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O espaço de apresentação não será um palco convencional. A plateia deverá se sentir envolvida
pelo espetáculo e próxima dos atores. Isso é fundamental, principalmente na cena em que acontece a festa
em volta da piscina e o acidente, que constitui um clímax dramático da peça. Consequentemente, o espaço
deverá propiciar liberdade aos atores para recriarem, através dos seus próprios recursos expressivos, os
ambientes internos e externos do enredo, bem como para se aproximar da plateia nos momentos que
exigirem mais intimidade.
1
contrário, todos os atores falam em nome do “grupo”. A espacialidade colaborou,
portanto, no sentido de que os espectadores podiam ser posicionados de forma a se
sentirem parte deste grupo, uma vez que compartilhavam o mesmo espaço que os
atores. Desta forma, “a percepção é dominada não pela transmissão de signos e sinais,
mas por aquilo que Jerzy Grotowski chamou de 'proximidade dos organismos vivos',
contrária à distância e à abstração” (LEHMANN, 2007: 265).
Quando o público adentrava o espaço, confrontando-se com projeções na parede
dessa sala vazia e com os atores sentados no chão ao fundo, já estava emitida a
mensagem de que esta atividade demandaria uma atenção diferenciada. A plateia é
induzida a se colocar em uma perspectiva que é diferente da de um espectador habitual
de teatro. O espaço praticamente impõe isto. De alguma forma, ele já está participando
dessa peça que tem características de instalação, na qual ele está imergindo.
Esse deslocamento para espaços incomuns à objetivação artística [neste caso teatral] tem origem
nas experimentações das artes plásticas – instalações, environments, land art – e nos conceitos da
arquitetura moderna (Bauhaus, Frank Loyd Wright, Le Corbusier) de apropriação do espaço público
enquanto topos da artisticidade. (COHEN, 2006: 101)
2
ter como uma das características principais a neutralidade. Esta neutralidade, é uma
qualidade funcional do espaço que possibilita, precisamente, que o mesmo abrigue as
mais diversas manifestações estéticas. Desta forma, o local serviu como uma folha em
branco, que permitia aos atores desenhar os mais diversos ambientes. A sala de
exposições do museu passou a ser o cenário onde eram exibidas as várias facetas da
relação entre “o grupo” e a personagem “ela”.
Em termos de concepção do espetáculo, a meu ver, o maior influência do espaço
foi no sentido de sua interferência na marcação da peça. O processo de montagem de
piscina [...] caracterizou-se por uma construção cênica pautada na criação física como
elemento constitutivo do trabalho de atuação, o qual acabava também se desdobrando
em marcação. A marcação foi, portanto, um elemento essencial na montagem. Para
entender melhor esse encadeamento criativo despertado pelo trabalho físico, podemos
usar as palavras de Sônia de Azevedo quando se refere à técnica corporal.
Poderíamos, então, reconhecer outra característica da ação física: a ação física como possível
célula geradora de outras poéticas e práticas teatrais.
Dessa forma, a partir de tais considerações, resultantes das análises feitas aqui, torna-se
pertinente levantar a hipótese da ação física como elemento estruturante do fenômeno teatral.
(BONFITTO, 2011: 121)
3
mais precisas para os atores, pontuando em que momentos seria interessante suavizar a
interpretação.
Por outro lado, a proximidade e a disposição do elenco no espaço determinavam
que qualquer mínimo movimento, olhar ou som fosse percebido pela plateia. Além do
mais, em nossa montagem todos os quatro atores protagonizavam a peça e estavam
presentes o tempo todo em cena. Ou seja, independentemente de falarem ou não o texto,
eles estariam sendo cuidadosamente observados pelos espectadores, os quais muitas
vezes enquanto observavam um ator que estava mais próximo de si, prestavam atenção
no texto que outro ator enunciava do lado oposto da sala. Concluindo, qualquer tipo de
ação dos atores tinha que ser incorporada à estética e à ação da cena. Sendo assim não
lhes era permitido nenhuma pausa de atuação, o elenco deveria representar durante todo
o tempo de duração do espetáculo, ou seja, aproximadamente uma hora. Obviamente,
isso exigia muito dos atores, tanto fisicamente, quanto em termos de concentração.
Um terceiro fator ligado ao espaço que influenciou o trabalho dos atores foi a
questão do compartilhamento com a plateia. Como o texto de Ravenhill é, em termos
gerais, uma narração – um grupo de artistas está narrando sua história para o público,
era fundamental que o elenco compartilhasse sua atuação com os espectadores. Isto os
aproximava ainda mais do público e reforçava sua atuação. No entanto, devido à
distribuição dos atores na sala esse compartilhamento era muito dificultado. Em alguns
momentos estavam bastante distantes ou obstaculizados por parte da plateia, em outros
momento estavam muito próximos dos espectadores. Muitas vezes também se
encontravam de costas para o público ou no chão abaixo do mesmo. O público, por sua
vez, poderia estar de frente para um ator mas de costas para o outro. Além disso, quando
os atores direcionavam um texto para os espectadores, trazendo-os para si, não o
podiam fazer de maneira geral para a plateia como se faz em um palco tradicional. Eles
eram forçados a fazê-lo olhando nos olhos dos espectadores, o que torna a ação muito
mais desafiadora. A equalização dessa triangulação, creio que somente foi atingida na
prática com o público durante a primeira semana da temporada.
Focando, agora, a atenção na questão do espaço conceitual escolhido para a
montagem, reflito no espaço enquanto condição que precede o espetáculo, tanto na ótica
do público, como na dos criadores. A utilização de um espaço que tem uma determinada
função, de forma a transgredi-la para apresentar uma peça teatral, parece agregar à peça
certo conceito que está ligado à própria função. Creio que a vocação do espaço, define
sentidos para o projeto que independem da sua arquitetura e que determinam uma
predisposição para quem vai assistir ou realizar a peça. A reflexão de Antonio Araújo,
sobre a escolha de uma igreja como local de apresentação da peça O Paraíso Perdido do
Teatro da Vertigem, talvez ajude a esclarecer esta questão.
Por essa razão é que o significado (simbólico, histórico, institucional) do lugar era mais
importante que suas possibilidades cênico-arquitetônicas. Abríamos mão de uma arquitetura mais
“teatral” em prol do sentido, ou sentidos, que um determinado local pudesse evocar. […] A ideia-chave
era criar uma zona híbrida, de intersecção, entre o “real” ou a “realidade” do espaço e o “ficcional” ou o
“teatral”, advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de
desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e
recepção da obra. (ARAUJO, 2011: 165)
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fortaleceria o enredo da peça, funcionando como um cenário conceitual, uma vez que os
personagens da peça são todos artistas plásticos. Entretanto, na prática essa
espacialidade conceitual teve, a meu ver, muitas outras implicações que colaboraram
com a montagem. Para que o leitor possa entender melhor qual foi a relevância disso no
contexto de piscina [...], faço abaixo uma sinopse da ação da peça.
A temática gira em torno do questionamento sobre o posicionamento do artista
em relação a seus objetivos e sua produção artística. Um questionamento absolutamente
atual, que remete aos contrassensos que se pode observar em uma sociedade que é
alimentada pela ideia de que o sucesso é alcançado através da fama. Os personagens da
peça são um grupo de artistas plásticos que chegaram a uma maturidade decadente. Eles
se contrapõem à única dentre eles que alcançou fama e sucesso material. No texto essa
personagem é chamada simplesmente de “ela”, a quem o “grupo” se refere
constantemente numa mistura de crítica e mitificação. A identificação do “grupo” com
“ela”, durante a ação da peça, alterna-se entra a extrema admiração e o ódio provocado
pela inveja. Ao mesmo tempo em que os artistas criticam ferozmente os meios que “ela”
utilizou para alcançar o sucesso, revelam que, na verdade, gostariam de estar na “sua”
posição. A ação da peça inicia com os personagens atônitos com o fato de que “ela”
construiu uma grande piscina em sua casa. Ela mandou fotos da luxuosa piscina e
convidou todos para conhecê-la. O “grupo” não resiste à tentação e resolve aceitar o
convite. Fazem as malas, pegam um avião e vão ao encontro da milionária ovelha
desgarrada. O jantar de boas vindas se transforma em uma festa orgíaca, na qual todos
relembram os tempos de juventude, quando formavam um grupo artístico coeso e
idealista. Em meio a um nível alcoólico bastante alto acontece um acidente trágico:
“ela” mergulha, inadvertidamente, na piscina que está vazia. Enquanto “ela” está em
coma no hospital, “o grupo” tem a idéia de fotografá-la e utilizar as fotos numa grande
instalação. Esta seria uma obra de arte de vanguarda que teria o potencial, ainda que
através de meios questionáveis, de tirar “o grupo” do anonimato artístico e transformá-
los em artistas de sucesso como “ela”. Para a decepção do “grupo”, “ela” se recupera do
coma, se apropria das fotos e da obra. Essa atitude provoca a revelação dos verdadeiros
sentimentos que estavam mascarados, expondo, enfim, a mediocridade de todos.
Me parece que o fato da produção ter conseguido fazer a temporada “dentro” do
Museu Oscar Niemeyer (de agora em diante chamado de MON) agregou muitos valores
à montagem que ultrapassaram a ligação com o enredo enquanto história narrada e
abordam a temática central do texto que, pelo menos em nossa leitura, é a relação de
atração e repulsa ao lidar com o sucesso do outro.
O MON é o mais prestigioso museu do estado do Paraná, é muito difícil
conseguir pauta neste espaço, ao qual só têm acesso artistas plásticos que adquiriram
certo “status” no meio. Por ser um espaço público, sua gestão e as curadorias das
exposições são alvo de polêmica, muitas vezes questionadas pela classe artística. O
próprio Oscar Niemeyer, que dá nome ao museu, sendo o mais famoso arquiteto do país,
e tendo obras espalhadas pelo mundo, também foi alvo de muita polêmica, inclusive
com relação à execução do próprio MON. Estes fatores, reforçam a significância da
temática abordada por Ravenhill, ligando a situação descrita no texto à realidade,
principalmente com relação à controversa posição de quem está em evidência no mundo
artístico e a validade dos meios que levaram a esta conquista.
Além disso, o Espaço Araucária onde foi apresentada a peça, fica situado no
local de maior afluência do MON: o “olho”. A maior sala de exposições do MON, onde
são apresentadas as exposições de maior vulto, fica num local de grande destaque na
5
composição arquitetônica do museu. Niemeyer idealizou uma araucária estilizada em
cuja copa fica esta sala. Esta construção virou atração turística e, devido ao seu formato,
popularmente ficou conhecida como “olho”. Um olho imenso que por si só estabelece
uma metáfora muito significativa com o texto de piscina […], pois a impressão que se
tem, ao observá-lo externamente, é a de que as obras que lá se encontram estão sendo
“contempladas pelo universo”. O Espaço Araucária fica no andar abaixo desta sala
principal. Para que os espectadores acessassem o espaço de apresentação da peça,
subiam por uma grande rampa sinuosa, suspensa acima de um lago artificial (uma
piscina?), ingressavam pela entrada do “olho” (universal) e ainda subiam até o terceiro
andar. Tudo isso para chegar a uma sala vazia que parece um porão.
Uma outra qualidade que o espaço conceitual agregou ao projeto, tanto do ponto
de vista da equipe de trabalho como do público, foi o fato de estabelecer uma
preparação, um “aquecimento emocional” para a peça. Posso afirmar que, como parte
da equipe, a chegada ao MON para ensaiar, por si só, já nos preparava para o trabalho.
Em primeiro lugar a aproximação física com aquela obra monumental de Oscar
Niemeyer já causava um impacto. A passagem pelo setor de segurança, pelas portas que
só eram destrancadas por um dos sentinelas, pelas salas de exposição onde se
encontravam os mais diversos tipos de obras artísticas, pelo corredor
“circularbrancosemarestas” i criado por Niemeyer para dar acesso ao “olho” por baixo
do lago artificial, tudo isto nos colocava em íntimo contato com o ambiente das artes
visuais referido na peça.
“Teatro específico ao local” [site specific] significa que o próprio “local” se mostra sob uma
nova luz: quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro-velho se torna espaço de
encenação, passa a ser visto por um novo olhar, “estético”. O espaço se torna co-participante, sem que lhe
seja atribuída uma significação definitiva. Mas em tal situação também os espectadores se tornam co-
participantes. Assim, o que é posto em cena pelo teatro específico ao local é um segmento da comunidade
de atores e espectadores. Todos eles são “convidados” do lugar; todos são estrangeiros […].
(LEHMANN, 2007: 281)
Sob a ótica dos espectadores, o ritual de Ida ao Teatro – e aqui não há como não
lembrar do questionamento irônico que Karl Valentin faz sobre este ritualii – foi
transformado em um ritual de ida ao museu, a um espaço das artes plásticas, a um local
onde se apreciam “obras de arte”. Esse fato, me parece, pode ter colaborado como um
“aquecimento” também para o público, como uma preparação para refletir, imergir,
mergulhar no contexto de piscina [...].
6
Referências bibliográficas citadas
i
Ao utilizar este termo formado pela união de palavras, o autor está fazendo alusão aos diversos
termos criados por Ravenhill no texto de piscina […].
ii O autor faz referência neste comentário ao texto cômico Ida ao Teatro do dramaturgo, diretor e ator
alemão Karl Valentin.
7
ESPACILIDADES E FRONTEIRAS DA CENA
ESPACIALIDADES E FRONTEIRAS DA CENA EM PROCESSOS DE DRAMA
Beatriz Angela Vieira Cabral
UDESC
BUBNOVA, Tatiana. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin/ Voice, sense and dialogue on
Bakhtin. In Revista acta poética 27 N. 1, 2006, pp 97-114. Translated and published in
Portuguese by Roberto Leiser Baronas e Fernanda Tonelli in Bakhtiniana, São Paulo,
6 (1): 268-280, Ago./Dez. 2011.
O presente texto não passa de um sucinto esboço que tem por objetivo refletir em torno
da relação entre o teatro e a noção de hospitalidade. Isto, na medida em que, a partir
deste binômio, pretendemos dar início ao projeto de um percurso a ser desenvolvido
mais adiante, noutros desdobramentos de pesquisas, cujo sentido consiste em pensar a
hospitalidade enquanto ato poético articulando-se no âmbito da arte teatral.
Penso não haver exagero algum em afirmar que, no cenário das coisas da cultura, o
teatro talvez se afigure como um campo por excelência do acolhimento dos signos e
materiais que chegam dos mais variados registros. Além do texto dramático, a luz, o
cenário, o figurino, a música, enfim, todos os elementos que quando se põe em ato pela
encenação, exibem a evidência do cruzamento colaborativo entre os elementos variados,
provenientes das diferentes linguagens. Todavia, importa interrogar: quais as condições
dessas transações? Até onde seria legítimo pretendermos culminar na proposição de se
entender o teatro como uma arte da hospitalidade? Desta última pergunta, com efeito, é
que emerge nossa hipótese no sentido de se averiguar até onde cabe em um trabalho de
natureza teatral, inscrever a noção de hospitalidade a título de uma poiesis.
O tratamento habitual desse tema, em geral, remonta às práticas ritualistas que desde o
início das civilizações se protagonizam nas cenas dos espaços, na recepção dos seus
visitantes, enquanto virtude que se põe em exercício nos rituais de acolhimento, onde a
hospitalidade torna-se uma espécie de remédio para neutralizar as eventuais emanações
de hostilidade virtualmente despertadas pela chegada do elemento estranho,
representado pelo “outro”. Nossa perspectiva, entretanto, se norteia por uma abordagem
metodológica de caráter interdisciplinar; de modo que, na transposição do tema para o
campo estético, possamos efetuar reflexões a partir do diálogo com as contribuições
advindas dos campos da filosofia e da psicanálise. Isso, devido à relevância do tema,
que nos convida em ir um pouco mais adiante da imagem e do significado comum, em
que a hospitalidade consistiria apenas no simples atributo de alguém no papel de
anfitrião oferecendo guarita a outro que, na qualidade de visitante, não passa de mero
receptor passivo do gesto do primeiro.
Hospitalidade, contudo, é uma palavra que abriga desde sempre uma vasta gama de
conotações que, aliás, cumpre dizer desde logo, não cabe nos limites do nosso intuito
aqui no presente texto. Todavia, erigindo-se como uma forma de interação social, o seu
campo semântico está todo ele referido às implicações mais intrincadas e controvertidas
das relações entre sujeitos nos mais variados planos e lugares. E, embora em sua
superfície, o termo se apresente como uma promessa de abertura ao acontecimento de
uma possível amizade, ele mesmo, a um só tempo, também sinaliza ao iminente perigo
diante do desconhecido. Quer dizer, a hospitalidade não se oferece sem que haja no seu
íntimo algo de hostilidade.
1
Por isso, pensamos na possibilidade se considerar a experiência da hospitalidade,
também, na qualidade de um dispositivo dramático. Pois, o drama da hospitalidade se
situa, a nosso ver, na estrutura mesmo desse acontecimento relacional pelo qual os
conflitos e choques provenientes dos mal-entendidos, advêm sempre como efeitos
inerentes à natureza ambígua da linguagem e na experiência da interpretação que afeta
cada sujeito eventualmente envolvido na situação. Daí, a oportuna observação de Alain
Montandon, referindo como uma espécie de cena inaugural da hospitalidade, o
momento em que:
Tudo se passa naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se
abrir para um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos,
entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é uma etapa
decisiva semelhante a uma iniciação. É a linha de demarcação de uma
intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, ela comporta, querendo ou não,
uma face de violência, de transgressão, até mesmo de hostilidade que
Derrida chama de “hostipitalidade” [...] O gesto da hospitalidade é, de
início, o de descartar a hostilidade, pois o hóspede, o estrangeiro, aparece
frequentemente como reservatório de hostilidade: seja pobre, marginal,
errante, sem domínio fixo, seja louco ou vagabundo, ele encerra uma
ameaça. Sua posição de exterioridade marca sua diferença. 1
Ademais, em qualquer que seja o contexto onde se evoque esse tema, importa ressaltar
que a hospitalidade só se cumpre a partir de uma estrutura de caráter essencialmente
relacional, entre sujeitos portadores e representantes de distintas referências psico-sócio-
culturais. A tensão inscrita nessa experiência reflete-se como se vê na citação acima, na
própria grafia do neologismo forjado por Jacques Derrida, tentando abraçar o paradoxo
inevitável da situação designando-a pela expressão “Hostipitalidade”.
Nota-se que o tema comporta muitos outros problemas como, por exemplo, o
reconhecimento das diferenças das linguagens, a questão dos direitos e deveres, a
negociação dos interesses, as dificuldades de aceitação e tolerância, enfim, tudo o que
inelutavelmente nos convoca a encarar a legitimidade do “outro” enquanto figura de
alteridade. De modo que, não será difícil admitir que a hospitalidade represente, acima
de tudo, uma figura cujo estatuto refere um lugar de passagem, tal como na imagem da
“soleira” aludida acima por Montandon. Definindo-se, então, a título de um espaço de
transição que franqueia o movimento da possibilidade de uma travessia, supomos
oportuno indagar nos seguintes termos: o que torna possível a hospitalidade? Quais as
implicações e desafios que se passam no espaço desse trânsito?
1
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. P.32.
2
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. P.146.
2
pensamento psicanalítico, posto que o que está em jogo é nada mais nada menos que a
noção do lugar ou posição que o sujeito ocupa na medida em que se sente afetado pelos
efeitos dos dizeres. E, isto nos leva ao coração da própria questão do que vem a ser a
ética na perspectiva descortinada por Lacan, ao enunciar que:
A ética – como podem talvez entrever aqueles que me ouviram falar dela
em outros tempos – tem a maior relação com a nossa habitação na
linguagem, e é também – como nos mostrou certo autor que evocarei de
outra vez – da ordem do gesto.3
Importa relembrar, ainda, que o próprio Freud já enunciara que, a partir do momento em
que entram em jogo as incidências do inconsciente no “eu”, este se perde e não é mais
senhor da sua própria casa. Na mansão do dito, o sujeito falante se depara com uma
alteridade que o habita intimamente, como um “estranho familiar” que, como já dissera
Freud, o divide irremediavelmente. Eis o drama da hospitalidade do sujeito em sua
relação com a própria palavra que o representa apenas de modo parcial, nunca
totalmente. E a linguagem se afigura como símbolo mesmo dessa perda, onde o sujeito
não detém a posse de todo o sentido do que fala. De resto, o saber que daí decorre
advém marcado por esta castração que o faz abrigar em si, paradoxalmente, um “saber
sem saber”. Daí, a própria noção de verdade vir, também, marcada como um “semi-
dizer”, posto que, com efeito, “a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade”.4
3
LACAN, Jacques. Op. Cit. P. 137.
4
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1992. P.36.
5
Esta obra foi concebida por mim e Marcos Costa, após o projeto ter sido selecionado e
premiado na categoria de “Artista Pesquisador”, e foi exibida em seu formato de
montagem como Ópera-instalação na mostra do 47° Salão de Artes Plásticas de
Pernambuco, como resultado da pesquisa, em Janeiro de 2012.
3
ambulantes fazem soar a voz, entoando seus pregões a oferecer produtos e serviços
vários. As mensagens desses pregões soam entre o canto e a fala e, à revelia de qualquer
descaso e ou ausência de hospitalidade, continuam soando na encenação diária de um,
talvez, teatro da necessidade. Todavia, foi preciso reconhecer a presença de uma força
poética agindo na tessitura e emissão desses pregões, para que estes viessem a interagir
na polifonia sonora que se enlaça com a musicalidade dos instrumentos da música
erudita e a voz da cantora lírica interpretando a letra da canção, que costura o elo desse
encontro, teatralizando musicalmente o drama da hospitalidade.
O projeto dessa intervenção estética teve lugar a partir de uma seleção no 47° Salão de
Artes Plásticas de Pernambuco, na categoria de “artista pesquisador”, cujo prêmio se
traduziu numa bolsa para custear o processo de pesquisa e elaboração da obra. A “Ópera
Crua” brinca, tomando de empréstimo a ideia do ambiente operístico, no sentido
tradicional já classicamente canonizado, mantendo o invólucro do ambiente espacial do
teatro para, a partir de dentro inserir a presença performática dos vendedores de rua
ambulantes entoando seus respectivos pregões. O caráter de intervenção tem a ver com
o adjetivo “Crua”, uma vez que a encenação transcorreu sem que houvesse qualquer
preocupação no sentido de se preparar os protagonistas através de ensaios. Diretamente
trazidos das ruas, os vendedores entraram numa relação de interação com os músicos
eruditos da orquestra sinfônica que, também sobre o palco, performatizam a situação
polifônica desse inusitado encontro. Deste agenciamento é, pois, que supomos a
abertura de uma “brecha” para o ato poético. Valiosa observação sobre tal
acontecimento é o que se enuncia pelas palavras de Tania Rivera, a partir de certas
pontuações lacanianas:
Tal ato poético, digamos – é radical e estranhamente delicado. Lacan
refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de
mudar o sujeito. Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que
intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar as
feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público
assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo
como uma janela que o expectador não ultrapassa de maneira pontual [...]
O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma configuração
instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais
olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao
espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e
objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de
perda, e não mais do espelhamento entre o eu e o mundo que permite a
fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num
ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. Ele
prossegue, então, em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou
melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isso acarreta,
para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em
que estamos”. Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência
em vez de imagem, é difícil de conceber e teorizar. 6
A perspectiva ético-estética que assiste ao procedimento da operação da “Ópera Crua”
parece reconhecer que o propósito granjeado pela “poiesis da hospitalidade” não se dá
6
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify,
2013. P.37-38.
4
sem a implicação de uma economia onde o comércio entre as linguagens se articula
significantemente, no intuito de ultrapassar as aporias nos aparentes obstáculos dos
contrastes e contradições entre os signos e registros já inscritos no habitus7 das
categorias rigidamente já estabelecido pelas instituições da vida cultural.
De fato, não é nem um pouco fácil se desvencilhar da lógica binária que norteia de
modo quase imperativo o modo do entendimento habitual. Porém, graças aos
experimentos que a dimensão teatral oportuniza, outra economia entra nesse jogo a
ponto de se pensar o problema da hospitalidade não como algo que se oferece em
doação por uma idéia de generosidade ou coisa que o valha, mas, sobretudo, em atenção
à emergência de certa economia relacional pela qual o desafio da troca, da
reciprocidade, assinala-se como um princípio fundamental onde, aliás, o pretexto da
hierarquia se perde em nome de um dever recíproco entre as partes, posto que estas
sejam igualmente importantes para que, na obra, resulte como expressão justa dessa
dinâmica em que a presença de todas as partes seja, sensivelmente, relevante.
7
Recomendo a leitura do texto “A cultura e seu contrário”, de Teixeira Coelho, onde este autor discorre
acerca do conflito entre as noções de arte e cultura.
5
Referências Bibliográficas:
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética Teatral –
Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
CASOY, Sergio. A invenção da Ópera. São Paulo: Editora Algol, 2007.
__________. O Nascimento da Ópera. São Paulo: Editora Universidade Falada, 2008.
COLI, Jorge. A paixão segundo a ópera. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.
6
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
Introdução
Este artigo é resultado parcial da pesquisa de Doutorado em andamento:
“Tchekhov e a cena brasileira – do subtexto à interpretação do texto”, financiada pela
Fapesp. Nesse trabalho, analiso um conjunto de encenações brasileiras sobre algumas
das principais obras dramáticas do escritor russo Anton Tchekhov, com foco na relação
entre o texto dramático e a cena.
Uma das obras que faz parte do escopo da pesquisa é a encenação Gaivota -
tema para um conto curto, realizada pela Cia dos Atores, com direção de Enrique Diaz.
Nesse espetáculo, assistimos a uma desconstrução cênica da obra “A Gaivota”, de
Tchekhov, a partir de procedimentos de criação que muito se assemelham ao
procedimento de análise ativa do texto.
Nesse sentido, o presente artigo faz uma exposição da teoria sobre análise ativa
e seu desenvolvimento em alguns aspectos, a partir da articulação de diferentes
referências: Eugênio Kusnet, Maria Knebel e Nair Dagostini. Após essa elucidação, há
uma aproximação entre o que se conceituou e o que ocorreu enquanto procedimentos de
criação e resultado cênico na encenação assinada por Diaz.
Veremos que, nessa montagem, não há apenas a utilização da análise ativa
enquanto procedimento de trabalho do ator e diretor, mas também o transbordamento do
uso dessa prática, que se transforma na própria linguagem de encenação da obra.
A análise ativa
Eugênio Kusnet, ator e pedagogo conhecido por propagar no Brasil o Sistema de
Stanislavski, nasceu na Rússia em 1898, onde iniciou sua vida teatral. Ao contrário do
que comumente se pensa, ele não chegou a estudar ou a ter contato direto com o
Sistema de Stanislavski nessa época, muito menos com o próprio Stanislavski. No
entanto, seu fazer artístico foi inevitavelmente influenciado pelas ideias e conceitos que
estavam em voga na época na Rússia, que tinham como modelo ideal as peças e os
trabalhos de atores do Teatro de Arte de Moscou e, por consequência, a pesquisa do
mestre russo.
Iniciou sua trajetória no teatro brasileiro como ator pelo TBC – Teatro Brasileiro
da Comédia1, passou pelo Teatro Oficina2 e depois pelo Teatro de Arena3, em que
iniciou sua atividade como professor de atuação. (PIACENTINI, 2011) Participou de
toda evolução do teatro brasileiro, tendo se destacado como ator e professor de
formação a partir do que nomeava o Método de Stanislavski, formando uma grande
geração de atores nas décadas de 60 e 70. Nesse trabalho, acabou até por conceber
novos procedimentos que seriam mais adequados ao ator brasileiro, a partir de leituras
1
Fundado em 1958 por um grupo de alunos da Escola de Direito do Lago de São Francisco, sendo um
2
Foi um dos mais importantes grupos teatrais brasileiros das décadas de 50 e 60. Inicia-se em 1953 tendo
promovido uma renovação e nacionalização do teatro brasileiro, sua existência termina em 1972.
3
Importante teatro brasileiro fundado em 1948 na cidade de São Paulo. Por ele passaram grandes atores e
seu repertório de peças privilegiava autores nacionais.
dos livros de Stanislavski e depois de uma viagem que fez para Rússia, quando estudou
com alguns de seus discípulos diretos, como Maria Knebel.
Essa viagem para Rússia foi determinante no processo de formação de sua
pedagogia, pois o ator-pedagogo entrou em contato direto com o desenvolvimento das
últimas descobertas realizadas por Stanislavski, que não haviam sido escritas por ele
próprio em livros, mas estavam sendo estudadas e trabalhadas ainda naquele momento,
mesmo após a sua morte.
Stanislavski, em suas últimas pesquisas, redimensionou a maneira como os
princípios de seu Sistema deveriam ser estudados, conferindo-lhes um novo paradigma
a partir da ação. No que depois foi nomeado de Método das Ações Físicas, a ação
deixaria de ser apenas um dos elementos componentes, mas passaria a ser o elemento
catalisador dos demais elementos. Ao contrário do que acontecia no início de suas
pesquisas, quando Stanislavski acreditava que o ator deveria “crer para agir”, ele
percebeu que o ator deveria “agir para crer”, conforme ele próprio salienta aos atores:
Bibliografia
DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para
leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Doutorado em Letras,
USP, 2007.
KUSNET, Eugênio. Ator e método. Rio de Janeiro: Serviço nacional de teatro, 1975.
KNÉBEL, María Ósipovna. El último Stanislavski. Madrid: Editora Fundamentos,
2003.
PIACENTINI, Ney. Eugênio Kusnet: do ator ao professor. Dissertação de Mestrado.
ECA – USP. São Paulo, 2011.
RAMOS, Luiz Fernando. FERANDANDES, Silvia. Diálogo da Gaivota. Revista Sala
Preta USP, v. 07, 225-228, 2007.
STANISLAVSKI, K. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
TCHEKHOV, Anton Pavalovich A Gaivota. São Paulo: Ed. Cosac Naif, 2004.
Sites consultados:
www.ciadosatores.com.br (site consultado em 06.06.2014)
Gravação de vídeo:
GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO. Produção: Cia dos Atores. Rio de
Janeiro: 2006. DVD (disponível no acervo audiovisual da Biblioteca do Instituto de
Artes – Unicamp – SP).
TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
URBANIDADE CONTAMINADA: A DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS NA CENA
TEATRAL CONTEMPORÂNEA
Las ciudades no se hacen sólo para habitarlas, sino también para viajar por
ellas. Néstor Garcia Canclini
1
concepção, tal prática tem como principal característica o “vínculo com o contexto da
cidade em que o evento se insere, propondo, assim, uma espécie de releitura dos
espaços” (RODRIGUES, 2008, p. 15). Nesse sentido, no teatro urbano a relação entre o
espaço cênico e o espaço urbano é indissociável, além disso, busca outras formas de
relação entre a cena e o público.
As experiências como espectadora de dois espetáculos específicos do 6º Festival
de Teatro de Rua de Porto Alegre iii guiam a discussão e proporcionam diálogos
diversificados sobre os usos dos espaços da cidade, seus modos de apropriação, bem
como da criação artística. A escolha dos referidos espetáculos se deu, a partir do
envolvimento estabelecido no momento da recepção, cujos acontecimentos foram
decisivos para o debate acerca das linguagens em “contaminação”.
O espetáculo Bivouac, da companhia francesa Générik Vapeuriv é uma versão
moderna de uma horda primitiva que controla as ruas e vira a cidade de cabeça para
baixo. Com os corpos pintados de azul, um trio elétrico e um cachorro metálico
incandescente, os performers avançam, manipulando barris em alta velocidade. Fundada
em 1984 por Cathy Avram e Pierre Berthelot, com sede em Marselha, esta é uma das
principais companhias de teatro de rua do mundo, seu foco está na mistura entre as
linguagens: teatro, dança, música, vídeo, imagem e uso de maquinaria pesada no
conceito de “tráfico de atores e máquinas”.
O espetáculo, que tem duração de 60 minutos, percorreu 600 metros do bairro
Cidade Baixa, atravessando avenidas de grande fluxo, interrompendo a ordem do
trânsito dos carros e pedestres. O percurso foi sendo delimitado através da
movimentação dos barris conduzidos pelos performers em associação ao carro elétrico
que se mantinha na parte de trás do “cortejo”. Para o grupo, é essencial para a
cenografia do espetáculo o poder que advém dos sons, dos movimentos e das luzes na
criação de espaços vazios, dentro dos quais existe e se move o espaço do jogo.
2
que o público deveria observar, interpretar e compreender. Para Fernandes (2011, p.
17), “a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às
demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte”, ou seja, a participação do
público ultrapassa a missão de interpretar e produzir significado frente a uma
performance. E “isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o
espectador interpretar, mas também não se pode dizer que as ações do artista per-
formativo apenas signifiquem alguma coisa” (idem). Nesse sentido, o papel do
espectador se amplia, pois assume uma posição de observador que é, ao mesmo tempo,
atuante e sujeito da fruição. Além disso, os espaços da subjetividade são incorporados à
ação da recepção, visto que o “contemplar” foi redefinido como atividade, “como um
fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas
associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado” (FISCHER-
LICHTE, 1988, p. 149).
O aspecto da contaminação é recorrente na cena artística contemporânea,
chegando a refletir, inclusive, uma crise identitária das linguagens, abalando suas
convicções epistemológicas. Nesse sentido, segundo Fernandes (ibidem, p. 11),
atualmente seria adequado falar em “experiências cênicas com demarcações fluidas de
território, em que o embaralhamento dos modos espetaculares e a perda de fronteiras
entre os diferentes domínios artísticos são uma constante”. Para a autora, ainda, é
importante pensar no espetáculo como evento que envolve performers e espectadores
numa atmosfera única, compartilhada, criando um espaço gerador de experiência que
vai além do simbólico. Esse ato transgressor da cena contemporânea é capaz de
reverberar fisicamente em seus participantes, de modo a criar um ambiente de “infecção
emocional”.
No caso do Générik Vapeur, a contaminação toma proporções que transbordam
a própria cena, pois sua inserção instaura fraturas profundas nas dinâmicas do espaço
utilizado. Tais rupturas tornam-se visíveis no nível do trânsito (automóveis e pedestres),
das paisagens sonora e visual, bem como nas nuances de relação com o cidadão que vai
estabelecendo ao longo do percurso, fazendo-se necessário pensar no espaço da cidade
como ambiente. Segundo o pesquisador André Carreira,
3
andante. Sua primeira tarefa é encontrar seu fiel escudeiro, Sancho Pança, missão que
acaba nas mãos de um catador de papel de rua. Mas não pode haver cavaleiro andante
sem seu cavalo. Sancho então constrói com sucatas um cavalo para seu amo no seu
carrinho de catador. Pronta a equipe, saem pelas ruas à procura de aventuras” (FTRPA,
2014)vii.
Neste espetáculo a itinerância se repete como traço marcante, entretanto, seu
percurso não conduz o espectador a um questionamento brusco sobre o deslocar-se.
Aliás, ele se torna quase imperceptível perante o grau de envolvimento que toma os
participantes da ação. Há um fio condutor claro no desenvolvimento do espetáculo, que
leva os espectadores a essa sensação de deslocamento. O principal elemento que integra
tal fio é a relação que vai se construindo ao longo do espetáculo entre Dom Quixote e
Sancho Pança e, consequentemente, entre este último e o público. A oscilação contínua
entre ficção e realidade, feita pelo personagem-ponte (Sancho Pança), coloca o
espectador numa posição dual, conduz a um lugar em que persiste a dúvida e alimenta a
integração. Para Silva (2011), Sancho está sempre lembrando ao público sobre o caráter
ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com os
espectadores. “Suas evoluções junto ao público são alguns dos momentos mais felizes,
pois, bebendo das fontes farsescas e histriônicas da tradição popular, confere ao
espetáculo uma deliciosa comicidade” (idem).
A noção de invasão fica evidente na montagem, por que há uma mudança, não
apenas na relação com o espaço urbano, mas também na relação com o próprio
espectador. Podemos dizer que o espectador passa por dois processos de transformação
ao se deparar com um tipo de espetáculo que se inspira na invasão. Uma, quando ele
deixa de ser pedestre e passa a ser um espectador acidental da representação; e outra
quando ele, “convidado” a ser espectador participante, se dispõe a entrar no jogo da
ação e ser surpreendido pela forma como passará a redescobrir espaços próprios de
convívio urbano e social (JÁCOME, 2013). Dom Quixote se concretiza invasor por que
propõe uma ruptura lúdica no cotidiano, oferecendo ao cidadão uma possibilidade de
jogo, um momento de quebra na obviedade do dia-a-dia. Alguns dos mecanismos
utilizados na encenação que contribuem para tais ressignificações são as instalações em
prédios e monumentos, o uso da técnica do rapel e a inserção de uma escavadeira, onde
as “Dulcinéias” são conduzidas.
É importante pensar que a contaminação como tendência contemporânea está
presente em ambos espetáculos, de formas peculiares, mas simultaneamente similares,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com o espaço urbano e com
o público. A companhia francesa aproxima-se do gênero performático enquanto o grupo
goiano tem sua escolha claramente apontada para o teatro. Não tanto uma questão a ser
respondida, mas uma provocação se faz pertinente: ainda podemos ter fronteiras bem
definidas entre linguagens ou esse é um mecanismo de sobrevivência utilizado pelos
grupos frente ao sistema? Lehmann (2013, p. 874-875) insiste na improdutividade da
discussão sobre as definições, para o autor:
É óbvio que o teatro, assim como outras práticas artísticas avançadas, adotou
elementos da performance (autorreferencialidade, desconstrução de
significado, exposição do mecanismo interno do seu próprio funcionamento,
mudança da atuação teatral para a performática, questionamento da
estrutura básica da subjetividade, repúdio – ou pelo menos crítica e exposição
da representação – e iterabilidade), enquanto a performance, inversamente, se
tornou teatralizada de muitas maneiras.
4
Ao assumir o desvio performativo como norte da situação é válido questionar se
o discurso do “deixar-se experimentar” como prioridade se sustenta, principalmente no
que diz respeito ao lugar do público. Outras questões reforçam a reflexão: “Em que
medida estas ações afetam a percepção estética e operam ‘regras culturais’ válidas?
Quanto atos como estes transformam os espectadores em performers eles próprios?”
(SOARES, 2008). Desgranges (2010, p. 50) complementa: “como compreender a
pertinência de uma proposta artística que convida o espectador a disponibilizar-se para
um modo de leitura que ultrapasse a barreira da dimensão lógico-racional, e se permita
saborear os descaminhos da experiência com a arte?”.
Pensar sobre o espectador que se torna performer é assunto delicado e requer
repensar o cidadão e a cidade para tentar compreender o espaço urbano da recepção.
Como meio de delimitar o espaço da discussão, por ora, introduz-se a noção de
urbanidade no intuito de refletir sobre o lugar do indivíduo urbano frente a tais
manifestações contemporâneas. Para Afonso (2007), a urbanidade não se refere nem a
uma delicadeza nem a um primitivismo do meio rural, mas “a uma virtude essencial que
define o homem atual na sua condição urbana”. Sendo considerada assim, a urbanidade
apresenta-se como a “condição urbana da humanidade”, incluindo todos que vivem
neste meio, seja conscientemente ou não. Nesse sentido, a urbanidade alcança além do
contexto cultural, social ou estrutural de uma cidade, podendo ser compreendida como o
modo com que os habitantes de um lugar se relacionam segundo seu espaço e tempo.
A relação do indivíduo com a cidade, refletida nos seus traços da vida cotidiana,
referida pela urbanidade, é, muitas vezes, turbulenta, pois reflete suas contradições. Para
Desgranges (2010, p. 54), “o indivíduo lançado no isolamento de seus interesses
privados, vê a multidão como ameaça constante, ou pela inexistência de um espaço
público convidativo, ou pela perda da singularidade mediante a estandardização de
comportamentos”. Nesse conflito reside o papel da arte como resistência aos modelos
de interação oferecidos pelo sistema, cujos interesses permeiam processos de
homogeneização dos espaços da urbe. Para Scocuglia, refletir sobre a cidade implica,
necessariamente, atravessar outros campos do conhecimento como a sociologia, a
antropologia e as artes.
5
involuntária”. Nesse sentido, o teatro e a performance na cidade surgem para sugerir ao
individuo novas formas de vivenciar o urbano, para apresentar possibilidades do “se
perder”, colocar-se num risco não-habitual, explorar o poético como desconhecido,
contrapondo o sujeito ao modo usual e operacional de “ver, sentir e pensar o mundo”.
Diante das possíveis realidades as quais o cidadão se expõe atualmente, pensar
acerca dos efeitos da contaminação na cena e sua reverberação no ato de recepção
reflete, igualmente, na discussão sobre a criação de espacialidades. Desse modo, ao
pensar sobre as manifestações artísticas na cidade é imprescindível reconhecer que, as
mesmas, estão embutidas naturalmente de posicionamentos políticos, a partir do
momento em que decidem interferir na lógica da cidade. Tais atos criam intromissões e
estranhamentos produtivos, desvelando faces desconhecidas do espaço urbano. Para
Carreira (2008), apesar de imbuídas por gestos políticos, tais manifestações não nascem
sempre impulsionadas por uma motivação politizada claramente definida, contribuição
que aponta para um redirecionamento do senso comum em relação aos “papéis”
desempenhados pela arte urbana.
Nesse sentido, é válido enxergar o exercício do “teatro performativo” na cidade
na sua potência máxima de intercâmbio com as vozes do próprio espaço, intensificando
trocas com a arquitetura, as vias principais e periféricas, seus ritmos e usos. A partir
desse posicionamento, compreende-se a prática do teatro/performance na cidade como
elemento essencial de interferência na urbanidade, criando novas espacialidades e novos
lugares. Sobre esse exercício, Carreira (2008, p. 71) comenta:
Referências
CARTAXO, Zalinda. Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. O Percevejo,
Rio de Janeiro, n. 1, p. 01-16, 2009.
6
FÉRAL, J. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”. In: FÉRAL, J.; SAVONA,
J. L.; WALKER, E. A. (Dir.). Théâtralité, écriture et mise en scène. Quebéc: Éditions
Hurtubise HMH, 1985.
LEHMANN, H.-T. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 224
SILVA, Igor de Almeida. Dom Quixote e a invasão da poesia. 2011. Disponível em:
<http://www.questaodecritica.com.br/2011/10/dom-quixote-e-a-invasao-da-poesia/>.
Acesso em: 02 jul. 2014.
SOARES, Luiz Claudio Cajaíba. Algumas reflexões sobre os modos de recepção das
Artes Cênicas contemporaneamente. 2008. Disponível em:
<http://portalabrace.org/memoria/vcongressoteorias.htm>. Acesso em: 02 jul. 2014.
i
Apoio FAPESC; CAPES.
ii
Zalinda Cartaxo é artista visual, autora do livro Pintura em distensão e professora adjunta na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
iii
O festival, que já está na sua sexta edição, aconteceu de 20 a 29 de Abril de 2014 na cidade de Porto
Alegre – RS.
7
iv
GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <http://ftrpa.com.br/bivouac-
franca-marseille/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
v
“Bivouac redonne envie de courir, de frôler, d'esquiver, De vérifier ses réflexes, sa capacité de saut, de
volte-face. De là s'esquisse la chorégraphie d'un ballet collectif, différent d'un public à l'autre, qui se
fragmente en autant de pas de deux comédien-spectateur. Etre à la fois très près et très loin. Partager le
même espace, respirer le même air et appartenir à deux univers Qui ne se superposent pas, dont l'un est
l'imaginaire de l'autre”. GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em:
<https://www.facebook.com/Generik.Vapeur?fref=ts>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vi
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Histórico. 2008. Disponível em:
<http://teatroqueroda.blogspot.com.br/p/historico.html>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vii
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu
escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido). 2014. Disponível em:
<http://ftrpa.com.br/das-saborosas-aventuras-de-dom-quixote-de-la-mancha-e-seu-fiel-escudeiro-sancho-
panca-goiania-go/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
8
Espaços à Margem do (I)material
Resumo:
estimado compañero
Referências
Resumo: Este artigo tem como propósito falar sobre poéticas cênicas a partir do pensador
teatral e poeta francês Antonin Artaud e o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Dois
pensadores que conseguiram criar linhas de fuga capazes de fazer o teatro saltar pra além
do seu tempo. Coloco em discussão os pontos de convergência entre os dois nos modos de
conceberem seus pensamentos no que tange a encenação. Pretende-se delinear as
possibilidades poéticas que esses dois pensadores abrem à arte teatral na época em que
viviam e de que forma as questões que eles colocam para o teatro chegam a nós ainda hoje.
Para pensar em poéticas cênicas tomo como ponto de partida as rubricas da peça
Esperando Godot de Samuel Beckett e o livro O Teatro e Seu Duplo de Antonin Artaud.
Neste artigo colocarei Beckett antes de tudo como um encenador, que leva o corpo cênico
para sua escrita, e transforma a palavra em corpo, antes mesmo de esta palavra sair do texto
para cena, a meu ver não há nessa relação uma importância maior da palavra diante da cena
ou da cena para a palavra, a escrita de Beckett consiste numa espécie de simbiose entre
corpo cênico e palavra-texto.
1
Hoje se trata a obra teatral como fruto de todas as conexões materiais e imaginárias
criadas no espetáculo, colocando os sentidos dos elementos que ela comporta. O que está
sendo colocado nos nossos dias não é a negação do texto dramático, de alguma forma ele
não seja mais necessário para a encenação. De certo modo grande parte das encenações
possui um texto dramático, o que difere, é o fato deste não ser tratado como elemento único
e principal para a produção do espetáculo. Sendo que ao analisar o texto escrito em uma
montagem, faz-se junto a todo o espetáculo, não o tratando como um elemento
independente. Pois, características deste texto dramático podem ter sido explicitadas ou
não, para que falem o que se queira imprimir com o conjunto de elementos de uma obra.
Na A Encenação e a Metafísica, segundo capítulo do livro O Teatro e seu Duplo,
Artaud coloca:
Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que
não obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos,
tudo que não está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função
de suas possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa
sonorização) seja deixado em segundo plano? (ARTAUD, 2006:36)
Desdenhando qualquer visão separada da arte, qualquer versão daquela visão que
considera as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para encantar
os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte a uma
2
representação dramática. Na poética de Artaud, a arte (e o pensamento) é uma
ação — e que, para ser autêntica, deve ser brutal — e também uma experiência
sofrida, e impregnada de emoções extremas. Sendo tanto ação quanto paixão
desse tipo, iconoclasta bem como evangélica em seu fervor, a arte parece requerer
um cenário mais arrojado, fora dos museus e lugares legitimados de exposição, e
uma forma nova e mais rude de confrontação com seu público. (SONTAG,
1986:27)
Assim Artaud aponta formas objetivas para que o teatro atinja o público, mas
sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral que seja
fixa esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no
impedimento do movimento da cultura, do espírito.
O teatro de Samuel Beckett inclui tanto texto dramático como encenações que ele
mesmo assina. Através de sua escrita pungente e altamente elaborada, Beckett é posto no
grupo de grandes nomes da teatralidade, como Shakespeare e Racine. Ele dialogou com
todas as tradições, mas forjou uma dramaturgia própria, que já nasceu potente. O que deu
impulso ao teatro de Beckett foi sua experiência na direção: nos anos 60, ele passou a
dirigir teatro e escrever sua dramaturgia com um sentido mais precioso do espaço e do
tempo cênicos. É dessa observação que surge um criador que, muito mais ligado com a
materialidade da cena do que com temas relativos à literatura, passou a escrever levando em
conta os elementos cenográficos tanto quanto os conteúdos das falas de seus personagens.
3
real e tem importância; o enredo só pode existir no pressuposto de que os acontecimentos
no tempo têm alguma importância. Esse é o pressuposto que a peça põe em dúvida. Pozzo e
Lucky, Vladimir e Estragon não são personagens, mas corporificações de atitudes humanas
básicas, um pouco com as virtudes e vícios personificados em mistérios medievais.
Segundo Luiz Fernando Ramos, quando Beckett começou a escrever teatro, já tinha
produzido uma notável obra como prosador. Seus estudiosos chegam a divergir sobre se
não seria mais significativa a sua produção estritamente literária que a teatral.
A maneira como Beckett desenvolve sua poética cênica é uma possível maneira para
confrontá-lo com Artaud, e mesmo para colocá-lo diante de encenadores deste início de
século. Beckett costuma ser vinculado a uma tradição literária. Essa aproximação de sua
dramaturgia do drama no sentido clássico o colocaria numa posição mais conservadora
quando comparado a Artaud. O encenador francês, com seu teatro ritualístico, anti-
4
aristotélico, ensejaria uma teatralidade mais aberta, Beckett, com suas peças, propõem outra
forma textual que foge do formato classicista, em que a palavra é o que dá o movimento, e
o pensamento racional, a garantia de entendimento do drama. Nos textos para teatro de
Beckett e poética cênica é colocada nas rubricas. Nem Beckett e muito menos Artaud
dependem do entendimento racional do espectador, e nisso os dois discordam
fundamentalmente com a poética de aristotélica. Em Artaud e Beckett a o texto se equipara
aos aspectos que são comuns na cena. No caso de Beckett, quanto mais ele se familiariza
com o palco e com a direção, menos se interessa pelas questões racionais de um
pensamento. Em alguns casos, passa a ser mais importante para ele a velocidade com que
um ator diz certa fala do que a compreensão de sentido. A materialidade do palco, a luz e os
movimentos dos atores passam a ser elementos da sintaxe teatral. Nas rubricas de
Esperando Godot fica explicitado que Beckett põe sua escritura no corpo que compõe a
cena:
Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar. As botas de Estragon estão no centro do
proscênio, calcanhares juntos e bicos separados. O chapéu de Lucky no mesmo
lugar de antes. Vladimir entra agitadamente. Ele para e olha demoradamente para
a árvore e de repente começa a andar febrilmente pelo palco. Ele para diante as
botas, pega uma delas, a examina, cheira, manifesta asco e a coloca
cuidadosamente no lugar. Vai e vem. Para na extrema direita e mira distante,
cobrindo os olhos com uma das mãos. Vai e vem. Para na extrema esquerda,
como antes. Vai e vem. Para repentinamente e começa a cantar em voz alta.
(BECKETT, 2007:53)
Nesse sentido, ele está próximo de Artaud, pois para Beckett e Artaud o texto ou
trama estão mais voltados para as potencialidades de significação da obra. Outro ponto de
convergência que surge da observação da obra de Beckett e Artaud está na relação à
teatralidade, que surge quando a obra de Beckett é confrontada com a vida e a Obra de
Artaud. Artaud negava a literatura dramática qualquer responsabilidade na concretização de
um novo teatro em que o corpo, por excelência, fosse à linguagem. Ele buscava uma
escritura física e tridimensional no espaço do teatro que resgatasse a dimensão ritual dos
tempos primitivos.
Beckett nunca associou o seu teatro à realização de um rito e fez de seus textos e
espetáculos momentos de intensa perplexidade, em que a dúvida e a ambiguidade, mais do
que qualquer crença, foram privilegiadas. Mas, na investigação do espaço cênico, ou das
5
potencialidades de uma representação teatral, parecem convergir. Artaud pretendeu inventar
uma nova palavra para revelar um corpo cênico ainda não visto. Beckett procurou inscrever
suas palavras o corpo cênico visível, e com isso conseguiu pelas rubricas, criar partituras
contra as quais fica difícil qualquer ator de um texto seu se rebelar. Em Esperando Godot
chega a momentos em que as rubricas excedem a própria palavras. Ambos estão
trabalhando prioritariamente com a materialidade da cena e não com a articulação de
sentido propiciada pelo desenvolvimento de uma trama.
Artaud gastou grande parte de seus esforços para atacar a “representação teatral”
entendida como processo que submete a cena a uma ideia que lhe é exterior. No
teatro de seu tempo é hegemônica a ideia de que a encenação se reduz à
representação de um texto dramatúrgico, constituindo-se quase como a ilustração
de um produto literário. (QUILICI, 2004:71)
Uma antítese que pode ser levanta entre Artaud e Beckett, é a maneira positiva de
Artaud vislumbrar no ser humano e respectivamente na sua cena ritual uma maneira de
transformação do homem e da sociedade através da arte, enquanto Beckett faz um registro
do mundo como sistema de coisas e do ser humano, esgotado, esfacelado e fadado ao
fracasso diante desse sistema, o homem para Beckett estaria em um esgotamento do ser.
Entender o que não tem sentido por vezes parece não ter sentido, criar relações e sentidos.
6
Manusear a palavra, processá-la e transformá-la em torno de um pensar que tem por
contingência a fuga dos caminhos preestabelecidos da escrita, fuga que também pode ser
poética e potente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo, Martins
Fontes, 2006.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
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QUILICI, Cassiano Sidow. AntoninArtaud, Teatro e Ritual. São Paulo. Annablume, Fapesp,
2004.
RAMOS, Luiz Fernando. O teatro total de Beckett, Artigo. São Paulo, Revista Bravo, Ano 2 -
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SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Tradução: Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. São
7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ILUMINANDO O DEFUNTO
O espectador entra no espaço cênico sendo guiado por duas atrizes com vestidos
velhos, maquiagem pesada e cabelos chamativos, arrastando com elas duas cadeiras. À
frente se encontram outras dez cadeiras arrumadas em um quadrado, onde dois espaços
vazios são completados com as cadeiras trazidas pelas atrizes. Posicionam-se no espaço
e constroem uma imagem que sustentam por um tempo. Com essa primeira cena
pulsando, fui convidado a criar a concepção de luz do espetáculo O Defunto (texto de
René de Obaldia, 1961) do Grupo Galhofas – MG (Uberlândia – 2010).
Ainda na graduação em Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, mas com
alguns anos já de prática em iluminação cênica, aceitei o desafio que seria: montar a
iluminação com o espetáculo quase pronto. Uma experiência que tentava evitar, mas
que no momento me agradou muito, considerando que a ideia inicial do diretor, Felipe
Brognoni Casati, era de uma área de representação sem delimitação clara, onde o
público poderia ficar em qualquer lugar, inclusive na própria cena. Essa ideia foi
descartada após os primeiros ensaios abertos, ao perceber que o público não reagia
como o esperado.
Comecei meu trabalho pela leitura do texto, repleto de falas e passagens
absurdas, tais como a em que se considera certo personagem um poeta após este contar
o motivo de haver violentado uma menina, matado a avó da esposa, entre outras coisas
e, mesmo assim, mulher e amante conversam como grandes amigas sobre a falta que ele
faz. O diretor decide seguir a lógica distorcida do texto em cena, por meio do emprego
de objetos ultrapassados e modernos ao mesmo tempo. Também decide por fragmentar
o espetáculo. Encadeia momentos que não se ligam uns aos outros por efeito de
causalidade. Mistura, também, no espetáculo informações pessoais das atrizes, sob a
forma de relatos e brincadeiras. Dando sempre a liberdade da improvisação para o
trabalho.
Nessa montagem diversos elementos influenciam o projeto de iluminação que
estava sendo criado. A direção, o cenário, os objetos cênicos, o texto, a disposição
espacial do público e a projeção (que já estava incluída em cena no momento em que fui
convidado para o processo). Estes foram fatores essenciais para se pensar os efeitos
usados na criação da iluminação. Para esse trabalho, os equipamentos técnicos da
iluminação foram além dos refletores encontrados em um teatro, se incorporando
também ao cenário, como por exemplo, uma das cadeiras foi instalado uma lâmpada
incandescente de 12V com uma cúpula de abajur rasgado em cimai.
Envolto em tantos elementos que compõem com a luz, o caminho tomado foi o
de fragmentar a iluminação, acompanhando a concepção do diretor, abordando uma
cena de cada vez. Cada cena estudada particularmente na sua lógica, onde a linearidade
se perde. Um cuidado tomado foi o de não deixar as cenas sem um eixo de ligação,
mesmo que a peça tenha sido montada em fragmentos. A dificuldade surge ao ter que
montar uma narrativa igualmente não-linear com a luz, ampliando os efeitos de
fragmentações pensadas para a cena, mas que se constituísse por completa e que se
complementasse enquanto a peça vai acontecendo. Uma iluminação que ao mesmo
tempo dê conta dos fragmentos das cenas individualmente, como do espetáculo como
um todo. Queria estimular a percepção do público para a luz de cada fragmento e, ao
mesmo tempo, do espetáculo completo.
Com essas informações iniciais, comecei a pesquisa da iluminação cênica por
dois lugares: o antigo, desgastado, quebrado e fragmentado; e o novo, o moderno, o
rápido e o simétrico. Iniciei fazendo um levantamento de imagens que se conectavam
com o espetáculo, chegando a duas vanguardas artísticas: expressionismo e futurismo.
A luz no trabalho de O Defunto é indispensável para o desenvolvimento da peça, já que
ela distorce o espaço e as personagens, conseguindo assim deformações para a cena.
Para os expressionistas a luz é imprescindível. É através dela que se
conseguem as deformações, os focos concentradores, as projeções,
sombras, manchas, flashes, contrastes fortes, variação cromática e
tudo mais que possa atuar como recurso de desnaturalização e
expressão do objeto, do sujeito ou da forma em si mesma. (de
Andrade et al., s/d.)
O cenárioiii, como já dito, são doze cadeiras estilizadas com diversos objetos
acoplados que, dispostos no espaço, formam corredores. A iluminação é criada para
ampliar esses efeitos de corredores propostos pela cenografia. Corredoresiv com luzes
difusas que traz a sensação de se perder na escuridão e no espaço. Esse efeito luminoso
pode ser usado de diferentes maneiras durante a cena, às vezes fazendo corredores
paralelos, outras vezes corredores perpendiculares, dependendo do que a cena pede. Os
corredores de luz não se mantêm unicamente no cenário, mas também contornando o
mesmo.
Ainda falando sobre os corredores e entrando no outro movimento de vanguarda
artística que influenciou o desenvolvimento do trabalho, o futurismo, foi pensada a
velocidade. Tanto na concepção, quanto na operação da iluminação, a velocidade é
sempre muito presente. Os corredores aparecem e desaparece rapidamente, a percepção
de profundidade que a movimentação da luz traz, as formas lineares trazidas pelos
corredores e focos de luz e a constante variação de intensidade da luz, tudo isso é
influencia direta do futurismo.
A paleta de cores escolhida para a iluminação do espetáculo partiu da conversa
com o diretor, que propôs a ideia de fotos velhas, de degradação pelo tempo, que já era
usado tanto no figurino e maquiagem quanto na cenografia. Cadeiras velhas,
consumidas pelo tempo, figurinos remendados e desgastados, uma maquiagem forte e
marcada de envelhecimento, objetos antigos, como uma maquina de escrever, são todos
elementos propostos pelo diretor. Com todas essas informações a primeira gelatina de
efeito cromático escolhida foi à chamada chocolate (Roscolux #99) que, colocada em
cena, tem efeito de uma iluminação para o tom de sépia, como uma foto envelhecida.
A base da iluminação foi feita com refletores sem nenhuma gelatina e com a
gelatina chocolate, mas para evitar que a cena se tornasse monótona e destacar
momentos específicos do espetáculo foram incluídos alguns efeitos com diferentes
cores. Valmir Perez diz que “deve-se levar em consideração que a luz, sendo também
elemento de linguagem, pode ter seus matizes alterados para compor o psicológico da
cena” (PEREZ. 2007) pensando nisso as gelatinas são usadas para transformar a cena
que se segue trazendo um novo ambiente e sensação para o palco. Em um momento
específico, em que as atrizes estão falando sobre a manipulação do personagem sobre
quem conversam, de suas traições e agressões, seguido de assassinato, é proposto com a
luz um efeito de estranhamento para criar um ambiente mais suave, quase onírico.
Nesse momento, a iluminação foi inspirada no quadro Chuva de Oswaldo Goeldi (1957)
onde há predominância de cores frias, deixando em destaque o vermelho do guarda
chuva. Para destacar a lã vermelha que está ao fundo da cena esticada entre as duas
atrizes foi utilizada uma gelatina azul (roscolux #80), em disposição de corredor ao
fundo da cena, com um leve toque de refletores sem nenhuma gelatina. A utilização
desses refletores sem filtro de luz em baixa intensidade é para que exista luz chegando à
lã na frequência do vermelho, pois ao colocar a gelatina azul é filtrado todo essa
frequência do espectro de luz.
Em outro momento, um refletor fazendo um foco a pino (90° do chão) recebe
uma gelatina de correção de luz (Roscolux #3206), essa gelatina serve para transformar
a temperatura de cor da luz, que, geralmente, é 3200K para 4100K. Esse efeito traz uma
cor mais fria para a cena, uma sensação de angelical, de pureza, de proteção. O foco de
luz é usado quando as atrizes contam a história de um estupro, falando da poeticidade
do personagem ao escolher sua vítima pelo tom negro de seus cabelos. Esse contraste
foi utilizado para transmitir tanto a frieza com que o personagem lidou com a situação,
como também, a calma que o assunto é tratado pelas personagens em cena. Compondo,
também, com a imagem criada pelas atrizes, onde, ajoelhadas, seguram e arrebentam
um colar, deixando todas as suas pedras caírem pelo espaço, que mostra apenas esse
foco de luz acesov. As pedras vão caindo no chão e desaparecendo no espaço, enquanto
as duas atrizes, agora sentadas, observam calmamente a situação.
Além da utilização de gelatinas para efeitos cênicos, também foi inserido, no
jogo da iluminação, focos de luz recortados que reforçam os corredores construídos pelo
cenário e pela iluminação base da peça. Um recurso, utilizado diversas vezes, é um foco
de luz em duas fileiras de cadeira verticais, recortados em um retângulo, desconstruindo
assim o espaço real da cena e criando um fragmento espacial que é usado, tanto para
colocar as personagens em um lugar atemporal, como também para criar um
distanciamento da temporalidade que se segue em cena, trazendo assim uma informação
que não é das personagens que se encontram em um tempo e espaço específico.
Outro recorte de luz é usado para montar em um espaço a ideia de zoom da cena,
aproximando duas cadeiras do público e construindo um aprisionamento à frente do
cenário onde as atrizes ficam passivas a sua limitação espacial. Com esse efeito as
atrizes retomam o lugar inicial da cena, mesmo estando espacialmente dele. Seria como
um zoom de câmera fotográfica, que aproxima a visão espacial focando em algo
específico, no caso as duas cadeiras iniciais.
Também foram inseridos focos de luz circulares criando assim um
distanciamento e um estranhamento da cena, considerando que durante a maior parte do
espetáculo a iluminação acontece em corredores e recortes retangulares. Esses focos de
luz se encontram nas extremidades do espaço de cena iluminado, como pequenos nichos
que trazem informações paralelas a cena ou ligadas às atrizes.
O primeiro foco de luz circular é usado quando o diretor propõe um
distanciamento da cena teatral. As atrizes desconstroem as personagens e se dirigem ao
público para contar um relato pessoa, com isso o foco de luz fica em baixa intensidade,
quase impossibilitando de se ver, enquanto uma lanterna posicionada de baixo para
cima ilumina minimamente as atrizes e a pessoa do público convidada a participar da
cena. Outro foco de luz redondo é usado para quando uma das personagens está
refletindo sobre um suicídio e tentando se afogar. Cada foco de luz toma diferentes
funções em cena, sempre desconstruindo o espaço retangular que é instaurado,
transformando a percepção do tempo e do espaço da cena.
A peça tem uma particularidade trazida, tanto pelo texto como pela encenação,
que é a repetição. Não me refiro aqui à repetição como recurso de comicidade, mas a
repetição do espetáculo todo, o tempo, as ações e os diálogos são repetições das
personagens, como se elas fizessem a mesma coisa todos os dias no mesmo lugar no
mesmo horário, um ciclo que sempre se repete começo, meio e fim. O diretor propõe
fortalecer essa percepção da cena, arrumando todo o cenário, que foi desconstruído
durante toda a peça, ao final da apresentação, mudando unicamente o lado que o cenário
está posicionado, como se tivessem preparado tudo para o próximo dia, antes de irem
embora.
A iluminação se propõe a ser da mesma maneira, construindo espacialidades
que, ao final da apresentação, continuam funcionando, mesmo o cenário e a cena
virando de lado, já não mais de frente para o espectador. Um quadrado central com
refletores com gelatina chocolate de frente e sem nenhuma gelatina de contra luz,
complementado com corredores em volta desse centro que constroem um quadrado de
contorno com a luz toda feito com refletores sem nenhuma gelatina e ao centro um foco
de luz a pino com gelatina de correção. Com isso, qualquer que seja à frente da cena a
iluminação base do espetáculo está pronta, modificando só do velho para o atual
dependendo do lado, o que também compõem com a concepção do espetáculo.
Esses corredores que se encontram no contorno do centro da cena, são ligados
separadamente, e constroem com ele um caminho de luz a se seguir, que por mais que
você corra por ele, termina sempre no mesmo lugar. Uma volta interminável em torno
do assunto que as movem: o defunto. O cotidiano que sempre prende o passado que
ninguém quer esquecer. O velho e desnecessário continuando sendo a novidade do dia.
As personagens constroem um espaço imaginário em torno de uma pessoa, que há anos
já não tem mais vida, espaço esse materializado com a iluminação e a diferenciação de
cores proposto para a luz da cena.
Nesse momento a iluminação não se limita mais a iluminar o espaço cênico, ela
constrói esse espaço que começa a existir a partir disso, existindo muito além de
personagens e cenografia. Um lugar imaginário que ganha vida. Durante toda a peça a
iluminação constrói a cena e sua espacialidade, criando focos de atenção de luz,
destacando objetos e personagens, fragmentando a cena, ocultando, criando ambientes,
e deslocando as personagens no tempo e espaço da cena.
A luz, como já dito, foi pensada para compor as fragmentações das cenas
criando diferentes espaços e desconstruindo uma linearidade narrativa, mas ao
acenderem-se todos os corredores e focos de luz, surge um novo ambiente na cena, um
ambiente completo que será utilizado quase ao final do espetáculo, como se todas as
informações que foram sendo ditas durante a apresentação se juntassem em um único
lugar costurando cada fragmento que foi anteriormente dito, construindo assim toda a
história e o discurso dito em cena. Essa completude de luz que une todos os fragmentos
de cena compõe-se com a concepção do espetáculo e com o texto, que traz as
informações aos poucos e sem uma linearidade. A primeira vista parecem absurdas e
desconexas as cenas que são apresentadas, mas ao juntar todas as partes apresentadas
pela peça, a história vai se revelando, como se revela e iluminação.
A iluminação cênica é de suma importância para a construção do espetáculo, não
só ajudando a mostrar o que acontece em cena, como também revelando sensações,
emoções e sentimentos das personagens. Sem contar na desconstrução e construção
espacial que esse recurso possibilita e na ilusão que consegue criar em cena, distorcendo
formas, cores, profundidades, alturas e larguras. A pesquisa da iluminação cênica pode
potencializar a concepção que o diretor tem do espetáculo, do cenário, figurino e
maquiagem. Uma concepção de luz trabalhada em conjunto com o diretor e outros
designers amplia as possibilidades das soluções cênicas impostas à direção, potencializa
os recursos expressivos da encenação e as formas de representação percebidas em um
espetáculo teatral.
Bibliografia
i
Foto de Felipe Braccialli <https://www.flickr.com/photos/braccialli/9541547557>
ii
Disponível em <http://www.flickr.com>
iii
Foto de Felipe Braccialli < https://www.flickr.com/photos/braccialli/9285035265>
iv
Corredor também é um termo específico da iluminação cênica que trata da disposição
orientada de refletores, produzindo uma área de iluminação retilínea e contínua, geralmente disposto
cruzando o espaço de representação em atravessamento lateral, da esquerda para a direita, de acordo com
o ponto de vista do espectador.
v
Foto de Rafael Michalichem < https://www.flickr.com/photos/michalichem/8631235252>
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Por se tratar da versão moderna de um mito grego, faz-se necessário entendermos que,
desde a origem humana, os mitos exerceram importante função na relação entre os homens e
os deuses. Através dos rituais, estes homens estabeleciam uma aproximação e um diálogo
com o sobrenatural. Tomados como verdade, os mitos estabeleciam regras e normas de
conduta de tribos e povos. Esses mitos eram narrados de geração a geração, especialmente
entre os gregos, convertendo-os e transformando-os em função dos interesses políticos e
sociais da época.
Uma vez que a trajetória do herói trágico na representação das tragédias no palco grego
na Antiguidade poderia produzir efeitos significativos para a paideiaii, podemos entender que
Guarnieri e Peixoto também objetivam uma educação política para o povo brasileiro a partir
da teledramaturgia. O Édipo Rei, figura mitológica grega, é transmutada para a realidade
sertaneja na figura de um fazendeiro também chamado Édipo. Temos conhecimento de que o
“Édipo” sofocliano é um modelo universal de arrogância, intransigência, desmedida e
imprudência. Esse modelo universal de Édipo é apropriado por Guanieri e Peixoto para, de
certa forma, retratar o autoritarismo dos coronéis no Brasil.
Para proporcionar uma identificação direta do público brasileiro com a obra, Guarnieri e
Peixoto transferem o espaço de representação da polis grega para o sertão brasileiro. O
ambiente inicial onde ocorre o drama é descrito com riqueza de detalhes, determinando-o
como lugar típico de fazenda. Por um lado, as primeiras indicações espaciais se dão à noite,
no plano presente, enquanto que, a história contada pelos cantadores ocorre durante o dia, em
contrastes evidentes de alegria (festa na fazenda) e sofrimento (vida dos empregados da
fazenda de Édipo). Ressaltemos que os cantadores presentes na obra de Guarnieri e Peixoto
atuam como elementos epicizantes da obra onde os acontecimentos se desdobram a partir da
narração dos mesmos. Os contrastes espaço-temporais apresentados por Guarnieri e Peixoto
parecem propositais com o intuito de provocar reflexões em torno da trama. O autor rompe
com o clima de celebração no interior de um galpão da fazenda, lançando-nos num ambiente
hostil e triste, ocasionado pela peste, como podemos observar na descrição abaixo:
Na fazenda de Édipo, como também ocorre em Tebas, uma peste está assolando o lugar,
as famílias decidem inutilmente abandonar a região, enquanto um grupo de trabalhadores em
procissão, em meio a cantos e rezas, dirigem-se ao casebre do beato Tirésias. Observemos
aqui que a figura do beato Tirésias, diretamente apropriada do adivinho Tirésias da tradição
clássica, é um elemento que pode ocasionar uma identificação no espectador brasileiro e,
dependendo da ocasião, um “distanciamento”. Através do beato Tirésias, Guarnieri e Peixoto
colocam a figura da liderança religiosa que muitas vezes é-lhe atribuída um caráter
messiânico. O líder religioso é, muitas vezes, tido como uma pessoa de mais conhecimento,
sendo muitas vezes a única referência intelectual do lugar para as pessoas humildes e de
pouca instrução. Essa referência à figura do líder religioso pode ser observada com clareza em
figuras emblemáticas como Padre Cícero, no Ceará, Antônio Conselheiro, na Bahia, Jim
Jones, na Guiana, o beato Salú, em Roque Santeiro, dentre outras recorrências.
Tal como ocorre na tradição mítica grega, o beato Tirésias é tão cego quanto Tirésias da
mitologia grega. Através de sua obra, tanto Sófocles quanto Guarnieri e Peixoto, mostram que
Tirésias, apesar de sua cegueira, consegue enxergar mais do que aqueles que possuem o
sentido da visão. Tirésias vem para mostrar aos dois Édipos que o sentido da visão muitas
vezes limita o homem, fazendo com que este apenas possua uma visão estreita da realidade.
Essa visão limitada faz com que o homem acredite que pode enxergar a realidade em sua
totalidade. Imbuído dessa falsa consciência, o homem tende a adotar uma postura arrogante,
intransigente, e até mesmo negligente. Tal fato se dá tanto no Édipo de Sófocles quanto no
Édipo de Guarnieri e Peixoto.
Como ocorre no Édipo Rei de Sófocles, na obra de Guarnieri e Peixoto a peste que
assola a região é também fruto de um crime insolúvel. Neste caso, o crime é cometido contra
o antigo dono daquelas terras de Édipo. Antes de tornar-se dono das terras, Édipo se
envolvera em uma chacina que resultou na morte de seu próprio pai, sem saber que Laio era
seu pai biológico. O beato Tirésias esclarece que a peste apenas terá fim quando o autor do
crime for punido, revelando a Édipo que ele é o autor de tal crime. O Édipo de Guarnieri e
Peixoto se comporta como o Édipo de Sófocles, não dá crédito às palavras do beato, fazendo
com que os personagens se envolvam em um processo investigativo em que se descobre que
Édipo era de fato o algoz de seu próprio pai. Tal tomada de consciência faz com que Édipo,
tal como ocorre em Sófocles, fure seus próprios olhos. Mesmo mantendo os mesmos recursos,
há uma importante distinção entre os dramaturgos: se em Sófocles, o erro trágico de Édipo se
dá frente a sua soberba, o qual sofre os desígnios divinos, em Édipo de Guarnieri e Peixoto,
tal conduta do protagonista provoca as misérias materiais, refletidas nos trabalhadores da
fazenda. Para que aquela vida de privilégios se mantenha, é preciso o trabalho e a exploração
dos empregados que vivem sobre o controle do fazendeiro Édipo, revelando aí uma relação de
desigualdades sociais e econômicas.
O texto dramático é um dos suportes para o trabalho dos artistas que atuam na
área técnica do espetáculo: cenógrafo, figurinista, iluminador, maquiador, etc.. Nele
estão contidas informações importantes para o processo de criação dos mesmos,
paralelo ao trabalho do ator e da opção estética do encenador.
As informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias são pistas
que norteiam os caminhos para a encenação em sua totalização. Segundo a autora,
No interior do discurso teatral; dialogismo de que é mais fácil
postular a existência do que fazer o levantamento das marcas, o
discurso consciente/inconsciente de um scriptor, ou percebê-lo
como discurso de um sujeito fictício são dois procedimentos
possíveis, com a condição de não ficarem isolados um do outro.
(...) O discurso teatral é por natureza uma interrogação sobre o
estatuto da palavra: quem fala com quem? (UBERSFELD, 2005,
p.168)
As informações que o texto fornece sobre as personagens são outra fonte para a
construção da personagem e contribuem também para a caracterização externa dos
mesmos. Tais informações, situadas nas falas das personagens e em indicações do autor,
juntamente com as indicações da direção norteiam o trabalho do figurinista e
maquiador. Podem-se encontrar informações sobre o status social, idade, raça, entre
outros, e assim, podem ser traduzidas em imagens e cores que determinam a
personalidade das personagens.
Quando em seu texto, Mendes cita como exemplo a peça Avental Todo Sujo de
Ovo, por exemplo, com um diálogo entre as personagens Noélia e Alzira, o leitor já
situa o contexto social em que se passa a peça. As trocas verbais contidas nos diálogos,
em um texto teatral, oferecem pistas que norteiam o trabalho do maquiador, por
exemplo. Fato fundamental na construção da estrutura do método que estou propondo
em minha pesquisa, pois o mesmo é destinado ao ator.
Para Kott o grotesco está relacionado com o jogo. O diálogo é um jogo, em que
“no momento em que começa os dois parceiros devem ter as mesmas chances de ganhar
ou de perder, e ambos devem jogar segundo as mesmas regras” (KOTT, 2003, p.132).
Em Fim de Partida, de Beckett, o jogo entre opressor e oprimido de reveza, pela
necessidade um do outro pela sobrevivência. Hamm e Clov travam um duelo de
intolerância necessária para as suas sobrevivências. Beckett constrói suas personagens
com elementos clownescos, em Rei Lear os personagens estão numa condição humana
pontuada pela crueldade imposta pelas escolhas do protagonista, a ponto de reverter a
sua condição e a de seu bobo. Tanto em Rei Lear e em Fim de Partida a convivência é
desagradavelmente necessária para que as personagens se mantenham vivos.
Segundo Pareyson, a leitura de uma obra de arte é um ato complexo não apenas
uma contemplação. Para ele, a leitura de uma obra passa pelas etapas “executar,
interpretar e avaliar uma obra” (PAREYSON, 1977, p.201). No teatro, diferentes
montagens de uma mesma obra dramática, nos permite analisar como a transposição
para o palco foi realizada, quais os signos utilizados e as possibilidades de leitura
podem ser feitas.
De acordo com Pareyson, “ler significa executar, executar significa fazer com
que a obra viva de sua própria vida” (PAREYSON, 1977, p.208). O trunfo dessa
encenação, foi a apropriação da obra de Beckett para a realização de uma montagem
“quase arqueológica – no bom sentido – da peça”, Segundo o ator e diretor Celso
Júnior, em seu blog.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KOTT, Jan. Rei Lear ou Fim de partida. São Paulo, SP. Cosac Naify, 2003.
PAREYSON, Luiggi. Os problemas da estética. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1977.
http://cadernosgrampeados.zip.net
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
RESUMO
Os elementos essenciais para a formação do teatro, segundo alguns teóricos, são o ator, o
público e o texto, essa relação está conectada diretamente com a presença cênica e a
retroalimentação proporcionada pela troca entre ator e plateia. Porém, como pensar essas
novas relações em um campo no qual os níveis de presença e suas leituras são modificados,
permitindo assim que o espaço cênico não se restrinja somente ao presencial, mas sim, as
virtualidades espaciais que as tecnologias digitais permitem. Nesse estudo, a partir de
experiências já constituídas visualizaremos recursos e experimentações que possibilitam essa
expansão dos espaços da cena e como, através de recursos digitais, podemos criar espaços que
excedam os limites físicos do palco.
INTRODUÇÃO
Presença Cênica
Diante disso podemos ainda nos questionar, porque tratar de presença cênica quando
objetivamos compreender o espaço cênico na contemporaneidade, devemos assim então
considerar que a novas compreensões de presença permitem que a cena não se estabeleça
somente no palco ou mesmo na cochia, pois se o ator pode ir além do palco, assim também o
palco vai além de si mesmo. Configurando uma extensão de si, se desterritorializando e
fragmentando a cena. “O ator não se encontra desmaterializado, mas encarnado em novas
substâncias. Se seu corpo pensa, com auxílio da tecnologia, ele sai dos limites de sua pele.
Assim o homem se reconstitui no exterior de si mesmo.” (ISAACSSON, 2008)
Diante de uma compreensão das quebras das barreiras físicas e das novas
possibilidades de configuração das presenças, podemos visualizar que o espaço cênico pode ir
além do palco, ou mesmo a sala de apresentação, podendo nos levar para outros espaços que
não somente os imaginativos, mas também físico-virtuais.
Quando pensamos no espaço cênico é como se este nos fosse uma janela, na qual
como público podemos observar acontecimentos de um mundo distante do nosso ou mesmo
se perto vermos nossa realidade vivida por outros. Por vezes este espaço seria como moldura
limitada ao espaço presente e perante os nossos olhos. “A primeira vista, o espaço cênico que
se organiza como quadro (tableau) se isola programaticamente do théatron” (ROUBINE,
1998, p. 272)
Esta formatação e pensamento do espaço da cena esta extremamente relacionado ao
teatro tradicional, pois em outras formas constitutivas mais atuais e experimentais como as de
Grotowski, Bob Wilson, John Jesurun, dentre muitos outros, esse abismo entre plateia e palco
são quebrados, aproximando assim o público da cena, ou mesmo o colocando dentro dela.
Se formos pensar no aspecto estrutural dos espaços de apresentação veremos que estes
sofreram diversas modificações através da história se adequando constantemente a cultura de
seu povo e questão socais relativas à localidade na qual ele estava inserido, não é a toa que
vemos as diferenças estruturais presentes nos edifícios gregos, berço dos palcos, em
referência a outros como o Elisabetano, o Italiano etc. Cada um destes se adequava as
necessidades de seu povo e as possibilidades criativas e cênicas que cada um necessitava.
Contudo, não podemos considerar que os espaços de apresentação se limitavam aos espaços
fechados ou mesmo destinados somente a este objetivo, sempre houve o teatro de rua, o
medieval usava uma estrutura totalmente distante da que estamos acostumados na atualidade,
assim como era comum no teatro apresentado à realeza haver um espaço mais simplório
destinado a apresentação, ou mesmo as cenas eram apresentadas no meio dos salões. Por isso
não devemos considerar que os espaços de apresentação se restringem somente ao edifício
teatral, mas a distintas possibilidades criativas.
Segundo Mantovani:
Chamamos de lugar teatral o lugar onde é apresentado o espetáculo teatral e
onde se estabelece a relação cena/ público. Usamos o termo lugar teatral em
vez de teatro, porque este último significa somente o edifício teatral. Na
verdade, o espetáculo pode ser apresentado em qualquer lugar, desde a praça
a um lugar alternativo [...] (1989, p. 7)
Dessa forma podemos considerar que existem várias possibilidades de uso da cena. O
teatro da Vertigem é um exemplo que podemos tomar de um grupo que faz uso de espaços
não convencionais para apresentação de suas peças, utilizando locais que antes possuíam
outra destinação e transformando-os em um espaço cênico. “O teatro procura uma arquitetura
ou então uma localidade não tanto porque o ‘local’ corresponda particularmente bem a um
determinado texto, mas sobretudo porque se visa que o próprio local seja trazido à fala por
meio do teatro”. (ROUBINE, 1998, p. 281)
Se pensarmos no momento atual e sua relação com o espaço cênico, veremos que
chegamos em um período no qual as experimentações não se limitam aos recursos criativos
advindos do espaço da cena, mas adentram ao mundo virtual, levando-nos como espectadores
a adentrar a cena além do meu limite físico, vendo-a como um todo e expandindo a mesma.
Essa possibilidade incide da desmaterialização que a presença cênica possibilita, tendo em
vista que eu não necessito mais necessariamente ter todos os atores presentes fisicamente
perante o público, podendo eles estar em outros espaços, apresentados como presença no
contexto visual da cena. Segundo Isaacsson “Isto porque, na medida em que o ser vivo torna
real a imagem imaterial, a imagem imaterial torna irreal o ser vivo. Pois, sob o olhar da
recepção, o real e o virtual são igualmente ativos, virtual não aparece como ausência, mas
como novo modo de existência”. (2008)
Os recursos digitais permitiram que houvesse um deslocamento do espaço da cena
formando sobreposições espaciais, justaposições, simultaneidade e fragmentação do espaço
presente, criando novos olhares sobre a cena, possibilitando novas leituras e criações de
interfaces espaciais (TONEZZI, 2014). Segundo Tonezzi:
Nas últimas décadas, o instrumento digital ganhou força em produções
cênicas, incidindo na estrutura dramatúrgica e, por extensão, nos parâmetros
de representação, jogo e significação do artista. Como consequência, as
formas de criação e recepção da cena foram alteradas, distanciando-se cada
vez mais daquilo que, até recentemente, configurava-se como evento teatral,
ou seja: uma estrutura estável e concretamente perceptível de tempo e lugar.
Porém, por mais que se desfragmentassem as narrativas e/ou agentes, tanto o
tempo real percebido quanto o corpo orgânico e o espaço concreto de
intervenção do atuante permaneciam referencialmente estáveis diante do
espectador. (idem, p. 336)
Como dito por Tonezzi, mesmo com as fragmentações narrativas, no contexto geral,
ainda havia uma permanência nas questões espaciais que só foram fragmentadas devido ao
meio digital, sendo estruturadas pelo olhar do receptor que vê a cena como um todo,
reestruturando sua formação espacial. Estes recursos só podem ser pensados e configurados
devido às mídias digitais, que abriram espaço para essa expansão de possibilidades criativas.
Trata-se, assim, não apenas de um redimensionamento, mas também de uma
reconstituição do espaço cênico por meio de seu deslocamento e
desmaterialização. Algo praticamente impensável há algumas décadas: a) ao
mesmo tempo em que se apresenta num determinado espaço físico, o evento
cênico é aberto e disponibilizado para acesso em rede. Por opção do
espectador, o espetáculo pode também ser apreciado presencialmente; b) um
trabalho cênico reúne e faz jogar artistas que, por sua vez, podem se
encontrar num mesmo lugar ou em espaços concretamente distintos e muito
distantes um do outro. Durante a performance, os espetáculos se integram e
os artistas jogam entre si através da mídia. (TONEZZI, 2014, p. 345)
Vários grupos começam a realizar experimentos que vão além do espaço do palco,
trazendo o uso do vídeo e projeção a cena, permitindo que novas compreensões de leitura
sejam estabelecidas. Grupos como a PHILA7 e o Teatro Para Alguém (TPA) podem ser
considerados com bons objetos de estudos, pois propõem em suas experimentações novas
significações, nos apresentando que poderíamos compreender presença cênica de outras
formas que não só as convencionais.
Um dos principais espetáculos da Phila7 feito por essa companhia foi o “Play on
Earth”, 2006, nele havia uma conexão entre três espaços distintos do mundo, no qual a cena
acontecia simultaneamente (Brasil; Inglaterra e Cingapura) o público presente acompanhava
uma cena que se desenrolava com atores reais no palco enquanto a todo momento ao fundo
existia 3 telões nos quais eram projetados tanto a cena real digitalizada, assim como a cena
ocorrida nas outras duas localidades justapostas. Vale observar que não ocorriam as mesmas
ações, ou mesmo o que era projetado era um adendo a cena, mas cada elemento apresentado
nos telões e sua justaposição criava o sentido da própria cena, quer sejam no Brasil, na
Inglaterra ou em Cingapura. Toda essa união podemos dizer só foi possível se estabelecer
devido a Internet e a uma forte estruturação digital.
Se observarmos atentamente a este espetáculo compreenderemos que a cena em si não
ocorre nunca em apenas um dos espaços, mas cada uma das localidades é essencial para
formar um todo, criando assim um quarto espaço que somente existe na união desses três,
espaço este existente devido à internet, e um eterno espaço de suspensão. Mesmo com o
recurso digital vemos que o teatro não perde sua efemeridade e sim nesse caso
especificamente aumenta essa constante mudança, pois o ator não necessitava dialogar ou
mesmo se retroalimentar somente com o público presente, mas se fazer presente para os
outros atores projetados e para o público, que embora não estivesse próximo a estes, aparecia
e possuía uma forma de presença.
Há outro espetáculo da Cia que também faz uso de distintos espaços que é o caso de
“A verdade relativa da coisa em si”, 2006, no qual temos o palco como centro principal de
acontecimentos, porém o uso de telões nos faz observar outros espaços que não somente os da
cochia, mas alguns que não consigamos valorar a distancia, mas tem significado. Por vezes os
telões justapõe esse espaço, tal qual um momento que vemos os personagens conversando em
um corredor em preparação a entrar na cena, embora que estejamos como público, sentados
perante a cena presente, o que nos é projetado em sua coerência nos leva além do físico,
possibilitando a partir do virtual que estejamos em novos espaços. Em “What’s Wrong with
the World”, 2008, há novamente uma relação entre Brasil e Inglaterra e diálogos são criados
entre personagens, não somente falados, mas visuais. Nesses espetáculos vemos a partir da
projeção a criação de vários espaços, mas em certos momentos os atores reais, são
digitalizados, pois vão pra espaços além do espaço teatral e os acompanhamos em seus
caminhos entrando em novos locais, quer sejam salas com cenários montados, ou mesmo indo
para fora do edifício onde a cena ocorre, mas para nós como público não é como um
distanciamento, mas somos levados além do limite real, como se estivesse em todos os
espaços indo além do fator somente imaginativo, mas como uma extensão de nós mesmos.
Outra experimentação que possibilita novas leituras do espaço cênico é a realizada
pelo TPA, na qual a Internet é o seu espaço de exposição. O grupo apresentava inicialmente
as cenas em um espaço sem público, totalmente em uma estética teatral, e gravava o material,
colocando-o posteriormente na internet, onde o público tinha acesso. Dessa forma, este seria
um teatro virtual, no qual o espaço cênico não se limita a um edifício, mas poderia ser
instaurado em diferentes suportes, como um computador, um notebook, um tablet, celular etc.
Para manter a estética teatral, aspectos como um plano sequência, planos abertos, dentre
outros eram utilizados, obviamente também fazendo uso da linguagem da Internet com cenas
curtas.
Nessa proposta do TPA temos a construção de um espaço digital como espaço cênico,
sendo assim, a peça poderia estar em todos os locais, por momentos houve cenas apresentadas
com um público, ou seja, estavam realmente criando a retroalimentação possível teatralmente.
Nessa ideia é possível levar o teatro e sua linguagem para os diferentes espaços, tanto pela
apresentação em streaming quanto pela possibilidade de banco de dados, permitindo uma
distribuição universal dos materiais.
O espetáculo “Júlia” que provém da peça “Senhorita Júlia” de August Strindberg,
adaptação e direção de Cristiane Jatahy (2012), é outro exemplo de construção de espaço
distinto, há vários telões em cena e constantemente os atores jogam com o espaço e caminham
entre eles tornando-se virtuais e reais, inicialmente podemos até mesmo nos questionar sobre
essa constante modificação, porém por vezes, enquanto se digitalizam, somos levados para
outros espaços que não são nem de memória nem de sonho, mas de presente. Há um momento
em que os personagens estão na piscina, mas não nos estranha o que nos é apresentado, pois é
como se os tivéssemos acompanhado até aquele espaço, como um suspensão de nós mesmos
nesse espaço.
Esses são somente alguns exemplos dos vários que podemos citar que ocorrem pelo
Brasil afora, vemos que cada um destes grupos e espetáculos propõe diferentes formas de
expansão, mas procuram cada um a seu modo, construir novas espacialidades e expandir a
cena para além do presencial físico.
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ISAACSSON, Marta. Diálogos do ator com a tecnologia. IN: Território Teatral, nº9,
set.2008. Disponível em: <http://territorioteatral.org.ar/html.2/articulos/pdf/n3_02.pdf>.
Acesso em: Jan de 2013.
_________________. A Presença como Movimento da Cena. Anais do VI Congresso
Abrace, 2010. Disponível em:
<http://www.portalabrace.org/vicongresso/processos/Marta%20Isaacsson%20-
%20A%20Presen%E7a%20como%20Movimento%20da%20Cena.pdf>. Acesso em: Jan de
2013
LEHMANNN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ática, 1989.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996 (3ª edição).
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. São Paulo: Razar, 1998 (2ª
edição)
TONEZZI, José. Inovação e significação em cena. Revista Brasileira de Estudos da
Presença. Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 333-350, maio/ago. 2014. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/presenca> Acesso em: 20 de junho de 2014.
Sites
http://phila7.com.br/
http://www.teatroparaalguem.com.br/
Arquivos Visuais
A verdade relativa da coisa em si. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R1kuplMhw00>. Acesso em: 02 de jul de 2014
Julia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uQxRd9SXg-0>. Acesso em: 02
de jul de 2014
____. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GPtKvCokCFs>. Acesso em: 02
de jul de 2014
i
Este trabalho foi fruto de pesquisa do PIBIC intitulada “TEATRO E NOVAS MÍDIAS: hibridismo no trabalho
teatral da Cia. Phila7”, realizada entre agosto de 2012 a agosto de 2013, com financiamento do CNPQ.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Lara Tatiane de Matos (CAPES) André Luiz Antunes Netto Carreira (Orientador); Programa de
pós-graduação em teatro – PPGT – Doutorado; UDESC
Um contexto pessoal
O olhar cultural é mais do que uma simples lente, pois ele possui esse
aspecto de autocensura/observação que implica no controle do corpo nu por
razões determinadas culturalmente. [...]
Visto que a identidade é fluída e ganha fruição a partir de discursos e
performances, o corpo nu torna-se identificável somente após ser submetido
ao olhar cultural. (BOODAKIAN, 2006 p 143)
Durante um ano tive a experiência de trabalhar como modelo vivo para artistas de
uma escola de arte. Nesta perspectiva, a nudez se mostra completamente diferente, e
talvez se possa comparar à nudez clínica. Aqui o corpo é a massa que é forma, luz e cor.
Desprovido de desejo, de contexto, de conflito ou drama. Neste trabalho não é a nudez,
o corpo nú que se mostra, como na morta, mas o conjunto total que mistura forma e
contexto, pele. A pele toma lugar central no trabalho como modelo vivo, a pele conduz
as percepções dos artistas. A pele reflete a luz, interage no espaço, moldando o fundo e
contrastando com as cores. Mas esta pele também transcende a matéria e se apoia no
contexto e toma outro significado, “Curiosamente a pele retira do corpo seu status de
objeto, no momento em que ela não é mais percebida como involucro das formas. Tal
qual uma superfície com seus próprios relevos, ela transforma o corpo-objeto em corpo-
texto.” (JEUDY, 1945 p 84)
É a partir destas duas percepções pessoais e práticas do corpo nu, bem como suas
divergências, que em minha trajetória como artista e pesquisadora passei a perceber os
atos de nudez na rua, através de mecanismo midiáticos e cheguei a textos e teorias da
performance.
O corpo político da performance é citado por Carlson quando revisita a história da
performance e estabelece a classificação de performance política,
Em meu contato com mulheres que há alguns anos vem mostrando os seios, em
marchas pelos direitos femininos (a “Marcha das Vadias” principalmente), inclusive em
Florianópolis, pude perceber esta performance política, mas poeticamente artística,
visualmente carregada de significação. No entanto esta manifestação ainda estava no
território do compreensível, pois eram cobertas de razões políticas que eu conhecia
profundamente. Mas então começaram a aparecer outras manifestações nos mais
diferentes países, sob as mais diferentes óticas: o direito dos animais, o direito de andar
de bicicleta com segurança, a preservação dos direitos sociais, a indignação com o
desiquilíbrio social .
Seguidamente pode ser visto um post no Facebook que, compartilhado inúmeras
vezes, se tornou um mantra virtual, “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o
corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou
uma festa.” Eduardo Galeano”. Inúmeras vezes o compartilhamento aparece na Time
line, sempre acompanhado de uma imagem antiga, talvez uma fotografia dos anos
cinquenta onde duas pessoas, um homem e uma mulher, dançam nuas em um campo.
Apesar de muitos dos que me conectam pela rede social estarem envolvidos com arte, é
comum ver esta postagem sendo compartilhada também por pessoas que não possuem
nenhum vínculo direto com o fazer artístico.
O nu aparece, agora, vinculado também ao cidadão comum, mesmo que ainda
na postagem virtual. A poética do corpo nu, relacionado à liberdade e à simplicidade, a
imagem básica do ser humano, já está no domínio do público que não possui
aparentemente um contato direto e recorrente com arte. Na mensagem o efeito é de
manifestação de aceitação do corpo nu. Nesta postagem, o corpo não é pesado como
antes, o corpo esta em fase de libertação.
Um contexto local
Em Florianópolis tivemos três eventos que nos mostram bem o contrário do que
se publica na rede virtual, o posicionamento do governo e da polícia quanto ao ato de
desnudar-se, seja qual for o fim, na rua. Como já foi dito, a nudez na rua é enquadrada
judicialmente como “ato obsceno” podendo custar a quem o pratica até um ano de
prisão.
Ainda em 2012, e em 2013 na cidade de Curitiba, o Erro Grupo, importante em
sua trajetória de 11 anos de pesquisa cênica na rua, apresentou o espetáculo Hasard,
onde ao final, durante um jogo de sorte, uma das possibilidades envolvia a nudez total
de alguns atores. A polícia se colocou a postos nos dias das apresentações e repreendeu
os atores.
Em 2010, o performer Betinho Chaves, foi detido dentro do campus da
Universidade Federal de Santa Catarina, por apresentar a performance Na brasa de
Pindorama onde estava totalmente nu. Ironicamente a performance fazia parte da
Semana Ousada de Artes, promovida pela universidade onde estava sendo realizada
juntamente com a UDESC. A guarda do campus foi acionada por alunos e levou o
performer para a delegacia onde prestou depoimento e foi liberado.
Conversando com um participante da “peladada” ou pedalada pelada, um
protesto que tem acontecido em diferentes cidades do país, onde os participantes andam
nus, ou seminus, de bicicleta pelas ruas da cidade, ele questionava a eficácia do ato,
para ele havia um desvio do olhar do público passante sobre o tema que importava: as
condições de segurança de quem anda de bicicleta nas ruas.
A rua tem sido tomada por manifestos, protestos e ações isoladas ou vinculadas
à uma causa. A conjuntura social mundial tem mostrado uma força popular sem igual no
que diz respeito a articulação popular. A divulgação entre mídias, principalmente as não
oficiais como as redes sociais, tem mostrado a preocupação de camadas sociais com
decisões políticas ou causas em geral. O protesto tem levado as pessoas às ruas, tem
tornado presente o corpo daqueles que se encontram ou se organizam pelo meio virtual.
A ação de corpos nus tem se tornado presente em diferentes protestos por
diferentes causas, e esta ação não está desvinculada de um pensamento crítico, político e
principalmente estético e poético. A nudez nestes lugares, é o símbolo de um
pensamento que flerta com o pensamento artístico. Porque estamos ficando nus? O que
nos move? Seria a necessidade de mostrar que frente à polícia, ao poder, ao governo,
não temos nada – que temos consciência disso? Nem armas, nem armaduras, nem
roupas, nem símbolos ou marcas que nos identifiquem? Ou estamos mostrando que a
essência do corpo, a nudez, a fragilidade da pele nos torna iguais e apenas humanos? Ou
somente queremos chamar atenção, e sabemos que a nudez ainda é uma ação
desconcertante? Seria uma reinvindicação de uma humanidade perdida? Seria uma
identificação animal com a natureza?
A crise que se apodera dos pensamentos, que desilude do capitalismo, do
consumo, o apelo constante para as causas ambientais, ecológicas e de estrutura urbana,
somadas, resultam em questionamentos profundos sobre a sociedade atual. A constante
insatisfação com o sistema regente, os modelos que desabam, o europeu e o americano,
principalmente, e a constante e insistente busca por eles; o desdobrar de crenças
religiosas e espirituais, as novas percepções sobre o corpo e sobre o ser humano,
aparentemente transbordam em ações públicas que se misturam com o artístico e que
reivindicam a performance.
Para uma revisão política sobre contemporaneidade é preciso visitar a obra de
Zygmunt Bauman, principalmente O mal-estar na contemporaneidade, entrevistas e
artigos publicados nos últimos tempos são valiosos para pensar a conjuntura de nossa
sociedade. Atuais observações tais como “a situação de interregno”, momento de
contradições e dúvidas que colocam os cidadãos em um ambiente caótico e com poucos,
ou quase nenhum, lugares onde depositar suas certezas, mesmo quando em se tratando
de valores, nos dá uma noção poética e profunda sobre a sociedade atual,
Para Bauman essa situação é bastante parecida com a situação que vivemos
atualmente. Vivemos um momento de mudanças simultâneas, o que nos deixa sem
tempo para processá-las. É possível que as gerações futuras estejam adaptadas a viver
neste turbilhão, mas nossa época é a linha que separa o passado do futuro, mudanças
profundas nas comunicações se encontraram exatamente no ponto onde vivemos e daqui
podemos tocar o futuro e o passado.
Esta pode ser uma pista para compreender as motivações que levam as pessoas a
voltar para seu corpo e vê-lo como material expressivo, mas as implicações sobre este
ato, e tudo que discorre dele merecem estudos profundos.
Quando pensamos a nudez, o corpo se resume à imagem e ao contexto acionados
por uma ação. É possível dizer que a nudez enquanto tema, afastada da materialidade e
objeto corpo, está intrinsecamente relacionada à uma ação, por isso isolada do corpo em
sua totalidade. Nesta perspectiva, informações sobre este corpo, subjetividades,
identidades, informações sobre sua saúde, etc. não são tão relevantes como a imagem,
como o ato de desnudar-se e o contexto social e espacial em que se insere.
O pensamento artístico tomou estes ambientes, e responde, como em muitos
outros momentos históricos, pela condensação de pensamento, crítica, imagem e ação.
O pensamento artístico se espalhou e se tornou constante nas ações sociais. O cidadão
faz arte, porque a arte lhe serve de mecanismo, de meio e método, porque a arte faz
parte da composição social do qual ele é parte, e pela qual ele é feito. A expressão
humana não pode ser parada ou encaixotada, e por isso a performance toca a rua, e se
traduz em protesto arte, sem necessariamente necessitar desta classificação.
A nudez nos protestos é o símbolo de uma revolução de pensamento, tanto para
aqueles que estão conectados com o pensamento da performance, sem necessariamente
pensar sobre isto, quanto para a arte da performance, que hoje habita outros espaços,
naturalmente.
É fundamental mostrar as conexões visíveis entre a performance arte e o
protesto, revelar estas conexões expandindo o conceito, ampliando o olhar sobre a
manifestação pública, conectando artistas e suas ações e cidadãos e as causas que os
levam a pensar performaticamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Lourenço. – São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
Planalto Central
Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm acesso em
04/04/2013
Erro Grupo
Disponível em: http://www.errogrupo.com.br/v4/pt/ acesso em 04/05/2014
Notas:
1
Ato obsceno é definido como crime no Código Penal Brasileiro
“CAPÍTULO VI DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ESPAÇO E IMAGINAÇÃO NA TEATRALIDADE DE ROBERT LEPAGE
Luciana Paula Castilho Barone (FAP; UNESPAR)
A questão da teatralidade, se já impulsionava os encenadores do início do século XX,
em sua busca pela autonomia da linguagem teatral em relação à literatura dramática,
volta à pauta do debate teórico da cena contemporânea. Em “Teatralidades
Contemporâneas”, Sílvia Fernandes (2010) nos conduz a uma passagem por algumas
de suas perspectivas, desde a diferenciação entre a teatralidade denegada e à da
convenção consciente, proposta por Patrice Pavis, até a diferenciação e posterior
aproximação entre as noções de “teatralidade” e “performatividade” de Josette Féral,
em sua crítica à generalização do termo “pós-dramático”, apresentado em 1999 por
Hans-Thies Lehmann.
Efetivamente, ao enfocarmos a teatralidade híbrida do encenador canadense Robert
Lepage, que investe no jogo entre os elementos que a compõem como porta de acesso
ao universo poético, o termo ‘pós-dramático’ nos parece vago para defini-la. As
análises que Lehmann propõe dos aspectos da cena de Lepage, concentram-se
principalmente no exemplo de Os sete afluentes do Rio Ota, especialmente pelo
caráter épico, dessa “viagem teatral político histórica” (LEHMANN, 2007, p.379),
que aproxima-se da estrutura onírica, pelo uso que faz das mídias e dos “estilos de
representação” (ibidem) e por sua longa duração representacional (idem, p. 307). O
autor identifica ainda a recorrência a montagens solo na cena pós-dramática, passando
pelo exemplo de Agulhas e Ópio (idem, p.209), sem no entanto, aprofundar-se em
sua análise, ou na de outros exemplos, como Vinci e Elsinore, também concebidas e
interpretadas por Lepage. Mas o que mais chama a atenção, além de serem poucas as
vezes que Lehmann refere-se efetivamente à produção deste encenador embora
configure como um dos “nomes” listados em seu “Prólogo”, como expoentes da cena
pós-dramática, é que a dramaturgia lepageana, embora apresente elipses temporais e
entenda-se como sempre em progresso (retroalimentando-se da relação com o
público), apoia-se predominantemente numa estrutura de linearidade temporal, não
totalmente desvencilhada do enredo dramático.
Embora Lehmann contemple uma coexistência entre o dramático e o pós-dramático,
afirmando que o drama continue a existir como estrutura – "mesmo que enfraquecida,
falida – do teatro ‘normal’" (idem, p. 33), afirma que os “membros ou ramos do
organismo dramático” presentificam-se como “material morto” (idem, p. 34),
constituindo o espaço de “uma lembrança em ‘irrupção’”(ibidem) na chamada cena
pós-dramática. As estruturas dramatúrgicas das peças de Lepage, embora
evidentemente focadas na cena e não no texto, apoiam-se na noção de personagem, e
de desenvolvimento linear da trama, entrelaçada por conflitos que possibilitam,
inclusive, a relação de identificação com o espectador. Assim, parece-nos controverso
que sua dramaturgia configure-se como exemplar da cena pós-dramática desde o
“Prólogo” da publicação de Lehmann, ainda que outros aspectos de sua cena se
enquadrem nas diversas possibilidades que o autor define ao longo de sua defesa.
Se, conforme Sílvia Fernandes (2010, p. 113), “o conceito de teatralidade tem se
revelado um instrumento eficaz de operação teórica no teatro contemporâneo”, o de
Josette Féral, por considerar as relações de criação e recepção, nos parece mais
pertinente para se lançar um olhar sobre a cena lepageana, do que a proposição pós-
dramática de Lehmann. Este trabalho, enfoca a relação entre espaço e imaginação na
teatralidade de Lepage, considerando justamente que a imaginação potencializa-se dos
dois lados da cena - o espaço do palco e o da plateia - estabelecendo-se como elo da
criação em progresso.
O espaço da representação
Os espetáculos de Lepage priorizam a frontalidade que, por si só, já direciona a
relação de visualidade entre plateia e cena. Esta relação espacial favorece a
emergência do que “literatura cênica canadense convencionou chamar de ‘teatro de
imagens’” (BARONE, 2007, p. 228). Explorando a relação entre cena ao vivo,
projeções de vídeo ou filmográficas e o movimento cenográfico, Lepage oferece à
perspectiva do espectador a possibilidade de diversos pontos de vista, conduzindo-o
para dentro do espaço da representação, fazendo-o seguir, muitas vezes, o percurso de
seus protagonistas.
Em Vinci, por exemplo, a plateia embarca no avião em que o palco é transformado
pelo uso que o ator faz da cadeira em cena, além de passear no ônibus turístico
londrino, representado pela sombra de um retrovisor, e de adentrar um Burger King
em Paris, ambientado pelo copo de refrigerante que a Gioconda tem em mãos.
Abordando a viagem iniciática de Philipe, um fotógrafo canadense que viaja para a
Europa em busca de motivação artística, a montagem estabelece a espacialidade
metonimicamente, pois um objeto referencial – a cadeira, o retrovisor, o copo –
representa o todo. A inserção da plateia no ambiente expandido do palco se dá através
do jogo que o ator com ela estabelece, mediado pelos signos da espacialidade.
Esta relação metonímica também pode ser identificada em Trilogia dos Dragões,
espetáculo em que uma guarita de estacionamento vai sendo ressignificada para
referir-se aos diversos espaços da representação por que transita. Para Ludovic
Fouquet (2006), há, nesta trilogia, uma herança das marionetes (com que Lepage
trabalha no início de sua carreira), como se a lógica dos bonecos fosse empregada no
gestual dos atores e em sua relação com os objetos ou em sua ampliação cenográfica.
Os atores que interpretam o Chinês e Crawford, por exemplo, para provocar a ilusão
de descida de uma escada para o subsolo, caminham, dentro da guarita, em círculos,
dobrando progressivamente os joelhos. Quando desaparecem, simplesmente abrem a
porta da guarita, transformando o espaço externo (a rua, no início da cena), no subsolo
de uma lavanderia. É o jogo entre o corpo e o objeto, aqui amplificado na cenografia,
que estabelece o espaço da representação.
Em Agulhas e Ópio, o jogo entre cenário, ator e projeção transporta o espectador a
novos espaços, revelados pelo movimento da tela, que gira em torno do próprio eixo
horizontal. A relação que o ator vai estabelecendo com cada um dos lados da tela,
amparada ou não por projeções, transporta a imaginação do espectador, para o avião
que em 1949 leva Jean Cocteau de Nova York a Paris, para o quarto de hotel em que
Robert se hospeda, na Paris de 1989, ou para o restaurante parisiense que recebe
Miles Davis e Juliette Gréco, em 1949. Tempo e espaço são convencionados pelo jogo
do ator com a cenografia física e virtual. Flutuando entre as hélices, ele representa
Cocteau de 1949, quando oculta-se atrás da tela, mostrando apenas sua silhueta em
sombra chinesa, nos remete a Davis do mesmo ano e quando revela-se sob a lâmpada
do quarto de parede vermelha, envolto no lençol da cama, é o Robert de 1989,
descobrindo o universo dos outros personagens. Transitando entre estas três figuras e
suas vivências amorosas, a peça conduz a seu apelo às agulhas da acupuntura ou do
ópio para superar a dor decorrente destes amores. Por meio de sua cenografia virtual,
a montagem mergulha o espectador na abstração do vórtice a que conduz a alucinação
do ópio, junto com o ator que dança no ar, suspenso por dois fios cenotécnicos. Este
recurso possibilita ainda a queda de Jean Cocteau do alto de um edifício, ilusão
promovida pela relação entre os movimentos do ator, no ar e as imagens do vídeo,
projetadas atrás dele -um travelling vertical de janelas de um prédio que se sucedem
uma à outra.
É no jogo entre os diferentes elementos da cena que se estabelecem as espacialidades
evocadas. A imaginação do espectador é motivada pelas imagens poéticas que se
configuram em cena. A partir do real, é estimulada a função irreal do psiquismo, para
que o espectador complemente as imagens sugeridas pelo palco, como a vertigem do
personagem que despenca do alto de um prédio, ou a alucinação proporcionada pelo
ópio. Há nestas sugestões, uma espacialidade interior, relacionada à vertigem, à
sensação do espaço, mais do que sua ocupação objetiva. Lepage parte de um espaço
real, para sugerir a sensação ou emoção que vive o personagem naquele momento -
paixão, alucinação, queda – convidando a plateia a adentrar este jogo de (sua própria)
intimidade.
A cena da alucinação é tomada por uma grande espiral virtual, que transporta
personagem e espectador do mundo físico para o subjetivo – o outro lado da tela
cenográfica. Gaston Bachelard, ao tratar da dialética entre o exterior e o interior no
que chama de 'língua filosófica' (2008, p. 217), afirma que
O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A
metafísica mais profunda está assim enraizada numa geometria
implícita, numa geometria que – queiramos ou não – espacializa o
pensamento; se o metafísico não desenhasse, seria capaz de pensar?
Para ele, o aberto e o fechado são pensamentos (BACHELARD,
2008, pp. 215-216).
Podemos estender seu pensamento à poética cênica para pensa-la em termos
geométricos, em termos de desenhos que espacializam não o pensamento organizado,
mas sua abstração. A espiral de Lepage concretiza em cena este desenho, o ator nela
mergulha e a tela gira, de modo a fazer com que sua alucinação o engula, desapareça
com ele da cena e reste ao espectador apenas o espaço da imaginação, que completa a
espiral infinita. Voltando a Bachelard:
Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído
do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é
circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de
permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.
E que espiral é o ser do homem! Nessa espiral, quantos dinamismos
se invertem! Já não sabemos imediatamente se corremos para o
centro ou se nos evadimos. Os poetas conhecem bem esse ser da
hesitação de ser (BACHELARD, 2008, p. 217).
Como poeta da cena que é, Lepage transita entre o dentro e o fora do ser e, na
concreção de suas espacialidades internas e externas, nos conduz por estes caminhos
do ser apaixonado de seu Agulhas e ópio.
A espiral, assim como outras formas geométricas, volta à cena em Geometria dos
milagres (1998), que aborda a relação de mestre e discípulo, bem como de
conhecimento e organicidade, através do encontro entre o arquiteto Frank Lloyd
Wright e o espiritualista Giorgi Ivanovich de Gurdjieff. Nesta montagem, as formas
são geometrizadas através do desenho dos corpos no espaço, explorando tanto os
movimentos físicos propostos por Gurdjieff, quanto os da biomecânica de Vsevolod
Meyerhold. Arquitetura e corpo, teatro e espiritualidade se encontram em cena, por
meio da geometria miraculosa de Lepage que espacializa círculos, quadrados,
triângulos, espirais e linhas paralelas (formas que nomeiam os quadros do espetáculo),
para transitar no imaginário do dentro e do fora, do aprendizado e da criação, da
transformação interna, à revolução social.
Etéreas fronteiras
Em entrevista a Rémy Charest, Robert Lepage conta que quando esteve no Japão,
antes de montar Os sete afluentes do Rio Ota, seu primeiro impacto, que muito lhe
inspirou na montagem do espetáculo, foi justamente o da percepção do espaço, por
seu uso otimizado e pela necessidade de transparência de seus limites: “O Japão é um
país feito de papel de arroz - as paredes das casas são literalmente feitas disto - então,
fronteiras são sempre um pouco etéreas, enevoadas: elas são feitas de ar” (LEPAGE in
CHAREST, 1999, p. 38, tradução livre).
Em contraposição à imensidão territorial canadense, e a sua consequentemente baixa
densidade demográfica, Lepage se defrontou com um país altamente populado, onde o
valor do espaço toma novas dimensões:
os japoneses vivem em apartamentos do tamanho de lenços, o que
significa que eles têm que criar um espaço interior considerável,
infinito. No Canadá, o espaço é concreta e obviamente disponível;
nós temos potencial para desenvolver um espaço interior, mas não
tendemos a isso, dado nosso condicionamento, devido a nossa
percepção espacial (idem, p.39).
Essa distinção cultural, Lepage também identificou no interior do teatro, pelas
diferenças comportamentais entre os atores japoneses e os ocidentais; enquanto estes
aproveitam os intervalos para conversar sobre diversos assuntos, os japoneses
“refugiam-se em si mesmos”, numa espécie de tempo ‘privado’: “Todos os atores têm
seu local pessoal marcado na sala de pesquisa para o qual eles voltam durante os
intervalos. Abordá-los é invadir seu espaço pessoal” (ibidem).
Em Os sete afluentes do Rio Ota, a influência dessa percepção é notória. A ideia da
peça surge de “sete caixas, sete afluentes, sete portas de correr
japonesas” (FOUQUET, 2006, p.251, tradução livre). O formato cênico concretiza
esta ideia: uma grande caixa, retangular, com portas de correr, que se abrem a uma
multiplicidade de pequenos espaços ao longo das sete horas de duração do espetáculo,
que aborda desde os dias que se seguem ao bombardeio de Hiroshima, em 1945, até
os anos de 1990, apresentando personagens que viveram as consequências da bomba,
o holocausto, a epidemia da AIDS.
A ocupação espacial, nas cenas que se dão no Japão, segue a lógica oriental de
otimização do espaço por meio de transparências e uso de poucos objetos, para causar
a sensação de amplitude dentro de pequenas áreas. Assim, a fachada da casa das
personagens Nozomi e Hanako, em Hiroshima, é feita de portas com moldura de
madeira e papel de arroz. Estas portas correm para os dois lados, revelando, na
profundidade do palco, os três ambientes da casa (dois quartos nas pontas e uma sala
ao meio). À frente, a menção (verbal e recorrente) a um estreito jardim de pedras
provoca o imaginário do espectador a completar este ambiente. Há uma fronteira
física entre o dentro e o fora, estabelecida pelas portas. O espaço externo é sugerido à
imaginação do espectador pelas palavras descritivas das personagens. O espaço
interno é paulatinamente revelado, conforme abrem-se as portas.
Bachelard, em sua topoanálise da casa, aborda o espaço habitado como um espaço de
proteção do eu. A casa é um espaço de intimidade, de memórias, que “retém o tempo
comprimido” (2008, p. 28). O Prólogo de Os sete afluentes do Rio Ota apresenta
Hanako, personagem que tem deficiência visual em decorrência da bomba de
Hiroshima, ainda menina, vendada, na casa de sua mãe. No último quadro da peça,
voltamos à mesma casa, onde ela se recorda onde estava, no momento da explosão da
bomba:
1
Mestrando em Artes-Teatro/UFU e Docente do curso de Artes Cênicas/UFGD
2
Pós-Doutor em Teatro/UDESC e Docente da pós-graduação em Artes-Teatro/UFU
situações e produções. Este homem chama-se Amir Haddad, desenvolve seu trabalho
junto ao grupo de atuadores do Tá na Rua, na capital do estado do Rio de Janeiro. Sua
trajetória vem sendo marcada, por lutas e enfrentamentos, de uma sociedade e de um
modo de fazer teatral. Sua produção interfere em um fluxo pensado para uma cidade
estática e neutra, movendo este lugar, desestabilizando as bases.
Quando você trabalha numa rua, numa praça, trabalha com toda a
estratificação social misturada; o nosso público deixa de ser
homogêneo e passa a ser heterogêneo, como era o público dos
gregos, dos romanos, da Idade Média, dos espanhóis, do
Shakespeare, do Molière. Voltamos a trabalhar toda a humanidade
e podemos, dessa maneira, refazer o espetáculo do mundo, e não o
espetáculo de um grupo social apenas. (HADDAD, 2009, p.213)
Fato de ruir com as convenções de um teatro clássico feito até o momento, sinaliza
um movimento gerado pela repressão da época, um espetáculo experimental, definição
para a Construção. Sendo este o primeiro detrito encontrado na condução de um processo
criativo para rua do encenador Amir Haddad. Parafraseando o autor, um cozimento das
ideias.
Rastros de Peter Brook
O encenador Peter Brook, londrino, nasce em 1925, inicia sua carreira artística
com dezenove anos de idade, um fazer que experimentava ações e linguagens, uma
contracorrente do espaço-tempo em que estava habitando, em seus escritos encontro um
resíduo que pode ser um possível ponto de revelar quem o era.
A única concepção de que o diretor precisa - e deve descobri-la na
vida, não na arte – vem como resposta ao seu questionamento sobre
o sentido de um evento teatral no mundo, a sua razão de ser.
(BROOK, 1994, p.23)
Na relação entre ator e encenador, o evento teatral, como dizia o encenador Brook,
por conter não apenas imagens, ou mesmo, formas, o que estaria acontecendo no palco,
seria único e experienciado naquele momento, por aqueles atores e por aquele espectador.
Surgindo como um estalo a ideia de deixar tudo claro, sem sombras e a utilização do
tapete como palco e cenário. A ação acontece sem decorações, desvinculada de toda a
maquinaria disponível, ela ocorre naquele momento, para os que ali estão.
Rastros de um encontro
Dois caminhos se misturam, encontros não marcados, vividos e escritos, no
desenterrar da intuição. De um lado as palavras descritas e registradas por Amir Haddad,
em entrevistas, em processo com atores; e de outro a escrita de Peter Brook, que traça
seus pensamentos e procedimentos com palavras.
Ambos declaram não haver uma técnica, mas sim, técnicas, plurais e diversas,
construídas juntas ao ator, constituídas entre provocações da figura que ora se encontra
dentro da cena, ora fora dela. A sala de ensaio, local de trabalho, suor, torna-se um campo
de criação coletiva e individual, cada um, se encontra livre a propor. Propondo ao teatro,
uma arte coletiva, feita por indivíduos. (HADDAD, 2009, p.203)
A sala de ensaio se transforma em um espaço de verdade e improviso, perdendo o
caráter repetitivo, ganhando uma energia de experiência total, entre e sobre a proposta do
coletivo. Uma cidade vai sendo construída, com ruas, vielas e avenidas que são
provocadas pelo condutor aos atores, dando autonomia para o sujeito e abrindo para
deixar se provocar e ser provocado, em todos os sentidos que são possíveis. A coragem
proposta, desperta no ator o descarte do que pra ele é supérfluo, editando seus gestos e
ações e condensado cada estado. Percebido na latência, do que está presente e do que não
está e não pode ser encontrado no trabalho.
Uma relação possível e proposta por Amir em Agamenon de fazer da sala de
ensaio, um espaço para o ato espetacular, abrindo a atmosfera criada para o espectador,
colocando-se em risco, e liberto ao erro. O encontro acontece no local, onde se pode errar,
se pode transitar, pode voltar, sair quando quiser, e todos os materiais se encontram neste
meio. Para elucidar este encontro abro uma página, encontrada dentro de um sapato velho,
que estava jogado por aqui.
Então abri o espetáculo em forma de ensaio: era uma coisa que
deixava os atores tensos, porque não tinha nada feito. Havia todos
os papéis, os atores conheciam a peça inteira, ela estava decupada,
cortada, do jeito que os atores quisessem. Cada sequência, um ator
assumia, se ele quisesse. Tínhamos ali uns elementos: as roupas, por
exemplo. Se ator botava aquela roupa, significava que ele queria
fazer o papel tal, e então todo mundo trabalhava com ele pra dar
aquilo. E mais: outro ator podia pegar um manto, uma capa e jogar
pra ele fazer o personagem, o que era uma sacanagem; mas tinha
gente que fazia isso [risos]. (HADDAD, 2009, p.196)
A título de informação completa, cabe citar aqui que o projeto desenvolvido pelo
grupo consistiu na sua totalidade, na realização de dez funções por cidades portuárias
dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, culminando com uma exposição:
Mostra fotográfica e vídeo documental na sede do grupo, chamada de “Inventário”. Este
projeto também fez parte das ações comemorativas de 25 anos do grupo fundado por
Luciano Wieser e Raquel Durigon.
O Público
1
espectador alguns pensamentos interrogativos: “mas onde estariam as tesouras dele?”. É
perceptível que seu conhecimento de mundo, e ampliação de novas possibilidades, já
adquiriu horizontes outros.
2
pragmaticamente a diferença existente entre os processos de produção de
significado e os de produção de sentido. (BONFITTO, 2009:93).
3
A Mákina e a Espacialidade
Sabemos que todo cenário, ou quase todo, deve ter função no espetáculo. No
teatro de rua este cenário é constituído não só pelo cenário afirmado pelo grupo como
também a cidade passa a ser cenário, o local onde se efetua a apresentação. Não importa
o tipo de espetáculo, seja ele em deslocamento, de invasão, de roda parada, arena ou de
outras formas inventivas de ocupação do espaço público, a cidade continuará sendo
parte do cenário. E esse cenário fixo possui outra função, pois a maioria dos edifícios
são departamentos de vendas, setores comerciais e bancários, com suas finalidades
outras e que devido a isso tem ocorrido grandes intempéries no fazer teatral de rua. Um
cerceamento do espaço público.
A cidade com seu complexo fluxo de ruas, praças, parques, largos e avenidas é
forçada a esquecer do humano que ali circula. Os espaços da cidade estão focados cada
vez mais para o comércio, para o consumo desenfreado, perdeu seu caráter de domínio
público de espaço e “patrimônio da coletividade”. Pois,
4
O “espetáculo/instalação” enquanto intervenção transgressora de longa duração
provoca durante nove horas uma nova ordem para a rua, reestrutura a dinâmica da
cidade, reformula o deslocamento do pedestre que por vezes se transforma em
espectador.
Camada estética
5
variados do agudo ao grave, como também no sistema de ampliação sonora dentro da
estrutura da “mákina”. O espaço urbano, centro da cidade neste caso, possui seus ruídos,
por exemplo, vê-se no entorno: um terminal de ônibus, muitas lojas com vendedores
anunciando em alto-falantes, grande circulação de automóveis no estacionamento ao
lado e o burburinho característico dos transeuntes no Largo Glênio Peres. A cidade está
viva e neste complexo sonora das ruas o espetáculo deve dialogar, sem perder suas
características de transgressão no cotidiano, com a cidade e seus cidadãos.
Referências
ALBERNAZ, Paula. Reflexões sobre o espaço público Atual. (in) Espaço e Cidade:
Conceitos e Leituras. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. (orgs.).
Rio de Janeiro: Editora 7 Letras. 2ª edição, 2007.
CARREIRA, André. Teatro de rua: (Brasil e Argentina nos anos 80): uma paixão no
asfalto. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário de Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 2010.
6
Sitios: (consultados em Junho de 2014)
www.grupodepernasproar.com.br
www.wikipédia/Steampunk
7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
A IRRUPÇÃO DO REAL NO ESPETÁCULO “OS PEQUENOS BURGUESES”
O teatro contemporâneo tem, cada vez mais, forçado os limites entre o campo da
ficção e da realidade, da representação e da apresentação, através de procedimentos que
se mostram como uma possível alternativa para atualizar o teatro no tempo presente. Tal
confronto do teatro com a realidade tem gerado inúmeros questionamentos e
possibilidades de pesquisa acerca dessas práticas que intentam envolver no simulacro
teatral elementos provenientes da realidade.
É a partir dessa perspectiva que analiso a construção e a experiência de
apresentação do espetáculo laboratorial “Os pequenos burgueses”4 processo
desenvolvido pelo grupo ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação
Artística5, coordenado pelo professor Dr. André Carreira, do qual participo enquanto
ator e pesquisador, além das práticas de atuação a partir de estados, pesquisa central em
andamento no grupo, que também foi o eixo da construção de “Os pequenos
burgueses”. Proponho-me aqui a investigar quais os elementos reais estão contidos
nesse procedimento de criação artística laboratorial, além de investigar as implicações
da presença do real em uma montagem cênica.
Utilizo, da acepção acima, o caráter de oposto a fictício, ou seja, para ser real, é
necessário estar antes de qualquer aspecto imaginativo, como uma ficção, por exemplo.
Para ser real, deve-se ser em materialidade. Além disso, destaco que, segundo o
Dicionário Básico de Filosofia, para ser real, deve-se ser um objeto passível de se obter
uma experiência. Essa acepção certamente pode ser relacionada ao conceito de
experiência de Bondía, o que reforça a ideia de Sánchez de que uma grande questão da
utilização do real no teatro se relaciona com o compartilhamento de uma realidade
passível de experiência por parte da audiência e também dos atores. Faço então uma
provocação: seria possível, então, afirmar que se o fazer teatral não acontece para o
espectador enquanto experiência, ele não deve ser chamado de real?
Encontro também, no Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, o termo realidade
cênica:
Pavis propõe que a realidade dos elementos teatrais está presente na maquinaria
teatral, “[...] único objeto que não tem valor de signo [...]” (PAVIS, 1996, p. 326), nos
objetos, atores e texto em suas materialidades, antes de qualquer agregação prévia de
sentido. Portanto, entendo que a presença do real em cena se instaura na materialidade,
antes de um esquema de construção de sentido anterior ao acontecimento cênico. A
partir dessa delimitação – real é aquilo que é concreto, passível de se obter uma
experiência, que não tem prévio valor de signo – posso enfim adentrar no processo de
“Os pequenos burgueses”.
REFERÊNCIAS:
1
Acadêmico do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa
Catarina, ator e pesquisador integrante do grupo ÁQIS desde 2013.
2
Apoio: CNPq
3
Professor do Departamento de Artes Cênicas e PPGT da Universidade do Estado de Santa Catarina.
4
O processo de montagem não previa ensaios: os atores decoraram suas falas, e em laboratório eram
desenvolvidos os estados que seriam experimentados em cena. Não há marcações: as cenas são compostas
no momento da própria encenação. Adaptação de Otten Severonoe do texto homônimo do dramaturgo
russo Máximo Gorki, seu primeiro texto teatral escrito em 1901.
5
O grupo de pesquisa ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística é coordenado
pelo Professor Doutor André Carreira e é formado por estudantes de graduação, mestrado e doutorado e
ex-estudantes. Desenvolve atualmente a pesquisa Laboratório Interpretação por Estados dentro do projeto
Ambiente e Interpretação Teatral.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Pode-se dizer que a performance art foi definida formalmente a partir de questões que apareciam já
em movimentos que datam o inicio do século XX, conectando-se à ideia de anti-arte ou com o que
Britta Wheeler chama de ideais de vanguarda, relacionando a produção artística com questões
sociais além de questionamentos à partir do próprio fazer artístico. Acredita-se que algumas das
questões trazidas pela performance art, dialogavam com invenções e indagações do campo da
tecnologia, sendo estas invenções bastante determinantes em modelar novas operações cotidianas,
alterando convenções e formas de produção artística ao mesmo tempo em que se alteram também
dinâmicas de produção de valor e formas de comercialização da arte. Sugiro aqui uma relação de
mútua influência, uma vez que a produção artística é também parte do entrelaçado de operações que
formam o espaço urbano constantemente.
Podemos dizer que em face desta dinâmica que inter-relaciona arte e contexto, o efeito social de
certas estruturações formais de trabalhos artísticos, pode ser constantemente reavaliado, uma vez
que estratégias propostas em um contexto cultural, podem ter efeito diverso em um diferente
contexto cultural. Embora a performance art tenha assumido diversas formas desde sua
determinação como tal, nos anos 70, todavia, algumas características continuam sendo
frequentemente associadas ao termo, como: a desmaterialização da obra de arte, o corpo como
mídia, a obra processo, dentre outras características que podem ser associadas à tentativas de
descomodificação da arte principalmente nos anos 60 e 70.
Robert Irwin é um dos artistas que escreveu sobre a site-especificidade, acreditando que a obra de
arte em lugares públicos deve partir de duas coordenadas primárias: "o ser e a circunstância",
devendo a obra estar 'em plena relação com o ambiente de onde retira sua razão de ser' (IRWIN em
STILES e SELZ, 1996, p. 572). Além de Irwin, diversos outros autores como Miwon Kwon ou
Gillian McIver descrevem desdobramentos do termo site-especificidade, partindo da relação que
estes estabelecem com o espaço sendo para Irwin, por exemplo, a obra site-dominant, reconhecida
pela técnica e conteúdo, baseando-se em princípios clássicos de permanência, ao passo que a arte
site-adjusted é feita em estúdio e eventualmente se adapta ao local para onde será transferida. A
palavra site-specific em si, para Irwin, refere-se a um tipo de arte que considera o site como fator
que define parâmetros para a realização da obra, inter-relacionando-a com seus arredores,
preservando, contudo um foco no trabalho do artista. A obra site-conditioned ou site-determined,
por sua vez, seria definida à partir do diálogo com o espaço, suas propriedades e níveis espaciais,
fazendo com que o processo de reconhecimento da obra rompa 'com as convenções da referência
abstrata de conteúdo, linhagem histórica, obra do artista, estilo, etc' (IRWIN, 1996, p. 572),
colocando o observador em contexto dando a ele responsabilidade de dar sentido à obra
(SCHIOCCHET 2011, p. 134). Gillian McIver traz o termo site-responsive, para tratar de algo que
parece ser semelhante à arte site-conditioned ou site-determined, descrita por Irwin, relacionando a
criação do trabalho, à relação destas obras com as diversas camadas espaciais de um determinado
espaço.
Na texto de Miwon Kwon `One Place after Another`, outros três desdobramentos do termo site-
specific são propostos, levando em consideração a dimensão do 'aqui-agora', a participação, os
atributos físicos do local, dentre outros fatores, evidenciando a impossibilidade de transposição de
uma obra idealizada nestas condições a uma outra espacialidade. A autora menciona o termo site-
oriented, onde os aspectos socio-culturais e políticos de um espaço se fazem mais relevantes que
atributos fisicos do local, sendo na articulação do discurso que a obra adquire propriedade. Miwon
cita também o termo arte site-functional, descrito por James Meyer, em sua obra 'The Functional
Site; or, The Transformation of Site Specificty'. Este tipo de obra mais do que caracterizar-se por
um espaço, é definido pelo deslocamento através de espacialidades, referindo-se também a formas
midiáticas e transmidiáticas. Este tipo de obra relaciona-se com noções de desmaterialização e
desterritorialização, fluxos e interatividade (MEYER 2000, p. 23-27)
BAVO (ed.), Cultural Activism Today. The Art of Over-identification. Episode Publishers,
Rotterdam, 2007.
BUSH, Vanevar. As We May Think. The Atlantic Montlhy. v. 176, n.1; p 101-108, Julho, 1945.
Disponível em: http://web.mit.edu/STS.035/www/PDFs/think.pdf. Acessado em julho de 2012.
CASTELLS, Manuel, The Rise of the Network Society. Oxford: Blackwell, 1996.
DEBORD, Guy. Society Of The Spectacle. trad. Ken Knabb. Bureau of Public Secrets, Berkeley
CA, USA, 1967. Disponível em: http://www.bopsecrets.org/SI/debord/. Acessado em: Fevereiro de
2013.
ESCOBAR, Arturo. Welcome to Cyberia: Notes on the Anthropology of Cyberculture Current
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Disponível em: http://links.jstor.org/sici?sici=0011-
3204%28199406%2935%3A3%3C211%3AWTCNOT%3E2.0.CO%3B2-G. Acessado em 01 de
abril de 2013.
HARVEY, David, The Right To The City. New Left Review 53, September-October 2008.
Disponível em: http://newleftreview.org/II/53/david-harvey-the-right-to-the-city . Acessada em:
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MEYER, James, The Functional Site; or, The Transformation of Site-Specificity, in Space, Site,
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SCHIOCCHET, Michele Louise. “Site-specific art? Reflexões a respeito da performance em
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Democratic Culture, 1979-2000. Sociological Perspectives. Vol. 46, No. 4 (Winter 2003), pp. 491-
512. Published by: Sage Publications, Inc.
Disponível em: http://www.jstor.org/stable/10.1525/sop.2003.46.4.491. Acessado em maio de 2014.
TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NO TEATRO DE RUA: ação comunicativa e
subjetividade no espaço público.
Michelle Nascimento Cabral1 (Bolsa Doutorado – CAPES; Orientador Antônio
Hohlfeldt; Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da FAMECOS;
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS).
Este breve relato da trajetória do teatro de rua visa apenas esclarecer que o
mesmo não é uma “arte nova”, que sempre esteve presente ao longo da história e das
relações do homem, sobretudo, nos momento de crise e perseguições, esta modalidade
teatral esteve em evidência, posicionando-se para além de suas raízes estéticas, como
também políticas, é o caso do Brasil no período ditatorial quando o teatro ganhou as
ruas para confrontar o golpe militar e reivindicar a liberdade de expressão. Esta
característica privilegiada do teatro de rua, em relação com o espaço da cidade é
instigante para nossas análises, no que se refere a pensar a relação público/imagem.
1
Michelle Nascimento Cabral (Michelle Cabral) é professora do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA, diretora teatral e pesquisadora de teatro.
1
Como se dá a relação a comunicação com o público passante e o espetáculo tendo nas
imagens ali representadas como a grande mediadora dessa ação comunicativa no espaço
público. Interessa-nos pensar como esta ação comunicativa se dá nas diferentes
narrativas (imagem/representação, encenação/discurso) e sobretudo esta interação com
o público da rua.
Esta força comunicativa, que encontramos no teatro de rua, é em muito
superior à interação que se dá na sala de espetáculo. A relação espetáculo e espectador
no teatro de sala, é mediada pelos rituais pré-instituídos entre ambos. Ou seja, há uma
preparação do público, desde sua saída de casa até sua chegada ao edifício teatral. Este
“contrato” estabelecido entre artistas e público, inclui a aceitação de um valor financeiro
(preço do ingresso) e do lugar onde se dará o espetáculo, como também está implícita a
aceitação do ritual da experiência artística, que compõe desde uma vestimenta de
“passeio” para o espectador, obedecer aos horários e o lugar na plateia, fazer silêncio e
aplaudir ao final.
2
um fim. Tendo em vista que o teatro é realizado de forma coletiva por seus fazedores e
também experienciado de forma coletiva por seu público.
3
É esta figurabilidade contida na encenação que possibilita ao público
receptor inserir-se no espetáculo e achar nele um espaço confortável para sua
manifestação pessoal. É neste jogo de mostrar, contar e sugerir, por meio de palavras e
ações visíveis, de silêncios e pausas em meio ao caos da agitação das ruas, que reside a
dinamicidade deste teatro.
Vamos adotar para nossa análise a descrição das cenas do espetáculo objeto
de nossas reflexões, seguida das análises e comentários. Desta forma faremos uma
decupagem do espetáculo, para isso diversas apresentações foram acompanhadas na
cidade de São Luís/MA e na cidade do Rio de Janeiro/RJ. vejamos momentos do
espetáculo A Cena é Pública, levado às ruas pelo Grupo de Teatro de Rua Teatro de
Operações do Rio de Janeiro.
Esta é uma cena de abertura, ela ambienta o público que algo vai se passar
ali, a intensão do grupo é provocar um estranhamento, a dança não é exatamente uma
dança, a música não é exatamente uma música, mas a cena avisa que “algo” está
acontecendo e isso gera curiosidade em quem passa por aquele lugar.
4
Em uma apresentação do grupo na cidade de Angra dos Reis na região da
Costa Verde no Rio de Janeiro, o ator ao realizar uma das primeiras marretadas, teve a
marreta presa no interior do aparelho e não conseguia retirá-la. Os esforços do ator que
chutava, empurrava e puxava a marreta com força, foram em vão e a marreta continuava
presa ao aparelho de televisão. Ao perceber o fato inusitado, o público começou a se
manifestar com murmúrios e risos percebendo o desespero do ator que precisava dar
continuidade à cena. Foi quando uma voz anônima se fez ouvir da multidão: A Globo é
mais forte! Tal frase desencadeou uma série de reações e manifestações no público que
além do riso, incluíam toda série de chacotas e comentários sobre o poder da mídia e da
televisão enquanto sistema.
5
do cotidiano de nossa urbanidade, se faz presente, quase que de forma “fantasmagórica”
em nossa memória coletiva. Didi-Huberman, ao falar da imagem crítica, nos esclarece:
6
No momento em que o indivíduo que até então se coloca como público
observador, toma em suas mãos uma das bolas de água e a atira contra o “político” em
cena, ele toma em suas mãos também a sua cidadania. Torna-se sujeito e atuante. Este
movimento simbólico de agir frente a situação apresentada o faz retomar por alguns
instantes o poder que lhe foi tirado de tomada de decisão. Assim, o público passa a
integrar também o quadro imagético proposto pela encenação.
Provocar o público a reagir contra os “políticos” ao final de tudo, sem perder a
fábula e a consciência de que fazemos teatro, é abrir por meio da encenação uma
mediação com o mundo no qual a arte e a vida habitam.
7
É nesta relação complexa que este tecido discursivo é composto também
pela memória histórica, mediada pelas relações na experienciação da arte teatral como
mediadora. Naquele tempo espaço – em meio à cidade e a cena – mediado por imagens,
este tecido será trançado e completado pelas experiências, memórias, críticas e
sensações do público espectador.
Bibliografia:
8
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Autora: Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer
Nunes; Instituição: UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina)
1
Filósofo holandês
2
Professor de disciplinas das artes do espetáculo na Universidade de Bolonha.
3
Professor de História da Arte / Cultura Visual no Departamento de Culturas Visuais da Goldsmiths
College University de Londres.
responsabilidades quanto à potência de acontecimento, pois esta seria emergente das
relações criadas no aqui-agora.
8
Filósofo Francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da
Universidade de Paris.
9
João Fiadeiro é bailarino, coreógrafo e pesquisador em dança, e Fernanda Eugénio é antropóloga, ambos
desenvolveram o MODO OPERATIVO AND, que é uma metodologia relacional de composição baseada em
uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum.
Eugénio e Fiadeiro coordenam os processos do AND Lab no Atelier Real, em Lisboa. Outras informações
essencial do artista passaria então à capacidade de compartilhar experiência e articular
possibilidades poéticas emergentes no jogo. E para que essa presença se transforme em
convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível, mas incluir a
abertura ao aqui-agora, às interferências do ambiente na ação proposta pelo artista
aparece como urgência nas práticas presenciais contemporâneas. Seria possível propor
relação sem uma aguçada percepção de si e abertura ao ambiente?
A prática do AND Lab de Eugénio e Fiadeiro resiste na seguinte questão: Como
criar condições para que a matéria apareça no acaso? Como preservar a potência e o devir
da matéria? O espaço do já saber, da interpretação, da representação, do sentido – que se
traduz por importância/valor, não contemplam as emergências, reforçam o “pressuposto
do saber para depois agir”. Desse modo, “abdicar das respostas, largar a obstinação por se
definir o que as coisas são, o que significam, o que querem dizer, o que representam”
[grifos dos autores] parece pertinente. (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 3). Algumas
possibilidades de re-existência surgem então na pausa, na inibição, na vontade de adiar o
fim, na possibilidade de identificar a potência de afeto no acidente. Para isso, um
refinamento da percepção é constantemente solicitado: ver o que a coisa tem, e não o que
é, aproveitar o inesperado – achar meios para que ele emerja –, aceitar, retribuir, re-parar,
são estímulos constantes nessa prática. Assim se constrói o ambiente comum:
sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <
http://andlabpt.blogspot.com.br/>.
Pois, então, se a presença e o afeto são aspectos das relações com o ambiente, se
há uma busca por um comum em favor da emergência de acontecimento nas relações que
se criam no espaço do encontro, ao artista caberia observar atentamente o que o cerca,
adaptar-se ao que lhe é apresentado, do modo que está, e agir conforme o ambiente lhe
solicita. Escuta? Sim. E novamente, disponibilidade, não?
Beatriz de Medeiros10 e seus Corpos Informáticos tratam da arte como
fuleiragem, chamam de composição o que fazem em uma conversa com a cidade na
perambulação, Medeiros e Albuquerque11 (2013, p. 25) dizem que não fazem
intervenção, nem urbana nem cirúrgica, pois estas “invadem, rasgam, rompem e
implantam o que na urbs, na internet ou no corpo não cabe”. A ação de intervir parece, de
fato, o oposto de fazer-com, e só ratifica a imposição da vontade individual. Acho que eu
já não consigo mais caber na ideia de intervir na cidade, de mutilá-la com minha presença
inflada e determinante. E você? O mundo já tem muitos donos, muita gente mandando e
impondo seus desejos particulares, o meu tem sido negociar, mesmo que eu ainda queira
coisas, venha armada de criatividade e expectativas. Corpos Informáticos compõe e
decompõe corpos na cidade. Não, não são defuntos, a cidade é um espaço vivo e o corpo
é um habitante/habitado por ele. Como diz Suely Rolnik (1996, p. 3): “cada indivíduo é
permanentemente habitado por fluxos do planeta inteiro”. Se é assim que somos, porque
a ilusão de domínio do mundo, de concentração do poder? Uma potência do corpo
coletivo haverá de emergir no encontro.
Não dá para ignorar esse movimento, não dá para fazer-de-conta que não somos
efeitos dos múltiplos encontros diários, e ao propormos uma relação com o outro
considerando o espaço como lugar de emergências compositivas, haveremos de ouvir,
negociar, dividir e mantermos atenção aos dados do ambiente. Às artes da presença
parece pertinente assumir as consequências de habitar esse terreno movediço. Que tal nos
movermos juntos?
Referências:
ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
10
Professora do curso de Artes da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de pesquisa Corpos
informáticos.
11
Artista colaboradora do Grupo de pesquisa Corpos informáticos.
MEDEIROS, Maria Beatriz de; ALBUQUERQUE, Natasha de. Composição urbana:
Surpreensão e fuleragem. Catálogo Palco Giratório – Rede SESC de intercâmbio e
difusão de artes cênicas. Circuito nacional 2013, Rio de Janeiro, SESC – Serviço Social
do Comércio, p. 24 – 35, 2013.
1. Introdução
O presente estudo apresenta o processo de criação da cenografia do espetáculo Babel
desenvolvido como projeto de extensão universitária na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, em Curitiba, no ano de 2013. O espetáculo foi resultado do trabalho de dois grupos de
extensão: o TUT (Grupo de Teatro da UTFPR), e o GDC (Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico). Ambos os grupos coordenados pelo professor Ismael Scheffler, autor do texto e
diretor do espetáculo. Inicialmente, é feita a contextualização dos grupos com enfoque na
composição multidisciplinar e no funcionamento do GDC. Após, são pontuados aspectos do
texto teatral, propostas da encenação e condições de produção. A seguir, são relatadas as
diferentes etapas da criação da cenografia: pesquisas de referência, definições conceituais,
croquis de estudos, definição da forma e dos materiais, detalhamento do projeto executivo e
acompanhamento da confecção e montagem. O artigo finaliza com considerações de avaliação
do processo criativo do ponto de vista pedagógico e artístico.
2. Surgimento do projeto
O Grupo de Desenvolvimento Cenográfico (GDC) foi criado em 2013 como um
programa de extensão universitária contemplado com recursos do edital ProExt (Programa de
Extensão Universitária) da Secretaria de Ensino Superior, do Ministério da Educação, e realizado
na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba, PR. Idealizado e coordenado pelo
professor Ismael Scheffler (da área de Teatro) com a colaboração das professoras MSc. Ivone de
Castro (Design), Dra. Maurini de Souza (Letras e Comunicação) e Dra. Adriana Wan Stadnik
(Educação Física) ; o GDC foi composto por 14 acadêmicos da UTFPR de seis cursos de
graduação (Arquitetura e Urbanismo, Comunicação Institucional, Design, Educação Física,
Engenharia Elétrica e Licenciatura em Letras) que, juntos, realizaram uma série de ações
relacionadas à cenografia e ao design cênico. A maioria dos integrantes não possuía nenhum tipo
de experiência com teatro, embora alguns alunos já houvessem atuado de forma amadora em
espetáculos.
No decorrer do ano de 2013 foram desenvolvidos três projetos principais: a criação e a
produção do espetáculo teatral Babel, juntamente com o Grupo de Teatro da UTFPR (TUT); a
criação e produção da exposição Babel: o processo de criação do espetáculo teatral (realizada
na Biblioteca Pública do Paraná, de 09 de dezembro de 2013 a 30 de janeiro de 2014, e na
UTFPR, de 30 de janeiro a 14 de março de 2014) e seu catálogo; e o Seminário de Design
Cênico: os elementos visuais e sonoros da cena, realizado também na UTFPR, entre 06 e 09 de
novembro de 2013, bem como a produção dos anais do evento.
O TUT (Grupo de Teatro da UTFPR) foi criado em 1972 e permanece em atividade
ininterrupta até hoje. Esse grupo organiza e desenvolve oficinas na área teatral, montagens de
espetáculos, atividades performáticas, laboratórios de pesquisa, seminários de estudos,
exposições pedagógicas e clube de cinema, incentivando o acesso da comunidade a espetáculos
teatrais. Ele tem coordenação do professor Ismael Scheffler desde 2005. Seu elenco é composto
por alunos da UTFPR, bem como de membros da comunidade externa. Embora seja um grupo de
teatro universitário amador, já contou eventualmente com a participação de atores profissionais1.
O TUT já desenvolveu cerca de 40 espetáculos.
Para o espetáculo Babel, os dois grupos trabalharam articuladamente: o TUT fornecendo
os recursos humanos para a composição do elenco e o GDC, para a criação dos demais
elementos artísticos do espetáculo e para a produção.
Dentro do GDC foram organizados diferentes subgrupos de produção que atendiam
demandas como design gráfico dos materiais de divulgação do espetáculo, assessoria de
comunicação e infraestrutura. Para a criação artística, os alunos foram divididos em cinco
subgrupos: cenografia, figurino, iluminação cênica, sonoplastia e maquiagem. Cada subgrupo era
responsável por trabalhar suas concepções e propostas em relação à direção artística do
espetáculo, assistindo ensaios das atrizes, estando em sintonia também com as possibilidades
financeiras e logísticas de produção2.
Os dois grupos seguiram percursos paralelos de trabalho tendo encontros que visavam
unificar a proposta e afinar a relação dos diferentes artistas envolvidos no processo de criação do
espetáculo. Alguns encontros envolviam atividades práticas corporais e espaciais, outros
corresponderam a ensaios do elenco tendo o GDC como observador e outros ainda tinham
função técnica de produção.
3. O texto dramático
O texto foi escrito por Ismael Scheffler em 2004 e revisado em 2013. O texto é marcado
pela mistura de gêneros literários (dramático, épico e lírico), em uma estrutura fragmentada na
qual as atrizes assumem a tarefa de narradoras e personagens, alternando-se temporalidades do
presente e do passado. O título da peça faz referência direta à torre de Babel bíblica, embora não
corresponda a uma encenação desta história.
A torre de Babel do livro de Gênesis da Bíblia é uma referência muito presente em nossa
sociedade, tomada recorrentemente como símbolo de confusão ou profusão de idiomas. Torres
podem ser tomadas como símbolo de vaidade, arrogância e de domínio de tecnologia, mas
também são por vezes consideradas como locais de solidão, de isolamento e de clausura. De
certa forma, este espetáculo poderia ser referido como um “drama espacial”. Afinal, segundo o
autor do texto (SCHEFFLER, 2013), foi a partir da escolha de uma forma arquitetônica (a torre)
que todo o texto e encenação foram construídos. O texto é constituído, significativamente, por
fragmentos literários, apropriando-se de poesias e trechos de monólogos teatrais de diversos
autores. Os fragmentos, dispostos como em uma colagem, aparecem por vezes de forma mais
contrastante no recorte de suas bordas, em outras vezes delicadamente colados de maneira que
seus contornos se fundiram com o texto como um todo (SCHEFFLER, 2013).
A Babel da peça é uma torre, uma máquina, uma cidade onde vivem cinco mulheres,
únicas sobreviventes de toda humanidade. A rotina de Babel é marcada pelo trabalho automático
e por uma agonia constante. A Rainha-Mãe lidera e orienta, do alto da torre-máquina, suas quatro
filhas, que trabalham incessantemente na construção e manutenção da estrutura que as mantém
unidas - Babel. O esforço contínuo é mantido pela esperança na promessa de que da grande
máquina Babel surgiria a nova humanidade. As habitantes de Babel, contudo, mal sabem as
razões que as levam a, de fato, permanecer trabalhando. Um dia, uma das filhas, em meio à sua
rotina vazia de trabalho ininterrupto, sobe ao alto da torre Babel atingindo um ponto onde não se
costumava ir. De repente, ela vê algo inesperado à distância. Depois daquela visão tudo mudou.
A possibilidade de existirem outros horizontes, outras Babéis, outras pessoas, irradiou às demais
habitantes de Babel despertando novos sentimentos e outras dúvidas.
5. Considerações finais
Para nós, enquanto alunas, a interdisciplinaridade do programa foi um grande desafio,
que nos forneceu muitas possibilidades. A convivência com um grupo de criação grande e muito
heterogêneo foi difícil, mas aprendemos a lidar com a individualidade de cada um e procuramos
tirar partido de tal fato.
As diferentes áreas de graduação que englobaram o projeto fizeram com que muitos
graduandos tivessem contato pela primeira vez com a área teatral, com o trabalho corporal e
afinassem seus sentidos e a percepção do espaço.
Outra condicionante do nosso percurso foi o tempo restrito que nos levou a prazos
apertados para cada etapa de produção com impacto direto na forma que condicionamos o
trabalho, tentando fazer o melhor possível e muitas vezes até mudando o rumo das decisões caso
algo não pudesse ser confeccionado a tempo ou a verba para tal processo fosse demasiadamente
demorada. Como lidávamos com dinheiro público, foi preciso desenvolver os projetos o mais
rápido possível para que o trâmite dos processos de licitação e contratação de serviços não
prejudicasse o cronograma para a estreia do espetáculo.
Esse projeto ofereceu uma oportunidade única de adaptação de nossos conhecimentos
específicos de cada área em uma produção artística. O desafio desta criação em uma
universidade tecnológica também deve ser levado em conta, pois na UTFPR não há cursos de
graduação na área de artes e os alunos que participaram do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico – GDC levaram o projeto em paralelo aos estudos e possíveis estágios. Alunos,
professores e servidores não estão muito acostumados com produções artísticas dentro da
universidade, embora tenham aumentado as iniciativas nos últimos anos, principalmente com o
surgimento de novos cursos de graduação como Licenciatura em Letras, Comunicação
Institucional, Design e Arquitetura e Urbanismo, um projeto desse porte ainda não havia sido
implementado no contexto da universidade.
Compreender como funcionam a criação e a produção de um espetáculo teatral desde sua
concepção à logística foi uma experiência extremamente enriquecedora. Além da vivência na
produção teatral, adquirimos grande aprendizado sobre o espaço cênico e consciência espacial.
Referências:
1
Elenco de Babel : Mariane Filomeno, Carol Pellegrini, Monique Rau, Uliana Kovalczuk e Sissa Oliveira e Patricia
Goulart, com assitência de direção de DiegoVon Ancken.
2
Cenografia: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira Martins; Figurinos:
Lívia Gariani, Lucas Queiroz Morais e Maria Lígia Freire; Maquiagem: Amanda Marciniak, Betina Bonilauri e
Mariana Garcia da Silva, com consultoria de Juliane Friedrich; Iluminação: Felipe Serenato Leal e Luiz Ricardo
Castro; Sonoplastia: Henrique Jakobi, Lua Volpi e Ismael Scheffler. Com a colaboração na produção de Diogo
Duda, Jaqueline Modesto e Dáphene Zandoná.
3
A execussão da cenografia foi feita por duas equipes: a) Villa Hauer Cultural, tendo o cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho encabeçando o trabalho em conjunto com os serralheiros Ademar Cesar Silva Brasileiro e
Adilson “Magrão” ; b) a Divisão de Obras e Manutenção de Imóveis da UTFPR, tendo como serralheiros Rafael
Gonçalves Soares e Ataíde Sanches.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.
JOHAN HUIZINGA: JOGO CULTURAL - RELAÇÕES COM OS ESTUDOS DAS
PERFORMANCES CULTURAIS.
Mestranda Onira de Ávila Pinheiro Tancrede; Orientador Prof. Dr. Eduardo Reinato;
Mestrado em Performances Culturais; UFG (Universidade Federal de Goiás)
Resumo
No presente artigo escrevo sobre a pesquisa em fase inicial que investiga as
manifestações culturais apresentadas através das características do jogo cultural elaboradas
por Johan Huizinga que se mostram nos contextos artístico, social e cultural e de que
forma se relacionam com os estudos das performances culturais. Busco nesta pesquisa um
trabalho teórico à luz da minha experiência com a prática tanto em sala de aula, com jogos
teatrais, brincadeiras e nas cirandas cantadas, como também em outras vivências educativas
do contexto cultural. A pesquisa irá contemplar de forma interdisciplinar as relações
metodológicas que competem uma pesquisa teórica, colaborando com os estudos
pretendidos durante a investigação que se inicia. Com essa pesquisa, poderei fazer algumas
considerações sobre a importância que os processos desenvolvidos pelos jogos têm em uma
determinada cultura e compreender o sentido lúdico dos jogos culturais. O que exige a
compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto estético com características
próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento. Assim, o
estudo em questão me permitirá não somente, refletir sobre as características dos jogos
culturais, como também trará benefício e contribuições para a área quanto ao tema
investigado.
1
Johan Huizinga ( 1872 – 1945) foi um professor e historiador, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e
o Renascimento.Destaca-se ainda a sua principal contribuição: o Homo Ludens, escrito por ele no ano de 1938.
2
Richard Schechner (1934 - ) é professor de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts daUniversidade
de Nova Iorque, editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists. Schechner é um dos iniciadores do programa de
Estudos da Performance e fundador do The Performance Group, um grupo de teatro experimental.
3
Milton Borah Singer (1912- 1994), antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte americano.
4
Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955 por Milton Borah Singer (1912- 1994) em estreito diálogo com as
construções teóricas de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo, comunicador e etnolinguista Robert
Redfield (1879 - 1958).
5
CAMARGO, Robson Corrêa de. Coordenador do mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais – Universidade federal de Goiás.
3
Percebemos, portanto, a partir dos conceitos aqui brevemente expostos, que o jogo
cultural e as performances culturais, sugerem ser um tema de pesquisa que articula diversas
áreas do conhecimento humano: experiência, memória, aspecto lúdico, estética, tradição e
teatralidade, entre outros. Em algumas leituras sobre jogo cultural como, por exemplo, os
estudos de Ricardo Japiassu (2001) sobre jogos tradicionais e o jogo teatral, e as
performances culturais, encontramos alguns aspectos comuns: a história do jogo como uma
história da cultura, as características e função do jogo em cada período histórico.
Esta articulação entre o jogo cultural e o teatro é visível no comentário de Japiassu
(2001) quando afirma ser o teatro um:
Sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um
alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais
bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um
príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou tigre. A criança fica literalmente
“transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a
acreditar que realmente é está ou aquela coisa, sem, contudo perder inteiramente
o sentido da “realidade habitual”. (p.17)
Huizinga (2007) enxerga o jogo como elemento da cultura humana. Aliás, ele
afirma ser o jogo anterior à cultura, visto que esta pressupõe a existência da sociedade
humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais. O autor acrescenta: “A
existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer
4
concepção do universo.” (Huizinga, 2007, p.32). Afinal, o objetivo inicial não é ensinar
apenas técnicas para formar atores, mas poder estimular a imaginação criativa do aluno,
que já se faz dramática desde a sua concepção, pois ser criativo é uma característica natural
do ser humano.
Ao falar sobre o processo criativo dos artistas, Japiassu (2007) explica: “não é a
formação de artistas, mas o domínio, a fluência, e a compreensão estética dessas complexas
formas humanas de expressão que movimentam processos afetivos, cognitivos e
psicomotores.” (p. 24). O jogo cultural ou jogo teatral não busca apenas a formação de
atores, mas os constantes exercícios da prática social, permitindo que se trabalhem melhor
em conjunto, se expressem com mais desenvoltura e, obviamente desenvolvam sua
consciência crítica. Processo criativo é o que podemos perceber bem na brincadeira cantada
a saber as “cirandas”, que é considerada uma atividade lúdica, rítmica e de expressão do
movimento corporal que integra nossa cultura. Assim quando a criança, jovem e adulto
brincar, estará movimentando o corpo, trabalhando ritmos e assim possibilitando-os
experimentar o som e cultivar a escuta. Privilegiando os aspectos culturais de forma
coletiva, trabalhando socialmente em grupos.
Entre as brincadeiras infantis, em outro estudo (MAFFIOLETTI, 2004, p.37) a
autora destaca que a brincadeira cantada é uma atividade cooperativa e coletiva em que
aprendemos a ser mais humanos, por gerar o sentimento de “estar com”. Por meio da
brincadeira cantada são criados vínculos sociais e é retratada a cultura do meio social. Nas
brincadeiras cantadas às crianças realizam movimentos sincronizados em que cada um é
fundamental para o sucesso do desempenho do grupo. A palavra ciranda tem origem
portuguesa e significa “peneira grossa” ou “joeiro”. Lembra o movimento rotativo das
peneiras ao serem manuseadas. A roda pode ser considerada uma das formas mais primitiva
de dançar e está presente em todos os povos com influência de várias culturas.
Outro ponto de interesse investigativo desta proposta é analisar e comparar as
interfaces dos jogos e as performances culturais: Como se articulam as diferentes
linguagens e as concepções estéticas inseridas nessas atividades?
Schechner (2006) apresenta oito tipos de situações onde as performances culturais
poderão ocorrer: “1) Na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo; 2) Nas
artes; 3) Nos esportes e outros entretenimentos populares; 4) nos negócios; 5) na
tecnologia; 6) No sexo; 7) Nos rituais – sagrados e seculares; 8) Em ação.” (SCHECHNER,
2006. p.33-34). Como podemos notar o conceito de performances culturais é amplo e
abarca várias situações que podem ser vivenciadas em separado ou entrecruzadas com
outras, em um campo multidisciplinar de conhecimento, onde as áreas se misturam e se
completam. Por exemplo, jogar em teatro implica colocar o aluno numa situação lúdica em
que ele precise solucionar um problema cênico. Existem regras as quais ele deve seguir e
objetivos que devem alcançar. Os alunos/jogadores interagem ora jogando, ora assistindo.
Desse modo, é possível desenvolver o senso crítico, além do senso estético, além do
aprendizado tornar-se prazeroso e independente.
Marvin Carlson (2009) tece considerações a respeito dessa relação quando afirma:
Assim como Huizinga (2007) não teve a pretensão de responder todas as questões
sobre o jogo cultural, por considerar que a cultura passa por constantes transformações,
Schechner (2006) também não teve a pretensão de definir as preposições usadas para
definir as performances culturais, uma vez que as mesmas apresentam conceitos bem
amplos. Como tal, não tenho a pretensão de definir nada, nem desmistificar tudo sobre o
jogo cultural e a performances culturais, pela totalidade imensa de informações acerca do
tema. Meu foco recai nos possíveis pontos de diálogos entre esses conceitos tão amplos e
desafiadores. É possível estabelecer relações entre os estudos sobre o jogo cultural de
Johan Huizinga com os estudos das performances culturais? Quais são? Como ocorrem?
Com essa pesquisa, poderemos fazer algumas considerações sobre a importância
que os processos desenvolvidos pelos jogos desenvolvem em uma determinada cultura e
compreender o sentido lúdico dos jogos culturais considerando minhas experiências
práticas. O que exige a compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto
estético com características próprias e como forma de abordagem relacionada à construção
do conhecimento. Assim, o estudo em questão me permitirá, não somente, refletir sobre
minha experiência com jogos teatrais como também, trará benefício e contribuições para a
área quanto ao tema investigado. Particularmente, a investigação trará benefícios para
minha prática docente ao permitir aprofundamentos teóricos, conceituais e procedimentais,
que me permitirão desdobramentos em outros estudos, no futuro.
A pesquisa busca estabelecer as possíveis relações dos estudos sobre o jogo cultural
de Johan Huizinga com os estudos das performances culturais; Refletir sobre o jogo
cultural e as performances culturais, Compreender o sentido aprender/entender o jogo
cultural; Identificar, compreender e analisar as características do jogo cultural - elaborados
por Johan Huizinga -, bem como as características das performances culturais; Reconhecer
as possíveis relações de similaridade e/ou diferenciações entre as propostas de Huizinga e
as performances culturais.
Esta pesquisa se fundamentará a partir das leituras feitas do livro “Homo Ludens”,
de Johan Huizinga (2007). Jogo, a que se refere Huizinga (2007) é jogo com regras que
constituem o fundamento do processo educacional e serve também como uma forma de
contribuição a criação da realidade cênica. Segundo Huizinga (2007) “o jogo sempre
representa algo”, e a partir desse argumento que busco as possíveis representações feitas
pelo jogo na vida do indivíduo.
As performances culturais alcançam quase todas as atividades humanas, conforme
propõe Schechner (2006) e suas definições têm foco em um ponto: vida cotidiana. O
intento de Schechner (2006) é justamente dar ênfase a amplitude que as performances
culturais têm em sua concepção. Entretanto, ele não coloca essa definição como absoluta ou
como a verdade, mas como algo que vem se constituindo assim, historicamente, como um
processo. Enfim, Schechner (2006) por ser um autor que vem do teatro, contribui de
sobremaneira a esta investigação. Associo de maneira análoga a definição de Schechner
(2006) sobre “comportamento restaurado” na performance, com as brincadeiras, o jogo
cultural, e como tudo que de uma forma ou outra nos transforma e nos faz reviver uma
experiência. Não obstante sejamos a mesma pessoa após um jogo, ainda assim, nos
sentimos transformados, vivendo independentemente de um mundo preestabelecido. O que
pode ser reconhecido nesta definição de Schechner (2006):
6
Referências
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Performance e Ciências Sociais.
DAWSEY, John. Victor Turner e a Antropologia da Experiência. Cadernos de Campo,
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________. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.
JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino de Teatro. 2ª edição. São Paulo: Papirus
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HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da Cultura. SP: Perspectiva,
2007.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Trad. Dandara. Rio de Janeiro, Revista de
teatro: O Percevejo, UNIRIO, Ano 11, número 12, 2006.
MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerquer . Brincadeiras cantadas. Revista Pátio Educação
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7
Referências virtuais
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Metodologia de Análise. http://www.performancesculturais.emac.ufg.br/pages/38092.
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Levantamento Bibliográfico
BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental
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CAMARGO, R.; CAPEL, H.; REINATO, E. Performances Culturais. São Paulo: Editora Hucitec,
2011.
CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. 2ª. Edição. São Paulo:
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COHEN, R. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva - Editora da
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COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro & Pensamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
________. [1968] Jogo, teatro e pensamento - As bases intelectuais do teatro na educação.
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KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Editora
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra,
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SPOLIN, Viola. [1963] Improvisação para o teatro. Tradução: Ingrid Dormien Koudela e
Eduardo José de Almeida Amos. 4ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Faz quase duzentos anos que o termo encenação existe com o sentido que lhe
atribuímos hoje e, em 18801 – com o início da era dos encenadores –, irrompe-se a crise
do drama. Drama: vocábulo que serve tanto para descrever a obra literária, quanto a sua
representação cênica, paralelo que não representa uma coincidência, visto que “o drama,
como forma literária, é uma obra destinada à cena e, de modo semelhante, a maioria dos
espetáculos teatrais parte de obras literárias” (WILLIAMS, 2010, p. 215). Se, em termos
etimológicos, os dois conceitos habitam a mesma forma, a prática evidencia uma intensa
tensão entre ambas as instâncias, sobretudo a partir de 1970, quando teria começado o
que Hans-Thies Lehmann batizou de teatro pós-dramático, em uma obra que parte da
hipótese de que
ocorreu uma profunda ruptura no modo de pensar e fazer teatro. Algo que já
estava anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX – a
valorização da autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de
“textocentrismo” – se desenvolve mais radicalmente, a ponto de assumir um
sentido modelar como contraponto da arte do processo de totalização da
indústria cultural. Desse modo, a tendência “pós-dramática” seria uma
novidade histórica não apenas por razões formais, mas também pela negação
estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática
(CARVALHO in LEHMANN2, 2007, p. 7)
5
Com “brilhante teórico”, Sarrazac refere-se ao Lehmann, no artigo “A reprise (resposta ao pós-
dramático)”, disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-
dramatico/ Acessado em: 06/07/2014.
6
Declaração feita durante entrevista concedida à BBC, para matéria sobre a reestreia do espetáculo no
Globe Theatre, em Londres, que foi publicada no site do jornal Estadão, em 20/04/2012. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-galpao-reestreia-romeu-e-julieta-em-londres,863556
Acessado em: 06/07/2014.
A figura do dramaturg
Considerações finais
Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está
em vias de apagar-se. Ela deixa progressivamente espaço para a ideia de uma
polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem
para o fazer teatral. [...] É a representação teatral como um jogo entre as
práticas irredutíveis de um ao outro e, todavia, conjugadas como momento
onde eles se confrontam e questionam, como combate mútuo no qual o
espectador é, no final das contas, o juiz (DORT apud SARRAZAC, 2007).
7
Cidade do interior mineiro, em cuja praça central o grupo Galpão realizou ensaios de Romeu e Julieta.
porque há algo de universal no legado de Shakespeare que o mantém vivo tanto na
Inglaterra do século XVI, quanto no interior mineiro do século XXI. Como disse Peter
Brook, o Bardo é como um carvão, cuja real qualidade só se contempla diante do fogo
ateado pela cena.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Mateus. Bárbara Heliodora fala dos 450 anos de Shakespeare. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 20 de abril de 2014.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Diário de montagem: Romeu e Julieta. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
CABRAL, Paulo. Grupo Galpão reestreia Romeu e Julieta em Londres. Estadão,
São Paulo, 20 de abril de 2012.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Editora Cosac Naify, 2007.
LOPES, Rogério. A trajetória de Romeu e Julieta: do teatro inglês renascentista ao
teatro popular brasileiro. Artcultura, v. 11, n. 19, 2010.
MENEZES, Maria Eugênia. Teórico Jean-Pierre Sarrazac defende sobrevivência do
teatro. Estadão, São Paulo, 14 de março de 2012.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013
QUADROS, Magali Helena de. Buscando compreender a função de dramaturgista.
Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Teatro, 2007.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Sala Preta, v. 13, n. 1, p. 56-70,
2013.
____________________. A reprise (resposta ao pós-dramático). Trad. Humberto
Giancristofaro. Questão de Crítica: Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais,
mar. 2010.
____________________. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Editora
Cosac Naify, 2013.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Paulo Eduardo Pinheiro Rosa (CAPES; Mestrado); Orientadora: Sandra Meyer Nunes;
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
INTRODUÇÃO
De acordo com Patrice Pavis (2008, p. 113-114) em seu livro “Dicionário de Teatro”,
a palavra Dramaturgia tem origem no Grego, que significa compor um drama, e essa
significação sofre uma evolução do sentido original e clássico.
Assim, todas as escolhas da cena (atuação, iluminação, espaço, entre outros) podem
ser encaradas como dramaturgia e as mesmas devem estar consoantes com a direção
proposta.
A busca de uma nova percepção do público quanto à obra (historicamente) levou à
alterações no espaço de encenação, disposição do público, propostas de novos locais, etc.
“Assim como Grotowski e Artaud - para citar os mais representativos -, outros encenadores
que utilizam a tradicional estrutura italiana passam a questionar os mecanismos de recepção
nesse espaço” (REBOUÇAS, 2009, p. 127). A partir disso, a experimentação em espaços não
convencionais - como igrejas, manicônios e outros - se fez presente, mas sem deixar de
configurar uma experiência teatral.
Mas como validar essas escolhas? Não existe na arte uma lei geral, capaz de orientar
todas as escolhas referentes à obra e, portanto, é irreal a existência de um procedimento
correto a ser seguido. O decurso dessas escolhas se dará justamente durante o processo
artístico, sendo o mesmo, definidor de uma regra individual e própria, que não possibilita ser
prevista anteriormente. A obra é a lei de seu fim, governando e regendo o processo criativo.
Cabe ao artista, o lugar paradoxal de seguidor e autor, pois a obra é autônoma ao tempo em
que é regida pelo artista; é, simultaneamente, lei e resultado da sua formação, tendo como
critério o êxito. Assim, a obra prevalece quando resulta, tal e qual, deveria ser. (PAREYSON,
1989).
SOBRE O TEMPO
Dizer, em Godot, quanto tempo se passou desde a última situação beira o impossível.
Os indicativos temporais são cíclicos suspendendo a noção do tempo tal e qual conhecemos.
O segundo ato repete a estrutura do primeiro nos deixando sem conseguir afirmar se é o dia
posterior ou não. As tentativa de localizar qualquer evento no tempo são inúteis. “Embora
pudéssemos localizar o que vem antes e o que vem depois dentro do mesmo dia, já não
saberíamos se aquela ação se refere a um antes e um depois, pois todos os dias seriam o
mesmo” (SCHERER, 2003, p. 61). A vontade de montar Beckett nasce desse universo,
construído à espera de Godot. Da discussão suscitada do tempo e da espera. Da possibilidade
de relacionar, através das situações e relações criadas no texto, nosso espectador com o
tempo.
A relativade irá nos dizer que a condição do tempo não é absoluta e poderá variar de
acordo com o observador. O tempo então se une ao espaço formando o tecido do espaço-
tempo que se deforma e se adequa a cada situação.
Assim, poderíamos arriscar dizer que o passar de cinco minutos não são iguais para
duas pessoas distintas. Outra possível relação, é a de que o fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
Peter Pál Pelbart, em seu estudo sobre a noção de tempo para Deleuze, nos apresenta a
noção de “Cadeia de Presentes” ao falar da temporalização de imagens para o cinema.
Dizendo que o presente, não se restringe ao momento em que aparece por ele fazer parte de
um todo que o representa; mostra coexistir passado (que não seria um presente antigo),
presente e futuro (que não é um presente por vir). (PELBART, 2010). O fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
A arte, no entanto, possui um tempo próprio, original, que ultrapassa suas dimensões,
um tempo “complicado”, idêntico à eternidade. Sendo que a eternidade não é o mesmo que a
ausência de mudanças ou uma existência ilimitada, mas a própria essência complicada do
tempo. (DELEUZE, 1987, apud PELBART, 2010).1
Aproveitando essa característica do tempo na arte, ao colocar nosso espectador em
espera possibilitamos à ele se relacionar com essa característica do tempo. Esse tempo fluido,
mutante e particular.
“Para o teatro, a questão é sempre o tempo vivido, a vivência temporal que atores e
espectadores partilham e que evidentemente não é mensurável com exatidão, mas apenas
experimentável.” (LEHMANN, 2007, p. 287) Pretendendo criar nessa encenação, um espaço
de suspensão do tempo, retirando do público, as noções de elipses convencionais de tempo,
como exemplificado com a árvore presente no texto base.
Renato Ferracini vai trazer essa tempo experimentável em outros termos, ao dizer que
os elementos de cena confluem para criar um espaço-tempo outro; “essa relação turbulenta,
geneticamente dinâmica, gera uma bolha lírico-poética altamente complexa, que se
movimenta em continuum e se torna independente do espaço-tempo cotidiano, atualizando,
poderíamos dizer, um espaço-tempo poético” (2006)
PRODUZINDO PRESENÇA
Ou descrita como o “jogo alquimista” onde “o corpo humano comum, com a sua
experiência comum se transforma em puro ouro de presença dramática através de um ator que
facilita o fluxo de energia, um ‘jogo de oposições’ que negocia as ‘diferenças de potencial’.”2
(LEABHART, 2003, p. 398). Luís Otávio Burnier apresenta o conceito de “corporeidade”,
que seria a forma como essa energia “toma corpo” intervindo no espaço e no tempo, sem, no
entanto, representar o aspecto puramente físico dessa ação, antecedendo-a (BURNIER, 2009,
p. 55).
Mas bastaria o corpo do ator como veiculação dessa presença? Como poderia o
controle dessa energia ser o suficiente para produzir momentos de presença numa cultura de
sentido? Ora, se “todas as culturas e objetos culturais podem ser analisados como
configurações de efeitos de sentido e de efeitos presença, embora suas diferentes semânticas
autodescritivas acentuem com frequência apenas um ou outro aspecto” e se “o tempo é a
dimensão primordial em qualquer cultura de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 41; 110).
WAITING FOR…
1
DELEUZE, G. Proust et les signes, 7a ed., Paris: PUF, 1986.
2
Tradução minha. “le corps humain ordinaire, avec ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
2
«jeu
Tradução
d’oppositions»
minha. “le
quicorps
négocie
humain
les «différences
ordinaire, avec
de potentiel».”
ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
«jeu d’oppositions» qui négocie les «différences de potentiel».”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ENCENAÇÃO DESTERRITORIALIZADA: A PERFORMATIVIDADE COMO
GERADORA DE ESPAÇOS NÃO IDENTIFICÁVEIS NA CENA
CONTEMPORÂNEA
1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Concessão de bolsa auxílio evento por parte da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
3
Pesquisa de Mestrado em andamento intitulada: “A performatividade como elemento desterritorializador na
encenação contemporânea”.
4
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 200.
O que irá sustentar o estudo de Féral é a ideia de que um espetáculo se configura num
jogo de relação e/ou tensão entre teatralidade e performatividade, pois para a pesquisadora a
teatralidade é o que permite ao espectador reconhecer, por meio de convenções e referências
socioculturais, que está diante de uma ficção, já a performatividade, intrincada com os
elementos da performance, tem a intenção de desarticular esses “acordos” prévios, colocando
o espectador, mesmo que por instantes, dentro da ação.
Em nossa pesquisa propomos pensar a encenação como um território já consolidado
no que compete à pesquisa e a prática teatral contemporânea, porém entendendo o território
tomando de empréstimo a definição filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari:
Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em
muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência
suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos
desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar
efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma
função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento
5
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 122.
6
SILVA, Antônio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo
colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo 2008, p. 198.
constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro
agenciamento.7
É justamente aqui que se apresenta a principal proposta de nossa pesquisa, qual seja,
pensar a performatividade como um elemento desterritorializador na encenação
contemporânea. Ao considerarmos a encenação como um território, no qual são agenciados
diversos elementos cênicos que constituem um enunciado, a proposta aqui é a de pensar como
a performatividade desterritorializa a encenação interferindo na composição deste enunciado,
ou ainda, reterritorializando este a partir deste novo elemento.
Podemos enxergar esta desterritorialização numa passagem do ensaio de Josette Féral,
no qual a pesquisadora fala sobre a descrição dos fatos e sobre a ação do performer no
espetáculo performativo, e sugere que estas sejam agentes de desconstrução dos códigos da
encenação e que, portanto:
Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis,
fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de
uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre
a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer
instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a
linguagem.8
Este teatro, que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi
definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,
7
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 133.
8
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 203.
9
Ibid. p. 208/209, nota de roda pé número 29.
publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria
mais justo chamar este teatro de 'performativo', pois a noção de performatividade
está no centro de seu funcionamento 10.
De modo geral, pode-se dizer que o teatro dramático precisa privilegiar um espaço
“mediano”. O espaço imenso e o espaço muito íntimo tendem a se tornar perigosos
para o drama. Tanto num caso quanto no outro a estrutura do espelhamento deixa de
existir ou fica em perigo, na medida em que o quadro cênico funciona como um
espelho que permite ao mundo homogêneo do observador reconhecer-se no mundo
fechado do drama. Para que haja essa equivalência e esse espelhamento – ainda que
eles sejam ilusórios ou ideológicos –, são necessários o isolamento, a independência
e a identidade própria de ambos os mundos. O processo de identificação depende
desse isolamento para que haja certeza das linhas divisórias entre a emissão e
recepção dos signos 11.
Diante desta consideração podemos concluir que no teatro dramático há uma grande
necessidade de se instituir processos de identificação na composição do enunciado cênico,
uma vez que sejam estes processos que permitirão o espectador estabelecer este espelhamento
e logo se reconhecer com aquilo que é contado no palco. Nesse sentido a produção de
espacialidade por parte do teatro dramático estará fortemente vinculado a uma produção de
um espaço reconhecível ao espectador, no qual este possa realizar o recorte do que é narrado
juntamente com o espaço praticado, criando-se assim a noção de unidade na composição da
encenação.
Ainda nesse ponto acerca da identificação provocado pelo drama, achamos pertinente
traça uma breve relação com a noção de teatralidade. Segundo Féral a teatralidade é
construída a partir do olhar do observador que, recorta aquilo que é visto e transforma-o em
um processo semiótico de representação. A autora utiliza o termo “framed theatrical space12”
– que podemos traduzir como “espaço teatral enquadrado ou emoldurado – , que se refere
justamente ao ato do observador de recortar e emoldurar o que é visto e traçar desenhos
ficcionais, a partir dos códigos e convenções socioculturais, evidenciando os acordos prévios
presentes na teatralidade, como já apresentamos antes. Portanto a construção de um espaço
reconhecível por parte do drama vem justamente mediar, ou facilitar, este emoldurar por parte
do espectador, permitindo com que a representação cênica aconteça de maneira, mais ou
menos, linear e homogênea.
10
Ibid. p.197.
11
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.p. 265.
12
FÉRAL, Josette. Theatricality: The Specificity of Theatrical Language. Substance, issue98/99, v.31,n 2 e 3,
2002. p. 98.
Ao corroborarmos com a ideia de teatro performativo proposta por Féral, podemos
considerar que se a teatralidade propicia justamente o reconhecimento e a identificação por
parte do espectador, a performatividade produzirá um efeito reverso, pois sua utilização na
encenação aparece justamente para desviar esta identificação traçando lacunas na composição
do enunciado cênico.
Para autora a noção de performatividade está atrelada ao “fazer”, e ao mostrar o que se
“faz em cena”, fugindo a representação mimética e se aproximando do que podemos pensar
como “real”. Nesse sentido o performer irá causar rupturas nesse processo de identificação
por parte do espetador, pois esta ênfase no fazer em detrimento do representar produz
instabilidades na linearidade e na compreensão homogênea da produção de sentido, que
podemos considerar como um jogo entre “produção de sentido” e “produção de presença”.
13
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São
Paulo, nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 207.
“A escrita cênica não é aí mais hierárquica e ordenada ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento
[événement], reconhece o risco. Mais que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda
mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena14 [...]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala
Preta, São Paulo, nº 8, 2008. p. 197-210. Tradução: Lígia Borges.
ROUBINE, Jean-Jaques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1998.
14
Ibid. p.204.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
1
graduação no tom da voz e escolha de palavras, e acompanhado de
gesticulação eloqüente. Não raro tivemos ocasião de admirar esse talento,
mesmo no nossos tocadores da tropa quando alguns contavam anedotas com
inimitável seriedade cômica, e os mais escutavam com satisfação ou
adubavam as estorietas com observações e piadas sutis. (SPIX;MARTIUS,
1981 apud PEREIRA, 1996, p. 46).
2
poético, onde interagem gestos corporais, vocais, presença de sujeitos em contato e
comunicação, num emaranhado de ações capazes de criar laços e proporcionar
experiências.
Sentir a Voz, Ouvir o Gesto: pela sensível compreensão da Performance
3
ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às circunstâncias
pessoais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003, p. 27)
4
Poesia e teatralidade nas Performances Narrativas do Vale.
5
capacidade acaba por revelar a arte popular que provém da experiência
humana. (BENJAMIN, 1994, p. 200).
Se a gente não tivê motivo pra rir nessa vida, de quê que adianta, minino?
Pensa só procê vê, num é? uma veia pobre que nem Dona Lió, fazia era todo
mundo rir. Morreu com a boca escancarada, atolada, encascaiada, cheia de
dente e feliz, paricêno que tinha comido fartura de rico. E eu que tô vivo,
num vô ri das palhaçada dela? Vô, uai. Eu que convivi com ela sei que ela
agora deve ta é rindo tamém, muié de alma boa, era safada mas era de alma
boa. Eu aprendi muito com ela, prendizage de vida mêrmo. Igual, contá caso
e fazê os outros feliz era cum ela mesmo. As história dela a gente multiplica
dez vezes mais né, pra fazê mais graça, né?E povo larga o que tivê fazêno
pra saber, né? As pessoa gosta de orvi, U que é bunito de orvi, num é não?
(risos).8
6
Ao passo em que apresenta e descreve a personalidade de Dona Liopordina,
Adão do Nelo compartilha dos valores interiorizados em contato com a personagem
quando viva e pertencente ao seu círculo social. Para além de expor as marcas de sua
experiência, o narrador pretende através da história alertar os ouvintes para a
necessidade de rir-se da vida, de gozar os momentos de alegria enquanto vivem e reflete
o contraste da senhora, que vivendo no imaginário do município pelo reconhecimento
de suas façanhas e espertezas, tornou-se igualmente digna de respeito e responsabilidade
por boa parte da “prendizage (aprendizagem) de vida” do feirante, que relembra e
transmite suas histórias.
Apontando a necessidade de propiciar aos outros o mesmo teor
transformador vivenciado por ele (quando junto a protagonista de suas histórias) o
narrador intenta “restaurar” o comportamento vivo na memória através das ações de seu
próprio corpo, demonstrando em gestos e postulações da voz as características da velha
amiga falecida. O narrador oferece em sua presença a performance que julga representar
sua lembrança, claro, interpretações que agora estão sujeitas à repetição reformulada,
criada e condicionada na ação de um outro corpo, uma nova intenção. Ora, o material
que inspira a ação do narrador (lembrança do comportamento da amiga falecida) é uma
referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da forma e conteúdo da
Performance narrativa (comportamento original, se é que assim podemos chamá-lo) é
desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela performance do narrador,
tornando efetiva a comunicação entre performer e ouvintes/observadores como
experiência poética.
Esse caráter de constante atualização da experiência interiorizada
assemelha-se à concepção do valor poético da oralidade descrito por ZUMTHOR
(1997): “uma poesia oral que é ao mesmo tempo visível e audível e, em performance,
atualiza a obra. Essa atualização sugere sempre em movência, uma instabilidade radical
do poema” (ZUMTHOR, 1997, p. 264). Uma experiência que reside no contato com a
voz e presença que se transforma no transcorrer de uma nova contação, um novo dedo-
de-prosa, uma nova roda de causos.
Assim sendo, a voz só pode ser capturada no movimento entre o texto
(falado) e a obra (narrativa oral), na relação entre o que é palavra e sua reutilização
orada. Paul Zumthor, atento ao compromisso da experiência entre sujeitos que
vivenciam enquanto agentes ou espectadores da performance narrativa afirma que, “o
homem também vive a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer que a linguagem
se torna verdadeiramente signo das coisas e ao mesmo tempo, significante dela mesma”
(ZUMTHOR, 1993, p. 74).
Ainda sobre o caráter poético nas performances narrativas, Zumthor afirma
que:
7
Adão do Nelo, valendo-se do lirismo, da repetição, da rima e da função
fática da linguagem oral (“num é?”, “né”), recursos que literariamente já garantiriam a
forma poética da comunicação do narrador, reside nessa oralidade uma característica
poética, como descreve Paul Zumthor (2000) na citação acima, que excede o que é
reconhecido por poesia de acordo com a literatura. Está além do conteúdo e além da
forma, a poesia na experiência da performance narrativa reside na capacidade de
proporcionar o prazer e deleite, adentrar as emoções dos envolvidos no evento narrativo
e sobretudo, promover a reflexão através do contato, a transformação a partir das
diferentes interpretações e sensações da experiência.
Trata-se do que Merleau-Ponty (1991, p.79) notou, ao afirmar que “as
palavras, os traços, as cores que me exprimem saem de mim como os meus gestos, são
me arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer”. O
corpo, voz e ação do narrador pode significar para além de sua existência, e de sua
confiança no real, e assim, inserir um sentido àquilo que o convém como função
sensível, poética da comunicação:
8
reinventa inaugurando sentidos, representando lembranças, objetos, seres e sensações ao
tomar a iniciativa de agir e produzir marcas nas pessoas e no mundo. Portanto, está
atrelado ao esforço da conquista de um novo, e não à renúncia de uma circunstância,
contexto, na absroção dos espaços que compõem a troca e reafirmação dos sujeitos à
deriva de suas próprias intenções à cerca do que é visto, a partir de quem o faz, através
da integridade da sedução de quem admira o que lhe é posto à mostra. E se averso ao
encontro, ou passível de envolvimento, a teatralidade encontra-se na interseção do
contato, na disposição de fazer-se pertencente ao outro, ao evidente, ao demasiado
humano refeito. Tem aí, a performance narrativa no Jequitinhonha um material vasto de
produção da experiência poética, bem como de associação ao caráter reflexivo do fazer
teatral: O apreço e prazer dos habitantes dessa região por narrar e reinventar suas
próprias histórias, e a dos outros.
9
NOTAS
1
Dados da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). Janeiro de 2013.
2
Intentando dinamizar a leitura e compreensão do leitor, em determinados momentos deste texto
utilizarei apenas a palavra Vale, iniciada com letra maiúscula, referindo-me exclusivamente ao Vale do
Jequitinhonha/MG.
3
O Arraial do Tijuco (atual cidade de Diamantina) corresponde à região de maior expressão mineradora
do país durante o século XVII e constitui-se como o propulsor da extensão populacional de povoamento
do Vale do Jequitinhonha. (PEREIRA, 1996).
4
As considerações acerca do olhar lançado para performance narrativa segundo seu caráter poético e
teatral, serão explanadas no próximo tópico deste estudo.
5
Adão do Nelo (79 anos, feirante narrador de histórias, sujeito observado por essa pesquisa). Em apreço
à experiência vivida quando imerso no evento narrativo participado, por mim, pesquisador, todas as falas
do feirante transcritas neste artigo mantiveram também na ortografia a identificação fonética da voz
registrada via gravador sonoro. Depoimento cedido em dezembro de 2012, na cidade de
Itamarandiba/MG.
6
MOSTAÇO , Edélcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. Revista Da pesquisa da UDESC.
Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf>.
Acessado em 04 de julho de 2014.
7
Pesquisa de campo ainda em andamento com intuito para desenvolvimento da dissertação:
“Performatividade e Teatralidade: Um olhar estético sobre a performance narrativa de feirantes rurais do
Vale do Jequitinhonha, MG., requisito para obtenção do título mestre em artes cênicas pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
8
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
9
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONDÍA, Jorge Larrosa (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. São
Paulo, Revista Brasileira de Educação. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação, jan/abril, nº19. pp. 20-28.
CARLSON, Marvin (2009). Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores
Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG.
ZUMTHOR, Paul (2010). Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG.
11
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPECIALIDADES
Resumo
Vários elementos compõem uma peça teatral (música, luz, cenário, etc). Como
qualquer outra tecnologia utilizada na construção destes, novas tecnologias são inseridas para
o auxílio no enriquecimento dos sentidos, tais como tecnologias computacionais. Vendo o uso
das tecnologias como algo comum nas artes, torna-se natural visualizar uma cena composta
por robôs, virtuais ou mecatrônicos, com um certo nível de Inteligência Artificial (IA),
interagindo com atores. Um exemplo disso é o que define-se como Persona Ex Machina, ou
PEM, uma proposta de IA com enfoque no uso em espetáculos teatrais. Esta é baseada em
certos princípios: autonomia: age por si, não controlada por humanos; percepção: percebe
seu ambiente via sensores; ação: age em seu ambiente; interação: interage com os demais
atores; roteiro: segue roteiro estipulado para o espetáculo teatral; improvisação: pode
improvisar, se necessário; interpretação: pode seguir as mudanças de humor de seu
personagem conforme o roteiro. Uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que
siga os princípios supracitados. No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes
podem se encaixar nos princípios citados e serem utilizados em um espetáculo teatral tal como
uma PEM. Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Interação Humano-computador; Espetáculo-
laboratório.
1. Introdução
Entre os contextos da aplicabilidade de diferentes recursos e elementos para compor
uma peça teatral, incluindo música, luz, cenários, figurino, ou mesmo os próprios atores,
novas ideias sempre acabam por surgir conforme a evolução tecnológica. Essas servem como
importantes peças de inserção à cena para auxiliar no enriquecimento dos sentidos do público.
Certamente é de grande importância a análise da utilização desses novos recursos junto à
quem produz e também à quem presencia tais espetáculos. Todos esses elementos de cena não
podem ser vistos apenas como acessórios secundários, mas também como elementos tão
importantes quanto os atores, conforme a linha de raciocínio de Kantor (MORETTI, 2008).
Já há alguns anos, recursos diretamente ligados ao conjunto da mecânica, eletrônica e
tecnologias computacionais também têm sido utilizadas na composição de espetáculos teatrais,
performances e dança, e muito já foi discutido sobre esses. Entretanto, como tais elementos
têm tido uma crescente evolução, ainda há muito o que se experimentar e discutir (ABRAÃO,
2007). Entretanto, não se limita aqui apenas a discussão sobre a utilização de datashows,
iluminação automatizada, sonorização tridimensional, pernas e braços mecânicos, etc., na
forma de elementos secundários, mas a utilização de robôs em cena. Discute-se aqui robôs
com certa autonomia sobre a cena, composto por elementos de Inteligência Artificial, com
tanta importância no contexto geral quanto um ator.
É evidente que a forma de utilização de robôs em cena, com ou sem o provimento de
técnicas e algoritmos de Inteligência Artificial, é bastante ampla e que a limitação da maneira
de utilização desses recursos não pode ser efetivada. Contudo, para estudo e análise, alguns
caminhos podem ser norteados para propostas de discussões sobre tal aplicabilidade.
Neste contexto, o presente trabalho se apóia no conceito de Persona Ex Machina
(PEM), apresentado por Zambiasi e Pinheiro (2013). Uma PEM pode ser classificada como
um elemento de cena tão importante quanto um ator, mas que permeia sua ação com base na
artificialidade, ou seja, pode ser um ator virtual apresentado em uma tela (televisão, datashow,
etc) ou por agentes robóticos interagindo em um ambiente real. A utilização de tais recursos no
teatro, performance e dança não é nova e já vem sido executados em alguns trabalhos.
O termo Persona Ex Machina utilizado aqui provém do Latim Pessoa
da Máquina e é inspirado no Deus Ex Machina, o “Deus descido da
máquina”, dispositivo mecânico utilizado na Antiga Grécia
(ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
O Deus Ex Machina, segundo Berthold (2004), “vinha em auxílio do poeta quando este
precisava resolver um conflito humano aparentemente insolúvel”. Já, no caso desse trabalho, a
PEM se refere à um ser artificial que surge como mais um ator em cena.
Entretanto, não é qualquer robô definido como PEM, Zambiasi e Pinheiro (2013)
apresentaram um conjunto de princípios para definir tal elemento espetacular. Os princípios
são: autonomia, percepção, ação, interação, roteiro, improvisação e interpretação. Em tempo,
uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que siga os princípios supracitados.
No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes podem se encaixar nos princípios
citados e podem ser utilizados em um espetáculo teatral tal como uma PEM.
Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Um robô que não responde e não age é apenas mais um elemento na cena como
qualquer outro. Por isso o princípio da Ação é citado para uma PEM. Mesmo que tal interação
seja uma resposta textual em uma tela ou uma fala, ainda é uma ação. Toda a PEM deve poder
responder ao seu meio conforme as informações de percepção recebidas por seus sensores.
Princípio da Interação: Um humano ou outra PEM deve poder interagir
com uma PEM por meio de conversa, gestos e ações, tal como
interagiria com outra pessoa (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
A PEM não deve apenas receber informações e agir. As ações devem condizer com as
informações de entrada dos sensores, inclusive para poder interagir com outras PEMs ou
mesmo atores em cena.
Princípio do Roteiro: Uma PEM deve ter um roteiro de base para
seguir, deve poder encontrar as deixas dos outros atores em cenas e
deve poder seguir seu roteiro conforme pontos de checagem no tempo
da execução do espetáculo (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
Para uma PEM, deve ser possível seguir o Roteiro de um espetáculo teatral. É certo de
que há diversas formas de atores seguirem roteiros ou o fluxo temporal de um espetáculo,
tendo seu início ou fim e, inclusive, poderem iniciar ou fechar deixas. Dessa forma, uma PEM
também deve seguir o fluxo do espetáculo.
Princípio da Improvisação: Uma PEM deve ter a possibilidade de
improvisar, em alguns pontos do espetáculo e escolher a melhor
resposta que lhe convier conforme interações não planejadas com
outros atores e, inclusive, com o público (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).
Para Pavis (1999), em um espetáculo improvisado, “os atores agem como se tivessem
que inventar uma história e representar personagens”. Quando há o recurso da improvisação, o
ator é “desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção
com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais,
infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente (GUINSBURG,
1992). Tal como é permitido à um ator improvisar, à uma PEM também deve ser permitida a
Improvisação, sendo essa característica também selecionada como um princípio desta.
Princípio da Interpretação: Uma PEM deve poder interpretar sua
personagem e utilizar de mudanças de humor conforme as
necessidades do espetáculo e das interações (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).
3. Proposta de Espetáculo-Laboratório
O presente artigo apresenta uma proposta de Espetáculo-Laboratório como forma de
discutir a utilização da robótica, atrelada à Inteligência Artificial, em espetáculos teatrais. Para
isso, é proposto a utilização de uma PEM, seguindo seus princípios, em um espetáculo.
Entretanto, essa proposta não se firma apenas na apresentação de uma uma peça, mas na
posterior análise das suas aplicabilidades.
Dessa forma, a proposta segue a seguinte metodologia:
1. Criação do Roteiro;
2. Definição do cenário, figurino e demais elementos da cena;
3. Criação dos recursos mecânicos e computacionais necessários para a PEM;
4. Ensaios com ator(es) e PEM;
5. Apresentação do Espetáculo;
6. Análise e Avaliação;
7. Escrita de Artigos com os resultados.
Uma análise de requisitos iniciais, recursos mínimos necessários e aplicabilidade para
uma primeira versão desse espetáculo já se encontra atualmente em avaliação. São eles:
• Atores: Para suprir o princípio da interação da PEM, o espetáculo terá um ator para
que tal interação possa acontecer. Entretanto, não é necessário inicialmente que haja
mais de um ator em cena.
• PEM: Apenas um ator do tipo PEM é suficiente para uma discussão inicial.
Certamente que pode-se haver mais de uma PEM, inclusive interagindo entre elas.
◦ Computador: Um computador para executar os softwares e um Tablet com câmera
e audio como sensores para interação com o ator;
◦ Softwares: Em uma análise inicial, os softwares necessários para essa PEM
envolvem um chatbot (softwares para conversa em linguagem natural), softwares
para detecção de fala, sintetizador de voz, interface visual para mostrar pelo menos
o rosto da PEM com suas expressões e mudanças de humor;
◦ Mecânica: Um braço mecânico para suportar um Tablet com câmera que deve
seguir o ator. Este elemento não é obrigatoriamente necessário e ainda deve ser
avaliada a sua aplicabilidade inicial;
◦ Datashow: para mostrar graficamente os módulos de software que se encontram
em execução durante o espetáculo;
• Roteiro: Um roteiro ainda deve ser elaborado. A ideia é propor um roteiro sobre uma
discussão recursiva acerca da própria análise do que é a Inteligência Artificial e sua
aplicabilidade na interação humano-computador. O foco é um cientista discutindo com
sua criação o que é a Inteligencia Artificial.
• Cenário: Um laboratório mecatrônico para a criação de robôs.
Devido ao fato de que há o envolvimento de custos para a aplicação dessas ideias e de
que o projeto é independente e sem financiamento, alguns desses elementos ainda podem ser
reavaliados.
4. Considerações
Este artigo apresentou uma proposta da utilização de um robô provido de Inteligência
Artificial em um espetáculo-laboratório teatral como forma de discutir a aplicabilidade da IA
no teatro. Para tal foi sugerido a utilização de um robô seguindo os princípios da Persona Ex
Machina e uma ideia inicial de espetáculo a ser ainda criado, apresentado e analisado por um
público selecionado. Os próximos passos são a criação do roteiro, escolha do ator, montagem
do hardware necessário, implementação dos softwares, ensaios, apresentação e discussões.
Este espetáculo terá o suporte e auxílio do Grupo de Pesquisa em Ciberarte (Subverse, 2014).
Referências
ABRÃO, Elisa. 2007. As relações entre arte e tecnologia: a dança híbrida do Cena 11.
Pensar a Prática. v10, n2. 2007.
BERTHOLD, Margot. A história mundial do teatro. 2a. ed. São Paulo : Perspectiva. 2004.
GUINSBURG, Jacob; SILVA, Armando. Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992
MEYERHOLD, Vsevolod. 2012. Do teatro. São Paulo. Iluminuras: 2012.
MORETTI, Maria F.S.; BELTRAME, Vamor. Kantor, Duchamp e os objetos. Em: Valmor
Beltrame. (Org.). Teatro de Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e Prática. Florianópolis:
Design Editora, v.1, pg.07-142. 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo : Editora Perspectiva, 1999.
RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial. 2aEd, Tradução da 2a ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004
Subverse: grupo de pesquisa em ciberarte. <http://subverseproject.blogspot.com.br/>.
Acesso: 07/2014.
ZAMBIASI, Saulo P.; PINHEIRO, Patricia L.B.. Diálogos Performáticos Interativos para
Atores Virtuais. VI Jornada Latino Americana de Estudos Teatrais. Blumenau : Furb, 2013.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Referências
BISHOP. Claire. Installation Art – A critical history. London: Tate, 2005.
---. Participation. Cambridge: MIT Press, 2006.
DORT, Bernard. “A representação emancipada.” In: Sala Preta, vol 13, n 1,
jun 2013, p.47-55.
CARLSON, Marvin. “Sobre algumas implicações contemporâneas do termo
‘pós-dramático’.” In: Nas fronteiras do representacional.
Florianópolis: Letras Contemporâneas/CNPQ, 2014 (no prelo), sem
página disponível.
COULTER, Graham. Deconstructing Installation Art. Southampton: CASIAD,
2006. Disponível em http://installationart.net/, acesso 03/05/2014.
GUEDES, Antonio. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 17 de março de
2013.
GUENOUN, Denis. O teatro é necessário. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LOPES, Angela Leite (org.). Novarina em Cena. Com a colaboração de Ana
Kfoury e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
---. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 19 de março de 2013.
RANCIÈRE, Jacques. “O espectador emancipado.” In: Urdimento, no. 15,
Florianópolis: UDESC/PPGT, 2010, p.107-122.
1
Ver Coulter, 2006.
2
Ver sobretudo Bishop, 2005 e 2006, e também Rancière (2010) e Guenoun (2004).
3
O trabalho estreou em agosto de 2011, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto e foi
retomado em Maio e Junho de 2012 no Parque das Ruínas do bairro Santa Teresa.
4
Assim ela é descrita nas credenciais do DVD produzido pelo Teatro do Pequeno Gesto como
registro e material de divulgação.
5
O autor francês define como mot a palavra engessada em um significado supostamente
conhecido e comum. A essa palavra, ele opõe o verbo falado (parole) que recoloca a palavra (mot) em
movimento e a queima, pois a respiração empregada no uso do verbo age como combustão “das ideias
prontas sobre a linguagem e o real”(Lopes 2011, p.13). Mas o texto também deixa claro em sua
dificuldade reconhecida de realizar esse objetivo que o verbo performativo necessita da presença da
palavra estabelecida para poder articular sua força relativa.
6
E-mail para o autor em 17 de março de 2013.
VII JORNADA LATINO-AMERICANA DE ESTUDOS TEATRAIS
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
Tiago Luz (CAPES); Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos; Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
2014
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis : Vozes,
1994. Pag 202
2
Idem, ibidem.
3
JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo :
Escrituras Editora, 2005. pag. 80
2
personagem lagarceana, a fim de refletir sobre como ela se constitui e como o ator, a
atriz, pode se relacionar com essas figuras.
De modo geral, encontramos na sua dramaturgia ‘apenas’ figuras que, embora
no presente, contam, narram e até mesmo sonham com tempos passados ou futuros, e
esse momento presente – o que nos é proposto enquanto experiência teatral – constitui-
se basicamente desses relatos e, com isso, nos envolvemos numa experiência temporal
e, por consequência, espacial. Teatro fundado na palavra, teatro da escuta, desafiante
para atores e público: de um lado, como ser portador daquelas palavras em cena e, do
outro, o convite a um estado de atenção, receosos de perder algum novo detalhe que
apareça na fala de algum dos personagens, a fim de juntar as peças do quebra-cabeça
proposto pelo texto.
Adentremos, então, o universo do autor de Besançon, procurando perceber sua
estratégia de proposição das personagens em alguns dos seus textos.
Com uma produção intensa, localizada entre o fim dos anos 70 até meados dos
anos 90 – contemporânea de outros importantes dramaturgos da cena francesa como
Bernard-Marie Koltés, Philippe Minyana, Valère Novarina e Michel Vinaver – Lagarce
escreveu vinte e cinco peças teatrais reunidas em quatro volumes, o ensaio Théâtre et
Pouvoir em Occident (2001), três textos em prosa, L'Apprentissage, Le Baine e Le
Voyage à La Haye (2001) e vários artigos reunidos no volume Du Luxe et de
l'Impuissance (1997), publicado postumamente.
Sua incursão pelo universo teatral começa após o fim do ensino médio, no início
de seus estudos universitários em Besançon, no curso de Filosofia e Letras onde,
paralelamente, passa a frequentar um curso de Arte Dramática oferecido pelo
Conservatório Nacional Regional. Após terminar sua graduação, em 1977, se junta a
alguns amigos e funda uma companhia de teatro amador chamada Théâtre de La
Roulotte, em homenagem à trupe criada pelo ator francês Jean Vilar.
É nessa companhia – “Teatro da Caravana” – que Lagarce encena diversos
autores como Kafka, Ionesco, Molière, Beckett e Wedekind e onde encontra espaço
para a criação dos seus próprios textos. A imagem da caravana, além disso, será uma
tradução possível de algumas características da escrita lagarceana: errante, aventureira,
flexível e bastante provocadora.
A grande questão para o dramaturgo em construção e seu grupo era fazer um
teatro verdadeiramente contemporâneo e isso significava, naquele momento, responder
a indagação fomentada por Lagarce no seu ensaio Théâtre et Pouvoir em Occident:
“como escrever depois de Ionesco, Beckett e Tchekov?”4
Assim, ao eleger sua herança, Lagarce debruça-se sobre a linguagem a fim de
construir um teatro que falasse a seu tempo, desdobrando e ampliando as questões
desses grandes mestres ao longo da sua trajetória.
Suas primeiras peças publicadas – Erreur de construction e La bonne de chez
Ducatel – ambas de 1977, trazem características do ‘teatro do absurdo’, herdadas, por
exemplo, de A Cantora Careca, de Ionesco.5 Outros trabalhos iniciais como Carthage,
encore, La place de l’autre, Voyage de Madame Knipper vers La Prusse Orientale e
Les Serviteurs ressoam o tratamento da linguagem operado por Beckett e Tchekhov e
começam a apontar alguns temas que serão recorrentes no universo do autor de
Besançon: o retorno ao país, ao lugar de origem; personagens que falam do passado ou
sonham com um futuro; figuras suspensas no tempo-espaço que só existem à medida
4
Jean-Pierre Thibaudat. Parcours de Jean-Luc Lagarce in www.lagarce.net/auteur/biographie
(consultaem 24/07/13)
5
idem
3
que falam, ou seja, temas que se relacionam com um estar em movimento, em
deslocamento ou sentir-se deslocado, em trânsito, em eterna busca – como também
sugere o próprio nome da companhia.
6
OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no teatro de Jean-
Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011. Pag. 31
7
Marcio Abreu, programa da peça, Curitiba, 2006
4
Nota-se certa problematização da personagem, na medida em que, a partir dessa
única informação, caberá à atriz encontrar no texto, naquilo que a sua personagem diz –
e no que dizem dela – outros índices que a ajudem a sustentar essa figura em cena. Em
se tratando de um texto lagarceano, porém, não será surpresa se tudo o que essa busca
revelar for a necessidade de se colocar como instrumento de passagem para as palavras
do texto.
Para se aventurar no universo lagarceano é preciso “conservar no centro do
nosso mundo o lugar das nossas incertezas, o lugar da nossa fragilidade, da nossa
dificuldade de dizer e de entender” 8. Sem dúvida um desafio, de forma e conteúdo,
para o ator mais tradicional, acostumado a ‘incorporar’ e defender uma personagem em
cena.
Nas outras peças da Semana Lagarce, todas da fase final da produção do autor,
as personagens são apresentadas na mesma estratégia de despersonalização e mínimo
referencial possível, colocando o foco do seu teatro muito mais naquilo que é dito do
que em quem diz. Essa mudança de perspectiva é fundamental no teatro de Jean-Luc e
cerne de nossa pesquisa.
A temática do retorno a casa aparece em outro trabalho apresentado naquela
semana em 2006. Desta vez, o foco recai não naquele que volta, mas nos que ficaram.
A Cia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto fez a
leitura dramática do texto Eu estava em casa e esperava que a chuva viesse, de 1997,
penúltima obra escrita por Lagarce.
Nesta peça, uma espécie de coro formado por
A Mais Velha
A Mãe
A Filha mais velha
A Segunda
A Filha mais nova
está à espera do filho/irmão que foi expulso de casa pelo Pai, que já faleceu.
Como se vê, as personagens também não têm nome, mas são apresentadas numa
hierarquia familiar. Essa informação não deixa dúvida quanto ao tipo de relação
existente entre elas, embora todas façam parte do mesmo “oratório dramático para cinco
vozes9”.
Sobre a organização das personagens na lista de apresentação, uma vez que não
indica a ordem em que aparecem no texto, podemos supor que Lagarce poderia querer
indicar certa rigidez no universo dessas cinco mulheres que passaram anos de suas vidas
aguardando o retorno do filho/irmão querido. E novamente temos uma personagem
indicada apenas como A Mãe, e se pensarmos nas demais figuras a partir dessa, cria-se
certo ruído com relação à personagem A Mais Velha: seria a avó?
O texto é formado por uma longa sucessão de monólogos que se permeiam e o
tema da espera remete diretamente ao Esperando Godot, de Beckett, mas vai além.
8
LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les Solitaires Intempestifs,
2004. Pag. 19 (tradução nossa)
9
Op. Cit. Pag 147
5
“Lagarce, um autor influenciado por Beckett, amplia a tragédia beckettiana
porque, ao contrário de Godot, que não aparece para Estragon e Vladimir, ele faz com
que esta pessoa, este filho/irmão que vai dar sentido à vida delas, apareça. Só que ele
não faz nada. Chega, cai no meio da sala e não sabemos se está vivo ou morto” 10.
Trazendo essa análise para mais perto do nosso objeto – o trabalho do ator na
construção da personagem lagarceana - para as atrizes, apresentava-se o desafio de dar
voz aos longos monólogos entrecortados e fazer existir, pela palavra, pela ação da
palavra, cada figura, revelando-se e relacionando-se consigo mesma e entre si.
Carolina Fabri, atriz que fez A Filha mais velha na montagem da Cia Elevador,
conta que “lendo o texto, no começo, a gente lia o texto lendo mesmo, era uma leitura
dramática, encenada, e lendo o texto, sem colocar nada em cima, só lendo o texto, já me
trazia tantas afetações, as palavras mesmo, a maneira como elas estão encadeadas,
parecia que você quase não tinha que fazer nada, você só tinha que ler e falar aquilo que
estava escrito, claro, você tem que estar aberto a essas coisas, acho que esse é o maior
trabalho de todos” 11.
Nota-se o exercício de sensibilidade proposto pelo autor e captado pela atriz no
trato com o texto.
O desafio parece ser o de transformar a matéria bruta do texto em experiência
sensível, o que exige dos atores, das atrizes um posicionamento diferente daquele
baseado na construção de uma personagem e mais interessado na comunicação, na
partilha de um momento que seria o da escuta.
Em Lagarce, a busca pelo outro se apresenta como um dos principais temas e a
construção do texto com longas falas é a forma de dar espaço para que a figura se
esforce para se expressar, se colocar e, simultaneamente, abrir espaço para o esforço do
outro em compreender e fazer parte na relação.
Outro trabalho presente na Semana Lagarce, dirigido por François Berreur12 e
que depois teve uma montagem brasileira foi Music Hall. Escrito em 1988, apresenta
três figuras que vivem no universo artístico e expõem as aventuras e desventuras de
quem vive dessa escolha.
Aqui, as personagens são indicadas apenas pelo gênero - La Fille, Le Premier
Boy, Le Deuxième Boy – e na encenação de Berreur, três atores, homens, do Collectif
Artistas Unidos, de Portugal, dividem a cena como muitos anônimos que lutam para
viver da Arte.
Ao optar por um ator no papel da Moça, o diretor comunga com Lagarce o jogo
com a linguagem e suas estruturas e nos provoca um distanciamento cênico que, para
além dos distanciamentos dramatúrgicos, gera um espaço primordial para a elaboração
da alteridade.
A ironia e o bom humor também estão presentes nesse texto que traz na sua
estrutura um jogo metalinguístico, estruturado com longas falas e réplicas e que explora
e favorece a reflexão sobre o fazer teatral. De acordo com Luiz Paëtow, diretor da
10
LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Laga rce. In Revista Pitágoras 500,
vol. 1, Campinas, 2001, pag. 74
11
Carolina Fabri. Entrevista realizada em maio de 2014
12
François Berreur é ator e diretor da Cia de Teatro francesa Les Solitaires Intempestifs, além de
cofundador da editora especializada em publicações teatrais Les Solitaires Intempestifs. Ex-integrante da
Théâtre de la Roulotte (compagnia fundada por Jean-Luc Lagarce no final dos anos 70 e começo dos 80),
Berreur atuou nas peças Histoire d'amour (as duas versões), nas montagens da Cantatrice Chauve e outras
peças da companhia.
6
montagem brasileira do texto, “Lagarce deixa o âmbito familiar/amoroso e cria uma
obra que tem potência de manifesto” 13.
Por fim, mas não na ordem cronológica da programação da Semana Lagarce,
lançaremos um olhar sobre História de Amor (últimos capítulos), cujo texto e a
montagem realizada pelo Teatro da Vertigem dispararam e configuram os principais
objetos de nossa pesquisa.
Também a convite do Consulado Francês, o Vertigem foi o primeiro grupo
brasileiro a levar aos palcos esse texto lagarceano, com direção de Antonio Araújo e
Eliana Monteiro e um elenco formado por Roberto Áudio (O Primeiro Homem), Sergio
Siviero (O Segundo Homem) e Luciana Schwinden (A Mulher).
História de Amor (últimos capítulos) foi escrito em 1990, e teve sua estreia em
abril de 1991 no Espaço Planoise, em Besançon, com encenação do próprio autor. A
peça chegou a Paris em fevereiro de 1992, no Theatre de la Cité Internationale.
Trata-se da segunda versão desse texto, de caráter mais impreciso do que aquela
escrita em 1983 - História de amor (apontamentos). Os motivos pelos quais o autor
retorna a essa texto são desconhecidos, e essa imprecisão da segunda versão se
caracteriza pela maneira como Lagarce estabelece uma camada a mais de leitura sobre o
texto ao inserir de forma mais objetiva o ator, aquele que o lê como mostraremos a
seguir.
Uma possível sinopse para o texto seria: Um homem escreveu uma peça.
Naquele dia, chegaram outro homem e uma mulher. Os três leem juntos o texto. Talvez
representem a peça – são atores – ou apenas a descubram como se descobre o texto de
um amigo.
Logo na primeira fala dessa versão do texto, temos a figura do Primeiro Homem
que, de forma estranhada, mas já muito objetiva, propõe um jogo espaço-temporal que
vai se desenvolver como a espinha dorsal do texto contribuindo para o estabelecimento
de uma cena em suspenso, oscilante, num convite às avessas para a experiência da
presença dos corpos, em cena e na plateia, no aqui agora, reforçando a existência e a
necessidade do outro e do estar junto.
PROLOGO
O PRIMEIRO HOMEM
Prólogo.
O Primeiro Homem.
Uma noite, o Primeiro Homem fica sozinho, se esquecem dele, não sabem o que
ele faz, o que é feito dele.
Foi feito dele.
<< que idade é que ele tem? >>
O Primeiro Homem, uma noite...
13
Luiz Paëtow, diretor e ator, dirigiu a montagem de Music Hall com a Cia da Mentira em 2009 com
reestréia no 2º semestre de 2013. Entrevista realizada em julho de 2013.
7
É a historia de dois homens e uma mulher.
A MULHER
Ela, a Mulher (eu), ela, ela ri delicadamente.
Talvez – não a distinguimos muito bem – talvez chore também, um pouco, é
possível. [,,,]
Quando o Primeiro Homem repete a rubrica, ele acaba por se localizar dentro da
história e ao mesmo tempo desloca a atenção para aquilo que está escrito, para a
palavra, anunciando, talvez, que o que interessa neste texto é ele mesmo, o texto, e tudo
aquilo que ele é capaz de gerar no espaço e nas pessoas envolvidas nele e com ele.
Em seguida, na fala da Mulher, a atriz/personagem se apresenta, tenta se
localizar dentro do jogo de forma explicita, revelando também que há, sim, um espaço
entre elas (a atriz e a personagem) e que isso será preservado aqui como forma mesmo
de sobrevivência, de prática da escrita e da cena. Trata-se de uma personagem quase
sempre apresentada de forma nebulosa, vista quase sempre na penumbra, com ações
vacilantes e por vezes ambíguas.
Ao longo do texto há um refinamento dessas imprecisões que tende a estabelecer
um elo cada vez mais coeso entre quem fala e quem ouve, reforçando o lugar do público
enquanto testemunho daquilo que é dito e do que acontece em cena.
De acordo com Roberto Áudio, “História de Amor é um texto difícil, cheio de
sutilezas, variação de tempos, falas que se dirigem a um e, de repente, termina se
dirigindo para outro14”. Nota-se, assim, o desafio do texto de Lagarce: fazer do terreno
movediço da sua escrita uma pista de dança!
Podemos perceber outras características da sua escrita como o jogo verbal entre
presente, passado e futuro, às vezes na mesma frase, o uso recorrente de vírgulas como
um recurso de construção e desconstrução de ritmos, revelando alguém cuidadoso,
preocupado em encontrar a melhor palavra, a melhor frase ou expressão, que dê conta
de comunicar aquilo que realmente se quer, o que é verdadeiramente necessário,
importante.
Nesse sentido, a repetição – de palavras ou até de frases inteiras, aparece como
um elemento constituinte da escrita lagarceana e de acordo com Cícero Oliveira, “a
regularidade com que o autor a utiliza leva a crer que em seu teatro esse procedimento
adquire o status de um verdadeira modus operandi, tornando-se quase que um estilo do
autor” 15. Em sua dissertação, Cícero aprofunda essa discussão, dando muitos exemplos
do uso desse recurso e suas consequências na leitura e na fala dos textos de Lagarce.
Trabalhando assim, o autor elabora uma fala repleta de detalhes, propondo um
estimulante jogo tanto para os atores, na medida em que precisam dar conta das nuances
e sutilezas do texto, quanto para o público, que vai construindo e adentrando o universo
da peça, e a relação com cada personagem, na medida em que recebe cada peça desse
aprimorado quebra-cabeça.
Diante desse quadro, como pensar o trabalho do ator, enquanto primeiro espaço
14
Roberto Áudio, entrevista realizada em julho de 2013.
15
Op, Cit. Pag. 69
8
de criação e alteridade? Segundo Jean-Pierre Ryngaert, “o ator não pode mais tomar a
cargo esses personagens segundo os sistemas de representação vigentes, procurem eles a
identificação ou formas de distanciamento. Nós o dizemos ‘atravessado’ pela fala (...), o
imaginamos portador de uma energia alternada, muito presente e subitamente
fantasmática, engajado em seu discurso ou como que hibernado. Em todo caso, cabe-lhe
assumir essas figuras empalidecidas às quais um suplemento de carne e contornos
firmes dariam uma existência resoluta e falsa de ‘personagem em excesso’” 16.
Acreditamos que uma alternativa possível nesse panorama é um trabalho de ator
que abra espaço para o jogo sensível da linguagem proposto por um texto com
características específicas, como os de Jean-Luc Lagarce, que favorecem um caminho
de elaboração e revelação da ficção, e da própria alteridade.
A relevância dessa atitude, talvez seja a de nos alertar que o Teatro, enquanto
linguagem e ‘espelho da vida’, é construção, estrutura elaborada e, por isso, passível de
interpretações, reorganizações e mudanças. Uma atitude política.
16
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São
Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág. 139
9
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARTIGO
DISSERTAÇÃO
SITE
www.lagarce.net
10
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
PIETÁ EM PRETO&BRANCO
ESTUDO DE UMA IMAGEM HISTÓRICA NA REPRESENTAÇÃO DO TEATRO
DE SOMBRAS
Tuany Fagundes Rausch1
Fátima Costa de Lima2
Antes de adentrarmos na análise do teatro de sombras, precisamos sublinhar que nossa percepção
sobre as sombras vem muito antes do conhecimento deste gênero teatral. Sobre isso, o psicólogo
suíço Jean Piaget realizou um estudo que
revelou que a maneira como as crianças percebem as sombras varia de acordo com
a idade. A partir de 5 anos, tendem a achar que são feitas do mesmo material que a
noite – a escuridão. Depois, entre os 6 e 8 anos, acreditam que sejam objetos
materiais. Só mais tarde, a partir dos 9 anos, é que elas percebem que as sombras
são fruto da relação entre objetos e a luz. Já é algo muito próximo do que
entendemos quando nos tornamos adultos: sombras são áreas escuras onde a luz
foi bloqueada. (GOMES, 2004).
As interpretações tanto literais quanto metafóricas variam de acordo com a cultura e o contexto
histórico de cada pessoa. Apesar desse tipo de estudo não ser abordado aqui, ressaltamos que nossa
visão será positiva ao abordar a utilização da sombra como meio expressivo de criação. Ao
contrário, comumente se remete, quando se fala de sombras, a algo desconhecido e obscuro.
A relação entre luz e sombra é elementar na construção de uma imagem no teatro de sombras. Ela
torna-se dialética no momento em que consideramos as etapas de sua construção como partes da
tríade dialética formada por positivo, negativo e negativo do negativo. Ao criarmos uma obra na
linguagem do teatro de sombras, primeiro definimos que imagem se quer construir (a ideia). Depois,
vemos como passaremos essa imagem para a tela (a ação), que obstáculos colocaremos entre luz e
tela, podendo ser estas silhuetas, corpo humano, objetos; e como ela se formaria nos olhos do
público. E, por último, o resultado, como se dá a imagem em si.
Assim, analogamente à tríade, essas três percepções de composição se dão como: positivo, a ideia;
negativo, a ação; e o negativo do negativo, a imagem.
Entretanto, nem todas as imagens são dialéticas mesmo no teatro de sombras, ainda que este tenha
tendência a criá-las por operar dialeticamente a construção de suas imagens. Apenas algumas,
1
Acadêmica do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro - CEART - UDESC - bolsista PIBIC/CNPq.
2
Orientadora do Departamento de Artes - CEART – UDESC.
porém, conseguem configurar-se como síntese dialética de imagem, história e mito. Para Benjamin,
imagens dialéticas são figuras da dialética histórica e da natureza mítica:
profunda intuição sobre as relações entre dialética, mito e imagem. Pois não é como
algo sempre vivo e atual que a natureza se impõe na dialética. A dialética detém-
se na imagem e ela, no acontecimento histórico mais recente, o mito como passado
muito antigo, a natureza como história primeva. Por isso, as imagens, como as dos
intérieur, que conduzem a dialética e o mito a um ponto de indistinção, são
verdadeiramente ‘fósseis antediluvianos’. (BENJAMIN, 2007, p.503).
O sombrista3 utiliza elementos potencialmente oníricos: luz e sombra. Quando uma pessoa fecha
seus olhos, revela-se o escuro. Com o passar do tempo ele toma outras formas, coloridas, subjetivas,
além do visível a pálpebras abertas. Do ponto de vista benjaminiano, em que “A utilização dos
elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o pensador
e obrigatória para o historiador” (Benjamin, 2007, p. 506, [N 4, 4]), o espectador do teatro de
sombras assume, quanto à imagem a ele mostrada, o papel de historiador e intérprete do onírico:
Dentro do teatro de sombras, o sombrista seria o pensador e o espectador, o historiador. Seu objeto
de estudo em comum é a imagem dialética. Ou, ainda que não a imagem em si, sua construção
dialética, necessária para que qualquer imagem chegue aos olhos do espectador.
Como objeto de estudo e exemplo imagético a serem analisados a partir de tais conceitos, escolhi a
imagem que denominei Pietá de Chador4. A imagem aparece na série autobiográfica Persépolis, de
Marjane Satrapi. Na série, Satrapi conta sua história desde a infância até sua ida à França, onde mora
atualmente. A autora conta de maneira singular e sincera as mudanças que presenciou a partir de
1979, com o advento da Revolução Islâmica. A obra teve sua versão para o cinema em 2007, dirigida
por Satrapi e Vincent Paronnaud, que ganhou o Oscar de Melhor Animação naquele ano.
3
Conceito elaborado por Alexandre Fávero, num texto originariamente elaborado para a ABrIC - Associação Brasileira
de Iluminação cênica para encaminhamento ao Ministério do Trabalho e o SATED Nacional para possível aprovação
nas categorias profissionais de técnicos em iluminação. “São profissionais que pesquisam, criam, idealizam, projetam,
constroem, montam, atuam, operam e elaboram cenas dramáticas através da utilização das luzes e sombras projetadas.
Lidam com diferentes matérias-primas e tecnologias, exigindo conhecimentos e habilidades manuais para a criação de
objetos cênicos e na elaboração de soluções técnicas para o seu funcionamento na cena. [...] É uma função de alta
capacitação artística por estar relacionada com as mais diferentes áreas das artes, exigindo conhecimentos de artes
cênicas, gráficas, plásticas, cinematográficas, fotográficas, e conhecimentos técnicos nas áreas da elétrica, ótica,
cenografia, dentre outros aspectos de interesse artístico. [...]”.
4
Termo criado por Tuany Fagundes para diferenciar da obra Pietá, de Michelangelo, de 1499.
Para que se criasse uma república islâmica, a revolução, uma das poucas
manifestações incontestáveis da vontade popular contra um regime político, sofreu
algumas mudanças em sua trajetória. O novo governo estabelecido proporcionou o
regresso do Irã aos valores tradicionais do Islã. Costumes ocidentais difundidos na
cultura iraniana durante o regime do xá foram proibidos, entre eles a proibição às
mulheres do uso de maquiagem e de minissaias; música pop e rock; cinema; jogos
e jogatinas. Velhos códigos morais foram ressuscitados, como o açoite e castigos
corporais aos que praticassem adultério, aos que praticassem sexo fora do
casamento e aos que consumissem álcool.
Para garantir a Revolução Islâmica, muitos dos que a apoiaram foram executados,
entre eles os marxistas, os grupos maoístas e de esquerda, por defenderem o estado
laico, uma ameaça aos princípios teocráticos do islã. Também foram executados os
considerados doentes ou escórias da sociedade, como os homossexuais e as
prostitutas. (LEE-MEDDI, 2014)
A obra já teve várias análises, dentre elas, a de Valéria Pisauro, professora de Literatura e História
da Arte:
É importante salientar que não se pretende realizar uma visão dicotômica entre Ocidente e Oriente.
Mesmo que eu tenha nascido deste “lado” do mundo, pretendo observar diferentes pontos de vista,
inclusive o da participação de países ocidentais na implementação de regimes autoritários para que
lhes favorecessem economicamente.
Sem resolução dos conflitos, a atualidade tem que lidar com os conflitos muitas vezes ignorados
pelos noticiários.
Quanto ao destino do regime estabelecido pela revolução de 1979, somente o povo
iraniano poderá responder até onde irá e até quando o legitimará. Quanto ao
ocidente, há de se aprender a conviver com as diferenças culturais, que se
sobrepõem ao poder econômico, seja ele emanado do petróleo ou da força das
armas. (Ibidem)
Após essa breve contextualização, voltemos à imagem. A Pietá de Chador aparece quando Marjane
já está na fase adulta. Ela fez parte de seu exame de admissão na faculdade de artes no Irã, como
conta Satrapi:
Para entrar na faculdade de artes, além dos testes de múltipla escolha havia uma
prova de desenho. Eu tinha certeza que um dos temas seria "Os mártires",
obviamente! Então treinei copiando umas 20 vezes uma foto da "Pietá" de
Michelangelo. Naquele dia eu a reproduzi, mas pus um chador negro na cabeça de
Maria, uma farda em Jesus, acrescentei duas tulipas, símbolo dos mártires*, de
cada lado, para evitar confusão. *dizem que as tulipas vermelhas crescem com o
sangue dos mártires. (SATRAPI, 2007).
Analisando a imagem em nosso contexto histórico ocidental atual, vemos a pertinência de uma
discussão estética dialética sobre ela, à qual facilmente caberia o fragmento a seguir, de Walter
Benjamin:
Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz
sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num
lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética
na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente
temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma
progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são
imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a
linguagem. (BENJAMIN, 2007, p. 504).
Embora a imagem Pietá de Chador não seja originária de um processo de montagem em teatro de
sombras, possui os elementos formais para sua possível construção neste gênero: é em preto e
branco, em “sombra e luz”. Além disso, contém os elementos de conteúdo da imagem dialética:
dialético: imagem, mito e história.
A Pietá de Chador é uma alegoria aos mártires de guerra que envolve o mito de Maria no Islão com
a história da Revolução Islâmica e guerra Irã-Iraque.
Existe uma noção que resume todos os ensinamentos e todas as tradições que o
Islão possui acerca de Maria: é a da “Mulher Perfeita que corresponde em todos os
graus ao princípio passivo e substancial da Existência”. (...) Assim se encontra
ilustrada a afinidade que o Islão representa com a função mariana e o espírito de
servidão que é sua marca. (BORAU, p.136).
Como vemos, segundo os estudos de Borau, vê-se a figura de Maria ocupando um lugar
particularmente eminente no Islão.
A importância de Maria no Islão é realçada pelo facto de a sura do alcorão (Alcorão
19) relatar a Anunciação e a Natividade. Esta é a passagem principal: <<Maria
deixou sua família e retirou-se para um local que dava para o Leste. E colocou uma
cortina para ocultar-se dela (da família), e lhe enviámos o Nosso Espírito, que lhe
apareceu personificado, como um homem perfeito. Disse-lhe ela: Guardo-me de ti
no Clemente, se é que temes a Deus. Explicou-lhe: Sou tão-somente o mensageiro
do teu Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado. Disse-lhe: Como poderei
ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de sercasta? Disse-lhe:
Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para
os homens, e será uma prova de nossa misericórdia. E foi uma ordem inexorável>>
(Alcorão 19, 16-21) [...] <<Regressou ao seu povo levando-o (o filho) nos braços.
E disseram-lhes: Ó Maria, eis que fizeste algo extraordinário! Ó irmã de Aarão, teu
pai jamais foi um homem do mal, ou tua mãe uma (mulher) sem castidade! Então
ela disse-lhes que interrogassem o menino. Disseram: Como podemos falar a uma
criança que ainda está no berço? Ele disse-lhes: Sou o servo de Deus, o Qual
Meconcedeu o Livro e Me designou como profeta. Fes-Me abençoado, onde quer
que Eu esteja, e encomendou-Me a oração e (a paga do) zakat, enquanto Eu viver.
E fez-Me piedoso para com a minha mãe, não permitindo que Eu seja arrogante ou
rebelde. A paz está comigo desde o dia em que nasci; e estará comigo no dia em
que Eu morrer, bem como no dia em que Eu for ressucitado>>. (BOURAU, p. 135
e 136).
Maria é o único nome mencionado no Alcorão, tornando-a a mais venerada. Ela foi concebida para
ser um instrumento das vontades divinas, estando como principal exemplo de submissão e
obediência.
Historicamente, a Revolução Islâmica foi construída desde quando os árabes invadiram a Pérsia, em
642 e, derrotados, adotaram o Islã, mais precisamente o xiismo. Desde então, a região sofreu várias
mudanças de poder e, especificamente a ocorrida em 1979, teve suas origens décadas antes.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p.503 [N 2,
7], p.504, p.506 [N 4,4] [N4,1]
BORAU, J. L. Vásquez. As religiões do livro. Tradução de Lara Almeida Dias. Lisboa: Paulus,
2002. P.135 e p. 136.
LEE-MEDDI, Jeocaz (postado por). Revolução Islâmica do Irã. In: Virtuália – O Manifesto
Digital. Disponível em: http://virtualiaomanifesto.blogspot.com.br/2009/02/revolucao-islamica-
do-ira.html Acessado em junho de 2014.
SARTRAPI, Marjane. Persépolis. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p. s/n.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
1
Projeto desenvolvido com financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo.
O termo interculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de
multiculturalismo ou transculturalismo, para nos darmos conta da dialética de
trocas dos bons procedimentos entre as culturas. (PAVIS, 2008, p. 2)
Je pense qu’il y a un élément qui nous unit, c’est l’amour du théâtre. Je suis
persuadée, au contraire, que la richesse des cultures est un atout. Les gens qui
ont rejoint le “Théâtre du Soleil” avaient une raison bien particulière de le
faire: ils voulaient explorer l’essence du théâtre. La nationalité, la langue
maternelle sont alors transcendées. Tous partagent une seule et même langue,
la langue du théâtre. (MNOUCHKINE, 2003.) 3
2
Termo que não é utilizado por Brook nem Mnouchkine, mas este conceito é abordado de forma
tangencial em seus discursos.
3
Eu creio que há um elemento que nos une, é o amor ao teatro. Estou persuadida, ao contrário, que a
riqueza das culturas é um trunfo. As pessoas que vieram para o “Théâtre du Soleil” tinham uma razão
bem particular para tal: eles queriam explorar a essência do teatro. A nacionalidade, a língua materna são,
então, transcendidas. Todos dividem uma só e mesma língua, a língua do teatro. (Trad. minha)
mélange est mal pris, c’est une dilution, si c’est pris d’une autre manière,
c’est un enrichissement. (BROOK, 2007, p. 28 e 29) 4
I would argue, but through the very enterprise of the work itself : its
appropriation and reordering of non-western material within an orientalist
framework of thought and action, which has been specifically designed for
the international market. It was the British who first made us aware in India
of economic appropriation on a global scale. They took our raw materials
from us, transported them to factories in Manchester and Lancashire, where
they were transformed into commodities, which were then forcibly sold to us
in India. Brook deals in a different kind of appropriation : he does not merely
take our commodities and textiles and transform them into costumes and
propos. He has taken one of our most significant texts [The Mahabharata]
and descontextualized it from its history in order to ‘sell’ it audiences in the
West. (BHARUCHA, 1993, p. 68) 5
4
Nosso trabalho, no Centro, consiste simplesmente em criar um lugar onde um pequeno grupo de pessoas
pode explorar durante um longo período as possibilidades reais que são dadas por essa travessia de
barreiras. Se a mistura é mal apreendida, é uma diluição, se é apreendida de uma outra maneira, é um
enriquecimento. (Trad. minha)
5
Eu argumentaria, mas através da empresa do próprio trabalho: a sua apropriação e reordenação de
material não-ocidental num quadro orientalista de pensamento e ação, que foi projetado especificamente
para o mercado internacional. Foi o britânico que primeiro fez-nos conscientes na Índia da apropriação
econômica em escala global. Eles tomaram nossas matérias-primas de nós, transportaram-nas para
fábricas em Manchester e Lancashire, onde foram transformadas em commodities, que foram, então,
forçosamente vendidas a nós na Índia. Brook trata de um tipo diferente de apropriação: ele não se limita a
levar nossos produtos e tecidos e transformá-los em trajes e costumes. Ele tomou um de nossos textos
mais significativos [O Mahabharata] e descontextualizou-o a partir de sua história, a fim de "vendê-lo" a
um público no Ocidente. (Trad. minha)
Desta forma, a criação artística baseada em trocas culturais atinge escalas mais
complexas e delicadas. A busca por diferentes formas espetaculares não-europeias é
vista como inspiradora e enriquecedora por parte dos diretores europeus, mas também
traz consigo semelhanças a atitudes exploradoras, como apontado por Bharucha.
Exploradoras no sentido de utilizar uma matéria-prima, transformá-la em um produto
comerciável (a obra de arte) e revende-la.
Longe de apontar uma teorização ou resposta, os estudos sobre trocas culturais
no teatro problematizam os atritos gerados no encontro de diferentes culturas para a
produção cênica. Como apontado por Pavis, seria presunçoso apontar uma formalização
para estas relações, devido a complexidade que pressupõem. Entretanto, sua
problematização e discussão fazem-se necessárias devido à crescente importância que o
multiculturalismo e a interculturalidade assumem na cena contemporânea. São inegáveis
as qualidades dos trabalhos de Brook e Mnouchkine, no entanto, são pertinentes as
críticas sobre o modo de enxergar uma cultura distinta e utilizar-se dela. Até que ponto
utilizar-se de determinadas fontes pode ser considerado “inspiração” e a partir de que
ponto torna-se uma atitude antiética?
Bibliografia
BHARUCHA, Rustom. Theatre and the world: performance and the politics of culture.
London: Routledge, 1993.
__________________. The Politics of Cultural Practice. Thinking Through Theatre in
an Age of Globalization. Oxford University Press, India, 2011.
PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADE
Ariano Suassuna em sua obra opta por uma estrutura in media res, ou seja, os
acontecimentos são evocados em forma de flashback. Podemos encontrar a estrutura in media
res na Ilíada, de Homero, onde o autor grego inicia a narrativa já no final dos acontecimentos,
utilizando o recurso in media res, a fim de explicar tudo o que ocorrera anteriormente, até
chegar no ponto de onde se iniciou a epopeia. Do mesmo modo, ocorre na tragédia de Édipo
Rei, de Sófocles, em que todo o passado virá à tona após as investigações em torno do
assassinato do rei Laio. Em A Pedra do Reino, o protagonista, Pedro Dinis Quaderna, situa o
leitor acerca dos acontecimentos que o levaram a situação em que se encontra - preso em uma
cadeia. Os recursos perpetrados por Carvalho retomam a estrutura in media res, em que o
protagonista vê os acontecimentos do passado, fruto da sua própria imaginação. De um lado
os fatos do passado, e do outro o Pedro Dinis Quaderna que a tudo observa no presente,
estabelecendo assim a linha divisória entre os tempos estabelecidos. Tanto a leitura da obra
quanto à apreciação da minissérie exige um leitor / espectador “avisado”, o trabalho de Ariano
Suassuna e Luiz Fernando Carvalho parece não se destinar a um público que possua poucas
referências no que concerne à cultura sertaneja, popular, que dialoga diretamente com a
cultura européia medieval e possui ecos notáveis da cultura clássica da Antiguidade.
1
cultura como os espetáculos de mamulengo, o Bumba-meu-boi e o circo, além, claro, do
cinematográfico. (Rodrigues 2010).
Sendo assim, em sua produção literária, é possível perceber, como relata Rodrigues
(2010), modelos formais dramáticos da alta literatura ocidental como também influência do
teatro religioso medieval, sobretudo ibérico, na qual se acrescentam traços elementares do
barroco, associando-se com formas estéticas da dramaturgia profana vigentes na época de
transição do período medieval para o renascimento, como a Comédia dell’Arte e de outras
estéticas que muito contribuíram para a essência Literária de Suassuna, sendo por este motivo,
uma obra de denso valor estético e cultural; de difícil entendimento.
Luiz Fernando Carvalho em sua minissérie apela para uma “suspensão da descrença” no
espectador brasileiro que já se acomodou a uma estrutura narrativa na televisão onde tudo
deve se esclarecer de maneira “plausível” e tudo deve supostamente chegar a algum lugar, ou
algum resultado. O diretor coloca em evidência o seu potencial criativo, demarcando o lugar
do diretor como também um “re-criador” da obra literária, muitas vezes acrescentando
aspectos que o autor possivelmente não havia pensado. Sob o seu olhar criativo, Carvalho
situa a vila de Taperoá em uma cidade cenográfica que possui uma perspectiva quadrangular,
o espaço representativo de Taperoá se encontra cercado entre quatro paredes de casas, e dois
imensos portões se abrem e se fecham para a entrada de personagens.
2
história da cultura e da literatura brasileira como Gilberto Freyre, Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego. Dessa forma, ressalta-se aqui, como
dissemos antes, a influência do “quixotesco” na obra do autor, dentre outras.
Possivelmente, imbuído dessa influência do rapsodo, Ariano Suassuna, seguido por Luiz
Fernando Carvalho, desenvolve uma apresentação inicial de Pedro Dinis Quaderna, conforme
podemos observar:
Na minissérie A Pedra do Reino, podemos observar que o diretor optou por fazer um
deslocamento temporal no que concerne ao cenário. Na minissérie, no momento em Pedro
Dinis Quaderna se dirige ao público explicando-os sobre a trama que está por vir, ele
pronuncia tais palavras de cima de um “carro-palco”, carro esse completamente feito de
madeira e que possui uma estrutura que segue o formato de uma casa capaz de girar 360 graus
sob o próprio eixo, na Inglaterra medieval essa estrutura era conhecida como peageant cart.
A apropriação oriunda de culturas estrangeiras de outras épocas, feita por Luiz Fernando
Carvalho, pode se relacionar diretamente com o teatro contemporâneo no que concerne a ideia
3
de apropriação como matriz estética, o que comumente entendemos por “adapatação”. Beigui
(2006) esclarece-nos que o que está em jogo na contextualização e no conceito de
“Apropriação” é sempre a experiência de leitura, a adesão aos elementos que constitui não
apenas a trama presente no texto literário, mas todo o universo de referência dos escritores em
jogo. Neste sentido, o hibridismo contido no romance de Ariano Suassuna, proporcionado por
suas múltiplas referências de ordem literária dialoga diretamente com o hibridismo das
referências teatrais que Luiz Fernando Carvalho possui.
Podemos deduzir que Ariano Suassuna se inspirou no rei Príamo, de Tróia, para compor
seu personagem. Sabemos que Príamo é considerado um modelo de rei bondoso e generoso.
A influência mítica na Pedra do Reino também se estende à tragédia grega, a exemplo da
vingança da morte do pai na trilogia de Ésquilo, Oréstia, e a temática da disputa pelo trono
entre os dois irmãos filhos de Édipo em Os Sete Contra Tebas do mesmo tragediógrafo. Em
entrevista realizada em sua residência na cidade de Recife/PE em Agosto de 2013, Ariano
Suassuna admite:
Tem um parentesco muito... inclusive, a Orestíadaé um livro que
me toca muito, e Ésquilo é um dramaturgo que me toca muito,
Ésquilo e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de Orestes
por causa daquilo que lhe disse... Então você tem Orestes... e você
em Hamlet e Horácio, filhos como Orestes de um rei assassinado.
Não é? E você tem Ariano Suassuna (Risos), filho de um rei
assassinado. (MAGALHAES, 2013, p.128)
4
Outro fato existente na minissérie, porém não na obra de Suassuna, é o momento em
que Pedro Sebastião Garcia-Barretto pede que Pedro Dinis Quaderna acompanhe seu filho
caçula, Sinésio, à Natal, onde supostamente Sinésio ficaria protegido dos rivais políticos de
seu velho pai, na casa de Swendson. Podemos também deduzir que essa atitude de Pedro
Sebastião Garcia-Barretto em esconder o filho em outra cidade está ancorada na postura
tomada pelo rei de Tróia, Príamo, ao enviar seu filho mais novo, Polidoro, para a Trácia, onde
lá estaria oculto dos inimigos de Tróia, os gregos, protegido pelo rei Polimestor. O rei da
Trácia, contudo, ao saber da queda de Tróia, mata Polidoro, e na tragédia de Eurípedes
intitulada Hécuba, Polimestor é alvo da vingança de Hécubapela morte de seu filho caçula.
Nas últimas partes da minissérie e da obra, Pedro Dinis Quaderna está enfrentando um
inquérito. Lembremos que o romance começa com a narração de Quaderna feita a partir de
sua cela na cadeia, todo o romance se constrói no objetivo de esclarecer ao leitor como o
protagonista chegou àquela situação. Duas situações sustentam o eixo narrativo do romance
de Suassuna; a morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto e achegada de Sinésio à vila de
Taperoá após cinco anos de desaparecimento, o que ocasiona a disputa política entre os dois
irmãos Arésio e Sinésio.
Podemos observar que na obra de Ariano Suassuna, Sinésio é descrito por Quaderna
como o grande esperado pela população de Taperoá, que crê que será libertada da miséria e da
opressão quando Sinésio a ela retornar. Esse caráter messiânico de Sinésio, diretamente
inspirado em Dom Sebastião, é potencializado por Luiz Fernando Carvalho que, designou
para o papel um ator que possui feições semelhantes às que as pessoas genericamente
atribuem a Jesus Cristo, cabelos compridos e olhos claros. Em dissertação escrita sobre o
Romance d’A Pedra do Reino, podemos observar:
5
irmão mais velho (Arésio) que diz ter visto o cadáver de Sinésio.
(MAGALHÃES, 2013, p. 96)
A postura altiva e silenciosa de Sinésio montado em seu cavalo branco utilizando uma
armadura, como mencionado anteriormente, também nos remete à duas figuras lendárias que
habitam o imaginário do povo cristão; São Jorge o Apóstolo Santiago. Luiz Fernando
Carvalho coloca grande ênfase na temática do “retorno do Rapaz-do-Cavalo-Branco”,
lembremo-nos que o apóstolo Santiago é também conhecido como Rapaz-do-Cavalo-Branco
e, segundo relatos, foi visto combatendo os mouros junto aos espanhóis, passando a ser
conhecido como Matamoros. Na obra de Ariano Suassuna, bem como na minissérie, Sinésio é
visto como um personagem mítico e também descrito como “Rapaz-do-Cavalo-Branco”.
Nas cenas referentes ao inquérito na minissérie, podemos observar que é onde há,
possivelmente, maior trabalho de ressignificação do espaço de representação e maior
metateatralidade. Enquanto na obra de Ariano Suassuna podemos observar uma narração feita
a um juiz-corregedor, Luiz Fernando Carvalho traz para a cena, além do depoimento de
Quaderna, personagens que surgem naquele recinto, à medida que Quaderna os evoca. Vale
ressaltar que, ao se apropriar da linguagem cinematográfica, e mais especificamente no
formato televisivo, Luiz Fernando Carvalho possibilita desdobramentos na narrativa do
protagonista, já que a linguagem fílmica permite tais recursos, fato este não explorado por
Suassuna na linguagem literária. Deste modo, ao mesmo tempo em que os personagens
pareciam estar literalmente ali, sendo vistos tanto por Quaderna quanto pelo corregedor, cabe
ao espectador compreender que aqueles personagens não se encontravam ali, todos eles
compunham a imaginação de Quaderna, e todos se “materializavam” ali sentados assistindo
ao seu inquérito como se todos estivessem diante de um monólogo. Denotando mais uma vez
seu teor puramente metateatral.
A guisa de conclusão, podemos entender que Luiz Fernando Carvalho se utilizou das
inúmeras ferramentas que o teatro pode fornecer para recriar o espaço de representação do
romance de Ariano Suassuna. O diretor utiliza-se com maestria do elementos inerentes ao
teatro simbólico como a alegoria, a metonímia e a metáfora. Como exemplo de alegoria
podemos observar a utilização de uma mulher nua, com seu corpo pintado em tons vermelhos
e negros, como representação da morte; a mulher caetana. Na minissérie na cena em que
ocorre o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto o diretor coloca também mulheres de
aspecto luxurioso, com seus corpos pintados de vermelho, utilizando asas metálicas nas costas
como representações alegóricas da morte que se aproximava do ancião. A representação da
Pedra do Reino situada no sertão de Pernambuco se dá de maneira metafórica e metateatral;
em vez de o ator que interpreta Pedro Dinis Quaderna, Irandhir Santos, se deslocar
literalmente ao sertão de Pernambuco para estar de frente com a Pedra do Reino, são
6
estendidas duas grandes lonas com a representações pictórica das duas pedras. E como
exemplo de uma representação metonímica; podemos utilizar o carro-palco que se constitui
como um índice que é sempre utilizado para transições de tempo e espaço no decorrer da
minissérie. Desse modo, podemos concluir que Luiz Fernando Carvalho através de sua
minissérie mostra ao espectador que o teatro é um espaço poroso para a inventividade, o
diretor mostra que o Teatro pode se reinventar em diversos aspectos que tecnologia do
Cinema pode talvez não acompanhar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEIGUI, Alex. Dramaturgia por Outras Vias: A Apropriação Como Matriz Estética do
Teatro Contemporâneo – Do Texto Literário à Encenação. São Paulo/SP: Universidade de
São Paulo, 2006. (Tese de Doutorado)
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RODRIGUES, Wellington. A Representação do Diabo no Teatro Vicentino e seus Aspectos
Residuais no Teatro Quinhentista do Padre José de Anchieta e no Contemporâneo de Ariano
Suassuna. Fortaleza/CE: UFC, 2010 (Dissertação de Mestrado)
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta.
9ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
________________. Almanaque Armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MAGALHAES, Yuri de Andrade. A Travessia do Trágico no Romance d’A Pedra do Reino
de Ariano Suassuna. Natal/RN: UFRN, 2013. (Dissertação de Mestrado)
7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Autores:
Zilá Muniz; Orientador: prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e PPGT,
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mayana Machado Marengo
Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer Nunes;
Instituição: PPGT, UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Nastaja Brehsan; Orientador: Prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e
PPGT, UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Cláudia Simone Oliveira do Nascimento (bolsa CAPES); Orientador Stephan Arnulff
Baumgärtel; Instituição: PPGT,UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Este artigo faz uma reflexão a partir do conceito de campo potência como
possibilidades de emergência co-compositivas do coletivo Estratégia no espaço da
cidade e o jogo como principio de agenciamento disparador das ações executadas em
tempo real. Análise de aspectos da improvisação na relação entre indivíduo e coletivo,
entre performer e espectador como fenômeno de articulação da criação do evento. O
campo de experiência viva como nó de relações e como ecologia que ativamente
compõe-se também na migração de afeto e que dá ao evento intensidade duracional.
Estratégia articula a partir do movimento relacional e cria conexões e estabelece
relações a partir da improvisação como técnica de co-composição do evento emergente.
Pensar sobre os modos de percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo
de ação para que se desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo. O jogo
como ativador do movimento relacional para habilitar restrições na improvisação.
Estratégia! Esse é o grito que iniciou, e que finda nosso encontro a cada novo
espaço. Somos vários a articular no tempo-espaço, no aqui agora, possibilidades de
emergência do evento, o que pode depender de nós, mas não somente de nós, pois é o
espaço que tece junto a dramaturgia. Dançamos no espaço da cidade a olhar a dança que
a rua nos dá. Captamos fluxos, ações, cheiros e olhares. Renunciamos desejos,
propomos quando enxergamos o caminho, e nos transformamos no desejo comum,
quando o encontro torna-se potente.
Estratégia é como um campo potência em que se não há campo não há jogo e as
restrições que habilitam a improvisação perdem força. O campo é o que é comum para o
potencial de improvisação, é o que atualiza o jogo, também são versões deste que
coexistem com o atual e subsequentes evoluções do mesmo. Ou seja, não pode ser
considerado como forma mesmo que se desdobre em estados de forma embrião. Neste
sentido Estratégia como campo potência é analisado como um campo que forma
entidades de diferentes topologias e de diversas ordens causais a partir dos indivíduos e
do espaço que se origina e da forma que retorna. Para Massumi (2002, p. 34) esse
estado germinal não deve ser considerado uma estrutura implícita ou uma forma, mas
deve ser entendida como um feixe de potenciais. Para cada momento de atualização da
improvisação existe a possibilidade emergente de surgir uma forma ou uma estrutura,
porém esta se dissolve e se desloca em relação ao próximo momento e agrega nesse
processo elementos com os quais está em tensão. Por isso a imprevisibilidade e a
necessidade de escuta e do estado de prontidão e disponibilidade que rigorosamente é
fundamental para que Estratégia aconteça como um evento coreográfico.
Erin Manning (2013) pensa sobre o conceito de coreografia não como um
princípio de organização de corpos pré-constituídos, mas sim como uma técnica para
acionar e desencadear a modelagem expressiva de uma atividade incipiente em direção
à definição de um evento de movimento. “Coreografia é um verbo – a atividade de
organizar relações entre corpos” (Klien, Valk and Gormley apud Manning, 2013, p. 76).
O que sugere que a coreografia trabalha as relações entre corpos e que não se defina
como uma prática feita pelo homem para o homem, e sim que é uma prática que se
fundamenta em como o evento por si próprio se conecta com um “milieu relacional que
excede o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
(Manning, 2013, p. 76). A maneira como um evento coreográfico se constrói parte das
relações que surgem entre todos os elementos que o constituem, é, portanto no “entre”
que num campo de forças os elementos se conectam para dar sentido.
Estratégia é um campo de possibilidades de emergência co-compositivas do
coletivo Estratégia, no espaço da cidade e tem no jogo o principio de agenciamento
disparador das ações executadas em tempo real. O evento Estratégia acontece “com” o
espaço, que busca meios de compor com a sua configuração movediça, com o agora que
temos, sem a intenção de transformá-lo, ou de inter(ferir) nele, mas com o desejo de
perceber e evidenciar seus fluxos como potência. Estratégia ativa o espaço e se resolve
como uma ecologia, em que todos os elementos que compõe o ambiente atuam na sua
formação. Nós temos algumas pistas ou restrições para o desenvolvimento de
Estratégia: um percurso sugerido, um modo de deslocamento em filas, um início, e
alguns sinais estabelecidos para um final. Não temos um dar a ver, mas um dar-se ao
outro que, ao nos retribuir, permite que o evento se configure. Dançamos no encontro e
sobre o efeito dos afetos que nos incorrem e o que desencadeia o evento pode ser
qualquer um dos elementos que constitui esta ecologia.
O afeto é o saldo do encontro entre corpos, como nos esclarece o filósofo
holandês Bento Espinosa (1992), o corpo é constantemente modificado diante das
relações, o que pode aumentar ou diminuir sua potência de agir. Se já no Século XVII
Espinosa nos sugeria a potência dos encontros, porque ignorá-la agora. A proposição
espinosiana de afeto trata da vida se fazendo e refazendo em interação com outras vidas.
Em um processo de negociação entre o que há de perceptível e não perceptível, entre os
arrebatamentos do encontro os desejos sobressalientes. Trata-se do trânsito entre a ação
– que são as minhas vontades; e a paixão – que são as vontades que não vêm de mim. O
resultado dos encontros são os bons e maus afetos, como alegria e tristeza, por exemplo.
Ao identificá-los em uma percepção imediata do que se imprimiu no corpo, operaríamos
na possibilidade de compreender, e em certa medida potencializar ou refrear seus efeitos
por meio das paixões ativas.
A filósofa francesa Chantal Jaquet (2011, p. 126) afirma que Espinosa “restringe
o domínio dos afetos somente às afecções que aumentam ou diminuem, ajudam, ou
coíbem a potência de agir”. Segundo ela, Espinosa chega a fazer uma separação do que
são afetos e afecções. A admiração é afecção mais não é afeto. Alegria e tristeza o são
porque alteram nossa potência de agir. Desta forma, Jaquet (2011, p. 124) conclui que
“todo afeto é uma afecção, mas nem toda afecção é um afeto”. Segundo a autora, a
afecção é uma espécie de estado da essência humana, inato ou não, em suas
transformações no tempo, seja atribuído pela extensão seja pelo pensamento.
Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa
(1992) as expõe, a presença do artista em relação com o espaço consideraria também as
afecções que circunscrevem o encontro. O bailarino/performer é capaz de afetar com
sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público e a
configuração do espaço lhe causam. Nas palavras de Espinosa: “Por afeto, entendo as
afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções” (1992, p.
267). O filósofo holandês traz as proposições de afecção e afeto nesse trânsito entre o
afetar e perceber-se afetado.
O afeto, segundo exposição do filósofo francês Gilles Deleuze, é o que não
representa nada, que não está relacionado ao sentido, à ideia de algo, como o sentimento
de amor, angústia ou esperança, “que qualquer um chama de afeto” (1978, p. 2). Para
Deleuze, o afeto trata de “uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira
alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado
numa ideia, mas o fato de querer não é uma ideia, é um afeto, porque é um modo de
pensamento não representativo” (1978 p. 2). A noção de afeto (affectus) liga-se,
portanto, ao que escapa a definições de significado, e está relacionada às afecções do
corpo e suas percepções no ato de afetar e ser afetado.
Simon O’Sullivan (2011) vincula a produção de afeto à proposição artística,
reconhecendo os efeitos que um corpo ou um objeto artístico pode ter sobre o outro
corpo. Mas ao considerarmos a acepção espinosiana de afeto haveremos de considerar
também que se trata de algo em trânsito, emergente da relação, mas não
necessariamente passível de controle. Ou seja, o bailarino/performer não poderia
antecipar o que o espectador vai apreender da experiência artística. Quando vamos para
o espaço da cidade, somos afetados por ele, do modo em que ele está, e operamos na
reverberação desses afetos apreendidos, por nós, mas não temos uma garantia de que
nossa presença afetará o público participante do mesmo modo que somos afetados.
Porém, como acontecimento, iremos afetá-los, isto é certo, mas, no entanto são
imprevisíveis as intensidades que esta relação de afetos constrói.
Já vivemos situações muitos distintas na realização do percurso em Estratégia,
fomos completamente ignorados, tivemos cúmplices, dançarinos, pessoas nos ensinando
a dançar, intimidamos, fomos intimidados, aplaudimos, fomos aplaudidos, e em muitos
momentos não passávamos de pedestres anônimos na sequência de um fluxo surdo do
cotidiano. Provocar estranhamento? Nem sempre. Propor poesia, sempre que possível,
mas vê-la emergir do encontro, isso sim nos interessa, porque é vivo, é fresco, cheio de
ar, acontece em tempo real por meio da improvisação. Nós nos movemos em busca
desses instantes e somos movidos por eles.
Nós subimos escadas, mesas, muros, árvores. Convidamos a olhar para cima. –
Vai cair! Você tem idade para subir na árvore? Disse um passante/participante. E
alguém perguntou: – Tem idade pra subir na árvore? E outros subiram, e subimos
sempre que podemos.
Dia desses estávamos nós, a dançar “com” a Rua Felipe Schmidt e a procurar
encontros, afetos e eventos. Eis que surge um momento para explorar essa configuração
mais vertical da cidade. Nessa rua não tem árvore, mas tem poste. Egon olha para
Milene com convicção, olha para o poste. Os outros integrantes do grupo logo se
direcionam para compor este momento de tensão. Pequena pausa... Milene vê uma
criança de 10 anos e diz: – Eu preciso subir ali, será que você poderia me ajudar? Ela,
não hesita, mesmo com a diferença de tamanho entre as duas. Alguns dos passantes, ao
verem aquela situação contraditória, se comovem, e logo se juntam a menina. Era difícil
subir, Milene não escondia a dificuldade. Ela percebeu que a aparente fragilidade da
criança, a voz e pernas trêmulas, e o engajamento dos integrantes do grupo é que as
mantiveram ali, todos envolvidos naquele instante poético (ou patético, ou estranho –
dependendo da perspectiva). Compúnhamos, com corpos, desejos e fragilidades a dança
na cidade. O público é quem decidia se Milene deveria prosseguir na subida arriscada
ou parar. Paramos a surda Rua Felipe Schmidt que, por alguns minutos, se dedicava ao
não funcional/comercial. E continuamos com nossa estratégia de encontro e a
improvisação seguiu seu fluxo.
A pesquisa que por alguns anos o Ronda Grupo desenvolve (Estratégia desde
2009) para dar tratamento ao trabalho na rua tem como ferramenta principal a
improvisação. Da sala de ensaio para o espaço da cidade, seja ele qual for, trouxe
dificuldades e ao longo da prática e da pesquisa percebemos que a improvisação como
jogo para a abordagem da criação de eventos coreográficos nos resulta eficiente. Vários
aspectos foram demarcados e um olhar sobre alguns vetores que criaram ressonância no
mundo da dança servem como referencia para o trabalho que discutimos aqui neste
estudo.
Foi a partir da década de 1960 que um novo modelo cultural surgiu e
transformou o modo de olhar e fazer arte, assim como a sua noção. Neste período ideias
como paisagem urbana, comunidade, liberdade de normas, vida comum, diversão e
fisicalidade foram apropriadas. Surgem assim novas estruturas, padrões de composição
e técnicas de criação. Tanto o Judson Church Dance Theatre paralelo ao movimento da
Nova Dança trouxe a estruturação dos jogos, tarefas e acontecimentos em improvisação,
que encarnaram o ideal de liberdade e desenvolveram uma nova inteligência do corpo
que dança e cria em contraste com a formulação de decisões conscientemente
predeterminadas. Os artistas nestes movimentos investigaram as formas de dilatar a
espontaneidade, a informalidade e a ação coletiva na produção e na performance.
Preceitos estéticos foram pervertidos e caracterizados pela experimentação do
movimento e por novas possibilidades de estruturação coreográfica. A improvisação
como um elemento transformador se estabelece como uma prática amplamente
desenvolvida que cria ressonâncias tanto na dança como no teatro, sua prática constante
e com rigor acentua e valoriza as diferenças, ao ressaltar as imperfeições e as
especificidades de cada corpo. Como técnica a improvisação oferece suporte para tornar
o corpo mais hábil, responsivo e criativo para enfrentar e compor com diversas
situações em tempo real. Aliada a outras técnicas de formação, a improvisação também
amplia e fortalece o vocabulário do bailarino, fazendo com que os movimentos sejam
aprendidos, incorporados e reorganizados o tempo todo com o vocabulário e o contexto
ao qual este corpo é submetido.
Estratégia utiliza-se da improvisação e de seus princípios como técnica de
criação e de agenciamento, justamente porque todo agenciamento pressupõe um
território e ações de um coletivo. A improvisação com restrições (dadas por nós e
impostas pelo espaço) tem o ambiente como ponto fundamental disparador das ações.
Estratégia retira o corpo do seu lugar de conforto e o entrelaça em uma rede de
negociações ao espaço da cidade. Como evento coreográfico a improvisação por meio
do jogo estabelece ou fortalece conexões e sentidos e ativa o espaço, “considerando-o
poeticamente sob todos os ângulos, entregando-se a sucessivas impressões
relacionando-se (grifo nosso) e as traduzindo todas ao mesmo tempo no presente”
(Muniz, 2004 p. 61).
Estratégia exige que durante o trajeto percorrido, o passeio realizado aconteça
de “janelas abertas”, que é uma analogia que encontramos para relacionar com a
consciência do bailarino, sua presença e seu estado de atenção. Este estado de prontidão,
de escuta e de atenção é o que assegura a troca e o dialogo constante entre o grupo
e/com o meio. Com efeito, isso permite que os corpos integrem-se ao movimento e
fluxo que cada espaço imprime, engendrando relações que em sua totalidade ressalta e
intensifica sentidos, direciona olhares, recria espaços ou possibilita novas experiências
aos transeuntes.
Durante a improvisação os corpos dos bailarinos/performers, com tudo que cada
um é reúne e compõe com o meio e conduz a cena através dos movimentos num corpo
que busca encontrar sua própria integridade dentro de um coletivo. O principal desafio é
como cada indivíduo traz através da criação sua contribuição para a pesquisa e como
esta contribuição se torna material para o coletivo. Qual a medida para que isto
aconteça? Qual é o limite entre o desaparecimento do eu ou o fortalecimento do
coletivo?
A cada uma das apresentações/ensaios o que nós começamos a perceber é que
esta charada se desvenda através dos eventos que se criam, principalmente quando
afetamos as pessoas que por ali circulam. Portanto é afetar-se e afetar. Básico, mas
difícil de dar conta, tudo ao mesmo tempo, são camadas e camadas de restrições, de
repertório de material, de comandos, de tarefas e principalmente o estado de estar atento
e acima de tudo as diversas relações entre os elementos que compõe o ambiente. É abrir
as janelas e olhar o mundo. Como o espaço contribui para o que começa a surgir? No
caso aqui, com uma trajetória de passeio, com o movimento e com o fluxo destes
espaços, porque passamos por diferentes ambientes e dinâmicas que acabam por nos
fazer repensar as noções de estar na rua e de refletir sobre como olhamos o mundo. Por
estas e outras temos que estar flexíveis e alertas para que o inesperado seja incorporado
e passe a ser material de criação. A improvisação em Estratégia, além de possibilitar
uma gama maior de material coreográfico, permite o surgimento de eventos no
firmamento de novos acordos e conexões espaciais, ampliando e recombinando
estruturas sociais inseridas na cidade.
Outro rastro que é consequência do movimento que se instaurou desde as
vanguardas artísticas é como a arte vai explorar novos espaços, além dos idealizados
pelas instituições, configurando na cena contemporânea uma composição com o espaço
cotidiano da vida. É assim que Estratégia se torna um evento coreográfico, numa
aproximação com a realidade do espaço onde se insere e com o público/espectador que
ali transita. Ou, num passeio que cria eventos e produz desvios da obra artística que se
dilui na efemeridade do instante presente, do artista, que se imiscui nesse espaço
tornando-se às vezes anônimo, e do espectador, que algumas vezes torna-se protagonista
neste espaço improvisado. A poética em Estratégia dialoga com o mundo, que se reflete
no percurso objetivo e subjetivo desse passeio que promove encontros, relaciona-se com
a arquitetura e a dinâmica da cidade, a partir do modo de conceber/ocupar este espaço.
Uma dinâmica que também gera alterações no artista, no espectador e na arquitetura, ao
produzir uma revitalização da cidade, enquanto espaço público, como observa Paola
Berenstain Jacques (2005), a respeito de intervenções artísticas que transformam o seu
entorno.
O sentido de revitalização aqui não seria mais o econômico, mas sim o de vitalidade,
como vida decorrente da presença de um público e atividades diversificadas – só
poderia se realizar de forma não espetacular quando ocorrer uma apropriação popular e
participativa do espaço público, o que evidentemente não pode ser completamente
planejado, predeterminado ou formalizado. A maior questão das intervenções não
estaria na requalificação em si do espaço físico, material – pura construção de cenários
– mas sim no tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, na própria apropriação
pública desses espaços. Somente através de uma participação efetiva o espaço público
pode deixar de ser cenário e se transformar em verdadeiro palco urbano: espaço de
trocas, conflitos e encontros. (Jacques, 2005, p. 19).
Na busca pelo diálogo do corpo que dança com o corpo social urbano,
abordamos em Estratégia uma intenção de aproximar a arte da vida, do seu pulsar e sua
imaginação constante e pulsante, saindo do espaço confinado dos teatros e salas de
ensaios e deslocando-se para cidade. Contudo, Estratégia surge sem o intuito de colocar
uma obra pronta num espaço urbano, mas de investigar e se apropriar da dinâmica, dos
fluxos de movimentos e comportamentos urbanos para criação artística. Esta proposição
provoca uma ação que rompe com o olhar contemplativo da estética tradicional e
propõem experiências e investigações efêmeras, propositoras de espaços relacionais
entre a arte e principalmente entre a dança e a sociedade.
Nesse sentido, Estratégia dialoga também com a ideia de site specific, tendência
contemporânea de produção artística que se volta para o espaço congregando ou
transformando a obra ao sítio. Um evento site-specific de dança é criado para
existir também em um determinado lugar. O evento coreográfico é gerado por meio de
pesquisa e de interpretação de uma matriz original do site cultural, através das
características e topografias que podem ser arquitetônicas, histórico-sociais ou
ambientais. Não se trata de uma paisagem contemplativa, pois traçamos ali infinitos
percursos em que vivemos, sentimos, criamos, construímos e reconstruímos o espaço,
utilizando todos os nossos sentidos e nos relacionando com ele/nele de diferentes
maneiras, criando memórias afetivas. Desta forma, Estratégia trabalha para descobrir o
sentido contido como memória e desenvolver técnicas para ativar, ampliar, reconfigurar
ou ignorar o espaço da cidade.
Segundo Bennaton (2009) “as ruas seriam espaços que despertam memórias,
significados, ações e transformações, em experiências”. Se o espaço é reconstruído de
acordo com as nossas experiências e construção de memórias afetivas, entendemos que
ele pode ser considerado fluido, pois esta em constante fluxo de transformação. Assim,
Estratégia brinca com a possibilidade de vivenciar o espaço, significa levar o indivíduo
ao campo da experiência cotidiana, colocando-o numa postura ativa e inter(ativa). Pois
longe de idealizar o espaço pré-concebido, o corpo do bailarino/performer como
acionador de potência criativa poética, torna-se um construtor de territórios afetivos e
relacionais. Ou seja, pensa e ativa a cidade e sociedade como um espaço de relações
comunicativas e afetivas que se constroem a partir de contextos e relações. E por meio
da dança coloca em/na cena um sujeito em trânsito, num movimento constante e em
conexão permanente com o meio.
Esta forma de interação pode remeter à ideia de revolução urbana do
situacionista Guy Debord (1997), que sinaliza em seus textos a importância de uma arte
independente, fundamentalmente urbana e que crie situações de liberdade possibilitando
as relações entre os ocupantes deste espaço. No trabalho de criação artística desta
natureza precisa-se de mediações para que o movimento, a ação, o pensamento e a
comunicação possam acontecer. As mediações são feitas a partir de códigos, gestos,
textos, espaços e do corpo. Para tanto, certos eventos e restrições são pré-estabelecidos
na improvisação para que possam ser habilitadas e ativam-se no espaço. Contudo, o
evento coloca o espectador e o bailarino/performer numa posição de incertezas onde
todos tem que decidir o que fazer e como encarar o que lhe é proposto ou o que emerge
do contexto como uma unidade de grupo, como um coletivo.
Referencias
AZEVEDO, Sônia Machado. O corpo em Tempos e Lugares Pós-dramáticos. In: O pós-
dramatico: um conceito operativo?. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 127- 150 –
(coleção debates)
BENNATON, Pedro Diniz. Deslocamento e invasão: Estratégias para a construção de
situações de intervenção urbana. Dissertação de Mestrado em Teatro - Universidade do
Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. O Que é Filosofia? Rio de Janeiro, Editora 34,
1993.
GOLDMAN, Danielle. I want to be ready: Improvised Dance as a Practice of Freedom.
Ann Harbor: The University of Michigan Press, 2010.
JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas: a arte de andar pela cidade. Revista
eletrônica Arqtexto. disponível em:
http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_7/7_Paola%20Berens
tein%20Jacques.pdf
MANNING, Erin. Always More Than One: Individuation’s Dance. USA: Duke
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MASSUMI, Brian. Parables for the virtual – Movement, Affect, Sensation. London:
Duke University Press, 2002.
MUNIZ, Zilá. Improvisação como processo de composição na dança contemporânea.
Dissertação (Mestrado em Teatro) - Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis, 2004.
O espaço de apresentação não será um palco convencional. A plateia deverá se sentir envolvida
pelo espetáculo e próxima dos atores. Isso é fundamental, principalmente na cena em que acontece a festa
em volta da piscina e o acidente, que constitui um clímax dramático da peça. Consequentemente, o espaço
deverá propiciar liberdade aos atores para recriarem, através dos seus próprios recursos expressivos, os
ambientes internos e externos do enredo, bem como para se aproximar da plateia nos momentos que
exigirem mais intimidade.
1
contrário, todos os atores falam em nome do “grupo”. A espacialidade colaborou,
portanto, no sentido de que os espectadores podiam ser posicionados de forma a se
sentirem parte deste grupo, uma vez que compartilhavam o mesmo espaço que os
atores. Desta forma, “a percepção é dominada não pela transmissão de signos e sinais,
mas por aquilo que Jerzy Grotowski chamou de 'proximidade dos organismos vivos',
contrária à distância e à abstração” (LEHMANN, 2007: 265).
Quando o público adentrava o espaço, confrontando-se com projeções na parede
dessa sala vazia e com os atores sentados no chão ao fundo, já estava emitida a
mensagem de que esta atividade demandaria uma atenção diferenciada. A plateia é
induzida a se colocar em uma perspectiva que é diferente da de um espectador habitual
de teatro. O espaço praticamente impõe isto. De alguma forma, ele já está participando
dessa peça que tem características de instalação, na qual ele está imergindo.
Esse deslocamento para espaços incomuns à objetivação artística [neste caso teatral] tem origem
nas experimentações das artes plásticas – instalações, environments, land art – e nos conceitos da
arquitetura moderna (Bauhaus, Frank Loyd Wright, Le Corbusier) de apropriação do espaço público
enquanto topos da artisticidade. (COHEN, 2006: 101)
2
ter como uma das características principais a neutralidade. Esta neutralidade, é uma
qualidade funcional do espaço que possibilita, precisamente, que o mesmo abrigue as
mais diversas manifestações estéticas. Desta forma, o local serviu como uma folha em
branco, que permitia aos atores desenhar os mais diversos ambientes. A sala de
exposições do museu passou a ser o cenário onde eram exibidas as várias facetas da
relação entre “o grupo” e a personagem “ela”.
Em termos de concepção do espetáculo, a meu ver, o maior influência do espaço
foi no sentido de sua interferência na marcação da peça. O processo de montagem de
piscina [...] caracterizou-se por uma construção cênica pautada na criação física como
elemento constitutivo do trabalho de atuação, o qual acabava também se desdobrando
em marcação. A marcação foi, portanto, um elemento essencial na montagem. Para
entender melhor esse encadeamento criativo despertado pelo trabalho físico, podemos
usar as palavras de Sônia de Azevedo quando se refere à técnica corporal.
Poderíamos, então, reconhecer outra característica da ação física: a ação física como possível
célula geradora de outras poéticas e práticas teatrais.
Dessa forma, a partir de tais considerações, resultantes das análises feitas aqui, torna-se
pertinente levantar a hipótese da ação física como elemento estruturante do fenômeno teatral.
(BONFITTO, 2011: 121)
3
mais precisas para os atores, pontuando em que momentos seria interessante suavizar a
interpretação.
Por outro lado, a proximidade e a disposição do elenco no espaço determinavam
que qualquer mínimo movimento, olhar ou som fosse percebido pela plateia. Além do
mais, em nossa montagem todos os quatro atores protagonizavam a peça e estavam
presentes o tempo todo em cena. Ou seja, independentemente de falarem ou não o texto,
eles estariam sendo cuidadosamente observados pelos espectadores, os quais muitas
vezes enquanto observavam um ator que estava mais próximo de si, prestavam atenção
no texto que outro ator enunciava do lado oposto da sala. Concluindo, qualquer tipo de
ação dos atores tinha que ser incorporada à estética e à ação da cena. Sendo assim não
lhes era permitido nenhuma pausa de atuação, o elenco deveria representar durante todo
o tempo de duração do espetáculo, ou seja, aproximadamente uma hora. Obviamente,
isso exigia muito dos atores, tanto fisicamente, quanto em termos de concentração.
Um terceiro fator ligado ao espaço que influenciou o trabalho dos atores foi a
questão do compartilhamento com a plateia. Como o texto de Ravenhill é, em termos
gerais, uma narração – um grupo de artistas está narrando sua história para o público,
era fundamental que o elenco compartilhasse sua atuação com os espectadores. Isto os
aproximava ainda mais do público e reforçava sua atuação. No entanto, devido à
distribuição dos atores na sala esse compartilhamento era muito dificultado. Em alguns
momentos estavam bastante distantes ou obstaculizados por parte da plateia, em outros
momento estavam muito próximos dos espectadores. Muitas vezes também se
encontravam de costas para o público ou no chão abaixo do mesmo. O público, por sua
vez, poderia estar de frente para um ator mas de costas para o outro. Além disso, quando
os atores direcionavam um texto para os espectadores, trazendo-os para si, não o
podiam fazer de maneira geral para a plateia como se faz em um palco tradicional. Eles
eram forçados a fazê-lo olhando nos olhos dos espectadores, o que torna a ação muito
mais desafiadora. A equalização dessa triangulação, creio que somente foi atingida na
prática com o público durante a primeira semana da temporada.
Focando, agora, a atenção na questão do espaço conceitual escolhido para a
montagem, reflito no espaço enquanto condição que precede o espetáculo, tanto na ótica
do público, como na dos criadores. A utilização de um espaço que tem uma determinada
função, de forma a transgredi-la para apresentar uma peça teatral, parece agregar à peça
certo conceito que está ligado à própria função. Creio que a vocação do espaço, define
sentidos para o projeto que independem da sua arquitetura e que determinam uma
predisposição para quem vai assistir ou realizar a peça. A reflexão de Antonio Araújo,
sobre a escolha de uma igreja como local de apresentação da peça O Paraíso Perdido do
Teatro da Vertigem, talvez ajude a esclarecer esta questão.
Por essa razão é que o significado (simbólico, histórico, institucional) do lugar era mais
importante que suas possibilidades cênico-arquitetônicas. Abríamos mão de uma arquitetura mais
“teatral” em prol do sentido, ou sentidos, que um determinado local pudesse evocar. […] A ideia-chave
era criar uma zona híbrida, de intersecção, entre o “real” ou a “realidade” do espaço e o “ficcional” ou o
“teatral”, advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de
desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e
recepção da obra. (ARAUJO, 2011: 165)
4
fortaleceria o enredo da peça, funcionando como um cenário conceitual, uma vez que os
personagens da peça são todos artistas plásticos. Entretanto, na prática essa
espacialidade conceitual teve, a meu ver, muitas outras implicações que colaboraram
com a montagem. Para que o leitor possa entender melhor qual foi a relevância disso no
contexto de piscina [...], faço abaixo uma sinopse da ação da peça.
A temática gira em torno do questionamento sobre o posicionamento do artista
em relação a seus objetivos e sua produção artística. Um questionamento absolutamente
atual, que remete aos contrassensos que se pode observar em uma sociedade que é
alimentada pela ideia de que o sucesso é alcançado através da fama. Os personagens da
peça são um grupo de artistas plásticos que chegaram a uma maturidade decadente. Eles
se contrapõem à única dentre eles que alcançou fama e sucesso material. No texto essa
personagem é chamada simplesmente de “ela”, a quem o “grupo” se refere
constantemente numa mistura de crítica e mitificação. A identificação do “grupo” com
“ela”, durante a ação da peça, alterna-se entra a extrema admiração e o ódio provocado
pela inveja. Ao mesmo tempo em que os artistas criticam ferozmente os meios que “ela”
utilizou para alcançar o sucesso, revelam que, na verdade, gostariam de estar na “sua”
posição. A ação da peça inicia com os personagens atônitos com o fato de que “ela”
construiu uma grande piscina em sua casa. Ela mandou fotos da luxuosa piscina e
convidou todos para conhecê-la. O “grupo” não resiste à tentação e resolve aceitar o
convite. Fazem as malas, pegam um avião e vão ao encontro da milionária ovelha
desgarrada. O jantar de boas vindas se transforma em uma festa orgíaca, na qual todos
relembram os tempos de juventude, quando formavam um grupo artístico coeso e
idealista. Em meio a um nível alcoólico bastante alto acontece um acidente trágico:
“ela” mergulha, inadvertidamente, na piscina que está vazia. Enquanto “ela” está em
coma no hospital, “o grupo” tem a idéia de fotografá-la e utilizar as fotos numa grande
instalação. Esta seria uma obra de arte de vanguarda que teria o potencial, ainda que
através de meios questionáveis, de tirar “o grupo” do anonimato artístico e transformá-
los em artistas de sucesso como “ela”. Para a decepção do “grupo”, “ela” se recupera do
coma, se apropria das fotos e da obra. Essa atitude provoca a revelação dos verdadeiros
sentimentos que estavam mascarados, expondo, enfim, a mediocridade de todos.
Me parece que o fato da produção ter conseguido fazer a temporada “dentro” do
Museu Oscar Niemeyer (de agora em diante chamado de MON) agregou muitos valores
à montagem que ultrapassaram a ligação com o enredo enquanto história narrada e
abordam a temática central do texto que, pelo menos em nossa leitura, é a relação de
atração e repulsa ao lidar com o sucesso do outro.
O MON é o mais prestigioso museu do estado do Paraná, é muito difícil
conseguir pauta neste espaço, ao qual só têm acesso artistas plásticos que adquiriram
certo “status” no meio. Por ser um espaço público, sua gestão e as curadorias das
exposições são alvo de polêmica, muitas vezes questionadas pela classe artística. O
próprio Oscar Niemeyer, que dá nome ao museu, sendo o mais famoso arquiteto do país,
e tendo obras espalhadas pelo mundo, também foi alvo de muita polêmica, inclusive
com relação à execução do próprio MON. Estes fatores, reforçam a significância da
temática abordada por Ravenhill, ligando a situação descrita no texto à realidade,
principalmente com relação à controversa posição de quem está em evidência no mundo
artístico e a validade dos meios que levaram a esta conquista.
Além disso, o Espaço Araucária onde foi apresentada a peça, fica situado no
local de maior afluência do MON: o “olho”. A maior sala de exposições do MON, onde
são apresentadas as exposições de maior vulto, fica num local de grande destaque na
5
composição arquitetônica do museu. Niemeyer idealizou uma araucária estilizada em
cuja copa fica esta sala. Esta construção virou atração turística e, devido ao seu formato,
popularmente ficou conhecida como “olho”. Um olho imenso que por si só estabelece
uma metáfora muito significativa com o texto de piscina […], pois a impressão que se
tem, ao observá-lo externamente, é a de que as obras que lá se encontram estão sendo
“contempladas pelo universo”. O Espaço Araucária fica no andar abaixo desta sala
principal. Para que os espectadores acessassem o espaço de apresentação da peça,
subiam por uma grande rampa sinuosa, suspensa acima de um lago artificial (uma
piscina?), ingressavam pela entrada do “olho” (universal) e ainda subiam até o terceiro
andar. Tudo isso para chegar a uma sala vazia que parece um porão.
Uma outra qualidade que o espaço conceitual agregou ao projeto, tanto do ponto
de vista da equipe de trabalho como do público, foi o fato de estabelecer uma
preparação, um “aquecimento emocional” para a peça. Posso afirmar que, como parte
da equipe, a chegada ao MON para ensaiar, por si só, já nos preparava para o trabalho.
Em primeiro lugar a aproximação física com aquela obra monumental de Oscar
Niemeyer já causava um impacto. A passagem pelo setor de segurança, pelas portas que
só eram destrancadas por um dos sentinelas, pelas salas de exposição onde se
encontravam os mais diversos tipos de obras artísticas, pelo corredor
“circularbrancosemarestas” i criado por Niemeyer para dar acesso ao “olho” por baixo
do lago artificial, tudo isto nos colocava em íntimo contato com o ambiente das artes
visuais referido na peça.
“Teatro específico ao local” [site specific] significa que o próprio “local” se mostra sob uma
nova luz: quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro-velho se torna espaço de
encenação, passa a ser visto por um novo olhar, “estético”. O espaço se torna co-participante, sem que lhe
seja atribuída uma significação definitiva. Mas em tal situação também os espectadores se tornam co-
participantes. Assim, o que é posto em cena pelo teatro específico ao local é um segmento da comunidade
de atores e espectadores. Todos eles são “convidados” do lugar; todos são estrangeiros […].
(LEHMANN, 2007: 281)
Sob a ótica dos espectadores, o ritual de Ida ao Teatro – e aqui não há como não
lembrar do questionamento irônico que Karl Valentin faz sobre este ritualii – foi
transformado em um ritual de ida ao museu, a um espaço das artes plásticas, a um local
onde se apreciam “obras de arte”. Esse fato, me parece, pode ter colaborado como um
“aquecimento” também para o público, como uma preparação para refletir, imergir,
mergulhar no contexto de piscina [...].
6
Referências bibliográficas citadas
i
Ao utilizar este termo formado pela união de palavras, o autor está fazendo alusão aos diversos
termos criados por Ravenhill no texto de piscina […].
ii O autor faz referência neste comentário ao texto cômico Ida ao Teatro do dramaturgo, diretor e ator
alemão Karl Valentin.
7
ESPACILIDADES E FRONTEIRAS DA CENA
ESPACIALIDADES E FRONTEIRAS DA CENA EM PROCESSOS DE DRAMA
Beatriz Angela Vieira Cabral
UDESC
BUBNOVA, Tatiana. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin/ Voice, sense and dialogue on
Bakhtin. In Revista acta poética 27 N. 1, 2006, pp 97-114. Translated and published in
Portuguese by Roberto Leiser Baronas e Fernanda Tonelli in Bakhtiniana, São Paulo,
6 (1): 268-280, Ago./Dez. 2011.
O presente texto não passa de um sucinto esboço que tem por objetivo refletir em torno
da relação entre o teatro e a noção de hospitalidade. Isto, na medida em que, a partir
deste binômio, pretendemos dar início ao projeto de um percurso a ser desenvolvido
mais adiante, noutros desdobramentos de pesquisas, cujo sentido consiste em pensar a
hospitalidade enquanto ato poético articulando-se no âmbito da arte teatral.
Penso não haver exagero algum em afirmar que, no cenário das coisas da cultura, o
teatro talvez se afigure como um campo por excelência do acolhimento dos signos e
materiais que chegam dos mais variados registros. Além do texto dramático, a luz, o
cenário, o figurino, a música, enfim, todos os elementos que quando se põe em ato pela
encenação, exibem a evidência do cruzamento colaborativo entre os elementos variados,
provenientes das diferentes linguagens. Todavia, importa interrogar: quais as condições
dessas transações? Até onde seria legítimo pretendermos culminar na proposição de se
entender o teatro como uma arte da hospitalidade? Desta última pergunta, com efeito, é
que emerge nossa hipótese no sentido de se averiguar até onde cabe em um trabalho de
natureza teatral, inscrever a noção de hospitalidade a título de uma poiesis.
O tratamento habitual desse tema, em geral, remonta às práticas ritualistas que desde o
início das civilizações se protagonizam nas cenas dos espaços, na recepção dos seus
visitantes, enquanto virtude que se põe em exercício nos rituais de acolhimento, onde a
hospitalidade torna-se uma espécie de remédio para neutralizar as eventuais emanações
de hostilidade virtualmente despertadas pela chegada do elemento estranho,
representado pelo “outro”. Nossa perspectiva, entretanto, se norteia por uma abordagem
metodológica de caráter interdisciplinar; de modo que, na transposição do tema para o
campo estético, possamos efetuar reflexões a partir do diálogo com as contribuições
advindas dos campos da filosofia e da psicanálise. Isso, devido à relevância do tema,
que nos convida em ir um pouco mais adiante da imagem e do significado comum, em
que a hospitalidade consistiria apenas no simples atributo de alguém no papel de
anfitrião oferecendo guarita a outro que, na qualidade de visitante, não passa de mero
receptor passivo do gesto do primeiro.
Hospitalidade, contudo, é uma palavra que abriga desde sempre uma vasta gama de
conotações que, aliás, cumpre dizer desde logo, não cabe nos limites do nosso intuito
aqui no presente texto. Todavia, erigindo-se como uma forma de interação social, o seu
campo semântico está todo ele referido às implicações mais intrincadas e controvertidas
das relações entre sujeitos nos mais variados planos e lugares. E, embora em sua
superfície, o termo se apresente como uma promessa de abertura ao acontecimento de
uma possível amizade, ele mesmo, a um só tempo, também sinaliza ao iminente perigo
diante do desconhecido. Quer dizer, a hospitalidade não se oferece sem que haja no seu
íntimo algo de hostilidade.
1
Por isso, pensamos na possibilidade se considerar a experiência da hospitalidade,
também, na qualidade de um dispositivo dramático. Pois, o drama da hospitalidade se
situa, a nosso ver, na estrutura mesmo desse acontecimento relacional pelo qual os
conflitos e choques provenientes dos mal-entendidos, advêm sempre como efeitos
inerentes à natureza ambígua da linguagem e na experiência da interpretação que afeta
cada sujeito eventualmente envolvido na situação. Daí, a oportuna observação de Alain
Montandon, referindo como uma espécie de cena inaugural da hospitalidade, o
momento em que:
Tudo se passa naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se
abrir para um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos,
entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é uma etapa
decisiva semelhante a uma iniciação. É a linha de demarcação de uma
intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, ela comporta, querendo ou não,
uma face de violência, de transgressão, até mesmo de hostilidade que
Derrida chama de “hostipitalidade” [...] O gesto da hospitalidade é, de
início, o de descartar a hostilidade, pois o hóspede, o estrangeiro, aparece
frequentemente como reservatório de hostilidade: seja pobre, marginal,
errante, sem domínio fixo, seja louco ou vagabundo, ele encerra uma
ameaça. Sua posição de exterioridade marca sua diferença. 1
Ademais, em qualquer que seja o contexto onde se evoque esse tema, importa ressaltar
que a hospitalidade só se cumpre a partir de uma estrutura de caráter essencialmente
relacional, entre sujeitos portadores e representantes de distintas referências psico-sócio-
culturais. A tensão inscrita nessa experiência reflete-se como se vê na citação acima, na
própria grafia do neologismo forjado por Jacques Derrida, tentando abraçar o paradoxo
inevitável da situação designando-a pela expressão “Hostipitalidade”.
Nota-se que o tema comporta muitos outros problemas como, por exemplo, o
reconhecimento das diferenças das linguagens, a questão dos direitos e deveres, a
negociação dos interesses, as dificuldades de aceitação e tolerância, enfim, tudo o que
inelutavelmente nos convoca a encarar a legitimidade do “outro” enquanto figura de
alteridade. De modo que, não será difícil admitir que a hospitalidade represente, acima
de tudo, uma figura cujo estatuto refere um lugar de passagem, tal como na imagem da
“soleira” aludida acima por Montandon. Definindo-se, então, a título de um espaço de
transição que franqueia o movimento da possibilidade de uma travessia, supomos
oportuno indagar nos seguintes termos: o que torna possível a hospitalidade? Quais as
implicações e desafios que se passam no espaço desse trânsito?
1
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. P.32.
2
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. P.146.
2
pensamento psicanalítico, posto que o que está em jogo é nada mais nada menos que a
noção do lugar ou posição que o sujeito ocupa na medida em que se sente afetado pelos
efeitos dos dizeres. E, isto nos leva ao coração da própria questão do que vem a ser a
ética na perspectiva descortinada por Lacan, ao enunciar que:
A ética – como podem talvez entrever aqueles que me ouviram falar dela
em outros tempos – tem a maior relação com a nossa habitação na
linguagem, e é também – como nos mostrou certo autor que evocarei de
outra vez – da ordem do gesto.3
Importa relembrar, ainda, que o próprio Freud já enunciara que, a partir do momento em
que entram em jogo as incidências do inconsciente no “eu”, este se perde e não é mais
senhor da sua própria casa. Na mansão do dito, o sujeito falante se depara com uma
alteridade que o habita intimamente, como um “estranho familiar” que, como já dissera
Freud, o divide irremediavelmente. Eis o drama da hospitalidade do sujeito em sua
relação com a própria palavra que o representa apenas de modo parcial, nunca
totalmente. E a linguagem se afigura como símbolo mesmo dessa perda, onde o sujeito
não detém a posse de todo o sentido do que fala. De resto, o saber que daí decorre
advém marcado por esta castração que o faz abrigar em si, paradoxalmente, um “saber
sem saber”. Daí, a própria noção de verdade vir, também, marcada como um “semi-
dizer”, posto que, com efeito, “a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade”.4
3
LACAN, Jacques. Op. Cit. P. 137.
4
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1992. P.36.
5
Esta obra foi concebida por mim e Marcos Costa, após o projeto ter sido selecionado e
premiado na categoria de “Artista Pesquisador”, e foi exibida em seu formato de
montagem como Ópera-instalação na mostra do 47° Salão de Artes Plásticas de
Pernambuco, como resultado da pesquisa, em Janeiro de 2012.
3
ambulantes fazem soar a voz, entoando seus pregões a oferecer produtos e serviços
vários. As mensagens desses pregões soam entre o canto e a fala e, à revelia de qualquer
descaso e ou ausência de hospitalidade, continuam soando na encenação diária de um,
talvez, teatro da necessidade. Todavia, foi preciso reconhecer a presença de uma força
poética agindo na tessitura e emissão desses pregões, para que estes viessem a interagir
na polifonia sonora que se enlaça com a musicalidade dos instrumentos da música
erudita e a voz da cantora lírica interpretando a letra da canção, que costura o elo desse
encontro, teatralizando musicalmente o drama da hospitalidade.
O projeto dessa intervenção estética teve lugar a partir de uma seleção no 47° Salão de
Artes Plásticas de Pernambuco, na categoria de “artista pesquisador”, cujo prêmio se
traduziu numa bolsa para custear o processo de pesquisa e elaboração da obra. A “Ópera
Crua” brinca, tomando de empréstimo a ideia do ambiente operístico, no sentido
tradicional já classicamente canonizado, mantendo o invólucro do ambiente espacial do
teatro para, a partir de dentro inserir a presença performática dos vendedores de rua
ambulantes entoando seus respectivos pregões. O caráter de intervenção tem a ver com
o adjetivo “Crua”, uma vez que a encenação transcorreu sem que houvesse qualquer
preocupação no sentido de se preparar os protagonistas através de ensaios. Diretamente
trazidos das ruas, os vendedores entraram numa relação de interação com os músicos
eruditos da orquestra sinfônica que, também sobre o palco, performatizam a situação
polifônica desse inusitado encontro. Deste agenciamento é, pois, que supomos a
abertura de uma “brecha” para o ato poético. Valiosa observação sobre tal
acontecimento é o que se enuncia pelas palavras de Tania Rivera, a partir de certas
pontuações lacanianas:
Tal ato poético, digamos – é radical e estranhamente delicado. Lacan
refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de
mudar o sujeito. Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que
intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar as
feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público
assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo
como uma janela que o expectador não ultrapassa de maneira pontual [...]
O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma configuração
instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais
olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao
espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e
objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de
perda, e não mais do espelhamento entre o eu e o mundo que permite a
fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num
ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. Ele
prossegue, então, em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou
melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isso acarreta,
para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em
que estamos”. Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência
em vez de imagem, é difícil de conceber e teorizar. 6
A perspectiva ético-estética que assiste ao procedimento da operação da “Ópera Crua”
parece reconhecer que o propósito granjeado pela “poiesis da hospitalidade” não se dá
6
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify,
2013. P.37-38.
4
sem a implicação de uma economia onde o comércio entre as linguagens se articula
significantemente, no intuito de ultrapassar as aporias nos aparentes obstáculos dos
contrastes e contradições entre os signos e registros já inscritos no habitus7 das
categorias rigidamente já estabelecido pelas instituições da vida cultural.
De fato, não é nem um pouco fácil se desvencilhar da lógica binária que norteia de
modo quase imperativo o modo do entendimento habitual. Porém, graças aos
experimentos que a dimensão teatral oportuniza, outra economia entra nesse jogo a
ponto de se pensar o problema da hospitalidade não como algo que se oferece em
doação por uma idéia de generosidade ou coisa que o valha, mas, sobretudo, em atenção
à emergência de certa economia relacional pela qual o desafio da troca, da
reciprocidade, assinala-se como um princípio fundamental onde, aliás, o pretexto da
hierarquia se perde em nome de um dever recíproco entre as partes, posto que estas
sejam igualmente importantes para que, na obra, resulte como expressão justa dessa
dinâmica em que a presença de todas as partes seja, sensivelmente, relevante.
7
Recomendo a leitura do texto “A cultura e seu contrário”, de Teixeira Coelho, onde este autor discorre
acerca do conflito entre as noções de arte e cultura.
5
Referências Bibliográficas:
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética Teatral –
Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
CASOY, Sergio. A invenção da Ópera. São Paulo: Editora Algol, 2007.
__________. O Nascimento da Ópera. São Paulo: Editora Universidade Falada, 2008.
COLI, Jorge. A paixão segundo a ópera. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.
6
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
Introdução
Este artigo é resultado parcial da pesquisa de Doutorado em andamento:
“Tchekhov e a cena brasileira – do subtexto à interpretação do texto”, financiada pela
Fapesp. Nesse trabalho, analiso um conjunto de encenações brasileiras sobre algumas
das principais obras dramáticas do escritor russo Anton Tchekhov, com foco na relação
entre o texto dramático e a cena.
Uma das obras que faz parte do escopo da pesquisa é a encenação Gaivota -
tema para um conto curto, realizada pela Cia dos Atores, com direção de Enrique Diaz.
Nesse espetáculo, assistimos a uma desconstrução cênica da obra “A Gaivota”, de
Tchekhov, a partir de procedimentos de criação que muito se assemelham ao
procedimento de análise ativa do texto.
Nesse sentido, o presente artigo faz uma exposição da teoria sobre análise ativa
e seu desenvolvimento em alguns aspectos, a partir da articulação de diferentes
referências: Eugênio Kusnet, Maria Knebel e Nair Dagostini. Após essa elucidação, há
uma aproximação entre o que se conceituou e o que ocorreu enquanto procedimentos de
criação e resultado cênico na encenação assinada por Diaz.
Veremos que, nessa montagem, não há apenas a utilização da análise ativa
enquanto procedimento de trabalho do ator e diretor, mas também o transbordamento do
uso dessa prática, que se transforma na própria linguagem de encenação da obra.
A análise ativa
Eugênio Kusnet, ator e pedagogo conhecido por propagar no Brasil o Sistema de
Stanislavski, nasceu na Rússia em 1898, onde iniciou sua vida teatral. Ao contrário do
que comumente se pensa, ele não chegou a estudar ou a ter contato direto com o
Sistema de Stanislavski nessa época, muito menos com o próprio Stanislavski. No
entanto, seu fazer artístico foi inevitavelmente influenciado pelas ideias e conceitos que
estavam em voga na época na Rússia, que tinham como modelo ideal as peças e os
trabalhos de atores do Teatro de Arte de Moscou e, por consequência, a pesquisa do
mestre russo.
Iniciou sua trajetória no teatro brasileiro como ator pelo TBC – Teatro Brasileiro
da Comédia1, passou pelo Teatro Oficina2 e depois pelo Teatro de Arena3, em que
iniciou sua atividade como professor de atuação. (PIACENTINI, 2011) Participou de
toda evolução do teatro brasileiro, tendo se destacado como ator e professor de
formação a partir do que nomeava o Método de Stanislavski, formando uma grande
geração de atores nas décadas de 60 e 70. Nesse trabalho, acabou até por conceber
novos procedimentos que seriam mais adequados ao ator brasileiro, a partir de leituras
1
Fundado em 1958 por um grupo de alunos da Escola de Direito do Lago de São Francisco, sendo um
2
Foi um dos mais importantes grupos teatrais brasileiros das décadas de 50 e 60. Inicia-se em 1953 tendo
promovido uma renovação e nacionalização do teatro brasileiro, sua existência termina em 1972.
3
Importante teatro brasileiro fundado em 1948 na cidade de São Paulo. Por ele passaram grandes atores e
seu repertório de peças privilegiava autores nacionais.
dos livros de Stanislavski e depois de uma viagem que fez para Rússia, quando estudou
com alguns de seus discípulos diretos, como Maria Knebel.
Essa viagem para Rússia foi determinante no processo de formação de sua
pedagogia, pois o ator-pedagogo entrou em contato direto com o desenvolvimento das
últimas descobertas realizadas por Stanislavski, que não haviam sido escritas por ele
próprio em livros, mas estavam sendo estudadas e trabalhadas ainda naquele momento,
mesmo após a sua morte.
Stanislavski, em suas últimas pesquisas, redimensionou a maneira como os
princípios de seu Sistema deveriam ser estudados, conferindo-lhes um novo paradigma
a partir da ação. No que depois foi nomeado de Método das Ações Físicas, a ação
deixaria de ser apenas um dos elementos componentes, mas passaria a ser o elemento
catalisador dos demais elementos. Ao contrário do que acontecia no início de suas
pesquisas, quando Stanislavski acreditava que o ator deveria “crer para agir”, ele
percebeu que o ator deveria “agir para crer”, conforme ele próprio salienta aos atores:
Bibliografia
DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para
leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Doutorado em Letras,
USP, 2007.
KUSNET, Eugênio. Ator e método. Rio de Janeiro: Serviço nacional de teatro, 1975.
KNÉBEL, María Ósipovna. El último Stanislavski. Madrid: Editora Fundamentos,
2003.
PIACENTINI, Ney. Eugênio Kusnet: do ator ao professor. Dissertação de Mestrado.
ECA – USP. São Paulo, 2011.
RAMOS, Luiz Fernando. FERANDANDES, Silvia. Diálogo da Gaivota. Revista Sala
Preta USP, v. 07, 225-228, 2007.
STANISLAVSKI, K. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
TCHEKHOV, Anton Pavalovich A Gaivota. São Paulo: Ed. Cosac Naif, 2004.
Sites consultados:
www.ciadosatores.com.br (site consultado em 06.06.2014)
Gravação de vídeo:
GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO. Produção: Cia dos Atores. Rio de
Janeiro: 2006. DVD (disponível no acervo audiovisual da Biblioteca do Instituto de
Artes – Unicamp – SP).
TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
URBANIDADE CONTAMINADA: A DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS NA CENA
TEATRAL CONTEMPORÂNEA
Las ciudades no se hacen sólo para habitarlas, sino también para viajar por
ellas. Néstor Garcia Canclini
1
concepção, tal prática tem como principal característica o “vínculo com o contexto da
cidade em que o evento se insere, propondo, assim, uma espécie de releitura dos
espaços” (RODRIGUES, 2008, p. 15). Nesse sentido, no teatro urbano a relação entre o
espaço cênico e o espaço urbano é indissociável, além disso, busca outras formas de
relação entre a cena e o público.
As experiências como espectadora de dois espetáculos específicos do 6º Festival
de Teatro de Rua de Porto Alegre iii guiam a discussão e proporcionam diálogos
diversificados sobre os usos dos espaços da cidade, seus modos de apropriação, bem
como da criação artística. A escolha dos referidos espetáculos se deu, a partir do
envolvimento estabelecido no momento da recepção, cujos acontecimentos foram
decisivos para o debate acerca das linguagens em “contaminação”.
O espetáculo Bivouac, da companhia francesa Générik Vapeuriv é uma versão
moderna de uma horda primitiva que controla as ruas e vira a cidade de cabeça para
baixo. Com os corpos pintados de azul, um trio elétrico e um cachorro metálico
incandescente, os performers avançam, manipulando barris em alta velocidade. Fundada
em 1984 por Cathy Avram e Pierre Berthelot, com sede em Marselha, esta é uma das
principais companhias de teatro de rua do mundo, seu foco está na mistura entre as
linguagens: teatro, dança, música, vídeo, imagem e uso de maquinaria pesada no
conceito de “tráfico de atores e máquinas”.
O espetáculo, que tem duração de 60 minutos, percorreu 600 metros do bairro
Cidade Baixa, atravessando avenidas de grande fluxo, interrompendo a ordem do
trânsito dos carros e pedestres. O percurso foi sendo delimitado através da
movimentação dos barris conduzidos pelos performers em associação ao carro elétrico
que se mantinha na parte de trás do “cortejo”. Para o grupo, é essencial para a
cenografia do espetáculo o poder que advém dos sons, dos movimentos e das luzes na
criação de espaços vazios, dentro dos quais existe e se move o espaço do jogo.
2
que o público deveria observar, interpretar e compreender. Para Fernandes (2011, p.
17), “a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às
demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte”, ou seja, a participação do
público ultrapassa a missão de interpretar e produzir significado frente a uma
performance. E “isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o
espectador interpretar, mas também não se pode dizer que as ações do artista per-
formativo apenas signifiquem alguma coisa” (idem). Nesse sentido, o papel do
espectador se amplia, pois assume uma posição de observador que é, ao mesmo tempo,
atuante e sujeito da fruição. Além disso, os espaços da subjetividade são incorporados à
ação da recepção, visto que o “contemplar” foi redefinido como atividade, “como um
fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas
associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado” (FISCHER-
LICHTE, 1988, p. 149).
O aspecto da contaminação é recorrente na cena artística contemporânea,
chegando a refletir, inclusive, uma crise identitária das linguagens, abalando suas
convicções epistemológicas. Nesse sentido, segundo Fernandes (ibidem, p. 11),
atualmente seria adequado falar em “experiências cênicas com demarcações fluidas de
território, em que o embaralhamento dos modos espetaculares e a perda de fronteiras
entre os diferentes domínios artísticos são uma constante”. Para a autora, ainda, é
importante pensar no espetáculo como evento que envolve performers e espectadores
numa atmosfera única, compartilhada, criando um espaço gerador de experiência que
vai além do simbólico. Esse ato transgressor da cena contemporânea é capaz de
reverberar fisicamente em seus participantes, de modo a criar um ambiente de “infecção
emocional”.
No caso do Générik Vapeur, a contaminação toma proporções que transbordam
a própria cena, pois sua inserção instaura fraturas profundas nas dinâmicas do espaço
utilizado. Tais rupturas tornam-se visíveis no nível do trânsito (automóveis e pedestres),
das paisagens sonora e visual, bem como nas nuances de relação com o cidadão que vai
estabelecendo ao longo do percurso, fazendo-se necessário pensar no espaço da cidade
como ambiente. Segundo o pesquisador André Carreira,
3
andante. Sua primeira tarefa é encontrar seu fiel escudeiro, Sancho Pança, missão que
acaba nas mãos de um catador de papel de rua. Mas não pode haver cavaleiro andante
sem seu cavalo. Sancho então constrói com sucatas um cavalo para seu amo no seu
carrinho de catador. Pronta a equipe, saem pelas ruas à procura de aventuras” (FTRPA,
2014)vii.
Neste espetáculo a itinerância se repete como traço marcante, entretanto, seu
percurso não conduz o espectador a um questionamento brusco sobre o deslocar-se.
Aliás, ele se torna quase imperceptível perante o grau de envolvimento que toma os
participantes da ação. Há um fio condutor claro no desenvolvimento do espetáculo, que
leva os espectadores a essa sensação de deslocamento. O principal elemento que integra
tal fio é a relação que vai se construindo ao longo do espetáculo entre Dom Quixote e
Sancho Pança e, consequentemente, entre este último e o público. A oscilação contínua
entre ficção e realidade, feita pelo personagem-ponte (Sancho Pança), coloca o
espectador numa posição dual, conduz a um lugar em que persiste a dúvida e alimenta a
integração. Para Silva (2011), Sancho está sempre lembrando ao público sobre o caráter
ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com os
espectadores. “Suas evoluções junto ao público são alguns dos momentos mais felizes,
pois, bebendo das fontes farsescas e histriônicas da tradição popular, confere ao
espetáculo uma deliciosa comicidade” (idem).
A noção de invasão fica evidente na montagem, por que há uma mudança, não
apenas na relação com o espaço urbano, mas também na relação com o próprio
espectador. Podemos dizer que o espectador passa por dois processos de transformação
ao se deparar com um tipo de espetáculo que se inspira na invasão. Uma, quando ele
deixa de ser pedestre e passa a ser um espectador acidental da representação; e outra
quando ele, “convidado” a ser espectador participante, se dispõe a entrar no jogo da
ação e ser surpreendido pela forma como passará a redescobrir espaços próprios de
convívio urbano e social (JÁCOME, 2013). Dom Quixote se concretiza invasor por que
propõe uma ruptura lúdica no cotidiano, oferecendo ao cidadão uma possibilidade de
jogo, um momento de quebra na obviedade do dia-a-dia. Alguns dos mecanismos
utilizados na encenação que contribuem para tais ressignificações são as instalações em
prédios e monumentos, o uso da técnica do rapel e a inserção de uma escavadeira, onde
as “Dulcinéias” são conduzidas.
É importante pensar que a contaminação como tendência contemporânea está
presente em ambos espetáculos, de formas peculiares, mas simultaneamente similares,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com o espaço urbano e com
o público. A companhia francesa aproxima-se do gênero performático enquanto o grupo
goiano tem sua escolha claramente apontada para o teatro. Não tanto uma questão a ser
respondida, mas uma provocação se faz pertinente: ainda podemos ter fronteiras bem
definidas entre linguagens ou esse é um mecanismo de sobrevivência utilizado pelos
grupos frente ao sistema? Lehmann (2013, p. 874-875) insiste na improdutividade da
discussão sobre as definições, para o autor:
É óbvio que o teatro, assim como outras práticas artísticas avançadas, adotou
elementos da performance (autorreferencialidade, desconstrução de
significado, exposição do mecanismo interno do seu próprio funcionamento,
mudança da atuação teatral para a performática, questionamento da
estrutura básica da subjetividade, repúdio – ou pelo menos crítica e exposição
da representação – e iterabilidade), enquanto a performance, inversamente, se
tornou teatralizada de muitas maneiras.
4
Ao assumir o desvio performativo como norte da situação é válido questionar se
o discurso do “deixar-se experimentar” como prioridade se sustenta, principalmente no
que diz respeito ao lugar do público. Outras questões reforçam a reflexão: “Em que
medida estas ações afetam a percepção estética e operam ‘regras culturais’ válidas?
Quanto atos como estes transformam os espectadores em performers eles próprios?”
(SOARES, 2008). Desgranges (2010, p. 50) complementa: “como compreender a
pertinência de uma proposta artística que convida o espectador a disponibilizar-se para
um modo de leitura que ultrapasse a barreira da dimensão lógico-racional, e se permita
saborear os descaminhos da experiência com a arte?”.
Pensar sobre o espectador que se torna performer é assunto delicado e requer
repensar o cidadão e a cidade para tentar compreender o espaço urbano da recepção.
Como meio de delimitar o espaço da discussão, por ora, introduz-se a noção de
urbanidade no intuito de refletir sobre o lugar do indivíduo urbano frente a tais
manifestações contemporâneas. Para Afonso (2007), a urbanidade não se refere nem a
uma delicadeza nem a um primitivismo do meio rural, mas “a uma virtude essencial que
define o homem atual na sua condição urbana”. Sendo considerada assim, a urbanidade
apresenta-se como a “condição urbana da humanidade”, incluindo todos que vivem
neste meio, seja conscientemente ou não. Nesse sentido, a urbanidade alcança além do
contexto cultural, social ou estrutural de uma cidade, podendo ser compreendida como o
modo com que os habitantes de um lugar se relacionam segundo seu espaço e tempo.
A relação do indivíduo com a cidade, refletida nos seus traços da vida cotidiana,
referida pela urbanidade, é, muitas vezes, turbulenta, pois reflete suas contradições. Para
Desgranges (2010, p. 54), “o indivíduo lançado no isolamento de seus interesses
privados, vê a multidão como ameaça constante, ou pela inexistência de um espaço
público convidativo, ou pela perda da singularidade mediante a estandardização de
comportamentos”. Nesse conflito reside o papel da arte como resistência aos modelos
de interação oferecidos pelo sistema, cujos interesses permeiam processos de
homogeneização dos espaços da urbe. Para Scocuglia, refletir sobre a cidade implica,
necessariamente, atravessar outros campos do conhecimento como a sociologia, a
antropologia e as artes.
5
involuntária”. Nesse sentido, o teatro e a performance na cidade surgem para sugerir ao
individuo novas formas de vivenciar o urbano, para apresentar possibilidades do “se
perder”, colocar-se num risco não-habitual, explorar o poético como desconhecido,
contrapondo o sujeito ao modo usual e operacional de “ver, sentir e pensar o mundo”.
Diante das possíveis realidades as quais o cidadão se expõe atualmente, pensar
acerca dos efeitos da contaminação na cena e sua reverberação no ato de recepção
reflete, igualmente, na discussão sobre a criação de espacialidades. Desse modo, ao
pensar sobre as manifestações artísticas na cidade é imprescindível reconhecer que, as
mesmas, estão embutidas naturalmente de posicionamentos políticos, a partir do
momento em que decidem interferir na lógica da cidade. Tais atos criam intromissões e
estranhamentos produtivos, desvelando faces desconhecidas do espaço urbano. Para
Carreira (2008), apesar de imbuídas por gestos políticos, tais manifestações não nascem
sempre impulsionadas por uma motivação politizada claramente definida, contribuição
que aponta para um redirecionamento do senso comum em relação aos “papéis”
desempenhados pela arte urbana.
Nesse sentido, é válido enxergar o exercício do “teatro performativo” na cidade
na sua potência máxima de intercâmbio com as vozes do próprio espaço, intensificando
trocas com a arquitetura, as vias principais e periféricas, seus ritmos e usos. A partir
desse posicionamento, compreende-se a prática do teatro/performance na cidade como
elemento essencial de interferência na urbanidade, criando novas espacialidades e novos
lugares. Sobre esse exercício, Carreira (2008, p. 71) comenta:
Referências
CARTAXO, Zalinda. Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. O Percevejo,
Rio de Janeiro, n. 1, p. 01-16, 2009.
6
FÉRAL, J. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”. In: FÉRAL, J.; SAVONA,
J. L.; WALKER, E. A. (Dir.). Théâtralité, écriture et mise en scène. Quebéc: Éditions
Hurtubise HMH, 1985.
LEHMANN, H.-T. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 224
SILVA, Igor de Almeida. Dom Quixote e a invasão da poesia. 2011. Disponível em:
<http://www.questaodecritica.com.br/2011/10/dom-quixote-e-a-invasao-da-poesia/>.
Acesso em: 02 jul. 2014.
SOARES, Luiz Claudio Cajaíba. Algumas reflexões sobre os modos de recepção das
Artes Cênicas contemporaneamente. 2008. Disponível em:
<http://portalabrace.org/memoria/vcongressoteorias.htm>. Acesso em: 02 jul. 2014.
i
Apoio FAPESC; CAPES.
ii
Zalinda Cartaxo é artista visual, autora do livro Pintura em distensão e professora adjunta na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
iii
O festival, que já está na sua sexta edição, aconteceu de 20 a 29 de Abril de 2014 na cidade de Porto
Alegre – RS.
7
iv
GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <http://ftrpa.com.br/bivouac-
franca-marseille/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
v
“Bivouac redonne envie de courir, de frôler, d'esquiver, De vérifier ses réflexes, sa capacité de saut, de
volte-face. De là s'esquisse la chorégraphie d'un ballet collectif, différent d'un public à l'autre, qui se
fragmente en autant de pas de deux comédien-spectateur. Etre à la fois très près et très loin. Partager le
même espace, respirer le même air et appartenir à deux univers Qui ne se superposent pas, dont l'un est
l'imaginaire de l'autre”. GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em:
<https://www.facebook.com/Generik.Vapeur?fref=ts>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vi
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Histórico. 2008. Disponível em:
<http://teatroqueroda.blogspot.com.br/p/historico.html>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vii
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu
escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido). 2014. Disponível em:
<http://ftrpa.com.br/das-saborosas-aventuras-de-dom-quixote-de-la-mancha-e-seu-fiel-escudeiro-sancho-
panca-goiania-go/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
8
Espaços à Margem do (I)material
Resumo:
estimado compañero
Referências
Resumo: Este artigo tem como propósito falar sobre poéticas cênicas a partir do pensador
teatral e poeta francês Antonin Artaud e o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Dois
pensadores que conseguiram criar linhas de fuga capazes de fazer o teatro saltar pra além
do seu tempo. Coloco em discussão os pontos de convergência entre os dois nos modos de
conceberem seus pensamentos no que tange a encenação. Pretende-se delinear as
possibilidades poéticas que esses dois pensadores abrem à arte teatral na época em que
viviam e de que forma as questões que eles colocam para o teatro chegam a nós ainda hoje.
Para pensar em poéticas cênicas tomo como ponto de partida as rubricas da peça
Esperando Godot de Samuel Beckett e o livro O Teatro e Seu Duplo de Antonin Artaud.
Neste artigo colocarei Beckett antes de tudo como um encenador, que leva o corpo cênico
para sua escrita, e transforma a palavra em corpo, antes mesmo de esta palavra sair do texto
para cena, a meu ver não há nessa relação uma importância maior da palavra diante da cena
ou da cena para a palavra, a escrita de Beckett consiste numa espécie de simbiose entre
corpo cênico e palavra-texto.
1
Hoje se trata a obra teatral como fruto de todas as conexões materiais e imaginárias
criadas no espetáculo, colocando os sentidos dos elementos que ela comporta. O que está
sendo colocado nos nossos dias não é a negação do texto dramático, de alguma forma ele
não seja mais necessário para a encenação. De certo modo grande parte das encenações
possui um texto dramático, o que difere, é o fato deste não ser tratado como elemento único
e principal para a produção do espetáculo. Sendo que ao analisar o texto escrito em uma
montagem, faz-se junto a todo o espetáculo, não o tratando como um elemento
independente. Pois, características deste texto dramático podem ter sido explicitadas ou
não, para que falem o que se queira imprimir com o conjunto de elementos de uma obra.
Na A Encenação e a Metafísica, segundo capítulo do livro O Teatro e seu Duplo,
Artaud coloca:
Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que
não obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos,
tudo que não está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função
de suas possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa
sonorização) seja deixado em segundo plano? (ARTAUD, 2006:36)
Desdenhando qualquer visão separada da arte, qualquer versão daquela visão que
considera as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para encantar
os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte a uma
2
representação dramática. Na poética de Artaud, a arte (e o pensamento) é uma
ação — e que, para ser autêntica, deve ser brutal — e também uma experiência
sofrida, e impregnada de emoções extremas. Sendo tanto ação quanto paixão
desse tipo, iconoclasta bem como evangélica em seu fervor, a arte parece requerer
um cenário mais arrojado, fora dos museus e lugares legitimados de exposição, e
uma forma nova e mais rude de confrontação com seu público. (SONTAG,
1986:27)
Assim Artaud aponta formas objetivas para que o teatro atinja o público, mas
sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral que seja
fixa esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no
impedimento do movimento da cultura, do espírito.
O teatro de Samuel Beckett inclui tanto texto dramático como encenações que ele
mesmo assina. Através de sua escrita pungente e altamente elaborada, Beckett é posto no
grupo de grandes nomes da teatralidade, como Shakespeare e Racine. Ele dialogou com
todas as tradições, mas forjou uma dramaturgia própria, que já nasceu potente. O que deu
impulso ao teatro de Beckett foi sua experiência na direção: nos anos 60, ele passou a
dirigir teatro e escrever sua dramaturgia com um sentido mais precioso do espaço e do
tempo cênicos. É dessa observação que surge um criador que, muito mais ligado com a
materialidade da cena do que com temas relativos à literatura, passou a escrever levando em
conta os elementos cenográficos tanto quanto os conteúdos das falas de seus personagens.
3
real e tem importância; o enredo só pode existir no pressuposto de que os acontecimentos
no tempo têm alguma importância. Esse é o pressuposto que a peça põe em dúvida. Pozzo e
Lucky, Vladimir e Estragon não são personagens, mas corporificações de atitudes humanas
básicas, um pouco com as virtudes e vícios personificados em mistérios medievais.
Segundo Luiz Fernando Ramos, quando Beckett começou a escrever teatro, já tinha
produzido uma notável obra como prosador. Seus estudiosos chegam a divergir sobre se
não seria mais significativa a sua produção estritamente literária que a teatral.
A maneira como Beckett desenvolve sua poética cênica é uma possível maneira para
confrontá-lo com Artaud, e mesmo para colocá-lo diante de encenadores deste início de
século. Beckett costuma ser vinculado a uma tradição literária. Essa aproximação de sua
dramaturgia do drama no sentido clássico o colocaria numa posição mais conservadora
quando comparado a Artaud. O encenador francês, com seu teatro ritualístico, anti-
4
aristotélico, ensejaria uma teatralidade mais aberta, Beckett, com suas peças, propõem outra
forma textual que foge do formato classicista, em que a palavra é o que dá o movimento, e
o pensamento racional, a garantia de entendimento do drama. Nos textos para teatro de
Beckett e poética cênica é colocada nas rubricas. Nem Beckett e muito menos Artaud
dependem do entendimento racional do espectador, e nisso os dois discordam
fundamentalmente com a poética de aristotélica. Em Artaud e Beckett a o texto se equipara
aos aspectos que são comuns na cena. No caso de Beckett, quanto mais ele se familiariza
com o palco e com a direção, menos se interessa pelas questões racionais de um
pensamento. Em alguns casos, passa a ser mais importante para ele a velocidade com que
um ator diz certa fala do que a compreensão de sentido. A materialidade do palco, a luz e os
movimentos dos atores passam a ser elementos da sintaxe teatral. Nas rubricas de
Esperando Godot fica explicitado que Beckett põe sua escritura no corpo que compõe a
cena:
Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar. As botas de Estragon estão no centro do
proscênio, calcanhares juntos e bicos separados. O chapéu de Lucky no mesmo
lugar de antes. Vladimir entra agitadamente. Ele para e olha demoradamente para
a árvore e de repente começa a andar febrilmente pelo palco. Ele para diante as
botas, pega uma delas, a examina, cheira, manifesta asco e a coloca
cuidadosamente no lugar. Vai e vem. Para na extrema direita e mira distante,
cobrindo os olhos com uma das mãos. Vai e vem. Para na extrema esquerda,
como antes. Vai e vem. Para repentinamente e começa a cantar em voz alta.
(BECKETT, 2007:53)
Nesse sentido, ele está próximo de Artaud, pois para Beckett e Artaud o texto ou
trama estão mais voltados para as potencialidades de significação da obra. Outro ponto de
convergência que surge da observação da obra de Beckett e Artaud está na relação à
teatralidade, que surge quando a obra de Beckett é confrontada com a vida e a Obra de
Artaud. Artaud negava a literatura dramática qualquer responsabilidade na concretização de
um novo teatro em que o corpo, por excelência, fosse à linguagem. Ele buscava uma
escritura física e tridimensional no espaço do teatro que resgatasse a dimensão ritual dos
tempos primitivos.
Beckett nunca associou o seu teatro à realização de um rito e fez de seus textos e
espetáculos momentos de intensa perplexidade, em que a dúvida e a ambiguidade, mais do
que qualquer crença, foram privilegiadas. Mas, na investigação do espaço cênico, ou das
5
potencialidades de uma representação teatral, parecem convergir. Artaud pretendeu inventar
uma nova palavra para revelar um corpo cênico ainda não visto. Beckett procurou inscrever
suas palavras o corpo cênico visível, e com isso conseguiu pelas rubricas, criar partituras
contra as quais fica difícil qualquer ator de um texto seu se rebelar. Em Esperando Godot
chega a momentos em que as rubricas excedem a própria palavras. Ambos estão
trabalhando prioritariamente com a materialidade da cena e não com a articulação de
sentido propiciada pelo desenvolvimento de uma trama.
Artaud gastou grande parte de seus esforços para atacar a “representação teatral”
entendida como processo que submete a cena a uma ideia que lhe é exterior. No
teatro de seu tempo é hegemônica a ideia de que a encenação se reduz à
representação de um texto dramatúrgico, constituindo-se quase como a ilustração
de um produto literário. (QUILICI, 2004:71)
Uma antítese que pode ser levanta entre Artaud e Beckett, é a maneira positiva de
Artaud vislumbrar no ser humano e respectivamente na sua cena ritual uma maneira de
transformação do homem e da sociedade através da arte, enquanto Beckett faz um registro
do mundo como sistema de coisas e do ser humano, esgotado, esfacelado e fadado ao
fracasso diante desse sistema, o homem para Beckett estaria em um esgotamento do ser.
Entender o que não tem sentido por vezes parece não ter sentido, criar relações e sentidos.
6
Manusear a palavra, processá-la e transformá-la em torno de um pensar que tem por
contingência a fuga dos caminhos preestabelecidos da escrita, fuga que também pode ser
poética e potente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo, Martins
Fontes, 2006.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.
ESSLLIN, Martin. O Teatro Do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1968.
DELEUZE, Gilles. Sobre o Teatro. Tradução: Fátima Saadi, Ouvídio de Abreu e Roberto
Machado. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 2010.
QUILICI, Cassiano Sidow. AntoninArtaud, Teatro e Ritual. São Paulo. Annablume, Fapesp,
2004.
RAMOS, Luiz Fernando. O teatro total de Beckett, Artigo. São Paulo, Revista Bravo, Ano 2 -
nº24, 1999.
SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Tradução: Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. São
7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ILUMINANDO O DEFUNTO
O espectador entra no espaço cênico sendo guiado por duas atrizes com vestidos
velhos, maquiagem pesada e cabelos chamativos, arrastando com elas duas cadeiras. À
frente se encontram outras dez cadeiras arrumadas em um quadrado, onde dois espaços
vazios são completados com as cadeiras trazidas pelas atrizes. Posicionam-se no espaço
e constroem uma imagem que sustentam por um tempo. Com essa primeira cena
pulsando, fui convidado a criar a concepção de luz do espetáculo O Defunto (texto de
René de Obaldia, 1961) do Grupo Galhofas – MG (Uberlândia – 2010).
Ainda na graduação em Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, mas com
alguns anos já de prática em iluminação cênica, aceitei o desafio que seria: montar a
iluminação com o espetáculo quase pronto. Uma experiência que tentava evitar, mas
que no momento me agradou muito, considerando que a ideia inicial do diretor, Felipe
Brognoni Casati, era de uma área de representação sem delimitação clara, onde o
público poderia ficar em qualquer lugar, inclusive na própria cena. Essa ideia foi
descartada após os primeiros ensaios abertos, ao perceber que o público não reagia
como o esperado.
Comecei meu trabalho pela leitura do texto, repleto de falas e passagens
absurdas, tais como a em que se considera certo personagem um poeta após este contar
o motivo de haver violentado uma menina, matado a avó da esposa, entre outras coisas
e, mesmo assim, mulher e amante conversam como grandes amigas sobre a falta que ele
faz. O diretor decide seguir a lógica distorcida do texto em cena, por meio do emprego
de objetos ultrapassados e modernos ao mesmo tempo. Também decide por fragmentar
o espetáculo. Encadeia momentos que não se ligam uns aos outros por efeito de
causalidade. Mistura, também, no espetáculo informações pessoais das atrizes, sob a
forma de relatos e brincadeiras. Dando sempre a liberdade da improvisação para o
trabalho.
Nessa montagem diversos elementos influenciam o projeto de iluminação que
estava sendo criado. A direção, o cenário, os objetos cênicos, o texto, a disposição
espacial do público e a projeção (que já estava incluída em cena no momento em que fui
convidado para o processo). Estes foram fatores essenciais para se pensar os efeitos
usados na criação da iluminação. Para esse trabalho, os equipamentos técnicos da
iluminação foram além dos refletores encontrados em um teatro, se incorporando
também ao cenário, como por exemplo, uma das cadeiras foi instalado uma lâmpada
incandescente de 12V com uma cúpula de abajur rasgado em cimai.
Envolto em tantos elementos que compõem com a luz, o caminho tomado foi o
de fragmentar a iluminação, acompanhando a concepção do diretor, abordando uma
cena de cada vez. Cada cena estudada particularmente na sua lógica, onde a linearidade
se perde. Um cuidado tomado foi o de não deixar as cenas sem um eixo de ligação,
mesmo que a peça tenha sido montada em fragmentos. A dificuldade surge ao ter que
montar uma narrativa igualmente não-linear com a luz, ampliando os efeitos de
fragmentações pensadas para a cena, mas que se constituísse por completa e que se
complementasse enquanto a peça vai acontecendo. Uma iluminação que ao mesmo
tempo dê conta dos fragmentos das cenas individualmente, como do espetáculo como
um todo. Queria estimular a percepção do público para a luz de cada fragmento e, ao
mesmo tempo, do espetáculo completo.
Com essas informações iniciais, comecei a pesquisa da iluminação cênica por
dois lugares: o antigo, desgastado, quebrado e fragmentado; e o novo, o moderno, o
rápido e o simétrico. Iniciei fazendo um levantamento de imagens que se conectavam
com o espetáculo, chegando a duas vanguardas artísticas: expressionismo e futurismo.
A luz no trabalho de O Defunto é indispensável para o desenvolvimento da peça, já que
ela distorce o espaço e as personagens, conseguindo assim deformações para a cena.
Para os expressionistas a luz é imprescindível. É através dela que se
conseguem as deformações, os focos concentradores, as projeções,
sombras, manchas, flashes, contrastes fortes, variação cromática e
tudo mais que possa atuar como recurso de desnaturalização e
expressão do objeto, do sujeito ou da forma em si mesma. (de
Andrade et al., s/d.)
O cenárioiii, como já dito, são doze cadeiras estilizadas com diversos objetos
acoplados que, dispostos no espaço, formam corredores. A iluminação é criada para
ampliar esses efeitos de corredores propostos pela cenografia. Corredoresiv com luzes
difusas que traz a sensação de se perder na escuridão e no espaço. Esse efeito luminoso
pode ser usado de diferentes maneiras durante a cena, às vezes fazendo corredores
paralelos, outras vezes corredores perpendiculares, dependendo do que a cena pede. Os
corredores de luz não se mantêm unicamente no cenário, mas também contornando o
mesmo.
Ainda falando sobre os corredores e entrando no outro movimento de vanguarda
artística que influenciou o desenvolvimento do trabalho, o futurismo, foi pensada a
velocidade. Tanto na concepção, quanto na operação da iluminação, a velocidade é
sempre muito presente. Os corredores aparecem e desaparece rapidamente, a percepção
de profundidade que a movimentação da luz traz, as formas lineares trazidas pelos
corredores e focos de luz e a constante variação de intensidade da luz, tudo isso é
influencia direta do futurismo.
A paleta de cores escolhida para a iluminação do espetáculo partiu da conversa
com o diretor, que propôs a ideia de fotos velhas, de degradação pelo tempo, que já era
usado tanto no figurino e maquiagem quanto na cenografia. Cadeiras velhas,
consumidas pelo tempo, figurinos remendados e desgastados, uma maquiagem forte e
marcada de envelhecimento, objetos antigos, como uma maquina de escrever, são todos
elementos propostos pelo diretor. Com todas essas informações a primeira gelatina de
efeito cromático escolhida foi à chamada chocolate (Roscolux #99) que, colocada em
cena, tem efeito de uma iluminação para o tom de sépia, como uma foto envelhecida.
A base da iluminação foi feita com refletores sem nenhuma gelatina e com a
gelatina chocolate, mas para evitar que a cena se tornasse monótona e destacar
momentos específicos do espetáculo foram incluídos alguns efeitos com diferentes
cores. Valmir Perez diz que “deve-se levar em consideração que a luz, sendo também
elemento de linguagem, pode ter seus matizes alterados para compor o psicológico da
cena” (PEREZ. 2007) pensando nisso as gelatinas são usadas para transformar a cena
que se segue trazendo um novo ambiente e sensação para o palco. Em um momento
específico, em que as atrizes estão falando sobre a manipulação do personagem sobre
quem conversam, de suas traições e agressões, seguido de assassinato, é proposto com a
luz um efeito de estranhamento para criar um ambiente mais suave, quase onírico.
Nesse momento, a iluminação foi inspirada no quadro Chuva de Oswaldo Goeldi (1957)
onde há predominância de cores frias, deixando em destaque o vermelho do guarda
chuva. Para destacar a lã vermelha que está ao fundo da cena esticada entre as duas
atrizes foi utilizada uma gelatina azul (roscolux #80), em disposição de corredor ao
fundo da cena, com um leve toque de refletores sem nenhuma gelatina. A utilização
desses refletores sem filtro de luz em baixa intensidade é para que exista luz chegando à
lã na frequência do vermelho, pois ao colocar a gelatina azul é filtrado todo essa
frequência do espectro de luz.
Em outro momento, um refletor fazendo um foco a pino (90° do chão) recebe
uma gelatina de correção de luz (Roscolux #3206), essa gelatina serve para transformar
a temperatura de cor da luz, que, geralmente, é 3200K para 4100K. Esse efeito traz uma
cor mais fria para a cena, uma sensação de angelical, de pureza, de proteção. O foco de
luz é usado quando as atrizes contam a história de um estupro, falando da poeticidade
do personagem ao escolher sua vítima pelo tom negro de seus cabelos. Esse contraste
foi utilizado para transmitir tanto a frieza com que o personagem lidou com a situação,
como também, a calma que o assunto é tratado pelas personagens em cena. Compondo,
também, com a imagem criada pelas atrizes, onde, ajoelhadas, seguram e arrebentam
um colar, deixando todas as suas pedras caírem pelo espaço, que mostra apenas esse
foco de luz acesov. As pedras vão caindo no chão e desaparecendo no espaço, enquanto
as duas atrizes, agora sentadas, observam calmamente a situação.
Além da utilização de gelatinas para efeitos cênicos, também foi inserido, no
jogo da iluminação, focos de luz recortados que reforçam os corredores construídos pelo
cenário e pela iluminação base da peça. Um recurso, utilizado diversas vezes, é um foco
de luz em duas fileiras de cadeira verticais, recortados em um retângulo, desconstruindo
assim o espaço real da cena e criando um fragmento espacial que é usado, tanto para
colocar as personagens em um lugar atemporal, como também para criar um
distanciamento da temporalidade que se segue em cena, trazendo assim uma informação
que não é das personagens que se encontram em um tempo e espaço específico.
Outro recorte de luz é usado para montar em um espaço a ideia de zoom da cena,
aproximando duas cadeiras do público e construindo um aprisionamento à frente do
cenário onde as atrizes ficam passivas a sua limitação espacial. Com esse efeito as
atrizes retomam o lugar inicial da cena, mesmo estando espacialmente dele. Seria como
um zoom de câmera fotográfica, que aproxima a visão espacial focando em algo
específico, no caso as duas cadeiras iniciais.
Também foram inseridos focos de luz circulares criando assim um
distanciamento e um estranhamento da cena, considerando que durante a maior parte do
espetáculo a iluminação acontece em corredores e recortes retangulares. Esses focos de
luz se encontram nas extremidades do espaço de cena iluminado, como pequenos nichos
que trazem informações paralelas a cena ou ligadas às atrizes.
O primeiro foco de luz circular é usado quando o diretor propõe um
distanciamento da cena teatral. As atrizes desconstroem as personagens e se dirigem ao
público para contar um relato pessoa, com isso o foco de luz fica em baixa intensidade,
quase impossibilitando de se ver, enquanto uma lanterna posicionada de baixo para
cima ilumina minimamente as atrizes e a pessoa do público convidada a participar da
cena. Outro foco de luz redondo é usado para quando uma das personagens está
refletindo sobre um suicídio e tentando se afogar. Cada foco de luz toma diferentes
funções em cena, sempre desconstruindo o espaço retangular que é instaurado,
transformando a percepção do tempo e do espaço da cena.
A peça tem uma particularidade trazida, tanto pelo texto como pela encenação,
que é a repetição. Não me refiro aqui à repetição como recurso de comicidade, mas a
repetição do espetáculo todo, o tempo, as ações e os diálogos são repetições das
personagens, como se elas fizessem a mesma coisa todos os dias no mesmo lugar no
mesmo horário, um ciclo que sempre se repete começo, meio e fim. O diretor propõe
fortalecer essa percepção da cena, arrumando todo o cenário, que foi desconstruído
durante toda a peça, ao final da apresentação, mudando unicamente o lado que o cenário
está posicionado, como se tivessem preparado tudo para o próximo dia, antes de irem
embora.
A iluminação se propõe a ser da mesma maneira, construindo espacialidades
que, ao final da apresentação, continuam funcionando, mesmo o cenário e a cena
virando de lado, já não mais de frente para o espectador. Um quadrado central com
refletores com gelatina chocolate de frente e sem nenhuma gelatina de contra luz,
complementado com corredores em volta desse centro que constroem um quadrado de
contorno com a luz toda feito com refletores sem nenhuma gelatina e ao centro um foco
de luz a pino com gelatina de correção. Com isso, qualquer que seja à frente da cena a
iluminação base do espetáculo está pronta, modificando só do velho para o atual
dependendo do lado, o que também compõem com a concepção do espetáculo.
Esses corredores que se encontram no contorno do centro da cena, são ligados
separadamente, e constroem com ele um caminho de luz a se seguir, que por mais que
você corra por ele, termina sempre no mesmo lugar. Uma volta interminável em torno
do assunto que as movem: o defunto. O cotidiano que sempre prende o passado que
ninguém quer esquecer. O velho e desnecessário continuando sendo a novidade do dia.
As personagens constroem um espaço imaginário em torno de uma pessoa, que há anos
já não tem mais vida, espaço esse materializado com a iluminação e a diferenciação de
cores proposto para a luz da cena.
Nesse momento a iluminação não se limita mais a iluminar o espaço cênico, ela
constrói esse espaço que começa a existir a partir disso, existindo muito além de
personagens e cenografia. Um lugar imaginário que ganha vida. Durante toda a peça a
iluminação constrói a cena e sua espacialidade, criando focos de atenção de luz,
destacando objetos e personagens, fragmentando a cena, ocultando, criando ambientes,
e deslocando as personagens no tempo e espaço da cena.
A luz, como já dito, foi pensada para compor as fragmentações das cenas
criando diferentes espaços e desconstruindo uma linearidade narrativa, mas ao
acenderem-se todos os corredores e focos de luz, surge um novo ambiente na cena, um
ambiente completo que será utilizado quase ao final do espetáculo, como se todas as
informações que foram sendo ditas durante a apresentação se juntassem em um único
lugar costurando cada fragmento que foi anteriormente dito, construindo assim toda a
história e o discurso dito em cena. Essa completude de luz que une todos os fragmentos
de cena compõe-se com a concepção do espetáculo e com o texto, que traz as
informações aos poucos e sem uma linearidade. A primeira vista parecem absurdas e
desconexas as cenas que são apresentadas, mas ao juntar todas as partes apresentadas
pela peça, a história vai se revelando, como se revela e iluminação.
A iluminação cênica é de suma importância para a construção do espetáculo, não
só ajudando a mostrar o que acontece em cena, como também revelando sensações,
emoções e sentimentos das personagens. Sem contar na desconstrução e construção
espacial que esse recurso possibilita e na ilusão que consegue criar em cena, distorcendo
formas, cores, profundidades, alturas e larguras. A pesquisa da iluminação cênica pode
potencializar a concepção que o diretor tem do espetáculo, do cenário, figurino e
maquiagem. Uma concepção de luz trabalhada em conjunto com o diretor e outros
designers amplia as possibilidades das soluções cênicas impostas à direção, potencializa
os recursos expressivos da encenação e as formas de representação percebidas em um
espetáculo teatral.
Bibliografia
i
Foto de Felipe Braccialli <https://www.flickr.com/photos/braccialli/9541547557>
ii
Disponível em <http://www.flickr.com>
iii
Foto de Felipe Braccialli < https://www.flickr.com/photos/braccialli/9285035265>
iv
Corredor também é um termo específico da iluminação cênica que trata da disposição
orientada de refletores, produzindo uma área de iluminação retilínea e contínua, geralmente disposto
cruzando o espaço de representação em atravessamento lateral, da esquerda para a direita, de acordo com
o ponto de vista do espectador.
v
Foto de Rafael Michalichem < https://www.flickr.com/photos/michalichem/8631235252>
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Por se tratar da versão moderna de um mito grego, faz-se necessário entendermos que,
desde a origem humana, os mitos exerceram importante função na relação entre os homens e
os deuses. Através dos rituais, estes homens estabeleciam uma aproximação e um diálogo
com o sobrenatural. Tomados como verdade, os mitos estabeleciam regras e normas de
conduta de tribos e povos. Esses mitos eram narrados de geração a geração, especialmente
entre os gregos, convertendo-os e transformando-os em função dos interesses políticos e
sociais da época.
Uma vez que a trajetória do herói trágico na representação das tragédias no palco grego
na Antiguidade poderia produzir efeitos significativos para a paideiaii, podemos entender que
Guarnieri e Peixoto também objetivam uma educação política para o povo brasileiro a partir
da teledramaturgia. O Édipo Rei, figura mitológica grega, é transmutada para a realidade
sertaneja na figura de um fazendeiro também chamado Édipo. Temos conhecimento de que o
“Édipo” sofocliano é um modelo universal de arrogância, intransigência, desmedida e
imprudência. Esse modelo universal de Édipo é apropriado por Guanieri e Peixoto para, de
certa forma, retratar o autoritarismo dos coronéis no Brasil.
Para proporcionar uma identificação direta do público brasileiro com a obra, Guarnieri e
Peixoto transferem o espaço de representação da polis grega para o sertão brasileiro. O
ambiente inicial onde ocorre o drama é descrito com riqueza de detalhes, determinando-o
como lugar típico de fazenda. Por um lado, as primeiras indicações espaciais se dão à noite,
no plano presente, enquanto que, a história contada pelos cantadores ocorre durante o dia, em
contrastes evidentes de alegria (festa na fazenda) e sofrimento (vida dos empregados da
fazenda de Édipo). Ressaltemos que os cantadores presentes na obra de Guarnieri e Peixoto
atuam como elementos epicizantes da obra onde os acontecimentos se desdobram a partir da
narração dos mesmos. Os contrastes espaço-temporais apresentados por Guarnieri e Peixoto
parecem propositais com o intuito de provocar reflexões em torno da trama. O autor rompe
com o clima de celebração no interior de um galpão da fazenda, lançando-nos num ambiente
hostil e triste, ocasionado pela peste, como podemos observar na descrição abaixo:
Na fazenda de Édipo, como também ocorre em Tebas, uma peste está assolando o lugar,
as famílias decidem inutilmente abandonar a região, enquanto um grupo de trabalhadores em
procissão, em meio a cantos e rezas, dirigem-se ao casebre do beato Tirésias. Observemos
aqui que a figura do beato Tirésias, diretamente apropriada do adivinho Tirésias da tradição
clássica, é um elemento que pode ocasionar uma identificação no espectador brasileiro e,
dependendo da ocasião, um “distanciamento”. Através do beato Tirésias, Guarnieri e Peixoto
colocam a figura da liderança religiosa que muitas vezes é-lhe atribuída um caráter
messiânico. O líder religioso é, muitas vezes, tido como uma pessoa de mais conhecimento,
sendo muitas vezes a única referência intelectual do lugar para as pessoas humildes e de
pouca instrução. Essa referência à figura do líder religioso pode ser observada com clareza em
figuras emblemáticas como Padre Cícero, no Ceará, Antônio Conselheiro, na Bahia, Jim
Jones, na Guiana, o beato Salú, em Roque Santeiro, dentre outras recorrências.
Tal como ocorre na tradição mítica grega, o beato Tirésias é tão cego quanto Tirésias da
mitologia grega. Através de sua obra, tanto Sófocles quanto Guarnieri e Peixoto, mostram que
Tirésias, apesar de sua cegueira, consegue enxergar mais do que aqueles que possuem o
sentido da visão. Tirésias vem para mostrar aos dois Édipos que o sentido da visão muitas
vezes limita o homem, fazendo com que este apenas possua uma visão estreita da realidade.
Essa visão limitada faz com que o homem acredite que pode enxergar a realidade em sua
totalidade. Imbuído dessa falsa consciência, o homem tende a adotar uma postura arrogante,
intransigente, e até mesmo negligente. Tal fato se dá tanto no Édipo de Sófocles quanto no
Édipo de Guarnieri e Peixoto.
Como ocorre no Édipo Rei de Sófocles, na obra de Guarnieri e Peixoto a peste que
assola a região é também fruto de um crime insolúvel. Neste caso, o crime é cometido contra
o antigo dono daquelas terras de Édipo. Antes de tornar-se dono das terras, Édipo se
envolvera em uma chacina que resultou na morte de seu próprio pai, sem saber que Laio era
seu pai biológico. O beato Tirésias esclarece que a peste apenas terá fim quando o autor do
crime for punido, revelando a Édipo que ele é o autor de tal crime. O Édipo de Guarnieri e
Peixoto se comporta como o Édipo de Sófocles, não dá crédito às palavras do beato, fazendo
com que os personagens se envolvam em um processo investigativo em que se descobre que
Édipo era de fato o algoz de seu próprio pai. Tal tomada de consciência faz com que Édipo,
tal como ocorre em Sófocles, fure seus próprios olhos. Mesmo mantendo os mesmos recursos,
há uma importante distinção entre os dramaturgos: se em Sófocles, o erro trágico de Édipo se
dá frente a sua soberba, o qual sofre os desígnios divinos, em Édipo de Guarnieri e Peixoto,
tal conduta do protagonista provoca as misérias materiais, refletidas nos trabalhadores da
fazenda. Para que aquela vida de privilégios se mantenha, é preciso o trabalho e a exploração
dos empregados que vivem sobre o controle do fazendeiro Édipo, revelando aí uma relação de
desigualdades sociais e econômicas.
O texto dramático é um dos suportes para o trabalho dos artistas que atuam na
área técnica do espetáculo: cenógrafo, figurinista, iluminador, maquiador, etc.. Nele
estão contidas informações importantes para o processo de criação dos mesmos,
paralelo ao trabalho do ator e da opção estética do encenador.
As informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias são pistas
que norteiam os caminhos para a encenação em sua totalização. Segundo a autora,
No interior do discurso teatral; dialogismo de que é mais fácil
postular a existência do que fazer o levantamento das marcas, o
discurso consciente/inconsciente de um scriptor, ou percebê-lo
como discurso de um sujeito fictício são dois procedimentos
possíveis, com a condição de não ficarem isolados um do outro.
(...) O discurso teatral é por natureza uma interrogação sobre o
estatuto da palavra: quem fala com quem? (UBERSFELD, 2005,
p.168)
As informações que o texto fornece sobre as personagens são outra fonte para a
construção da personagem e contribuem também para a caracterização externa dos
mesmos. Tais informações, situadas nas falas das personagens e em indicações do autor,
juntamente com as indicações da direção norteiam o trabalho do figurinista e
maquiador. Podem-se encontrar informações sobre o status social, idade, raça, entre
outros, e assim, podem ser traduzidas em imagens e cores que determinam a
personalidade das personagens.
Quando em seu texto, Mendes cita como exemplo a peça Avental Todo Sujo de
Ovo, por exemplo, com um diálogo entre as personagens Noélia e Alzira, o leitor já
situa o contexto social em que se passa a peça. As trocas verbais contidas nos diálogos,
em um texto teatral, oferecem pistas que norteiam o trabalho do maquiador, por
exemplo. Fato fundamental na construção da estrutura do método que estou propondo
em minha pesquisa, pois o mesmo é destinado ao ator.
Para Kott o grotesco está relacionado com o jogo. O diálogo é um jogo, em que
“no momento em que começa os dois parceiros devem ter as mesmas chances de ganhar
ou de perder, e ambos devem jogar segundo as mesmas regras” (KOTT, 2003, p.132).
Em Fim de Partida, de Beckett, o jogo entre opressor e oprimido de reveza, pela
necessidade um do outro pela sobrevivência. Hamm e Clov travam um duelo de
intolerância necessária para as suas sobrevivências. Beckett constrói suas personagens
com elementos clownescos, em Rei Lear os personagens estão numa condição humana
pontuada pela crueldade imposta pelas escolhas do protagonista, a ponto de reverter a
sua condição e a de seu bobo. Tanto em Rei Lear e em Fim de Partida a convivência é
desagradavelmente necessária para que as personagens se mantenham vivos.
Segundo Pareyson, a leitura de uma obra de arte é um ato complexo não apenas
uma contemplação. Para ele, a leitura de uma obra passa pelas etapas “executar,
interpretar e avaliar uma obra” (PAREYSON, 1977, p.201). No teatro, diferentes
montagens de uma mesma obra dramática, nos permite analisar como a transposição
para o palco foi realizada, quais os signos utilizados e as possibilidades de leitura
podem ser feitas.
De acordo com Pareyson, “ler significa executar, executar significa fazer com
que a obra viva de sua própria vida” (PAREYSON, 1977, p.208). O trunfo dessa
encenação, foi a apropriação da obra de Beckett para a realização de uma montagem
“quase arqueológica – no bom sentido – da peça”, Segundo o ator e diretor Celso
Júnior, em seu blog.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
KOTT, Jan. Rei Lear ou Fim de partida. São Paulo, SP. Cosac Naify, 2003.
PAREYSON, Luiggi. Os problemas da estética. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1977.
http://cadernosgrampeados.zip.net
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
RESUMO
Os elementos essenciais para a formação do teatro, segundo alguns teóricos, são o ator, o
público e o texto, essa relação está conectada diretamente com a presença cênica e a
retroalimentação proporcionada pela troca entre ator e plateia. Porém, como pensar essas
novas relações em um campo no qual os níveis de presença e suas leituras são modificados,
permitindo assim que o espaço cênico não se restrinja somente ao presencial, mas sim, as
virtualidades espaciais que as tecnologias digitais permitem. Nesse estudo, a partir de
experiências já constituídas visualizaremos recursos e experimentações que possibilitam essa
expansão dos espaços da cena e como, através de recursos digitais, podemos criar espaços que
excedam os limites físicos do palco.
INTRODUÇÃO
Presença Cênica
Diante disso podemos ainda nos questionar, porque tratar de presença cênica quando
objetivamos compreender o espaço cênico na contemporaneidade, devemos assim então
considerar que a novas compreensões de presença permitem que a cena não se estabeleça
somente no palco ou mesmo na cochia, pois se o ator pode ir além do palco, assim também o
palco vai além de si mesmo. Configurando uma extensão de si, se desterritorializando e
fragmentando a cena. “O ator não se encontra desmaterializado, mas encarnado em novas
substâncias. Se seu corpo pensa, com auxílio da tecnologia, ele sai dos limites de sua pele.
Assim o homem se reconstitui no exterior de si mesmo.” (ISAACSSON, 2008)
Diante de uma compreensão das quebras das barreiras físicas e das novas
possibilidades de configuração das presenças, podemos visualizar que o espaço cênico pode ir
além do palco, ou mesmo a sala de apresentação, podendo nos levar para outros espaços que
não somente os imaginativos, mas também físico-virtuais.
Quando pensamos no espaço cênico é como se este nos fosse uma janela, na qual
como público podemos observar acontecimentos de um mundo distante do nosso ou mesmo
se perto vermos nossa realidade vivida por outros. Por vezes este espaço seria como moldura
limitada ao espaço presente e perante os nossos olhos. “A primeira vista, o espaço cênico que
se organiza como quadro (tableau) se isola programaticamente do théatron” (ROUBINE,
1998, p. 272)
Esta formatação e pensamento do espaço da cena esta extremamente relacionado ao
teatro tradicional, pois em outras formas constitutivas mais atuais e experimentais como as de
Grotowski, Bob Wilson, John Jesurun, dentre muitos outros, esse abismo entre plateia e palco
são quebrados, aproximando assim o público da cena, ou mesmo o colocando dentro dela.
Se formos pensar no aspecto estrutural dos espaços de apresentação veremos que estes
sofreram diversas modificações através da história se adequando constantemente a cultura de
seu povo e questão socais relativas à localidade na qual ele estava inserido, não é a toa que
vemos as diferenças estruturais presentes nos edifícios gregos, berço dos palcos, em
referência a outros como o Elisabetano, o Italiano etc. Cada um destes se adequava as
necessidades de seu povo e as possibilidades criativas e cênicas que cada um necessitava.
Contudo, não podemos considerar que os espaços de apresentação se limitavam aos espaços
fechados ou mesmo destinados somente a este objetivo, sempre houve o teatro de rua, o
medieval usava uma estrutura totalmente distante da que estamos acostumados na atualidade,
assim como era comum no teatro apresentado à realeza haver um espaço mais simplório
destinado a apresentação, ou mesmo as cenas eram apresentadas no meio dos salões. Por isso
não devemos considerar que os espaços de apresentação se restringem somente ao edifício
teatral, mas a distintas possibilidades criativas.
Segundo Mantovani:
Chamamos de lugar teatral o lugar onde é apresentado o espetáculo teatral e
onde se estabelece a relação cena/ público. Usamos o termo lugar teatral em
vez de teatro, porque este último significa somente o edifício teatral. Na
verdade, o espetáculo pode ser apresentado em qualquer lugar, desde a praça
a um lugar alternativo [...] (1989, p. 7)
Dessa forma podemos considerar que existem várias possibilidades de uso da cena. O
teatro da Vertigem é um exemplo que podemos tomar de um grupo que faz uso de espaços
não convencionais para apresentação de suas peças, utilizando locais que antes possuíam
outra destinação e transformando-os em um espaço cênico. “O teatro procura uma arquitetura
ou então uma localidade não tanto porque o ‘local’ corresponda particularmente bem a um
determinado texto, mas sobretudo porque se visa que o próprio local seja trazido à fala por
meio do teatro”. (ROUBINE, 1998, p. 281)
Se pensarmos no momento atual e sua relação com o espaço cênico, veremos que
chegamos em um período no qual as experimentações não se limitam aos recursos criativos
advindos do espaço da cena, mas adentram ao mundo virtual, levando-nos como espectadores
a adentrar a cena além do meu limite físico, vendo-a como um todo e expandindo a mesma.
Essa possibilidade incide da desmaterialização que a presença cênica possibilita, tendo em
vista que eu não necessito mais necessariamente ter todos os atores presentes fisicamente
perante o público, podendo eles estar em outros espaços, apresentados como presença no
contexto visual da cena. Segundo Isaacsson “Isto porque, na medida em que o ser vivo torna
real a imagem imaterial, a imagem imaterial torna irreal o ser vivo. Pois, sob o olhar da
recepção, o real e o virtual são igualmente ativos, virtual não aparece como ausência, mas
como novo modo de existência”. (2008)
Os recursos digitais permitiram que houvesse um deslocamento do espaço da cena
formando sobreposições espaciais, justaposições, simultaneidade e fragmentação do espaço
presente, criando novos olhares sobre a cena, possibilitando novas leituras e criações de
interfaces espaciais (TONEZZI, 2014). Segundo Tonezzi:
Nas últimas décadas, o instrumento digital ganhou força em produções
cênicas, incidindo na estrutura dramatúrgica e, por extensão, nos parâmetros
de representação, jogo e significação do artista. Como consequência, as
formas de criação e recepção da cena foram alteradas, distanciando-se cada
vez mais daquilo que, até recentemente, configurava-se como evento teatral,
ou seja: uma estrutura estável e concretamente perceptível de tempo e lugar.
Porém, por mais que se desfragmentassem as narrativas e/ou agentes, tanto o
tempo real percebido quanto o corpo orgânico e o espaço concreto de
intervenção do atuante permaneciam referencialmente estáveis diante do
espectador. (idem, p. 336)
Como dito por Tonezzi, mesmo com as fragmentações narrativas, no contexto geral,
ainda havia uma permanência nas questões espaciais que só foram fragmentadas devido ao
meio digital, sendo estruturadas pelo olhar do receptor que vê a cena como um todo,
reestruturando sua formação espacial. Estes recursos só podem ser pensados e configurados
devido às mídias digitais, que abriram espaço para essa expansão de possibilidades criativas.
Trata-se, assim, não apenas de um redimensionamento, mas também de uma
reconstituição do espaço cênico por meio de seu deslocamento e
desmaterialização. Algo praticamente impensável há algumas décadas: a) ao
mesmo tempo em que se apresenta num determinado espaço físico, o evento
cênico é aberto e disponibilizado para acesso em rede. Por opção do
espectador, o espetáculo pode também ser apreciado presencialmente; b) um
trabalho cênico reúne e faz jogar artistas que, por sua vez, podem se
encontrar num mesmo lugar ou em espaços concretamente distintos e muito
distantes um do outro. Durante a performance, os espetáculos se integram e
os artistas jogam entre si através da mídia. (TONEZZI, 2014, p. 345)
Vários grupos começam a realizar experimentos que vão além do espaço do palco,
trazendo o uso do vídeo e projeção a cena, permitindo que novas compreensões de leitura
sejam estabelecidas. Grupos como a PHILA7 e o Teatro Para Alguém (TPA) podem ser
considerados com bons objetos de estudos, pois propõem em suas experimentações novas
significações, nos apresentando que poderíamos compreender presença cênica de outras
formas que não só as convencionais.
Um dos principais espetáculos da Phila7 feito por essa companhia foi o “Play on
Earth”, 2006, nele havia uma conexão entre três espaços distintos do mundo, no qual a cena
acontecia simultaneamente (Brasil; Inglaterra e Cingapura) o público presente acompanhava
uma cena que se desenrolava com atores reais no palco enquanto a todo momento ao fundo
existia 3 telões nos quais eram projetados tanto a cena real digitalizada, assim como a cena
ocorrida nas outras duas localidades justapostas. Vale observar que não ocorriam as mesmas
ações, ou mesmo o que era projetado era um adendo a cena, mas cada elemento apresentado
nos telões e sua justaposição criava o sentido da própria cena, quer sejam no Brasil, na
Inglaterra ou em Cingapura. Toda essa união podemos dizer só foi possível se estabelecer
devido a Internet e a uma forte estruturação digital.
Se observarmos atentamente a este espetáculo compreenderemos que a cena em si não
ocorre nunca em apenas um dos espaços, mas cada uma das localidades é essencial para
formar um todo, criando assim um quarto espaço que somente existe na união desses três,
espaço este existente devido à internet, e um eterno espaço de suspensão. Mesmo com o
recurso digital vemos que o teatro não perde sua efemeridade e sim nesse caso
especificamente aumenta essa constante mudança, pois o ator não necessitava dialogar ou
mesmo se retroalimentar somente com o público presente, mas se fazer presente para os
outros atores projetados e para o público, que embora não estivesse próximo a estes, aparecia
e possuía uma forma de presença.
Há outro espetáculo da Cia que também faz uso de distintos espaços que é o caso de
“A verdade relativa da coisa em si”, 2006, no qual temos o palco como centro principal de
acontecimentos, porém o uso de telões nos faz observar outros espaços que não somente os da
cochia, mas alguns que não consigamos valorar a distancia, mas tem significado. Por vezes os
telões justapõe esse espaço, tal qual um momento que vemos os personagens conversando em
um corredor em preparação a entrar na cena, embora que estejamos como público, sentados
perante a cena presente, o que nos é projetado em sua coerência nos leva além do físico,
possibilitando a partir do virtual que estejamos em novos espaços. Em “What’s Wrong with
the World”, 2008, há novamente uma relação entre Brasil e Inglaterra e diálogos são criados
entre personagens, não somente falados, mas visuais. Nesses espetáculos vemos a partir da
projeção a criação de vários espaços, mas em certos momentos os atores reais, são
digitalizados, pois vão pra espaços além do espaço teatral e os acompanhamos em seus
caminhos entrando em novos locais, quer sejam salas com cenários montados, ou mesmo indo
para fora do edifício onde a cena ocorre, mas para nós como público não é como um
distanciamento, mas somos levados além do limite real, como se estivesse em todos os
espaços indo além do fator somente imaginativo, mas como uma extensão de nós mesmos.
Outra experimentação que possibilita novas leituras do espaço cênico é a realizada
pelo TPA, na qual a Internet é o seu espaço de exposição. O grupo apresentava inicialmente
as cenas em um espaço sem público, totalmente em uma estética teatral, e gravava o material,
colocando-o posteriormente na internet, onde o público tinha acesso. Dessa forma, este seria
um teatro virtual, no qual o espaço cênico não se limita a um edifício, mas poderia ser
instaurado em diferentes suportes, como um computador, um notebook, um tablet, celular etc.
Para manter a estética teatral, aspectos como um plano sequência, planos abertos, dentre
outros eram utilizados, obviamente também fazendo uso da linguagem da Internet com cenas
curtas.
Nessa proposta do TPA temos a construção de um espaço digital como espaço cênico,
sendo assim, a peça poderia estar em todos os locais, por momentos houve cenas apresentadas
com um público, ou seja, estavam realmente criando a retroalimentação possível teatralmente.
Nessa ideia é possível levar o teatro e sua linguagem para os diferentes espaços, tanto pela
apresentação em streaming quanto pela possibilidade de banco de dados, permitindo uma
distribuição universal dos materiais.
O espetáculo “Júlia” que provém da peça “Senhorita Júlia” de August Strindberg,
adaptação e direção de Cristiane Jatahy (2012), é outro exemplo de construção de espaço
distinto, há vários telões em cena e constantemente os atores jogam com o espaço e caminham
entre eles tornando-se virtuais e reais, inicialmente podemos até mesmo nos questionar sobre
essa constante modificação, porém por vezes, enquanto se digitalizam, somos levados para
outros espaços que não são nem de memória nem de sonho, mas de presente. Há um momento
em que os personagens estão na piscina, mas não nos estranha o que nos é apresentado, pois é
como se os tivéssemos acompanhado até aquele espaço, como um suspensão de nós mesmos
nesse espaço.
Esses são somente alguns exemplos dos vários que podemos citar que ocorrem pelo
Brasil afora, vemos que cada um destes grupos e espetáculos propõe diferentes formas de
expansão, mas procuram cada um a seu modo, construir novas espacialidades e expandir a
cena para além do presencial físico.
Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ISAACSSON, Marta. Diálogos do ator com a tecnologia. IN: Território Teatral, nº9,
set.2008. Disponível em: <http://territorioteatral.org.ar/html.2/articulos/pdf/n3_02.pdf>.
Acesso em: Jan de 2013.
_________________. A Presença como Movimento da Cena. Anais do VI Congresso
Abrace, 2010. Disponível em:
<http://www.portalabrace.org/vicongresso/processos/Marta%20Isaacsson%20-
%20A%20Presen%E7a%20como%20Movimento%20da%20Cena.pdf>. Acesso em: Jan de
2013
LEHMANNN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ática, 1989.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996 (3ª edição).
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. São Paulo: Razar, 1998 (2ª
edição)
TONEZZI, José. Inovação e significação em cena. Revista Brasileira de Estudos da
Presença. Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 333-350, maio/ago. 2014. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/presenca> Acesso em: 20 de junho de 2014.
Sites
http://phila7.com.br/
http://www.teatroparaalguem.com.br/
Arquivos Visuais
A verdade relativa da coisa em si. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R1kuplMhw00>. Acesso em: 02 de jul de 2014
Julia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uQxRd9SXg-0>. Acesso em: 02
de jul de 2014
____. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GPtKvCokCFs>. Acesso em: 02
de jul de 2014
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Este trabalho foi fruto de pesquisa do PIBIC intitulada “TEATRO E NOVAS MÍDIAS: hibridismo no trabalho
teatral da Cia. Phila7”, realizada entre agosto de 2012 a agosto de 2013, com financiamento do CNPQ.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Lara Tatiane de Matos (CAPES) André Luiz Antunes Netto Carreira (Orientador); Programa de
pós-graduação em teatro – PPGT – Doutorado; UDESC
Um contexto pessoal
O olhar cultural é mais do que uma simples lente, pois ele possui esse
aspecto de autocensura/observação que implica no controle do corpo nu por
razões determinadas culturalmente. [...]
Visto que a identidade é fluída e ganha fruição a partir de discursos e
performances, o corpo nu torna-se identificável somente após ser submetido
ao olhar cultural. (BOODAKIAN, 2006 p 143)
Durante um ano tive a experiência de trabalhar como modelo vivo para artistas de
uma escola de arte. Nesta perspectiva, a nudez se mostra completamente diferente, e
talvez se possa comparar à nudez clínica. Aqui o corpo é a massa que é forma, luz e cor.
Desprovido de desejo, de contexto, de conflito ou drama. Neste trabalho não é a nudez,
o corpo nú que se mostra, como na morta, mas o conjunto total que mistura forma e
contexto, pele. A pele toma lugar central no trabalho como modelo vivo, a pele conduz
as percepções dos artistas. A pele reflete a luz, interage no espaço, moldando o fundo e
contrastando com as cores. Mas esta pele também transcende a matéria e se apoia no
contexto e toma outro significado, “Curiosamente a pele retira do corpo seu status de
objeto, no momento em que ela não é mais percebida como involucro das formas. Tal
qual uma superfície com seus próprios relevos, ela transforma o corpo-objeto em corpo-
texto.” (JEUDY, 1945 p 84)
É a partir destas duas percepções pessoais e práticas do corpo nu, bem como suas
divergências, que em minha trajetória como artista e pesquisadora passei a perceber os
atos de nudez na rua, através de mecanismo midiáticos e cheguei a textos e teorias da
performance.
O corpo político da performance é citado por Carlson quando revisita a história da
performance e estabelece a classificação de performance política,
Em meu contato com mulheres que há alguns anos vem mostrando os seios, em
marchas pelos direitos femininos (a “Marcha das Vadias” principalmente), inclusive em
Florianópolis, pude perceber esta performance política, mas poeticamente artística,
visualmente carregada de significação. No entanto esta manifestação ainda estava no
território do compreensível, pois eram cobertas de razões políticas que eu conhecia
profundamente. Mas então começaram a aparecer outras manifestações nos mais
diferentes países, sob as mais diferentes óticas: o direito dos animais, o direito de andar
de bicicleta com segurança, a preservação dos direitos sociais, a indignação com o
desiquilíbrio social .
Seguidamente pode ser visto um post no Facebook que, compartilhado inúmeras
vezes, se tornou um mantra virtual, “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o
corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou
uma festa.” Eduardo Galeano”. Inúmeras vezes o compartilhamento aparece na Time
line, sempre acompanhado de uma imagem antiga, talvez uma fotografia dos anos
cinquenta onde duas pessoas, um homem e uma mulher, dançam nuas em um campo.
Apesar de muitos dos que me conectam pela rede social estarem envolvidos com arte, é
comum ver esta postagem sendo compartilhada também por pessoas que não possuem
nenhum vínculo direto com o fazer artístico.
O nu aparece, agora, vinculado também ao cidadão comum, mesmo que ainda
na postagem virtual. A poética do corpo nu, relacionado à liberdade e à simplicidade, a
imagem básica do ser humano, já está no domínio do público que não possui
aparentemente um contato direto e recorrente com arte. Na mensagem o efeito é de
manifestação de aceitação do corpo nu. Nesta postagem, o corpo não é pesado como
antes, o corpo esta em fase de libertação.
Um contexto local
Em Florianópolis tivemos três eventos que nos mostram bem o contrário do que
se publica na rede virtual, o posicionamento do governo e da polícia quanto ao ato de
desnudar-se, seja qual for o fim, na rua. Como já foi dito, a nudez na rua é enquadrada
judicialmente como “ato obsceno” podendo custar a quem o pratica até um ano de
prisão.
Ainda em 2012, e em 2013 na cidade de Curitiba, o Erro Grupo, importante em
sua trajetória de 11 anos de pesquisa cênica na rua, apresentou o espetáculo Hasard,
onde ao final, durante um jogo de sorte, uma das possibilidades envolvia a nudez total
de alguns atores. A polícia se colocou a postos nos dias das apresentações e repreendeu
os atores.
Em 2010, o performer Betinho Chaves, foi detido dentro do campus da
Universidade Federal de Santa Catarina, por apresentar a performance Na brasa de
Pindorama onde estava totalmente nu. Ironicamente a performance fazia parte da
Semana Ousada de Artes, promovida pela universidade onde estava sendo realizada
juntamente com a UDESC. A guarda do campus foi acionada por alunos e levou o
performer para a delegacia onde prestou depoimento e foi liberado.
Conversando com um participante da “peladada” ou pedalada pelada, um
protesto que tem acontecido em diferentes cidades do país, onde os participantes andam
nus, ou seminus, de bicicleta pelas ruas da cidade, ele questionava a eficácia do ato,
para ele havia um desvio do olhar do público passante sobre o tema que importava: as
condições de segurança de quem anda de bicicleta nas ruas.
A rua tem sido tomada por manifestos, protestos e ações isoladas ou vinculadas
à uma causa. A conjuntura social mundial tem mostrado uma força popular sem igual no
que diz respeito a articulação popular. A divulgação entre mídias, principalmente as não
oficiais como as redes sociais, tem mostrado a preocupação de camadas sociais com
decisões políticas ou causas em geral. O protesto tem levado as pessoas às ruas, tem
tornado presente o corpo daqueles que se encontram ou se organizam pelo meio virtual.
A ação de corpos nus tem se tornado presente em diferentes protestos por
diferentes causas, e esta ação não está desvinculada de um pensamento crítico, político e
principalmente estético e poético. A nudez nestes lugares, é o símbolo de um
pensamento que flerta com o pensamento artístico. Porque estamos ficando nus? O que
nos move? Seria a necessidade de mostrar que frente à polícia, ao poder, ao governo,
não temos nada – que temos consciência disso? Nem armas, nem armaduras, nem
roupas, nem símbolos ou marcas que nos identifiquem? Ou estamos mostrando que a
essência do corpo, a nudez, a fragilidade da pele nos torna iguais e apenas humanos? Ou
somente queremos chamar atenção, e sabemos que a nudez ainda é uma ação
desconcertante? Seria uma reinvindicação de uma humanidade perdida? Seria uma
identificação animal com a natureza?
A crise que se apodera dos pensamentos, que desilude do capitalismo, do
consumo, o apelo constante para as causas ambientais, ecológicas e de estrutura urbana,
somadas, resultam em questionamentos profundos sobre a sociedade atual. A constante
insatisfação com o sistema regente, os modelos que desabam, o europeu e o americano,
principalmente, e a constante e insistente busca por eles; o desdobrar de crenças
religiosas e espirituais, as novas percepções sobre o corpo e sobre o ser humano,
aparentemente transbordam em ações públicas que se misturam com o artístico e que
reivindicam a performance.
Para uma revisão política sobre contemporaneidade é preciso visitar a obra de
Zygmunt Bauman, principalmente O mal-estar na contemporaneidade, entrevistas e
artigos publicados nos últimos tempos são valiosos para pensar a conjuntura de nossa
sociedade. Atuais observações tais como “a situação de interregno”, momento de
contradições e dúvidas que colocam os cidadãos em um ambiente caótico e com poucos,
ou quase nenhum, lugares onde depositar suas certezas, mesmo quando em se tratando
de valores, nos dá uma noção poética e profunda sobre a sociedade atual,
Para Bauman essa situação é bastante parecida com a situação que vivemos
atualmente. Vivemos um momento de mudanças simultâneas, o que nos deixa sem
tempo para processá-las. É possível que as gerações futuras estejam adaptadas a viver
neste turbilhão, mas nossa época é a linha que separa o passado do futuro, mudanças
profundas nas comunicações se encontraram exatamente no ponto onde vivemos e daqui
podemos tocar o futuro e o passado.
Esta pode ser uma pista para compreender as motivações que levam as pessoas a
voltar para seu corpo e vê-lo como material expressivo, mas as implicações sobre este
ato, e tudo que discorre dele merecem estudos profundos.
Quando pensamos a nudez, o corpo se resume à imagem e ao contexto acionados
por uma ação. É possível dizer que a nudez enquanto tema, afastada da materialidade e
objeto corpo, está intrinsecamente relacionada à uma ação, por isso isolada do corpo em
sua totalidade. Nesta perspectiva, informações sobre este corpo, subjetividades,
identidades, informações sobre sua saúde, etc. não são tão relevantes como a imagem,
como o ato de desnudar-se e o contexto social e espacial em que se insere.
O pensamento artístico tomou estes ambientes, e responde, como em muitos
outros momentos históricos, pela condensação de pensamento, crítica, imagem e ação.
O pensamento artístico se espalhou e se tornou constante nas ações sociais. O cidadão
faz arte, porque a arte lhe serve de mecanismo, de meio e método, porque a arte faz
parte da composição social do qual ele é parte, e pela qual ele é feito. A expressão
humana não pode ser parada ou encaixotada, e por isso a performance toca a rua, e se
traduz em protesto arte, sem necessariamente necessitar desta classificação.
A nudez nos protestos é o símbolo de uma revolução de pensamento, tanto para
aqueles que estão conectados com o pensamento da performance, sem necessariamente
pensar sobre isto, quanto para a arte da performance, que hoje habita outros espaços,
naturalmente.
É fundamental mostrar as conexões visíveis entre a performance arte e o
protesto, revelar estas conexões expandindo o conceito, ampliando o olhar sobre a
manifestação pública, conectando artistas e suas ações e cidadãos e as causas que os
levam a pensar performaticamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Lourenço. – São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
Planalto Central
Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm acesso em
04/04/2013
Erro Grupo
Disponível em: http://www.errogrupo.com.br/v4/pt/ acesso em 04/05/2014
Notas:
1
Ato obsceno é definido como crime no Código Penal Brasileiro
“CAPÍTULO VI DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ESPAÇO E IMAGINAÇÃO NA TEATRALIDADE DE ROBERT LEPAGE
Luciana Paula Castilho Barone (FAP; UNESPAR)
A questão da teatralidade, se já impulsionava os encenadores do início do século XX,
em sua busca pela autonomia da linguagem teatral em relação à literatura dramática,
volta à pauta do debate teórico da cena contemporânea. Em “Teatralidades
Contemporâneas”, Sílvia Fernandes (2010) nos conduz a uma passagem por algumas
de suas perspectivas, desde a diferenciação entre a teatralidade denegada e à da
convenção consciente, proposta por Patrice Pavis, até a diferenciação e posterior
aproximação entre as noções de “teatralidade” e “performatividade” de Josette Féral,
em sua crítica à generalização do termo “pós-dramático”, apresentado em 1999 por
Hans-Thies Lehmann.
Efetivamente, ao enfocarmos a teatralidade híbrida do encenador canadense Robert
Lepage, que investe no jogo entre os elementos que a compõem como porta de acesso
ao universo poético, o termo ‘pós-dramático’ nos parece vago para defini-la. As
análises que Lehmann propõe dos aspectos da cena de Lepage, concentram-se
principalmente no exemplo de Os sete afluentes do Rio Ota, especialmente pelo
caráter épico, dessa “viagem teatral político histórica” (LEHMANN, 2007, p.379),
que aproxima-se da estrutura onírica, pelo uso que faz das mídias e dos “estilos de
representação” (ibidem) e por sua longa duração representacional (idem, p. 307). O
autor identifica ainda a recorrência a montagens solo na cena pós-dramática, passando
pelo exemplo de Agulhas e Ópio (idem, p.209), sem no entanto, aprofundar-se em
sua análise, ou na de outros exemplos, como Vinci e Elsinore, também concebidas e
interpretadas por Lepage. Mas o que mais chama a atenção, além de serem poucas as
vezes que Lehmann refere-se efetivamente à produção deste encenador embora
configure como um dos “nomes” listados em seu “Prólogo”, como expoentes da cena
pós-dramática, é que a dramaturgia lepageana, embora apresente elipses temporais e
entenda-se como sempre em progresso (retroalimentando-se da relação com o
público), apoia-se predominantemente numa estrutura de linearidade temporal, não
totalmente desvencilhada do enredo dramático.
Embora Lehmann contemple uma coexistência entre o dramático e o pós-dramático,
afirmando que o drama continue a existir como estrutura – "mesmo que enfraquecida,
falida – do teatro ‘normal’" (idem, p. 33), afirma que os “membros ou ramos do
organismo dramático” presentificam-se como “material morto” (idem, p. 34),
constituindo o espaço de “uma lembrança em ‘irrupção’”(ibidem) na chamada cena
pós-dramática. As estruturas dramatúrgicas das peças de Lepage, embora
evidentemente focadas na cena e não no texto, apoiam-se na noção de personagem, e
de desenvolvimento linear da trama, entrelaçada por conflitos que possibilitam,
inclusive, a relação de identificação com o espectador. Assim, parece-nos controverso
que sua dramaturgia configure-se como exemplar da cena pós-dramática desde o
“Prólogo” da publicação de Lehmann, ainda que outros aspectos de sua cena se
enquadrem nas diversas possibilidades que o autor define ao longo de sua defesa.
Se, conforme Sílvia Fernandes (2010, p. 113), “o conceito de teatralidade tem se
revelado um instrumento eficaz de operação teórica no teatro contemporâneo”, o de
Josette Féral, por considerar as relações de criação e recepção, nos parece mais
pertinente para se lançar um olhar sobre a cena lepageana, do que a proposição pós-
dramática de Lehmann. Este trabalho, enfoca a relação entre espaço e imaginação na
teatralidade de Lepage, considerando justamente que a imaginação potencializa-se dos
dois lados da cena - o espaço do palco e o da plateia - estabelecendo-se como elo da
criação em progresso.
O espaço da representação
Os espetáculos de Lepage priorizam a frontalidade que, por si só, já direciona a
relação de visualidade entre plateia e cena. Esta relação espacial favorece a
emergência do que “literatura cênica canadense convencionou chamar de ‘teatro de
imagens’” (BARONE, 2007, p. 228). Explorando a relação entre cena ao vivo,
projeções de vídeo ou filmográficas e o movimento cenográfico, Lepage oferece à
perspectiva do espectador a possibilidade de diversos pontos de vista, conduzindo-o
para dentro do espaço da representação, fazendo-o seguir, muitas vezes, o percurso de
seus protagonistas.
Em Vinci, por exemplo, a plateia embarca no avião em que o palco é transformado
pelo uso que o ator faz da cadeira em cena, além de passear no ônibus turístico
londrino, representado pela sombra de um retrovisor, e de adentrar um Burger King
em Paris, ambientado pelo copo de refrigerante que a Gioconda tem em mãos.
Abordando a viagem iniciática de Philipe, um fotógrafo canadense que viaja para a
Europa em busca de motivação artística, a montagem estabelece a espacialidade
metonimicamente, pois um objeto referencial – a cadeira, o retrovisor, o copo –
representa o todo. A inserção da plateia no ambiente expandido do palco se dá através
do jogo que o ator com ela estabelece, mediado pelos signos da espacialidade.
Esta relação metonímica também pode ser identificada em Trilogia dos Dragões,
espetáculo em que uma guarita de estacionamento vai sendo ressignificada para
referir-se aos diversos espaços da representação por que transita. Para Ludovic
Fouquet (2006), há, nesta trilogia, uma herança das marionetes (com que Lepage
trabalha no início de sua carreira), como se a lógica dos bonecos fosse empregada no
gestual dos atores e em sua relação com os objetos ou em sua ampliação cenográfica.
Os atores que interpretam o Chinês e Crawford, por exemplo, para provocar a ilusão
de descida de uma escada para o subsolo, caminham, dentro da guarita, em círculos,
dobrando progressivamente os joelhos. Quando desaparecem, simplesmente abrem a
porta da guarita, transformando o espaço externo (a rua, no início da cena), no subsolo
de uma lavanderia. É o jogo entre o corpo e o objeto, aqui amplificado na cenografia,
que estabelece o espaço da representação.
Em Agulhas e Ópio, o jogo entre cenário, ator e projeção transporta o espectador a
novos espaços, revelados pelo movimento da tela, que gira em torno do próprio eixo
horizontal. A relação que o ator vai estabelecendo com cada um dos lados da tela,
amparada ou não por projeções, transporta a imaginação do espectador, para o avião
que em 1949 leva Jean Cocteau de Nova York a Paris, para o quarto de hotel em que
Robert se hospeda, na Paris de 1989, ou para o restaurante parisiense que recebe
Miles Davis e Juliette Gréco, em 1949. Tempo e espaço são convencionados pelo jogo
do ator com a cenografia física e virtual. Flutuando entre as hélices, ele representa
Cocteau de 1949, quando oculta-se atrás da tela, mostrando apenas sua silhueta em
sombra chinesa, nos remete a Davis do mesmo ano e quando revela-se sob a lâmpada
do quarto de parede vermelha, envolto no lençol da cama, é o Robert de 1989,
descobrindo o universo dos outros personagens. Transitando entre estas três figuras e
suas vivências amorosas, a peça conduz a seu apelo às agulhas da acupuntura ou do
ópio para superar a dor decorrente destes amores. Por meio de sua cenografia virtual,
a montagem mergulha o espectador na abstração do vórtice a que conduz a alucinação
do ópio, junto com o ator que dança no ar, suspenso por dois fios cenotécnicos. Este
recurso possibilita ainda a queda de Jean Cocteau do alto de um edifício, ilusão
promovida pela relação entre os movimentos do ator, no ar e as imagens do vídeo,
projetadas atrás dele -um travelling vertical de janelas de um prédio que se sucedem
uma à outra.
É no jogo entre os diferentes elementos da cena que se estabelecem as espacialidades
evocadas. A imaginação do espectador é motivada pelas imagens poéticas que se
configuram em cena. A partir do real, é estimulada a função irreal do psiquismo, para
que o espectador complemente as imagens sugeridas pelo palco, como a vertigem do
personagem que despenca do alto de um prédio, ou a alucinação proporcionada pelo
ópio. Há nestas sugestões, uma espacialidade interior, relacionada à vertigem, à
sensação do espaço, mais do que sua ocupação objetiva. Lepage parte de um espaço
real, para sugerir a sensação ou emoção que vive o personagem naquele momento -
paixão, alucinação, queda – convidando a plateia a adentrar este jogo de (sua própria)
intimidade.
A cena da alucinação é tomada por uma grande espiral virtual, que transporta
personagem e espectador do mundo físico para o subjetivo – o outro lado da tela
cenográfica. Gaston Bachelard, ao tratar da dialética entre o exterior e o interior no
que chama de 'língua filosófica' (2008, p. 217), afirma que
O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A
metafísica mais profunda está assim enraizada numa geometria
implícita, numa geometria que – queiramos ou não – espacializa o
pensamento; se o metafísico não desenhasse, seria capaz de pensar?
Para ele, o aberto e o fechado são pensamentos (BACHELARD,
2008, pp. 215-216).
Podemos estender seu pensamento à poética cênica para pensa-la em termos
geométricos, em termos de desenhos que espacializam não o pensamento organizado,
mas sua abstração. A espiral de Lepage concretiza em cena este desenho, o ator nela
mergulha e a tela gira, de modo a fazer com que sua alucinação o engula, desapareça
com ele da cena e reste ao espectador apenas o espaço da imaginação, que completa a
espiral infinita. Voltando a Bachelard:
Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído
do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é
circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de
permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.
E que espiral é o ser do homem! Nessa espiral, quantos dinamismos
se invertem! Já não sabemos imediatamente se corremos para o
centro ou se nos evadimos. Os poetas conhecem bem esse ser da
hesitação de ser (BACHELARD, 2008, p. 217).
Como poeta da cena que é, Lepage transita entre o dentro e o fora do ser e, na
concreção de suas espacialidades internas e externas, nos conduz por estes caminhos
do ser apaixonado de seu Agulhas e ópio.
A espiral, assim como outras formas geométricas, volta à cena em Geometria dos
milagres (1998), que aborda a relação de mestre e discípulo, bem como de
conhecimento e organicidade, através do encontro entre o arquiteto Frank Lloyd
Wright e o espiritualista Giorgi Ivanovich de Gurdjieff. Nesta montagem, as formas
são geometrizadas através do desenho dos corpos no espaço, explorando tanto os
movimentos físicos propostos por Gurdjieff, quanto os da biomecânica de Vsevolod
Meyerhold. Arquitetura e corpo, teatro e espiritualidade se encontram em cena, por
meio da geometria miraculosa de Lepage que espacializa círculos, quadrados,
triângulos, espirais e linhas paralelas (formas que nomeiam os quadros do espetáculo),
para transitar no imaginário do dentro e do fora, do aprendizado e da criação, da
transformação interna, à revolução social.
Etéreas fronteiras
Em entrevista a Rémy Charest, Robert Lepage conta que quando esteve no Japão,
antes de montar Os sete afluentes do Rio Ota, seu primeiro impacto, que muito lhe
inspirou na montagem do espetáculo, foi justamente o da percepção do espaço, por
seu uso otimizado e pela necessidade de transparência de seus limites: “O Japão é um
país feito de papel de arroz - as paredes das casas são literalmente feitas disto - então,
fronteiras são sempre um pouco etéreas, enevoadas: elas são feitas de ar” (LEPAGE in
CHAREST, 1999, p. 38, tradução livre).
Em contraposição à imensidão territorial canadense, e a sua consequentemente baixa
densidade demográfica, Lepage se defrontou com um país altamente populado, onde o
valor do espaço toma novas dimensões:
os japoneses vivem em apartamentos do tamanho de lenços, o que
significa que eles têm que criar um espaço interior considerável,
infinito. No Canadá, o espaço é concreta e obviamente disponível;
nós temos potencial para desenvolver um espaço interior, mas não
tendemos a isso, dado nosso condicionamento, devido a nossa
percepção espacial (idem, p.39).
Essa distinção cultural, Lepage também identificou no interior do teatro, pelas
diferenças comportamentais entre os atores japoneses e os ocidentais; enquanto estes
aproveitam os intervalos para conversar sobre diversos assuntos, os japoneses
“refugiam-se em si mesmos”, numa espécie de tempo ‘privado’: “Todos os atores têm
seu local pessoal marcado na sala de pesquisa para o qual eles voltam durante os
intervalos. Abordá-los é invadir seu espaço pessoal” (ibidem).
Em Os sete afluentes do Rio Ota, a influência dessa percepção é notória. A ideia da
peça surge de “sete caixas, sete afluentes, sete portas de correr
japonesas” (FOUQUET, 2006, p.251, tradução livre). O formato cênico concretiza
esta ideia: uma grande caixa, retangular, com portas de correr, que se abrem a uma
multiplicidade de pequenos espaços ao longo das sete horas de duração do espetáculo,
que aborda desde os dias que se seguem ao bombardeio de Hiroshima, em 1945, até
os anos de 1990, apresentando personagens que viveram as consequências da bomba,
o holocausto, a epidemia da AIDS.
A ocupação espacial, nas cenas que se dão no Japão, segue a lógica oriental de
otimização do espaço por meio de transparências e uso de poucos objetos, para causar
a sensação de amplitude dentro de pequenas áreas. Assim, a fachada da casa das
personagens Nozomi e Hanako, em Hiroshima, é feita de portas com moldura de
madeira e papel de arroz. Estas portas correm para os dois lados, revelando, na
profundidade do palco, os três ambientes da casa (dois quartos nas pontas e uma sala
ao meio). À frente, a menção (verbal e recorrente) a um estreito jardim de pedras
provoca o imaginário do espectador a completar este ambiente. Há uma fronteira
física entre o dentro e o fora, estabelecida pelas portas. O espaço externo é sugerido à
imaginação do espectador pelas palavras descritivas das personagens. O espaço
interno é paulatinamente revelado, conforme abrem-se as portas.
Bachelard, em sua topoanálise da casa, aborda o espaço habitado como um espaço de
proteção do eu. A casa é um espaço de intimidade, de memórias, que “retém o tempo
comprimido” (2008, p. 28). O Prólogo de Os sete afluentes do Rio Ota apresenta
Hanako, personagem que tem deficiência visual em decorrência da bomba de
Hiroshima, ainda menina, vendada, na casa de sua mãe. No último quadro da peça,
voltamos à mesma casa, onde ela se recorda onde estava, no momento da explosão da
bomba:
1
Mestrando em Artes-Teatro/UFU e Docente do curso de Artes Cênicas/UFGD
2
Pós-Doutor em Teatro/UDESC e Docente da pós-graduação em Artes-Teatro/UFU
situações e produções. Este homem chama-se Amir Haddad, desenvolve seu trabalho
junto ao grupo de atuadores do Tá na Rua, na capital do estado do Rio de Janeiro. Sua
trajetória vem sendo marcada, por lutas e enfrentamentos, de uma sociedade e de um
modo de fazer teatral. Sua produção interfere em um fluxo pensado para uma cidade
estática e neutra, movendo este lugar, desestabilizando as bases.
Quando você trabalha numa rua, numa praça, trabalha com toda a
estratificação social misturada; o nosso público deixa de ser
homogêneo e passa a ser heterogêneo, como era o público dos
gregos, dos romanos, da Idade Média, dos espanhóis, do
Shakespeare, do Molière. Voltamos a trabalhar toda a humanidade
e podemos, dessa maneira, refazer o espetáculo do mundo, e não o
espetáculo de um grupo social apenas. (HADDAD, 2009, p.213)
Fato de ruir com as convenções de um teatro clássico feito até o momento, sinaliza
um movimento gerado pela repressão da época, um espetáculo experimental, definição
para a Construção. Sendo este o primeiro detrito encontrado na condução de um processo
criativo para rua do encenador Amir Haddad. Parafraseando o autor, um cozimento das
ideias.
Rastros de Peter Brook
O encenador Peter Brook, londrino, nasce em 1925, inicia sua carreira artística
com dezenove anos de idade, um fazer que experimentava ações e linguagens, uma
contracorrente do espaço-tempo em que estava habitando, em seus escritos encontro um
resíduo que pode ser um possível ponto de revelar quem o era.
A única concepção de que o diretor precisa - e deve descobri-la na
vida, não na arte – vem como resposta ao seu questionamento sobre
o sentido de um evento teatral no mundo, a sua razão de ser.
(BROOK, 1994, p.23)
Na relação entre ator e encenador, o evento teatral, como dizia o encenador Brook,
por conter não apenas imagens, ou mesmo, formas, o que estaria acontecendo no palco,
seria único e experienciado naquele momento, por aqueles atores e por aquele espectador.
Surgindo como um estalo a ideia de deixar tudo claro, sem sombras e a utilização do
tapete como palco e cenário. A ação acontece sem decorações, desvinculada de toda a
maquinaria disponível, ela ocorre naquele momento, para os que ali estão.
Rastros de um encontro
Dois caminhos se misturam, encontros não marcados, vividos e escritos, no
desenterrar da intuição. De um lado as palavras descritas e registradas por Amir Haddad,
em entrevistas, em processo com atores; e de outro a escrita de Peter Brook, que traça
seus pensamentos e procedimentos com palavras.
Ambos declaram não haver uma técnica, mas sim, técnicas, plurais e diversas,
construídas juntas ao ator, constituídas entre provocações da figura que ora se encontra
dentro da cena, ora fora dela. A sala de ensaio, local de trabalho, suor, torna-se um campo
de criação coletiva e individual, cada um, se encontra livre a propor. Propondo ao teatro,
uma arte coletiva, feita por indivíduos. (HADDAD, 2009, p.203)
A sala de ensaio se transforma em um espaço de verdade e improviso, perdendo o
caráter repetitivo, ganhando uma energia de experiência total, entre e sobre a proposta do
coletivo. Uma cidade vai sendo construída, com ruas, vielas e avenidas que são
provocadas pelo condutor aos atores, dando autonomia para o sujeito e abrindo para
deixar se provocar e ser provocado, em todos os sentidos que são possíveis. A coragem
proposta, desperta no ator o descarte do que pra ele é supérfluo, editando seus gestos e
ações e condensado cada estado. Percebido na latência, do que está presente e do que não
está e não pode ser encontrado no trabalho.
Uma relação possível e proposta por Amir em Agamenon de fazer da sala de
ensaio, um espaço para o ato espetacular, abrindo a atmosfera criada para o espectador,
colocando-se em risco, e liberto ao erro. O encontro acontece no local, onde se pode errar,
se pode transitar, pode voltar, sair quando quiser, e todos os materiais se encontram neste
meio. Para elucidar este encontro abro uma página, encontrada dentro de um sapato velho,
que estava jogado por aqui.
Então abri o espetáculo em forma de ensaio: era uma coisa que
deixava os atores tensos, porque não tinha nada feito. Havia todos
os papéis, os atores conheciam a peça inteira, ela estava decupada,
cortada, do jeito que os atores quisessem. Cada sequência, um ator
assumia, se ele quisesse. Tínhamos ali uns elementos: as roupas, por
exemplo. Se ator botava aquela roupa, significava que ele queria
fazer o papel tal, e então todo mundo trabalhava com ele pra dar
aquilo. E mais: outro ator podia pegar um manto, uma capa e jogar
pra ele fazer o personagem, o que era uma sacanagem; mas tinha
gente que fazia isso [risos]. (HADDAD, 2009, p.196)
A título de informação completa, cabe citar aqui que o projeto desenvolvido pelo
grupo consistiu na sua totalidade, na realização de dez funções por cidades portuárias
dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, culminando com uma exposição:
Mostra fotográfica e vídeo documental na sede do grupo, chamada de “Inventário”. Este
projeto também fez parte das ações comemorativas de 25 anos do grupo fundado por
Luciano Wieser e Raquel Durigon.
O Público
1
espectador alguns pensamentos interrogativos: “mas onde estariam as tesouras dele?”. É
perceptível que seu conhecimento de mundo, e ampliação de novas possibilidades, já
adquiriu horizontes outros.
2
pragmaticamente a diferença existente entre os processos de produção de
significado e os de produção de sentido. (BONFITTO, 2009:93).
3
A Mákina e a Espacialidade
Sabemos que todo cenário, ou quase todo, deve ter função no espetáculo. No
teatro de rua este cenário é constituído não só pelo cenário afirmado pelo grupo como
também a cidade passa a ser cenário, o local onde se efetua a apresentação. Não importa
o tipo de espetáculo, seja ele em deslocamento, de invasão, de roda parada, arena ou de
outras formas inventivas de ocupação do espaço público, a cidade continuará sendo
parte do cenário. E esse cenário fixo possui outra função, pois a maioria dos edifícios
são departamentos de vendas, setores comerciais e bancários, com suas finalidades
outras e que devido a isso tem ocorrido grandes intempéries no fazer teatral de rua. Um
cerceamento do espaço público.
A cidade com seu complexo fluxo de ruas, praças, parques, largos e avenidas é
forçada a esquecer do humano que ali circula. Os espaços da cidade estão focados cada
vez mais para o comércio, para o consumo desenfreado, perdeu seu caráter de domínio
público de espaço e “patrimônio da coletividade”. Pois,
4
O “espetáculo/instalação” enquanto intervenção transgressora de longa duração
provoca durante nove horas uma nova ordem para a rua, reestrutura a dinâmica da
cidade, reformula o deslocamento do pedestre que por vezes se transforma em
espectador.
Camada estética
5
variados do agudo ao grave, como também no sistema de ampliação sonora dentro da
estrutura da “mákina”. O espaço urbano, centro da cidade neste caso, possui seus ruídos,
por exemplo, vê-se no entorno: um terminal de ônibus, muitas lojas com vendedores
anunciando em alto-falantes, grande circulação de automóveis no estacionamento ao
lado e o burburinho característico dos transeuntes no Largo Glênio Peres. A cidade está
viva e neste complexo sonora das ruas o espetáculo deve dialogar, sem perder suas
características de transgressão no cotidiano, com a cidade e seus cidadãos.
Referências
ALBERNAZ, Paula. Reflexões sobre o espaço público Atual. (in) Espaço e Cidade:
Conceitos e Leituras. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. (orgs.).
Rio de Janeiro: Editora 7 Letras. 2ª edição, 2007.
CARREIRA, André. Teatro de rua: (Brasil e Argentina nos anos 80): uma paixão no
asfalto. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário de Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 2010.
6
Sitios: (consultados em Junho de 2014)
www.grupodepernasproar.com.br
www.wikipédia/Steampunk
7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
A IRRUPÇÃO DO REAL NO ESPETÁCULO “OS PEQUENOS BURGUESES”
O teatro contemporâneo tem, cada vez mais, forçado os limites entre o campo da
ficção e da realidade, da representação e da apresentação, através de procedimentos que
se mostram como uma possível alternativa para atualizar o teatro no tempo presente. Tal
confronto do teatro com a realidade tem gerado inúmeros questionamentos e
possibilidades de pesquisa acerca dessas práticas que intentam envolver no simulacro
teatral elementos provenientes da realidade.
É a partir dessa perspectiva que analiso a construção e a experiência de
apresentação do espetáculo laboratorial “Os pequenos burgueses”4 processo
desenvolvido pelo grupo ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação
Artística5, coordenado pelo professor Dr. André Carreira, do qual participo enquanto
ator e pesquisador, além das práticas de atuação a partir de estados, pesquisa central em
andamento no grupo, que também foi o eixo da construção de “Os pequenos
burgueses”. Proponho-me aqui a investigar quais os elementos reais estão contidos
nesse procedimento de criação artística laboratorial, além de investigar as implicações
da presença do real em uma montagem cênica.
Utilizo, da acepção acima, o caráter de oposto a fictício, ou seja, para ser real, é
necessário estar antes de qualquer aspecto imaginativo, como uma ficção, por exemplo.
Para ser real, deve-se ser em materialidade. Além disso, destaco que, segundo o
Dicionário Básico de Filosofia, para ser real, deve-se ser um objeto passível de se obter
uma experiência. Essa acepção certamente pode ser relacionada ao conceito de
experiência de Bondía, o que reforça a ideia de Sánchez de que uma grande questão da
utilização do real no teatro se relaciona com o compartilhamento de uma realidade
passível de experiência por parte da audiência e também dos atores. Faço então uma
provocação: seria possível, então, afirmar que se o fazer teatral não acontece para o
espectador enquanto experiência, ele não deve ser chamado de real?
Encontro também, no Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, o termo realidade
cênica:
Pavis propõe que a realidade dos elementos teatrais está presente na maquinaria
teatral, “[...] único objeto que não tem valor de signo [...]” (PAVIS, 1996, p. 326), nos
objetos, atores e texto em suas materialidades, antes de qualquer agregação prévia de
sentido. Portanto, entendo que a presença do real em cena se instaura na materialidade,
antes de um esquema de construção de sentido anterior ao acontecimento cênico. A
partir dessa delimitação – real é aquilo que é concreto, passível de se obter uma
experiência, que não tem prévio valor de signo – posso enfim adentrar no processo de
“Os pequenos burgueses”.
REFERÊNCIAS:
1
Acadêmico do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa
Catarina, ator e pesquisador integrante do grupo ÁQIS desde 2013.
2
Apoio: CNPq
3
Professor do Departamento de Artes Cênicas e PPGT da Universidade do Estado de Santa Catarina.
4
O processo de montagem não previa ensaios: os atores decoraram suas falas, e em laboratório eram
desenvolvidos os estados que seriam experimentados em cena. Não há marcações: as cenas são compostas
no momento da própria encenação. Adaptação de Otten Severonoe do texto homônimo do dramaturgo
russo Máximo Gorki, seu primeiro texto teatral escrito em 1901.
5
O grupo de pesquisa ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística é coordenado
pelo Professor Doutor André Carreira e é formado por estudantes de graduação, mestrado e doutorado e
ex-estudantes. Desenvolve atualmente a pesquisa Laboratório Interpretação por Estados dentro do projeto
Ambiente e Interpretação Teatral.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Pode-se dizer que a performance art foi definida formalmente a partir de questões que apareciam já
em movimentos que datam o inicio do século XX, conectando-se à ideia de anti-arte ou com o que
Britta Wheeler chama de ideais de vanguarda, relacionando a produção artística com questões
sociais além de questionamentos à partir do próprio fazer artístico. Acredita-se que algumas das
questões trazidas pela performance art, dialogavam com invenções e indagações do campo da
tecnologia, sendo estas invenções bastante determinantes em modelar novas operações cotidianas,
alterando convenções e formas de produção artística ao mesmo tempo em que se alteram também
dinâmicas de produção de valor e formas de comercialização da arte. Sugiro aqui uma relação de
mútua influência, uma vez que a produção artística é também parte do entrelaçado de operações que
formam o espaço urbano constantemente.
Podemos dizer que em face desta dinâmica que inter-relaciona arte e contexto, o efeito social de
certas estruturações formais de trabalhos artísticos, pode ser constantemente reavaliado, uma vez
que estratégias propostas em um contexto cultural, podem ter efeito diverso em um diferente
contexto cultural. Embora a performance art tenha assumido diversas formas desde sua
determinação como tal, nos anos 70, todavia, algumas características continuam sendo
frequentemente associadas ao termo, como: a desmaterialização da obra de arte, o corpo como
mídia, a obra processo, dentre outras características que podem ser associadas à tentativas de
descomodificação da arte principalmente nos anos 60 e 70.
Robert Irwin é um dos artistas que escreveu sobre a site-especificidade, acreditando que a obra de
arte em lugares públicos deve partir de duas coordenadas primárias: "o ser e a circunstância",
devendo a obra estar 'em plena relação com o ambiente de onde retira sua razão de ser' (IRWIN em
STILES e SELZ, 1996, p. 572). Além de Irwin, diversos outros autores como Miwon Kwon ou
Gillian McIver descrevem desdobramentos do termo site-especificidade, partindo da relação que
estes estabelecem com o espaço sendo para Irwin, por exemplo, a obra site-dominant, reconhecida
pela técnica e conteúdo, baseando-se em princípios clássicos de permanência, ao passo que a arte
site-adjusted é feita em estúdio e eventualmente se adapta ao local para onde será transferida. A
palavra site-specific em si, para Irwin, refere-se a um tipo de arte que considera o site como fator
que define parâmetros para a realização da obra, inter-relacionando-a com seus arredores,
preservando, contudo um foco no trabalho do artista. A obra site-conditioned ou site-determined,
por sua vez, seria definida à partir do diálogo com o espaço, suas propriedades e níveis espaciais,
fazendo com que o processo de reconhecimento da obra rompa 'com as convenções da referência
abstrata de conteúdo, linhagem histórica, obra do artista, estilo, etc' (IRWIN, 1996, p. 572),
colocando o observador em contexto dando a ele responsabilidade de dar sentido à obra
(SCHIOCCHET 2011, p. 134). Gillian McIver traz o termo site-responsive, para tratar de algo que
parece ser semelhante à arte site-conditioned ou site-determined, descrita por Irwin, relacionando a
criação do trabalho, à relação destas obras com as diversas camadas espaciais de um determinado
espaço.
Na texto de Miwon Kwon `One Place after Another`, outros três desdobramentos do termo site-
specific são propostos, levando em consideração a dimensão do 'aqui-agora', a participação, os
atributos físicos do local, dentre outros fatores, evidenciando a impossibilidade de transposição de
uma obra idealizada nestas condições a uma outra espacialidade. A autora menciona o termo site-
oriented, onde os aspectos socio-culturais e políticos de um espaço se fazem mais relevantes que
atributos fisicos do local, sendo na articulação do discurso que a obra adquire propriedade. Miwon
cita também o termo arte site-functional, descrito por James Meyer, em sua obra 'The Functional
Site; or, The Transformation of Site Specificty'. Este tipo de obra mais do que caracterizar-se por
um espaço, é definido pelo deslocamento através de espacialidades, referindo-se também a formas
midiáticas e transmidiáticas. Este tipo de obra relaciona-se com noções de desmaterialização e
desterritorialização, fluxos e interatividade (MEYER 2000, p. 23-27)
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TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NO TEATRO DE RUA: ação comunicativa e
subjetividade no espaço público.
Michelle Nascimento Cabral1 (Bolsa Doutorado – CAPES; Orientador Antônio
Hohlfeldt; Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da FAMECOS;
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS).
Este breve relato da trajetória do teatro de rua visa apenas esclarecer que o
mesmo não é uma “arte nova”, que sempre esteve presente ao longo da história e das
relações do homem, sobretudo, nos momento de crise e perseguições, esta modalidade
teatral esteve em evidência, posicionando-se para além de suas raízes estéticas, como
também políticas, é o caso do Brasil no período ditatorial quando o teatro ganhou as
ruas para confrontar o golpe militar e reivindicar a liberdade de expressão. Esta
característica privilegiada do teatro de rua, em relação com o espaço da cidade é
instigante para nossas análises, no que se refere a pensar a relação público/imagem.
1
Michelle Nascimento Cabral (Michelle Cabral) é professora do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA, diretora teatral e pesquisadora de teatro.
1
Como se dá a relação a comunicação com o público passante e o espetáculo tendo nas
imagens ali representadas como a grande mediadora dessa ação comunicativa no espaço
público. Interessa-nos pensar como esta ação comunicativa se dá nas diferentes
narrativas (imagem/representação, encenação/discurso) e sobretudo esta interação com
o público da rua.
Esta força comunicativa, que encontramos no teatro de rua, é em muito
superior à interação que se dá na sala de espetáculo. A relação espetáculo e espectador
no teatro de sala, é mediada pelos rituais pré-instituídos entre ambos. Ou seja, há uma
preparação do público, desde sua saída de casa até sua chegada ao edifício teatral. Este
“contrato” estabelecido entre artistas e público, inclui a aceitação de um valor financeiro
(preço do ingresso) e do lugar onde se dará o espetáculo, como também está implícita a
aceitação do ritual da experiência artística, que compõe desde uma vestimenta de
“passeio” para o espectador, obedecer aos horários e o lugar na plateia, fazer silêncio e
aplaudir ao final.
2
um fim. Tendo em vista que o teatro é realizado de forma coletiva por seus fazedores e
também experienciado de forma coletiva por seu público.
3
É esta figurabilidade contida na encenação que possibilita ao público
receptor inserir-se no espetáculo e achar nele um espaço confortável para sua
manifestação pessoal. É neste jogo de mostrar, contar e sugerir, por meio de palavras e
ações visíveis, de silêncios e pausas em meio ao caos da agitação das ruas, que reside a
dinamicidade deste teatro.
Vamos adotar para nossa análise a descrição das cenas do espetáculo objeto
de nossas reflexões, seguida das análises e comentários. Desta forma faremos uma
decupagem do espetáculo, para isso diversas apresentações foram acompanhadas na
cidade de São Luís/MA e na cidade do Rio de Janeiro/RJ. vejamos momentos do
espetáculo A Cena é Pública, levado às ruas pelo Grupo de Teatro de Rua Teatro de
Operações do Rio de Janeiro.
Esta é uma cena de abertura, ela ambienta o público que algo vai se passar
ali, a intensão do grupo é provocar um estranhamento, a dança não é exatamente uma
dança, a música não é exatamente uma música, mas a cena avisa que “algo” está
acontecendo e isso gera curiosidade em quem passa por aquele lugar.
4
Em uma apresentação do grupo na cidade de Angra dos Reis na região da
Costa Verde no Rio de Janeiro, o ator ao realizar uma das primeiras marretadas, teve a
marreta presa no interior do aparelho e não conseguia retirá-la. Os esforços do ator que
chutava, empurrava e puxava a marreta com força, foram em vão e a marreta continuava
presa ao aparelho de televisão. Ao perceber o fato inusitado, o público começou a se
manifestar com murmúrios e risos percebendo o desespero do ator que precisava dar
continuidade à cena. Foi quando uma voz anônima se fez ouvir da multidão: A Globo é
mais forte! Tal frase desencadeou uma série de reações e manifestações no público que
além do riso, incluíam toda série de chacotas e comentários sobre o poder da mídia e da
televisão enquanto sistema.
5
do cotidiano de nossa urbanidade, se faz presente, quase que de forma “fantasmagórica”
em nossa memória coletiva. Didi-Huberman, ao falar da imagem crítica, nos esclarece:
6
No momento em que o indivíduo que até então se coloca como público
observador, toma em suas mãos uma das bolas de água e a atira contra o “político” em
cena, ele toma em suas mãos também a sua cidadania. Torna-se sujeito e atuante. Este
movimento simbólico de agir frente a situação apresentada o faz retomar por alguns
instantes o poder que lhe foi tirado de tomada de decisão. Assim, o público passa a
integrar também o quadro imagético proposto pela encenação.
Provocar o público a reagir contra os “políticos” ao final de tudo, sem perder a
fábula e a consciência de que fazemos teatro, é abrir por meio da encenação uma
mediação com o mundo no qual a arte e a vida habitam.
7
É nesta relação complexa que este tecido discursivo é composto também
pela memória histórica, mediada pelas relações na experienciação da arte teatral como
mediadora. Naquele tempo espaço – em meio à cidade e a cena – mediado por imagens,
este tecido será trançado e completado pelas experiências, memórias, críticas e
sensações do público espectador.
Bibliografia:
8
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Autora: Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer
Nunes; Instituição: UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina)
1
Filósofo holandês
2
Professor de disciplinas das artes do espetáculo na Universidade de Bolonha.
3
Professor de História da Arte / Cultura Visual no Departamento de Culturas Visuais da Goldsmiths
College University de Londres.
responsabilidades quanto à potência de acontecimento, pois esta seria emergente das
relações criadas no aqui-agora.
8
Filósofo Francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da
Universidade de Paris.
9
João Fiadeiro é bailarino, coreógrafo e pesquisador em dança, e Fernanda Eugénio é antropóloga, ambos
desenvolveram o MODO OPERATIVO AND, que é uma metodologia relacional de composição baseada em
uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum.
Eugénio e Fiadeiro coordenam os processos do AND Lab no Atelier Real, em Lisboa. Outras informações
essencial do artista passaria então à capacidade de compartilhar experiência e articular
possibilidades poéticas emergentes no jogo. E para que essa presença se transforme em
convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível, mas incluir a
abertura ao aqui-agora, às interferências do ambiente na ação proposta pelo artista
aparece como urgência nas práticas presenciais contemporâneas. Seria possível propor
relação sem uma aguçada percepção de si e abertura ao ambiente?
A prática do AND Lab de Eugénio e Fiadeiro resiste na seguinte questão: Como
criar condições para que a matéria apareça no acaso? Como preservar a potência e o devir
da matéria? O espaço do já saber, da interpretação, da representação, do sentido – que se
traduz por importância/valor, não contemplam as emergências, reforçam o “pressuposto
do saber para depois agir”. Desse modo, “abdicar das respostas, largar a obstinação por se
definir o que as coisas são, o que significam, o que querem dizer, o que representam”
[grifos dos autores] parece pertinente. (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 3). Algumas
possibilidades de re-existência surgem então na pausa, na inibição, na vontade de adiar o
fim, na possibilidade de identificar a potência de afeto no acidente. Para isso, um
refinamento da percepção é constantemente solicitado: ver o que a coisa tem, e não o que
é, aproveitar o inesperado – achar meios para que ele emerja –, aceitar, retribuir, re-parar,
são estímulos constantes nessa prática. Assim se constrói o ambiente comum:
sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <
http://andlabpt.blogspot.com.br/>.
Pois, então, se a presença e o afeto são aspectos das relações com o ambiente, se
há uma busca por um comum em favor da emergência de acontecimento nas relações que
se criam no espaço do encontro, ao artista caberia observar atentamente o que o cerca,
adaptar-se ao que lhe é apresentado, do modo que está, e agir conforme o ambiente lhe
solicita. Escuta? Sim. E novamente, disponibilidade, não?
Beatriz de Medeiros10 e seus Corpos Informáticos tratam da arte como
fuleiragem, chamam de composição o que fazem em uma conversa com a cidade na
perambulação, Medeiros e Albuquerque11 (2013, p. 25) dizem que não fazem
intervenção, nem urbana nem cirúrgica, pois estas “invadem, rasgam, rompem e
implantam o que na urbs, na internet ou no corpo não cabe”. A ação de intervir parece, de
fato, o oposto de fazer-com, e só ratifica a imposição da vontade individual. Acho que eu
já não consigo mais caber na ideia de intervir na cidade, de mutilá-la com minha presença
inflada e determinante. E você? O mundo já tem muitos donos, muita gente mandando e
impondo seus desejos particulares, o meu tem sido negociar, mesmo que eu ainda queira
coisas, venha armada de criatividade e expectativas. Corpos Informáticos compõe e
decompõe corpos na cidade. Não, não são defuntos, a cidade é um espaço vivo e o corpo
é um habitante/habitado por ele. Como diz Suely Rolnik (1996, p. 3): “cada indivíduo é
permanentemente habitado por fluxos do planeta inteiro”. Se é assim que somos, porque
a ilusão de domínio do mundo, de concentração do poder? Uma potência do corpo
coletivo haverá de emergir no encontro.
Não dá para ignorar esse movimento, não dá para fazer-de-conta que não somos
efeitos dos múltiplos encontros diários, e ao propormos uma relação com o outro
considerando o espaço como lugar de emergências compositivas, haveremos de ouvir,
negociar, dividir e mantermos atenção aos dados do ambiente. Às artes da presença
parece pertinente assumir as consequências de habitar esse terreno movediço. Que tal nos
movermos juntos?
Referências:
ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
10
Professora do curso de Artes da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de pesquisa Corpos
informáticos.
11
Artista colaboradora do Grupo de pesquisa Corpos informáticos.
MEDEIROS, Maria Beatriz de; ALBUQUERQUE, Natasha de. Composição urbana:
Surpreensão e fuleragem. Catálogo Palco Giratório – Rede SESC de intercâmbio e
difusão de artes cênicas. Circuito nacional 2013, Rio de Janeiro, SESC – Serviço Social
do Comércio, p. 24 – 35, 2013.
1. Introdução
O presente estudo apresenta o processo de criação da cenografia do espetáculo Babel
desenvolvido como projeto de extensão universitária na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, em Curitiba, no ano de 2013. O espetáculo foi resultado do trabalho de dois grupos de
extensão: o TUT (Grupo de Teatro da UTFPR), e o GDC (Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico). Ambos os grupos coordenados pelo professor Ismael Scheffler, autor do texto e
diretor do espetáculo. Inicialmente, é feita a contextualização dos grupos com enfoque na
composição multidisciplinar e no funcionamento do GDC. Após, são pontuados aspectos do
texto teatral, propostas da encenação e condições de produção. A seguir, são relatadas as
diferentes etapas da criação da cenografia: pesquisas de referência, definições conceituais,
croquis de estudos, definição da forma e dos materiais, detalhamento do projeto executivo e
acompanhamento da confecção e montagem. O artigo finaliza com considerações de avaliação
do processo criativo do ponto de vista pedagógico e artístico.
2. Surgimento do projeto
O Grupo de Desenvolvimento Cenográfico (GDC) foi criado em 2013 como um
programa de extensão universitária contemplado com recursos do edital ProExt (Programa de
Extensão Universitária) da Secretaria de Ensino Superior, do Ministério da Educação, e realizado
na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba, PR. Idealizado e coordenado pelo
professor Ismael Scheffler (da área de Teatro) com a colaboração das professoras MSc. Ivone de
Castro (Design), Dra. Maurini de Souza (Letras e Comunicação) e Dra. Adriana Wan Stadnik
(Educação Física) ; o GDC foi composto por 14 acadêmicos da UTFPR de seis cursos de
graduação (Arquitetura e Urbanismo, Comunicação Institucional, Design, Educação Física,
Engenharia Elétrica e Licenciatura em Letras) que, juntos, realizaram uma série de ações
relacionadas à cenografia e ao design cênico. A maioria dos integrantes não possuía nenhum tipo
de experiência com teatro, embora alguns alunos já houvessem atuado de forma amadora em
espetáculos.
No decorrer do ano de 2013 foram desenvolvidos três projetos principais: a criação e a
produção do espetáculo teatral Babel, juntamente com o Grupo de Teatro da UTFPR (TUT); a
criação e produção da exposição Babel: o processo de criação do espetáculo teatral (realizada
na Biblioteca Pública do Paraná, de 09 de dezembro de 2013 a 30 de janeiro de 2014, e na
UTFPR, de 30 de janeiro a 14 de março de 2014) e seu catálogo; e o Seminário de Design
Cênico: os elementos visuais e sonoros da cena, realizado também na UTFPR, entre 06 e 09 de
novembro de 2013, bem como a produção dos anais do evento.
O TUT (Grupo de Teatro da UTFPR) foi criado em 1972 e permanece em atividade
ininterrupta até hoje. Esse grupo organiza e desenvolve oficinas na área teatral, montagens de
espetáculos, atividades performáticas, laboratórios de pesquisa, seminários de estudos,
exposições pedagógicas e clube de cinema, incentivando o acesso da comunidade a espetáculos
teatrais. Ele tem coordenação do professor Ismael Scheffler desde 2005. Seu elenco é composto
por alunos da UTFPR, bem como de membros da comunidade externa. Embora seja um grupo de
teatro universitário amador, já contou eventualmente com a participação de atores profissionais1.
O TUT já desenvolveu cerca de 40 espetáculos.
Para o espetáculo Babel, os dois grupos trabalharam articuladamente: o TUT fornecendo
os recursos humanos para a composição do elenco e o GDC, para a criação dos demais
elementos artísticos do espetáculo e para a produção.
Dentro do GDC foram organizados diferentes subgrupos de produção que atendiam
demandas como design gráfico dos materiais de divulgação do espetáculo, assessoria de
comunicação e infraestrutura. Para a criação artística, os alunos foram divididos em cinco
subgrupos: cenografia, figurino, iluminação cênica, sonoplastia e maquiagem. Cada subgrupo era
responsável por trabalhar suas concepções e propostas em relação à direção artística do
espetáculo, assistindo ensaios das atrizes, estando em sintonia também com as possibilidades
financeiras e logísticas de produção2.
Os dois grupos seguiram percursos paralelos de trabalho tendo encontros que visavam
unificar a proposta e afinar a relação dos diferentes artistas envolvidos no processo de criação do
espetáculo. Alguns encontros envolviam atividades práticas corporais e espaciais, outros
corresponderam a ensaios do elenco tendo o GDC como observador e outros ainda tinham
função técnica de produção.
3. O texto dramático
O texto foi escrito por Ismael Scheffler em 2004 e revisado em 2013. O texto é marcado
pela mistura de gêneros literários (dramático, épico e lírico), em uma estrutura fragmentada na
qual as atrizes assumem a tarefa de narradoras e personagens, alternando-se temporalidades do
presente e do passado. O título da peça faz referência direta à torre de Babel bíblica, embora não
corresponda a uma encenação desta história.
A torre de Babel do livro de Gênesis da Bíblia é uma referência muito presente em nossa
sociedade, tomada recorrentemente como símbolo de confusão ou profusão de idiomas. Torres
podem ser tomadas como símbolo de vaidade, arrogância e de domínio de tecnologia, mas
também são por vezes consideradas como locais de solidão, de isolamento e de clausura. De
certa forma, este espetáculo poderia ser referido como um “drama espacial”. Afinal, segundo o
autor do texto (SCHEFFLER, 2013), foi a partir da escolha de uma forma arquitetônica (a torre)
que todo o texto e encenação foram construídos. O texto é constituído, significativamente, por
fragmentos literários, apropriando-se de poesias e trechos de monólogos teatrais de diversos
autores. Os fragmentos, dispostos como em uma colagem, aparecem por vezes de forma mais
contrastante no recorte de suas bordas, em outras vezes delicadamente colados de maneira que
seus contornos se fundiram com o texto como um todo (SCHEFFLER, 2013).
A Babel da peça é uma torre, uma máquina, uma cidade onde vivem cinco mulheres,
únicas sobreviventes de toda humanidade. A rotina de Babel é marcada pelo trabalho automático
e por uma agonia constante. A Rainha-Mãe lidera e orienta, do alto da torre-máquina, suas quatro
filhas, que trabalham incessantemente na construção e manutenção da estrutura que as mantém
unidas - Babel. O esforço contínuo é mantido pela esperança na promessa de que da grande
máquina Babel surgiria a nova humanidade. As habitantes de Babel, contudo, mal sabem as
razões que as levam a, de fato, permanecer trabalhando. Um dia, uma das filhas, em meio à sua
rotina vazia de trabalho ininterrupto, sobe ao alto da torre Babel atingindo um ponto onde não se
costumava ir. De repente, ela vê algo inesperado à distância. Depois daquela visão tudo mudou.
A possibilidade de existirem outros horizontes, outras Babéis, outras pessoas, irradiou às demais
habitantes de Babel despertando novos sentimentos e outras dúvidas.
5. Considerações finais
Para nós, enquanto alunas, a interdisciplinaridade do programa foi um grande desafio,
que nos forneceu muitas possibilidades. A convivência com um grupo de criação grande e muito
heterogêneo foi difícil, mas aprendemos a lidar com a individualidade de cada um e procuramos
tirar partido de tal fato.
As diferentes áreas de graduação que englobaram o projeto fizeram com que muitos
graduandos tivessem contato pela primeira vez com a área teatral, com o trabalho corporal e
afinassem seus sentidos e a percepção do espaço.
Outra condicionante do nosso percurso foi o tempo restrito que nos levou a prazos
apertados para cada etapa de produção com impacto direto na forma que condicionamos o
trabalho, tentando fazer o melhor possível e muitas vezes até mudando o rumo das decisões caso
algo não pudesse ser confeccionado a tempo ou a verba para tal processo fosse demasiadamente
demorada. Como lidávamos com dinheiro público, foi preciso desenvolver os projetos o mais
rápido possível para que o trâmite dos processos de licitação e contratação de serviços não
prejudicasse o cronograma para a estreia do espetáculo.
Esse projeto ofereceu uma oportunidade única de adaptação de nossos conhecimentos
específicos de cada área em uma produção artística. O desafio desta criação em uma
universidade tecnológica também deve ser levado em conta, pois na UTFPR não há cursos de
graduação na área de artes e os alunos que participaram do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico – GDC levaram o projeto em paralelo aos estudos e possíveis estágios. Alunos,
professores e servidores não estão muito acostumados com produções artísticas dentro da
universidade, embora tenham aumentado as iniciativas nos últimos anos, principalmente com o
surgimento de novos cursos de graduação como Licenciatura em Letras, Comunicação
Institucional, Design e Arquitetura e Urbanismo, um projeto desse porte ainda não havia sido
implementado no contexto da universidade.
Compreender como funcionam a criação e a produção de um espetáculo teatral desde sua
concepção à logística foi uma experiência extremamente enriquecedora. Além da vivência na
produção teatral, adquirimos grande aprendizado sobre o espaço cênico e consciência espacial.
Referências:
1
Elenco de Babel : Mariane Filomeno, Carol Pellegrini, Monique Rau, Uliana Kovalczuk e Sissa Oliveira e Patricia
Goulart, com assitência de direção de DiegoVon Ancken.
2
Cenografia: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira Martins; Figurinos:
Lívia Gariani, Lucas Queiroz Morais e Maria Lígia Freire; Maquiagem: Amanda Marciniak, Betina Bonilauri e
Mariana Garcia da Silva, com consultoria de Juliane Friedrich; Iluminação: Felipe Serenato Leal e Luiz Ricardo
Castro; Sonoplastia: Henrique Jakobi, Lua Volpi e Ismael Scheffler. Com a colaboração na produção de Diogo
Duda, Jaqueline Modesto e Dáphene Zandoná.
3
A execussão da cenografia foi feita por duas equipes: a) Villa Hauer Cultural, tendo o cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho encabeçando o trabalho em conjunto com os serralheiros Ademar Cesar Silva Brasileiro e
Adilson “Magrão” ; b) a Divisão de Obras e Manutenção de Imóveis da UTFPR, tendo como serralheiros Rafael
Gonçalves Soares e Ataíde Sanches.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.
JOHAN HUIZINGA: JOGO CULTURAL - RELAÇÕES COM OS ESTUDOS DAS
PERFORMANCES CULTURAIS.
Mestranda Onira de Ávila Pinheiro Tancrede; Orientador Prof. Dr. Eduardo Reinato;
Mestrado em Performances Culturais; UFG (Universidade Federal de Goiás)
Resumo
No presente artigo escrevo sobre a pesquisa em fase inicial que investiga as
manifestações culturais apresentadas através das características do jogo cultural elaboradas
por Johan Huizinga que se mostram nos contextos artístico, social e cultural e de que
forma se relacionam com os estudos das performances culturais. Busco nesta pesquisa um
trabalho teórico à luz da minha experiência com a prática tanto em sala de aula, com jogos
teatrais, brincadeiras e nas cirandas cantadas, como também em outras vivências educativas
do contexto cultural. A pesquisa irá contemplar de forma interdisciplinar as relações
metodológicas que competem uma pesquisa teórica, colaborando com os estudos
pretendidos durante a investigação que se inicia. Com essa pesquisa, poderei fazer algumas
considerações sobre a importância que os processos desenvolvidos pelos jogos têm em uma
determinada cultura e compreender o sentido lúdico dos jogos culturais. O que exige a
compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto estético com características
próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento. Assim, o
estudo em questão me permitirá não somente, refletir sobre as características dos jogos
culturais, como também trará benefício e contribuições para a área quanto ao tema
investigado.
1
Johan Huizinga ( 1872 – 1945) foi um professor e historiador, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e
o Renascimento.Destaca-se ainda a sua principal contribuição: o Homo Ludens, escrito por ele no ano de 1938.
2
Richard Schechner (1934 - ) é professor de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts daUniversidade
de Nova Iorque, editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists. Schechner é um dos iniciadores do programa de
Estudos da Performance e fundador do The Performance Group, um grupo de teatro experimental.
3
Milton Borah Singer (1912- 1994), antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte americano.
4
Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955 por Milton Borah Singer (1912- 1994) em estreito diálogo com as
construções teóricas de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo, comunicador e etnolinguista Robert
Redfield (1879 - 1958).
5
CAMARGO, Robson Corrêa de. Coordenador do mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais – Universidade federal de Goiás.
3
Percebemos, portanto, a partir dos conceitos aqui brevemente expostos, que o jogo
cultural e as performances culturais, sugerem ser um tema de pesquisa que articula diversas
áreas do conhecimento humano: experiência, memória, aspecto lúdico, estética, tradição e
teatralidade, entre outros. Em algumas leituras sobre jogo cultural como, por exemplo, os
estudos de Ricardo Japiassu (2001) sobre jogos tradicionais e o jogo teatral, e as
performances culturais, encontramos alguns aspectos comuns: a história do jogo como uma
história da cultura, as características e função do jogo em cada período histórico.
Esta articulação entre o jogo cultural e o teatro é visível no comentário de Japiassu
(2001) quando afirma ser o teatro um:
Sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um
alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais
bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um
príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou tigre. A criança fica literalmente
“transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a
acreditar que realmente é está ou aquela coisa, sem, contudo perder inteiramente
o sentido da “realidade habitual”. (p.17)
Huizinga (2007) enxerga o jogo como elemento da cultura humana. Aliás, ele
afirma ser o jogo anterior à cultura, visto que esta pressupõe a existência da sociedade
humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais. O autor acrescenta: “A
existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer
4
concepção do universo.” (Huizinga, 2007, p.32). Afinal, o objetivo inicial não é ensinar
apenas técnicas para formar atores, mas poder estimular a imaginação criativa do aluno,
que já se faz dramática desde a sua concepção, pois ser criativo é uma característica natural
do ser humano.
Ao falar sobre o processo criativo dos artistas, Japiassu (2007) explica: “não é a
formação de artistas, mas o domínio, a fluência, e a compreensão estética dessas complexas
formas humanas de expressão que movimentam processos afetivos, cognitivos e
psicomotores.” (p. 24). O jogo cultural ou jogo teatral não busca apenas a formação de
atores, mas os constantes exercícios da prática social, permitindo que se trabalhem melhor
em conjunto, se expressem com mais desenvoltura e, obviamente desenvolvam sua
consciência crítica. Processo criativo é o que podemos perceber bem na brincadeira cantada
a saber as “cirandas”, que é considerada uma atividade lúdica, rítmica e de expressão do
movimento corporal que integra nossa cultura. Assim quando a criança, jovem e adulto
brincar, estará movimentando o corpo, trabalhando ritmos e assim possibilitando-os
experimentar o som e cultivar a escuta. Privilegiando os aspectos culturais de forma
coletiva, trabalhando socialmente em grupos.
Entre as brincadeiras infantis, em outro estudo (MAFFIOLETTI, 2004, p.37) a
autora destaca que a brincadeira cantada é uma atividade cooperativa e coletiva em que
aprendemos a ser mais humanos, por gerar o sentimento de “estar com”. Por meio da
brincadeira cantada são criados vínculos sociais e é retratada a cultura do meio social. Nas
brincadeiras cantadas às crianças realizam movimentos sincronizados em que cada um é
fundamental para o sucesso do desempenho do grupo. A palavra ciranda tem origem
portuguesa e significa “peneira grossa” ou “joeiro”. Lembra o movimento rotativo das
peneiras ao serem manuseadas. A roda pode ser considerada uma das formas mais primitiva
de dançar e está presente em todos os povos com influência de várias culturas.
Outro ponto de interesse investigativo desta proposta é analisar e comparar as
interfaces dos jogos e as performances culturais: Como se articulam as diferentes
linguagens e as concepções estéticas inseridas nessas atividades?
Schechner (2006) apresenta oito tipos de situações onde as performances culturais
poderão ocorrer: “1) Na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo; 2) Nas
artes; 3) Nos esportes e outros entretenimentos populares; 4) nos negócios; 5) na
tecnologia; 6) No sexo; 7) Nos rituais – sagrados e seculares; 8) Em ação.” (SCHECHNER,
2006. p.33-34). Como podemos notar o conceito de performances culturais é amplo e
abarca várias situações que podem ser vivenciadas em separado ou entrecruzadas com
outras, em um campo multidisciplinar de conhecimento, onde as áreas se misturam e se
completam. Por exemplo, jogar em teatro implica colocar o aluno numa situação lúdica em
que ele precise solucionar um problema cênico. Existem regras as quais ele deve seguir e
objetivos que devem alcançar. Os alunos/jogadores interagem ora jogando, ora assistindo.
Desse modo, é possível desenvolver o senso crítico, além do senso estético, além do
aprendizado tornar-se prazeroso e independente.
Marvin Carlson (2009) tece considerações a respeito dessa relação quando afirma:
Assim como Huizinga (2007) não teve a pretensão de responder todas as questões
sobre o jogo cultural, por considerar que a cultura passa por constantes transformações,
Schechner (2006) também não teve a pretensão de definir as preposições usadas para
definir as performances culturais, uma vez que as mesmas apresentam conceitos bem
amplos. Como tal, não tenho a pretensão de definir nada, nem desmistificar tudo sobre o
jogo cultural e a performances culturais, pela totalidade imensa de informações acerca do
tema. Meu foco recai nos possíveis pontos de diálogos entre esses conceitos tão amplos e
desafiadores. É possível estabelecer relações entre os estudos sobre o jogo cultural de
Johan Huizinga com os estudos das performances culturais? Quais são? Como ocorrem?
Com essa pesquisa, poderemos fazer algumas considerações sobre a importância
que os processos desenvolvidos pelos jogos desenvolvem em uma determinada cultura e
compreender o sentido lúdico dos jogos culturais considerando minhas experiências
práticas. O que exige a compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto
estético com características próprias e como forma de abordagem relacionada à construção
do conhecimento. Assim, o estudo em questão me permitirá, não somente, refletir sobre
minha experiência com jogos teatrais como também, trará benefício e contribuições para a
área quanto ao tema investigado. Particularmente, a investigação trará benefícios para
minha prática docente ao permitir aprofundamentos teóricos, conceituais e procedimentais,
que me permitirão desdobramentos em outros estudos, no futuro.
A pesquisa busca estabelecer as possíveis relações dos estudos sobre o jogo cultural
de Johan Huizinga com os estudos das performances culturais; Refletir sobre o jogo
cultural e as performances culturais, Compreender o sentido aprender/entender o jogo
cultural; Identificar, compreender e analisar as características do jogo cultural - elaborados
por Johan Huizinga -, bem como as características das performances culturais; Reconhecer
as possíveis relações de similaridade e/ou diferenciações entre as propostas de Huizinga e
as performances culturais.
Esta pesquisa se fundamentará a partir das leituras feitas do livro “Homo Ludens”,
de Johan Huizinga (2007). Jogo, a que se refere Huizinga (2007) é jogo com regras que
constituem o fundamento do processo educacional e serve também como uma forma de
contribuição a criação da realidade cênica. Segundo Huizinga (2007) “o jogo sempre
representa algo”, e a partir desse argumento que busco as possíveis representações feitas
pelo jogo na vida do indivíduo.
As performances culturais alcançam quase todas as atividades humanas, conforme
propõe Schechner (2006) e suas definições têm foco em um ponto: vida cotidiana. O
intento de Schechner (2006) é justamente dar ênfase a amplitude que as performances
culturais têm em sua concepção. Entretanto, ele não coloca essa definição como absoluta ou
como a verdade, mas como algo que vem se constituindo assim, historicamente, como um
processo. Enfim, Schechner (2006) por ser um autor que vem do teatro, contribui de
sobremaneira a esta investigação. Associo de maneira análoga a definição de Schechner
(2006) sobre “comportamento restaurado” na performance, com as brincadeiras, o jogo
cultural, e como tudo que de uma forma ou outra nos transforma e nos faz reviver uma
experiência. Não obstante sejamos a mesma pessoa após um jogo, ainda assim, nos
sentimos transformados, vivendo independentemente de um mundo preestabelecido. O que
pode ser reconhecido nesta definição de Schechner (2006):
6
Referências
Referências Bibliográficas
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Performance e Ciências Sociais.
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teatro: O Percevejo, UNIRIO, Ano 11, número 12, 2006.
MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerquer . Brincadeiras cantadas. Revista Pátio Educação
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7
Referências virtuais
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Metodologia de Análise. http://www.performancesculturais.emac.ufg.br/pages/38092.
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Levantamento Bibliográfico
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CAMARGO, R.; CAPEL, H.; REINATO, E. Performances Culturais. São Paulo: Editora Hucitec,
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CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. 2ª. Edição. São Paulo:
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COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro & Pensamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
________. [1968] Jogo, teatro e pensamento - As bases intelectuais do teatro na educação.
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KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Editora
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra,
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SPOLIN, Viola. [1963] Improvisação para o teatro. Tradução: Ingrid Dormien Koudela e
Eduardo José de Almeida Amos. 4ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Faz quase duzentos anos que o termo encenação existe com o sentido que lhe
atribuímos hoje e, em 18801 – com o início da era dos encenadores –, irrompe-se a crise
do drama. Drama: vocábulo que serve tanto para descrever a obra literária, quanto a sua
representação cênica, paralelo que não representa uma coincidência, visto que “o drama,
como forma literária, é uma obra destinada à cena e, de modo semelhante, a maioria dos
espetáculos teatrais parte de obras literárias” (WILLIAMS, 2010, p. 215). Se, em termos
etimológicos, os dois conceitos habitam a mesma forma, a prática evidencia uma intensa
tensão entre ambas as instâncias, sobretudo a partir de 1970, quando teria começado o
que Hans-Thies Lehmann batizou de teatro pós-dramático, em uma obra que parte da
hipótese de que
ocorreu uma profunda ruptura no modo de pensar e fazer teatro. Algo que já
estava anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX – a
valorização da autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de
“textocentrismo” – se desenvolve mais radicalmente, a ponto de assumir um
sentido modelar como contraponto da arte do processo de totalização da
indústria cultural. Desse modo, a tendência “pós-dramática” seria uma
novidade histórica não apenas por razões formais, mas também pela negação
estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática
(CARVALHO in LEHMANN2, 2007, p. 7)
5
Com “brilhante teórico”, Sarrazac refere-se ao Lehmann, no artigo “A reprise (resposta ao pós-
dramático)”, disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-
dramatico/ Acessado em: 06/07/2014.
6
Declaração feita durante entrevista concedida à BBC, para matéria sobre a reestreia do espetáculo no
Globe Theatre, em Londres, que foi publicada no site do jornal Estadão, em 20/04/2012. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-galpao-reestreia-romeu-e-julieta-em-londres,863556
Acessado em: 06/07/2014.
A figura do dramaturg
Considerações finais
Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está
em vias de apagar-se. Ela deixa progressivamente espaço para a ideia de uma
polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem
para o fazer teatral. [...] É a representação teatral como um jogo entre as
práticas irredutíveis de um ao outro e, todavia, conjugadas como momento
onde eles se confrontam e questionam, como combate mútuo no qual o
espectador é, no final das contas, o juiz (DORT apud SARRAZAC, 2007).
7
Cidade do interior mineiro, em cuja praça central o grupo Galpão realizou ensaios de Romeu e Julieta.
porque há algo de universal no legado de Shakespeare que o mantém vivo tanto na
Inglaterra do século XVI, quanto no interior mineiro do século XXI. Como disse Peter
Brook, o Bardo é como um carvão, cuja real qualidade só se contempla diante do fogo
ateado pela cena.
Referências bibliográficas
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Commercio, Rio de Janeiro, 20 de abril de 2014.
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São Paulo, 20 de abril de 2012.
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LOPES, Rogério. A trajetória de Romeu e Julieta: do teatro inglês renascentista ao
teatro popular brasileiro. Artcultura, v. 11, n. 19, 2010.
MENEZES, Maria Eugênia. Teórico Jean-Pierre Sarrazac defende sobrevivência do
teatro. Estadão, São Paulo, 14 de março de 2012.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013
QUADROS, Magali Helena de. Buscando compreender a função de dramaturgista.
Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Teatro, 2007.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Sala Preta, v. 13, n. 1, p. 56-70,
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____________________. A reprise (resposta ao pós-dramático). Trad. Humberto
Giancristofaro. Questão de Crítica: Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais,
mar. 2010.
____________________. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Editora
Cosac Naify, 2013.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Paulo Eduardo Pinheiro Rosa (CAPES; Mestrado); Orientadora: Sandra Meyer Nunes;
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
INTRODUÇÃO
De acordo com Patrice Pavis (2008, p. 113-114) em seu livro “Dicionário de Teatro”,
a palavra Dramaturgia tem origem no Grego, que significa compor um drama, e essa
significação sofre uma evolução do sentido original e clássico.
Assim, todas as escolhas da cena (atuação, iluminação, espaço, entre outros) podem
ser encaradas como dramaturgia e as mesmas devem estar consoantes com a direção
proposta.
A busca de uma nova percepção do público quanto à obra (historicamente) levou à
alterações no espaço de encenação, disposição do público, propostas de novos locais, etc.
“Assim como Grotowski e Artaud - para citar os mais representativos -, outros encenadores
que utilizam a tradicional estrutura italiana passam a questionar os mecanismos de recepção
nesse espaço” (REBOUÇAS, 2009, p. 127). A partir disso, a experimentação em espaços não
convencionais - como igrejas, manicônios e outros - se fez presente, mas sem deixar de
configurar uma experiência teatral.
Mas como validar essas escolhas? Não existe na arte uma lei geral, capaz de orientar
todas as escolhas referentes à obra e, portanto, é irreal a existência de um procedimento
correto a ser seguido. O decurso dessas escolhas se dará justamente durante o processo
artístico, sendo o mesmo, definidor de uma regra individual e própria, que não possibilita ser
prevista anteriormente. A obra é a lei de seu fim, governando e regendo o processo criativo.
Cabe ao artista, o lugar paradoxal de seguidor e autor, pois a obra é autônoma ao tempo em
que é regida pelo artista; é, simultaneamente, lei e resultado da sua formação, tendo como
critério o êxito. Assim, a obra prevalece quando resulta, tal e qual, deveria ser. (PAREYSON,
1989).
SOBRE O TEMPO
Dizer, em Godot, quanto tempo se passou desde a última situação beira o impossível.
Os indicativos temporais são cíclicos suspendendo a noção do tempo tal e qual conhecemos.
O segundo ato repete a estrutura do primeiro nos deixando sem conseguir afirmar se é o dia
posterior ou não. As tentativa de localizar qualquer evento no tempo são inúteis. “Embora
pudéssemos localizar o que vem antes e o que vem depois dentro do mesmo dia, já não
saberíamos se aquela ação se refere a um antes e um depois, pois todos os dias seriam o
mesmo” (SCHERER, 2003, p. 61). A vontade de montar Beckett nasce desse universo,
construído à espera de Godot. Da discussão suscitada do tempo e da espera. Da possibilidade
de relacionar, através das situações e relações criadas no texto, nosso espectador com o
tempo.
A relativade irá nos dizer que a condição do tempo não é absoluta e poderá variar de
acordo com o observador. O tempo então se une ao espaço formando o tecido do espaço-
tempo que se deforma e se adequa a cada situação.
Assim, poderíamos arriscar dizer que o passar de cinco minutos não são iguais para
duas pessoas distintas. Outra possível relação, é a de que o fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
Peter Pál Pelbart, em seu estudo sobre a noção de tempo para Deleuze, nos apresenta a
noção de “Cadeia de Presentes” ao falar da temporalização de imagens para o cinema.
Dizendo que o presente, não se restringe ao momento em que aparece por ele fazer parte de
um todo que o representa; mostra coexistir passado (que não seria um presente antigo),
presente e futuro (que não é um presente por vir). (PELBART, 2010). O fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
A arte, no entanto, possui um tempo próprio, original, que ultrapassa suas dimensões,
um tempo “complicado”, idêntico à eternidade. Sendo que a eternidade não é o mesmo que a
ausência de mudanças ou uma existência ilimitada, mas a própria essência complicada do
tempo. (DELEUZE, 1987, apud PELBART, 2010).1
Aproveitando essa característica do tempo na arte, ao colocar nosso espectador em
espera possibilitamos à ele se relacionar com essa característica do tempo. Esse tempo fluido,
mutante e particular.
“Para o teatro, a questão é sempre o tempo vivido, a vivência temporal que atores e
espectadores partilham e que evidentemente não é mensurável com exatidão, mas apenas
experimentável.” (LEHMANN, 2007, p. 287) Pretendendo criar nessa encenação, um espaço
de suspensão do tempo, retirando do público, as noções de elipses convencionais de tempo,
como exemplificado com a árvore presente no texto base.
Renato Ferracini vai trazer essa tempo experimentável em outros termos, ao dizer que
os elementos de cena confluem para criar um espaço-tempo outro; “essa relação turbulenta,
geneticamente dinâmica, gera uma bolha lírico-poética altamente complexa, que se
movimenta em continuum e se torna independente do espaço-tempo cotidiano, atualizando,
poderíamos dizer, um espaço-tempo poético” (2006)
PRODUZINDO PRESENÇA
Ou descrita como o “jogo alquimista” onde “o corpo humano comum, com a sua
experiência comum se transforma em puro ouro de presença dramática através de um ator que
facilita o fluxo de energia, um ‘jogo de oposições’ que negocia as ‘diferenças de potencial’.”2
(LEABHART, 2003, p. 398). Luís Otávio Burnier apresenta o conceito de “corporeidade”,
que seria a forma como essa energia “toma corpo” intervindo no espaço e no tempo, sem, no
entanto, representar o aspecto puramente físico dessa ação, antecedendo-a (BURNIER, 2009,
p. 55).
Mas bastaria o corpo do ator como veiculação dessa presença? Como poderia o
controle dessa energia ser o suficiente para produzir momentos de presença numa cultura de
sentido? Ora, se “todas as culturas e objetos culturais podem ser analisados como
configurações de efeitos de sentido e de efeitos presença, embora suas diferentes semânticas
autodescritivas acentuem com frequência apenas um ou outro aspecto” e se “o tempo é a
dimensão primordial em qualquer cultura de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 41; 110).
WAITING FOR…
1
DELEUZE, G. Proust et les signes, 7a ed., Paris: PUF, 1986.
2
Tradução minha. “le corps humain ordinaire, avec ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
2
«jeu
Tradução
d’oppositions»
minha. “le
quicorps
négocie
humain
les «différences
ordinaire, avec
de potentiel».”
ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
«jeu d’oppositions» qui négocie les «différences de potentiel».”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ENCENAÇÃO DESTERRITORIALIZADA: A PERFORMATIVIDADE COMO
GERADORA DE ESPAÇOS NÃO IDENTIFICÁVEIS NA CENA
CONTEMPORÂNEA
1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Concessão de bolsa auxílio evento por parte da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
3
Pesquisa de Mestrado em andamento intitulada: “A performatividade como elemento desterritorializador na
encenação contemporânea”.
4
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 200.
O que irá sustentar o estudo de Féral é a ideia de que um espetáculo se configura num
jogo de relação e/ou tensão entre teatralidade e performatividade, pois para a pesquisadora a
teatralidade é o que permite ao espectador reconhecer, por meio de convenções e referências
socioculturais, que está diante de uma ficção, já a performatividade, intrincada com os
elementos da performance, tem a intenção de desarticular esses “acordos” prévios, colocando
o espectador, mesmo que por instantes, dentro da ação.
Em nossa pesquisa propomos pensar a encenação como um território já consolidado
no que compete à pesquisa e a prática teatral contemporânea, porém entendendo o território
tomando de empréstimo a definição filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari:
Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em
muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência
suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos
desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar
efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma
função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento
5
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 122.
6
SILVA, Antônio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo
colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo 2008, p. 198.
constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro
agenciamento.7
É justamente aqui que se apresenta a principal proposta de nossa pesquisa, qual seja,
pensar a performatividade como um elemento desterritorializador na encenação
contemporânea. Ao considerarmos a encenação como um território, no qual são agenciados
diversos elementos cênicos que constituem um enunciado, a proposta aqui é a de pensar como
a performatividade desterritorializa a encenação interferindo na composição deste enunciado,
ou ainda, reterritorializando este a partir deste novo elemento.
Podemos enxergar esta desterritorialização numa passagem do ensaio de Josette Féral,
no qual a pesquisadora fala sobre a descrição dos fatos e sobre a ação do performer no
espetáculo performativo, e sugere que estas sejam agentes de desconstrução dos códigos da
encenação e que, portanto:
Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis,
fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de
uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre
a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer
instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a
linguagem.8
Este teatro, que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi
definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,
7
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 133.
8
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 203.
9
Ibid. p. 208/209, nota de roda pé número 29.
publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria
mais justo chamar este teatro de 'performativo', pois a noção de performatividade
está no centro de seu funcionamento 10.
De modo geral, pode-se dizer que o teatro dramático precisa privilegiar um espaço
“mediano”. O espaço imenso e o espaço muito íntimo tendem a se tornar perigosos
para o drama. Tanto num caso quanto no outro a estrutura do espelhamento deixa de
existir ou fica em perigo, na medida em que o quadro cênico funciona como um
espelho que permite ao mundo homogêneo do observador reconhecer-se no mundo
fechado do drama. Para que haja essa equivalência e esse espelhamento – ainda que
eles sejam ilusórios ou ideológicos –, são necessários o isolamento, a independência
e a identidade própria de ambos os mundos. O processo de identificação depende
desse isolamento para que haja certeza das linhas divisórias entre a emissão e
recepção dos signos 11.
Diante desta consideração podemos concluir que no teatro dramático há uma grande
necessidade de se instituir processos de identificação na composição do enunciado cênico,
uma vez que sejam estes processos que permitirão o espectador estabelecer este espelhamento
e logo se reconhecer com aquilo que é contado no palco. Nesse sentido a produção de
espacialidade por parte do teatro dramático estará fortemente vinculado a uma produção de
um espaço reconhecível ao espectador, no qual este possa realizar o recorte do que é narrado
juntamente com o espaço praticado, criando-se assim a noção de unidade na composição da
encenação.
Ainda nesse ponto acerca da identificação provocado pelo drama, achamos pertinente
traça uma breve relação com a noção de teatralidade. Segundo Féral a teatralidade é
construída a partir do olhar do observador que, recorta aquilo que é visto e transforma-o em
um processo semiótico de representação. A autora utiliza o termo “framed theatrical space12”
– que podemos traduzir como “espaço teatral enquadrado ou emoldurado – , que se refere
justamente ao ato do observador de recortar e emoldurar o que é visto e traçar desenhos
ficcionais, a partir dos códigos e convenções socioculturais, evidenciando os acordos prévios
presentes na teatralidade, como já apresentamos antes. Portanto a construção de um espaço
reconhecível por parte do drama vem justamente mediar, ou facilitar, este emoldurar por parte
do espectador, permitindo com que a representação cênica aconteça de maneira, mais ou
menos, linear e homogênea.
10
Ibid. p.197.
11
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.p. 265.
12
FÉRAL, Josette. Theatricality: The Specificity of Theatrical Language. Substance, issue98/99, v.31,n 2 e 3,
2002. p. 98.
Ao corroborarmos com a ideia de teatro performativo proposta por Féral, podemos
considerar que se a teatralidade propicia justamente o reconhecimento e a identificação por
parte do espectador, a performatividade produzirá um efeito reverso, pois sua utilização na
encenação aparece justamente para desviar esta identificação traçando lacunas na composição
do enunciado cênico.
Para autora a noção de performatividade está atrelada ao “fazer”, e ao mostrar o que se
“faz em cena”, fugindo a representação mimética e se aproximando do que podemos pensar
como “real”. Nesse sentido o performer irá causar rupturas nesse processo de identificação
por parte do espetador, pois esta ênfase no fazer em detrimento do representar produz
instabilidades na linearidade e na compreensão homogênea da produção de sentido, que
podemos considerar como um jogo entre “produção de sentido” e “produção de presença”.
13
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São
Paulo, nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 207.
“A escrita cênica não é aí mais hierárquica e ordenada ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento
[événement], reconhece o risco. Mais que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda
mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena14 [...]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala
Preta, São Paulo, nº 8, 2008. p. 197-210. Tradução: Lígia Borges.
ROUBINE, Jean-Jaques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1998.
14
Ibid. p.204.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
1
graduação no tom da voz e escolha de palavras, e acompanhado de
gesticulação eloqüente. Não raro tivemos ocasião de admirar esse talento,
mesmo no nossos tocadores da tropa quando alguns contavam anedotas com
inimitável seriedade cômica, e os mais escutavam com satisfação ou
adubavam as estorietas com observações e piadas sutis. (SPIX;MARTIUS,
1981 apud PEREIRA, 1996, p. 46).
2
poético, onde interagem gestos corporais, vocais, presença de sujeitos em contato e
comunicação, num emaranhado de ações capazes de criar laços e proporcionar
experiências.
Sentir a Voz, Ouvir o Gesto: pela sensível compreensão da Performance
3
ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às circunstâncias
pessoais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003, p. 27)
4
Poesia e teatralidade nas Performances Narrativas do Vale.
5
capacidade acaba por revelar a arte popular que provém da experiência
humana. (BENJAMIN, 1994, p. 200).
Se a gente não tivê motivo pra rir nessa vida, de quê que adianta, minino?
Pensa só procê vê, num é? uma veia pobre que nem Dona Lió, fazia era todo
mundo rir. Morreu com a boca escancarada, atolada, encascaiada, cheia de
dente e feliz, paricêno que tinha comido fartura de rico. E eu que tô vivo,
num vô ri das palhaçada dela? Vô, uai. Eu que convivi com ela sei que ela
agora deve ta é rindo tamém, muié de alma boa, era safada mas era de alma
boa. Eu aprendi muito com ela, prendizage de vida mêrmo. Igual, contá caso
e fazê os outros feliz era cum ela mesmo. As história dela a gente multiplica
dez vezes mais né, pra fazê mais graça, né?E povo larga o que tivê fazêno
pra saber, né? As pessoa gosta de orvi, U que é bunito de orvi, num é não?
(risos).8
6
Ao passo em que apresenta e descreve a personalidade de Dona Liopordina,
Adão do Nelo compartilha dos valores interiorizados em contato com a personagem
quando viva e pertencente ao seu círculo social. Para além de expor as marcas de sua
experiência, o narrador pretende através da história alertar os ouvintes para a
necessidade de rir-se da vida, de gozar os momentos de alegria enquanto vivem e reflete
o contraste da senhora, que vivendo no imaginário do município pelo reconhecimento
de suas façanhas e espertezas, tornou-se igualmente digna de respeito e responsabilidade
por boa parte da “prendizage (aprendizagem) de vida” do feirante, que relembra e
transmite suas histórias.
Apontando a necessidade de propiciar aos outros o mesmo teor
transformador vivenciado por ele (quando junto a protagonista de suas histórias) o
narrador intenta “restaurar” o comportamento vivo na memória através das ações de seu
próprio corpo, demonstrando em gestos e postulações da voz as características da velha
amiga falecida. O narrador oferece em sua presença a performance que julga representar
sua lembrança, claro, interpretações que agora estão sujeitas à repetição reformulada,
criada e condicionada na ação de um outro corpo, uma nova intenção. Ora, o material
que inspira a ação do narrador (lembrança do comportamento da amiga falecida) é uma
referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da forma e conteúdo da
Performance narrativa (comportamento original, se é que assim podemos chamá-lo) é
desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela performance do narrador,
tornando efetiva a comunicação entre performer e ouvintes/observadores como
experiência poética.
Esse caráter de constante atualização da experiência interiorizada
assemelha-se à concepção do valor poético da oralidade descrito por ZUMTHOR
(1997): “uma poesia oral que é ao mesmo tempo visível e audível e, em performance,
atualiza a obra. Essa atualização sugere sempre em movência, uma instabilidade radical
do poema” (ZUMTHOR, 1997, p. 264). Uma experiência que reside no contato com a
voz e presença que se transforma no transcorrer de uma nova contação, um novo dedo-
de-prosa, uma nova roda de causos.
Assim sendo, a voz só pode ser capturada no movimento entre o texto
(falado) e a obra (narrativa oral), na relação entre o que é palavra e sua reutilização
orada. Paul Zumthor, atento ao compromisso da experiência entre sujeitos que
vivenciam enquanto agentes ou espectadores da performance narrativa afirma que, “o
homem também vive a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer que a linguagem
se torna verdadeiramente signo das coisas e ao mesmo tempo, significante dela mesma”
(ZUMTHOR, 1993, p. 74).
Ainda sobre o caráter poético nas performances narrativas, Zumthor afirma
que:
7
Adão do Nelo, valendo-se do lirismo, da repetição, da rima e da função
fática da linguagem oral (“num é?”, “né”), recursos que literariamente já garantiriam a
forma poética da comunicação do narrador, reside nessa oralidade uma característica
poética, como descreve Paul Zumthor (2000) na citação acima, que excede o que é
reconhecido por poesia de acordo com a literatura. Está além do conteúdo e além da
forma, a poesia na experiência da performance narrativa reside na capacidade de
proporcionar o prazer e deleite, adentrar as emoções dos envolvidos no evento narrativo
e sobretudo, promover a reflexão através do contato, a transformação a partir das
diferentes interpretações e sensações da experiência.
Trata-se do que Merleau-Ponty (1991, p.79) notou, ao afirmar que “as
palavras, os traços, as cores que me exprimem saem de mim como os meus gestos, são
me arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer”. O
corpo, voz e ação do narrador pode significar para além de sua existência, e de sua
confiança no real, e assim, inserir um sentido àquilo que o convém como função
sensível, poética da comunicação:
8
reinventa inaugurando sentidos, representando lembranças, objetos, seres e sensações ao
tomar a iniciativa de agir e produzir marcas nas pessoas e no mundo. Portanto, está
atrelado ao esforço da conquista de um novo, e não à renúncia de uma circunstância,
contexto, na absroção dos espaços que compõem a troca e reafirmação dos sujeitos à
deriva de suas próprias intenções à cerca do que é visto, a partir de quem o faz, através
da integridade da sedução de quem admira o que lhe é posto à mostra. E se averso ao
encontro, ou passível de envolvimento, a teatralidade encontra-se na interseção do
contato, na disposição de fazer-se pertencente ao outro, ao evidente, ao demasiado
humano refeito. Tem aí, a performance narrativa no Jequitinhonha um material vasto de
produção da experiência poética, bem como de associação ao caráter reflexivo do fazer
teatral: O apreço e prazer dos habitantes dessa região por narrar e reinventar suas
próprias histórias, e a dos outros.
9
NOTAS
1
Dados da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). Janeiro de 2013.
2
Intentando dinamizar a leitura e compreensão do leitor, em determinados momentos deste texto
utilizarei apenas a palavra Vale, iniciada com letra maiúscula, referindo-me exclusivamente ao Vale do
Jequitinhonha/MG.
3
O Arraial do Tijuco (atual cidade de Diamantina) corresponde à região de maior expressão mineradora
do país durante o século XVII e constitui-se como o propulsor da extensão populacional de povoamento
do Vale do Jequitinhonha. (PEREIRA, 1996).
4
As considerações acerca do olhar lançado para performance narrativa segundo seu caráter poético e
teatral, serão explanadas no próximo tópico deste estudo.
5
Adão do Nelo (79 anos, feirante narrador de histórias, sujeito observado por essa pesquisa). Em apreço
à experiência vivida quando imerso no evento narrativo participado, por mim, pesquisador, todas as falas
do feirante transcritas neste artigo mantiveram também na ortografia a identificação fonética da voz
registrada via gravador sonoro. Depoimento cedido em dezembro de 2012, na cidade de
Itamarandiba/MG.
6
MOSTAÇO , Edélcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. Revista Da pesquisa da UDESC.
Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf>.
Acessado em 04 de julho de 2014.
7
Pesquisa de campo ainda em andamento com intuito para desenvolvimento da dissertação:
“Performatividade e Teatralidade: Um olhar estético sobre a performance narrativa de feirantes rurais do
Vale do Jequitinhonha, MG., requisito para obtenção do título mestre em artes cênicas pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
8
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
9
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONDÍA, Jorge Larrosa (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. São
Paulo, Revista Brasileira de Educação. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação, jan/abril, nº19. pp. 20-28.
CARLSON, Marvin (2009). Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores
Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG.
ZUMTHOR, Paul (2010). Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG.
11
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPECIALIDADES
Resumo
Vários elementos compõem uma peça teatral (música, luz, cenário, etc). Como
qualquer outra tecnologia utilizada na construção destes, novas tecnologias são inseridas para
o auxílio no enriquecimento dos sentidos, tais como tecnologias computacionais. Vendo o uso
das tecnologias como algo comum nas artes, torna-se natural visualizar uma cena composta
por robôs, virtuais ou mecatrônicos, com um certo nível de Inteligência Artificial (IA),
interagindo com atores. Um exemplo disso é o que define-se como Persona Ex Machina, ou
PEM, uma proposta de IA com enfoque no uso em espetáculos teatrais. Esta é baseada em
certos princípios: autonomia: age por si, não controlada por humanos; percepção: percebe
seu ambiente via sensores; ação: age em seu ambiente; interação: interage com os demais
atores; roteiro: segue roteiro estipulado para o espetáculo teatral; improvisação: pode
improvisar, se necessário; interpretação: pode seguir as mudanças de humor de seu
personagem conforme o roteiro. Uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que
siga os princípios supracitados. No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes
podem se encaixar nos princípios citados e serem utilizados em um espetáculo teatral tal como
uma PEM. Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Interação Humano-computador; Espetáculo-
laboratório.
1. Introdução
Entre os contextos da aplicabilidade de diferentes recursos e elementos para compor
uma peça teatral, incluindo música, luz, cenários, figurino, ou mesmo os próprios atores,
novas ideias sempre acabam por surgir conforme a evolução tecnológica. Essas servem como
importantes peças de inserção à cena para auxiliar no enriquecimento dos sentidos do público.
Certamente é de grande importância a análise da utilização desses novos recursos junto à
quem produz e também à quem presencia tais espetáculos. Todos esses elementos de cena não
podem ser vistos apenas como acessórios secundários, mas também como elementos tão
importantes quanto os atores, conforme a linha de raciocínio de Kantor (MORETTI, 2008).
Já há alguns anos, recursos diretamente ligados ao conjunto da mecânica, eletrônica e
tecnologias computacionais também têm sido utilizadas na composição de espetáculos teatrais,
performances e dança, e muito já foi discutido sobre esses. Entretanto, como tais elementos
têm tido uma crescente evolução, ainda há muito o que se experimentar e discutir (ABRAÃO,
2007). Entretanto, não se limita aqui apenas a discussão sobre a utilização de datashows,
iluminação automatizada, sonorização tridimensional, pernas e braços mecânicos, etc., na
forma de elementos secundários, mas a utilização de robôs em cena. Discute-se aqui robôs
com certa autonomia sobre a cena, composto por elementos de Inteligência Artificial, com
tanta importância no contexto geral quanto um ator.
É evidente que a forma de utilização de robôs em cena, com ou sem o provimento de
técnicas e algoritmos de Inteligência Artificial, é bastante ampla e que a limitação da maneira
de utilização desses recursos não pode ser efetivada. Contudo, para estudo e análise, alguns
caminhos podem ser norteados para propostas de discussões sobre tal aplicabilidade.
Neste contexto, o presente trabalho se apóia no conceito de Persona Ex Machina
(PEM), apresentado por Zambiasi e Pinheiro (2013). Uma PEM pode ser classificada como
um elemento de cena tão importante quanto um ator, mas que permeia sua ação com base na
artificialidade, ou seja, pode ser um ator virtual apresentado em uma tela (televisão, datashow,
etc) ou por agentes robóticos interagindo em um ambiente real. A utilização de tais recursos no
teatro, performance e dança não é nova e já vem sido executados em alguns trabalhos.
O termo Persona Ex Machina utilizado aqui provém do Latim Pessoa
da Máquina e é inspirado no Deus Ex Machina, o “Deus descido da
máquina”, dispositivo mecânico utilizado na Antiga Grécia
(ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
O Deus Ex Machina, segundo Berthold (2004), “vinha em auxílio do poeta quando este
precisava resolver um conflito humano aparentemente insolúvel”. Já, no caso desse trabalho, a
PEM se refere à um ser artificial que surge como mais um ator em cena.
Entretanto, não é qualquer robô definido como PEM, Zambiasi e Pinheiro (2013)
apresentaram um conjunto de princípios para definir tal elemento espetacular. Os princípios
são: autonomia, percepção, ação, interação, roteiro, improvisação e interpretação. Em tempo,
uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que siga os princípios supracitados.
No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes podem se encaixar nos princípios
citados e podem ser utilizados em um espetáculo teatral tal como uma PEM.
Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Um robô que não responde e não age é apenas mais um elemento na cena como
qualquer outro. Por isso o princípio da Ação é citado para uma PEM. Mesmo que tal interação
seja uma resposta textual em uma tela ou uma fala, ainda é uma ação. Toda a PEM deve poder
responder ao seu meio conforme as informações de percepção recebidas por seus sensores.
Princípio da Interação: Um humano ou outra PEM deve poder interagir
com uma PEM por meio de conversa, gestos e ações, tal como
interagiria com outra pessoa (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
A PEM não deve apenas receber informações e agir. As ações devem condizer com as
informações de entrada dos sensores, inclusive para poder interagir com outras PEMs ou
mesmo atores em cena.
Princípio do Roteiro: Uma PEM deve ter um roteiro de base para
seguir, deve poder encontrar as deixas dos outros atores em cenas e
deve poder seguir seu roteiro conforme pontos de checagem no tempo
da execução do espetáculo (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).
Para uma PEM, deve ser possível seguir o Roteiro de um espetáculo teatral. É certo de
que há diversas formas de atores seguirem roteiros ou o fluxo temporal de um espetáculo,
tendo seu início ou fim e, inclusive, poderem iniciar ou fechar deixas. Dessa forma, uma PEM
também deve seguir o fluxo do espetáculo.
Princípio da Improvisação: Uma PEM deve ter a possibilidade de
improvisar, em alguns pontos do espetáculo e escolher a melhor
resposta que lhe convier conforme interações não planejadas com
outros atores e, inclusive, com o público (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).
Para Pavis (1999), em um espetáculo improvisado, “os atores agem como se tivessem
que inventar uma história e representar personagens”. Quando há o recurso da improvisação, o
ator é “desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção
com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais,
infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente (GUINSBURG,
1992). Tal como é permitido à um ator improvisar, à uma PEM também deve ser permitida a
Improvisação, sendo essa característica também selecionada como um princípio desta.
Princípio da Interpretação: Uma PEM deve poder interpretar sua
personagem e utilizar de mudanças de humor conforme as
necessidades do espetáculo e das interações (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).
3. Proposta de Espetáculo-Laboratório
O presente artigo apresenta uma proposta de Espetáculo-Laboratório como forma de
discutir a utilização da robótica, atrelada à Inteligência Artificial, em espetáculos teatrais. Para
isso, é proposto a utilização de uma PEM, seguindo seus princípios, em um espetáculo.
Entretanto, essa proposta não se firma apenas na apresentação de uma uma peça, mas na
posterior análise das suas aplicabilidades.
Dessa forma, a proposta segue a seguinte metodologia:
1. Criação do Roteiro;
2. Definição do cenário, figurino e demais elementos da cena;
3. Criação dos recursos mecânicos e computacionais necessários para a PEM;
4. Ensaios com ator(es) e PEM;
5. Apresentação do Espetáculo;
6. Análise e Avaliação;
7. Escrita de Artigos com os resultados.
Uma análise de requisitos iniciais, recursos mínimos necessários e aplicabilidade para
uma primeira versão desse espetáculo já se encontra atualmente em avaliação. São eles:
• Atores: Para suprir o princípio da interação da PEM, o espetáculo terá um ator para
que tal interação possa acontecer. Entretanto, não é necessário inicialmente que haja
mais de um ator em cena.
• PEM: Apenas um ator do tipo PEM é suficiente para uma discussão inicial.
Certamente que pode-se haver mais de uma PEM, inclusive interagindo entre elas.
◦ Computador: Um computador para executar os softwares e um Tablet com câmera
e audio como sensores para interação com o ator;
◦ Softwares: Em uma análise inicial, os softwares necessários para essa PEM
envolvem um chatbot (softwares para conversa em linguagem natural), softwares
para detecção de fala, sintetizador de voz, interface visual para mostrar pelo menos
o rosto da PEM com suas expressões e mudanças de humor;
◦ Mecânica: Um braço mecânico para suportar um Tablet com câmera que deve
seguir o ator. Este elemento não é obrigatoriamente necessário e ainda deve ser
avaliada a sua aplicabilidade inicial;
◦ Datashow: para mostrar graficamente os módulos de software que se encontram
em execução durante o espetáculo;
• Roteiro: Um roteiro ainda deve ser elaborado. A ideia é propor um roteiro sobre uma
discussão recursiva acerca da própria análise do que é a Inteligência Artificial e sua
aplicabilidade na interação humano-computador. O foco é um cientista discutindo com
sua criação o que é a Inteligencia Artificial.
• Cenário: Um laboratório mecatrônico para a criação de robôs.
Devido ao fato de que há o envolvimento de custos para a aplicação dessas ideias e de
que o projeto é independente e sem financiamento, alguns desses elementos ainda podem ser
reavaliados.
4. Considerações
Este artigo apresentou uma proposta da utilização de um robô provido de Inteligência
Artificial em um espetáculo-laboratório teatral como forma de discutir a aplicabilidade da IA
no teatro. Para tal foi sugerido a utilização de um robô seguindo os princípios da Persona Ex
Machina e uma ideia inicial de espetáculo a ser ainda criado, apresentado e analisado por um
público selecionado. Os próximos passos são a criação do roteiro, escolha do ator, montagem
do hardware necessário, implementação dos softwares, ensaios, apresentação e discussões.
Este espetáculo terá o suporte e auxílio do Grupo de Pesquisa em Ciberarte (Subverse, 2014).
Referências
ABRÃO, Elisa. 2007. As relações entre arte e tecnologia: a dança híbrida do Cena 11.
Pensar a Prática. v10, n2. 2007.
BERTHOLD, Margot. A história mundial do teatro. 2a. ed. São Paulo : Perspectiva. 2004.
GUINSBURG, Jacob; SILVA, Armando. Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992
MEYERHOLD, Vsevolod. 2012. Do teatro. São Paulo. Iluminuras: 2012.
MORETTI, Maria F.S.; BELTRAME, Vamor. Kantor, Duchamp e os objetos. Em: Valmor
Beltrame. (Org.). Teatro de Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e Prática. Florianópolis:
Design Editora, v.1, pg.07-142. 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo : Editora Perspectiva, 1999.
RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial. 2aEd, Tradução da 2a ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004
Subverse: grupo de pesquisa em ciberarte. <http://subverseproject.blogspot.com.br/>.
Acesso: 07/2014.
ZAMBIASI, Saulo P.; PINHEIRO, Patricia L.B.. Diálogos Performáticos Interativos para
Atores Virtuais. VI Jornada Latino Americana de Estudos Teatrais. Blumenau : Furb, 2013.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Referências
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---. Participation. Cambridge: MIT Press, 2006.
DORT, Bernard. “A representação emancipada.” In: Sala Preta, vol 13, n 1,
jun 2013, p.47-55.
CARLSON, Marvin. “Sobre algumas implicações contemporâneas do termo
‘pós-dramático’.” In: Nas fronteiras do representacional.
Florianópolis: Letras Contemporâneas/CNPQ, 2014 (no prelo), sem
página disponível.
COULTER, Graham. Deconstructing Installation Art. Southampton: CASIAD,
2006. Disponível em http://installationart.net/, acesso 03/05/2014.
GUEDES, Antonio. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 17 de março de
2013.
GUENOUN, Denis. O teatro é necessário. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LOPES, Angela Leite (org.). Novarina em Cena. Com a colaboração de Ana
Kfoury e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
---. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 19 de março de 2013.
RANCIÈRE, Jacques. “O espectador emancipado.” In: Urdimento, no. 15,
Florianópolis: UDESC/PPGT, 2010, p.107-122.
1
Ver Coulter, 2006.
2
Ver sobretudo Bishop, 2005 e 2006, e também Rancière (2010) e Guenoun (2004).
3
O trabalho estreou em agosto de 2011, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto e foi
retomado em Maio e Junho de 2012 no Parque das Ruínas do bairro Santa Teresa.
4
Assim ela é descrita nas credenciais do DVD produzido pelo Teatro do Pequeno Gesto como
registro e material de divulgação.
5
O autor francês define como mot a palavra engessada em um significado supostamente
conhecido e comum. A essa palavra, ele opõe o verbo falado (parole) que recoloca a palavra (mot) em
movimento e a queima, pois a respiração empregada no uso do verbo age como combustão “das ideias
prontas sobre a linguagem e o real”(Lopes 2011, p.13). Mas o texto também deixa claro em sua
dificuldade reconhecida de realizar esse objetivo que o verbo performativo necessita da presença da
palavra estabelecida para poder articular sua força relativa.
6
E-mail para o autor em 17 de março de 2013.
VII JORNADA LATINO-AMERICANA DE ESTUDOS TEATRAIS
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
Tiago Luz (CAPES); Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos; Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
2014
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis : Vozes,
1994. Pag 202
2
Idem, ibidem.
3
JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo :
Escrituras Editora, 2005. pag. 80
2
personagem lagarceana, a fim de refletir sobre como ela se constitui e como o ator, a
atriz, pode se relacionar com essas figuras.
De modo geral, encontramos na sua dramaturgia ‘apenas’ figuras que, embora
no presente, contam, narram e até mesmo sonham com tempos passados ou futuros, e
esse momento presente – o que nos é proposto enquanto experiência teatral – constitui-
se basicamente desses relatos e, com isso, nos envolvemos numa experiência temporal
e, por consequência, espacial. Teatro fundado na palavra, teatro da escuta, desafiante
para atores e público: de um lado, como ser portador daquelas palavras em cena e, do
outro, o convite a um estado de atenção, receosos de perder algum novo detalhe que
apareça na fala de algum dos personagens, a fim de juntar as peças do quebra-cabeça
proposto pelo texto.
Adentremos, então, o universo do autor de Besançon, procurando perceber sua
estratégia de proposição das personagens em alguns dos seus textos.
Com uma produção intensa, localizada entre o fim dos anos 70 até meados dos
anos 90 – contemporânea de outros importantes dramaturgos da cena francesa como
Bernard-Marie Koltés, Philippe Minyana, Valère Novarina e Michel Vinaver – Lagarce
escreveu vinte e cinco peças teatrais reunidas em quatro volumes, o ensaio Théâtre et
Pouvoir em Occident (2001), três textos em prosa, L'Apprentissage, Le Baine e Le
Voyage à La Haye (2001) e vários artigos reunidos no volume Du Luxe et de
l'Impuissance (1997), publicado postumamente.
Sua incursão pelo universo teatral começa após o fim do ensino médio, no início
de seus estudos universitários em Besançon, no curso de Filosofia e Letras onde,
paralelamente, passa a frequentar um curso de Arte Dramática oferecido pelo
Conservatório Nacional Regional. Após terminar sua graduação, em 1977, se junta a
alguns amigos e funda uma companhia de teatro amador chamada Théâtre de La
Roulotte, em homenagem à trupe criada pelo ator francês Jean Vilar.
É nessa companhia – “Teatro da Caravana” – que Lagarce encena diversos
autores como Kafka, Ionesco, Molière, Beckett e Wedekind e onde encontra espaço
para a criação dos seus próprios textos. A imagem da caravana, além disso, será uma
tradução possível de algumas características da escrita lagarceana: errante, aventureira,
flexível e bastante provocadora.
A grande questão para o dramaturgo em construção e seu grupo era fazer um
teatro verdadeiramente contemporâneo e isso significava, naquele momento, responder
a indagação fomentada por Lagarce no seu ensaio Théâtre et Pouvoir em Occident:
“como escrever depois de Ionesco, Beckett e Tchekov?”4
Assim, ao eleger sua herança, Lagarce debruça-se sobre a linguagem a fim de
construir um teatro que falasse a seu tempo, desdobrando e ampliando as questões
desses grandes mestres ao longo da sua trajetória.
Suas primeiras peças publicadas – Erreur de construction e La bonne de chez
Ducatel – ambas de 1977, trazem características do ‘teatro do absurdo’, herdadas, por
exemplo, de A Cantora Careca, de Ionesco.5 Outros trabalhos iniciais como Carthage,
encore, La place de l’autre, Voyage de Madame Knipper vers La Prusse Orientale e
Les Serviteurs ressoam o tratamento da linguagem operado por Beckett e Tchekhov e
começam a apontar alguns temas que serão recorrentes no universo do autor de
Besançon: o retorno ao país, ao lugar de origem; personagens que falam do passado ou
sonham com um futuro; figuras suspensas no tempo-espaço que só existem à medida
4
Jean-Pierre Thibaudat. Parcours de Jean-Luc Lagarce in www.lagarce.net/auteur/biographie
(consultaem 24/07/13)
5
idem
3
que falam, ou seja, temas que se relacionam com um estar em movimento, em
deslocamento ou sentir-se deslocado, em trânsito, em eterna busca – como também
sugere o próprio nome da companhia.
6
OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no teatro de Jean-
Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011. Pag. 31
7
Marcio Abreu, programa da peça, Curitiba, 2006
4
Nota-se certa problematização da personagem, na medida em que, a partir dessa
única informação, caberá à atriz encontrar no texto, naquilo que a sua personagem diz –
e no que dizem dela – outros índices que a ajudem a sustentar essa figura em cena. Em
se tratando de um texto lagarceano, porém, não será surpresa se tudo o que essa busca
revelar for a necessidade de se colocar como instrumento de passagem para as palavras
do texto.
Para se aventurar no universo lagarceano é preciso “conservar no centro do
nosso mundo o lugar das nossas incertezas, o lugar da nossa fragilidade, da nossa
dificuldade de dizer e de entender” 8. Sem dúvida um desafio, de forma e conteúdo,
para o ator mais tradicional, acostumado a ‘incorporar’ e defender uma personagem em
cena.
Nas outras peças da Semana Lagarce, todas da fase final da produção do autor,
as personagens são apresentadas na mesma estratégia de despersonalização e mínimo
referencial possível, colocando o foco do seu teatro muito mais naquilo que é dito do
que em quem diz. Essa mudança de perspectiva é fundamental no teatro de Jean-Luc e
cerne de nossa pesquisa.
A temática do retorno a casa aparece em outro trabalho apresentado naquela
semana em 2006. Desta vez, o foco recai não naquele que volta, mas nos que ficaram.
A Cia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto fez a
leitura dramática do texto Eu estava em casa e esperava que a chuva viesse, de 1997,
penúltima obra escrita por Lagarce.
Nesta peça, uma espécie de coro formado por
A Mais Velha
A Mãe
A Filha mais velha
A Segunda
A Filha mais nova
está à espera do filho/irmão que foi expulso de casa pelo Pai, que já faleceu.
Como se vê, as personagens também não têm nome, mas são apresentadas numa
hierarquia familiar. Essa informação não deixa dúvida quanto ao tipo de relação
existente entre elas, embora todas façam parte do mesmo “oratório dramático para cinco
vozes9”.
Sobre a organização das personagens na lista de apresentação, uma vez que não
indica a ordem em que aparecem no texto, podemos supor que Lagarce poderia querer
indicar certa rigidez no universo dessas cinco mulheres que passaram anos de suas vidas
aguardando o retorno do filho/irmão querido. E novamente temos uma personagem
indicada apenas como A Mãe, e se pensarmos nas demais figuras a partir dessa, cria-se
certo ruído com relação à personagem A Mais Velha: seria a avó?
O texto é formado por uma longa sucessão de monólogos que se permeiam e o
tema da espera remete diretamente ao Esperando Godot, de Beckett, mas vai além.
8
LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les Solitaires Intempestifs,
2004. Pag. 19 (tradução nossa)
9
Op. Cit. Pag 147
5
“Lagarce, um autor influenciado por Beckett, amplia a tragédia beckettiana
porque, ao contrário de Godot, que não aparece para Estragon e Vladimir, ele faz com
que esta pessoa, este filho/irmão que vai dar sentido à vida delas, apareça. Só que ele
não faz nada. Chega, cai no meio da sala e não sabemos se está vivo ou morto” 10.
Trazendo essa análise para mais perto do nosso objeto – o trabalho do ator na
construção da personagem lagarceana - para as atrizes, apresentava-se o desafio de dar
voz aos longos monólogos entrecortados e fazer existir, pela palavra, pela ação da
palavra, cada figura, revelando-se e relacionando-se consigo mesma e entre si.
Carolina Fabri, atriz que fez A Filha mais velha na montagem da Cia Elevador,
conta que “lendo o texto, no começo, a gente lia o texto lendo mesmo, era uma leitura
dramática, encenada, e lendo o texto, sem colocar nada em cima, só lendo o texto, já me
trazia tantas afetações, as palavras mesmo, a maneira como elas estão encadeadas,
parecia que você quase não tinha que fazer nada, você só tinha que ler e falar aquilo que
estava escrito, claro, você tem que estar aberto a essas coisas, acho que esse é o maior
trabalho de todos” 11.
Nota-se o exercício de sensibilidade proposto pelo autor e captado pela atriz no
trato com o texto.
O desafio parece ser o de transformar a matéria bruta do texto em experiência
sensível, o que exige dos atores, das atrizes um posicionamento diferente daquele
baseado na construção de uma personagem e mais interessado na comunicação, na
partilha de um momento que seria o da escuta.
Em Lagarce, a busca pelo outro se apresenta como um dos principais temas e a
construção do texto com longas falas é a forma de dar espaço para que a figura se
esforce para se expressar, se colocar e, simultaneamente, abrir espaço para o esforço do
outro em compreender e fazer parte na relação.
Outro trabalho presente na Semana Lagarce, dirigido por François Berreur12 e
que depois teve uma montagem brasileira foi Music Hall. Escrito em 1988, apresenta
três figuras que vivem no universo artístico e expõem as aventuras e desventuras de
quem vive dessa escolha.
Aqui, as personagens são indicadas apenas pelo gênero - La Fille, Le Premier
Boy, Le Deuxième Boy – e na encenação de Berreur, três atores, homens, do Collectif
Artistas Unidos, de Portugal, dividem a cena como muitos anônimos que lutam para
viver da Arte.
Ao optar por um ator no papel da Moça, o diretor comunga com Lagarce o jogo
com a linguagem e suas estruturas e nos provoca um distanciamento cênico que, para
além dos distanciamentos dramatúrgicos, gera um espaço primordial para a elaboração
da alteridade.
A ironia e o bom humor também estão presentes nesse texto que traz na sua
estrutura um jogo metalinguístico, estruturado com longas falas e réplicas e que explora
e favorece a reflexão sobre o fazer teatral. De acordo com Luiz Paëtow, diretor da
10
LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Laga rce. In Revista Pitágoras 500,
vol. 1, Campinas, 2001, pag. 74
11
Carolina Fabri. Entrevista realizada em maio de 2014
12
François Berreur é ator e diretor da Cia de Teatro francesa Les Solitaires Intempestifs, além de
cofundador da editora especializada em publicações teatrais Les Solitaires Intempestifs. Ex-integrante da
Théâtre de la Roulotte (compagnia fundada por Jean-Luc Lagarce no final dos anos 70 e começo dos 80),
Berreur atuou nas peças Histoire d'amour (as duas versões), nas montagens da Cantatrice Chauve e outras
peças da companhia.
6
montagem brasileira do texto, “Lagarce deixa o âmbito familiar/amoroso e cria uma
obra que tem potência de manifesto” 13.
Por fim, mas não na ordem cronológica da programação da Semana Lagarce,
lançaremos um olhar sobre História de Amor (últimos capítulos), cujo texto e a
montagem realizada pelo Teatro da Vertigem dispararam e configuram os principais
objetos de nossa pesquisa.
Também a convite do Consulado Francês, o Vertigem foi o primeiro grupo
brasileiro a levar aos palcos esse texto lagarceano, com direção de Antonio Araújo e
Eliana Monteiro e um elenco formado por Roberto Áudio (O Primeiro Homem), Sergio
Siviero (O Segundo Homem) e Luciana Schwinden (A Mulher).
História de Amor (últimos capítulos) foi escrito em 1990, e teve sua estreia em
abril de 1991 no Espaço Planoise, em Besançon, com encenação do próprio autor. A
peça chegou a Paris em fevereiro de 1992, no Theatre de la Cité Internationale.
Trata-se da segunda versão desse texto, de caráter mais impreciso do que aquela
escrita em 1983 - História de amor (apontamentos). Os motivos pelos quais o autor
retorna a essa texto são desconhecidos, e essa imprecisão da segunda versão se
caracteriza pela maneira como Lagarce estabelece uma camada a mais de leitura sobre o
texto ao inserir de forma mais objetiva o ator, aquele que o lê como mostraremos a
seguir.
Uma possível sinopse para o texto seria: Um homem escreveu uma peça.
Naquele dia, chegaram outro homem e uma mulher. Os três leem juntos o texto. Talvez
representem a peça – são atores – ou apenas a descubram como se descobre o texto de
um amigo.
Logo na primeira fala dessa versão do texto, temos a figura do Primeiro Homem
que, de forma estranhada, mas já muito objetiva, propõe um jogo espaço-temporal que
vai se desenvolver como a espinha dorsal do texto contribuindo para o estabelecimento
de uma cena em suspenso, oscilante, num convite às avessas para a experiência da
presença dos corpos, em cena e na plateia, no aqui agora, reforçando a existência e a
necessidade do outro e do estar junto.
PROLOGO
O PRIMEIRO HOMEM
Prólogo.
O Primeiro Homem.
Uma noite, o Primeiro Homem fica sozinho, se esquecem dele, não sabem o que
ele faz, o que é feito dele.
Foi feito dele.
<< que idade é que ele tem? >>
O Primeiro Homem, uma noite...
13
Luiz Paëtow, diretor e ator, dirigiu a montagem de Music Hall com a Cia da Mentira em 2009 com
reestréia no 2º semestre de 2013. Entrevista realizada em julho de 2013.
7
É a historia de dois homens e uma mulher.
A MULHER
Ela, a Mulher (eu), ela, ela ri delicadamente.
Talvez – não a distinguimos muito bem – talvez chore também, um pouco, é
possível. [,,,]
Quando o Primeiro Homem repete a rubrica, ele acaba por se localizar dentro da
história e ao mesmo tempo desloca a atenção para aquilo que está escrito, para a
palavra, anunciando, talvez, que o que interessa neste texto é ele mesmo, o texto, e tudo
aquilo que ele é capaz de gerar no espaço e nas pessoas envolvidas nele e com ele.
Em seguida, na fala da Mulher, a atriz/personagem se apresenta, tenta se
localizar dentro do jogo de forma explicita, revelando também que há, sim, um espaço
entre elas (a atriz e a personagem) e que isso será preservado aqui como forma mesmo
de sobrevivência, de prática da escrita e da cena. Trata-se de uma personagem quase
sempre apresentada de forma nebulosa, vista quase sempre na penumbra, com ações
vacilantes e por vezes ambíguas.
Ao longo do texto há um refinamento dessas imprecisões que tende a estabelecer
um elo cada vez mais coeso entre quem fala e quem ouve, reforçando o lugar do público
enquanto testemunho daquilo que é dito e do que acontece em cena.
De acordo com Roberto Áudio, “História de Amor é um texto difícil, cheio de
sutilezas, variação de tempos, falas que se dirigem a um e, de repente, termina se
dirigindo para outro14”. Nota-se, assim, o desafio do texto de Lagarce: fazer do terreno
movediço da sua escrita uma pista de dança!
Podemos perceber outras características da sua escrita como o jogo verbal entre
presente, passado e futuro, às vezes na mesma frase, o uso recorrente de vírgulas como
um recurso de construção e desconstrução de ritmos, revelando alguém cuidadoso,
preocupado em encontrar a melhor palavra, a melhor frase ou expressão, que dê conta
de comunicar aquilo que realmente se quer, o que é verdadeiramente necessário,
importante.
Nesse sentido, a repetição – de palavras ou até de frases inteiras, aparece como
um elemento constituinte da escrita lagarceana e de acordo com Cícero Oliveira, “a
regularidade com que o autor a utiliza leva a crer que em seu teatro esse procedimento
adquire o status de um verdadeira modus operandi, tornando-se quase que um estilo do
autor” 15. Em sua dissertação, Cícero aprofunda essa discussão, dando muitos exemplos
do uso desse recurso e suas consequências na leitura e na fala dos textos de Lagarce.
Trabalhando assim, o autor elabora uma fala repleta de detalhes, propondo um
estimulante jogo tanto para os atores, na medida em que precisam dar conta das nuances
e sutilezas do texto, quanto para o público, que vai construindo e adentrando o universo
da peça, e a relação com cada personagem, na medida em que recebe cada peça desse
aprimorado quebra-cabeça.
Diante desse quadro, como pensar o trabalho do ator, enquanto primeiro espaço
14
Roberto Áudio, entrevista realizada em julho de 2013.
15
Op, Cit. Pag. 69
8
de criação e alteridade? Segundo Jean-Pierre Ryngaert, “o ator não pode mais tomar a
cargo esses personagens segundo os sistemas de representação vigentes, procurem eles a
identificação ou formas de distanciamento. Nós o dizemos ‘atravessado’ pela fala (...), o
imaginamos portador de uma energia alternada, muito presente e subitamente
fantasmática, engajado em seu discurso ou como que hibernado. Em todo caso, cabe-lhe
assumir essas figuras empalidecidas às quais um suplemento de carne e contornos
firmes dariam uma existência resoluta e falsa de ‘personagem em excesso’” 16.
Acreditamos que uma alternativa possível nesse panorama é um trabalho de ator
que abra espaço para o jogo sensível da linguagem proposto por um texto com
características específicas, como os de Jean-Luc Lagarce, que favorecem um caminho
de elaboração e revelação da ficção, e da própria alteridade.
A relevância dessa atitude, talvez seja a de nos alertar que o Teatro, enquanto
linguagem e ‘espelho da vida’, é construção, estrutura elaborada e, por isso, passível de
interpretações, reorganizações e mudanças. Uma atitude política.
16
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São
Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág. 139
9
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARTIGO
DISSERTAÇÃO
SITE
www.lagarce.net
10
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
PIETÁ EM PRETO&BRANCO
ESTUDO DE UMA IMAGEM HISTÓRICA NA REPRESENTAÇÃO DO TEATRO
DE SOMBRAS
Tuany Fagundes Rausch1
Fátima Costa de Lima2
Antes de adentrarmos na análise do teatro de sombras, precisamos sublinhar que nossa percepção
sobre as sombras vem muito antes do conhecimento deste gênero teatral. Sobre isso, o psicólogo
suíço Jean Piaget realizou um estudo que
revelou que a maneira como as crianças percebem as sombras varia de acordo com
a idade. A partir de 5 anos, tendem a achar que são feitas do mesmo material que a
noite – a escuridão. Depois, entre os 6 e 8 anos, acreditam que sejam objetos
materiais. Só mais tarde, a partir dos 9 anos, é que elas percebem que as sombras
são fruto da relação entre objetos e a luz. Já é algo muito próximo do que
entendemos quando nos tornamos adultos: sombras são áreas escuras onde a luz
foi bloqueada. (GOMES, 2004).
As interpretações tanto literais quanto metafóricas variam de acordo com a cultura e o contexto
histórico de cada pessoa. Apesar desse tipo de estudo não ser abordado aqui, ressaltamos que nossa
visão será positiva ao abordar a utilização da sombra como meio expressivo de criação. Ao
contrário, comumente se remete, quando se fala de sombras, a algo desconhecido e obscuro.
A relação entre luz e sombra é elementar na construção de uma imagem no teatro de sombras. Ela
torna-se dialética no momento em que consideramos as etapas de sua construção como partes da
tríade dialética formada por positivo, negativo e negativo do negativo. Ao criarmos uma obra na
linguagem do teatro de sombras, primeiro definimos que imagem se quer construir (a ideia). Depois,
vemos como passaremos essa imagem para a tela (a ação), que obstáculos colocaremos entre luz e
tela, podendo ser estas silhuetas, corpo humano, objetos; e como ela se formaria nos olhos do
público. E, por último, o resultado, como se dá a imagem em si.
Assim, analogamente à tríade, essas três percepções de composição se dão como: positivo, a ideia;
negativo, a ação; e o negativo do negativo, a imagem.
Entretanto, nem todas as imagens são dialéticas mesmo no teatro de sombras, ainda que este tenha
tendência a criá-las por operar dialeticamente a construção de suas imagens. Apenas algumas,
1
Acadêmica do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro - CEART - UDESC - bolsista PIBIC/CNPq.
2
Orientadora do Departamento de Artes - CEART – UDESC.
porém, conseguem configurar-se como síntese dialética de imagem, história e mito. Para Benjamin,
imagens dialéticas são figuras da dialética histórica e da natureza mítica:
profunda intuição sobre as relações entre dialética, mito e imagem. Pois não é como
algo sempre vivo e atual que a natureza se impõe na dialética. A dialética detém-
se na imagem e ela, no acontecimento histórico mais recente, o mito como passado
muito antigo, a natureza como história primeva. Por isso, as imagens, como as dos
intérieur, que conduzem a dialética e o mito a um ponto de indistinção, são
verdadeiramente ‘fósseis antediluvianos’. (BENJAMIN, 2007, p.503).
O sombrista3 utiliza elementos potencialmente oníricos: luz e sombra. Quando uma pessoa fecha
seus olhos, revela-se o escuro. Com o passar do tempo ele toma outras formas, coloridas, subjetivas,
além do visível a pálpebras abertas. Do ponto de vista benjaminiano, em que “A utilização dos
elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o pensador
e obrigatória para o historiador” (Benjamin, 2007, p. 506, [N 4, 4]), o espectador do teatro de
sombras assume, quanto à imagem a ele mostrada, o papel de historiador e intérprete do onírico:
Dentro do teatro de sombras, o sombrista seria o pensador e o espectador, o historiador. Seu objeto
de estudo em comum é a imagem dialética. Ou, ainda que não a imagem em si, sua construção
dialética, necessária para que qualquer imagem chegue aos olhos do espectador.
Como objeto de estudo e exemplo imagético a serem analisados a partir de tais conceitos, escolhi a
imagem que denominei Pietá de Chador4. A imagem aparece na série autobiográfica Persépolis, de
Marjane Satrapi. Na série, Satrapi conta sua história desde a infância até sua ida à França, onde mora
atualmente. A autora conta de maneira singular e sincera as mudanças que presenciou a partir de
1979, com o advento da Revolução Islâmica. A obra teve sua versão para o cinema em 2007, dirigida
por Satrapi e Vincent Paronnaud, que ganhou o Oscar de Melhor Animação naquele ano.
3
Conceito elaborado por Alexandre Fávero, num texto originariamente elaborado para a ABrIC - Associação Brasileira
de Iluminação cênica para encaminhamento ao Ministério do Trabalho e o SATED Nacional para possível aprovação
nas categorias profissionais de técnicos em iluminação. “São profissionais que pesquisam, criam, idealizam, projetam,
constroem, montam, atuam, operam e elaboram cenas dramáticas através da utilização das luzes e sombras projetadas.
Lidam com diferentes matérias-primas e tecnologias, exigindo conhecimentos e habilidades manuais para a criação de
objetos cênicos e na elaboração de soluções técnicas para o seu funcionamento na cena. [...] É uma função de alta
capacitação artística por estar relacionada com as mais diferentes áreas das artes, exigindo conhecimentos de artes
cênicas, gráficas, plásticas, cinematográficas, fotográficas, e conhecimentos técnicos nas áreas da elétrica, ótica,
cenografia, dentre outros aspectos de interesse artístico. [...]”.
4
Termo criado por Tuany Fagundes para diferenciar da obra Pietá, de Michelangelo, de 1499.
Para que se criasse uma república islâmica, a revolução, uma das poucas
manifestações incontestáveis da vontade popular contra um regime político, sofreu
algumas mudanças em sua trajetória. O novo governo estabelecido proporcionou o
regresso do Irã aos valores tradicionais do Islã. Costumes ocidentais difundidos na
cultura iraniana durante o regime do xá foram proibidos, entre eles a proibição às
mulheres do uso de maquiagem e de minissaias; música pop e rock; cinema; jogos
e jogatinas. Velhos códigos morais foram ressuscitados, como o açoite e castigos
corporais aos que praticassem adultério, aos que praticassem sexo fora do
casamento e aos que consumissem álcool.
Para garantir a Revolução Islâmica, muitos dos que a apoiaram foram executados,
entre eles os marxistas, os grupos maoístas e de esquerda, por defenderem o estado
laico, uma ameaça aos princípios teocráticos do islã. Também foram executados os
considerados doentes ou escórias da sociedade, como os homossexuais e as
prostitutas. (LEE-MEDDI, 2014)
A obra já teve várias análises, dentre elas, a de Valéria Pisauro, professora de Literatura e História
da Arte:
É importante salientar que não se pretende realizar uma visão dicotômica entre Ocidente e Oriente.
Mesmo que eu tenha nascido deste “lado” do mundo, pretendo observar diferentes pontos de vista,
inclusive o da participação de países ocidentais na implementação de regimes autoritários para que
lhes favorecessem economicamente.
Sem resolução dos conflitos, a atualidade tem que lidar com os conflitos muitas vezes ignorados
pelos noticiários.
Quanto ao destino do regime estabelecido pela revolução de 1979, somente o povo
iraniano poderá responder até onde irá e até quando o legitimará. Quanto ao
ocidente, há de se aprender a conviver com as diferenças culturais, que se
sobrepõem ao poder econômico, seja ele emanado do petróleo ou da força das
armas. (Ibidem)
Após essa breve contextualização, voltemos à imagem. A Pietá de Chador aparece quando Marjane
já está na fase adulta. Ela fez parte de seu exame de admissão na faculdade de artes no Irã, como
conta Satrapi:
Para entrar na faculdade de artes, além dos testes de múltipla escolha havia uma
prova de desenho. Eu tinha certeza que um dos temas seria "Os mártires",
obviamente! Então treinei copiando umas 20 vezes uma foto da "Pietá" de
Michelangelo. Naquele dia eu a reproduzi, mas pus um chador negro na cabeça de
Maria, uma farda em Jesus, acrescentei duas tulipas, símbolo dos mártires*, de
cada lado, para evitar confusão. *dizem que as tulipas vermelhas crescem com o
sangue dos mártires. (SATRAPI, 2007).
Analisando a imagem em nosso contexto histórico ocidental atual, vemos a pertinência de uma
discussão estética dialética sobre ela, à qual facilmente caberia o fragmento a seguir, de Walter
Benjamin:
Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz
sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num
lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética
na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente
temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma
progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são
imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a
linguagem. (BENJAMIN, 2007, p. 504).
Embora a imagem Pietá de Chador não seja originária de um processo de montagem em teatro de
sombras, possui os elementos formais para sua possível construção neste gênero: é em preto e
branco, em “sombra e luz”. Além disso, contém os elementos de conteúdo da imagem dialética:
dialético: imagem, mito e história.
A Pietá de Chador é uma alegoria aos mártires de guerra que envolve o mito de Maria no Islão com
a história da Revolução Islâmica e guerra Irã-Iraque.
Existe uma noção que resume todos os ensinamentos e todas as tradições que o
Islão possui acerca de Maria: é a da “Mulher Perfeita que corresponde em todos os
graus ao princípio passivo e substancial da Existência”. (...) Assim se encontra
ilustrada a afinidade que o Islão representa com a função mariana e o espírito de
servidão que é sua marca. (BORAU, p.136).
Como vemos, segundo os estudos de Borau, vê-se a figura de Maria ocupando um lugar
particularmente eminente no Islão.
A importância de Maria no Islão é realçada pelo facto de a sura do alcorão (Alcorão
19) relatar a Anunciação e a Natividade. Esta é a passagem principal: <<Maria
deixou sua família e retirou-se para um local que dava para o Leste. E colocou uma
cortina para ocultar-se dela (da família), e lhe enviámos o Nosso Espírito, que lhe
apareceu personificado, como um homem perfeito. Disse-lhe ela: Guardo-me de ti
no Clemente, se é que temes a Deus. Explicou-lhe: Sou tão-somente o mensageiro
do teu Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado. Disse-lhe: Como poderei
ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de sercasta? Disse-lhe:
Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para
os homens, e será uma prova de nossa misericórdia. E foi uma ordem inexorável>>
(Alcorão 19, 16-21) [...] <<Regressou ao seu povo levando-o (o filho) nos braços.
E disseram-lhes: Ó Maria, eis que fizeste algo extraordinário! Ó irmã de Aarão, teu
pai jamais foi um homem do mal, ou tua mãe uma (mulher) sem castidade! Então
ela disse-lhes que interrogassem o menino. Disseram: Como podemos falar a uma
criança que ainda está no berço? Ele disse-lhes: Sou o servo de Deus, o Qual
Meconcedeu o Livro e Me designou como profeta. Fes-Me abençoado, onde quer
que Eu esteja, e encomendou-Me a oração e (a paga do) zakat, enquanto Eu viver.
E fez-Me piedoso para com a minha mãe, não permitindo que Eu seja arrogante ou
rebelde. A paz está comigo desde o dia em que nasci; e estará comigo no dia em
que Eu morrer, bem como no dia em que Eu for ressucitado>>. (BOURAU, p. 135
e 136).
Maria é o único nome mencionado no Alcorão, tornando-a a mais venerada. Ela foi concebida para
ser um instrumento das vontades divinas, estando como principal exemplo de submissão e
obediência.
Historicamente, a Revolução Islâmica foi construída desde quando os árabes invadiram a Pérsia, em
642 e, derrotados, adotaram o Islã, mais precisamente o xiismo. Desde então, a região sofreu várias
mudanças de poder e, especificamente a ocorrida em 1979, teve suas origens décadas antes.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p.503 [N 2,
7], p.504, p.506 [N 4,4] [N4,1]
BORAU, J. L. Vásquez. As religiões do livro. Tradução de Lara Almeida Dias. Lisboa: Paulus,
2002. P.135 e p. 136.
LEE-MEDDI, Jeocaz (postado por). Revolução Islâmica do Irã. In: Virtuália – O Manifesto
Digital. Disponível em: http://virtualiaomanifesto.blogspot.com.br/2009/02/revolucao-islamica-
do-ira.html Acessado em junho de 2014.
SARTRAPI, Marjane. Persépolis. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p. s/n.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
1
Projeto desenvolvido com financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo.
O termo interculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de
multiculturalismo ou transculturalismo, para nos darmos conta da dialética de
trocas dos bons procedimentos entre as culturas. (PAVIS, 2008, p. 2)
Je pense qu’il y a un élément qui nous unit, c’est l’amour du théâtre. Je suis
persuadée, au contraire, que la richesse des cultures est un atout. Les gens qui
ont rejoint le “Théâtre du Soleil” avaient une raison bien particulière de le
faire: ils voulaient explorer l’essence du théâtre. La nationalité, la langue
maternelle sont alors transcendées. Tous partagent une seule et même langue,
la langue du théâtre. (MNOUCHKINE, 2003.) 3
2
Termo que não é utilizado por Brook nem Mnouchkine, mas este conceito é abordado de forma
tangencial em seus discursos.
3
Eu creio que há um elemento que nos une, é o amor ao teatro. Estou persuadida, ao contrário, que a
riqueza das culturas é um trunfo. As pessoas que vieram para o “Théâtre du Soleil” tinham uma razão
bem particular para tal: eles queriam explorar a essência do teatro. A nacionalidade, a língua materna são,
então, transcendidas. Todos dividem uma só e mesma língua, a língua do teatro. (Trad. minha)
mélange est mal pris, c’est une dilution, si c’est pris d’une autre manière,
c’est un enrichissement. (BROOK, 2007, p. 28 e 29) 4
I would argue, but through the very enterprise of the work itself : its
appropriation and reordering of non-western material within an orientalist
framework of thought and action, which has been specifically designed for
the international market. It was the British who first made us aware in India
of economic appropriation on a global scale. They took our raw materials
from us, transported them to factories in Manchester and Lancashire, where
they were transformed into commodities, which were then forcibly sold to us
in India. Brook deals in a different kind of appropriation : he does not merely
take our commodities and textiles and transform them into costumes and
propos. He has taken one of our most significant texts [The Mahabharata]
and descontextualized it from its history in order to ‘sell’ it audiences in the
West. (BHARUCHA, 1993, p. 68) 5
4
Nosso trabalho, no Centro, consiste simplesmente em criar um lugar onde um pequeno grupo de pessoas
pode explorar durante um longo período as possibilidades reais que são dadas por essa travessia de
barreiras. Se a mistura é mal apreendida, é uma diluição, se é apreendida de uma outra maneira, é um
enriquecimento. (Trad. minha)
5
Eu argumentaria, mas através da empresa do próprio trabalho: a sua apropriação e reordenação de
material não-ocidental num quadro orientalista de pensamento e ação, que foi projetado especificamente
para o mercado internacional. Foi o britânico que primeiro fez-nos conscientes na Índia da apropriação
econômica em escala global. Eles tomaram nossas matérias-primas de nós, transportaram-nas para
fábricas em Manchester e Lancashire, onde foram transformadas em commodities, que foram, então,
forçosamente vendidas a nós na Índia. Brook trata de um tipo diferente de apropriação: ele não se limita a
levar nossos produtos e tecidos e transformá-los em trajes e costumes. Ele tomou um de nossos textos
mais significativos [O Mahabharata] e descontextualizou-o a partir de sua história, a fim de "vendê-lo" a
um público no Ocidente. (Trad. minha)
Desta forma, a criação artística baseada em trocas culturais atinge escalas mais
complexas e delicadas. A busca por diferentes formas espetaculares não-europeias é
vista como inspiradora e enriquecedora por parte dos diretores europeus, mas também
traz consigo semelhanças a atitudes exploradoras, como apontado por Bharucha.
Exploradoras no sentido de utilizar uma matéria-prima, transformá-la em um produto
comerciável (a obra de arte) e revende-la.
Longe de apontar uma teorização ou resposta, os estudos sobre trocas culturais
no teatro problematizam os atritos gerados no encontro de diferentes culturas para a
produção cênica. Como apontado por Pavis, seria presunçoso apontar uma formalização
para estas relações, devido a complexidade que pressupõem. Entretanto, sua
problematização e discussão fazem-se necessárias devido à crescente importância que o
multiculturalismo e a interculturalidade assumem na cena contemporânea. São inegáveis
as qualidades dos trabalhos de Brook e Mnouchkine, no entanto, são pertinentes as
críticas sobre o modo de enxergar uma cultura distinta e utilizar-se dela. Até que ponto
utilizar-se de determinadas fontes pode ser considerado “inspiração” e a partir de que
ponto torna-se uma atitude antiética?
Bibliografia
BHARUCHA, Rustom. Theatre and the world: performance and the politics of culture.
London: Routledge, 1993.
__________________. The Politics of Cultural Practice. Thinking Through Theatre in
an Age of Globalization. Oxford University Press, India, 2011.
PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADE
Ariano Suassuna em sua obra opta por uma estrutura in media res, ou seja, os
acontecimentos são evocados em forma de flashback. Podemos encontrar a estrutura in media
res na Ilíada, de Homero, onde o autor grego inicia a narrativa já no final dos acontecimentos,
utilizando o recurso in media res, a fim de explicar tudo o que ocorrera anteriormente, até
chegar no ponto de onde se iniciou a epopeia. Do mesmo modo, ocorre na tragédia de Édipo
Rei, de Sófocles, em que todo o passado virá à tona após as investigações em torno do
assassinato do rei Laio. Em A Pedra do Reino, o protagonista, Pedro Dinis Quaderna, situa o
leitor acerca dos acontecimentos que o levaram a situação em que se encontra - preso em uma
cadeia. Os recursos perpetrados por Carvalho retomam a estrutura in media res, em que o
protagonista vê os acontecimentos do passado, fruto da sua própria imaginação. De um lado
os fatos do passado, e do outro o Pedro Dinis Quaderna que a tudo observa no presente,
estabelecendo assim a linha divisória entre os tempos estabelecidos. Tanto a leitura da obra
quanto à apreciação da minissérie exige um leitor / espectador “avisado”, o trabalho de Ariano
Suassuna e Luiz Fernando Carvalho parece não se destinar a um público que possua poucas
referências no que concerne à cultura sertaneja, popular, que dialoga diretamente com a
cultura européia medieval e possui ecos notáveis da cultura clássica da Antiguidade.
1
cultura como os espetáculos de mamulengo, o Bumba-meu-boi e o circo, além, claro, do
cinematográfico. (Rodrigues 2010).
Sendo assim, em sua produção literária, é possível perceber, como relata Rodrigues
(2010), modelos formais dramáticos da alta literatura ocidental como também influência do
teatro religioso medieval, sobretudo ibérico, na qual se acrescentam traços elementares do
barroco, associando-se com formas estéticas da dramaturgia profana vigentes na época de
transição do período medieval para o renascimento, como a Comédia dell’Arte e de outras
estéticas que muito contribuíram para a essência Literária de Suassuna, sendo por este motivo,
uma obra de denso valor estético e cultural; de difícil entendimento.
Luiz Fernando Carvalho em sua minissérie apela para uma “suspensão da descrença” no
espectador brasileiro que já se acomodou a uma estrutura narrativa na televisão onde tudo
deve se esclarecer de maneira “plausível” e tudo deve supostamente chegar a algum lugar, ou
algum resultado. O diretor coloca em evidência o seu potencial criativo, demarcando o lugar
do diretor como também um “re-criador” da obra literária, muitas vezes acrescentando
aspectos que o autor possivelmente não havia pensado. Sob o seu olhar criativo, Carvalho
situa a vila de Taperoá em uma cidade cenográfica que possui uma perspectiva quadrangular,
o espaço representativo de Taperoá se encontra cercado entre quatro paredes de casas, e dois
imensos portões se abrem e se fecham para a entrada de personagens.
2
história da cultura e da literatura brasileira como Gilberto Freyre, Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego. Dessa forma, ressalta-se aqui, como
dissemos antes, a influência do “quixotesco” na obra do autor, dentre outras.
Possivelmente, imbuído dessa influência do rapsodo, Ariano Suassuna, seguido por Luiz
Fernando Carvalho, desenvolve uma apresentação inicial de Pedro Dinis Quaderna, conforme
podemos observar:
Na minissérie A Pedra do Reino, podemos observar que o diretor optou por fazer um
deslocamento temporal no que concerne ao cenário. Na minissérie, no momento em Pedro
Dinis Quaderna se dirige ao público explicando-os sobre a trama que está por vir, ele
pronuncia tais palavras de cima de um “carro-palco”, carro esse completamente feito de
madeira e que possui uma estrutura que segue o formato de uma casa capaz de girar 360 graus
sob o próprio eixo, na Inglaterra medieval essa estrutura era conhecida como peageant cart.
A apropriação oriunda de culturas estrangeiras de outras épocas, feita por Luiz Fernando
Carvalho, pode se relacionar diretamente com o teatro contemporâneo no que concerne a ideia
3
de apropriação como matriz estética, o que comumente entendemos por “adapatação”. Beigui
(2006) esclarece-nos que o que está em jogo na contextualização e no conceito de
“Apropriação” é sempre a experiência de leitura, a adesão aos elementos que constitui não
apenas a trama presente no texto literário, mas todo o universo de referência dos escritores em
jogo. Neste sentido, o hibridismo contido no romance de Ariano Suassuna, proporcionado por
suas múltiplas referências de ordem literária dialoga diretamente com o hibridismo das
referências teatrais que Luiz Fernando Carvalho possui.
Podemos deduzir que Ariano Suassuna se inspirou no rei Príamo, de Tróia, para compor
seu personagem. Sabemos que Príamo é considerado um modelo de rei bondoso e generoso.
A influência mítica na Pedra do Reino também se estende à tragédia grega, a exemplo da
vingança da morte do pai na trilogia de Ésquilo, Oréstia, e a temática da disputa pelo trono
entre os dois irmãos filhos de Édipo em Os Sete Contra Tebas do mesmo tragediógrafo. Em
entrevista realizada em sua residência na cidade de Recife/PE em Agosto de 2013, Ariano
Suassuna admite:
Tem um parentesco muito... inclusive, a Orestíadaé um livro que
me toca muito, e Ésquilo é um dramaturgo que me toca muito,
Ésquilo e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de Orestes
por causa daquilo que lhe disse... Então você tem Orestes... e você
em Hamlet e Horácio, filhos como Orestes de um rei assassinado.
Não é? E você tem Ariano Suassuna (Risos), filho de um rei
assassinado. (MAGALHAES, 2013, p.128)
4
Outro fato existente na minissérie, porém não na obra de Suassuna, é o momento em
que Pedro Sebastião Garcia-Barretto pede que Pedro Dinis Quaderna acompanhe seu filho
caçula, Sinésio, à Natal, onde supostamente Sinésio ficaria protegido dos rivais políticos de
seu velho pai, na casa de Swendson. Podemos também deduzir que essa atitude de Pedro
Sebastião Garcia-Barretto em esconder o filho em outra cidade está ancorada na postura
tomada pelo rei de Tróia, Príamo, ao enviar seu filho mais novo, Polidoro, para a Trácia, onde
lá estaria oculto dos inimigos de Tróia, os gregos, protegido pelo rei Polimestor. O rei da
Trácia, contudo, ao saber da queda de Tróia, mata Polidoro, e na tragédia de Eurípedes
intitulada Hécuba, Polimestor é alvo da vingança de Hécubapela morte de seu filho caçula.
Nas últimas partes da minissérie e da obra, Pedro Dinis Quaderna está enfrentando um
inquérito. Lembremos que o romance começa com a narração de Quaderna feita a partir de
sua cela na cadeia, todo o romance se constrói no objetivo de esclarecer ao leitor como o
protagonista chegou àquela situação. Duas situações sustentam o eixo narrativo do romance
de Suassuna; a morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto e achegada de Sinésio à vila de
Taperoá após cinco anos de desaparecimento, o que ocasiona a disputa política entre os dois
irmãos Arésio e Sinésio.
Podemos observar que na obra de Ariano Suassuna, Sinésio é descrito por Quaderna
como o grande esperado pela população de Taperoá, que crê que será libertada da miséria e da
opressão quando Sinésio a ela retornar. Esse caráter messiânico de Sinésio, diretamente
inspirado em Dom Sebastião, é potencializado por Luiz Fernando Carvalho que, designou
para o papel um ator que possui feições semelhantes às que as pessoas genericamente
atribuem a Jesus Cristo, cabelos compridos e olhos claros. Em dissertação escrita sobre o
Romance d’A Pedra do Reino, podemos observar:
5
irmão mais velho (Arésio) que diz ter visto o cadáver de Sinésio.
(MAGALHÃES, 2013, p. 96)
A postura altiva e silenciosa de Sinésio montado em seu cavalo branco utilizando uma
armadura, como mencionado anteriormente, também nos remete à duas figuras lendárias que
habitam o imaginário do povo cristão; São Jorge o Apóstolo Santiago. Luiz Fernando
Carvalho coloca grande ênfase na temática do “retorno do Rapaz-do-Cavalo-Branco”,
lembremo-nos que o apóstolo Santiago é também conhecido como Rapaz-do-Cavalo-Branco
e, segundo relatos, foi visto combatendo os mouros junto aos espanhóis, passando a ser
conhecido como Matamoros. Na obra de Ariano Suassuna, bem como na minissérie, Sinésio é
visto como um personagem mítico e também descrito como “Rapaz-do-Cavalo-Branco”.
Nas cenas referentes ao inquérito na minissérie, podemos observar que é onde há,
possivelmente, maior trabalho de ressignificação do espaço de representação e maior
metateatralidade. Enquanto na obra de Ariano Suassuna podemos observar uma narração feita
a um juiz-corregedor, Luiz Fernando Carvalho traz para a cena, além do depoimento de
Quaderna, personagens que surgem naquele recinto, à medida que Quaderna os evoca. Vale
ressaltar que, ao se apropriar da linguagem cinematográfica, e mais especificamente no
formato televisivo, Luiz Fernando Carvalho possibilita desdobramentos na narrativa do
protagonista, já que a linguagem fílmica permite tais recursos, fato este não explorado por
Suassuna na linguagem literária. Deste modo, ao mesmo tempo em que os personagens
pareciam estar literalmente ali, sendo vistos tanto por Quaderna quanto pelo corregedor, cabe
ao espectador compreender que aqueles personagens não se encontravam ali, todos eles
compunham a imaginação de Quaderna, e todos se “materializavam” ali sentados assistindo
ao seu inquérito como se todos estivessem diante de um monólogo. Denotando mais uma vez
seu teor puramente metateatral.
A guisa de conclusão, podemos entender que Luiz Fernando Carvalho se utilizou das
inúmeras ferramentas que o teatro pode fornecer para recriar o espaço de representação do
romance de Ariano Suassuna. O diretor utiliza-se com maestria do elementos inerentes ao
teatro simbólico como a alegoria, a metonímia e a metáfora. Como exemplo de alegoria
podemos observar a utilização de uma mulher nua, com seu corpo pintado em tons vermelhos
e negros, como representação da morte; a mulher caetana. Na minissérie na cena em que
ocorre o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto o diretor coloca também mulheres de
aspecto luxurioso, com seus corpos pintados de vermelho, utilizando asas metálicas nas costas
como representações alegóricas da morte que se aproximava do ancião. A representação da
Pedra do Reino situada no sertão de Pernambuco se dá de maneira metafórica e metateatral;
em vez de o ator que interpreta Pedro Dinis Quaderna, Irandhir Santos, se deslocar
literalmente ao sertão de Pernambuco para estar de frente com a Pedra do Reino, são
6
estendidas duas grandes lonas com a representações pictórica das duas pedras. E como
exemplo de uma representação metonímica; podemos utilizar o carro-palco que se constitui
como um índice que é sempre utilizado para transições de tempo e espaço no decorrer da
minissérie. Desse modo, podemos concluir que Luiz Fernando Carvalho através de sua
minissérie mostra ao espectador que o teatro é um espaço poroso para a inventividade, o
diretor mostra que o Teatro pode se reinventar em diversos aspectos que tecnologia do
Cinema pode talvez não acompanhar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEIGUI, Alex. Dramaturgia por Outras Vias: A Apropriação Como Matriz Estética do
Teatro Contemporâneo – Do Texto Literário à Encenação. São Paulo/SP: Universidade de
São Paulo, 2006. (Tese de Doutorado)
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RODRIGUES, Wellington. A Representação do Diabo no Teatro Vicentino e seus Aspectos
Residuais no Teatro Quinhentista do Padre José de Anchieta e no Contemporâneo de Ariano
Suassuna. Fortaleza/CE: UFC, 2010 (Dissertação de Mestrado)
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta.
9ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
________________. Almanaque Armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MAGALHAES, Yuri de Andrade. A Travessia do Trágico no Romance d’A Pedra do Reino
de Ariano Suassuna. Natal/RN: UFRN, 2013. (Dissertação de Mestrado)
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TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
Autores:
Zilá Muniz; Orientador: prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e PPGT,
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mayana Machado Marengo
Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer Nunes;
Instituição: PPGT, UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Nastaja Brehsan; Orientador: Prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e
PPGT, UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Cláudia Simone Oliveira do Nascimento (bolsa CAPES); Orientador Stephan Arnulff
Baumgärtel; Instituição: PPGT,UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Este artigo faz uma reflexão a partir do conceito de campo potência como
possibilidades de emergência co-compositivas do coletivo Estratégia no espaço da
cidade e o jogo como principio de agenciamento disparador das ações executadas em
tempo real. Análise de aspectos da improvisação na relação entre indivíduo e coletivo,
entre performer e espectador como fenômeno de articulação da criação do evento. O
campo de experiência viva como nó de relações e como ecologia que ativamente
compõe-se também na migração de afeto e que dá ao evento intensidade duracional.
Estratégia articula a partir do movimento relacional e cria conexões e estabelece
relações a partir da improvisação como técnica de co-composição do evento emergente.
Pensar sobre os modos de percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo
de ação para que se desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo. O jogo
como ativador do movimento relacional para habilitar restrições na improvisação.
Estratégia! Esse é o grito que iniciou, e que finda nosso encontro a cada novo
espaço. Somos vários a articular no tempo-espaço, no aqui agora, possibilidades de
emergência do evento, o que pode depender de nós, mas não somente de nós, pois é o
espaço que tece junto a dramaturgia. Dançamos no espaço da cidade a olhar a dança que
a rua nos dá. Captamos fluxos, ações, cheiros e olhares. Renunciamos desejos,
propomos quando enxergamos o caminho, e nos transformamos no desejo comum,
quando o encontro torna-se potente.
Estratégia é como um campo potência em que se não há campo não há jogo e as
restrições que habilitam a improvisação perdem força. O campo é o que é comum para o
potencial de improvisação, é o que atualiza o jogo, também são versões deste que
coexistem com o atual e subsequentes evoluções do mesmo. Ou seja, não pode ser
considerado como forma mesmo que se desdobre em estados de forma embrião. Neste
sentido Estratégia como campo potência é analisado como um campo que forma
entidades de diferentes topologias e de diversas ordens causais a partir dos indivíduos e
do espaço que se origina e da forma que retorna. Para Massumi (2002, p. 34) esse
estado germinal não deve ser considerado uma estrutura implícita ou uma forma, mas
deve ser entendida como um feixe de potenciais. Para cada momento de atualização da
improvisação existe a possibilidade emergente de surgir uma forma ou uma estrutura,
porém esta se dissolve e se desloca em relação ao próximo momento e agrega nesse
processo elementos com os quais está em tensão. Por isso a imprevisibilidade e a
necessidade de escuta e do estado de prontidão e disponibilidade que rigorosamente é
fundamental para que Estratégia aconteça como um evento coreográfico.
Erin Manning (2013) pensa sobre o conceito de coreografia não como um
princípio de organização de corpos pré-constituídos, mas sim como uma técnica para
acionar e desencadear a modelagem expressiva de uma atividade incipiente em direção
à definição de um evento de movimento. “Coreografia é um verbo – a atividade de
organizar relações entre corpos” (Klien, Valk and Gormley apud Manning, 2013, p. 76).
O que sugere que a coreografia trabalha as relações entre corpos e que não se defina
como uma prática feita pelo homem para o homem, e sim que é uma prática que se
fundamenta em como o evento por si próprio se conecta com um “milieu relacional que
excede o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
(Manning, 2013, p. 76). A maneira como um evento coreográfico se constrói parte das
relações que surgem entre todos os elementos que o constituem, é, portanto no “entre”
que num campo de forças os elementos se conectam para dar sentido.
Estratégia é um campo de possibilidades de emergência co-compositivas do
coletivo Estratégia, no espaço da cidade e tem no jogo o principio de agenciamento
disparador das ações executadas em tempo real. O evento Estratégia acontece “com” o
espaço, que busca meios de compor com a sua configuração movediça, com o agora que
temos, sem a intenção de transformá-lo, ou de inter(ferir) nele, mas com o desejo de
perceber e evidenciar seus fluxos como potência. Estratégia ativa o espaço e se resolve
como uma ecologia, em que todos os elementos que compõe o ambiente atuam na sua
formação. Nós temos algumas pistas ou restrições para o desenvolvimento de
Estratégia: um percurso sugerido, um modo de deslocamento em filas, um início, e
alguns sinais estabelecidos para um final. Não temos um dar a ver, mas um dar-se ao
outro que, ao nos retribuir, permite que o evento se configure. Dançamos no encontro e
sobre o efeito dos afetos que nos incorrem e o que desencadeia o evento pode ser
qualquer um dos elementos que constitui esta ecologia.
O afeto é o saldo do encontro entre corpos, como nos esclarece o filósofo
holandês Bento Espinosa (1992), o corpo é constantemente modificado diante das
relações, o que pode aumentar ou diminuir sua potência de agir. Se já no Século XVII
Espinosa nos sugeria a potência dos encontros, porque ignorá-la agora. A proposição
espinosiana de afeto trata da vida se fazendo e refazendo em interação com outras vidas.
Em um processo de negociação entre o que há de perceptível e não perceptível, entre os
arrebatamentos do encontro os desejos sobressalientes. Trata-se do trânsito entre a ação
– que são as minhas vontades; e a paixão – que são as vontades que não vêm de mim. O
resultado dos encontros são os bons e maus afetos, como alegria e tristeza, por exemplo.
Ao identificá-los em uma percepção imediata do que se imprimiu no corpo, operaríamos
na possibilidade de compreender, e em certa medida potencializar ou refrear seus efeitos
por meio das paixões ativas.
A filósofa francesa Chantal Jaquet (2011, p. 126) afirma que Espinosa “restringe
o domínio dos afetos somente às afecções que aumentam ou diminuem, ajudam, ou
coíbem a potência de agir”. Segundo ela, Espinosa chega a fazer uma separação do que
são afetos e afecções. A admiração é afecção mais não é afeto. Alegria e tristeza o são
porque alteram nossa potência de agir. Desta forma, Jaquet (2011, p. 124) conclui que
“todo afeto é uma afecção, mas nem toda afecção é um afeto”. Segundo a autora, a
afecção é uma espécie de estado da essência humana, inato ou não, em suas
transformações no tempo, seja atribuído pela extensão seja pelo pensamento.
Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa
(1992) as expõe, a presença do artista em relação com o espaço consideraria também as
afecções que circunscrevem o encontro. O bailarino/performer é capaz de afetar com
sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público e a
configuração do espaço lhe causam. Nas palavras de Espinosa: “Por afeto, entendo as
afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções” (1992, p.
267). O filósofo holandês traz as proposições de afecção e afeto nesse trânsito entre o
afetar e perceber-se afetado.
O afeto, segundo exposição do filósofo francês Gilles Deleuze, é o que não
representa nada, que não está relacionado ao sentido, à ideia de algo, como o sentimento
de amor, angústia ou esperança, “que qualquer um chama de afeto” (1978, p. 2). Para
Deleuze, o afeto trata de “uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira
alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado
numa ideia, mas o fato de querer não é uma ideia, é um afeto, porque é um modo de
pensamento não representativo” (1978 p. 2). A noção de afeto (affectus) liga-se,
portanto, ao que escapa a definições de significado, e está relacionada às afecções do
corpo e suas percepções no ato de afetar e ser afetado.
Simon O’Sullivan (2011) vincula a produção de afeto à proposição artística,
reconhecendo os efeitos que um corpo ou um objeto artístico pode ter sobre o outro
corpo. Mas ao considerarmos a acepção espinosiana de afeto haveremos de considerar
também que se trata de algo em trânsito, emergente da relação, mas não
necessariamente passível de controle. Ou seja, o bailarino/performer não poderia
antecipar o que o espectador vai apreender da experiência artística. Quando vamos para
o espaço da cidade, somos afetados por ele, do modo em que ele está, e operamos na
reverberação desses afetos apreendidos, por nós, mas não temos uma garantia de que
nossa presença afetará o público participante do mesmo modo que somos afetados.
Porém, como acontecimento, iremos afetá-los, isto é certo, mas, no entanto são
imprevisíveis as intensidades que esta relação de afetos constrói.
Já vivemos situações muitos distintas na realização do percurso em Estratégia,
fomos completamente ignorados, tivemos cúmplices, dançarinos, pessoas nos ensinando
a dançar, intimidamos, fomos intimidados, aplaudimos, fomos aplaudidos, e em muitos
momentos não passávamos de pedestres anônimos na sequência de um fluxo surdo do
cotidiano. Provocar estranhamento? Nem sempre. Propor poesia, sempre que possível,
mas vê-la emergir do encontro, isso sim nos interessa, porque é vivo, é fresco, cheio de
ar, acontece em tempo real por meio da improvisação. Nós nos movemos em busca
desses instantes e somos movidos por eles.
Nós subimos escadas, mesas, muros, árvores. Convidamos a olhar para cima. –
Vai cair! Você tem idade para subir na árvore? Disse um passante/participante. E
alguém perguntou: – Tem idade pra subir na árvore? E outros subiram, e subimos
sempre que podemos.
Dia desses estávamos nós, a dançar “com” a Rua Felipe Schmidt e a procurar
encontros, afetos e eventos. Eis que surge um momento para explorar essa configuração
mais vertical da cidade. Nessa rua não tem árvore, mas tem poste. Egon olha para
Milene com convicção, olha para o poste. Os outros integrantes do grupo logo se
direcionam para compor este momento de tensão. Pequena pausa... Milene vê uma
criança de 10 anos e diz: – Eu preciso subir ali, será que você poderia me ajudar? Ela,
não hesita, mesmo com a diferença de tamanho entre as duas. Alguns dos passantes, ao
verem aquela situação contraditória, se comovem, e logo se juntam a menina. Era difícil
subir, Milene não escondia a dificuldade. Ela percebeu que a aparente fragilidade da
criança, a voz e pernas trêmulas, e o engajamento dos integrantes do grupo é que as
mantiveram ali, todos envolvidos naquele instante poético (ou patético, ou estranho –
dependendo da perspectiva). Compúnhamos, com corpos, desejos e fragilidades a dança
na cidade. O público é quem decidia se Milene deveria prosseguir na subida arriscada
ou parar. Paramos a surda Rua Felipe Schmidt que, por alguns minutos, se dedicava ao
não funcional/comercial. E continuamos com nossa estratégia de encontro e a
improvisação seguiu seu fluxo.
A pesquisa que por alguns anos o Ronda Grupo desenvolve (Estratégia desde
2009) para dar tratamento ao trabalho na rua tem como ferramenta principal a
improvisação. Da sala de ensaio para o espaço da cidade, seja ele qual for, trouxe
dificuldades e ao longo da prática e da pesquisa percebemos que a improvisação como
jogo para a abordagem da criação de eventos coreográficos nos resulta eficiente. Vários
aspectos foram demarcados e um olhar sobre alguns vetores que criaram ressonância no
mundo da dança servem como referencia para o trabalho que discutimos aqui neste
estudo.
Foi a partir da década de 1960 que um novo modelo cultural surgiu e
transformou o modo de olhar e fazer arte, assim como a sua noção. Neste período ideias
como paisagem urbana, comunidade, liberdade de normas, vida comum, diversão e
fisicalidade foram apropriadas. Surgem assim novas estruturas, padrões de composição
e técnicas de criação. Tanto o Judson Church Dance Theatre paralelo ao movimento da
Nova Dança trouxe a estruturação dos jogos, tarefas e acontecimentos em improvisação,
que encarnaram o ideal de liberdade e desenvolveram uma nova inteligência do corpo
que dança e cria em contraste com a formulação de decisões conscientemente
predeterminadas. Os artistas nestes movimentos investigaram as formas de dilatar a
espontaneidade, a informalidade e a ação coletiva na produção e na performance.
Preceitos estéticos foram pervertidos e caracterizados pela experimentação do
movimento e por novas possibilidades de estruturação coreográfica. A improvisação
como um elemento transformador se estabelece como uma prática amplamente
desenvolvida que cria ressonâncias tanto na dança como no teatro, sua prática constante
e com rigor acentua e valoriza as diferenças, ao ressaltar as imperfeições e as
especificidades de cada corpo. Como técnica a improvisação oferece suporte para tornar
o corpo mais hábil, responsivo e criativo para enfrentar e compor com diversas
situações em tempo real. Aliada a outras técnicas de formação, a improvisação também
amplia e fortalece o vocabulário do bailarino, fazendo com que os movimentos sejam
aprendidos, incorporados e reorganizados o tempo todo com o vocabulário e o contexto
ao qual este corpo é submetido.
Estratégia utiliza-se da improvisação e de seus princípios como técnica de
criação e de agenciamento, justamente porque todo agenciamento pressupõe um
território e ações de um coletivo. A improvisação com restrições (dadas por nós e
impostas pelo espaço) tem o ambiente como ponto fundamental disparador das ações.
Estratégia retira o corpo do seu lugar de conforto e o entrelaça em uma rede de
negociações ao espaço da cidade. Como evento coreográfico a improvisação por meio
do jogo estabelece ou fortalece conexões e sentidos e ativa o espaço, “considerando-o
poeticamente sob todos os ângulos, entregando-se a sucessivas impressões
relacionando-se (grifo nosso) e as traduzindo todas ao mesmo tempo no presente”
(Muniz, 2004 p. 61).
Estratégia exige que durante o trajeto percorrido, o passeio realizado aconteça
de “janelas abertas”, que é uma analogia que encontramos para relacionar com a
consciência do bailarino, sua presença e seu estado de atenção. Este estado de prontidão,
de escuta e de atenção é o que assegura a troca e o dialogo constante entre o grupo
e/com o meio. Com efeito, isso permite que os corpos integrem-se ao movimento e
fluxo que cada espaço imprime, engendrando relações que em sua totalidade ressalta e
intensifica sentidos, direciona olhares, recria espaços ou possibilita novas experiências
aos transeuntes.
Durante a improvisação os corpos dos bailarinos/performers, com tudo que cada
um é reúne e compõe com o meio e conduz a cena através dos movimentos num corpo
que busca encontrar sua própria integridade dentro de um coletivo. O principal desafio é
como cada indivíduo traz através da criação sua contribuição para a pesquisa e como
esta contribuição se torna material para o coletivo. Qual a medida para que isto
aconteça? Qual é o limite entre o desaparecimento do eu ou o fortalecimento do
coletivo?
A cada uma das apresentações/ensaios o que nós começamos a perceber é que
esta charada se desvenda através dos eventos que se criam, principalmente quando
afetamos as pessoas que por ali circulam. Portanto é afetar-se e afetar. Básico, mas
difícil de dar conta, tudo ao mesmo tempo, são camadas e camadas de restrições, de
repertório de material, de comandos, de tarefas e principalmente o estado de estar atento
e acima de tudo as diversas relações entre os elementos que compõe o ambiente. É abrir
as janelas e olhar o mundo. Como o espaço contribui para o que começa a surgir? No
caso aqui, com uma trajetória de passeio, com o movimento e com o fluxo destes
espaços, porque passamos por diferentes ambientes e dinâmicas que acabam por nos
fazer repensar as noções de estar na rua e de refletir sobre como olhamos o mundo. Por
estas e outras temos que estar flexíveis e alertas para que o inesperado seja incorporado
e passe a ser material de criação. A improvisação em Estratégia, além de possibilitar
uma gama maior de material coreográfico, permite o surgimento de eventos no
firmamento de novos acordos e conexões espaciais, ampliando e recombinando
estruturas sociais inseridas na cidade.
Outro rastro que é consequência do movimento que se instaurou desde as
vanguardas artísticas é como a arte vai explorar novos espaços, além dos idealizados
pelas instituições, configurando na cena contemporânea uma composição com o espaço
cotidiano da vida. É assim que Estratégia se torna um evento coreográfico, numa
aproximação com a realidade do espaço onde se insere e com o público/espectador que
ali transita. Ou, num passeio que cria eventos e produz desvios da obra artística que se
dilui na efemeridade do instante presente, do artista, que se imiscui nesse espaço
tornando-se às vezes anônimo, e do espectador, que algumas vezes torna-se protagonista
neste espaço improvisado. A poética em Estratégia dialoga com o mundo, que se reflete
no percurso objetivo e subjetivo desse passeio que promove encontros, relaciona-se com
a arquitetura e a dinâmica da cidade, a partir do modo de conceber/ocupar este espaço.
Uma dinâmica que também gera alterações no artista, no espectador e na arquitetura, ao
produzir uma revitalização da cidade, enquanto espaço público, como observa Paola
Berenstain Jacques (2005), a respeito de intervenções artísticas que transformam o seu
entorno.
O sentido de revitalização aqui não seria mais o econômico, mas sim o de vitalidade,
como vida decorrente da presença de um público e atividades diversificadas – só
poderia se realizar de forma não espetacular quando ocorrer uma apropriação popular e
participativa do espaço público, o que evidentemente não pode ser completamente
planejado, predeterminado ou formalizado. A maior questão das intervenções não
estaria na requalificação em si do espaço físico, material – pura construção de cenários
– mas sim no tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, na própria apropriação
pública desses espaços. Somente através de uma participação efetiva o espaço público
pode deixar de ser cenário e se transformar em verdadeiro palco urbano: espaço de
trocas, conflitos e encontros. (Jacques, 2005, p. 19).
Na busca pelo diálogo do corpo que dança com o corpo social urbano,
abordamos em Estratégia uma intenção de aproximar a arte da vida, do seu pulsar e sua
imaginação constante e pulsante, saindo do espaço confinado dos teatros e salas de
ensaios e deslocando-se para cidade. Contudo, Estratégia surge sem o intuito de colocar
uma obra pronta num espaço urbano, mas de investigar e se apropriar da dinâmica, dos
fluxos de movimentos e comportamentos urbanos para criação artística. Esta proposição
provoca uma ação que rompe com o olhar contemplativo da estética tradicional e
propõem experiências e investigações efêmeras, propositoras de espaços relacionais
entre a arte e principalmente entre a dança e a sociedade.
Nesse sentido, Estratégia dialoga também com a ideia de site specific, tendência
contemporânea de produção artística que se volta para o espaço congregando ou
transformando a obra ao sítio. Um evento site-specific de dança é criado para
existir também em um determinado lugar. O evento coreográfico é gerado por meio de
pesquisa e de interpretação de uma matriz original do site cultural, através das
características e topografias que podem ser arquitetônicas, histórico-sociais ou
ambientais. Não se trata de uma paisagem contemplativa, pois traçamos ali infinitos
percursos em que vivemos, sentimos, criamos, construímos e reconstruímos o espaço,
utilizando todos os nossos sentidos e nos relacionando com ele/nele de diferentes
maneiras, criando memórias afetivas. Desta forma, Estratégia trabalha para descobrir o
sentido contido como memória e desenvolver técnicas para ativar, ampliar, reconfigurar
ou ignorar o espaço da cidade.
Segundo Bennaton (2009) “as ruas seriam espaços que despertam memórias,
significados, ações e transformações, em experiências”. Se o espaço é reconstruído de
acordo com as nossas experiências e construção de memórias afetivas, entendemos que
ele pode ser considerado fluido, pois esta em constante fluxo de transformação. Assim,
Estratégia brinca com a possibilidade de vivenciar o espaço, significa levar o indivíduo
ao campo da experiência cotidiana, colocando-o numa postura ativa e inter(ativa). Pois
longe de idealizar o espaço pré-concebido, o corpo do bailarino/performer como
acionador de potência criativa poética, torna-se um construtor de territórios afetivos e
relacionais. Ou seja, pensa e ativa a cidade e sociedade como um espaço de relações
comunicativas e afetivas que se constroem a partir de contextos e relações. E por meio
da dança coloca em/na cena um sujeito em trânsito, num movimento constante e em
conexão permanente com o meio.
Esta forma de interação pode remeter à ideia de revolução urbana do
situacionista Guy Debord (1997), que sinaliza em seus textos a importância de uma arte
independente, fundamentalmente urbana e que crie situações de liberdade possibilitando
as relações entre os ocupantes deste espaço. No trabalho de criação artística desta
natureza precisa-se de mediações para que o movimento, a ação, o pensamento e a
comunicação possam acontecer. As mediações são feitas a partir de códigos, gestos,
textos, espaços e do corpo. Para tanto, certos eventos e restrições são pré-estabelecidos
na improvisação para que possam ser habilitadas e ativam-se no espaço. Contudo, o
evento coloca o espectador e o bailarino/performer numa posição de incertezas onde
todos tem que decidir o que fazer e como encarar o que lhe é proposto ou o que emerge
do contexto como uma unidade de grupo, como um coletivo.
Referencias
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dramatico: um conceito operativo?. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 127- 150 –
(coleção debates)
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