame de toda a peça. Então, nós entraría-
m,os em um trabalho teatral propriamente dito e os objeti- :,,,
- .;:
vos definidos ·seriam diferentes. Aliás, não· está excluído que

t88
Pnmc!ITa sequêncw de Em maus lençóis, de Damel Lemahieu lmpror11ações a pawr Je um quadro: Pintura 48, Jr Pollock

Stous sapatos? Os grupos trabalham a partir de reproduçÕl'S l'm l'artõt·s·postais


2 Corno? cll'"l' Jnppmn. sem leitura prévia:
St·us sapatos?
2 Como? • Urn grupo produz imediatamente uma lista de pala' r,ls t'rn tor-
\'ocê os tirou? no l' a propósito da reprodução. Eles <:onstroem muito rapida-
2 Ti'c dificuldadt• nH•nlt' um jogo em que corpos se cntrda\·am, misturam-se à
Tire os tl·rra, t•mitinclo sons. O conjunto é harmonioso, mas não signi-
2 Scu mapa não mostra t•ssJ rua, cntão para achar fi~·a nada, a não ser o prazer dos jogadores. { possÍH·l produzir
Anlrs minha mullwr usava salto agulha o dia todo cu prefiro os sentido, uma narrath·a? O não-figurati\'o não signilica <n•sl-ncia
japoncst•s enfim para os pés dt·s são t•xcmplarcs você está atrasada dt· Sl'ntido. Aqui cvcdencia-sc o discurso de Pollock no âmbi
2 Estou te incomodando? St·não cu posso... to da Açtion Painting americana. Pode st• ir al(·m na analogia,
De modo algum nas noções de ritmo c de cspa~·o. A dabora~,·ão do jogo deve
2 - Por causa do seu mapa t'U 1wgul'i o çaminho errado M'r mab calculada, mais bem definida. O "acaso" dos gl·stos ele
O qut' \C>cl' <)Ut•r? Sn>t('h Whisk) Brandy açucarado para as Pollm·k transparecc aqui. Rt'tomado, o jogo apn'sl·nt.l uma ana·
mulhcrl'" .1gua mincralt·om ou st•m gás? logia muito pn•cisamcnte regrada, dos ritmos, dos mm inwntos
Estou t·om um amigo fios são traçados , a profundida<k ~ rcstalwl<"dda, os l'llln·la-
Mande-o t•ntrar \'amcnlos, as superposições estão prl'sentes. Esboços dt· n,1rra·
2 Não vak a pt·na clt• l'stâ nw t•spcrando no carro ou no caft· em ti\',ls corporais, \OCais se fvem c st' dcsfazt•m. O grupo muito
fn:nll.' como combinamos t•nvc>h ido permanece no entanto no nín-1 de uma transposi\·ão
Eu pt·nst•i muito nas suas ideias sobre o olhar a atração dos olhos hem-suet·dida.
aquda noitt· dt•pois dt• nosso t·ncontro • Trl-:-. jogadores st•ntados no chão diante da rl·produ~·ão. Cada um
Estou muito atrasada? st•gut• uma çor, todos falam simultant·amente, busç,mdo dar rit-
Pn•dso dt• tt·mpo para ;I\ aliar mo, cadl·nda ao fraseado. As três falas s<' sobrq,õt·m, anulam-st•,
2 Quê? se t'ntrt•choçam ou se respondem aci<k-ntalmentt·, faz.~·ndo juntas
Sua rht·gada t'U não sou bobo, hem na hora certa. <k modo involuntário um trecho do caminho. i, um amontoado
!Escuro] dt• palavras que às vezes fazem sentido, dt• rl•smtmgos, de sons
tentando produ;ir uma fala "não-figurativa". Essa busca manifesta
uma postura qut' se afasta da ilustração ou da analogia do quadro.
Os jogadores parctcm tt•r rl·tomado por conta própria a atitude
do pintor t•m sua tela, propondo uma solução sobretudo musical
c \O<:al. (A cn•ntualidadt• de uma gcstualidadc não foi mantida ao
longo do jogo.) Busca-se aqui o discurso do lado da linguagem c
da t:mnunicação, numa kntativa de "representação" da abstração.
• Os jogadores produ tem três narrativas simultâneas de três \iagcns
pelo quadro, mantendo as \·ariações vocais. Trata-se antes aqui de
expor uma pcrçcp~·ão, assumindo toda a subjetividade, mas con-
servando a escolha formal.~
As relações entre o jogo e o sen6do interessam à dramaturgia.
Elas são aqui abordadas com a finalidade de precisar nossos
obje6vos. Mesmo quando jogamos pelo prazer, o jogo faz sen-
tido. Mas a ilustração estreita de temas previamente fixados, a
transmissão de bons sentimentos, as intenções moralizantes
e <?S projetos ideol6gicos ingênuos freiam a invenção e preju-
dicam o jogo. O didatismo raramente acompanha os desejos
lúdicos. ~~ en~to, não aprovo o fato de os jog()s comunica-
rem ·a penas discursos vãos ou egocêntricos, que o teatro não
fale nunca n~da além de si mesmo, ainda que essa tentação se
manifeste regularmente. O "domínio do sentido", que che-
guei a considerar com ~erta ingenuidade como· wn objetivo
de jogo dramático, s6 se obtém em detrimento dos riscos
asswnidos no jogo. Uma tentativa de levar em consideração
separadamente o jogo e o sentido com a esperança de alguma
exatidão está fadada ' ao fracasso, uma vez que há wn embate
incessante entre formas e conteúdos. De que maneira isso faz

195

,.
•'

sentido, de que maneira o real "faz signo". (para retomar uma O SENTIDO E AS S ITU AÇÕES PR ÉV IAS AO JOGO
expressão de Anne Ubersfeld ) são, no entanto, questões que
devem ser consid eradas. A reflexão sobre o sentido não eli-
mina a po ssibilid ade ~ de uma abordagem sensível do real nas
práticas dramática s, desde que não nos abandonem os às tenta-
ções do indizível e não acreditem os que tudo o que é jogado
vale a mesma coisa.
As reflexões que se seguem têm interesse sobretudo pelo
modo como a con sideração do sentido faz parte do aprendi-
zado dos jogadores , m~smo quándo ela·s não passam exclu-
sivamente pela fala e p ela análise. Não é p ossível examinar
todas as induções que comandam o surgiment o do sentido. O peso do aqui e agora
Vimos que as variações sobre as propostas de ponto de par-
tida abrem uma g·a ma ·de p ossibilidad es. É inútil estabelece r A expressão dramática , como praticada por Gisele Barret, cen -
uma hierarquia , mas podemos tentar apreender as r elaç ões tra as atividades na situação r eal, tal como esta existe no g rupo
que se tec em entre os procedim entos de jogo, as escolhas de no momento em que é dada a instrução. Esta última incita
indução, os exerdcios prelimina res, o imaginári o dos joga- os jogadores a agir no instante e em função do modo como
~- dores e as situações imediatas de estabeleci mento do jogo. eles percebem a situação. Na expressão dramática , a instrução
O questiona men to do sentido começa pela o bservação -do -?ão se d estina à convocaçã o de referentes sociais, culturais ou
modo como ele circula, como são produzidos os estereótip os políticos que _s e confronta riam com uma "pedagogi a da situa-
e como combatê -los. Se tudo não é fornecido de imediato ção". ·Os participaotes são convidado s a viver I exprimir o que
ao participan te, se não n os baseamos na· invenção espontâJ:le a, eles sentem na relação com eles próprios e com os outros no
corno são estabelecidas as r elações entre o interior e o exte- interior da oficina, em função de diferentes suportes, t emas
·.. rior, entre a intenção e a expre~são? e indutores. o-formador coloca-se no presente, leva em con -
sideração o lugar (espacial e institucion al), o momento e as
p essoas. Essa vontade de_. fixar-se no real imediato .é d efiri.id'a
) '
como uma qualidade indispensá vel a todo pedagogo , capaz
' ·.
de perceber uma situação e de fazê~la perceptíve l aos outros.

197
A expressão dramática recu.s a o apelo a um imaginário exte - a situação real cujas resistências eventuais devem ceder diante
rior, ~ imagens do mundo que seriam rejogadas ou revividas da força do que foi previsto e ensaiado, as práticas de impro-
no espaço da oficina·, como práticas que dependeriam do tea- visação absorvem como uma esponja a realidade imediata e
tro de modo estreito demais. constroem um referente a partir da experiência instantânea
Esse desvio pela expressão dramática ajuda-nos a com- dos jogadores e de sua perce pção da situação. Assim como
preender melhor a importância da situação vivida pelos joga- não existe mais um "vazio" do improvisador, anterior ao senti-
dores quando o imaginário se conjuga com o presente. Em do (que seria seguido d e uma plenitude!), não existem ficções
nossas práticas, uma improvisaÇão e um jogo dramático que que viriam sob encomenda preench er esse vazio. Múltiplas
se desenvolvem a partir de um tema l~vre ou d e uma situa- induções operam no. campo do jogo e equivalem a situações
ção fictícia n ão escapam a essa dimensão. A situação real inter- p:~vias. Nem todas essas situ ações prévias são passíveis de
vém nas escolhas ficcionais, pesa sobre o desenvolvimento serem percebidas. Algumas provêm dos exercícios que prece-
da improvisação numa proporção dificilmente mensurável. deram, do modo de intervenção do formador, de uma rede de
O sentido nasce e se estrutura em parte em função de ele- tensões e de afetos que ressurgem, mal disfarçados, no jogo
mentos imediatos, que são aqueles da situação vivida pelo improvisado. Outras assumem diferentes formas simb6licas
grupo no momento em que se inicia a ficção.' Os indutores ou apenas afloram sob a casca da ficção. Todas as categorias de
exteriores, por maior que seja a sua força, ·nunca neutralizam indução participa.n:t da construção do sentido.
completamente o aqui e agora da oficina, o qual deixa mar- Exemplos. Nas primeiras horas de uma oficina, normal-
cas na improvisação e nos exercícios. Inevitavelmente toma- mente ocorrem situações em que se manife~tam a espera e a
dos por esse "estado presente", os jogadores incorporam-no inquietuc;le. Os participantes jogam salas de espera (de dentis-
ao "alhures" que estão construindo. Sabe-se que esse presente ta, de médic?), lugares um pouco inquietantes onde um desco-
funda o fenômeno teatral, que não existe senão no momen- nheCi?o entre desconhecidos pergunta-se o que vai acontecer
to da representação, no instante mesmo em que ela convoca .c om ele, troca olhares cautelosos com outras pessoas envolvi-
um "alhures" e unia "outra coisa". A combinação desses ele- das. De maneira menos direta, jogam-se também viagens (de
m entos constitui esse "real qu~ se torna signo", 1 união de um tre~~ de navio, de avião) nas quais se convive com estrangei-
significante com urn significado que remete a um referente ros engajados na mesma aventura e tão inquietos quanto você
real. Nos jogos improVisados, a composição alqwmica tende a sobre o futuro. A ausência de instrução leva à con strução de
se inverter. Enquanto a representação tradicional privilegia a situações em que o imaginário intervém menos para se referir
construção· do referente e não considera,.senão parcialmente, a um alhures do que para exprimir indiretamente a angústia
..
199
suscitad a pelo momen to real no qual é preciso se lançar à aven- elas se animam misteri osamen te à noite. O lugar inicial do
tura da improvi sação. Assim, uma b elissirna improvi sação narra
trabalh o (a escola) provavelmente , aliás, não é estrang eiro a
lo ngamen te a travessi a do espaço d o jogo ... Viajante s inquieto s
esse quiproq uó relativo às atividad es . Do mesmo modo, jogos
estão suspens os sobre o vazio e optam alterna dament e pela
.solidar iedade e pelo individu alismo antes de saírem dessa dura
prova. Como diz Jacques Guime t, I vocais conduz em a um uso específico da voz, e um trabalho de
desestr uturaçã o corpora l induz os person agens a compo rta -

I
mentos motore s p articula res.
Quando os particip antes não percebem t?do o "sentido "
Reunidos com o prop6si to de improvi sar (não imp.orta ndo as
dos ex ercícios prepara tórios (coisa fr equente ), as improv isa -
técnicas), será que não estaríam os restritos à ideia do "condu-

l
ções falam 'da ~oucura, literalm ente de condutas."insen satas".
tor de jogo" (voluntà iiament e·ou não?), so~r~tudo se ele não
Vividos como muito inabitua is em certos espaços instituc ionais,
for diretivo , ora nos con finan do no jogo de refração das sen-
em ruptura com as práticas usuais, esses exercíc ios dão livre
sibilidad es, ora nos conduzi ndo, passo a passo, no labirinto de
curso a ~odos os compo rtamen tos estranh os e conduz em lite-
uma con ceitualização?2 ralmen te a "bancar o louco". Trata-se de uma leitura frequen te
das atividad es dramát icas quando elas n ão são compre endidas
D e maneir a mais clara, acontece de alguma s improv isações
p elos p articipantes o u p or aqueles que o u vem a r espeito ; os
express arem as dificeis negocia ções de um grupo que não che-
grupos de teatro das institui ções são margina lizados , passam
gou a um acordo sobre um roteiro, ou remete rem à imagem
por r efúgio de pessoas "bizarra s", de "loucos ".
de um formad or que dá instruç ões a um grupo p erplexo . Nes-
O vivido imediat o pode ampliar -se p:rra uma experiê n -
se caso , "a regra pode ser d e denunc iar a regra e, então, as
cia, comum ao grupo, que precede u a sessão d e oficina. Um
astúcias dos protago nistas par a escapar em a ela tornam -se a conflito oco:rido entre uma classe e o p rofesso r é jogado na
própria improv isação". 3 o~dna sem que saibamo s nada do context o, sob a forma de
Aconte ce também de os· exercíc ios que iniciam a sessão
uma "improv isaç:ão" relatand o como um profess or autoritá rio
d e trabalh o desémb ocarem em improv isações . Raramente
é ridicula rizado por um grupo d e crianças . Do mesmo 'm odo,
inocen te , o aquecimento mais b anal carrega formas e sen-
o trajeto, os inciden tes do dia, as preocup ações recente s dos
sações, cujas marcas re-enco ntramo s P<?Steri orment e. Assim,
indivídu os p esam também sobre a inspiraç ão coletiva .
alunos fortem ente sensibil izados num trabalho sobre "escul-
De maneir a espetac ular um grupo de estudan tes holan-
turas" constro em ~a sequên cia contand o uma confusã o na
d eses·, reunido s em . uma constru ção austera e isolada para
entr~ga de estátua s, que acabam em um supermercado, onde
um estágio de alguns dias, mostro u-se muito influenc iado

200
20 1
pela perda de um~ chave. O medo de roubos, que tinha sido mental do espaço de jogo e o estabelecimento de uma transição
manifestado pelos responsáveis (eles chegaram mesmo a falar entre o mundo exterior e a sala de trabalho pouco diminuem
em passar a noite vigiando), combinou-se com a sugestão do a importância do momento presente. No entanto, ambas con-
lugar. As improvisações mórbidas se sucederam, revelando tribuem para criar condições de uma concentração que não
esconderijos, assassinatos, cadáveres em todos os recantos polariza todas as energias sobre o que está sendo produzido, mas
sombrios, como se o jogo com a situação real a impulsionasse também sobre o que pode advir e sobre as condições de troca
a seu paroxismo, ao 1nesmo tempo que a fosse desconstruin- entre essas duas realidades.
do pelo ridku]o guinho)esco.
O sentido surge, portanto, fora de todos os procedimen-
tos destinados a convocá-lo. Nem a utópica "neutralidade" do A invenção dos referentes
condutor de jogo, nem a mais extrema precisão das instru-
ções asseguram a originalidade e a qualidade do que é jogado. Por procedimentos verbais que conduzem a roteiros
O sentido se infiltra em todo o process_o e pesa e1n todos os
acontecimentos, mesmo os insignificantes, que dizem respeito O preparo de um roteiro é um procedimento clássico que con-
à situação real. A representação teatral nunca co~segue anular siste em escolher elementos narrativos em segúida submetidos
totalmente as incidências dessa re~lidade imediata, a despei- à improvisação. Elementos externos à oficina interpenetram-
. to de sua natureza de objeto artístico elaborado. Na ··melhor se com elementos internos ao espaço de jogo e nele se crista-
das hipóteses, ela tira proveito disso e integra as incertezas lizam. A orientação do enredo e seus temas são determinantes,
do instante ao projeto original. Quanto às práticas dramaticas eles se org~niz~ diferentemente conforme os contextos.
improvisadas, quaisquer que sejaxn as técnicas empregadas, elas É possív~l q~e grupo se reúna para jogar I refletir a par-
.o
tecem sua trama a partir dos momentos vividos no presente tir de uma_questão de seu interesse e da -qual já possua elementos,
pelos participantes. O passado imediato, individual ou coletivo, seja pela experiência de seus membros, seja por uma coleta de
é incorporado e repercute. A página branca absoluta· não existe, informações realizada anteriormente. Esse modo de trabalho
é preciso extrair as consequên~as desse fato~ trabalhar a par- caracteriza a criação coletiva, assim como o estabelecimento
tir da situação real, aprendendo a observar os elementos dela, do modelo (ou d~ antimodelo) de um teatro-fórum do Tea-
vendo como eles se integram ao imaginário referencial. Uma tro do Oprimido. As improvisações servem para questionar os
vez que a interferência do instante é inevitável, saibamos como materiais iniciais, para entrar em contato com eles e integrá-los ·
ela se manifesta, ainda que muito discretamente. A purificação a uma forma dramática que falará deles de maneira diferente,

2o2 203
mais sensível e .Pelo .viés de formas artísticas. Dentro dessa Se o f<?.rmádor tem a preocupação de evi t ar essa lon -
hipótese, existe uma espécie. de "sentido bruto", anterior à ga negociação, ele propÕe pessoalmente temas ou situações
improvisação, que d eve encontrar personagens porta-vozes e que o interessam ou imagina poderem interessar ao grupo.
orientar-se de acordo com pontos de vista no âmbito d e uma Excetuando-se os riscos evidentes de manipulação do grupo
dramaturg ia. As duas etapas são nitidamente separad as. O jogo pelo formad or , essa diretiva não apresenta apenas inconve-
tem menos por objeto dar origem ao sentido do que dar forma, nientes. Na realidade, os grupos apropriam-se das propos -
pela teatralização, àquilo que já existe, com todas as dificulda-
des provenientes da ruptura entre os dois momentos da refl e-
xão e da mudança de procedimento.
I tas de jogo à maneira d e les, d esviando-as nas direções que
lhes inter essam, e acabam tendo prazer nisso. A boa vonta-
de do formador, que manifest a seu rigor recusando induzir
Num outro contextÓ, o grupo não está mais reunido para situações de j ogo, é inútil, se admitirmos que os jogadores
uma reflexão comum em torno de um objeto, m as estritamente no final manifestam seus verdadeiros desejos. Assim, em
para atividades dramáticas. Se o formador acredita na importância uma cla~se de sex ta série convidada a jogar improvisações
do que é jogádo e que os indivíduos se empenham no jogo apenas sobre seu "laze r", uma boa parte consegue falar d o que
se nele encontram 'desafios, ele então propõe que sejam d efini- lhe inter essa, contando as aventuras de u m grupo de bons
dos con teúdos que lhes digam respeito ou despertem interesse. vivants durante um cruzeir o, que desem bar ca a cada escala
A definição de tais conteúdos dentro de um grupo heterogêneo
exige procedimentos p esados, por exemplo uma "feira de t emas"
em que cada um verbaliza uma proposta e na qual, procedendo
por eliminação, pequenos grupos são definidos a partir dos assun-
tos que os aproximam. Dentro dessa hipótese é quase impossí-
i
f
p ara farrear e paquerar. Em uma outra hipótese , a questão
da seri~dade do tema pre liminar é esvaziada. Ternas e situ - ·
ações são, antes ·de tudo, pretextos para jogo. O interesse
se des_!oca para um trabalho com as formas, para a aquisição
d e Úm potencial técnico, ou em d ireção ao desenrolar das
vel mobilizar todo o grupo em tomo d e uma única proposta. Por ~mprovisações propr~~mente ditas, com as quais contamos
outro lado, uma definição precisa das propostas de jogo se m ostra para que ideias fortes apareçam .
difícil e as escolhas dos grupos, na ~erdade, fazem intervir crité- A aparição de um sentido verbalizado anterior ao jogo
rios que não têm forçosamente relação com o terna previamente choca-se, portanto, com dificuldades d e procedimento. O
del.imitado. A determinação de pontos·d e pártida que correspon- apelo à "serie dade" dos participantes, para que eles se empe-
dam de fato aos desejos dos indivíduos do grupo é diflcil e, se a nhem naquilo que con~, permartece frequentemente uma
conseguimos, isso se dá à custa de uma longa e delicada negocia- injunção conformista ou moralizante. Alguns se sentem ten-
ção, que usurpa muito do tempo consagrado ao jogo. tados a adotar temas "que parecem sérios" ou que estão na

2os
' .-

ordem do dia, mas que não lhes dizem respeito diretamen te. racionaL Um campo de p ossibilidad es se abre para o jogador
Outros reagem mal a um apelo que interpreta m como um confronta do com uma obra de arte que não se reduz a uma
convite mal disfar çado'para se revelarem . Outros, enfim, não ideia comunicáv el e não se traduz imediatam ente em lingua-
levam em conta nada disso e jogam "o que aparece" ou "o que gem clara ou racional. Tais experiênc ias forn ecem r esulta-
lhes dá prazer", confessan do que as suas verdadeira s preocu- dos contraditó rios. Às vezes elas se mostram redutoras, do
pações se situam no próprio andament o da oficina. ·Enfim, o . mesmo modo que os pontos de partida verbalizad os. Elas
estabeleci mento de um roteiro frequente mente é uma inci- incita~ ao vago, a qualquer coisa. O jogo não passa de uma
tação à produção de um enredo tradiciona l com todas as suas
armadilha s.
t pro~essa. Como se O misantropo se restringiss e a uma ane-

l
dota sobre as dificuldad es de viver em sociedade , ou a Nona
Por essas razões, por causa do peso dos procedime ntos sirifonia a uma dança selvagem. A espessura artística da obra
de escolha, longos e complicad os, e da import~ncia notória da desaparec e. Uma improvisa ção a partir de tais induções não
situação real, evito cada vez mais o estabeleci mento de rotei -

I
é evidentem ente um equivalen te ou um resumo da obra. Ela
ros tradicionai s, que freiam a invenção, em beneficio da busca também não pode aspirar à análise racional. Ela leva o pró-
de indutores de jogo que não instaurem uma tal ruptura entre . prio sujeito a se afirmar na relação, a colo.car sua existência
a narrativa e o jogo, que não deem um peso tão forte à serie- diante da obra. O procedim ento torna-se discutível quando
dade dos participan tes. o equilibrio é destruído e quando ele privilegia o jogador
em detriment o da obra.
Por procediment os não- verbais que conduzem a roteiros O proGedim ento torna-se de fato eficaz quando centra a
busca do jogad9r_nos elementos da obra, mais nos significant es
O contato dos jogadores com textos, objetos artísticos e do que em t?rno de um sentido preestabel ecido. Nesse caso,
espaços desemboc a, como vimos, em jogos ~ improvisa - o jogador considera o ritmo, o moviment o, a composiçã o, as
ções. Dentro dessas hipóteses o sentido não se manifesta cores, caso se trate de um quadro; a prosódia, quando se trata
em uma ideia que precede o jogo, mas no encontr~ de uma de um texto. A improvisa ção incita a experime ntar elemen-
sensibilid ade e de uma provoca.ç ão que lhe é exterior. Por tos formais. Nem por isso o sentido é esvaziado, mas ele não
mais diversas que elas sejam, essas provocaçõ es para o jogo é fornecido já pronto, como frequentem ente é o caso quando
não estabelece m um sentido prévio. Elas se oferecem antes a preocupaç ão é didática. Sentidos brotam .do en.contro com
como uma rede d e pistas que são submetida s à exploraçã o e a obra concreta, como se passeássem os na textura do quadro,
à descobert a por ferrament as diferentes daquelas da análise como se inscrevêss emos ritmos no espaço, como se as palavras

206
207
•'

devessem ser c olocadas na boca para ganharem sentido. o i n divíduo e o col etivo: neaociações do sentido e inteiferências
O j ogador é estimulado a abandonar seus estereótipos , a ir
ao encontro de um univer so artístico que ele apreende p elo A importância excessiva que é dada ao grupo na discussão
viés de sua materialidad e e por tentativas de transposição que
· constituem lições de estética.,.
Do m esmo modo, jogar um espaço designado con siste
I dos roteiros preliminares ou na escolha d os temas ameaça
as escolhas individuais. Quando afirmo que é mais produti-
vo jogar o que interessa, o grupo corre r iscos de funcionar
em lhe atribuir provisor iamente um sentido, impregnan -
d o - o das r eações e das e moções que ele nos suscita, sem
que seja indispensáve l fazer dele o luga: de uma anedota ou
II como uma censura ou de esmagar desejos individuais. Por
ocasião da nego~ia ção habitual de um roteiro, as vontad es
particulares à.s vezes se chocam a ponto de se anularem. Os

~
o suporte de uma narrativa. Ele é considerad o tal comC?, é estereótipos provêm de um excesso de boa vontade na pro-
experimenta do na relação física, e ganha sentido por meio cura de um interesse comum , do acordo. A unanimidad e
d a experiência sensível que em seguida nos esforçamos para
comunicar aos o~tros.
Todas essas tentativas de tradução, de transposição ou
de translação fazem intervir diferentes ling~agens artísti-
II raram€7nte é acompanhad a d e in o vação, e as ideias que aca-
bam ganhando a adesão de todos quase não suscitam e ntu-
siasm o na passagem para o jogo. Todos nós já observamos
criações cole tivas que, de consenso em consen so , não pas-

I
cas por intermédio de "bricolag~ns" p esst>ais. Não se trata sam de espetáculos convenciona is, incapazes de abalar de
de sobrepor essa abordagem à análise racional , nem de lhe modo profundo o gosto de quem quer que seja ou de apre-
conferir uma superiorida de qualquer, mas de fazer com sentar alguma ideia perturbador a.
que seja admitida como uma experiên c ia diferente. Crian- ·Em minhas práticas desses últimos anos constatei essa
ças que "jogam" um quadro abstrato nessa p erspectiva tendência à _monotonia das invenções coletivas, quando o s gru-
entram em contato com os elementos c oncretos utilizados pos não passam de um ajuntamento provisório de indivíduos
na realização da tela, e le mentos esses, ritmos e volumes, sem muita coisa a colocar em comum. Em lugar de p erseguir
p e rcebidos de dentro. É possível que os exegetas oficiais a utopia d e uma construção do 'sentido que passaria por mor-
do artista fiquem sob~essaltados ao ouvirem os fragmen - nas negociaçoes, procurei recuperar a influência das escolhas
tos de sentido e as conotações que assim fizeram surgir, individuais e de suas consequência s. Interessei-m e por proce-
mas creio que esse tipo de experiência sensível é uma da_s dimentos que permitem ao maior número possível de pessoas
maneiras de alcançar o conhecimen to e é indispensáv el a afirmar desejos particulares, deixando a confrontação para os
uma aprendizage m artística. momentos de improvisação . Esses procediment os têm cada vez

208
menos ç:omo objeto o respeito prudente por um roteiro que mais pelos meandros traçados pelas narrativas. O anedótico
con~énha a todos. El~s se afirmam como lugares de encontros sempre ameaça levar vantagem sobre as buscas verdadeiras
e trocas, de confrontação de escolhas divergentes, de experi- dos personagens.
mentações de riscos individuais dentro do coletivo. Para que a responsabilidade individual se exprima no esta-
O trabalho sobre os rituajs e sobre "pessoa/persona- belecimento do sentido, é igualmente possível designar um só
gem", descrito nas páginas precedentes, apoia-se rias escolhas mestre-de-obras do roteiro. A responsabilidade pode ser par-
íntimas que interferem nos trabalhos coletivos. Ainda aqui os cial e referir.,se apenas à narrativa propriamente dita, ficando
pontos de partida não se exprimem através de ideias, mas, os outros jogadores à disposição de uma espécie de "rapsodo"
por exemplo, mediante narrativas mediadas por experiências do qual fala J ean-Pierre Sarrazac.: Se a responsabilidade é
individu ais familiares. O ritual transmite inicialment(! uma completa, este se torna uma espécie de diretor que inter-
ação cotidiana. Quando da retomada por um grupo que tea- vém em todos os setores do jogo. Como encontrar tempo,

l
traliza o material bruto, o sentido se modifica de acordo com no entanto, para desenvolver tantas improvisações confor-
a distribuição dos personagens, a adição eventual d~ uma me o número de participantes? Esse tipo de procedimento
fábula, a inscrição em um código de jogo e a ~doção de um é mais viável em uma escola de teatro. Na École Internatio-
ponto de vista. nale de Théâtre Jacques Lecoq, por exemplo, os "comandos"
No trabalho sobre pessoa/personage'rn não existe em são passados aos alunos individualmente. A partir de uma
princípio um sentido inicial. Este se constrói à medida que os palavra-chave ou de um pedaço de frase, eles são encarre-
personagens se definem e tornam-se inesg<;>táveis reservat órios gados de elaborar uma improvisação com roteiro, tão com-
de histórias possíveis, sem que se recorra ao roteiro. As ficções pleta quaqto possível - na verdade, um autêntico peque.no
potenciais se definem em função dos encontros programados espetáculo~· em relação à qual cada um assume a responsa-
pelo acaso ou pelo desejo. Elas dependem da teia de aranha bilidade completa, reunindo os parceiros de sua escolha. No
que cada pessoa tece na elaboração de seu personagem e das entant<;>, essas improvisações têm menos por objeto '~falar"
súbitas bifurcações tomadas pelos personagens. É verdade que do mundo do que permitir ao individuo designado realizar
esse trabalho é menos centrado na temática do que nas narra- a per~ormance mais brilhante possível, vangloriando-se tan-
tivas; ele se interessa menos por "do que isso fala" do que por to rio jogo quanto na construção do roteiro.
"o que isso n arra", para retomar a ·terminologia de Richard Em todos esses exemplos o surgimento do sentido depen-
Monod. Entretanto alguns t emas assumem importância e de também de quem ·decide a.S induções: se as palavras-chave,
tendem a se generalizar, mesmo se os jogadores se apaixonam as obras, as primeiras indicações aos personagens são dadas

21o 2 I I

,,
I
pelo formador ou se dependem do desejo dos· jogadores. O
equilíbrio entre as induções e as instruções, entre os desejos
individuais e os estímulos dados ao trabalho depende de uma
II O QUE FAZER DO SENTIDO?

:;
busca permanente e frágil.

O que .fazemos do sentido manifestado em uma ·improvisação?


Reunimo-nos em uma oficina para espiá-lo ~ recolhê-lo, analisá-
lo; traduzir os jogos e as imagens em pala~ras, em discursos ou
em pontos de vista? Haveria aqui uma espécie de·função drama-
túrgica do formador e dos jogadores que os obrigaria a comentar ·
a posteriori o que ocorreu, segundo o modelo de um dramaturgo
guardião do sentido ou, como já foi caricaturado, "policial do
significado"? Como o sentido circula nos grupos? Conforme
a composição dos grupos, demandas contradit6rias se fazem
ouvir: . Al~s professores esperam a análise coletiva de uma
imagem, o comentário sistemático de uma improvisação. A
escola permanece o lugar onde é preciso compreender e uma
das funções-d<;> professor é assegurar-se de que todo mundo
compreendeu a mesma coisa. Conheço bem a tentação da "tra-
~ução" que ronda todos aqueles que têm funções pedag6gicas.
Ora, toda verbalização de um trabalho artístico tem lim~tes. O
interesse das linguagens artísticas provém do fato de que, diante

lll . l13
delas, ninguém é obrigado a compreender exatamente a mesma pouco-caso da experiência sensível. Quando urna improvisa-
coisá, nem de reagir d_o mesmo modo. No polo diametralmente ção "fala" àqueles que a presenciaram, é útil deixá-la falar antes
oposto, os defensores do "artístico a qualquer preço" tendem a de mobilizar as ferramentas de análise. Ecos que levam um
considerar qualquer tomada de fala como uma "escassez de jogo". pouco mais de tempo para repercutir podem ser encobertos
No espaço intermediário reina uma confusão de falas. Aquelas pelo excesso de precipitação de vozes parasitas.
que giram em torno do sentido; aquelas que m~nifestam preo- Enfim, é bom se recordar que o objeto submetido à aná-
cupações estéticas; aquelas que se concentram sobre o "vivido" e lise no quadro de uma oficina não tem a m~sma solidez que
flertam com a psicologia. Corno se lida c.om todas essas falas? um objeto teatral acabado. Certos desafios tocam zonas sen-
síveis e não exigem um comentário de seus autores e de seus
pa_rcejros, a não ser. que estes assim o desejem. O esclare-
O dire ito ao silêncio cimento muito nítido ou muito duro daquilo que talvez não
tenha sido feito senão para ser esboçado ou sugerido é uma
A análise da imagem não substitui o trabalho sobre a imagem. O . experiência brutal que deve, ao menos em alguns casos, ser
comentário detalhado de uma improvisação não ~quivale a urna " adiada. Não creio estar encorajando a mitologia do indizível
experiência de jogo. Esses lembretes elementares são um ponto ao reclamar o direito ao silêncio, quando o contexto assim o
de partida. É claro que uma análise completa de uma improvi- exige e quando nem todos os jogos· foram feitos. Por vezes o
sação é uma tarefa longa e delicada, que necessita a mobilização trabalho teatral ganha quando se deixa o sentido "flutuante". A
de ferramentas complexas. Mas ela deixa em segundo plano cristalização apressada daquilo· que estava a ponto de se pro-
pontos de vista particulares e nem sempre dá ó devido valor à duzir põe em r~sco as tentativas frágeis, os balbucios, desen-
soma de conotações que, no entanto, nos interessam muito. A coraja as tifl:1idezes. Proponho, portanto, que sejam mantidas
m enos que o grupo tenha· se atribuído como tarefa específica zonas de sombra e não se fale de tudo, todo o tempo. Além do
explorar em profundidade c:;> funcionam ento de uma imagem mais, a fala ganha muito ao ser organizada.
ou de uma improvisação, eu me oponho às análises sistemáticas
no âmbito de uma oficina de jogo. Uma verbalização invasiva,
não importa de onde provenha, rompe a dinâmica lúdica. Por Os rituais de tomada da palavra
outro lado, a verbalizaÇão do sentido, quando este está apenas
nascendo, conduz por vezes à. sua simplificação e a seu amesqui- As intervenções verbais são frequentemente muito longas e
nhamento, perdendo parte da experiência artística e fazendo por vezes complicadas. Os problemas de tradução que elas

2tS

··'
colocam nas oficinas no estrangeiro, as questões da organi- Na terceira fase, só os espectadores têm a palavra e con-
zação do tempo de uma maneira geral levaram-me a adotar
regras. Elas inspiram-se naquelas que aprendi trabalhando
com Miguel Demuynck6 e também nas técnicas oriundas da
I forme uma instrução estrita. As intervenções deles começam
necessariamente por eu aosto ... ou eu proponho ... ou eu critico ...
Os jogadores não têm o direito de resposta, suas justificativas
pedagogia institucional. Como todas as regras, elas apresen- não têm razão de ser nesse cruzamento de impressões subje-
tam vantagens e alguns inconvenientes, entre os quais aquele tivas e de propostas. Essa fase pode, igualmente, .ser feita por
de se desgastar rapidamente. Mostrarei o funcionamento delas escrito; cada pequeno grupo de improvisação recebe então do
antes de mostrar os seus limites. grande grupo uma série de fichas, por vezes muito contraditó-
Os jogadores que acabam de improvisar devem ser os rias, que ele ~nalisa para sua informação.
primeiros a falar. Essa regra tradicional chama a atenção para
aqueles que têm um direito legítimo de comentar a sua pr6- Do que se Jala?
pria produção, antes que isso seja feito pelos outros. Sua inter-
venção não é .o b.rigatória, mas, se o quiserem, podem falar de
suas dificuldades, de suas impressões no inte~ior da improvi-
I •' ;
Essa tecnica mescla todos os níveis de fala:
• expressão do "vivido", do prazer, da dificuldade, do interesse,
da indiferença;
sação, dos desvios observados em relação às suas intenções
iniciais. Eles comentam o que produziram, e o relativizam ao • ~xpressão de uma competência para "fazer": preparação do
compartilhar suas experiências. Eles insistem sobre o seu pro- roteiro, observações sobre sua capacidade de jogo, sua "difi-
cesso de tr.abalho, expõem os eventuais desacordos aparecidos culdade de jogar", sua habilidade para "pescar" as coisas, para
no pequeno grupo. escutar um parceiro;
·-.· · Os membros do grupo maior, esp~ctadores do traba- • expressã~ de uma co~petência para compreender I sentir: os
lho, têm então a possibilidade de levantar questões sobre espectadores trabalham sobre um sentido global e também
aquilo que viram e os jogadores têm o direito de responder. sobre os si~os precisos que constroem o sentido, sobre a
As questões dizem respeito ao sentido, a uma intenção, a fábula, os personagens, o espaço. Eles relatam sua satisfação
um personagem, mas também ao ·modo como um grupo ou sua frustração, sua eTQ.oção, seu prazer;
trabalhou, o porquê de ele ter escolhido essa ou aquela expressão de üm projeto de continuação: sobre as modifi-
solução. As justificativas não são necessárias, trata-se antes cações possíveis, mudar ó fim, remodelar o espaço, reorien-
d e compreender por que e como o trabalho se desenvolveu tar um personagem. Aquele que fala se coloca na situação
em determinada direção. daquele que teria de fazer e não no papel de consumidor.

216 217 .
.,
I

1
VANTAGENS DESSA TÉCNICA ; jogadores a se responsabilizare m por suas intervenções e a
1 escutar a fala do outro.
o momento da tom.ada da palavra é um trabalho organizado, i
não um falatório de salão. Cada membro de um grupo é alter- A mais séria crítica a essa técnica é a de que ela pode
nadamente produtor e crítico da produção. As instruções for- a~ular qu.a lquer possibilidade de polêmica, já gue o ritual
çam à organização das intervenções e também a sua concisão. impe d e diálogos prolongados entre os parceiros, que gosta-
A fala do formador é exercida na mesma medida que aquela dos riam d e debater até o fim. Ela pode neutralizar pontos de
outros membros do grupo, mesmo se ela é recebida diferen- vista contraditórios e levar a uma banalização das diferenças,
temente . Os membros do grupo comportam-se menos como já que todas as intervenções podem ser consideradas "iguais".
juízes categóricos (estava bom I estava mau) ou como tagare- Sou sensível a esses problemas. Todo sistema exige um re-
las impenitentes do que como produtores solidários a outros ~xame regular. Eficaz durante um tempo, esse sistema pro-
produtores, já que encontramos, d e grupo a grupo, os ecos de porciona um ganho na qualidade de intervenção e de escuta
dificuldades ou d e satisfação. Eles se habituam a admitir que para agueles que só têm como modelo de debate as emis-
falas contraditórias coexistem e a escutar críticas, sabendo que sões televisivas, nas guais basta fazer mais estardalhaço gue
a justificativa nem sempre tem intéressc. Nota-~e um ganho de seu oponente. Se e le leva à "gentileza", neutralizando qual-
t empo, de eficácia, de escuta. quer discussão verdadeira, é preciso abandoná-lo, como
toda ferramenta que freia o desenvolviment o ao invés de
LIMITES DESSA TÉCNI CA promovê-lo. Nos estabelecimento s escolares, diversos u sos
Para que ela seja eficaz, essa técnica d eve ser aplicada rigoro- provaram que essa técnica incita os alunos a se tornarem
samente. O formador veta a palavra a um jogador tentado a connaisseurs,. j':llgando dificuldades de uma atividade (tan-
se justificar (ou de pular no pescoço de alguém que o contra- to de escr.ita como de desenho) e estabelecendo diálogos
diz!). Ele repreende aqueles que intervêm sem respeitar as reais . <? emprego de uma fala sistemática que acompanha as
instruções, impondo-lhes a reformulação da frase e o empre- produções faz dela uma verdadeir~ ferram enta de avaliação
go da primeira pessoa. Ele deve estar sempre atento à 'ordem para os próprios produtores.
das demandas de intervenção. Desse modo, há o risco de blo- Para que não sejam obrigatórias, sistemáticas e invasi-
quear a vontade de falar de alguns m embros do grupo, que vas, as intervenções verbais que segtiem os jogos ganham ao
~êm dificuldade em aceitar leis muito estritas. Segundo minha serem diversificadas. Uma improvisação pode ser comen-
experiência, essa técnica se torna rapidamente um ritual que tada de diferentes formas, inclusive por imagens ou por .
se utiliza muito bem; nas mais diversas idades, ela incita os uma outra improvisação. Desse modo as trocas passam pelo

2 18
canal de outras situações de. criação, para que as rupturas 6
O TRABALH O DO SENTIDO
entre jogo e fala não se radicalize m e que zonas de sombra
possam subsi stir. Espero que a verbalizaç ão não seja a
maneira exclusiva de avaliar um trabalho. Ela está antes a
s.ervi çó das retomada s , dos prolongam entos, das reinven-
ções. A "teorizaçã o" ponderad a que ela exprime encontra l

;
I
sua razão de ser quando se inscreve de modo direto no inte-
rior do trabalho.

É paradoxal considerar a reprise de uma improvisaç ão, refazer um


~ ato que se define em geral pela invenção e pela novidade. No
'

~
entanto, o sentido se trabalha. Não na esperança de alcançar uma
verdade superior ou um sentido supremo. Proponho uma multipli-

I cação das tentativas, uma apologia do ensaio. Se considerarm os que


a criação se define pela originalida de, pela ruptura com o já exis-
tente, pode-se pensar que ela se prepara por utn enriquecim ento
...;.
.do terreno, pelo entrelaçam ento dos possíveis. A alternativa não
está nem ·en1!e os balbucios de uma criatividad e logo satisfeita e
esgotada, nem: no acesso direto a uma criação marcada pela certeza
do selo da invenção. Existe um intervalo definido pela busca, onde
as tentativas se multipli~ e os ensaios fazem par~e do trabalho.
O acesso- à criação não é fornecido a tó.d os automatic a-
mente. Mas .o criador não chega armádo à obra. O espaço
intermedi ário da oficina se abre como um lugar de relação
com o real e com a arte, como o campo de confrontaç ão do eu
consigo mesmo, do eu com os outros e do eu com a realidade.

220 22 1
Sobre a multiplicação dos estereótipos dessas referências que nos acompanham na corrente ou na
contr acorrente das coisas, que fazer dos elementos da sub-
Em todo trabalho artístico o estereótipo é o vilão daqueles que cultura, por vezes insistentes, que testemunham que a cultura
se batem com os problemas da criação. Ele é a armadilha do não é um conjunto homogêneo, dado ao homem como garan-
· iniciante , o sinal do fracasso. O pavor dos.clichês leva ao esvazia- tia de seu desenvolvimento, mas um amálgama de estratos
mento de todo desejo de experimentar, pois sabemos que, não em que se leem hierarquias, relações de força, alteridades,
importa o que se faça, "eles" aparecerão, tanto sobre a página em numa palavra, interesses? 7
branco como no espaço vazio. Quando o medo do estereótip o
não existe, ele se insinua em nome da orig.inalidade a todo preço. Seria um equívoco rejeitar muito rapidamente a banalidade,
Lugar-comum da expressão, degenerescência da criação, o cli- uma vez que ela traz consigo uma quantidade importante de
chê tem péssima reputação. No entanto, devo confessar que ele signos que pertencem a nossas culturas. D e onde vêm os cli-
me interessa como marco de uma experiência, signo modesto chês, como eles nascem e perduram , como eles constituem
de uma tentativa, índice d~ pertencimento a um modo de pen- referências para grupos sociais e culturais, eis as questões rela-
sar. O inverso do estereótipo, o acesso à criação, manifesta-se tivas a um trabalho sobre os clichês.
por uma quebra do código, pela produção de uni deslocamento, Em determinadas circunstâncias não afasto o clichê em
pelo reconhecimento da originali~ade. Esse conceito de origi- nom·e da criação, mas provoco, ao contrário, a multiplicação
nalidade tem dois gumes. O medo de "cair nos clichês" é tal que, dos clichês em torno. d e um tema ou de uma ideia. Acredito,
na falta de originalidade verdadeira, as pessoas contentam-se com efeito, que a ~bundância do materi~l altera o modo de
frequentemente com o engodo da bizarrice. Ora, a obscurida- lid:rr .co1n: ele. ~or exemplo, em um trabalho efetuado por
de, a incomunicabilida de, o vago não asseguram que estamos de imagens individuais instantâneas em torno da palavr~ "tea-
fato em face de uma criação. Desse modo, a busca da novidade a tro", o núme ro de respostas que obtemos é proporcional ao
qualquer preço guarda tantos pe;rigos quanto o refúgio prudente núméro de participantes. O suporte (uma só imagem fixa),
no estereótipo. Não vou·tampouco fazer aqui a apologia do lugar- o modo de produção (nenhuma reflexão prévia), não asse-
comum, mas esses traços cultuJ:ais me parecem merecer mais do guram a "seriedade" das respostas. Isso quer dizer que elas
que o desprezo. Como diz Jean-M·arie Piemme: não valem nada porque n ão foram revestidas de precauções
verbais e de garantias ~ulturais? Algumas delas remetem à
O que fazer, com efeito, de mil coisas que intervêm no per- commedia dell' arte, outras ao voyeurismo; quase todas ilus-
curso do simbólico que todos nós traçamos diariamente, tram o teatro por modos gesticuladores, que privilegiam

222 223

·'
um teatro muito "~xterior". Elas são interessantes porque não elimina a banalidade, ajuda a nomeá-la, a delimitar seus
se confrontam num mesmo espaço e porque observamos contornos, ao invés ·de ela ser considerada evidente por todos,
nelas representações mentais mais ou menos ocultas habi- quando nem sabemos ainda com certeza sobre o que falamos.
tualmente. Não existe propriamente a "resposta certa" nes- A questão de saber se conseguiremos superar essa banalidade
se contexto, isto é, uma imagem nova e satisfatória para o é relativamente secundária. A abertura da oficina não garante
grupo. Indissociáveis umas das outras, as respostas se agru- a realização do trabalho ou seu sucesso, mas ajuda a mensurar
pam em alguns caleidoscópios que contam um pouco acerca as dificuldades e os desafios desse trabalho, força o contato
de nossa relação com o teatro. Tal relação implica necessa- com a materialidade das tarefas. A aprendi~agem estética e
riamente estereótipos como o de virar os olhos ou de erguer cognitiva se coloca aqui no campo da atividade, e não no cam-
os braços em direção aos céus. Eles não dizem de maneira po da contem_p lação ou da análise das obras alheias. Para que
absoluta "o teatro", mas revelam uma parte de nossas rela- servem, então; dez "fracassos", alguém objetaria, se o sucesso

I
ções culturais com ele. está ~om certeza fora de a~cance e conduz às trevas aqueles
A~tes de nos apressarmos em "superar" os estereótipos, que não acederão jamais à condição de criador, pela incapaci-
talvez valesse a pena, em algumas ocasiões, examiná-los. Que dade de criar a diferenç~ que os consagraria como inovadores?
. imagem do teatro se insinuou entre os clichês produzidos dian- Sou a favor de uma pedagogia da prospecção, do tateio, da
te de nossos olhos? Não seria útil tentar delimitá-la, ainda que interrogação, e não a favor d e um ensino de certezas.
fosse por abordagens simples, ao invés de deixar acreditar que Estamos seguros de que um ensino do teatro esteja a
a resposta ideal encontra-se nas cabeças? Se acreditamos que salvo do academicismo, verdadeiro obstáculo tanto para o
jogar é fazer, é inevitável que a atividade engendre banalidad~s pedagog<? como para o artista, ou desse neoacademicismo
e imprecisões. Mas seria bom que as _próprias pessoas _q ue pro- que rem~te às mesmas dificuldades? É preciso uma boa dose
duzem os clichês pudessem julgat, a sua falta de interesse e o de ·humildàde para que "não-especialistas" se arrisquem na
seu caráter equivocado. Se não tiverem consciência disso antes produção. A observação dos clichês cria falhas nas certezas
dessa produção~ elas têm a possibilidade de trabalhar a partir estéticas ou ideológicas. Essas falhas remetem dolorosamente ·
da expressão concreta de suas tentativas. às difiClildãdes para "fazer'' e equivalem a pequenas vitórias
· · Podemos este~der esse r~ciodnio a um trabalho de impro- sobre o acabado, o muito polido, o definitivo de bom gosto,
. visação. Uma improvisação sobre uma situação é considerada a obra entregue pronta. Esses são os signos de uma dinâmica
banaL Dez improvisações sucessivas em tor~o da mesma situ- da criação, a manifestação que um olhar opera sobre o mun-
àção são julgadas do mesmo niodÓ. O número de terttativas do, pacientemente.

225
O direito ao acaso . de todos pela intervenÇão do acaso, provocando um interesse
mais agudo nos grupos pequenos de trabalho, ansiosos com o
Deixar intervir o ·a caso no estabelecimento de um roteiro, sorteio e com o que lhes reserva a sorte, ainda que a sorte não
na busca d e um espaço , na construção de um personagem é seja um desafio real. A "intenção" não vem nem dos jogadores
·outra tentativa para dar jogo aos estereótipos e também para nem do formador, talvez nem mesmo exista intenção. Como
capturar o sentido com ferramentas diferentes. Não vou me diz Lacan: "O que queremos dizer quando dizemos que alguma
referir aqui às grand es correntes artísticas que poderiam ser - coisa ocorre por acaso? Queremos dizer duas coisas que podem
vir de modelos (o surrealismo, o dad~smo). Nossos objetivos ser muito diferentes - ou que não existe aí intenção ou que aí
são mais modestos. Trata-se de introduzir nas lógicas mentais existe uma lei". A liberdade do grupo se manifesta na recria-
acidentes voluntários capazes de criar éo~binações diferen- ção de uma intenção ou na descoberta de uma lei que teria
tes daquelas que seriam esperadas ou convenientes, esperando presidido à criação das instruções. O sorteio reúne elementos
extrair delas algum proveito dentro do campo criativo. Num de uma instrução que parecem incompatíveis. De acordo com
segundo momento, trata-se de, modificando os elementos, o grau d e dificuldade almejado, aumenta-se a quantidade de
criar situações em que os participantes são confrontadÓs com elementos sorteados e as obrigações ligadas à sua organização.
a surpresa. Eles devem encontrar soluções, adaptar-se a uma • No trabalho sobre o espaço (ver capítulo). as relações espaço/
situação cujas características estão abaladas por uma ordem t lugar referencial são sorteadas, obrigando os jogadores a se
alheia à vontade deles. Em terceiro lugar, e não menos impor- t adaptarem ao lugar designado e a torná-lo verossímil para os
tante, o acaso dá jogo às situações·mais convencionais. A pro- espectadores. O sorteio também pode lhes impor um tercei-
.
posta consiste -
entao em ''organizar
.. . . . '' :
ao acaso
fi
·;,
í.. ro elem~~to 1 p_o r exemplo, uma situação. Cabe aos jogadores a
...
~·;
~
liberdade de decidir personagens e a -organização de seu espaço.
Processo ~
f
• o ·sorteio"permite prever pontilhados , espaços vazios a
serem preenchidos, como nos clássicos exercícios escolares.
o
Algumas instruções simples são sufiÇientes para organizar aca- Por exemplo, duas identidades de personagens sorteados
so. Cada um inventará as suas de acordo com as circunstâncias, por um grupo de quatro permitem a escolha dos perso-
tentando preservar os rituais de jogo definidos por sorteio. Os nagens complementares. Diferentes grupos que obtêm os
jogadores não dispõem·mais da liberda:de da página .em branco mesmos dados comparam a~sim as suas in~nei~~s de com-
e também não dependem mais de uma indicação dada pelo· for- pletar a distribuição dos personagens e de inventar uma
mador. Para ser mais exato, essa ínstrução é estabelecida diante situação. Um grupo ao qual o sorteio impõe ·o personagem

226
227

•'
I •

de ~a criãnça de doze an~s decide fazer dela o pivô de um variações são interessan tes. Dois remete ao casal e a t o das as
conflito familiar, de uma aventura escolar ou se esforça para formas de face -a-face. Três é a cifra da ex~lusão, das combi-
escapar desses assuntos familiares, associando o personage m nações dois e um com um "terceiro excluído". Qgatro impõe
a uma fábula m enos convencio nal. O acaso induz fortemen- a dificuldad e do paralelism o dois e dois e torna o funciona-
te uma situação; a reação dos jogadores os estimula a escapar mento do grupo difícil. Quanto maior o número de jogadore~,
dessa situação d e modo tão deliberado que eles estabelecem mais a invenção se torna delicada, pois cada jogador tem difi-
jogo com a própria instrução. c~d.ade em encontrar seu lugar. Pode-se iniciar um t rabalho
O s dados sorteados são redigidos previamen te p el o forma - sistemátic o a partir de cifras, fazendo intervir o acaso e com-
dor ou criados no ato pelos jogadores , que decidem desse parando as inv~nções.
modo um corpus no interior do qual int~rvém o acaso. Todas
as soluções mistas d e redação facilitam a mistura dos dados Limites do acaso
e a variação das induções. No entanto, !iConteceu d e alguns
jogadores b em -intencio nados ou "literários " demais redi- o aca;o introduz a tentação do jogo puro, a apologia da gra-
girem textos tão rebuscado s que não levaram em conside- tuidade. Ele subentend e que tudo é igual, que o sentido não
ração as combinaçõ es obtidas p elo sorteio. Ap6s discussão, .' .
~: tem grande importânc ia e coloca as soluções fora da respon-
concluiu-s e que alguns queriam "confundi r" seus parceiros sabilida?e dos indivíduos . A multiplica ção d os exercícios base-
com text~s complexos sem pensar que o acaso tinha o poder ados n o acaso dá uma dimensão lúdica imediata a uma oficina.
de fazer essas.armas se voltarem contra eles próprios. Tudo se torna jogo, assim como tudo pode depender da sor-
• O acaso pode decidir a formação dos grupos de improVisaçãq, te. ~ sistematiza ção dessa atitude correspon de à ·anulação do
r eunindo imperativa mente jogadores que perdem a liberdade livre-arbít rio, como se todas as soluções acidentalm ente sur-
de escolher e devem adaptar-se a ~eus parceiros. Essa situação gidas ·se equival~ssem. Uma estética fundada no acaso pode
se mostra rica em surpresas. Quando el~ é imposta sistematica - conduzir ao abandono de to~a responsab ilidade na criativi-
mente, é coerciva demais para o int,e ressê p ersistir e as configu- dade, já que sua lógica é a busca de um elemento .supremQ
rações se renovarem . Aliás, alguns j0gadores r~agem muito mal que produz õrganizaçõ es superiores àquelas que pudessem ser
à obrigação de negociar com parceiros q~e não es~lher~. encontrad as pelo espfrito humano agindo sozinho. A fantasia
da duplicação da aposta está ligada à ideia d e con,trole do aca-
O número de jogadores de uma improvis~ção é um dado que . so, mas, no limite, .o "melhor" sentido seria aquele que não se
influencia· considera velmente o
decurso do · jogo. Todas as controla d~ nenhun'l.a maneira, aquele da ordem do divino. .

228
229
Vantaa!ns do acaso cabe a cada um dar-se o dir~ito a um acaso voluntário, isto
é, à expe~imentação. Desse ponto de vista, pouco importa
Não vou me filiar exageradamente à ideia de que "não há acaso" e que se saiba dominar as técnicas - aliás bastante simples - da
de que todos os esforços que renovam os elementos ficcionais escrita automática ou do cadavre exquis. A substituição de uma
terminam por se anularem ou por se inscreverem em uma l6gi- competênCia limitada por um agente exterior não desenvolve
ca profrmda. Numa distribuição casual dos elementos que deci- a competência se o sujeito se entrega mecanicamente a esse
dem sobre um encontro no interior de uma improvisaçã~, inte- agente exterior. O acaso me interessa quando rompe os este-
resso-me menos pelo sorteio propriamente dito do que pelo re6tipos, mas também quando os reforça e os sublinha. Elimi-
modo como os jogadores o agenciam. Po~co me importa, em nado o acaso, .como os jogadores se autorizam por sua vez a
definitivo, que o produto d o acaso seja inovador ou banal se, nas .. j_o~ar com os estere6tipos, a criar voluntariamente o inédito,
transformações que o acaso introduz no curso do pensamento, a correr riscos? Se o sorteio cria condições forçadas de uma
os jogadores não se confrontam com as obrigações que, sem tomada de risco, eu ousaria, na vez seguinte, dar a mim mes-
ele, não teriam encontrado ou que não teriam sido impostas mo uma instrução que tne engaje igualmente? O criador é
diretamente pelo condutor do jogo~ No microcosmo das impro- aquele que ousa dar a si mesmo instruçõ~s graves e as leva
visações, o acaso intervém como o destino, rompé o desenrolar até as últimas consequências, mesmo se coiocando em risco
previsto da biografia dos person~ge.x;>-s, criando as condições de o seu savoir-:faire e sua bagagem. O acaso é bem-vindo p elos
uma fissura ou de uma falha. Que fazemos n6s com ,essa falha? meandros que desenha e pelas portas que abre. O jogo com o
Ela é registrada como um elemento do jogo que dá um pouco acaso não termina quando a profecia foi emitida - ele começa
de oxigênio a um personagem até então 'p(n.icó inventiva? Será com a su~ interpretação.
qu~ ~la é um estimulante para a pessoa que, uma vez a~toriza­ .'
da pelo sorteio a se arriscar ao desy:io, a explorar as margens,
.
ganha em invençã? ou em autonomi~'? Ou antes, uma vez r~gis­ Cruza~entos e retomadas
trado o excesso, passadas as ondas do' choque, a pessoa re~or­
na ao curso previstQ da hist6ria? ~ara mim, o acaso não é uma Ap6s as improvisações, ap6s as situações de tomada da fala, o ·
alternativa a uma imaginação vacilante. Ele cria as condições da sentido p0de ser colocado em questão por um conjunto de
surpresa, a excitaç~o iiúCial favorável ao jogo. . mudanças de perspectiva, de variações de mgulo, um sistema
Cabe depois aos jogadores tirar proveito imediato, apren- de. "reprises".
dendo com o acaso que ele f~ bem (ou mal) às coisas, mas que

230 • !' 231


Mesm~s joaadores, mesmo joao explorado pelo grupo, já que ele o conhece e são esperados do
encontro situação/ espaço novos efeitos de sentido: Desse modo
Após tomar conhecimento das impressões dos outros parti - pode ocorrer de uma mesma improvisação que tenha interessado
cipantes sobre sua improvisação, um grupo decide fazer uma muito o grupo maior ser rechaçada por todos os grupos peque-
· nova tentativa. Os jogadores levam em conta , se desejarem, o
que ouviram, mas sabe-se que essas opiniões são muitas vezes
. nos. Esses cruzamentos destacam a plasticidade das ferramentas
dramáticas e as consequências desencadeadas pelas modificações
I
contraditórias. Eles permanecem sendo os responsáveis por ! formais, tanto do ponto de vista do sentido quanto do ponto de
todas as decisões e, eventualmente, retomam o trabalho em l vista da 'emoção. Os participantes captam a importância da subs-
função de suas próp:t:ias impressões. El~s transformam radi-
calmente seu roteiro inicial ou fazem apenas modificações de
detalhe. Eles transformam o espaço, introduzem personagens l tituição de UJ?a pessoa, mesmo que ela endosse o mesmo per-
sonagem da versão inicial. Do mesmo modo, uma mudança de
espaço tem·consequências que sempre ultrapassam o mero inte-

I
diferentes, tornam o enredo mais complexo, mudam o final, resse formal. Uma retomada serve para explorar um elemento
r efletem sobre p estilo de jogo ... Esse tipo de retomada é deli - particular, wna mudança de ponto de vista pode fazer com que
cado, a não ser que os jogadores encontrem para isso novos o trabalho se oriente numa nova direção, permitind~ que se veja

l
desafios. Refazer raramente suscita entusiasmo, mesmo que os a riqueza e a fragilidade do material dramático. Esses fenômenos
jogadores tenham percebido do ~esmo modo os pontos fra- de eco incitam, assim, à multiplicação dos pontos de vista, tes-
cos de sua improvisação. Portanto, seria útil encontrar outros tando transforma9ões formais. Elas dão aos grupos un1a imagem
meios de motivar uma progressão. diferente de sua atividade. Cada indivíduo e cada grupo pequeno
têm_um~ responsabilidade particular, mas todos concorrem para
Improvisações cruzadas a progressão global do grupo maior, pelo cruzamento das falas
individuais .e coletivas em torno de uma mesma tarefa.
Após uma primeira passagem das improvisações e das interven-
ções verbais, o.s grupos são. convida~ os a retomar, à sua maneira, Reações ao joao pelo joao
o tema de uma improvisação que tenha lhes chamado a aten-
ção, que tenha lhes interessado parti_c ularmente. Ess~s trocas de Para que não se cristalizem hábitos, esforço-me para variar as
grupo para grupo se fazem livremente ou segundo indicações int~rvt::nções que se seguem às improvisações. A verbalização
que tornam obrigátórias modificações formais. Algumas reto- pode ser substituída por jogos dramáticos ou por novas impro-
madas são feitas, por e:?Ceinplo, a· partir do espaço inicialmente visações que fazem circular o sentido diferentemente.
. .
~

233

No final de uma impro~sação, sem que nenhuma outra A OFI CINA DE JOGO COMO LUGAR
trõca tenha sido re~lizada, convido os espectadores-jogadores DE CR I AÇÃO E DE PESQUISA
'aprolongar o trabalho recém-~sto de diferentes maneir as:
• eles improvisam ime diatamente (sem roteiro) no mesmo
espaço, sem outra instrução além da de "re~gir" àquilo que
acabaram de ver;
• eles improvisam um ou mais finais diferentes, caso o traba-
lho se apoie numa narrativa;
eles retomam um ou vários personagens considerados interes-
If
santes, fazendo -os explorar, eventualmente, outras direções; I·
..
• eles improvisam segundo um estilo de jogo diferente ou
mai s definido ; Lugar de aprendizagem e de domínio progressivo de algumas
• eles empreendem um trabalho com imagens fixa~ que expri- ferramen tas de expressão, a oficina de jogo teatral tem outras
mem aquilo que viram, compreenderam, sentiram. aml;>ições além da repetição e da difusão de formas culturais
têatrais - já digeridas, adquiridas? Seria ~t-ópico queímar as
Essas intervenções indicam que o. trabalho de improvisação etapas de uma aquisição técnica rigorosa e, apesar disso, espe-
não é fech ado e que uma retomada exterior, sem se sobrepor à r ar a produção de jogos dramáticos que rompam com o que
proposta inicial , se manifesta como a expre~são de um eco que já foi visto e ouvidq centenas de vezes? Em seu ensaio "Notas
os jog~dores da primeira proposta ouvem, por sua vez, 'e que sobre a cr_iaç~o~', 8 Jean-Marie Piemme escreve:
;
pode alimentar o seu trabalho. , I
i
~\ . l l · A i_
d eia de criação implica também a de ruptura. Pode-se
até afirmar que toda Criação. profunda implica uma distância
i.
••• 1
. • I. que pode chegar à mais co~pleta incomunicabilid~de. Toda
' ' criação é potencialm~nte plena de ilegibilid~de. Postulado
inver~o: naquilo que é simplesmente legível por todos, a
:1
..
\ criação cedeu o pass~ à repetiÇão e o estereótipo reina [. .. ]
Em outras pal~as, urna criação in?ediatarnente utilizável por.
; '
todos é como um carn~iro de cinco patas, não existe.

234
Um trabalho de criação num espaço pedag6gico nos situa de repetição de receitas já aprovadas. Os textos dramáticos não
imediato dentro da utopia. "Criar não é reunir, é, antes, excluir, escapam a essa Jei. Um 't exto antigo, um clássico é considera-
produzir a diferença", diz Piemme. Curioso paradoxo esse de do uma criação se em sua representação surge uma visão dife-
uma oficina cujos objetivos seriam o d e comunicar muito e o rente, se aparecem redes de sentido até então insuspeitadas,
de reunir às vezes, mas que apesar disso se coloca esse postu- ou que ganham um relevo particular em relação ao contexto
lado da invenção, da diferença e da ruptura. Um lugar peda- social. Um texto "novo" não é uma verdadeira criação se ele se
g6gico pode escapar das regras da imitação prévia, das leis da apoia em regràs dramáticas canônicas, se trata de um assunto
produção/ compreensão da maioria, sobretudo quando se tra- desgastado numa linguagem convencional. O autor e o ence-
ta de não-esp ecialistas? . nador s6 são criadores plenos quando impõem as condições
Quando uma oficina de jogo não fornece modelos de para uma ruptura, ainda que parcial, com o existente, quando
imitação, não impõe "padrões" a serem reproduzidos, ela eles participam do surgimento de formas novas.
conta com a invenção. Apesar disso, essa invenção potencial É, assim que às vezes ~ssistimos, por ocasião do ensaio
está contaminada pelas ideias que os jogadores têm da estética de espetáculos, a curiosos fenômenos. Ocorre que um traba-
teatral e daquilo que sé diz e se faz nos teatros. A improvisa- lho audacioso e ambicioso comece a se desenhar e, logo em
ção não é garantia de um produto original, saído inteir~men­ seguida, se opere uma espécie de recuo nos dias que precedem
te pronto da imaginação do improvisador; como já dissemos, o encontro com o público, como se os riscos assumidos até
muitas vezes a improvisação se limita a esquemas familiares e então pelos criadores os atemorizassem no último momento
a estere6tipos. Como poderia o jogador ser capaz de um ato e eles recuassem para soluções mais seguras. Toda criação é
criativo se ele vive uma esp~cie de aprendizagem e se, d éntro um risco ,q ue exige.uma coragem particular entre aqueles que
de um período, segundo a tradição. ele deve imitar m~delos t~m o sentimento de estar à frente. Por outro lado, os hábitos
antes de sonhar com obras pessoais?;:. . da Vida cultural fazem do teatro um grande cons~dor de
Desviemo-nos pela questão d;j criação na vida teatral "novida~es". De modo. que, normalmente, é recebido como
profissional, interroguemo-!los sobr~ essa é:apacidade de novi- novidade aquilo que o mais das vezes não passa de um modo
dade que às vezes é atribuída de: modó precipitado ao campo de "aproveitar os resto~" para se dobrar às leis da moda e do
cultural. A criação dramática não se limita ao savoi~:faire. O mercado. A constatação· da novidade é difícil; a incomunica-
teatro profissional francês produz a cada estação centenas de bilidade· total e o fracasso de um espetáculo não garantem a
espetáculos qu~ não. são criações, no. sentido colocado por autenticidade do projeto. Porém, muitas produções se ornam
Jean-Marie Piemme. Muitos desses espetáculos se limitam à com os atrativos da modernidade, maquiam-se segm;.do os
. ~·

237
ditames da moda para q~~ a ruptura com o já conhecid o seja que nem a pedagogi a nem a vulgariza ção estão em alta, o tea-
bem aparente e que o risco cuidados amente calculado se torne tro volta a impor a imagem do artista que persegue sua obra
um fator de êxito. A. crítica e os espectad ores são, portanto , solitariam ente, estimula ndo os espaços de formação a reabili -
cauteloso s diante da novidade . A incompr eensão passa tanto tar valores individua is e a sacraliza r a expressã o pessoal no ato
p elo signo do sucesso quanto pelo do fracasso. Todos, temendo criativo.
não identifica r a obra -prima, tendem a incensar o hermetis mo, Tendo em vista essas contradiç ões e armadilh as, somadas
por mais gratuito que seja. É assim que às vezes só são consa- ao fato de que, como sublinha Piemme , "a sociedad e francesa
grados simuiacr os, a espuma - criada pelas modas. ligou estreitam ente arte e cultura, socializa ndo a obra como
Nesse contexto o participa nte de uma oficina está circuns- a joia suprema da cultura" , como podem as oficinas - que
crito a modelos diferente s: ora se coloca como conheced or a não produze m obras propriam ente ditas (no sentido em que
par da vida teatral contemp orânea, ora está preso à lembran- essas seriam repertor iadas no campo cultural )- encarreg ar-
ça de modelos escolares e de formas desgastad as amplame nte se da criação e da pesquisa , sem cair na caricatur a de saudar
divulgad as pela mídia. Os estereóti pos podem tanto se desen- a menor manifest ação expressi va como um ato criativo e
volver segundo uma "modern idade", atrás da qual cada um é inovador ? Parece-m e que a p edagogia do jogo 'incita à inova-
estimula do a correr, quanto segundo uma "qadiÇão " perpe- ção, já que nenhum a solução é dada antecipa damente e não
tuada sobretud o pelo teatro de bulevar. Entre o h ermetism o
existe resposta exempla r. Seu estatuto de experim entação
chique e a vulgarida de comum, cada 'um escolhe segundo sua
permane nte, de ensaio perpétuo distingue -a de uma peda-
cultura artística e as mais recentes influênci as. A armadilh a do gogia da imitação , na qual seria o caso de seguir um percur-
estereóti po "moda" é mais insid?-osa que seus equivale ntes 'tra-
so de iniciação cujas etapas seriam fixadas previam ente assim
dicionais ;. o jogador- conheced or a par das modas talve~ s~ dei- I
: t· e cujas no~as seriam repertori adas. Essencia lmente, o jogo
xe mais facilmen te enganar pelas apar~ncias da criação. Assim,
se opõe _à escleróse ; a distribui ção das cartas é renovada e
durante alguns anos o modelo de uma "boa" improvfs ação ~.. redefinid a incessan temente .
desenvol veu-se de acordo com regras ªe um teatro não-verb al;
Nas oficinas de jogo, nós enfatizam os a importân cia do
centrado no corpo e em sua expressã o imediata .' Durante os risco e do engajam ento pessoais~ que são elemento s anterio-
anos 1 97o, a tendênci a foi de re~onhecer como "criaçã?~ os res à cri~ção. Esse engajam ento do individue:> é indispen sável
vagidos· ~ os sobressa ltos que cari~aturavam, com certa dose para que ele encontre énergia para romper·com aquilo que já
de boa vontade, a voga de fundo que se esforçava em reabilitar
sabe fazer e se aventure em_caminho s que ainda não conhece.
Um corpo ignorado pelo teatro dominan te na época. Hoje, em O jogador está sempre colocado entre o desejo de sentir-se ·

2J9
. t

seguro nas águas mornas do lugar-comum, engajando-se o Raramente essa progressão se traduz por um movi-
mínimo possível e produzindo apenas signos familiares, e o mento ascensional harmonioso, mas ela procede por pulos,
~esejo de avançar que o r etira de seus refúgios habituais. Essa retrocessos, saltos decisivos. Daí o desprezo por uma cria-
tensão e essa alternativa são familiares ao criador (ao autor, tividade que desabrocha no seio de um grupo sem jamais
aó encenador, ao ator), dividido entre o savoir:faire antigo e se. chocar com normas sociais reais. Fenômenos de ilusão,
o desejo de superação que o incita a se renovar. De forma engendrados e mantidos pelo grupo, consagram como "cria-
similar, ~esmo que o j ogador não esteja numa situação real tivos" e como "originais" produtos que, em outro contexto,
de criação, ele é estimulado por instruções que o instigam· a não teriam chance alguma de serem valorizados, sobretudo
se arriscar e o fazem os.c ilar entre um desejo de superação e : no campo cul~ural. Essa proteção é, no entanto, indispen-
a possibilidade de um recuo a zonas já exploradas. Ninguém sável para qu~ t~dos possam querer agir. Ela se torna peri-
é criador por simples decisão. O jogador é, portanto, condu- gosa quando mantém a ilusão, entre os membros do grupo,
zido a expl~rar margens, a caminhar ao lado d e suas próprias de que não há nenhuma separação entre a oficina de jogo e
fronteiras e cabe a ele escolher o lado em que cairá em caso o mundo. Daí a importância- do formador, que tem como
de acidente. Entre o familiar e o desconhecido, ele se con- uma das funções lembrar que existe um filtro de seguran -
fronta com situações ins6litas para ele, sab endo qúe é o único ça entre o jogador e o mundo, mas que essa segurança tem
a mensurar _os riscos reais de tais situações. 4ois gumes. A improvis~ção facilita a invenção no interior de
:No entanto, nem o jogo nem a improvisação conduzem um espaço privilegiado, o do jogo. Mas ela sofre influências
a terrenos absolutos, nem são repertoriados no campo cultu- ext ernas, e a referência ao murido precisa intervir a cada vez
ral oficial. Os valores se relativizam em função do indivíduo . que -um~ tentativa criativa faz perder de vista a existência
que os produz. Nesse contexto, o ato criativo não exis~e d_e _dessa prote~ão. O jogo dramático é o lugar de uma cultura
maneira abstrata, dentro de uma escala de valóres exterior ao que não se elabora nas esferas elevadas da criação art:lstica
grupo. Essa particularidade fornece ao jogo improvisado seu pura. Ele é o lugar de inscrição ~e signos e do surgimento
interesse e seus ~tes. O ato prodtizido é àntes uma ruptu- ~e camadas de sentido cujas origens são múltiplas, marcos
ra em relação a si mesmo, ele sÇ> é avaliado em fw:lção dessa na vida pessoal e na vida social que alcançam, assim, o sim-
escala íntima. Os riscos são avaliados ·.e m função do que cada bólico do qual ~ntrev~mos diariamente os contornos.
um sabe fazer e começam com tentativas que seriam vistas e~ · Gostaria de retomar, a prop6sito da experiência de jogo,
outros cont~xtos como modestas. A "progressão" é individual,' o que Ja~ques Lassalle9 diz da representação teatral, pois os
depende naturalmente da duração da oficina .. desafios me parecem ser da tnesma natureza:
O teatro que imagino não é um teatro para rir ou para prosear:
ele s6 se realiz~ de fato no sensível, no vivido do espectador.
Um teatro que abala, interpela, perturba num nível em que
todo indivíduo é convocado [ ... J O teatro não é realizado para
nos conciliar com o mundo, que vai mal, mas com nós mes-
mos dentro desse mundo, com aquilo que passainos o tempo
ignorando soberbamente: o instante, naquilo gue ele tem de
único e que não sabemos viver como tal; urna relação com
alguns objetos, com sensações, a plenitude de presenças, quer
passem pela palavra, guer pelo silêncio ...
REFLEXÕE S SOBRE AS FUNÇÕES DO FORMADO R:

O DISTRIBU IDOR DE JOGO

: l

Se eu traçasse o retrato falado do "distribuid or de jogo", iria


contra tudo aquilo que já foi dito. Assim como não h~ recei-
tas absolutas nas práticas descritas, não ~á perfil ideal que
correspon da a uma formação exemplar. As qualidades e os
. '
defeitos individuai s orientam o estilo de uma prática, um
conjunto de detalhes decide a atmosfera de uma oficina ou de
um ~stágio. Alguns comportam entos, não ·totalment e negati-
vos. em s~ mesmos, não me parecem entretanto correspon der
aos. objetivos perseguid os, ou seriam mais convenien tes em
,,., outras situàções. Ninguém escapa completa~ente de uma das
tendên.c ias enumerad as abaixo. A condução de uma oficina
.'
I
consiste por vezes em navegar entre esses diferentes obstácu-
los. A ~eguir não procurarei , portanto, definir o formador pelo.
que ele é, mas pelas tarefas e pe~as atividades concretas pelas
quais é responsáve l.
·.

24-) .
O QUE O FORMA DOR NÃO É... OU O MENOS POSS(VI !I.

Um observ ador mudo mas que tem opinião

Não importa o que aconteça, ele não diz nada e se protege


por detrás de uma máscara impene trável. Crivado de ques-
tões, ele deixa por vezes cair urna fórmula lacônica que caberá
aos jogadores interpretar, e. as possibilidades de interpre tação
são amplas. Radical, esse compor tamento parece ir além dos
domínios que nos dizem respeito. No entanto , a observação
muda oriunda de outras prátiéas (a dinâmica de grupo, for-
mas ·de terapia) perman ece uma tentação cada vez que uma
situação escapa ao controle. Encontr am-se, assim, por vezes
caricatu ras da orientaç ão não-diretiva que mascaram a incom-
petênci a. Se é indispensável que o formad or saiba observa r
e se calar, é impossível reduzir suas funções a apenas essàs
características, fontes de inquietação em um grupo centrad o
em tarefas.

247
Um modelo Um aprendiz de feiticeiro

Experimentado em toda~ as forn'las de jogo teatral, ele mul- Formado recentemente, ele lança, impe~turbável, propostas
tiplica os exemplos que ele próprio executa. Dinâmico, ele de jogo que acabou de descobrir. Ele jamais calcula os riscos
· mobiliza as energias em torno de si mesmo toda vez que joga e a que expõe os participantes e, em busca de novidade perpé-
mesmo quando não joga. Sua experiência, de fato importante tua, segue em frente sem inquietar-se com os estragos. Mais
ou amplificada pelo discurso, incita os jogadores a imit~-lo e ponderado, ele poderia enriquecer-se com experiências novas
os desencoraja: jamais eles conseguirão. ou fazer avançar a pesquisa. Mas o caráter científico de um
Nascida por vezes da frustração de não jogar,. ou de não . trabalho não lhe diz respeito. Ele reproduz exercícios que não
jogar mais, essa atitude é. também típica de ~m modelo peda- assimilou e se apressa em procurar outros sem ter tido tempo
gógico em que se mostra como fazer antes de mandar fazer. ·- de avaliar o interesse deles ou de insuflar-lhes um toque pes-
Aqui, ela se opõe à experimentação e à de$coberta. soaL Se ele aprende algo, isso só se dá à custa dos outros.

Um gentil animador Um velho sábio

Sempre sorridente, ele está de acordo com todo inundo e Nada jamais o surpreende porque ele tem uma sólida expe-
sobretudo .c om o último que falou. Seu bom humor é sua riência. Mas está convencido de que ela não pode servir em
a
competênda principal e se torna palavra de ordem no nada p~ra? grupo. Nem sempre ele está errado ao deixar os
grupo. Inimigo de todos os conflitos, ele os evita c?m cui- partidpante"s teritar uma direçãQ que ele sabe fadada ao fra-
dado, ·nunca enfrenta ninguém e fmpede todos os enfrenta- casso. Màs por que ele deixa incessantemente transparecer
mentos. O grupo torna-se, por slia amabilidade, um micro- seu ceticismo e só manifesta suas certezas quando é tarde
i .
cosmo idealizado onde todo· mundo se sente bem e onde o demais? Esse conhecimento antecipado de tudo o que pode
amor circula.. Os. trabalh?s pr?pb~tos nã~ estão sujeitos a se produzir dentro do grupo transparece em sua maneira de
nenhuma crítica que possa romper ·esse estado eufórico. O dar instruções e. pelo olhar enfastiado que lança a sua volta.
retorno à realidade do mundo exterior pode ser difícil para O tédio~ a rotina o ameaç~m, a menos que ele se deleite
os membros do grupo, mas não para ele: ~le sorrirá em·um em detectar, muito antecipadamente, os primeiros sinais dos .
outro grupo ~ futuros fracassos.

,•
Um conferencis ta maneira excessiva dentro do grupo, ou mantendo-o afastado.
Ora, normalment e o próprio grupo tem meios de garantir o
Com ele o tempo d e jogo não para d e encolher. Tudo é pretex- equih'brio entr~ seus membros. Quanto aos comen tários sobre
to para discursos que ele faz a qualquer momento. Ele fala lon- os jogos, eles não devem assumir uma dimensão pessoal.
gam ente para forn ecer instruções, tanto tempo que é d ifícil se
lembrar do po nto de partida; comenta in.terminavel mente os
jogos e se entrega a digressões teóricas r eferentes às suas expe- Um,catalisa dor de c onflitos
riências anteriores. É difícil encontrar energia para jogar após
os seus discursos. A tentação da palavra vem da vontade de Ele é categ6r~co, toma decisões arbitrárias nos conflitos
querer explicar tudo, de ~ão d eixar nada na ób s_curidade. Se às internos d e u~ grupo pequeno que tem dificuldades para
vezes é interessante que o formador faça exposições t eóricas se entender. Ele-bloqueia as n egociações possíveis, seja desa-
ou generalize um fenômeno, um discurso invasivo impede que gregan$lo o grupo, seja dando razão a um o u vários de seus
os participantes tenham suas próprias experiências e façam membros.
suas próprias análises. Pode -se pensar, também, que nem tudo Não sou partidário de uma intervenção direta nos conflitos,
deve ser sistematicam ente verbalizado. que fazem parte das aprendizagen s no trabalho e representam
uma etapa em direção à autonomia. Esta atitude, no entanto ~ é
discutível , na medida em que os conflitos também paralisam o
Um terapeuta grupo e impedem-no de realizar sua tarefa. O modo de intervir
é uma que.s tão 'd e medida.
Analisa as dificuldades pessoais de um participante que ele
acredita ter observado ao longo de ~ jogo, comentando- as
publicamente ou por ocasião de uma éonversa particular. Ele Um mani~ulador
instig~ um participánte a uma interve,n ção ou lhe faz obser-
vações sobre seu comportame nto dentro do grupo. Uma Aparentemet ;tte aberto e à escuta do grupo, ele afirma não
·'
atitude tão caricatura! é imprová~el. No entanto, não é fácil induzir os tetnas, não pesar abertamente sobre o imaginário
estabelecer limites para os comentários do conteúdo de um do grupo. No entanto, utiliza sua posição privilegiada par~ que
jogo. Um formador benevolente sempre corre o risco de ir o grupo aja em função . de seus pr6p~ios objetivos, os quais
longe demais nessa "ajuda" a um participante, protegendo-o de mantém secretos e estão em contradição com aquele~ que
foram discutidos no contrato inicial. Ele orienta os jogos de dos p oderes dentro do grupo; sob pena de desilusões e de chan-
pod~r em função do que lhe convém . tagens afetivas que prejudicam a formação.
A manipulaç ão é' o grand e fantasma dos grupos e a arma-
dilha na qual cai o mais sincero formador, no desejo de fazer o
bem dos participant es à revelia deles. Os poderes implícitos e Um encenado r
explícitos e as tentações de sedução fomentam constantem ent e
tais r iscos. Regras de funci onamento formuladas com precisão O formador intervém diretamen te nos j ogos e impõe suas
e um contrato inicial que define o alvo comum e os objetivos ideias, suas imagens, suas indicações em função de uma visão
asseguram um funcionam ento mais claro da relação. A manipu- pessoal. Seja porque exerce atividades de encenação num outro
lação vem de uma duplicidad e mais ou men.o s consciente que âmbito, seja porque não pode exercê-la sempre, ele confunde
conduz a um comportam ento diferente daquele inicialmen te perigosam ente os terrenos, utilizando os participan tes como
sustentado . Em casos-limite, o form ador manipula um grupo se fossem atores de um projet o exclusivam ente seu.
para saciar seus desejos p essoais ou satisfazer seu narcisismo . Evidentemente, existem várias maneiras de encenar e de
dirigir atores. Não é desejável que as atividades dramáticas sejam
confundida s com um trabalho de ensaio. Tr~ta-se de en contrar
Umguru um modo de intervençã o que consista em distribuir jogo sem
impor soluções que diminuiria m a liberdade de invenção dos
Pouco preocupad o com os objetivos e as formas de trabalho, ele participant es. A diferença nem sempre é clara e, à medida que o
conta com a ação direta d e su a personalid ade. Tudo passa por de trabalho progride, uma ajuda externa se torna inevitável. Toda a
e por uma mística que ele desenvolve em torno de si. O s p_a rti- questão é s~ber se ~ preciso privilegiar radicalmen te um discur-
cipantes, seduzidos, não trabalham mais' para eles mesmos, estão so,· uma autoridade , um saber, ou manter as trocas entre dife-
a serviço dele e de suas ideias. Esse tip·o de relação é comum . rentes grupos que se enriquecem mutuamen te . .
Existe mais frequentem ente no quadro d,as atividades dramáticas
em que os participant es são mais ~erá~eis do que em outros
contextos, na m edida em .que eles colocam diretamen te em
jogo sua pessoa e a afetividade é muito presente. Não se pode
.negar ·a importânci a da equação pessoal no formador, no entanto
é necessário contrabala nçá-la para um funcionam ento rigoroso
~
.:.. .
FUNÇÕES DO FORMADOR EM ATIVIDADES DRAMÁTICA S

A ori~ntação das atividad~s do grupo e


a negoCiação dos objetivos de trabalho

Seu estatuto e sua experiência lhe outorgam a responsabilid ade


de orientar atividades. Estas nunca são determinadas de modo
definitivo e para todos os grupos sem que haja margem de nego- .
ciação. Mesmo num âmbito institucional rígido em que existisse
.... ... um.."programa", uma oficina de atividades dramáticas se define
por escolha~ e pela negociação de objetivos de trabalho.. Eviden-
., temente nem tudo é possível desde o início e é vão fingir que
se oferecem escolhas a um grupo que nem sempre distingue
bem um leque de possibilidade s, não sendo capaz, portanto, de
optar a partir de um grande número ~e propostas. Por outro
lado, o formador tem seus próprios objetivos e suas próprias
·preocupaçõe s. A escuta mútua é indispensável para os parceiros
discutirem, sempre que possível, o conteúdo de uma sessão ou
a evolução de um trabalho. Mesmo se, como último recurso, o
,.
<
f

formado r impõe orientaçõ es, ele o faz ó mais claramen te possí- O domínio de um estoque de propost as
vel. É preferíve l que sejam negociad os "contrato s", de curto ou
de instruçõ es e de jogos
médio prazo, p ara que os participant~~ não ignorem o tipo de
trabalho proposto e os objetivos almejado s. Nem que seja, ao O arsenal de proposta s de exercício s de que dispõe um forma -
menos, para eles saberem logo que se enganaram de lugar em dor remete aos antigos debates sobre fichas já prontas e trans-
relação à sua d emanda de formação . missões de receitas. A competê ncia nesse domínio não vem da
extensão do estoque, mas do uso que se faz dele. Uma sessão
de trabalho não é preparad a de modo superfici al, mas tam-
A organiz ação do tempo bém não se resume a uma sucessão de exercido s imutávei s. O
formado r adapta-s e às novas situações , sabe jogar a partir de
A divisão do tempo é determin ante para a evolução e a pro - sua~ próprias instru ções, é capaz de reinventá -las, modifica n-
gressão de um trabalho de longa duração (um ano, por exem - do-as, ainda que superfici almente. O prazer do trabalho com
plo). Para uma sessão curta, o ritmo de trabalho que o grupo um grupo também nasce dessa capacida de de redescob erta de
adota é igualmen te um fator não desprezí vel da mobiliza ção
instruçõe s às vezes antigas.
das energias e de sua circulaçã o. Esse fator n ão pode ser de
Raramen te reproduz e uma proposta de jogo de mod<;>
uma rigidez excessiv a, mas a ordem dos exercício s e das idêntico ou uma progress ão muito rígida . No entanto, a capa-
improvis ações , a divisão dos p eríodos de jogo e dos perío- cidade de invenção e a adequaçã o das proposta s às situações
dos de fala e m esmo das pausas definem a qualidad e de um depende m da gama de possibilid ades disponíve is. Um estoque
trabalho . Talvez possamo s mesmo consider ar a possibili dade
é constituí do pela pilhagem de todas as situações de formação
de uma verdadei ra formaliz ação desse fator, mediant e uma
anteriorme~te vividas; ele ·torna-se p essoal pela experiên cia e
espécie de ordem do dia anunciad a ou :,a fixada. A maleabil i -
pelo ap~oveitamento que se tem delas. Seria pretensio so que-
dade indispen sável só se obtém se todos estiverem atentos à
rer reinvent ar tudo, mas existe um real prazer em apropria r-
utilizaçã o do tempo. ; se de encadeam entos de instruçõe s e de exercício s e ser capaz
de question á-los a qualquer· moment o.

..
25'6 .
;,
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' 25'7
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A maior clareza possív~l na fo~ulaÇão das instruções · intervir decisões que não dependem apenas d e sua autoridade.
li Mas nem todas as verbalizações são ritualizadas, e uma gran-
I
Expor clara, completa e su cintamente instruções a um gru- de maleabilidade se faz necessária . O burburinho que acolhe
po numeroso e imerso em sua própria dinâmica é uma tarefa uma instrução ou saúda o fim de um exercício que exige uma
difícil: Uma instrução formulada abstratamente d em ais é obs- grande concentração é inevitável. Ele deve poder se expandir
cura. Inc ompleta, ela provoca a paralisia dos jogador es, que sem tol?ar conta de tudo. Não sou a favor d e fazer falar aqueles
p edirão i~formações ~omplementares. Longa demais, ela que- que permanecem mudos ou de fazer calar aqueles que falam
bra a dinâmica do trabalho. Acompanhada de um exemplo, ela o tempo todo. Os participantes t êm direit o ao mal -estar e ao
incita à reprodução sem invenção. A meu ver, ~ma boa instru- silêncio, e a palavra a qualquer preço não é um fim em si. Não
ção é aquela suficientemente fechada pára que os erros sejam é necessário que . ~udo seja verbalizado. O formador aprende
limitados e suficientemente ab erta para que seja possível uma a respeitar os silê ncios e a não interpretar n egativamente os
variedade de interpretações e, conforme o caso, para que seja retra.irr1el!tos e a ausência d e respostas.
ou transgredida ou superada. A indicação não forn ece a solu-
ção, ela suscita a invenção.
É indispensável que se pratique a criação de instruções, O estabelecimento de um clima de confiança
redigind o-as para si mesmo e que se av~lie a pertinência da
redação. No entanto, a leitura das instruções não é desejável. O Essa tarefa é complexa e vaga. Onde situar essa confiança e
modo como elas são formuladas e chegam ao grupo faz parte da como fazê-la brotar? Como não confundi-la· com gentileza
'.'capacidade de jogo" do formador. forçada? A . confiança permite ao participante arriscar-se a
dizer e a· faz~r, sab endo que não está suje ito a uma !=ensu-
ra brutal. Frequentemente a angústia de um grupo reflete a
A circulação da fala angústia .d o formador. No ta-se que uma atitude pessoal de
.~ ' calma e de átenção produz confiança. A aprendizagem do·
D~stribuir a fala, fazê-la circular, sab~r tomá-la s.e m monop~­ domínio de sf mesmo é uma busca constante do formador,
lizá-la, o~sar proibi-la quando ela é proferida ~um momento ainda que nem sempre ela seja exigida.
inoportuno, sem ferir aquele· que queria falar, são as princi- Talvez seja possível fazer com que .se reformulem as
pais tarefas. Já descrevi em outra· parte regras para as inter- agressões p essoais e os julgamentos de valor para que 6
venções verbais que facilitam o trabalho. do formador, fazendo grupo se habitue a o uvir críticas ou julgamentos negativos,
interpretand.o.- os apenas' como a J?anifestação de .uma fala formador ajudar nessa formulação, seja por um trabalho de
subjetiva boa-de se ouvir, quando despojada de sua agressivi- verbalização, seja por um trabalho com imagens ou improvi-
dade e de sua culpabilidade·. sações que auxiliem, por meio do jogo, a exprimir as direções
de trabalho que os participantes desejam adotar.

A participação no jogo quando isso é possível


Examinar questões técnicas
Um esquema no qual intervêm conjuntamente dois formadores
me parece ideal sempre que a situação instituci.onal permitir. Pode ocorrer de o trabalho exigir uma generalização ou uma
Um assume as instruções e a responsabilidade do olhar exterior, informação. Cabe ao formador analisar as questões .que dizem
o outro fica imerso no trabalho do grupo. Os dois se alternam respeito a um saber teatral ou pedagógico, fornecer a uma cir-
nessas funções e, a cada vez, estabelecem relações diferentes cunstância imediata referências literárias ou estéticas, situar
com o grupo. É. mais difícil que o formador jogue c:~uando ele mais amplamente o que é vivido no âmbito da experiência cul-
intervém sozinho. Se se concentra numa improvisação, ele está tural. Essas intervenções verbais mais extensas não constituem
menos presente no grupo. Inversamente, se aparenta não par- cursos sistemáticos. É desejável que elas ocorram em momen-
ticipar do jogo, fica mais atento ao grupo. Não há, •entretanto, tos diferenciados do trabalho regular. Elas devem corresponder
regra absoluta. Em todo caso, o que importa é romper relações às necessidades reais do grupo e não a um desejo do formador
muito formais, que fariam do formador ou "aquele que não joga de impor seu próprio discurso. Mais amplamente, é incumbên-
~unca" ou "aquele que conduz o jogo dando o exemplo". cia ~o forxp.ad~r _abrir as janelas para a vida teatral, dar infor-
mações bibli~gráficas, ixi'dicar outros lugares de formação.

Ajudar os participantes a definir


a natureza de sua demanda . Introduzir uma i.nformação sobre ·
as possibilidades de transmissão
Durante o trabalho pode-se mostrar indispensável a redefini-
ção de u,m alvo ou dos objetivos. Essa tarefa exige uma refor- ., Não é desejável que se confundam os momentos nos quais
mu..lação da demanda dos participantes, que s~ntem urna lacu- r
%
os particip~tes vivem uma experiênc;ia de aprendizagem
na ou um mal-estar, mas não consegtiem formulá-los. Cabe ao J com aqueles em que eles se preocupam com: urna eventual

26o 261
,.

...... l. A CAPACIDADE DE JOGO

Georges Banu, Le théâtre, sorties de secours. Paris: Aubier, I 9 84.


2 D.- W. Winnicott,jeu et réalité. L' espace potentiel. Paris: Gall~mard, I 978.
3 J.-P. Ryngaert, "Lc j eu dramatique et le psychodrame", in Le jeu drama -
tique en milieu scolaire. Paris: Cedic, I 977.
4 Winnicott, op. cit., p. 7 2.
5 lbid., p. 59-
6 lbid., p . 6o.
7 Ibid., p. 139.
8 Emmanuelle qilbert e Dominique Oberlé, "L'animateur de jeu dramati-
que en institution psychiatrique". V. S. T., n . 143, out.-nov. 1982 , p. 47 .
9 Ver Gisele Barret, Riflexions... Pour les enseisnants de 1'expressíon drama-
tique. Pratique, dtdactique, théorique. Montreal: ed. esgotada , 1979 . Con-
sultar igualmente o número especial da revista Expression, n. 19, d edi-
cado às relações entre expressão dramática e jogo dramático.
I o "Verlan" é uma forma. de gír ia, comum entre os jovens, que consiste na
inversão d e s.ílabas de uma palavra. Por exemplo, "mel!f' por jemme",
"trame" por "métro". A própria palavra "verlan" vem de"1'envers", que sig-
I nifica "inver so". [N.T.)
1"•
,,• 1 l Peter Brook, I:espace vide. Paris: Seuil, 1977.

"
,.
. I 2 Esses objetivos não são sempre conscientes eQtre os participantes.
~obre ·~s$a questão da negociação dos objetivos, ver m eu artigo "Quand
•• <;,,
les enseignants jouent", FrançaisAujourd'hui , n. ss, set. 198 I .

Il. PROCEDIMENTOS DE JOGO

Abreviação d e "improvlsaiioo" (improvisação). O autor se vale aqui de um


registro de língua familiar baseado na abreviação d~ palavras. [N.-r.)
2 "L' envers du théitre': in .Revue d'estbétique, 1 977, 1-2, p ." 13.
3 Michel Bernard, "Le rnythe de l'improvisation thé~trale ou les travestisse-
rnents d'une théâtralité norrnalisée", in Revue d'esthétique, op. cit., p. 25.
4 Ibid., p . .26.
.,

s Catherine Mounier, "Plaisir de raconter n os histoires, notre histoire, IV. JO GO E SENTIDO


l'histoire", in Revue d'eschériq.ue, op. cit,, p. 1 6 8.
6 lbid ., p . 1s6. " Réel quifait stane", o autor faz um j ogo de palavras entre o real que se
7 Ph:ilippe lvernel , "L'improvisatio n prolétar.ienne", in Revue d'esthécique, torna signo e o real que acena, ou seja, que emerge. (N.T. ]
op. cit., p. 258. 2 Jacques G uimet, "lmprovisations ", in Revue d'esthéiique, op. cit. , p. • 9·
8 A p.ropósito do clichê, ver meu artigo "Jeu e t images de l'autre: r epé- 3 Ibid., p. 2 1.
rages", injeux. dramociqucs ec pédaaoaies. Richard Monod (org.). Paris: 4 Sobre esse tema ver Richard Monod , "Une légitimation du jeu drama-
Édilig, J 983. . tique: la leçon d'esthétique". Le Français Aujourd'huí, n . s s, pp. 19-26 .
9 A fotografia e a imagem são m o dos diferentes d e falar da mesma técnica. s Jean-Pierre Sarrazac, Pratiques de /'oral. Paris: Armand Colin , 19 8 1.
Ver "Le corps, l'objct et la fabrication d'irnages", in Le jeu dramatique en Especialmente, "L' Écoute dans ]e jeu théâtral", pp. s 1 -6 s.
milieu scolaire, op. cit., p. 74· 6 Miguel DemuY.n ck, antigo educador nacional n os CEMÉA (Centres
ro Bernard Grosjean, "Le théâtre d e l'opprimé et l'école". Th . de l'opprimé, d' Entra1n em ent aux M éthodes d ' Educat ion Active) e diretor teatral,
n . 6, 1982 (Bulletin du CEOITAOE) . .Pirigiu numerosos estágios de jogo dramático e iniciou -me em algu -
1 1 O termo em francês é "cendresse", que s_ignifica ao mesmo tempo mas de suas práticas. Que fique aqui o m eu agradecimento.
"maciez" e "ternura". (N.T.] 7 Jean-Marie Piemme, "Problématique d e la création: ~stoire et permanen-
ce?", in Théâtre/ Public, n . Sl-n, 19 83, Théâtre de Gennevilliers, 198+.
8 lbid.
III. IN DUTOR ES DE JOGO 9 Jacques Lassalle, "Un espace d'interrogation et d e convivialité", in
Théâtre!Public, ri . s6, Théâtre de Gennevilliers, 1984.
Iniciais d e habitacion à loyer modéré, moradia destinada a famílias de bai-
xa renda. [N.T.]
2 Ver Augusto Boal,Jooos para atores e não-atores.
3 Meus agradecimento s a todos o s estagiários d e Choisy-le- Roi, 1982-·
83, particularment e a Jean Bauné e Lucette Degrotte, que reuniram as
fichas de identidade e r edigiram um estudo inédito sobre elas.
. '
4 Bicicleta a motor. [N.T. )
s Notas de trabalho de Dominique Abensour, e.xtraidas de uma disser -
tação d e mestrado intitulada Les en-jeux du voÚ depositada na Biblio-
teca G. Baty, do Instituto de Estud os Teatrais , Paris m . Dá inúmeros
exémplos de trabalhos realizados a partir de obras de arte, inclusive
quadros figurativos.

266

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e a realidade. Rio d e Janeiro: Imago, I9JS).
4- REVISTAS

3. OBRAS A CONSULTAR ·i
Lefrançais aujourdfhui, números especiai~ 3 3, 3 4, _ç s, 67 . ·
Pratiques, sob-:retudo os números •s, 16 (1977) e 41 (1984-).
I
;

AB1RACHED, Robert. Théâtn/Publiç.


La crise du personnaae dons le théâtre moderne. Paris: Grasset, 1978. Expression. Revista dos profe~ores de expressão dr~ática de Quebeê,
~ERNARo, Mich el. Montreal.
Z:expressivité du corps. Paris: J.-P. De1arge, 1976. 2 edição. Paris: Chiron, 1986.
SOBRE O ~UTOR

Jean-Pierre Ryngaert é professor de Estudos Teatrais na Uni-


versité de Paris m, onde atua na graduação, da formação de
pesquisadores e formação profissional continuada. É também
diretor teatral e um dos responsáveis pela "Mousson d'Étéi",
festival anual de teatro contemporâneo na França.
É autor d~ várias obras, entre as quais se destacam O joao
dramático no meio escolar, Introdução à análise do teatro e Ler o tea-
trõ contemporâneo, traduzidos em língua portuguesa. Organizou
a publicação de Nouveaux territoires du dialogue; em colaboração
com Joseph Danan publicou Élements pour une histoire du texte de
théâtre e em parceria com J ulie Sermon escreveu Le personnaae
théâtral contemporain: décomposition, recotnposition.

27S
f:
OBRAS DE JEAN-PJERRE RYNGAERT

Le jeu dramatique en milieu scolaire. Paris: Cedic, I 977· 2. edíÇão atualizada.


Bruxelas: De Boeck, 1 99 1 .

Jouer, représenter. Paris: Cedic, 1 98 5' .

lntroduction à 1' analyse du théâcre. Paris: Bordas, I 99 1. 3 ed. revisada e am-


G

pliada. Paris : Armand Col~n, 2oo8.

Lire le théâtre contemporain. Paris: Dunod, I993 · 2. edição. Paris: Nathan, 2ooo.

Lire "En attendant Godot". Paris: Ounod, I 993.

Edição d~ "Jphigénie Hôtel de Michel Vinaver (dossier dramaturgique et appa-


reil pédagogiqque), Répliques. Arles: Actes Sud-Papier s, 1 99·3.

Élémf!!Jts·pour une bistoire du texte de chéâtre (co-autoria de Joseph Danan).


Paris: D unod, 1997.

Nouveaux territoires du dialogue (org.). Arles: Actes Sud-Papiers, 2oos.

"Théât:J:e: Te~es et mise en scene au X.Xeme siecle", in Histoire de la France


Litcéraire, vol. m ·. Paris: PUF, 2oo6.
I

Le personnaae tbéâtral contemporain: décomposition, recomposition (co-autoria de
Julie Sermon). Lyon: ÉditionsThéâtrales, 2oo6.

277
©Cosac Naify, 2009 COLEÇÃO ENSAINHOS
©Cedic, 198s

IMAGEM -DE CAPA © Robbie jack/CORBIS/LatinStock I . ESPEL HO DA TAUROMAQU IA Michel Leiris


MIOLO Aiain Simon, Théâtre ~es Ateliers, Aix-en-Provence, 2007
2. PROUST .Samuel Beckett
Coordenação editorial AUGUSTO MASSI 3. OEGAS DANÇA DESENHO Paul Va}éry
Preparação ANDRESSA VERONESI
4· OlÁ LOGOS COM IBER.Ê CAMARGO Sônia Sa)zstein· (org.)
Revisão ISABEL JORGE CURY, MARIA LUCIA DE SOUZA BARROS PU_P_O
e RAUL DREVN ICK 5. T RÊS POEMAS SOBRE o ~XTA SE Leo Spitzer
Capa e composição MARIANA BERND 6. TERRENOS VULCÂNICOS Dolf Oehler
Nesca edição, respeirou-se o novo Acordo Orroor1fico da Llnoua Porwouesa
7· SOBRE o SACRIFÍCIO Mareei Mauss e Henri Hubert

8. OSWALDO GOELDJ: ILUMINAÇÃO, ILUSTRAÇÃO Prisci]a Rossinetti Rufinoni


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 9· _':'GERAÇÃO QUE ESBANJOU SEUS POETAS Roman jakobson
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1 o. KAFKA: PRÓ E CONTRA Günther Anders
Ryngaert, Jean-Pierre (•94S-)
J I . PERFORMANCE, RECEPÇÃO, LEITURA Paul Zumthor
Jogar, representar: práticas dramáticas e formação/
Jean-Pierre Ryngaert 1 2. LASA R SEG A LL: ARTE EM socrEDAOE Fernando Antonio Pinheiro Filho
T ítu lo original: jouer, représenur.
I 3. TEOR IA DA VANGUARDA Peter Bürger
Tradução: Cássia Raquel da Silveira.
São Paulo: Cosac Naify, 2oo9 .
28o pp., s ils.

ISBN 978- 8s-7 JOJ-744"7

1 . Arte dramática 2·. Arte dramática- Estudo e ensino 3· Jogos


4· Teatros. Teatro- Estudo e ensino 1. Título.

o8 -o8963 J CDD-792 .02807

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1. Jogos teatrais: Arte dramática: Estudo e ensino 792.o28o7

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Atendimento ao professor fs _ç- 1 1) 3~ 18-1473

•'

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