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Sessão: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

Título: PISCINA […]: MERGULHO EM UM ESPAÇO DAS ARTES VISUAIS

Alvaro Levis de Bittencourt; Faculdade de Artes do Paraná; Unespar

Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu.


Um homem atravessa este espaço enquanto outro o observa.
Peter Brook

Este trabalho pretende abordar a influência do espaço de apresentação no


processo de criação e execução da peça teatral piscina […] de Mark Ravenhill, dirigida
e traduzida por Alvaro Bittencourt e produzida por Anna Zétola através da empresa
Zétola Atelier de Artes. O espetáculo estreou no dia 07 de maio de 2014 e realizou
temporada até o dia 01 de junho, sendo apresentada no Espaço Araucária, sala de
exposições do Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, Paraná. A intenção deste trabalho é
a de a refletir sobre esta influência através de duas perspectivas: a do espaço material e a
do espaço conceitual.
Quando se opta por um espaço alternativo para a apresentação de uma peça
teatral, pretende-se que o espaço colabore em termos significantes com o projeto. Esta
colaboração pode se dar porque o espaço tem o potencial de agregar sentido conceitual
ao espetáculo e/ou porque a estrutura do local pode colaborar com a ambientação fisico-
cenográfica do mesmo. No caso da peça piscina [...], creio que esta colaboração se deu
nos dois sentidos, entretanto, por razões analíticas, cada perspectiva será abordada
isoladamente. Portanto, abordo primeiramente a questão do espaço material e neste caso
estou considerando, obviamente, a conformação arquitetônica do local, as possibilidades
de uso que a planta do espaço permitiu e demais características físicas do espaço.
Desde a gestação do projeto, há três anos, sentia-se a necessidade de produzir
uma espacialidade material específica para concretizá-lo. Foi interessante reler, neste
momento, o que eu mesmo escrevi sobre o local que antevia para a realização do
espetáculo no projeto enviado em 2011 ao Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da
Fundação Cultural de Curitiba. Transcrevo abaixo, um parágrafo deste texto para
colaborar com a reflexão.

O espaço de apresentação não será um palco convencional. A plateia deverá se sentir envolvida
pelo espetáculo e próxima dos atores. Isso é fundamental, principalmente na cena em que acontece a festa
em volta da piscina e o acidente, que constitui um clímax dramático da peça. Consequentemente, o espaço
deverá propiciar liberdade aos atores para recriarem, através dos seus próprios recursos expressivos, os
ambientes internos e externos do enredo, bem como para se aproximar da plateia nos momentos que
exigirem mais intimidade.

Percebe-se, no texto acima, um desejo de desconstrução da espacialidade tradicional do


ambiente teatral a favor de dois objetivos: o envolvimento entre público e elenco, e a
versatilidade para a criação de ambientações sem a necessidade de contar com uma
cenografia propriamente dita.
Na peça pool (no water) de Ravenhill os atores representam integrantes de um
grupo de artistas plásticos e o texto discute a relação destes com uma componente que
atingiu a “fama” e se afastou dos colegas – uma relação caracterizada pela dicotomia
“atração e repulsa”. O autor não constrói personagens específicos para a trama, ao

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contrário, todos os atores falam em nome do “grupo”. A espacialidade colaborou,
portanto, no sentido de que os espectadores podiam ser posicionados de forma a se
sentirem parte deste grupo, uma vez que compartilhavam o mesmo espaço que os
atores. Desta forma, “a percepção é dominada não pela transmissão de signos e sinais,
mas por aquilo que Jerzy Grotowski chamou de 'proximidade dos organismos vivos',
contrária à distância e à abstração” (LEHMANN, 2007: 265).
Quando o público adentrava o espaço, confrontando-se com projeções na parede
dessa sala vazia e com os atores sentados no chão ao fundo, já estava emitida a
mensagem de que esta atividade demandaria uma atenção diferenciada. A plateia é
induzida a se colocar em uma perspectiva que é diferente da de um espectador habitual
de teatro. O espaço praticamente impõe isto. De alguma forma, ele já está participando
dessa peça que tem características de instalação, na qual ele está imergindo.

Esse deslocamento para espaços incomuns à objetivação artística [neste caso teatral] tem origem
nas experimentações das artes plásticas – instalações, environments, land art – e nos conceitos da
arquitetura moderna (Bauhaus, Frank Loyd Wright, Le Corbusier) de apropriação do espaço público
enquanto topos da artisticidade. (COHEN, 2006: 101)

Conforme os atores iniciam o texto, o caráter de imersão no espaço da peça se


intensifica, visto que os atores se aproximam cada vez mais do público. No decorrer dos
dez primeiros minutos do espetáculo, os espectadores são direcionados para a parte
central da sala, onde finalmente são colocadas cadeiras giratórias para que eles sentem
confortavelmente, enquanto os atores circulam à sua volta como se fossem as obras de
arte expostas nas paredes iluminadas da sala. Sônia de Azevedo (2010: 149) também
observa este fato quando sustenta que o “corpo do ator pós-dramático é uma incômoda
presença a nos lembrar, todo o tempo, quem somos, como somos. E é, ao mesmo tempo,
obra de arte em si. Corpo tornado, inteiramente, inexoravelmente, arte”. A observação
de Azevedo está associada, contudo, ao âmbito de “lugares pós-dramáticos”, o que não
invalida que a observação seja feita no âmbito de outras teatralidades que tenham
características similares quanto à exposição do corpo do ator. No caso de piscina [...], a
ocupação do espaço pelos atores através da proximidade de seu corpo com o público
propiciava a criação de um “lugar” de sedução desconfortável, fazendo também
referência ao conceito de “arte abjeta” que tem como característica a exposição do
corpo, bem como a dicotomia “atração e repulsa”.
Na montagem, os atores circulavam praticamente por toda a sala de
apresentação. Quando o elenco posicionava as cadeiras giratórias no centro da sala,
configurava uma plateia formada por dois conjuntos de quinze espectadores, um de
frente para o outro, separados por um largo corredor vazio. Considerando essa
conformação de plateia, os atores podiam circular livremente em volta do público, bem
como utilizar o corredor que ficava entre os dois grupos. O público, por sua vez,
sentado em cadeiras giratórias, podia acompanhar livremente a movimentação dos
atores.
Sendo assim, quando os atores circulavam em torno da plateia envolviam o
público em suas ações. Ao contrário, quando se posicionavam no corredor ao centro da
sala eram envolvidos pelo mesmo. Nos dois casos, estava presente a sugestão de que os
espectadores eram parte deste grupo de artistas da peça ou, no mínimo, que eram
cúmplices dele. As cenas da peça eram representadas alternadamente em todas estas
posições.
Ponderando sobre a flexibilidade do espaço, uma sala de exposições me parece

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ter como uma das características principais a neutralidade. Esta neutralidade, é uma
qualidade funcional do espaço que possibilita, precisamente, que o mesmo abrigue as
mais diversas manifestações estéticas. Desta forma, o local serviu como uma folha em
branco, que permitia aos atores desenhar os mais diversos ambientes. A sala de
exposições do museu passou a ser o cenário onde eram exibidas as várias facetas da
relação entre “o grupo” e a personagem “ela”.
Em termos de concepção do espetáculo, a meu ver, o maior influência do espaço
foi no sentido de sua interferência na marcação da peça. O processo de montagem de
piscina [...] caracterizou-se por uma construção cênica pautada na criação física como
elemento constitutivo do trabalho de atuação, o qual acabava também se desdobrando
em marcação. A marcação foi, portanto, um elemento essencial na montagem. Para
entender melhor esse encadeamento criativo despertado pelo trabalho físico, podemos
usar as palavras de Sônia de Azevedo quando se refere à técnica corporal.

A técnica corporal, quando a serviço da interpretação, liga-se diretamente à descoberta e


utilização dos recursos pessoais do ator (recursos psicofísicos) por meio da passagem ininterrupta dos
impulsos para as formas, das formas servindo como “isca” para novos impulsos e assim por diante: uma
experimentação das possibilidades visíveis e invisíveis da transformação contante. (AZEVEDO, 2009:
278)

Ou as palavras de Matteo Bonfitto quando afirma que a ação física acaba se


transformando em “elemento estruturante do fenômeno teatral”.

Poderíamos, então, reconhecer outra característica da ação física: a ação física como possível
célula geradora de outras poéticas e práticas teatrais.
Dessa forma, a partir de tais considerações, resultantes das análises feitas aqui, torna-se
pertinente levantar a hipótese da ação física como elemento estruturante do fenômeno teatral.
(BONFITTO, 2011: 121)

Em outras palavras, iniciávamos a abordagem das cenas com um processo livre


de criação física, porém o processo de elaboração das cenas que se seguia era
estruturado a partir da planta do espaço e, principalmente, da posição em que
pretendíamos que a plateia fosse colocada. Desta forma, as cenas foram ensaiadas
isoladamente de acordo com o lugar que ocupariam na sala de apresentação. Levando
em conta a perspectiva dos atores, consequentemente, o posicionamento do público
também se modificava para cada unidade de trabalho ensaiada.
Considerando esta questão, a dinâmica de ensaios criou uma dificuldade para os
atores. Por não estarem, a princípio, tão cientes da planta do espaço e por ensaiarmos
em uma sala bem menor do que o espaço de apresentação, eles se sentiam um tanto
perdidos para resolver a equação entre a posição dos atores e a posição dos
espectadores.
Entretanto, acredito que o maior desafio que o espaço impôs para o elenco foi a
proximidade com o público. Em primeiro lugar, esta proximidade extrema para com os
espectadores determinou um estilo de interpretação muito sútil que foi perseguido
durante o processo de ensaios. Os gestos, as expressões faciais e a projeção vocal
tiveram que ser cuidadosamente dosados para se adequar a essa pequena distância. Essa
adequação no “tom” da atuação não foi fácil de determinar, pois ao mesmo tempo que o
espaço pedia sutileza, o texto pedia intensidade. Acredito que, como diretor, somente
consegui perceber qual seria essa “dosagem” nas últimas duas semanas de ensaio,
quando nos transferimos para a sala de apresentação. Só então, pude dar orientações

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mais precisas para os atores, pontuando em que momentos seria interessante suavizar a
interpretação.
Por outro lado, a proximidade e a disposição do elenco no espaço determinavam
que qualquer mínimo movimento, olhar ou som fosse percebido pela plateia. Além do
mais, em nossa montagem todos os quatro atores protagonizavam a peça e estavam
presentes o tempo todo em cena. Ou seja, independentemente de falarem ou não o texto,
eles estariam sendo cuidadosamente observados pelos espectadores, os quais muitas
vezes enquanto observavam um ator que estava mais próximo de si, prestavam atenção
no texto que outro ator enunciava do lado oposto da sala. Concluindo, qualquer tipo de
ação dos atores tinha que ser incorporada à estética e à ação da cena. Sendo assim não
lhes era permitido nenhuma pausa de atuação, o elenco deveria representar durante todo
o tempo de duração do espetáculo, ou seja, aproximadamente uma hora. Obviamente,
isso exigia muito dos atores, tanto fisicamente, quanto em termos de concentração.
Um terceiro fator ligado ao espaço que influenciou o trabalho dos atores foi a
questão do compartilhamento com a plateia. Como o texto de Ravenhill é, em termos
gerais, uma narração – um grupo de artistas está narrando sua história para o público,
era fundamental que o elenco compartilhasse sua atuação com os espectadores. Isto os
aproximava ainda mais do público e reforçava sua atuação. No entanto, devido à
distribuição dos atores na sala esse compartilhamento era muito dificultado. Em alguns
momentos estavam bastante distantes ou obstaculizados por parte da plateia, em outros
momento estavam muito próximos dos espectadores. Muitas vezes também se
encontravam de costas para o público ou no chão abaixo do mesmo. O público, por sua
vez, poderia estar de frente para um ator mas de costas para o outro. Além disso, quando
os atores direcionavam um texto para os espectadores, trazendo-os para si, não o
podiam fazer de maneira geral para a plateia como se faz em um palco tradicional. Eles
eram forçados a fazê-lo olhando nos olhos dos espectadores, o que torna a ação muito
mais desafiadora. A equalização dessa triangulação, creio que somente foi atingida na
prática com o público durante a primeira semana da temporada.
Focando, agora, a atenção na questão do espaço conceitual escolhido para a
montagem, reflito no espaço enquanto condição que precede o espetáculo, tanto na ótica
do público, como na dos criadores. A utilização de um espaço que tem uma determinada
função, de forma a transgredi-la para apresentar uma peça teatral, parece agregar à peça
certo conceito que está ligado à própria função. Creio que a vocação do espaço, define
sentidos para o projeto que independem da sua arquitetura e que determinam uma
predisposição para quem vai assistir ou realizar a peça. A reflexão de Antonio Araújo,
sobre a escolha de uma igreja como local de apresentação da peça O Paraíso Perdido do
Teatro da Vertigem, talvez ajude a esclarecer esta questão.

Por essa razão é que o significado (simbólico, histórico, institucional) do lugar era mais
importante que suas possibilidades cênico-arquitetônicas. Abríamos mão de uma arquitetura mais
“teatral” em prol do sentido, ou sentidos, que um determinado local pudesse evocar. […] A ideia-chave
era criar uma zona híbrida, de intersecção, entre o “real” ou a “realidade” do espaço e o “ficcional” ou o
“teatral”, advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de
desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e
recepção da obra. (ARAUJO, 2011: 165)

Quando o projeto de montagem de piscina […] começou a se concretizar, foi


ficando evidente também que o local de apresentação ideal para essa peça seria um
espaço que fosse tradicionalmente de domínio das artes plásticas. Essa opção

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fortaleceria o enredo da peça, funcionando como um cenário conceitual, uma vez que os
personagens da peça são todos artistas plásticos. Entretanto, na prática essa
espacialidade conceitual teve, a meu ver, muitas outras implicações que colaboraram
com a montagem. Para que o leitor possa entender melhor qual foi a relevância disso no
contexto de piscina [...], faço abaixo uma sinopse da ação da peça.
A temática gira em torno do questionamento sobre o posicionamento do artista
em relação a seus objetivos e sua produção artística. Um questionamento absolutamente
atual, que remete aos contrassensos que se pode observar em uma sociedade que é
alimentada pela ideia de que o sucesso é alcançado através da fama. Os personagens da
peça são um grupo de artistas plásticos que chegaram a uma maturidade decadente. Eles
se contrapõem à única dentre eles que alcançou fama e sucesso material. No texto essa
personagem é chamada simplesmente de “ela”, a quem o “grupo” se refere
constantemente numa mistura de crítica e mitificação. A identificação do “grupo” com
“ela”, durante a ação da peça, alterna-se entra a extrema admiração e o ódio provocado
pela inveja. Ao mesmo tempo em que os artistas criticam ferozmente os meios que “ela”
utilizou para alcançar o sucesso, revelam que, na verdade, gostariam de estar na “sua”
posição. A ação da peça inicia com os personagens atônitos com o fato de que “ela”
construiu uma grande piscina em sua casa. Ela mandou fotos da luxuosa piscina e
convidou todos para conhecê-la. O “grupo” não resiste à tentação e resolve aceitar o
convite. Fazem as malas, pegam um avião e vão ao encontro da milionária ovelha
desgarrada. O jantar de boas vindas se transforma em uma festa orgíaca, na qual todos
relembram os tempos de juventude, quando formavam um grupo artístico coeso e
idealista. Em meio a um nível alcoólico bastante alto acontece um acidente trágico:
“ela” mergulha, inadvertidamente, na piscina que está vazia. Enquanto “ela” está em
coma no hospital, “o grupo” tem a idéia de fotografá-la e utilizar as fotos numa grande
instalação. Esta seria uma obra de arte de vanguarda que teria o potencial, ainda que
através de meios questionáveis, de tirar “o grupo” do anonimato artístico e transformá-
los em artistas de sucesso como “ela”. Para a decepção do “grupo”, “ela” se recupera do
coma, se apropria das fotos e da obra. Essa atitude provoca a revelação dos verdadeiros
sentimentos que estavam mascarados, expondo, enfim, a mediocridade de todos.
Me parece que o fato da produção ter conseguido fazer a temporada “dentro” do
Museu Oscar Niemeyer (de agora em diante chamado de MON) agregou muitos valores
à montagem que ultrapassaram a ligação com o enredo enquanto história narrada e
abordam a temática central do texto que, pelo menos em nossa leitura, é a relação de
atração e repulsa ao lidar com o sucesso do outro.
O MON é o mais prestigioso museu do estado do Paraná, é muito difícil
conseguir pauta neste espaço, ao qual só têm acesso artistas plásticos que adquiriram
certo “status” no meio. Por ser um espaço público, sua gestão e as curadorias das
exposições são alvo de polêmica, muitas vezes questionadas pela classe artística. O
próprio Oscar Niemeyer, que dá nome ao museu, sendo o mais famoso arquiteto do país,
e tendo obras espalhadas pelo mundo, também foi alvo de muita polêmica, inclusive
com relação à execução do próprio MON. Estes fatores, reforçam a significância da
temática abordada por Ravenhill, ligando a situação descrita no texto à realidade,
principalmente com relação à controversa posição de quem está em evidência no mundo
artístico e a validade dos meios que levaram a esta conquista.
Além disso, o Espaço Araucária onde foi apresentada a peça, fica situado no
local de maior afluência do MON: o “olho”. A maior sala de exposições do MON, onde
são apresentadas as exposições de maior vulto, fica num local de grande destaque na

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composição arquitetônica do museu. Niemeyer idealizou uma araucária estilizada em
cuja copa fica esta sala. Esta construção virou atração turística e, devido ao seu formato,
popularmente ficou conhecida como “olho”. Um olho imenso que por si só estabelece
uma metáfora muito significativa com o texto de piscina […], pois a impressão que se
tem, ao observá-lo externamente, é a de que as obras que lá se encontram estão sendo
“contempladas pelo universo”. O Espaço Araucária fica no andar abaixo desta sala
principal. Para que os espectadores acessassem o espaço de apresentação da peça,
subiam por uma grande rampa sinuosa, suspensa acima de um lago artificial (uma
piscina?), ingressavam pela entrada do “olho” (universal) e ainda subiam até o terceiro
andar. Tudo isso para chegar a uma sala vazia que parece um porão.
Uma outra qualidade que o espaço conceitual agregou ao projeto, tanto do ponto
de vista da equipe de trabalho como do público, foi o fato de estabelecer uma
preparação, um “aquecimento emocional” para a peça. Posso afirmar que, como parte
da equipe, a chegada ao MON para ensaiar, por si só, já nos preparava para o trabalho.
Em primeiro lugar a aproximação física com aquela obra monumental de Oscar
Niemeyer já causava um impacto. A passagem pelo setor de segurança, pelas portas que
só eram destrancadas por um dos sentinelas, pelas salas de exposição onde se
encontravam os mais diversos tipos de obras artísticas, pelo corredor
“circularbrancosemarestas” i criado por Niemeyer para dar acesso ao “olho” por baixo
do lago artificial, tudo isto nos colocava em íntimo contato com o ambiente das artes
visuais referido na peça.

“Teatro específico ao local” [site specific] significa que o próprio “local” se mostra sob uma
nova luz: quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro-velho se torna espaço de
encenação, passa a ser visto por um novo olhar, “estético”. O espaço se torna co-participante, sem que lhe
seja atribuída uma significação definitiva. Mas em tal situação também os espectadores se tornam co-
participantes. Assim, o que é posto em cena pelo teatro específico ao local é um segmento da comunidade
de atores e espectadores. Todos eles são “convidados” do lugar; todos são estrangeiros […].
(LEHMANN, 2007: 281)

Sob a ótica dos espectadores, o ritual de Ida ao Teatro – e aqui não há como não
lembrar do questionamento irônico que Karl Valentin faz sobre este ritualii – foi
transformado em um ritual de ida ao museu, a um espaço das artes plásticas, a um local
onde se apreciam “obras de arte”. Esse fato, me parece, pode ter colaborado como um
“aquecimento” também para o público, como uma preparação para refletir, imergir,
mergulhar no contexto de piscina [...].

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Referências bibliográficas citadas

ARAÚJO, Antonio. A gênese da vertigem: oprocesso de criação de o paríso perdido.


São Paulo: Perspectiva, 2011.
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
___________. “O Corpo em Tempos e Lugares Pós-Dramáticos”. In: Guinsburg, J. e
Sílvia Fernandes (orgs.). O pós-dramático: um conceito operativo?. p 127-149. São
Paulo: Perspectiva, 2010.
BONFITTO, Matteo. O ator compositor: as ações físicas como eixo de Stanislávski a
Barba. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Trad. Oscar Araripe e Tessy Calado. Petrópolis:
Vozes, 1970.
COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e
recepção. São Paulo: Perspectiva, 2006.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
VALENTIN, Karl. Cabaré Valentin. Cadernos de Teatro n. 86, jul./ago./set. 1980. p 19-
37. Rio de Janeiro: IBECC / Tablado, 1980

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Ao utilizar este termo formado pela união de palavras, o autor está fazendo alusão aos diversos
termos criados por Ravenhill no texto de piscina […].
ii O autor faz referência neste comentário ao texto cômico Ida ao Teatro do dramaturgo, diretor e ator
alemão Karl Valentin.

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ESPACILIDADES E FRONTEIRAS DA CENA
ESPACIALIDADES E FRONTEIRAS DA CENA EM PROCESSOS DE DRAMA
Beatriz Angela Vieira Cabral
UDESC

Em processos de drama, as espacialidades, tanto quanto as fronteiras da cena, se dão a


partir de criação de um contexto de ficção e do desenvolvimento de situações que
implicam uso e caracterização de espaços distintos. O ‘estar’ ou o ‘habitar’ o espaço em
que a experiência do drama ocorre irá definir posturas e enfrentamentos, além de ativar
o jogo da cena – entre os sujeitos em cena e entre estes e o texto – quer este seja um
texto dramático focalizado como pré-texto, ou fragmentos de texto(s) distribuídos aos
participantes.
A identificação e a função dos ‘habitantes’ deste contexto de ficção, assim como a de
situações e enfrentamentos posteriores, se dá pela forma com que o professor ou diretor,
se dirige ao grupo – o que se convencionou como ‘enquadramentos’. Estes, introduzidos
em drama por Dorothy Heathcote a partir da noção de ‘frames’ (Erving Goffmann,
‘Frame Analysis’, 1974), direcionam o olhar e a postura dos participantes, ao conduzir
professor e alunos a entrar no contexto ficcional, ampliando a identificação de papéis e
ações.
Esta ruptura com o contexto real e consequente ressignificação de fatos e ações
cotidianas são os principais geradores da imersão dos participantes no processo e
definem seu potencial enquanto experiência estética. O ponto de partida do ‘estar em
cena’ é ressaltado pelo sentido de presença estimulado pelo condutor do processo, que
mantém alertas, tais como ‘aqueles que nos observam estão atentos, nossa postura vai
definir o que podemos conseguir’; ‘hoje estamos aqui reunidos para receber o
representante dos alienígenas, vamos mostrar tanto segurança quanto simpatia’. Alertas
como estes identificam a tensão dramática que acompanhará o uso do espaço, as
interações entre os participantes e a seleção de imagens, gráficos e mapas que
alimentarão tanto a tensão e as interações, quanto a imersão dos participantes no
contexto ficcional.
Informações e tensão dramática são introduzidas no ‘aqui e agora’ da cena, com o
professor inserido no contexto ficcional, e assumindo um papel que irá se delineando
aos poucos, com flexibilidade para mudanças no decorrer do processo, caso necessárias.
Se as informações permitem estruturar a narrativa, a tensão provoca uma ruptura com o
horizonte de expectativas dos participantes, intensifica um estado de alerta, a presença
em cena e suas manifestações expressivas.
É neste sentido que as informações são introduzidas através de imagens visuais
(pinturas encontradas em um determinado lugar com alguma mensagem que a associe a
ações ou posturas dos participantes), fotografias (que ajudem a interpretar fatos e
eventos), gráficos (que permitam avaliar o impacto de alguma ação no desenvolvimento
do processo dramático), mapas (que permitam entender a interação entre os espaços
internos ao contexto ficcional, e os externos, que possibilitem prever deslocamentos ou
ampliação de ações).
A tensão dramática tradicionalmente tem sido introduzida de forma narrativa, como
ameaças, premonições, documentos, relatos, mensagens ou cartas recebidas por um dos
participantes. O espaço cada vez mais privilegiado para o sensorial e o emocional no
planejamento de encontros que se caracterizam como experiências estéticas, tem se
apresentado como alternativa para causar e/ou manter a tensão. Entretanto, as duas
alternativas - ameaças e premonições introduzidas através de formas narrativas, e
espacialização sonora, de imagens e texturas que ativem o sensorial e o emocional – não
são suficientes para o desenvolvimento de um processo dramático que construa um
contexto ficcional com detalhes significativos que tenham ressonância com o contexto
real. A ativação do vocabulário, tanto quanto a do imaginário, são importantes para
transgredir o óbvio e os limites do cotidiano.
Expressão oral e tensão dramática
Fazer sentido da tensão dramática ao vivenciar um contexto ficcional inclui considerar
suas dimensões éticas e políticas, que em grande parte estão implícitas. Se o implícito
abre o campo da recepção para múltiplas interpretações, no campo da atuação as
dimensões éticas e políticas precisam estar explícitas para o aluno/ator. O jogo do ator
em cena depende não só de sua percepção das espacialidades em cena e dos desafios
postos pelo professor/diretor, mas também de sua compreensão da situação e suas
implicações, o que implica tempo para ter contato com opiniões sobre o que está
implícito na tensão dramática introduzida pelo professor, e tempo para formar sua
própria opinião.
O uso de fragmentos de texto – a serem distribuídos e adaptados à forma de expressão e
opinião de quem o recebeu, e usados como foco para o jogo de interações, apropriados e
expandidos a seguir, tornam-se uma possibilidade de ampliar a carga de informação e
asserção da expressão oral.
Segundo Bakhin, a cultura oral e a cultura escrita não são contrastantes; a produção de
sentidos é dinâmica a partir de vozes personalizadas que representam posições éticas e
ideológicas em intercâmbio contínuo com outras vozes. A linguagem, na sua concepção,
é entendida como ato ético, como ação, como comunicação dinâmica e energia.
Comunicar-se dialogicamente, afirma Bakhtin, é ser capaz de transmitir os sentidos de
um diálogo ontológico, uma vez que a escrita é privilegiada como um percurso capaz de
traduzir a voz humana na medida em que é portadora de sentidos, preservando suas
modalidades através de metáforas relacionadas à voz e à música: polifonia, contraponto,
orquestração, palavra a duas vozes, coro, tom, tonalidade, entonação, acento, etc. De
acordo com Dahlet, não se trata aqui de categorias estilísticas no sentido tradicional, que
se configuram como traços distintivos de autores individuais, mas como uma espécie de
memória semântico-social (in Brait, 1997: 264).
Este entendimento do sentido ético e ideológico subjacente ao diálogo, traz implicações
para as interações orais presentes no contexto ficcional de um processo de drama. Como
incluído em nossos Parâmetros Curriculares Nacionais, “... a filosofia, hoje, define
moral como princípios, crenças e regras, que junto dirigem o comportamento de
indivíduos em cada sociedade; e ética como o pensamento crítico (reflexivo) sobre a
moral” (PCN, 46-48). A liberdade depende da habilidade e da possibilidade de fazer
escolhas, sendo assim o ensino requer vivências e discussões sobre critérios e valores –
a problematização de questões e discursos e a verificação da consistência de seus
fundamentos filosóficos. Ao contrário da moral, a ética não possui um caráter
normativo, ele busca esclarecer e questionar os princípios e os objetivos de ações,
intenções e motivações. O contexto ficcional do drama e do teatro torna-se assim um
campo privilegiado para focalizar questionamentos éticos – não é o aluno que se expõe,
mas o papel ou o personagem que ele está investigando. O drama e o jogo cênico
contribuem para focalizar ética no ensino sem personalizar seus questionamentos.
O jogo com fragmentos de texto – entre conversação e diálogo
Fragmentos de um texto ou de textos diversos permitem focalizar um tema ou um
problema específico a partir de opiniões e situações distintas. O jogo com fragmentos de
texto, se em grupos com mais de 30 alunos, vai requerer espacialidades distintas – em
princípio um espaço amplo, onde poderia ser visualizado o espaço do grande grupo e
aqueles dos pequenos grupos. Entretanto, o espaço em drama, não é visto apenas como
um todo físico, mas como um espaço de interações e alternância de parceiros, o que
requer seja planejada a viabilidade de um circuito de espacialidades.
Exemplificando: os 30 alunos/performers vão inicialmente se apropriar do espaço e
interagir com ele, na medida em que individualmente, vão percorrê-lo, parar onde se
sentir à vontade, ler seu texto, voltar a ler e interromper a leitura para se fixar em algum
ponto do espaço e para lá direcionar alguma passagem do texto, voltar a caminhar,
voltar a parar, e assim por diante. Desta forma, o potencial desta espacialidade estará
relacionado com os ‘cantinhos’ que poderá oferecer – com a possibilidade de contar
com pequenos espaços de privacidade ou intimidade que permitirão aos
alunos/performers uma maior interação com seu texto, e com o espaço imediato. Assim,
o espaço onde esta etapa do experimento ocorre poderá contar com cadeiras isoladas,
com um ou dois biombos, com um ou duas plataformas, com uma escada, alguns
caixotes, sendo que cada objeto sinalizará um cantinho. Na possibilidade de espaço
aberto, os cantinhos poderão ser identificados por árvores, pedras, bancos, canteiros.
Neste percurso individual, cada participante estará conversando consigo mesmo,
murmurando ou ruminando sobre o texto, que a cada parada vai sendo ampliado,
agregando as imagens e ideias do orador.
A segunda etapa do jogo com os fragmentos será em duplas. Isto requer a eliminação de
15 ‘cantinhos’, a partir da indicação do grupo, mas principalmente da priorização de
espaços que ofereçam maior proteção sonora (considerando-se especialmente a
distância entre um e outro). Nesta etapa o fragmento já foi apropriado e expandido por
cada participante, e não será lido. Os textos criados a partir dos fragmentos serão o foco
da conversação em duplas, ou seja, serão dois temas a serem cruzados em cada encontro
– as duplas se alternam e a conversa modifica-se a cada novo parceiro. A conversa,
segundo Ryngaert, é solta, muda de direção, e eventualmente, de pontos de vista. É,
assim, imprevisível. O diálogo, ao contrário, é organizado ou construído; seu objetivo é
fazer sentido. A confrontação dos textos com alternação de parceiros (troca de duplas)
amplia argumentos e detalhes; o texto se expande.
O professor como rapsodo e a mediação em drama
O uso de fragmentos de textos distintos, associados a um roteiro e/ou argumento
dramático que se pretende explorar, atualizar e encenar, se apoia no entendimento da
linguagem como fenômeno social (Bakhtin) e o cruza com o conceito de mediação na
esfera da zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky).
No campo específico do drama, em que em que o texto e as situações exploradas estão
delimitadas por um contexto ficcional, onde os participantes jogam com o texto a partir
de papéis não identificados e definidos a priori, é necessário considerar os conceitos de
suspensão da descrença (para o engajamento com o contexto ficcional), de choque (ou
impacto, decorrente da potencial intensificação dos deslocamentos da percepção), e do
relativo caos frequente nas experiências sensoriais (uma vez que o ponto de partida do
processo, em drama, usualmente está centrado em promover uma experiência estética
que, em ampla escala se fundamenta no sensorial.
A suspensão da descrença, termo cunhado por Samuel Coleridge, em ‘Biografia
Literária’ (1817), é voluntária e refere-se à vontade do ator ou do espectador de aceitar
como verdadeiras as premissas ficcionais, mesmo que estas sejam fantásticas,
impossíveis ou contraditórias. Aceitar as premissas ficcionais é algo que qualquer
criança, em idade escolar, faz voluntariamente, sem se questionar, quando se trata de
seu filme ou livro predileto, ou dos jogos de RPG com cartas, tabuleiro ou life
(improvisações físicas). Em sala de aula, quando proposta pelo professor, é necessário
algum tipo de convencimento que vai além do simples ‘vamos fazer de conta’. Quanto
mais idade tiver a criança e/ou o adolescente, maior o risco de rejeição do universo
ficcional, com base no estranhamento e/ou associações com infantilização. Nesta linha
de raciocínio, a suspensão da descrença, tem sido associadas aos recursos de criação de
impacto e às experiências sensoriais.
O impacto, que pode ser associado ao ‘choque’, é identificado por Walter Benjamin
como decorrente da potencial intensificação dos deslocamentos da percepção. Em
situação escolar, pode ser ativado pela utilização do espaço, inclusão de participantes ou
materiais inesperados, temática inusitada, ou pelos recursos introduzidos para a
efetivação do contexto ficcional. O contexto ficcional favorece as estratégias associadas
à criação de impacto, uma vez que exclui a responsabilidade do aluno/ator quanto às
opiniões que possa omitir, ou situações em que possa se envolver – não é ele, o aluno,
que tomas tais atitudes e faz tais afirmações, mas sim o ser ficcional que está
apresentando.
As experiências sensoriais usualmente são associadas com ambientação cênica – luz,
som, texturas, movimentos no espaço, toque. Entretanto, por esta perspectiva, o senso
comum destes recursos, que são utilizados reiteradamente em aulas de teatro, nem
sempre levam ao envolvimento e à concentração. Considero assim, que a escolha do
tema certo na hora certa é mais importante. Aqui, os problemas podem ser de outra
ordem – as diferenças de opinião, a alteridade em si, a vulnerabilidade, a
imprevisibilidade e a incompreensibilidade podem levar não só a um debate acalorado,
mas também ao enfado e desinteresse. A abordagem temática, entretanto, abre o campo
da criação para a construção autoral dos participantes, o que muda a perspectiva das
interações com o espaço e a cena.
A tessitura de fragmentos e as fronteiras da cena
Por mais que o professor/diretor tenha selecionado fragmentos de textos convergentes a
um mesmo foco dramático, há possibilidade de contra argumentá-los e expandi-los. A
troca de parceiros para interações a partir dos fragmentos agrega, aos poucos, pequenas
modificações. Soma-se a isso a imprevisibilidade de seus cruzamentos, pois a postura
física e a expressão verbal de cada confronto contribui para modificar o texto. A
sequência de interações acaba por criar uma tessitura de novos fragmentos que contém,
cada um, expressões e argumentos incorporados durante a troca de parceiros.
Os novos fragmentos, modificados no decorrer do processo, quebram a tendência
monológica do professor/diretor como aquele que propôs as interações e selecionou os
fragmentos originais. Como evitar o enfraquecimento da forma dramática, que segundo
Bakhtin, é constituída por um monólogo inquebrantável, a voz do autor/dramaturgo
(2010, 17-18). Tal possibilidade implica duas questões pedagógicas distintas:
Por um lado, o enfraquecimento da forma dramática pode ser compensado através da
intensificação da tensão dramática. A tensão, decorrente do envolvimento sensível com
o processo de investigação cênica, indica a experiência da dimensão ficcional deste
processo e se relaciona, por exemplo, com a necessidade de tomar uma decisão que
envolva risco, a espera, as barreiras, os enigmas, os dilemas. Segundo Gavin Bolton
(1984) – a experiência dramática é bem sucedida quando o grupo reconhece que a
intensidade de uma situação reside na dificuldade de tomar uma decisão que poderá lhe
ser favorável ou não.
Por outro lado, a orquestração das vozes dos participantes pelo professor como editor e
encenador (com delimitação de tempo, espaço e ritmo), mantém os estados de
expectativa e tensão, ao mesmo tempo que estabelece as fronteiras de cena entre
episódios que indicam momentos, ações ou olhares distintos para uma mesma ação.
Uma intertextualidade centrada na tessitura de fragmentos de textos.
Assim, o alerta de Bakhtin que o diálogo e as interações fora do texto enfraqueceriam a
forma dramática, são compensadas por recursos pedagógicos que permitem abrir o
campo da exploração do texto sob a tutela do professor dramaturg. Mas, o alerta vale
ser lembrado em relação a duas questões complementares. Por um lado, as conversas
que acompanham a exploração do texto e sua apropriação pelos alunos participantes,
deverão ser editadas e orquestradas pelo professor dramaturgo. Por outro lado, esta
edição precisa respeitar a voz do aluno, no que se refere àquilo que ele quer expressar e
opinar. Trata-se de uma edição voltada à qualidade do texto e não ao conteúdo de seu
discurso.
A necessária atenção para a relação entre diálogo e edição requer, por sua vez,
considerar a superação da pedagogia crítica em prol da pedagogia pós-crítica.
Professores que se identificam com uma didática específica, subordinada à pedagogia
crítica, caem facilmente em uma perspectiva monológica. A didática, ao apontar para
formas estabelecidas de ações e apresentações, se associa facilmente ao determinar o
que fazer e indicar como fazê-lo. A pedagogia crítica se associa a metodologias
delimitadas por uma perspectiva filosófica que identifica e determina o que é adequado
em termos de ações e atitudes. É neste aspecto que ambas – didática e pedagogia crítica
– se associam a um ensino e a uma forma teatral não dialógica, uma vez que se inserem
em uma perspectiva político-pedagógica específica e refletem as relações de poder por
ela delimitadas.
Assim, cabe aqui considerar o desenvolvimento e avanço, da pedagogia pós-crítica, e
suas implicações. A partir dos anos 90 o desenvolvimento técnico e científico, com a
difusão da informática e tecnologias da informação, com as interfaces da comunicação e
ampliação das formas de sua utilização, chegou-se ao que inicialmente parecia levar aos
caos sensorial. Como analisa Vattimo, em A Sociedade Transparente (1989), se a
Teoria Crítica manipulava os conteúdos veiculados ao dominar os meios de
comunicação das classes dominantes, o efeito da cultura de massa e a emergência da
internet levaram à pluralidade de visões de mundo. A sociedade mediática atual,
caracterizada pela complexidade, pelo caos e pela pluralidade, levam o ser humano ao
desenraizamento e isto implica libertar-se das diferenças. Em consequência, a liberdade
que à época da pedagogia e da teoria críticas esteve condicionada e um sistema de causa
e efeito, hoje consiste na escolha entre pertencimento e desenraizamento – surgem
novas criações de uso na medida em que não há uma centralidade da informação. Como
afirma Rancière (2010:2), “a arte emancipa e é emancipatória quando renuncia à
autoridade de impor uma mensagem, de atingir um público específico, e de explicar o
mundo de forma unívoca, quando, em outras palavras, para de queres nos emancipar”.
A pedagogia pós-crítica considera que uma produção significativa para seus criadores se
relaciona com o investimento emocional e o prazer. Jogar com diferentes textos (aqui,
com fragmentos de texto) permite engajar os participantes com as múltiplas referências
de diferentes linguagens, experiências e culturas. Suas apropriações, confrontos e
edições contínuas, através da interação com outros, indica ‘agência’ – um processo de
autoria, auto - referência e cruzamento de fronteiras.
A intertextualidade na espacialidade e na cena
A noção de intertextualidade, cunhada por Julia Kristeva em 1966, representou seu
desejo de associar a ideia de múltiplos significados de cada palavra (heteroglossia) ao
dialogismo de Bakhtin. É importante ressaltar aqui o entendimento de Kristeva de que
‘a noção de intertextualidade substitui a noção de intersubjetividade’ – o significado de
um texto é importado de outros textos (Kristeva, 1980:69). Como considerado por
Barthes, intertextualidade implica que o significado não reside no texto, mas é
produzido pelo leitor em relação não só ao texto, mas também à complexa rede de
textos envolvidos no processo de leitura.
Se o pensar pedagógico contemporâneo deve partir das múltiplas referências de
diferentes linguagens, experiências e culturas, o jogo com o texto e o espaço e a
composição intertextual resultante permitem visualizar novas fronteiras para a cena
teatral na escola, que se abstenham que indicar o que fazer e como fazê-lo.

Referênciasestimulá-las, desde cedo, para que é a opção mais eficaz e divertida.


BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas. Vol. 1. São
Paulo, Brasiliense, 1985.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal.São Paulo: Martins Fontes, 2010.
BRAIT, B. (Org). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
______. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Ed. da
Unicamp, 1997.
Bolton, Gavin. Acting in classroom drama – a critical analysis. UK: Longman, 1984

BUBNOVA, Tatiana. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin/ Voice, sense and dialogue on
Bakhtin. In Revista acta poética 27 N. 1, 2006, pp 97-114. Translated and published in
Portuguese by Roberto Leiser Baronas e Fernanda Tonelli in Bakhtiniana, São Paulo,
6 (1): 268-280, Ago./Dez. 2011.

COLERIDGE, Samuel. Biografia Literária, 1817.

GOFFMAN, Frame Analysis: an Essay on the Organization of Experience.


Harmondsworth: Penguin, 1974.
KRISTEVA, J. Desire in Language: A semiotic Approach to Literature and Art. New
York: Columbia University Press, 1980.
RANCIÈRE, J. “Art of the Possible: Fúlvia Carnevale and John Kelsey in conversation
with Jacques Rancière”, in ArtForum International Magazine, Inc., 2010

RYNGAERT, J-P. “Dialogue et conversation”, in Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux


Territories du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 17-21.
VYGOTSKY. L. S. Pensamento e Linguagem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VATTIMO, G. A Sociedade Transparente. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1989.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ÓPERA CRUA E A POIESIS DA HOSPITALIDADE

Carlos Cézar Mascarenhas de Souza – Universidade Federal de Sergipe; Núcleo de


Teatro

Um ato de hospitalidade só pode ser poético.


(Jacques Derrida)

O presente texto não passa de um sucinto esboço que tem por objetivo refletir em torno
da relação entre o teatro e a noção de hospitalidade. Isto, na medida em que, a partir
deste binômio, pretendemos dar início ao projeto de um percurso a ser desenvolvido
mais adiante, noutros desdobramentos de pesquisas, cujo sentido consiste em pensar a
hospitalidade enquanto ato poético articulando-se no âmbito da arte teatral.
Penso não haver exagero algum em afirmar que, no cenário das coisas da cultura, o
teatro talvez se afigure como um campo por excelência do acolhimento dos signos e
materiais que chegam dos mais variados registros. Além do texto dramático, a luz, o
cenário, o figurino, a música, enfim, todos os elementos que quando se põe em ato pela
encenação, exibem a evidência do cruzamento colaborativo entre os elementos variados,
provenientes das diferentes linguagens. Todavia, importa interrogar: quais as condições
dessas transações? Até onde seria legítimo pretendermos culminar na proposição de se
entender o teatro como uma arte da hospitalidade? Desta última pergunta, com efeito, é
que emerge nossa hipótese no sentido de se averiguar até onde cabe em um trabalho de
natureza teatral, inscrever a noção de hospitalidade a título de uma poiesis.
O tratamento habitual desse tema, em geral, remonta às práticas ritualistas que desde o
início das civilizações se protagonizam nas cenas dos espaços, na recepção dos seus
visitantes, enquanto virtude que se põe em exercício nos rituais de acolhimento, onde a
hospitalidade torna-se uma espécie de remédio para neutralizar as eventuais emanações
de hostilidade virtualmente despertadas pela chegada do elemento estranho,
representado pelo “outro”. Nossa perspectiva, entretanto, se norteia por uma abordagem
metodológica de caráter interdisciplinar; de modo que, na transposição do tema para o
campo estético, possamos efetuar reflexões a partir do diálogo com as contribuições
advindas dos campos da filosofia e da psicanálise. Isso, devido à relevância do tema,
que nos convida em ir um pouco mais adiante da imagem e do significado comum, em
que a hospitalidade consistiria apenas no simples atributo de alguém no papel de
anfitrião oferecendo guarita a outro que, na qualidade de visitante, não passa de mero
receptor passivo do gesto do primeiro.
Hospitalidade, contudo, é uma palavra que abriga desde sempre uma vasta gama de
conotações que, aliás, cumpre dizer desde logo, não cabe nos limites do nosso intuito
aqui no presente texto. Todavia, erigindo-se como uma forma de interação social, o seu
campo semântico está todo ele referido às implicações mais intrincadas e controvertidas
das relações entre sujeitos nos mais variados planos e lugares. E, embora em sua
superfície, o termo se apresente como uma promessa de abertura ao acontecimento de
uma possível amizade, ele mesmo, a um só tempo, também sinaliza ao iminente perigo
diante do desconhecido. Quer dizer, a hospitalidade não se oferece sem que haja no seu
íntimo algo de hostilidade.

1
Por isso, pensamos na possibilidade se considerar a experiência da hospitalidade,
também, na qualidade de um dispositivo dramático. Pois, o drama da hospitalidade se
situa, a nosso ver, na estrutura mesmo desse acontecimento relacional pelo qual os
conflitos e choques provenientes dos mal-entendidos, advêm sempre como efeitos
inerentes à natureza ambígua da linguagem e na experiência da interpretação que afeta
cada sujeito eventualmente envolvido na situação. Daí, a oportuna observação de Alain
Montandon, referindo como uma espécie de cena inaugural da hospitalidade, o
momento em que:
Tudo se passa naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se
abrir para um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos,
entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é uma etapa
decisiva semelhante a uma iniciação. É a linha de demarcação de uma
intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, ela comporta, querendo ou não,
uma face de violência, de transgressão, até mesmo de hostilidade que
Derrida chama de “hostipitalidade” [...] O gesto da hospitalidade é, de
início, o de descartar a hostilidade, pois o hóspede, o estrangeiro, aparece
frequentemente como reservatório de hostilidade: seja pobre, marginal,
errante, sem domínio fixo, seja louco ou vagabundo, ele encerra uma
ameaça. Sua posição de exterioridade marca sua diferença. 1
Ademais, em qualquer que seja o contexto onde se evoque esse tema, importa ressaltar
que a hospitalidade só se cumpre a partir de uma estrutura de caráter essencialmente
relacional, entre sujeitos portadores e representantes de distintas referências psico-sócio-
culturais. A tensão inscrita nessa experiência reflete-se como se vê na citação acima, na
própria grafia do neologismo forjado por Jacques Derrida, tentando abraçar o paradoxo
inevitável da situação designando-a pela expressão “Hostipitalidade”.

Nota-se que o tema comporta muitos outros problemas como, por exemplo, o
reconhecimento das diferenças das linguagens, a questão dos direitos e deveres, a
negociação dos interesses, as dificuldades de aceitação e tolerância, enfim, tudo o que
inelutavelmente nos convoca a encarar a legitimidade do “outro” enquanto figura de
alteridade. De modo que, não será difícil admitir que a hospitalidade represente, acima
de tudo, uma figura cujo estatuto refere um lugar de passagem, tal como na imagem da
“soleira” aludida acima por Montandon. Definindo-se, então, a título de um espaço de
transição que franqueia o movimento da possibilidade de uma travessia, supomos
oportuno indagar nos seguintes termos: o que torna possível a hospitalidade? Quais as
implicações e desafios que se passam no espaço desse trânsito?

Com base nessas indagações é que, buscamos articular medotologicamente nossa


reflexão, recorrendo ao apoio teórico da Psicanálise no rastro das proposições suscitadas
por Jacques Lacan. Posto que, graças às contribuições do pensamento deste autor, a
noção de sujeito humano veio a se figurar como aquele que se constitui na medida em
que habita a dimensão da linguagem, emergindo como simples efeito do funcionamento
da cadeia significante. O sujeito torna-se um hóspede da diz-mansão ou mansão do
dito2. Donde resulta a íntima associação entre hospitalidade e linguagem também, para o

1
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. P.32.
2
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. P.146.

2
pensamento psicanalítico, posto que o que está em jogo é nada mais nada menos que a
noção do lugar ou posição que o sujeito ocupa na medida em que se sente afetado pelos
efeitos dos dizeres. E, isto nos leva ao coração da própria questão do que vem a ser a
ética na perspectiva descortinada por Lacan, ao enunciar que:
A ética – como podem talvez entrever aqueles que me ouviram falar dela
em outros tempos – tem a maior relação com a nossa habitação na
linguagem, e é também – como nos mostrou certo autor que evocarei de
outra vez – da ordem do gesto.3

Importa relembrar, ainda, que o próprio Freud já enunciara que, a partir do momento em
que entram em jogo as incidências do inconsciente no “eu”, este se perde e não é mais
senhor da sua própria casa. Na mansão do dito, o sujeito falante se depara com uma
alteridade que o habita intimamente, como um “estranho familiar” que, como já dissera
Freud, o divide irremediavelmente. Eis o drama da hospitalidade do sujeito em sua
relação com a própria palavra que o representa apenas de modo parcial, nunca
totalmente. E a linguagem se afigura como símbolo mesmo dessa perda, onde o sujeito
não detém a posse de todo o sentido do que fala. De resto, o saber que daí decorre
advém marcado por esta castração que o faz abrigar em si, paradoxalmente, um “saber
sem saber”. Daí, a própria noção de verdade vir, também, marcada como um “semi-
dizer”, posto que, com efeito, “a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade”.4

O propósito de experimentar, para além do exercício meramente temático a questão da


hospitalidade é o que, ao mesmo tempo, nos lança direto diante do desafio de pensar
como se engajar em um ato de hospitalidade capaz de engendrar algo que se mostre
como um fazer criador, quer dizer, da ordem da poiesis. Reinventar a hospitalidade em
sua dimensão poética aponta o desafio criativo em franquear fronteiras geográficas e
psíquicas. Isso, graças a uma aposta na construção articulada pelo plano estético das
relações entre as linguagens já constituídas, na medida em que a cena hospitaleira seja
uma abertura à possibilidade heurística a partir do encontro entre as diferenças de
referências dos elementos que estão em jogo. Por isso que nesse agenciamento a
linguagem é o liame que emerge expressando algo que ultrapassa os caprichos da
dualidade. Quer dizer, a hospitalidade se afigura enquanto o próprio símbolo de uma
instância terceira, cuja função é a de não se deixar ficar refém do espelho identitário
particular de nenhuma das partes envolvidas. Ademais, é também aí que se justifica a
convocação dessa instância terceira pela qual se facultará a experiência do “passe” no
sentido de superar as tentações dos fechamentos egoístas referidos aos impasses
narcísicos na esfera do “eu”. Eis, como entendemos a possibilidade do “passe” da
hospitalidade enquanto poiesis; uma passagem que se dá como um ato poético da
linguagem que cria um furo simbólico, atravessando os engessamentos imaginários já
cristalizados pelos hábitos da cultura.
Na “Ópera Crua” 5, por sua vez, encena-se o drama da voz cotidiana protagonizada
pelos cantares nômades da sobrevivência pelas ruas da cidade. São vendedores

3
LACAN, Jacques. Op. Cit. P. 137.
4
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1992. P.36.
5
Esta obra foi concebida por mim e Marcos Costa, após o projeto ter sido selecionado e
premiado na categoria de “Artista Pesquisador”, e foi exibida em seu formato de
montagem como Ópera-instalação na mostra do 47° Salão de Artes Plásticas de
Pernambuco, como resultado da pesquisa, em Janeiro de 2012.
3
ambulantes fazem soar a voz, entoando seus pregões a oferecer produtos e serviços
vários. As mensagens desses pregões soam entre o canto e a fala e, à revelia de qualquer
descaso e ou ausência de hospitalidade, continuam soando na encenação diária de um,
talvez, teatro da necessidade. Todavia, foi preciso reconhecer a presença de uma força
poética agindo na tessitura e emissão desses pregões, para que estes viessem a interagir
na polifonia sonora que se enlaça com a musicalidade dos instrumentos da música
erudita e a voz da cantora lírica interpretando a letra da canção, que costura o elo desse
encontro, teatralizando musicalmente o drama da hospitalidade.
O projeto dessa intervenção estética teve lugar a partir de uma seleção no 47° Salão de
Artes Plásticas de Pernambuco, na categoria de “artista pesquisador”, cujo prêmio se
traduziu numa bolsa para custear o processo de pesquisa e elaboração da obra. A “Ópera
Crua” brinca, tomando de empréstimo a ideia do ambiente operístico, no sentido
tradicional já classicamente canonizado, mantendo o invólucro do ambiente espacial do
teatro para, a partir de dentro inserir a presença performática dos vendedores de rua
ambulantes entoando seus respectivos pregões. O caráter de intervenção tem a ver com
o adjetivo “Crua”, uma vez que a encenação transcorreu sem que houvesse qualquer
preocupação no sentido de se preparar os protagonistas através de ensaios. Diretamente
trazidos das ruas, os vendedores entraram numa relação de interação com os músicos
eruditos da orquestra sinfônica que, também sobre o palco, performatizam a situação
polifônica desse inusitado encontro. Deste agenciamento é, pois, que supomos a
abertura de uma “brecha” para o ato poético. Valiosa observação sobre tal
acontecimento é o que se enuncia pelas palavras de Tania Rivera, a partir de certas
pontuações lacanianas:
Tal ato poético, digamos – é radical e estranhamente delicado. Lacan
refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de
mudar o sujeito. Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que
intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar as
feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público
assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo
como uma janela que o expectador não ultrapassa de maneira pontual [...]
O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma configuração
instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais
olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao
espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e
objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de
perda, e não mais do espelhamento entre o eu e o mundo que permite a
fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num
ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. Ele
prossegue, então, em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou
melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isso acarreta,
para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em
que estamos”. Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência
em vez de imagem, é difícil de conceber e teorizar. 6
A perspectiva ético-estética que assiste ao procedimento da operação da “Ópera Crua”
parece reconhecer que o propósito granjeado pela “poiesis da hospitalidade” não se dá

6
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify,
2013. P.37-38.

4
sem a implicação de uma economia onde o comércio entre as linguagens se articula
significantemente, no intuito de ultrapassar as aporias nos aparentes obstáculos dos
contrastes e contradições entre os signos e registros já inscritos no habitus7 das
categorias rigidamente já estabelecido pelas instituições da vida cultural.
De fato, não é nem um pouco fácil se desvencilhar da lógica binária que norteia de
modo quase imperativo o modo do entendimento habitual. Porém, graças aos
experimentos que a dimensão teatral oportuniza, outra economia entra nesse jogo a
ponto de se pensar o problema da hospitalidade não como algo que se oferece em
doação por uma idéia de generosidade ou coisa que o valha, mas, sobretudo, em atenção
à emergência de certa economia relacional pela qual o desafio da troca, da
reciprocidade, assinala-se como um princípio fundamental onde, aliás, o pretexto da
hierarquia se perde em nome de um dever recíproco entre as partes, posto que estas
sejam igualmente importantes para que, na obra, resulte como expressão justa dessa
dinâmica em que a presença de todas as partes seja, sensivelmente, relevante.

7
Recomendo a leitura do texto “A cultura e seu contrário”, de Teixeira Coelho, onde este autor discorre
acerca do conflito entre as noções de arte e cultura.

5
Referências Bibliográficas:
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética Teatral –
Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
CASOY, Sergio. A invenção da Ópera. São Paulo: Editora Algol, 2007.
__________. O Nascimento da Ópera. São Paulo: Editora Universidade Falada, 2008.
COLI, Jorge. A paixão segundo a ópera. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.


COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São
Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da
Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
_________________. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011.
GUINSBURG, J; NETTO, J. Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia
do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1985. P.68.

_________________. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de janeiro:


Jorge Zahar Ed., 1992.
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e
nas culturas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São
Paulo: Cosac Naify, 2013.

6
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES

TÍTULO: APROXIMAÇÕES DO CONCEITO DE ANÁLISE ATIVA E


ASPECTOS DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO “GAIVOTA – TEMA PARA UM
CONTO CURTO”

Carolina Martins Delduque (bolsa Doutorado Fapesp); orientação: Larissa de Oliveira


Neves; Programa de Pós-graduação em Artes da Cena; Instituto de Artes, Unicamp.

Introdução
Este artigo é resultado parcial da pesquisa de Doutorado em andamento:
“Tchekhov e a cena brasileira – do subtexto à interpretação do texto”, financiada pela
Fapesp. Nesse trabalho, analiso um conjunto de encenações brasileiras sobre algumas
das principais obras dramáticas do escritor russo Anton Tchekhov, com foco na relação
entre o texto dramático e a cena.
Uma das obras que faz parte do escopo da pesquisa é a encenação Gaivota -
tema para um conto curto, realizada pela Cia dos Atores, com direção de Enrique Diaz.
Nesse espetáculo, assistimos a uma desconstrução cênica da obra “A Gaivota”, de
Tchekhov, a partir de procedimentos de criação que muito se assemelham ao
procedimento de análise ativa do texto.
Nesse sentido, o presente artigo faz uma exposição da teoria sobre análise ativa
e seu desenvolvimento em alguns aspectos, a partir da articulação de diferentes
referências: Eugênio Kusnet, Maria Knebel e Nair Dagostini. Após essa elucidação, há
uma aproximação entre o que se conceituou e o que ocorreu enquanto procedimentos de
criação e resultado cênico na encenação assinada por Diaz.
Veremos que, nessa montagem, não há apenas a utilização da análise ativa
enquanto procedimento de trabalho do ator e diretor, mas também o transbordamento do
uso dessa prática, que se transforma na própria linguagem de encenação da obra.

A análise ativa
Eugênio Kusnet, ator e pedagogo conhecido por propagar no Brasil o Sistema de
Stanislavski, nasceu na Rússia em 1898, onde iniciou sua vida teatral. Ao contrário do
que comumente se pensa, ele não chegou a estudar ou a ter contato direto com o
Sistema de Stanislavski nessa época, muito menos com o próprio Stanislavski. No
entanto, seu fazer artístico foi inevitavelmente influenciado pelas ideias e conceitos que
estavam em voga na época na Rússia, que tinham como modelo ideal as peças e os
trabalhos de atores do Teatro de Arte de Moscou e, por consequência, a pesquisa do
mestre russo.
Iniciou sua trajetória no teatro brasileiro como ator pelo TBC – Teatro Brasileiro
da Comédia1, passou pelo Teatro Oficina2 e depois pelo Teatro de Arena3, em que
iniciou sua atividade como professor de atuação. (PIACENTINI, 2011) Participou de
toda evolução do teatro brasileiro, tendo se destacado como ator e professor de
formação a partir do que nomeava o Método de Stanislavski, formando uma grande
geração de atores nas décadas de 60 e 70. Nesse trabalho, acabou até por conceber
novos procedimentos que seriam mais adequados ao ator brasileiro, a partir de leituras
                                                                                                                       
1
Fundado em 1958 por um grupo de alunos da Escola de Direito do Lago de São Francisco, sendo um
2
Foi um dos mais importantes grupos teatrais brasileiros das décadas de 50 e 60. Inicia-se em 1953 tendo
promovido uma renovação e nacionalização do teatro brasileiro, sua existência termina em 1972.
3
Importante teatro brasileiro fundado em 1948 na cidade de São Paulo. Por ele passaram grandes atores e
seu repertório de peças privilegiava autores nacionais.
dos livros de Stanislavski e depois de uma viagem que fez para Rússia, quando estudou
com alguns de seus discípulos diretos, como Maria Knebel.
Essa viagem para Rússia foi determinante no processo de formação de sua
pedagogia, pois o ator-pedagogo entrou em contato direto com o desenvolvimento das
últimas descobertas realizadas por Stanislavski, que não haviam sido escritas por ele
próprio em livros, mas estavam sendo estudadas e trabalhadas ainda naquele momento,
mesmo após a sua morte.
Stanislavski, em suas últimas pesquisas, redimensionou a maneira como os
princípios de seu Sistema deveriam ser estudados, conferindo-lhes um novo paradigma
a partir da ação. No que depois foi nomeado de Método das Ações Físicas, a ação
deixaria de ser apenas um dos elementos componentes, mas passaria a ser o elemento
catalisador dos demais elementos. Ao contrário do que acontecia no início de suas
pesquisas, quando Stanislavski acreditava que o ator deveria “crer para agir”, ele
percebeu que o ator deveria “agir para crer”, conforme ele próprio salienta aos atores:

“Realizem ações físicas nas circunstâncias dadas e não


pensem sobre quais sentimentos elas devem despertar em vocês.
Façam com verdade e lógica, façam assim como vocês as fariam
hoje, no estado de ânimo de hoje, contando com todas as
complexas casuais do dia de hoje. (...) E agindo logicamente no
dia de hoje, vocês nem percebem como chegam aos sentimentos
corretos. Por isso os sentimentos não podem ser fixados, por
isso eu procuro somente aquilo que é possível fixar, e isso será
uma ação física.” (STANISLAVSKI in VINOGRÁDSKAIA,
apud DAGOSTINI, 2007: 108)
O trabalho com as ações físicas - que era voltado às motivações dos personagens
e suas matizes -, ao final da vida do Mestre, teria gerado, em seu Sistema, a utilização
da Análise Ativa, um procedimento que permite a utilização em prática, na criação de
ações físicas, de todos os elementos do Sistema.
Trata-se de uma compreensão da obra e do texto pelos atores e diretor, via
experimentações práticas. Um meio de estudar a dramaturgia em ação. Ou seja, a partir
desse procedimento, os atores não precisariam mais estudar palavra por palavra do
texto, num trabalho de mesa, em que houvesse uma separação entre suas instâncias
físicas e psíquicas. O intuito deveria ser, ao contrário, a compreensão das circunstâncias
propostas das situações cênicas e, num primeiro momento, usar as próprias palavras em
improvisações para dar sentido às ideias dramatúrgicas do autor até chegarem,
gradativamente, à compreensão completa da estrutura da obra.
No entanto, embora esse procedimento tenha sido utilizado de modo semelhante
pelo próprio Stanislavski e por muitos de seus adeptos, não há obras escritas pelo
Stanislavski com ensinamentos sistematizados e concretos sobre isso.
É relevante acrescentar que, segundo Maria Knebel, que foi aluna de
Stanislavski e depois lecionou a partir de seus ensinamentos, Stanislavski não utilizava
o termo análise ativa. Ele utilizava o termo Étude (KNEBEL, 2003), que designava
uma improvisação sugerida pelo diretor para que os atores tivessem contato com o tema
da obra experimentando situações próximas àquelas contidas no texto teatral. Os atores
deveriam encontrar os acontecimentos, as circunstâncias e improvisar utilizando-se de
suas próprias palavras.
Knebel, principalmente em seu livro El ultimo Stanislavski (KNEBEL, 2003),
faz considerações e descrições esclarecedoras sobre o desenvolvimento da Análise Ativa
(Étude) à época em que ele foi criado por Stanislavski. Conta-nos que a grande
mudança nessa época foi que, antes, Stanislavski fazia seus alunos improvisarem
situações anteriores e posteriores ao acontecimento da peça e, com a Análise Ativa, eles
deveriam improvisar exatamente a situação da peça, naquele momento específico.
Segundo Stanislavski, esse processo permitia que o ator não utilizasse somente seu
cérebro, mas o corpo todo.
Kusnet reforça que a Análise Ativa é uma metodologia que não foi
completamente desenvolvida por Stanislavski, daí que muitos pesquisadores que o
precederam continuarem com suas investigações a partir desse ponto, de modo que, até
hoje, esse conhecimento não está fechado, pronto.
As pesquisas posteriores foram sendo moldadas a partir da realidade e dos
conhecimentos de cada pesquisador, tendo seus resultados se tornado até muitas vezes
contraditórios. Kusnet nos mostra uma possibilidade de encaminhar essa questão, mas
deixa claro que podem existir muitas outras.
Segundo a concepção kusnetiana, a utilização do Método de Análise Ativa
consiste em analisar o material dramatúrgico em ação, ou seja, procurar compreendê-lo
por meio da ação praticada pelos intérpretes dos papeis, e não na base de longos estudos
cerebrais. Para início desse trabalho, o ator deve apenas conhecer o conteúdo da peça a
ponto de poder contá-la. Desse modo, o único modo de executar a ação da peça nos
ensaios é improvisando. “A improvisação é a base da criação em todas as artes”
(KUSNET, E. 1975:98).
Nair Dagostini, brasileira, encenadora e pesquisadora da área teatral que esteve
na Rússia por muitos anos estudando com discípulos de Stanislavki, anos depois dessa
experiência, já no Brasil, escreveu uma tese de Doutorado na USP sobre o método da
Análise Ativa como base para criação do espetáculo pelo ator e diretor. Em seu
trabalho, a pesquisadora explica que a Análise Ativa pode ser um caminho para o
desenvolvimento da encenação de um texto. “Um paradigma do diretor teatral para
análise da obra do autor, através da ação, e é um meio para o ator recriar, em seu sentido
mais profundo, a atualidade da obra, dando origem ao espetáculo.” (DAGOSTINI, N.
2007:22) E depois completa: “Esse método respeita o significado mais profundo do
texto, possibilitando, assim, uma criação original a partir da individualidade do diretor e
do ator.” (DAGOSTINI, N. 2007:23)

Ecos da Análise Ativa em Gaivota – tema para um conto curto


Esse processo de análise do texto em ação encontra ecos na encenação de
Gaivota – tema para um conto curto, pela Cia dos Atores, sob direção de Enrique Diaz.
A encenação assinada por Diaz, um dos diretores mais aclamados na cena
brasileira atual, traz uma releitura do clássico A Gaivota, escrita pelo dramaturgo russo
Anton Tchekhov, num discurso "sobre" uma obra, com implicações metalinguísticas,
numa dramaturgia não-linear, tematizando sobre o que é teatro ou o que é ser ator.  Teve
sua estreia em 2006, na ocasião, em comemoração aos 18 anos da companhia.
A Cia teatral foi fundada em 1988, por Drica Moraes e Enrique Diaz, com o
intuito de “estudar e experimentar novas possibilidades da cena teatral”4. Com
reconhecida trajetória de exploração para novos caminhos para cena teatral brasileira,
encontraram em Tchekhov um parceiro muito potente.   O espetáculo levanta uma
discussão, diante da presença do espectador, sem definir um ponto de vista: mostra que
se trata de uma leitura dentro de muitas outras possibilidades de interpretação do texto;
                                                                                                                       
4
Palavras dos atores fundadores escritas no site da Companhia: www.ciadosatores.com.br.
isso fica evidenciado pela presença do diretor em cena, que comenta e analisa a
encenação. Essa escolha reforça que a encenação não só dá vida ao texto, mas
aprofunda as questões que o texto traz, em relação ao teatro, às novas formas de
encenação.
Como resultado, assistimos a uma obra em que o processo de construção do
espetáculo faz parte do próprio espetáculo. A cena vai se construindo como um esboço
com constantes ajustes e os personagens vão sendo substituídos entre os atores, por
vezes até atuando em coros. Essa característica favorece um outro tipo de compreensão
do texto, abrindo à discussão das diversas possibilidades de encená-lo. No trabalho com
o texto dramático, não houve a preocupação de desenvolvê-lo de forma literal (várias
cenas são cortadas, alguns personagens secundários são suprimidos, há inserções de
falas dos atores que não existem no texto), e ainda assim, o espetáculo mantém a
temática principal bastante fiel ao original.
O grupo traz para encenação o diálogo entre ator e personagem hipoteticamente
ocorrido no processo de criação, como um elemento que compõe a cena, aos olhos do
espectador. Isso se torna um pretexto para abertura dramática do texto ao exame do
público. Ou seja, a plateia, no momento de fruição da obra, também examina, analisa o
texto, os personagens. Isso intensifica a fruição do espetáculo e atualiza os significados
latentes no texto da peça.

Análise Ativa cena a cena: exemplos pontuais


No início do espetáculo, vemos os atores sentados em cadeiras de madeira numa
fileira horizontal. O cenário é todo branco: o chão, o fundo; como uma folha em branco
a ser escrita. Os atores fazem pequenas ações, como se estivessem absortos nos
universos dos personagens que irão/estão representando. Indícios que apontam para
ideia de ensaio, análise em cena.
Passa-se um tempo, até que a primeira atriz se levanta, leva sua cadeira mais a
frente, senta-se e diz: “eu me pergunto como começar uma peça que fala exatamente do
fracasso de uma peça?” A partir desta fala, inicia-se um movimento entre todos os
atores, que, aos poucos, vai aumentando, acompanhado por uma trilha sonora
instrumental. Outros atores se levantam com suas cadeiras e vão ocupando o espaço-
tempo de diversas maneiras, como se estivessem descobrindo, na frente do público, uma
maneira de colocar aquele texto em cena. Uma das atrizes conta o final da peça: “haverá
um suicídio no final da peça” e brinca com isso: “mas o autor insistia em dizer que a
peça era uma comédia!”
Um dos atores, que é também o diretor da peça, vai se aproximando dessa
primeira atriz que começou a falar e a veste com um sobretudo, criando uma convenção:
essa peça de roupa indica a personagem Masha.
Criticam a peça escrita pelo escritor: “é chata, ruim.” Comentam sobre a
diferença temporal das personagens e do público. Eles dizem esses textos enquanto vão
estabelecendo os personagens e os ambientes da primeira cena.
Na outra extremidade do palco, outro ator, que fará o personagem Professor,
começa também a sua preparação: fala de sua “transformação” em Professor, coloca
uma camisa na cadeira, e só então começa o diálogo presente no texto da peça.
Durante o diálogo é possível perceber que a atriz insere outras palavras e frases
no texto da personagem: frases pessoais, como por exemplo: “estou grávida, uma caixa
de grampos abriu na minha bolsa.” São frases que fazem uma analogia entre a situação
real da atriz e a situação ficcional da personagem.
O diálogo inicial do texto dramático é apenas esse:
“MEDVEDENKO (Professor) - Anda sempre vestida de preto,
porquê?
MASHA - Ando de luto pela minha vida. Sou infeliz.”
(TCHEKHOV, 2004 : 03)

Esse procedimento e toda a introdução que a encenação criou (que não há no


texto de Tchekhov) causa uma evidente empatia no público: no registro audiovisual,
percebemos que o público ri quando ela fala da caixa de grampos, exatamente porque se
identifica. Também ouvimos risada quando um dos atores menciona que a atriz já
contou o final da peça. Fica evidente que esta escolha direciona o interesse e a
curiosidade do público para o modo como a história será contada. Desse modo, a
encenação consegue atrair o público, trazendo-o mais próximo de uma história que
poderia parecer tão distante.
Esse primeiro movimento de introdução à peça de Tchekhov (contada pela Cia
dos Atores) com a qual o público é confrontado, já indica que o que ele irá acompanhar
não terá um único ponto de vista fechado e assim apresentado. Como se tivesse existido
uma fissura no processo de criação, o público é convidado a acompanhar as
possibilidades de intepretação, as análises dos comportamentos dos personagens, os
variados signos que podem ser criados, construídos a partir daquela história.
Já no final do primeiro ato, Henrique Diaz, diretor que está em cena com os
atores, lê um trecho do diário de Stanislavski (primeiro a encenar com sucesso essa obra
de Tchekhov) em que fala sobre a impressão do elenco após o final do primeiro ato:
“Estreia da Gaivota no Teatro de Arte de Moscou, 1898. Parecíamos ter fracassado. O
plano de boca fechou-se em meio a um silêncio sepulcral. Os atores estreitavam-se
timidamente uns aos outros de ouvidos atentos ao público.” Não é por acaso que essa
leitura (do diário do primeiro encenador da peça) é feita pelo próprio encenador da
montagem atual. A identificação entre os dois é imediata. Esse material com certeza o
aproximou da obra, assim como aproxima o público, que pode acompanhar, mais de
cem anos depois, o que ocorreu quando o mesmo primeiro ato desse mesmo texto
terminou nos palcos de Moscou.
Há também mais um elemento que torna a leitura do trecho ainda mais
pertinente: o encenador russo fala do receio do fracasso, que é um dos aspectos mais
pungentes da montagem cênica trazida pela Cia dos Atores.
Esse texto é lido de um livro (a própria peça de Tchekhov) que é colocado em
cena. Nesse e também em outros momentos, há sempre um ator com o livro da peça nas
mãos narrando, acompanhando ou presenciando a história encenada. No início de cada
ato, um dos atores lê a rubrica inicial, que dá as indicações de espaço e tempo para o
público. Com essas leituras, a plateia tem mais elementos para criar a cena numa
composição entre o que vê acontecendo e sua imaginação (atiçada pelas descrições da
rubrica).
Na leitura da rubrica que inicia o quarto ato, há algumas inserções dos atores
que, além de localizar o público no tempo ficcional, informam, de maneira relacionada,
sobre o tempo transcorrido do processo de criação e o tempo presente: “Passaram-se
dois anos.” (texto dramático). E acrescentam: “Passaram-se seis meses desde que a
gente começou a ensaiar essa peça.” (informação acrescentada). E terminam: “Passaram
cento e dez anos desde que Tchekhov escreveu essa peça.” Como efeito, o espectador
acompanha a história de dentro dela e de fora dela, lembrando-se de que está assistindo
a uma peça de teatro.
A presença material do livro e as ações de leitura (sejam do texto dramático
mesmo ou de informações acrescentadas) em alguns momentos são elementos de
composição que indicam, preparam e lembram o espectador que a peça é uma leitura
apresentada ao público, uma espécie de Análise Ativa do clássico de Tchekhov sendo
criada aos olhos do espectador.
No segundo ato, uma utilização de outro recurso oferece uma leitura muito
pertinente à cena. Na primeira conversa a sós que acompanhamos entre Nina (jovem
aspirante a atriz) e Trigorin (escritor famoso), observamos um coro de mulheres fazendo
a mesma personagem: Nina.
A cena se dá da seguinte maneira: o ator que faz Trigorin está descrevendo Nina
em seu caderno de anotações, mostrando sua admiração por ela. As três atrizes estão em
cena, na outra extremidade de uma diagonal, como Ninas. Ele as olha, como se aquele
momento fosse tão intenso, que ele não vê uma Nina, mas todas as mulheres são Nina
para ele.
Na cena anterior, em que Treplev (jovem escritor e atual namorado de Nina)  
coloca aos pés dela uma gaivota morta, como um primeiro indício de seu suicídio no
final da peça e de que Nina irá se perder, temos um exemplo (dentre muitos que
ocorrem na encenação) do uso de objetos de forma não realista. A partir de sua
utilização fora das situações que normalmente seriam usados, os objetos criam signos
diferentes daquilo representam literalmente.
Para representar a gaivota morta, o ator coloca aos pés de Nina uma couve-flor.
Ela lhe pergunta do que se trata aquilo. Em seguida, diz o texto de Treplev, da mesma
maneira que o dramaturgo escreveu, contando que matou a gaivota, e que dentro em
breve também irá se matar. Depois dessa resposta, que soou bem dramática, a atriz
responde: “Isso não é uma gaivota.” O ator diz então: “Você não consegue ver uma
gaivota aqui?”. Esse impasse, esse estranhamento que é real (pois aquilo é uma couve-
flor e é muito estranho alguém colocá-la a seus pés) é análogo ao estranhamento
ficcional que Nina tem (porque ele está colocando uma gaivota morta ali?).
Além da analogia criada, após o estranhamento da atriz com o objeto escolhido
abre-se uma discussão sobre os próprios objetos que os atores trazem para significar
algo. No calor dessa discussão, um ator descreve para ela o que está vendo: “Uma
gaivota a seus pés. Com suas asas quebradas. Sangue escorrendo pelo nariz, manchando
seu sapato...” Outro ator surge: “Nessa água que escorreu desse saco você não consegue
ver uma gaivota morta?” E outro, e assim todos os outros atores e atrizes irrompem à
cena com diferentes objetos em suas mãos para simbolizar a gaivota morta.
Vale a pena citar mais um último exemplo de uma cena construída em que fica
encenada para o público a análise que o grupo propõe da peça. Quase no final do
primeiro ato, vemos que Arkadina (atriz famosa e decadente, mãe de Treplev e
namorada de Trigorin) está um pouco bêbada. Há uma atmosfera de festa. A atriz, com
um copo de vodka nas mãos, diz: “Um brinde ao grande Tchekhov que morreu bebendo
champagne!” Os outros atores estão comemorando e brindando com vodka. Essa fala
não está no texto de Tchekhov, obviamente, mas combina perfeitamente com o
momento. A mesma atriz lê um texto que fala sobre mulheres apaixonadas por
escritores famosos, que “ficam de quatro” por eles. Enquanto isso, já vemos uma atriz
andando em quatro apoios, como um cachorrinho. Quando pensamos em estranhar e nos
perguntar o que estaria fazendo essa atriz nessa posição, imitando um cão, nos damos
conta da metáfora que está sendo construída: Nina, na situação ficcional da peça, está
rastejando como um cão por Trigorin, famoso escritor (namorado de Arkadina) que
acabara de conhecer.
A presença do livro que contém a peça escrita por Tchekhov; a leitura das
rubricas que dão início aos atos da peça, localizando o espectador em termos de espaço
e tempo; a narração de alguns fatos pelos atores; a inserção de comentários sobre o
autor, sobre os personagens ou mesmo sobre o processo de criação em si; a utilização de
objetos cênicos de forma não realista; a troca de atores na interpretação dos personagens
e os coros criados, todos esses elementos levam ao entendimento de que se está
fazendo uma leitura, montando a história diante dos olhos do espectador, uma Análise
Ativa, pode-se dizer de certa maneira.
A Cia dos Atores, no belo trabalho feito em Gaivota – tema para um conto
curto, faz e mostra ao público um estudo da dramaturgia em ação, uma compreensão
das circunstâncias propostas pelo autor, da estrutura da obra como um todo, e o mais
importante, uma compreensão muito própria deles, que diz muito das questões
pungentes para o grupo e porque é tão verdadeira para eles, para o teatro, de ontem e
ainda, de hoje.

Bibliografia
DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para
leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Doutorado em Letras,
USP, 2007.
KUSNET, Eugênio. Ator e método. Rio de Janeiro: Serviço nacional de teatro, 1975.
KNÉBEL, María Ósipovna. El último Stanislavski. Madrid: Editora Fundamentos,
2003.
PIACENTINI, Ney. Eugênio Kusnet: do ator ao professor. Dissertação de Mestrado.
ECA – USP. São Paulo, 2011.
RAMOS, Luiz Fernando. FERANDANDES, Silvia. Diálogo da Gaivota. Revista Sala
Preta USP, v. 07, 225-228, 2007.
STANISLAVSKI, K. A preparação do ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
TCHEKHOV, Anton Pavalovich A Gaivota. São Paulo: Ed. Cosac Naif, 2004.
Sites consultados:
www.ciadosatores.com.br (site consultado em 06.06.2014)
Gravação de vídeo:
GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO. Produção: Cia dos Atores. Rio de
Janeiro: 2006. DVD (disponível no acervo audiovisual da Biblioteca do Instituto de
Artes – Unicamp – SP).
TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
URBANIDADE CONTAMINADA: A DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS NA CENA
TEATRAL CONTEMPORÂNEA

Cecília Lauritzen Jácome Campos (Doutorado; Capes-Fapesc; Beatriz Angela Vieira


Cabral; Programa de Pós-Graduação em Teatro; Universidade do Estado de Santa
Catarinai)

Las ciudades no se hacen sólo para habitarlas, sino también para viajar por
ellas. Néstor Garcia Canclini

As manifestações artísticas contemporâneas encontram-se irremediavelmente


entrelaçadas por práticas e discursos que se contaminam. Estudar as práticas cênicas na
cidade implica permear diversas áreas do conhecimento, pois o espaço em que elas
acontecem representa âmbito de convívio social, manifestando práticas, poderes e usos.
Em artigo sobre a arte nos espaços públicos, a professora e pesquisadora Zalinda
Cartaxoii aborda a questão das intervenções urbanas na contemporaneidade, a partir da
ruptura com determinados condicionamentos da arte moderna. Segundo a autora, na
década de 1960 os artistas sentiram a necessidade de adotar novas posturas e
procedimentos que buscavam resgatar uma relação mais próxima com o real, “não
apenas numa dimensão estética, mas também política, cultural e social” (CARTAXO,
2009, p. 3).
Nesse sentido, as estruturas institucionais e os “lugares” da arte, como museus,
galerias e edifícios teatrais, passaram a ser questionados, suplantados, em favor de uma
ampliação da arte contemporânea no espaço urbano. Ao se colocarem na cidade,
reaproximando o sujeito do mundo, essas manifestações concebem acontecimentos que
se infiltram nas estruturas do espaço urbano de modo que, muitas vezes, não são
percebidas como tais. Nesse momento, o transeunte passa a ser público de arte, onde sua
participação pode se tornar, com frequência, relevante e imperceptível,
simultaneamente.
Rodrigues (2008, p. 84), em estudo sobre o espaço cênico contemporâneo, trata
da peça “O livro de Jó” do grupo Teatro da Vertigem, que escolheu um hospital como
site specific da peça. Para o autor, a montagem do Vertigem explorou o espaço dos
hospitais em que se apresentou das mais variadas formas, “buscando sempre evidenciar
as memórias, acentuando os significados” de cada lugar em particular. Diferentemente
das obras site-specific, as obras site-oriented possuem maior mobilidade, podendo ser
transformadas ou adequadas a outros lugares. Em geral, as obras site-oriented
impulsionam questionamentos que giram em torno da relação entre a arte e a
organização político-social, bem como “suscitam uma redefinição dos valores
tradicionais de originalidade e autenticidade ao lidarem com as ‘recriações’”
(CARTAXO, 2009, p. 6).
Qualitativamente itinerante, o site funcional lida com a dinâmica da
desterritorialização, pois se utiliza dos meios impressos de circulação (jornais, cartazes,
panfletos), bem como do rádio e da internet. Segundo Cartaxo (2009, p. 7), apesar de se
tratar de um lugar desmaterializado, pois se encontra em constante circulação, essa
manifestação está próxima do “lugar-cidade, tendo em vista o seu caráter dinâmico e
interativo”.
Agregando-se aos estudos das práticas do teatro contemporâneo na cidade, o
teatro urbano, segundo Rodrigues, pode ser encarado como um evento site specific, pois
propõe um vínculo semelhante com o espaço da cidade em que se insere. Na sua

1
concepção, tal prática tem como principal característica o “vínculo com o contexto da
cidade em que o evento se insere, propondo, assim, uma espécie de releitura dos
espaços” (RODRIGUES, 2008, p. 15). Nesse sentido, no teatro urbano a relação entre o
espaço cênico e o espaço urbano é indissociável, além disso, busca outras formas de
relação entre a cena e o público.
As experiências como espectadora de dois espetáculos específicos do 6º Festival
de Teatro de Rua de Porto Alegre iii guiam a discussão e proporcionam diálogos
diversificados sobre os usos dos espaços da cidade, seus modos de apropriação, bem
como da criação artística. A escolha dos referidos espetáculos se deu, a partir do
envolvimento estabelecido no momento da recepção, cujos acontecimentos foram
decisivos para o debate acerca das linguagens em “contaminação”.
O espetáculo Bivouac, da companhia francesa Générik Vapeuriv é uma versão
moderna de uma horda primitiva que controla as ruas e vira a cidade de cabeça para
baixo. Com os corpos pintados de azul, um trio elétrico e um cachorro metálico
incandescente, os performers avançam, manipulando barris em alta velocidade. Fundada
em 1984 por Cathy Avram e Pierre Berthelot, com sede em Marselha, esta é uma das
principais companhias de teatro de rua do mundo, seu foco está na mistura entre as
linguagens: teatro, dança, música, vídeo, imagem e uso de maquinaria pesada no
conceito de “tráfico de atores e máquinas”.
O espetáculo, que tem duração de 60 minutos, percorreu 600 metros do bairro
Cidade Baixa, atravessando avenidas de grande fluxo, interrompendo a ordem do
trânsito dos carros e pedestres. O percurso foi sendo delimitado através da
movimentação dos barris conduzidos pelos performers em associação ao carro elétrico
que se mantinha na parte de trás do “cortejo”. Para o grupo, é essencial para a
cenografia do espetáculo o poder que advém dos sons, dos movimentos e das luzes na
criação de espaços vazios, dentro dos quais existe e se move o espaço do jogo.

Bivouac deseja executar restaurações, criar espaços arriscados, verificar os


reflexos, a capacidade de saltar. Há o esboço de uma coreografia de balé
coletivo, que se difere de um público para outro, onde se fragmenta em
muitos a dupla “ator-espectador”, estando ambos muito perto e muito longe.
Compartilham o mesmo espaço, respiram o mesmo ar e pertencem a dois
mundos que não se sobrepõem, onde um pertence ao imaginário do outro
(Tradução minha)v.

Dois aspectos que caracterizam esta performance ficam claros no momento da


recepção: a itinerância e a contaminação. Ambos estão intimamente ligados em
Bivouac, não apenas pelo fato do grupo deixar claro seu desejo em termos estéticos, mas
pela potência de envolvimento que tais escolhas transparecem. A itinerância é marcante
na participação do espectador, pois o leva a questionamentos como: Por que eu estou
fazendo este trajeto e o que me leva a correr atrás dessas pessoas? Há uma espécie de
condução que não é guiada, didaticamente falando, mas deixa claro um tipo de
abordagem, cujo participante se sente convidado e parte integrante do acontecimento.
Para Lehmann (2007, p. 224), o objetivo principal deste tipo de encenação é menos a
amarração estética do todo, mas, sobretudo, a produção de experiência. Busca-se uma
interferência no espectador no intuito de que ele seja capaz de “mobilizar sua própria
capacidade de reação e vivência, a fim de realizar a participação no processo que lhe é
oferecida”.
A experiência como espectadora em Bivouac evidencia o “desvio performativo”,
apontado por Fischer-Lichte (2008), sofrido pelo teatro a partir dos anos 1960. Tal
redirecionamento não concebe mais o teatro como representação de um mundo ficcional

2
que o público deveria observar, interpretar e compreender. Para Fernandes (2011, p.
17), “a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às
demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte”, ou seja, a participação do
público ultrapassa a missão de interpretar e produzir significado frente a uma
performance. E “isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o
espectador interpretar, mas também não se pode dizer que as ações do artista per-
formativo apenas signifiquem alguma coisa” (idem). Nesse sentido, o papel do
espectador se amplia, pois assume uma posição de observador que é, ao mesmo tempo,
atuante e sujeito da fruição. Além disso, os espaços da subjetividade são incorporados à
ação da recepção, visto que o “contemplar” foi redefinido como atividade, “como um
fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas
associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado” (FISCHER-
LICHTE, 1988, p. 149).
O aspecto da contaminação é recorrente na cena artística contemporânea,
chegando a refletir, inclusive, uma crise identitária das linguagens, abalando suas
convicções epistemológicas. Nesse sentido, segundo Fernandes (ibidem, p. 11),
atualmente seria adequado falar em “experiências cênicas com demarcações fluidas de
território, em que o embaralhamento dos modos espetaculares e a perda de fronteiras
entre os diferentes domínios artísticos são uma constante”. Para a autora, ainda, é
importante pensar no espetáculo como evento que envolve performers e espectadores
numa atmosfera única, compartilhada, criando um espaço gerador de experiência que
vai além do simbólico. Esse ato transgressor da cena contemporânea é capaz de
reverberar fisicamente em seus participantes, de modo a criar um ambiente de “infecção
emocional”.
No caso do Générik Vapeur, a contaminação toma proporções que transbordam
a própria cena, pois sua inserção instaura fraturas profundas nas dinâmicas do espaço
utilizado. Tais rupturas tornam-se visíveis no nível do trânsito (automóveis e pedestres),
das paisagens sonora e visual, bem como nas nuances de relação com o cidadão que vai
estabelecendo ao longo do percurso, fazendo-se necessário pensar no espaço da cidade
como ambiente. Segundo o pesquisador André Carreira,

ambiente é o resultado da experiência cotidiana que se apropria do espaço


que nasce como projeto, mas se deforma para alcançar uma organização que
é sempre temporária. O ambiente se modula com uma durabilidade relativa,
pois sua dinâmica interna sempre conduz a novas conformações. (2008, p.
67)

É característico da performance possibilitar esse tipo de organização temporária,


usual do ambiente. Tais escolhas, que residem no nível da “abertura” ou
disponibilidade, relacionam-se com o espaço e com as atitudes internas, ou seja, no
nível da “cena”, igualmente. Nesse sentido, Glusberg (1987, p. 83) aponta para o fato de
que o elemento inesperado na performance pertence primeiramente ao artista e depois
ao espectador, reforçando a ideia de que o performer prepara-se para o acontecimento,
mesmo que sua estrutura não esteja rigidamente articulada.
O espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu
Escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido (2006)vi do grupo Teatro
que Roda (Goiás, 2003) apresentou-se durante o festival no Largo Glênio Peres, centro
da cidade de Porto Alegre. Uma breve sinopse da peça relata: “um executivo cansado de
sua rotina resolve mergulhar num mundo imaginário em busca de aventuras e emoções
e passa a acreditar ser Dom Quixote. Descendo de um prédio, numa corda, gritando por
sua amada Dulcinéia e se desfazendo de seu figurino de gravata, incorpora o cavaleiro

3
andante. Sua primeira tarefa é encontrar seu fiel escudeiro, Sancho Pança, missão que
acaba nas mãos de um catador de papel de rua. Mas não pode haver cavaleiro andante
sem seu cavalo. Sancho então constrói com sucatas um cavalo para seu amo no seu
carrinho de catador. Pronta a equipe, saem pelas ruas à procura de aventuras” (FTRPA,
2014)vii.
Neste espetáculo a itinerância se repete como traço marcante, entretanto, seu
percurso não conduz o espectador a um questionamento brusco sobre o deslocar-se.
Aliás, ele se torna quase imperceptível perante o grau de envolvimento que toma os
participantes da ação. Há um fio condutor claro no desenvolvimento do espetáculo, que
leva os espectadores a essa sensação de deslocamento. O principal elemento que integra
tal fio é a relação que vai se construindo ao longo do espetáculo entre Dom Quixote e
Sancho Pança e, consequentemente, entre este último e o público. A oscilação contínua
entre ficção e realidade, feita pelo personagem-ponte (Sancho Pança), coloca o
espectador numa posição dual, conduz a um lugar em que persiste a dúvida e alimenta a
integração. Para Silva (2011), Sancho está sempre lembrando ao público sobre o caráter
ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com os
espectadores. “Suas evoluções junto ao público são alguns dos momentos mais felizes,
pois, bebendo das fontes farsescas e histriônicas da tradição popular, confere ao
espetáculo uma deliciosa comicidade” (idem).
A noção de invasão fica evidente na montagem, por que há uma mudança, não
apenas na relação com o espaço urbano, mas também na relação com o próprio
espectador. Podemos dizer que o espectador passa por dois processos de transformação
ao se deparar com um tipo de espetáculo que se inspira na invasão. Uma, quando ele
deixa de ser pedestre e passa a ser um espectador acidental da representação; e outra
quando ele, “convidado” a ser espectador participante, se dispõe a entrar no jogo da
ação e ser surpreendido pela forma como passará a redescobrir espaços próprios de
convívio urbano e social (JÁCOME, 2013). Dom Quixote se concretiza invasor por que
propõe uma ruptura lúdica no cotidiano, oferecendo ao cidadão uma possibilidade de
jogo, um momento de quebra na obviedade do dia-a-dia. Alguns dos mecanismos
utilizados na encenação que contribuem para tais ressignificações são as instalações em
prédios e monumentos, o uso da técnica do rapel e a inserção de uma escavadeira, onde
as “Dulcinéias” são conduzidas.
É importante pensar que a contaminação como tendência contemporânea está
presente em ambos espetáculos, de formas peculiares, mas simultaneamente similares,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com o espaço urbano e com
o público. A companhia francesa aproxima-se do gênero performático enquanto o grupo
goiano tem sua escolha claramente apontada para o teatro. Não tanto uma questão a ser
respondida, mas uma provocação se faz pertinente: ainda podemos ter fronteiras bem
definidas entre linguagens ou esse é um mecanismo de sobrevivência utilizado pelos
grupos frente ao sistema? Lehmann (2013, p. 874-875) insiste na improdutividade da
discussão sobre as definições, para o autor:

É óbvio que o teatro, assim como outras práticas artísticas avançadas, adotou
elementos da performance (autorreferencialidade, desconstrução de
significado, exposição do mecanismo interno do seu próprio funcionamento,
mudança da atuação teatral para a performática, questionamento da
estrutura básica da subjetividade, repúdio – ou pelo menos crítica e exposição
da representação – e iterabilidade), enquanto a performance, inversamente, se
tornou teatralizada de muitas maneiras.

4
Ao assumir o desvio performativo como norte da situação é válido questionar se
o discurso do “deixar-se experimentar” como prioridade se sustenta, principalmente no
que diz respeito ao lugar do público. Outras questões reforçam a reflexão: “Em que
medida estas ações afetam a percepção estética e operam ‘regras culturais’ válidas?
Quanto atos como estes transformam os espectadores em performers eles próprios?”
(SOARES, 2008). Desgranges (2010, p. 50) complementa: “como compreender a
pertinência de uma proposta artística que convida o espectador a disponibilizar-se para
um modo de leitura que ultrapasse a barreira da dimensão lógico-racional, e se permita
saborear os descaminhos da experiência com a arte?”.
Pensar sobre o espectador que se torna performer é assunto delicado e requer
repensar o cidadão e a cidade para tentar compreender o espaço urbano da recepção.
Como meio de delimitar o espaço da discussão, por ora, introduz-se a noção de
urbanidade no intuito de refletir sobre o lugar do indivíduo urbano frente a tais
manifestações contemporâneas. Para Afonso (2007), a urbanidade não se refere nem a
uma delicadeza nem a um primitivismo do meio rural, mas “a uma virtude essencial que
define o homem atual na sua condição urbana”. Sendo considerada assim, a urbanidade
apresenta-se como a “condição urbana da humanidade”, incluindo todos que vivem
neste meio, seja conscientemente ou não. Nesse sentido, a urbanidade alcança além do
contexto cultural, social ou estrutural de uma cidade, podendo ser compreendida como o
modo com que os habitantes de um lugar se relacionam segundo seu espaço e tempo.
A relação do indivíduo com a cidade, refletida nos seus traços da vida cotidiana,
referida pela urbanidade, é, muitas vezes, turbulenta, pois reflete suas contradições. Para
Desgranges (2010, p. 54), “o indivíduo lançado no isolamento de seus interesses
privados, vê a multidão como ameaça constante, ou pela inexistência de um espaço
público convidativo, ou pela perda da singularidade mediante a estandardização de
comportamentos”. Nesse conflito reside o papel da arte como resistência aos modelos
de interação oferecidos pelo sistema, cujos interesses permeiam processos de
homogeneização dos espaços da urbe. Para Scocuglia, refletir sobre a cidade implica,
necessariamente, atravessar outros campos do conhecimento como a sociologia, a
antropologia e as artes.

Há uma necessidade crescente de aproximação entre áreas sensíveis desses


campos de conhecimento, no sentido da valorização das subjetividades, das
práticas cotidianas, das experiências de copresença nos espaços urbanos e dos
instrumentos analíticos e conceituais que podem fundamentar uma
compreensão da experiência de vida nas cidades contemporâneas a ser
rebatida na prática de intervenção e na concepção de novos espaços e cidades
mais humanitários. (2011, p. 412)

É indiscutível a pertinência da atuação das manifestações artísticas no espaço


urbano, no entanto, é preciso investigar as formas de percepção que o homem moderno
exerce, a partir do que Walter Benjamin chamou da perda da capacidade de experiência.
No caso da cidade contemporânea, a falta da possibilidade de experiência pode estar
ligada aos hábitos da vida cotidiana, suas demandas, ritmos e funcionamentos que
instauram caminhos conhecidos e reconhecidos pela normatividade. “O estímulo
cotidiano frequente a uma atuação hiperbólica da consciência deixa a psique pouco
disponível para a percepção sensível, que ultrapasse o mecanismo meramente
instrumental” (DESGRANGES, 2010, p. 55). A arte assume, então, o lugar das brechas
e lacunas, buscando irromper no caos momentos em que “o consciente seja
surpreendido, pego desatento”. Para Desgranges (idem), “as alterações na percepção
solicitam procedimentos artísticos modificados para provocar a irrupção da memória

5
involuntária”. Nesse sentido, o teatro e a performance na cidade surgem para sugerir ao
individuo novas formas de vivenciar o urbano, para apresentar possibilidades do “se
perder”, colocar-se num risco não-habitual, explorar o poético como desconhecido,
contrapondo o sujeito ao modo usual e operacional de “ver, sentir e pensar o mundo”.
Diante das possíveis realidades as quais o cidadão se expõe atualmente, pensar
acerca dos efeitos da contaminação na cena e sua reverberação no ato de recepção
reflete, igualmente, na discussão sobre a criação de espacialidades. Desse modo, ao
pensar sobre as manifestações artísticas na cidade é imprescindível reconhecer que, as
mesmas, estão embutidas naturalmente de posicionamentos políticos, a partir do
momento em que decidem interferir na lógica da cidade. Tais atos criam intromissões e
estranhamentos produtivos, desvelando faces desconhecidas do espaço urbano. Para
Carreira (2008), apesar de imbuídas por gestos políticos, tais manifestações não nascem
sempre impulsionadas por uma motivação politizada claramente definida, contribuição
que aponta para um redirecionamento do senso comum em relação aos “papéis”
desempenhados pela arte urbana.
Nesse sentido, é válido enxergar o exercício do “teatro performativo” na cidade
na sua potência máxima de intercâmbio com as vozes do próprio espaço, intensificando
trocas com a arquitetura, as vias principais e periféricas, seus ritmos e usos. A partir
desse posicionamento, compreende-se a prática do teatro/performance na cidade como
elemento essencial de interferência na urbanidade, criando novas espacialidades e novos
lugares. Sobre esse exercício, Carreira (2008, p. 71) comenta:

“Desorganizar” o fluxo da rua através das linguagens teatrais é buscar a


construção de Lugares (AUGÉ, 1994), pois implica a redefinição de relações
existentes entre o cidadão e os espaços da cidade de modo a territorializar
estes sítios, redefinindo sentidos antropológicos ou relacionais.

A arte urbana desempenha, assim, papel crucial no pensamento/ação sobre as


relações. Tal responsabilidade é notável nos espetáculos analisados, pois a noção de
cumplicidade que vai se configurando entre ator e espectador confere força, no sentido
de potência, para seus participantes que, mesmo questionando-se em alguns momentos a
respeito das condutas tomadas, levam e deixam-se levar pelo acontecimento. Nestes
casos, o cidadão, pedestre acidental ou espectador assume o papel de compositor do
espetáculo, mesmo que não abandone seu posicionamento de “público potencial”.

Referências

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<http://quintacidade.com/2007/11/30/urbanidade/>. Acesso em: 13 ago. 2012.

CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA,


Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco.
Rio de Janeiro: 7letras, 2008. p. 67-78.

CARTAXO, Zalinda. Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. O Percevejo,
Rio de Janeiro, n. 1, p. 01-16, 2009.

DESGRANGES, Flávio. Arte como experiência da arte. Lamparina: Revista de ensino


de teatro, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p.50-56, jun. 2010.

6
FÉRAL, J. “Performance et théâtralité: le sujet démystifié”. In: FÉRAL, J.; SAVONA,
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partir de grupos atuantes em Porto Alegre. 2013. 129 f. Dissertação (Mestrado),
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

LEHMANN, Hans-thies. Teatro Pós-dramático, doze anos depois. Revista Brasileira de


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RODRIGUES, Cristiano Cezarino. O espaço do jogo: espaço cênico teatro


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<http://www.questaodecritica.com.br/2011/10/dom-quixote-e-a-invasao-da-poesia/>.
Acesso em: 02 jul. 2014.

SOARES, Luiz Claudio Cajaíba. Algumas reflexões sobre os modos de recepção das
Artes Cênicas contemporaneamente. 2008. Disponível em:
<http://portalabrace.org/memoria/vcongressoteorias.htm>. Acesso em: 02 jul. 2014.

i
Apoio FAPESC; CAPES.
ii
Zalinda Cartaxo é artista visual, autora do livro Pintura em distensão e professora adjunta na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
iii
O festival, que já está na sua sexta edição, aconteceu de 20 a 29 de Abril de 2014 na cidade de Porto
Alegre – RS.

7
iv
GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <http://ftrpa.com.br/bivouac-
franca-marseille/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
v
“Bivouac redonne envie de courir, de frôler, d'esquiver, De vérifier ses réflexes, sa capacité de saut, de
volte-face. De là s'esquisse la chorégraphie d'un ballet collectif, différent d'un public à l'autre, qui se
fragmente en autant de pas de deux comédien-spectateur. Etre à la fois très près et très loin. Partager le
même espace, respirer le même air et appartenir à deux univers Qui ne se superposent pas, dont l'un est
l'imaginaire de l'autre”. GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em:
<https://www.facebook.com/Generik.Vapeur?fref=ts>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vi
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Histórico. 2008. Disponível em:
<http://teatroqueroda.blogspot.com.br/p/historico.html>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vii
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu
escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido). 2014. Disponível em:
<http://ftrpa.com.br/das-saborosas-aventuras-de-dom-quixote-de-la-mancha-e-seu-fiel-escudeiro-sancho-
panca-goiania-go/>. Acesso em: 02 jul. 2014.

8
Espaços à Margem do (I)material

nas performances de Guillermo Gómez-Peña

Cláudia Simone Oliveira do Nascimento – Mestranda do PPGT/UDESC

Stephan Arnulff Baumgärtel - Professor Orientador, PPGT/UDESC

Resumo:

Este ensaio pretende abordar violência e neocolonialismo como espaços que


se abrem nas performances do mexicano Guillermo Gómez-Peña, e de seu
coletivo La Pocha Nostra. Sua condição (i)material consiste em considerar o
espaço não apenas como um ‘topos’ geográfico, territorializado, embora o
entrelaçamento ‘com’ este se coloque como ponte para discutir a imaterialidade
das relações da arte com as estruturas de poder, e os vários desafios de
gênero, raça e etnia. Nesse sentido, a margem (aqui) estabelece uma relação
fronteiriça entre materialidade e imaterialidade. A teatralidade é abordada de
forma expandida, relacionada a questões de performatividade, inerentes às
ações de performance, no entrecruzamento arte e vida.

Palavras-chave: Gillhermo Gómez-Peña. Performance. Neocolonialismo.


Teatralidade. Peformatividade.

estimado compañero

del otro lado del espejo

there’s really no danger tonight

estoy completamente disarmado

the only real danger lies

in your inability to understand me

in your unwillingness to trust

(GOMÉZ-PEÑA, performance text from


Border Brujo, 1989)
O imaginário da distância espacial, que para Homi Bhabha (2003)
implica viver de algum modo além da fronteira de nossos tempos, aqui se
estabelece como margem, e dá relevo às diferenças sociais e temporais que
interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade, e se mostra na
imaterialidade das performances do mexicano Guillermo Gómez-Peña. Com a
finalidade de explorar novas formas para apresentar idéias e criar um espaço
fronteiriço imaginário, onde coexistem teoria e prática, loucura e clareza,
ativismo e arte, Guillermo Gómez-Peña e seu coletivo, o La Pocha Nostra,
estabelecem sua poética. Num diálogo constante com os acontecimentos de
sua vida e do mundo, ele cria performances que muitas vezes são respostas à
realidade que o acomete, ou o modo como a percebe, fazendo emergir a voz
do deslocado, do marginal, do diferente, saldos de uma cultura de violência,
que se estrutura sob o poder de uma fala dominante, emitida no espaço que o
circunscreve pelo anglo-saxão.

Artista que emergiu na segunda metade do séc. XX, o mexicano


Guillermo Gómez-Peña, que há trinta anos vive nos EUA, é descendente direto
de todos os movimentos da avant garde que abriram este século, mantendo
vivos e atualizados diversos procedimentos vanguardistas e, em especial, seu
anseio em desmitificar comportamentos codificados, se utilizando da linguagem
da arte da performance como meio de discussão da realidade e articulação das
diferenças. Inspira-se na alteridade, na cultura marginal (que ele chama de
transcultura proletária, como um outro tipo de cultura global que emerge
organicamente da base das comunidades e das ruas), e também na cultura do
mainstream.

Desde o início de sua carreira, Goméz-Peña cruza linhas culturais de


modo irônico e, algumas vezes, exagerado, buscando no humor e na
irreverência munição para desmitificar e desarmar ‘expressas contradições’ e
‘justaposições dos seres’, segundo ele, emanados pela cultura dominante.
Questões que ele coloca a partir do seu modo de fazer arte, que envolve
também críticas e reflexões próprias ao mundo artístico. A partir de uma
complexidade provocativa, que considero central no seu trabalho ou o seu
modo de incorporar a hibridez, Gómez-Peña investiga as questões de raça,
multiculturalismo, gênero e linguagem, também as de fronteira, religião e
política, imbricadas a uma exploração da performance como expressão
artística.

Raça, gênero, geração, localidade geopolítica, orientação sexual, são


para Bhabha (2003) consciência das posições do sujeito, que se desdobra e ao
mesmo tempo se afasta das categorias organizacionais básicas de ‘classe’ ou
‘gênero’. Em função disso, Bhabha considera crucial, do ponto de vista político,
ultrapassar as narrativas de subjetividades originárias e focalizar no ‘entre-
lugares’ onde se fundam os momentos ou processos de articulação das
diferenças culturais. Habitar um entre-lugar marca uma das características da
hidridez e se estende aos artistas que vivem nos interstícios das culturas,
reinventando suas vidas e práticas. Como no caso do artista migrante que a
partir do ‘não território’, através da arte híbrido-fronteiriça do performático,
assume uma atitude ante o mundo. É a partir deste lugar que a voz de
Guillermo Gómez-Peña emerge.

Eu opto pelo fronteiriço ... vivo justo na fenda de dois mundos,


na ferida infestada ... a quatro milhas do principio da fronteira
do México com os Estados Unidos ... na minha multi-realidade-
fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias,
linguagens, cosmogonias, tradições artísticas e sistemas
políticos drasticamente opostos (a fronteira é o enfrentamento
contínuo de dois ou mais códigos referenciais) ... nós nos
desmexicanizamos para mexicompreender-nos ... e um dia a
fronteira se converteu na nossa casa ... (Gómez-Peña,
Guillermo. EI Mexterminator. Antropología inversa de un
performancero post mexicano. Introd. y selec. Josefina Alcázar.
México: Océano, 2002, p. 48 apud Bhabha, 2003, p. 49.)

Para Bhabha (2003) o discurso colonial (e também do neocolonialismo)


fornece o aparato de reconhecimento e repúdio às diferenças, onde a eficácia
do estereótipo e da discriminação se funda na ambivalência da ‘fixidez’. Para
ele a fixidez marca o significado da diferença cultural/linguística/racial, que em
contra partida abriga seu contrário: a desordem, a degeneração, a repetição.
Assim, o estereótipo se constrói num ‘lugar’ já conhecido, e produz os seus
discursos de alteridade. Discursos que engendram a dominação e são
corroborados em agenciamentos narrativos que se apoiam na linguagem. Em
função disso, ele propõe que o termo ‘cultural’ deve ser continuamente
redefinido, uma vez que, os termos do embate cultural, seja através de
antagonismos ou afiliação, são produzidos performativamente. Para Renato
Rosaldo (2009) o termo ‘cultural’ refere-se às noções específicas que
transmitem um sentido de validez humana, como a dignidade, o respeito e a
confiança. A presença de Latinos(as) nos Estados Unidos apresenta, segundo
ele, um desafio para a noção de cidadania monosujeito, uma pessoa que fala
somente inglês e vive unicamente em relação à uma herança ‘anglo-saxã’. E,
por ameaçarem os grupos anglo-saxões, as pessoas bilíngues, fluentes em
inglês e espanhol, são envolvidas num processo de marginalização e exclusão
completa dentro dos EUA.

Além disso, Rosaldo (2009) sustenta que, juntamente com outros


grupos, os Latinos(as) desmentem a noção de que os Estados Unidos são
formados em um território delimitado dentro do qual as pessoas falam um
idioma e têm uma só cultura. Através de um processo que Rosaldo (2009)
chama de cidadania cultural, deve-se considerar as práticas culturais do dia-a-
dia através das quais os Latinos(as) exigem o seu espaço e o direito de serem
membros por inteiro da sociedade. Assim, o termo cultural proposto por
Rosaldo (2009), além de referir-se às avaliações subjetivas que as pessoas
têm de suas próprias situações, forneceria os graus de cidadania, sustentando
também os requeridos pelo Estado, que separaria os sujeitos de primeira
classe verso os de segunda classe. Bastante eficiente em seu alcance, esse
modelo codificador hegemônico se inscreve como poder dominante, e é onde a
arte da performance, em sua breve história, exerce um importante papel de
produzir uma contra-hegemonia.

Guillermo Gómez-Peña, nestes últimos 30 anos, tem contribuído para


debates culturais tanto de forma teórica, expressa em seus livros e artigos,
quanto encenando peças de arte de performance seminais. Dentro de uma
produção extremamente diversificada e intensa, Goméz-Peña aborda de
maneira subversiva a temática migratória e da identidade trans-cultural,
mostrando as relações entre os Latinos e os Estados Unidos, a partir do olhar
do marginalizado. Algo que podemos perceber desde suas primeiras
performances, e que aqui se fará presente na voz de Border Brujo (1987).
Nesta peça de performance Gómez-Peña fez uso da palavra falada para lidar
com a identidade de fronteira, criando uma ‘casa de cambio’ imaginária que
serviu de palco para 15 personas, com ‘línguas fronteiriças’ distintas,
encarnarem suas relações com o ‘espaço fronteiriço’ do imigrante que vive nos
Estados Unidos, laço que as une.

Border Brujo é um ritual linguístico e uma jornada performativa


através da fronteira México – estados Unidos. [...] O
relacionamento entre essas personas é o simbólico que cada
uma tem entre Norte e Sul; América Anglo e América Latina;
mito e realidade social; legalidade e ilegalidade; performance
art e vida. A estrutura é desnarrativa e modular, como a
experiência de fronteira. É uma fusão de técnicas pós-
modernas com vozes populares, confrontadas de forma
dialética com outras pesquisas, que envolvem as mídias, o
turismo, a cultura pop, grupos específicos de imigrantes que
vivem nos EUA (como os Pachucos), e também jargões
políticos. (Gómez-Peña, 1991 - Tradução minha.)

Durante a ação Gómez-Peña encarna novas vozes em ‘inglanhol’ e


‘línguas indígenas esquecidas’, intercaladas com metacomentários de poesia
épica. Seu roteiro (um work in progress) foi escrito em Inglês, Espanhol,
Espanglês, gringoñol e vários compostos de "línguas-robô". Border Brujo
apresenta uma das versões da antropologia reversa, proposta por Gómez-
Peña, na medida em que os monosujeitos perdem seu status de privilegiados,
pois não entendem as ‘piadas’ em espanhol nem as que misturam espanhol e
inglês. Nessa peça, carregada de humor ‘chicano’, Gómez-Peña narra a
experiência do artista imigrante e os vários desafios que enfrenta, desde
questões simbólicas que dizem respeito à sua raça e etnia e ao
neocolonialismo, aos vários incidentes que os imigrantes sofrem dentro dos
EUA, com relação ao vencimento e renovação do visto de permanência no
país. Além do texto, Goméz-Peña fez uso de um altar portátil que funcionava
como cenografia e que, como seus trajes feitos à mão, eram compostos de
objetos pseudo-étnicos, tchotchkes turísticos e lembranças religiosas baratas.
Gerard Garza (1990) escreveu sobre uma reencenação dessa peça
quando esteve em cartaz em Los Angeles (janeiro de 1990), com Border Brujo
II, comentando que:

In Guillermo Gomez-Pena's "Border Brujo II", the brujo, or


shaman, labels the border region the ultimate ‘casa de cambio’
- a full-service house of exchange where "anything can change
into anything". Dollars can be changed into pesos and the brujo
can change from Aztec to high tech without missing a beat.
That is precisely what happens, and rather stunningly, in
Gomez-Pena's new, multimedia version of his twisted border
travelogue, which incorporates a video by Isaac Artenstein.

Com Border Brujo, Goméz-Peña torna-se um artista da performance


migrante, passando dois anos na estrada, indo de cidade em cidade, de país a
país, voltando algumas vezes para Los Angeles e reproduzindo os padrões
migratórios da diáspora mexicana. Durante a viajem, incorporou novos textos,
adereços e figurinos para sua peça de performance, acrescentando ao trabalho
um caráter efêmero e processual contínuo. Gómez-Peña explora a cultura
como um vetor consciente por meio de jogos que se inserem na visão de
mundo dos seus espectadores. Uma produção que torna evidente uma
politização da cultura, num processo de reconhecimento de diversas
subjetividades, permitindo o contato com o outro, com o diferente, com o
marginal, reconhecidos em meio a uma trama cultural complexa.

Referências

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço


de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalvez. 2 reimpressão. Editora UFMG, Belo
Horizonte, 2003.

GARZA, Gerard. Performance Art Review: 'Border Brujo': From Aztec to


High Tech. County Arts Editor. From Los Angeles Times. San Diego, January
20, 1990.
GOMÉZ-PEÑA, Guillermo. Ethno-techno: writings on performance, activism
and pedagogy. Edited by Elayne Peña. Routledge. New York, 2005
_______________________ Border Brujo: A performance Poem (From the
Series “Documented/Undocumented”. The Drama Review – TDR (1988).
Published by: the MIT Press. Vol. 35, n. 3. New York, Autumn, 1991, pp. 48-66.
_______________________ The life and work of Gómez-Peña, A new multi-
media lecture by Gómez-Peña. Multiply Journeys. Archived by Emma
Tramposch. Disponível em: http://www.pochanostra.com/projects/

ROSALDO, Renato. Cidadania Cultural. In. Cidadanias em cena: entradas e


saídas dos direitos culturais. Textos Acadêmicos do VII Encuentro Hemispheric
Institute, Universidad Nacional de Colombia, 2009.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
POÉTICAS DA CENA: ENTRE ARTAUD E BECKETT

Dario Ferreira de Albuquerque;


Orientador: Hector Andres Briones Vasquez;
Instituto de Cultura e Arte – ICA;
Universidade Federal do Ceará – UFC.

Resumo: Este artigo tem como propósito falar sobre poéticas cênicas a partir do pensador
teatral e poeta francês Antonin Artaud e o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Dois
pensadores que conseguiram criar linhas de fuga capazes de fazer o teatro saltar pra além
do seu tempo. Coloco em discussão os pontos de convergência entre os dois nos modos de
conceberem seus pensamentos no que tange a encenação. Pretende-se delinear as
possibilidades poéticas que esses dois pensadores abrem à arte teatral na época em que
viviam e de que forma as questões que eles colocam para o teatro chegam a nós ainda hoje.

Palavras-chave: Poética Cênica; Encenação; Escrita-corpo.

Para pensar em poéticas cênicas tomo como ponto de partida as rubricas da peça
Esperando Godot de Samuel Beckett e o livro O Teatro e Seu Duplo de Antonin Artaud.
Neste artigo colocarei Beckett antes de tudo como um encenador, que leva o corpo cênico
para sua escrita, e transforma a palavra em corpo, antes mesmo de esta palavra sair do texto
para cena, a meu ver não há nessa relação uma importância maior da palavra diante da cena
ou da cena para a palavra, a escrita de Beckett consiste numa espécie de simbiose entre
corpo cênico e palavra-texto.

As formas contemporâneas de construção de uma obra teatral não estão mais


limitadas a acreditar que o texto dramático seja o progenitor da encenação ou que contenha
tudo o que se pode dizer com o espetáculo, esta foi uma das principais contribuições à arte
teatral realizadas por Artaud e Beckett. As obras desses dois pensadores de teatro vão
implicar todo um deslocamento das funções poéticas não só do teatro e também todo um
deslocamento epistemológico, de visão de mundo, de um logocentrismo a uma aceitação
das dinâmicas corporais e materiais da cena.

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Hoje se trata a obra teatral como fruto de todas as conexões materiais e imaginárias
criadas no espetáculo, colocando os sentidos dos elementos que ela comporta. O que está
sendo colocado nos nossos dias não é a negação do texto dramático, de alguma forma ele
não seja mais necessário para a encenação. De certo modo grande parte das encenações
possui um texto dramático, o que difere, é o fato deste não ser tratado como elemento único
e principal para a produção do espetáculo. Sendo que ao analisar o texto escrito em uma
montagem, faz-se junto a todo o espetáculo, não o tratando como um elemento
independente. Pois, características deste texto dramático podem ter sido explicitadas ou
não, para que falem o que se queira imprimir com o conjunto de elementos de uma obra.
Na A Encenação e a Metafísica, segundo capítulo do livro O Teatro e seu Duplo,
Artaud coloca:

Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que
não obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos,
tudo que não está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função
de suas possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa
sonorização) seja deixado em segundo plano? (ARTAUD, 2006:36)

A partir desta colocação é possível observar a problematização que o texto teatral


traz para as questões referentes à ideia de encenação que tanto inquietou Artaud, a ponto do
próprio tecer caminhos revolucionários, que tem como ideal um teatro ritual que segundo
ele seria uma espécie de fio condutor que religariam o teatro ao real que é a vida, como uma
volta ao ser humano na sua potencia vital. Artaud coloca a noção de crueldade na
introdução do livro O Teatro e Seu Duplo, fala que nós vivemos em um mundo com uma
quantidade excessiva de sistemas, de símbolos que procuram explicar o mundo, mas que
acaba nos afastando da vida, como se fosse um tipo de doença (o vocabulário de Artaud é
muito próximo da medicina, da doença, da cura). Uma decadência de uma civilização
européia, ocidental, que tem haver com esse excesso de sistemas simbólicos como se fosse
uma doença, esses sistemas não fazem mais a ponte com o real que é a vida, eles nos
protegem do real, dai a necessidade de uma estratégia artística que o real se imponha de
uma forma cruel:

Desdenhando qualquer visão separada da arte, qualquer versão daquela visão que
considera as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para encantar
os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte a uma

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representação dramática. Na poética de Artaud, a arte (e o pensamento) é uma
ação — e que, para ser autêntica, deve ser brutal — e também uma experiência
sofrida, e impregnada de emoções extremas. Sendo tanto ação quanto paixão
desse tipo, iconoclasta bem como evangélica em seu fervor, a arte parece requerer
um cenário mais arrojado, fora dos museus e lugares legitimados de exposição, e
uma forma nova e mais rude de confrontação com seu público. (SONTAG,
1986:27)

Assim Artaud aponta formas objetivas para que o teatro atinja o público, mas
sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral que seja
fixa esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no
impedimento do movimento da cultura, do espírito.
O teatro de Samuel Beckett inclui tanto texto dramático como encenações que ele
mesmo assina. Através de sua escrita pungente e altamente elaborada, Beckett é posto no
grupo de grandes nomes da teatralidade, como Shakespeare e Racine. Ele dialogou com
todas as tradições, mas forjou uma dramaturgia própria, que já nasceu potente. O que deu
impulso ao teatro de Beckett foi sua experiência na direção: nos anos 60, ele passou a
dirigir teatro e escrever sua dramaturgia com um sentido mais precioso do espaço e do
tempo cênicos. É dessa observação que surge um criador que, muito mais ligado com a
materialidade da cena do que com temas relativos à literatura, passou a escrever levando em
conta os elementos cenográficos tanto quanto os conteúdos das falas de seus personagens.

Um ponto muito interessante da escrita de Beckett é a falência da linguagem, crítica


às convenções do realismo formal, às formas de se construir qualquer representação, pela
incomunicabilidade que marca aos seus narradores. A dramaturgia de Beckett nos tira do
lugar comum. Machuca porque aponta para a falência de uma linguagem que já não é mais
capaz de representar. Seus personagens se debatem por questões sem sentido, e é esse
debater de um corpo sobre nada aparente que torna nosso riso, um riso incomodado.
Beckett aponta para as contradições. Por isso, ao final de Esperando Godot, Vladimir e
Estragon dizem: “Vamos embora”, mas permanecem parados no mesmo lugar. As questões
de Beckett chegam aos tempos do hoje, ainda com um incomodo apavorante.

Esperando Godot é a formulação dramática da própria situação humana. Falta-lhe


tanto personagens quanto enredo, no sentido convencional do mesmo, porque ela ataca a
sua temática num plano em que nem os personagens nem o enredo existem. Os personagens
pressupõem que a natureza humana, a diversidade da personalidade e de individualidade, é

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real e tem importância; o enredo só pode existir no pressuposto de que os acontecimentos
no tempo têm alguma importância. Esse é o pressuposto que a peça põe em dúvida. Pozzo e
Lucky, Vladimir e Estragon não são personagens, mas corporificações de atitudes humanas
básicas, um pouco com as virtudes e vícios personificados em mistérios medievais.
Segundo Luiz Fernando Ramos, quando Beckett começou a escrever teatro, já tinha
produzido uma notável obra como prosador. Seus estudiosos chegam a divergir sobre se
não seria mais significativa a sua produção estritamente literária que a teatral.

De qualquer modo, da perspectiva do teatro, Beckett é um artista completo. Tanto


ante a tradição dramática dita literária, como ante a tendência contemporânea de fazer da
construção do espetáculo o centro de referência estilística. Beckett ainda é o interlocutor
respeitável, que de seu próprio e autônomo universo informa uma dramaturgia
eminentemente cênica. Parafraseando Luiz Fernando Ramo, por um lado, Beckett tem um
verdadeiro culto à palavra. Por outro, Artaud escreve que “o mais urgente não me parece
tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e
da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja
força viva é idêntica à da fome”.

Artaud defende uma “poesia no espaço, independente da linguagem articulada” cuja


encenação seria metafísica contra “a ditadura exclusiva da palavra”. Dois posicionamentos
bem distantes. Porém, havia em ambos a busca de uma nova escrita que tivesse por objetivo
aglutinar a materialidade mesmo da cena. Se Beckett procurou trazê-la a partir das palavras
e principalmente através das rubricas, Artaud, por sua vez, buscava uma palavra que fosse
desconstruída cujas possibilidades de realização não estavam no cérebro do autor, mas na
própria natureza, no espaço real. Segundo Ramos, "Beckett buscou inscrever na palavra o
corpo da cena. Artaud pretendeu revelar o corpo da cena com a invenção de uma nova
palavra. (RAMOS 1999: 24)

A maneira como Beckett desenvolve sua poética cênica é uma possível maneira para
confrontá-lo com Artaud, e mesmo para colocá-lo diante de encenadores deste início de
século. Beckett costuma ser vinculado a uma tradição literária. Essa aproximação de sua
dramaturgia do drama no sentido clássico o colocaria numa posição mais conservadora
quando comparado a Artaud. O encenador francês, com seu teatro ritualístico, anti-
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aristotélico, ensejaria uma teatralidade mais aberta, Beckett, com suas peças, propõem outra
forma textual que foge do formato classicista, em que a palavra é o que dá o movimento, e
o pensamento racional, a garantia de entendimento do drama. Nos textos para teatro de
Beckett e poética cênica é colocada nas rubricas. Nem Beckett e muito menos Artaud
dependem do entendimento racional do espectador, e nisso os dois discordam
fundamentalmente com a poética de aristotélica. Em Artaud e Beckett a o texto se equipara
aos aspectos que são comuns na cena. No caso de Beckett, quanto mais ele se familiariza
com o palco e com a direção, menos se interessa pelas questões racionais de um
pensamento. Em alguns casos, passa a ser mais importante para ele a velocidade com que
um ator diz certa fala do que a compreensão de sentido. A materialidade do palco, a luz e os
movimentos dos atores passam a ser elementos da sintaxe teatral. Nas rubricas de
Esperando Godot fica explicitado que Beckett põe sua escritura no corpo que compõe a
cena:

Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar. As botas de Estragon estão no centro do
proscênio, calcanhares juntos e bicos separados. O chapéu de Lucky no mesmo
lugar de antes. Vladimir entra agitadamente. Ele para e olha demoradamente para
a árvore e de repente começa a andar febrilmente pelo palco. Ele para diante as
botas, pega uma delas, a examina, cheira, manifesta asco e a coloca
cuidadosamente no lugar. Vai e vem. Para na extrema direita e mira distante,
cobrindo os olhos com uma das mãos. Vai e vem. Para na extrema esquerda,
como antes. Vai e vem. Para repentinamente e começa a cantar em voz alta.
(BECKETT, 2007:53)

Nesse sentido, ele está próximo de Artaud, pois para Beckett e Artaud o texto ou
trama estão mais voltados para as potencialidades de significação da obra. Outro ponto de
convergência que surge da observação da obra de Beckett e Artaud está na relação à
teatralidade, que surge quando a obra de Beckett é confrontada com a vida e a Obra de
Artaud. Artaud negava a literatura dramática qualquer responsabilidade na concretização de
um novo teatro em que o corpo, por excelência, fosse à linguagem. Ele buscava uma
escritura física e tridimensional no espaço do teatro que resgatasse a dimensão ritual dos
tempos primitivos.

Beckett nunca associou o seu teatro à realização de um rito e fez de seus textos e
espetáculos momentos de intensa perplexidade, em que a dúvida e a ambiguidade, mais do
que qualquer crença, foram privilegiadas. Mas, na investigação do espaço cênico, ou das

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potencialidades de uma representação teatral, parecem convergir. Artaud pretendeu inventar
uma nova palavra para revelar um corpo cênico ainda não visto. Beckett procurou inscrever
suas palavras o corpo cênico visível, e com isso conseguiu pelas rubricas, criar partituras
contra as quais fica difícil qualquer ator de um texto seu se rebelar. Em Esperando Godot
chega a momentos em que as rubricas excedem a própria palavras. Ambos estão
trabalhando prioritariamente com a materialidade da cena e não com a articulação de
sentido propiciada pelo desenvolvimento de uma trama.

Artaud gastou grande parte de seus esforços para atacar a “representação teatral”
entendida como processo que submete a cena a uma ideia que lhe é exterior. No
teatro de seu tempo é hegemônica a ideia de que a encenação se reduz à
representação de um texto dramatúrgico, constituindo-se quase como a ilustração
de um produto literário. (QUILICI, 2004:71)

Artaud e Beckett atacaram a representação teatral veementemente, mas eles se referem à


relação de representação que era empreendida no tempo em que produziram suas obras, sabe-
se, como já foi relatado anteriormente, que muitas das criações dramatúrgicas de Beckett
(principalmente suas ultimas peças, as peças curtas) surgiram a partir do trabalho cênico que ele
desenvolvia como encenador, por tanto muitas das ideias dele, foram para o texto depois de
surgirem em cena. O que poderia ser ressaltado no caso seria a ideia que impulsiona um
dramaturgo como Beckett a colocar num um texto teatral, mas esse seria a mesma questão que
move um encenador a colocar uma ideia que por mais que não advenha de um texto teatral
materializado em cena.
O esgotado é muito mais que o cansado. “Não é um simples cansaço, não estou
simplesmente cansado apesar da subida.” Ocansado não dispõe mais de qualquer
possibilidade (subjetiva) – não pode, portanto, realizar a mínima possibilidade
(objetiva). Mas esta permanece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até
mesmo criado à medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a realização,
enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar,
mas o esgotado não pode mais possibilitar. “Peçam-me o impossível, muito bem,
que mais me poderiam pedir.” (DELEUZE, 2010:67)

Uma antítese que pode ser levanta entre Artaud e Beckett, é a maneira positiva de
Artaud vislumbrar no ser humano e respectivamente na sua cena ritual uma maneira de
transformação do homem e da sociedade através da arte, enquanto Beckett faz um registro
do mundo como sistema de coisas e do ser humano, esgotado, esfacelado e fadado ao
fracasso diante desse sistema, o homem para Beckett estaria em um esgotamento do ser.
Entender o que não tem sentido por vezes parece não ter sentido, criar relações e sentidos.

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Manusear a palavra, processá-la e transformá-la em torno de um pensar que tem por
contingência a fuga dos caminhos preestabelecidos da escrita, fuga que também pode ser
poética e potente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo, Martins
Fontes, 2006.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.
ESSLLIN, Martin. O Teatro Do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1968.
DELEUZE, Gilles. Sobre o Teatro. Tradução: Fátima Saadi, Ouvídio de Abreu e Roberto
Machado. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 2010.
QUILICI, Cassiano Sidow. AntoninArtaud, Teatro e Ritual. São Paulo. Annablume, Fapesp,
2004.
RAMOS, Luiz Fernando. O teatro total de Beckett, Artigo. São Paulo, Revista Bravo, Ano 2 -
nº24, 1999.

SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Tradução: Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. São

Paulo, Editora LPM, 1986.

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TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ILUMINANDO O DEFUNTO

Felipe Braccialli; Mário Ferreira Piragibe (orientador); Mestrado em Artes; Instituto de


Artes; Universidade Federal de Uberlândia;

O espectador entra no espaço cênico sendo guiado por duas atrizes com vestidos
velhos, maquiagem pesada e cabelos chamativos, arrastando com elas duas cadeiras. À
frente se encontram outras dez cadeiras arrumadas em um quadrado, onde dois espaços
vazios são completados com as cadeiras trazidas pelas atrizes. Posicionam-se no espaço
e constroem uma imagem que sustentam por um tempo. Com essa primeira cena
pulsando, fui convidado a criar a concepção de luz do espetáculo O Defunto (texto de
René de Obaldia, 1961) do Grupo Galhofas – MG (Uberlândia – 2010).
Ainda na graduação em Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, mas com
alguns anos já de prática em iluminação cênica, aceitei o desafio que seria: montar a
iluminação com o espetáculo quase pronto. Uma experiência que tentava evitar, mas
que no momento me agradou muito, considerando que a ideia inicial do diretor, Felipe
Brognoni Casati, era de uma área de representação sem delimitação clara, onde o
público poderia ficar em qualquer lugar, inclusive na própria cena. Essa ideia foi
descartada após os primeiros ensaios abertos, ao perceber que o público não reagia
como o esperado.
Comecei meu trabalho pela leitura do texto, repleto de falas e passagens
absurdas, tais como a em que se considera certo personagem um poeta após este contar
o motivo de haver violentado uma menina, matado a avó da esposa, entre outras coisas
e, mesmo assim, mulher e amante conversam como grandes amigas sobre a falta que ele
faz. O diretor decide seguir a lógica distorcida do texto em cena, por meio do emprego
de objetos ultrapassados e modernos ao mesmo tempo. Também decide por fragmentar
o espetáculo. Encadeia momentos que não se ligam uns aos outros por efeito de
causalidade. Mistura, também, no espetáculo informações pessoais das atrizes, sob a
forma de relatos e brincadeiras. Dando sempre a liberdade da improvisação para o
trabalho.
Nessa montagem diversos elementos influenciam o projeto de iluminação que
estava sendo criado. A direção, o cenário, os objetos cênicos, o texto, a disposição
espacial do público e a projeção (que já estava incluída em cena no momento em que fui
convidado para o processo). Estes foram fatores essenciais para se pensar os efeitos
usados na criação da iluminação. Para esse trabalho, os equipamentos técnicos da
iluminação foram além dos refletores encontrados em um teatro, se incorporando
também ao cenário, como por exemplo, uma das cadeiras foi instalado uma lâmpada
incandescente de 12V com uma cúpula de abajur rasgado em cimai.
Envolto em tantos elementos que compõem com a luz, o caminho tomado foi o
de fragmentar a iluminação, acompanhando a concepção do diretor, abordando uma
cena de cada vez. Cada cena estudada particularmente na sua lógica, onde a linearidade
se perde. Um cuidado tomado foi o de não deixar as cenas sem um eixo de ligação,
mesmo que a peça tenha sido montada em fragmentos. A dificuldade surge ao ter que
montar uma narrativa igualmente não-linear com a luz, ampliando os efeitos de
fragmentações pensadas para a cena, mas que se constituísse por completa e que se
complementasse enquanto a peça vai acontecendo. Uma iluminação que ao mesmo
tempo dê conta dos fragmentos das cenas individualmente, como do espetáculo como
um todo. Queria estimular a percepção do público para a luz de cada fragmento e, ao
mesmo tempo, do espetáculo completo.
Com essas informações iniciais, comecei a pesquisa da iluminação cênica por
dois lugares: o antigo, desgastado, quebrado e fragmentado; e o novo, o moderno, o
rápido e o simétrico. Iniciei fazendo um levantamento de imagens que se conectavam
com o espetáculo, chegando a duas vanguardas artísticas: expressionismo e futurismo.
A luz no trabalho de O Defunto é indispensável para o desenvolvimento da peça, já que
ela distorce o espaço e as personagens, conseguindo assim deformações para a cena.
Para os expressionistas a luz é imprescindível. É através dela que se
conseguem as deformações, os focos concentradores, as projeções,
sombras, manchas, flashes, contrastes fortes, variação cromática e
tudo mais que possa atuar como recurso de desnaturalização e
expressão do objeto, do sujeito ou da forma em si mesma. (de
Andrade et al., s/d.)

O contraste entre luz e sombra foi à primeira ideia a surgir do levantamento de


imagens, pesquisando principalmente por redes sociais artísticas tais como o Filckrii,
encontrei diversas imagens serviram de estímulo na criação da concepção. Essa
distorção proposta, compunha com o estado emocional das personagens, que vão se
desconstruindo durante a peça, revelando seus problemas e vontades.
O expressionismo também proporcionou a ideia de transformação do espaço,
deixando de pensar o palco todo como único e criando espacialidades diferentes para a
composição da peça. Luzes que criam diferentes ambientes fragmentando o espaço
cênico para assim compor com cena.
Em lugar da iluminação geral, os expressionistas preferem
iluminação por zonas, manchas e flashes, capazes de estabelecer
um isolamento do ator ou bailarino, separando-o do mundo
exterior. A luz então, tem o poder de estabelecer rupturas das
relações dos personagens. Acompanha a ação de modo
aparentemente arbitrário, já que seu objetivo não é imitar a
natureza, mas sim, articular a ação, concentrar a atenção,
acentuar a tensão e colorir a emoção do público. (de Andrade et
al., s/d.)

O cenárioiii, como já dito, são doze cadeiras estilizadas com diversos objetos
acoplados que, dispostos no espaço, formam corredores. A iluminação é criada para
ampliar esses efeitos de corredores propostos pela cenografia. Corredoresiv com luzes
difusas que traz a sensação de se perder na escuridão e no espaço. Esse efeito luminoso
pode ser usado de diferentes maneiras durante a cena, às vezes fazendo corredores
paralelos, outras vezes corredores perpendiculares, dependendo do que a cena pede. Os
corredores de luz não se mantêm unicamente no cenário, mas também contornando o
mesmo.
Ainda falando sobre os corredores e entrando no outro movimento de vanguarda
artística que influenciou o desenvolvimento do trabalho, o futurismo, foi pensada a
velocidade. Tanto na concepção, quanto na operação da iluminação, a velocidade é
sempre muito presente. Os corredores aparecem e desaparece rapidamente, a percepção
de profundidade que a movimentação da luz traz, as formas lineares trazidas pelos
corredores e focos de luz e a constante variação de intensidade da luz, tudo isso é
influencia direta do futurismo.
A paleta de cores escolhida para a iluminação do espetáculo partiu da conversa
com o diretor, que propôs a ideia de fotos velhas, de degradação pelo tempo, que já era
usado tanto no figurino e maquiagem quanto na cenografia. Cadeiras velhas,
consumidas pelo tempo, figurinos remendados e desgastados, uma maquiagem forte e
marcada de envelhecimento, objetos antigos, como uma maquina de escrever, são todos
elementos propostos pelo diretor. Com todas essas informações a primeira gelatina de
efeito cromático escolhida foi à chamada chocolate (Roscolux #99) que, colocada em
cena, tem efeito de uma iluminação para o tom de sépia, como uma foto envelhecida.
A base da iluminação foi feita com refletores sem nenhuma gelatina e com a
gelatina chocolate, mas para evitar que a cena se tornasse monótona e destacar
momentos específicos do espetáculo foram incluídos alguns efeitos com diferentes
cores. Valmir Perez diz que “deve-se levar em consideração que a luz, sendo também
elemento de linguagem, pode ter seus matizes alterados para compor o psicológico da
cena” (PEREZ. 2007) pensando nisso as gelatinas são usadas para transformar a cena
que se segue trazendo um novo ambiente e sensação para o palco. Em um momento
específico, em que as atrizes estão falando sobre a manipulação do personagem sobre
quem conversam, de suas traições e agressões, seguido de assassinato, é proposto com a
luz um efeito de estranhamento para criar um ambiente mais suave, quase onírico.
Nesse momento, a iluminação foi inspirada no quadro Chuva de Oswaldo Goeldi (1957)
onde há predominância de cores frias, deixando em destaque o vermelho do guarda
chuva. Para destacar a lã vermelha que está ao fundo da cena esticada entre as duas
atrizes foi utilizada uma gelatina azul (roscolux #80), em disposição de corredor ao
fundo da cena, com um leve toque de refletores sem nenhuma gelatina. A utilização
desses refletores sem filtro de luz em baixa intensidade é para que exista luz chegando à
lã na frequência do vermelho, pois ao colocar a gelatina azul é filtrado todo essa
frequência do espectro de luz.
Em outro momento, um refletor fazendo um foco a pino (90° do chão) recebe
uma gelatina de correção de luz (Roscolux #3206), essa gelatina serve para transformar
a temperatura de cor da luz, que, geralmente, é 3200K para 4100K. Esse efeito traz uma
cor mais fria para a cena, uma sensação de angelical, de pureza, de proteção. O foco de
luz é usado quando as atrizes contam a história de um estupro, falando da poeticidade
do personagem ao escolher sua vítima pelo tom negro de seus cabelos. Esse contraste
foi utilizado para transmitir tanto a frieza com que o personagem lidou com a situação,
como também, a calma que o assunto é tratado pelas personagens em cena. Compondo,
também, com a imagem criada pelas atrizes, onde, ajoelhadas, seguram e arrebentam
um colar, deixando todas as suas pedras caírem pelo espaço, que mostra apenas esse
foco de luz acesov. As pedras vão caindo no chão e desaparecendo no espaço, enquanto
as duas atrizes, agora sentadas, observam calmamente a situação.
Além da utilização de gelatinas para efeitos cênicos, também foi inserido, no
jogo da iluminação, focos de luz recortados que reforçam os corredores construídos pelo
cenário e pela iluminação base da peça. Um recurso, utilizado diversas vezes, é um foco
de luz em duas fileiras de cadeira verticais, recortados em um retângulo, desconstruindo
assim o espaço real da cena e criando um fragmento espacial que é usado, tanto para
colocar as personagens em um lugar atemporal, como também para criar um
distanciamento da temporalidade que se segue em cena, trazendo assim uma informação
que não é das personagens que se encontram em um tempo e espaço específico.
Outro recorte de luz é usado para montar em um espaço a ideia de zoom da cena,
aproximando duas cadeiras do público e construindo um aprisionamento à frente do
cenário onde as atrizes ficam passivas a sua limitação espacial. Com esse efeito as
atrizes retomam o lugar inicial da cena, mesmo estando espacialmente dele. Seria como
um zoom de câmera fotográfica, que aproxima a visão espacial focando em algo
específico, no caso as duas cadeiras iniciais.
Também foram inseridos focos de luz circulares criando assim um
distanciamento e um estranhamento da cena, considerando que durante a maior parte do
espetáculo a iluminação acontece em corredores e recortes retangulares. Esses focos de
luz se encontram nas extremidades do espaço de cena iluminado, como pequenos nichos
que trazem informações paralelas a cena ou ligadas às atrizes.
O primeiro foco de luz circular é usado quando o diretor propõe um
distanciamento da cena teatral. As atrizes desconstroem as personagens e se dirigem ao
público para contar um relato pessoa, com isso o foco de luz fica em baixa intensidade,
quase impossibilitando de se ver, enquanto uma lanterna posicionada de baixo para
cima ilumina minimamente as atrizes e a pessoa do público convidada a participar da
cena. Outro foco de luz redondo é usado para quando uma das personagens está
refletindo sobre um suicídio e tentando se afogar. Cada foco de luz toma diferentes
funções em cena, sempre desconstruindo o espaço retangular que é instaurado,
transformando a percepção do tempo e do espaço da cena.
A peça tem uma particularidade trazida, tanto pelo texto como pela encenação,
que é a repetição. Não me refiro aqui à repetição como recurso de comicidade, mas a
repetição do espetáculo todo, o tempo, as ações e os diálogos são repetições das
personagens, como se elas fizessem a mesma coisa todos os dias no mesmo lugar no
mesmo horário, um ciclo que sempre se repete começo, meio e fim. O diretor propõe
fortalecer essa percepção da cena, arrumando todo o cenário, que foi desconstruído
durante toda a peça, ao final da apresentação, mudando unicamente o lado que o cenário
está posicionado, como se tivessem preparado tudo para o próximo dia, antes de irem
embora.
A iluminação se propõe a ser da mesma maneira, construindo espacialidades
que, ao final da apresentação, continuam funcionando, mesmo o cenário e a cena
virando de lado, já não mais de frente para o espectador. Um quadrado central com
refletores com gelatina chocolate de frente e sem nenhuma gelatina de contra luz,
complementado com corredores em volta desse centro que constroem um quadrado de
contorno com a luz toda feito com refletores sem nenhuma gelatina e ao centro um foco
de luz a pino com gelatina de correção. Com isso, qualquer que seja à frente da cena a
iluminação base do espetáculo está pronta, modificando só do velho para o atual
dependendo do lado, o que também compõem com a concepção do espetáculo.
Esses corredores que se encontram no contorno do centro da cena, são ligados
separadamente, e constroem com ele um caminho de luz a se seguir, que por mais que
você corra por ele, termina sempre no mesmo lugar. Uma volta interminável em torno
do assunto que as movem: o defunto. O cotidiano que sempre prende o passado que
ninguém quer esquecer. O velho e desnecessário continuando sendo a novidade do dia.
As personagens constroem um espaço imaginário em torno de uma pessoa, que há anos
já não tem mais vida, espaço esse materializado com a iluminação e a diferenciação de
cores proposto para a luz da cena.
Nesse momento a iluminação não se limita mais a iluminar o espaço cênico, ela
constrói esse espaço que começa a existir a partir disso, existindo muito além de
personagens e cenografia. Um lugar imaginário que ganha vida. Durante toda a peça a
iluminação constrói a cena e sua espacialidade, criando focos de atenção de luz,
destacando objetos e personagens, fragmentando a cena, ocultando, criando ambientes,
e deslocando as personagens no tempo e espaço da cena.
A luz, como já dito, foi pensada para compor as fragmentações das cenas
criando diferentes espaços e desconstruindo uma linearidade narrativa, mas ao
acenderem-se todos os corredores e focos de luz, surge um novo ambiente na cena, um
ambiente completo que será utilizado quase ao final do espetáculo, como se todas as
informações que foram sendo ditas durante a apresentação se juntassem em um único
lugar costurando cada fragmento que foi anteriormente dito, construindo assim toda a
história e o discurso dito em cena. Essa completude de luz que une todos os fragmentos
de cena compõe-se com a concepção do espetáculo e com o texto, que traz as
informações aos poucos e sem uma linearidade. A primeira vista parecem absurdas e
desconexas as cenas que são apresentadas, mas ao juntar todas as partes apresentadas
pela peça, a história vai se revelando, como se revela e iluminação.
A iluminação cênica é de suma importância para a construção do espetáculo, não
só ajudando a mostrar o que acontece em cena, como também revelando sensações,
emoções e sentimentos das personagens. Sem contar na desconstrução e construção
espacial que esse recurso possibilita e na ilusão que consegue criar em cena, distorcendo
formas, cores, profundidades, alturas e larguras. A pesquisa da iluminação cênica pode
potencializar a concepção que o diretor tem do espetáculo, do cenário, figurino e
maquiagem. Uma concepção de luz trabalhada em conjunto com o diretor e outros
designers amplia as possibilidades das soluções cênicas impostas à direção, potencializa
os recursos expressivos da encenação e as formas de representação percebidas em um
espetáculo teatral.

Bibliografia

ANDRADE, C. R. et al. A iluminação do ponto de vista do expressionismo.


Campinas.

PEREZ, V. Desenho de Iluminação de Palco: Pesquisa, criação e execução de


projetos. 2007. 145 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) - Curso de Artes,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.

i
Foto de Felipe Braccialli <https://www.flickr.com/photos/braccialli/9541547557>
ii
Disponível em <http://www.flickr.com>
iii
Foto de Felipe Braccialli < https://www.flickr.com/photos/braccialli/9285035265>
iv
Corredor também é um termo específico da iluminação cênica que trata da disposição
orientada de refletores, produzindo uma área de iluminação retilínea e contínua, geralmente disposto
cruzando o espaço de representação em atravessamento lateral, da esquerda para a direita, de acordo com
o ponto de vista do espectador.
v
Foto de Rafael Michalichem < https://www.flickr.com/photos/michalichem/8631235252>
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A REESCRITURA MÍTICO-ESPACIAL DE ÉDIPO REI POR


GIANFRANCESCO GUARNIERI E FERNANDO PEIXOTO

Jerônimo Vieira de Lima Silva

Yuri de Andrade Magalhães

A influência da tragédia grega se estende a diversos ramos do conhecimento humano


como a filosofia, a literatura e o teatro. O cinema, por sua vez, não se eximiu dessa influência,
e isso pode ser observado na adaptação da obra de Sófocles, Édipo Rei, que Gianfrancesco
Guarnieri e Fernando Peixoto fizeram para a televisão em formato “unitário”i. Contudo, vale
aqui salientar que Guarnieri e Peixoto fizeram além de uma mera adaptação para a TV. Em
sua obra podemos observar uma verdadeira recriação do mito de Édipo, relevando a grande
potência da criação dramatúrgica, na qual os autores redirecionam o mito de Édipo para um
aspecto político-social e cultural do Brasil: o comportamento autoritário dos latifundiários
num país marcado pelo coronelismo.

Podemos aqui, preliminarmente, verificar o caráter de denúncia na obra de Guarnieri e


Peixoto, o que nos remete diretamente ao teatro de Bertolt Brecht. Brecht, através de seu
teatro, busca, além do mero entretenimento, fazer com que seus espectadores sejam
“despertados” para melhor observar a realidade que os cerca. O dramaturgo alemão incita seu
público a adotar uma posição “distanciada” em relação ao que estava sendo representado em
cena. Essa posição distanciada exige do espectador uma postura crítico-reflexiva. Vale
salientar que isso não consiste numa eliminação da catarse, mas no uso da mesma para
desencadear a vontade de transformação. Outro dado importante é que, a fim de moldar-se aos
interesses teledramatúrgicos dos autores brasileiros, o herói é desmitologizado, uma vez que,
as referências sócio-políticas e culturais que sustentam todo o corpo do teletexto corroboram o
pensamento teatral de Guarnieri e Peixoto, pautados no poder de transformação a partir do
teatro.

A construção dramatúrgica de Guarnieri e Peixoto se apropria de diversas estratégias de


escrita que vão além do texto dramático: podemos nele observar elementos líricos e épicos
como o canto, frequentemente utilizado também por Brecht em seu teatro épico. Logo no
inicio do teledrama podemos observar que Édipo, neste caso um fazendeiro, está realizando
uma festa em sua fazenda para seus empregados. Nesta festa observamos a presença de dois
cantadores que, a pedido do próprio fazendeiro para dar continuidade à festa, decidem narrar a
trágica história de Édipo (o fazendeiro) através do canto:
Pois veja, patrão, que já me veio à memória uma estória muito boa
para ocasião. Estória de muito antigamente e de tempo e lugar tão
distante que nem sei onde se passa. Mas cabe tão bem nesse momento
que até podia se passar aqui, nestas paragens. E pra facilitá o
entendimento eu peço que todo mundo veja com jeito e cara dos que
estão presentes os personagens do meu conto. Com vosso perdão e
licença do poeta antigo aqui vai. (GUARNIERI, 1988, p.134)
Ao indeterminar o período exato em que se desdobra a tragédia no sertão, Guarnieri e
Peixoto vão revelando suas personagens dentro de um ambiente opressor e sem escapatória.
As primeiras cenas mostram uma família que tenta desesperadamente fugir da peste, as casas
dos moradores da fazenda sendo queimadas a mando do fazendeiro Édipo, e a retirada de um
grupo em direção a outras paragens. Em seguida, os que resistem à calamidade recorrem,
como última instância, ao beato Tirésias, acertando, assim, os passos com a tragédia
sofocliana.
Quanto à presença dos cantadores, constatamos aqui que Guarnieri e Peixoto evocam,
talvez involuntariamente, a figura do bardo cego, Demódoco, presente na Odisseia de
Homero. Na ocasião contida na epopeia de Homero, o bardo Demódoco canta as aventuras de
Odisseu sem saber que este se encontra presente no local ouvindo a canção a ele dedicada.
Diferentemente de Odisseu, o Édipo de Guarnieri e Peixoto impõe aos cantadores uma “ode”
onde exalta a si mesmo.

Por se tratar da versão moderna de um mito grego, faz-se necessário entendermos que,
desde a origem humana, os mitos exerceram importante função na relação entre os homens e
os deuses. Através dos rituais, estes homens estabeleciam uma aproximação e um diálogo
com o sobrenatural. Tomados como verdade, os mitos estabeleciam regras e normas de
conduta de tribos e povos. Esses mitos eram narrados de geração a geração, especialmente
entre os gregos, convertendo-os e transformando-os em função dos interesses políticos e
sociais da época.

Uma vez que a trajetória do herói trágico na representação das tragédias no palco grego
na Antiguidade poderia produzir efeitos significativos para a paideiaii, podemos entender que
Guarnieri e Peixoto também objetivam uma educação política para o povo brasileiro a partir
da teledramaturgia. O Édipo Rei, figura mitológica grega, é transmutada para a realidade
sertaneja na figura de um fazendeiro também chamado Édipo. Temos conhecimento de que o
“Édipo” sofocliano é um modelo universal de arrogância, intransigência, desmedida e
imprudência. Esse modelo universal de Édipo é apropriado por Guanieri e Peixoto para, de
certa forma, retratar o autoritarismo dos coronéis no Brasil.

Para proporcionar uma identificação direta do público brasileiro com a obra, Guarnieri e
Peixoto transferem o espaço de representação da polis grega para o sertão brasileiro. O
ambiente inicial onde ocorre o drama é descrito com riqueza de detalhes, determinando-o
como lugar típico de fazenda. Por um lado, as primeiras indicações espaciais se dão à noite,
no plano presente, enquanto que, a história contada pelos cantadores ocorre durante o dia, em
contrastes evidentes de alegria (festa na fazenda) e sofrimento (vida dos empregados da
fazenda de Édipo). Ressaltemos que os cantadores presentes na obra de Guarnieri e Peixoto
atuam como elementos epicizantes da obra onde os acontecimentos se desdobram a partir da
narração dos mesmos. Os contrastes espaço-temporais apresentados por Guarnieri e Peixoto
parecem propositais com o intuito de provocar reflexões em torno da trama. O autor rompe
com o clima de celebração no interior de um galpão da fazenda, lançando-nos num ambiente
hostil e triste, ocasionado pela peste, como podemos observar na descrição abaixo:

1. Galpão de fazenda. Interior. Noite.


Galpão fechado que serve para guardar instrumentos de trabalho (pás,
ancinhos, selas velhas, rodas de carroça, fardos, sacas de mantimentos,
rolos de corda, etc.). O ambiente está preparado para uma festa.
Bandeirinhas de papel coloridas, bancos de madeira sem encosto
enfileirados deixando espaço ao centro para a apresentação de dois
cantadores. O povo se aglomera nos bancos e de pé. No lugar de honra
estão o dono da fazenda e família[...] Os cantadores pretendem
terminar com a cantoria para uma mereciada pausa. (Guarnieri e
Peixoto, 1988, p. 133)

Na fazenda de Édipo, como também ocorre em Tebas, uma peste está assolando o lugar,
as famílias decidem inutilmente abandonar a região, enquanto um grupo de trabalhadores em
procissão, em meio a cantos e rezas, dirigem-se ao casebre do beato Tirésias. Observemos
aqui que a figura do beato Tirésias, diretamente apropriada do adivinho Tirésias da tradição
clássica, é um elemento que pode ocasionar uma identificação no espectador brasileiro e,
dependendo da ocasião, um “distanciamento”. Através do beato Tirésias, Guarnieri e Peixoto
colocam a figura da liderança religiosa que muitas vezes é-lhe atribuída um caráter
messiânico. O líder religioso é, muitas vezes, tido como uma pessoa de mais conhecimento,
sendo muitas vezes a única referência intelectual do lugar para as pessoas humildes e de
pouca instrução. Essa referência à figura do líder religioso pode ser observada com clareza em
figuras emblemáticas como Padre Cícero, no Ceará, Antônio Conselheiro, na Bahia, Jim
Jones, na Guiana, o beato Salú, em Roque Santeiro, dentre outras recorrências.

Tal como ocorre na tradição mítica grega, o beato Tirésias é tão cego quanto Tirésias da
mitologia grega. Através de sua obra, tanto Sófocles quanto Guarnieri e Peixoto, mostram que
Tirésias, apesar de sua cegueira, consegue enxergar mais do que aqueles que possuem o
sentido da visão. Tirésias vem para mostrar aos dois Édipos que o sentido da visão muitas
vezes limita o homem, fazendo com que este apenas possua uma visão estreita da realidade.
Essa visão limitada faz com que o homem acredite que pode enxergar a realidade em sua
totalidade. Imbuído dessa falsa consciência, o homem tende a adotar uma postura arrogante,
intransigente, e até mesmo negligente. Tal fato se dá tanto no Édipo de Sófocles quanto no
Édipo de Guarnieri e Peixoto.

Levando em consideração a cegueira de Tirésias, poderíamos


concluir que, quem não pode ver ali é Édipo. Se o dom da visão
está naquele que não pode ver, a verdadeira “cegueira” está
naquele que pode enxergar – Édipo –, uma vez que não consegue
perceber a desgraça em que está mergulhado. De maneira
metafórica, o drama edipiano põe luz na escuridão e acaba por
revelar as verdades ocultas. (SILVA, 2009, p.136)

Como ocorre no Édipo Rei de Sófocles, na obra de Guarnieri e Peixoto a peste que
assola a região é também fruto de um crime insolúvel. Neste caso, o crime é cometido contra
o antigo dono daquelas terras de Édipo. Antes de tornar-se dono das terras, Édipo se
envolvera em uma chacina que resultou na morte de seu próprio pai, sem saber que Laio era
seu pai biológico. O beato Tirésias esclarece que a peste apenas terá fim quando o autor do
crime for punido, revelando a Édipo que ele é o autor de tal crime. O Édipo de Guarnieri e
Peixoto se comporta como o Édipo de Sófocles, não dá crédito às palavras do beato, fazendo
com que os personagens se envolvam em um processo investigativo em que se descobre que
Édipo era de fato o algoz de seu próprio pai. Tal tomada de consciência faz com que Édipo,
tal como ocorre em Sófocles, fure seus próprios olhos. Mesmo mantendo os mesmos recursos,
há uma importante distinção entre os dramaturgos: se em Sófocles, o erro trágico de Édipo se
dá frente a sua soberba, o qual sofre os desígnios divinos, em Édipo de Guarnieri e Peixoto,
tal conduta do protagonista provoca as misérias materiais, refletidas nos trabalhadores da
fazenda. Para que aquela vida de privilégios se mantenha, é preciso o trabalho e a exploração
dos empregados que vivem sobre o controle do fazendeiro Édipo, revelando aí uma relação de
desigualdades sociais e econômicas.

A relação de coronelismo na obra se dá especialmente quando a população, sofrendo


com a peste, busca o auxilio de Édipo. A política assistencialista comum aos grandes
fazendeiros é representada na figura de Édipo. O fazendeiro, através dessa política, cria uma
relação de suserania e vassalagem como ocorria na Europa feudal. Tal relação reverberou no
Brasil, especialmente na relação que os senhores de engenho possuíam com seus escravos,
conforme Gilberto Freyre retrata em sua obra Casa Grande e Senzala. A relação escravocrata
descrita por Freyre é substituída por uma relação de “troca de favores”, onde o coronel presta
assistência a seus dependentes em troca de votos e apoio político, os quais contribuem para a
perpetuação do poder e da influência do latifundiário que, frequentemente, é tido pela
população rural como um “benfeitor”.

A religiosidade e fé do sertanejo são também postas por Guarnieri e Peixoto como um


fator de alienação que, conforme nos esclarece Nietzsche em seu Anticristo, a fé induz o
cristão a, muitas vezes, crer que os infortúnios são oriundos de desígnios divinos, atribuindo
as causas a fatores metafísicos, quando muitas vezes tais acontecimentos são ocasionados por
ações ou omissões humanas. Essa função de “benfeitor”, atribuída à figura do coronel, faz
com que muitas vezes o sertanejo tome partido do coronel em contendas que ameacem a sua
hegemonia, preferindo assim a manutenção do poder do coronel, uma vez que disso depende a
sua própria sobrevivência. Neste sentido, o coronel, parafraseando Sun Tzu em Arte da
Guerra, está imbuído de “Lei Moral”, que é o que faz com que seus súditos lutem por ele a
despeito da própria sobrevivência e a despeito de qualquer perigo.

A relação de vassalagem e suserania também é ressaltada por Nicolau Maquiavel, em


que o mesmo defende que o “príncipe” deve ser rigoroso, porém também deve ser generoso
com seus súditos. Essa relação pode ser facilmente constatada em Édipo de Guarnieri e
Peixoto, na qual o coronel, ao mesmo tempo em que presta assistência a seu povo, também o
explora.

Concebendo o seu Édipo na figura do fazendeiro, Guarnieri e Peixoto


possibilitam outra leitura crítica da conjuntura política da região.
Arraigada, até então, no poder hegemônico dos coronéis, o nordeste
assiste, ora passivamente, ora em lutas sangrentas, a ciranda deste
poder autoritário e quase vitalício. Da mesma forma que as regiões sul
e sudeste do país estabeleciam novas relações políticas e econômicas
dentro e fora do território nacional, as demais regiões brasileiras
lutavam para inserir-se no novo modelo econômico que brotava.”
(SILVA, 2009, p.119)

Em dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB


intitulada Édipo na TV: Guarnieri e as possibilidades de um teatro impossível,
Jerônimo Vieira de Lima Silva esclarece que quanto ao tratamento dado por Guarnieri e
Peixoto, a acomodação do mito grego ao universo mítico brasileiro, em especial, à
região nordestina, é uma estratégia que se dá claramente desde o inicio da trama.
Encontramos, também, outro dado interessante dessa prerrogativa mítica: percebemos
que o cantador estabelece a possibilidade de a tragédia grega ser incorporada à realidade
do sertão. Ambas as regiões estão envoltas em questões míticas e místicas, porém, em
perspectivas distintas.
Silva também esclarece que, no caso do ambiente sertanejo, este excede aos
problemas de ordem política e social ali apresentado, mostrando, também, questões
mítico-religiosas. De acordo com o cantador, bem que aquela trama grega “poderia
acontecer nestas paragens”, reforçando a própria ideia que se estabeleceu ao longo da
história sobre a região nordestina, fazendo-nos crer que a mesma resume-se ao semi-
árido e aos seus problemas subseqüentes.

O autor da dissertação também aponta que, da mesma forma que se construiu o


“mito do gaúcho”, ou o “mito do carioca”, o mesmo ocorreu com o nordestino.
Parecendo que o nordestino foi condenado à miséria e às desditas divinas, tornando-se a
região uma “terra amaldiçoada” em decorrência do flagelo da seca e descaso dos
políticos. Constata-se também na dissertação que não é por acaso que Guarnieri e
Peixoto sempre procuraram apontar em suas obras as camadas populares do país,
vítimas das injustiças sociais. Aqui, o autor utilizou-se do mito grego para adentrar no
universo mítico nordestino, a fim de expor a dura realidade daquela parcela de
brasileiros.

Portanto, Guarnieri e Peixoto pareciam pretender continuar, através da televisão, o


processo de politização e conscientização do telespectador sobre os problemas
pertencentes ao país. Certamente, tal intento acontecia de maneira disfarçada, indireta e
cheia de metáforas, apesar de recorrer, em alguns momentos, a uma linguagem mais
direta, mais incisiva, como evidenciada em Édipo. Diante de tais prerrogativas,
podemos afirmar que o Édipo em Guarnieri e Peixoto associa-se a um determinado tipo
de sistema político, onde se organizam e se estabelecem leis de conduta entre
indivíduos, assim como na democracia grega, em Sófocles, mas, na versão moderna,
essas leis apoiam-se sobre um sistema autoritário e militarista. Violadas tais regras, os
conflitos se estabelecem, provocando a discórdia entre todos. Édipo de Guarnieri e
Peixoto personifica a instabilidade social, presente nas relações de má distribuição de
riquezas e injustiças sociais.
Ao que se refere á linguagem fílmica, todas as indicações que aparecem no
teletexto, tais como, closes, planos variados, utilização de cenas curtas, bem como os
recursos de iluminação, servem para potencializar o olhar crítico, tanto dos autores
através das suas personagens, quanto do telespectador, diante das questões políticas ali
expostas. Outro recurso valorizado por Guarnieri e Peixoto é o flash-back. Em
determinados momentos, a ação se desloca do presente para o passado. Como
demonstrado a seguir:

Édipo leva a mão espalmada ao rosto. Desfoca


23. Campo. Exterior. Dia.
Édipo conversa com um frade, que o abraça, despedindo-se e
entrega-lhe uma bíblia.
ÉDIPO (Off) – Fugia cada vez mais. Cada vez para mais longe
das terras do meu pai... Nem mesmo o frade que compreendeu o
que estava se passando comigo, conseguiu me dar paz. Foi ele
que me deu essa bíblia que trago sempre comigo, mas também
esse livro não me fez parar. Queria ficar cada vez mais longe do
meu pai e de minha mãe.
25. Quarto de Édipo. Interior. Noite.
Édipo segura fortemente as mãos de Jocasta.
ÉDIPO – E foi então, minha querida, que fugindo, correndo
sem parar, cheguei à encruzilhada da Serra...
26. Inserção. Campo. Exterior. Dia
Primeiro plano de Laio a cavalo
27. Quarto de Édipo. Interior. Noite.
ÉDIPO – Prá você, minha mulher, vou confessar toda a
verdade: encontrei cinco homens a cavalo.
28. Inserção. Campo. Exterior. Dia.
Takes rapidíssimos da figura estática de cada um dos
empregados de laio. Finalmente a figura de Laio que em slow
motion vai desferir um golpe com seu facão.
Sore a imagem de Laio em slow motion
VOZ DE ÉDIPO – Um deles era o mais velho, tinha cabelo
branco. Devia ser o patrão.

Com a utilização do flash-back, o drama de Guarnieri e Peixoto dispõe de um


recurso inviável na tragédia sofocliana, a qual inicia-se in media res, tornando a palavra
e atuação imprescindíveis às referências feitas ao passado. Já no teledrama, o recurso do
flash-back amplia as possibilidades de trazer à tona, em forma de imagem, o que é
impossível ao teatro. Neste sentido, os autores de Édipo têm ao seu dispor a
possibilidade de revelar ao público os problemas sociais e o sofrimento daquele lugar e
daquela gente. Enquanto aos demais recursos inerentes à linguagem fílmica e televisiva,
passam a ser, neste drama, primordiais aos interesses epicizantes postos por Guarnieri e
Peixoto. Não obstante, o apelo às cores fortes da emoção não são postas de lado. Ao
contrário, também passam a ser exploradas no teledrama, a fim de chamar a atenção do
telespectador. È importante perceber que tais recursos são próprios da TV, o que
podemos verificar ser uma prática até hoje utilizada: o apelo melodramático das
telenovelas, por exemplo.
A escolha por uma dramaturgia que ora privilegia o envolvimento emocional de
quem assiste, ora instiga a reflexão em torno dos problemas inerentes ao homem do
campo e suas implicações político-sociais e culturais, demonstra os parâmetros estéticos
que influenciaram Guarnieri e Peixoto. Entre os preceitos da tragédia, do drama social e
do teatro épico, o teleteatro é construído. Os elementos epicizantes, presentes na
existência do cantador-narrador, nos flash-backs e no coro são prova das influências
brechtianas em sua obra. O passado sempre presente, formando uma espécie de linha de
força aos poucos vindo à tona, o sofrimento interior cada vez mais crescente de Édipo,
aproximam-se de uma tradição dramática antiga, transmudada em drama social desde o
final do século XIX.
Podemos verificar que, as questões mítico-espaciais, presentes na adaptação da
tragédia de Édipo por Guarnieri e Peixoto, servem para os referidos autores como
prolongamento de seus discursos político-sociais, culturais e ideológicos, revestindo o
mito grego com tais propósitos na reescritura do mesmo. Assim, Guarnieri e Peixoto
escolheram a televisão e assumiram todos os riscos na reestruturação da tragédia
clássica, transformando-a em teledrama. Mas, sua dimensão fortemente evidente de
crítica política e social certamente contribuiu para que o texto jamais saísse do papel.
i
Gênero ficcional da teledramaturgia que surgiu inicialmente como teleteatro. O programa era
constituído unicamente de uma peça de teatro que acontecia ao vivo, em estúdio, o qual imitava um
palco teatral. Podia também ser gravado em fita para posterior exibição. (SILVA, 2009, 72)
ii
Modelo educacional vigente em Atenas que tinha como principal enfoque a formação política do
cidadão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo:
Cultrix, 2005.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Prspectiva, 2000.
GUARNIERI, Gianfrancesco. Teatro de Gianfrancesco Guarnieri: Textos Para Televisão.
São Paulo: Hucitec, 1988.
LUNA, Sandra. A Tragédia no Teatro do Tempo: das Origens Clássicas ao Drama
Moderno. João Pessoa: Ideia, 2005.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. – [Edição Especial]. – Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião – Uma Interpretação da
Cultura de Esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998.
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à Era da
TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
ROSENFELD, Anatol. Teatro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2005.
___________________ Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1994.
SILVA, Jerônimo Vieira de Lima. Édipo na TV: Guarnieri e as Impossibilidades de Um
Teatro Impossível. UFPB: João Pessoa, 2009. (Dissertação de Mestrado)
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Vol. I. Trad. Mário da Gama Koury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
TZU, Sun. A Arte da Guerra. Trad. Elvira Vigna – [Ed.Especial]. – Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011. (Saraiva de Bolso)
TEMA: TEAREALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.

O TEXTO DRAMÁTICO COMO SUPORTE NA CRIAÇÃO DA MAQUIAGEM


TEATRAL - O CASO DA MONTAGEM DA PEÇA FIM DE PARTIDA, DE
SAMUEL BECKETT.
José Roberto Santos Sampaio; Universidade Federal de Sergipe; professor
assistente; Doutorando pelo PPGAC – UFBA.

O texto dramático é um dos suportes para o trabalho dos artistas que atuam na
área técnica do espetáculo: cenógrafo, figurinista, iluminador, maquiador, etc.. Nele
estão contidas informações importantes para o processo de criação dos mesmos,
paralelo ao trabalho do ator e da opção estética do encenador.

Para estudar um texto dramático, em processo de montagem, na qual, faço parte


da equipe técnica, busco me ancorar na maior quantidade de informações possíveis, para
uma leitura do texto, aprofundando a este, informações sobre o autor, onde este vive, o
contexto histórico em que o texto foi escrito, estudos de teóricos acerca da dramaturgia,
do autor e caso encontre, da obra a ser encenada, entre outros possíveis caminhos.
Assim, optei por fazer um apanhado de alguns dos textos estudados, para este artigo,
tentando fazer ligações com o momento atual dos meus estudos como doutorando.

Proponho como objeto de estudo para o doutorado, um método de ensino da


maquiagem teatral para atores, diretores e professores de teatro. Portanto esta pesquisa
estará sempre relacionada ao texto dramático, como suporte para o estudo da criação de
uma maquiagem para os personagens das peças sugeridas na construção do método que
estou propondo.

No texto O discurso teatral de Anne Ubersfeld, em que a autora aborda as


questões do enunciador, são apontados caminhos que contribuem para entender as
informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias, para um estudo de um
texto teatral: “O estatuto do texto teatral é exatamente o de uma partitura, de um libreto,
de uma coreografia que leva à construção de um sistema de signos por meio de
mediadores: a. o ator, criador-distribuidor de signos, linguísticos fônicos, b. o encenador
(decorador, cenógrafo, atores, etc). (UBERSFELD, 2005, p.163).

As informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias são pistas
que norteiam os caminhos para a encenação em sua totalização. Segundo a autora,
No interior do discurso teatral; dialogismo de que é mais fácil
postular a existência do que fazer o levantamento das marcas, o
discurso consciente/inconsciente de um scriptor, ou percebê-lo
como discurso de um sujeito fictício são dois procedimentos
possíveis, com a condição de não ficarem isolados um do outro.
(...) O discurso teatral é por natureza uma interrogação sobre o
estatuto da palavra: quem fala com quem? (UBERSFELD, 2005,
p.168)

No tópico O Discurso da Personagem, Ubersfeld diz que na função referencial


que “O discurso da personagem informa sobre a política, a religião, a filosofia: é
instrumento de conhecimento para as outras personagens e para o público (...)mostra
como se diz uma fala.” (UBERSFELD, 2005 p. 170) Tais informações são referencias
para a construção da personagem, para direcionar os caminhos da direção e da equipe
técnica.

Em relação a encenação Ubersfeld aponta na conclusão desse texto, sobre o seu


papel no texto dramático,

Consiste em exibir o pré-construido, em mostrar o que pertence


ao terreno do não dito (ou dito conotativo ou indicial). A
encenação mostra quem fala e como se pode ou não falar. Às
vezes, e por efeito do deslocamento histórico, a mudança nas
formações discursivas faz com que um ou outro elemento perca
seu sentido e sua atualidade. (UBERRSFELD, 2005, p.188)

No início do artigo O diálogo no drama e o discurso do outro, de Cleise


Mendes, lê-se “O diálogo dramático põe em cena a linguagem através de um gesto
sempre duplo, ambivalente.” (MENDES, 2011, p.01), é possível estabelecer uma
relação entre as palavras de um dramaturgo e o conjunto de imagens visuais e sonoras
de uma encenação. É a voz do dramaturgo traduzida para o palco, através da fala das
personagens pelos atores, aliada aos efeitos causados pelo cenário, figurino,
maquiagem, iluminação, trilha sonora, entre outros que contribuem para contar uma
história.
A opção do diretor-encenador em transpor o texto dramático em imagens cênicas
é um fato determinante para que a recepção do leitor-espectador contribua para a
comunicação indireta do autor, através do jogo proposto na encenação. “Essa é a ilusão
primordial que funda o drama com acontecimentos estético-comunicativo: os sujeitos
que interagem parecem ser a fonte natural das emissões.” (MENDES, 2011, p.02).

As informações que o texto fornece sobre as personagens são outra fonte para a
construção da personagem e contribuem também para a caracterização externa dos
mesmos. Tais informações, situadas nas falas das personagens e em indicações do autor,
juntamente com as indicações da direção norteiam o trabalho do figurinista e
maquiador. Podem-se encontrar informações sobre o status social, idade, raça, entre
outros, e assim, podem ser traduzidas em imagens e cores que determinam a
personalidade das personagens.

Quando em seu texto, Mendes cita como exemplo a peça Avental Todo Sujo de
Ovo, por exemplo, com um diálogo entre as personagens Noélia e Alzira, o leitor já
situa o contexto social em que se passa a peça. As trocas verbais contidas nos diálogos,
em um texto teatral, oferecem pistas que norteiam o trabalho do maquiador, por
exemplo. Fato fundamental na construção da estrutura do método que estou propondo
em minha pesquisa, pois o mesmo é destinado ao ator.

Na citação “...no diálogo dramático (e cênico) a linguagem torna-se voz: está


associada indissoluvelmente a um corpo, um gesto, uma imagem humana” (MENDES,
2011, p.8) não há como não traduzir aos elementos visuais da cena. A cenografia, os
figurinos, a maquiagem e os demais elementos deverão estar impregnados das
informações que o texto oferece, para que haja coesão com o mesmo.

No texto de Jean Kott, Rei Lear ou Fim de Partida, o autor trata da


contemporaneidade da obra de Shakespeare traçando paralelos com dramaturgos do
século XX, em especial a Samuel Beckett. Kott aponta distintas analogias entre a
relação de Lear e o bobo e entre Hamm e Clov, com elementos que caracterizam
similitudes na construção dessas personagens nas situações limites em que os mesmos
estão vivendo em suas histórias. Tal estudo oferece importantes informações para um
aprofundamento no estudo das duas peças analisadas, para uma melhor apreensão para
uma encenação das mesmas.
Kott diz que Rei Lear pode ser compreendido como um melodrama com
elementos do grotesco, contidos de características do teatro medieval, porém com
aspectos de um novo teatro surgido no século XX, onde está situada a
contemporaneidade da obra de Shakespeare.

O trágico ressurge como referência nos textos de novos dramaturgos, mas


impregnados de elementos do que ele chama de novo grotesco,

Apesar das aparências em contrário, esse novo grotesco de modo


nenhum substitui o antigo drama ou a comédia de costumes. Ele
se ocupa dos problemas, conflitos e temas da tragédia: a condição
humana, o sentido da vida, a liberdade e a necessidade, a
contradição entre o absoluto e a fragilidade da ordem humana. O
grotesco é a antiga tragédia escrita de novo, num outro tom.(...)o
grotesco está situado num mundo trágico. (KOTT, 2003, p.
128/129)

Os textos de Shakespeare fornecem informações de grande contribuição para o


levantamento de uma encenação. O autor situa o leitor sobre os espaços onde acontecem
as cenas, assim como contextualiza geograficamente onde se passa a história. Não
existem didascálias, mas as falas das personagens assumem essa função e esta norteia o
trabalho dos atores, diretores e técnicos. Esses elementos também são de grande
contribuição para encenadores que propõem montagens contemporâneas, como, por
exemplo, a montagem do grupo Galpão para Romeu e Julieta, com direção de Gabriel
Villela, na qual o texto foi transposto para uma encenação com elementos do drama
circense.

Para Kott o grotesco está relacionado com o jogo. O diálogo é um jogo, em que
“no momento em que começa os dois parceiros devem ter as mesmas chances de ganhar
ou de perder, e ambos devem jogar segundo as mesmas regras” (KOTT, 2003, p.132).
Em Fim de Partida, de Beckett, o jogo entre opressor e oprimido de reveza, pela
necessidade um do outro pela sobrevivência. Hamm e Clov travam um duelo de
intolerância necessária para as suas sobrevivências. Beckett constrói suas personagens
com elementos clownescos, em Rei Lear os personagens estão numa condição humana
pontuada pela crueldade imposta pelas escolhas do protagonista, a ponto de reverter a
sua condição e a de seu bobo. Tanto em Rei Lear e em Fim de Partida a convivência é
desagradavelmente necessária para que as personagens se mantenham vivos.

A maquiagem concebida para a encenação de Fim de partida, para a Companhia


de teatro da Universidade Federal da Bahia, com encenação de Ewalda Hackler, foi
ancorada inicialmente pelas indicações do texto, com alterações para que esta se
adequasse às necessidades da concepção este da montagem. A proposta da maquiagem
era a de acentuar os traços do rostos dos atores que representavam Hamm e Clov e
utilizar a técnica de envelhecimento em Nagg e Nell.

Na indicação de Beckett, os atores possuíam um tom de pele rosado,


característico para pele que vivem em países de clima frio. Para a montagem baiana,
maquiador e diretor, concluíram que a pele dos atores deveriam ter um tom de cinza,
com nuances em preto e branco, na acentuação dos traços do rosto, enfatizando o
desgaste e o esgotamento humano daqueles dois homens, devido ao confinamento e
isolamento do mundo, portanto a aparência um tanto cadavérica seria apropriada. A
opção por tons de cinza, propõe uma leitura da ausência de cor na pele dos personagens,
confinadas no vazio, na desesperança. Não há mais saída. Não há mais vida.

Segundo Pareyson, a leitura de uma obra de arte é um ato complexo não apenas
uma contemplação. Para ele, a leitura de uma obra passa pelas etapas “executar,
interpretar e avaliar uma obra” (PAREYSON, 1977, p.201). No teatro, diferentes
montagens de uma mesma obra dramática, nos permite analisar como a transposição
para o palco foi realizada, quais os signos utilizados e as possibilidades de leitura
podem ser feitas.

De acordo com Pareyson, “ler significa executar, executar significa fazer com
que a obra viva de sua própria vida” (PAREYSON, 1977, p.208). O trunfo dessa
encenação, foi a apropriação da obra de Beckett para a realização de uma montagem
“quase arqueológica – no bom sentido – da peça”, Segundo o ator e diretor Celso
Júnior, em seu blog.

Por vezes, a maquiagem de um espetáculo teatral, pode ficar restrita a um


simples traço no olho, uma deformação numa sobrancelha, uma cor na sombra dos
olhos, que podem parecer a uma olhar superficial como uma coisa simples, mas podem
estar carregados de elementos que compõem a caracterização externa da personagem.

Os textos dramáticos apontam caminhos e os teóricos que se debruçam aos


estudos desses, facilitam ou sugerem armadilhas, que podem nortear o trabalho de quem
se propõe destrinchar o pensamento dos dramaturgos, permitindo mergulhar no contexto
em que esses vivem ou viveram e possibilitam como resultado coerência nas
encenações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECKETT, Samuel, Fim de partida. São Paulo, SP: Cultrix, 1981.

KOTT, Jan. Rei Lear ou Fim de partida. São Paulo, SP. Cosac Naify, 2003.

MENDES, Cleise. O diálogo no drama e o discurso do outro. Salvador, BA:UFBA,


2011.

PAREYSON, Luiggi. Os problemas da estética. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1977.

UBERSFELD, Anne. O discurso teatral. São Paulo, SP: Perspectiva 2005.

http://cadernosgrampeados.zip.net
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TÍTULO: A CENA EXPANDIDA

Kleriston Christy Vital Santos


(Graduando em Arte e Mídia - UFCG e integrante do NET – Núcleo de Estudos Teatrais da
UFCG)

Eliane Tejêra Lisboa


(Orientadora - Prof. Drª. da Unidade Acadêmica de Arte e Mídia da UFCG e Coordenadora
do NET)

RESUMO

Os elementos essenciais para a formação do teatro, segundo alguns teóricos, são o ator, o
público e o texto, essa relação está conectada diretamente com a presença cênica e a
retroalimentação proporcionada pela troca entre ator e plateia. Porém, como pensar essas
novas relações em um campo no qual os níveis de presença e suas leituras são modificados,
permitindo assim que o espaço cênico não se restrinja somente ao presencial, mas sim, as
virtualidades espaciais que as tecnologias digitais permitem. Nesse estudo, a partir de
experiências já constituídas visualizaremos recursos e experimentações que possibilitam essa
expansão dos espaços da cena e como, através de recursos digitais, podemos criar espaços que
excedam os limites físicos do palco.

Palavras-chave: Presença Cênica. Espaço Cênico. Tecnologias Digitais. Palco.

INTRODUÇÃO

Ao pensarmos sobre os elementos constituintes do teatro tradicional, os primeiros


fatores que podemos citar são a presença do ator, do público e do texto, sendo estas
formulações inerentes dessa arte. Na atualidade vemos que novas constituições se configuram
e noções ditas como essenciais começam a ser questionados, tais como a determinação do
espaço e da presença dentro da cena.
No geral todas as artes sofreram determinadas modificações a partir de sua
digitalização (a música, o cinema, a pintura) expandindo suas capacidades, assim como
permitindo que novas linguagens e possibilidades técnicas fossem instauradas, porém o teatro
foi, dentre estas, umas das artes que mais demorou em começar a sofrer esse processo,
grandemente decorrente da relação direta entre público e atores que se faz necessária em sua
execução, devido a sua necessidade de retroalimentação e de sua efemeridade.
Chegamos assim em um momento no qual experimentações são realizadas e, dessa
forma, novas possibilidades cênicas começam a ser visualizadas, permitindo assim que novos
recursos sejam anexados ao teatro, ampliando e demonstrando a capacidade integradora que o
teatro possui, tal como ocorreu com a iluminação, a sonoplastia etc. Contudo, algo que se
deve observar é que essas novas possibilidades atingem fatores que estão diretamente
relacionados a estrutura essencial teatral que são a presença cênica e o espaço cênico.
Quando um ator se constitui como presença? Quais são os limites da cena? Onde ela
inicia ou termina? São estes questionamentos que podemos configurar dentro desse novo
cenário teatral. Compreender esses fatores e como a presença se configura nesse momento nos
faz refletir sobre o espaço cênico e sobre a sua extensão que não é só relativa ao fator físico,
mas ao digital.

Presença Cênica

A presença é um dos principais elementos constituintes do teatro, pois diferente de


outras artes, dentro do teatro há a necessidade de uma retroalimentação entre ator e público,
em outros termos, um sempre influencia no papel do outro no contexto da cena. Devido a este
fator podemos dizer que cada dia surge um espetáculo distinto, pois cada público atinge os
atores de forma diversa, proporcionando motivação e elementos que levam aquela cena a ser
única no momento presente.
Não podemos erroneamente relacionar essa presença somente com a questão física, ou
seja, carbônica, do papel do ator em cena, mas sim com o se fazer presente na cena, pois o
público que assiste à peça não visualiza as unidades da cena, mas o todo, dessa forma pode
haver diferentes formas de presença a partir do uso e resignificação da mesma. “É preciso
considerar que um corpo só se faz presente quando se torna corpo percebido e, assim, a
presença constitui um fenômeno e não um estado. Um corpo e a percepção desse corpo são
duas facetas de um mesmo fenômeno” (ISAACSSON, 2010).
Novas construções cênicas a partir dos recursos digitais começam a ser estabelecidas e
os limites entre o virtual e o real começam também a serem questionados, como sociedade, no
geral, nossa compreensão relativa a presença começa a ser modificada. Obviamente não
devemos considerar que diferentes formas de presença foram somente estabelecidas com o
recurso digital, pois anteriormente, de modo mais tímido, a carta e o telefone já cumpriam
esse papel, contudo a recurso visual de transmissão de vídeo permite que a leitura de presença
seja estabelecida com maior eficácia, sendo por vezes lida presença. Segundo Lehmann “a
presença não é o efeito simplesmente da percepção, mas do desejo de ver” (LEHMANN,
2007, p. 387).
A partir dessas possibilidades de presença, podemos começar a entender que os limites
do ator são reconfigurados, assim como as possíveis leituras de sua formação de presença.
Apoiando-se em Pavis, Isaacsson amplia a discussão sobre o tema.
Sob o viés da intermedialidade, somos convidados a pensar a presença para
além dos limites da corporeidade do ator. Interessante observar que, já na
década de oitenta, ao definir a “presença”, Pavis apontava para o fato de que
“mais do que de presença do ator, se deveria falar do presente contínuo da
cena”. (ISAACSSON, 2010)

Em outras palavras, podemos compreender que mais do que o tipo de forma de


presença devemos observar como esta consegui evoluir na cena, mais do que estar fisicamente
presente, é se fazer presente.

Diante disso podemos ainda nos questionar, porque tratar de presença cênica quando
objetivamos compreender o espaço cênico na contemporaneidade, devemos assim então
considerar que a novas compreensões de presença permitem que a cena não se estabeleça
somente no palco ou mesmo na cochia, pois se o ator pode ir além do palco, assim também o
palco vai além de si mesmo. Configurando uma extensão de si, se desterritorializando e
fragmentando a cena. “O ator não se encontra desmaterializado, mas encarnado em novas
substâncias. Se seu corpo pensa, com auxílio da tecnologia, ele sai dos limites de sua pele.
Assim o homem se reconstitui no exterior de si mesmo.” (ISAACSSON, 2008)
Diante de uma compreensão das quebras das barreiras físicas e das novas
possibilidades de configuração das presenças, podemos visualizar que o espaço cênico pode ir
além do palco, ou mesmo a sala de apresentação, podendo nos levar para outros espaços que
não somente os imaginativos, mas também físico-virtuais.

O espaço cênico através da história

Quando pensamos no espaço cênico é como se este nos fosse uma janela, na qual
como público podemos observar acontecimentos de um mundo distante do nosso ou mesmo
se perto vermos nossa realidade vivida por outros. Por vezes este espaço seria como moldura
limitada ao espaço presente e perante os nossos olhos. “A primeira vista, o espaço cênico que
se organiza como quadro (tableau) se isola programaticamente do théatron” (ROUBINE,
1998, p. 272)
Esta formatação e pensamento do espaço da cena esta extremamente relacionado ao
teatro tradicional, pois em outras formas constitutivas mais atuais e experimentais como as de
Grotowski, Bob Wilson, John Jesurun, dentre muitos outros, esse abismo entre plateia e palco
são quebrados, aproximando assim o público da cena, ou mesmo o colocando dentro dela.

Se formos pensar no aspecto estrutural dos espaços de apresentação veremos que estes
sofreram diversas modificações através da história se adequando constantemente a cultura de
seu povo e questão socais relativas à localidade na qual ele estava inserido, não é a toa que
vemos as diferenças estruturais presentes nos edifícios gregos, berço dos palcos, em
referência a outros como o Elisabetano, o Italiano etc. Cada um destes se adequava as
necessidades de seu povo e as possibilidades criativas e cênicas que cada um necessitava.
Contudo, não podemos considerar que os espaços de apresentação se limitavam aos espaços
fechados ou mesmo destinados somente a este objetivo, sempre houve o teatro de rua, o
medieval usava uma estrutura totalmente distante da que estamos acostumados na atualidade,
assim como era comum no teatro apresentado à realeza haver um espaço mais simplório
destinado a apresentação, ou mesmo as cenas eram apresentadas no meio dos salões. Por isso
não devemos considerar que os espaços de apresentação se restringem somente ao edifício
teatral, mas a distintas possibilidades criativas.
Segundo Mantovani:
Chamamos de lugar teatral o lugar onde é apresentado o espetáculo teatral e
onde se estabelece a relação cena/ público. Usamos o termo lugar teatral em
vez de teatro, porque este último significa somente o edifício teatral. Na
verdade, o espetáculo pode ser apresentado em qualquer lugar, desde a praça
a um lugar alternativo [...] (1989, p. 7)

Dessa forma podemos considerar que existem várias possibilidades de uso da cena. O
teatro da Vertigem é um exemplo que podemos tomar de um grupo que faz uso de espaços
não convencionais para apresentação de suas peças, utilizando locais que antes possuíam
outra destinação e transformando-os em um espaço cênico. “O teatro procura uma arquitetura
ou então uma localidade não tanto porque o ‘local’ corresponda particularmente bem a um
determinado texto, mas sobretudo porque se visa que o próprio local seja trazido à fala por
meio do teatro”. (ROUBINE, 1998, p. 281)
Se pensarmos no momento atual e sua relação com o espaço cênico, veremos que
chegamos em um período no qual as experimentações não se limitam aos recursos criativos
advindos do espaço da cena, mas adentram ao mundo virtual, levando-nos como espectadores
a adentrar a cena além do meu limite físico, vendo-a como um todo e expandindo a mesma.
Essa possibilidade incide da desmaterialização que a presença cênica possibilita, tendo em
vista que eu não necessito mais necessariamente ter todos os atores presentes fisicamente
perante o público, podendo eles estar em outros espaços, apresentados como presença no
contexto visual da cena. Segundo Isaacsson “Isto porque, na medida em que o ser vivo torna
real a imagem imaterial, a imagem imaterial torna irreal o ser vivo. Pois, sob o olhar da
recepção, o real e o virtual são igualmente ativos, virtual não aparece como ausência, mas
como novo modo de existência”. (2008)
Os recursos digitais permitiram que houvesse um deslocamento do espaço da cena
formando sobreposições espaciais, justaposições, simultaneidade e fragmentação do espaço
presente, criando novos olhares sobre a cena, possibilitando novas leituras e criações de
interfaces espaciais (TONEZZI, 2014). Segundo Tonezzi:
Nas últimas décadas, o instrumento digital ganhou força em produções
cênicas, incidindo na estrutura dramatúrgica e, por extensão, nos parâmetros
de representação, jogo e significação do artista. Como consequência, as
formas de criação e recepção da cena foram alteradas, distanciando-se cada
vez mais daquilo que, até recentemente, configurava-se como evento teatral,
ou seja: uma estrutura estável e concretamente perceptível de tempo e lugar.
Porém, por mais que se desfragmentassem as narrativas e/ou agentes, tanto o
tempo real percebido quanto o corpo orgânico e o espaço concreto de
intervenção do atuante permaneciam referencialmente estáveis diante do
espectador. (idem, p. 336)

Como dito por Tonezzi, mesmo com as fragmentações narrativas, no contexto geral,
ainda havia uma permanência nas questões espaciais que só foram fragmentadas devido ao
meio digital, sendo estruturadas pelo olhar do receptor que vê a cena como um todo,
reestruturando sua formação espacial. Estes recursos só podem ser pensados e configurados
devido às mídias digitais, que abriram espaço para essa expansão de possibilidades criativas.
Trata-se, assim, não apenas de um redimensionamento, mas também de uma
reconstituição do espaço cênico por meio de seu deslocamento e
desmaterialização. Algo praticamente impensável há algumas décadas: a) ao
mesmo tempo em que se apresenta num determinado espaço físico, o evento
cênico é aberto e disponibilizado para acesso em rede. Por opção do
espectador, o espetáculo pode também ser apreciado presencialmente; b) um
trabalho cênico reúne e faz jogar artistas que, por sua vez, podem se
encontrar num mesmo lugar ou em espaços concretamente distintos e muito
distantes um do outro. Durante a performance, os espetáculos se integram e
os artistas jogam entre si através da mídia. (TONEZZI, 2014, p. 345)

Novas constituições são formuladas, chegamos assim a um momento no qual


novamente o teatro começa a sair para rua e procurar novos espaços de interação, sendo o
digital o espaço em suspensão, o novo espaço por vezes habitado também pelo teatro.

Criações de novos espaços

O período de experimentação no qual nos encontramos abre um leque de


probabilidades que possibilita mais observar do que valorar os resultados obtidos, pois os
mesmos em um primeiro momento nos fazem conhecer o recurso, para só então desassocia-lo
de seu primeiro uso, para ser um recurso com sentido na cena.

Vários grupos começam a realizar experimentos que vão além do espaço do palco,
trazendo o uso do vídeo e projeção a cena, permitindo que novas compreensões de leitura
sejam estabelecidas. Grupos como a PHILA7 e o Teatro Para Alguém (TPA) podem ser
considerados com bons objetos de estudos, pois propõem em suas experimentações novas
significações, nos apresentando que poderíamos compreender presença cênica de outras
formas que não só as convencionais.
Um dos principais espetáculos da Phila7 feito por essa companhia foi o “Play on
Earth”, 2006, nele havia uma conexão entre três espaços distintos do mundo, no qual a cena
acontecia simultaneamente (Brasil; Inglaterra e Cingapura) o público presente acompanhava
uma cena que se desenrolava com atores reais no palco enquanto a todo momento ao fundo
existia 3 telões nos quais eram projetados tanto a cena real digitalizada, assim como a cena
ocorrida nas outras duas localidades justapostas. Vale observar que não ocorriam as mesmas
ações, ou mesmo o que era projetado era um adendo a cena, mas cada elemento apresentado
nos telões e sua justaposição criava o sentido da própria cena, quer sejam no Brasil, na
Inglaterra ou em Cingapura. Toda essa união podemos dizer só foi possível se estabelecer
devido a Internet e a uma forte estruturação digital.
Se observarmos atentamente a este espetáculo compreenderemos que a cena em si não
ocorre nunca em apenas um dos espaços, mas cada uma das localidades é essencial para
formar um todo, criando assim um quarto espaço que somente existe na união desses três,
espaço este existente devido à internet, e um eterno espaço de suspensão. Mesmo com o
recurso digital vemos que o teatro não perde sua efemeridade e sim nesse caso
especificamente aumenta essa constante mudança, pois o ator não necessitava dialogar ou
mesmo se retroalimentar somente com o público presente, mas se fazer presente para os
outros atores projetados e para o público, que embora não estivesse próximo a estes, aparecia
e possuía uma forma de presença.
Há outro espetáculo da Cia que também faz uso de distintos espaços que é o caso de
“A verdade relativa da coisa em si”, 2006, no qual temos o palco como centro principal de
acontecimentos, porém o uso de telões nos faz observar outros espaços que não somente os da
cochia, mas alguns que não consigamos valorar a distancia, mas tem significado. Por vezes os
telões justapõe esse espaço, tal qual um momento que vemos os personagens conversando em
um corredor em preparação a entrar na cena, embora que estejamos como público, sentados
perante a cena presente, o que nos é projetado em sua coerência nos leva além do físico,
possibilitando a partir do virtual que estejamos em novos espaços. Em “What’s Wrong with
the World”, 2008, há novamente uma relação entre Brasil e Inglaterra e diálogos são criados
entre personagens, não somente falados, mas visuais. Nesses espetáculos vemos a partir da
projeção a criação de vários espaços, mas em certos momentos os atores reais, são
digitalizados, pois vão pra espaços além do espaço teatral e os acompanhamos em seus
caminhos entrando em novos locais, quer sejam salas com cenários montados, ou mesmo indo
para fora do edifício onde a cena ocorre, mas para nós como público não é como um
distanciamento, mas somos levados além do limite real, como se estivesse em todos os
espaços indo além do fator somente imaginativo, mas como uma extensão de nós mesmos.
Outra experimentação que possibilita novas leituras do espaço cênico é a realizada
pelo TPA, na qual a Internet é o seu espaço de exposição. O grupo apresentava inicialmente
as cenas em um espaço sem público, totalmente em uma estética teatral, e gravava o material,
colocando-o posteriormente na internet, onde o público tinha acesso. Dessa forma, este seria
um teatro virtual, no qual o espaço cênico não se limita a um edifício, mas poderia ser
instaurado em diferentes suportes, como um computador, um notebook, um tablet, celular etc.
Para manter a estética teatral, aspectos como um plano sequência, planos abertos, dentre
outros eram utilizados, obviamente também fazendo uso da linguagem da Internet com cenas
curtas.

Nessa proposta do TPA temos a construção de um espaço digital como espaço cênico,
sendo assim, a peça poderia estar em todos os locais, por momentos houve cenas apresentadas
com um público, ou seja, estavam realmente criando a retroalimentação possível teatralmente.
Nessa ideia é possível levar o teatro e sua linguagem para os diferentes espaços, tanto pela
apresentação em streaming quanto pela possibilidade de banco de dados, permitindo uma
distribuição universal dos materiais.
O espetáculo “Júlia” que provém da peça “Senhorita Júlia” de August Strindberg,
adaptação e direção de Cristiane Jatahy (2012), é outro exemplo de construção de espaço
distinto, há vários telões em cena e constantemente os atores jogam com o espaço e caminham
entre eles tornando-se virtuais e reais, inicialmente podemos até mesmo nos questionar sobre
essa constante modificação, porém por vezes, enquanto se digitalizam, somos levados para
outros espaços que não são nem de memória nem de sonho, mas de presente. Há um momento
em que os personagens estão na piscina, mas não nos estranha o que nos é apresentado, pois é
como se os tivéssemos acompanhado até aquele espaço, como um suspensão de nós mesmos
nesse espaço.
Esses são somente alguns exemplos dos vários que podemos citar que ocorrem pelo
Brasil afora, vemos que cada um destes grupos e espetáculos propõe diferentes formas de
expansão, mas procuram cada um a seu modo, construir novas espacialidades e expandir a
cena para além do presencial físico.

Considerações finais

Podemos visualizar que estamos ainda em um período de experimentação, tão logo, os


recursos digitais ainda se encontram em um processo tanto de compreensão de sua função,
quanto de possibilidades cênicas. As quebras dos limites físicos e do espaço ainda são, por
vezes, usadas de forma tímida, configurando assim a transição dos recursos digitais para a
cena teatral e para novas hibridizações e modificações ainda possíveis e que surgirão nesse
processo, indo além do uso inicial desse recurso, usando-o a favor da cena. iO computador,
celulares, Ipads, projeções, estão ainda em um processo de relação inicial com a cena,
contudo vale ressaltar que há a tendência de serem cada vez mais agregados as
experimentações, configurando novas formas de espaço e presença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ISAACSSON, Marta. Diálogos do ator com a tecnologia. IN: Território Teatral, nº9,
set.2008. Disponível em: <http://territorioteatral.org.ar/html.2/articulos/pdf/n3_02.pdf>.
Acesso em: Jan de 2013.
_________________. A Presença como Movimento da Cena. Anais do VI Congresso
Abrace, 2010. Disponível em:
<http://www.portalabrace.org/vicongresso/processos/Marta%20Isaacsson%20-
%20A%20Presen%E7a%20como%20Movimento%20da%20Cena.pdf>. Acesso em: Jan de
2013
LEHMANNN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ática, 1989.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996 (3ª edição).
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. São Paulo: Razar, 1998 (2ª
edição)
TONEZZI, José. Inovação e significação em cena. Revista Brasileira de Estudos da
Presença. Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 333-350, maio/ago. 2014. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/presenca> Acesso em: 20 de junho de 2014.

Sites
http://phila7.com.br/
http://www.teatroparaalguem.com.br/

Arquivos Visuais
A verdade relativa da coisa em si. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R1kuplMhw00>. Acesso em: 02 de jul de 2014
Julia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uQxRd9SXg-0>. Acesso em: 02
de jul de 2014
____. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GPtKvCokCFs>. Acesso em: 02
de jul de 2014

Play On Earth. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CeTENBxG_hs>.


Acesso em: 02 de jul de 2014
What’s wrong with the world. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nrX-
JREDijY>. Acesso em: 02 de jul de 2014

i
Este trabalho foi fruto de pesquisa do PIBIC intitulada “TEATRO E NOVAS MÍDIAS: hibridismo no trabalho
teatral da Cia. Phila7”, realizada entre agosto de 2012 a agosto de 2013, com financiamento do CNPQ.
 
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A RECONTRUÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO NA AÇÃO DE DESNUDAR-SE: NA


PERFORMANCE E NO PROTESTO

Lara Tatiane de Matos (CAPES) André Luiz Antunes Netto Carreira (Orientador); Programa de
pós-graduação em teatro – PPGT – Doutorado; UDESC

Gostaria   de   argumentar   que   desde   a  


metade   do   século   XX,   a   presença   do  
corpo  nu  em  espaços  públicos  e  privados  
constitui   uma   resistência   ao   poder   que  
tenta  regulá-­‐la,  ou  seja,  à  onipresença  do  
olhar   cultural   regulador   (que   mesmo  
quando   ausente   se   transmuta   em   auto-­‐
policiamento).  (BOODAKIAN,  2006  p  143)  
 
 
É importante dizer, primeiramente, que este artigo trata de um tema cuja
execução é proibida por lei no Brasil e em muitos países. No Brasil enquadrado
judicialmente como “ato obsceno”1, o praticante da nudez pública pode ser detido por
até um ano. No entanto a nudez na rua tem aparecido cada vez mais estampada em
jornais quando se trata dos protestos empreendidos por todos os cantos do mundo, na
cena artística brasileira, até mesmo a catarinense.
Recorrentemente esta nudez, seja no protesto, seja na performance arte, se
debate nos braços do policial, que faz cara de nojo ou se diverte. A nudez é calada
muitas vezes antes de acontecer, a nudez anunciada é reprimida pela presença da
polícia, antes mesmo de se mostrar. Quando isto acontece, um mal-estar se instala entre
as pessoas que pensam o corpo nu como meio de reação às circunstância sociais ou
estandarte de determinadas causas, e gritos ecoam por todos os espaços de expressão:
jornais, revistas, redes sociais e mais protestos seguem, mais performances, artísticas ou
de protesto aparecem.
No texto A politização da nudez: entre a eficácia reivindicativa e a obscenidade
real, Paula Sibilia traça uma genealogia da utilização da nudez como protesto e
investiga os deslocamentos da polêmica em torno da nudez na sociedade
contemporânea,

Nos últimos anos surgiram também certas agrupações políticas de novo


cunho, cuja principal arma é precisamente essa: tirar as roupas em público,
sobretudo nas ruas das grandes cidades, com o intuito de chamar a atenção
para diversos assuntos que consideram importantes. (2013 p 2)

Para a autora a nudez em si já não encontra a repressão que teve no passado, no


entanto há uma “purificação imagética” que condiciona o corpo nu à beleza da pele lisa
e jovem, sem marcas, deixando o obsceno para os corpos que não atendem as regras
estéticas do mercado, o corpo esteticamente imperfeito para o mercado é o protagonista
do obsceno hoje. Parece que este ponto é fundamental para pensar os protestos e as
performances com nudez na rua hoje, porém deixarei esta perspectiva para um próximo
momento. Interessa aqui, para iniciar a discussão, fazer uma breve exposição de
situações e materiais artísticos e de protesto que exemplificam a utilização da nudez na
rua e sua relação com o espaço da cidade.
Neste tempo-espaço histórico a nudez se mostra como ligação entre o protesto e
a performance arte. Mas como se dão os processos de utilização da nudez como meio
expressivo, tanto por artistas como por ativistas? E onde o pensamento sobre a nudez
liga arte e política e amplia o olhar sobre a expressão na rua através do corpo?
A partir das reações populares através da nudez como meio de obter atenção
social para determinada causa, a performance se instaura. No entanto essa nova
percepção da utilização da performance, que preserva muito de suas estruturas básicas,
intensificando-as: a relação espacial, histórico-temporal, a reação ao poder público
direto, propõe novas bases para sua realização, tendo o anonimato como um elemento
fundamental. O cidadão e seus direitos como agente e a utilização das redes virtuais em
intensidade como mecanismo de organização e como divulgação posterior. São dados
que permitem pensar a performance arte expandida e a transformação do lugar do
performer.
A proximidade entre performance arte e performance social, mediada pela
nudez, mostra que o artista e o cidadão comum, buscam hoje expressar suas opiniões
políticas voltando de certa maneira ao estado básico e irrevogável do ser humano: o
corpo nu. O que os coloca em uma mesma linha de pensamento, que torna o artístico
parte recorrente de um pensamento popular, e o político parte fundamental de um
pensamento performático. Este elemento de “real” é fundamental para o engajamento
anti-representacional que a performance busca, ao mesmo tempo que no protesto este
“real” vincula determinada causa ao cidadão, através do risco que significa expor-se em
público.
Estas conexões estão mudando o engajamento performático e a presença do
artista de performance no ambiente social. Para tanto o artista de performance perde um
lugar de incompreensão, e é incorporado ao meio, aos cidadãos que agora “praticam”
arte, sem necessariamente ser identificado como um artista.
Foi pensando o corpo da mulher que me aproximei das discussões sobre a força
da imagem da nudez e como a nudez se transforma de acordo com o espaço e com a
ação que realiza ou que se realiza sobre ela. É interessante pensar que a nudez das
mulheres sempre foi alvo e objeto do olhar artístico em sua maioria praticado do
homens ao longo da história. Hoje, nas manifestações recentes de nudez pública, há
uma apropriação da nudez por parte das mulheres que produzem diferentes materiais
artísticos politicamente engajados, Sibilia comenta em seu texto,

Esse vínculo entre o novo tipo de protestos e a feminilidade também é


sublinhado por Philip Carr-Gomm, autor do livro A brief history of
nakedness (p. 89): "enquanto a história da nudez na religião é dominada pelos
homens", diz ele, "a situação oposta se aplica no campo da ação política,
onde a nudez tem sido usada com mais frequência pelas mulheres".(2013 p 4)

Estes elementos acima citados, o empoderamento do próprio corpo pelas


mulheres, a nudez estética (que muitos chamam de “o nú”), em contraponto à nudez
obscena, a nudez em ação, a nudez engajada, a nudez artística, a nudez que torna real as
ações em performance e em protesto, os usos do corpo nú para chocar, e a nudez como
filosofia anticonsumismo entre outras, são categorias de uso que tomam parte hoje do
cotidiano de todos.

Um contexto pessoal

Atuo em um espetáculo teatral, onde represento um corpo morto, sendo lavado


por uma faxineira de necrotério. Há mais de cinco anos faço e refaço o espetáculo
Women’s juntamente com Ana Fortes e André Carreira. É sobre a nudez deste
espetáculo que discorri em meu trabalho de conclusão da graduação, e nesta análise
concluí que o grande elemento castrador da nudez é o olhar do outro. Este olhar cultural
tem me acompanhado nas diferentes experiências com a nudez. De um ponto de vista de
quem age através da nudez, tenho percebido a força que possui o olhar de quem observa
esta ação.

O olhar cultural é mais do que uma simples lente, pois ele possui esse
aspecto de autocensura/observação que implica no controle do corpo nu por
razões determinadas culturalmente. [...]
Visto que a identidade é fluída e ganha fruição a partir de discursos e
performances, o corpo nu torna-se identificável somente após ser submetido
ao olhar cultural. (BOODAKIAN, 2006 p 143)

Durante um ano tive a experiência de trabalhar como modelo vivo para artistas de
uma escola de arte. Nesta perspectiva, a nudez se mostra completamente diferente, e
talvez se possa comparar à nudez clínica. Aqui o corpo é a massa que é forma, luz e cor.
Desprovido de desejo, de contexto, de conflito ou drama. Neste trabalho não é a nudez,
o corpo nú que se mostra, como na morta, mas o conjunto total que mistura forma e
contexto, pele. A pele toma lugar central no trabalho como modelo vivo, a pele conduz
as percepções dos artistas. A pele reflete a luz, interage no espaço, moldando o fundo e
contrastando com as cores. Mas esta pele também transcende a matéria e se apoia no
contexto e toma outro significado, “Curiosamente a pele retira do corpo seu status de
objeto, no momento em que ela não é mais percebida como involucro das formas. Tal
qual uma superfície com seus próprios relevos, ela transforma o corpo-objeto em corpo-
texto.” (JEUDY, 1945 p 84)
É a partir destas duas percepções pessoais e práticas do corpo nu, bem como suas
divergências, que em minha trajetória como artista e pesquisadora passei a perceber os
atos de nudez na rua, através de mecanismo midiáticos e cheguei a textos e teorias da
performance.
O corpo político da performance é citado por Carlson quando revisita a história da
performance e estabelece a classificação de performance política,

A obra de performance, baseada primeiramente em material autobiográfico e


frequentemente dedicada a dar voz aos indivíduos ou grupos previamente
silenciados, tornou-se, no início de 1970, e ainda permanece nos anos 1990, a
maior parte da performance social e politicamente engajada. Mas outra
performance também comprometida se desenvolveu sob formas diferentes e,
em geral, mais claramente resistentes. Aqui, como na performance da
identidade, o caminho foi tomado, tanto na teoria como na prática, por
mulheres, embora mais recentemente homens gays e minorias étnicas
continuem a desenvolver essas estratégias canalizando-as para suas próprias
preocupações. (CARLSON, 2009 p 115)

Em meu contato com mulheres que há alguns anos vem mostrando os seios, em
marchas pelos direitos femininos (a “Marcha das Vadias” principalmente), inclusive em
Florianópolis, pude perceber esta performance política, mas poeticamente artística,
visualmente carregada de significação. No entanto esta manifestação ainda estava no
território do compreensível, pois eram cobertas de razões políticas que eu conhecia
profundamente. Mas então começaram a aparecer outras manifestações nos mais
diferentes países, sob as mais diferentes óticas: o direito dos animais, o direito de andar
de bicicleta com segurança, a preservação dos direitos sociais, a indignação com o
desiquilíbrio social .
Seguidamente pode ser visto um post no Facebook que, compartilhado inúmeras
vezes, se tornou um mantra virtual, “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o
corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou
uma festa.” Eduardo Galeano”. Inúmeras vezes o compartilhamento aparece na Time
line, sempre acompanhado de uma imagem antiga, talvez uma fotografia dos anos
cinquenta onde duas pessoas, um homem e uma mulher, dançam nuas em um campo.
Apesar de muitos dos que me conectam pela rede social estarem envolvidos com arte, é
comum ver esta postagem sendo compartilhada também por pessoas que não possuem
nenhum vínculo direto com o fazer artístico.
O nu aparece, agora, vinculado também ao cidadão comum, mesmo que ainda
na postagem virtual. A poética do corpo nu, relacionado à liberdade e à simplicidade, a
imagem básica do ser humano, já está no domínio do público que não possui
aparentemente um contato direto e recorrente com arte. Na mensagem o efeito é de
manifestação de aceitação do corpo nu. Nesta postagem, o corpo não é pesado como
antes, o corpo esta em fase de libertação.

Um contexto local

Em Florianópolis tivemos três eventos que nos mostram bem o contrário do que
se publica na rede virtual, o posicionamento do governo e da polícia quanto ao ato de
desnudar-se, seja qual for o fim, na rua. Como já foi dito, a nudez na rua é enquadrada
judicialmente como “ato obsceno” podendo custar a quem o pratica até um ano de
prisão.
Ainda em 2012, e em 2013 na cidade de Curitiba, o Erro Grupo, importante em
sua trajetória de 11 anos de pesquisa cênica na rua, apresentou o espetáculo Hasard,
onde ao final, durante um jogo de sorte, uma das possibilidades envolvia a nudez total
de alguns atores. A polícia se colocou a postos nos dias das apresentações e repreendeu
os atores.
Em 2010, o performer Betinho Chaves, foi detido dentro do campus da
Universidade Federal de Santa Catarina, por apresentar a performance Na brasa de
Pindorama onde estava totalmente nu. Ironicamente a performance fazia parte da
Semana Ousada de Artes, promovida pela universidade onde estava sendo realizada
juntamente com a UDESC. A guarda do campus foi acionada por alunos e levou o
performer para a delegacia onde prestou depoimento e foi liberado.
Conversando com um participante da “peladada” ou pedalada pelada, um
protesto que tem acontecido em diferentes cidades do país, onde os participantes andam
nus, ou seminus, de bicicleta pelas ruas da cidade, ele questionava a eficácia do ato,
para ele havia um desvio do olhar do público passante sobre o tema que importava: as
condições de segurança de quem anda de bicicleta nas ruas.
A rua tem sido tomada por manifestos, protestos e ações isoladas ou vinculadas
à uma causa. A conjuntura social mundial tem mostrado uma força popular sem igual no
que diz respeito a articulação popular. A divulgação entre mídias, principalmente as não
oficiais como as redes sociais, tem mostrado a preocupação de camadas sociais com
decisões políticas ou causas em geral. O protesto tem levado as pessoas às ruas, tem
tornado presente o corpo daqueles que se encontram ou se organizam pelo meio virtual.
A ação de corpos nus tem se tornado presente em diferentes protestos por
diferentes causas, e esta ação não está desvinculada de um pensamento crítico, político e
principalmente estético e poético. A nudez nestes lugares, é o símbolo de um
pensamento que flerta com o pensamento artístico. Porque estamos ficando nus? O que
nos move? Seria a necessidade de mostrar que frente à polícia, ao poder, ao governo,
não temos nada – que temos consciência disso? Nem armas, nem armaduras, nem
roupas, nem símbolos ou marcas que nos identifiquem? Ou estamos mostrando que a
essência do corpo, a nudez, a fragilidade da pele nos torna iguais e apenas humanos? Ou
somente queremos chamar atenção, e sabemos que a nudez ainda é uma ação
desconcertante? Seria uma reinvindicação de uma humanidade perdida? Seria uma
identificação animal com a natureza?
A crise que se apodera dos pensamentos, que desilude do capitalismo, do
consumo, o apelo constante para as causas ambientais, ecológicas e de estrutura urbana,
somadas, resultam em questionamentos profundos sobre a sociedade atual. A constante
insatisfação com o sistema regente, os modelos que desabam, o europeu e o americano,
principalmente, e a constante e insistente busca por eles; o desdobrar de crenças
religiosas e espirituais, as novas percepções sobre o corpo e sobre o ser humano,
aparentemente transbordam em ações públicas que se misturam com o artístico e que
reivindicam a performance.
Para uma revisão política sobre contemporaneidade é preciso visitar a obra de
Zygmunt Bauman, principalmente O mal-estar na contemporaneidade, entrevistas e
artigos publicados nos últimos tempos são valiosos para pensar a conjuntura de nossa
sociedade. Atuais observações tais como “a situação de interregno”, momento de
contradições e dúvidas que colocam os cidadãos em um ambiente caótico e com poucos,
ou quase nenhum, lugares onde depositar suas certezas, mesmo quando em se tratando
de valores, nos dá uma noção poética e profunda sobre a sociedade atual,

Recentemente, eu comecei a chamar a presente situação de “situação de


interregno”. O interregno é um conceito bem antigo, da época de Tito Lívio,
um historiador da Roma Antiga, que escreveu a história de Roma em “Ab
Urbe Condita”, “desde a fundação da cidade”. O primeiro interregno ocorreu
quando o primeiro rei da Roma Antiga, Rômulo, após 38 anos de reinado,
morreu. Não está muito claro, pois alguns dizem que ele foi direto para o
Paraíso, que ele não morreu. Mas ele desapareceu, após 38 anos. A
expectativa de vida naquela época era de 38 anos, o que significa que, no
momento em que ele morreu, praticamente não havia ninguém que se
lembrasse de como era a vida antes de Rômulo. Em toda parte, todas as
prescrições e proscrições vinham de uma só fonte: Rômulo. E, de repente, ele
desaparece. Imagine-se nessa situação. O que fazer? Não se sabe o que fazer,
de verdade. (BAUMAN, 2012, entrevista concedida ao jornalista Cílio
Bocanera do programa Milênio, Globo News, transcrita e publicada pelo site
Direito Constitucional, p 2)

Para Bauman essa situação é bastante parecida com a situação que vivemos
atualmente. Vivemos um momento de mudanças simultâneas, o que nos deixa sem
tempo para processá-las. É possível que as gerações futuras estejam adaptadas a viver
neste turbilhão, mas nossa época é a linha que separa o passado do futuro, mudanças
profundas nas comunicações se encontraram exatamente no ponto onde vivemos e daqui
podemos tocar o futuro e o passado.
Esta pode ser uma pista para compreender as motivações que levam as pessoas a
voltar para seu corpo e vê-lo como material expressivo, mas as implicações sobre este
ato, e tudo que discorre dele merecem estudos profundos.
Quando pensamos a nudez, o corpo se resume à imagem e ao contexto acionados
por uma ação. É possível dizer que a nudez enquanto tema, afastada da materialidade e
objeto corpo, está intrinsecamente relacionada à uma ação, por isso isolada do corpo em
sua totalidade. Nesta perspectiva, informações sobre este corpo, subjetividades,
identidades, informações sobre sua saúde, etc. não são tão relevantes como a imagem,
como o ato de desnudar-se e o contexto social e espacial em que se insere.
O pensamento artístico tomou estes ambientes, e responde, como em muitos
outros momentos históricos, pela condensação de pensamento, crítica, imagem e ação.
O pensamento artístico se espalhou e se tornou constante nas ações sociais. O cidadão
faz arte, porque a arte lhe serve de mecanismo, de meio e método, porque a arte faz
parte da composição social do qual ele é parte, e pela qual ele é feito. A expressão
humana não pode ser parada ou encaixotada, e por isso a performance toca a rua, e se
traduz em protesto arte, sem necessariamente necessitar desta classificação.
A nudez nos protestos é o símbolo de uma revolução de pensamento, tanto para
aqueles que estão conectados com o pensamento da performance, sem necessariamente
pensar sobre isto, quanto para a arte da performance, que hoje habita outros espaços,
naturalmente.
É fundamental mostrar as conexões visíveis entre a performance arte e o
protesto, revelar estas conexões expandindo o conceito, ampliando o olhar sobre a
manifestação pública, conectando artistas e suas ações e cidadãos e as causas que os
levam a pensar performaticamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOODAKIAN, Florence Dee. Despindo os códigos: gênero, relativismo cultural e o


corpo nu. In: Garcia, Wilton. (org) Corpo e subjetividade – estudos contemporáneos.
São Paulo: Factasch Editora, 2006.

CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Tradução de Thaïs Flores


Nogueira Dinis, Maria Antonieta Pereira. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Lourenço. – São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.

SIBILIA, Paula. A politização da nudez: entre a eficácia reivindicativa e a obscenidade


real. In: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação.
Anais do XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de
maio de 2014 disponível em:
http://compos.org.br/encontro2014/anais/Docs/GT06_COMUNICACAO_E_SOCIABI
LIDADE/paulasibilia-compos2014-novo_2185.pdf acesso em 07/07/2014

Planalto Central
Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm acesso em
04/04/2013

Consultor Jurídico (Entrevista concedida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman ao


jornalista Sílio Boccanera)
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jan-27/ideias-milenio-zygmunt-
bauman-sociologo-polones acesso 02/02/2013

Erro Grupo
Disponível em: http://www.errogrupo.com.br/v4/pt/ acesso em 04/05/2014

Marcha das Vagabundas Florianópolis


Disponível em: https://www.facebook.com/MarchaDasVadiasFlorianopolis acesso
03/05/2014

Notas:  

                                                                                                                       
1
Ato obsceno é definido como crime no Código Penal Brasileiro
“CAPÍTULO VI DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”
 
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESPAÇO E IMAGINAÇÃO NA TEATRALIDADE DE ROBERT LEPAGE
Luciana Paula Castilho Barone (FAP; UNESPAR)

A questão da teatralidade, se já impulsionava os encenadores do início do século XX,
em sua busca pela autonomia da linguagem teatral em relação à literatura dramática,
volta à pauta do debate teórico da cena contemporânea. Em “Teatralidades
Contemporâneas”, Sílvia Fernandes (2010) nos conduz a uma passagem por algumas
de suas perspectivas, desde a diferenciação entre a teatralidade denegada e à da
convenção consciente, proposta por Patrice Pavis, até a diferenciação e posterior
aproximação entre as noções de “teatralidade” e “performatividade” de Josette Féral,
em sua crítica à generalização do termo “pós-dramático”, apresentado em 1999 por
Hans-Thies Lehmann.

Efetivamente, ao enfocarmos a teatralidade híbrida do encenador canadense Robert
Lepage, que investe no jogo entre os elementos que a compõem como porta de acesso
ao universo poético, o termo ‘pós-dramático’ nos parece vago para defini-la. As
análises que Lehmann propõe dos aspectos da cena de Lepage, concentram-se
principalmente no exemplo de Os sete afluentes do Rio Ota, especialmente pelo
caráter épico, dessa “viagem teatral político histórica” (LEHMANN, 2007, p.379),
que aproxima-se da estrutura onírica, pelo uso que faz das mídias e dos “estilos de
representação” (ibidem) e por sua longa duração representacional (idem, p. 307). O
autor identifica ainda a recorrência a montagens solo na cena pós-dramática, passando
pelo exemplo de Agulhas e Ópio (idem, p.209), sem no entanto, aprofundar-se em
sua análise, ou na de outros exemplos, como Vinci e Elsinore, também concebidas e
interpretadas por Lepage. Mas o que mais chama a atenção, além de serem poucas as
vezes que Lehmann refere-se efetivamente à produção deste encenador embora
configure como um dos “nomes” listados em seu “Prólogo”, como expoentes da cena
pós-dramática, é que a dramaturgia lepageana, embora apresente elipses temporais e
entenda-se como sempre em progresso (retroalimentando-se da relação com o
público), apoia-se predominantemente numa estrutura de linearidade temporal, não
totalmente desvencilhada do enredo dramático.

Embora Lehmann contemple uma coexistência entre o dramático e o pós-dramático,
afirmando que o drama continue a existir como estrutura – "mesmo que enfraquecida,
falida – do teatro ‘normal’" (idem, p. 33), afirma que os “membros ou ramos do
organismo dramático” presentificam-se como “material morto” (idem, p. 34),
constituindo o espaço de “uma lembrança em ‘irrupção’”(ibidem) na chamada cena
pós-dramática. As estruturas dramatúrgicas das peças de Lepage, embora
evidentemente focadas na cena e não no texto, apoiam-se na noção de personagem, e
de desenvolvimento linear da trama, entrelaçada por conflitos que possibilitam,
inclusive, a relação de identificação com o espectador. Assim, parece-nos controverso
que sua dramaturgia configure-se como exemplar da cena pós-dramática desde o
“Prólogo” da publicação de Lehmann, ainda que outros aspectos de sua cena se
enquadrem nas diversas possibilidades que o autor define ao longo de sua defesa.
Se, conforme Sílvia Fernandes (2010, p. 113), “o conceito de teatralidade tem se
revelado um instrumento eficaz de operação teórica no teatro contemporâneo”, o de
Josette Féral, por considerar as relações de criação e recepção, nos parece mais
pertinente para se lançar um olhar sobre a cena lepageana, do que a proposição pós-
dramática de Lehmann. Este trabalho, enfoca a relação entre espaço e imaginação na
teatralidade de Lepage, considerando justamente que a imaginação potencializa-se dos
dois lados da cena - o espaço do palco e o da plateia - estabelecendo-se como elo da
criação em progresso.

O espaço da representação

Os espetáculos de Lepage priorizam a frontalidade que, por si só, já direciona a
relação de visualidade entre plateia e cena. Esta relação espacial favorece a
emergência do que “literatura cênica canadense convencionou chamar de ‘teatro de
imagens’” (BARONE, 2007, p. 228). Explorando a relação entre cena ao vivo,
projeções de vídeo ou filmográficas e o movimento cenográfico, Lepage oferece à
perspectiva do espectador a possibilidade de diversos pontos de vista, conduzindo-o
para dentro do espaço da representação, fazendo-o seguir, muitas vezes, o percurso de
seus protagonistas.

Em Vinci, por exemplo, a plateia embarca no avião em que o palco é transformado
pelo uso que o ator faz da cadeira em cena, além de passear no ônibus turístico
londrino, representado pela sombra de um retrovisor, e de adentrar um Burger King
em Paris, ambientado pelo copo de refrigerante que a Gioconda tem em mãos.
Abordando a viagem iniciática de Philipe, um fotógrafo canadense que viaja para a
Europa em busca de motivação artística, a montagem estabelece a espacialidade
metonimicamente, pois um objeto referencial – a cadeira, o retrovisor, o copo –
representa o todo. A inserção da plateia no ambiente expandido do palco se dá através
do jogo que o ator com ela estabelece, mediado pelos signos da espacialidade.

Esta relação metonímica também pode ser identificada em Trilogia dos Dragões,
espetáculo em que uma guarita de estacionamento vai sendo ressignificada para
referir-se aos diversos espaços da representação por que transita. Para Ludovic
Fouquet (2006), há, nesta trilogia, uma herança das marionetes (com que Lepage
trabalha no início de sua carreira), como se a lógica dos bonecos fosse empregada no
gestual dos atores e em sua relação com os objetos ou em sua ampliação cenográfica.
Os atores que interpretam o Chinês e Crawford, por exemplo, para provocar a ilusão
de descida de uma escada para o subsolo, caminham, dentro da guarita, em círculos,
dobrando progressivamente os joelhos. Quando desaparecem, simplesmente abrem a
porta da guarita, transformando o espaço externo (a rua, no início da cena), no subsolo
de uma lavanderia. É o jogo entre o corpo e o objeto, aqui amplificado na cenografia,
que estabelece o espaço da representação.

Em Agulhas e Ópio, o jogo entre cenário, ator e projeção transporta o espectador a
novos espaços, revelados pelo movimento da tela, que gira em torno do próprio eixo
horizontal. A relação que o ator vai estabelecendo com cada um dos lados da tela,
amparada ou não por projeções, transporta a imaginação do espectador, para o avião
que em 1949 leva Jean Cocteau de Nova York a Paris, para o quarto de hotel em que
Robert se hospeda, na Paris de 1989, ou para o restaurante parisiense que recebe
Miles Davis e Juliette Gréco, em 1949. Tempo e espaço são convencionados pelo jogo
do ator com a cenografia física e virtual. Flutuando entre as hélices, ele representa
Cocteau de 1949, quando oculta-se atrás da tela, mostrando apenas sua silhueta em
sombra chinesa, nos remete a Davis do mesmo ano e quando revela-se sob a lâmpada
do quarto de parede vermelha, envolto no lençol da cama, é o Robert de 1989,
descobrindo o universo dos outros personagens. Transitando entre estas três figuras e
suas vivências amorosas, a peça conduz a seu apelo às agulhas da acupuntura ou do
ópio para superar a dor decorrente destes amores. Por meio de sua cenografia virtual,
a montagem mergulha o espectador na abstração do vórtice a que conduz a alucinação
do ópio, junto com o ator que dança no ar, suspenso por dois fios cenotécnicos. Este
recurso possibilita ainda a queda de Jean Cocteau do alto de um edifício, ilusão
promovida pela relação entre os movimentos do ator, no ar e as imagens do vídeo,
projetadas atrás dele -um travelling vertical de janelas de um prédio que se sucedem
uma à outra.

É no jogo entre os diferentes elementos da cena que se estabelecem as espacialidades
evocadas. A imaginação do espectador é motivada pelas imagens poéticas que se
configuram em cena. A partir do real, é estimulada a função irreal do psiquismo, para
que o espectador complemente as imagens sugeridas pelo palco, como a vertigem do
personagem que despenca do alto de um prédio, ou a alucinação proporcionada pelo
ópio. Há nestas sugestões, uma espacialidade interior, relacionada à vertigem, à
sensação do espaço, mais do que sua ocupação objetiva. Lepage parte de um espaço
real, para sugerir a sensação ou emoção que vive o personagem naquele momento -
paixão, alucinação, queda – convidando a plateia a adentrar este jogo de (sua própria)
intimidade.

A cena da alucinação é tomada por uma grande espiral virtual, que transporta
personagem e espectador do mundo físico para o subjetivo – o outro lado da tela
cenográfica. Gaston Bachelard, ao tratar da dialética entre o exterior e o interior no
que chama de 'língua filosófica' (2008, p. 217), afirma que

O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A
metafísica mais profunda está assim enraizada numa geometria
implícita, numa geometria que – queiramos ou não – espacializa o
pensamento; se o metafísico não desenhasse, seria capaz de pensar?
Para ele, o aberto e o fechado são pensamentos (BACHELARD,
2008, pp. 215-216).


Podemos estender seu pensamento à poética cênica para pensa-la em termos
geométricos, em termos de desenhos que espacializam não o pensamento organizado,
mas sua abstração. A espiral de Lepage concretiza em cena este desenho, o ator nela
mergulha e a tela gira, de modo a fazer com que sua alucinação o engula, desapareça
com ele da cena e reste ao espectador apenas o espaço da imaginação, que completa a
espiral infinita. Voltando a Bachelard:

Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído
do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é
circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de
permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.

E que espiral é o ser do homem! Nessa espiral, quantos dinamismos
se invertem! Já não sabemos imediatamente se corremos para o
centro ou se nos evadimos. Os poetas conhecem bem esse ser da
hesitação de ser (BACHELARD, 2008, p. 217).

Como poeta da cena que é, Lepage transita entre o dentro e o fora do ser e, na
concreção de suas espacialidades internas e externas, nos conduz por estes caminhos
do ser apaixonado de seu Agulhas e ópio.

A espiral, assim como outras formas geométricas, volta à cena em Geometria dos
milagres (1998), que aborda a relação de mestre e discípulo, bem como de
conhecimento e organicidade, através do encontro entre o arquiteto Frank Lloyd
Wright e o espiritualista Giorgi Ivanovich de Gurdjieff. Nesta montagem, as formas
são geometrizadas através do desenho dos corpos no espaço, explorando tanto os
movimentos físicos propostos por Gurdjieff, quanto os da biomecânica de Vsevolod
Meyerhold. Arquitetura e corpo, teatro e espiritualidade se encontram em cena, por
meio da geometria miraculosa de Lepage que espacializa círculos, quadrados,
triângulos, espirais e linhas paralelas (formas que nomeiam os quadros do espetáculo),
para transitar no imaginário do dentro e do fora, do aprendizado e da criação, da
transformação interna, à revolução social.


Etéreas fronteiras

Em entrevista a Rémy Charest, Robert Lepage conta que quando esteve no Japão,
antes de montar Os sete afluentes do Rio Ota, seu primeiro impacto, que muito lhe
inspirou na montagem do espetáculo, foi justamente o da percepção do espaço, por
seu uso otimizado e pela necessidade de transparência de seus limites: “O Japão é um
país feito de papel de arroz - as paredes das casas são literalmente feitas disto - então,
fronteiras são sempre um pouco etéreas, enevoadas: elas são feitas de ar” (LEPAGE in
CHAREST, 1999, p. 38, tradução livre).

Em contraposição à imensidão territorial canadense, e a sua consequentemente baixa
densidade demográfica, Lepage se defrontou com um país altamente populado, onde o
valor do espaço toma novas dimensões:

os japoneses vivem em apartamentos do tamanho de lenços, o que
significa que eles têm que criar um espaço interior considerável,
infinito. No Canadá, o espaço é concreta e obviamente disponível;
nós temos potencial para desenvolver um espaço interior, mas não
tendemos a isso, dado nosso condicionamento, devido a nossa
percepção espacial (idem, p.39).

Essa distinção cultural, Lepage também identificou no interior do teatro, pelas
diferenças comportamentais entre os atores japoneses e os ocidentais; enquanto estes
aproveitam os intervalos para conversar sobre diversos assuntos, os japoneses
“refugiam-se em si mesmos”, numa espécie de tempo ‘privado’: “Todos os atores têm
seu local pessoal marcado na sala de pesquisa para o qual eles voltam durante os
intervalos. Abordá-los é invadir seu espaço pessoal” (ibidem).

Em Os sete afluentes do Rio Ota, a influência dessa percepção é notória. A ideia da
peça surge de “sete caixas, sete afluentes, sete portas de correr
japonesas” (FOUQUET, 2006, p.251, tradução livre). O formato cênico concretiza
esta ideia: uma grande caixa, retangular, com portas de correr, que se abrem a uma
multiplicidade de pequenos espaços ao longo das sete horas de duração do espetáculo,
que aborda desde os dias que se seguem ao bombardeio de Hiroshima, em 1945, até
os anos de 1990, apresentando personagens que viveram as consequências da bomba,
o holocausto, a epidemia da AIDS.

A ocupação espacial, nas cenas que se dão no Japão, segue a lógica oriental de
otimização do espaço por meio de transparências e uso de poucos objetos, para causar
a sensação de amplitude dentro de pequenas áreas. Assim, a fachada da casa das
personagens Nozomi e Hanako, em Hiroshima, é feita de portas com moldura de
madeira e papel de arroz. Estas portas correm para os dois lados, revelando, na
profundidade do palco, os três ambientes da casa (dois quartos nas pontas e uma sala
ao meio). À frente, a menção (verbal e recorrente) a um estreito jardim de pedras
provoca o imaginário do espectador a completar este ambiente. Há uma fronteira
física entre o dentro e o fora, estabelecida pelas portas. O espaço externo é sugerido à
imaginação do espectador pelas palavras descritivas das personagens. O espaço
interno é paulatinamente revelado, conforme abrem-se as portas.

Bachelard, em sua topoanálise da casa, aborda o espaço habitado como um espaço de
proteção do eu. A casa é um espaço de intimidade, de memórias, que “retém o tempo
comprimido” (2008, p. 28). O Prólogo de Os sete afluentes do Rio Ota apresenta
Hanako, personagem que tem deficiência visual em decorrência da bomba de
Hiroshima, ainda menina, vendada, na casa de sua mãe. No último quadro da peça,
voltamos à mesma casa, onde ela se recorda onde estava, no momento da explosão da
bomba:

HANAKO – Eu estava lá, perto do rio. Você pode escuta-lo? O que


amo nesta casa é que ela fica justamente onde o Rio Ota se divide
em sete afluentes. Meu irmão decidiu vende-la (LEPAGE et al.,
2002, s/p, tradução livre).

A casa como o habitat da memória. A venda da casa como seu esfacelamento.


A venda, nos olhos, remetendo à impressão da última memória visual da
personagem. A privação da vista reconstituindo o espaço da memória visual
que ela guarda da casa. E, como afirma Bachelard (2008, p. 33): “(...) para
além das lembranças, a casa natal está fisicamente inserida em nós. Ela é um
grupo de hábitos orgânicos”.

A ideia da intimidade, estritamente ligada à casa natal, é retomada por
Bachelard, quando devaneia sobre gaveta, cofres e armários. Se Lepage faz do
palco uma grande caixa com pequenas caixinhas que se abrem, dentro destas
caixinhas, são iluminados segredos que se revelam por suas momentâneas
transparências. As imagens do segredo de Bachelard são devaneios de
intimidade, que na cena de Os sete afluentes do Rio Ota, se concretizam na
ocupação dos espaços de intimidade.

Quando a casa de Hanako se transforma na pensão em Nova York, não é mais a
intimidade da casa natal que está em jogo, mas a intimidade que se estabelece
pela divisão do espaço coletivo, em outra situação de moradia: transitória, que
aproxima desconhecidos. A caixa luminosa da casa japonesa, que revela sombras
íntimas, quando fechada, transforma-se (pela abertura das portas) na pensão norte-
americana, que apresenta dois quartos, à esquerda e à direita e o banheiro coletivo ao
centro. Nele, todos os hóspedes se encontram, em diferentes cenas, ocupando, cada
um, um local (o vaso, a pia, a banheira). Este coletivo serve também de espaço para o
ensaio da banda de alguns hóspedes, que se dá de madrugada, incomodando os
demais. Este espaço do banheiro, tão íntimo, é o local em que todos se encontram,
mesmo sem ter a menor intimidade.

Há uma diferença, dada pela cenografia e pelo uso que se faz dela, na ocupação
espacial oriental e ocidental, que se estende ao comportamento das personagens e à
relação que estabelecem entre si. Se a ideia de transparência e a projeção de sombras
(silhuetas dos personagens) predominam nas cenas que se dão no Japão, revelando os
contornos de uma intimidade que não poderia se dar à vista direta do público, em se
tratando de personagens cuja cultura valoriza este espaço interno, uma certa
privacidade ou reserva, o contraste com o barulho e a proximidade entre os corpos nos
Estados Unidos da América, evidencia as diferenças entre as relações que em cada um
dos lugares se estabelecem. O encontro entre personagens das duas diferentes culturas
também sublinha o contraste entre elas. Na cena em que o jovem canadense Pierre
chega na casa de Hanako, em Hiroshima, ela, gentilmente, vai lhe mostrar o quarto
que ele alugou, o que provoca no hóspede uma frustração em relação às expectativas
que criara, provavelmente num acordo feito à distância:



HANAKO – Aqui é o quarto.
(Pierre, surpreso, deixa cair seus sapatos, depois entra no quarto,
onde deixa sua bagagem)
PIERRE - É isso?
HANAKO - Sim, são dois tatamis
PIERRE - Desculpe-me, eu não estou entendendo direito.
HANAKO - Dois tatamis... um, dois.
PIERRE - Dois tatamis ! Oh ! Eu achei que fossem dois quartos
com tatamis.
HANAKO - Dois quartos? Não, é um quarto com dois tatamis. Não
te agrada?
PIERRE - Não, não, não...Sim! É... íntimo.
HANAKO - Então, vou deixar você dormir. Boa noite! (idem)

Outro exemplo marcante desta diferença comportamental é comicamente ilustrado na
cena em que a canadense Patrícia entrevista Jana Capek, nascida em Praga e tornada
monja budista que passa a morar em um templo em Hiroshima:

JANA - Sabe, às vezes é preciso abandonar tudo, para tudo obter...
Eu comecei a praticar o zen quando vivia em Paris. Nesta época, eu
fazia tudo com excesso: o amor, a arte, a política, eu estava em
todos os combates. Eu era uma mulher em cólera. O zen entrou em
minha vida e pela primeira vez, eu conheci um pouco de silêncio, e
eu senti que talvez eu tivesse encontrado, enfim, aquilo pelo que eu
buscava tão desesperadamente (idem).

Esta sua relação com o silêncio é contraposta à impaciência de Patrícia: no momento
em que sua equipe precisa de silêncio para gravar o som ambiente, ela, querendo
fumar no templo, fala sem parar, explicando todos os motivos ideológicos pelos quais
abandonou os cigarros franceses Gauloises, e finalmente, cede impacientemente à
quietude verbal:


PATRÍCIA - Nós não terminamos tudo, de fato, agora vamos fazer
aquilo que chamamos de som ambiente (...), é para a montagem, nós
podemos precisar disto na montagem, trata-se simplesmente de
gravar um minuto de silêncio (tempo). Isso não será muito difícil
para você ! (...) Você está pronto, Régis? Vamos? (à Jana). Então,
agora, basta fazer silêncio por todo um minutinho... (Jana ficará
perfeitamente imóvel durante a gravação de som, enquanto Patrícia
gesticulará e fará todos os tipos de sinais para Régis) (idem).





Portas, quadros, cosmos

Fouquet (2006) identifica um pensamento cinematográfico na encenação de Lepage,
como se o palco se configurasse como uma tela cênica, em que se operam princípios
de enquadramento e edição. As portas, então, potencializam a ideia de
enquadramento, ao viabilizar o recorte de um quadro dentro de outro, que é
emoldurado pela caixa cênica. O palco fica também dividido em dois (a frente e o
fundo, o fora e o dentro, o visível e o invisível), possibilitando a simultaneidade entre
diferentes cenas, emolduradas pelos limites que cada porta define. Assim, cenas de
fundo se dão simultaneamente a cenas de frente, revelando paroxismos entre o interno
e o externo, fazendo com que vários quadros vivos possam ser assistidos ao mesmo
tempo.

Há, na visão espacial de Lepage, uma concepção arquitetônica que elabora o espaço
segundo sua plasticidade e sua funcionalidade, dando-lhe uma mobilidade orgânica. O
espaço é tornado, assim, um antagonista ou protagonista da cena, em seu jogo com o
ator. Formas geométricas (uma tela retangular, uma caixa quadrada etc) estão sempre
amparando luz, sombras ou projeção e sua mobilidade (dada pelas imagens em
movimento que recebem, ou pela própria mobilidade cenotécnica) contracena com os
atores, criando uma cena viva em que as transformações espaciais se dão à vista do
espectador, como parte do jogo espetacular. A espacialidade de Lepage estabelece,
portanto, sugestões para o campo da imaginação do espectador, ao relacionar o espaço
da ação à atmosfera subjetiva vivenciada pelos personagens.

O recurso das portas, já explorado em Os sete afluentes do Rio Ota, aparece também
em A face oculta da Lua, possibilitando modificações espaciais, através do
movimento cenográfico, que remetem à espacialização objetiva dos personagens
(interna ou externa, para lá ou para cá da porta), sugerindo, muitas vezes, um
movimento subjetivo, do dentro para o fora, ou vice versa. Apresentando a visão
cosmonauta da personagem Philippe, a peça nos conduz de seu percurso acadêmico
sobre o tema, à elaboração de um vídeo sobre a vida no planeta para ser transmitido
ao cosmos. A descrição espacial que Philippe faz de seu apartamento para o vídeo que
produz é predominantemente subjetiva, partindo de suas sensações em relação a seu
modo de viver, pleno de espaços vazios que ele vai revelando, conforme abre as
portas de sua casa, para o registro.

A dimensão do imaginário do personagem também é espacializada em cena, por meio
do flutuar de um pequeno boneco cosmonauta que nos leva a um espaço cósmico,
onde não impera a gravidade. O espaço é dado pelo vazio, preenchido apenas pela
movimentação leve e quase onírica do boneco. O ventre materno também é poetizado
em cena, através da projeção do interior da máquina de lavar em que o protagonista,
seduzido pela semelhança entre sua abertura e a janela de uma espaço-nave, adentra,
extraindo dela o pequeno boneco, a ela ligado, pelo cordão umbilical. A pequena porta
da máquina de lavar nos conduz ao imaginário de Philippe, aos sonhos que mobilizam
e conduzem sua ação.

O grande espelho, que representa a mesa do bar, não só contextualiza espacialmente a
cena, mas reflete a imagem do protagonista que está acompanhado apenas de si
próprio, como que conversando consigo mesmo, seja quando fala ao bar man, seja
quando se dirige aos extra-terrestres, através de sua câmera autobiográfica. O
elemento do espelho tem esta dupla função cenográfica: representar o espaço externo
à personagem, bem como sua condição interna, solitária, à procura de si próprio.
Somos transportados assim, de um espaço físico a um espaço imaginário, ou
psicológico, de uma lavanderia, à face oculta da lua, onde podemos, como
espectadores, olhar para nós mesmos, no vazio. Ao final do espetáculo, durante a
dança em que Philippe flutua sonhando, é a plateia que o grande espelho reflete,
inserindo-nos nesse sonho pela conquista do cosmos.

O espelho também tem significativo papel na encenação de Os sete afluentes do Rio
Ota, e a ideia de reflexo como reflexão sobre si mesmo se presentifica em Vinci e
Elsinore. Em Vinci, o protagonista, em busca de sua motivação artística, encontra-se
com um guia (de um ônibus de tour londrino) que lhe sugere que olhe para o espelho
e, em caso de enjôo, abra a janela. Para sua versão de Hamlet, Elsinore, Lepage parte
da ideia de que todas as personagens são como projeções do príncipe da Dinamarca.
O vídeo é utilizado para espelhar o ator (no duelo que executa entre Hamlet e Laertes,
por exemplo), mas também para refletir o suposto antagonista como projeção do
personagem em duelo consigo mesmo. Já em Os sete afluentes do Rio Ota, aparece
diversas vezes, seja como objeto que não se pode mirar, no caso de Nozomi e Hanako
(a mãe, devido ao estrago estético que a bomba causou em seu rosto, e a filha, pela
cegueira nata que herdou de suas consequências), seja como reflexo de si mesmo,
como no caso de Jana Capek que revê a história de sua infância em campos de
concentração através do espelho. O espelho simboliza a descoberta de si. Não
conseguir olhá-lo é não poder ver-se a si próprio, através dos olhos, essas janelas da
alma. Mira-lo, é descobrir-se, no reconhecimento da própria história e da própria
alma. Ao duplicar, o espelho singulariza. O uso espacial do espelho, por Lepage
expande a subjetividade dos personagens, para além do espaço físico, no espaço
composto pelo imaginário do espectador.

A teatralidade de Robert Lepage explora e verticaliza as possibilidades de significação
e poetização do espaço para completar-se no imaginário do espectador, em seus
próprios devaneios. Ela se estabelece no jogo com o espectador, através do jogo
proposto no palco, entre os diversos elementos da cena que vão compondo os
diferentes espaços, seja de representação, objetivos ou subjetivos, pelos quais
transitam os personagens. Os elementos da cena se hibridizam no palco para
suscitarem a imaginação e o devaneio do espectador.







Referências:

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BARONE, Luciana Paula Castilho. Sete Afluentes para Robert Lepage. Tese de
Doutorado. Campinas, Instituto de Artes, 2007.

CHAREST, Remy. Connecting Flights: Robert Lepage in conversation with Remy
Charest. New York: TCG Books, 1999.

FERNANDES, Sílvia. “Teatralidades Contemporâneas” in Teatralidades
contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2010.

FOUQUET, Ludovic. Robert Lepage - L’horizon en images. Québec : Éditions Les
400 coups, 2006.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.

LEPAGE, Robert. Vinci. VHS, gravado no Théâtre Repère em 11/1986. (duração: 59
min). Arquivos Ex-Machina.

_____. La Trilogie des Dragons. VHS, gravado em 18/07/1992. (duração: 4h
aproxim). Arquivos Ex-Machina.

_____. Geometry of Miracles. DVD, gravado em 12/01/1999 na Brooklyn Acad. of
Music. Arquivos Ex-Machina.

_____. Les Sept Blanches de la Rivière Ota. VHS, s/r (duração : aproximadamente
6h). Arquivos Ex-Machina.

_____. Les Aiguilles et L’Opium. (avec Robert Lepage), VHS, s/r (duração : 1h
16min). Arquivos Ex-Machina.

_____. Elseneur. (avec Robert Lepage) VHS, gravado em 12/09/1996 (duração: 108
min). Arquivos Ex-Machina.

_____. La Face Cachée de la Lune (avec Robert Lepage), DVD, gravado em
03/2002 em Ottawa, (duração: 2h 19min). Arquivos Ex Machina.

L E PA G E , R o b e r t ; B E R N I E R , E r i c ; B I S S O N N E T T E , N o r m a n d ,
BLANKESHIP,;Rebecca; BRASSARD, Marie; DANEAU, Normand; FRÈCHETTE,
Richard; GIGNAT, Marie; GOYETTE, Patrick; VINCENT, Ghislaine; LIMONCHIK,
Macha; BIBEAU, Gérard. Les sept branches de la Rivière Ota. Versão atualizada
em 2002. Quebec: arquivos Ex Machina.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
CARTOGRAFIAS DA CONDUÇÃO DE UM PROCESSO CRIATIVO NA RUA:
REFLEXÕES DO TRABALHO DE AMIR HADDAD E PETER BROOK
Luiz Eduardo Rodrigues Gasperin1
Narciso Laranjeira Telles da Silva2
O escrito inicia um processo de cartografar os procedimentos e métodos de se conduzir
um processo criativo para a rua. Ao começar o estudo um personagem surgi na escrita, o
alterbiografico seu João-Coveiro, ele será o responsável por desenterrar os estudos de
alguns encenadores, para traçar as primeiras pistas e construir hipóteses, problematizando
a figura do encenador em criação cênica, para o espaço rua, as relações que se estabelecem
com a cidade e as formas de guiar seus atuadores. Neste em especifico, pretendo realizar
um estudo do trabalho cênico de rua, dirigidos por Amir Haddad, diretor do grupo Tá na
rua, através de seus escritos e relatos de direção de atores. Atravessado a ele, os estudos
de direção do encenador Peter Brook, suas inquietações e seus escritos para a encenação.
Problematizando a intuição amorfa e os métodos utilizados nos ensaios abertos, deixando
que os atores tragam os materiais para dar início ao processo criativo.
Introdução
Mãos repletas de calos e roupas cheias de terra; um cheiro estranho de velas
queimando, um silêncio sepulcral. Sou João-Coveiro; sim, estou em um cemitério, lugar
de trabalho, e onde escavo na busca por detritos de processos criativos.
Com a minha principal ferramenta apoiada nos ombros, minha pá, ando nas
primeiras ruas e avenidas que cortam a cidade do silêncio. Um ponto. Escavar;
Desenterrar; Trazer para fora o que está morto. Palavras, ditas, escritas, pensadas e
projetadas ao tempo. Amir Haddad e Peter Brook, dois condutores de processos criativos,
convergências, movimento involuntariamente psicologizado, a intuição. Quando começo
a trabalhar numa peça, parto de uma intuição profunda, amorfa, que é como um perfume,
uma cor, uma sombra. (BROOK, p.19, 1994) Aberto as experiências, deixando
especifico, que o trabalho de condução deve ser movido por essa ação, gerando afetos nos
encenadores, atores, como em todos que estão envolvidos no processo criativo.
Neste sentido, Amir Haddad, tendenciosamente no fim dos anos 60, junto a outros
artistas, reinventam seus fazeres, provocando um novo olhar para a sala de ensaio e uma
liberdade nas encenações. Arremetendo a figura clássica do encenador, que pré-elaborava
toda sua produção, deixando que as pistas levantadas com os atores, sejam tidas como um
resíduo que constroem um fazer.
Rastros de Amir Haddad
Uma palavra salta da boca de um homem no meio da rua e reverbera em minha
ferramenta de trabalho. O teatro está morto! Viva o Teatro. (HADDAD) Desse ponto de
vista, estamos tratando de um material que se encontra estático, que existia vida, que
obteve uma energia. Que hoje está para ser revirado, por um mineiro de Guaxupé, nascido
em 1937, que se torna carioca após um tempo, por uma escolha, desejo movedor de

1
Mestrando em Artes-Teatro/UFU e Docente do curso de Artes Cênicas/UFGD
2
Pós-Doutor em Teatro/UDESC e Docente da pós-graduação em Artes-Teatro/UFU
situações e produções. Este homem chama-se Amir Haddad, desenvolve seu trabalho
junto ao grupo de atuadores do Tá na Rua, na capital do estado do Rio de Janeiro. Sua
trajetória vem sendo marcada, por lutas e enfrentamentos, de uma sociedade e de um
modo de fazer teatral. Sua produção interfere em um fluxo pensado para uma cidade
estática e neutra, movendo este lugar, desestabilizando as bases.
Quando você trabalha numa rua, numa praça, trabalha com toda a
estratificação social misturada; o nosso público deixa de ser
homogêneo e passa a ser heterogêneo, como era o público dos
gregos, dos romanos, da Idade Média, dos espanhóis, do
Shakespeare, do Molière. Voltamos a trabalhar toda a humanidade
e podemos, dessa maneira, refazer o espetáculo do mundo, e não o
espetáculo de um grupo social apenas. (HADDAD, 2009, p.213)

[Re]formar um pensamento e uma ação, manifestação, termo utilizado por ele,


que designa o ato teatral. Palavra preenchida de significados, como: expressão, revelação
ou fenômeno3. Citando um trecho de um dicionário que encontrei no bolso de um paletó
deixado em cima de uma sepultura.
O olhar de manifestação, possibilita uma evolução e quebra do ensaio como algo
que se repete, que cria ou é criado por um outro, e se torna afazer a mesma ação inúmeras
vezes, tornando-se parte dela. Ao contrário do que o encenador Haddad, propunha aos
seus atores, em Construção4, com o coletivo Comunidade, o ensaio propunha
desconstruções da linguagem.
A demolição de uma linguagem, de uma estrutura, de uma
arquitetura, de uma dramaturgia – e isso foi muito bom por que eu
estava ali naquele gueto, isolado, proibido, não podendo fazer
nada... Se eu não podia fazer nada, ia roer... [risos]. E fui roendo,
roendo, dando espaço pras minhas inquietações e trabalhando com
um coletivo totalmente voltado pra isso, disposto a encarar essas
coisas. ( HADDAD, 2009, p.191)

Fato de ruir com as convenções de um teatro clássico feito até o momento, sinaliza
um movimento gerado pela repressão da época, um espetáculo experimental, definição
para a Construção. Sendo este o primeiro detrito encontrado na condução de um processo
criativo para rua do encenador Amir Haddad. Parafraseando o autor, um cozimento das
ideias.
Rastros de Peter Brook
O encenador Peter Brook, londrino, nasce em 1925, inicia sua carreira artística
com dezenove anos de idade, um fazer que experimentava ações e linguagens, uma
contracorrente do espaço-tempo em que estava habitando, em seus escritos encontro um
resíduo que pode ser um possível ponto de revelar quem o era.
A única concepção de que o diretor precisa - e deve descobri-la na
vida, não na arte – vem como resposta ao seu questionamento sobre
o sentido de um evento teatral no mundo, a sua razão de ser.
(BROOK, 1994, p.23)

Um evidente entrecruzamento de vida e arte, um jovem que parte de questões


movedoras de ações, movimentando o pensamento da figura de um condutor de teatro.
Em resposta à uma carta, ele escreve: O senhor se torna diretor dizendo que é diretor e
3
Extraído: dicionário de filosofia/Nicola Abbagnano, 5ªed. Martins Fontes, 2007.
4
Texto de Altimar Pimentel (1959) encenado pelo Grupo Comunidade em 1968-1969, sendo proibido
pela censura, mas encenado como improvisações.
convencendo outras pessoas que isso é verdade. (BROOK, 1994, p.33) Na afirmativa
escrita por ele, reflete-se no sujeito ativo escrito por Focault, um homem responsável por
seu espaço no mundo.
Ponto de partida do saber moderno, o Homem é concebido como
sujeito ativo, autor de seu próprio ser, seja destinado à revolução, à
liberdade ou à conquista da natureza. É no interior de um projeto em
que seu ser deve se realizar que o Homem se revela como sujeito,
construindo-se a si próprio. É no interior do projeto que os
obstáculos à realização do Homem deverão ser analisados, como
outras tantas figuras de sua finitude: a alienação, a morte, o
inconsciente. (BRUNI, 1989, p. 200)

O seu trabalho conduzindo processos criativos presava na liberdade do ator, em


demonstrar tudo o que podiam para uma ideia gerada na sala de ensaio. Investigando,
experimentando, aprofundando estados e relações entre atores e o encenador. Formando
uma grande quantidade de material, que seria usado ou não em uma montagem.
Utilizando da posição daquele que se encontra fora da cena, para deixar ou jogar o
material levantado no processo, neste caso, Peter Brook.
O diretor, por seu trabalho prévio, pela sua função e também em
virtude de sal intuição, está em melhor posição para dizer, nessa
altura, o que pertence à peça e o que pertence aquela superestrutura
de entulho que todos carregam consigo. (BROOK, 1994, p.21)

Na relação entre ator e encenador, o evento teatral, como dizia o encenador Brook,
por conter não apenas imagens, ou mesmo, formas, o que estaria acontecendo no palco,
seria único e experienciado naquele momento, por aqueles atores e por aquele espectador.
Surgindo como um estalo a ideia de deixar tudo claro, sem sombras e a utilização do
tapete como palco e cenário. A ação acontece sem decorações, desvinculada de toda a
maquinaria disponível, ela ocorre naquele momento, para os que ali estão.
Rastros de um encontro
Dois caminhos se misturam, encontros não marcados, vividos e escritos, no
desenterrar da intuição. De um lado as palavras descritas e registradas por Amir Haddad,
em entrevistas, em processo com atores; e de outro a escrita de Peter Brook, que traça
seus pensamentos e procedimentos com palavras.
Ambos declaram não haver uma técnica, mas sim, técnicas, plurais e diversas,
construídas juntas ao ator, constituídas entre provocações da figura que ora se encontra
dentro da cena, ora fora dela. A sala de ensaio, local de trabalho, suor, torna-se um campo
de criação coletiva e individual, cada um, se encontra livre a propor. Propondo ao teatro,
uma arte coletiva, feita por indivíduos. (HADDAD, 2009, p.203)
A sala de ensaio se transforma em um espaço de verdade e improviso, perdendo o
caráter repetitivo, ganhando uma energia de experiência total, entre e sobre a proposta do
coletivo. Uma cidade vai sendo construída, com ruas, vielas e avenidas que são
provocadas pelo condutor aos atores, dando autonomia para o sujeito e abrindo para
deixar se provocar e ser provocado, em todos os sentidos que são possíveis. A coragem
proposta, desperta no ator o descarte do que pra ele é supérfluo, editando seus gestos e
ações e condensado cada estado. Percebido na latência, do que está presente e do que não
está e não pode ser encontrado no trabalho.
Uma relação possível e proposta por Amir em Agamenon de fazer da sala de
ensaio, um espaço para o ato espetacular, abrindo a atmosfera criada para o espectador,
colocando-se em risco, e liberto ao erro. O encontro acontece no local, onde se pode errar,
se pode transitar, pode voltar, sair quando quiser, e todos os materiais se encontram neste
meio. Para elucidar este encontro abro uma página, encontrada dentro de um sapato velho,
que estava jogado por aqui.
Então abri o espetáculo em forma de ensaio: era uma coisa que
deixava os atores tensos, porque não tinha nada feito. Havia todos
os papéis, os atores conheciam a peça inteira, ela estava decupada,
cortada, do jeito que os atores quisessem. Cada sequência, um ator
assumia, se ele quisesse. Tínhamos ali uns elementos: as roupas, por
exemplo. Se ator botava aquela roupa, significava que ele queria
fazer o papel tal, e então todo mundo trabalhava com ele pra dar
aquilo. E mais: outro ator podia pegar um manto, uma capa e jogar
pra ele fazer o personagem, o que era uma sacanagem; mas tinha
gente que fazia isso [risos]. (HADDAD, 2009, p.196)

Neste especifico trabalho o condutor de todo processo, se encontrava em cena,


transformando o lugar da manifestação em um grande playground. Para o período do
ensaio espetáculo, rompia com os conceitos de palco, plateia, bastidor, camarim, uma
mistura de tudo que envolve uma encenação. Hoje, ele afirma que seu trabalho nasce
dessa fusão como um treinamento para seus atores. Tudo permanece em aberto, e para o
público o evento ocorre naquele preciso instante: nem antes nem depois. (BROOK, 1994,
p.25)
Registrando os rastros
Utilizo agora, de um termo médico, aprendi através do contato com eles no meu
trabalho, a arte da necropsia, um procedimento que consiste em examinar um cadáver.
Pistas, rastros e detritos foram sendo encontrados nos caminhos que cortam está cidade
do silêncio. Muitos deles, necessitam de um trabalho maior e de uma escavação mais
profunda. Dessa forma, junto o que foi exumado, para rascunhar um possível registro
dessa intuição na condução de um processo criativo. Não tenho estrutura para montar uma
peça, porque trabalho a partir daquela sensação amorfa e informe, e daí começo a me
preparar. (BROOK, 1994, p.19)
Formas que se constrói no durante, atravessamentos que surgem do contato entre
outros corpos, uma preparação que conduz em direção a ideia. Vão se desenhando
rabiscos, sentimentos, personagens, gestos, objetos, que podem ser apagados ou
potencializados durante o ensaio. Nesse momento a intuição começa a tomar forma nos
encontros, e salta da terra como um fator determinante sendo algumas delas excluídas no
continuar.
Em uma condução precisa e clara, tanto para quem está como encenador, como
também para quem atua, por esse motivo, a problematização do fazer e de procedimentos
para se chegar a direção da ideia são para uma vida inteira. Buscando por respostas, que
serão reveladas no encontro e na ação proposta. O estimulo integra esse pensar que deve
ser gerado em todo o momento para que o potencial oculto, seja descoberto,
[re]descoberto e intensificado no coletivo.
De acordo com a ideia corrente, a função do diretor é tomar os vários
meios ao seu dispor – luz, cores, cenário, figurinos, maquilagem,
bem como texto e interpretação – e utiliza-los conjuntamente, como
se fossem teclado. Combinando essas formas de expressão, criaria
uma linguagem diretorial peculiar, na qual ator seria apenas um
substantivo, um substantivo importante, mas dependente de todos
os outros elementos gramaticais para ter significado. (BROOK,
1994, p.34)

Uma concepção de teatro do todo, lançando-se na construção com várias mãos,


onde todos têm seu espaço de sujeito no trabalho. Inviabilizando um foco maior em uma
figura, mas clareando todos os detritos encontrados e os juntando parte a parte. Desta
intuição que surgi, do instante, do encontro, no encontro, um caminho que se soma e
produz uma obra de arte, ou um outro.
Referência Bibliográfica
BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais. Tradução
de Antônio Mercado e Elena Gaidano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
BRUNI, José. C. O Sujeito em Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo,
1989.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3ª Ed. Trad. A. F. Cascais e E. Cordeiro,
Lisboa, Vega, 1992.
PEREIRA, Victor Hugo A.; LIGIÉRO, Zeca; TELLES, Narciso. Teatro e dança como
experiência comunitária/organização. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

AUTOMÁKINA - UNIVERSO DESLIZANTE

Márcio Silveira dos Santos; (Aluno especial Doutorado) UDESC.

A presente pesquisa consiste na análise, um olhar em recortes, sobre a


reverberação do espetáculo/instalação “Automákina – Universo Deslizante” do
Grupo de Teatro De Pernas Pro Ar, da Cidade de Canoas – RS, durante a realização
de uma apresentação no Largo Glênio Peres, na Cidade de Porto Alegre – RS, dentro do
Projeto de circulação: “De Porto em Porto”, contemplado com o Prêmio Funarte de
Teatro Myriam Muniz, executado no verão presente ano. Bem como um estudo inicial
sobre a relação da recepção entre espetáculo-ator-plateia e o espaço da rua.

A título de informação completa, cabe citar aqui que o projeto desenvolvido pelo
grupo consistiu na sua totalidade, na realização de dez funções por cidades portuárias
dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, culminando com uma exposição:
Mostra fotográfica e vídeo documental na sede do grupo, chamada de “Inventário”. Este
projeto também fez parte das ações comemorativas de 25 anos do grupo fundado por
Luciano Wieser e Raquel Durigon.

Foi à segunda vez que assisti ao espetáculo, em busca de um segundo olhar


sobre o prisma desta obra artística inquietante e instigadora. Segundo o grupo, o
espetáculo trata de uma questão pertinente a todos os homens de todos os tempos: "a
arte da sobrevivência". Há uma linguagem hibrida que mescla o teatro de bonecos com
seus personagens autômatos fazendo uma metáfora a existência humana, o virtuosismo
das técnicas circenses e a poética do teatro de rua. Sem dúvida alguma o trabalho
transcende esta questão da sobrevivência-existência, não só pelo trabalho do ator, em
atuação solo, Luciano Wieser, mas também pela estética, uma poética de sublimação
que estabelece uma comunicação imediata com o espectador/público.

O Público

Observo a chegada de um menino-espectador desavisado, ele leva um susto-


surpresa ao dobrar a esquina do Largo Glênio Peres com a Avenida Voluntários da
Pátria. Segurando firme a mão de seu pai aproximam-se da parafernália maquinal do
estranho mundo do Duque Hosain’g. Seu olhar se estende para o alto, o pequeno
extasiado contempla o gigante universo móvel de ferro-fios-flor-pele-plástico-poesia-
etc-etc-etc..........(retinas esticadas)............ que aos poucos vai identificando alguns
objetos na busca de um entendimento do todo, de uma explicação do que é e por que
está ali tudo aquilo que sobrepostos desconhece. Ele muda o olhar em direção ao pai e
pergunta: “Pai o que é isto?” E o homem, que deveria naquele mesmo tempo-esticado
na memória de ambos, maquinando no entendimento e assimilação, ou no agarrar dos
neurônios catando algo que lhe fosse familiar para responder a si e ao pequeno filho,
que talvez tivesse entendido mais que ele, responde: “Ah! Sabe o filme Edward Mãos
de Tesoura?” (pausa) “Tipo isso!” O menino se desloca do olhar do pai e se espraia
novamente no olhar do Duque e sua portátil e móvel casa-montanha-sótão-solidão-
sobrevivência-jardim-esculturas; mas ainda permanecem marcado na face do menino-

1
espectador alguns pensamentos interrogativos: “mas onde estariam as tesouras dele?”. É
perceptível que seu conhecimento de mundo, e ampliação de novas possibilidades, já
adquiriu horizontes outros.

Interessante destacar o que Paulo Balardim coloca a cerca do viver no espaço


coletivo com a rua e as transformações neste convívio,

Viver num espaço coletivo, do qual somos partícipes no cerne de seu


funcionamento social, mobiliza uma dimensão experiencial do humano que
constrói ativamente os lugares físicos e simbólicos. O homem lê e produz
sentido em suas relações sensíveis com o meio; pela razão, projeta e constrói o
seu entorno. (...) As interações humanas que se estabelecem no lugar habitado
modificam a percepção desse mesmo lugar. O diálogo entre sujeito social, as
dinâmicas coletivas e individuais e a conjuntura espacial são capazes de ressoar
no ambiente bem como em seu repertório de uso, transformando-os.
(BALARDIM, 2011:52).

Esse cruzamento do cidadão citadino com um espetáculo teatral que reconfigura,


recompõe o espaço urbano, promove outro patamar de interação social e fruição
estética. Tanto na relação ator e espectador, como também na estrutura de relações
entre os espectadores, onde um colabora com o outro na compreensão do que presencia,
diante do desafio estético que o espetáculo provoca-proporciona.

A atitude do espectador no evento teatral, seu interesse em se lançar no embate


estético, efetiva-se, assim, primordialmente, a partir do desafio estabelecido
pelas proposições artísticas com que se depara, e que podem ser dinamizadas
por procedimentos pedagógicos de mediação, que aprofundem seu
conhecimento da linguagem teatral, intensifiquem seu diálogo com a obra e
agudizem formulações estéticas. (DESGRANGES, 2010: 176).

E nesta mediação entre o espetáculo e o espectador e a cidade, está o ator; figura


central na condução do evento em curso. Vejamos um pouco sobre o ator no
Automákina – Universo Deslizante.

Wieser – Um ator pós-dramático (?)

Importante salientar o trabalho de ator neste espetáculo. O Duque Hosain’g é um


desses personagens que vivem em nosso inconsciente, deriva de muitas influências de
seu criador, quase um alterego do inquieto Luciano Wieser. O Duque, aliás, parece ser
primo de outro personagem seu, o genial Lançador de Foguetes, dois distintos e
inesquecíveis da galeria de personagens do teatro de rua gaúcho, sem dúvidas. Mas
como sabemos, esta capacidade de composição é uma das características de grandes
atores. Wieser desenvolve ao longo de menos de uma hora, uma atuação catalisadora, e
diria mais profundamente: uma complexa rede de ações/ partituras. O que leva a refletir
se seria, assim, ele, um ator pós-dramático? Conceito muito discutido ultimamente, e
Matteo Bonfitto colabora na busca de uma possível resposta.

O ator pós-dramático deve possuir competências que transitam entre o teatro


dramático, o circo, o cabaret, o teatro de variedades, o teatro-musical, o teatro-
dança, e a performance, dentre outras manifestações que compõem o continuum
das artes cênicas ou performáticas. (...) Deverá saber reconhecer

2
pragmaticamente a diferença existente entre os processos de produção de
significado e os de produção de sentido. (BONFITTO, 2009:93).

Sua atuação é constituída de um amplo leque de linguagens artísticas que


acumulou-vivenciou em sua trajetória. Um circense, malabarista, bonequeiro, menestrel,
“cantator”, rueiro, performer. Há a presença de elementos do teatro de formas animadas,
através dos bonecos “autômatos” (máquinas que se movem por meios mecânicos, que
imitam movimentos humanos), além do impagável boneco-escultura da “vaca voadora”
no topo da máquina; outro detalhe a destacar são os seres/bonecos, a imagem e
semelhança de seu criador, que pedalam maquinando o funcionamento da estrutura
gigante medindo 6,0 m de comprimento, por 7,0 m de altura. Também há o lado
circense onde brinca com acrobacias no interior da máquina. Em certo momento chave
do espetáculo, Luciano anda de pernas de pau, ou de mola, também conhecida como
“Skyrunner” produzindo certo impacto ao sair da máquina para recolher com suas
tarrafadas, um pouco de DNA para sua obra que perde força. Encaminhando para um
poético e sanguíneo final, que resplandece junto ao desabrochar de uma linda e gigante
flor autômata.

Em certo momento há uma cena em que o Duque, ao colocar um véu negro


(chispa de luto!) e emitindo gritos de lamentos diante da possível tragédia em percurso,
se transforma num ser andrógeno, se torna Pai e Mãe de sua criatura. Situação/condição
típica dos estranhos doutores da ficção como o marcante Dr. Frankenstein ou outros
seres híbridos que o cinema já nos revelou. O Duque-duquesa ressalta o feminino dentro
de qualquer criação, que não se destina só a parir e criar, e sim possui um papel de
grande importância para manter, entre outras questões, o equilíbrio vital nas estruturas
do conhecimento e relações sociais. Esse feminino avoluma o desesperador sentimento
de proteção do criador, de pai/mãe da criatura, um pedaço da síntese de nossa condição
humana.

O fato de o personagem sair do interior da “mákina-útero” e ganhar outros


espaços-energias junto ao público conduzem ao rompimento do até então, como
informado no programa/cartaz impresso, “mundo impenetrável” do Duque Hosain’g,
pois é esta interação, embora rápida, que estabelece uma conexão vital, e um novo
fôlego ao universo deslizante e incerto do Duque. Possibilitando um novo ponto de
vista, a partir de uma reorganização do olhar daquele espectador citadino que no
amontoado de significados da obra também pode estabelecer novos sentidos na sua
apreciação estética. Há uma “fratura espacial”, que segundo Josette Feral, “é uma
mudança de posição, uma tomada de atitude frente ao espetáculo, o que provoca a
percepção de uma intencionalidade no ato do performer, fazendo brotar o elemento
teatral, a teatralidade, a qual se descola da cotidianidade”. (FERAL apud Balardim,
2011: 54).

Um desenvolvimento mais profícuo desta relação público-ator provoca uma


espécie de micro catarse que alavanca para o poético final. Há uma sútil curva-ápice na
encenação, tudo está lá na síntese presente e circundante de um mobile em formato de
DNA, estruturado por arames fixados a um caniço gigante que gira em torno de toda
estrutura cenográfica.

3
A Mákina e a Espacialidade

Wieser transforma seus devaneios criativos em realidade, através de uma


excepcional metalurgia - arte de purificar e transformar os metais - comparável, e sem
nada a perder em qualidade/efeito, as maquinarias de grupos faraônicos da Europa. A
“mákina” enquanto cenário é indiscutível sua funcionalidade, mas a cidade com seus
edifícios de ecléticas arquiteturas ganha um novo significado e também provoca na
encenação outra dinâmica.

Sabemos que todo cenário, ou quase todo, deve ter função no espetáculo. No
teatro de rua este cenário é constituído não só pelo cenário afirmado pelo grupo como
também a cidade passa a ser cenário, o local onde se efetua a apresentação. Não importa
o tipo de espetáculo, seja ele em deslocamento, de invasão, de roda parada, arena ou de
outras formas inventivas de ocupação do espaço público, a cidade continuará sendo
parte do cenário. E esse cenário fixo possui outra função, pois a maioria dos edifícios
são departamentos de vendas, setores comerciais e bancários, com suas finalidades
outras e que devido a isso tem ocorrido grandes intempéries no fazer teatral de rua. Um
cerceamento do espaço público.

A cidade com seu complexo fluxo de ruas, praças, parques, largos e avenidas é
forçada a esquecer do humano que ali circula. Os espaços da cidade estão focados cada
vez mais para o comércio, para o consumo desenfreado, perdeu seu caráter de domínio
público de espaço e “patrimônio da coletividade”. Pois,

Nas últimas décadas, em um contexto de fluxos globais, o espaço público é


considerado o lugar das oposições – carros x pedestres, estacionamentos x
espaços livres, mobiliário urbano x pedestres, painéis publicitários x
perspectivas panorâmicas -, do vazio, do afastamento do convívio social, do
perigo e da violência, do distanciamento entre arquitetura e cidade.
(ALBERNAZ, 2007: 42).

No caso do “Automákina – Universo Deslizante” é um pouco diferente, pois o


“espetáculo-instalação” tem duração de nove horas. Neste período, os transeuntes que
perderam a apresentação com o ator, podem conferir uma outra apresentação; a máquina
fica ali exposta para fotografias-filmagens, para perguntas ao grupo e apreciação dos
olhares curiosos e hipnotizados, seja qual for o tempo disponível, todos podem conferir
um pouco destas nove horas. Exaustas horas, por que Luciano, mais a
produtora/figurinista/maquiadora Raquel Durigon, o diretor Jackson Zambelli e mais
cinco integrantes do grupo: Arthur F. Côrtes, Odair F. de Souza, Tayhú D. Wieser, Txai
D. Wieser e Vitor Brasil, montam, monitoram, registram por fotos e vídeos, desmontam
tudo. Uma espécie de acampamento/ocupação no local durante o dia inteiro da função.
Esta ocupação de nove horas com teatro de rua, resignifica o espaço da cidade, rompe
com os códigos e situações hierarquias no cotidiano, o que amplia as possibilidades de
retomar os espaços públicos enquanto espaços de convívio social.

O teatro de rua, como manifestação não hegemônica propõe novas zonas de


conflito a busca de situações em que a rua reconquiste ou reforce sua
característica de lugar (Augé), isto é, seja um âmbito de convivência social que
supere a superficialidade do universo do consumo, rompendo, ainda que
momentaneamente, com a lógica pragmático do sistema de mercado.
(CARREIRA, 2007: 37-38)

4
O “espetáculo/instalação” enquanto intervenção transgressora de longa duração
provoca durante nove horas uma nova ordem para a rua, reestrutura a dinâmica da
cidade, reformula o deslocamento do pedestre que por vezes se transforma em
espectador.

Camada estética

O Cenário móvel, a “mákina”, ou um triciclo gigante constituído de universos


alternativos, está repleto de parafernálias recolhidas por Wieser e Durigon por muitos
anos. Conseguiram dar cabo ao que é praticado pela maioria dos artistas: juntar coisas
sem saber o real destino, um acumulo de sucatas ou lixo que em certo momento
precisamos urgentemente descartar. O resultado aqui neste caso é a ótima reutilização-
transformação de materiais, agregados a uma pesquisa ousada e inovadora de um grupo.

Hoje os trabalhos do grupo mostram nitidamente que suas inovações estéticas


propostas são fruto de um acumulo de 25 anos de empenho e trabalho. O resultado neste
espetáculo não poderia ser outro que não um aparato cênico impar em qualidade visual e
sonora. A estrutura gigante constituída de ferro, em sua maioria, dialoga com o espaço
da cidade. Há uma profusão de texturas em relação aos prédios, por exemplo, o
espetáculo utiliza as estruturas de concreto e aço ao redor como moldura da encenação.
É possível perceber que o local escolhido possui em seu bojo arquitetônico um conjunto
de prédios em estilo “art noveau”, estilo esse que teve seu ápice na virada do século
XIX para o século XX, muito presente em prédios como, por exemplo, o Chalé da Praça
XV, localizado a quinze metros da encenação. Esta parte do centro da cidade estabelece
uma relação/conexão com o cenário, figurinos e adereços do espetáculo caracterizado
em sua totalidade pelo “steampunk”, estilo também próximo a estética da virada do
século XIX.

Há no “Automákina” uma proximidade de estilos estéticos; há a elaboração de


uma “camada estética” constituída pelas mãos de Raquel Durigon, há o seu toque
peculiar no visual do todo. Durigon criou de forma exemplar figurino e adereços
conectados-imbricados com o visual do “espetáculo – instalação”. O efeito produzido
pelo figurino, misto de steampunk-gótic-bizarre com as vestes de alguém que lida com
ferro-graxa-solda, um figurino ferroso que remete a muitas referencias e servem como
uma luva as movimentações do ator dentro da “Mákina”. Um figurino e maquiagem
funcionais que na cena já citada do véu, causam imagens impressionantes no topo da
estrutura. Em tempo, sobre o gênero Steampunk, eis breve elucidação:

Gênero derivado da ficção científica. Trata-se de obras ambientadas no passado,


no qual os paradigmas tecnológicos modernos ocorreram mais cedo do que na
história real (ou em um universo com características similares), mas foram
obtidos por meio da ciência já disponível naquela época. Um exemplo é o
universo de ficção cientifica criado por autores consagrados como Júlio Verne
no final do século XIX. (Fonte: Wikipédia).

Outro destaque de reverberação neste “ambiente” criado pela encenação é


música original, composta por Jackson Zambelli – também diretor do espetáculo - em
parceria com Claudio Veiga. Uma trilha executada ao vivo com efeitos de som
mecânico e instrumentos construídos pelo grupo que enriquecem a estética do
espetáculo. Aqui a trilha dialoga com os sons locais, não só nos ritmos e tons musicais

5
variados do agudo ao grave, como também no sistema de ampliação sonora dentro da
estrutura da “mákina”. O espaço urbano, centro da cidade neste caso, possui seus ruídos,
por exemplo, vê-se no entorno: um terminal de ônibus, muitas lojas com vendedores
anunciando em alto-falantes, grande circulação de automóveis no estacionamento ao
lado e o burburinho característico dos transeuntes no Largo Glênio Peres. A cidade está
viva e neste complexo sonora das ruas o espetáculo deve dialogar, sem perder suas
características de transgressão no cotidiano, com a cidade e seus cidadãos.

Há também um fio condutor de entendimento, uma linha dramatúrgica


compreensível no trabalho, se soubermos diferenciar e aglutinar as várias dramaturgias
presentes: a do ator, do diretor e das cenas. Poderá ocorrer um “não entendi” ao
espectador desacostumado a ver artes de rua e poderá passar dias juntando os caquinhos
de entendimento a partir do seu próprio conhecimento referencial. Pois há uma polifonia
de dramaturgias, sons, cenas, que o diretor, com mão precisa, deixa fluir para que
desperte o que de mais significativo possa aflorar na mente do espectador. É possível
assim, para aquele transeunte que só pode ver metade, ou menos ou mais, ter uma ideia
do que viu e potencializar uma assimilação do essencial daquilo que o grupo quis trazer
para a rua com seu trabalho-acampamento-ocupação do espaço público.

O espetáculo “Automákina – Universo Deslizante” é um compêndio de possíveis


interpretações e análises; é coerente ao seu tempo e dialoga com a vida que escorre
pelas ruas.

Referências

ALBERNAZ, Paula. Reflexões sobre o espaço público Atual. (in) Espaço e Cidade:
Conceitos e Leituras. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. (orgs.).
Rio de Janeiro: Editora 7 Letras. 2ª edição, 2007.

BALARDIM, Paulo. Microdramaturgias no ambiente urbano. (in) Teatralidade e


Cidade. Carreira, André. (org.). Florianópolis: Ed. da UDESC, 2011 (Cadernos do
Urdimento; n.1)

BONFITTO, Matteo. O Ator Pós-Dramático: Um Catalisador de Aporias?. (in) O Pós-


Dramático – Um Conceito Operativo?. Guinsburg, Jacob. Fernandes, Silvia. (orgs.).
São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

CARREIRA, André. Teatro de rua: (Brasil e Argentina nos anos 80): uma paixão no
asfalto. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.

DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo: Editora Hucitec,


2010. (2ª Ed).

LUFT, Celso Pedro. Dicionário de Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 2010.

De Pernas Pro Ar. De Porto em Porto. Programa/Cartaz da Circulação. Canoas, 2014.

6
Sitios: (consultados em Junho de 2014)

www.grupodepernasproar.com.br

www.wikipédia/Steampunk

7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
A IRRUPÇÃO DO REAL NO ESPETÁCULO “OS PEQUENOS BURGUESES”

Marco Antonio de Oliveira1 (PIBIC: Iniciação Científica)2; Orientador: André Luiz


Antunes Netto Carreira3; Universidade do Estado de Santa Catarina.

O teatro contemporâneo tem, cada vez mais, forçado os limites entre o campo da
ficção e da realidade, da representação e da apresentação, através de procedimentos que
se mostram como uma possível alternativa para atualizar o teatro no tempo presente. Tal
confronto do teatro com a realidade tem gerado inúmeros questionamentos e
possibilidades de pesquisa acerca dessas práticas que intentam envolver no simulacro
teatral elementos provenientes da realidade.
É a partir dessa perspectiva que analiso a construção e a experiência de
apresentação do espetáculo laboratorial “Os pequenos burgueses”4 processo
desenvolvido pelo grupo ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação
Artística5, coordenado pelo professor Dr. André Carreira, do qual participo enquanto
ator e pesquisador, além das práticas de atuação a partir de estados, pesquisa central em
andamento no grupo, que também foi o eixo da construção de “Os pequenos
burgueses”. Proponho-me aqui a investigar quais os elementos reais estão contidos
nesse procedimento de criação artística laboratorial, além de investigar as implicações
da presença do real em uma montagem cênica.

Um: cruzamentos entre a realidade e o teatro


É certo que a questão da verossimilhança e também o conceito de mímesis
trabalhados por Aristóteles conferem ao teatro uma relação íntima com a realidade
desde as teorias mais antigas. Também ao longo da história os criadores teatrais se
posicionaram de maneiras distintas frente ao real: correntes estéticas como o realismo e
o naturalismo buscavam representar de maneira fidedigna a realidade em cena, em
contraponto com as vanguardas artísticas do século XX, que buscavam se relacionar
com o real não pela representação do mesmo. Mas o que ainda mantém essa discussão
tão presente nas pesquisas teatrais contemporâneas? Certamente as transformações
culturais que se dão através da história deslocam a questão e exigem um novo
posicionamento do teatro em relação à realidade. De acordo com o pesquisador José
Sánchez:
A criação contemporânea não esteve alheia à renovada necessidade de
confronto com o real que se tem manifestado em todos os âmbitos da cultura
durante a última década. Essa necessidade tem dado lugar a produções cujo
objetivo é a representação da realidade em relatos verbais ou visuais que, não
por restringir o representável ou assumir conscientemente um determinado
ponto de vista, renunciam à compreensão da complexidade. Mas também a
iniciativas de intervenção sobre o real, seja em forma de atuações que
intentam converter o espectador em participante de uma construção formal
coletiva, seja em forma de ações diretas sobre o espaço não delimitado pelas
instituições artísticas (SÁNCHEZ, 2007, p.9).

Destaco, a partir desse fragmento, que a relação e a intervenção sobre o real,


bem como a busca por uma construção de realidade compartilhada entre atores e
espectadores que almeja produzir uma experiência são demandas da cultura de nosso
tempo, o que justifica as inúmeras investigações apontando para procedimentos
estéticos que envolvem o real em cena. Sánchez (2007) reconhece a vasta produção de
documentários como um sintoma da necessidade cultural de confrontação com o real.
Compreendo o conceito de experiência a partir de Jorge Larrosa Bondía: “em português
se diria que a experiência é ‘o que nos acontece’” (BONDÍA, 2002, p.21). De acordo
com Bondía, para que uma experiência nos aconteça, é necessário:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer
um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÍA, 2002, p.24).

Sobre os apontamentos de Jorge Larrosa Bondía, ressalto a questão dos tempos


atuais como empecilho da experiência. Mas de fato quais foram os acontecimentos que
exigiram uma nova mirada do teatro sobre o aspecto da realidade? Destaco dois
importantes acontecimentos. O primeiro deles é o advento da fotografia e do cinema,
que problematizou a pintura e o teatro enquanto representações do real. O teatro entra
em crise visto que seu funcionamento é ineficaz como forma de reprodução da realidade
diante da invenção do cinema. De acordo com Óscar Cornago:
Desde o aparecimento do cinema e logo a televisão, os criadores mais lúcidos
reconciliaram o teatro com sua inevitável carga de falsidade. Seu efeito de
realidade se deslocou à verdade do mecanismo, ou seja, a realidade que
adquire o processo de representação, o jogo visível de situações, fingimentos
e enganos (CORNAGO, 2005, p.12).

Como forma de reação, o teatro busca na sua própria especificidade uma


potência criadora, expondo seu mecanismo e escancarando a materialidade da cena em
contraste com a camada ficcional.
A segunda questão de bastante importância que modificou o posicionamento dos
artistas teatrais em relação à realidade é a crise do real na sociedade contemporânea.
Sobre a manipulação e crise do real, Sánchez afirma:
O auge do documentário, sem dúvida, não é mais que uma das faces de um
fenômeno que tem sua outra face nos televisivos ‘reality shows’ que
prolongam e democratizam um fenômeno mais antigo: a imprensa da fofoca
e a imprensa sensacionalista. A confusão de realidade e ficção se mantém
nesse tipo de programas mediante a indução de realidades artificiais, somente
concebidas para sua conversão em espetáculo, e mediante a espetacularização
do privado que perpetua a suplantação da realidade histórica (coletiva) pelo
real (individual) quase sempre insignificante (SÁNCHEZ, 2007, P.9).

A arte trataria de se opor a essa espetacularização da realidade, que enfraquece a


potência real dos acontecimentos sociais, e se coloca radicalmente como lugar de
possibilidade de experiências reais, como maneira de evitar o torpor causado pela
espetacularização da vida:
Jean Baudrillard descrevia a cultura contemporânea como uma fábrica de
imagens com as quais já não se pretende representar a realidade, uma
indústria que haveria provocado, por reação ao desvanecimento do real, uma
espécie de arte do imediato, da experiência vivida, da realidade crua
(SÁNCHEZ, 2007, p. 12).
Dessa maneira, a arte se coloca no plano da experiência, da vivência do real, que
paradoxalmente tornou-se escasso fora do campo das artes.
O desvanecimento do real e o surgimento do cinema forçaram um novo olhar
sobre a realidade para os artistas de teatro, e é dentro dessa perspectiva que atualmente
estão problematizadas as relações do real no teatro. Mas no acontecimento teatral,
como, de maneira prática, se dá a presença do real?

Dois: o real na cena teatral


Dado o contexto e as problemáticas contemporâneas que o teatro enfrenta em
relação à realidade e o posicionamento que os artistas teatrais têm tomado, me dedico
agora às aplicações práticas do real em cena. Segundo André Carreira, existem “(...) três
tipos de ações relacionadas com o real e o teatro: representação da realidade;
compreensão do real; intervenção sobre o real” (CARREIRA, 2011, p.334). A
representação da realidade relaciona-se a correntes estéticas como, por exemplo, o
realismo, e segundo a pesquisadora Julia Elena Sagaseta: “Real/realidade e realismo não
são sinônimos. O realismo é uma construção artística da realidade” (SAGASETA, 2008,
p.1). A compreensão do real se dá quando o acontecimento teatral é abertamente
construído a partir de elementos reais, o que envolve a realidade como tema – teatro
autobiográfico, teatro documental – ou como risco real que é compactuado entre
espectador e ator. A intervenção sobre o real é justamente o jogo que se estabelece entre
o nível ficcional a abrupta irrupção de algum elemento real. A esse respeito, Sánchez
discorre:
A representação da realidade é, com efeito, um problema muito distinto ao da
irrupção do real. (...) Sem dúvida, em muitos casos, a apresentação do real
não é mais que uma desculpa, mesmo uma armadilha, quando do que se trata
é precisamente de renunciar a uma construção de eventos significativos, ou
seja, de uma realidade compartilhada ou possível de ser compartilhada. Se o
reality show é a cara feia do documentário, a proliferação do trivial é uma das
dimensões de preocupação pelo real que pode acompanhar o esforço para
construir a realidade. (SÁNCHEZ, 2007, p.10).

Destaco a importância dada por Sánchez da utilização do real em cena com um


propósito maior: a criação de uma realidade compartilhada: a geração de uma
experiência que acontece mutuamente ao espectador e ao ator, sem a qual a utilização
do real torna-se somente um estilismo. Julia Elena Sagaseta problematiza a seguinte
questão: “Que ocorre se não se informa ao público que é um ciclo que se trabalha com o
real, como assistiriam os espectadores à obra?” (SAGASETA, 2008, p.3).
No espetáculo “Os pequenos burgueses”, a análise que faço se relaciona com a
irrupção de elementos reais em cena. Sobre a irrupção do real, Sagaseta afirma: “Mas a
situação se faz diferente quando não se pretende esconder a cena, se mostra a
teatralidade e de imediato irrompe o real” (SAGASETA, 2008, p.1) e Sánchez:
A irrupção do real na cena dos vinte, tinha, pois, um efeito contrário ao que
Antoine buscava mediante a utilização de móveis ou alimentos reais em suas
obras: não se tratava de reforçar o efeito de realidade da ficção dramática
representada, se não de melhor mostrar a distância entre qualquer ficção e a
realidade do teatro (SÁNCHEZ, 2007, p. 97).

Ressalto na fala de ambos sobre a irrupção do real o elemento relacional: a


ficção em contraste com a realidade, produzindo um jogo em que o elemento de
concretude do teatro – corpo do ator, materialidade dos objetos cênicos e do espaço –
não pode ser omitido em função de uma ficção, ao passo que ainda assim o nível
ficcional não deixa de existir.

Três: o que de fato é real?


Tenho discorrido até o momento nesse artigo sobre a relação do teatro e a
concepção contemporânea de realidade, além de adentrar nas três possíveis formas de
utilização do real em cena. Mas, de fato, o que é real? Cabe interromper o fluxo do texto
para delimitar o recorte daquilo que chamo de real em cena. Para essa tarefa, utilizo o
Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes:
real (lat. medieval realis, de res: coisa) 1. Que existe, que diz respeito às
coisas, aos fatos. Oposto a fictício, ilusório, aparente. Ex.: poder real, ameaça
real. Que pode ser objeto de nossa experiência, de nosso conhecimento.
Oposto a imaginário. 2. Em um sentido metafísico, distingue-se o real, aquilo
que existe por si mesmo, autonomamente, da *idéia ou da *representação que
formamos dessa *realidade. Distingue-se ainda o real, existente, do real
possível, ou seja, aquilo que existe em um momento determinado daquilo que
contém a *possibilidade de existir (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).

Utilizo, da acepção acima, o caráter de oposto a fictício, ou seja, para ser real, é
necessário estar antes de qualquer aspecto imaginativo, como uma ficção, por exemplo.
Para ser real, deve-se ser em materialidade. Além disso, destaco que, segundo o
Dicionário Básico de Filosofia, para ser real, deve-se ser um objeto passível de se obter
uma experiência. Essa acepção certamente pode ser relacionada ao conceito de
experiência de Bondía, o que reforça a ideia de Sánchez de que uma grande questão da
utilização do real no teatro se relaciona com o compartilhamento de uma realidade
passível de experiência por parte da audiência e também dos atores. Faço então uma
provocação: seria possível, então, afirmar que se o fazer teatral não acontece para o
espectador enquanto experiência, ele não deve ser chamado de real?
Encontro também, no Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, o termo realidade
cênica:

Onde se situa a realidade cênica ou teatral e qual é seu estatuto? Desde


Aristóteles se reflete sobre essa questão sem que se tenha encontrado uma
resposta definitiva e segura. É que, nesse caso, somos vítimas da ficção* e da
ilusão* teatral nas quais se baseia nossa visão do espetáculo. (...) Que
percebemos de fato em cena? Objetos, atores, às vezes um texto (PAVIS,
1996, p. 325).

Pavis propõe que a realidade dos elementos teatrais está presente na maquinaria
teatral, “[...] único objeto que não tem valor de signo [...]” (PAVIS, 1996, p. 326), nos
objetos, atores e texto em suas materialidades, antes de qualquer agregação prévia de
sentido. Portanto, entendo que a presença do real em cena se instaura na materialidade,
antes de um esquema de construção de sentido anterior ao acontecimento cênico. A
partir dessa delimitação – real é aquilo que é concreto, passível de se obter uma
experiência, que não tem prévio valor de signo – posso enfim adentrar no processo de
“Os pequenos burgueses”.

Quatro: o que há de real na atuação a partir de estados?


Após o panorama da relação contemporânea do teatro com o real, passo às
práticas do grupo de pesquisa ÁQIS. A principal pesquisa desenvolvida no grupo
atualmente é a atuação a partir de estados. Sobre isso, utilizo o relato da atriz
pesquisadora Ligia Ferreira, ex-integrante do grupo de pesquisa:
[...] uma interpretação que nascesse a partir de estados emocionais, na qual o
ator pesquisa em si formas para atingir determinado estado, sem a
intervenção prévia de um texto, de uma situação dramática ou de uma
personagem. A ideia básica era produzir o estado, buscando os estímulos
corporais necessários para que se pudesse criar um mapa dessa energia no
corpo (CARREIRA; FORTES, 2011, p.17).

A atuação a partir de estados parte de estímulos físicos ou emocionais que


possam deslocar de alguma maneira o corpo do ator, produzindo um nível de
acontecimento real, que é induzido concretamente no corpo do ator, se distanciando de
uma representação a partir da imitação de acontecimentos. Nesse sentido, a atuação a
partir de estados aproxima-se da leitura de mímesis de Aristóteles feita por Denis
Guénoun (2004), que propõe encarar a mímesis como mímesis práxeos, colocando em
evidência a ação de representar e não somente a representação de uma ação, conforme a
leitura mais simplória da mímesis. De acordo com Guénoun: “[...] a mímesis é ao
mesmo tempo representação de ação e ação de representar” (GUÉNOUN, 2004, p.20).
Entendo o estado, portanto, como a ação concreta que é preciso executar durante a
representação.
Portanto a atuação a partir de estados é um dos elementos reais que estão
presentes no trabalho do grupo de pesquisa ÁQIS, visto que algum acontecimento real
deve ser produzido para que o estado esteja em ação, ou seja, alguma modificação
corporal deve realmente ser induzida, deslocando o corpo do ator do repouso e
produzindo uma alteração, seja na respiração, seja a partir de contrações ou
relaxamentos musculares. Essa proposição de atuação pode ser entendida a partir da
concepção de teatro performativo, proposto por Josette Féral:
Essa noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de representação no
sentido mimético do termo. (...) É evidente que esse fazer está presente em
toda forma teatral que se dá em cena. A diferença aqui – no teatro
performativo – vem do fato de que esse ‘fazer’ se torna primordial em um
dos aspectos fundamentais pressupostos na performance (FÉRAL, 2008, p.
201).

A atuação a partir de estados coloca ator e espectador em relação muito mais


com o acontecimento teatral na sua execução da ação do que no nível de narração de
uma história – no caso, a dramaturgia de “Os pequenos burgueses” – colocando o
enfoque em uma questão concreta – a atuação – e, portanto, localizando a irrupção do
real que constantemente invade a cena ficcional proposta pelo texto. A atriz
pesquisadora Heloísa Marina, ao assistir ao espetáculo afirmou perceber que existe um
nível de acontecimento anterior ao texto, muito mais instigante do que o nível narrativo.

Cinco: outros elementos que irrompem à cena


A proposta do espaço teatral do espetáculo é também um elemento real que
irrompe a cena. O espaço, composto por móveis reais a fim de compor o ambiente de
uma casa, pode servir ao nível ficcional do espetáculo – uma casa de família e os
pensionistas dessa casa, ao mesmo tempo em que estão em sua concretude e não são
meramente ilustrativos: são elementoS de jogo para os atores na construção das cenas e
também servem de acomodação ao público, visto que não há divisão entre plateia e
atores.
A não marcação das cenas é também um elemento de risco real que coloca os
atores num nível de engajamento com o aqui agora e com a construção da cena, visto
que toda apresentação é sempre um jogo inédito de novas ações a partir de estados.
Visto isso e encarando os elementos sem um significado prévio como elementos reais
do teatro, aqui temos mais uma questão importante: cabe ao espectador formular,
através da performance do espetáculo, sua leitura, articulando signos que se dão
aleatoriamente em cena, o que proporciona ao espectador um lugar muito mais de
participante ativo do que de observador de uma cena fechada. Além disso, existe o jogo
real prévio à dramaturgia que se estabelece entre os espectadores e atores: se o ator
tocar no espectador, esse deve se levantar e se acomodar em outro lugar, pois o ator
quer utilizar o lugar do espectador. Essa regra de jogo coloca em risco e inclui o
espectador numa esfera de jogo real, concreta e inesperada.

Seis: conclusões acerca de se fazer um espetáculo em que o real irrompe


A imprevisibilidade real do jogo cênico propõe sempre que o ator esteja
engajado para produzir um nível de acontecimento, de experiência que seja possível de
se compartilhar com o espectador. A atuação que se distancia da imitação e se produz
no nível de um acontecimento real no corpo do ator cria um lugar de cumplicidade por
parte do espectador, de acordo com Carreira: “[...] existiria um gozo particular em
sentir-se testemunha de algo real, no pensar-se convidado a observar o que seria
proibido, isto é, alguns elementos da vida íntima do performer” (CARREIRA, 2011,
p.340). Além disso, o espetáculo “Os pequenos burgueses”, através da irrupção de
elementos reais, cria com o todos que estão presentes – sejam atores ou audiência – a
esfera de acontecimento compartilhado, jogo a ser jogado por todos, em que todos estão
de alguma maneira engajados nessa experiência coletiva.

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SÁNCHEZ, José A. Prácticas de lo real en la escena contemporânea. Madrid: Visor


Libros, 2007.

1
Acadêmico do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa
Catarina, ator e pesquisador integrante do grupo ÁQIS desde 2013.
2
Apoio: CNPq
3
Professor do Departamento de Artes Cênicas e PPGT da Universidade do Estado de Santa Catarina.
4
O processo de montagem não previa ensaios: os atores decoraram suas falas, e em laboratório eram
desenvolvidos os estados que seriam experimentados em cena. Não há marcações: as cenas são compostas
no momento da própria encenação. Adaptação de Otten Severonoe do texto homônimo do dramaturgo
russo Máximo Gorki, seu primeiro texto teatral escrito em 1901.
5
O grupo de pesquisa ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística é coordenado
pelo Professor Doutor André Carreira e é formado por estudantes de graduação, mestrado e doutorado e
ex-estudantes. Desenvolve atualmente a pesquisa Laboratório Interpretação por Estados dentro do projeto
Ambiente e Interpretação Teatral.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A PERFORMANCE ART E A CIDADE NA CULTURA DIGITAL

SCHIOCCHET, Michele Louise; (Doutorado /CAPES); André Carreira; UDESC.

Pode-se dizer que a performance art foi definida formalmente a partir de questões que apareciam já
em movimentos que datam o inicio do século XX, conectando-se à ideia de anti-arte ou com o que
Britta Wheeler chama de ideais de vanguarda, relacionando a produção artística com questões
sociais além de questionamentos à partir do próprio fazer artístico. Acredita-se que algumas das
questões trazidas pela performance art, dialogavam com invenções e indagações do campo da
tecnologia, sendo estas invenções bastante determinantes em modelar novas operações cotidianas,
alterando convenções e formas de produção artística ao mesmo tempo em que se alteram também
dinâmicas de produção de valor e formas de comercialização da arte. Sugiro aqui uma relação de
mútua influência, uma vez que a produção artística é também parte do entrelaçado de operações que
formam o espaço urbano constantemente.

Podemos dizer que em face desta dinâmica que inter-relaciona arte e contexto, o efeito social de
certas estruturações formais de trabalhos artísticos, pode ser constantemente reavaliado, uma vez
que estratégias propostas em um contexto cultural, podem ter efeito diverso em um diferente
contexto cultural. Embora a performance art tenha assumido diversas formas desde sua
determinação como tal, nos anos 70, todavia, algumas características continuam sendo
frequentemente associadas ao termo, como: a desmaterialização da obra de arte, o corpo como
mídia, a obra processo, dentre outras características que podem ser associadas à tentativas de
descomodificação da arte principalmente nos anos 60 e 70.

Quase em paralelo à delimitação da performance art enquanto linguagem, o site-specific também


aparecia na teoria da arte, segundo Miwon Kwon, por volta da metade dos anos 60 propondo
críticas institucionais semelhantes à performance art, negando os espaços oficialmente dedicados à
arte e reinserindo-a em relação ao universo cotidiano da rua. Esta busca pela aproximação entre
arte e vida cotidiana como forma de transformação social foi trabalhada anteriormente por artistas
diversos como os ligados ao Situacionismo e estava sendo abordada também pelos artistas ligados
aos Happenings e o Fluxus.

Se relacionarmos a performance art e a site-especificidade à mudanças sociais dos anos 60 e 70,


pode-se perceber que diferentes campos do conhecimento iniciavam a se entrelaçar com as
proposições destes artistas sendo a tecnologia um dos campos que trazia muitas inovações seja do
ponto de vista técnico que poético. Com tais mudanças, a própria noção de espaço inicia a ser
alterada, ampliando a noção de site a partir de fatores históricos, sociais ou mesmo a partir da
imaterialidade e do trânsito através de diferentes espacialidades. A site-especificidade passou
também a se modificar ao longo dos anos, gerando uma série de sub-termos, de acordo com as
transformações na noção de espaço advindas da contemporaneidade. Termos como site-determined,
site-responsive, site-oriented, site functional, dentre outros, surgem, respondendo ao modo como os
artistas buscavam dialogar com estes espaços. Embora sejam mencionados nesta pesquisa tais
termos, o termo site-specific será utilizado como um termo guarda-chuva que incorpora todas as
suas sub-divisões.

Robert Irwin é um dos artistas que escreveu sobre a site-especificidade, acreditando que a obra de
arte em lugares públicos deve partir de duas coordenadas primárias: "o ser e a circunstância",
devendo a obra estar 'em plena relação com o ambiente de onde retira sua razão de ser' (IRWIN em
STILES e SELZ, 1996, p. 572). Além de Irwin, diversos outros autores como Miwon Kwon ou
Gillian McIver descrevem desdobramentos do termo site-especificidade, partindo da relação que
estes estabelecem com o espaço sendo para Irwin, por exemplo, a obra site-dominant, reconhecida
pela técnica e conteúdo, baseando-se em princípios clássicos de permanência, ao passo que a arte
site-adjusted é feita em estúdio e eventualmente se adapta ao local para onde será transferida. A
palavra site-specific em si, para Irwin, refere-se a um tipo de arte que considera o site como fator
que define parâmetros para a realização da obra, inter-relacionando-a com seus arredores,
preservando, contudo um foco no trabalho do artista. A obra site-conditioned ou site-determined,
por sua vez, seria definida à partir do diálogo com o espaço, suas propriedades e níveis espaciais,
fazendo com que o processo de reconhecimento da obra rompa 'com as convenções da referência
abstrata de conteúdo, linhagem histórica, obra do artista, estilo, etc' (IRWIN, 1996, p. 572),
colocando o observador em contexto dando a ele responsabilidade de dar sentido à obra
(SCHIOCCHET 2011, p. 134). Gillian McIver traz o termo site-responsive, para tratar de algo que
parece ser semelhante à arte site-conditioned ou site-determined, descrita por Irwin, relacionando a
criação do trabalho, à relação destas obras com as diversas camadas espaciais de um determinado
espaço.

Na texto de Miwon Kwon `One Place after Another`, outros três desdobramentos do termo site-
specific são propostos, levando em consideração a dimensão do 'aqui-agora', a participação, os
atributos físicos do local, dentre outros fatores, evidenciando a impossibilidade de transposição de
uma obra idealizada nestas condições a uma outra espacialidade. A autora menciona o termo site-
oriented, onde os aspectos socio-culturais e políticos de um espaço se fazem mais relevantes que
atributos fisicos do local, sendo na articulação do discurso que a obra adquire propriedade. Miwon
cita também o termo arte site-functional, descrito por James Meyer, em sua obra 'The Functional
Site; or, The Transformation of Site Specificty'. Este tipo de obra mais do que caracterizar-se por
um espaço, é definido pelo deslocamento através de espacialidades, referindo-se também a formas
midiáticas e transmidiáticas. Este tipo de obra relaciona-se com noções de desmaterialização e
desterritorialização, fluxos e interatividade (MEYER 2000, p. 23-27)

Se pensarmos no modo como estas linguagens se estruturaram como uma tentativa de


questionamento do modo como a arte estava dialogando com os modos de produção do capitalismo
e sua influencia na vida cotidiana, é esperado que a transformação destes modos de produção e da
estruturação da cotidianidade venham a afetar não somente o discurso da arte, como sua expressão
material, da mesma forma em que se espera que a arte tambem proponha olhares e modos de pensar.
Em paralelo ao desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, e do processo que Debord
chamava de comodificação da vida social, o campo da tecnologia começou a trazer uma série de
inovações que vieram também a afetar seja a percepção e utilização do espaço, como as relações
sociais e cotidianas assim como também os próprios métodos de produção da arte, sendo possível
traçar alguns paralelos entre produção artística e pesquisas em tecnologia. Com estas invenções não
somente técnicas e modos de produção se alteram, como surgem novos olhares e posicionamentos
em relação a como a produção artística poderia contribuir para a transformação da sociedade e o
almejado 'direito à cidade'. É pertinente dizer que independente do uso direto de máquinas e
aparelhos tecnológicos, processos cognitivos, ou formas de pensamento provenientes de tais
invenções, se alteram, vindo a impactar o modo como obras artísticas são pensadas e concebidas,
sendo ao mesmo tempo iniciatívas artísticas, capazes de subverter usos programados de ferramentas
tecnológicas apontando também percursos possíveis em outras esferas sociais.
Embora muitos dos envolvidos em pesquisas e descobertas tecnológicas tenham sido financiados e
sejam ligados à pesquisas militares, existe uma produção textual em períodos como a década de 60,
que revelam o interesse de muitos destes pesquisadores em desenvolver métodos e formas de
comunicação e de relação sociais mais igualitárias. Vanevar Bush por exemplo ou Ted Nelson,
podem ser citados como figuras que de uma certa forma traziam ideais compatíveis ou
complementares aos dos artistas anteriormente mencionados. Ideias como o memex ou a escrita
hipertextual, podem ser vistos como tentativas práticas de estruturar relações sociais de modo mais
igualitário sendo o cidadão apto não só a acessar uma variedade de conteúdos e informações como a
participar ativamente no processo de produção do que Pierre Levy chamara de inteligência coletiva,
descrita em seu livro 'Cyberculture', originalmente publicado em 1997, traduzido para o português
em 1999. Estes projetos visavam não somente uma maior acessibilidade à informação como
também uma democratização no seu processo de produção.
Podemos dizer que existia de certa forma, uma interface entre artistas e cientistas sendo
concretizados textos, conceitos e eventos, como fruto desta colaboração evidenciando a mútua
influência de um campo no outro.
Se retomarmos algumas das características principais que todavia são associadas à performance art
como a desmaterialização na obra, a utilização do corpo como mídia, a participação ou a obra como
processo, é possível observar que tais princípios também se relacionam com inovações trazidas pelo
campo da tecnologia. A utilização de processos de composição que se utilizam de algoritmos, ou
hipertextualidade, por exemplo, também podem ser mencionados. Entretanto convém questionar de
que forma o efeito social do uso destas técnicas se altera desde os anos 60, provocando efeitos
diveros em um contexto contemporâneo. Se por um lado a desmaterialização e a participação
podiam ser relacionadas à descomodificação da arte e à relação direta e imediata desta com o
público, estes princípios podem também ser associados ao que vem a ser a interatividade e a
imaterialidade advinda de processos digitais, e a noções como de trabalho imaterial ou mesmo free-
labour. A hipertextualidade, em relação à ideias de inteligência coletiva, também pode ser
relacionada a uma tentativa de achatamento de hierarquias e intenção de criar reciprocidade nos
processos de produção de conhecimento e cultura, sendo entretanto pertinente questionar se a
utilização destes princípios efetivamente proporciona tal democratização do saber.
Embora durante toda a história da performance art, seja possível observar trabalhos de artistas que
propõem formas de resistência e alternativas aos modos de produção oficial, o que parece acontecer
desde a década de 70, como nota Britta Wheeler (Wheeler 2003 online), é que muitos dos artistas
envolvidos com a performance art parecem ter aos poucos investido em ampliar seu público,
buscando formas de subsistência financeira que por vezes acomodavam-se aos modos tradicionais
de produção artística. Com a intenção de estabilizar-se como linguagem, Wheeler sugere que os
artistas iniciam neste período a primeira das quatro fase do processo de institucionalização da
performance art que a autora descreve até os anos 2000 (Wheeler 2003 online).
Durante os anos 80, a pesquisa desenvolvida em espaços experimentais era financiada pelo governo
estado-unidense, fazendo com que, segundo Wheeler, o nome performance art passasse quase a ser
um termo genérico para uma série de experimentos diferentes, que entretanto pareciam em sua
maioria preservar o aspecto político e provocador, sem contudo apresentar uma grande quantia de
inovações formais, ou melhor dizendo, sem que a estruturação formal em si, fosse um dos principais
meios de questionamento, ao menos no contexto estado-unidense. Na virada dos anos 80 para os 90,
o financiamento dado a estas instituições é restringido enormemente sendo cancelada a modalidade
de financiamento para artistas individuais. A causa destes cortes fora a censura e repressão aos
temas e conteúdos trabalhados sendo os artistas: Karen Finley, Holly Hughes, John Fleck and Tim
Miller acusados de denegrir o conceito de arte, vindo estes a perder o financiamento que lhes havia
sido dado.
À partir da década de 90 com a popularização da internet e da computação pessoal, um novo
ambiente se cria, vindo a ampliar ainda mais o conceito de performance art, acentuando muito mais
seu caráter híbrido e intermidial, que seu aspecto político. Entretanto, o que parece acontecer a
partir do surgimento da rede e do digital, é que novas dimensões espaciais e formas de relação
parecem ter sido facilitadas, aumentando o acesso efetivamente à recepção e produção de
informação. Questões que já vinham sendo sentidas no campo da arte, como as mudanças nos
modos de produção e de atribuição de valor às obras de arte parecem emergir com mais força, uma
vez que as formas de produção de cultura iniciam a ser transformadas. Se por um lado existia uma
distinção entre cultura popular e cultura erudita, o fortalecimento de uma cultura pop ou de massa,
pode ser associada ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC's),
chegando por vezes a fazer com que a performance art se confunda realmente com a cultura pop. A
questão da reciprocidade, entretanto pode ser traçada como diferença principal entre a fase das
mídias de massa mais características da década de 80 e a fase das mídias digitais, popularizadas à
partir dos anos 90.
Embora o acesso à ferramentas e meios de comunicação tenha sido facilitado, este fator não implica
que a produção da cultura ou do espaço urbano, em decorrência, tenha sido democratizada de forma
consistente, pois novas formas de 'comodificação' ou regulação surgem deste novo modelo de
sociedade. Nota-se que o ciberespaço, embora esteja entrelaçado à epacialidade urbana, é
estruturado de forma diferente dos espaços geográficos, sendo relativamente independente destes ao
mesmo tempo em que é sujeito à imposições governamentais e a uma infra-estrutura material. Da
interação entre espaços definidos geograficamente e ciberespaço, resulta uma tensão, que ao meu
ver abre espaços possíveis de questionamento.
Como fora observado anteriormente com relação à performance art, pode-se notar que dentro do
campo da tecnologia também, iniciativas que foram antes atreladas à tentativas de democratização e
reconfiguração de formas de hierarquia e de produção social, iniciam a ser apropriadas pelo
capitalismo, alterando o efeito prático destas proposições. A ideia de imaterialidade, por exemplo,
inicia a ser associada à mudança nos modos de produção, com a transição do modelo fordista para o
pós-fordista, ou sociedade industrial, para a pós-industrial que inicia na década de 70, deixando de
representar uma impossibilidade de comodificação da arte, e passando ao invés a ser o próprio
modo de produção do capitalismo contemporâneo.
Termos como free labour e imaterial labour, iniciam a ser cada vez mais recorrentes na análise das
dinâmicas econômicas contemporâneas. A noção de free labour trabalhada por Tiziana Terranova
(Terranova 2000 online), trata do modo como o trabalho produzido por iniciativas ligadas à ideia de
economia colaborativa ou gift economy, como o open source vem sendo explorado por corporações,
sendo possível extrair lucro das atividades que são produzidas gratuitamente, principalmente na
internet. Uma destas formas de extração de lucro é a utilização de dados produzidos pelos usuários
da internet, através de sua movimentação cotidianas online, sendo estes coletados e vendidos por
data brokers para empresas que muito frequentemente utilizam estas informações para fins de
publicidade. Este tipo de dados são, entretanto, também usados como material para a produção de
visualizações, sendo utilizados como forma de produzir as mais variadas formas de estatística,
podendo ser inclusive baseadas em likes no facebook.
O trabalho imaterial, estudado por autores como Maurizio lazzarato, Antonio Negri e Michael Hardt
é associado à ideia de capitalismo cognitivo, ou affective labour, sendo responsável não só por
suprir uma demanda, mas também por criá-la, sendo este conectado à atividades de produção do
conteúdo cultural e informacional de uma comodidade, através de atividades envolvidas na
formação da opinião pública como a criação de modas e gostos. Neste tipo de produção, que
envolve a criação de valores, a subjetividade do indivíduo é o eixo central sendo este envolvido no
processo de produção antes mesmo da manufatura do objeto. O modelo pós-fordista pressupõem
que o produto tem de ter sido vendido antes mesmo de sua produção.
Neste tipo de sistema, nota-se uma fusão entre processos de produção cultural e processos
econômicos, sendo possível dizer que uma transformação no funcionamento da relação entre cultura
e economia, afetou principalmente os mecanismos de produção de valor. O conceito de 'rent' ou de
'capital simbólico coletivo', descritos por David Harvey, também são pertinentes a este tipo de
dinâmicas de inter-relação entre produção cultural e produção de valor econômico. Harvey
relaciona o conceito de rent (renda) à estratégia de extração de lucro através do monopólio privado
e direito exclusivo das condições para se obter uma comodidade, cuja qual é de alguma forma única
e irreproduzível. Este tipo de dinâmica pode ser observável nos processos contemporâneos de
gentrificação planejada, onde as estratégias de atribuição de valor ao território como único ou
irreproduzível, podem ser as mais diversas, inclusive a associação deste a atividades de economia
alternativa e principalmente à atividade criativa, que trariam uma atmosfera vibrante à localidade,
mesmo que estas manifestações tenham um tom contestador (Harvey 2012, p. 89-112).
Este tipo de estratégia vem sendo usada intencionalmente desde a década de 80, sendo os artistas e a
noção de criatividade, mais do que uma forma de contestar os processos de produção de valor da
sociedade capitalista, utilizados para elevar o capital simbólico coletivo daquela localidade,
elevando também o valor comercial dos imóveis. Neste sentido, podemos retomar a ideia de
trabalho imaterial como uma atividade produtiva, sendo neste caso, o trabalho dos artistas, um
trabalho que indiretamente, gera lucro.
Nota-se neste contexto, que o início do processo de institucionalização da performance art, coincide
com o momento em que a transição entre os sistema de produção industrial para o pós-industrial
inicia a acontecer, sendo necessário, a meu ver, buscar entender que tipo de modificações ocorreram
na relação entre cultura, tecnologia e economia, para que seja então possível repensar não só a arte
como de que forma ela pode atuar como questionamento social.
Se considerarmos este período como um período de transição, podemos dizer que cartografar estes
campos de estudos ou as interfaces entre eles, é um desafio que implica um questionamento também
metodológico, sendo a noção de conhecimento, neste contexto, um fluxo coletivo que não é mais
baseado no simples acúmulo de informações totalizantes ou em pontos de vista únicos e estáticos.
A questão posta aqui seria não somente se as novas tecnologias poderiam propiciar formas mais
democráticas de relações entre cidadãos e a cidade, mas também como as experiências da
performance art e da site-especificidade podem ser revisitadas à luz de uma sociedade
contemporânea em constante transformação. Com o desenvolvimento de mídias contemporâneas,
surgem formas colaborativas de produção de informação, documentação ou de estruturação de
pensamentos em relação a uma cultura que é definida por sua dinamicidade mais do que por
qualquer ponto em sua trajetória. Com a internet, a capacidade de conectar espacialidades, objetos e
sujeitos, e de resignificá-los, substitui o desejo de dar conta de um todo, sendo a intenção da minha
pesquisa, apresentar um percurso possível de interpretação.
Embora tenham sido mencionado processos de institucionalização da performance art, acredito que
artistas continuaram experimentando formas de expressão e de relação com o universo que os
rodeia, tencionando constantemente os limites desta técnica anteriormente definida. Este
tensionamento parece constantemente gerar novas expressões artísticas assim como obras que não
são encaixáveis sob nenhum tipo de linguagem, sendo muitas vezes inclusive atreladas a outros
campos que não o da arte.
A performance art é tida pela maioria dos autores que tratam do campo, como uma linguagem que
resiste a ser definida sob aspectos fixos, vindo a incorporar constantemente uma série de expressões
estéticas diferentes assim como de motivações artísticas diferentes, sendo muito difícil e
possivelmente um equivoco buscar definir uma só tendência para esta linguagem como um todo. O
que pode ser percebido, entretanto, é que muitas das características que definiram a performance
art da década de 70 como um movimento que propunha uma reação ao universo institucional,
como; a desmaterialização do objeto artístico, a noção de interatividade, dentre outras, passam, com
o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, a tornar-se inefetivas como modo de
questionamento, pois estes mesmos atributos parecem, ao contrário de uma crítica, o próprio
mecanismo econômico do capitalismo contemporâneo. Entretanto, como a própria cultura digital
parece propor ao menos potencialmente novas possibilidades de relações de poder, sugiro útil
buscar na interface entre performance e a cultura digital, possíveis formas contemporâneas de
estruturação de estéticas artísticas que parecem atualizar o questionamento trazido pela
performance art e pela site-especificidade no que concerne à relação que estas linguagens pareciam
buscar com o espaço urbano.
Diante deste fato, mais do que buscar definir a performance art ou a site-especificidade a partir de
suas motivações políticas dos anos 60 e 70, ou de seus atributos estéticos, me parece interessante
buscar individuar a partir das transformações seja das artes que do contexto social contemporâneo,
que tipos de manifestações estéticas e estratégias contemporâneas são utilizadas para investigar e
tencionar hoje, os limites entre arte e sociedade, propondo poéticas e questionando padrões a partir
das condições sociais contemporâneas.
A questão das especialidades contemporâneas pode ser aprofundada através de conceitos como os
de cibercultura, novas mídias e cultura digital tratados por autores como Pierre Levy, Arturo
Escobar, André Lemos e Lev Manovich, a fim de investigar como algumas invenções
contemporâneas como a rede e o digital afetam relações entre corpo, objeto e espaço, criando a
necessidade de repensar as formas de diálogo entre arte e cidade. A experiência urbana vem a ser
reconsiderada a partir da relação do ciberespaço com a cidade definida geograficamente,
considerando que as formas de estruturação destes níveis espaciais venham a se influenciar
mutuamente à medida que se percebe um crescente entrelaçar dos mesmo através de mídias
locativas por exemplo.
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Disponível em: http://www.jstor.org/stable/10.1525/sop.2003.46.4.491. Acessado em maio de 2014.
TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NO TEATRO DE RUA: ação comunicativa e
subjetividade no espaço público.
Michelle Nascimento Cabral1 (Bolsa Doutorado – CAPES; Orientador Antônio
Hohlfeldt; Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da FAMECOS;
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS).

1- Entre a vida e o discurso: o teatro de rua como mediador.

As primeiras elaborações teóricas sobre a arte de um modo geral a


relacionava com a capacidade do homem de criar a partir de sua subjetividade e
necessidade de explicação do mundo a partir dos mitos.

A história da arte tem mostrado, no entanto, que esta sempre esteve


imbricada com seu contexto histórico e não escapou, portanto, de suas implicações
político-sociais e econômicas ao longo dos séculos. O teatro, dentre todas as artes, por
sua própria constituição e especificidade em inter-relacionar outras artes em seu fazer
artístico, sempre ocupou espaço privilegiado na história cultural dos homens. A relação
do teatro com o universo subjetivo do homem há muito é conhecida. Suas origens mais
remotas já denotavam diferentes narrativas muito antes da criação do texto
dramatúrgico (BERTHOLD 2003), e em sua evolução através dos séculos sempre
esteve, ora institucionalizado, ora transgredindo a normatização e a lei. Esta
característica acompanhou o teatro em suas diferentes formas estéticas. O teatro de rua,
uma de suas formas mais antigas (pois muito antes do advento das cidades já percorria
os feudos, feiras e se adaptava a diferentes espaços para sua manifestação), esteve ao
longo de diferentes períodos históricos cumprindo um papel mediador entre a
organização social e a sua contestação.

Na Antiguidade foi um importante instrumento de controle social na


consolidação da Polis. No período medieval o teatro se misturou à festa popular para
sobreviver à perseguição da igreja, em meio ao povo descobriu seu poder de sátira e
contestação. No Renascimento o teatro tomou as praças, assim contribuiu para o
advento das cidades, na Modernidade retomou as ruas e superou guerras assumindo o
discurso político que sempre o acompanhou. Na atualidade, esta arte milenar se
transmuta, para disputar no âmbito da cidade o seu público, um público muitas vezes
hostil, num espaço fragmentado e assoberbado de informações.

Este breve relato da trajetória do teatro de rua visa apenas esclarecer que o
mesmo não é uma “arte nova”, que sempre esteve presente ao longo da história e das
relações do homem, sobretudo, nos momento de crise e perseguições, esta modalidade
teatral esteve em evidência, posicionando-se para além de suas raízes estéticas, como
também políticas, é o caso do Brasil no período ditatorial quando o teatro ganhou as
ruas para confrontar o golpe militar e reivindicar a liberdade de expressão. Esta
característica privilegiada do teatro de rua, em relação com o espaço da cidade é
instigante para nossas análises, no que se refere a pensar a relação público/imagem.
1
Michelle Nascimento Cabral (Michelle Cabral) é professora do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA, diretora teatral e pesquisadora de teatro.

1
Como se dá a relação a comunicação com o público passante e o espetáculo tendo nas
imagens ali representadas como a grande mediadora dessa ação comunicativa no espaço
público. Interessa-nos pensar como esta ação comunicativa se dá nas diferentes
narrativas (imagem/representação, encenação/discurso) e sobretudo esta interação com
o público da rua.
Esta força comunicativa, que encontramos no teatro de rua, é em muito
superior à interação que se dá na sala de espetáculo. A relação espetáculo e espectador
no teatro de sala, é mediada pelos rituais pré-instituídos entre ambos. Ou seja, há uma
preparação do público, desde sua saída de casa até sua chegada ao edifício teatral. Este
“contrato” estabelecido entre artistas e público, inclui a aceitação de um valor financeiro
(preço do ingresso) e do lugar onde se dará o espetáculo, como também está implícita a
aceitação do ritual da experiência artística, que compõe desde uma vestimenta de
“passeio” para o espectador, obedecer aos horários e o lugar na plateia, fazer silêncio e
aplaudir ao final.

No teatro de rua, estes procedimentos acordados entre plateia e artistas são


subvertidos. O teatro de rua poderá ser convocado previamente (KOSOVSKI 2001),
contudo, em geral chega de assalto tomando o público de surpresa. A ocupação do
espaço onde se dará o espetáculo deverá ser negociado por artistas e público, e esta
“negociação” não é pacífica, mas sobretudo tensa e envolve diferentes contextos, desde
pagamento de taxas e solicitações à órgãos governamentais, até a ocupação não
institucionalizada de diferentes setores sociais, como moradores de rua, camelôs,
bicheiros, flanelinhas, dentre outros. No que se refere às relações entre artistas e
público, não há restrições ou acordos pré-estabelecidos. O transeunte que passa por
aquele lugar, somente será classificado como “público” se parar para ver o espetáculo,
por sua vez enquanto público poderá assisti-lo de qualquer lugar, mas próximo e/ou
mais distanciado. Poderá assistir a manifestação artística do teatro de sua janela, da sua
barraquinha de cachorro-quente ou ainda, da esquina, da calçada e em meio a outros que
como ele formam uma roda em torno do artista. As interferências urbanas não podem
ser controladas e muitas vezes acabam por fazer parte da encenação sendo inseridas no
espetáculo.

Uma vez conquistado o público, a interação do espetáculo com o mesmo é


intensa e neste aspecto se dá muitas vezes de forma imprevisível, por permitir em sua
estrutura e teatralidade, a intervenção, participação e ou negação do público.
Neste aspecto, é importante entendermos o que Habermas quis dizer quando relacionou
a palavra ação à palavra comunicação, tendo em vista que um termo parece ir na
contramão do outro. No teatro a ação é uma característica fundamental para diferenciá-
lo da literatura, aja vista que o texto literário é um de seus componentes. Para teatralizar
é preciso mostrar, portanto agir. Assim, a comunicação no teatro se dá por meio das
ações, são elas que narram a fábula contida no texto. Isto não quer dizer que as ações
devem suprimir o texto falado, mas se inter-relacionar com ele, dando à ação e a fala
uma dimensão maior. Para entender a teoria de Habermas precisamos também entender
a ação, como no teatro, de forma muito mais ampla que simplesmente o movimento de
realização de um fazer material, mas, sobretudo, como uma relação social.

A compreensão e leitura das imagens contida ao longo de um fenômeno


teatral na rua, requer a investigar o fazer teatral, na criação do espetáculo. Entendendo o
espetáculo teatral para além de sua composição estética, mas como o meio para alcançar

2
um fim. Tendo em vista que o teatro é realizado de forma coletiva por seus fazedores e
também experienciado de forma coletiva por seu público.

Pensar o espetáculo teatral neste contexto nos leva a refletir sobre o


conteúdo do discurso de uma encenação e o papel da imagem/figura dentro deste
processo.

2- A imagem respira: sentido e percepção de um corpo-cidade.

Qualquer análise da imagem no teatro é um grande desafio. Isto porque,


entre outras coisas, em um espetáculo teatral elas – as imagens – brotam de todos os
lugares. Tudo que é visual no teatro (cenário, figurino, luz, o corpo do ator em
movimento, dentre outras) , assim como o texto e a fala, todo o discurso narrativo posto
em cena é, de forma mais direta, e ou produz, de forma indireta, imagens. Nas palavras
de Coelho Neto (p. 97, 2012):

A arte do espetáculo é, entre todas as artes e talvez, entre todos os domínios


da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza,
variedade e densidade.

Diante deste desafio, a primeira questão que se apresenta, quando pensamos


na manifestação do teatro no espaço urbano, é sua relação com o público. Independente
de qual seja a mensagem abordada, a estética ou técnica utilizada, é sempre em como
este será recebido, apreendido, significado e/ ou ressignificado que move seu fazer.
Desta forma, o desafio da encenação teatral na rua é confrontar-se com o espetáculo da
cena pública que a cidade já desempenha cotidianamente. Para Jean Duvigaud (1977, p.
121):

A forma mesmo da ação teatral, da representação de uma imaginária pelos


meios da poesia, depende menos da concepção de mundo que os homens ou a
sociedade se dão delas mesmas, menos do estado geral desta sociedade ou de
sua situação econômica, menos da religião ou da estética, que das relações
mesmo do homem com espaço.

Pensando com o autor, na ação teatral, a relação do homem com o espaço se


dá no e pelo diálogo. Assim, o acontecimento teatral, ao se inserir ao espaço da cidade,
instaura formas de diálogo dentro de um universo que já contém, em sua estrutura
físico-social, uma série de discursos. Sem ele, o teatro não seria um lugar da experiência
e do encontro.

Para somar-se a este caleidoscópio de som, cores e sensações diversas, o


teatro de rua busca diferentes formas e conteúdos e, por meio de inúmeras narrativas,
destaca cada vez mais o uso da imagem. Aqui, entenderemos imagem, não do ponto de
vista da iconografia, mas como figuração no sentido de objeto representado ou ainda
como signo representativo de algo ou de sua ausência. Assim, utilizaremos o uso da
imagem no teatro de rua como figurabilidade, conceito proposto por Didi- Huberman
(1998, p.87): “Ao mesmo tempo jogo de palavras e jogo de imagens”. Desta feita,
buscaremos problematizar o pensamento lógico e representativo, o que no teatro de rua
dar-se-á de forma muito específica num jogo de justaposições, deslocamentos e
colisões.

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É esta figurabilidade contida na encenação que possibilita ao público
receptor inserir-se no espetáculo e achar nele um espaço confortável para sua
manifestação pessoal. É neste jogo de mostrar, contar e sugerir, por meio de palavras e
ações visíveis, de silêncios e pausas em meio ao caos da agitação das ruas, que reside a
dinamicidade deste teatro.

3- Imagem e Representação: A Cena é Pública.

O espetáculo A Cena é Pública tem como tema central as questões políticas


no Brasil. Mas especificamente o tema da corrupção política e as mazelas que dela se
originam. Sua estrutura cênica traz uma composição em quadros que surgem e
desaparecem aos olhos do público que se desloca no espaço acompanhando a sequencia
dos quadros/cenas a partir do direcionamento dos atores, que fazem essa condução por
meio de sons e efeitos luminosos como o uso de sinalizadores e fogos de artifício.

Vamos adotar para nossa análise a descrição das cenas do espetáculo objeto
de nossas reflexões, seguida das análises e comentários. Desta forma faremos uma
decupagem do espetáculo, para isso diversas apresentações foram acompanhadas na
cidade de São Luís/MA e na cidade do Rio de Janeiro/RJ. vejamos momentos do
espetáculo A Cena é Pública, levado às ruas pelo Grupo de Teatro de Rua Teatro de
Operações do Rio de Janeiro.

Quadro 1- O primeiro quadro que abre o espetáculo é chamado pelos


artistas de “Dança das Cadeiras” e reproduz uma brincadeira infantil, onde várias
pessoas disputam para sentar em uma única cadeira. Assim, vários atores caracterizados
com máscaras políticos e governantes de várias nacionalidades dançam em torno de
uma cadeira a fim de ocupá-la. Entre presidentes e presidenciáveis de diversos países,
candidatos a governos de Estado, dentre outras personalidades políticas, disputam e se
revezam na cadeira ao som de uma música inteligível.

Esta é uma cena de abertura, ela ambienta o público que algo vai se passar
ali, a intensão do grupo é provocar um estranhamento, a dança não é exatamente uma
dança, a música não é exatamente uma música, mas a cena avisa que “algo” está
acontecendo e isso gera curiosidade em quem passa por aquele lugar.

Quadro 2- A cena é composta de várias televisões que são distribuídas por


determinado espaço onde ocorrerá o ritual. Ao som do toque de tambores uma mulher
(ou mais de uma) nua da cintura para cima e com o corpo pintado com desenhos tribais
e máscara de animal (em geral o cavalo) dança solenemente ao som rítmico de
tambores. Também em meio aos televisores um personagem, vestido de terno e com
máscara de um político (dependendo da região onde o espetáculo de apresenta a
máscara é sempre do rosto de um político influente naquela região) segura uma marreta
e ao som dos tambores quebra os televisores a fortes marretadas.

O público orientado a assistir a tudo a certa distância para evitar acidentes


com os estilhaços, reage a cada marretada com gritos e ás vezes aplausos.

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Em uma apresentação do grupo na cidade de Angra dos Reis na região da
Costa Verde no Rio de Janeiro, o ator ao realizar uma das primeiras marretadas, teve a
marreta presa no interior do aparelho e não conseguia retirá-la. Os esforços do ator que
chutava, empurrava e puxava a marreta com força, foram em vão e a marreta continuava
presa ao aparelho de televisão. Ao perceber o fato inusitado, o público começou a se
manifestar com murmúrios e risos percebendo o desespero do ator que precisava dar
continuidade à cena. Foi quando uma voz anônima se fez ouvir da multidão: A Globo é
mais forte! Tal frase desencadeou uma série de reações e manifestações no público que
além do riso, incluíam toda série de chacotas e comentários sobre o poder da mídia e da
televisão enquanto sistema.

A visualidade da televisão sendo quebrada, representando um gesto de


libertação e ao mesmo tempo uma crítica à linguagem da televisão como sistema de
dominação ideológico/cultural, reverberou em significados representativos para o
público na imagem do poder político da emissora de maior audiência no Brasil, no caso,
a Rede Globo de televisão.

Como representação a cena então ganhou neste momento uma dimensão


bem maior, a dimensão do diálogo reivindicado por Habermas, conforme nos coloca
Luiz Repa (2008, p. 172) :

O que é importante para Habermas agora não é tanto o resultado desse


processo, isto é, o consenso ou dissenso, mas justamente as condições e as
regras que todos precisam supor para que seja possível obter um consenso. É
nessas condições e nessas regras, nesses procedimentos de argumentação,
que está o cerne da racionalidade comunicativa.

Quadro 2- Neste segundo quadro um ator nu com o corpo pintado com


motivos tribais, com a genitália coberta apenas por uma tanga indígena, entra em cena
solfejando a música O Guarani de Carlos Gomes. Deslocando-se com movimentos
lentos e solene, segue em direção ao centro do espaço. Aparecem junto a ele dois atores
que, como os outros, estão vestidos de terno e gravata e com máscaras representando o
rosto de políticos. Estes personagens entregam ao índio uma garrafa com gasolina. O
público sabe que é gasolina pelo cheiro e pela coloração do líquido. O índio faz em
torno de si um círculo de gasolina bem grande. Outro político vem até ele e entrega
outra garrafa com o líquido que o índio derrama sobre si.

A ação física de derramar o líquido, anteriormente identificado como


gasolina, sobre o corpo, gera imediatamente uma tensão entre o desenrolar da cena e o
público, expressada geralmente com murmúrios de incredulidade. O outro político
aproximasse com uma tocha de fogo e ateia fogo no círculo de gasolina que foi
derramado no chão. Ao mesmo tempo as chamas formam um circulo de fogo em torno
do índio que em nenhum momento para de cantar a música O Guarani.

A imagem das chamas com o índio de joelhos e braços abertos de frente ao


público que observa estarrecido é muito impactante e gera inúmeras reações e
comentários, a mais comum delas é o aplauso.
Esta imagem que representa a situação em que se encontram os índio
brasileiros, é também uma crítica político-social de uma realidade que, mesmo distante

5
do cotidiano de nossa urbanidade, se faz presente, quase que de forma “fantasmagórica”
em nossa memória coletiva. Didi-Huberman, ao falar da imagem crítica, nos esclarece:

A imagem dialética, com sua essencial função crítica, se tornaria então o


ponto, o bem comum do artista e do historiador: Baudelaire inventa uma
forma poética que, exatamente enquanto imagem dialética – imagem de
memória e de crítica ao mesmo tempo, imagem de uma novidade radical que
reinventa o originário - transforma e inquieta duravelmente os campos
discursivos circundantes; enquanto tal, essa forma participa da “sublime
violência do verdadeiro”, isto é, traz consigo efeitos teóricos agudos, efeitos
de conhecimento. (2010, p.178).

Esta sublime violência do verdadeiro provoca este efeito de conhecimento,


ou seja, traz à tona uma memória esquecida, uma informação histórica e/ou ancestral
sobre o fato exposto na poética da cena. O público espectador é levado a uma visitação
anterior, que de forma ampla o relaciona, mesmo que de forma indireta, com o fato
exposto. Esta imagem, ao mesmo tempo de memória e de crítica é o detonador que
provoca as mais diversas reações coletivas, como o aplauso, o riso, dentre outras.

Quadro 3- Ao som de uma corneta que entoa toque de avançar e


sinalizadores que de longe chamam a atenção, o público é conduzido para um outro
espaço – em geral algum órgão público como câmaras legislativas ou fórum de justiça,
dentre outros – onde se encontram diversos atores mascarados como políticos
enforcados, pendurados em arvores, postes e onde permitir a arquitetura do lugar onde a
cena se apresenta. Ao som do hino nacional uma atriz com a cabeça coberta pela
bandeira do Brasil tira lentamente a roupa. Já despida, um ator caracterizado como um
político contorna todo o corpo da atriz com um arame farpado. A atriz por sua vez,
permanece em pé, imóvel, com os braços abertos ao lado do corpo.

A cena sem texto verbal provoca no público várias reações, desde a


reclamação da nudez explicita até comentários sobre a simbologia das imagens
produzidas pelo grupo. Mas em geral o público permanece em um silêncio significante,
em alguns casos cantam junto o hino nacional. A reação do público e sua intervenção na
cena de rua sempre vai afetar o desenvolvimento da mesma, seja na mesma ora em que
se dá a interferência do público, que poderá ter uma resposta direta do artista, como
também na sala de ensaio, onde as escolhas e a avaliação sobre o trabalho apresentado
são realizadas entre seus propositores.

Quadro 4- O espetáculo termina em uma hilária cena onde os


personagens/políticos perfilados na frente do público fazem pilhérias, gestos obscenos e
provocações variadas, ao mesmo tempo em que outros atores despejam aos pés do
público inúmeras bolas (bexigas de balão de festa) coloridas cheias de água.
Imediatamente o público reage às provocações dos “políticos” jogando contra eles as
bolas cheias de água em sinal de resposta. Rapidamente tudo se transforma em uma
grande confusão de gritos, risos, correria e bolas e água para todos os lados. Neste
instante, fogos de artifício rasgam o céu como que a celebrar uma grande festa.

A interação com o público no momento final do espetáculo, não é apenas


mais uma participação/intervenção do público frente ao que é mostrado, mas parte
integrante da encenação. Sem ela a cena seria outra e não teria o mesmo significado.

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No momento em que o indivíduo que até então se coloca como público
observador, toma em suas mãos uma das bolas de água e a atira contra o “político” em
cena, ele toma em suas mãos também a sua cidadania. Torna-se sujeito e atuante. Este
movimento simbólico de agir frente a situação apresentada o faz retomar por alguns
instantes o poder que lhe foi tirado de tomada de decisão. Assim, o público passa a
integrar também o quadro imagético proposto pela encenação.
Provocar o público a reagir contra os “políticos” ao final de tudo, sem perder a
fábula e a consciência de que fazemos teatro, é abrir por meio da encenação uma
mediação com o mundo no qual a arte e a vida habitam.

4- Conclusão: uma imagem inacabada.

Uma das grandes dificuldades de análise da imagem e ou mesmo do que


esta venha a apresentar, é sem dúvida, perceber e ou capturar os significados a que esta
mesma imagem possa remeter para quem a vê, no caso do teatro, para quem a vivencia.
Há que se descortinar estas relações de recepção de forma a entendê-las e decodifica-
las. Sabemos que uma mesma forma, poderá ter significados diferentes para pessoas
reunidas num mesmo tempo/espaço:

As coisas materiais podem apresentar aparências diferentes a diferentes


observadores, ou ao mesmo observador em diferentes condições, e que a
natureza destas aparências é, até certo ponto, casualmente determinada pelo
estado das condições e do observador (AUSTIN, 2004, p. 21).

Neste contexto reside uma dificuldade instigante e alvissareira, que nos


empurra para um universo complexo e denso para além da representação, como também
das significações geradas. Desta feita, a representação dos fatos gerados nas imagens
vivas e em tempo real, reverbera de forma intensa o ato comunicativo, que faz do teatro
este lugar de intensa de comunicação. Em sua teoria sobre ação comunicativa,
Habermas (1996) defendia que através do diálogo o homem poderia emancipar-se,
tornando-se sujeito de sua história. Este diálogo que antecede o processo comunicativo,
não se resume na busca do consenso ou do dissenso, na compreensão da argumentação
oral entre grupos ou indivíduos, mas sobretudo, se encontra no processo argumentativo
que se desenvolve a partir da construção e instauração das regras do jogo.

O teatro de rua se caracteriza então, como este espaço de diálogo, um hiato,


uma intersecção onde o homem encontra naquele momento com sigo, com seu papel
criador e recriador do meio em que vive. Não somente reproduzindo-o, mas, sobretudo,
questionando-o, sendo capaz de transformá-lo por sua vontade e ação.
Assim, podemos também verificar que esta comunicação não se dá apenas pelo diálogo
(fala/texto), mas, sobretudo pela relação dialógica que se dá também, pela imagem, pelo
corpo/gesto. Ou seja, pela representação imagética do discurso. Não podemos entender
o discurso apenas como a ideia/tema gerada pelo artista, mas um conjunto de relação
que se entrelaçam formando a tessitura deste discurso. Para Austin (2004, p. 20):

Nós nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos (ou “sentimos”), ou de


qualquer maneira, nunca percebemos ou sentimos diretamente objetos
materiais (ou coisas materiais), mas somente dados dos sentidos (ou nossas
próprias ideias, impressões, sensa, percepções sensíveis, perceptos, etc.).

7
É nesta relação complexa que este tecido discursivo é composto também
pela memória histórica, mediada pelas relações na experienciação da arte teatral como
mediadora. Naquele tempo espaço – em meio à cidade e a cena – mediado por imagens,
este tecido será trançado e completado pelas experiências, memórias, críticas e
sensações do público espectador.

Bibliografia:

AUSTIN, J. L. Sentido e Percepção. São Paulo. Martins Fontes, 2004.


BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo/SP. Perspectiva, 2001.
COELHO NETO, J. Teixeira. Semiologia do Teatro. São Paulo. Perspectiva, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo. 2ª ed. Editora
34, 2010.
DUVIGNAUD, Jean. Lieux et non lieux. Paris: Galilée, 1977.

HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e Comunicação. Lisboa/PO. Edições 70, 1996.


NOBRE, M. Curso Livre de Teoria Crítica. In: REPA, Luiz. Jürgem Habermas e o
modelo reconstrutivo de Teoria Crítica. Campinas/SP. Papirus, 2008.
TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (org). Teatro de rua: Olhares e perspectivas.
In: KOSOVISKI, Lídia. A casa e a barraca. E-Papers Serviços Editoriais, 2005.

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TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

PRESENÇAS QUE SE SUSTENTAM NOS AFETOS: CONFIGURAÇÕES E


RECONFIGURAÇÕES DO (NO) ESPAÇO DO ENCONTRO

Autora: Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer
Nunes; Instituição: UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina)

Que elementos determinariam a potência dos encontros nas artes da presença? O


trabalho a seguir lança um olhar sobre a presença do artista em relação à configuração e
reconfiguração do corpo, e do espaço no aqui-agora do encontro nas artes presenciais
contemporâneas. Nesta apresentação procuro identificar algumas possibilidades de
emergência de acontecimento diante da abertura aos dados do ambiente, partindo da
noção de embodiment, e investindo na possibilidade de criação de um espaço dialógico,
ao expor uma abordagem da presença do artista e sua proposição estética não somente
como interferência no espaço, mas em composição com ele. Escuta e disponibilidade são
palavras recorrentes neste texto que, ao tatear noções de presença em relação, observa
possibilidades de uma proposição artística partilhável, na qual se assume a
interdependência entre produção de espacialidade e produção de presença. Referências de
autores como Bento Espinosa, Jacques Rancière, Erika Fischer-Lichte, Maria Beatriz de
Medeiros, Fernanda Eugénio e João Fiadeiro serão a base para os argumentos aqui
expostos.

Palavras-chave: Presença; Afeto; Corpo; Espaço

Produzir presença no espaço, ou permitir que o espaço e as presenças produzam


intensidades na experiência? Eis uma questão que me move. Parece muito cômodo o
lugar do conforto, aquele do assistir sem ser visto, e o do fazer com garantia de sucesso,
mas na atualidade há outras demandas no fazer artístico que nos convidam ao
movimento, que propõem ações responsivas, cujas escolhas e consequências são
partilhadas. Arcarei aqui com algumas escolhas que me são pertinentes, sem a garantia de
sucesso, mas com um convite na mão: Produção de potência na partilha. Vamos?
A arte presencial poder ser uma possibilidade de encontro, e, tornar este encontro
potente não está somente nas mãos (corpo) do artista. Há inúmeros fatores que justificam
esta proposição, como o fato de o ambiente influenciar a ação do artista/performer, e de,
cada pessoa ter um modo de recepção sujeito à sua herança cultural, territorial, que
também leva em conta suas conexões singulares na experiência. Por isso a noção de
presença é tão evocada nas práticas contemporâneas, e já parece consensual que esta
presença é atributo da relação entre artista e ambiente. O artista que “tem” presença é
esse que está sempre atento aos dados do ambiente, que se renova no olhar do outro, que
está, no aqui-agora. Mas não é bem dessa especificidade da presença que eu gostaria de
tratar agora, convido-o leitor a elaborar uma noção de presença partilhada, que passa a
considerar todas as presenças do ambiente como elementos compositivos da ação,
alçando chegar a uma potência de acontecimento gerada no encontro “entre” presenças.
Bento Espinosa1 (1992) já havia sugerido a potência do encontro ao tratar do
afeto, nós na arte é que andávamos em passeio pelo mundo da aura, da figura iluminada,
poderosa, que apesar de tantos louros, se manteve, ironicamente recolhendo migalhas
institucionais para a sobrevivência. Retomando a questão do afeto: a possibilidade de
afetar o outro com o que se propõe artisticamente é um desejo bastante explícito nas artes
presenciais contemporâneas, e de fato é o que acontece no encontro entre os corpos, de
acordo com a teoria de Espinosa (1992), porém, ao tratar do encontro na arte, poderíamos
colocar uma lupa sobre a noção de afeto, na intenção de observar suas nuances de
intensidade. Assim, nos aproximamos também da noção de eficácia, que é entendida
como a capacidade de provocar transformações nos corpos, como afirma o italiano Marco
De Marinis2 (2005).
A acepção espinosiana de afeto (affectus) o traz como efeito que emerge do
encontro entre os corpos. Segundo Espinosa o corpo é constantemente modificado diante
dessas relações, o que poderia aumentar ou diminuir sua potência de agir. Há, para ele,
um esforço inerente à existência para conservar sua natureza, o que é chamado de
conatus, mas há também os efeitos dos encontros que não são passíveis de controle, pois
não seria possível comandar a interferência de um corpo sobre outro. Diante disso,
poderíamos entender a operação da proposição artística em um campo de intensidades de
afeto. A proposição de Espinosa (1992) para a noção de afeto trata da vida se fazendo e
refazendo em interação com outras vidas, sem que se possa apreender conscientemente
todo esse processo, muito menos prevê-lo, uma vez que os corpos não se relacionam de
maneira preestabelecida. Existe, neste contexto, a ação – que são as minhas vontades; e a
paixão – que são as vontades que não vêm de mim. Há o resultado dos encontros entre os
corpos, apresentado inicialmente pelo filósofo como bons e maus afetos, como alegria e
tristeza, por exemplo, e identificá-los seria um modo de percepção imediata do que se
imprimiu no corpo durante o encontro. Tal possibilidade estaria inerente ao ato de
raciocinar, na tentativa de compreender o que acontece ao corpo, e de explicar os afetos,
o que é apresentado por Espinosa como paixões ativas. Por mais que os afetos possam ser
imprevisíveis, e que não seja possível ter consciência de todos os afetos que incorrem em
um encontro, conforme nos esclarece o autor, é possível compreender as impressões dos
afetos no corpo ao reconhecê-los. Ao partir dessa análise de Espinosa (1992), chegamos à
afirmação de que não poderíamos antecipar os efeitos do encontro na arte, mas apenas
produzir ações a partir de nossas referências de afeto.
Vincular produção de afeto à proposição artística, reconhecendo os efeitos que um
corpo ou um objeto artístico tem sobre o outro corpo, conforme observa Simon
O’Sullivan3 (2011), é um movimento que se mostra contra a efetivação de uma
abordagem transcendente da arte. O afeto, neste contexto, estaria ligado à factualidade
nas relações, o que escapa à ideia de controle do que pode incorrer em uma relação
presencial. Sendo assim, ao laçarmos o convite a uma experiência partilhada, estaríamos
abdicando de uma ideia de domínio sobre as ocorrências do encontro na arte, dividindo

1
Filósofo holandês
2
Professor de disciplinas das artes do espetáculo na Universidade de Bolonha.
3
Professor de História da Arte / Cultura Visual no Departamento de Culturas Visuais da Goldsmiths
College University de Londres.
responsabilidades quanto à potência de acontecimento, pois esta seria emergente das
relações criadas no aqui-agora.

Potências da presença em relação

O desejo de provocar sensações no espectador/participante é um dos fatores que


movem a criação nas artes presenciais, e a potência de afeto, aquele da lupa, pode ser
resultante das relações entre os corpos, para isso, o papel do artista estaria muito mais
próximo ao de um articulador de ações e reações, suas, e do que percebe/recebe do outro,
o que exige, além de um “saber-fazer”, escuta e disponibilidade ao que insurge no aqui-
agora. Suzanne M. Jaeger 4 (2006) situa algumas conexões, acerca da presença, que vão
além do potencial do artista de dominar uma técnica específica de movimento, por
exemplo. De acordo com a autora, a presença pode ser definida como uma configuração e
reconfiguração de uma força em resposta ao ambiente, o que exige do artista capacidade
de escuta, consciência de si e do que o cerca, considerando nessa relação o modo singular
de cada corpo agir e reagir.
Philip Auslander5 (apud JAEGER, 2006) afirma que Constantin Stanislavski,
Beltolt Brecht e Jerzy Grotowski perceberam que a presença do ator não se daria apenas
com a incorporação de uma persona que não é ele, mas sim com a apresentação autêntica
do self do ator, em contraposição à cultura de massa. De acordo com Jaeger, as mídias
alteram as percepções e o esquema corporal, de modo diferente da presença ao vivo. O
surgimento dessa presença requer um modo reconhecível de estar no mundo, mas
também requer o poder de se concentrar na singularidade do momento, pronto para seus
deslocamentos, acomodações e adaptações, que pertencem ao desafio da ação, o que
ocorre com completo engajamento do corpo no momento presente. A audiência
perceberia isso, e todo esse desencadeamento de percepções manteria viva a performance
(JAEGER, 2006).
Ao tratar da presença, Érika Fischer-Lichte6 (2011) faz um paralelo entre as
abordagens do corpo fenomênico e do corpo semiótico direcionando uma discussão
acerca da presença que considera o ambiente:

A presença não é uma qualidade expressiva, e sim puramente performativa.


Gera-se por meio de processos específicos de corporização que o ator engendra
em seu corpo fenomênico ao ponto de dominar o espaço e prender a atenção
dos espectadores [grifo meu] (FISCHER-LICHTE 2011, p.197) [tradução
minha]7.

Em Fischer-Lichte (2011) e em Jaeger (2006) é possível identificar essa


consideração do potencial de encantamento que o artista pode exercer sobre o público,
como resquícios de manutenção de uma espécie de aura, da presença entendida como
4
Professora de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Central Florida em Orlando.
5
Professor da Faculdade de Literatura, Mídia e Comunicação, Georgia Tech, em Georgia – EUA.
6
Professora no Instituto de Estudos de Teatro na Universidade Livre de Berlim.
7
“La presencia no es uma cualidade expressiva, sino puramente performativa. Se genera por médio de
processos específicos de corporización com los que el actor engedra su cuerpo fenomênico em tanto que
dominador del espacio y acaparador de la atención de los espectadores”
poder de prender a atenção do outro, e se alimentar na relação. O argumento em favor da
abertura, para o alimento das presenças na relação, pode ser observado em uma
abordagem da presença do artista como convite ao jogo, à partilha, e a configuração do
acontecimento nesse encontro, é o que parece estar mais evidente em práticas
contemporâneas, que buscam formas de deixar os afetos mútuos emergirem entre essas
presenças, em suas diferenças e semelhanças. O ato de imposição do artista sobre o
público não tende a permitir, de certa forma, uma troca. Estabelecer a figura aurática
imprime uma noção de inacessibilidade, de algo inatingível. É um caminho que dá conta
de certas demandas na arte, mas ao mesmo, tempo ratifica algumas diferenciações
hierárquicas de poder.
Rancière (2010, p. 108)8 afirma que a condição do espectador como aquele que
olha “é uma coisa ruim”, uma vez que “olhar é considerado o oposto de conhecer” e “o
oposto de agir”. Ao considerarmos o espectador como passivo, “desprovido de qualquer
poder de intervenção” o trânsito de afetos e afecções não é favorecido. Rancière (2010, p.
109) ressalta que se deve buscar um teatro “sem espectadores”, tornando-os
“participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores
passivos”. Diante dessa afirmação, o autor reconhece um antagonismo na legitimação da
prática teatral, declarando que:

[...] Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador


que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as
personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo
estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão
deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador
passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas
causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero
observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo
distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder
mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de
observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais
do teatro (RANCIÈRE, 2010, p. 109).

Fischer-Lichte (2011), ao trazer a questão da performatividade e do corpo


fenomênico, contempla o corpo em devir, o que muitos artistas e teóricos consideram em
suas práticas. E se a presença do artista fosse o convite à experiência? E se
transferíssemos a potência do que se chamou obra de arte para o que surge na relação
entre os corpos que fazem parte de um mesmo ambiente? Conquistar uma qualidade de
presença diferenciada implicaria, ao invés de ser a diferença, em deixá-la emergir,
perceber quando ela surge como um acontecimento, próxima à ideia de presença, possível
de se observar na pesquisa de Fernanda Eugénio e João Fiadeiro9 (2012). A atribuição

8
Filósofo Francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da
Universidade de Paris.
9
João Fiadeiro é bailarino, coreógrafo e pesquisador em dança, e Fernanda Eugénio é antropóloga, ambos
desenvolveram o MODO OPERATIVO AND, que é uma metodologia relacional de composição baseada em
uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum.
Eugénio e Fiadeiro coordenam os processos do AND Lab no Atelier Real, em Lisboa. Outras informações
essencial do artista passaria então à capacidade de compartilhar experiência e articular
possibilidades poéticas emergentes no jogo. E para que essa presença se transforme em
convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível, mas incluir a
abertura ao aqui-agora, às interferências do ambiente na ação proposta pelo artista
aparece como urgência nas práticas presenciais contemporâneas. Seria possível propor
relação sem uma aguçada percepção de si e abertura ao ambiente?
A prática do AND Lab de Eugénio e Fiadeiro resiste na seguinte questão: Como
criar condições para que a matéria apareça no acaso? Como preservar a potência e o devir
da matéria? O espaço do já saber, da interpretação, da representação, do sentido – que se
traduz por importância/valor, não contemplam as emergências, reforçam o “pressuposto
do saber para depois agir”. Desse modo, “abdicar das respostas, largar a obstinação por se
definir o que as coisas são, o que significam, o que querem dizer, o que representam”
[grifos dos autores] parece pertinente. (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 3). Algumas
possibilidades de re-existência surgem então na pausa, na inibição, na vontade de adiar o
fim, na possibilidade de identificar a potência de afeto no acidente. Para isso, um
refinamento da percepção é constantemente solicitado: ver o que a coisa tem, e não o que
é, aproveitar o inesperado – achar meios para que ele emerja –, aceitar, retribuir, re-parar,
são estímulos constantes nessa prática. Assim se constrói o ambiente comum:

Dessa implicação recíproca emerge um meio, um ambiente mínimo cuja


duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como
paisagem comum. O encontro, então, só se efetua – só termina de emergir e
começa a acontecer – se for reparado e consecutivamente contra-efetuado –
isto é, assistido, manuseado, cuidado, (re) feito a cada vez in-terminável.
(EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 66).

Esse poderia ser o ambiente da partilha de sensibilidades, o local do encontro, que


exige estar presente, vivo, atento e poroso, pois “encontrar é ir ‘ter com’”. Ter o quê?
Uma experiência. Essa experiência em que se quer deixar emergir o acontecimento, na
concretude do que está, a fim de gerar e de gerir outras possibilidades de acontecimento.
Para isso renúncias são necessárias, dentre elas, abrir mão do protagonismo, recuar,
ouvir, viver o jogo do encontro. Encontrar é um “entreter que envolve desdobrar a
estranheza que a súbita aparição do imprevisto nos traz. Desdobrar o que ela tem e, ao
mesmo tempo, o que nós temos a lhe oferecer [...]” (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p.
68). A relação é um “encaixe situado entre possibilidades compossíveis que co-incidem”
para enfim – ou na protelação do fim – “acolher o que emerge no acontecimento”,
acontecimento esse “que só dura enquanto não é, que só dura enquanto re-existimos” para
“reencontrar aí, nesse comparecer recíproco” o que há na multiplicidade. (EUGÉNIO;
FIADEIRO, 2012, p. 4). Nessa perspectiva há a possibilidade de partycipação na qual
Eugénio e Fiadeiro questionam os mecanismos de poder, nos convidam a suspensão do
ato impulsivo, e da vontade de ser genial ou criativo em favor da formação e manutenção
de um comum.
E isso na cidade, no ambiente urbano, como fica?

sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <
http://andlabpt.blogspot.com.br/>.
Pois, então, se a presença e o afeto são aspectos das relações com o ambiente, se
há uma busca por um comum em favor da emergência de acontecimento nas relações que
se criam no espaço do encontro, ao artista caberia observar atentamente o que o cerca,
adaptar-se ao que lhe é apresentado, do modo que está, e agir conforme o ambiente lhe
solicita. Escuta? Sim. E novamente, disponibilidade, não?
Beatriz de Medeiros10 e seus Corpos Informáticos tratam da arte como
fuleiragem, chamam de composição o que fazem em uma conversa com a cidade na
perambulação, Medeiros e Albuquerque11 (2013, p. 25) dizem que não fazem
intervenção, nem urbana nem cirúrgica, pois estas “invadem, rasgam, rompem e
implantam o que na urbs, na internet ou no corpo não cabe”. A ação de intervir parece, de
fato, o oposto de fazer-com, e só ratifica a imposição da vontade individual. Acho que eu
já não consigo mais caber na ideia de intervir na cidade, de mutilá-la com minha presença
inflada e determinante. E você? O mundo já tem muitos donos, muita gente mandando e
impondo seus desejos particulares, o meu tem sido negociar, mesmo que eu ainda queira
coisas, venha armada de criatividade e expectativas. Corpos Informáticos compõe e
decompõe corpos na cidade. Não, não são defuntos, a cidade é um espaço vivo e o corpo
é um habitante/habitado por ele. Como diz Suely Rolnik (1996, p. 3): “cada indivíduo é
permanentemente habitado por fluxos do planeta inteiro”. Se é assim que somos, porque
a ilusão de domínio do mundo, de concentração do poder? Uma potência do corpo
coletivo haverá de emergir no encontro.
Não dá para ignorar esse movimento, não dá para fazer-de-conta que não somos
efeitos dos múltiplos encontros diários, e ao propormos uma relação com o outro
considerando o espaço como lugar de emergências compositivas, haveremos de ouvir,
negociar, dividir e mantermos atenção aos dados do ambiente. Às artes da presença
parece pertinente assumir as consequências de habitar esse terreno movediço. Que tal nos
movermos juntos?

Referências:

DE MARINIS, Marco. En busca del actor y del espectador. Coleção Teatrologia:


compreender o teatro II. Org. Osvaldo Pellettieri. Buenos Aires: Galerna, 2005.

ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Secalharidade como ética e como modo de


vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento
coletivo do viver juntos. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro,
Florianópolis, Vol. 1, nº 19, p. 61 –69, nov 2012.

FISCHER-LICHTE, Estética de lo performativo. Tradução: Diana González Martín e


David Martínez Perucha, Madrid: Abada, 2011.

10
Professora do curso de Artes da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de pesquisa Corpos
informáticos.
11
Artista colaboradora do Grupo de pesquisa Corpos informáticos.
MEDEIROS, Maria Beatriz de; ALBUQUERQUE, Natasha de. Composição urbana:
Surpreensão e fuleragem. Catálogo Palco Giratório – Rede SESC de intercâmbio e
difusão de artes cênicas. Circuito nacional 2013, Rio de Janeiro, SESC – Serviço Social
do Comércio, p. 24 – 35, 2013.

O’SULLIVAN, Simon. La estética del afecto. Pensar el arte mas allá de la


representacion. Exitbook: Revista de libros de arte y cultura visual, Madri, nº. 15, p. 8 –
21, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Urdimento – Revista de Estudos em


Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação
em Teatro. Tradução: Daniele Ávila. Florianópolis: Vol 1, nº15, p. 107 – 122, out 2010.

ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Percurso – Revista de Psicanálise,


Ano VIII, nº 16, p. 43 – 48, 1º semestre de 1996. Departamento de Psicanálise, Instituto
Sedes Sapientiae, São Paulo. Disponível em:
<http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf>. Acesso em 02/08/20013.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CENOGRAFIA DO ESPETÁCULO BABEL


Natália de Oliveira Martins (Orientador: Prof. Dr. Ismael Scheffler; UTFPR - Curitiba)
Mariana Garcia da Silva (Orientador: Prof. Dr. Ismael Scheffler; UTFPR - Curitiba)

1. Introdução
O presente estudo apresenta o processo de criação da cenografia do espetáculo Babel
desenvolvido como projeto de extensão universitária na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, em Curitiba, no ano de 2013. O espetáculo foi resultado do trabalho de dois grupos de
extensão: o TUT (Grupo de Teatro da UTFPR), e o GDC (Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico). Ambos os grupos coordenados pelo professor Ismael Scheffler, autor do texto e
diretor do espetáculo. Inicialmente, é feita a contextualização dos grupos com enfoque na
composição multidisciplinar e no funcionamento do GDC. Após, são pontuados aspectos do
texto teatral, propostas da encenação e condições de produção. A seguir, são relatadas as
diferentes etapas da criação da cenografia: pesquisas de referência, definições conceituais,
croquis de estudos, definição da forma e dos materiais, detalhamento do projeto executivo e
acompanhamento da confecção e montagem. O artigo finaliza com considerações de avaliação
do processo criativo do ponto de vista pedagógico e artístico.

2. Surgimento do projeto
O Grupo de Desenvolvimento Cenográfico (GDC) foi criado em 2013 como um
programa de extensão universitária contemplado com recursos do edital ProExt (Programa de
Extensão Universitária) da Secretaria de Ensino Superior, do Ministério da Educação, e realizado
na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba, PR. Idealizado e coordenado pelo
professor Ismael Scheffler (da área de Teatro) com a colaboração das professoras MSc. Ivone de
Castro (Design), Dra. Maurini de Souza (Letras e Comunicação) e Dra. Adriana Wan Stadnik
(Educação Física) ; o GDC foi composto por 14 acadêmicos da UTFPR de seis cursos de
graduação (Arquitetura e Urbanismo, Comunicação Institucional, Design, Educação Física,
Engenharia Elétrica e Licenciatura em Letras) que, juntos, realizaram uma série de ações
relacionadas à cenografia e ao design cênico. A maioria dos integrantes não possuía nenhum tipo
de experiência com teatro, embora alguns alunos já houvessem atuado de forma amadora em
espetáculos.
No decorrer do ano de 2013 foram desenvolvidos três projetos principais: a criação e a
produção do espetáculo teatral Babel, juntamente com o Grupo de Teatro da UTFPR (TUT); a
criação e produção da exposição Babel: o processo de criação do espetáculo teatral (realizada
na Biblioteca Pública do Paraná, de 09 de dezembro de 2013 a 30 de janeiro de 2014, e na
UTFPR, de 30 de janeiro a 14 de março de 2014) e seu catálogo; e o Seminário de Design
Cênico: os elementos visuais e sonoros da cena, realizado também na UTFPR, entre 06 e 09 de
novembro de 2013, bem como a produção dos anais do evento.
O TUT (Grupo de Teatro da UTFPR) foi criado em 1972 e permanece em atividade
ininterrupta até hoje. Esse grupo organiza e desenvolve oficinas na área teatral, montagens de
espetáculos, atividades performáticas, laboratórios de pesquisa, seminários de estudos,
exposições pedagógicas e clube de cinema, incentivando o acesso da comunidade a espetáculos
teatrais. Ele tem coordenação do professor Ismael Scheffler desde 2005. Seu elenco é composto
por alunos da UTFPR, bem como de membros da comunidade externa. Embora seja um grupo de
teatro universitário amador, já contou eventualmente com a participação de atores profissionais1.
O TUT já desenvolveu cerca de 40 espetáculos.
Para o espetáculo Babel, os dois grupos trabalharam articuladamente: o TUT fornecendo
os recursos humanos para a composição do elenco e o GDC, para a criação dos demais
elementos artísticos do espetáculo e para a produção.
Dentro do GDC foram organizados diferentes subgrupos de produção que atendiam
demandas como design gráfico dos materiais de divulgação do espetáculo, assessoria de
comunicação e infraestrutura. Para a criação artística, os alunos foram divididos em cinco
subgrupos: cenografia, figurino, iluminação cênica, sonoplastia e maquiagem. Cada subgrupo era
responsável por trabalhar suas concepções e propostas em relação à direção artística do
espetáculo, assistindo ensaios das atrizes, estando em sintonia também com as possibilidades
financeiras e logísticas de produção2.
Os dois grupos seguiram percursos paralelos de trabalho tendo encontros que visavam
unificar a proposta e afinar a relação dos diferentes artistas envolvidos no processo de criação do
espetáculo. Alguns encontros envolviam atividades práticas corporais e espaciais, outros
corresponderam a ensaios do elenco tendo o GDC como observador e outros ainda tinham
função técnica de produção.

3. O texto dramático
O texto foi escrito por Ismael Scheffler em 2004 e revisado em 2013. O texto é marcado
pela mistura de gêneros literários (dramático, épico e lírico), em uma estrutura fragmentada na
qual as atrizes assumem a tarefa de narradoras e personagens, alternando-se temporalidades do
presente e do passado. O título da peça faz referência direta à torre de Babel bíblica, embora não
corresponda a uma encenação desta história.
A torre de Babel do livro de Gênesis da Bíblia é uma referência muito presente em nossa
sociedade, tomada recorrentemente como símbolo de confusão ou profusão de idiomas. Torres
podem ser tomadas como símbolo de vaidade, arrogância e de domínio de tecnologia, mas
também são por vezes consideradas como locais de solidão, de isolamento e de clausura. De
certa forma, este espetáculo poderia ser referido como um “drama espacial”. Afinal, segundo o
autor do texto (SCHEFFLER, 2013), foi a partir da escolha de uma forma arquitetônica (a torre)
que todo o texto e encenação foram construídos. O texto é constituído, significativamente, por
fragmentos literários, apropriando-se de poesias e trechos de monólogos teatrais de diversos
autores. Os fragmentos, dispostos como em uma colagem, aparecem por vezes de forma mais
contrastante no recorte de suas bordas, em outras vezes delicadamente colados de maneira que
seus contornos se fundiram com o texto como um todo (SCHEFFLER, 2013).
A Babel da peça é uma torre, uma máquina, uma cidade onde vivem cinco mulheres,
únicas sobreviventes de toda humanidade. A rotina de Babel é marcada pelo trabalho automático
e por uma agonia constante. A Rainha-Mãe lidera e orienta, do alto da torre-máquina, suas quatro
filhas, que trabalham incessantemente na construção e manutenção da estrutura que as mantém
unidas - Babel. O esforço contínuo é mantido pela esperança na promessa de que da grande
máquina Babel surgiria a nova humanidade. As habitantes de Babel, contudo, mal sabem as
razões que as levam a, de fato, permanecer trabalhando. Um dia, uma das filhas, em meio à sua
rotina vazia de trabalho ininterrupto, sobe ao alto da torre Babel atingindo um ponto onde não se
costumava ir. De repente, ela vê algo inesperado à distância. Depois daquela visão tudo mudou.
A possibilidade de existirem outros horizontes, outras Babéis, outras pessoas, irradiou às demais
habitantes de Babel despertando novos sentimentos e outras dúvidas.

4. O processo de criação da cenografia


O projeto do cenário foi fruto de um processo de pesquisa e assimilação de conceitos da
peça Babel. Antes de ter acesso ao texto da peça, a equipe do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico trabalhou durante cerca de um mês com elementos de referência em diversos
exercícios (físicos, plásticos e arquitetônicos) que estavam vinculados às sensações e impressões
que pretendiam ser provocadas no público durante a peça. Parte da pedagogia adotada para a
criação do espetáculo está baseada nas considerações de Jacques Lecoq e na proposta do
Laboratório de Estudo do Movimento, considerado como o departamento cenográfico da Escola
Internacional de Teatro, em Paris, França. Essa pedagogia propõe a experimentação corporal do
espaço estabelecendo experimentações plásticas, articulando aspectos de escultura, pintura,
desenho, literatura, entre outros, ao teatro e à pesquisa do Movimento presente no corpo humano
e no mundo (SCHEFFLER, 2013).
O acesso ao texto se deu apenas em um segundo momento. O estudo do texto teatral
forneceu referências simbólicas e conceituais, dando algumas informações sobre as ações que as
personagens desempenhariam ao longo da história, revelando necessidades e exigências da
cenografia. O cenário de Babel consistiu em uma grande torre, poderosa grandeza além do
tamanho humano. Essa grande estrutura deveria ser habitável, isto é, comportar dentro de si
todas as cinco personagens na realização de ações. Desta forma, ela deveria assumir certo caráter
de "refúgio" das personagens. Não obstante ser uma torre e um abrigo, Babel deveria ser uma
grande máquina, uma torre-máquina, que oferecesse estruturas que possibilitassem o trabalho
corporal das atrizes, em parte ações do trabalho da construção civil, em parte como engrenagens
de uma máquina.
A definição das pessoas que comporiam o grupo responsável pela criação da cenografia
se deu apenas neste segundo momento. O grupo foi formado com quatro pessoas, todos alunos
de Arquitetura: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira
Martins.
Outro princípio norteante para a concepção da cenografia da torre foi o de procurar
potencializar possíveis sensações e simbolismos vinculados à verticalidade, como pequenez,
insignificância e medo. Uma das propostas da direção do espetáculo era de que a cenografia
tivesse aproximadamente seis metros de altura, para que, de certa forma, o espectador tivesse,
diante da torre cenográfica, uma experiência corporal direta com a verticalidade.
Inicialmente, a proposta era de o espetáculo ser apresentado em forma de arena dentro de
um galpão da universidade, estando cenário e cena ao centro e o público disposto em círculo ao
redor. A torre deveria ser, então, visualmente permeável a fim de garantir máxima visibilidade de
tudo o que acontecesse dentro e em torno dela. Para isto, seria necessária a locação de uma
estrutura para a sustentação dos equipamentos de iluminação cênica. Posteriormente, considerou-
se apresentar o espetáculo em um dos cantos do galpão, num espaço que ocupasse 100 m², tendo
duas frentes, estando a plateia disposta em forma de “L”. Nesta configuração, os grandes
paredões do galpão poderiam ser utilizados para a projeção de sombras do cenário e das
personagens, ressaltando formas e figuras, utilizando, assim, a iluminação também para a criação
de silhuetas. A imagem de “sombras” aparece diversas vezes no texto teatral, de forma
simbólica. Dessa forma, foi tomado também este simbolismo que permite uma duplicação e
ampliação, até mesmo do movimento, já que as sombras podem incidir em diferentes lugares
conforme varie a posição do ponto de luz.
O cenário deveria favorecer o movimento corporal das atrizes. Assim, a arte produzida
pelo movimento artístico Construtivista, desenvolvido na Rússia no início do século XX, em
particular, a cenografia teatral utilizada por encenadores como Vsevold Meyerhold e suas
propostas de exploração da biomecânica no trabalho dos atores, foi considerado como importante
referência (HAMON-SIRÉJOLS, 2004). O cenário de Babel foi projetado de forma a possibilitar
diversos percursos a serem percorridos pelas atrizes dentro e fora da torre, aproveitando os
cheios e vazios criados pela estrutura metálica. Os mecanismos da máquina anexados à torre
foram concebidos para explorar diferentes dinâmicas do movimento, entre ações de puxar e
empurrar, ritmos, linhas, níveis de altura e dimensões de ações.
Uma das propostas centrais é que nada nessa torre-máquina pudesse sugerir conforto e
estabilidade - exceto sob o abrigo da mãe, que foi pensado em conjunto com os figurinistas para
criar uma espécie de saia-barraca que fundisse o corpo da mãe a Babel e fosse como o ninho das
filhas. Além deste ambiente, nenhum outro deveria sugerir conforto e estabilidade ou demonstrar
condições de ser habitado por seres humanos - afinal, elas tendem a perder esta característica.
Após uma série de esboços, optou-se por trabalhar com múltiplas torres treliçadas e
retorcidas que, juntas, provocariam a sensação de ascensão ao mesmo tempo que remeteriam à
uma construção inacabada e/ou em ruínas. Assim como o steampunk, onde o futuro remete ao
passado, a torre deveria passar a impressão de algo futurístico, porém precário, com aspecto
obsoleto. O desequilíbrio e a instabilidade sugeridos pela forma da torre reforçam esse
sentimento de defasagem e de abandono.
Para aumentar a estabilidade das torres treliçadas e retorcidas, optou-se pelo uso de três,
dispostas em base triangular, de maneira que distribuíssem seu peso uma sobre a outra no
processo de ascensão, encontrando assim, estabilidade. As três torres são retorcidas para passar a
ideia de desequilíbrio, instabilidade, dando dinamismo e movimento. Este retorcido em espiral
ascendente aumenta a sensação de verticalidade, potencializando o movimento e evocando certa
ordem mística.
Foram agregados às torres diversos elementos como plataformas gerando, ao mesmo
tempo, uma maior complexidade visual e possibilitando mais formas de interação das atrizes
com o cenário. Ao centro desse vórtice treliçado há um andaime, elemento temporário que
transmite a sensação de inacabado, de algo em construção. A torre está em processo de
construção há anos e, de certa forma, o próprio andaime temporário acabou fundindo-se à
edificação, similarmente como a vida das personagens que construíam a Babel, não como um fim
em si, mas como um meio de gerar a nova humanidade. Uma transitoriedade que se perpetuou,
que se calcificou - aspecto que entra em crise na existência das personagens e gera o conflito
central do espetáculo.
Uma das personagens, a Rainha-Mãe, está há tanto tempo vivendo nessa torre que já se
encontra em um processo de fusão à estrutura. Essa criatura também é a coordenadora da
construção da torre-máquina, vigilante, e, por isso, precisava de um local fixo e alto para poder
visualizar tudo ao seu redor. Foi concebida, então, uma plataforma anexada ao andaime a cerca
de três metros do chão. Acima da metade da estrutura, mas não no ponto mais alto, pois na
história é justamente quando uma personagem sobe ao topo da torre, local que ninguém
frequentava, que há uma reviravolta na trama. A plataforma da Mãe é o elemento de aspecto
mais estável e equilibrado da cenografia.
O material escolhido para a construção do cenário foi o metal, estrutura relativamente
leve ao pensarmos em uma edificação e que suporta grande peso. Uma das propostas para a
concepção da cenografia é que ela deveria ser toda desmontável para que pudesse ser
transportada e facilmente remontada em outros espaços, e assim, poder viajar e ser utilizada em
outros lugares. Por isto também, a torre não poderia ser fixada no chão, devendo ter estabilidade
completa apenas colocada sobre o solo. Conceitualmente, o metal transmitiria também a
impressão de grande máquina e com tratamentos de superfície, poderia dar a impressão de
envelhecido. A estruturação em treliça se apresentou como uma solução que ofereceria mais
estabilidade, garantindo maior segurança para as atrizes, além de dinamismo e ritmo. A opção
pelo metal também atendia ao desejo de exploração de sonoridades da estrutura pelo trabalho das
atrizes.
Até chegar a forma definitiva da estrutura, foram realizados vários croquis livres,
buscando-se primeiramente integrar diferentes elementos: formas variadas que compusessem a
verticalização da torre oferecendo dinâmica ao conjunto, áreas de circulação, plataformas,
engrenagens de trabalho. Os croquis foram dando forma às ideias e maquetes virtuais e físicas
auxiliavam na visualização e percepção espacial. O processo de amadurecimento das formas foi
acompanhado por consultas técnicas ao professor de estruturas do departamento de construção
civil da UTFPR Wellington Mazer, a fim de garantir a estabilidade de estrutura criada e
segurança às atrizes.
A confecção de uma maquete tridimensional em madeira auxiliou no trabalho de toda
criação. A partir da maquete, alguns testes de iluminação puderam ser feitos, o que foi
determinante para a criação e exploração de sombras e definição do posicionamento dos
equipamentos de luz. Foi essencial também para o trabalho do elenco, visto que permitia a
marcação de algumas cenas antes mesmo do aparato ter sido concluído e instalado. Para o
figurino, foi imprescindível, pois ajudou a entender as dinâmicas corporais exigidas como as
escaladas e os trabalhos das personagens. Quanto à sonoplastia, diversas sonoridades foram
exploradas a partir do trabalho das atrizes sobre o metal.
Após a definição da forma e do material, assim como as dimensões, foram realizados os
desenhos técnicos do cenário, considerando-se as especificidades dos materiais (dimensões,
espessuras, encaixes), as bases de apoio, as angulações, levando-se em conta também questões
de confecção, transporte, montagem e possíveis remontagens. Os desenhos técnicos foram
discutidos com os serralheiros responsáveis pela confecção e sofreram ajustes, sendo finalmente
encaminhados para a produção. Como a UTFPR conta com uma serralheria própria, na Divisão
de Obras e Manutenção de Móveis, parte do cenário pôde ser construído na universidade, como a
torre da mãe e as plataformas. As três torres treliçadas, porém, devido à especificidade e
complexidade de sua construção tiveram que ser encaminhados a uma serralheria especializada
na construção de cenários, a Villa Hauer Cultural, coordenada pelo cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho. Foram necessárias algumas visitas de acompanhamento da construção da
cenografia a estas duas equipes a fim de sanar dúvidas e fazer adequações necessárias ao
projeto3.

5. Considerações finais
Para nós, enquanto alunas, a interdisciplinaridade do programa foi um grande desafio,
que nos forneceu muitas possibilidades. A convivência com um grupo de criação grande e muito
heterogêneo foi difícil, mas aprendemos a lidar com a individualidade de cada um e procuramos
tirar partido de tal fato.
As diferentes áreas de graduação que englobaram o projeto fizeram com que muitos
graduandos tivessem contato pela primeira vez com a área teatral, com o trabalho corporal e
afinassem seus sentidos e a percepção do espaço.
Outra condicionante do nosso percurso foi o tempo restrito que nos levou a prazos
apertados para cada etapa de produção com impacto direto na forma que condicionamos o
trabalho, tentando fazer o melhor possível e muitas vezes até mudando o rumo das decisões caso
algo não pudesse ser confeccionado a tempo ou a verba para tal processo fosse demasiadamente
demorada. Como lidávamos com dinheiro público, foi preciso desenvolver os projetos o mais
rápido possível para que o trâmite dos processos de licitação e contratação de serviços não
prejudicasse o cronograma para a estreia do espetáculo.
Esse projeto ofereceu uma oportunidade única de adaptação de nossos conhecimentos
específicos de cada área em uma produção artística. O desafio desta criação em uma
universidade tecnológica também deve ser levado em conta, pois na UTFPR não há cursos de
graduação na área de artes e os alunos que participaram do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico – GDC levaram o projeto em paralelo aos estudos e possíveis estágios. Alunos,
professores e servidores não estão muito acostumados com produções artísticas dentro da
universidade, embora tenham aumentado as iniciativas nos últimos anos, principalmente com o
surgimento de novos cursos de graduação como Licenciatura em Letras, Comunicação
Institucional, Design e Arquitetura e Urbanismo, um projeto desse porte ainda não havia sido
implementado no contexto da universidade.
Compreender como funcionam a criação e a produção de um espetáculo teatral desde sua
concepção à logística foi uma experiência extremamente enriquecedora. Além da vivência na
produção teatral, adquirimos grande aprendizado sobre o espaço cênico e consciência espacial.

Referências:

BABEL. Programa do espetáculo. TUT - Universidade Tecnológica Federal do Paraná.


Impresso. 14 p. Curitiba, 2013.
HAMON-SIRÉJOLS, Christine. Le constructivisme au théâtre. Paris: CNRS Éditions, 2004.
SCHEFFLER, Ismael (Org.) Babel : o processo de criação do espetáculo teatral : catálogo da
exposição. Curitiba: UTFPR, 2013.
TUT. Grupo de Teatro da UTFPR. Acesso: <http://www.ct.utfpr.edu.br/tut/> Disponível em: 20
jun. 2014.

1
Elenco de Babel : Mariane Filomeno, Carol Pellegrini, Monique Rau, Uliana Kovalczuk e Sissa Oliveira e Patricia
Goulart, com assitência de direção de DiegoVon Ancken.
2
Cenografia: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira Martins; Figurinos:
Lívia Gariani, Lucas Queiroz Morais e Maria Lígia Freire; Maquiagem: Amanda Marciniak, Betina Bonilauri e
Mariana Garcia da Silva, com consultoria de Juliane Friedrich; Iluminação: Felipe Serenato Leal e Luiz Ricardo
Castro; Sonoplastia: Henrique Jakobi, Lua Volpi e Ismael Scheffler. Com a colaboração na produção de Diogo
Duda, Jaqueline Modesto e Dáphene Zandoná.
3
A execussão da cenografia foi feita por duas equipes: a) Villa Hauer Cultural, tendo o cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho encabeçando o trabalho em conjunto com os serralheiros Ademar Cesar Silva Brasileiro e
Adilson “Magrão” ; b) a Divisão de Obras e Manutenção de Imóveis da UTFPR, tendo como serralheiros Rafael
Gonçalves Soares e Ataíde Sanches.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.
JOHAN HUIZINGA: JOGO CULTURAL - RELAÇÕES COM OS ESTUDOS DAS
PERFORMANCES CULTURAIS.

Mestranda Onira de Ávila Pinheiro Tancrede; Orientador Prof. Dr. Eduardo Reinato;
Mestrado em Performances Culturais; UFG (Universidade Federal de Goiás)

Resumo
No presente artigo escrevo sobre a pesquisa em fase inicial que investiga as
manifestações culturais apresentadas através das características do jogo cultural elaboradas
por Johan Huizinga que se mostram nos contextos artístico, social e cultural e de que
forma se relacionam com os estudos das performances culturais. Busco nesta pesquisa um
trabalho teórico à luz da minha experiência com a prática tanto em sala de aula, com jogos
teatrais, brincadeiras e nas cirandas cantadas, como também em outras vivências educativas
do contexto cultural. A pesquisa irá contemplar de forma interdisciplinar as relações
metodológicas que competem uma pesquisa teórica, colaborando com os estudos
pretendidos durante a investigação que se inicia. Com essa pesquisa, poderei fazer algumas
considerações sobre a importância que os processos desenvolvidos pelos jogos têm em uma
determinada cultura e compreender o sentido lúdico dos jogos culturais. O que exige a
compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto estético com características
próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento. Assim, o
estudo em questão me permitirá não somente, refletir sobre as características dos jogos
culturais, como também trará benefício e contribuições para a área quanto ao tema
investigado.

Palavras chave: História, jogo cultural, patrimônio.

JOHAN HUIZINGA: CULTURAL GAMES – RELATIONS WITH CULTURAL


PERFORMANCES STUDIES
Abstract
In this article I write about a research that investigates, in an early stage, cultural
events presented by the features of the cultural game developed by Johan Huizinga, that
show themselves in artistic, social and cultural contexts and how they relate to the study of
cultural performances . Seeking a theoretical work in this research in light of my experience
with the practice both in the classroom with theater games, jokes and sing alongs, as well as
other educational experiences of cultural context. The research will include an
interdisciplinary view of the methodological relations competing theoretical research,
collaborating with the studies intended for initial research. With this research, I can make
some considerations about the importance of the processes developed by the games in a
particular culture and I can get a better understanding of the playful sense of cultural
games. This requires an understanding of art as a phenomenon of culture as an aesthetic
object with its own characteristics and as a way of relating to the construction of knowledge
approach. Thus, the present study will allow me to not only reflect on the characteristics of
cultural games, but to bring benefit and contributions to the field as the subject is
investigated.

Keywords: History, cultural game, patrimony.


2

A pesquisa em questão, objetiva analisar os pontos de diálogo entre as


características do jogo cultural elaborado por Johan Huizinga1, apresentadas no livro Homo
Ludens, e as performances culturais. No livro Homo Ludens, Huizinga (2007) define o jogo
cultural como:
Jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo,
acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e uma consciência de ser
diferente da vida cotidiana. Assim definida, a noção parece capaz de abranger
tudo aquilo a que chamamos “jogo” entre animais, as crianças e os adultos: jogos
de força e de destreza, jogos de sorte, de adivinhações, exibições de todo gênero.
(p.33)

Este conceito de jogo de Huizinga, já apresenta, em sua própria definição, um


diálogo com as performances culturais, visto que ambos correspondem ao desempenho dos
jogadores, tanto na vida cotidiana como também na atividade de socialização, como
brincadeira ou em algum entretenimento cultural, como mostra Richard Schechner (2006).
Performances culturais foi um termo utilizado por Schechner2 (2006), que levou em
consideração o conceito elaborado por Milton Borah Singer3 (1972) de “performance
cultural” - uma forma de expressão artística que obedece a uma programação prévia da
comunidade, com local próprio para sua ocorrência, horário definido para início e fim das
atividades, delimitação entre performers e público.
Nas performances as expressões simbólicas concorrem para uma “unidade dos
sentidos” (sinestesia) que habilitaria a cultura a entreter a si própria com a ideia da unidade
de significados. Dessa maneira percebo que o jogo também é uma situação onde as
performances podem acontecer. Afinal de contas, elas podem tanto pertencer à vida
cotidiana, quanto a uma atividade de socialização, tal como brincadeira e/ou, em algum
entretenimento cultural, como mostra Schechner (2006).
Todavia, além de recorrer aos estudos de Schechner, buscarei analisar as
características das performances culturais4 sob o ponto de vista de outro autor, a saber,
Milton Singer (1972). Assim, em grande parte a fundamentação teórica que dará suporte a
esta proposta de investigação teórica contará com ambos os autores para investigar se
existem pontos de diálogos entre as performances culturais com o jogo cultural.
De uma maneira mais plural, Robson Camargo de Corrêa5 (2012) define
performances culturais como:

[...] um conceito que está inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e


que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas
determinações concretas; o estabelecimento de seu processo de desenvolvimento
e de suas possíveis contaminações; assim como do entendimento das culturas

1
Johan Huizinga ( 1872 – 1945) foi um professor e historiador, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e
o Renascimento.Destaca-se ainda a sua principal contribuição: o Homo Ludens, escrito por ele no ano de 1938.
2
Richard Schechner (1934 - ) é professor de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts daUniversidade
de Nova Iorque, editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists. Schechner é um dos iniciadores do programa de
Estudos da Performance e fundador do The Performance Group, um grupo de teatro experimental.
3
Milton Borah Singer (1912- 1994), antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte americano.
4
Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955 por Milton Borah Singer (1912- 1994) em estreito diálogo com as
construções teóricas de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo, comunicador e etnolinguista Robert
Redfield (1879 - 1958).
5
CAMARGO, Robson Corrêa de. Coordenador do mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais – Universidade federal de Goiás.
3

através de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade, ou seja, como o


homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe sua gênese, sua
estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser. Neste movimento as performances
são sempre plurais, pois pretendem o estudo comparativo, seja a partir de uma
perspectiva macro, em contraste com as micro experiências (as variadas formas
não oficializadas e diversas a que temos acesso) ou mesmo entre as pequenas
tradições ou vice-versa. (p.1)

Percebemos, portanto, a partir dos conceitos aqui brevemente expostos, que o jogo
cultural e as performances culturais, sugerem ser um tema de pesquisa que articula diversas
áreas do conhecimento humano: experiência, memória, aspecto lúdico, estética, tradição e
teatralidade, entre outros. Em algumas leituras sobre jogo cultural como, por exemplo, os
estudos de Ricardo Japiassu (2001) sobre jogos tradicionais e o jogo teatral, e as
performances culturais, encontramos alguns aspectos comuns: a história do jogo como uma
história da cultura, as características e função do jogo em cada período histórico.
Esta articulação entre o jogo cultural e o teatro é visível no comentário de Japiassu
(2001) quando afirma ser o teatro um:

Importante meio de comunicação e expressão que articula aspectos plásticos,


audiovisuais, musicais e linguísticos em sua especificidade estética, o teatro
passou a ser reconhecido como forma de conhecimento capaz de mobilizar,
coordenando-as, as dimensões sensório-motora, simbólica, afetiva e cognitiva do
educando, tornando-se útil na compreensão crítica da realidade humana
culturalmente determinada. (p. 22)

O entendimento do autor quanto à amplitude da teatralização como compreensão e


crítica a cultura aproxima-se do entendimento de Huizinga (2007) sobre o fenômeno
cultural, não obstante a publicação de Homo Ludens ser publicado nas primeiras décadas do
século XX. A partir das características e classificações estabelecidas por Huizinga (2007),
busco analisar a relação com as performances culturais, utilizando conceitos de Schechner
(2006) e Singer (1972). Assim, minha pesquisa parte das características do jogo cultural,
partindo do pressuposto que a aproximação entre ambos ocorre pelo viés cultural. Jogar é
estar em um momento imaginativo, em um espaço ficcional, preestabelecido, com códigos
e regras sociais, onde ficamos fora da vida cotidiana, mesmo que ainda estejamos nela.
Vejamos o que Huizinga (2007) descreve sobre jogo quando fala sobre o estado da
criança de se sentir “transportada”:

Sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um
alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais
bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um
príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou tigre. A criança fica literalmente
“transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a
acreditar que realmente é está ou aquela coisa, sem, contudo perder inteiramente
o sentido da “realidade habitual”. (p.17)

Huizinga (2007) enxerga o jogo como elemento da cultura humana. Aliás, ele
afirma ser o jogo anterior à cultura, visto que esta pressupõe a existência da sociedade
humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais. O autor acrescenta: “A
existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer
4

concepção do universo.” (Huizinga, 2007, p.32). Afinal, o objetivo inicial não é ensinar
apenas técnicas para formar atores, mas poder estimular a imaginação criativa do aluno,
que já se faz dramática desde a sua concepção, pois ser criativo é uma característica natural
do ser humano.
Ao falar sobre o processo criativo dos artistas, Japiassu (2007) explica: “não é a
formação de artistas, mas o domínio, a fluência, e a compreensão estética dessas complexas
formas humanas de expressão que movimentam processos afetivos, cognitivos e
psicomotores.” (p. 24). O jogo cultural ou jogo teatral não busca apenas a formação de
atores, mas os constantes exercícios da prática social, permitindo que se trabalhem melhor
em conjunto, se expressem com mais desenvoltura e, obviamente desenvolvam sua
consciência crítica. Processo criativo é o que podemos perceber bem na brincadeira cantada
a saber as “cirandas”, que é considerada uma atividade lúdica, rítmica e de expressão do
movimento corporal que integra nossa cultura. Assim quando a criança, jovem e adulto
brincar, estará movimentando o corpo, trabalhando ritmos e assim possibilitando-os
experimentar o som e cultivar a escuta. Privilegiando os aspectos culturais de forma
coletiva, trabalhando socialmente em grupos.
Entre as brincadeiras infantis, em outro estudo (MAFFIOLETTI, 2004, p.37) a
autora destaca que a brincadeira cantada é uma atividade cooperativa e coletiva em que
aprendemos a ser mais humanos, por gerar o sentimento de “estar com”. Por meio da
brincadeira cantada são criados vínculos sociais e é retratada a cultura do meio social. Nas
brincadeiras cantadas às crianças realizam movimentos sincronizados em que cada um é
fundamental para o sucesso do desempenho do grupo. A palavra ciranda tem origem
portuguesa e significa “peneira grossa” ou “joeiro”. Lembra o movimento rotativo das
peneiras ao serem manuseadas. A roda pode ser considerada uma das formas mais primitiva
de dançar e está presente em todos os povos com influência de várias culturas.
Outro ponto de interesse investigativo desta proposta é analisar e comparar as
interfaces dos jogos e as performances culturais: Como se articulam as diferentes
linguagens e as concepções estéticas inseridas nessas atividades?
Schechner (2006) apresenta oito tipos de situações onde as performances culturais
poderão ocorrer: “1) Na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo; 2) Nas
artes; 3) Nos esportes e outros entretenimentos populares; 4) nos negócios; 5) na
tecnologia; 6) No sexo; 7) Nos rituais – sagrados e seculares; 8) Em ação.” (SCHECHNER,
2006. p.33-34). Como podemos notar o conceito de performances culturais é amplo e
abarca várias situações que podem ser vivenciadas em separado ou entrecruzadas com
outras, em um campo multidisciplinar de conhecimento, onde as áreas se misturam e se
completam. Por exemplo, jogar em teatro implica colocar o aluno numa situação lúdica em
que ele precise solucionar um problema cênico. Existem regras as quais ele deve seguir e
objetivos que devem alcançar. Os alunos/jogadores interagem ora jogando, ora assistindo.
Desse modo, é possível desenvolver o senso crítico, além do senso estético, além do
aprendizado tornar-se prazeroso e independente.
Marvin Carlson (2009) tece considerações a respeito dessa relação quando afirma:

O Huizinga (2007) considera, como uma das características básicas do jogo, o


desenvolvimento e o reforço de um Espirito e de uma Consciência de
comunidade, e sugere que seus efeitos sempre continuam para além da
experiência momentânea do jogo. Assim, o jogo cultural, como a performance
cultural de Singer, permite um fortalecimento da comunidade, e a
“presentificação pela representação” dos valores escondidos, das suposições e
5

crendices da cultura. E isso se torna claro quando Huizinga (2007) explora a


proximidade das relações entre jogo e ritual. (p.38)

Assim como Huizinga (2007) não teve a pretensão de responder todas as questões
sobre o jogo cultural, por considerar que a cultura passa por constantes transformações,
Schechner (2006) também não teve a pretensão de definir as preposições usadas para
definir as performances culturais, uma vez que as mesmas apresentam conceitos bem
amplos. Como tal, não tenho a pretensão de definir nada, nem desmistificar tudo sobre o
jogo cultural e a performances culturais, pela totalidade imensa de informações acerca do
tema. Meu foco recai nos possíveis pontos de diálogos entre esses conceitos tão amplos e
desafiadores. É possível estabelecer relações entre os estudos sobre o jogo cultural de
Johan Huizinga com os estudos das performances culturais? Quais são? Como ocorrem?
Com essa pesquisa, poderemos fazer algumas considerações sobre a importância
que os processos desenvolvidos pelos jogos desenvolvem em uma determinada cultura e
compreender o sentido lúdico dos jogos culturais considerando minhas experiências
práticas. O que exige a compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto
estético com características próprias e como forma de abordagem relacionada à construção
do conhecimento. Assim, o estudo em questão me permitirá, não somente, refletir sobre
minha experiência com jogos teatrais como também, trará benefício e contribuições para a
área quanto ao tema investigado. Particularmente, a investigação trará benefícios para
minha prática docente ao permitir aprofundamentos teóricos, conceituais e procedimentais,
que me permitirão desdobramentos em outros estudos, no futuro.
A pesquisa busca estabelecer as possíveis relações dos estudos sobre o jogo cultural
de Johan Huizinga com os estudos das performances culturais; Refletir sobre o jogo
cultural e as performances culturais, Compreender o sentido aprender/entender o jogo
cultural; Identificar, compreender e analisar as características do jogo cultural - elaborados
por Johan Huizinga -, bem como as características das performances culturais; Reconhecer
as possíveis relações de similaridade e/ou diferenciações entre as propostas de Huizinga e
as performances culturais.
Esta pesquisa se fundamentará a partir das leituras feitas do livro “Homo Ludens”,
de Johan Huizinga (2007). Jogo, a que se refere Huizinga (2007) é jogo com regras que
constituem o fundamento do processo educacional e serve também como uma forma de
contribuição a criação da realidade cênica. Segundo Huizinga (2007) “o jogo sempre
representa algo”, e a partir desse argumento que busco as possíveis representações feitas
pelo jogo na vida do indivíduo.
As performances culturais alcançam quase todas as atividades humanas, conforme
propõe Schechner (2006) e suas definições têm foco em um ponto: vida cotidiana. O
intento de Schechner (2006) é justamente dar ênfase a amplitude que as performances
culturais têm em sua concepção. Entretanto, ele não coloca essa definição como absoluta ou
como a verdade, mas como algo que vem se constituindo assim, historicamente, como um
processo. Enfim, Schechner (2006) por ser um autor que vem do teatro, contribui de
sobremaneira a esta investigação. Associo de maneira análoga a definição de Schechner
(2006) sobre “comportamento restaurado” na performance, com as brincadeiras, o jogo
cultural, e como tudo que de uma forma ou outra nos transforma e nos faz reviver uma
experiência. Não obstante sejamos a mesma pessoa após um jogo, ainda assim, nos
sentimos transformados, vivendo independentemente de um mundo preestabelecido. O que
pode ser reconhecido nesta definição de Schechner (2006):
6

Comportamento restaurado é o processo chave de todo tipo de performance, no


dia-a-dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas arte. O comportamento
restaurado existe no mundo real, como algo separado e independente de mim.
Colocando isto em termos pessoais, o comportamento restaurado é – eu me
comportando como se fosse outra pessoa, ou eu me comportando como me
mandaram ou eu me comportando como eu aprendi. (p.33-34)

Esta é uma pesquisa teórica, bibliográfica, exploratória e interdisciplinar que se


configura na relação dinâmica entre cada um de seus feixes metodológicos, ou seja, para o
desenvolvimento desta pesquisa é necessário compreender a complexidade das
características do jogo cultural e das performances culturais. Entendo como pesquisa
teórica aquela “dedicada a reconstruir teoria, conceitos, idéias, ideologias, polêmicas, tendo
em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos.” (Demo, 2000, p. 20). Isto
não implica imediata intervenção na realidade, mas nem por isso deixa de ser importante,
pois seu papel é decisivo na criação de condições para a intervenção. O conhecimento
teórico realizado de maneira adequada, “acarreta rigor conceitual, análise acurada,
desempenho lógico, argumentação diversificada, capacidade explicativa.” (Demo, 1994, p.
36). Neste sentido, constituem os vértices da estrutura metodológica deste projeto: a
pesquisa teórica, bibliográfica, entrelaçada à investigação empírica, sobre minha prática
enquanto professora de teatro. A valorização da investigação empírica ocorre pela
“possibilidade que oferece de maior concretude às argumentações, por mais tênue que
possa ser a base fatual. O significado dos dados empíricos depende do referencial teórico,
mas estes dados agregam impacto pertinente, sobretudo no sentido de facilitarem a
aproximação prática.” (Demo, 1994, p. 37).
Para tanto, conto com leituras primárias e secundárias de livros, artigos, revistas e
site que tratem do assunto pesquisado, discriminados nas referências e levantamentos
bibliográficos abaixo. Estas leituras visam contribuir com a compreensão do contexto em
que o jogo cultural e as performances culturais estão inseridos, bem como os enfoques
teóricos desenvolvidos por autores que tratam desses assuntos.

Referências
Referências Bibliográficas
CARLSON, Marvin. Performance – Uma Introdução Crítica. UFMG, 2009. Capítulo I
Performance e Ciências Sociais.
DAWSEY, John. Victor Turner e a Antropologia da Experiência. Cadernos de Campo,
no. 13, PGS. 163-176. 2005.
DEMO, Pedro. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no
caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro1994.
________. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.
JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino de Teatro. 2ª edição. São Paulo: Papirus
Editora, 2003.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da Cultura. SP: Perspectiva,
2007.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Trad. Dandara. Rio de Janeiro, Revista de
teatro: O Percevejo, UNIRIO, Ano 11, número 12, 2006.
MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerquer . Brincadeiras cantadas. Revista Pátio Educação
Infantil, Ano II, n.4, abr./jul., 2004.
7

SINGER, Milton. When a Great Tradition Modernizes. Chicago: University of Chicago


Press, 1972.

Referências virtuais
CAMARGO, R. Performances Culturais: Um Conceito Interdisciplinar e uma
Metodologia de Análise. http://www.performancesculturais.emac.ufg.br/pages/38092.
Acesso em: 12 de agosto de 2013.

Levantamento Bibliográfico
BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental
(1928). In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, 2ª. Edição, Brasiliense, 1986.
CAMARGO, R.; CAPEL, H.; REINATO, E. Performances Culturais. São Paulo: Editora Hucitec,
2011.
CHACRA, Sandra. Natureza e sentido da improvisação teatral. 2ª. Edição. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2010.
COHEN, R. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva - Editora da
Universidade de São PAULO, 1976.
COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro & Pensamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
________. [1968] Jogo, teatro e pensamento - As bases intelectuais do teatro na educação.
São Paulo: Perspectiva, 1980.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2007.
________. Jogos teatrais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1984.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra,
2001.
SPOLIN, Viola. [1963] Improvisação para o teatro. Tradução: Ingrid Dormien Koudela e
Eduardo José de Almeida Amos. 4ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

DA PENA DE SHAKESPEARE AO ‘ROMEU E JULIETA’ DO GALPÃO: UMA


EXPERIÊNCIA DO NOVO LUGAR DA DRAMATURGIA CLÁSSICA

Paula Mathenhauer Guerreiro (Fapesp; Bolsa de Mestrado); Orientador: Isa Kopelman;


Unicamp

Faz quase duzentos anos que o termo encenação existe com o sentido que lhe
atribuímos hoje e, em 18801 – com o início da era dos encenadores –, irrompe-se a crise
do drama. Drama: vocábulo que serve tanto para descrever a obra literária, quanto a sua
representação cênica, paralelo que não representa uma coincidência, visto que “o drama,
como forma literária, é uma obra destinada à cena e, de modo semelhante, a maioria dos
espetáculos teatrais parte de obras literárias” (WILLIAMS, 2010, p. 215). Se, em termos
etimológicos, os dois conceitos habitam a mesma forma, a prática evidencia uma intensa
tensão entre ambas as instâncias, sobretudo a partir de 1970, quando teria começado o
que Hans-Thies Lehmann batizou de teatro pós-dramático, em uma obra que parte da
hipótese de que

ocorreu uma profunda ruptura no modo de pensar e fazer teatro. Algo que já
estava anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX – a
valorização da autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de
“textocentrismo” – se desenvolve mais radicalmente, a ponto de assumir um
sentido modelar como contraponto da arte do processo de totalização da
indústria cultural. Desse modo, a tendência “pós-dramática” seria uma
novidade histórica não apenas por razões formais, mas também pela negação
estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática
(CARVALHO in LEHMANN2, 2007, p. 7)

Se o que se observa, desde 1880, é uma crise, seria de se pressupor um período


breve, demarcado, necessariamente, por uma resolução: a morte do drama é o que
postula Lehmann, mas montagens marcantes da nossa história recente parecem, a
contragosto do teórico alemão, afirmar que a dramaturgia clássica ainda é o legado de
que partem grandes espetáculos dos nossos tempos. O Romeu e Julieta (1992) do grupo
Galpão é uma das mais consagradas obras do teatro brasileiro e colabora com esse
estudo na medida em que leva à cena contemporânea possibilidades concretas de
diálogo com uma dramaturgia clássica, ao atualizar o que Shakespeare tem a dizer com
uma história em que o ódio e a violência, ainda que banhados de lirismo, arrastam tudo
que é belo, mesmo o amor entre dois adolescentes.
Perscrutando procedimentos utilizados nessa montagem e o resultado artístico
que se apresenta, encontram-se algumas características dessa nova aliança entre texto e
1
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013. O autor considera que o
advento da encenação se deu por volta de 1820 e que o surgimento de encenadores acontece a partir dos
anos 1880, “visto que a era dos encenadores não começou antes da crítica radical ao teatro feita por Zola
ou Antoine, da mesma maneira que não começou “nem antes” da contraproposta do simbolismo” (p. 2).
2
CARVALHO, Sérgio de. in LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Editora Cosac Naify,
2007.
cena, que revelam as inúmeras possibilidades à disposição do artista que dialoga com o
devir cênico de que fala Jean-Pierre Sarrazac, ensaísta e dramaturgo francês cuja visão
ampara este estudo na perspectiva de que, ao contrário de uma rescisão entre o drama e
a cena, o que aconteceu foi uma mutação benéfica da abordagem que se pode propor ao
texto dramático.

No fim do século 19, com o advento da encenação moderna – Wagner,


Antoine, Stanislavski –, o texto dramático encontrou, na sua própria
incompletude, a sua abertura. Em cada peça, há um vazio que chama o palco,
a relação com o espectador. É o que eu chamo de devir cênico de um texto
teatral. Um texto forte para o teatro é aquele que tem a forma aberta,
rapsódica, que não só expressa seu desejo pela cena, pelos atores, pelo
público, mas também reinventa essa relação (SARRAZAC, 2012)3

A teatralidade do Romeu e Julieta da rua

Pode-se dizer que o vazio do texto a que se refere Sarrazac corresponde, na


prática, à teatralidade que se observa na obra encenada. A famosa definição de Roland
Barhes da teatralidade como o “teatro menos o texto”, embora não seja falsa, peca por
não sugerir as relações que podem ser estabelecidas entre o texto dramático e outros
componentes da representação teatral, entre os quais, ao lado da cenografia, iluminação,
trilha sonora – dentre outros recursos –, figura-se, saliente e vivo, o jogo entre os atores.
Conforme será visto adiante, na experiência do Galpão, todos esses componentes,
sobretudo o trabalho da interpretação, são influenciados pelo texto, considerado tanto
como material compreensível, quanto como material sonoro.
Com a direção de Gabriel Villela, o conjunto desses elementos foi considerado
uma “preciosidade” por Bárbara Heliodora. “Mesmo adaptando para as necessidades do
grupo e das circunstâncias, o novo texto foi absolutamente fiel às intenções de
Shakespeare”4. Tal fidelidade, tão temida no século da experimentação, não coloca a
perder os avanços conquistados pelo surgimento do encenador moderno; explora, antes,
a teatralidade que, em potência, repousa no legado daquele que é considerado o maior
dramaturgo da história do teatro.
Uma breve interrupção antes do início da análise que se segue: este estudo não
quer discutir a emancipação da cena em relação ao texto, que já é ponto pacífico no
campo da definição desses gêneros artísticos. “O velho debate para saber se o teatro é
literatura ou arte autônoma não mais se coloca há já muito tempo” (PAVIS, 2013, p.
382). A busca é por verificar, diante da boa adaptação de uma obra clássica, algumas
3
Trecho de entrevista publicada no jornal Estadão, na edição de 14/03/2012, que Sarrazac concedeu em
sua vinda ao Brasil, para lançar seu “Léxico do drama moderno e contemporâneo” (Cosac Naify, 2012).
Disponível em: http://search2.estadao.com.br/noticias/arteelazer,teorico-jean-pierre-sarrazac-defende-
sobrevivencia-do-teatro,848271,0.htm Acessado em: 06/07/2014.
4
Entrevista concedida ao Jornal do Commercio, publicada em 20/04/2014, em ocasião aos 450 anos de
Shakespeare. Heliodora, considerada uma das maiores críticas teatrais brasileiras e a maior autoridade de
Shakespeare no nosso país, afirmou que o espetáculo do Galpão foi a melhor adaptação do Bardo a que
ela já assistiu. A entrevista está disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/artes-
cenicas/noticia/2014/04/20/barbara-heliodora-fala-dos-450-anos-de-shakespeare-125499.php Acessado
em 06/07/2014.
características que revelam existir, entre essas duas instâncias, um imbricamento
indissociável, uma relação que, ao invés de depor contra a obra – como afirmaria
Lehmann –, torna-a integralizada. “Nós não pensamos, como este brilhante teórico5, que
a encenação “do teatro da época moderna” não é “geralmente mais que declamação e
ilustração do drama escrito”” (SARRAZAC, 2007).
Nesse sentido proposto pelo teórico francês, serão pontuados alguns aspectos
que fazem do Romeu e Julieta do grupo Galpão uma experiência emblemática daquele
que seria o novo lugar da dramaturgia clássica na cena contemporânea: o texto como
conteúdo compreensível e material sonoro; a figura do dramaturg; e o empréstimo de
artes exteriores.

O texto como conteúdo compreensível e material sonoro

A teatralidade da montagem – o que Villela propõe à cena e o que conquistam os


atores – leva em consideração o texto tanto como conteúdo compreensível quanto como
material sonoro. O conteúdo compreensível – com um caráter de “tragédia da
precipitação”, em que as personagens agem por impulso e atravessadas por um risco
constante – é simbolizado, sobretudo, pelo uso de pernas de pau. Eduardo Moreira, ator
que interpreta Romeu e um dos fundadores do Galpão, afirma que “a perna de pau dá
muito bem essa ideia de falta de equilíbrio. Você está lá em cima, mas pode cair a
qualquer momento”6. Esse desequilíbrio foi presente em todo o processo de montagem,
não só em cima das pernas de pau, como atravessando, em exercícios frequentes, uma
trave de madeira, a um metro e meio do chão, enquanto se pronunciavam as falas.
O perigo da queda iminente conferiu ao texto uma qualidade que dialogava com
o texto também como material sonoro, na medida em que essa ideia de precipitação, no
espetáculo, é construída também a partir da escolha da tradução de Onestaldo
Pennaforte, que, primando pelo rigor com as rimas e tamanho dos versos, consegue
estabelecer a velocidade e a pulsação adequadas à fala. Cacá Brandão, dramaturgista do
espetáculo e autor de seu diário de montagem, registra que

A virtuosidade exigida ao corpo dos atores equivale à virtuosidade retórica e


confere ao texto a pronúncia acrobática e vibrante com que as palavras da
clássica tradução de Pennaforte se convertem em ação, para explodir junto à
plateia, acrescidas de um sentido não racional, vivo e imprevisto
(BRANDÃO, 2003, p. 96).

5
Com “brilhante teórico”, Sarrazac refere-se ao Lehmann, no artigo “A reprise (resposta ao pós-
dramático)”, disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-
dramatico/ Acessado em: 06/07/2014.
6
Declaração feita durante entrevista concedida à BBC, para matéria sobre a reestreia do espetáculo no
Globe Theatre, em Londres, que foi publicada no site do jornal Estadão, em 20/04/2012. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-galpao-reestreia-romeu-e-julieta-em-londres,863556
Acessado em: 06/07/2014.
A figura do dramaturg

“Para Pavis (1999, p. 177), o emprego técnico moderno do termo Dramaturg


designa atualmente “o conselheiro literário e teatral agregado a uma companhia teatral,
a um encenador e ou responsável pela preparação de um espetáculo”” (QUADROS,
2007, p. 11). Foi essa a função que exerceu Carlos Antônio Leite Brandão – Cacá
Brandão – na montagem: sua marca na encenação começa já no trabalho de mesa,
quando oferece, a toda equipe, extensivos estudos acerca de Shakespeare e sua era,
história da arte, maneirismo e barroco (que influenciariam a montagem), e se
desenvolve, ao longo do processo, não só no delicado processo de adaptação do texto à
rua, como em aspectos relacionados à interpretação dos atores.
A adaptação do texto tem duas frentes: a condensação do texto dramático, que
deveria ser cortada em cerca de 50%, para que a encenação durasse, em média, noventa
minutos, e a criação do texto para um narrador.

Como critério inicial, através do qual cortei um terço da peça, procurei


preservar no texto o essencial do trágico e do cômico e o que se adequava às
intenções cênicas de Gabriel. Apoiava-me nos comentadores da peça, na
intuição daquilo que conhecia do diretor e na árdua tentativa de enxergar o
que tinha força no texto para funcionar como “pré-texto” capaz de inspirar o
diretor e o elenco (BRANDÃO, 2003, p. 102).

Quanto à criação desse narrador, encontra-se um Shakespeare do sertão, que,


muitas vezes lembrando ao público de que se trata de uma representação, faz emergir
um tom de metalinguagem, como o que acontece quando ele diz: “Convido-vos a
transformar esta praça no salão de festa dos Capuleto”. É ele quem costura a peça,
suprimindo, com uma postura de contador de histórias, lacunas relativas a partes do
texto eliminadas e à redução do número de personagens.
Essa figura remete, em algum grau, à rapsódia, conceito desenvolvido por
Sarrazac em O futuro do drama que “corresponde ao gesto do rapsodo, do ‘autor-
rapsodo’, que, no sentido etimológico literal – rhaptein significa ‘costurar’ – ‘costura ou
ajusta cânticos’” (SARRAZAC, 2012, p. 152), conferindo à obra a estrutura de uma
montagem dinâmica.

Empréstimo de artes exteriores

O que favorece essa pulsão rapsódica da forma dramática, para Sarrazac, é a


incorporação de artes exteriores. No Romeu e Julieta do Galpão, é evidente a
intervenção de duas outras naturezas artísticas: o circo e a literatura não-dramática.
A arte circense, de que o espetáculo herda todo o trabalho com o desiquilíbrio –
tão caro à montagem –, é também o que enquadra a obra, com muita potência, como
teatro de rua, restituindo o caráter popular com que Shakespeare concebeu o texto e
estabelecendo um contato direto com o público.
Da literatura, o processo pinça duas influências: a linguagem de Guimarães
Rosa, cujo ritmo e musicalidade são agregados à fala do narrador, e sonetos de
Shakespeare, que também são evocados na concepção desse discurso.
É nesse ambiente popular, em que a influência de Guimarães Rosa se imbrica
com a linguagem circense, que caracterizações grotescas, como os peitos enormes da
Ama e maquiagens fortes, convivem com elementos oriundos da religiosidade popular:
“na festa de Julieta, no seu casamento ou no seu funeral, os personagens usavam folhas
de comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge, arruda e outras plantas mágicas com as
quais eles faziam menção de estar se benzendo” (LOPES, 2009, p. 164).

Considerações finais

O breve apontamento desses três aspectos – a abordagem do texto como


conteúdo compreensível e como material sonoro, a figura do dramaturg e o empréstimo
de artes exteriores – traz apenas alguns dos recortes pelos quais é possível abordar esse
novo lugar da dramaturgia clássica, sublinhando não a rescisão entre o texto e a cena,
mas o alargamento da noção de drama e das possibilidades de levá-lo à cena.
Mestre de Sarrazac, o teórico Bernard Dort (1995) acredita que

Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está
em vias de apagar-se. Ela deixa progressivamente espaço para a ideia de uma
polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem
para o fazer teatral. [...] É a representação teatral como um jogo entre as
práticas irredutíveis de um ao outro e, todavia, conjugadas como momento
onde eles se confrontam e questionam, como combate mútuo no qual o
espectador é, no final das contas, o juiz (DORT apud SARRAZAC, 2007).

A tendência é que essa polifonia – tão bem-vinda a uma criação em que


confluam os trabalhos de um encenador, dos atores, do dramaturgo, do dramaturg e dos
tantos outros artistas que muitas vezes participam de um processo artístico – submeta-se
à aprovação do século da experimentação, em um discurso que se pauta em rótulos
como “autenticamente contemporâneo”, “extremamente contemporâneo”, etc.. Tal
perspectiva elege

esta contemporaneidade como um valor em si, que se substitui pela antiga


noção de “vanguarda”. [...] De sua parte, Lehmann invoca a “verdadeira
contemporaneidade”: “a questão seria saber se a estética de certa prática
teatral testemunha uma verdadeira contemporaneidade, ou se ela não
perseguiria apenas antigos modelos com técnicas bem dominadas”
(SARRAZAC, 2007)

Contudo, a relação polêmica entre a dramaturgia clássica e o teatro dos nossos


tempos, mais do que se reduzir a esses rótulos contemporâneos, aponta um dos aspectos
mais paradoxais do teatro: o convívio do que é eterno no texto com o que é efêmero – e
nunca reprodutível – da cena. Quer no terreno imperecível, quer no fugaz, as cenas de
Romeu e Julieta, a mais famosa história de amor da humanidade, chegam aos leitores e
espectadores da grande Londres, da romântica Verona ou da pequena Morro Vermelho7,

7
Cidade do interior mineiro, em cuja praça central o grupo Galpão realizou ensaios de Romeu e Julieta.
porque há algo de universal no legado de Shakespeare que o mantém vivo tanto na
Inglaterra do século XVI, quanto no interior mineiro do século XXI. Como disse Peter
Brook, o Bardo é como um carvão, cuja real qualidade só se contempla diante do fogo
ateado pela cena.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Mateus. Bárbara Heliodora fala dos 450 anos de Shakespeare. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 20 de abril de 2014.
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Diário de montagem: Romeu e Julieta. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
CABRAL, Paulo. Grupo Galpão reestreia Romeu e Julieta em Londres. Estadão,
São Paulo, 20 de abril de 2012.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Editora Cosac Naify, 2007.
LOPES, Rogério. A trajetória de Romeu e Julieta: do teatro inglês renascentista ao
teatro popular brasileiro. Artcultura, v. 11, n. 19, 2010.
MENEZES, Maria Eugênia. Teórico Jean-Pierre Sarrazac defende sobrevivência do
teatro. Estadão, São Paulo, 14 de março de 2012.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013
QUADROS, Magali Helena de. Buscando compreender a função de dramaturgista.
Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Teatro, 2007.
SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Sala Preta, v. 13, n. 1, p. 56-70,
2013.
____________________. A reprise (resposta ao pós-dramático). Trad. Humberto
Giancristofaro. Questão de Crítica: Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais,
mar. 2010.
____________________. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Editora
Cosac Naify, 2013.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESPAÇO OUTRO: CONSTRUINDO RELAÇÕES

Paulo Eduardo Pinheiro Rosa (CAPES; Mestrado); Orientadora: Sandra Meyer Nunes;
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

INTRODUÇÃO

De acordo com Patrice Pavis (2008, p. 113-114) em seu livro “Dicionário de Teatro”,
a palavra Dramaturgia tem origem no Grego, que significa compor um drama, e essa
significação sofre uma evolução do sentido original e clássico.

Dramaturgia designa então o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas


que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer.
Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do
espaço cênico, a montagem, a interpretação do ator, a representação
ilusionista ou distanciada do espetáculo. Em resumo, a dramaturgia se
pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e
cênico e de acordo com qual temporalidade. A dramaturgia, no seu sentido
mais recente, tende portanto a ultrapassar o âmbito de um estudo do
texto dramático para englobar texto e realização cênica. (grifo meu)

Assim, todas as escolhas da cena (atuação, iluminação, espaço, entre outros) podem
ser encaradas como dramaturgia e as mesmas devem estar consoantes com a direção
proposta.
A busca de uma nova percepção do público quanto à obra (historicamente) levou à
alterações no espaço de encenação, disposição do público, propostas de novos locais, etc.
“Assim como Grotowski e Artaud - para citar os mais representativos -, outros encenadores
que utilizam a tradicional estrutura italiana passam a questionar os mecanismos de recepção
nesse espaço” (REBOUÇAS, 2009, p. 127). A partir disso, a experimentação em espaços não
convencionais - como igrejas, manicônios e outros - se fez presente, mas sem deixar de
configurar uma experiência teatral.

o trabalho imediatamente contemporâneo consiste em mudar eventualmente o


lugar cênico, em fazer teatro em toda parte e nos lugares menos feitos para
isso: fábricas, terrenos baldios, praças públicas, cinemas ou... teatros em
ruínas como o Bouffes-du-Nord; a descentrar o espaço, a fraturá-lo em zonas
diversas, a explorar as suas várias dimensões; a jogar com as oposições
espaciais para exaltá-las ou apagá-las (o fechado e o aberto, o contínuo e o
descontínuo); a salientar os signos da teatralidade, a nunca deixar o
espectador esquecer que está no teatro. (UBERSFELD, 2002).

Mas como validar essas escolhas? Não existe na arte uma lei geral, capaz de orientar
todas as escolhas referentes à obra e, portanto, é irreal a existência de um procedimento
correto a ser seguido. O decurso dessas escolhas se dará justamente durante o processo
artístico, sendo o mesmo, definidor de uma regra individual e própria, que não possibilita ser
prevista anteriormente. A obra é a lei de seu fim, governando e regendo o processo criativo.
Cabe ao artista, o lugar paradoxal de seguidor e autor, pois a obra é autônoma ao tempo em
que é regida pelo artista; é, simultaneamente, lei e resultado da sua formação, tendo como
critério o êxito. Assim, a obra prevalece quando resulta, tal e qual, deveria ser. (PAREYSON,
1989).

SOBRE O TEMPO

Dizer, em Godot, quanto tempo se passou desde a última situação beira o impossível.
Os indicativos temporais são cíclicos suspendendo a noção do tempo tal e qual conhecemos.
O segundo ato repete a estrutura do primeiro nos deixando sem conseguir afirmar se é o dia
posterior ou não. As tentativa de localizar qualquer evento no tempo são inúteis. “Embora
pudéssemos localizar o que vem antes e o que vem depois dentro do mesmo dia, já não
saberíamos se aquela ação se refere a um antes e um depois, pois todos os dias seriam o
mesmo” (SCHERER, 2003, p. 61). A vontade de montar Beckett nasce desse universo,
construído à espera de Godot. Da discussão suscitada do tempo e da espera. Da possibilidade
de relacionar, através das situações e relações criadas no texto, nosso espectador com o
tempo.
A relativade irá nos dizer que a condição do tempo não é absoluta e poderá variar de
acordo com o observador. O tempo então se une ao espaço formando o tecido do espaço-
tempo que se deforma e se adequa a cada situação.

O estado não-absoluto do tempo e do espaço foi substituído pela idéia de


estado absoluto do espaço-tempo. Em palavras simples, o espaço e o tempo
estão vinculados um ao outro e são intercambiáveis. (...) Esse novo
significado de simultaneidade mostrou, por sua vez, que aquilo que
entendemos por agora não é universal. Em outras palavras, o meu “agora”
não é o seu “agora”, a não ser estejamos nos movendo à mesma velocidade e
o mesmo sentido. Se não estivermos, nossos “agoras” não serão os mesmos.
(TOBEN; WOLF, 2008, p. 142)

Assim, poderíamos arriscar dizer que o passar de cinco minutos não são iguais para
duas pessoas distintas. Outra possível relação, é a de que o fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
Peter Pál Pelbart, em seu estudo sobre a noção de tempo para Deleuze, nos apresenta a
noção de “Cadeia de Presentes” ao falar da temporalização de imagens para o cinema.
Dizendo que o presente, não se restringe ao momento em que aparece por ele fazer parte de
um todo que o representa; mostra coexistir passado (que não seria um presente antigo),
presente e futuro (que não é um presente por vir). (PELBART, 2010). O fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
A arte, no entanto, possui um tempo próprio, original, que ultrapassa suas dimensões,
um tempo “complicado”, idêntico à eternidade. Sendo que a eternidade não é o mesmo que a
ausência de mudanças ou uma existência ilimitada, mas a própria essência complicada do
tempo. (DELEUZE, 1987, apud PELBART, 2010).1
Aproveitando essa característica do tempo na arte, ao colocar nosso espectador em
espera possibilitamos à ele se relacionar com essa característica do tempo. Esse tempo fluido,
mutante e particular.
“Para o teatro, a questão é sempre o tempo vivido, a vivência temporal que atores e
espectadores partilham e que evidentemente não é mensurável com exatidão, mas apenas
experimentável.” (LEHMANN, 2007, p. 287) Pretendendo criar nessa encenação, um espaço
de suspensão do tempo, retirando do público, as noções de elipses convencionais de tempo,
como exemplificado com a árvore presente no texto base.
Renato Ferracini vai trazer essa tempo experimentável em outros termos, ao dizer que
os elementos de cena confluem para criar um espaço-tempo outro; “essa relação turbulenta,
geneticamente dinâmica, gera uma bolha lírico-poética altamente complexa, que se
movimenta em continuum e se torna independente do espaço-tempo cotidiano, atualizando,
poderíamos dizer, um espaço-tempo poético” (2006)

PRODUZINDO PRESENÇA

Hans Ulrich Gumbrecht em seu livro “A produção de presença” formula sobre a


materialidade da comunicação e como toda comunicação gera presença. Presença essa que,
no entanto, é deixada de lado em virtude de uma geração de sentido, uma interpretação
racional (GUMBRECHT, 2010, p. 39).

A palavra ‘presença’ não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma


relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e
seus objetos. (...) Por isso, ‘produção de presença’ aponta para todos os tipos
de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos
objetos “presentes” sobre corpos humanos. (idem, p. 13).

Gumbrecht ainda irá teorizar que essa materialidade da comunicação e sua


tangebilidade se encontra em constante movimento possibilitando maior ou menor
aproximação e intensidade (idem, p. 38-39). Mas como podemos então “produzir presenças”?
Ao buscar as palavras de outros estudiosos acerca do mesmo fenômeno, encontramos
diversas formas de descrever e explicar essa “energia”.

(...) os atores, em seu longo aprendizado, conseguem, de certa forma, utilizar


e manipular essa energia de maneira expandida, dilatada, quando em cena.
Na Índia, essa presença, que provém da manipulação da energia, é chamada
de prana ou shakt; no Japão, koshi, ki-hai e yugen; em Bali, chikara, taxu e
bayu; na china, kung-fu ou chi.” (FERRACINI, 2003, p. 108).

Ou descrita como o “jogo alquimista” onde “o corpo humano comum, com a sua
experiência comum se transforma em puro ouro de presença dramática através de um ator que
facilita o fluxo de energia, um ‘jogo de oposições’ que negocia as ‘diferenças de potencial’.”2
(LEABHART, 2003, p. 398). Luís Otávio Burnier apresenta o conceito de “corporeidade”,
que seria a forma como essa energia “toma corpo” intervindo no espaço e no tempo, sem, no
entanto, representar o aspecto puramente físico dessa ação, antecedendo-a (BURNIER, 2009,
p. 55).
Mas bastaria o corpo do ator como veiculação dessa presença? Como poderia o
controle dessa energia ser o suficiente para produzir momentos de presença numa cultura de
sentido? Ora, se “todas as culturas e objetos culturais podem ser analisados como
configurações de efeitos de sentido e de efeitos presença, embora suas diferentes semânticas
autodescritivas acentuem com frequência apenas um ou outro aspecto” e se “o tempo é a
dimensão primordial em qualquer cultura de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 41; 110).
WAITING FOR…

Em 1952, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett publicou uma peça intitulada


“Esperando Godot” (En attendant Godot, no original em francês), que gira em torno de dois
personagens, Estragon e Vladimir, em sua eterna espera por Godot. Dois atos ali ocorrem,
pessoas passam, vidas passam, ações acontecem, discussões, vontades... no mesmo lugar ou
seriam lugares diferentes? A árvore mudou, mas os sapatos estão ali... No entanto, Estragon e
Vladimir continuam a esperar Godot.
Em um recente trabalho entitulado “Waiting for…” – o qual assinei a direção –
produzimos essa icônica peça utilizando uma casa abandonada (que fazia parte de uma vila,
também, por inteira abandonada). Acreditamos que tal espaço fosse proporcionar uma
experiência consoante com a proposta dramatúrgica, por ser a efetivação de uma expectativa
não concretizada; um espaço à espera; à espera de algo; à espera por algo. SUSPENSA! Um
edifício abandonado, uma fachada não terminada, uma casa semi-demolida... Aqui, o
espectador assumiria o papel de expectador; ou aquele que tem expectativa. Mas como
manter alimentada essa espera? Ou, em termos de cena: como manter a atenção do público?
Acredito que a resposta possa estar na dupla Tensão e Expectativa na qual Pavis
(2008, p. 152) define que “enquanto forma dramática, o teatro especula sobre a expectativa
do acontecimento no espectador, mas esta expectativa tem sobretudo por objeto, por
antecipação, a conclusão e a resolução final dos conflitos” sendo que, ainda segundo o autor,
certas cenas servem apenas para preparar a sequência criando uma tensão, um suspense.
Assim, podemos supor que o espectador se mantém conectado à cena, pois espera algo
anunciado - ou apenas pressuposto como possível - anteriormente, uma probabilidade. Godot
virá hoje!
Mas a pergunta fica... porque esperar? Seriam essas expectativas o suficiente para se
manter numa espera? Acreditando que Vladimir e Estragon sabem que Godot não virá;
mesmo assim se mantêm à espera, dia após dia, tornando essa a sua rotina, a ponto de não
saberem mais o que fazem e fizeram; pessoas e acontecimentos passam sem modificar o
objetivo da espera... Seria justamente essa espera que dá razão à existência de Vladimir e
Estragon? Seria esperar Godot, aquilo que mantém Didi e Gogo vivos?
O que nos atraiu à esses espaços foi a suspensão por tempo indeterminado. O não
saber até quando aquele lugar estaria daquela forma. Porque não foi concluída a intervenção
iniciada? Quando será retomada? Será retomada? Essa sensação expandida é o que
direcionou à tal escolha espacial.

Um cenário construído no teatro nos moldes tradicionais é uma espécie de


cópia de uma determinada realidade, um simulacro, uma representação, ao
passo que quando o mundo real, o cotidiano urbano funde-se à cena esta idéia
de representação é transformada. Isto se dá uma vez que esta inscreve uma
dimensão de signo nos elementos de composição que dizem respeito à outra
coisa. O que de fato ocorre quando o mundo cotidiano funde-se à cena na
constituição do espaço cênico é que os elementos que a compõem adquirem
uma carga de sentidos por si só, por existirem na cena. (RODRIGUES,
2008).

Todo o processo de criação foi realizado já inserido no local de encenação pois o


mesmo teria influências gigantescas nas concepções cênicas. A qualidade energética do
espaço, as sensações do entorno (táteis, auditivas, olfativas, etc.), a arquitetura espacial...
Tudo contribuiria para o discurso e teria influências nas definições do processo.
O espaço teatral não é mais um dado, ele é uma proposta, onde podem ser
lidas uma poética e uma estética, mas também uma crítica da representação;
com isso, a leitura pelo espectador desses espaços-criações o remete a uma
nova leitura do seu espaço sócio-cultural e da sua relação com o mundo. Em
todo o caso, o espaço teatral desempenha um papel de mediação entre o texto
e a representação, entre os diversos códigos da representação, entre os
momentos da cena (como espaço-tempo unificador), enfim entre espectadores
e atores. (UBERSFELD, 2002).

Hans-Thies Lehmann irá caracterizar uma possibilidade teatral como “Teatro


específico ao local”, onde o local é definido não por corresponder ao texto ou tema tratado;
mas por que se objetiva que o próprio local seja trazido à comunicação. “O espaço se torna
co-participante, sem que lhe seja atribuída uma significação definitiva.” (2007, p. 282).
Poderíamos então subverter o tempo para nos aproximarmos à uma cultura de
presença? Ou poderia esse efeito ser alcançado ao trabalharmos o espaço? A produção de
presença pode ser controlada ou apenas almejada?
BIBLIOGRAFIA:

BURNIER, L. O. A arte de ator: da técnica à representação. 2a ed. Campinas: Editora da


Unicamp, 2009.
FERRACINI, R. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 1a ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
__________. As setas longas do palhaço. Sala Preta, v. 6, p. 65–69, 2006.
GUMBRECHT, H. U.. Produção de Presença: O que o sentido não consegue transmitir.
Trad. Ana Isabel Soares. 1a ed. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC- Rio, 2010.
LEABHART, T. Sport, statuaire et redécouverte du corps précartésien dans le travail du
mime corporel d’Étienne Decroux. In: PEZIN, Patrick. Étienne Decroux, mime corporel:
textes, études et témoignages. 1er ed. Saint-Jean-de-Védas: L’Entretemps éditions, 2003.
LEHMANN, H. Teatro Pós-Dramático. 1a ed., São Paulo: Cosac Naify, 2007.
PAREYSON, L. “O Processo Artístico” in _____. Os problemas da estética. 1a ed., São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. 3a ed., São Paulo: Perspectiva, 2008.
PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. 1a ed., São Paulo: Perspectiva, 2010.
REBOUÇAS, E. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. 1a ed., São
Paulo: Ed. UNESP, 2009.
RODRIGUES, C. C. O espaço do jogo: Espaço cênico teatro contemporâneo. 123 f.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
SCHERER, T. Exercícios do tempo: Dias felizes e Esperando Godot, de Samuel Beckett; O
Marinheiro, de Fernando Pessoa. 142 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) -
Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
TOBEN, B.; WOLF, F. A. Espaço-Tempo e além. 15a ed., São Paulo: Editora Pensamento-
Cultrix, 2008
UBERSFELD, A. Espaço e Teatro. Trad. Roberto Mallet. Disponível em: http://
www.grupotempo.com.br/tex_ubersfeld.html. Acesso em 05/05/2012.

1
DELEUZE, G. Proust et les signes, 7a ed., Paris: PUF, 1986.
2
Tradução minha. “le corps humain ordinaire, avec ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
2
«jeu
Tradução
d’oppositions»
minha. “le
quicorps
négocie
humain
les «différences
ordinaire, avec
de potentiel».”
ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
«jeu d’oppositions» qui négocie les «différences de potentiel».”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ENCENAÇÃO DESTERRITORIALIZADA: A PERFORMATIVIDADE COMO
GERADORA DE ESPAÇOS NÃO IDENTIFICÁVEIS NA CENA
CONTEMPORÂNEA

Paulo Ricardo Maffei de Araujo (Bolsa de Mestrado - CAPES1)


Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elvina Maria Caetano Pereira
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC2); Instituto de Filosofia, Arte e
Cultura (IFAC); Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Neste artigo nos propomos apresentar algumas considerações acerca da produção de


espacialidade na encenação contemporânea a partir de sua relação/tensão com a
performatividade. Contudo, julgamos necessário apresentar a estrutura de pensamento a qual
estamos investigando em nossa pesquisa3, para de fato abordarmos os apontamentos acerca da
produção de espacialidade supracitada.
Em nosso estudo acerca da encenação contemporânea buscamos enfatizar as relações
estabelecidas entre teatro e performance na encenação contemporânea sob a luz do operador
conceitual “teatro performativo” defendido pela pesquisadora Josette Féral, analisando a
performatividade como um elemento desterritorializador na encenação contemporânea. Trata-
se de articular este conceito de leitura do teatro contemporâneo apresentado por Féral
juntamente com os conceitos de “agenciamento” e de “território, desterritorialização e
reterritorialização”, apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a fim de se enfatizar a
presença de novas formas de apresentação do “enunciado cênico” e de outras vias de
comunicação na encenação contemporânea.
Para tanto partimos do operador conceitual intitulado “teatro performativo”
apresentado por Josette Féral, no qual a pesquisadora irá fazer importantes considerações
acerca da performance, e a forma como esta tem atravessado a linguagem teatral.
De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros permitindo-nos
pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da performance teve uma
incidência radical sobre a prática teatral como um todo. Dessa forma, seria preciso
destacar também, mais profundamente, essa filiação que opera uma ruptura
epistemológica nos termos e adotar a expressão “teatro performativo” 4.

O conceito “teatro performativo”, apresentado por Féral, busca compreender


características acerca do teatro contemporâneo. Segundo a pesquisadora muitas questões
intrínsecas ao teatro hoje tem uma forte relação com a ideia de performance, pois a forma do
teatro dramático – que, em sua estrutura linear dos acontecimentos cênicos visando à
apresentação de uma narrativa fabular, contada por meio de personagens bem definidos em
seu caráter psicológico – como forma única vem, há algum tempo, se enfraquecendo na
produção teatral contemporânea. Contudo, Féral prefere não apontar o fim do drama, mas sim,
abrir questionamentos sobre a estrutura dramática.

1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Concessão de bolsa auxílio evento por parte da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
3
Pesquisa de Mestrado em andamento intitulada: “A performatividade como elemento desterritorializador na
encenação contemporânea”.
4
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 200.
O que irá sustentar o estudo de Féral é a ideia de que um espetáculo se configura num
jogo de relação e/ou tensão entre teatralidade e performatividade, pois para a pesquisadora a
teatralidade é o que permite ao espectador reconhecer, por meio de convenções e referências
socioculturais, que está diante de uma ficção, já a performatividade, intrincada com os
elementos da performance, tem a intenção de desarticular esses “acordos” prévios, colocando
o espectador, mesmo que por instantes, dentro da ação.
Em nossa pesquisa propomos pensar a encenação como um território já consolidado
no que compete à pesquisa e a prática teatral contemporânea, porém entendendo o território
tomando de empréstimo a definição filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari:

O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o


território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma
expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções
que nele se exercem são produtos da territorialização.5

O território tal qual a concepção a cima, circunscreve o campo “do familiar e


vinculante”, pois marca as distâncias em relação a outrem. Nos parece interessante pensar a
encenação como um território, pois esta se apresenta como um espaço de enunciação, na qual
as mais diversas funções são produtos de territorialização. Porém esta noção de território, não
é pensada como um espaço fixo, ou seja, há uma complexa movimentação neste espaço. Esta
movimentação existente no território é apresentada pelos autores como agenciamento.
O agenciamento “pressupõe, de modo geral, dois eixos: o primeiro, ligado ao
conteúdo e à expressão, e o segundo, ao território e a desterritorialização” (SILVA, 2008:198).
Sobre o primeiro eixo, Silva nos apresenta uma relação com a encenação bastante
interessante:

Assim o eixo conteúdo/expressão parece traduzir uma possibilidade de composição


do território da encenação, como agenciamento, por um lado de atuadores – que se
inter-relacionam, se conectam ou se „maquinam‟ por meio de ações e de afetos – e,
por outros, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se
funda, ela também, nesta simultaneidade de conteúdo e expressão.6

Neste sentido, pensar a encenação neste eixo conteúdo/expressão nos permite


compreender quais são as suas marcas territorializadoras, ou seja, de que maneira são
articulados os elementos cênicos, assim como as ações cênicas, e por outro lado os
enunciados construídos pelo território.
Já o segundo eixo do agenciamento está ligado ao território e sua desterritorialização,
suas “linhas de fuga” que fazem com que os enunciados transbordem ao território, escapando
a este, e promovendo assim uma desarticulação do mesmo, o que não significa
necessariamente abandonar o território.

Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em
muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência
suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos
desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar
efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma
função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento

5
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 122.
6
SILVA, Antônio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo
colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo 2008, p. 198.
constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro
agenciamento.7

É justamente aqui que se apresenta a principal proposta de nossa pesquisa, qual seja,
pensar a performatividade como um elemento desterritorializador na encenação
contemporânea. Ao considerarmos a encenação como um território, no qual são agenciados
diversos elementos cênicos que constituem um enunciado, a proposta aqui é a de pensar como
a performatividade desterritorializa a encenação interferindo na composição deste enunciado,
ou ainda, reterritorializando este a partir deste novo elemento.
Podemos enxergar esta desterritorialização numa passagem do ensaio de Josette Féral,
no qual a pesquisadora fala sobre a descrição dos fatos e sobre a ação do performer no
espetáculo performativo, e sugere que estas sejam agentes de desconstrução dos códigos da
encenação e que, portanto:

Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis,
fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de
uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre
a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer
instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a
linguagem.8

Nos parece evidente considerar aqui a performatividade como uma elemento


desterritorializador da encenação, pois ao invés de unificar o seus sentido, como ocorria em
outrora, agora a encenação se estilhaça sugerindo inúmeras possibilidades de leitura para o
espectador.
É diante desta perspectiva apresentada a cima que gostaríamos de evidenciar a questão
da espacialidade na cena contemporânea. Ao considerarmos essa desconstrução do sentido
unificado do discurso da encenação, provocado pela presença da performatividade e/ou da
relação/tensão entre performatividade e teatralidade, nos parece evidente considerar que a
noção de “lugar” claro e definido sofre grande alteração, pois não se trata mais de representar
um espaço mimeticamente, mas sim de produzir espacialidades também desterritorializadas.
Levando em consideração os acordos prévios estabelecidos entre obra teatral e o
publico, implícitos na noção de teatralidade apresentada por Féral, e o rompimento com estes
acordos por conta da presença da performatividade, podemos localizar que a produção de
espacialidade na encenação contemporânea sofre algumas fraturas na produção de sentido
unívoco, pois o ato performativo carrega em si a proposta de não representação.
Em seu artigo “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”, Josette
Féral empreende uma discussão acerca da nomenclatura teatro pós-dramático cunhado pelo
pesquisador alemão Hans Thies-Lehman. Féral possui algumas criticas acerca do termo, pois
para ela a noção de rompimento com o drama, “constitui um horizonte de espera mais que
uma realidade, na medida em que é impossível para uma forma teatral, qualquer que ela seja,
de escapar à narratividade e, de fato, à representação” 9. Nesse sentido Féral propõe
chamarmos esse teatro de “teatro performativo”, como ela explicita abaixo:

Este teatro, que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi
definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,

7
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 133.
8
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 203.
9
Ibid. p. 208/209, nota de roda pé número 29.
publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria
mais justo chamar este teatro de 'performativo', pois a noção de performatividade
está no centro de seu funcionamento 10.

Apesar da critica ao termo “pós-dramático”, Féral aponta para a precisão da análise de


Lehmann acerca das estruturas que compõe o teatro contemporâneo. Nesse sentido nos parece
interessante trazermos alguns apontamentos apresentados por Lehmann, uma vez que
observamos certa semelhança nas análises de Lehmann e Féral, qual seja, que a noção de
“ação” e “acontecimento” – ou seja, da performatividade – em detrimento da representação,
seja o centro e o ponto nevrálgico do teatro contemporâneo.
Nos parece evidente considerar aqui, que a estrutura do drama seja o modelo
convencional para compreendermos o desenvolvimento e a história do teatro, e por
consequência para compreendermos quais as aporias do teatro contemporâneo, pois é
justamente numa busca de desconstrução da forma dramática que podemos identificar o
investimento das poéticas das encenações contemporâneas.
Buscando focar na questão da espacialidade no teatro, trazemos para esta discussão
uma reflexão de Lehmann acerca do espaço dramático:

De modo geral, pode-se dizer que o teatro dramático precisa privilegiar um espaço
“mediano”. O espaço imenso e o espaço muito íntimo tendem a se tornar perigosos
para o drama. Tanto num caso quanto no outro a estrutura do espelhamento deixa de
existir ou fica em perigo, na medida em que o quadro cênico funciona como um
espelho que permite ao mundo homogêneo do observador reconhecer-se no mundo
fechado do drama. Para que haja essa equivalência e esse espelhamento – ainda que
eles sejam ilusórios ou ideológicos –, são necessários o isolamento, a independência
e a identidade própria de ambos os mundos. O processo de identificação depende
desse isolamento para que haja certeza das linhas divisórias entre a emissão e
recepção dos signos 11.

Diante desta consideração podemos concluir que no teatro dramático há uma grande
necessidade de se instituir processos de identificação na composição do enunciado cênico,
uma vez que sejam estes processos que permitirão o espectador estabelecer este espelhamento
e logo se reconhecer com aquilo que é contado no palco. Nesse sentido a produção de
espacialidade por parte do teatro dramático estará fortemente vinculado a uma produção de
um espaço reconhecível ao espectador, no qual este possa realizar o recorte do que é narrado
juntamente com o espaço praticado, criando-se assim a noção de unidade na composição da
encenação.
Ainda nesse ponto acerca da identificação provocado pelo drama, achamos pertinente
traça uma breve relação com a noção de teatralidade. Segundo Féral a teatralidade é
construída a partir do olhar do observador que, recorta aquilo que é visto e transforma-o em
um processo semiótico de representação. A autora utiliza o termo “framed theatrical space12”
– que podemos traduzir como “espaço teatral enquadrado ou emoldurado – , que se refere
justamente ao ato do observador de recortar e emoldurar o que é visto e traçar desenhos
ficcionais, a partir dos códigos e convenções socioculturais, evidenciando os acordos prévios
presentes na teatralidade, como já apresentamos antes. Portanto a construção de um espaço
reconhecível por parte do drama vem justamente mediar, ou facilitar, este emoldurar por parte
do espectador, permitindo com que a representação cênica aconteça de maneira, mais ou
menos, linear e homogênea.

10
Ibid. p.197.
11
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.p. 265.
12
FÉRAL, Josette. Theatricality: The Specificity of Theatrical Language. Substance, issue98/99, v.31,n 2 e 3,
2002. p. 98.
Ao corroborarmos com a ideia de teatro performativo proposta por Féral, podemos
considerar que se a teatralidade propicia justamente o reconhecimento e a identificação por
parte do espectador, a performatividade produzirá um efeito reverso, pois sua utilização na
encenação aparece justamente para desviar esta identificação traçando lacunas na composição
do enunciado cênico.
Para autora a noção de performatividade está atrelada ao “fazer”, e ao mostrar o que se
“faz em cena”, fugindo a representação mimética e se aproximando do que podemos pensar
como “real”. Nesse sentido o performer irá causar rupturas nesse processo de identificação
por parte do espetador, pois esta ênfase no fazer em detrimento do representar produz
instabilidades na linearidade e na compreensão homogênea da produção de sentido, que
podemos considerar como um jogo entre “produção de sentido” e “produção de presença”.

O ato performativo se inscreveria assim contra a teatralidade que cria sistemas, do


sentido e que remete à memória. Lá onde a teatralidade está mais ligada ao drama, à
estrutura narrativa, à ficção e à ilusão cênica que a distancia do real, a
performatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto lúdico do
discurso sob suas múltiplas formas – (visuais ou verbais: as do performer, do texto,
das imagens ou das coisas) 13.

Se o a noção de performatividade está atrelada a ideia do fazer, causando rupturas na


teatralidade, podemos considerar que este fazer irá interferir completamente na produção de
espacialidade na encenação, pois como salienta Féral o performer desloca os sentidos da cena,
interfere nos signos e desfoca o direcionamento da comunicação, gerando outras formas de
apreensão do enunciado cênico. Nesse sentido podemos localizar uma produção de espaços
não identificáveis para o espectador, pois ao compreendermos estas relações/tensões entre
teatralidade e performatividade, não temos a constituição de espaço específico, mas sim de
espaços: fragmentados, desterritorializados, metafóricos, – a depender da forma como são
articulados estas relações tensões – que obrigam o espectador a migrar de um referência a
outra e a organizar sua compreensão muito mais pela via do que se sente e não mais do que se
entende. É destas espacialidades não identificáveis que virão à noção de atmosfera da cena,
pois sendo o teatro o acontecimento no aqui e agora a compreensão – e no caso do teatro
performativo a não compreensão plena – do espaço e das ações – dramáticas e não dramáticas
– realizadas neste é que comporão a comunicação do espetáculo teatral.
Gostaríamos de por fim, enfatizar que estes apontamentos, tratam-se muito mais de
reflexões acerca da produção de espacialidades geradas pela performatividade, do que
verdades intactas sobre o fazer teatral contemporâneo. Ainda é preciso ressaltar que estas
considerações estão atreladas a nossa pesquisa de mestrado que ainda é muito recente.
Nesse sentido concluímos que estes processos de composição e leitura dos enunciados
cênicos, dentro da perspectiva de uma encenação em vias de reterritorialização, a partir das
linhas de fuga causadas pela performatividade, apresentam espacialidades não identificáveis –
considerando os diversos graus possíveis desta não identificação, pois dependerá das relações
entre teatralidade e performatividade a considerar a especificidade de cada encenação –
propiciando ao publico traçar a sua leitura da cena, ou seja, a livre associação, tanto no
trabalho como um todo, mas também em suas particularidades, ou seja, no transitar entre o
sentido claro e o abstrato. Encerramos com uma fala de Féral que clarifica – abrindo novos
caminhos - muito bem a compreensão deste teatro performativo:

13
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São
Paulo, nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 207.
“A escrita cênica não é aí mais hierárquica e ordenada ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento
[événement], reconhece o risco. Mais que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda
mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena14 [...]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala
Preta, São Paulo, nº 8, 2008. p. 197-210. Tradução: Lígia Borges.

_______. Theatricality: The Specificity of Theatrical Language. Substance, issue98/99, v.31,n


2 e 3, 2002.

______. A encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo:


Perspectiva, 2010.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

ROUBINE, Jean-Jaques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar,
1998.

SILVA, Antonio C. de Araújo. A encenação no Coletivo: desterritorializações da função do


diretor no processo colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo 2008.

ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará,


2004.

14
Ibid. p.204.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

SENTIR A VOZ, OUVIR O GESTO: POÉTICA E TEATRALIDADE DA


PERFORMANCE NARRATIVA NO VALE DO JEQUITINHONHA.

Rafael Lorran; Bolsista CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior; Programa de Apoio a Pós-graduação – Mestrado; Orientadora: Maria do
Perpétuo Socorro Calixto Marques; Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

O Vale do Jequitinhonha: A mina dos Causos de Minas

Falar da performance de narrativas orais no Vale do Jequitinhonha é


submeter-se, primeiramente, ao difícil ofício de identificar de “qual Vale” se pretende
tratar. Isto porque a região é composta por 80 cidades que ocupam 85.467,10 km² e esse
número representa nada menos que 14,7% do território do estado de Minas Gerais. 1
Localizada na maior porção territorial do nordeste mineiro e estendendo-se ao sul da
Bahia, a região é marcada pelos contrastes naturais, econômicos e sociais; Abordar o
Vale2 requer consciência da grandiosidade espacial e cultural da região.
A fim de afunilar a diversidade mencionada anteriormente, e interessado
primordialmente nessa prática específica, o artigo aqui desenvolvido debruça sobre as
características que compõem a performance de narradores de histórias no Vale do
Jequitinhonha – especificamente a prática narrativa de feirantes rurais moradores da
cidade de Itamarandiba/MG, situada no alto Jequitinhonha – refletindo o valor poético
compartilhado e vivenciado nas rodas de prosa experimentadas naquele espaço.
Por um breve apanhado histórico que contextualize a tradição oral e as
primeiras anotações acerca da performance narrativa no Jequitinhonha, é inevitável
lembrar que, mesmo com todo o controle e truculência do governo português sobre as
terras em que se desenvolveu a porção territorial do Vale do Jequitinhonha, durante o
século da mineração no Brasil, o botânico e viajante francês Pierre Saint-Hilaire em
terras mineiras descreve a seguinte impressão sobre a população que encontrara no
recente Vale:

Em toda província de Minas, encontrei homens de costumes delicados, cheios


de afabilidade e hospitaleiros; os habitantes do Tijuco 3 não possuem tais
qualidades em menor grau, e, nas primeiras classes da sociedade, elas são
acrescidas por uma polidez sem afetação e pelas qualidades de sociabilidade.
(SAINT-HILAIRE apud PEREIRA, 1999, p. 33)

Quase um século depois da viagem de Saint-Hilaire pelas terras do Vale, a


arte de contar histórias no território do Jequitinhonha foi novamente observada pelo
botânico Martius e pelo zoólogo Spix na primeira metade do século XIX, quando, em
viagem pelo território brasileiro chegaram até o estado de Minas Gerais e descreveram
as qualidades do evento narrativo proporcionado pelos habitantes que povoavam o
nordeste do estado, alto Vale do Jequitinhonha:

A numerosa companhia regressou ao tijuco só quando a lua apareceu, pois


entreteve em caminho conversação animada cujos assuntos principais foram
pilhérias e aventuras amorosas. Possui [...] particular talento para contar, e
sobretudo gosta de descrever cenas eróticas, cada qual, mesmo o mais
simples, sabe falar, ora com ênfase ora com deliciosa elegância, com incrível

1
graduação no tom da voz e escolha de palavras, e acompanhado de
gesticulação eloqüente. Não raro tivemos ocasião de admirar esse talento,
mesmo no nossos tocadores da tropa quando alguns contavam anedotas com
inimitável seriedade cômica, e os mais escutavam com satisfação ou
adubavam as estorietas com observações e piadas sutis. (SPIX;MARTIUS,
1981 apud PEREIRA, 1996, p. 46).

Segundo Spix e Martius (1981 apud. PEREIRA, 1999), a arte de narrar


histórias, apresentada pelos habitantes com quem conviveram durante a expedição,
confere aos sujeitos dessa localidade uma presença digna de admiração por aqueles que
ouvem seus casos e presenciam a totalidade simbólica da performance narrativa
apreciada naquele espaço, daqueles sujeitos conscientes de sua exposição e criadores
dos aspectos aguçados, alterados do cotidiano que garantem a atenção dos que ouvem
suas histórias, observam seus corpos, partilham de sua presença. Subsídios que
presentes aos atuais narradores de histórias conferem sentido à discussão acerca da
teatralidade e poesia observada em suas contações.
Portanto, ao tratar da performance narrativa dos contadores de caso do
Jequitinhonha em suma, ainda que assentado essencialmente sobre o evento narrativo
no referido município específico, compreendo (a partir das literaturas já existentes sobre
o mesmo tema/região em articulação com a experiência prática dessa pesquisa em
Itamarandiba/MG) dados e informações que se fazem comuns ao território e sujeitos
que o habita, reconhecendo imediatamente elementos e procedimentos significativos
que tornam possível traçar uma primeira noção do contexto cultural em que se inserem
as narrativas e performance de seus narradores; considerando assim como PEREIRA e
GOMES (2002), que os conhecimentos transmitidos pela voz dos sujeitos.

[...] se combinam às noções de tradição, conservadorismo, natureza e


ingenuidade a partir das quais o observador intenta definir uma identidade
para a cultura popular e seus representantes. Ou seja, está-se diante de um
modelo cultural onde se destacam as totalidades – de práticas econômicas,
políticas, religiosas – que se exprimem como a identidade do grupo.
(PEREIRA; GOMES, 2002, p.93).

Assim sendo, refiro-me a amplitude do Vale do Jequitinhonha significada


pela porção municipal de Itamarandiba/MG, uma vez que a experiência das
performances narrativas nesse espaço específico apresenta características (históricas,
sociais e culturais) comuns à totalidade do Vale, que já foram refletidas e apontadas por
pesquisadores que me auxiliarão durante o decurso desse estudo. Portanto, esclarecido o
solo onde pretendo germinar esse estudo, passemos para a apresentação do Vale e as
questões da oralidade vivenciada nesse lugar.
A forte expressão da oralidade no Jequitinhonha pode ser entendida como uma
representação de resistência. Nessa região, por muito tempo isolada do processo de
desenvolvimento político e econômico do país, os conhecimentos e habilidades dos
indivíduos são notoriamente sustentados pela tradição da palavra transmitida oralmente.
Em se tratando dos espaços de troca material e simbólica, como é o caso das feiras
rurais, grupos de manifestações e rituais religiosos, ateliês de artesanato e culinária, que
ainda afastados dos mecanismos modernos de produção e organização continuam a
manter na transmissão oral o principal vínculo entre os sujeitos, perpassando o tempo e
coexistindo na atualidade.
Neste ponto acabamos por esboçar uma primeira referência sobre a forma e
função pela qual os narradores perpetuam suas histórias e refletem a realidade
contextual onde se situam: a performance, enquanto ato reflexivo e dotada de valor

2
poético, onde interagem gestos corporais, vocais, presença de sujeitos em contato e
comunicação, num emaranhado de ações capazes de criar laços e proporcionar
experiências.
Sentir a Voz, Ouvir o Gesto: pela sensível compreensão da Performance

Não soaria demasiado indicar imediatamente as armadilhas conceituais, as


fragilidades epistemológicas que enfrentam os pesquisadores que buscam entender as
acepções da performance em diferentes contextos e áreas de conhecimento. Segundo
Marvin Carlson (2009), as proposições acadêmicas, artísticas e a compreensão do
campo teórico e prático da performance tem sido, desde a década de 60 e 70,
amplamente discutidos e teorizados por pesquisadores de diversos campos de saberes,
sendo as ciências sociais, a etnografia e a antropologia as pioneiras nos estudos do
comportamento humano, abrindo as perspectivas científicas para que os estudos das
artes, especialmente o teatro, pudessem debruçar sobre esse paradigma, vertendo-o
inclusive uma categoria exclusiva de análise.
Assim, adentrar os estudos das ações humanas performativas requer um
mergulho interdisciplinar e multifacetado, o que acaba por suscitar uma gama de
problemáticas epistemológicas e conceituais, constituindo o campo dos estudos da
performance um terreno delicado e muitas vezes, confuso. Porém, assim como Marvin
Carlson, entendo que:

Precisamente, o que a performance executa e como ela o faz


claramente pode ser abordado de várias maneiras, embora haja um
consenso geral de que, dentro de cada cultura, pode ser descoberta
uma espécie de atividade, separada de outras atividades por espaço,
tempo, atitude ou por todos eles juntos, que pode ser analisada como
performance e nomeada como tal. (CARLSON, 2009. p. 25)

Portanto, ao tratar da performance narrativa dos contadores de histórias do


Jequitinhonha como experiência poética, é preciso atentar para a importância do olhar
investigativo lançado ao universo observado, bem como a importância da articulação
com conhecimentos adquiridos de outras áreas (que não as artes e a sociologia, apenas)
e que possam conduzir o pensamento a fim de compreender o comportamento de
interesse da pesquisa como pertencente ao hall dos estudos da performance.
Sobre o comportamento humano, considerando os sujeitos performers de
um determinado espaço físico e social, Schechner (2003, p. 25) realça o caráter cultural
da performance, sem restringir seu entendimento ao campo da antropologia e
sociologia, destacando que o “Ser performance é um conceito que se refere a eventos
definidos e delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição”. Para além,
aponta que entender e investigar um objeto, obra ou produto como performance implica
em conhecer como “esta coisa” interage com outros objetos e seres, como se relaciona
com outros objetos e seres. Assim:

Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e


adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados. Ações performadas que as
pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. Está
claro que fazer arte exige treino e esforço consciente. Mas a vida
cotidiana também envolve anos de treinamento e aprendizado de
parcelas específicas de comportamento e requer a descoberta de como

3
ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às circunstâncias
pessoais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003, p. 27)

Segundo Schechner (2003), sobre o sujeito que se comporta à mostra de


outros, o “estar consciente” do ato como performance se inscreve numa relação
circunstancial e individual, atrelada ao contexto social, histórico e cultural onde estão
imergidos. Esse dinamismo de ações é entendido pelo autor como comportamento
restaurado, para Schechner, esse é o processo chave de todo tipo de performance. Ao
passo em que os narradores do Jequitinhonha compartilham suas histórias através de
vozes, gestos, modulação do corpo e do estado de presença em contato com os ouvintes,
instaura-se um valor “simbólico e reflexivo, seus significados tem que ser decodificados
por aqueles que possuem conhecimento para tanto”. (SCHECHNER, 2003, p. 35).
Partindo das assertivas de Richard Schechner (2003) sobre os empregos da
performance, tangenciamos assim o objetivo central desse estudo, cunhado sobre o
intento de compreensão da performance narrativa dos contadores de histórias do
Jequitinhonha como uma experiência poética em sua qualidade teatral, considerando-a
experiência que por semelhante intuito busca o prazer, o estímulo da comunidade, a
persuasão e atenção dos sujeitos ouvintes e a relação entre a realidade vivida e a
subjetivação compartilhada e idealizada pelo narrador em suas histórias, pondo-se à
mostra para uma audiência 4.
Dessa forma, parto da investigação em campo, da experiência participativa
no evento narrativo como apreciador da performance de Adão do Nelo5, ao encontro das
proposições sobre a poesia oral do narrador, cunhadas pelo medievalista estudioso da
oralidade, Paul Zumthor. O teórico realça os traços da performance narrativa como
linguagem e comunicação verbal, considerando para além dos códigos da palavra em
sua máxima sensível. Percebe-se para além das fronteiras entre aquele que narra, e
aqueles que observam, uma concepção da performance que acontece durante o elo
sensível entre os sujeitos envolvidos no evento narrativo. Segundo o teórico:

[1] a performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu


reconheço, da virtualidade à atualidade; [2] a performance situa-se
num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional: nesse contexto
ela aparece como uma “emergência”, [3] performance é uma conduta
na qual o sujeito assume, aberta e funcionalmente, a responsabilidade,
e é um comportamento que pode ser repetitivo sem ser redundante, [4]
a performance modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um
meio de comunicação: comunicando ela os marca. (HARTMANN,
2005, p. 129)

Assim, a performance narrativa, como compreendida por Paul Zumthor (2010),


situa-se mais no espaço “entre” os sujeitos, do que na própria ação do indivíduo que se
comporta diante de uma audiência. A ação reflexiva e participativa do ato performativo
insere-se na existência dos indivíduos e representa um veículo, forma e conteúdo pelo
qual a experiência torna-se possível. Comunicando, a performance marca os envolvidos,
adentra suas existências, inverte a realidade conferindo outro “sentido aos sentidos” dos
sujeitos. De tal modo, a performance narrativa dos feirantes rurais no Vale do
Jequitinhonha, em sua experiência poética e caráter reflexivo, acaba por aproximar-se
nesse ponto da discussão, daquilo que tratarei no próximo tópico como qualidade de
teatralidade.

4
Poesia e teatralidade nas Performances Narrativas do Vale.

Em se tratando da cultura textocentrista sobre a qual o teatro debruçou-se em sua


constituição epistemológica e na emancipação de conceitos oriundos dessa área de
saber, o termo teatralidade, antigo em sua utilização e valorização, esteve atrelado à
produção do teatro em detrimento ao texto encenado nos palcos. Nesse sentido, a
aproximação entre as interações cotidianas de caráter popular e as implicações acerca da
qualidade teatral observada nessas manifestações alcança um processo ainda recente,
cunhado por perspectivas metodológicas interdisciplinares e multirreferenciais.
As performances populares, caracterizadas como espaços de celebração
comunitária, em que, simultaneamente, todos são atores e espectadores, a cada passo
retornam aos indivíduos sentimentos de autenticidade e permanência num contexto
dinâmico e vívido. A experiência surge como um fato e ideal importantíssimo na
partilha e comunicação dentro da comunidade através da ativação da expressividade
poética e estética. (Bauman, 2003; Turner, 1986). Dessa forma, relaciono os conceitos
de teatralidade e poesia à medida em que ambos servem à análise do sensível
representacional vivenciado durante as performances narrativas. Principalmente, realço
o valor inerente de tais qualidades ao comportamento humano posto à mostra de uma
audiência, as estruturas e subjetivações da performance narrativa acabam por denotar a
representação artística da vida social em sua própria constituição enquanto vida.
Para Edélcio Mostaço, o teatral parece guardar, nesta perspectiva, um estatuto
genético e funcional de procedência, decorrência do próprio dinamismo da cultura, onde
o mimetismo, o jogo e a representação constituem impulsos que encontram nas práticas
sociais canais de manifestação:

[A teatralidade] é tomada, portanto, como um núcleo


organizado de mecanismos de produção de efeitos simbólicos,
facetas que a corporificação adquire no tempo e espaço das
sociedades históricas. Adquirindo o formato de uma metonímia
(a parte pelo todo) ou a prevalência adjetiva sobre a substantiva,
a teatralidade é tangível enquanto cumulação do que é teatral.6

À medida em que compreendemos a teatralidade segundo seus mecanismos de


produção de efeitos simbólicos na relação entre os sujeitos de uma comunidade
específica, atentamo-nos ao sentido reflexivo localizado na interface entre os agentes
imersos na condição de experiência que paira sobre o vivido. A consciência do caráter
teatral e poético experimentados durante a performance, dá-se atrelada ao contexto das
interações, à subjetivação da experiência e representação dos modos de ação, recepção e
compreensão do evento narrativo, estritamente, à paixão que ronda os sujeitos que
exprimem sentido à performance.
Os narradores possuem uma capacidade de manter e seduzir a atenção. Suas
palavras são ditas com ênfase e intencionalmente escolhidas a fim de conferir um grau
de sensibilidade na relação entre contador e ouvintes, expressando uma maneira de se
comportar e dialogar com a preocupação de seduzir e instigar o prazer e afabilidade dos
agentes envolvidos no evento narrativo. Walter Benjamin (1994), ao tratar do narrador
em sua obra Magia e Técnica, Arte e Política, aponta a seguinte descrição:

O narrador detém de recursos próprios que são capazes de seduzir e chamar a


atenção daqueles que o ouve, convencendo-os do fato narrado, aconselhando
segundo suas vivências, entretendo a partir de seu humor e afabilidade. Essa

5
capacidade acaba por revelar a arte popular que provém da experiência
humana. (BENJAMIN, 1994, p. 200).

Essa habilidade notada por W. Benjamin (1994), de que dispõe o


narrador como recurso para tornar atraente sua fala e exposição de si mesmo confunde-
se, por vezes, com o próprio desempenho do artista posto intencionalmente à
apreciação. O autor ainda afirma que tal capacidade representa a primazia geradora do
artista popular, suas experiências humanas, histórias que acompanham seus trajetos de
vida, e o arsenal de “comportamentos” que se apresentam como dispositivos a serem
restaurados em performances no presente, viabiliza uma experiência poética, reafirma
corpos e personagens, delimita o espaço entre aquele que emite sua arte e o outro que a
reflete, concomitantes em tempo e espaço, pertencentes à ação teatral instaurada.
O sociólogo Erving Goffman (2001), em suas assertivas sobre o desempenho
dos papéis sociais, as funções representacionais que as sociedades complexas produzem,
acaba por assumir a rubrica sobre a “teoria do personagem”. Em se tratando do sentido
de representação que perpassa as performances do médico, o engenheiro, o feirante, que
sedimentados no potencial extracotidiano de suas ações, acabam por delinear a
dramatização de seu desempenho social. Tais representações na vida cotidiana dão
corpo à teatralidade e à dramatização inerentes à própria vida social, uma nova
dimensão da auto-apresentação dos indivíduos entre si.
Quando a campo em junho deste ano de 2014 7 estive com os feirantes
narradores de história da cidade de Itamarandiba/MG, perdíamos – nós, ouvintes,
amigos e transeuntes em contato com suas narrativas orais – a noção do tempo
transcorrido e as tardes eram inteiras preenchidas por contações de histórias. Mais do
que imersão numa experiência poética e teatral, a experiência junto aos sujeitos
observados por esse estudo: feirantes rurais contadores de histórias, homens que não
tiveram contato com a escrita e leitura (não possuindo, portanto, a concepção objetiva
do saber científico, por vezes, controlador), que possuem na relação intersubjetiva a
principal forma de transmissão e recepção dos saberes comuns e individuais (aqueles de
fato significativos às suas vidas), trabalhadores rurais que controlam
circunstancialmente suas relações com o tempo, espaço e mercado, segundo as
intempéries naturais e necessidades de subsistência familiar, a qualidade da relação fui
substancialmente, e adjetivamente estabelecida a partir do envolvimento passional. Um
do narradores obervados atende pelo nome de Adão do Nelo e é dona da performance
narrativa cujo caráter teatral faz-se latente em toda sua ocorrência.
O Sr. Adão do Nelo, ao contar a história de D. Liópordina – personalidade
real do município, falecida amiga do narrador que se tornara personagem fictícia da sua
narrativa – o feirante discorre sobre as marcas da experiência passada, transformadora e
componente de sua existência no presente.

Se a gente não tivê motivo pra rir nessa vida, de quê que adianta, minino?
Pensa só procê vê, num é? uma veia pobre que nem Dona Lió, fazia era todo
mundo rir. Morreu com a boca escancarada, atolada, encascaiada, cheia de
dente e feliz, paricêno que tinha comido fartura de rico. E eu que tô vivo,
num vô ri das palhaçada dela? Vô, uai. Eu que convivi com ela sei que ela
agora deve ta é rindo tamém, muié de alma boa, era safada mas era de alma
boa. Eu aprendi muito com ela, prendizage de vida mêrmo. Igual, contá caso
e fazê os outros feliz era cum ela mesmo. As história dela a gente multiplica
dez vezes mais né, pra fazê mais graça, né?E povo larga o que tivê fazêno
pra saber, né? As pessoa gosta de orvi, U que é bunito de orvi, num é não?
(risos).8

6
Ao passo em que apresenta e descreve a personalidade de Dona Liopordina,
Adão do Nelo compartilha dos valores interiorizados em contato com a personagem
quando viva e pertencente ao seu círculo social. Para além de expor as marcas de sua
experiência, o narrador pretende através da história alertar os ouvintes para a
necessidade de rir-se da vida, de gozar os momentos de alegria enquanto vivem e reflete
o contraste da senhora, que vivendo no imaginário do município pelo reconhecimento
de suas façanhas e espertezas, tornou-se igualmente digna de respeito e responsabilidade
por boa parte da “prendizage (aprendizagem) de vida” do feirante, que relembra e
transmite suas histórias.
Apontando a necessidade de propiciar aos outros o mesmo teor
transformador vivenciado por ele (quando junto a protagonista de suas histórias) o
narrador intenta “restaurar” o comportamento vivo na memória através das ações de seu
próprio corpo, demonstrando em gestos e postulações da voz as características da velha
amiga falecida. O narrador oferece em sua presença a performance que julga representar
sua lembrança, claro, interpretações que agora estão sujeitas à repetição reformulada,
criada e condicionada na ação de um outro corpo, uma nova intenção. Ora, o material
que inspira a ação do narrador (lembrança do comportamento da amiga falecida) é uma
referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da forma e conteúdo da
Performance narrativa (comportamento original, se é que assim podemos chamá-lo) é
desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela performance do narrador,
tornando efetiva a comunicação entre performer e ouvintes/observadores como
experiência poética.
Esse caráter de constante atualização da experiência interiorizada
assemelha-se à concepção do valor poético da oralidade descrito por ZUMTHOR
(1997): “uma poesia oral que é ao mesmo tempo visível e audível e, em performance,
atualiza a obra. Essa atualização sugere sempre em movência, uma instabilidade radical
do poema” (ZUMTHOR, 1997, p. 264). Uma experiência que reside no contato com a
voz e presença que se transforma no transcorrer de uma nova contação, um novo dedo-
de-prosa, uma nova roda de causos.
Assim sendo, a voz só pode ser capturada no movimento entre o texto
(falado) e a obra (narrativa oral), na relação entre o que é palavra e sua reutilização
orada. Paul Zumthor, atento ao compromisso da experiência entre sujeitos que
vivenciam enquanto agentes ou espectadores da performance narrativa afirma que, “o
homem também vive a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer que a linguagem
se torna verdadeiramente signo das coisas e ao mesmo tempo, significante dela mesma”
(ZUMTHOR, 1993, p. 74).
Ainda sobre o caráter poético nas performances narrativas, Zumthor afirma
que:

[...] o poético (diferente de outros discursos) tem de profundo, fundamental


necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da
presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica
particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo, e que ouve,
vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja
reconhecido por poético (literário) ou não, depende do sentimento que nosso
corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer.
(ZUMTHOR, 2000, p. 41).

7
Adão do Nelo, valendo-se do lirismo, da repetição, da rima e da função
fática da linguagem oral (“num é?”, “né”), recursos que literariamente já garantiriam a
forma poética da comunicação do narrador, reside nessa oralidade uma característica
poética, como descreve Paul Zumthor (2000) na citação acima, que excede o que é
reconhecido por poesia de acordo com a literatura. Está além do conteúdo e além da
forma, a poesia na experiência da performance narrativa reside na capacidade de
proporcionar o prazer e deleite, adentrar as emoções dos envolvidos no evento narrativo
e sobretudo, promover a reflexão através do contato, a transformação a partir das
diferentes interpretações e sensações da experiência.
Trata-se do que Merleau-Ponty (1991, p.79) notou, ao afirmar que “as
palavras, os traços, as cores que me exprimem saem de mim como os meus gestos, são
me arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer”. O
corpo, voz e ação do narrador pode significar para além de sua existência, e de sua
confiança no real, e assim, inserir um sentido àquilo que o convém como função
sensível, poética da comunicação:

Aí D. Lió tinha mais de cinco métro de artura, só a cabeça dela


tinha um métro. tinha umas perna seca quinem sariêma, sabe?
E sabe ocê o que ela fazia? Ela andava de casa em casa, tinha
que deitar no chão pra entrar nas casa de tão grande que ela
era, e pidia pro povo cárça (calça) de homem usada pra ela
fazê uma saia, custurano uma cárça na outra. Porque assim, cê
sabe né? Homem trabalha mais que mulher, intão a frente da
cárça fica gasta, não vale nada, e a traseira da perna da cárça
fica boa, dá pras mué fazê saia imendano uma na ôtra, assim
fazia Lió. Até nisso ela pruveitava (aproveitava) dos homi.9

Vozes e gestos modificados segundo as características de cada personagem,


função fática da linguagem e toque corporal para obtenção e constante validação da
atenção da audiência, utilização do canto e dos objetos de mesa (prato, talher, garrafa e
lençol) na elaboração e ilustração do enredo narrado, na organização de um espaço
tempo cujo o bjeto da ação é instaurar um ambiente de troca de signos, seus
significantes e significados. O material que inspira a ação do narrador (memória da
narrativa) é uma referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da
forma e conteúdo da Performance narrativa (comportamento original, se é que assim
podemos chamá-lo) é desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela
performance do narrador, tornando efetiva a comunicação entre performer e
ouvintes/observadores como experiência teatral, como mecanismo poético de
adjetivação da metáfora da arte em sua suma vitalidade pertencente à própria vida.

A teatralidade parece ser, mais do que uma propriedade; de fato, nós


podemos chamá-la de um processo que reconhece sujeitos em processo,
é um processo de olhar e ser olhado. É um ato iniciado em um ou dois
espaços possíveis: tanto aquele do ator quanto do espectador. Em ambos
os casos, esse ato cria uma ruptura do cotidiano, que se transforma no
espaço do outro, o espaço onde o outro tem lugar. Sem tal ruptura, o
cotidiano permanece intacto, excluindo a possibilidade da teatralidade, e
menos ainda do teatro em si 5 (FÉRAL, p.98, 1998).

Assim, a experiência poética e teatral vivenciadas durante a performance


narrativa surge justamente na audácia, na habilidade de um pensamento e ação que se

8
reinventa inaugurando sentidos, representando lembranças, objetos, seres e sensações ao
tomar a iniciativa de agir e produzir marcas nas pessoas e no mundo. Portanto, está
atrelado ao esforço da conquista de um novo, e não à renúncia de uma circunstância,
contexto, na absroção dos espaços que compõem a troca e reafirmação dos sujeitos à
deriva de suas próprias intenções à cerca do que é visto, a partir de quem o faz, através
da integridade da sedução de quem admira o que lhe é posto à mostra. E se averso ao
encontro, ou passível de envolvimento, a teatralidade encontra-se na interseção do
contato, na disposição de fazer-se pertencente ao outro, ao evidente, ao demasiado
humano refeito. Tem aí, a performance narrativa no Jequitinhonha um material vasto de
produção da experiência poética, bem como de associação ao caráter reflexivo do fazer
teatral: O apreço e prazer dos habitantes dessa região por narrar e reinventar suas
próprias histórias, e a dos outros.

Concluir que nada, é preciso diluir

Como Jequitinhonhense, quero refletir o lugar de onde venho,


contribuindo para que outros (sujeitos e lugares outros) também intentam entender as
camadas sensíveis de suas histórias, reforçando seus conhecimentos a partir dos
sentidos. Como pesquisador não pretendo estabelecer uma verdade acerca da
experiência poética da performance narrativa, até porque “a voz não tem espelho [...] é a
própria realidade” (ZUMTHOR, 2007, p. 84). Dessa forma, a pesquisa debruçada sobre
esse universo representa a conquista por novos olhares, por possíveis perspectivas da
compreensão do simbólico, por diferentes experiências; visa a busca pela autonomia do
conhecimento que desbrava a si próprio, subjetivando o saber comum.
O que é preciso entender sobre a “modalidade” de performance observada
por esse estudo, bem como sobre o caráter estético e teatral do evento narrativo, são as
noções de qualidade, afabilidade, e sensação de prazer da contação e audição de
histórias comuns, particulares, reais e imaginárias; histórias que constrói os sujeitos
nelas imersos, isto é poesia. Portanto, não pode ser vista apenas como material de
registro historiográfico de um território, apresentação de fatos, mera representação da
cultura ou etnografia somente; a arte que reside nas performances narrativas reside nos
indivíduos, tornando-os seres sensíveis e conhecedores de suas existências, torna-os
passíveis de sentir e criar relações com o espaço e com outros indivíduos,
transformando suas realidades e subjetivando suas impressões sobre o mundo.
Lanço-me a novas perspectivas conceituais e abordagens epistemológicas como
quem desvela a si mesmo num intuito sensível de fundamentar aquilo que antes de
conhecimento é sentido, antes de fazer-se ciência vive na paixão e que antes mesmo de
ser cultura, é arte. Concluir que nada, é preciso diluir as amarras utilitaristas do saber,
promover a sensibilidade das interações e assim, esclarecer os acessos aos pequenos
prazeres da existência humanas, grandiosos pela capacidade de transformação.

9
NOTAS
1
Dados da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). Janeiro de 2013.
2
Intentando dinamizar a leitura e compreensão do leitor, em determinados momentos deste texto
utilizarei apenas a palavra Vale, iniciada com letra maiúscula, referindo-me exclusivamente ao Vale do
Jequitinhonha/MG.
3
O Arraial do Tijuco (atual cidade de Diamantina) corresponde à região de maior expressão mineradora
do país durante o século XVII e constitui-se como o propulsor da extensão populacional de povoamento
do Vale do Jequitinhonha. (PEREIRA, 1996).
4
As considerações acerca do olhar lançado para performance narrativa segundo seu caráter poético e
teatral, serão explanadas no próximo tópico deste estudo.
5
Adão do Nelo (79 anos, feirante narrador de histórias, sujeito observado por essa pesquisa). Em apreço
à experiência vivida quando imerso no evento narrativo participado, por mim, pesquisador, todas as falas
do feirante transcritas neste artigo mantiveram também na ortografia a identificação fonética da voz
registrada via gravador sonoro. Depoimento cedido em dezembro de 2012, na cidade de
Itamarandiba/MG.
6
MOSTAÇO , Edélcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. Revista Da pesquisa da UDESC.
Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf>.
Acessado em 04 de julho de 2014.
7
Pesquisa de campo ainda em andamento com intuito para desenvolvimento da dissertação:
“Performatividade e Teatralidade: Um olhar estético sobre a performance narrativa de feirantes rurais do
Vale do Jequitinhonha, MG., requisito para obtenção do título mestre em artes cênicas pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
8
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
9
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.

. Pesquisa patrocinada pela Comissão de Aperfeiçoamente de Pessoal de nível Superior – CAPES.

10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter (1994). Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política:


ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.

BONDÍA, Jorge Larrosa (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. São
Paulo, Revista Brasileira de Educação. Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação, jan/abril, nº19. pp. 20-28.

CARLSON, Marvin (2009). Performance: uma introdução crítica. Trad. Thais Flores
Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG.

FÉRAL, Josette (1998). Theatricality: The Specifity of Theatrical Language.


SubStance, Vol. 31, Edição 98/99.

GOFFMAN, Erving (2005). A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro.


13ª Ed.Editora Vozes.

HARTMANN, Luciana. Performance e experiência nas narrativas orais da


fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 11, n. 24, p. 125-153, jul./dez. 2005

MERLEAU-PONTY, Maurice (1991). Signos. São Paulo: Martins Fontes.


PEREIRA, E.A; GOMES, N.P.M (2002). Flor do não esquecimento, cultura popular e
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PEREIRA, Vera Lúcia Felício (1996). O artesão da memória no vale do


jequitinhonha. Belo Horizonte: Editora UFMG.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? In: IN: O PERCEVEJO: revista de


teatro, crítica e estética. Ano 11. N° 12. Rio de Janeiro: Departamento de Teoria do
Teatro, Programa de Pós Graduação em Teatro, Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UNIRIO, 2003, p.30.

ZUMTHOR, Paul (2010). Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG.

__________, Paul (2000). Performance, recepção, leitura. São Paulo: Hucitec/Educ.

__________, Paul (2005). Escritura e nomadismo. São Paulo: Edito

11
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPECIALIDADES

PERSONA EX MACHINA - O TEATRO DIALOGANDO COM A INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL

Saulo Popov Zambiasi; PPGEAS – UFSC


Patricia Leandra Barrufi Pinheiro; PPGT – UDESC

Resumo
Vários elementos compõem uma peça teatral (música, luz, cenário, etc). Como
qualquer outra tecnologia utilizada na construção destes, novas tecnologias são inseridas para
o auxílio no enriquecimento dos sentidos, tais como tecnologias computacionais. Vendo o uso
das tecnologias como algo comum nas artes, torna-se natural visualizar uma cena composta
por robôs, virtuais ou mecatrônicos, com um certo nível de Inteligência Artificial (IA),
interagindo com atores. Um exemplo disso é o que define-se como Persona Ex Machina, ou
PEM, uma proposta de IA com enfoque no uso em espetáculos teatrais. Esta é baseada em
certos princípios: autonomia: age por si, não controlada por humanos; percepção: percebe
seu ambiente via sensores; ação: age em seu ambiente; interação: interage com os demais
atores; roteiro: segue roteiro estipulado para o espetáculo teatral; improvisação: pode
improvisar, se necessário; interpretação: pode seguir as mudanças de humor de seu
personagem conforme o roteiro. Uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que
siga os princípios supracitados. No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes
podem se encaixar nos princípios citados e serem utilizados em um espetáculo teatral tal como
uma PEM. Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Interação Humano-computador; Espetáculo-
laboratório.

1. Introdução
Entre os contextos da aplicabilidade de diferentes recursos e elementos para compor
uma peça teatral, incluindo música, luz, cenários, figurino, ou mesmo os próprios atores,
novas ideias sempre acabam por surgir conforme a evolução tecnológica. Essas servem como
importantes peças de inserção à cena para auxiliar no enriquecimento dos sentidos do público.
Certamente é de grande importância a análise da utilização desses novos recursos junto à
quem produz e também à quem presencia tais espetáculos. Todos esses elementos de cena não
podem ser vistos apenas como acessórios secundários, mas também como elementos tão
importantes quanto os atores, conforme a linha de raciocínio de Kantor (MORETTI, 2008).
Já há alguns anos, recursos diretamente ligados ao conjunto da mecânica, eletrônica e
tecnologias computacionais também têm sido utilizadas na composição de espetáculos teatrais,
performances e dança, e muito já foi discutido sobre esses. Entretanto, como tais elementos
têm tido uma crescente evolução, ainda há muito o que se experimentar e discutir (ABRAÃO,
2007). Entretanto, não se limita aqui apenas a discussão sobre a utilização de datashows,
iluminação automatizada, sonorização tridimensional, pernas e braços mecânicos, etc., na
forma de elementos secundários, mas a utilização de robôs em cena. Discute-se aqui robôs
com certa autonomia sobre a cena, composto por elementos de Inteligência Artificial, com
tanta importância no contexto geral quanto um ator.
É evidente que a forma de utilização de robôs em cena, com ou sem o provimento de
técnicas e algoritmos de Inteligência Artificial, é bastante ampla e que a limitação da maneira
de utilização desses recursos não pode ser efetivada. Contudo, para estudo e análise, alguns
caminhos podem ser norteados para propostas de discussões sobre tal aplicabilidade.
Neste contexto, o presente trabalho se apóia no conceito de Persona Ex Machina
(PEM), apresentado por Zambiasi e Pinheiro (2013). Uma PEM pode ser classificada como
um elemento de cena tão importante quanto um ator, mas que permeia sua ação com base na
artificialidade, ou seja, pode ser um ator virtual apresentado em uma tela (televisão, datashow,
etc) ou por agentes robóticos interagindo em um ambiente real. A utilização de tais recursos no
teatro, performance e dança não é nova e já vem sido executados em alguns trabalhos.
O termo Persona Ex Machina utilizado aqui provém do Latim Pessoa
da Máquina e é inspirado no Deus Ex Machina, o “Deus descido da
máquina”, dispositivo mecânico utilizado na Antiga Grécia
(ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

O Deus Ex Machina, segundo Berthold (2004), “vinha em auxílio do poeta quando este
precisava resolver um conflito humano aparentemente insolúvel”. Já, no caso desse trabalho, a
PEM se refere à um ser artificial que surge como mais um ator em cena.
Entretanto, não é qualquer robô definido como PEM, Zambiasi e Pinheiro (2013)
apresentaram um conjunto de princípios para definir tal elemento espetacular. Os princípios
são: autonomia, percepção, ação, interação, roteiro, improvisação e interpretação. Em tempo,
uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que siga os princípios supracitados.
No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes podem se encaixar nos princípios
citados e podem ser utilizados em um espetáculo teatral tal como uma PEM.
Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.

2. A Persona Ex Machina e seus Fundamentos


A proposta da PEM é fundamentada em certos princípios, cada qual com sua própria
fundamentação e propósito. Nesta seção são apresentados os conceitos destes.
Princípio da Autonomia: Uma PEM deve ser um agente autônomo,
possuindo uma certa inteligência artificial para poder agir sozinho, sem
a intervenção humana por controle remoto, teclado ou joystick, durante
um espetáculo teatral, dança ou performance (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).

O princípio da Autonomia da PEM rege a regra de que um elemento robótico


nominado de PEM não deve ser controlado por um humano durante a apresentação do
espetáculo. Muito da autonomia já é tratado há anos pelas vertentes da robótica e da
Inteligência Artificial nas áreas da Ciência da Computação. Um Agente Inteligente, por
exemplo, possui sensores para poder sentir o ambiente, atuadores para poder interagir com o
mesmo e certa autonomia para analisar as informações de recebidas pelos sensores para
responder da melhor forma possível (RUSSEL e NORVIG, 2004).
Princípio da Percepção: Uma PEM deve utilizar as informações de
seus sensores, analisando-as, processando-as e respondendo com
ações, ou não, em tempo de apresentação. Nada deve ser
preprocessado (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

O princípio da Percepção da PEM também está diretamente ligada ao agente de Russel


e Norvig (2004). Para um robô, sendo ele virtual ou real, poder participar do que acontece com
seu ambiente, é necessário que ele possa ter informações dinâmicas do que está ocorrendo no
momento como forma de responder condizentemente.
Princípio da Ação: Uma PEM deve poder agir no ambiente real ou
virtual em que se encontra por meio de atuadores, como por exemplo
braços mecânicos, rodas, cabeça robótica, expressões animadas em
uma tela de computador ou datashow (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).

Um robô que não responde e não age é apenas mais um elemento na cena como
qualquer outro. Por isso o princípio da Ação é citado para uma PEM. Mesmo que tal interação
seja uma resposta textual em uma tela ou uma fala, ainda é uma ação. Toda a PEM deve poder
responder ao seu meio conforme as informações de percepção recebidas por seus sensores.
Princípio da Interação: Um humano ou outra PEM deve poder interagir
com uma PEM por meio de conversa, gestos e ações, tal como
interagiria com outra pessoa (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

A PEM não deve apenas receber informações e agir. As ações devem condizer com as
informações de entrada dos sensores, inclusive para poder interagir com outras PEMs ou
mesmo atores em cena.
Princípio do Roteiro: Uma PEM deve ter um roteiro de base para
seguir, deve poder encontrar as deixas dos outros atores em cenas e
deve poder seguir seu roteiro conforme pontos de checagem no tempo
da execução do espetáculo (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

Para uma PEM, deve ser possível seguir o Roteiro de um espetáculo teatral. É certo de
que há diversas formas de atores seguirem roteiros ou o fluxo temporal de um espetáculo,
tendo seu início ou fim e, inclusive, poderem iniciar ou fechar deixas. Dessa forma, uma PEM
também deve seguir o fluxo do espetáculo.
Princípio da Improvisação: Uma PEM deve ter a possibilidade de
improvisar, em alguns pontos do espetáculo e escolher a melhor
resposta que lhe convier conforme interações não planejadas com
outros atores e, inclusive, com o público (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).

Para Pavis (1999), em um espetáculo improvisado, “os atores agem como se tivessem
que inventar uma história e representar personagens”. Quando há o recurso da improvisação, o
ator é “desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção
com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais,
infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente (GUINSBURG,
1992). Tal como é permitido à um ator improvisar, à uma PEM também deve ser permitida a
Improvisação, sendo essa característica também selecionada como um princípio desta.
Princípio da Interpretação: Uma PEM deve poder interpretar sua
personagem e utilizar de mudanças de humor conforme as
necessidades do espetáculo e das interações (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).

Atuar não é apenas apresentar um roteiro de falas e ações à um público. Para


Meyerhold (2012), o ator “possui uma tarefa bem mais significativa que do que apenas levar
ao espectador a concepção do diretor. O ator será capaz de contaminar o espectador se recriar
em si tanto o autor como o diretor, expressando-se em cena”. Há muito mais nessa questão do
que apenas uma atividade automatizada. O princípio da Interpretação traz à PEM,
provavelmente, o ponto mais importante para discussão que este trabalho intenta propor.

3. Proposta de Espetáculo-Laboratório
O presente artigo apresenta uma proposta de Espetáculo-Laboratório como forma de
discutir a utilização da robótica, atrelada à Inteligência Artificial, em espetáculos teatrais. Para
isso, é proposto a utilização de uma PEM, seguindo seus princípios, em um espetáculo.
Entretanto, essa proposta não se firma apenas na apresentação de uma uma peça, mas na
posterior análise das suas aplicabilidades.
Dessa forma, a proposta segue a seguinte metodologia:
1. Criação do Roteiro;
2. Definição do cenário, figurino e demais elementos da cena;
3. Criação dos recursos mecânicos e computacionais necessários para a PEM;
4. Ensaios com ator(es) e PEM;
5. Apresentação do Espetáculo;
6. Análise e Avaliação;
7. Escrita de Artigos com os resultados.
Uma análise de requisitos iniciais, recursos mínimos necessários e aplicabilidade para
uma primeira versão desse espetáculo já se encontra atualmente em avaliação. São eles:
• Atores: Para suprir o princípio da interação da PEM, o espetáculo terá um ator para
que tal interação possa acontecer. Entretanto, não é necessário inicialmente que haja
mais de um ator em cena.
• PEM: Apenas um ator do tipo PEM é suficiente para uma discussão inicial.
Certamente que pode-se haver mais de uma PEM, inclusive interagindo entre elas.
◦ Computador: Um computador para executar os softwares e um Tablet com câmera
e audio como sensores para interação com o ator;
◦ Softwares: Em uma análise inicial, os softwares necessários para essa PEM
envolvem um chatbot (softwares para conversa em linguagem natural), softwares
para detecção de fala, sintetizador de voz, interface visual para mostrar pelo menos
o rosto da PEM com suas expressões e mudanças de humor;
◦ Mecânica: Um braço mecânico para suportar um Tablet com câmera que deve
seguir o ator. Este elemento não é obrigatoriamente necessário e ainda deve ser
avaliada a sua aplicabilidade inicial;
◦ Datashow: para mostrar graficamente os módulos de software que se encontram
em execução durante o espetáculo;
• Roteiro: Um roteiro ainda deve ser elaborado. A ideia é propor um roteiro sobre uma
discussão recursiva acerca da própria análise do que é a Inteligência Artificial e sua
aplicabilidade na interação humano-computador. O foco é um cientista discutindo com
sua criação o que é a Inteligencia Artificial.
• Cenário: Um laboratório mecatrônico para a criação de robôs.
Devido ao fato de que há o envolvimento de custos para a aplicação dessas ideias e de
que o projeto é independente e sem financiamento, alguns desses elementos ainda podem ser
reavaliados.

4. Considerações
Este artigo apresentou uma proposta da utilização de um robô provido de Inteligência
Artificial em um espetáculo-laboratório teatral como forma de discutir a aplicabilidade da IA
no teatro. Para tal foi sugerido a utilização de um robô seguindo os princípios da Persona Ex
Machina e uma ideia inicial de espetáculo a ser ainda criado, apresentado e analisado por um
público selecionado. Os próximos passos são a criação do roteiro, escolha do ator, montagem
do hardware necessário, implementação dos softwares, ensaios, apresentação e discussões.
Este espetáculo terá o suporte e auxílio do Grupo de Pesquisa em Ciberarte (Subverse, 2014).

Referências
ABRÃO, Elisa. 2007. As relações entre arte e tecnologia: a dança híbrida do Cena 11.
Pensar a Prática. v10, n2. 2007.
BERTHOLD, Margot. A história mundial do teatro. 2a. ed. São Paulo : Perspectiva. 2004.
GUINSBURG, Jacob; SILVA, Armando. Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992
MEYERHOLD, Vsevolod. 2012. Do teatro. São Paulo. Iluminuras: 2012.
MORETTI, Maria F.S.; BELTRAME, Vamor. Kantor, Duchamp e os objetos. Em: Valmor
Beltrame. (Org.). Teatro de Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e Prática. Florianópolis:
Design Editora, v.1, pg.07-142. 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo : Editora Perspectiva, 1999.
RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial. 2aEd, Tradução da 2a ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004
Subverse: grupo de pesquisa em ciberarte. <http://subverseproject.blogspot.com.br/>.
Acesso: 07/2014.
ZAMBIASI, Saulo P.; PINHEIRO, Patricia L.B.. Diálogos Performáticos Interativos para
Atores Virtuais. VI Jornada Latino Americana de Estudos Teatrais. Blumenau : Furb, 2013.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

CRUZAR SIGNIFICADO E DESEJO: A MONTAGEM D’ O TEATRO


DOS OUVIDOS DE NOVARINA COMO EXEMPLO DE UMA INSTALAÇÃO
TEATRAL
Stephan Baumgärtel – Universidade do Estado de Santa Catarina

O entrecruzamento entre práticas provenientes das Artes Visuais e outras das


Artes Cênicas é um procedimento artístico corrente e nada novo. A história da
cenografia é impossível de entender sem refletir sobre essa relação. O que aconteceu nas
últimas décadas é que surgiu um interesse comum em procedimentos tais como o
happening, a performance, a arte ambiental e a instalação. Esse interesse pode ser
interpretado como sintoma pelo qual se articula uma crise tanto da mimesis
representacional quanto da recepção tradicional hermenêutica. No contexto teatral, essas
práticas foram denominadas de ‘teatro imersivo’ e também em alguns casos de ‘teatro-
instalação’, como Marvin Carlson (2014) aponta em suas reflexões sobre a crise da
representação no teatro contemporâneo. Mas não precisamos buscar referências apenas
no teatro europeu ou norte-americano, pois as montagens do Teatro da Vertigem se
relacionam bem um teatro chamado ‘imersivo’. Entretanto, nem todas as montagens
imersivas podem ser qualificadas de ‘instalação teatral’, mesmo que toda instalação
(teatral ou não) trabalhe criticamente com a noção de imersão.1
Como o conceito de instalação configura, desloca e até potencializa a prática de
encenação na contemporaneidade?
Para responder a essas questões, me parece importante pensar as consequências
de dois vetores presentes no teatro contemporâneo que atuam sobre a prática de
encenação: o primeiro vetor é o fortalecimento do eixo comunicativo entre palco e
plateia, assumindo muitas vezes uma hegemonia sobre o segundo eixo: a comunicação
intra-ficcional entre as figuras ficcionais. Este fortalecimento encontra seu primeiro
grande teórico em Brecht e suas teorias de uma dramaturgia da recepção, o seja, um
agenciamento das ações cênicas a fim de induzir uma recepção crítica ativa. Está
presente nas reflexões mais radicais sobre um teatro que torna espectadores em co-
participantes, como também em muitas discussões atuais nas artes cênicas (e visuais)
sobre o problema da participação.2
Trata-se não apenas de uma poética cênica disposta a romper com os horizontes
de expectativa da recepção dos espectadores, mas de uma poética cênica que teima na
possibilidade e necessidade de instalar essa ruptura de modo estratégico: a poiesis
cênica enquanto provocação da recepção deve instaurar novos modos de olhar para a
cena e, a partir dessa percepção, induzir novos olhares para outras possibilidades de
existir no mundo empírico. No contexto das artes visuais, a instalação procura induzir
esse olhar novo não apenas pela provocação (ainda moderna) de uma narrativa não-
linear e associativa a ser construído pela percepção sinestésica do espectador. Antes, ela
instala outra relação temporal entre esse olhar e o espaço cênico com seus elementos aí
colocados, pois a instalação continua existindo enquanto o espectador entra nela como
um elemento fugaz. O tempo real e empírico com suas ausências de fronteiras e
consequentemente de formas bem delineadas ameaça a pertinência do tempo de uma
narrativa psíquica linear, uma narrativa de maturação na qual importam origem, conflito
contraditório e direcionado, desenvolvimento e resolução final. Nesse tempo real pode-
se instalar com mais facilidade uma recepção (multi-)sensorial direta que não depende
da compreensão intelectual dos signos e da narrativa para ser ativada.
Portanto, o segundo vetor da instalação teatral é de certa forma uma
consequência indireta do primeiro. Trata-se do foco na presença de um real em cena,
seja esse real um elemento cênico marcado enquanto empírico, ou seja ele a realidade
performativa da cena. Um vetor que induz uma fratura num regime fechado da
representação e simbolização; que perturba a separação clara entre o fingimento
artístico e os impactos supostamente mais reais e duradouros do mundo empírico.
Este segundo vetor leva a pensar a apresentação teatral como acontecimento real
e/ou como situação social, mais do que como texto espetacular. Entretanto, no contexto
teatral, uma situação precisa ser configurada. Ela nunca pode ser uma situação no
sentido forte da palavra (penso por exemplo no exemplo da língua inglesa, na qual
‘we´ve got a situation here’ significa ‘temos um problema aqui’), sem que haja um
adensamento estrutural entre os elementos envolvidos que produz certo tipo de tensão e
conflito. Em outras palavras, uma configuração cênica que pensa o teatro como situação
na qual se cruzam realidades e ficções, temporalidades e espacialidades imaginárias e
reais, materialidades e camadas simbólicas para que se produza um confronto entre o
mundo artístico e o olhar dos espectadores (participantes da situação), essa configuração
focaliza a interação direta entre público e artistas, entre recepção e construção da cena,
como o campo no qual devem emergir as tensões agonais. Esse campo conflituoso se dá
agora não apenas por via de um pensamento reflexivo, mas do contato físico e sensorial
direto entre os artistas e seu fazer e os espectadores-observadores e sua recepção.
Entretanto, por criar a participação enquanto problema e desafio, essa
configuração não exclui a vontade artística de dar a essa situação um acabamento
formal, de configurar essa situação ao instalar nela elementos teatrais e reais, momentos
ficcionais bem como momentos e objetos concretos de ações reais, para que a dimensão
temática seja experimentada de várias maneiras pelo público presente: intelectualmente,
sensorialmente e afetivamente. Essa vontade artística pagaria homenagem à velha
paixão narrativa do teatro, uma vez que a relação dos fragmentos e das camadas de
recepção no interior da situação teatral nada mais é para a instalação teatral o que era a
sequência das ações para a narrativa ficcional: o veículo para cativar artista e espectador
imaginaria, reflexiva e afetivamente, impregnar neles um conjunto de valores, de
reconhecimentos intelectuais e afetivos, de torna-los conscientes de suas estruturas de
sentimento e padrões de percepção, a fim de subverter alguns e fortalecer outros.
Nesse sentido, a situação da instalação teatral, a copresença de fragmentos do
real e do ficcional e o convite ao espectador de participar ativamente na construção
dessa situação, produz um risco para a construção de uma narrativa (de uma
“mensagem” ou de um “significado inscrito na obra”), mesmo que essa narrativa seja
diluída numa configuração antes temática do que temporal. Como também a insistência
em um fio temático norteador desafia a amplitude e liberdade da participação ativa do
espectador. Nesse desafia reside também um projeto pedagógico dos artistas em
conjunto com os espectadores, de testar as capacidades da situação teatral e da recepção
ao compartilhar a autoria e a responsabilidade pelo jogo cênico e pela potência
simbólica deste.
Dentro desses vetores, então, surgem algumas características da cena teatral que
a aproximam ao conceito da instalação, sobretudo o fato de que as propostas teatrais
contemporâneas incluem, de diferentes maneiras e intensidade, oportunidades para a
interação direta entre artistas e espectadores; ofertas de imersão que não passam por
uma identificação imaginária com figuras ficcionais da narrativa, bem como o uso de
adereços que evidenciam em cena seu pertencimento a um mundo ‘não-ficcional’ e
portanto se aproximam aos ‘ready mades’ no campo das Artes Visuais, além do
cruzamento de uma temporalidade real prolongada e outra ficcional de tempo marcado.
Se a instalação é marcada principalmente por propriedades tais como sua estrutura
imersiva e alegórica, seu foco na percepção intensificada do espectador e nos processos
de uma recepção ativa, bem como uma importância equivalente entre tempo e espaço
reais e ficcionais, a questão é como o teatro pode entrar nessa situação com o que ela
tem de específico: a presença do ator e o jogo entre corpo biográfica, performativo e
ficcional perante e em relação aos espectadores.
Quando falo de uma instalação teatral, então, quero me referir a um dispositivo
no qual essas propriedades da instalação formam um contexto básico e a dimensão
teatral entra nesse espaço como uma força para intensificar e subverter processos de
identificação com o jogo dessa situação: jogar com a situação da instalação é sobretudo
jogar com processos de concretização de ideias (invisíveis) na concretude material do
corpo humano e jogar com as tensões inscritas na participação dos espectadores:
recepção ativa intelectual, recepção interativa guiada, recepção participativa com
diversos graus de poder de intervenção. O jogo do ator permite alterar esses modos de
participação com muito mais agilidade do que uma instalação é capaz. Sobretudo,
permite apresentar o jogo na apenas como um tipo de transubstanciação estética, a ideia
virando carne, mas também – e mais importante talvez – a pulsação da carne no
contexto dessa ideia. Por meio dessas alterações, pode problematizar uma questão que
em instalações aparece muitas vezes implícito: Quem define as regras do jogo artístico
(do fio temático que une os diversos fragmentos e forma sua alegoria) e como essa
definição se relaciona com o corpo humana, com a existência concreta? Nesse sentido,
acredito que os trabalhos de instalação teatral mais instigantes são aqueles que frustram
um olhar unificante e que estimulam uma percepção de múltiplas perspectivas com
relações internas tensas (de poder e de funcionalidade distinta), que são também
relações estimulantes.
Quem foi visitar a apresentação do texto O teatro dos Ouvidos de Valère
Novarina realizada em 2012 pela companhia Teatro do Pequeno Gesto e o diretor
Antônio Guedes no Rio de Janeiro, seja na galeria do Espaço Cultural Municipal Sérgio
Porto, seja no Parque das Ruínas,3 deparou-se com diversas formas de tratar esse texto:
dito ao vivo pela atriz e tradutora Angela Leite Lopes; gravado e apresentado em
looping sem a presença da atriz; misturando a fala presencial da atriz com gravações do
autor em francês; frases isoladas impressas em panos semitransparentes que,
pendurados do teto, formaram um labirinto; mais fragmentado ainda nas palavras
bordadas a mão sobre outros panos; mas também palavras isoladas projetadas sobre
alguns panos e cujas letras aos poucos sumiram ou pularam para fora do espaço da
projeção, somente para voltar um pouco mais tarde, devido aos recursos técnicos da
projeção.
Essas observações sugerem que o protagonista dessa “performance plástico-
poética com texto”4 não é a performer e muito menos uma possível figura ficcional que
se articula por meio do texto teatral, mas antes o próprio texto, ou melhor talvez, a
relação do ser humano com a língua, seja ela falada, escrita, ou projetada tecnicamente.
Relação corporal e relação midiatizada. Uma vez afirmado isso, me parece bastante
patente que o interesse principal dessa apresentação recai sobre a investigação de
questões relativas às possibilidades de entender e subverter a língua como expressão
pessoal ou autêntica de um ser humano; ou, dito de modo mais aberto, recai sobre
possibilidades de expressar diferentes relações entre ser humano e língua, diferentes
impactos da língua sobre os seres humanos. Essa relação forma também uma camada
semântica importante desse texto escrito de Novarina. O que lhe interessa é sobretudo a
possibilidade de usar a língua de maneira concreta e performativa de modo que esse uso
subverta e dinamize um uso das palavras engessado na pseudo-clareza do uso comum.5
A estrutura fragmentada do gênero da instalação, com suas lacunas estruturais e seu
foco na materialidade do espaço, se oferece bem a esse projeto de Novarina.
Mesmo que os criadores não denominem o trabalho de instalação no material de
divulgação oficial, ele se assemelha a esse gênero artístico por diversos motivos: a
criação de um espaço imersivo (os espectadores entram num espaço organizado por
meio de panos semi-transparentes que continua presente para além do momento da
performance teatral); de uma estrutura espacial e ficcional-simbólica fragmentada cujos
elementos concretos e simbólicos apontam de diversos modos para um tema inscrito
indiretamente no texto teatral; de suas estratégias de recepção multisensoriais (os
espectadores podem se relacionar com o texto por meio das palavras bordadas, de
projeções animadas, das palavras ditas ao vivo e pré-gravadas). Portanto, é adequado
denominar o trabalho de instalação, como fez o diretor Antonio Guedes em um e-mail
enviado para mim.6 O elemento relativamente ausente é a qualidade interativa ou
participativa da presença dos visitantes no espaço da instalação. Pois ainda que o
público possa perambular pelos corredores formados pelos diferentes panos, não pode
intervir na lógica dos procedimentos da apresentação nem manusear diferentes
elementos para experimentar sensações e reflexões distintas conforme o modo de
contato estabelecido.
O que torna o trabalho interessante no contexto de uma pesquisa sobre
encenação enquanto instalação é a construção de uma recepção que permite
experimentar pela multiplicidade dos estímulos simbólicos e sensoriais uma abertura da
situação teatral enquanto cruzamento do texto escrito e do texto espetacular. A criação
de um espaço simbólico, por meio do uso dos panos com bordados e projeções que se
relacionam com o texto dito pela atriz presente, dentro do espaço encontrado, no qual o
primeiro se mostra vagamente transparente ao segundo, e vice-versa, essa criação pode
ser lida como indagação concreta das relações entre o espaço empírico e o espaço
artístico e das capacidades do arranjo cênico de articular essa relação de modo crítico e
enriquecedor – tarefa que antes pertencia no contexto teatral quase unicamente ao
discurso textual falado. O universo simbólico apresenta qualidades metaforizantes para
explicar o universo empírico (ver a metáfora do labirinto), mas ao mesmo tempo, e
talvez mais importante para o projeto de montagem, ele indaga a pertinência dessa
explicação, uma vez que os espectadores-visitantes se encontram e relacionam
possivelmente em diferentes situações e relações: contemplando a sensação de estar
nesse labirinto levemente transparente ou buscando interpretar esse enquanto signo em
relação a sua vida empírica; distanciando-se e perdendo-se nos caminhos do labirinto;
olhar para a cara nítida do outro espectador ou percebê-la apenas vagamente no outro
lado do pano; juntar-se em um lugar para observar a atriz falando o texto ou vagueando
solitariamente como um flanêur pelo espaço ouvindo o texto como se esse fosse uma
sonoplastia do momento vivido aqui e agora. O uso de panos semitransparentes coloca
em cheque a suposta transparência de signos socialmente clarificados (o significado
hermenêutico) e introduz nesse campo transparente uma presença enigmática, uma
dúvida que desestabiliza a clareza do olhar (um força que corresponde ao impacto do
verbo performativo).
Como entra o corpo e a voz da atriz nesse projeto? No registro do vídeo a
atuação apresenta uma série de trocas de olhares sorridentes entre atriz e público (o que
inclui a câmera). Por mais que esse olhar personalizado possa criar uma relação íntima
entre atriz e espectadores-visitantes e levar os a focar a atenção no modo como o texto
atravessa o corpo da atriz e torna-se fala, a personalização me parece diminuir o texto,
chamar atenção ao enunciado e não ao espaço “entre”. Ou seja, radica a atuação no
campo da subjetividade, e não numa membrana lacunar onde o subjetivo se desfaz e a
fisicalidade biológica e transhumana se materializa; onde a palavra enquanto mot é
pulverizada pelas energias corporais da parole. Entretanto, nada impedia a percepção do
espectador-visitante de encontrar na atuação o signo dessa membrana dramática, mesmo
que eventualmente sentisse falta do impacto pleno de seu acontecimento. De fato, a atriz
passou pelos dois tipos de situação, como mostra seu depoimento: “Houve sessões em
que havia menos gente e as pessoas ficavam mais no seu canto, ouvindo, não
procurando ‘assistir a cena’, e isso me dava uma sensação de grande liberdade! Houve
sessões em que as pessoas se aglomeravam me acompanhando e aí batia uma postura de
atriz que joga para aqueles olhares.”
Pensando na presença pré-gravada da voz do autor lendo um trecho em francês e
na cantiga infantil francesa cantada pela própria atriz, me parece evidente que havia
uma percepção por parte dos artistas criadores da necessidade de criar esse vetor como
uma materialização dessa dinâmica do verbo encarnado. Talvez faltasse coragem ou
determinação de levar esse embate para além de uma estrutura apolínea bem organizada
e deixar que esse embate atravesse o corpo da atriz no momento da atuação, criando um
jogo tanto com as palavras quanto com os outros elementos da cena. Um jogo que atua
no texto na tentativa do autor de destruir a língua por meio dos recursos da linguagem.
Para ativar a força da parole, são necessários procedimentos performativos que mostram
a língua enquanto força transformadora de um discurso pulsante. Como esse pulsar pode
se tornar perceptível? Ao criar um atrito dinâmico que vai além de ambivalências
semânticas. Ou seja, sobretudo na presença de um elemento corporal performativo,
como o traço do bordado das palavras no pano, e como o corpo ressonante da atriz.
Oferecer essa pulsão ao espectador constitui a meu ver um equivalente cênico daquilo
que o autor em seu texto chama “o desejo de ver o teatro da linguagem”. O contexto de
instalação pode aumentar a força dessa fricção no contexto da situação espacial, como a
atuação da atriz pode introduzir a potência do verbo em ação: o agon entre parole e mot,
no contexto da situação temporal. Desse modo, o aqui e agora da apresentação se
tornam contextos para ativar a tensão entre o contexto social e outro libidinal, entre
significado e desejo. O cruzamento entre instalação e encenação pode ser um
procedimento potente para iluminar e tornar palpável a riqueza e as tensões de nossa
existência humana no contexto das linguagens.

Referências
BISHOP. Claire. Installation Art – A critical history. London: Tate, 2005.
---. Participation. Cambridge: MIT Press, 2006.
DORT, Bernard. “A representação emancipada.” In: Sala Preta, vol 13, n 1,
jun 2013, p.47-55.
CARLSON, Marvin. “Sobre algumas implicações contemporâneas do termo
‘pós-dramático’.” In: Nas fronteiras do representacional.
Florianópolis: Letras Contemporâneas/CNPQ, 2014 (no prelo), sem
página disponível.
COULTER, Graham. Deconstructing Installation Art. Southampton: CASIAD,
2006. Disponível em http://installationart.net/, acesso 03/05/2014.
GUEDES, Antonio. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 17 de março de
2013.
GUENOUN, Denis. O teatro é necessário. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LOPES, Angela Leite (org.). Novarina em Cena. Com a colaboração de Ana
Kfoury e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
---. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 19 de março de 2013.
RANCIÈRE, Jacques. “O espectador emancipado.” In: Urdimento, no. 15,
Florianópolis: UDESC/PPGT, 2010, p.107-122.
1
Ver Coulter, 2006.
2
Ver sobretudo Bishop, 2005 e 2006, e também Rancière (2010) e Guenoun (2004).
3
O trabalho estreou em agosto de 2011, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto e foi
retomado em Maio e Junho de 2012 no Parque das Ruínas do bairro Santa Teresa.
4
Assim ela é descrita nas credenciais do DVD produzido pelo Teatro do Pequeno Gesto como
registro e material de divulgação.
5
O autor francês define como mot a palavra engessada em um significado supostamente
conhecido e comum. A essa palavra, ele opõe o verbo falado (parole) que recoloca a palavra (mot) em
movimento e a queima, pois a respiração empregada no uso do verbo age como combustão “das ideias
prontas sobre a linguagem e o real”(Lopes 2011, p.13). Mas o texto também deixa claro em sua
dificuldade reconhecida de realizar esse objetivo que o verbo performativo necessita da presença da
palavra estabelecida para poder articular sua força relativa.
6
E-mail para o autor em 17 de março de 2013.
VII JORNADA LATINO-AMERICANA DE ESTUDOS TEATRAIS

TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
Tiago Luz (CAPES); Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos; Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
2014
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE

Que o Teatro se configure como uma experiência espacial não é novidade: a


palavra Teatro define, além de uma Arte, um espaço físico, originalmente, o “lugar de
onde se vê”. Se existe um lugar de onde se vê, há um lugar que é visto, ou seja, é
fundamental para que exista Teatro esses dois lugares: a cena e o público.
Aqui a palavra experiência ganha certa relevância na medida em que o teatro
contemporâneo, por uma série de fatores, e em grande parte da sua produção, desloca o
foco do evento teatral da narrativa para o encontro entre pessoas – público/atores,
público/público, atores/atores.
As tentativas de confundir ou até mesmo de apagar as fronteiras entre cena e
público, num desejo de aproximação, de encontro, seriam um indicativo desse
deslocamento da prática teatral na direção do outro e temos refletido sobre isso como
uma ideia de prática da Alteridade – que a principio pode parecer tautológico, mas que
pretendemos aqui organizá-la enquanto escolha, enquanto conduta sensível do evento
teatral.
Sendo a enunciação teatral um sistema composto, híbrido, formado por uma
série de signos, para os nossos objetivos aqui, destacaremos o texto, a dramaturgia,
como elemento disparador da Alteridade como mecanismo aqui perseguida.
Dialoga com esse nosso entendimento o pensamento de Michel de Certeau ao
afirmar que “o espaço é um lugar praticado” 1, exemplificando:

“Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em


espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela
pratica do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito2”.

Da mesma forma, pensando na experiência teatral, alguém, um dramaturgo,


escreve algo para outro alguém, um ator ou diretor, que se destina ainda a outra pessoa,
o público. Instâncias se leitura se organizam a partir da enunciação do texto pelos
atores. Ora, esse ato enunciativo estabelece um lugar, um ‘eu’ que fala no presente e,
por consequência, outro que escuta: esta constituída a experiência teatral.
Além disso,

“É essa compreensão do ato enunciativo, enquanto retomada do lugar para novas


reorganizações espaciais, que permitirá a Certeau destacar os relatos (récits)
como organizadores do espaço social. Como atos performativos, os relatos, na
forma de estruturas narrativas, ‘têm valor de sintaxe espacial’” 3.

Apropriamo-nos da ideia de ‘relato’ como organizador de espaço social para


refletir, nesta pesquisa, sobre a dramaturgia de Jean-Luc Lagarce como organizadora de
um espaço de criação e prática da Alteridade. Para isso, afinaremos nosso foco sobre a

1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis : Vozes,
1994. Pag 202
2
Idem, ibidem.
3
JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo :
Escrituras Editora, 2005. pag. 80
2
personagem lagarceana, a fim de refletir sobre como ela se constitui e como o ator, a
atriz, pode se relacionar com essas figuras.
De modo geral, encontramos na sua dramaturgia ‘apenas’ figuras que, embora
no presente, contam, narram e até mesmo sonham com tempos passados ou futuros, e
esse momento presente – o que nos é proposto enquanto experiência teatral – constitui-
se basicamente desses relatos e, com isso, nos envolvemos numa experiência temporal
e, por consequência, espacial. Teatro fundado na palavra, teatro da escuta, desafiante
para atores e público: de um lado, como ser portador daquelas palavras em cena e, do
outro, o convite a um estado de atenção, receosos de perder algum novo detalhe que
apareça na fala de algum dos personagens, a fim de juntar as peças do quebra-cabeça
proposto pelo texto.
Adentremos, então, o universo do autor de Besançon, procurando perceber sua
estratégia de proposição das personagens em alguns dos seus textos.
Com uma produção intensa, localizada entre o fim dos anos 70 até meados dos
anos 90 – contemporânea de outros importantes dramaturgos da cena francesa como
Bernard-Marie Koltés, Philippe Minyana, Valère Novarina e Michel Vinaver – Lagarce
escreveu vinte e cinco peças teatrais reunidas em quatro volumes, o ensaio Théâtre et
Pouvoir em Occident (2001), três textos em prosa, L'Apprentissage, Le Baine e Le
Voyage à La Haye (2001) e vários artigos reunidos no volume Du Luxe et de
l'Impuissance (1997), publicado postumamente.
Sua incursão pelo universo teatral começa após o fim do ensino médio, no início
de seus estudos universitários em Besançon, no curso de Filosofia e Letras onde,
paralelamente, passa a frequentar um curso de Arte Dramática oferecido pelo
Conservatório Nacional Regional. Após terminar sua graduação, em 1977, se junta a
alguns amigos e funda uma companhia de teatro amador chamada Théâtre de La
Roulotte, em homenagem à trupe criada pelo ator francês Jean Vilar.
É nessa companhia – “Teatro da Caravana” – que Lagarce encena diversos
autores como Kafka, Ionesco, Molière, Beckett e Wedekind e onde encontra espaço
para a criação dos seus próprios textos. A imagem da caravana, além disso, será uma
tradução possível de algumas características da escrita lagarceana: errante, aventureira,
flexível e bastante provocadora.
A grande questão para o dramaturgo em construção e seu grupo era fazer um
teatro verdadeiramente contemporâneo e isso significava, naquele momento, responder
a indagação fomentada por Lagarce no seu ensaio Théâtre et Pouvoir em Occident:
“como escrever depois de Ionesco, Beckett e Tchekov?”4
Assim, ao eleger sua herança, Lagarce debruça-se sobre a linguagem a fim de
construir um teatro que falasse a seu tempo, desdobrando e ampliando as questões
desses grandes mestres ao longo da sua trajetória.
Suas primeiras peças publicadas – Erreur de construction e La bonne de chez
Ducatel – ambas de 1977, trazem características do ‘teatro do absurdo’, herdadas, por
exemplo, de A Cantora Careca, de Ionesco.5 Outros trabalhos iniciais como Carthage,
encore, La place de l’autre, Voyage de Madame Knipper vers La Prusse Orientale e
Les Serviteurs ressoam o tratamento da linguagem operado por Beckett e Tchekhov e
começam a apontar alguns temas que serão recorrentes no universo do autor de
Besançon: o retorno ao país, ao lugar de origem; personagens que falam do passado ou
sonham com um futuro; figuras suspensas no tempo-espaço que só existem à medida
4
Jean-Pierre Thibaudat. Parcours de Jean-Luc Lagarce in www.lagarce.net/auteur/biographie
(consultaem 24/07/13)
5
idem
3
que falam, ou seja, temas que se relacionam com um estar em movimento, em
deslocamento ou sentir-se deslocado, em trânsito, em eterna busca – como também
sugere o próprio nome da companhia.

“Essas pessoas vagando num mundo arruinado, o retorno a um lugar de origem


devastado e o ato de contar o que se viveu como única alternativa possível a um
quadro tão desolador são próprias da escrita de Jean-Luc Lagarce” 6
De maneira geral, uma das estratégias que o autor utiliza e que primeiro nos
chama a atenção é a despersonalização de suas personagens. Nos textos lagarceanos,
com frequência, os nomes são substituídos por letras, como em Voyage de Madame
Knipper vers La Prusse Orientale, de 1979 – A. une femme / B. une femme / C. um
homme / D. um homme / E. um homme / F. domestique, muet, homme ou femme / G.
domestique, muet, homme ou femme; as vezes, artigos – Elle / Lui como em La place
de l’autre, 1980; ou são reduzidos ao mínimo referente possível: gênero ou classe a que
pertencem, por exemplo – O Rádio / A Primeira Mulher / A Segunda Mulher / O
Primeiro Homem / O Segundo Homem, em Carhtage, encore, 1979, peças do início da
carreira do autor.
Em agosto de 2006 realizou-se no Teatro Laboratório da ECA/USP a ‘Semana
Lagarce’. O evento estava inserido nas atividades do “Ano Lagarce” em comemoração
aos 10 anos de falecimento do autor francês morto prematuramente. Uma oportunidade
de imersão na obra de um dos dramaturgos franceses mais montados na atualidade, mas
pouco conhecido no Brasil, através de espetáculos teatrais e leituras dramáticas de
textos do escritor, além de workshop e exposição fotográfica.
Dos textos apresentados nesta Semana, somente o Apenas o fim do mundo,
espetáculo apresentado pela Cia Brasileira de Teatro, traz uma lista de personagens com
nome, parentesco e idade. Talvez por se tratar da “peça mais íntima de Jean-Luc
Lagarce” 7, de acordo com Marcio Abreu, diretor da montagem curitibana.
Luiz, 34 anos, é a personagem que, após ausentar-se por muito tempo, retorna à
casa da família para comunicar sua morte próxima. O texto se desenvolve em longas
falas, revelando um desejo enorme das personagens de se fazerem entender, de dizer o
que nunca foi dito.
As outras personagens são:
SUZANA, sua irmã, 23 anos.
ANTONIO, irmão deles, 32 anos.
CATARINA, mulher de Antonio, 32 anos.
A MÃE, mãe de Luiz, Antonio e Suzana, 61 anos.
Chama à atenção aqui, numa lista que cita nominalmente as personagens, a
existência de uma chamada simplesmente de ‘a mãe’, sem um nome específico e ao
mesmo tempo autoexplicativo: Lagarce abre espaço para que um nome, ou personagem,
seja uma relação.

6
OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no teatro de Jean-
Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011. Pag. 31
7
Marcio Abreu, programa da peça, Curitiba, 2006
4
Nota-se certa problematização da personagem, na medida em que, a partir dessa
única informação, caberá à atriz encontrar no texto, naquilo que a sua personagem diz –
e no que dizem dela – outros índices que a ajudem a sustentar essa figura em cena. Em
se tratando de um texto lagarceano, porém, não será surpresa se tudo o que essa busca
revelar for a necessidade de se colocar como instrumento de passagem para as palavras
do texto.
Para se aventurar no universo lagarceano é preciso “conservar no centro do
nosso mundo o lugar das nossas incertezas, o lugar da nossa fragilidade, da nossa
dificuldade de dizer e de entender” 8. Sem dúvida um desafio, de forma e conteúdo,
para o ator mais tradicional, acostumado a ‘incorporar’ e defender uma personagem em
cena.
Nas outras peças da Semana Lagarce, todas da fase final da produção do autor,
as personagens são apresentadas na mesma estratégia de despersonalização e mínimo
referencial possível, colocando o foco do seu teatro muito mais naquilo que é dito do
que em quem diz. Essa mudança de perspectiva é fundamental no teatro de Jean-Luc e
cerne de nossa pesquisa.
A temática do retorno a casa aparece em outro trabalho apresentado naquela
semana em 2006. Desta vez, o foco recai não naquele que volta, mas nos que ficaram.
A Cia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto fez a
leitura dramática do texto Eu estava em casa e esperava que a chuva viesse, de 1997,
penúltima obra escrita por Lagarce.
Nesta peça, uma espécie de coro formado por
A Mais Velha
A Mãe
A Filha mais velha
A Segunda
A Filha mais nova

está à espera do filho/irmão que foi expulso de casa pelo Pai, que já faleceu.
Como se vê, as personagens também não têm nome, mas são apresentadas numa
hierarquia familiar. Essa informação não deixa dúvida quanto ao tipo de relação
existente entre elas, embora todas façam parte do mesmo “oratório dramático para cinco
vozes9”.
Sobre a organização das personagens na lista de apresentação, uma vez que não
indica a ordem em que aparecem no texto, podemos supor que Lagarce poderia querer
indicar certa rigidez no universo dessas cinco mulheres que passaram anos de suas vidas
aguardando o retorno do filho/irmão querido. E novamente temos uma personagem
indicada apenas como A Mãe, e se pensarmos nas demais figuras a partir dessa, cria-se
certo ruído com relação à personagem A Mais Velha: seria a avó?
O texto é formado por uma longa sucessão de monólogos que se permeiam e o
tema da espera remete diretamente ao Esperando Godot, de Beckett, mas vai além.

8
LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les Solitaires Intempestifs,
2004. Pag. 19 (tradução nossa)
9
Op. Cit. Pag 147
5
“Lagarce, um autor influenciado por Beckett, amplia a tragédia beckettiana
porque, ao contrário de Godot, que não aparece para Estragon e Vladimir, ele faz com
que esta pessoa, este filho/irmão que vai dar sentido à vida delas, apareça. Só que ele
não faz nada. Chega, cai no meio da sala e não sabemos se está vivo ou morto” 10.

Trazendo essa análise para mais perto do nosso objeto – o trabalho do ator na
construção da personagem lagarceana - para as atrizes, apresentava-se o desafio de dar
voz aos longos monólogos entrecortados e fazer existir, pela palavra, pela ação da
palavra, cada figura, revelando-se e relacionando-se consigo mesma e entre si.
Carolina Fabri, atriz que fez A Filha mais velha na montagem da Cia Elevador,
conta que “lendo o texto, no começo, a gente lia o texto lendo mesmo, era uma leitura
dramática, encenada, e lendo o texto, sem colocar nada em cima, só lendo o texto, já me
trazia tantas afetações, as palavras mesmo, a maneira como elas estão encadeadas,
parecia que você quase não tinha que fazer nada, você só tinha que ler e falar aquilo que
estava escrito, claro, você tem que estar aberto a essas coisas, acho que esse é o maior
trabalho de todos” 11.
Nota-se o exercício de sensibilidade proposto pelo autor e captado pela atriz no
trato com o texto.
O desafio parece ser o de transformar a matéria bruta do texto em experiência
sensível, o que exige dos atores, das atrizes um posicionamento diferente daquele
baseado na construção de uma personagem e mais interessado na comunicação, na
partilha de um momento que seria o da escuta.
Em Lagarce, a busca pelo outro se apresenta como um dos principais temas e a
construção do texto com longas falas é a forma de dar espaço para que a figura se
esforce para se expressar, se colocar e, simultaneamente, abrir espaço para o esforço do
outro em compreender e fazer parte na relação.
Outro trabalho presente na Semana Lagarce, dirigido por François Berreur12 e
que depois teve uma montagem brasileira foi Music Hall. Escrito em 1988, apresenta
três figuras que vivem no universo artístico e expõem as aventuras e desventuras de
quem vive dessa escolha.
Aqui, as personagens são indicadas apenas pelo gênero - La Fille, Le Premier
Boy, Le Deuxième Boy – e na encenação de Berreur, três atores, homens, do Collectif
Artistas Unidos, de Portugal, dividem a cena como muitos anônimos que lutam para
viver da Arte.
Ao optar por um ator no papel da Moça, o diretor comunga com Lagarce o jogo
com a linguagem e suas estruturas e nos provoca um distanciamento cênico que, para
além dos distanciamentos dramatúrgicos, gera um espaço primordial para a elaboração
da alteridade.
A ironia e o bom humor também estão presentes nesse texto que traz na sua
estrutura um jogo metalinguístico, estruturado com longas falas e réplicas e que explora
e favorece a reflexão sobre o fazer teatral. De acordo com Luiz Paëtow, diretor da

10
LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Laga rce. In Revista Pitágoras 500,
vol. 1, Campinas, 2001, pag. 74
11
Carolina Fabri. Entrevista realizada em maio de 2014
12
François Berreur é ator e diretor da Cia de Teatro francesa Les Solitaires Intempestifs, além de
cofundador da editora especializada em publicações teatrais Les Solitaires Intempestifs. Ex-integrante da
Théâtre de la Roulotte (compagnia fundada por Jean-Luc Lagarce no final dos anos 70 e começo dos 80),
Berreur atuou nas peças Histoire d'amour (as duas versões), nas montagens da Cantatrice Chauve e outras
peças da companhia.
6
montagem brasileira do texto, “Lagarce deixa o âmbito familiar/amoroso e cria uma
obra que tem potência de manifesto” 13.
Por fim, mas não na ordem cronológica da programação da Semana Lagarce,
lançaremos um olhar sobre História de Amor (últimos capítulos), cujo texto e a
montagem realizada pelo Teatro da Vertigem dispararam e configuram os principais
objetos de nossa pesquisa.
Também a convite do Consulado Francês, o Vertigem foi o primeiro grupo
brasileiro a levar aos palcos esse texto lagarceano, com direção de Antonio Araújo e
Eliana Monteiro e um elenco formado por Roberto Áudio (O Primeiro Homem), Sergio
Siviero (O Segundo Homem) e Luciana Schwinden (A Mulher).
História de Amor (últimos capítulos) foi escrito em 1990, e teve sua estreia em
abril de 1991 no Espaço Planoise, em Besançon, com encenação do próprio autor. A
peça chegou a Paris em fevereiro de 1992, no Theatre de la Cité Internationale.
Trata-se da segunda versão desse texto, de caráter mais impreciso do que aquela
escrita em 1983 - História de amor (apontamentos). Os motivos pelos quais o autor
retorna a essa texto são desconhecidos, e essa imprecisão da segunda versão se
caracteriza pela maneira como Lagarce estabelece uma camada a mais de leitura sobre o
texto ao inserir de forma mais objetiva o ator, aquele que o lê como mostraremos a
seguir.
Uma possível sinopse para o texto seria: Um homem escreveu uma peça.
Naquele dia, chegaram outro homem e uma mulher. Os três leem juntos o texto. Talvez
representem a peça – são atores – ou apenas a descubram como se descobre o texto de
um amigo.
Logo na primeira fala dessa versão do texto, temos a figura do Primeiro Homem
que, de forma estranhada, mas já muito objetiva, propõe um jogo espaço-temporal que
vai se desenvolver como a espinha dorsal do texto contribuindo para o estabelecimento
de uma cena em suspenso, oscilante, num convite às avessas para a experiência da
presença dos corpos, em cena e na plateia, no aqui agora, reforçando a existência e a
necessidade do outro e do estar junto.
PROLOGO

O PRIMEIRO HOMEM
Prólogo.
O Primeiro Homem.
Uma noite, o Primeiro Homem fica sozinho, se esquecem dele, não sabem o que
ele faz, o que é feito dele.
Foi feito dele.
<< que idade é que ele tem? >>
O Primeiro Homem, uma noite...

13
Luiz Paëtow, diretor e ator, dirigiu a montagem de Music Hall com a Cia da Mentira em 2009 com
reestréia no 2º semestre de 2013. Entrevista realizada em julho de 2013.
7
É a historia de dois homens e uma mulher.

A MULHER
Ela, a Mulher (eu), ela, ela ri delicadamente.
Talvez – não a distinguimos muito bem – talvez chore também, um pouco, é
possível. [,,,]

Quando o Primeiro Homem repete a rubrica, ele acaba por se localizar dentro da
história e ao mesmo tempo desloca a atenção para aquilo que está escrito, para a
palavra, anunciando, talvez, que o que interessa neste texto é ele mesmo, o texto, e tudo
aquilo que ele é capaz de gerar no espaço e nas pessoas envolvidas nele e com ele.
Em seguida, na fala da Mulher, a atriz/personagem se apresenta, tenta se
localizar dentro do jogo de forma explicita, revelando também que há, sim, um espaço
entre elas (a atriz e a personagem) e que isso será preservado aqui como forma mesmo
de sobrevivência, de prática da escrita e da cena. Trata-se de uma personagem quase
sempre apresentada de forma nebulosa, vista quase sempre na penumbra, com ações
vacilantes e por vezes ambíguas.
Ao longo do texto há um refinamento dessas imprecisões que tende a estabelecer
um elo cada vez mais coeso entre quem fala e quem ouve, reforçando o lugar do público
enquanto testemunho daquilo que é dito e do que acontece em cena.
De acordo com Roberto Áudio, “História de Amor é um texto difícil, cheio de
sutilezas, variação de tempos, falas que se dirigem a um e, de repente, termina se
dirigindo para outro14”. Nota-se, assim, o desafio do texto de Lagarce: fazer do terreno
movediço da sua escrita uma pista de dança!
Podemos perceber outras características da sua escrita como o jogo verbal entre
presente, passado e futuro, às vezes na mesma frase, o uso recorrente de vírgulas como
um recurso de construção e desconstrução de ritmos, revelando alguém cuidadoso,
preocupado em encontrar a melhor palavra, a melhor frase ou expressão, que dê conta
de comunicar aquilo que realmente se quer, o que é verdadeiramente necessário,
importante.
Nesse sentido, a repetição – de palavras ou até de frases inteiras, aparece como
um elemento constituinte da escrita lagarceana e de acordo com Cícero Oliveira, “a
regularidade com que o autor a utiliza leva a crer que em seu teatro esse procedimento
adquire o status de um verdadeira modus operandi, tornando-se quase que um estilo do
autor” 15. Em sua dissertação, Cícero aprofunda essa discussão, dando muitos exemplos
do uso desse recurso e suas consequências na leitura e na fala dos textos de Lagarce.
Trabalhando assim, o autor elabora uma fala repleta de detalhes, propondo um
estimulante jogo tanto para os atores, na medida em que precisam dar conta das nuances
e sutilezas do texto, quanto para o público, que vai construindo e adentrando o universo
da peça, e a relação com cada personagem, na medida em que recebe cada peça desse
aprimorado quebra-cabeça.
Diante desse quadro, como pensar o trabalho do ator, enquanto primeiro espaço

14
Roberto Áudio, entrevista realizada em julho de 2013.
15
Op, Cit. Pag. 69
8
de criação e alteridade? Segundo Jean-Pierre Ryngaert, “o ator não pode mais tomar a
cargo esses personagens segundo os sistemas de representação vigentes, procurem eles a
identificação ou formas de distanciamento. Nós o dizemos ‘atravessado’ pela fala (...), o
imaginamos portador de uma energia alternada, muito presente e subitamente
fantasmática, engajado em seu discurso ou como que hibernado. Em todo caso, cabe-lhe
assumir essas figuras empalidecidas às quais um suplemento de carne e contornos
firmes dariam uma existência resoluta e falsa de ‘personagem em excesso’” 16.
Acreditamos que uma alternativa possível nesse panorama é um trabalho de ator
que abra espaço para o jogo sensível da linguagem proposto por um texto com
características específicas, como os de Jean-Luc Lagarce, que favorecem um caminho
de elaboração e revelação da ficção, e da própria alteridade.
A relevância dessa atitude, talvez seja a de nos alertar que o Teatro, enquanto
linguagem e ‘espelho da vida’, é construção, estrutura elaborada e, por isso, passível de
interpretações, reorganizações e mudanças. Uma atitude política.

16
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São
Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág. 139
9
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves,


Petrópolis : Vozes, 1994.

JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São


Paulo : Escrituras Editora, 2005.

LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les


Solitaires Intempestifs, 2004.
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad.
André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

ARTIGO

LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Lagarce. Pitágoras


500, vol. 1, Campinas, 2001.

DISSERTAÇÃO

OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no


teatro de Jean-Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011.

SITE
www.lagarce.net

10
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

PIETÁ EM PRETO&BRANCO
ESTUDO DE UMA IMAGEM HISTÓRICA NA REPRESENTAÇÃO DO TEATRO
DE SOMBRAS
Tuany Fagundes Rausch1
Fátima Costa de Lima2

O presente artigo analisa a relação da construção de imagens no teatro de sombras e o conceito de


“imagem dialética”, que o crítico alemão Walter Benjamin (1892-1940) entende como encontro
entre imagem, mito e história.

Antes de adentrarmos na análise do teatro de sombras, precisamos sublinhar que nossa percepção
sobre as sombras vem muito antes do conhecimento deste gênero teatral. Sobre isso, o psicólogo
suíço Jean Piaget realizou um estudo que

revelou que a maneira como as crianças percebem as sombras varia de acordo com
a idade. A partir de 5 anos, tendem a achar que são feitas do mesmo material que a
noite – a escuridão. Depois, entre os 6 e 8 anos, acreditam que sejam objetos
materiais. Só mais tarde, a partir dos 9 anos, é que elas percebem que as sombras
são fruto da relação entre objetos e a luz. Já é algo muito próximo do que
entendemos quando nos tornamos adultos: sombras são áreas escuras onde a luz
foi bloqueada. (GOMES, 2004).

As interpretações tanto literais quanto metafóricas variam de acordo com a cultura e o contexto
histórico de cada pessoa. Apesar desse tipo de estudo não ser abordado aqui, ressaltamos que nossa
visão será positiva ao abordar a utilização da sombra como meio expressivo de criação. Ao
contrário, comumente se remete, quando se fala de sombras, a algo desconhecido e obscuro.

A relação entre luz e sombra é elementar na construção de uma imagem no teatro de sombras. Ela
torna-se dialética no momento em que consideramos as etapas de sua construção como partes da
tríade dialética formada por positivo, negativo e negativo do negativo. Ao criarmos uma obra na
linguagem do teatro de sombras, primeiro definimos que imagem se quer construir (a ideia). Depois,
vemos como passaremos essa imagem para a tela (a ação), que obstáculos colocaremos entre luz e
tela, podendo ser estas silhuetas, corpo humano, objetos; e como ela se formaria nos olhos do
público. E, por último, o resultado, como se dá a imagem em si.

Assim, analogamente à tríade, essas três percepções de composição se dão como: positivo, a ideia;
negativo, a ação; e o negativo do negativo, a imagem.

Entretanto, nem todas as imagens são dialéticas mesmo no teatro de sombras, ainda que este tenha
tendência a criá-las por operar dialeticamente a construção de suas imagens. Apenas algumas,

1
Acadêmica do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro - CEART - UDESC - bolsista PIBIC/CNPq.
2
Orientadora do Departamento de Artes - CEART – UDESC.
porém, conseguem configurar-se como síntese dialética de imagem, história e mito. Para Benjamin,
imagens dialéticas são figuras da dialética histórica e da natureza mítica:

profunda intuição sobre as relações entre dialética, mito e imagem. Pois não é como
algo sempre vivo e atual que a natureza se impõe na dialética. A dialética detém-
se na imagem e ela, no acontecimento histórico mais recente, o mito como passado
muito antigo, a natureza como história primeva. Por isso, as imagens, como as dos
intérieur, que conduzem a dialética e o mito a um ponto de indistinção, são
verdadeiramente ‘fósseis antediluvianos’. (BENJAMIN, 2007, p.503).

O sombrista3 utiliza elementos potencialmente oníricos: luz e sombra. Quando uma pessoa fecha
seus olhos, revela-se o escuro. Com o passar do tempo ele toma outras formas, coloridas, subjetivas,
além do visível a pálpebras abertas. Do ponto de vista benjaminiano, em que “A utilização dos
elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o pensador
e obrigatória para o historiador” (Benjamin, 2007, p. 506, [N 4, 4]), o espectador do teatro de
sombras assume, quanto à imagem a ele mostrada, o papel de historiador e intérprete do onírico:

Na imagem dialética, o ocorrido de uma determinada época é sempre,


simultaneamente, o “ocorrido desde sempre”. Como tal, porém, revela-se
somente a uma época bem determinada - a saber, aquela na qual a
humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente esta imagem
é onírica. É nesse instante que o historiador assume a tarefa da interpretação
dos sonhos. (BENJAMIN, 2007, p. 506)

Dentro do teatro de sombras, o sombrista seria o pensador e o espectador, o historiador. Seu objeto
de estudo em comum é a imagem dialética. Ou, ainda que não a imagem em si, sua construção
dialética, necessária para que qualquer imagem chegue aos olhos do espectador.

Como objeto de estudo e exemplo imagético a serem analisados a partir de tais conceitos, escolhi a
imagem que denominei Pietá de Chador4. A imagem aparece na série autobiográfica Persépolis, de
Marjane Satrapi. Na série, Satrapi conta sua história desde a infância até sua ida à França, onde mora
atualmente. A autora conta de maneira singular e sincera as mudanças que presenciou a partir de
1979, com o advento da Revolução Islâmica. A obra teve sua versão para o cinema em 2007, dirigida
por Satrapi e Vincent Paronnaud, que ganhou o Oscar de Melhor Animação naquele ano.

3
Conceito elaborado por Alexandre Fávero, num texto originariamente elaborado para a ABrIC - Associação Brasileira
de Iluminação cênica para encaminhamento ao Ministério do Trabalho e o SATED Nacional para possível aprovação
nas categorias profissionais de técnicos em iluminação. “São profissionais que pesquisam, criam, idealizam, projetam,
constroem, montam, atuam, operam e elaboram cenas dramáticas através da utilização das luzes e sombras projetadas.
Lidam com diferentes matérias-primas e tecnologias, exigindo conhecimentos e habilidades manuais para a criação de
objetos cênicos e na elaboração de soluções técnicas para o seu funcionamento na cena. [...] É uma função de alta
capacitação artística por estar relacionada com as mais diferentes áreas das artes, exigindo conhecimentos de artes
cênicas, gráficas, plásticas, cinematográficas, fotográficas, e conhecimentos técnicos nas áreas da elétrica, ótica,
cenografia, dentre outros aspectos de interesse artístico. [...]”.
4
Termo criado por Tuany Fagundes para diferenciar da obra Pietá, de Michelangelo, de 1499.
Para que se criasse uma república islâmica, a revolução, uma das poucas
manifestações incontestáveis da vontade popular contra um regime político, sofreu
algumas mudanças em sua trajetória. O novo governo estabelecido proporcionou o
regresso do Irã aos valores tradicionais do Islã. Costumes ocidentais difundidos na
cultura iraniana durante o regime do xá foram proibidos, entre eles a proibição às
mulheres do uso de maquiagem e de minissaias; música pop e rock; cinema; jogos
e jogatinas. Velhos códigos morais foram ressuscitados, como o açoite e castigos
corporais aos que praticassem adultério, aos que praticassem sexo fora do
casamento e aos que consumissem álcool.
Para garantir a Revolução Islâmica, muitos dos que a apoiaram foram executados,
entre eles os marxistas, os grupos maoístas e de esquerda, por defenderem o estado
laico, uma ameaça aos princípios teocráticos do islã. Também foram executados os
considerados doentes ou escórias da sociedade, como os homossexuais e as
prostitutas. (LEE-MEDDI, 2014)

A obra já teve várias análises, dentre elas, a de Valéria Pisauro, professora de Literatura e História
da Arte:

A primeira parte do filme apresenta um divisar da vida e da luta de três gerações


da família de Marjane: a história da ditadura; do petróleo; revolta e revolução.
Diálogos e imagens simples relembram a história amarga, ridicularizam os tiranos,
enquanto seduz o espectador a um contexto histórico-social e cultural de um país
que aderiu ao conservadorismo e repressão muito parecidos à Inquisição.
Sem intenções moralistas, Persépolis parte do particular para o universal, cruzando
ambas as narrativas e sendo simultaneamente íntimo como uma biografia e
abrangente no testemunho, à procura de uma identidade no contexto de uma vida
sob tirania. (PISAURO, 2014).

É importante salientar que não se pretende realizar uma visão dicotômica entre Ocidente e Oriente.
Mesmo que eu tenha nascido deste “lado” do mundo, pretendo observar diferentes pontos de vista,
inclusive o da participação de países ocidentais na implementação de regimes autoritários para que
lhes favorecessem economicamente.

A partir da Revolução Islâmica, o mundo árabe emergiu nos noticiários ocidentais


não só pelo poder do petróleo, como pela volta aos princípios islâmicos, numa
contraposição à influência corrosiva dos costumes ocidentais.
O modelo de implantação de uma república islâmica feita pelo Irã, serviu de
inspiração para o surgimento de vários movimentos de grupos islâmicos radicais.
A luta desses grupos gerou hostilidades entre o ocidente e o mundo árabe, que
tomou como expoente o conflito entre Israel e os palestinos. Das hostilidades
sofridas, as mais terríveis vieram em forma de terrorismo, sendo os Estados Unidos
o principal alvo, não só pelo seu apoio ao Estado de Israel, mas por sua política
maniqueísta, que teima em ver nos preceitos islâmicos e na sua concretização como
força política, uma ameaça à paz e à sua democracia arraigada, transformando em
inimigos todos que se lhe opõem, classificando-os como nação do bem ou do mal.
(LEE-MEDDI, 2014)

Sem resolução dos conflitos, a atualidade tem que lidar com os conflitos muitas vezes ignorados
pelos noticiários.
Quanto ao destino do regime estabelecido pela revolução de 1979, somente o povo
iraniano poderá responder até onde irá e até quando o legitimará. Quanto ao
ocidente, há de se aprender a conviver com as diferenças culturais, que se
sobrepõem ao poder econômico, seja ele emanado do petróleo ou da força das
armas. (Ibidem)

Após essa breve contextualização, voltemos à imagem. A Pietá de Chador aparece quando Marjane
já está na fase adulta. Ela fez parte de seu exame de admissão na faculdade de artes no Irã, como
conta Satrapi:

Para entrar na faculdade de artes, além dos testes de múltipla escolha havia uma
prova de desenho. Eu tinha certeza que um dos temas seria "Os mártires",
obviamente! Então treinei copiando umas 20 vezes uma foto da "Pietá" de
Michelangelo. Naquele dia eu a reproduzi, mas pus um chador negro na cabeça de
Maria, uma farda em Jesus, acrescentei duas tulipas, símbolo dos mártires*, de
cada lado, para evitar confusão. *dizem que as tulipas vermelhas crescem com o
sangue dos mártires. (SATRAPI, 2007).

Analisando a imagem em nosso contexto histórico ocidental atual, vemos a pertinência de uma
discussão estética dialética sobre ela, à qual facilmente caberia o fragmento a seguir, de Walter
Benjamin:

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz
sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num
lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética
na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente
temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma
progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são
imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a
linguagem. (BENJAMIN, 2007, p. 504).

Embora a imagem Pietá de Chador não seja originária de um processo de montagem em teatro de
sombras, possui os elementos formais para sua possível construção neste gênero: é em preto e
branco, em “sombra e luz”. Além disso, contém os elementos de conteúdo da imagem dialética:
dialético: imagem, mito e história.

A Pietá de Chador é uma alegoria aos mártires de guerra que envolve o mito de Maria no Islão com
a história da Revolução Islâmica e guerra Irã-Iraque.

Existe uma noção que resume todos os ensinamentos e todas as tradições que o
Islão possui acerca de Maria: é a da “Mulher Perfeita que corresponde em todos os
graus ao princípio passivo e substancial da Existência”. (...) Assim se encontra
ilustrada a afinidade que o Islão representa com a função mariana e o espírito de
servidão que é sua marca. (BORAU, p.136).

Como vemos, segundo os estudos de Borau, vê-se a figura de Maria ocupando um lugar
particularmente eminente no Islão.
A importância de Maria no Islão é realçada pelo facto de a sura do alcorão (Alcorão
19) relatar a Anunciação e a Natividade. Esta é a passagem principal: <<Maria
deixou sua família e retirou-se para um local que dava para o Leste. E colocou uma
cortina para ocultar-se dela (da família), e lhe enviámos o Nosso Espírito, que lhe
apareceu personificado, como um homem perfeito. Disse-lhe ela: Guardo-me de ti
no Clemente, se é que temes a Deus. Explicou-lhe: Sou tão-somente o mensageiro
do teu Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado. Disse-lhe: Como poderei
ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de sercasta? Disse-lhe:
Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para
os homens, e será uma prova de nossa misericórdia. E foi uma ordem inexorável>>
(Alcorão 19, 16-21) [...] <<Regressou ao seu povo levando-o (o filho) nos braços.
E disseram-lhes: Ó Maria, eis que fizeste algo extraordinário! Ó irmã de Aarão, teu
pai jamais foi um homem do mal, ou tua mãe uma (mulher) sem castidade! Então
ela disse-lhes que interrogassem o menino. Disseram: Como podemos falar a uma
criança que ainda está no berço? Ele disse-lhes: Sou o servo de Deus, o Qual
Meconcedeu o Livro e Me designou como profeta. Fes-Me abençoado, onde quer
que Eu esteja, e encomendou-Me a oração e (a paga do) zakat, enquanto Eu viver.
E fez-Me piedoso para com a minha mãe, não permitindo que Eu seja arrogante ou
rebelde. A paz está comigo desde o dia em que nasci; e estará comigo no dia em
que Eu morrer, bem como no dia em que Eu for ressucitado>>. (BOURAU, p. 135
e 136).

Maria é o único nome mencionado no Alcorão, tornando-a a mais venerada. Ela foi concebida para
ser um instrumento das vontades divinas, estando como principal exemplo de submissão e
obediência.

Historicamente, a Revolução Islâmica foi construída desde quando os árabes invadiram a Pérsia, em
642 e, derrotados, adotaram o Islã, mais precisamente o xiismo. Desde então, a região sofreu várias
mudanças de poder e, especificamente a ocorrida em 1979, teve suas origens décadas antes.

A Pérsia se via em meio à cobiça da Rússia e da Inglaterra. Ao longo do século


XIX, tornou-se um Estado-tampão entre as duas potências. Os russos anexaram o
Cáucaso e a Ásia Central, e os ingleses se apoderaram do Afeganistão e do Tibete.
A descoberta de petróleo e a Primeira Guerra Mundial aceleraram a investida dos
ingleses, que passaram a interferir cada vez mais na economia do país.
Em 1925, um oficial, Rezah Khan, tomou o poder, expulsando o último soberano
Qadjar. ele deu oficialmente ao país o nome de Irã e acelerou sua ocidentalização,
para grande ir dos religiosos, que começaram a sonhar com um poder islâmico.
Com a Segunda Guerra Mundial, o norte do país foi ocupado pelos soviéticos, e o
sul, pelos ingleses recém-chegados, os americanos, que obrigaram o Irã a declarar
guerra à Alemanha. Diante do pouco entusiasmo do xá, depuseram-no e o
substituíram pelo filho dele, Mohammad Rezah.
Em 1953, a CIA organizou seu primeiro golpe de Estado contra Mossadeq, o chefe
do governo, que contestava a divisão dos lucros provenientes da exploração de
petróleo feita pela Anglo-Iranian Oil Company. Os americanos submeteram o país
a um embargo, impedindo a exportação do produto. Então Mossadeq foi derrubado,
e Mohammad Rezah, que havia fugido, voltou ao trono. Ficou no poder até 1979,
quando fugiu da Revolução. (DAVID B. In SATRAPI)
A imagem contém uma concatenação dialética entre três elementos. Considerando a Pietá de
Chador como parte singular, temos a história como elemento particular - e ponto central da análise
estética dialética- em que a Revolução Islâmica interfere tanto do cotidiano de pessoas comuns,
quanto na economia mundial. O mito de Maria corresponderia à universalidade, sustentando tanto
uma crença teológica que tomou o poder político, levando a atitudes repressoras à população
cotidianamente. Dessa maneira, a Pietá de Chador não é só uma imagem estática ilustrativa de uma
revolução e consequente ditadura, mas sim uma contentora de elementos dialéticos que nos fazem
refletir sobre nossa própria colaboração nessa parte da história e quais as consequências que isso
nos traz no dia-a-dia. Até que pontos ajudamos a construir aquilo que tanto condenamos
midiaticamente? Até quando vamos ignorar a inexistência de uma realidade objetiva dicotômica?
Até que ponto a Pietá de Chador não é a Maria ocidental que veneramos?

Em minha pesquisa de iniciação científica e em meu trabalho de conclusão de curso, aprofundarei


essas questões em diálogo com os conceitos benjaminianos aqui citados.
Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p.503 [N 2,
7], p.504, p.506 [N 4,4] [N4,1]

BORAU, J. L. Vásquez. As religiões do livro. Tradução de Lara Almeida Dias. Lisboa: Paulus,
2002. P.135 e p. 136.

GOMES, João Carlos. À Luz de Sombras. Disponível em: http://super.abril.com.br/ciencia/luz-


sombras-444547.shtml Acessado em 01 julho de 2014.

LEE-MEDDI, Jeocaz (postado por). Revolução Islâmica do Irã. In: Virtuália – O Manifesto
Digital. Disponível em: http://virtualiaomanifesto.blogspot.com.br/2009/02/revolucao-islamica-
do-ira.html Acessado em junho de 2014.

PISAURO, Valéria. Blog do Amstalden. Disponível em:


http://blogdoamstalden.com/2013/03/09/persepolis-por-valeria-pisauro/ Acessado em: julho de
2014.

SARTRAPI, Marjane. Persépolis. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p. s/n.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TROCAS CULTURAIS E CRIAÇÃO CÊNICA NOS DISCURSOS DEARIANE


MNOUCHKINE E PETER BROOK

Autora: Vanessa Cristina Petrongari


(Projeto de Iniciação Científica1)
Orientador: Eduardo Okamoto
Departamento de Artes Cênicas; Instituto de Artes; Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP)

A cena teatral contemporânea tem abrangido inúmeros espetáculos de cunho


intercultural, mostrando-se, assim, um rico espaço onde ocorrem encontros e diálogos
de diferentes culturas. Segundo Patrice Pavis, as trocas culturais são importantes para o
teatro contemporâneo por colocarem em cena fenômenos que ultrapassam questões
socioeconômicas, exigindo, por isso, uma metalinguagem que, ao mesmo tempo, as
englobe e também as transcenda. No entanto, as trocas culturais são muito mais
complexas do que a união de várias culturas em um mesmo espaço cênico. Trata-se de
um campo amplo, rico em possibilidades e, ao mesmo tempo, de difícil formalização.

Há qualquer coisa de presunçoso, ou melhor, de ingenuidade no sentido de


querer propor uma teoria do interculturalismo na encenação contemporânea,
quando se sabe da complexidade de fatores em jogo em qualquer troca
cultural e a dificuldade de sua formalização. Qualquer tipologia das relações
culturais exige uma metalinguagem que esteja, de alguma forma, “para além”
delas e que, no entanto, as englobe todas: pode-se ver muito pouco onde o
teórico encontraria tal metalinguagem, tanto mais que ele mesmo estaria
empenhado numa língua e cultura das quais dificilmente poderia abstrair-se.
E, por outro lado, não existe uma teoria geral da cultura que integre
corretamente os fatores históricos, sociais e ideológicos sem que para isso os
reduza. As abordagens culturalistas têm tido o mérito de reabilitar fenômenos
que não se situam na infra-estrutura socioeconômica e que, portanto, não
podem ser descritas em termos puramente econômicos ou sociológicos. No
entanto, inversamente, elas têm, atualmente, por vezes a tendência de
dissolver todos os fatores socioeconômicos, políticos e ideológicos na
cultura, a apresentar o cultural como o social inscrito nos comportamentos
individuais, a pôr em evidência a influência do inconsciente individual nos
fenômenos culturais. (PAVIS, 2008, p. 177)

As relações entre processos de trocas culturais e teatro não constituem um


fenômeno recente, mas, a partir da segunda metade do século XX, o teatro se tem valido
de diferentes culturas de forma mais afirmativa e consciente (sobretudo algumas figuras
como Eugênio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine) colocando como objeto de
busca em suas pesquisas essa hibridização cultural. Assim, para estudar as relações de
trocas culturais no teatro contemporâneo, é importante entender o uso de quatro termos
centrais: “multiculturalismo”, “interculturalidade”, “transculturalidade” e
“intraculturalidade”. Para Pavis, as relações de trocas culturais seriam melhor definidas
pelo termo “interculturalismo”, não apresentando definição distinta para os conceitos de
“multiculturalismo” e “transculturalismo”.

1
Projeto desenvolvido com financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo.
O termo interculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de
multiculturalismo ou transculturalismo, para nos darmos conta da dialética de
trocas dos bons procedimentos entre as culturas. (PAVIS, 2008, p. 2)

Entretanto, Eduardo Okamoto, orientador deste estudo, em sua tese de doutorado


(2009, p. 59-71), especifica definições para cada termo (“multiculturalismo”,
“interculturalidade” e “transculturalidade”) e ainda traz um conceito utilizado por
Rustom Bharucha (1993) - “intraculturalidade”. Para Okamoto, ainda que os termos
estejam intimamente relacionados uns aos outros, podem apresentar diferentes
perspectivas de entendimento sobre o fenômeno de trocas culturais. O
“multiculturalismo”, como prática no teatro, é a reunião de artistas formados em
culturas diferentes, como são, por exemplo, os coletivos dirigidos por Ariane
Mnouchkine e Peter Brook, onde a experienciação das trocas entre esses indivíduos é o
principal objeto de estudo e matriz de criação. “Interculturalidade” é o próprio processo
de diálogo e trocas entre os indivíduos provenientes de diferentes culturas.
“Transculturalidade” é a busca, a partir do diálogo entre essas culturas, por uma
generalização, algo que seria intrínseco a todos os homens, independente de sua origem.
E “intraculturalidade”2 é a pesquisa das circunstâncias locais através de uma
investigação aprofundada da própria cultura em que se vive.
Os diretores Brook e Mnouchkine tornaram-se conhecidos, entre outras
realizações, por dirigir coletivos multiculturais na produção teatral europeia, tendo
grandes inspirações em manifestações culturais orientais, africanas e árabes. Valendo-se
de tradições, ritos e formas espetaculares de culturas não-europeias, esses diretores
montam espetáculos com atores de diversas nacionalidades, hibridizando tais tradições
para a construção de um discurso cênico multicultural, valorizando o que seria comum a
todas nacionalidades produtoras de teatro, “a língua do teatro”.

Je pense qu’il y a un élément qui nous unit, c’est l’amour du théâtre. Je suis
persuadée, au contraire, que la richesse des cultures est un atout. Les gens qui
ont rejoint le “Théâtre du Soleil” avaient une raison bien particulière de le
faire: ils voulaient explorer l’essence du théâtre. La nationalité, la langue
maternelle sont alors transcendées. Tous partagent une seule et même langue,
la langue du théâtre. (MNOUCHKINE, 2003.) 3

Este lugar comum de encontro de diferentes culturas é visto pelos diretores


como um campo rico onde tudo pode se produzir. Um terreno de encontros, conflitos e
diálogos que, se bem entendido e explorado, pode ser enriquecedor para a cena teatral.
Explorando os conflitos surgidos do diálogo entre seus atores, os quais trazem
diferentes vivências e experiências culturais, os diretores almejam transpor barreiras e
chegar a um campo que seria comum a todos: a linguagem teatral.

Notre travail, au Centre, consiste tout simplement à créer un lieu où un petit


groupe de personnes peut explorer pendant une longue période les
possibilités réelles qui sont données par ces traversées des barrières. Si le

2
Termo que não é utilizado por Brook nem Mnouchkine, mas este conceito é abordado de forma
tangencial em seus discursos.
3
Eu creio que há um elemento que nos une, é o amor ao teatro. Estou persuadida, ao contrário, que a
riqueza das culturas é um trunfo. As pessoas que vieram para o “Théâtre du Soleil” tinham uma razão
bem particular para tal: eles queriam explorar a essência do teatro. A nacionalidade, a língua materna são,
então, transcendidas. Todos dividem uma só e mesma língua, a língua do teatro. (Trad. minha)
mélange est mal pris, c’est une dilution, si c’est pris d’une autre manière,
c’est un enrichissement. (BROOK, 2007, p. 28 e 29) 4

Desta forma (como em diversas outras passagens estudadas ao longo da


pesquisa), Brook e Mnouchkine revelam partilhar de forma semelhante do entendimento
dos conceitos de “multiculturalismo”, “interculturalidade” e “transculturalidade”. O
“multiculturalismo” é apontado pelos diretores como um trunfo, um aspecto positivo
que enriquece o trabalho cênico. A convivência de atores provindos de diferentes
culturas abre espaço para a “interculturalidade”, que é o próprio processo de trocas
culturais entre o coletivo multicultural. A partir deste diálogo e do trabalho teatral, os
diretores almejam alcançar um território comum que estaria além das barreiras culturais
de cada um, um campo “transcultural”. Para eles, seria possível estabelecer uma
comunicação cênica que não fosse pautada nos signos de determinada língua ou cultura
e sim em códigos (verbais e não-verbais) inteligíveis a qualquer ser-humano. Assim,
Brook e Mnouchkine parecem buscar um teatro concernente a todo e qualquer
indivíduo, independentemente da cultura na qual nascera e crescera. Por isto a busca em
formas espetaculares não-europeias ocupam um lugar importante em seus trabalhos.
Entretanto, esta atitude de se inspirar em outras culturas, diversas daquelas em
que estão inseridos, a fim de se criarem novas cenas teatrais, tem sido alvo de críticas
por se assemelhar à atitude colonizadora da Europa em relação a países africanos,
asiáticos e americanos a partir do século XVI. Rustom Bharucha, diretor e crítico teatral
indiano, é um dos principais nomes que faz frente a essa proposta de teatro intercultural
europeu. Segundo ele, essas formas de apropriação ocidental limitam-se a reproduzir
apenas a aura cultural enxergada pelos diretores do que tentam compreender
verdadeiramente o que estaria por trás motivando tais manifestações.

I would argue, but through the very enterprise of the work itself : its
appropriation and reordering of non-western material within an orientalist
framework of thought and action, which has been specifically designed for
the international market. It was the British who first made us aware in India
of economic appropriation on a global scale. They took our raw materials
from us, transported them to factories in Manchester and Lancashire, where
they were transformed into commodities, which were then forcibly sold to us
in India. Brook deals in a different kind of appropriation : he does not merely
take our commodities and textiles and transform them into costumes and
propos. He has taken one of our most significant texts [The Mahabharata]
and descontextualized it from its history in order to ‘sell’ it audiences in the
West. (BHARUCHA, 1993, p. 68) 5

4
Nosso trabalho, no Centro, consiste simplesmente em criar um lugar onde um pequeno grupo de pessoas
pode explorar durante um longo período as possibilidades reais que são dadas por essa travessia de
barreiras. Se a mistura é mal apreendida, é uma diluição, se é apreendida de uma outra maneira, é um
enriquecimento. (Trad. minha)
5
Eu argumentaria, mas através da empresa do próprio trabalho: a sua apropriação e reordenação de
material não-ocidental num quadro orientalista de pensamento e ação, que foi projetado especificamente
para o mercado internacional. Foi o britânico que primeiro fez-nos conscientes na Índia da apropriação
econômica em escala global. Eles tomaram nossas matérias-primas de nós, transportaram-nas para
fábricas em Manchester e Lancashire, onde foram transformadas em commodities, que foram, então,
forçosamente vendidas a nós na Índia. Brook trata de um tipo diferente de apropriação: ele não se limita a
levar nossos produtos e tecidos e transformá-los em trajes e costumes. Ele tomou um de nossos textos
mais significativos [O Mahabharata] e descontextualizou-o a partir de sua história, a fim de "vendê-lo" a
um público no Ocidente. (Trad. minha)
Desta forma, a criação artística baseada em trocas culturais atinge escalas mais
complexas e delicadas. A busca por diferentes formas espetaculares não-europeias é
vista como inspiradora e enriquecedora por parte dos diretores europeus, mas também
traz consigo semelhanças a atitudes exploradoras, como apontado por Bharucha.
Exploradoras no sentido de utilizar uma matéria-prima, transformá-la em um produto
comerciável (a obra de arte) e revende-la.
Longe de apontar uma teorização ou resposta, os estudos sobre trocas culturais
no teatro problematizam os atritos gerados no encontro de diferentes culturas para a
produção cênica. Como apontado por Pavis, seria presunçoso apontar uma formalização
para estas relações, devido a complexidade que pressupõem. Entretanto, sua
problematização e discussão fazem-se necessárias devido à crescente importância que o
multiculturalismo e a interculturalidade assumem na cena contemporânea. São inegáveis
as qualidades dos trabalhos de Brook e Mnouchkine, no entanto, são pertinentes as
críticas sobre o modo de enxergar uma cultura distinta e utilizar-se dela. Até que ponto
utilizar-se de determinadas fontes pode ser considerado “inspiração” e a partir de que
ponto torna-se uma atitude antiética?

Bibliografia

BHARUCHA, Rustom. Theatre and the world: performance and the politics of culture.
London: Routledge, 1993.
__________________. The Politics of Cultural Practice. Thinking Through Theatre in
an Age of Globalization. Oxford University Press, India, 2011.

BROOK, Peter. Avec Grotowski. Éditions Actes Sud, France : 2009.


_____________ Avec Shakespeare. Éditions Actes Sud, France : 1998.
______________Climat de confiance. L’instant même. Quebec, 2007.
______________Entre deux silences. Éditions Actes Sud, France : 2006.
______________Le diable c’est l’ennui. Propos sur le théâtre. Éditions Actes Sud,
France : 1989.
______________Oublier les temps. Éditions du Seuil collection Fiction & Cie, France :
2002.
______________Points de suspension. Éditions du Seuil collection Fiction & Cie,
collection Points Essai. France : 1992.
______________The empty space. Simon & Achuster. New York, 1995.
______________The open door. Achor Books, 2005.
______________The shifting point. Forty years of theatrical exploration 1946 – 1986.
A&C Black, 1997.
______________There are no secrets. Thoughts on acting and theatre. Methuen Drama.
United Kingdom, 1993.
______________Threads of time. Methuen Publising, 1999.

MNOUCHKINE, Ariane. L’art du présent. Entretiens avec Fabienne Pascaud. Plon,


France : 2005.
_____________________Entretien avec Ariane Mnouchkine. Entretien avec Silke
Greulich, ARTE-TV Magazine, le 13 janvier 2003. Disponível em :
http://www.arte.tv/fr/entretien-avec-ariane-mnouchkine/362192,CmC=362282.html
_____________________De l’apprentissage à l’apprentissage, Alternatives Théâtrales,
n°70-71 ("Les penseurs de l’enseignement, de Grotowski à Gabily"), décembre
2001, pp. 24-31. Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/a-propos-du-
theatre-du-soleil/le-theatre-du-soleil/de-l-apprentissage-a-l?lang=fr#
_____________________On n’invente plus de théories du jeu : Entretien avec Ariane
Mnouchkine. Jeu : Revue de théâtre, n. 52, 1989, p. 7 – 14. Disponível em :
http://id.erudit.org/iderudit/26676ac

OKAMOTO, Eduardo. Eldorado : dramaturgia de ator na intracultura. – Campinas,


SP: [s.n.] 2009. Tese de doutorado.

PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADE

Cinema e Teatralidade: Deslocamento mítico e ressignificação espaço-


temporal na minissérie A Pedra do Reino

Yuri de Andrade Magalhães


Jerônimo Vieira de Lima Silva
Francisco Wellington Rodrigues Lima

No ano de 2007, a Rede Globo de Televisão exibiu a seus telespectadores, em


comemoração aos 80 anos de idade do escritor Ariano Suassuna, a minissérie intitulada A
Pedra do Reino, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, inspirada na obra do autor
intituladaRomance d’ A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Ao ler a obra
e assistir a minissérie, podemos perceber que tanto o autor quanto o diretor optaram por uma
abordagem aparentemente não linear que siga “adequadamente” as unidades aristotélicas de
tempo, espaço e lugar.

Ariano Suassuna em sua obra opta por uma estrutura in media res, ou seja, os
acontecimentos são evocados em forma de flashback. Podemos encontrar a estrutura in media
res na Ilíada, de Homero, onde o autor grego inicia a narrativa já no final dos acontecimentos,
utilizando o recurso in media res, a fim de explicar tudo o que ocorrera anteriormente, até
chegar no ponto de onde se iniciou a epopeia. Do mesmo modo, ocorre na tragédia de Édipo
Rei, de Sófocles, em que todo o passado virá à tona após as investigações em torno do
assassinato do rei Laio. Em A Pedra do Reino, o protagonista, Pedro Dinis Quaderna, situa o
leitor acerca dos acontecimentos que o levaram a situação em que se encontra - preso em uma
cadeia. Os recursos perpetrados por Carvalho retomam a estrutura in media res, em que o
protagonista vê os acontecimentos do passado, fruto da sua própria imaginação. De um lado
os fatos do passado, e do outro o Pedro Dinis Quaderna que a tudo observa no presente,
estabelecendo assim a linha divisória entre os tempos estabelecidos. Tanto a leitura da obra
quanto à apreciação da minissérie exige um leitor / espectador “avisado”, o trabalho de Ariano
Suassuna e Luiz Fernando Carvalho parece não se destinar a um público que possua poucas
referências no que concerne à cultura sertaneja, popular, que dialoga diretamente com a
cultura européia medieval e possui ecos notáveis da cultura clássica da Antiguidade.

Conforme aponta Rodrigues (2010), buscando aprofundar-se no melhor da tradição


popular nordestina e na estrutura de um texto popular/erudito que possui formas estéticas
variadas, pertencentes ao mesmo tempo ao litoral e ao sertão – as quais são ligadas às nossas
origens ibéricas -, em 1958, Suassuna começou a escrever o Romance d’A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, sendo este adaptado, anos depois para o cinema. Assim, o
autor paraibano conseguiu enriquecer sua obra de uma matéria-prima sublime – crença
popular, superstições, religiosidade e moralidade popular-, unindo o espontâneo ao elaborado;
o popular ao erudito; a linguagem comum ao estilo do verso; o regional ao universal.
Ressaltamos também o encontro e a influência do autor com outras formas populares de

1
cultura como os espetáculos de mamulengo, o Bumba-meu-boi e o circo, além, claro, do
cinematográfico. (Rodrigues 2010).

Sendo assim, em sua produção literária, é possível perceber, como relata Rodrigues
(2010), modelos formais dramáticos da alta literatura ocidental como também influência do
teatro religioso medieval, sobretudo ibérico, na qual se acrescentam traços elementares do
barroco, associando-se com formas estéticas da dramaturgia profana vigentes na época de
transição do período medieval para o renascimento, como a Comédia dell’Arte e de outras
estéticas que muito contribuíram para a essência Literária de Suassuna, sendo por este motivo,
uma obra de denso valor estético e cultural; de difícil entendimento.

Luiz Fernando Carvalho em sua minissérie apela para uma “suspensão da descrença” no
espectador brasileiro que já se acomodou a uma estrutura narrativa na televisão onde tudo
deve se esclarecer de maneira “plausível” e tudo deve supostamente chegar a algum lugar, ou
algum resultado. O diretor coloca em evidência o seu potencial criativo, demarcando o lugar
do diretor como também um “re-criador” da obra literária, muitas vezes acrescentando
aspectos que o autor possivelmente não havia pensado. Sob o seu olhar criativo, Carvalho
situa a vila de Taperoá em uma cidade cenográfica que possui uma perspectiva quadrangular,
o espaço representativo de Taperoá se encontra cercado entre quatro paredes de casas, e dois
imensos portões se abrem e se fecham para a entrada de personagens.

O tempo da memória e o tempo presente se entrecortam tanto na obra quanto na


minissérie, essa aparente ausência de definição entre o que é passado e presente, entre o que
aconteceu antes ou depois, torna-se ainda mais evidente quando Carvalho coloca Pedro Dinis
Quaderna ora participando ativamente das suas lembranças (como geralmente ocorre quando
nos lembramos de algo) ora presenciando fatos da sua lembrança em terceira pessoa,
assistindo aos acontecimentos como se houvesse sido transportado para o tempo da memória.

Logo no inicio da minissérie podemos ressaltar um aspecto da teatralidade da obra, ou


melhor, da metateatralidade; o teatro dentro do próprio teatro. A minissérie inicia com todos
os personagens dançando em uma grande roda de ciranda, onde Pedro Dinis Quaderna se
encontra dançando ao centro, notavelmente envelhecido, corcunda, com maquiagens pesadas,
e um figurino que nos remete simultaneamente a Miguel de Cervantes e a seu personagem
mais célebre, Dom Quixote. Essa semelhança entre Pedro Dinis Quaderna e Dom Quixote, em
determinados trechos da minissérie, parece bastante pertinente, uma vez que Quaderna é um
personagem notoriamente “quixotesco”. Assim como Dom Quixote, grande parte da obra de
Suassuna e da minissérie de Carvalho é preenchida com os devaneios que oscila entre a
loucura e a lucidez de Quaderna.

De acordo com informações contidas na obra Almanaque Armorial, organizada pelo


pesquisador Carlos Newton Júnior (2008), Ariano Suassuna teve influências de nomes
conceituados da história do teatro clássico e da literatura mundial como Boccaccio, Cervantes,
Stendhal, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoievski, Calderón de La Barca, Gil Vicente, Lope de
Vega, Molière, Shakespeare, Federico Garcia Lorca etc, além de influências que melhor
representaram o Romanceiro Popular Nordestino entre as quais podemos citar José Laurenio
de Melo, Leandro Gomes de Barros, Leonardo Mota, Francisco Brennand, Maritain e
Bérgson, Chico da Silva; e influências de teóricos, pesquisadores e literários que escreveram a

2
história da cultura e da literatura brasileira como Gilberto Freyre, Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego. Dessa forma, ressalta-se aqui, como
dissemos antes, a influência do “quixotesco” na obra do autor, dentre outras.

Podemos observar que a roda de ciranda com todos os personagens é um aspecto


potencialmente metateatral, pois na ocasião o diretor parece querer mostrar ao espectador que
tudo aquilo é “apenas teatro”, buscando fazer com que o espectador entenda que estamos
todos em uma “comunhão”, como geralmente se busca no teatro; uma comunhão entre ator e
espectador, apelando, todavia, para a “suspensão da descrença”, conforme mencionamos
anteriormente neste artigo.

Assim como as tragédias e as epopéias clássicas, a obra de Ariano Suassuna é permeada


por momentos líricos, épicos e dramáticos. Suassuna introduz em sua obra um elemento que
foi de fundamental importância para a preservação e sobrevivência das epopéias de Homero;
o rapsodo. O rapsodo na Grécia é um grande responsável pela tradição oral que manteve viva
por várias gerações os cantos da Ilíada e da Odisseia. Os rapsodos eram poetas cantadores
que cantavam trechos das epopéias em locais públicos, em festejos religiosos, e até mesmo
em frente às residências dos gregos. Desta forma, o rapsodo se insere como um elemento
lírico e épico na cultura clássica.

Possivelmente, imbuído dessa influência do rapsodo, Ariano Suassuna, seguido por Luiz
Fernando Carvalho, desenvolve uma apresentação inicial de Pedro Dinis Quaderna, conforme
podemos observar:

Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1º


de Julho de 1935, pela estrada que nos liga à Vila de
Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma
cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas
mais poderosas do lugar, incluindo entre estas o modesto
Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão
que lhes fala neste momento. (SUASSUNA, 2007, p.35)

Na minissérie A Pedra do Reino, podemos observar que o diretor optou por fazer um
deslocamento temporal no que concerne ao cenário. Na minissérie, no momento em Pedro
Dinis Quaderna se dirige ao público explicando-os sobre a trama que está por vir, ele
pronuncia tais palavras de cima de um “carro-palco”, carro esse completamente feito de
madeira e que possui uma estrutura que segue o formato de uma casa capaz de girar 360 graus
sob o próprio eixo, na Inglaterra medieval essa estrutura era conhecida como peageant cart.

Ao utilizar o “carro-palco”, Luiz Fernando Carvalho nos transporta diretamente para o


teatro religioso existente no decorrer da Idade Média, o carro-palco foi um elemento
frequentemente presente nos autos sacramentais portugueses e espanhóis e nos mistérios da
Inglaterra e França, bem como nas farsas e soties que ocorriam, com maior freqüência, nos
intervalos dos mistérios. Deste modo nós podemos entender o carro-palco de Quaderna como
um elemento de ressignificação espaço-temporal.

A apropriação oriunda de culturas estrangeiras de outras épocas, feita por Luiz Fernando
Carvalho, pode se relacionar diretamente com o teatro contemporâneo no que concerne a ideia

3
de apropriação como matriz estética, o que comumente entendemos por “adapatação”. Beigui
(2006) esclarece-nos que o que está em jogo na contextualização e no conceito de
“Apropriação” é sempre a experiência de leitura, a adesão aos elementos que constitui não
apenas a trama presente no texto literário, mas todo o universo de referência dos escritores em
jogo. Neste sentido, o hibridismo contido no romance de Ariano Suassuna, proporcionado por
suas múltiplas referências de ordem literária dialoga diretamente com o hibridismo das
referências teatrais que Luiz Fernando Carvalho possui.

No que concerne ao “deslocamento mítico” na Pedra do Reino de Luiz Fernando


Carvalho, podemos deduzir a principio que a própria estrutura da cidade cenográfica de
Taperoá é uma possível menção à cidade de Tróia, famosa por suas imponentes e
intransponíveis muralhas. Na homérica Tróia existem dois imensos portões que é por onde se
dá a entrada e a saída principal da cidade, esses mesmos portões assumem função de entrada
da vila de Taperoá.

O deslocamento mítico também permeia as páginas do romance de Ariano Suassuna bem


como as cenas da minissérie de Luiz Fernando Carvalho. A começar pela enigmática morte do
influente ancião Pedro Sebastião Garcia-Barretto, tio e padrinho do protagonista Pedro Dinis
Quaderna. Pedro Sebastião Garcia-Barretto é sempre descrito como um rei generoso e
bondoso, Quaderna sempre faz questão de enfatizar as qualidades de seu padrinho e o desejo
de algum dia vingar seu assassinato.

Podemos deduzir que Ariano Suassuna se inspirou no rei Príamo, de Tróia, para compor
seu personagem. Sabemos que Príamo é considerado um modelo de rei bondoso e generoso.
A influência mítica na Pedra do Reino também se estende à tragédia grega, a exemplo da
vingança da morte do pai na trilogia de Ésquilo, Oréstia, e a temática da disputa pelo trono
entre os dois irmãos filhos de Édipo em Os Sete Contra Tebas do mesmo tragediógrafo. Em
entrevista realizada em sua residência na cidade de Recife/PE em Agosto de 2013, Ariano
Suassuna admite:
Tem um parentesco muito... inclusive, a Orestíadaé um livro que
me toca muito, e Ésquilo é um dramaturgo que me toca muito,
Ésquilo e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de Orestes
por causa daquilo que lhe disse... Então você tem Orestes... e você
em Hamlet e Horácio, filhos como Orestes de um rei assassinado.
Não é? E você tem Ariano Suassuna (Risos), filho de um rei
assassinado. (MAGALHAES, 2013, p.128)

Além da influência da Orestíada de Ésquilo, o autor também admite na mesma


entrevista que a disputa entre Arésio e Sinésio pela herança de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto é uma herança literária da disputa de Etéocles e Polinices pelo trono de Tebas em Os
Sete Contra Tebas. Podemos observar que o diretor Luiz Fernando Carvalho coloca notória
ênfase na disputa entre os dois irmãos. Um elemento repleto de possíveis significações é o
figurino utilizado em cena pelos personagens Arésio e Sinésio, o diretor optou por vestir os
personagens com uma indumentária atípica da realidade sertaneja. Sinésio veste uma
armadura prateada e Arésio, frequentemente nu da cintura para cima, utiliza uma capa
vermelha, remetendo-nos talvez a um espartano. Podemos entender nessa indumentária uma
possível menção aos beligerantes heróis das epopéias.

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Outro fato existente na minissérie, porém não na obra de Suassuna, é o momento em
que Pedro Sebastião Garcia-Barretto pede que Pedro Dinis Quaderna acompanhe seu filho
caçula, Sinésio, à Natal, onde supostamente Sinésio ficaria protegido dos rivais políticos de
seu velho pai, na casa de Swendson. Podemos também deduzir que essa atitude de Pedro
Sebastião Garcia-Barretto em esconder o filho em outra cidade está ancorada na postura
tomada pelo rei de Tróia, Príamo, ao enviar seu filho mais novo, Polidoro, para a Trácia, onde
lá estaria oculto dos inimigos de Tróia, os gregos, protegido pelo rei Polimestor. O rei da
Trácia, contudo, ao saber da queda de Tróia, mata Polidoro, e na tragédia de Eurípedes
intitulada Hécuba, Polimestor é alvo da vingança de Hécubapela morte de seu filho caçula.

Nas últimas partes da minissérie e da obra, Pedro Dinis Quaderna está enfrentando um
inquérito. Lembremos que o romance começa com a narração de Quaderna feita a partir de
sua cela na cadeia, todo o romance se constrói no objetivo de esclarecer ao leitor como o
protagonista chegou àquela situação. Duas situações sustentam o eixo narrativo do romance
de Suassuna; a morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto e achegada de Sinésio à vila de
Taperoá após cinco anos de desaparecimento, o que ocasiona a disputa política entre os dois
irmãos Arésio e Sinésio.

Conforme já falamos anteriormente o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto


está, segundo admite o próprio autor, ancorada (além dos fatos pessoais do próprio autor) na
tradição mítica da Antiguidade, no assassinato de Agamênon por Clitemnestra e Egisto na
trilogia Orestíada de Ésquilo e a temática da rivalidade entre os dois irmãos está ancorada na
rivalidade entre Etéocles e Polinices em Os Sete Contra Tebas, também de Ésquilo. Contudo,
o desaparecimento e o exílio de Sinésio, também presente em muitos heróis trágicos da
Antiguidade como Édipo e Orestes, é uma influência direta do mito de Dom Sebastião, rei de
Portugal, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir contra os mouros na África.

Podemos observar que na obra de Ariano Suassuna, Sinésio é descrito por Quaderna
como o grande esperado pela população de Taperoá, que crê que será libertada da miséria e da
opressão quando Sinésio a ela retornar. Esse caráter messiânico de Sinésio, diretamente
inspirado em Dom Sebastião, é potencializado por Luiz Fernando Carvalho que, designou
para o papel um ator que possui feições semelhantes às que as pessoas genericamente
atribuem a Jesus Cristo, cabelos compridos e olhos claros. Em dissertação escrita sobre o
Romance d’A Pedra do Reino, podemos observar:

Pelas razões políticas mencionadas anteriormente, o rei D. Sebastião


era esperado pelo povo português antes mesmo de seu nascimento,
passando a ser também conhecido como “O Desejado”. No Romance
d’A Pedra do Reino, a espera pelo retorno de Sinésio faz com que este
seja chamado, por Pedro Dinis Quaderna, como “O Alumioso”.
Versões conflituosas também servem para reforçar o aspecto mítico
tanto em D. Sebastião quanto em Sinésio. Em relação ao
desaparecimento de D. Sebastião dizia-se que ele havia sido morto, e
seu corpo recolhido pelos árabes, outras versões apontam que ele
simplesmente não foi encontrado após a batalha de Alcácer-Quibir.
No romance de Ariano Suassuna há pessoas que crêem que Sinésio foi
seqüestrado, outros crêem que ele fugiu, e há também a versão do

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irmão mais velho (Arésio) que diz ter visto o cadáver de Sinésio.
(MAGALHÃES, 2013, p. 96)

A postura altiva e silenciosa de Sinésio montado em seu cavalo branco utilizando uma
armadura, como mencionado anteriormente, também nos remete à duas figuras lendárias que
habitam o imaginário do povo cristão; São Jorge o Apóstolo Santiago. Luiz Fernando
Carvalho coloca grande ênfase na temática do “retorno do Rapaz-do-Cavalo-Branco”,
lembremo-nos que o apóstolo Santiago é também conhecido como Rapaz-do-Cavalo-Branco
e, segundo relatos, foi visto combatendo os mouros junto aos espanhóis, passando a ser
conhecido como Matamoros. Na obra de Ariano Suassuna, bem como na minissérie, Sinésio é
visto como um personagem mítico e também descrito como “Rapaz-do-Cavalo-Branco”.

Nas cenas referentes ao inquérito na minissérie, podemos observar que é onde há,
possivelmente, maior trabalho de ressignificação do espaço de representação e maior
metateatralidade. Enquanto na obra de Ariano Suassuna podemos observar uma narração feita
a um juiz-corregedor, Luiz Fernando Carvalho traz para a cena, além do depoimento de
Quaderna, personagens que surgem naquele recinto, à medida que Quaderna os evoca. Vale
ressaltar que, ao se apropriar da linguagem cinematográfica, e mais especificamente no
formato televisivo, Luiz Fernando Carvalho possibilita desdobramentos na narrativa do
protagonista, já que a linguagem fílmica permite tais recursos, fato este não explorado por
Suassuna na linguagem literária. Deste modo, ao mesmo tempo em que os personagens
pareciam estar literalmente ali, sendo vistos tanto por Quaderna quanto pelo corregedor, cabe
ao espectador compreender que aqueles personagens não se encontravam ali, todos eles
compunham a imaginação de Quaderna, e todos se “materializavam” ali sentados assistindo
ao seu inquérito como se todos estivessem diante de um monólogo. Denotando mais uma vez
seu teor puramente metateatral.

O passado e o presente se encontram ali na cena do inquérito. Tanto para o leitor da


obra quanto para o espectador da minissérie, Ariano Suassuna parece não ter o compromisso
com as unidades aristotélicas, contudo o autor respeita a unidade de tempo, conforme
podemos observar na entrevista contida na dissertação de Yuri de Andrade Magalhães sobre o
romance onde lhe é perguntado se a ausência deuma linearidade na obra é uma contraposição
intencional à unidade aristotélica, o autor responde: “Não, olhe, eu sou um admirador das
unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um
dia”. (MAGALHAES, 2013, p.128)

A guisa de conclusão, podemos entender que Luiz Fernando Carvalho se utilizou das
inúmeras ferramentas que o teatro pode fornecer para recriar o espaço de representação do
romance de Ariano Suassuna. O diretor utiliza-se com maestria do elementos inerentes ao
teatro simbólico como a alegoria, a metonímia e a metáfora. Como exemplo de alegoria
podemos observar a utilização de uma mulher nua, com seu corpo pintado em tons vermelhos
e negros, como representação da morte; a mulher caetana. Na minissérie na cena em que
ocorre o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto o diretor coloca também mulheres de
aspecto luxurioso, com seus corpos pintados de vermelho, utilizando asas metálicas nas costas
como representações alegóricas da morte que se aproximava do ancião. A representação da
Pedra do Reino situada no sertão de Pernambuco se dá de maneira metafórica e metateatral;
em vez de o ator que interpreta Pedro Dinis Quaderna, Irandhir Santos, se deslocar
literalmente ao sertão de Pernambuco para estar de frente com a Pedra do Reino, são

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estendidas duas grandes lonas com a representações pictórica das duas pedras. E como
exemplo de uma representação metonímica; podemos utilizar o carro-palco que se constitui
como um índice que é sempre utilizado para transições de tempo e espaço no decorrer da
minissérie. Desse modo, podemos concluir que Luiz Fernando Carvalho através de sua
minissérie mostra ao espectador que o teatro é um espaço poroso para a inventividade, o
diretor mostra que o Teatro pode se reinventar em diversos aspectos que tecnologia do
Cinema pode talvez não acompanhar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEIGUI, Alex. Dramaturgia por Outras Vias: A Apropriação Como Matriz Estética do
Teatro Contemporâneo – Do Texto Literário à Encenação. São Paulo/SP: Universidade de
São Paulo, 2006. (Tese de Doutorado)
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RODRIGUES, Wellington. A Representação do Diabo no Teatro Vicentino e seus Aspectos
Residuais no Teatro Quinhentista do Padre José de Anchieta e no Contemporâneo de Ariano
Suassuna. Fortaleza/CE: UFC, 2010 (Dissertação de Mestrado)
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta.
9ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
________________. Almanaque Armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MAGALHAES, Yuri de Andrade. A Travessia do Trágico no Romance d’A Pedra do Reino
de Ariano Suassuna. Natal/RN: UFRN, 2013. (Dissertação de Mestrado)

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TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESTRATÉGIA COMO CAMPO POTENCIA PARA O JOGO E MIGRAÇÃO DE


AFETO NO ESPAÇO DA CIDADE

Autores:
Zilá Muniz; Orientador: prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e PPGT,
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mayana Machado Marengo
Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer Nunes;
Instituição: PPGT, UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Nastaja Brehsan; Orientador: Prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e
PPGT, UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Cláudia Simone Oliveira do Nascimento (bolsa CAPES); Orientador Stephan Arnulff
Baumgärtel; Instituição: PPGT,UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.

Este artigo faz uma reflexão a partir do conceito de campo potência como
possibilidades de emergência co-compositivas do coletivo Estratégia no espaço da
cidade e o jogo como principio de agenciamento disparador das ações executadas em
tempo real. Análise de aspectos da improvisação na relação entre indivíduo e coletivo,
entre performer e espectador como fenômeno de articulação da criação do evento. O
campo de experiência viva como nó de relações e como ecologia que ativamente
compõe-se também na migração de afeto e que dá ao evento intensidade duracional.
Estratégia articula a partir do movimento relacional e cria conexões e estabelece
relações a partir da improvisação como técnica de co-composição do evento emergente.
Pensar sobre os modos de percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo
de ação para que se desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo. O jogo
como ativador do movimento relacional para habilitar restrições na improvisação.

Palavras-chave: Improvisação em dança, Afeto, Composição,

Estratégia! Esse é o grito que iniciou, e que finda nosso encontro a cada novo
espaço. Somos vários a articular no tempo-espaço, no aqui agora, possibilidades de
emergência do evento, o que pode depender de nós, mas não somente de nós, pois é o
espaço que tece junto a dramaturgia. Dançamos no espaço da cidade a olhar a dança que
a rua nos dá. Captamos fluxos, ações, cheiros e olhares. Renunciamos desejos,
propomos quando enxergamos o caminho, e nos transformamos no desejo comum,
quando o encontro torna-se potente.
Estratégia é como um campo potência em que se não há campo não há jogo e as
restrições que habilitam a improvisação perdem força. O campo é o que é comum para o
potencial de improvisação, é o que atualiza o jogo, também são versões deste que
coexistem com o atual e subsequentes evoluções do mesmo. Ou seja, não pode ser
considerado como forma mesmo que se desdobre em estados de forma embrião. Neste
sentido Estratégia como campo potência é analisado como um campo que forma
entidades de diferentes topologias e de diversas ordens causais a partir dos indivíduos e
do espaço que se origina e da forma que retorna. Para Massumi (2002, p. 34) esse
estado germinal não deve ser considerado uma estrutura implícita ou uma forma, mas
deve ser entendida como um feixe de potenciais. Para cada momento de atualização da
improvisação existe a possibilidade emergente de surgir uma forma ou uma estrutura,
porém esta se dissolve e se desloca em relação ao próximo momento e agrega nesse
processo elementos com os quais está em tensão. Por isso a imprevisibilidade e a
necessidade de escuta e do estado de prontidão e disponibilidade que rigorosamente é
fundamental para que Estratégia aconteça como um evento coreográfico.
Erin Manning (2013) pensa sobre o conceito de coreografia não como um
princípio de organização de corpos pré-constituídos, mas sim como uma técnica para
acionar e desencadear a modelagem expressiva de uma atividade incipiente em direção
à definição de um evento de movimento. “Coreografia é um verbo – a atividade de
organizar relações entre corpos” (Klien, Valk and Gormley apud Manning, 2013, p. 76).
O que sugere que a coreografia trabalha as relações entre corpos e que não se defina
como uma prática feita pelo homem para o homem, e sim que é uma prática que se
fundamenta em como o evento por si próprio se conecta com um “milieu relacional que
excede o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
(Manning, 2013, p. 76). A maneira como um evento coreográfico se constrói parte das
relações que surgem entre todos os elementos que o constituem, é, portanto no “entre”
que num campo de forças os elementos se conectam para dar sentido.
Estratégia é um campo de possibilidades de emergência co-compositivas do
coletivo Estratégia, no espaço da cidade e tem no jogo o principio de agenciamento
disparador das ações executadas em tempo real. O evento Estratégia acontece “com” o
espaço, que busca meios de compor com a sua configuração movediça, com o agora que
temos, sem a intenção de transformá-lo, ou de inter(ferir) nele, mas com o desejo de
perceber e evidenciar seus fluxos como potência. Estratégia ativa o espaço e se resolve
como uma ecologia, em que todos os elementos que compõe o ambiente atuam na sua
formação. Nós temos algumas pistas ou restrições para o desenvolvimento de
Estratégia: um percurso sugerido, um modo de deslocamento em filas, um início, e
alguns sinais estabelecidos para um final. Não temos um dar a ver, mas um dar-se ao
outro que, ao nos retribuir, permite que o evento se configure. Dançamos no encontro e
sobre o efeito dos afetos que nos incorrem e o que desencadeia o evento pode ser
qualquer um dos elementos que constitui esta ecologia.
O afeto é o saldo do encontro entre corpos, como nos esclarece o filósofo
holandês Bento Espinosa (1992), o corpo é constantemente modificado diante das
relações, o que pode aumentar ou diminuir sua potência de agir. Se já no Século XVII
Espinosa nos sugeria a potência dos encontros, porque ignorá-la agora. A proposição
espinosiana de afeto trata da vida se fazendo e refazendo em interação com outras vidas.
Em um processo de negociação entre o que há de perceptível e não perceptível, entre os
arrebatamentos do encontro os desejos sobressalientes. Trata-se do trânsito entre a ação
– que são as minhas vontades; e a paixão – que são as vontades que não vêm de mim. O
resultado dos encontros são os bons e maus afetos, como alegria e tristeza, por exemplo.
Ao identificá-los em uma percepção imediata do que se imprimiu no corpo, operaríamos
na possibilidade de compreender, e em certa medida potencializar ou refrear seus efeitos
por meio das paixões ativas.
A filósofa francesa Chantal Jaquet (2011, p. 126) afirma que Espinosa “restringe
o domínio dos afetos somente às afecções que aumentam ou diminuem, ajudam, ou
coíbem a potência de agir”. Segundo ela, Espinosa chega a fazer uma separação do que
são afetos e afecções. A admiração é afecção mais não é afeto. Alegria e tristeza o são
porque alteram nossa potência de agir. Desta forma, Jaquet (2011, p. 124) conclui que
“todo afeto é uma afecção, mas nem toda afecção é um afeto”. Segundo a autora, a
afecção é uma espécie de estado da essência humana, inato ou não, em suas
transformações no tempo, seja atribuído pela extensão seja pelo pensamento.
Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa
(1992) as expõe, a presença do artista em relação com o espaço consideraria também as
afecções que circunscrevem o encontro. O bailarino/performer é capaz de afetar com
sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público e a
configuração do espaço lhe causam. Nas palavras de Espinosa: “Por afeto, entendo as
afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções” (1992, p.
267). O filósofo holandês traz as proposições de afecção e afeto nesse trânsito entre o
afetar e perceber-se afetado.
O afeto, segundo exposição do filósofo francês Gilles Deleuze, é o que não
representa nada, que não está relacionado ao sentido, à ideia de algo, como o sentimento
de amor, angústia ou esperança, “que qualquer um chama de afeto” (1978, p. 2). Para
Deleuze, o afeto trata de “uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira
alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado
numa ideia, mas o fato de querer não é uma ideia, é um afeto, porque é um modo de
pensamento não representativo” (1978 p. 2). A noção de afeto (affectus) liga-se,
portanto, ao que escapa a definições de significado, e está relacionada às afecções do
corpo e suas percepções no ato de afetar e ser afetado.
Simon O’Sullivan (2011) vincula a produção de afeto à proposição artística,
reconhecendo os efeitos que um corpo ou um objeto artístico pode ter sobre o outro
corpo. Mas ao considerarmos a acepção espinosiana de afeto haveremos de considerar
também que se trata de algo em trânsito, emergente da relação, mas não
necessariamente passível de controle. Ou seja, o bailarino/performer não poderia
antecipar o que o espectador vai apreender da experiência artística. Quando vamos para
o espaço da cidade, somos afetados por ele, do modo em que ele está, e operamos na
reverberação desses afetos apreendidos, por nós, mas não temos uma garantia de que
nossa presença afetará o público participante do mesmo modo que somos afetados.
Porém, como acontecimento, iremos afetá-los, isto é certo, mas, no entanto são
imprevisíveis as intensidades que esta relação de afetos constrói.
Já vivemos situações muitos distintas na realização do percurso em Estratégia,
fomos completamente ignorados, tivemos cúmplices, dançarinos, pessoas nos ensinando
a dançar, intimidamos, fomos intimidados, aplaudimos, fomos aplaudidos, e em muitos
momentos não passávamos de pedestres anônimos na sequência de um fluxo surdo do
cotidiano. Provocar estranhamento? Nem sempre. Propor poesia, sempre que possível,
mas vê-la emergir do encontro, isso sim nos interessa, porque é vivo, é fresco, cheio de
ar, acontece em tempo real por meio da improvisação. Nós nos movemos em busca
desses instantes e somos movidos por eles.
Nós subimos escadas, mesas, muros, árvores. Convidamos a olhar para cima. –
Vai cair! Você tem idade para subir na árvore? Disse um passante/participante. E
alguém perguntou: – Tem idade pra subir na árvore? E outros subiram, e subimos
sempre que podemos.
Dia desses estávamos nós, a dançar “com” a Rua Felipe Schmidt e a procurar
encontros, afetos e eventos. Eis que surge um momento para explorar essa configuração
mais vertical da cidade. Nessa rua não tem árvore, mas tem poste. Egon olha para
Milene com convicção, olha para o poste. Os outros integrantes do grupo logo se
direcionam para compor este momento de tensão. Pequena pausa... Milene vê uma
criança de 10 anos e diz: – Eu preciso subir ali, será que você poderia me ajudar? Ela,
não hesita, mesmo com a diferença de tamanho entre as duas. Alguns dos passantes, ao
verem aquela situação contraditória, se comovem, e logo se juntam a menina. Era difícil
subir, Milene não escondia a dificuldade. Ela percebeu que a aparente fragilidade da
criança, a voz e pernas trêmulas, e o engajamento dos integrantes do grupo é que as
mantiveram ali, todos envolvidos naquele instante poético (ou patético, ou estranho –
dependendo da perspectiva). Compúnhamos, com corpos, desejos e fragilidades a dança
na cidade. O público é quem decidia se Milene deveria prosseguir na subida arriscada
ou parar. Paramos a surda Rua Felipe Schmidt que, por alguns minutos, se dedicava ao
não funcional/comercial. E continuamos com nossa estratégia de encontro e a
improvisação seguiu seu fluxo.
A pesquisa que por alguns anos o Ronda Grupo desenvolve (Estratégia desde
2009) para dar tratamento ao trabalho na rua tem como ferramenta principal a
improvisação. Da sala de ensaio para o espaço da cidade, seja ele qual for, trouxe
dificuldades e ao longo da prática e da pesquisa percebemos que a improvisação como
jogo para a abordagem da criação de eventos coreográficos nos resulta eficiente. Vários
aspectos foram demarcados e um olhar sobre alguns vetores que criaram ressonância no
mundo da dança servem como referencia para o trabalho que discutimos aqui neste
estudo.
Foi a partir da década de 1960 que um novo modelo cultural surgiu e
transformou o modo de olhar e fazer arte, assim como a sua noção. Neste período ideias
como paisagem urbana, comunidade, liberdade de normas, vida comum, diversão e
fisicalidade foram apropriadas. Surgem assim novas estruturas, padrões de composição
e técnicas de criação. Tanto o Judson Church Dance Theatre paralelo ao movimento da
Nova Dança trouxe a estruturação dos jogos, tarefas e acontecimentos em improvisação,
que encarnaram o ideal de liberdade e desenvolveram uma nova inteligência do corpo
que dança e cria em contraste com a formulação de decisões conscientemente
predeterminadas. Os artistas nestes movimentos investigaram as formas de dilatar a
espontaneidade, a informalidade e a ação coletiva na produção e na performance.
Preceitos estéticos foram pervertidos e caracterizados pela experimentação do
movimento e por novas possibilidades de estruturação coreográfica. A improvisação
como um elemento transformador se estabelece como uma prática amplamente
desenvolvida que cria ressonâncias tanto na dança como no teatro, sua prática constante
e com rigor acentua e valoriza as diferenças, ao ressaltar as imperfeições e as
especificidades de cada corpo. Como técnica a improvisação oferece suporte para tornar
o corpo mais hábil, responsivo e criativo para enfrentar e compor com diversas
situações em tempo real. Aliada a outras técnicas de formação, a improvisação também
amplia e fortalece o vocabulário do bailarino, fazendo com que os movimentos sejam
aprendidos, incorporados e reorganizados o tempo todo com o vocabulário e o contexto
ao qual este corpo é submetido.
Estratégia utiliza-se da improvisação e de seus princípios como técnica de
criação e de agenciamento, justamente porque todo agenciamento pressupõe um
território e ações de um coletivo. A improvisação com restrições (dadas por nós e
impostas pelo espaço) tem o ambiente como ponto fundamental disparador das ações.
Estratégia retira o corpo do seu lugar de conforto e o entrelaça em uma rede de
negociações ao espaço da cidade. Como evento coreográfico a improvisação por meio
do jogo estabelece ou fortalece conexões e sentidos e ativa o espaço, “considerando-o
poeticamente sob todos os ângulos, entregando-se a sucessivas impressões
relacionando-se (grifo nosso) e as traduzindo todas ao mesmo tempo no presente”
(Muniz, 2004 p. 61).
Estratégia exige que durante o trajeto percorrido, o passeio realizado aconteça
de “janelas abertas”, que é uma analogia que encontramos para relacionar com a
consciência do bailarino, sua presença e seu estado de atenção. Este estado de prontidão,
de escuta e de atenção é o que assegura a troca e o dialogo constante entre o grupo
e/com o meio. Com efeito, isso permite que os corpos integrem-se ao movimento e
fluxo que cada espaço imprime, engendrando relações que em sua totalidade ressalta e
intensifica sentidos, direciona olhares, recria espaços ou possibilita novas experiências
aos transeuntes.
Durante a improvisação os corpos dos bailarinos/performers, com tudo que cada
um é reúne e compõe com o meio e conduz a cena através dos movimentos num corpo
que busca encontrar sua própria integridade dentro de um coletivo. O principal desafio é
como cada indivíduo traz através da criação sua contribuição para a pesquisa e como
esta contribuição se torna material para o coletivo. Qual a medida para que isto
aconteça? Qual é o limite entre o desaparecimento do eu ou o fortalecimento do
coletivo?
A cada uma das apresentações/ensaios o que nós começamos a perceber é que
esta charada se desvenda através dos eventos que se criam, principalmente quando
afetamos as pessoas que por ali circulam. Portanto é afetar-se e afetar. Básico, mas
difícil de dar conta, tudo ao mesmo tempo, são camadas e camadas de restrições, de
repertório de material, de comandos, de tarefas e principalmente o estado de estar atento
e acima de tudo as diversas relações entre os elementos que compõe o ambiente. É abrir
as janelas e olhar o mundo. Como o espaço contribui para o que começa a surgir? No
caso aqui, com uma trajetória de passeio, com o movimento e com o fluxo destes
espaços, porque passamos por diferentes ambientes e dinâmicas que acabam por nos
fazer repensar as noções de estar na rua e de refletir sobre como olhamos o mundo. Por
estas e outras temos que estar flexíveis e alertas para que o inesperado seja incorporado
e passe a ser material de criação. A improvisação em Estratégia, além de possibilitar
uma gama maior de material coreográfico, permite o surgimento de eventos no
firmamento de novos acordos e conexões espaciais, ampliando e recombinando
estruturas sociais inseridas na cidade.
Outro rastro que é consequência do movimento que se instaurou desde as
vanguardas artísticas é como a arte vai explorar novos espaços, além dos idealizados
pelas instituições, configurando na cena contemporânea uma composição com o espaço
cotidiano da vida. É assim que Estratégia se torna um evento coreográfico, numa
aproximação com a realidade do espaço onde se insere e com o público/espectador que
ali transita. Ou, num passeio que cria eventos e produz desvios da obra artística que se
dilui na efemeridade do instante presente, do artista, que se imiscui nesse espaço
tornando-se às vezes anônimo, e do espectador, que algumas vezes torna-se protagonista
neste espaço improvisado. A poética em Estratégia dialoga com o mundo, que se reflete
no percurso objetivo e subjetivo desse passeio que promove encontros, relaciona-se com
a arquitetura e a dinâmica da cidade, a partir do modo de conceber/ocupar este espaço.
Uma dinâmica que também gera alterações no artista, no espectador e na arquitetura, ao
produzir uma revitalização da cidade, enquanto espaço público, como observa Paola
Berenstain Jacques (2005), a respeito de intervenções artísticas que transformam o seu
entorno.
O sentido de revitalização aqui não seria mais o econômico, mas sim o de vitalidade,
como vida decorrente da presença de um público e atividades diversificadas – só
poderia se realizar de forma não espetacular quando ocorrer uma apropriação popular e
participativa do espaço público, o que evidentemente não pode ser completamente
planejado, predeterminado ou formalizado. A maior questão das intervenções não
estaria na requalificação em si do espaço físico, material – pura construção de cenários
– mas sim no tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, na própria apropriação
pública desses espaços. Somente através de uma participação efetiva o espaço público
pode deixar de ser cenário e se transformar em verdadeiro palco urbano: espaço de
trocas, conflitos e encontros. (Jacques, 2005, p. 19).

Na arte, estas novas espacializações correspondem às configurações espaciais


engendradas desde o século passado pelas vanguardas históricas e que se estendem até a
atualidade. Segundo Leão (2007), o espaço contemporâneo coloca em xeque os
preceitos newtonianos, instaurando noções como a da ubiqüidade inerente a uma lógica
de fluxos de informação. Ao invés de se subordinar às clássicas noções de trecho ou
território, às noções geográficas e fixas, o espaço da atualidade abre-se para a condição
da mobilidade. Hoje o espaço troca sua fixidez e imobilidade por um espaço em fluxo
que se coloca na conexão, na mobilidade, nas relações e no sujeito em trânsito seu eixo
fundamental.

Já no inicio do século 20 temos o surgimento, seja através das procissões


dadaístas realizadas em Berlim e das deambulações futuristas e surrealistas,
nos anos 60/70 encontramos não somente as práticas de land-art que
problematizaram os conceitos de site e non-sites desenvolvendo
experimentações efêmeras no espaço externo ao ambiente da galeria e museu,
como, também as práticas performáticas realizadas pelo grupo Fluxus. (Leão,
2007 p.161)

Na busca pelo diálogo do corpo que dança com o corpo social urbano,
abordamos em Estratégia uma intenção de aproximar a arte da vida, do seu pulsar e sua
imaginação constante e pulsante, saindo do espaço confinado dos teatros e salas de
ensaios e deslocando-se para cidade. Contudo, Estratégia surge sem o intuito de colocar
uma obra pronta num espaço urbano, mas de investigar e se apropriar da dinâmica, dos
fluxos de movimentos e comportamentos urbanos para criação artística. Esta proposição
provoca uma ação que rompe com o olhar contemplativo da estética tradicional e
propõem experiências e investigações efêmeras, propositoras de espaços relacionais
entre a arte e principalmente entre a dança e a sociedade.
Nesse sentido, Estratégia dialoga também com a ideia de site specific, tendência
contemporânea de produção artística que se volta para o espaço congregando ou
transformando a obra ao sítio. Um evento site-specific de dança é criado para
existir também em um determinado lugar. O evento coreográfico é gerado por meio de
pesquisa e de interpretação de uma matriz original do site cultural, através das
características e topografias que podem ser arquitetônicas, histórico-sociais ou
ambientais. Não se trata de uma paisagem contemplativa, pois traçamos ali infinitos
percursos em que vivemos, sentimos, criamos, construímos e reconstruímos o espaço,
utilizando todos os nossos sentidos e nos relacionando com ele/nele de diferentes
maneiras, criando memórias afetivas. Desta forma, Estratégia trabalha para descobrir o
sentido contido como memória e desenvolver técnicas para ativar, ampliar, reconfigurar
ou ignorar o espaço da cidade.
Segundo Bennaton (2009) “as ruas seriam espaços que despertam memórias,
significados, ações e transformações, em experiências”. Se o espaço é reconstruído de
acordo com as nossas experiências e construção de memórias afetivas, entendemos que
ele pode ser considerado fluido, pois esta em constante fluxo de transformação. Assim,
Estratégia brinca com a possibilidade de vivenciar o espaço, significa levar o indivíduo
ao campo da experiência cotidiana, colocando-o numa postura ativa e inter(ativa). Pois
longe de idealizar o espaço pré-concebido, o corpo do bailarino/performer como
acionador de potência criativa poética, torna-se um construtor de territórios afetivos e
relacionais. Ou seja, pensa e ativa a cidade e sociedade como um espaço de relações
comunicativas e afetivas que se constroem a partir de contextos e relações. E por meio
da dança coloca em/na cena um sujeito em trânsito, num movimento constante e em
conexão permanente com o meio.
Esta forma de interação pode remeter à ideia de revolução urbana do
situacionista Guy Debord (1997), que sinaliza em seus textos a importância de uma arte
independente, fundamentalmente urbana e que crie situações de liberdade possibilitando
as relações entre os ocupantes deste espaço. No trabalho de criação artística desta
natureza precisa-se de mediações para que o movimento, a ação, o pensamento e a
comunicação possam acontecer. As mediações são feitas a partir de códigos, gestos,
textos, espaços e do corpo. Para tanto, certos eventos e restrições são pré-estabelecidos
na improvisação para que possam ser habilitadas e ativam-se no espaço. Contudo, o
evento coloca o espectador e o bailarino/performer numa posição de incertezas onde
todos tem que decidir o que fazer e como encarar o que lhe é proposto ou o que emerge
do contexto como uma unidade de grupo, como um coletivo.

Há riscos na criação, e riscos reais (embora controlados) de quem recebe a


criação. Há riscos de não saber onde me posiciono enquanto espectador, para
onde me desloco se reparo que preciso me deslocar, se a cena exige que eu
me desloque, riscos nas escolhas a serem feitas para o próprio olhar, pois não
há mais limites entre o que é real da cena e o real da realidade, e se não há
esses limites, como devo reagir? [...] que atitudes tomar frente a essa
cumplicidade instaurada por um olhar em outro olhar, por um corpo próximo
ao meu que não segue as normas da convivência social, que se atreve a me
impor uma presença erótica, atrevida e propõe um contato detonador de
emoções? (Azevedo, 2008. P.134,135)

Neste sentido a improvisação não é uma maneira de conquistar a liberdade da


restrição ou para quebrar todos os limites, é, de fato, desenvolver a capacidade de
reconhecer as limitações e explorar as possibilidades de movimento dentro destas
limitações. Goldman descreve improvisação como sendo um fenômeno "ao vivo e
urgente, que lida com o jogo, é inteligente e trabalha interações espontâneas com
restrição" (2010, p. 54).
Estamos interessados em explorar as possibilidades e potências concretas da
improvisação em dança e construir essas situações de encontros. O que nos fascina é a
possibilidade de transformar uma situação cotidiana em um encontro, ou seja, em uma
situação na qual as relações humanas e suas qualidades estético-sensoriais se destacam;
de propor e concretizar essa transformação por meio de improvisações.
Para isso, articulamos como base do trabalho corporal o desenvolvimento de um
corpo instrução, ou seja, o bailarino/performer trabalha o corpo para ampliar a
capacidade de responder a instruções, regras, comandos e principalmente às
imprevisibilidades da improvisação em um ambiente que não pode ser controlado. Esse
corpo muitas vezes habilita uma restrição ao destacar e eventualmente quebrar ou
transformar regras. Colocar uma restrição potencializa o acontecimento cênico e por ser
cumprida a regra a mesma passa a oferecer a possibilidade de ser extrapolada e
quebrada em momentos estratégicos. É nestes momentos que o bailarino/performer
encontra o desafio do jogo e da interação que vai estabelecer o movimento relacional no
espaço em tempo real.
O jogador é aquele que se experimenta multiplicando suas relações com o
mundo (Ryngaert, 2009), a pesquisa em Estratégia propõe um trabalho que se desenrola
a partir do movimento relacional entre jogador/improvisador/performer e ambiente.
Este movimento acontece a partir do jogo e por meio do jogo, como defendem as ideias
de Guénoun (2004) e Muniz (2011). Ambos discutem que o que se designa como jogo,
para o jogador, abrange todo o espaço cênico, portanto o ambiente é referência
primordial nesta relação. Jogamos entre o grupo, com o espaço e com os espectadores.
Compomos o jogo por meio do nosso corpo em movimento que, através da
percepção interpessoal, consegue transformar as restrições composicionais em potências
para a composição improvisada. Estas restrições geram questões tais como: não posso
invadir, mas posso convidar; minha ação não pode apresentar dúvidas; não posso insistir
em uma proposta que não é legitimada pelos integrantes do grupo, não posso insultar as
pessoas; não posso eleger sozinha o que é potente, etc. Trata-se do desafio de entrar e
permanecer em um estado de atenção que é uma percepção em alerta, psico-física e
relacional. Além disso, está aberta e pronta a responder aos estímulos simultaneamente
internos e externos. Na ação física, no movimento que resulta desse estado, revela-se o
jogo tal como estabelecido e potencializado pelo bailarino/performer. As propriedades
do jogo e as características de cada indivíduo do grupo se fundem em um self
performativo, no sentido dado por Guénoun, a partir de sua colocação sobre o trabalho
atoral. “Os atores mostram, hoje, em primeiro lugar, que estão apresentando. Eles
expõem a nudez de seu jogo [...]. Neste espaço de visibilidade descoberta, deixam
nascerem os efeitos figurais de sua exibição” (Guénoun, 2004, p.132)
É possível perceber esse self performativo tanto em quem atua como em quem
assiste que muitas vezes participa e interfere no acontecimento e deixa de ser um
espectador passivo. O espectador que percebe uma intensidade não usual nas ações do
bailarino/performer, é capaz de qualificar o self performativo de quem está atuando e
este passa também a participar, no sentido de se deixar passar por esta experiência,
assim ambos, bailarino/performer e espectador estabelecem percepções interpessoais.
Interessa pensar que a experiência afeta a produção de sentido e que o indivíduo cria
novas relações com o espaço do cotidiano e repensa seu lugar de pertencimento.
O poder de ser afetado escrevem Deleuze (1978) “não significa passividade, mas
afetividade, sensibilidade, sensação”. As forças que se afetam estão em constante
dinâmica, ativando e reativando qualidades, potências de força em eterno devir. Como
artistas e pesquisadores potencializar a sensibilidade vem com as práticas de criação,
com o trabalho constante de composição e com tudo que vem como consequência,
principalmente a maneira de olhar o mundo. Este lugar de “entres” nos coloca diante
das partículas dos corpos em vizinhança num percurso estético onde as durações se
conectam, afetando e se deixando afetar. O sentido que o artista trabalha é vinculado à
experiência de afetar-se. Mesmo assim a cada experiência de fazer Estratégia os
sentidos são afetos que aconteceram ali, num determinado encontro, de certo momento,
no encontro entre as várias subjetividades de cada colaborador e de cada indivíduo no
grupo, ou ainda, com certo espectador, numa dada época de uma determinada cultura e
assim por diante. Nos importa, com um coletivo justamente experimentar e agir com o
espaço da cidade para produzir impulsos que nos dá estofo para explorar os modos de
percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo de ação para que se
desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo e único.

Referencias
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dramatico: um conceito operativo?. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 127- 150 –
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situações de intervenção urbana. Dissertação de Mestrado em Teatro - Universidade do
Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

GUÉNOUM, Denis. O teatro é necessário. São Paulo: Perspectiva, 2004.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. O Que é Filosofia? Rio de Janeiro, Editora 34,
1993.
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Ann Harbor: The University of Michigan Press, 2010.
JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas: a arte de andar pela cidade. Revista
eletrônica Arqtexto. disponível em:
http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_7/7_Paola%20Berens
tein%20Jacques.pdf

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: Afetos, ações e paixões em


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Performance. Brasilia: Editora da Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasilia,
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MANNING, Erin. Always More Than One: Individuation’s Dance. USA: Duke
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MASSUMI, Brian. Parables for the virtual – Movement, Affect, Sensation. London:
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MUNIZ, Zilá. Improvisação como processo de composição na dança contemporânea.
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Florianópolis, Ed. Udesc, 2011/1, nº 1, págs. 75-84;

O’SULLIVAN, Simon. La estética del afeto. Pensar el arte mas allá de la


representacion. Exitbook: Revista de libros de arte y cultura visual, Madri, nº. 15, p. 8 –
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RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. São


Paulo: Cosac Naify, 2009.
Sessão: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

Título: PISCINA […]: MERGULHO EM UM ESPAÇO DAS ARTES VISUAIS

Alvaro Levis de Bittencourt; Faculdade de Artes do Paraná; Unespar

Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu.


Um homem atravessa este espaço enquanto outro o observa.
Peter Brook

Este trabalho pretende abordar a influência do espaço de apresentação no


processo de criação e execução da peça teatral piscina […] de Mark Ravenhill, dirigida
e traduzida por Alvaro Bittencourt e produzida por Anna Zétola através da empresa
Zétola Atelier de Artes. O espetáculo estreou no dia 07 de maio de 2014 e realizou
temporada até o dia 01 de junho, sendo apresentada no Espaço Araucária, sala de
exposições do Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, Paraná. A intenção deste trabalho é
a de a refletir sobre esta influência através de duas perspectivas: a do espaço material e a
do espaço conceitual.
Quando se opta por um espaço alternativo para a apresentação de uma peça
teatral, pretende-se que o espaço colabore em termos significantes com o projeto. Esta
colaboração pode se dar porque o espaço tem o potencial de agregar sentido conceitual
ao espetáculo e/ou porque a estrutura do local pode colaborar com a ambientação fisico-
cenográfica do mesmo. No caso da peça piscina [...], creio que esta colaboração se deu
nos dois sentidos, entretanto, por razões analíticas, cada perspectiva será abordada
isoladamente. Portanto, abordo primeiramente a questão do espaço material e neste caso
estou considerando, obviamente, a conformação arquitetônica do local, as possibilidades
de uso que a planta do espaço permitiu e demais características físicas do espaço.
Desde a gestação do projeto, há três anos, sentia-se a necessidade de produzir
uma espacialidade material específica para concretizá-lo. Foi interessante reler, neste
momento, o que eu mesmo escrevi sobre o local que antevia para a realização do
espetáculo no projeto enviado em 2011 ao Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da
Fundação Cultural de Curitiba. Transcrevo abaixo, um parágrafo deste texto para
colaborar com a reflexão.

O espaço de apresentação não será um palco convencional. A plateia deverá se sentir envolvida
pelo espetáculo e próxima dos atores. Isso é fundamental, principalmente na cena em que acontece a festa
em volta da piscina e o acidente, que constitui um clímax dramático da peça. Consequentemente, o espaço
deverá propiciar liberdade aos atores para recriarem, através dos seus próprios recursos expressivos, os
ambientes internos e externos do enredo, bem como para se aproximar da plateia nos momentos que
exigirem mais intimidade.

Percebe-se, no texto acima, um desejo de desconstrução da espacialidade tradicional do


ambiente teatral a favor de dois objetivos: o envolvimento entre público e elenco, e a
versatilidade para a criação de ambientações sem a necessidade de contar com uma
cenografia propriamente dita.
Na peça pool (no water) de Ravenhill os atores representam integrantes de um
grupo de artistas plásticos e o texto discute a relação destes com uma componente que
atingiu a “fama” e se afastou dos colegas – uma relação caracterizada pela dicotomia
“atração e repulsa”. O autor não constrói personagens específicos para a trama, ao

1
contrário, todos os atores falam em nome do “grupo”. A espacialidade colaborou,
portanto, no sentido de que os espectadores podiam ser posicionados de forma a se
sentirem parte deste grupo, uma vez que compartilhavam o mesmo espaço que os
atores. Desta forma, “a percepção é dominada não pela transmissão de signos e sinais,
mas por aquilo que Jerzy Grotowski chamou de 'proximidade dos organismos vivos',
contrária à distância e à abstração” (LEHMANN, 2007: 265).
Quando o público adentrava o espaço, confrontando-se com projeções na parede
dessa sala vazia e com os atores sentados no chão ao fundo, já estava emitida a
mensagem de que esta atividade demandaria uma atenção diferenciada. A plateia é
induzida a se colocar em uma perspectiva que é diferente da de um espectador habitual
de teatro. O espaço praticamente impõe isto. De alguma forma, ele já está participando
dessa peça que tem características de instalação, na qual ele está imergindo.

Esse deslocamento para espaços incomuns à objetivação artística [neste caso teatral] tem origem
nas experimentações das artes plásticas – instalações, environments, land art – e nos conceitos da
arquitetura moderna (Bauhaus, Frank Loyd Wright, Le Corbusier) de apropriação do espaço público
enquanto topos da artisticidade. (COHEN, 2006: 101)

Conforme os atores iniciam o texto, o caráter de imersão no espaço da peça se


intensifica, visto que os atores se aproximam cada vez mais do público. No decorrer dos
dez primeiros minutos do espetáculo, os espectadores são direcionados para a parte
central da sala, onde finalmente são colocadas cadeiras giratórias para que eles sentem
confortavelmente, enquanto os atores circulam à sua volta como se fossem as obras de
arte expostas nas paredes iluminadas da sala. Sônia de Azevedo (2010: 149) também
observa este fato quando sustenta que o “corpo do ator pós-dramático é uma incômoda
presença a nos lembrar, todo o tempo, quem somos, como somos. E é, ao mesmo tempo,
obra de arte em si. Corpo tornado, inteiramente, inexoravelmente, arte”. A observação
de Azevedo está associada, contudo, ao âmbito de “lugares pós-dramáticos”, o que não
invalida que a observação seja feita no âmbito de outras teatralidades que tenham
características similares quanto à exposição do corpo do ator. No caso de piscina [...], a
ocupação do espaço pelos atores através da proximidade de seu corpo com o público
propiciava a criação de um “lugar” de sedução desconfortável, fazendo também
referência ao conceito de “arte abjeta” que tem como característica a exposição do
corpo, bem como a dicotomia “atração e repulsa”.
Na montagem, os atores circulavam praticamente por toda a sala de
apresentação. Quando o elenco posicionava as cadeiras giratórias no centro da sala,
configurava uma plateia formada por dois conjuntos de quinze espectadores, um de
frente para o outro, separados por um largo corredor vazio. Considerando essa
conformação de plateia, os atores podiam circular livremente em volta do público, bem
como utilizar o corredor que ficava entre os dois grupos. O público, por sua vez,
sentado em cadeiras giratórias, podia acompanhar livremente a movimentação dos
atores.
Sendo assim, quando os atores circulavam em torno da plateia envolviam o
público em suas ações. Ao contrário, quando se posicionavam no corredor ao centro da
sala eram envolvidos pelo mesmo. Nos dois casos, estava presente a sugestão de que os
espectadores eram parte deste grupo de artistas da peça ou, no mínimo, que eram
cúmplices dele. As cenas da peça eram representadas alternadamente em todas estas
posições.
Ponderando sobre a flexibilidade do espaço, uma sala de exposições me parece

2
ter como uma das características principais a neutralidade. Esta neutralidade, é uma
qualidade funcional do espaço que possibilita, precisamente, que o mesmo abrigue as
mais diversas manifestações estéticas. Desta forma, o local serviu como uma folha em
branco, que permitia aos atores desenhar os mais diversos ambientes. A sala de
exposições do museu passou a ser o cenário onde eram exibidas as várias facetas da
relação entre “o grupo” e a personagem “ela”.
Em termos de concepção do espetáculo, a meu ver, o maior influência do espaço
foi no sentido de sua interferência na marcação da peça. O processo de montagem de
piscina [...] caracterizou-se por uma construção cênica pautada na criação física como
elemento constitutivo do trabalho de atuação, o qual acabava também se desdobrando
em marcação. A marcação foi, portanto, um elemento essencial na montagem. Para
entender melhor esse encadeamento criativo despertado pelo trabalho físico, podemos
usar as palavras de Sônia de Azevedo quando se refere à técnica corporal.

A técnica corporal, quando a serviço da interpretação, liga-se diretamente à descoberta e


utilização dos recursos pessoais do ator (recursos psicofísicos) por meio da passagem ininterrupta dos
impulsos para as formas, das formas servindo como “isca” para novos impulsos e assim por diante: uma
experimentação das possibilidades visíveis e invisíveis da transformação contante. (AZEVEDO, 2009:
278)

Ou as palavras de Matteo Bonfitto quando afirma que a ação física acaba se


transformando em “elemento estruturante do fenômeno teatral”.

Poderíamos, então, reconhecer outra característica da ação física: a ação física como possível
célula geradora de outras poéticas e práticas teatrais.
Dessa forma, a partir de tais considerações, resultantes das análises feitas aqui, torna-se
pertinente levantar a hipótese da ação física como elemento estruturante do fenômeno teatral.
(BONFITTO, 2011: 121)

Em outras palavras, iniciávamos a abordagem das cenas com um processo livre


de criação física, porém o processo de elaboração das cenas que se seguia era
estruturado a partir da planta do espaço e, principalmente, da posição em que
pretendíamos que a plateia fosse colocada. Desta forma, as cenas foram ensaiadas
isoladamente de acordo com o lugar que ocupariam na sala de apresentação. Levando
em conta a perspectiva dos atores, consequentemente, o posicionamento do público
também se modificava para cada unidade de trabalho ensaiada.
Considerando esta questão, a dinâmica de ensaios criou uma dificuldade para os
atores. Por não estarem, a princípio, tão cientes da planta do espaço e por ensaiarmos
em uma sala bem menor do que o espaço de apresentação, eles se sentiam um tanto
perdidos para resolver a equação entre a posição dos atores e a posição dos
espectadores.
Entretanto, acredito que o maior desafio que o espaço impôs para o elenco foi a
proximidade com o público. Em primeiro lugar, esta proximidade extrema para com os
espectadores determinou um estilo de interpretação muito sútil que foi perseguido
durante o processo de ensaios. Os gestos, as expressões faciais e a projeção vocal
tiveram que ser cuidadosamente dosados para se adequar a essa pequena distância. Essa
adequação no “tom” da atuação não foi fácil de determinar, pois ao mesmo tempo que o
espaço pedia sutileza, o texto pedia intensidade. Acredito que, como diretor, somente
consegui perceber qual seria essa “dosagem” nas últimas duas semanas de ensaio,
quando nos transferimos para a sala de apresentação. Só então, pude dar orientações

3
mais precisas para os atores, pontuando em que momentos seria interessante suavizar a
interpretação.
Por outro lado, a proximidade e a disposição do elenco no espaço determinavam
que qualquer mínimo movimento, olhar ou som fosse percebido pela plateia. Além do
mais, em nossa montagem todos os quatro atores protagonizavam a peça e estavam
presentes o tempo todo em cena. Ou seja, independentemente de falarem ou não o texto,
eles estariam sendo cuidadosamente observados pelos espectadores, os quais muitas
vezes enquanto observavam um ator que estava mais próximo de si, prestavam atenção
no texto que outro ator enunciava do lado oposto da sala. Concluindo, qualquer tipo de
ação dos atores tinha que ser incorporada à estética e à ação da cena. Sendo assim não
lhes era permitido nenhuma pausa de atuação, o elenco deveria representar durante todo
o tempo de duração do espetáculo, ou seja, aproximadamente uma hora. Obviamente,
isso exigia muito dos atores, tanto fisicamente, quanto em termos de concentração.
Um terceiro fator ligado ao espaço que influenciou o trabalho dos atores foi a
questão do compartilhamento com a plateia. Como o texto de Ravenhill é, em termos
gerais, uma narração – um grupo de artistas está narrando sua história para o público,
era fundamental que o elenco compartilhasse sua atuação com os espectadores. Isto os
aproximava ainda mais do público e reforçava sua atuação. No entanto, devido à
distribuição dos atores na sala esse compartilhamento era muito dificultado. Em alguns
momentos estavam bastante distantes ou obstaculizados por parte da plateia, em outros
momento estavam muito próximos dos espectadores. Muitas vezes também se
encontravam de costas para o público ou no chão abaixo do mesmo. O público, por sua
vez, poderia estar de frente para um ator mas de costas para o outro. Além disso, quando
os atores direcionavam um texto para os espectadores, trazendo-os para si, não o
podiam fazer de maneira geral para a plateia como se faz em um palco tradicional. Eles
eram forçados a fazê-lo olhando nos olhos dos espectadores, o que torna a ação muito
mais desafiadora. A equalização dessa triangulação, creio que somente foi atingida na
prática com o público durante a primeira semana da temporada.
Focando, agora, a atenção na questão do espaço conceitual escolhido para a
montagem, reflito no espaço enquanto condição que precede o espetáculo, tanto na ótica
do público, como na dos criadores. A utilização de um espaço que tem uma determinada
função, de forma a transgredi-la para apresentar uma peça teatral, parece agregar à peça
certo conceito que está ligado à própria função. Creio que a vocação do espaço, define
sentidos para o projeto que independem da sua arquitetura e que determinam uma
predisposição para quem vai assistir ou realizar a peça. A reflexão de Antonio Araújo,
sobre a escolha de uma igreja como local de apresentação da peça O Paraíso Perdido do
Teatro da Vertigem, talvez ajude a esclarecer esta questão.

Por essa razão é que o significado (simbólico, histórico, institucional) do lugar era mais
importante que suas possibilidades cênico-arquitetônicas. Abríamos mão de uma arquitetura mais
“teatral” em prol do sentido, ou sentidos, que um determinado local pudesse evocar. […] A ideia-chave
era criar uma zona híbrida, de intersecção, entre o “real” ou a “realidade” do espaço e o “ficcional” ou o
“teatral”, advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de
desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e
recepção da obra. (ARAUJO, 2011: 165)

Quando o projeto de montagem de piscina […] começou a se concretizar, foi


ficando evidente também que o local de apresentação ideal para essa peça seria um
espaço que fosse tradicionalmente de domínio das artes plásticas. Essa opção

4
fortaleceria o enredo da peça, funcionando como um cenário conceitual, uma vez que os
personagens da peça são todos artistas plásticos. Entretanto, na prática essa
espacialidade conceitual teve, a meu ver, muitas outras implicações que colaboraram
com a montagem. Para que o leitor possa entender melhor qual foi a relevância disso no
contexto de piscina [...], faço abaixo uma sinopse da ação da peça.
A temática gira em torno do questionamento sobre o posicionamento do artista
em relação a seus objetivos e sua produção artística. Um questionamento absolutamente
atual, que remete aos contrassensos que se pode observar em uma sociedade que é
alimentada pela ideia de que o sucesso é alcançado através da fama. Os personagens da
peça são um grupo de artistas plásticos que chegaram a uma maturidade decadente. Eles
se contrapõem à única dentre eles que alcançou fama e sucesso material. No texto essa
personagem é chamada simplesmente de “ela”, a quem o “grupo” se refere
constantemente numa mistura de crítica e mitificação. A identificação do “grupo” com
“ela”, durante a ação da peça, alterna-se entra a extrema admiração e o ódio provocado
pela inveja. Ao mesmo tempo em que os artistas criticam ferozmente os meios que “ela”
utilizou para alcançar o sucesso, revelam que, na verdade, gostariam de estar na “sua”
posição. A ação da peça inicia com os personagens atônitos com o fato de que “ela”
construiu uma grande piscina em sua casa. Ela mandou fotos da luxuosa piscina e
convidou todos para conhecê-la. O “grupo” não resiste à tentação e resolve aceitar o
convite. Fazem as malas, pegam um avião e vão ao encontro da milionária ovelha
desgarrada. O jantar de boas vindas se transforma em uma festa orgíaca, na qual todos
relembram os tempos de juventude, quando formavam um grupo artístico coeso e
idealista. Em meio a um nível alcoólico bastante alto acontece um acidente trágico:
“ela” mergulha, inadvertidamente, na piscina que está vazia. Enquanto “ela” está em
coma no hospital, “o grupo” tem a idéia de fotografá-la e utilizar as fotos numa grande
instalação. Esta seria uma obra de arte de vanguarda que teria o potencial, ainda que
através de meios questionáveis, de tirar “o grupo” do anonimato artístico e transformá-
los em artistas de sucesso como “ela”. Para a decepção do “grupo”, “ela” se recupera do
coma, se apropria das fotos e da obra. Essa atitude provoca a revelação dos verdadeiros
sentimentos que estavam mascarados, expondo, enfim, a mediocridade de todos.
Me parece que o fato da produção ter conseguido fazer a temporada “dentro” do
Museu Oscar Niemeyer (de agora em diante chamado de MON) agregou muitos valores
à montagem que ultrapassaram a ligação com o enredo enquanto história narrada e
abordam a temática central do texto que, pelo menos em nossa leitura, é a relação de
atração e repulsa ao lidar com o sucesso do outro.
O MON é o mais prestigioso museu do estado do Paraná, é muito difícil
conseguir pauta neste espaço, ao qual só têm acesso artistas plásticos que adquiriram
certo “status” no meio. Por ser um espaço público, sua gestão e as curadorias das
exposições são alvo de polêmica, muitas vezes questionadas pela classe artística. O
próprio Oscar Niemeyer, que dá nome ao museu, sendo o mais famoso arquiteto do país,
e tendo obras espalhadas pelo mundo, também foi alvo de muita polêmica, inclusive
com relação à execução do próprio MON. Estes fatores, reforçam a significância da
temática abordada por Ravenhill, ligando a situação descrita no texto à realidade,
principalmente com relação à controversa posição de quem está em evidência no mundo
artístico e a validade dos meios que levaram a esta conquista.
Além disso, o Espaço Araucária onde foi apresentada a peça, fica situado no
local de maior afluência do MON: o “olho”. A maior sala de exposições do MON, onde
são apresentadas as exposições de maior vulto, fica num local de grande destaque na

5
composição arquitetônica do museu. Niemeyer idealizou uma araucária estilizada em
cuja copa fica esta sala. Esta construção virou atração turística e, devido ao seu formato,
popularmente ficou conhecida como “olho”. Um olho imenso que por si só estabelece
uma metáfora muito significativa com o texto de piscina […], pois a impressão que se
tem, ao observá-lo externamente, é a de que as obras que lá se encontram estão sendo
“contempladas pelo universo”. O Espaço Araucária fica no andar abaixo desta sala
principal. Para que os espectadores acessassem o espaço de apresentação da peça,
subiam por uma grande rampa sinuosa, suspensa acima de um lago artificial (uma
piscina?), ingressavam pela entrada do “olho” (universal) e ainda subiam até o terceiro
andar. Tudo isso para chegar a uma sala vazia que parece um porão.
Uma outra qualidade que o espaço conceitual agregou ao projeto, tanto do ponto
de vista da equipe de trabalho como do público, foi o fato de estabelecer uma
preparação, um “aquecimento emocional” para a peça. Posso afirmar que, como parte
da equipe, a chegada ao MON para ensaiar, por si só, já nos preparava para o trabalho.
Em primeiro lugar a aproximação física com aquela obra monumental de Oscar
Niemeyer já causava um impacto. A passagem pelo setor de segurança, pelas portas que
só eram destrancadas por um dos sentinelas, pelas salas de exposição onde se
encontravam os mais diversos tipos de obras artísticas, pelo corredor
“circularbrancosemarestas” i criado por Niemeyer para dar acesso ao “olho” por baixo
do lago artificial, tudo isto nos colocava em íntimo contato com o ambiente das artes
visuais referido na peça.

“Teatro específico ao local” [site specific] significa que o próprio “local” se mostra sob uma
nova luz: quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro-velho se torna espaço de
encenação, passa a ser visto por um novo olhar, “estético”. O espaço se torna co-participante, sem que lhe
seja atribuída uma significação definitiva. Mas em tal situação também os espectadores se tornam co-
participantes. Assim, o que é posto em cena pelo teatro específico ao local é um segmento da comunidade
de atores e espectadores. Todos eles são “convidados” do lugar; todos são estrangeiros […].
(LEHMANN, 2007: 281)

Sob a ótica dos espectadores, o ritual de Ida ao Teatro – e aqui não há como não
lembrar do questionamento irônico que Karl Valentin faz sobre este ritualii – foi
transformado em um ritual de ida ao museu, a um espaço das artes plásticas, a um local
onde se apreciam “obras de arte”. Esse fato, me parece, pode ter colaborado como um
“aquecimento” também para o público, como uma preparação para refletir, imergir,
mergulhar no contexto de piscina [...].

6
Referências bibliográficas citadas

ARAÚJO, Antonio. A gênese da vertigem: oprocesso de criação de o paríso perdido.


São Paulo: Perspectiva, 2011.
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
___________. “O Corpo em Tempos e Lugares Pós-Dramáticos”. In: Guinsburg, J. e
Sílvia Fernandes (orgs.). O pós-dramático: um conceito operativo?. p 127-149. São
Paulo: Perspectiva, 2010.
BONFITTO, Matteo. O ator compositor: as ações físicas como eixo de Stanislávski a
Barba. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Trad. Oscar Araripe e Tessy Calado. Petrópolis:
Vozes, 1970.
COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e
recepção. São Paulo: Perspectiva, 2006.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
VALENTIN, Karl. Cabaré Valentin. Cadernos de Teatro n. 86, jul./ago./set. 1980. p 19-
37. Rio de Janeiro: IBECC / Tablado, 1980

i
Ao utilizar este termo formado pela união de palavras, o autor está fazendo alusão aos diversos
termos criados por Ravenhill no texto de piscina […].
ii O autor faz referência neste comentário ao texto cômico Ida ao Teatro do dramaturgo, diretor e ator
alemão Karl Valentin.

7
ESPACILIDADES E FRONTEIRAS DA CENA
ESPACIALIDADES E FRONTEIRAS DA CENA EM PROCESSOS DE DRAMA
Beatriz Angela Vieira Cabral
UDESC

Em processos de drama, as espacialidades, tanto quanto as fronteiras da cena, se dão a


partir de criação de um contexto de ficção e do desenvolvimento de situações que
implicam uso e caracterização de espaços distintos. O ‘estar’ ou o ‘habitar’ o espaço em
que a experiência do drama ocorre irá definir posturas e enfrentamentos, além de ativar
o jogo da cena – entre os sujeitos em cena e entre estes e o texto – quer este seja um
texto dramático focalizado como pré-texto, ou fragmentos de texto(s) distribuídos aos
participantes.
A identificação e a função dos ‘habitantes’ deste contexto de ficção, assim como a de
situações e enfrentamentos posteriores, se dá pela forma com que o professor ou diretor,
se dirige ao grupo – o que se convencionou como ‘enquadramentos’. Estes, introduzidos
em drama por Dorothy Heathcote a partir da noção de ‘frames’ (Erving Goffmann,
‘Frame Analysis’, 1974), direcionam o olhar e a postura dos participantes, ao conduzir
professor e alunos a entrar no contexto ficcional, ampliando a identificação de papéis e
ações.
Esta ruptura com o contexto real e consequente ressignificação de fatos e ações
cotidianas são os principais geradores da imersão dos participantes no processo e
definem seu potencial enquanto experiência estética. O ponto de partida do ‘estar em
cena’ é ressaltado pelo sentido de presença estimulado pelo condutor do processo, que
mantém alertas, tais como ‘aqueles que nos observam estão atentos, nossa postura vai
definir o que podemos conseguir’; ‘hoje estamos aqui reunidos para receber o
representante dos alienígenas, vamos mostrar tanto segurança quanto simpatia’. Alertas
como estes identificam a tensão dramática que acompanhará o uso do espaço, as
interações entre os participantes e a seleção de imagens, gráficos e mapas que
alimentarão tanto a tensão e as interações, quanto a imersão dos participantes no
contexto ficcional.
Informações e tensão dramática são introduzidas no ‘aqui e agora’ da cena, com o
professor inserido no contexto ficcional, e assumindo um papel que irá se delineando
aos poucos, com flexibilidade para mudanças no decorrer do processo, caso necessárias.
Se as informações permitem estruturar a narrativa, a tensão provoca uma ruptura com o
horizonte de expectativas dos participantes, intensifica um estado de alerta, a presença
em cena e suas manifestações expressivas.
É neste sentido que as informações são introduzidas através de imagens visuais
(pinturas encontradas em um determinado lugar com alguma mensagem que a associe a
ações ou posturas dos participantes), fotografias (que ajudem a interpretar fatos e
eventos), gráficos (que permitam avaliar o impacto de alguma ação no desenvolvimento
do processo dramático), mapas (que permitam entender a interação entre os espaços
internos ao contexto ficcional, e os externos, que possibilitem prever deslocamentos ou
ampliação de ações).
A tensão dramática tradicionalmente tem sido introduzida de forma narrativa, como
ameaças, premonições, documentos, relatos, mensagens ou cartas recebidas por um dos
participantes. O espaço cada vez mais privilegiado para o sensorial e o emocional no
planejamento de encontros que se caracterizam como experiências estéticas, tem se
apresentado como alternativa para causar e/ou manter a tensão. Entretanto, as duas
alternativas - ameaças e premonições introduzidas através de formas narrativas, e
espacialização sonora, de imagens e texturas que ativem o sensorial e o emocional – não
são suficientes para o desenvolvimento de um processo dramático que construa um
contexto ficcional com detalhes significativos que tenham ressonância com o contexto
real. A ativação do vocabulário, tanto quanto a do imaginário, são importantes para
transgredir o óbvio e os limites do cotidiano.
Expressão oral e tensão dramática
Fazer sentido da tensão dramática ao vivenciar um contexto ficcional inclui considerar
suas dimensões éticas e políticas, que em grande parte estão implícitas. Se o implícito
abre o campo da recepção para múltiplas interpretações, no campo da atuação as
dimensões éticas e políticas precisam estar explícitas para o aluno/ator. O jogo do ator
em cena depende não só de sua percepção das espacialidades em cena e dos desafios
postos pelo professor/diretor, mas também de sua compreensão da situação e suas
implicações, o que implica tempo para ter contato com opiniões sobre o que está
implícito na tensão dramática introduzida pelo professor, e tempo para formar sua
própria opinião.
O uso de fragmentos de texto – a serem distribuídos e adaptados à forma de expressão e
opinião de quem o recebeu, e usados como foco para o jogo de interações, apropriados e
expandidos a seguir, tornam-se uma possibilidade de ampliar a carga de informação e
asserção da expressão oral.
Segundo Bakhin, a cultura oral e a cultura escrita não são contrastantes; a produção de
sentidos é dinâmica a partir de vozes personalizadas que representam posições éticas e
ideológicas em intercâmbio contínuo com outras vozes. A linguagem, na sua concepção,
é entendida como ato ético, como ação, como comunicação dinâmica e energia.
Comunicar-se dialogicamente, afirma Bakhtin, é ser capaz de transmitir os sentidos de
um diálogo ontológico, uma vez que a escrita é privilegiada como um percurso capaz de
traduzir a voz humana na medida em que é portadora de sentidos, preservando suas
modalidades através de metáforas relacionadas à voz e à música: polifonia, contraponto,
orquestração, palavra a duas vozes, coro, tom, tonalidade, entonação, acento, etc. De
acordo com Dahlet, não se trata aqui de categorias estilísticas no sentido tradicional, que
se configuram como traços distintivos de autores individuais, mas como uma espécie de
memória semântico-social (in Brait, 1997: 264).
Este entendimento do sentido ético e ideológico subjacente ao diálogo, traz implicações
para as interações orais presentes no contexto ficcional de um processo de drama. Como
incluído em nossos Parâmetros Curriculares Nacionais, “... a filosofia, hoje, define
moral como princípios, crenças e regras, que junto dirigem o comportamento de
indivíduos em cada sociedade; e ética como o pensamento crítico (reflexivo) sobre a
moral” (PCN, 46-48). A liberdade depende da habilidade e da possibilidade de fazer
escolhas, sendo assim o ensino requer vivências e discussões sobre critérios e valores –
a problematização de questões e discursos e a verificação da consistência de seus
fundamentos filosóficos. Ao contrário da moral, a ética não possui um caráter
normativo, ele busca esclarecer e questionar os princípios e os objetivos de ações,
intenções e motivações. O contexto ficcional do drama e do teatro torna-se assim um
campo privilegiado para focalizar questionamentos éticos – não é o aluno que se expõe,
mas o papel ou o personagem que ele está investigando. O drama e o jogo cênico
contribuem para focalizar ética no ensino sem personalizar seus questionamentos.
O jogo com fragmentos de texto – entre conversação e diálogo
Fragmentos de um texto ou de textos diversos permitem focalizar um tema ou um
problema específico a partir de opiniões e situações distintas. O jogo com fragmentos de
texto, se em grupos com mais de 30 alunos, vai requerer espacialidades distintas – em
princípio um espaço amplo, onde poderia ser visualizado o espaço do grande grupo e
aqueles dos pequenos grupos. Entretanto, o espaço em drama, não é visto apenas como
um todo físico, mas como um espaço de interações e alternância de parceiros, o que
requer seja planejada a viabilidade de um circuito de espacialidades.
Exemplificando: os 30 alunos/performers vão inicialmente se apropriar do espaço e
interagir com ele, na medida em que individualmente, vão percorrê-lo, parar onde se
sentir à vontade, ler seu texto, voltar a ler e interromper a leitura para se fixar em algum
ponto do espaço e para lá direcionar alguma passagem do texto, voltar a caminhar,
voltar a parar, e assim por diante. Desta forma, o potencial desta espacialidade estará
relacionado com os ‘cantinhos’ que poderá oferecer – com a possibilidade de contar
com pequenos espaços de privacidade ou intimidade que permitirão aos
alunos/performers uma maior interação com seu texto, e com o espaço imediato. Assim,
o espaço onde esta etapa do experimento ocorre poderá contar com cadeiras isoladas,
com um ou dois biombos, com um ou duas plataformas, com uma escada, alguns
caixotes, sendo que cada objeto sinalizará um cantinho. Na possibilidade de espaço
aberto, os cantinhos poderão ser identificados por árvores, pedras, bancos, canteiros.
Neste percurso individual, cada participante estará conversando consigo mesmo,
murmurando ou ruminando sobre o texto, que a cada parada vai sendo ampliado,
agregando as imagens e ideias do orador.
A segunda etapa do jogo com os fragmentos será em duplas. Isto requer a eliminação de
15 ‘cantinhos’, a partir da indicação do grupo, mas principalmente da priorização de
espaços que ofereçam maior proteção sonora (considerando-se especialmente a
distância entre um e outro). Nesta etapa o fragmento já foi apropriado e expandido por
cada participante, e não será lido. Os textos criados a partir dos fragmentos serão o foco
da conversação em duplas, ou seja, serão dois temas a serem cruzados em cada encontro
– as duplas se alternam e a conversa modifica-se a cada novo parceiro. A conversa,
segundo Ryngaert, é solta, muda de direção, e eventualmente, de pontos de vista. É,
assim, imprevisível. O diálogo, ao contrário, é organizado ou construído; seu objetivo é
fazer sentido. A confrontação dos textos com alternação de parceiros (troca de duplas)
amplia argumentos e detalhes; o texto se expande.
O professor como rapsodo e a mediação em drama
O uso de fragmentos de textos distintos, associados a um roteiro e/ou argumento
dramático que se pretende explorar, atualizar e encenar, se apoia no entendimento da
linguagem como fenômeno social (Bakhtin) e o cruza com o conceito de mediação na
esfera da zona de desenvolvimento proximal (Vygotsky).
No campo específico do drama, em que em que o texto e as situações exploradas estão
delimitadas por um contexto ficcional, onde os participantes jogam com o texto a partir
de papéis não identificados e definidos a priori, é necessário considerar os conceitos de
suspensão da descrença (para o engajamento com o contexto ficcional), de choque (ou
impacto, decorrente da potencial intensificação dos deslocamentos da percepção), e do
relativo caos frequente nas experiências sensoriais (uma vez que o ponto de partida do
processo, em drama, usualmente está centrado em promover uma experiência estética
que, em ampla escala se fundamenta no sensorial.
A suspensão da descrença, termo cunhado por Samuel Coleridge, em ‘Biografia
Literária’ (1817), é voluntária e refere-se à vontade do ator ou do espectador de aceitar
como verdadeiras as premissas ficcionais, mesmo que estas sejam fantásticas,
impossíveis ou contraditórias. Aceitar as premissas ficcionais é algo que qualquer
criança, em idade escolar, faz voluntariamente, sem se questionar, quando se trata de
seu filme ou livro predileto, ou dos jogos de RPG com cartas, tabuleiro ou life
(improvisações físicas). Em sala de aula, quando proposta pelo professor, é necessário
algum tipo de convencimento que vai além do simples ‘vamos fazer de conta’. Quanto
mais idade tiver a criança e/ou o adolescente, maior o risco de rejeição do universo
ficcional, com base no estranhamento e/ou associações com infantilização. Nesta linha
de raciocínio, a suspensão da descrença, tem sido associadas aos recursos de criação de
impacto e às experiências sensoriais.
O impacto, que pode ser associado ao ‘choque’, é identificado por Walter Benjamin
como decorrente da potencial intensificação dos deslocamentos da percepção. Em
situação escolar, pode ser ativado pela utilização do espaço, inclusão de participantes ou
materiais inesperados, temática inusitada, ou pelos recursos introduzidos para a
efetivação do contexto ficcional. O contexto ficcional favorece as estratégias associadas
à criação de impacto, uma vez que exclui a responsabilidade do aluno/ator quanto às
opiniões que possa omitir, ou situações em que possa se envolver – não é ele, o aluno,
que tomas tais atitudes e faz tais afirmações, mas sim o ser ficcional que está
apresentando.
As experiências sensoriais usualmente são associadas com ambientação cênica – luz,
som, texturas, movimentos no espaço, toque. Entretanto, por esta perspectiva, o senso
comum destes recursos, que são utilizados reiteradamente em aulas de teatro, nem
sempre levam ao envolvimento e à concentração. Considero assim, que a escolha do
tema certo na hora certa é mais importante. Aqui, os problemas podem ser de outra
ordem – as diferenças de opinião, a alteridade em si, a vulnerabilidade, a
imprevisibilidade e a incompreensibilidade podem levar não só a um debate acalorado,
mas também ao enfado e desinteresse. A abordagem temática, entretanto, abre o campo
da criação para a construção autoral dos participantes, o que muda a perspectiva das
interações com o espaço e a cena.
A tessitura de fragmentos e as fronteiras da cena
Por mais que o professor/diretor tenha selecionado fragmentos de textos convergentes a
um mesmo foco dramático, há possibilidade de contra argumentá-los e expandi-los. A
troca de parceiros para interações a partir dos fragmentos agrega, aos poucos, pequenas
modificações. Soma-se a isso a imprevisibilidade de seus cruzamentos, pois a postura
física e a expressão verbal de cada confronto contribui para modificar o texto. A
sequência de interações acaba por criar uma tessitura de novos fragmentos que contém,
cada um, expressões e argumentos incorporados durante a troca de parceiros.
Os novos fragmentos, modificados no decorrer do processo, quebram a tendência
monológica do professor/diretor como aquele que propôs as interações e selecionou os
fragmentos originais. Como evitar o enfraquecimento da forma dramática, que segundo
Bakhtin, é constituída por um monólogo inquebrantável, a voz do autor/dramaturgo
(2010, 17-18). Tal possibilidade implica duas questões pedagógicas distintas:
Por um lado, o enfraquecimento da forma dramática pode ser compensado através da
intensificação da tensão dramática. A tensão, decorrente do envolvimento sensível com
o processo de investigação cênica, indica a experiência da dimensão ficcional deste
processo e se relaciona, por exemplo, com a necessidade de tomar uma decisão que
envolva risco, a espera, as barreiras, os enigmas, os dilemas. Segundo Gavin Bolton
(1984) – a experiência dramática é bem sucedida quando o grupo reconhece que a
intensidade de uma situação reside na dificuldade de tomar uma decisão que poderá lhe
ser favorável ou não.
Por outro lado, a orquestração das vozes dos participantes pelo professor como editor e
encenador (com delimitação de tempo, espaço e ritmo), mantém os estados de
expectativa e tensão, ao mesmo tempo que estabelece as fronteiras de cena entre
episódios que indicam momentos, ações ou olhares distintos para uma mesma ação.
Uma intertextualidade centrada na tessitura de fragmentos de textos.
Assim, o alerta de Bakhtin que o diálogo e as interações fora do texto enfraqueceriam a
forma dramática, são compensadas por recursos pedagógicos que permitem abrir o
campo da exploração do texto sob a tutela do professor dramaturg. Mas, o alerta vale
ser lembrado em relação a duas questões complementares. Por um lado, as conversas
que acompanham a exploração do texto e sua apropriação pelos alunos participantes,
deverão ser editadas e orquestradas pelo professor dramaturgo. Por outro lado, esta
edição precisa respeitar a voz do aluno, no que se refere àquilo que ele quer expressar e
opinar. Trata-se de uma edição voltada à qualidade do texto e não ao conteúdo de seu
discurso.
A necessária atenção para a relação entre diálogo e edição requer, por sua vez,
considerar a superação da pedagogia crítica em prol da pedagogia pós-crítica.
Professores que se identificam com uma didática específica, subordinada à pedagogia
crítica, caem facilmente em uma perspectiva monológica. A didática, ao apontar para
formas estabelecidas de ações e apresentações, se associa facilmente ao determinar o
que fazer e indicar como fazê-lo. A pedagogia crítica se associa a metodologias
delimitadas por uma perspectiva filosófica que identifica e determina o que é adequado
em termos de ações e atitudes. É neste aspecto que ambas – didática e pedagogia crítica
– se associam a um ensino e a uma forma teatral não dialógica, uma vez que se inserem
em uma perspectiva político-pedagógica específica e refletem as relações de poder por
ela delimitadas.
Assim, cabe aqui considerar o desenvolvimento e avanço, da pedagogia pós-crítica, e
suas implicações. A partir dos anos 90 o desenvolvimento técnico e científico, com a
difusão da informática e tecnologias da informação, com as interfaces da comunicação e
ampliação das formas de sua utilização, chegou-se ao que inicialmente parecia levar aos
caos sensorial. Como analisa Vattimo, em A Sociedade Transparente (1989), se a
Teoria Crítica manipulava os conteúdos veiculados ao dominar os meios de
comunicação das classes dominantes, o efeito da cultura de massa e a emergência da
internet levaram à pluralidade de visões de mundo. A sociedade mediática atual,
caracterizada pela complexidade, pelo caos e pela pluralidade, levam o ser humano ao
desenraizamento e isto implica libertar-se das diferenças. Em consequência, a liberdade
que à época da pedagogia e da teoria críticas esteve condicionada e um sistema de causa
e efeito, hoje consiste na escolha entre pertencimento e desenraizamento – surgem
novas criações de uso na medida em que não há uma centralidade da informação. Como
afirma Rancière (2010:2), “a arte emancipa e é emancipatória quando renuncia à
autoridade de impor uma mensagem, de atingir um público específico, e de explicar o
mundo de forma unívoca, quando, em outras palavras, para de queres nos emancipar”.
A pedagogia pós-crítica considera que uma produção significativa para seus criadores se
relaciona com o investimento emocional e o prazer. Jogar com diferentes textos (aqui,
com fragmentos de texto) permite engajar os participantes com as múltiplas referências
de diferentes linguagens, experiências e culturas. Suas apropriações, confrontos e
edições contínuas, através da interação com outros, indica ‘agência’ – um processo de
autoria, auto - referência e cruzamento de fronteiras.
A intertextualidade na espacialidade e na cena
A noção de intertextualidade, cunhada por Julia Kristeva em 1966, representou seu
desejo de associar a ideia de múltiplos significados de cada palavra (heteroglossia) ao
dialogismo de Bakhtin. É importante ressaltar aqui o entendimento de Kristeva de que
‘a noção de intertextualidade substitui a noção de intersubjetividade’ – o significado de
um texto é importado de outros textos (Kristeva, 1980:69). Como considerado por
Barthes, intertextualidade implica que o significado não reside no texto, mas é
produzido pelo leitor em relação não só ao texto, mas também à complexa rede de
textos envolvidos no processo de leitura.
Se o pensar pedagógico contemporâneo deve partir das múltiplas referências de
diferentes linguagens, experiências e culturas, o jogo com o texto e o espaço e a
composição intertextual resultante permitem visualizar novas fronteiras para a cena
teatral na escola, que se abstenham que indicar o que fazer e como fazê-lo.

Referênciasestimulá-las, desde cedo, para que é a opção mais eficaz e divertida.


BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas. Vol. 1. São
Paulo, Brasiliense, 1985.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal.São Paulo: Martins Fontes, 2010.
BRAIT, B. (Org). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
______. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Ed. da
Unicamp, 1997.
Bolton, Gavin. Acting in classroom drama – a critical analysis. UK: Longman, 1984

BUBNOVA, Tatiana. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin/ Voice, sense and dialogue on
Bakhtin. In Revista acta poética 27 N. 1, 2006, pp 97-114. Translated and published in
Portuguese by Roberto Leiser Baronas e Fernanda Tonelli in Bakhtiniana, São Paulo,
6 (1): 268-280, Ago./Dez. 2011.

COLERIDGE, Samuel. Biografia Literária, 1817.

GOFFMAN, Frame Analysis: an Essay on the Organization of Experience.


Harmondsworth: Penguin, 1974.
KRISTEVA, J. Desire in Language: A semiotic Approach to Literature and Art. New
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RANCIÈRE, J. “Art of the Possible: Fúlvia Carnevale and John Kelsey in conversation
with Jacques Rancière”, in ArtForum International Magazine, Inc., 2010

RYNGAERT, J-P. “Dialogue et conversation”, in Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux


Territories du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 17-21.
VYGOTSKY. L. S. Pensamento e Linguagem. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VATTIMO, G. A Sociedade Transparente. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1989.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ÓPERA CRUA E A POIESIS DA HOSPITALIDADE

Carlos Cézar Mascarenhas de Souza – Universidade Federal de Sergipe; Núcleo de


Teatro

Um ato de hospitalidade só pode ser poético.


(Jacques Derrida)

O presente texto não passa de um sucinto esboço que tem por objetivo refletir em torno
da relação entre o teatro e a noção de hospitalidade. Isto, na medida em que, a partir
deste binômio, pretendemos dar início ao projeto de um percurso a ser desenvolvido
mais adiante, noutros desdobramentos de pesquisas, cujo sentido consiste em pensar a
hospitalidade enquanto ato poético articulando-se no âmbito da arte teatral.
Penso não haver exagero algum em afirmar que, no cenário das coisas da cultura, o
teatro talvez se afigure como um campo por excelência do acolhimento dos signos e
materiais que chegam dos mais variados registros. Além do texto dramático, a luz, o
cenário, o figurino, a música, enfim, todos os elementos que quando se põe em ato pela
encenação, exibem a evidência do cruzamento colaborativo entre os elementos variados,
provenientes das diferentes linguagens. Todavia, importa interrogar: quais as condições
dessas transações? Até onde seria legítimo pretendermos culminar na proposição de se
entender o teatro como uma arte da hospitalidade? Desta última pergunta, com efeito, é
que emerge nossa hipótese no sentido de se averiguar até onde cabe em um trabalho de
natureza teatral, inscrever a noção de hospitalidade a título de uma poiesis.
O tratamento habitual desse tema, em geral, remonta às práticas ritualistas que desde o
início das civilizações se protagonizam nas cenas dos espaços, na recepção dos seus
visitantes, enquanto virtude que se põe em exercício nos rituais de acolhimento, onde a
hospitalidade torna-se uma espécie de remédio para neutralizar as eventuais emanações
de hostilidade virtualmente despertadas pela chegada do elemento estranho,
representado pelo “outro”. Nossa perspectiva, entretanto, se norteia por uma abordagem
metodológica de caráter interdisciplinar; de modo que, na transposição do tema para o
campo estético, possamos efetuar reflexões a partir do diálogo com as contribuições
advindas dos campos da filosofia e da psicanálise. Isso, devido à relevância do tema,
que nos convida em ir um pouco mais adiante da imagem e do significado comum, em
que a hospitalidade consistiria apenas no simples atributo de alguém no papel de
anfitrião oferecendo guarita a outro que, na qualidade de visitante, não passa de mero
receptor passivo do gesto do primeiro.
Hospitalidade, contudo, é uma palavra que abriga desde sempre uma vasta gama de
conotações que, aliás, cumpre dizer desde logo, não cabe nos limites do nosso intuito
aqui no presente texto. Todavia, erigindo-se como uma forma de interação social, o seu
campo semântico está todo ele referido às implicações mais intrincadas e controvertidas
das relações entre sujeitos nos mais variados planos e lugares. E, embora em sua
superfície, o termo se apresente como uma promessa de abertura ao acontecimento de
uma possível amizade, ele mesmo, a um só tempo, também sinaliza ao iminente perigo
diante do desconhecido. Quer dizer, a hospitalidade não se oferece sem que haja no seu
íntimo algo de hostilidade.

1
Por isso, pensamos na possibilidade se considerar a experiência da hospitalidade,
também, na qualidade de um dispositivo dramático. Pois, o drama da hospitalidade se
situa, a nosso ver, na estrutura mesmo desse acontecimento relacional pelo qual os
conflitos e choques provenientes dos mal-entendidos, advêm sempre como efeitos
inerentes à natureza ambígua da linguagem e na experiência da interpretação que afeta
cada sujeito eventualmente envolvido na situação. Daí, a oportuna observação de Alain
Montandon, referindo como uma espécie de cena inaugural da hospitalidade, o
momento em que:
Tudo se passa naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se
abrir para um rosto desconhecido, estranho. Limite entre dois mundos,
entre o exterior e o interior, o dentro e o fora, a soleira é uma etapa
decisiva semelhante a uma iniciação. É a linha de demarcação de uma
intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, ela comporta, querendo ou não,
uma face de violência, de transgressão, até mesmo de hostilidade que
Derrida chama de “hostipitalidade” [...] O gesto da hospitalidade é, de
início, o de descartar a hostilidade, pois o hóspede, o estrangeiro, aparece
frequentemente como reservatório de hostilidade: seja pobre, marginal,
errante, sem domínio fixo, seja louco ou vagabundo, ele encerra uma
ameaça. Sua posição de exterioridade marca sua diferença. 1
Ademais, em qualquer que seja o contexto onde se evoque esse tema, importa ressaltar
que a hospitalidade só se cumpre a partir de uma estrutura de caráter essencialmente
relacional, entre sujeitos portadores e representantes de distintas referências psico-sócio-
culturais. A tensão inscrita nessa experiência reflete-se como se vê na citação acima, na
própria grafia do neologismo forjado por Jacques Derrida, tentando abraçar o paradoxo
inevitável da situação designando-a pela expressão “Hostipitalidade”.

Nota-se que o tema comporta muitos outros problemas como, por exemplo, o
reconhecimento das diferenças das linguagens, a questão dos direitos e deveres, a
negociação dos interesses, as dificuldades de aceitação e tolerância, enfim, tudo o que
inelutavelmente nos convoca a encarar a legitimidade do “outro” enquanto figura de
alteridade. De modo que, não será difícil admitir que a hospitalidade represente, acima
de tudo, uma figura cujo estatuto refere um lugar de passagem, tal como na imagem da
“soleira” aludida acima por Montandon. Definindo-se, então, a título de um espaço de
transição que franqueia o movimento da possibilidade de uma travessia, supomos
oportuno indagar nos seguintes termos: o que torna possível a hospitalidade? Quais as
implicações e desafios que se passam no espaço desse trânsito?

Com base nessas indagações é que, buscamos articular medotologicamente nossa


reflexão, recorrendo ao apoio teórico da Psicanálise no rastro das proposições suscitadas
por Jacques Lacan. Posto que, graças às contribuições do pensamento deste autor, a
noção de sujeito humano veio a se figurar como aquele que se constitui na medida em
que habita a dimensão da linguagem, emergindo como simples efeito do funcionamento
da cadeia significante. O sujeito torna-se um hóspede da diz-mansão ou mansão do
dito2. Donde resulta a íntima associação entre hospitalidade e linguagem também, para o

1
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. P.32.
2
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. P.146.

2
pensamento psicanalítico, posto que o que está em jogo é nada mais nada menos que a
noção do lugar ou posição que o sujeito ocupa na medida em que se sente afetado pelos
efeitos dos dizeres. E, isto nos leva ao coração da própria questão do que vem a ser a
ética na perspectiva descortinada por Lacan, ao enunciar que:
A ética – como podem talvez entrever aqueles que me ouviram falar dela
em outros tempos – tem a maior relação com a nossa habitação na
linguagem, e é também – como nos mostrou certo autor que evocarei de
outra vez – da ordem do gesto.3

Importa relembrar, ainda, que o próprio Freud já enunciara que, a partir do momento em
que entram em jogo as incidências do inconsciente no “eu”, este se perde e não é mais
senhor da sua própria casa. Na mansão do dito, o sujeito falante se depara com uma
alteridade que o habita intimamente, como um “estranho familiar” que, como já dissera
Freud, o divide irremediavelmente. Eis o drama da hospitalidade do sujeito em sua
relação com a própria palavra que o representa apenas de modo parcial, nunca
totalmente. E a linguagem se afigura como símbolo mesmo dessa perda, onde o sujeito
não detém a posse de todo o sentido do que fala. De resto, o saber que daí decorre
advém marcado por esta castração que o faz abrigar em si, paradoxalmente, um “saber
sem saber”. Daí, a própria noção de verdade vir, também, marcada como um “semi-
dizer”, posto que, com efeito, “a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade”.4

O propósito de experimentar, para além do exercício meramente temático a questão da


hospitalidade é o que, ao mesmo tempo, nos lança direto diante do desafio de pensar
como se engajar em um ato de hospitalidade capaz de engendrar algo que se mostre
como um fazer criador, quer dizer, da ordem da poiesis. Reinventar a hospitalidade em
sua dimensão poética aponta o desafio criativo em franquear fronteiras geográficas e
psíquicas. Isso, graças a uma aposta na construção articulada pelo plano estético das
relações entre as linguagens já constituídas, na medida em que a cena hospitaleira seja
uma abertura à possibilidade heurística a partir do encontro entre as diferenças de
referências dos elementos que estão em jogo. Por isso que nesse agenciamento a
linguagem é o liame que emerge expressando algo que ultrapassa os caprichos da
dualidade. Quer dizer, a hospitalidade se afigura enquanto o próprio símbolo de uma
instância terceira, cuja função é a de não se deixar ficar refém do espelho identitário
particular de nenhuma das partes envolvidas. Ademais, é também aí que se justifica a
convocação dessa instância terceira pela qual se facultará a experiência do “passe” no
sentido de superar as tentações dos fechamentos egoístas referidos aos impasses
narcísicos na esfera do “eu”. Eis, como entendemos a possibilidade do “passe” da
hospitalidade enquanto poiesis; uma passagem que se dá como um ato poético da
linguagem que cria um furo simbólico, atravessando os engessamentos imaginários já
cristalizados pelos hábitos da cultura.
Na “Ópera Crua” 5, por sua vez, encena-se o drama da voz cotidiana protagonizada
pelos cantares nômades da sobrevivência pelas ruas da cidade. São vendedores

3
LACAN, Jacques. Op. Cit. P. 137.
4
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1992. P.36.
5
Esta obra foi concebida por mim e Marcos Costa, após o projeto ter sido selecionado e
premiado na categoria de “Artista Pesquisador”, e foi exibida em seu formato de
montagem como Ópera-instalação na mostra do 47° Salão de Artes Plásticas de
Pernambuco, como resultado da pesquisa, em Janeiro de 2012.
3
ambulantes fazem soar a voz, entoando seus pregões a oferecer produtos e serviços
vários. As mensagens desses pregões soam entre o canto e a fala e, à revelia de qualquer
descaso e ou ausência de hospitalidade, continuam soando na encenação diária de um,
talvez, teatro da necessidade. Todavia, foi preciso reconhecer a presença de uma força
poética agindo na tessitura e emissão desses pregões, para que estes viessem a interagir
na polifonia sonora que se enlaça com a musicalidade dos instrumentos da música
erudita e a voz da cantora lírica interpretando a letra da canção, que costura o elo desse
encontro, teatralizando musicalmente o drama da hospitalidade.
O projeto dessa intervenção estética teve lugar a partir de uma seleção no 47° Salão de
Artes Plásticas de Pernambuco, na categoria de “artista pesquisador”, cujo prêmio se
traduziu numa bolsa para custear o processo de pesquisa e elaboração da obra. A “Ópera
Crua” brinca, tomando de empréstimo a ideia do ambiente operístico, no sentido
tradicional já classicamente canonizado, mantendo o invólucro do ambiente espacial do
teatro para, a partir de dentro inserir a presença performática dos vendedores de rua
ambulantes entoando seus respectivos pregões. O caráter de intervenção tem a ver com
o adjetivo “Crua”, uma vez que a encenação transcorreu sem que houvesse qualquer
preocupação no sentido de se preparar os protagonistas através de ensaios. Diretamente
trazidos das ruas, os vendedores entraram numa relação de interação com os músicos
eruditos da orquestra sinfônica que, também sobre o palco, performatizam a situação
polifônica desse inusitado encontro. Deste agenciamento é, pois, que supomos a
abertura de uma “brecha” para o ato poético. Valiosa observação sobre tal
acontecimento é o que se enuncia pelas palavras de Tania Rivera, a partir de certas
pontuações lacanianas:
Tal ato poético, digamos – é radical e estranhamente delicado. Lacan
refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de
mudar o sujeito. Vibração sutil, oscilação da vida por um fio, que
intervém de chofre no espaço comum, comunitário, para lhe mudar as
feições. No teatro, digamos, tradicional, a separação entre cena e público
assegura a partilha entre ficção e realidade, abrindo o espaço narrativo
como uma janela que o expectador não ultrapassa de maneira pontual [...]
O ato de que estamos tratando liga-se, de fato, a uma configuração
instável do espaço, a do sujeito em movimento (caminhando), e não mais
olho fixo capaz de centrar e possibilitar uma organização perspectiva. Ao
espaço ilusionista substitui-se o espaço real de uma ação entre sujeito e
objeto que se marca no tempo. Ou seja, delineia-se aí um espaço de
perda, e não mais do espelhamento entre o eu e o mundo que permite a
fixação da imagem. “O homem encontra sua casa”, diz Lacan, “num
ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. Ele
prossegue, então, em uma caracterização lapidar do lugar do sujeito, ou
melhor, de sua falta de lugar e da configuração espacial que isso acarreta,
para além da imagem em espelho: “Esse lugar representa a ausência em
que estamos”. Deslizante e imprevisível esse espaço, lugar de ausência
em vez de imagem, é difícil de conceber e teorizar. 6
A perspectiva ético-estética que assiste ao procedimento da operação da “Ópera Crua”
parece reconhecer que o propósito granjeado pela “poiesis da hospitalidade” não se dá

6
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify,
2013. P.37-38.

4
sem a implicação de uma economia onde o comércio entre as linguagens se articula
significantemente, no intuito de ultrapassar as aporias nos aparentes obstáculos dos
contrastes e contradições entre os signos e registros já inscritos no habitus7 das
categorias rigidamente já estabelecido pelas instituições da vida cultural.
De fato, não é nem um pouco fácil se desvencilhar da lógica binária que norteia de
modo quase imperativo o modo do entendimento habitual. Porém, graças aos
experimentos que a dimensão teatral oportuniza, outra economia entra nesse jogo a
ponto de se pensar o problema da hospitalidade não como algo que se oferece em
doação por uma idéia de generosidade ou coisa que o valha, mas, sobretudo, em atenção
à emergência de certa economia relacional pela qual o desafio da troca, da
reciprocidade, assinala-se como um princípio fundamental onde, aliás, o pretexto da
hierarquia se perde em nome de um dever recíproco entre as partes, posto que estas
sejam igualmente importantes para que, na obra, resulte como expressão justa dessa
dinâmica em que a presença de todas as partes seja, sensivelmente, relevante.

7
Recomendo a leitura do texto “A cultura e seu contrário”, de Teixeira Coelho, onde este autor discorre
acerca do conflito entre as noções de arte e cultura.

5
Referências Bibliográficas:
BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética Teatral –
Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
CASOY, Sergio. A invenção da Ópera. São Paulo: Editora Algol, 2007.
__________. O Nascimento da Ópera. São Paulo: Editora Universidade Falada, 2008.
COLI, Jorge. A paixão segundo a ópera. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2011.


COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São
Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008.
DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da
Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
_________________. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011.
GUINSBURG, J; NETTO, J. Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia
do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1985. P.68.

_________________. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de janeiro:


Jorge Zahar Ed., 1992.
MONTANDON, Alain. O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e
nas culturas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São
Paulo: Cosac Naify, 2013.

6
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES

TÍTULO: APROXIMAÇÕES DO CONCEITO DE ANÁLISE ATIVA E


ASPECTOS DE CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO “GAIVOTA – TEMA PARA UM
CONTO CURTO”

Carolina Martins Delduque (bolsa Doutorado Fapesp); orientação: Larissa de Oliveira


Neves; Programa de Pós-graduação em Artes da Cena; Instituto de Artes, Unicamp.

Introdução
Este artigo é resultado parcial da pesquisa de Doutorado em andamento:
“Tchekhov e a cena brasileira – do subtexto à interpretação do texto”, financiada pela
Fapesp. Nesse trabalho, analiso um conjunto de encenações brasileiras sobre algumas
das principais obras dramáticas do escritor russo Anton Tchekhov, com foco na relação
entre o texto dramático e a cena.
Uma das obras que faz parte do escopo da pesquisa é a encenação Gaivota -
tema para um conto curto, realizada pela Cia dos Atores, com direção de Enrique Diaz.
Nesse espetáculo, assistimos a uma desconstrução cênica da obra “A Gaivota”, de
Tchekhov, a partir de procedimentos de criação que muito se assemelham ao
procedimento de análise ativa do texto.
Nesse sentido, o presente artigo faz uma exposição da teoria sobre análise ativa
e seu desenvolvimento em alguns aspectos, a partir da articulação de diferentes
referências: Eugênio Kusnet, Maria Knebel e Nair Dagostini. Após essa elucidação, há
uma aproximação entre o que se conceituou e o que ocorreu enquanto procedimentos de
criação e resultado cênico na encenação assinada por Diaz.
Veremos que, nessa montagem, não há apenas a utilização da análise ativa
enquanto procedimento de trabalho do ator e diretor, mas também o transbordamento do
uso dessa prática, que se transforma na própria linguagem de encenação da obra.

A análise ativa
Eugênio Kusnet, ator e pedagogo conhecido por propagar no Brasil o Sistema de
Stanislavski, nasceu na Rússia em 1898, onde iniciou sua vida teatral. Ao contrário do
que comumente se pensa, ele não chegou a estudar ou a ter contato direto com o
Sistema de Stanislavski nessa época, muito menos com o próprio Stanislavski. No
entanto, seu fazer artístico foi inevitavelmente influenciado pelas ideias e conceitos que
estavam em voga na época na Rússia, que tinham como modelo ideal as peças e os
trabalhos de atores do Teatro de Arte de Moscou e, por consequência, a pesquisa do
mestre russo.
Iniciou sua trajetória no teatro brasileiro como ator pelo TBC – Teatro Brasileiro
da Comédia1, passou pelo Teatro Oficina2 e depois pelo Teatro de Arena3, em que
iniciou sua atividade como professor de atuação. (PIACENTINI, 2011) Participou de
toda evolução do teatro brasileiro, tendo se destacado como ator e professor de
formação a partir do que nomeava o Método de Stanislavski, formando uma grande
geração de atores nas décadas de 60 e 70. Nesse trabalho, acabou até por conceber
novos procedimentos que seriam mais adequados ao ator brasileiro, a partir de leituras
                                                                                                                       
1
Fundado em 1958 por um grupo de alunos da Escola de Direito do Lago de São Francisco, sendo um
2
Foi um dos mais importantes grupos teatrais brasileiros das décadas de 50 e 60. Inicia-se em 1953 tendo
promovido uma renovação e nacionalização do teatro brasileiro, sua existência termina em 1972.
3
Importante teatro brasileiro fundado em 1948 na cidade de São Paulo. Por ele passaram grandes atores e
seu repertório de peças privilegiava autores nacionais.
dos livros de Stanislavski e depois de uma viagem que fez para Rússia, quando estudou
com alguns de seus discípulos diretos, como Maria Knebel.
Essa viagem para Rússia foi determinante no processo de formação de sua
pedagogia, pois o ator-pedagogo entrou em contato direto com o desenvolvimento das
últimas descobertas realizadas por Stanislavski, que não haviam sido escritas por ele
próprio em livros, mas estavam sendo estudadas e trabalhadas ainda naquele momento,
mesmo após a sua morte.
Stanislavski, em suas últimas pesquisas, redimensionou a maneira como os
princípios de seu Sistema deveriam ser estudados, conferindo-lhes um novo paradigma
a partir da ação. No que depois foi nomeado de Método das Ações Físicas, a ação
deixaria de ser apenas um dos elementos componentes, mas passaria a ser o elemento
catalisador dos demais elementos. Ao contrário do que acontecia no início de suas
pesquisas, quando Stanislavski acreditava que o ator deveria “crer para agir”, ele
percebeu que o ator deveria “agir para crer”, conforme ele próprio salienta aos atores:

“Realizem ações físicas nas circunstâncias dadas e não


pensem sobre quais sentimentos elas devem despertar em vocês.
Façam com verdade e lógica, façam assim como vocês as fariam
hoje, no estado de ânimo de hoje, contando com todas as
complexas casuais do dia de hoje. (...) E agindo logicamente no
dia de hoje, vocês nem percebem como chegam aos sentimentos
corretos. Por isso os sentimentos não podem ser fixados, por
isso eu procuro somente aquilo que é possível fixar, e isso será
uma ação física.” (STANISLAVSKI in VINOGRÁDSKAIA,
apud DAGOSTINI, 2007: 108)
O trabalho com as ações físicas - que era voltado às motivações dos personagens
e suas matizes -, ao final da vida do Mestre, teria gerado, em seu Sistema, a utilização
da Análise Ativa, um procedimento que permite a utilização em prática, na criação de
ações físicas, de todos os elementos do Sistema.
Trata-se de uma compreensão da obra e do texto pelos atores e diretor, via
experimentações práticas. Um meio de estudar a dramaturgia em ação. Ou seja, a partir
desse procedimento, os atores não precisariam mais estudar palavra por palavra do
texto, num trabalho de mesa, em que houvesse uma separação entre suas instâncias
físicas e psíquicas. O intuito deveria ser, ao contrário, a compreensão das circunstâncias
propostas das situações cênicas e, num primeiro momento, usar as próprias palavras em
improvisações para dar sentido às ideias dramatúrgicas do autor até chegarem,
gradativamente, à compreensão completa da estrutura da obra.
No entanto, embora esse procedimento tenha sido utilizado de modo semelhante
pelo próprio Stanislavski e por muitos de seus adeptos, não há obras escritas pelo
Stanislavski com ensinamentos sistematizados e concretos sobre isso.
É relevante acrescentar que, segundo Maria Knebel, que foi aluna de
Stanislavski e depois lecionou a partir de seus ensinamentos, Stanislavski não utilizava
o termo análise ativa. Ele utilizava o termo Étude (KNEBEL, 2003), que designava
uma improvisação sugerida pelo diretor para que os atores tivessem contato com o tema
da obra experimentando situações próximas àquelas contidas no texto teatral. Os atores
deveriam encontrar os acontecimentos, as circunstâncias e improvisar utilizando-se de
suas próprias palavras.
Knebel, principalmente em seu livro El ultimo Stanislavski (KNEBEL, 2003),
faz considerações e descrições esclarecedoras sobre o desenvolvimento da Análise Ativa
(Étude) à época em que ele foi criado por Stanislavski. Conta-nos que a grande
mudança nessa época foi que, antes, Stanislavski fazia seus alunos improvisarem
situações anteriores e posteriores ao acontecimento da peça e, com a Análise Ativa, eles
deveriam improvisar exatamente a situação da peça, naquele momento específico.
Segundo Stanislavski, esse processo permitia que o ator não utilizasse somente seu
cérebro, mas o corpo todo.
Kusnet reforça que a Análise Ativa é uma metodologia que não foi
completamente desenvolvida por Stanislavski, daí que muitos pesquisadores que o
precederam continuarem com suas investigações a partir desse ponto, de modo que, até
hoje, esse conhecimento não está fechado, pronto.
As pesquisas posteriores foram sendo moldadas a partir da realidade e dos
conhecimentos de cada pesquisador, tendo seus resultados se tornado até muitas vezes
contraditórios. Kusnet nos mostra uma possibilidade de encaminhar essa questão, mas
deixa claro que podem existir muitas outras.
Segundo a concepção kusnetiana, a utilização do Método de Análise Ativa
consiste em analisar o material dramatúrgico em ação, ou seja, procurar compreendê-lo
por meio da ação praticada pelos intérpretes dos papeis, e não na base de longos estudos
cerebrais. Para início desse trabalho, o ator deve apenas conhecer o conteúdo da peça a
ponto de poder contá-la. Desse modo, o único modo de executar a ação da peça nos
ensaios é improvisando. “A improvisação é a base da criação em todas as artes”
(KUSNET, E. 1975:98).
Nair Dagostini, brasileira, encenadora e pesquisadora da área teatral que esteve
na Rússia por muitos anos estudando com discípulos de Stanislavki, anos depois dessa
experiência, já no Brasil, escreveu uma tese de Doutorado na USP sobre o método da
Análise Ativa como base para criação do espetáculo pelo ator e diretor. Em seu
trabalho, a pesquisadora explica que a Análise Ativa pode ser um caminho para o
desenvolvimento da encenação de um texto. “Um paradigma do diretor teatral para
análise da obra do autor, através da ação, e é um meio para o ator recriar, em seu sentido
mais profundo, a atualidade da obra, dando origem ao espetáculo.” (DAGOSTINI, N.
2007:22) E depois completa: “Esse método respeita o significado mais profundo do
texto, possibilitando, assim, uma criação original a partir da individualidade do diretor e
do ator.” (DAGOSTINI, N. 2007:23)

Ecos da Análise Ativa em Gaivota – tema para um conto curto


Esse processo de análise do texto em ação encontra ecos na encenação de
Gaivota – tema para um conto curto, pela Cia dos Atores, sob direção de Enrique Diaz.
A encenação assinada por Diaz, um dos diretores mais aclamados na cena
brasileira atual, traz uma releitura do clássico A Gaivota, escrita pelo dramaturgo russo
Anton Tchekhov, num discurso "sobre" uma obra, com implicações metalinguísticas,
numa dramaturgia não-linear, tematizando sobre o que é teatro ou o que é ser ator.  Teve
sua estreia em 2006, na ocasião, em comemoração aos 18 anos da companhia.
A Cia teatral foi fundada em 1988, por Drica Moraes e Enrique Diaz, com o
intuito de “estudar e experimentar novas possibilidades da cena teatral”4. Com
reconhecida trajetória de exploração para novos caminhos para cena teatral brasileira,
encontraram em Tchekhov um parceiro muito potente.   O espetáculo levanta uma
discussão, diante da presença do espectador, sem definir um ponto de vista: mostra que
se trata de uma leitura dentro de muitas outras possibilidades de interpretação do texto;
                                                                                                                       
4
Palavras dos atores fundadores escritas no site da Companhia: www.ciadosatores.com.br.
isso fica evidenciado pela presença do diretor em cena, que comenta e analisa a
encenação. Essa escolha reforça que a encenação não só dá vida ao texto, mas
aprofunda as questões que o texto traz, em relação ao teatro, às novas formas de
encenação.
Como resultado, assistimos a uma obra em que o processo de construção do
espetáculo faz parte do próprio espetáculo. A cena vai se construindo como um esboço
com constantes ajustes e os personagens vão sendo substituídos entre os atores, por
vezes até atuando em coros. Essa característica favorece um outro tipo de compreensão
do texto, abrindo à discussão das diversas possibilidades de encená-lo. No trabalho com
o texto dramático, não houve a preocupação de desenvolvê-lo de forma literal (várias
cenas são cortadas, alguns personagens secundários são suprimidos, há inserções de
falas dos atores que não existem no texto), e ainda assim, o espetáculo mantém a
temática principal bastante fiel ao original.
O grupo traz para encenação o diálogo entre ator e personagem hipoteticamente
ocorrido no processo de criação, como um elemento que compõe a cena, aos olhos do
espectador. Isso se torna um pretexto para abertura dramática do texto ao exame do
público. Ou seja, a plateia, no momento de fruição da obra, também examina, analisa o
texto, os personagens. Isso intensifica a fruição do espetáculo e atualiza os significados
latentes no texto da peça.

Análise Ativa cena a cena: exemplos pontuais


No início do espetáculo, vemos os atores sentados em cadeiras de madeira numa
fileira horizontal. O cenário é todo branco: o chão, o fundo; como uma folha em branco
a ser escrita. Os atores fazem pequenas ações, como se estivessem absortos nos
universos dos personagens que irão/estão representando. Indícios que apontam para
ideia de ensaio, análise em cena.
Passa-se um tempo, até que a primeira atriz se levanta, leva sua cadeira mais a
frente, senta-se e diz: “eu me pergunto como começar uma peça que fala exatamente do
fracasso de uma peça?” A partir desta fala, inicia-se um movimento entre todos os
atores, que, aos poucos, vai aumentando, acompanhado por uma trilha sonora
instrumental. Outros atores se levantam com suas cadeiras e vão ocupando o espaço-
tempo de diversas maneiras, como se estivessem descobrindo, na frente do público, uma
maneira de colocar aquele texto em cena. Uma das atrizes conta o final da peça: “haverá
um suicídio no final da peça” e brinca com isso: “mas o autor insistia em dizer que a
peça era uma comédia!”
Um dos atores, que é também o diretor da peça, vai se aproximando dessa
primeira atriz que começou a falar e a veste com um sobretudo, criando uma convenção:
essa peça de roupa indica a personagem Masha.
Criticam a peça escrita pelo escritor: “é chata, ruim.” Comentam sobre a
diferença temporal das personagens e do público. Eles dizem esses textos enquanto vão
estabelecendo os personagens e os ambientes da primeira cena.
Na outra extremidade do palco, outro ator, que fará o personagem Professor,
começa também a sua preparação: fala de sua “transformação” em Professor, coloca
uma camisa na cadeira, e só então começa o diálogo presente no texto da peça.
Durante o diálogo é possível perceber que a atriz insere outras palavras e frases
no texto da personagem: frases pessoais, como por exemplo: “estou grávida, uma caixa
de grampos abriu na minha bolsa.” São frases que fazem uma analogia entre a situação
real da atriz e a situação ficcional da personagem.
O diálogo inicial do texto dramático é apenas esse:
“MEDVEDENKO (Professor) - Anda sempre vestida de preto,
porquê?
MASHA - Ando de luto pela minha vida. Sou infeliz.”
(TCHEKHOV, 2004 : 03)

Esse procedimento e toda a introdução que a encenação criou (que não há no


texto de Tchekhov) causa uma evidente empatia no público: no registro audiovisual,
percebemos que o público ri quando ela fala da caixa de grampos, exatamente porque se
identifica. Também ouvimos risada quando um dos atores menciona que a atriz já
contou o final da peça. Fica evidente que esta escolha direciona o interesse e a
curiosidade do público para o modo como a história será contada. Desse modo, a
encenação consegue atrair o público, trazendo-o mais próximo de uma história que
poderia parecer tão distante.
Esse primeiro movimento de introdução à peça de Tchekhov (contada pela Cia
dos Atores) com a qual o público é confrontado, já indica que o que ele irá acompanhar
não terá um único ponto de vista fechado e assim apresentado. Como se tivesse existido
uma fissura no processo de criação, o público é convidado a acompanhar as
possibilidades de intepretação, as análises dos comportamentos dos personagens, os
variados signos que podem ser criados, construídos a partir daquela história.
Já no final do primeiro ato, Henrique Diaz, diretor que está em cena com os
atores, lê um trecho do diário de Stanislavski (primeiro a encenar com sucesso essa obra
de Tchekhov) em que fala sobre a impressão do elenco após o final do primeiro ato:
“Estreia da Gaivota no Teatro de Arte de Moscou, 1898. Parecíamos ter fracassado. O
plano de boca fechou-se em meio a um silêncio sepulcral. Os atores estreitavam-se
timidamente uns aos outros de ouvidos atentos ao público.” Não é por acaso que essa
leitura (do diário do primeiro encenador da peça) é feita pelo próprio encenador da
montagem atual. A identificação entre os dois é imediata. Esse material com certeza o
aproximou da obra, assim como aproxima o público, que pode acompanhar, mais de
cem anos depois, o que ocorreu quando o mesmo primeiro ato desse mesmo texto
terminou nos palcos de Moscou.
Há também mais um elemento que torna a leitura do trecho ainda mais
pertinente: o encenador russo fala do receio do fracasso, que é um dos aspectos mais
pungentes da montagem cênica trazida pela Cia dos Atores.
Esse texto é lido de um livro (a própria peça de Tchekhov) que é colocado em
cena. Nesse e também em outros momentos, há sempre um ator com o livro da peça nas
mãos narrando, acompanhando ou presenciando a história encenada. No início de cada
ato, um dos atores lê a rubrica inicial, que dá as indicações de espaço e tempo para o
público. Com essas leituras, a plateia tem mais elementos para criar a cena numa
composição entre o que vê acontecendo e sua imaginação (atiçada pelas descrições da
rubrica).
Na leitura da rubrica que inicia o quarto ato, há algumas inserções dos atores
que, além de localizar o público no tempo ficcional, informam, de maneira relacionada,
sobre o tempo transcorrido do processo de criação e o tempo presente: “Passaram-se
dois anos.” (texto dramático). E acrescentam: “Passaram-se seis meses desde que a
gente começou a ensaiar essa peça.” (informação acrescentada). E terminam: “Passaram
cento e dez anos desde que Tchekhov escreveu essa peça.” Como efeito, o espectador
acompanha a história de dentro dela e de fora dela, lembrando-se de que está assistindo
a uma peça de teatro.
A presença material do livro e as ações de leitura (sejam do texto dramático
mesmo ou de informações acrescentadas) em alguns momentos são elementos de
composição que indicam, preparam e lembram o espectador que a peça é uma leitura
apresentada ao público, uma espécie de Análise Ativa do clássico de Tchekhov sendo
criada aos olhos do espectador.
No segundo ato, uma utilização de outro recurso oferece uma leitura muito
pertinente à cena. Na primeira conversa a sós que acompanhamos entre Nina (jovem
aspirante a atriz) e Trigorin (escritor famoso), observamos um coro de mulheres fazendo
a mesma personagem: Nina.
A cena se dá da seguinte maneira: o ator que faz Trigorin está descrevendo Nina
em seu caderno de anotações, mostrando sua admiração por ela. As três atrizes estão em
cena, na outra extremidade de uma diagonal, como Ninas. Ele as olha, como se aquele
momento fosse tão intenso, que ele não vê uma Nina, mas todas as mulheres são Nina
para ele.
Na cena anterior, em que Treplev (jovem escritor e atual namorado de Nina)  
coloca aos pés dela uma gaivota morta, como um primeiro indício de seu suicídio no
final da peça e de que Nina irá se perder, temos um exemplo (dentre muitos que
ocorrem na encenação) do uso de objetos de forma não realista. A partir de sua
utilização fora das situações que normalmente seriam usados, os objetos criam signos
diferentes daquilo representam literalmente.
Para representar a gaivota morta, o ator coloca aos pés de Nina uma couve-flor.
Ela lhe pergunta do que se trata aquilo. Em seguida, diz o texto de Treplev, da mesma
maneira que o dramaturgo escreveu, contando que matou a gaivota, e que dentro em
breve também irá se matar. Depois dessa resposta, que soou bem dramática, a atriz
responde: “Isso não é uma gaivota.” O ator diz então: “Você não consegue ver uma
gaivota aqui?”. Esse impasse, esse estranhamento que é real (pois aquilo é uma couve-
flor e é muito estranho alguém colocá-la a seus pés) é análogo ao estranhamento
ficcional que Nina tem (porque ele está colocando uma gaivota morta ali?).
Além da analogia criada, após o estranhamento da atriz com o objeto escolhido
abre-se uma discussão sobre os próprios objetos que os atores trazem para significar
algo. No calor dessa discussão, um ator descreve para ela o que está vendo: “Uma
gaivota a seus pés. Com suas asas quebradas. Sangue escorrendo pelo nariz, manchando
seu sapato...” Outro ator surge: “Nessa água que escorreu desse saco você não consegue
ver uma gaivota morta?” E outro, e assim todos os outros atores e atrizes irrompem à
cena com diferentes objetos em suas mãos para simbolizar a gaivota morta.
Vale a pena citar mais um último exemplo de uma cena construída em que fica
encenada para o público a análise que o grupo propõe da peça. Quase no final do
primeiro ato, vemos que Arkadina (atriz famosa e decadente, mãe de Treplev e
namorada de Trigorin) está um pouco bêbada. Há uma atmosfera de festa. A atriz, com
um copo de vodka nas mãos, diz: “Um brinde ao grande Tchekhov que morreu bebendo
champagne!” Os outros atores estão comemorando e brindando com vodka. Essa fala
não está no texto de Tchekhov, obviamente, mas combina perfeitamente com o
momento. A mesma atriz lê um texto que fala sobre mulheres apaixonadas por
escritores famosos, que “ficam de quatro” por eles. Enquanto isso, já vemos uma atriz
andando em quatro apoios, como um cachorrinho. Quando pensamos em estranhar e nos
perguntar o que estaria fazendo essa atriz nessa posição, imitando um cão, nos damos
conta da metáfora que está sendo construída: Nina, na situação ficcional da peça, está
rastejando como um cão por Trigorin, famoso escritor (namorado de Arkadina) que
acabara de conhecer.
A presença do livro que contém a peça escrita por Tchekhov; a leitura das
rubricas que dão início aos atos da peça, localizando o espectador em termos de espaço
e tempo; a narração de alguns fatos pelos atores; a inserção de comentários sobre o
autor, sobre os personagens ou mesmo sobre o processo de criação em si; a utilização de
objetos cênicos de forma não realista; a troca de atores na interpretação dos personagens
e os coros criados, todos esses elementos levam ao entendimento de que se está
fazendo uma leitura, montando a história diante dos olhos do espectador, uma Análise
Ativa, pode-se dizer de certa maneira.
A Cia dos Atores, no belo trabalho feito em Gaivota – tema para um conto
curto, faz e mostra ao público um estudo da dramaturgia em ação, uma compreensão
das circunstâncias propostas pelo autor, da estrutura da obra como um todo, e o mais
importante, uma compreensão muito própria deles, que diz muito das questões
pungentes para o grupo e porque é tão verdadeira para eles, para o teatro, de ontem e
ainda, de hoje.

Bibliografia
DAGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para
leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. Doutorado em Letras,
USP, 2007.
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2003.
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ECA – USP. São Paulo, 2011.
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Preta USP, v. 07, 225-228, 2007.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
TCHEKHOV, Anton Pavalovich A Gaivota. São Paulo: Ed. Cosac Naif, 2004.
Sites consultados:
www.ciadosatores.com.br (site consultado em 06.06.2014)
Gravação de vídeo:
GAIVOTA – TEMA PARA UM CONTO CURTO. Produção: Cia dos Atores. Rio de
Janeiro: 2006. DVD (disponível no acervo audiovisual da Biblioteca do Instituto de
Artes – Unicamp – SP).
TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
URBANIDADE CONTAMINADA: A DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS NA CENA
TEATRAL CONTEMPORÂNEA

Cecília Lauritzen Jácome Campos (Doutorado; Capes-Fapesc; Beatriz Angela Vieira


Cabral; Programa de Pós-Graduação em Teatro; Universidade do Estado de Santa
Catarinai)

Las ciudades no se hacen sólo para habitarlas, sino también para viajar por
ellas. Néstor Garcia Canclini

As manifestações artísticas contemporâneas encontram-se irremediavelmente


entrelaçadas por práticas e discursos que se contaminam. Estudar as práticas cênicas na
cidade implica permear diversas áreas do conhecimento, pois o espaço em que elas
acontecem representa âmbito de convívio social, manifestando práticas, poderes e usos.
Em artigo sobre a arte nos espaços públicos, a professora e pesquisadora Zalinda
Cartaxoii aborda a questão das intervenções urbanas na contemporaneidade, a partir da
ruptura com determinados condicionamentos da arte moderna. Segundo a autora, na
década de 1960 os artistas sentiram a necessidade de adotar novas posturas e
procedimentos que buscavam resgatar uma relação mais próxima com o real, “não
apenas numa dimensão estética, mas também política, cultural e social” (CARTAXO,
2009, p. 3).
Nesse sentido, as estruturas institucionais e os “lugares” da arte, como museus,
galerias e edifícios teatrais, passaram a ser questionados, suplantados, em favor de uma
ampliação da arte contemporânea no espaço urbano. Ao se colocarem na cidade,
reaproximando o sujeito do mundo, essas manifestações concebem acontecimentos que
se infiltram nas estruturas do espaço urbano de modo que, muitas vezes, não são
percebidas como tais. Nesse momento, o transeunte passa a ser público de arte, onde sua
participação pode se tornar, com frequência, relevante e imperceptível,
simultaneamente.
Rodrigues (2008, p. 84), em estudo sobre o espaço cênico contemporâneo, trata
da peça “O livro de Jó” do grupo Teatro da Vertigem, que escolheu um hospital como
site specific da peça. Para o autor, a montagem do Vertigem explorou o espaço dos
hospitais em que se apresentou das mais variadas formas, “buscando sempre evidenciar
as memórias, acentuando os significados” de cada lugar em particular. Diferentemente
das obras site-specific, as obras site-oriented possuem maior mobilidade, podendo ser
transformadas ou adequadas a outros lugares. Em geral, as obras site-oriented
impulsionam questionamentos que giram em torno da relação entre a arte e a
organização político-social, bem como “suscitam uma redefinição dos valores
tradicionais de originalidade e autenticidade ao lidarem com as ‘recriações’”
(CARTAXO, 2009, p. 6).
Qualitativamente itinerante, o site funcional lida com a dinâmica da
desterritorialização, pois se utiliza dos meios impressos de circulação (jornais, cartazes,
panfletos), bem como do rádio e da internet. Segundo Cartaxo (2009, p. 7), apesar de se
tratar de um lugar desmaterializado, pois se encontra em constante circulação, essa
manifestação está próxima do “lugar-cidade, tendo em vista o seu caráter dinâmico e
interativo”.
Agregando-se aos estudos das práticas do teatro contemporâneo na cidade, o
teatro urbano, segundo Rodrigues, pode ser encarado como um evento site specific, pois
propõe um vínculo semelhante com o espaço da cidade em que se insere. Na sua

1
concepção, tal prática tem como principal característica o “vínculo com o contexto da
cidade em que o evento se insere, propondo, assim, uma espécie de releitura dos
espaços” (RODRIGUES, 2008, p. 15). Nesse sentido, no teatro urbano a relação entre o
espaço cênico e o espaço urbano é indissociável, além disso, busca outras formas de
relação entre a cena e o público.
As experiências como espectadora de dois espetáculos específicos do 6º Festival
de Teatro de Rua de Porto Alegre iii guiam a discussão e proporcionam diálogos
diversificados sobre os usos dos espaços da cidade, seus modos de apropriação, bem
como da criação artística. A escolha dos referidos espetáculos se deu, a partir do
envolvimento estabelecido no momento da recepção, cujos acontecimentos foram
decisivos para o debate acerca das linguagens em “contaminação”.
O espetáculo Bivouac, da companhia francesa Générik Vapeuriv é uma versão
moderna de uma horda primitiva que controla as ruas e vira a cidade de cabeça para
baixo. Com os corpos pintados de azul, um trio elétrico e um cachorro metálico
incandescente, os performers avançam, manipulando barris em alta velocidade. Fundada
em 1984 por Cathy Avram e Pierre Berthelot, com sede em Marselha, esta é uma das
principais companhias de teatro de rua do mundo, seu foco está na mistura entre as
linguagens: teatro, dança, música, vídeo, imagem e uso de maquinaria pesada no
conceito de “tráfico de atores e máquinas”.
O espetáculo, que tem duração de 60 minutos, percorreu 600 metros do bairro
Cidade Baixa, atravessando avenidas de grande fluxo, interrompendo a ordem do
trânsito dos carros e pedestres. O percurso foi sendo delimitado através da
movimentação dos barris conduzidos pelos performers em associação ao carro elétrico
que se mantinha na parte de trás do “cortejo”. Para o grupo, é essencial para a
cenografia do espetáculo o poder que advém dos sons, dos movimentos e das luzes na
criação de espaços vazios, dentro dos quais existe e se move o espaço do jogo.

Bivouac deseja executar restaurações, criar espaços arriscados, verificar os


reflexos, a capacidade de saltar. Há o esboço de uma coreografia de balé
coletivo, que se difere de um público para outro, onde se fragmenta em
muitos a dupla “ator-espectador”, estando ambos muito perto e muito longe.
Compartilham o mesmo espaço, respiram o mesmo ar e pertencem a dois
mundos que não se sobrepõem, onde um pertence ao imaginário do outro
(Tradução minha)v.

Dois aspectos que caracterizam esta performance ficam claros no momento da


recepção: a itinerância e a contaminação. Ambos estão intimamente ligados em
Bivouac, não apenas pelo fato do grupo deixar claro seu desejo em termos estéticos, mas
pela potência de envolvimento que tais escolhas transparecem. A itinerância é marcante
na participação do espectador, pois o leva a questionamentos como: Por que eu estou
fazendo este trajeto e o que me leva a correr atrás dessas pessoas? Há uma espécie de
condução que não é guiada, didaticamente falando, mas deixa claro um tipo de
abordagem, cujo participante se sente convidado e parte integrante do acontecimento.
Para Lehmann (2007, p. 224), o objetivo principal deste tipo de encenação é menos a
amarração estética do todo, mas, sobretudo, a produção de experiência. Busca-se uma
interferência no espectador no intuito de que ele seja capaz de “mobilizar sua própria
capacidade de reação e vivência, a fim de realizar a participação no processo que lhe é
oferecida”.
A experiência como espectadora em Bivouac evidencia o “desvio performativo”,
apontado por Fischer-Lichte (2008), sofrido pelo teatro a partir dos anos 1960. Tal
redirecionamento não concebe mais o teatro como representação de um mundo ficcional

2
que o público deveria observar, interpretar e compreender. Para Fernandes (2011, p.
17), “a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às
demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte”, ou seja, a participação do
público ultrapassa a missão de interpretar e produzir significado frente a uma
performance. E “isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o
espectador interpretar, mas também não se pode dizer que as ações do artista per-
formativo apenas signifiquem alguma coisa” (idem). Nesse sentido, o papel do
espectador se amplia, pois assume uma posição de observador que é, ao mesmo tempo,
atuante e sujeito da fruição. Além disso, os espaços da subjetividade são incorporados à
ação da recepção, visto que o “contemplar” foi redefinido como atividade, “como um
fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas
associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado” (FISCHER-
LICHTE, 1988, p. 149).
O aspecto da contaminação é recorrente na cena artística contemporânea,
chegando a refletir, inclusive, uma crise identitária das linguagens, abalando suas
convicções epistemológicas. Nesse sentido, segundo Fernandes (ibidem, p. 11),
atualmente seria adequado falar em “experiências cênicas com demarcações fluidas de
território, em que o embaralhamento dos modos espetaculares e a perda de fronteiras
entre os diferentes domínios artísticos são uma constante”. Para a autora, ainda, é
importante pensar no espetáculo como evento que envolve performers e espectadores
numa atmosfera única, compartilhada, criando um espaço gerador de experiência que
vai além do simbólico. Esse ato transgressor da cena contemporânea é capaz de
reverberar fisicamente em seus participantes, de modo a criar um ambiente de “infecção
emocional”.
No caso do Générik Vapeur, a contaminação toma proporções que transbordam
a própria cena, pois sua inserção instaura fraturas profundas nas dinâmicas do espaço
utilizado. Tais rupturas tornam-se visíveis no nível do trânsito (automóveis e pedestres),
das paisagens sonora e visual, bem como nas nuances de relação com o cidadão que vai
estabelecendo ao longo do percurso, fazendo-se necessário pensar no espaço da cidade
como ambiente. Segundo o pesquisador André Carreira,

ambiente é o resultado da experiência cotidiana que se apropria do espaço


que nasce como projeto, mas se deforma para alcançar uma organização que
é sempre temporária. O ambiente se modula com uma durabilidade relativa,
pois sua dinâmica interna sempre conduz a novas conformações. (2008, p.
67)

É característico da performance possibilitar esse tipo de organização temporária,


usual do ambiente. Tais escolhas, que residem no nível da “abertura” ou
disponibilidade, relacionam-se com o espaço e com as atitudes internas, ou seja, no
nível da “cena”, igualmente. Nesse sentido, Glusberg (1987, p. 83) aponta para o fato de
que o elemento inesperado na performance pertence primeiramente ao artista e depois
ao espectador, reforçando a ideia de que o performer prepara-se para o acontecimento,
mesmo que sua estrutura não esteja rigidamente articulada.
O espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu
Escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido (2006)vi do grupo Teatro
que Roda (Goiás, 2003) apresentou-se durante o festival no Largo Glênio Peres, centro
da cidade de Porto Alegre. Uma breve sinopse da peça relata: “um executivo cansado de
sua rotina resolve mergulhar num mundo imaginário em busca de aventuras e emoções
e passa a acreditar ser Dom Quixote. Descendo de um prédio, numa corda, gritando por
sua amada Dulcinéia e se desfazendo de seu figurino de gravata, incorpora o cavaleiro

3
andante. Sua primeira tarefa é encontrar seu fiel escudeiro, Sancho Pança, missão que
acaba nas mãos de um catador de papel de rua. Mas não pode haver cavaleiro andante
sem seu cavalo. Sancho então constrói com sucatas um cavalo para seu amo no seu
carrinho de catador. Pronta a equipe, saem pelas ruas à procura de aventuras” (FTRPA,
2014)vii.
Neste espetáculo a itinerância se repete como traço marcante, entretanto, seu
percurso não conduz o espectador a um questionamento brusco sobre o deslocar-se.
Aliás, ele se torna quase imperceptível perante o grau de envolvimento que toma os
participantes da ação. Há um fio condutor claro no desenvolvimento do espetáculo, que
leva os espectadores a essa sensação de deslocamento. O principal elemento que integra
tal fio é a relação que vai se construindo ao longo do espetáculo entre Dom Quixote e
Sancho Pança e, consequentemente, entre este último e o público. A oscilação contínua
entre ficção e realidade, feita pelo personagem-ponte (Sancho Pança), coloca o
espectador numa posição dual, conduz a um lugar em que persiste a dúvida e alimenta a
integração. Para Silva (2011), Sancho está sempre lembrando ao público sobre o caráter
ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com os
espectadores. “Suas evoluções junto ao público são alguns dos momentos mais felizes,
pois, bebendo das fontes farsescas e histriônicas da tradição popular, confere ao
espetáculo uma deliciosa comicidade” (idem).
A noção de invasão fica evidente na montagem, por que há uma mudança, não
apenas na relação com o espaço urbano, mas também na relação com o próprio
espectador. Podemos dizer que o espectador passa por dois processos de transformação
ao se deparar com um tipo de espetáculo que se inspira na invasão. Uma, quando ele
deixa de ser pedestre e passa a ser um espectador acidental da representação; e outra
quando ele, “convidado” a ser espectador participante, se dispõe a entrar no jogo da
ação e ser surpreendido pela forma como passará a redescobrir espaços próprios de
convívio urbano e social (JÁCOME, 2013). Dom Quixote se concretiza invasor por que
propõe uma ruptura lúdica no cotidiano, oferecendo ao cidadão uma possibilidade de
jogo, um momento de quebra na obviedade do dia-a-dia. Alguns dos mecanismos
utilizados na encenação que contribuem para tais ressignificações são as instalações em
prédios e monumentos, o uso da técnica do rapel e a inserção de uma escavadeira, onde
as “Dulcinéias” são conduzidas.
É importante pensar que a contaminação como tendência contemporânea está
presente em ambos espetáculos, de formas peculiares, mas simultaneamente similares,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com o espaço urbano e com
o público. A companhia francesa aproxima-se do gênero performático enquanto o grupo
goiano tem sua escolha claramente apontada para o teatro. Não tanto uma questão a ser
respondida, mas uma provocação se faz pertinente: ainda podemos ter fronteiras bem
definidas entre linguagens ou esse é um mecanismo de sobrevivência utilizado pelos
grupos frente ao sistema? Lehmann (2013, p. 874-875) insiste na improdutividade da
discussão sobre as definições, para o autor:

É óbvio que o teatro, assim como outras práticas artísticas avançadas, adotou
elementos da performance (autorreferencialidade, desconstrução de
significado, exposição do mecanismo interno do seu próprio funcionamento,
mudança da atuação teatral para a performática, questionamento da
estrutura básica da subjetividade, repúdio – ou pelo menos crítica e exposição
da representação – e iterabilidade), enquanto a performance, inversamente, se
tornou teatralizada de muitas maneiras.

4
Ao assumir o desvio performativo como norte da situação é válido questionar se
o discurso do “deixar-se experimentar” como prioridade se sustenta, principalmente no
que diz respeito ao lugar do público. Outras questões reforçam a reflexão: “Em que
medida estas ações afetam a percepção estética e operam ‘regras culturais’ válidas?
Quanto atos como estes transformam os espectadores em performers eles próprios?”
(SOARES, 2008). Desgranges (2010, p. 50) complementa: “como compreender a
pertinência de uma proposta artística que convida o espectador a disponibilizar-se para
um modo de leitura que ultrapasse a barreira da dimensão lógico-racional, e se permita
saborear os descaminhos da experiência com a arte?”.
Pensar sobre o espectador que se torna performer é assunto delicado e requer
repensar o cidadão e a cidade para tentar compreender o espaço urbano da recepção.
Como meio de delimitar o espaço da discussão, por ora, introduz-se a noção de
urbanidade no intuito de refletir sobre o lugar do indivíduo urbano frente a tais
manifestações contemporâneas. Para Afonso (2007), a urbanidade não se refere nem a
uma delicadeza nem a um primitivismo do meio rural, mas “a uma virtude essencial que
define o homem atual na sua condição urbana”. Sendo considerada assim, a urbanidade
apresenta-se como a “condição urbana da humanidade”, incluindo todos que vivem
neste meio, seja conscientemente ou não. Nesse sentido, a urbanidade alcança além do
contexto cultural, social ou estrutural de uma cidade, podendo ser compreendida como o
modo com que os habitantes de um lugar se relacionam segundo seu espaço e tempo.
A relação do indivíduo com a cidade, refletida nos seus traços da vida cotidiana,
referida pela urbanidade, é, muitas vezes, turbulenta, pois reflete suas contradições. Para
Desgranges (2010, p. 54), “o indivíduo lançado no isolamento de seus interesses
privados, vê a multidão como ameaça constante, ou pela inexistência de um espaço
público convidativo, ou pela perda da singularidade mediante a estandardização de
comportamentos”. Nesse conflito reside o papel da arte como resistência aos modelos
de interação oferecidos pelo sistema, cujos interesses permeiam processos de
homogeneização dos espaços da urbe. Para Scocuglia, refletir sobre a cidade implica,
necessariamente, atravessar outros campos do conhecimento como a sociologia, a
antropologia e as artes.

Há uma necessidade crescente de aproximação entre áreas sensíveis desses


campos de conhecimento, no sentido da valorização das subjetividades, das
práticas cotidianas, das experiências de copresença nos espaços urbanos e dos
instrumentos analíticos e conceituais que podem fundamentar uma
compreensão da experiência de vida nas cidades contemporâneas a ser
rebatida na prática de intervenção e na concepção de novos espaços e cidades
mais humanitários. (2011, p. 412)

É indiscutível a pertinência da atuação das manifestações artísticas no espaço


urbano, no entanto, é preciso investigar as formas de percepção que o homem moderno
exerce, a partir do que Walter Benjamin chamou da perda da capacidade de experiência.
No caso da cidade contemporânea, a falta da possibilidade de experiência pode estar
ligada aos hábitos da vida cotidiana, suas demandas, ritmos e funcionamentos que
instauram caminhos conhecidos e reconhecidos pela normatividade. “O estímulo
cotidiano frequente a uma atuação hiperbólica da consciência deixa a psique pouco
disponível para a percepção sensível, que ultrapasse o mecanismo meramente
instrumental” (DESGRANGES, 2010, p. 55). A arte assume, então, o lugar das brechas
e lacunas, buscando irromper no caos momentos em que “o consciente seja
surpreendido, pego desatento”. Para Desgranges (idem), “as alterações na percepção
solicitam procedimentos artísticos modificados para provocar a irrupção da memória

5
involuntária”. Nesse sentido, o teatro e a performance na cidade surgem para sugerir ao
individuo novas formas de vivenciar o urbano, para apresentar possibilidades do “se
perder”, colocar-se num risco não-habitual, explorar o poético como desconhecido,
contrapondo o sujeito ao modo usual e operacional de “ver, sentir e pensar o mundo”.
Diante das possíveis realidades as quais o cidadão se expõe atualmente, pensar
acerca dos efeitos da contaminação na cena e sua reverberação no ato de recepção
reflete, igualmente, na discussão sobre a criação de espacialidades. Desse modo, ao
pensar sobre as manifestações artísticas na cidade é imprescindível reconhecer que, as
mesmas, estão embutidas naturalmente de posicionamentos políticos, a partir do
momento em que decidem interferir na lógica da cidade. Tais atos criam intromissões e
estranhamentos produtivos, desvelando faces desconhecidas do espaço urbano. Para
Carreira (2008), apesar de imbuídas por gestos políticos, tais manifestações não nascem
sempre impulsionadas por uma motivação politizada claramente definida, contribuição
que aponta para um redirecionamento do senso comum em relação aos “papéis”
desempenhados pela arte urbana.
Nesse sentido, é válido enxergar o exercício do “teatro performativo” na cidade
na sua potência máxima de intercâmbio com as vozes do próprio espaço, intensificando
trocas com a arquitetura, as vias principais e periféricas, seus ritmos e usos. A partir
desse posicionamento, compreende-se a prática do teatro/performance na cidade como
elemento essencial de interferência na urbanidade, criando novas espacialidades e novos
lugares. Sobre esse exercício, Carreira (2008, p. 71) comenta:

“Desorganizar” o fluxo da rua através das linguagens teatrais é buscar a


construção de Lugares (AUGÉ, 1994), pois implica a redefinição de relações
existentes entre o cidadão e os espaços da cidade de modo a territorializar
estes sítios, redefinindo sentidos antropológicos ou relacionais.

A arte urbana desempenha, assim, papel crucial no pensamento/ação sobre as


relações. Tal responsabilidade é notável nos espetáculos analisados, pois a noção de
cumplicidade que vai se configurando entre ator e espectador confere força, no sentido
de potência, para seus participantes que, mesmo questionando-se em alguns momentos a
respeito das condutas tomadas, levam e deixam-se levar pelo acontecimento. Nestes
casos, o cidadão, pedestre acidental ou espectador assume o papel de compositor do
espetáculo, mesmo que não abandone seu posicionamento de “público potencial”.

Referências

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6
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i
Apoio FAPESC; CAPES.
ii
Zalinda Cartaxo é artista visual, autora do livro Pintura em distensão e professora adjunta na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
iii
O festival, que já está na sua sexta edição, aconteceu de 20 a 29 de Abril de 2014 na cidade de Porto
Alegre – RS.

7
iv
GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <http://ftrpa.com.br/bivouac-
franca-marseille/>. Acesso em: 02 jul. 2014.
v
“Bivouac redonne envie de courir, de frôler, d'esquiver, De vérifier ses réflexes, sa capacité de saut, de
volte-face. De là s'esquisse la chorégraphie d'un ballet collectif, différent d'un public à l'autre, qui se
fragmente en autant de pas de deux comédien-spectateur. Etre à la fois très près et très loin. Partager le
même espace, respirer le même air et appartenir à deux univers Qui ne se superposent pas, dont l'un est
l'imaginaire de l'autre”. GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em:
<https://www.facebook.com/Generik.Vapeur?fref=ts>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vi
TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Histórico. 2008. Disponível em:
<http://teatroqueroda.blogspot.com.br/p/historico.html>. Acesso em: 02 jul. 2014.
vii
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escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido). 2014. Disponível em:
<http://ftrpa.com.br/das-saborosas-aventuras-de-dom-quixote-de-la-mancha-e-seu-fiel-escudeiro-sancho-
panca-goiania-go/>. Acesso em: 02 jul. 2014.

8
Espaços à Margem do (I)material

nas performances de Guillermo Gómez-Peña

Cláudia Simone Oliveira do Nascimento – Mestranda do PPGT/UDESC

Stephan Arnulff Baumgärtel - Professor Orientador, PPGT/UDESC

Resumo:

Este ensaio pretende abordar violência e neocolonialismo como espaços que


se abrem nas performances do mexicano Guillermo Gómez-Peña, e de seu
coletivo La Pocha Nostra. Sua condição (i)material consiste em considerar o
espaço não apenas como um ‘topos’ geográfico, territorializado, embora o
entrelaçamento ‘com’ este se coloque como ponte para discutir a imaterialidade
das relações da arte com as estruturas de poder, e os vários desafios de
gênero, raça e etnia. Nesse sentido, a margem (aqui) estabelece uma relação
fronteiriça entre materialidade e imaterialidade. A teatralidade é abordada de
forma expandida, relacionada a questões de performatividade, inerentes às
ações de performance, no entrecruzamento arte e vida.

Palavras-chave: Gillhermo Gómez-Peña. Performance. Neocolonialismo.


Teatralidade. Peformatividade.

estimado compañero

del otro lado del espejo

there’s really no danger tonight

estoy completamente disarmado

the only real danger lies

in your inability to understand me

in your unwillingness to trust

(GOMÉZ-PEÑA, performance text from


Border Brujo, 1989)
O imaginário da distância espacial, que para Homi Bhabha (2003)
implica viver de algum modo além da fronteira de nossos tempos, aqui se
estabelece como margem, e dá relevo às diferenças sociais e temporais que
interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade, e se mostra na
imaterialidade das performances do mexicano Guillermo Gómez-Peña. Com a
finalidade de explorar novas formas para apresentar idéias e criar um espaço
fronteiriço imaginário, onde coexistem teoria e prática, loucura e clareza,
ativismo e arte, Guillermo Gómez-Peña e seu coletivo, o La Pocha Nostra,
estabelecem sua poética. Num diálogo constante com os acontecimentos de
sua vida e do mundo, ele cria performances que muitas vezes são respostas à
realidade que o acomete, ou o modo como a percebe, fazendo emergir a voz
do deslocado, do marginal, do diferente, saldos de uma cultura de violência,
que se estrutura sob o poder de uma fala dominante, emitida no espaço que o
circunscreve pelo anglo-saxão.

Artista que emergiu na segunda metade do séc. XX, o mexicano


Guillermo Gómez-Peña, que há trinta anos vive nos EUA, é descendente direto
de todos os movimentos da avant garde que abriram este século, mantendo
vivos e atualizados diversos procedimentos vanguardistas e, em especial, seu
anseio em desmitificar comportamentos codificados, se utilizando da linguagem
da arte da performance como meio de discussão da realidade e articulação das
diferenças. Inspira-se na alteridade, na cultura marginal (que ele chama de
transcultura proletária, como um outro tipo de cultura global que emerge
organicamente da base das comunidades e das ruas), e também na cultura do
mainstream.

Desde o início de sua carreira, Goméz-Peña cruza linhas culturais de


modo irônico e, algumas vezes, exagerado, buscando no humor e na
irreverência munição para desmitificar e desarmar ‘expressas contradições’ e
‘justaposições dos seres’, segundo ele, emanados pela cultura dominante.
Questões que ele coloca a partir do seu modo de fazer arte, que envolve
também críticas e reflexões próprias ao mundo artístico. A partir de uma
complexidade provocativa, que considero central no seu trabalho ou o seu
modo de incorporar a hibridez, Gómez-Peña investiga as questões de raça,
multiculturalismo, gênero e linguagem, também as de fronteira, religião e
política, imbricadas a uma exploração da performance como expressão
artística.

Raça, gênero, geração, localidade geopolítica, orientação sexual, são


para Bhabha (2003) consciência das posições do sujeito, que se desdobra e ao
mesmo tempo se afasta das categorias organizacionais básicas de ‘classe’ ou
‘gênero’. Em função disso, Bhabha considera crucial, do ponto de vista político,
ultrapassar as narrativas de subjetividades originárias e focalizar no ‘entre-
lugares’ onde se fundam os momentos ou processos de articulação das
diferenças culturais. Habitar um entre-lugar marca uma das características da
hidridez e se estende aos artistas que vivem nos interstícios das culturas,
reinventando suas vidas e práticas. Como no caso do artista migrante que a
partir do ‘não território’, através da arte híbrido-fronteiriça do performático,
assume uma atitude ante o mundo. É a partir deste lugar que a voz de
Guillermo Gómez-Peña emerge.

Eu opto pelo fronteiriço ... vivo justo na fenda de dois mundos,


na ferida infestada ... a quatro milhas do principio da fronteira
do México com os Estados Unidos ... na minha multi-realidade-
fraturada, ainda realidade, co-habitam duas histórias,
linguagens, cosmogonias, tradições artísticas e sistemas
políticos drasticamente opostos (a fronteira é o enfrentamento
contínuo de dois ou mais códigos referenciais) ... nós nos
desmexicanizamos para mexicompreender-nos ... e um dia a
fronteira se converteu na nossa casa ... (Gómez-Peña,
Guillermo. EI Mexterminator. Antropología inversa de un
performancero post mexicano. Introd. y selec. Josefina Alcázar.
México: Océano, 2002, p. 48 apud Bhabha, 2003, p. 49.)

Para Bhabha (2003) o discurso colonial (e também do neocolonialismo)


fornece o aparato de reconhecimento e repúdio às diferenças, onde a eficácia
do estereótipo e da discriminação se funda na ambivalência da ‘fixidez’. Para
ele a fixidez marca o significado da diferença cultural/linguística/racial, que em
contra partida abriga seu contrário: a desordem, a degeneração, a repetição.
Assim, o estereótipo se constrói num ‘lugar’ já conhecido, e produz os seus
discursos de alteridade. Discursos que engendram a dominação e são
corroborados em agenciamentos narrativos que se apoiam na linguagem. Em
função disso, ele propõe que o termo ‘cultural’ deve ser continuamente
redefinido, uma vez que, os termos do embate cultural, seja através de
antagonismos ou afiliação, são produzidos performativamente. Para Renato
Rosaldo (2009) o termo ‘cultural’ refere-se às noções específicas que
transmitem um sentido de validez humana, como a dignidade, o respeito e a
confiança. A presença de Latinos(as) nos Estados Unidos apresenta, segundo
ele, um desafio para a noção de cidadania monosujeito, uma pessoa que fala
somente inglês e vive unicamente em relação à uma herança ‘anglo-saxã’. E,
por ameaçarem os grupos anglo-saxões, as pessoas bilíngues, fluentes em
inglês e espanhol, são envolvidas num processo de marginalização e exclusão
completa dentro dos EUA.

Além disso, Rosaldo (2009) sustenta que, juntamente com outros


grupos, os Latinos(as) desmentem a noção de que os Estados Unidos são
formados em um território delimitado dentro do qual as pessoas falam um
idioma e têm uma só cultura. Através de um processo que Rosaldo (2009)
chama de cidadania cultural, deve-se considerar as práticas culturais do dia-a-
dia através das quais os Latinos(as) exigem o seu espaço e o direito de serem
membros por inteiro da sociedade. Assim, o termo cultural proposto por
Rosaldo (2009), além de referir-se às avaliações subjetivas que as pessoas
têm de suas próprias situações, forneceria os graus de cidadania, sustentando
também os requeridos pelo Estado, que separaria os sujeitos de primeira
classe verso os de segunda classe. Bastante eficiente em seu alcance, esse
modelo codificador hegemônico se inscreve como poder dominante, e é onde a
arte da performance, em sua breve história, exerce um importante papel de
produzir uma contra-hegemonia.

Guillermo Gómez-Peña, nestes últimos 30 anos, tem contribuído para


debates culturais tanto de forma teórica, expressa em seus livros e artigos,
quanto encenando peças de arte de performance seminais. Dentro de uma
produção extremamente diversificada e intensa, Goméz-Peña aborda de
maneira subversiva a temática migratória e da identidade trans-cultural,
mostrando as relações entre os Latinos e os Estados Unidos, a partir do olhar
do marginalizado. Algo que podemos perceber desde suas primeiras
performances, e que aqui se fará presente na voz de Border Brujo (1987).
Nesta peça de performance Gómez-Peña fez uso da palavra falada para lidar
com a identidade de fronteira, criando uma ‘casa de cambio’ imaginária que
serviu de palco para 15 personas, com ‘línguas fronteiriças’ distintas,
encarnarem suas relações com o ‘espaço fronteiriço’ do imigrante que vive nos
Estados Unidos, laço que as une.

Border Brujo é um ritual linguístico e uma jornada performativa


através da fronteira México – estados Unidos. [...] O
relacionamento entre essas personas é o simbólico que cada
uma tem entre Norte e Sul; América Anglo e América Latina;
mito e realidade social; legalidade e ilegalidade; performance
art e vida. A estrutura é desnarrativa e modular, como a
experiência de fronteira. É uma fusão de técnicas pós-
modernas com vozes populares, confrontadas de forma
dialética com outras pesquisas, que envolvem as mídias, o
turismo, a cultura pop, grupos específicos de imigrantes que
vivem nos EUA (como os Pachucos), e também jargões
políticos. (Gómez-Peña, 1991 - Tradução minha.)

Durante a ação Gómez-Peña encarna novas vozes em ‘inglanhol’ e


‘línguas indígenas esquecidas’, intercaladas com metacomentários de poesia
épica. Seu roteiro (um work in progress) foi escrito em Inglês, Espanhol,
Espanglês, gringoñol e vários compostos de "línguas-robô". Border Brujo
apresenta uma das versões da antropologia reversa, proposta por Gómez-
Peña, na medida em que os monosujeitos perdem seu status de privilegiados,
pois não entendem as ‘piadas’ em espanhol nem as que misturam espanhol e
inglês. Nessa peça, carregada de humor ‘chicano’, Gómez-Peña narra a
experiência do artista imigrante e os vários desafios que enfrenta, desde
questões simbólicas que dizem respeito à sua raça e etnia e ao
neocolonialismo, aos vários incidentes que os imigrantes sofrem dentro dos
EUA, com relação ao vencimento e renovação do visto de permanência no
país. Além do texto, Goméz-Peña fez uso de um altar portátil que funcionava
como cenografia e que, como seus trajes feitos à mão, eram compostos de
objetos pseudo-étnicos, tchotchkes turísticos e lembranças religiosas baratas.
Gerard Garza (1990) escreveu sobre uma reencenação dessa peça
quando esteve em cartaz em Los Angeles (janeiro de 1990), com Border Brujo
II, comentando que:

In Guillermo Gomez-Pena's "Border Brujo II", the brujo, or


shaman, labels the border region the ultimate ‘casa de cambio’
- a full-service house of exchange where "anything can change
into anything". Dollars can be changed into pesos and the brujo
can change from Aztec to high tech without missing a beat.
That is precisely what happens, and rather stunningly, in
Gomez-Pena's new, multimedia version of his twisted border
travelogue, which incorporates a video by Isaac Artenstein.

Com Border Brujo, Goméz-Peña torna-se um artista da performance


migrante, passando dois anos na estrada, indo de cidade em cidade, de país a
país, voltando algumas vezes para Los Angeles e reproduzindo os padrões
migratórios da diáspora mexicana. Durante a viajem, incorporou novos textos,
adereços e figurinos para sua peça de performance, acrescentando ao trabalho
um caráter efêmero e processual contínuo. Gómez-Peña explora a cultura
como um vetor consciente por meio de jogos que se inserem na visão de
mundo dos seus espectadores. Uma produção que torna evidente uma
politização da cultura, num processo de reconhecimento de diversas
subjetividades, permitindo o contato com o outro, com o diferente, com o
marginal, reconhecidos em meio a uma trama cultural complexa.

Referências

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço


de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalvez. 2 reimpressão. Editora UFMG, Belo
Horizonte, 2003.

GARZA, Gerard. Performance Art Review: 'Border Brujo': From Aztec to


High Tech. County Arts Editor. From Los Angeles Times. San Diego, January
20, 1990.
GOMÉZ-PEÑA, Guillermo. Ethno-techno: writings on performance, activism
and pedagogy. Edited by Elayne Peña. Routledge. New York, 2005
_______________________ Border Brujo: A performance Poem (From the
Series “Documented/Undocumented”. The Drama Review – TDR (1988).
Published by: the MIT Press. Vol. 35, n. 3. New York, Autumn, 1991, pp. 48-66.
_______________________ The life and work of Gómez-Peña, A new multi-
media lecture by Gómez-Peña. Multiply Journeys. Archived by Emma
Tramposch. Disponível em: http://www.pochanostra.com/projects/

ROSALDO, Renato. Cidadania Cultural. In. Cidadanias em cena: entradas e


saídas dos direitos culturais. Textos Acadêmicos do VII Encuentro Hemispheric
Institute, Universidad Nacional de Colombia, 2009.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
POÉTICAS DA CENA: ENTRE ARTAUD E BECKETT

Dario Ferreira de Albuquerque;


Orientador: Hector Andres Briones Vasquez;
Instituto de Cultura e Arte – ICA;
Universidade Federal do Ceará – UFC.

Resumo: Este artigo tem como propósito falar sobre poéticas cênicas a partir do pensador
teatral e poeta francês Antonin Artaud e o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Dois
pensadores que conseguiram criar linhas de fuga capazes de fazer o teatro saltar pra além
do seu tempo. Coloco em discussão os pontos de convergência entre os dois nos modos de
conceberem seus pensamentos no que tange a encenação. Pretende-se delinear as
possibilidades poéticas que esses dois pensadores abrem à arte teatral na época em que
viviam e de que forma as questões que eles colocam para o teatro chegam a nós ainda hoje.

Palavras-chave: Poética Cênica; Encenação; Escrita-corpo.

Para pensar em poéticas cênicas tomo como ponto de partida as rubricas da peça
Esperando Godot de Samuel Beckett e o livro O Teatro e Seu Duplo de Antonin Artaud.
Neste artigo colocarei Beckett antes de tudo como um encenador, que leva o corpo cênico
para sua escrita, e transforma a palavra em corpo, antes mesmo de esta palavra sair do texto
para cena, a meu ver não há nessa relação uma importância maior da palavra diante da cena
ou da cena para a palavra, a escrita de Beckett consiste numa espécie de simbiose entre
corpo cênico e palavra-texto.

As formas contemporâneas de construção de uma obra teatral não estão mais


limitadas a acreditar que o texto dramático seja o progenitor da encenação ou que contenha
tudo o que se pode dizer com o espetáculo, esta foi uma das principais contribuições à arte
teatral realizadas por Artaud e Beckett. As obras desses dois pensadores de teatro vão
implicar todo um deslocamento das funções poéticas não só do teatro e também todo um
deslocamento epistemológico, de visão de mundo, de um logocentrismo a uma aceitação
das dinâmicas corporais e materiais da cena.

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Hoje se trata a obra teatral como fruto de todas as conexões materiais e imaginárias
criadas no espetáculo, colocando os sentidos dos elementos que ela comporta. O que está
sendo colocado nos nossos dias não é a negação do texto dramático, de alguma forma ele
não seja mais necessário para a encenação. De certo modo grande parte das encenações
possui um texto dramático, o que difere, é o fato deste não ser tratado como elemento único
e principal para a produção do espetáculo. Sendo que ao analisar o texto escrito em uma
montagem, faz-se junto a todo o espetáculo, não o tratando como um elemento
independente. Pois, características deste texto dramático podem ter sido explicitadas ou
não, para que falem o que se queira imprimir com o conjunto de elementos de uma obra.
Na A Encenação e a Metafísica, segundo capítulo do livro O Teatro e seu Duplo,
Artaud coloca:

Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que
não obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos,
tudo que não está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função
de suas possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa
sonorização) seja deixado em segundo plano? (ARTAUD, 2006:36)

A partir desta colocação é possível observar a problematização que o texto teatral


traz para as questões referentes à ideia de encenação que tanto inquietou Artaud, a ponto do
próprio tecer caminhos revolucionários, que tem como ideal um teatro ritual que segundo
ele seria uma espécie de fio condutor que religariam o teatro ao real que é a vida, como uma
volta ao ser humano na sua potencia vital. Artaud coloca a noção de crueldade na
introdução do livro O Teatro e Seu Duplo, fala que nós vivemos em um mundo com uma
quantidade excessiva de sistemas, de símbolos que procuram explicar o mundo, mas que
acaba nos afastando da vida, como se fosse um tipo de doença (o vocabulário de Artaud é
muito próximo da medicina, da doença, da cura). Uma decadência de uma civilização
européia, ocidental, que tem haver com esse excesso de sistemas simbólicos como se fosse
uma doença, esses sistemas não fazem mais a ponte com o real que é a vida, eles nos
protegem do real, dai a necessidade de uma estratégia artística que o real se imponha de
uma forma cruel:

Desdenhando qualquer visão separada da arte, qualquer versão daquela visão que
considera as obras de arte como objetos (para serem contemplados, para encantar
os sentidos, para edificar, para distrair), Artaud assimila toda arte a uma

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representação dramática. Na poética de Artaud, a arte (e o pensamento) é uma
ação — e que, para ser autêntica, deve ser brutal — e também uma experiência
sofrida, e impregnada de emoções extremas. Sendo tanto ação quanto paixão
desse tipo, iconoclasta bem como evangélica em seu fervor, a arte parece requerer
um cenário mais arrojado, fora dos museus e lugares legitimados de exposição, e
uma forma nova e mais rude de confrontação com seu público. (SONTAG,
1986:27)

Assim Artaud aponta formas objetivas para que o teatro atinja o público, mas
sublinha veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral que seja
fixa esta arruinará o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no
impedimento do movimento da cultura, do espírito.
O teatro de Samuel Beckett inclui tanto texto dramático como encenações que ele
mesmo assina. Através de sua escrita pungente e altamente elaborada, Beckett é posto no
grupo de grandes nomes da teatralidade, como Shakespeare e Racine. Ele dialogou com
todas as tradições, mas forjou uma dramaturgia própria, que já nasceu potente. O que deu
impulso ao teatro de Beckett foi sua experiência na direção: nos anos 60, ele passou a
dirigir teatro e escrever sua dramaturgia com um sentido mais precioso do espaço e do
tempo cênicos. É dessa observação que surge um criador que, muito mais ligado com a
materialidade da cena do que com temas relativos à literatura, passou a escrever levando em
conta os elementos cenográficos tanto quanto os conteúdos das falas de seus personagens.

Um ponto muito interessante da escrita de Beckett é a falência da linguagem, crítica


às convenções do realismo formal, às formas de se construir qualquer representação, pela
incomunicabilidade que marca aos seus narradores. A dramaturgia de Beckett nos tira do
lugar comum. Machuca porque aponta para a falência de uma linguagem que já não é mais
capaz de representar. Seus personagens se debatem por questões sem sentido, e é esse
debater de um corpo sobre nada aparente que torna nosso riso, um riso incomodado.
Beckett aponta para as contradições. Por isso, ao final de Esperando Godot, Vladimir e
Estragon dizem: “Vamos embora”, mas permanecem parados no mesmo lugar. As questões
de Beckett chegam aos tempos do hoje, ainda com um incomodo apavorante.

Esperando Godot é a formulação dramática da própria situação humana. Falta-lhe


tanto personagens quanto enredo, no sentido convencional do mesmo, porque ela ataca a
sua temática num plano em que nem os personagens nem o enredo existem. Os personagens
pressupõem que a natureza humana, a diversidade da personalidade e de individualidade, é

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real e tem importância; o enredo só pode existir no pressuposto de que os acontecimentos
no tempo têm alguma importância. Esse é o pressuposto que a peça põe em dúvida. Pozzo e
Lucky, Vladimir e Estragon não são personagens, mas corporificações de atitudes humanas
básicas, um pouco com as virtudes e vícios personificados em mistérios medievais.
Segundo Luiz Fernando Ramos, quando Beckett começou a escrever teatro, já tinha
produzido uma notável obra como prosador. Seus estudiosos chegam a divergir sobre se
não seria mais significativa a sua produção estritamente literária que a teatral.

De qualquer modo, da perspectiva do teatro, Beckett é um artista completo. Tanto


ante a tradição dramática dita literária, como ante a tendência contemporânea de fazer da
construção do espetáculo o centro de referência estilística. Beckett ainda é o interlocutor
respeitável, que de seu próprio e autônomo universo informa uma dramaturgia
eminentemente cênica. Parafraseando Luiz Fernando Ramo, por um lado, Beckett tem um
verdadeiro culto à palavra. Por outro, Artaud escreve que “o mais urgente não me parece
tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e
da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja
força viva é idêntica à da fome”.

Artaud defende uma “poesia no espaço, independente da linguagem articulada” cuja


encenação seria metafísica contra “a ditadura exclusiva da palavra”. Dois posicionamentos
bem distantes. Porém, havia em ambos a busca de uma nova escrita que tivesse por objetivo
aglutinar a materialidade mesmo da cena. Se Beckett procurou trazê-la a partir das palavras
e principalmente através das rubricas, Artaud, por sua vez, buscava uma palavra que fosse
desconstruída cujas possibilidades de realização não estavam no cérebro do autor, mas na
própria natureza, no espaço real. Segundo Ramos, "Beckett buscou inscrever na palavra o
corpo da cena. Artaud pretendeu revelar o corpo da cena com a invenção de uma nova
palavra. (RAMOS 1999: 24)

A maneira como Beckett desenvolve sua poética cênica é uma possível maneira para
confrontá-lo com Artaud, e mesmo para colocá-lo diante de encenadores deste início de
século. Beckett costuma ser vinculado a uma tradição literária. Essa aproximação de sua
dramaturgia do drama no sentido clássico o colocaria numa posição mais conservadora
quando comparado a Artaud. O encenador francês, com seu teatro ritualístico, anti-
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aristotélico, ensejaria uma teatralidade mais aberta, Beckett, com suas peças, propõem outra
forma textual que foge do formato classicista, em que a palavra é o que dá o movimento, e
o pensamento racional, a garantia de entendimento do drama. Nos textos para teatro de
Beckett e poética cênica é colocada nas rubricas. Nem Beckett e muito menos Artaud
dependem do entendimento racional do espectador, e nisso os dois discordam
fundamentalmente com a poética de aristotélica. Em Artaud e Beckett a o texto se equipara
aos aspectos que são comuns na cena. No caso de Beckett, quanto mais ele se familiariza
com o palco e com a direção, menos se interessa pelas questões racionais de um
pensamento. Em alguns casos, passa a ser mais importante para ele a velocidade com que
um ator diz certa fala do que a compreensão de sentido. A materialidade do palco, a luz e os
movimentos dos atores passam a ser elementos da sintaxe teatral. Nas rubricas de
Esperando Godot fica explicitado que Beckett põe sua escritura no corpo que compõe a
cena:

Dia seguinte. Mesma hora. Mesmo lugar. As botas de Estragon estão no centro do
proscênio, calcanhares juntos e bicos separados. O chapéu de Lucky no mesmo
lugar de antes. Vladimir entra agitadamente. Ele para e olha demoradamente para
a árvore e de repente começa a andar febrilmente pelo palco. Ele para diante as
botas, pega uma delas, a examina, cheira, manifesta asco e a coloca
cuidadosamente no lugar. Vai e vem. Para na extrema direita e mira distante,
cobrindo os olhos com uma das mãos. Vai e vem. Para na extrema esquerda,
como antes. Vai e vem. Para repentinamente e começa a cantar em voz alta.
(BECKETT, 2007:53)

Nesse sentido, ele está próximo de Artaud, pois para Beckett e Artaud o texto ou
trama estão mais voltados para as potencialidades de significação da obra. Outro ponto de
convergência que surge da observação da obra de Beckett e Artaud está na relação à
teatralidade, que surge quando a obra de Beckett é confrontada com a vida e a Obra de
Artaud. Artaud negava a literatura dramática qualquer responsabilidade na concretização de
um novo teatro em que o corpo, por excelência, fosse à linguagem. Ele buscava uma
escritura física e tridimensional no espaço do teatro que resgatasse a dimensão ritual dos
tempos primitivos.

Beckett nunca associou o seu teatro à realização de um rito e fez de seus textos e
espetáculos momentos de intensa perplexidade, em que a dúvida e a ambiguidade, mais do
que qualquer crença, foram privilegiadas. Mas, na investigação do espaço cênico, ou das

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potencialidades de uma representação teatral, parecem convergir. Artaud pretendeu inventar
uma nova palavra para revelar um corpo cênico ainda não visto. Beckett procurou inscrever
suas palavras o corpo cênico visível, e com isso conseguiu pelas rubricas, criar partituras
contra as quais fica difícil qualquer ator de um texto seu se rebelar. Em Esperando Godot
chega a momentos em que as rubricas excedem a própria palavras. Ambos estão
trabalhando prioritariamente com a materialidade da cena e não com a articulação de
sentido propiciada pelo desenvolvimento de uma trama.

Artaud gastou grande parte de seus esforços para atacar a “representação teatral”
entendida como processo que submete a cena a uma ideia que lhe é exterior. No
teatro de seu tempo é hegemônica a ideia de que a encenação se reduz à
representação de um texto dramatúrgico, constituindo-se quase como a ilustração
de um produto literário. (QUILICI, 2004:71)

Artaud e Beckett atacaram a representação teatral veementemente, mas eles se referem à


relação de representação que era empreendida no tempo em que produziram suas obras, sabe-
se, como já foi relatado anteriormente, que muitas das criações dramatúrgicas de Beckett
(principalmente suas ultimas peças, as peças curtas) surgiram a partir do trabalho cênico que ele
desenvolvia como encenador, por tanto muitas das ideias dele, foram para o texto depois de
surgirem em cena. O que poderia ser ressaltado no caso seria a ideia que impulsiona um
dramaturgo como Beckett a colocar num um texto teatral, mas esse seria a mesma questão que
move um encenador a colocar uma ideia que por mais que não advenha de um texto teatral
materializado em cena.
O esgotado é muito mais que o cansado. “Não é um simples cansaço, não estou
simplesmente cansado apesar da subida.” Ocansado não dispõe mais de qualquer
possibilidade (subjetiva) – não pode, portanto, realizar a mínima possibilidade
(objetiva). Mas esta permanece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até
mesmo criado à medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a realização,
enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar,
mas o esgotado não pode mais possibilitar. “Peçam-me o impossível, muito bem,
que mais me poderiam pedir.” (DELEUZE, 2010:67)

Uma antítese que pode ser levanta entre Artaud e Beckett, é a maneira positiva de
Artaud vislumbrar no ser humano e respectivamente na sua cena ritual uma maneira de
transformação do homem e da sociedade através da arte, enquanto Beckett faz um registro
do mundo como sistema de coisas e do ser humano, esgotado, esfacelado e fadado ao
fracasso diante desse sistema, o homem para Beckett estaria em um esgotamento do ser.
Entender o que não tem sentido por vezes parece não ter sentido, criar relações e sentidos.

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Manusear a palavra, processá-la e transformá-la em torno de um pensar que tem por
contingência a fuga dos caminhos preestabelecidos da escrita, fuga que também pode ser
poética e potente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo, Martins
Fontes, 2006.
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio: Fábio de Souza Andrade. São
Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.
ESSLLIN, Martin. O Teatro Do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1968.
DELEUZE, Gilles. Sobre o Teatro. Tradução: Fátima Saadi, Ouvídio de Abreu e Roberto
Machado. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 2010.
QUILICI, Cassiano Sidow. AntoninArtaud, Teatro e Ritual. São Paulo. Annablume, Fapesp,
2004.
RAMOS, Luiz Fernando. O teatro total de Beckett, Artigo. São Paulo, Revista Bravo, Ano 2 -
nº24, 1999.

SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Tradução: Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. São

Paulo, Editora LPM, 1986.

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TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ILUMINANDO O DEFUNTO

Felipe Braccialli; Mário Ferreira Piragibe (orientador); Mestrado em Artes; Instituto de


Artes; Universidade Federal de Uberlândia;

O espectador entra no espaço cênico sendo guiado por duas atrizes com vestidos
velhos, maquiagem pesada e cabelos chamativos, arrastando com elas duas cadeiras. À
frente se encontram outras dez cadeiras arrumadas em um quadrado, onde dois espaços
vazios são completados com as cadeiras trazidas pelas atrizes. Posicionam-se no espaço
e constroem uma imagem que sustentam por um tempo. Com essa primeira cena
pulsando, fui convidado a criar a concepção de luz do espetáculo O Defunto (texto de
René de Obaldia, 1961) do Grupo Galhofas – MG (Uberlândia – 2010).
Ainda na graduação em Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, mas com
alguns anos já de prática em iluminação cênica, aceitei o desafio que seria: montar a
iluminação com o espetáculo quase pronto. Uma experiência que tentava evitar, mas
que no momento me agradou muito, considerando que a ideia inicial do diretor, Felipe
Brognoni Casati, era de uma área de representação sem delimitação clara, onde o
público poderia ficar em qualquer lugar, inclusive na própria cena. Essa ideia foi
descartada após os primeiros ensaios abertos, ao perceber que o público não reagia
como o esperado.
Comecei meu trabalho pela leitura do texto, repleto de falas e passagens
absurdas, tais como a em que se considera certo personagem um poeta após este contar
o motivo de haver violentado uma menina, matado a avó da esposa, entre outras coisas
e, mesmo assim, mulher e amante conversam como grandes amigas sobre a falta que ele
faz. O diretor decide seguir a lógica distorcida do texto em cena, por meio do emprego
de objetos ultrapassados e modernos ao mesmo tempo. Também decide por fragmentar
o espetáculo. Encadeia momentos que não se ligam uns aos outros por efeito de
causalidade. Mistura, também, no espetáculo informações pessoais das atrizes, sob a
forma de relatos e brincadeiras. Dando sempre a liberdade da improvisação para o
trabalho.
Nessa montagem diversos elementos influenciam o projeto de iluminação que
estava sendo criado. A direção, o cenário, os objetos cênicos, o texto, a disposição
espacial do público e a projeção (que já estava incluída em cena no momento em que fui
convidado para o processo). Estes foram fatores essenciais para se pensar os efeitos
usados na criação da iluminação. Para esse trabalho, os equipamentos técnicos da
iluminação foram além dos refletores encontrados em um teatro, se incorporando
também ao cenário, como por exemplo, uma das cadeiras foi instalado uma lâmpada
incandescente de 12V com uma cúpula de abajur rasgado em cimai.
Envolto em tantos elementos que compõem com a luz, o caminho tomado foi o
de fragmentar a iluminação, acompanhando a concepção do diretor, abordando uma
cena de cada vez. Cada cena estudada particularmente na sua lógica, onde a linearidade
se perde. Um cuidado tomado foi o de não deixar as cenas sem um eixo de ligação,
mesmo que a peça tenha sido montada em fragmentos. A dificuldade surge ao ter que
montar uma narrativa igualmente não-linear com a luz, ampliando os efeitos de
fragmentações pensadas para a cena, mas que se constituísse por completa e que se
complementasse enquanto a peça vai acontecendo. Uma iluminação que ao mesmo
tempo dê conta dos fragmentos das cenas individualmente, como do espetáculo como
um todo. Queria estimular a percepção do público para a luz de cada fragmento e, ao
mesmo tempo, do espetáculo completo.
Com essas informações iniciais, comecei a pesquisa da iluminação cênica por
dois lugares: o antigo, desgastado, quebrado e fragmentado; e o novo, o moderno, o
rápido e o simétrico. Iniciei fazendo um levantamento de imagens que se conectavam
com o espetáculo, chegando a duas vanguardas artísticas: expressionismo e futurismo.
A luz no trabalho de O Defunto é indispensável para o desenvolvimento da peça, já que
ela distorce o espaço e as personagens, conseguindo assim deformações para a cena.
Para os expressionistas a luz é imprescindível. É através dela que se
conseguem as deformações, os focos concentradores, as projeções,
sombras, manchas, flashes, contrastes fortes, variação cromática e
tudo mais que possa atuar como recurso de desnaturalização e
expressão do objeto, do sujeito ou da forma em si mesma. (de
Andrade et al., s/d.)

O contraste entre luz e sombra foi à primeira ideia a surgir do levantamento de


imagens, pesquisando principalmente por redes sociais artísticas tais como o Filckrii,
encontrei diversas imagens serviram de estímulo na criação da concepção. Essa
distorção proposta, compunha com o estado emocional das personagens, que vão se
desconstruindo durante a peça, revelando seus problemas e vontades.
O expressionismo também proporcionou a ideia de transformação do espaço,
deixando de pensar o palco todo como único e criando espacialidades diferentes para a
composição da peça. Luzes que criam diferentes ambientes fragmentando o espaço
cênico para assim compor com cena.
Em lugar da iluminação geral, os expressionistas preferem
iluminação por zonas, manchas e flashes, capazes de estabelecer
um isolamento do ator ou bailarino, separando-o do mundo
exterior. A luz então, tem o poder de estabelecer rupturas das
relações dos personagens. Acompanha a ação de modo
aparentemente arbitrário, já que seu objetivo não é imitar a
natureza, mas sim, articular a ação, concentrar a atenção,
acentuar a tensão e colorir a emoção do público. (de Andrade et
al., s/d.)

O cenárioiii, como já dito, são doze cadeiras estilizadas com diversos objetos
acoplados que, dispostos no espaço, formam corredores. A iluminação é criada para
ampliar esses efeitos de corredores propostos pela cenografia. Corredoresiv com luzes
difusas que traz a sensação de se perder na escuridão e no espaço. Esse efeito luminoso
pode ser usado de diferentes maneiras durante a cena, às vezes fazendo corredores
paralelos, outras vezes corredores perpendiculares, dependendo do que a cena pede. Os
corredores de luz não se mantêm unicamente no cenário, mas também contornando o
mesmo.
Ainda falando sobre os corredores e entrando no outro movimento de vanguarda
artística que influenciou o desenvolvimento do trabalho, o futurismo, foi pensada a
velocidade. Tanto na concepção, quanto na operação da iluminação, a velocidade é
sempre muito presente. Os corredores aparecem e desaparece rapidamente, a percepção
de profundidade que a movimentação da luz traz, as formas lineares trazidas pelos
corredores e focos de luz e a constante variação de intensidade da luz, tudo isso é
influencia direta do futurismo.
A paleta de cores escolhida para a iluminação do espetáculo partiu da conversa
com o diretor, que propôs a ideia de fotos velhas, de degradação pelo tempo, que já era
usado tanto no figurino e maquiagem quanto na cenografia. Cadeiras velhas,
consumidas pelo tempo, figurinos remendados e desgastados, uma maquiagem forte e
marcada de envelhecimento, objetos antigos, como uma maquina de escrever, são todos
elementos propostos pelo diretor. Com todas essas informações a primeira gelatina de
efeito cromático escolhida foi à chamada chocolate (Roscolux #99) que, colocada em
cena, tem efeito de uma iluminação para o tom de sépia, como uma foto envelhecida.
A base da iluminação foi feita com refletores sem nenhuma gelatina e com a
gelatina chocolate, mas para evitar que a cena se tornasse monótona e destacar
momentos específicos do espetáculo foram incluídos alguns efeitos com diferentes
cores. Valmir Perez diz que “deve-se levar em consideração que a luz, sendo também
elemento de linguagem, pode ter seus matizes alterados para compor o psicológico da
cena” (PEREZ. 2007) pensando nisso as gelatinas são usadas para transformar a cena
que se segue trazendo um novo ambiente e sensação para o palco. Em um momento
específico, em que as atrizes estão falando sobre a manipulação do personagem sobre
quem conversam, de suas traições e agressões, seguido de assassinato, é proposto com a
luz um efeito de estranhamento para criar um ambiente mais suave, quase onírico.
Nesse momento, a iluminação foi inspirada no quadro Chuva de Oswaldo Goeldi (1957)
onde há predominância de cores frias, deixando em destaque o vermelho do guarda
chuva. Para destacar a lã vermelha que está ao fundo da cena esticada entre as duas
atrizes foi utilizada uma gelatina azul (roscolux #80), em disposição de corredor ao
fundo da cena, com um leve toque de refletores sem nenhuma gelatina. A utilização
desses refletores sem filtro de luz em baixa intensidade é para que exista luz chegando à
lã na frequência do vermelho, pois ao colocar a gelatina azul é filtrado todo essa
frequência do espectro de luz.
Em outro momento, um refletor fazendo um foco a pino (90° do chão) recebe
uma gelatina de correção de luz (Roscolux #3206), essa gelatina serve para transformar
a temperatura de cor da luz, que, geralmente, é 3200K para 4100K. Esse efeito traz uma
cor mais fria para a cena, uma sensação de angelical, de pureza, de proteção. O foco de
luz é usado quando as atrizes contam a história de um estupro, falando da poeticidade
do personagem ao escolher sua vítima pelo tom negro de seus cabelos. Esse contraste
foi utilizado para transmitir tanto a frieza com que o personagem lidou com a situação,
como também, a calma que o assunto é tratado pelas personagens em cena. Compondo,
também, com a imagem criada pelas atrizes, onde, ajoelhadas, seguram e arrebentam
um colar, deixando todas as suas pedras caírem pelo espaço, que mostra apenas esse
foco de luz acesov. As pedras vão caindo no chão e desaparecendo no espaço, enquanto
as duas atrizes, agora sentadas, observam calmamente a situação.
Além da utilização de gelatinas para efeitos cênicos, também foi inserido, no
jogo da iluminação, focos de luz recortados que reforçam os corredores construídos pelo
cenário e pela iluminação base da peça. Um recurso, utilizado diversas vezes, é um foco
de luz em duas fileiras de cadeira verticais, recortados em um retângulo, desconstruindo
assim o espaço real da cena e criando um fragmento espacial que é usado, tanto para
colocar as personagens em um lugar atemporal, como também para criar um
distanciamento da temporalidade que se segue em cena, trazendo assim uma informação
que não é das personagens que se encontram em um tempo e espaço específico.
Outro recorte de luz é usado para montar em um espaço a ideia de zoom da cena,
aproximando duas cadeiras do público e construindo um aprisionamento à frente do
cenário onde as atrizes ficam passivas a sua limitação espacial. Com esse efeito as
atrizes retomam o lugar inicial da cena, mesmo estando espacialmente dele. Seria como
um zoom de câmera fotográfica, que aproxima a visão espacial focando em algo
específico, no caso as duas cadeiras iniciais.
Também foram inseridos focos de luz circulares criando assim um
distanciamento e um estranhamento da cena, considerando que durante a maior parte do
espetáculo a iluminação acontece em corredores e recortes retangulares. Esses focos de
luz se encontram nas extremidades do espaço de cena iluminado, como pequenos nichos
que trazem informações paralelas a cena ou ligadas às atrizes.
O primeiro foco de luz circular é usado quando o diretor propõe um
distanciamento da cena teatral. As atrizes desconstroem as personagens e se dirigem ao
público para contar um relato pessoa, com isso o foco de luz fica em baixa intensidade,
quase impossibilitando de se ver, enquanto uma lanterna posicionada de baixo para
cima ilumina minimamente as atrizes e a pessoa do público convidada a participar da
cena. Outro foco de luz redondo é usado para quando uma das personagens está
refletindo sobre um suicídio e tentando se afogar. Cada foco de luz toma diferentes
funções em cena, sempre desconstruindo o espaço retangular que é instaurado,
transformando a percepção do tempo e do espaço da cena.
A peça tem uma particularidade trazida, tanto pelo texto como pela encenação,
que é a repetição. Não me refiro aqui à repetição como recurso de comicidade, mas a
repetição do espetáculo todo, o tempo, as ações e os diálogos são repetições das
personagens, como se elas fizessem a mesma coisa todos os dias no mesmo lugar no
mesmo horário, um ciclo que sempre se repete começo, meio e fim. O diretor propõe
fortalecer essa percepção da cena, arrumando todo o cenário, que foi desconstruído
durante toda a peça, ao final da apresentação, mudando unicamente o lado que o cenário
está posicionado, como se tivessem preparado tudo para o próximo dia, antes de irem
embora.
A iluminação se propõe a ser da mesma maneira, construindo espacialidades
que, ao final da apresentação, continuam funcionando, mesmo o cenário e a cena
virando de lado, já não mais de frente para o espectador. Um quadrado central com
refletores com gelatina chocolate de frente e sem nenhuma gelatina de contra luz,
complementado com corredores em volta desse centro que constroem um quadrado de
contorno com a luz toda feito com refletores sem nenhuma gelatina e ao centro um foco
de luz a pino com gelatina de correção. Com isso, qualquer que seja à frente da cena a
iluminação base do espetáculo está pronta, modificando só do velho para o atual
dependendo do lado, o que também compõem com a concepção do espetáculo.
Esses corredores que se encontram no contorno do centro da cena, são ligados
separadamente, e constroem com ele um caminho de luz a se seguir, que por mais que
você corra por ele, termina sempre no mesmo lugar. Uma volta interminável em torno
do assunto que as movem: o defunto. O cotidiano que sempre prende o passado que
ninguém quer esquecer. O velho e desnecessário continuando sendo a novidade do dia.
As personagens constroem um espaço imaginário em torno de uma pessoa, que há anos
já não tem mais vida, espaço esse materializado com a iluminação e a diferenciação de
cores proposto para a luz da cena.
Nesse momento a iluminação não se limita mais a iluminar o espaço cênico, ela
constrói esse espaço que começa a existir a partir disso, existindo muito além de
personagens e cenografia. Um lugar imaginário que ganha vida. Durante toda a peça a
iluminação constrói a cena e sua espacialidade, criando focos de atenção de luz,
destacando objetos e personagens, fragmentando a cena, ocultando, criando ambientes,
e deslocando as personagens no tempo e espaço da cena.
A luz, como já dito, foi pensada para compor as fragmentações das cenas
criando diferentes espaços e desconstruindo uma linearidade narrativa, mas ao
acenderem-se todos os corredores e focos de luz, surge um novo ambiente na cena, um
ambiente completo que será utilizado quase ao final do espetáculo, como se todas as
informações que foram sendo ditas durante a apresentação se juntassem em um único
lugar costurando cada fragmento que foi anteriormente dito, construindo assim toda a
história e o discurso dito em cena. Essa completude de luz que une todos os fragmentos
de cena compõe-se com a concepção do espetáculo e com o texto, que traz as
informações aos poucos e sem uma linearidade. A primeira vista parecem absurdas e
desconexas as cenas que são apresentadas, mas ao juntar todas as partes apresentadas
pela peça, a história vai se revelando, como se revela e iluminação.
A iluminação cênica é de suma importância para a construção do espetáculo, não
só ajudando a mostrar o que acontece em cena, como também revelando sensações,
emoções e sentimentos das personagens. Sem contar na desconstrução e construção
espacial que esse recurso possibilita e na ilusão que consegue criar em cena, distorcendo
formas, cores, profundidades, alturas e larguras. A pesquisa da iluminação cênica pode
potencializar a concepção que o diretor tem do espetáculo, do cenário, figurino e
maquiagem. Uma concepção de luz trabalhada em conjunto com o diretor e outros
designers amplia as possibilidades das soluções cênicas impostas à direção, potencializa
os recursos expressivos da encenação e as formas de representação percebidas em um
espetáculo teatral.

Bibliografia

ANDRADE, C. R. et al. A iluminação do ponto de vista do expressionismo.


Campinas.

PEREZ, V. Desenho de Iluminação de Palco: Pesquisa, criação e execução de


projetos. 2007. 145 f. Dissertação (Mestrado em Multimeios) - Curso de Artes,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.

i
Foto de Felipe Braccialli <https://www.flickr.com/photos/braccialli/9541547557>
ii
Disponível em <http://www.flickr.com>
iii
Foto de Felipe Braccialli < https://www.flickr.com/photos/braccialli/9285035265>
iv
Corredor também é um termo específico da iluminação cênica que trata da disposição
orientada de refletores, produzindo uma área de iluminação retilínea e contínua, geralmente disposto
cruzando o espaço de representação em atravessamento lateral, da esquerda para a direita, de acordo com
o ponto de vista do espectador.
v
Foto de Rafael Michalichem < https://www.flickr.com/photos/michalichem/8631235252>
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A REESCRITURA MÍTICO-ESPACIAL DE ÉDIPO REI POR


GIANFRANCESCO GUARNIERI E FERNANDO PEIXOTO

Jerônimo Vieira de Lima Silva

Yuri de Andrade Magalhães

A influência da tragédia grega se estende a diversos ramos do conhecimento humano


como a filosofia, a literatura e o teatro. O cinema, por sua vez, não se eximiu dessa influência,
e isso pode ser observado na adaptação da obra de Sófocles, Édipo Rei, que Gianfrancesco
Guarnieri e Fernando Peixoto fizeram para a televisão em formato “unitário”i. Contudo, vale
aqui salientar que Guarnieri e Peixoto fizeram além de uma mera adaptação para a TV. Em
sua obra podemos observar uma verdadeira recriação do mito de Édipo, relevando a grande
potência da criação dramatúrgica, na qual os autores redirecionam o mito de Édipo para um
aspecto político-social e cultural do Brasil: o comportamento autoritário dos latifundiários
num país marcado pelo coronelismo.

Podemos aqui, preliminarmente, verificar o caráter de denúncia na obra de Guarnieri e


Peixoto, o que nos remete diretamente ao teatro de Bertolt Brecht. Brecht, através de seu
teatro, busca, além do mero entretenimento, fazer com que seus espectadores sejam
“despertados” para melhor observar a realidade que os cerca. O dramaturgo alemão incita seu
público a adotar uma posição “distanciada” em relação ao que estava sendo representado em
cena. Essa posição distanciada exige do espectador uma postura crítico-reflexiva. Vale
salientar que isso não consiste numa eliminação da catarse, mas no uso da mesma para
desencadear a vontade de transformação. Outro dado importante é que, a fim de moldar-se aos
interesses teledramatúrgicos dos autores brasileiros, o herói é desmitologizado, uma vez que,
as referências sócio-políticas e culturais que sustentam todo o corpo do teletexto corroboram o
pensamento teatral de Guarnieri e Peixoto, pautados no poder de transformação a partir do
teatro.

A construção dramatúrgica de Guarnieri e Peixoto se apropria de diversas estratégias de


escrita que vão além do texto dramático: podemos nele observar elementos líricos e épicos
como o canto, frequentemente utilizado também por Brecht em seu teatro épico. Logo no
inicio do teledrama podemos observar que Édipo, neste caso um fazendeiro, está realizando
uma festa em sua fazenda para seus empregados. Nesta festa observamos a presença de dois
cantadores que, a pedido do próprio fazendeiro para dar continuidade à festa, decidem narrar a
trágica história de Édipo (o fazendeiro) através do canto:
Pois veja, patrão, que já me veio à memória uma estória muito boa
para ocasião. Estória de muito antigamente e de tempo e lugar tão
distante que nem sei onde se passa. Mas cabe tão bem nesse momento
que até podia se passar aqui, nestas paragens. E pra facilitá o
entendimento eu peço que todo mundo veja com jeito e cara dos que
estão presentes os personagens do meu conto. Com vosso perdão e
licença do poeta antigo aqui vai. (GUARNIERI, 1988, p.134)
Ao indeterminar o período exato em que se desdobra a tragédia no sertão, Guarnieri e
Peixoto vão revelando suas personagens dentro de um ambiente opressor e sem escapatória.
As primeiras cenas mostram uma família que tenta desesperadamente fugir da peste, as casas
dos moradores da fazenda sendo queimadas a mando do fazendeiro Édipo, e a retirada de um
grupo em direção a outras paragens. Em seguida, os que resistem à calamidade recorrem,
como última instância, ao beato Tirésias, acertando, assim, os passos com a tragédia
sofocliana.
Quanto à presença dos cantadores, constatamos aqui que Guarnieri e Peixoto evocam,
talvez involuntariamente, a figura do bardo cego, Demódoco, presente na Odisseia de
Homero. Na ocasião contida na epopeia de Homero, o bardo Demódoco canta as aventuras de
Odisseu sem saber que este se encontra presente no local ouvindo a canção a ele dedicada.
Diferentemente de Odisseu, o Édipo de Guarnieri e Peixoto impõe aos cantadores uma “ode”
onde exalta a si mesmo.

Por se tratar da versão moderna de um mito grego, faz-se necessário entendermos que,
desde a origem humana, os mitos exerceram importante função na relação entre os homens e
os deuses. Através dos rituais, estes homens estabeleciam uma aproximação e um diálogo
com o sobrenatural. Tomados como verdade, os mitos estabeleciam regras e normas de
conduta de tribos e povos. Esses mitos eram narrados de geração a geração, especialmente
entre os gregos, convertendo-os e transformando-os em função dos interesses políticos e
sociais da época.

Uma vez que a trajetória do herói trágico na representação das tragédias no palco grego
na Antiguidade poderia produzir efeitos significativos para a paideiaii, podemos entender que
Guarnieri e Peixoto também objetivam uma educação política para o povo brasileiro a partir
da teledramaturgia. O Édipo Rei, figura mitológica grega, é transmutada para a realidade
sertaneja na figura de um fazendeiro também chamado Édipo. Temos conhecimento de que o
“Édipo” sofocliano é um modelo universal de arrogância, intransigência, desmedida e
imprudência. Esse modelo universal de Édipo é apropriado por Guanieri e Peixoto para, de
certa forma, retratar o autoritarismo dos coronéis no Brasil.

Para proporcionar uma identificação direta do público brasileiro com a obra, Guarnieri e
Peixoto transferem o espaço de representação da polis grega para o sertão brasileiro. O
ambiente inicial onde ocorre o drama é descrito com riqueza de detalhes, determinando-o
como lugar típico de fazenda. Por um lado, as primeiras indicações espaciais se dão à noite,
no plano presente, enquanto que, a história contada pelos cantadores ocorre durante o dia, em
contrastes evidentes de alegria (festa na fazenda) e sofrimento (vida dos empregados da
fazenda de Édipo). Ressaltemos que os cantadores presentes na obra de Guarnieri e Peixoto
atuam como elementos epicizantes da obra onde os acontecimentos se desdobram a partir da
narração dos mesmos. Os contrastes espaço-temporais apresentados por Guarnieri e Peixoto
parecem propositais com o intuito de provocar reflexões em torno da trama. O autor rompe
com o clima de celebração no interior de um galpão da fazenda, lançando-nos num ambiente
hostil e triste, ocasionado pela peste, como podemos observar na descrição abaixo:

1. Galpão de fazenda. Interior. Noite.


Galpão fechado que serve para guardar instrumentos de trabalho (pás,
ancinhos, selas velhas, rodas de carroça, fardos, sacas de mantimentos,
rolos de corda, etc.). O ambiente está preparado para uma festa.
Bandeirinhas de papel coloridas, bancos de madeira sem encosto
enfileirados deixando espaço ao centro para a apresentação de dois
cantadores. O povo se aglomera nos bancos e de pé. No lugar de honra
estão o dono da fazenda e família[...] Os cantadores pretendem
terminar com a cantoria para uma mereciada pausa. (Guarnieri e
Peixoto, 1988, p. 133)

Na fazenda de Édipo, como também ocorre em Tebas, uma peste está assolando o lugar,
as famílias decidem inutilmente abandonar a região, enquanto um grupo de trabalhadores em
procissão, em meio a cantos e rezas, dirigem-se ao casebre do beato Tirésias. Observemos
aqui que a figura do beato Tirésias, diretamente apropriada do adivinho Tirésias da tradição
clássica, é um elemento que pode ocasionar uma identificação no espectador brasileiro e,
dependendo da ocasião, um “distanciamento”. Através do beato Tirésias, Guarnieri e Peixoto
colocam a figura da liderança religiosa que muitas vezes é-lhe atribuída um caráter
messiânico. O líder religioso é, muitas vezes, tido como uma pessoa de mais conhecimento,
sendo muitas vezes a única referência intelectual do lugar para as pessoas humildes e de
pouca instrução. Essa referência à figura do líder religioso pode ser observada com clareza em
figuras emblemáticas como Padre Cícero, no Ceará, Antônio Conselheiro, na Bahia, Jim
Jones, na Guiana, o beato Salú, em Roque Santeiro, dentre outras recorrências.

Tal como ocorre na tradição mítica grega, o beato Tirésias é tão cego quanto Tirésias da
mitologia grega. Através de sua obra, tanto Sófocles quanto Guarnieri e Peixoto, mostram que
Tirésias, apesar de sua cegueira, consegue enxergar mais do que aqueles que possuem o
sentido da visão. Tirésias vem para mostrar aos dois Édipos que o sentido da visão muitas
vezes limita o homem, fazendo com que este apenas possua uma visão estreita da realidade.
Essa visão limitada faz com que o homem acredite que pode enxergar a realidade em sua
totalidade. Imbuído dessa falsa consciência, o homem tende a adotar uma postura arrogante,
intransigente, e até mesmo negligente. Tal fato se dá tanto no Édipo de Sófocles quanto no
Édipo de Guarnieri e Peixoto.

Levando em consideração a cegueira de Tirésias, poderíamos


concluir que, quem não pode ver ali é Édipo. Se o dom da visão
está naquele que não pode ver, a verdadeira “cegueira” está
naquele que pode enxergar – Édipo –, uma vez que não consegue
perceber a desgraça em que está mergulhado. De maneira
metafórica, o drama edipiano põe luz na escuridão e acaba por
revelar as verdades ocultas. (SILVA, 2009, p.136)

Como ocorre no Édipo Rei de Sófocles, na obra de Guarnieri e Peixoto a peste que
assola a região é também fruto de um crime insolúvel. Neste caso, o crime é cometido contra
o antigo dono daquelas terras de Édipo. Antes de tornar-se dono das terras, Édipo se
envolvera em uma chacina que resultou na morte de seu próprio pai, sem saber que Laio era
seu pai biológico. O beato Tirésias esclarece que a peste apenas terá fim quando o autor do
crime for punido, revelando a Édipo que ele é o autor de tal crime. O Édipo de Guarnieri e
Peixoto se comporta como o Édipo de Sófocles, não dá crédito às palavras do beato, fazendo
com que os personagens se envolvam em um processo investigativo em que se descobre que
Édipo era de fato o algoz de seu próprio pai. Tal tomada de consciência faz com que Édipo,
tal como ocorre em Sófocles, fure seus próprios olhos. Mesmo mantendo os mesmos recursos,
há uma importante distinção entre os dramaturgos: se em Sófocles, o erro trágico de Édipo se
dá frente a sua soberba, o qual sofre os desígnios divinos, em Édipo de Guarnieri e Peixoto,
tal conduta do protagonista provoca as misérias materiais, refletidas nos trabalhadores da
fazenda. Para que aquela vida de privilégios se mantenha, é preciso o trabalho e a exploração
dos empregados que vivem sobre o controle do fazendeiro Édipo, revelando aí uma relação de
desigualdades sociais e econômicas.

A relação de coronelismo na obra se dá especialmente quando a população, sofrendo


com a peste, busca o auxilio de Édipo. A política assistencialista comum aos grandes
fazendeiros é representada na figura de Édipo. O fazendeiro, através dessa política, cria uma
relação de suserania e vassalagem como ocorria na Europa feudal. Tal relação reverberou no
Brasil, especialmente na relação que os senhores de engenho possuíam com seus escravos,
conforme Gilberto Freyre retrata em sua obra Casa Grande e Senzala. A relação escravocrata
descrita por Freyre é substituída por uma relação de “troca de favores”, onde o coronel presta
assistência a seus dependentes em troca de votos e apoio político, os quais contribuem para a
perpetuação do poder e da influência do latifundiário que, frequentemente, é tido pela
população rural como um “benfeitor”.

A religiosidade e fé do sertanejo são também postas por Guarnieri e Peixoto como um


fator de alienação que, conforme nos esclarece Nietzsche em seu Anticristo, a fé induz o
cristão a, muitas vezes, crer que os infortúnios são oriundos de desígnios divinos, atribuindo
as causas a fatores metafísicos, quando muitas vezes tais acontecimentos são ocasionados por
ações ou omissões humanas. Essa função de “benfeitor”, atribuída à figura do coronel, faz
com que muitas vezes o sertanejo tome partido do coronel em contendas que ameacem a sua
hegemonia, preferindo assim a manutenção do poder do coronel, uma vez que disso depende a
sua própria sobrevivência. Neste sentido, o coronel, parafraseando Sun Tzu em Arte da
Guerra, está imbuído de “Lei Moral”, que é o que faz com que seus súditos lutem por ele a
despeito da própria sobrevivência e a despeito de qualquer perigo.

A relação de vassalagem e suserania também é ressaltada por Nicolau Maquiavel, em


que o mesmo defende que o “príncipe” deve ser rigoroso, porém também deve ser generoso
com seus súditos. Essa relação pode ser facilmente constatada em Édipo de Guarnieri e
Peixoto, na qual o coronel, ao mesmo tempo em que presta assistência a seu povo, também o
explora.

Concebendo o seu Édipo na figura do fazendeiro, Guarnieri e Peixoto


possibilitam outra leitura crítica da conjuntura política da região.
Arraigada, até então, no poder hegemônico dos coronéis, o nordeste
assiste, ora passivamente, ora em lutas sangrentas, a ciranda deste
poder autoritário e quase vitalício. Da mesma forma que as regiões sul
e sudeste do país estabeleciam novas relações políticas e econômicas
dentro e fora do território nacional, as demais regiões brasileiras
lutavam para inserir-se no novo modelo econômico que brotava.”
(SILVA, 2009, p.119)

Em dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB


intitulada Édipo na TV: Guarnieri e as possibilidades de um teatro impossível,
Jerônimo Vieira de Lima Silva esclarece que quanto ao tratamento dado por Guarnieri e
Peixoto, a acomodação do mito grego ao universo mítico brasileiro, em especial, à
região nordestina, é uma estratégia que se dá claramente desde o inicio da trama.
Encontramos, também, outro dado interessante dessa prerrogativa mítica: percebemos
que o cantador estabelece a possibilidade de a tragédia grega ser incorporada à realidade
do sertão. Ambas as regiões estão envoltas em questões míticas e místicas, porém, em
perspectivas distintas.
Silva também esclarece que, no caso do ambiente sertanejo, este excede aos
problemas de ordem política e social ali apresentado, mostrando, também, questões
mítico-religiosas. De acordo com o cantador, bem que aquela trama grega “poderia
acontecer nestas paragens”, reforçando a própria ideia que se estabeleceu ao longo da
história sobre a região nordestina, fazendo-nos crer que a mesma resume-se ao semi-
árido e aos seus problemas subseqüentes.

O autor da dissertação também aponta que, da mesma forma que se construiu o


“mito do gaúcho”, ou o “mito do carioca”, o mesmo ocorreu com o nordestino.
Parecendo que o nordestino foi condenado à miséria e às desditas divinas, tornando-se a
região uma “terra amaldiçoada” em decorrência do flagelo da seca e descaso dos
políticos. Constata-se também na dissertação que não é por acaso que Guarnieri e
Peixoto sempre procuraram apontar em suas obras as camadas populares do país,
vítimas das injustiças sociais. Aqui, o autor utilizou-se do mito grego para adentrar no
universo mítico nordestino, a fim de expor a dura realidade daquela parcela de
brasileiros.

Portanto, Guarnieri e Peixoto pareciam pretender continuar, através da televisão, o


processo de politização e conscientização do telespectador sobre os problemas
pertencentes ao país. Certamente, tal intento acontecia de maneira disfarçada, indireta e
cheia de metáforas, apesar de recorrer, em alguns momentos, a uma linguagem mais
direta, mais incisiva, como evidenciada em Édipo. Diante de tais prerrogativas,
podemos afirmar que o Édipo em Guarnieri e Peixoto associa-se a um determinado tipo
de sistema político, onde se organizam e se estabelecem leis de conduta entre
indivíduos, assim como na democracia grega, em Sófocles, mas, na versão moderna,
essas leis apoiam-se sobre um sistema autoritário e militarista. Violadas tais regras, os
conflitos se estabelecem, provocando a discórdia entre todos. Édipo de Guarnieri e
Peixoto personifica a instabilidade social, presente nas relações de má distribuição de
riquezas e injustiças sociais.
Ao que se refere á linguagem fílmica, todas as indicações que aparecem no
teletexto, tais como, closes, planos variados, utilização de cenas curtas, bem como os
recursos de iluminação, servem para potencializar o olhar crítico, tanto dos autores
através das suas personagens, quanto do telespectador, diante das questões políticas ali
expostas. Outro recurso valorizado por Guarnieri e Peixoto é o flash-back. Em
determinados momentos, a ação se desloca do presente para o passado. Como
demonstrado a seguir:

Édipo leva a mão espalmada ao rosto. Desfoca


23. Campo. Exterior. Dia.
Édipo conversa com um frade, que o abraça, despedindo-se e
entrega-lhe uma bíblia.
ÉDIPO (Off) – Fugia cada vez mais. Cada vez para mais longe
das terras do meu pai... Nem mesmo o frade que compreendeu o
que estava se passando comigo, conseguiu me dar paz. Foi ele
que me deu essa bíblia que trago sempre comigo, mas também
esse livro não me fez parar. Queria ficar cada vez mais longe do
meu pai e de minha mãe.
25. Quarto de Édipo. Interior. Noite.
Édipo segura fortemente as mãos de Jocasta.
ÉDIPO – E foi então, minha querida, que fugindo, correndo
sem parar, cheguei à encruzilhada da Serra...
26. Inserção. Campo. Exterior. Dia
Primeiro plano de Laio a cavalo
27. Quarto de Édipo. Interior. Noite.
ÉDIPO – Prá você, minha mulher, vou confessar toda a
verdade: encontrei cinco homens a cavalo.
28. Inserção. Campo. Exterior. Dia.
Takes rapidíssimos da figura estática de cada um dos
empregados de laio. Finalmente a figura de Laio que em slow
motion vai desferir um golpe com seu facão.
Sore a imagem de Laio em slow motion
VOZ DE ÉDIPO – Um deles era o mais velho, tinha cabelo
branco. Devia ser o patrão.

Com a utilização do flash-back, o drama de Guarnieri e Peixoto dispõe de um


recurso inviável na tragédia sofocliana, a qual inicia-se in media res, tornando a palavra
e atuação imprescindíveis às referências feitas ao passado. Já no teledrama, o recurso do
flash-back amplia as possibilidades de trazer à tona, em forma de imagem, o que é
impossível ao teatro. Neste sentido, os autores de Édipo têm ao seu dispor a
possibilidade de revelar ao público os problemas sociais e o sofrimento daquele lugar e
daquela gente. Enquanto aos demais recursos inerentes à linguagem fílmica e televisiva,
passam a ser, neste drama, primordiais aos interesses epicizantes postos por Guarnieri e
Peixoto. Não obstante, o apelo às cores fortes da emoção não são postas de lado. Ao
contrário, também passam a ser exploradas no teledrama, a fim de chamar a atenção do
telespectador. È importante perceber que tais recursos são próprios da TV, o que
podemos verificar ser uma prática até hoje utilizada: o apelo melodramático das
telenovelas, por exemplo.
A escolha por uma dramaturgia que ora privilegia o envolvimento emocional de
quem assiste, ora instiga a reflexão em torno dos problemas inerentes ao homem do
campo e suas implicações político-sociais e culturais, demonstra os parâmetros estéticos
que influenciaram Guarnieri e Peixoto. Entre os preceitos da tragédia, do drama social e
do teatro épico, o teleteatro é construído. Os elementos epicizantes, presentes na
existência do cantador-narrador, nos flash-backs e no coro são prova das influências
brechtianas em sua obra. O passado sempre presente, formando uma espécie de linha de
força aos poucos vindo à tona, o sofrimento interior cada vez mais crescente de Édipo,
aproximam-se de uma tradição dramática antiga, transmudada em drama social desde o
final do século XIX.
Podemos verificar que, as questões mítico-espaciais, presentes na adaptação da
tragédia de Édipo por Guarnieri e Peixoto, servem para os referidos autores como
prolongamento de seus discursos político-sociais, culturais e ideológicos, revestindo o
mito grego com tais propósitos na reescritura do mesmo. Assim, Guarnieri e Peixoto
escolheram a televisão e assumiram todos os riscos na reestruturação da tragédia
clássica, transformando-a em teledrama. Mas, sua dimensão fortemente evidente de
crítica política e social certamente contribuiu para que o texto jamais saísse do papel.
i
Gênero ficcional da teledramaturgia que surgiu inicialmente como teleteatro. O programa era
constituído unicamente de uma peça de teatro que acontecia ao vivo, em estúdio, o qual imitava um
palco teatral. Podia também ser gravado em fita para posterior exibição. (SILVA, 2009, 72)
ii
Modelo educacional vigente em Atenas que tinha como principal enfoque a formação política do
cidadão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo:
Cultrix, 2005.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Prspectiva, 2000.
GUARNIERI, Gianfrancesco. Teatro de Gianfrancesco Guarnieri: Textos Para Televisão.
São Paulo: Hucitec, 1988.
LUNA, Sandra. A Tragédia no Teatro do Tempo: das Origens Clássicas ao Drama
Moderno. João Pessoa: Ideia, 2005.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. – [Edição Especial]. – Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião – Uma Interpretação da
Cultura de Esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998.
RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: Artistas da Revolução, do CPC à Era da
TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
ROSENFELD, Anatol. Teatro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2005.
___________________ Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva, 1994.
SILVA, Jerônimo Vieira de Lima. Édipo na TV: Guarnieri e as Impossibilidades de Um
Teatro Impossível. UFPB: João Pessoa, 2009. (Dissertação de Mestrado)
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Vol. I. Trad. Mário da Gama Koury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
TZU, Sun. A Arte da Guerra. Trad. Elvira Vigna – [Ed.Especial]. – Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011. (Saraiva de Bolso)
TEMA: TEAREALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.

O TEXTO DRAMÁTICO COMO SUPORTE NA CRIAÇÃO DA MAQUIAGEM


TEATRAL - O CASO DA MONTAGEM DA PEÇA FIM DE PARTIDA, DE
SAMUEL BECKETT.
José Roberto Santos Sampaio; Universidade Federal de Sergipe; professor
assistente; Doutorando pelo PPGAC – UFBA.

O texto dramático é um dos suportes para o trabalho dos artistas que atuam na
área técnica do espetáculo: cenógrafo, figurinista, iluminador, maquiador, etc.. Nele
estão contidas informações importantes para o processo de criação dos mesmos,
paralelo ao trabalho do ator e da opção estética do encenador.

Para estudar um texto dramático, em processo de montagem, na qual, faço parte


da equipe técnica, busco me ancorar na maior quantidade de informações possíveis, para
uma leitura do texto, aprofundando a este, informações sobre o autor, onde este vive, o
contexto histórico em que o texto foi escrito, estudos de teóricos acerca da dramaturgia,
do autor e caso encontre, da obra a ser encenada, entre outros possíveis caminhos.
Assim, optei por fazer um apanhado de alguns dos textos estudados, para este artigo,
tentando fazer ligações com o momento atual dos meus estudos como doutorando.

Proponho como objeto de estudo para o doutorado, um método de ensino da


maquiagem teatral para atores, diretores e professores de teatro. Portanto esta pesquisa
estará sempre relacionada ao texto dramático, como suporte para o estudo da criação de
uma maquiagem para os personagens das peças sugeridas na construção do método que
estou propondo.

No texto O discurso teatral de Anne Ubersfeld, em que a autora aborda as


questões do enunciador, são apontados caminhos que contribuem para entender as
informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias, para um estudo de um
texto teatral: “O estatuto do texto teatral é exatamente o de uma partitura, de um libreto,
de uma coreografia que leva à construção de um sistema de signos por meio de
mediadores: a. o ator, criador-distribuidor de signos, linguísticos fônicos, b. o encenador
(decorador, cenógrafo, atores, etc). (UBERSFELD, 2005, p.163).

As informações contidas nas falas das personagens e nas didascálias são pistas
que norteiam os caminhos para a encenação em sua totalização. Segundo a autora,
No interior do discurso teatral; dialogismo de que é mais fácil
postular a existência do que fazer o levantamento das marcas, o
discurso consciente/inconsciente de um scriptor, ou percebê-lo
como discurso de um sujeito fictício são dois procedimentos
possíveis, com a condição de não ficarem isolados um do outro.
(...) O discurso teatral é por natureza uma interrogação sobre o
estatuto da palavra: quem fala com quem? (UBERSFELD, 2005,
p.168)

No tópico O Discurso da Personagem, Ubersfeld diz que na função referencial


que “O discurso da personagem informa sobre a política, a religião, a filosofia: é
instrumento de conhecimento para as outras personagens e para o público (...)mostra
como se diz uma fala.” (UBERSFELD, 2005 p. 170) Tais informações são referencias
para a construção da personagem, para direcionar os caminhos da direção e da equipe
técnica.

Em relação a encenação Ubersfeld aponta na conclusão desse texto, sobre o seu


papel no texto dramático,

Consiste em exibir o pré-construido, em mostrar o que pertence


ao terreno do não dito (ou dito conotativo ou indicial). A
encenação mostra quem fala e como se pode ou não falar. Às
vezes, e por efeito do deslocamento histórico, a mudança nas
formações discursivas faz com que um ou outro elemento perca
seu sentido e sua atualidade. (UBERRSFELD, 2005, p.188)

No início do artigo O diálogo no drama e o discurso do outro, de Cleise


Mendes, lê-se “O diálogo dramático põe em cena a linguagem através de um gesto
sempre duplo, ambivalente.” (MENDES, 2011, p.01), é possível estabelecer uma
relação entre as palavras de um dramaturgo e o conjunto de imagens visuais e sonoras
de uma encenação. É a voz do dramaturgo traduzida para o palco, através da fala das
personagens pelos atores, aliada aos efeitos causados pelo cenário, figurino,
maquiagem, iluminação, trilha sonora, entre outros que contribuem para contar uma
história.
A opção do diretor-encenador em transpor o texto dramático em imagens cênicas
é um fato determinante para que a recepção do leitor-espectador contribua para a
comunicação indireta do autor, através do jogo proposto na encenação. “Essa é a ilusão
primordial que funda o drama com acontecimentos estético-comunicativo: os sujeitos
que interagem parecem ser a fonte natural das emissões.” (MENDES, 2011, p.02).

As informações que o texto fornece sobre as personagens são outra fonte para a
construção da personagem e contribuem também para a caracterização externa dos
mesmos. Tais informações, situadas nas falas das personagens e em indicações do autor,
juntamente com as indicações da direção norteiam o trabalho do figurinista e
maquiador. Podem-se encontrar informações sobre o status social, idade, raça, entre
outros, e assim, podem ser traduzidas em imagens e cores que determinam a
personalidade das personagens.

Quando em seu texto, Mendes cita como exemplo a peça Avental Todo Sujo de
Ovo, por exemplo, com um diálogo entre as personagens Noélia e Alzira, o leitor já
situa o contexto social em que se passa a peça. As trocas verbais contidas nos diálogos,
em um texto teatral, oferecem pistas que norteiam o trabalho do maquiador, por
exemplo. Fato fundamental na construção da estrutura do método que estou propondo
em minha pesquisa, pois o mesmo é destinado ao ator.

Na citação “...no diálogo dramático (e cênico) a linguagem torna-se voz: está


associada indissoluvelmente a um corpo, um gesto, uma imagem humana” (MENDES,
2011, p.8) não há como não traduzir aos elementos visuais da cena. A cenografia, os
figurinos, a maquiagem e os demais elementos deverão estar impregnados das
informações que o texto oferece, para que haja coesão com o mesmo.

No texto de Jean Kott, Rei Lear ou Fim de Partida, o autor trata da


contemporaneidade da obra de Shakespeare traçando paralelos com dramaturgos do
século XX, em especial a Samuel Beckett. Kott aponta distintas analogias entre a
relação de Lear e o bobo e entre Hamm e Clov, com elementos que caracterizam
similitudes na construção dessas personagens nas situações limites em que os mesmos
estão vivendo em suas histórias. Tal estudo oferece importantes informações para um
aprofundamento no estudo das duas peças analisadas, para uma melhor apreensão para
uma encenação das mesmas.
Kott diz que Rei Lear pode ser compreendido como um melodrama com
elementos do grotesco, contidos de características do teatro medieval, porém com
aspectos de um novo teatro surgido no século XX, onde está situada a
contemporaneidade da obra de Shakespeare.

O trágico ressurge como referência nos textos de novos dramaturgos, mas


impregnados de elementos do que ele chama de novo grotesco,

Apesar das aparências em contrário, esse novo grotesco de modo


nenhum substitui o antigo drama ou a comédia de costumes. Ele
se ocupa dos problemas, conflitos e temas da tragédia: a condição
humana, o sentido da vida, a liberdade e a necessidade, a
contradição entre o absoluto e a fragilidade da ordem humana. O
grotesco é a antiga tragédia escrita de novo, num outro tom.(...)o
grotesco está situado num mundo trágico. (KOTT, 2003, p.
128/129)

Os textos de Shakespeare fornecem informações de grande contribuição para o


levantamento de uma encenação. O autor situa o leitor sobre os espaços onde acontecem
as cenas, assim como contextualiza geograficamente onde se passa a história. Não
existem didascálias, mas as falas das personagens assumem essa função e esta norteia o
trabalho dos atores, diretores e técnicos. Esses elementos também são de grande
contribuição para encenadores que propõem montagens contemporâneas, como, por
exemplo, a montagem do grupo Galpão para Romeu e Julieta, com direção de Gabriel
Villela, na qual o texto foi transposto para uma encenação com elementos do drama
circense.

Para Kott o grotesco está relacionado com o jogo. O diálogo é um jogo, em que
“no momento em que começa os dois parceiros devem ter as mesmas chances de ganhar
ou de perder, e ambos devem jogar segundo as mesmas regras” (KOTT, 2003, p.132).
Em Fim de Partida, de Beckett, o jogo entre opressor e oprimido de reveza, pela
necessidade um do outro pela sobrevivência. Hamm e Clov travam um duelo de
intolerância necessária para as suas sobrevivências. Beckett constrói suas personagens
com elementos clownescos, em Rei Lear os personagens estão numa condição humana
pontuada pela crueldade imposta pelas escolhas do protagonista, a ponto de reverter a
sua condição e a de seu bobo. Tanto em Rei Lear e em Fim de Partida a convivência é
desagradavelmente necessária para que as personagens se mantenham vivos.

A maquiagem concebida para a encenação de Fim de partida, para a Companhia


de teatro da Universidade Federal da Bahia, com encenação de Ewalda Hackler, foi
ancorada inicialmente pelas indicações do texto, com alterações para que esta se
adequasse às necessidades da concepção este da montagem. A proposta da maquiagem
era a de acentuar os traços do rostos dos atores que representavam Hamm e Clov e
utilizar a técnica de envelhecimento em Nagg e Nell.

Na indicação de Beckett, os atores possuíam um tom de pele rosado,


característico para pele que vivem em países de clima frio. Para a montagem baiana,
maquiador e diretor, concluíram que a pele dos atores deveriam ter um tom de cinza,
com nuances em preto e branco, na acentuação dos traços do rosto, enfatizando o
desgaste e o esgotamento humano daqueles dois homens, devido ao confinamento e
isolamento do mundo, portanto a aparência um tanto cadavérica seria apropriada. A
opção por tons de cinza, propõe uma leitura da ausência de cor na pele dos personagens,
confinadas no vazio, na desesperança. Não há mais saída. Não há mais vida.

Segundo Pareyson, a leitura de uma obra de arte é um ato complexo não apenas
uma contemplação. Para ele, a leitura de uma obra passa pelas etapas “executar,
interpretar e avaliar uma obra” (PAREYSON, 1977, p.201). No teatro, diferentes
montagens de uma mesma obra dramática, nos permite analisar como a transposição
para o palco foi realizada, quais os signos utilizados e as possibilidades de leitura
podem ser feitas.

De acordo com Pareyson, “ler significa executar, executar significa fazer com
que a obra viva de sua própria vida” (PAREYSON, 1977, p.208). O trunfo dessa
encenação, foi a apropriação da obra de Beckett para a realização de uma montagem
“quase arqueológica – no bom sentido – da peça”, Segundo o ator e diretor Celso
Júnior, em seu blog.

Por vezes, a maquiagem de um espetáculo teatral, pode ficar restrita a um


simples traço no olho, uma deformação numa sobrancelha, uma cor na sombra dos
olhos, que podem parecer a uma olhar superficial como uma coisa simples, mas podem
estar carregados de elementos que compõem a caracterização externa da personagem.

Os textos dramáticos apontam caminhos e os teóricos que se debruçam aos


estudos desses, facilitam ou sugerem armadilhas, que podem nortear o trabalho de quem
se propõe destrinchar o pensamento dos dramaturgos, permitindo mergulhar no contexto
em que esses vivem ou viveram e possibilitam como resultado coerência nas
encenações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECKETT, Samuel, Fim de partida. São Paulo, SP: Cultrix, 1981.

KOTT, Jan. Rei Lear ou Fim de partida. São Paulo, SP. Cosac Naify, 2003.

MENDES, Cleise. O diálogo no drama e o discurso do outro. Salvador, BA:UFBA,


2011.

PAREYSON, Luiggi. Os problemas da estética. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1977.

UBERSFELD, Anne. O discurso teatral. São Paulo, SP: Perspectiva 2005.

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TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TÍTULO: A CENA EXPANDIDA

Kleriston Christy Vital Santos


(Graduando em Arte e Mídia - UFCG e integrante do NET – Núcleo de Estudos Teatrais da
UFCG)

Eliane Tejêra Lisboa


(Orientadora - Prof. Drª. da Unidade Acadêmica de Arte e Mídia da UFCG e Coordenadora
do NET)

RESUMO

Os elementos essenciais para a formação do teatro, segundo alguns teóricos, são o ator, o
público e o texto, essa relação está conectada diretamente com a presença cênica e a
retroalimentação proporcionada pela troca entre ator e plateia. Porém, como pensar essas
novas relações em um campo no qual os níveis de presença e suas leituras são modificados,
permitindo assim que o espaço cênico não se restrinja somente ao presencial, mas sim, as
virtualidades espaciais que as tecnologias digitais permitem. Nesse estudo, a partir de
experiências já constituídas visualizaremos recursos e experimentações que possibilitam essa
expansão dos espaços da cena e como, através de recursos digitais, podemos criar espaços que
excedam os limites físicos do palco.

Palavras-chave: Presença Cênica. Espaço Cênico. Tecnologias Digitais. Palco.

INTRODUÇÃO

Ao pensarmos sobre os elementos constituintes do teatro tradicional, os primeiros


fatores que podemos citar são a presença do ator, do público e do texto, sendo estas
formulações inerentes dessa arte. Na atualidade vemos que novas constituições se configuram
e noções ditas como essenciais começam a ser questionados, tais como a determinação do
espaço e da presença dentro da cena.
No geral todas as artes sofreram determinadas modificações a partir de sua
digitalização (a música, o cinema, a pintura) expandindo suas capacidades, assim como
permitindo que novas linguagens e possibilidades técnicas fossem instauradas, porém o teatro
foi, dentre estas, umas das artes que mais demorou em começar a sofrer esse processo,
grandemente decorrente da relação direta entre público e atores que se faz necessária em sua
execução, devido a sua necessidade de retroalimentação e de sua efemeridade.
Chegamos assim em um momento no qual experimentações são realizadas e, dessa
forma, novas possibilidades cênicas começam a ser visualizadas, permitindo assim que novos
recursos sejam anexados ao teatro, ampliando e demonstrando a capacidade integradora que o
teatro possui, tal como ocorreu com a iluminação, a sonoplastia etc. Contudo, algo que se
deve observar é que essas novas possibilidades atingem fatores que estão diretamente
relacionados a estrutura essencial teatral que são a presença cênica e o espaço cênico.
Quando um ator se constitui como presença? Quais são os limites da cena? Onde ela
inicia ou termina? São estes questionamentos que podemos configurar dentro desse novo
cenário teatral. Compreender esses fatores e como a presença se configura nesse momento nos
faz refletir sobre o espaço cênico e sobre a sua extensão que não é só relativa ao fator físico,
mas ao digital.

Presença Cênica

A presença é um dos principais elementos constituintes do teatro, pois diferente de


outras artes, dentro do teatro há a necessidade de uma retroalimentação entre ator e público,
em outros termos, um sempre influencia no papel do outro no contexto da cena. Devido a este
fator podemos dizer que cada dia surge um espetáculo distinto, pois cada público atinge os
atores de forma diversa, proporcionando motivação e elementos que levam aquela cena a ser
única no momento presente.
Não podemos erroneamente relacionar essa presença somente com a questão física, ou
seja, carbônica, do papel do ator em cena, mas sim com o se fazer presente na cena, pois o
público que assiste à peça não visualiza as unidades da cena, mas o todo, dessa forma pode
haver diferentes formas de presença a partir do uso e resignificação da mesma. “É preciso
considerar que um corpo só se faz presente quando se torna corpo percebido e, assim, a
presença constitui um fenômeno e não um estado. Um corpo e a percepção desse corpo são
duas facetas de um mesmo fenômeno” (ISAACSSON, 2010).
Novas construções cênicas a partir dos recursos digitais começam a ser estabelecidas e
os limites entre o virtual e o real começam também a serem questionados, como sociedade, no
geral, nossa compreensão relativa a presença começa a ser modificada. Obviamente não
devemos considerar que diferentes formas de presença foram somente estabelecidas com o
recurso digital, pois anteriormente, de modo mais tímido, a carta e o telefone já cumpriam
esse papel, contudo a recurso visual de transmissão de vídeo permite que a leitura de presença
seja estabelecida com maior eficácia, sendo por vezes lida presença. Segundo Lehmann “a
presença não é o efeito simplesmente da percepção, mas do desejo de ver” (LEHMANN,
2007, p. 387).
A partir dessas possibilidades de presença, podemos começar a entender que os limites
do ator são reconfigurados, assim como as possíveis leituras de sua formação de presença.
Apoiando-se em Pavis, Isaacsson amplia a discussão sobre o tema.
Sob o viés da intermedialidade, somos convidados a pensar a presença para
além dos limites da corporeidade do ator. Interessante observar que, já na
década de oitenta, ao definir a “presença”, Pavis apontava para o fato de que
“mais do que de presença do ator, se deveria falar do presente contínuo da
cena”. (ISAACSSON, 2010)

Em outras palavras, podemos compreender que mais do que o tipo de forma de


presença devemos observar como esta consegui evoluir na cena, mais do que estar fisicamente
presente, é se fazer presente.

Diante disso podemos ainda nos questionar, porque tratar de presença cênica quando
objetivamos compreender o espaço cênico na contemporaneidade, devemos assim então
considerar que a novas compreensões de presença permitem que a cena não se estabeleça
somente no palco ou mesmo na cochia, pois se o ator pode ir além do palco, assim também o
palco vai além de si mesmo. Configurando uma extensão de si, se desterritorializando e
fragmentando a cena. “O ator não se encontra desmaterializado, mas encarnado em novas
substâncias. Se seu corpo pensa, com auxílio da tecnologia, ele sai dos limites de sua pele.
Assim o homem se reconstitui no exterior de si mesmo.” (ISAACSSON, 2008)
Diante de uma compreensão das quebras das barreiras físicas e das novas
possibilidades de configuração das presenças, podemos visualizar que o espaço cênico pode ir
além do palco, ou mesmo a sala de apresentação, podendo nos levar para outros espaços que
não somente os imaginativos, mas também físico-virtuais.

O espaço cênico através da história

Quando pensamos no espaço cênico é como se este nos fosse uma janela, na qual
como público podemos observar acontecimentos de um mundo distante do nosso ou mesmo
se perto vermos nossa realidade vivida por outros. Por vezes este espaço seria como moldura
limitada ao espaço presente e perante os nossos olhos. “A primeira vista, o espaço cênico que
se organiza como quadro (tableau) se isola programaticamente do théatron” (ROUBINE,
1998, p. 272)
Esta formatação e pensamento do espaço da cena esta extremamente relacionado ao
teatro tradicional, pois em outras formas constitutivas mais atuais e experimentais como as de
Grotowski, Bob Wilson, John Jesurun, dentre muitos outros, esse abismo entre plateia e palco
são quebrados, aproximando assim o público da cena, ou mesmo o colocando dentro dela.

Se formos pensar no aspecto estrutural dos espaços de apresentação veremos que estes
sofreram diversas modificações através da história se adequando constantemente a cultura de
seu povo e questão socais relativas à localidade na qual ele estava inserido, não é a toa que
vemos as diferenças estruturais presentes nos edifícios gregos, berço dos palcos, em
referência a outros como o Elisabetano, o Italiano etc. Cada um destes se adequava as
necessidades de seu povo e as possibilidades criativas e cênicas que cada um necessitava.
Contudo, não podemos considerar que os espaços de apresentação se limitavam aos espaços
fechados ou mesmo destinados somente a este objetivo, sempre houve o teatro de rua, o
medieval usava uma estrutura totalmente distante da que estamos acostumados na atualidade,
assim como era comum no teatro apresentado à realeza haver um espaço mais simplório
destinado a apresentação, ou mesmo as cenas eram apresentadas no meio dos salões. Por isso
não devemos considerar que os espaços de apresentação se restringem somente ao edifício
teatral, mas a distintas possibilidades criativas.
Segundo Mantovani:
Chamamos de lugar teatral o lugar onde é apresentado o espetáculo teatral e
onde se estabelece a relação cena/ público. Usamos o termo lugar teatral em
vez de teatro, porque este último significa somente o edifício teatral. Na
verdade, o espetáculo pode ser apresentado em qualquer lugar, desde a praça
a um lugar alternativo [...] (1989, p. 7)

Dessa forma podemos considerar que existem várias possibilidades de uso da cena. O
teatro da Vertigem é um exemplo que podemos tomar de um grupo que faz uso de espaços
não convencionais para apresentação de suas peças, utilizando locais que antes possuíam
outra destinação e transformando-os em um espaço cênico. “O teatro procura uma arquitetura
ou então uma localidade não tanto porque o ‘local’ corresponda particularmente bem a um
determinado texto, mas sobretudo porque se visa que o próprio local seja trazido à fala por
meio do teatro”. (ROUBINE, 1998, p. 281)
Se pensarmos no momento atual e sua relação com o espaço cênico, veremos que
chegamos em um período no qual as experimentações não se limitam aos recursos criativos
advindos do espaço da cena, mas adentram ao mundo virtual, levando-nos como espectadores
a adentrar a cena além do meu limite físico, vendo-a como um todo e expandindo a mesma.
Essa possibilidade incide da desmaterialização que a presença cênica possibilita, tendo em
vista que eu não necessito mais necessariamente ter todos os atores presentes fisicamente
perante o público, podendo eles estar em outros espaços, apresentados como presença no
contexto visual da cena. Segundo Isaacsson “Isto porque, na medida em que o ser vivo torna
real a imagem imaterial, a imagem imaterial torna irreal o ser vivo. Pois, sob o olhar da
recepção, o real e o virtual são igualmente ativos, virtual não aparece como ausência, mas
como novo modo de existência”. (2008)
Os recursos digitais permitiram que houvesse um deslocamento do espaço da cena
formando sobreposições espaciais, justaposições, simultaneidade e fragmentação do espaço
presente, criando novos olhares sobre a cena, possibilitando novas leituras e criações de
interfaces espaciais (TONEZZI, 2014). Segundo Tonezzi:
Nas últimas décadas, o instrumento digital ganhou força em produções
cênicas, incidindo na estrutura dramatúrgica e, por extensão, nos parâmetros
de representação, jogo e significação do artista. Como consequência, as
formas de criação e recepção da cena foram alteradas, distanciando-se cada
vez mais daquilo que, até recentemente, configurava-se como evento teatral,
ou seja: uma estrutura estável e concretamente perceptível de tempo e lugar.
Porém, por mais que se desfragmentassem as narrativas e/ou agentes, tanto o
tempo real percebido quanto o corpo orgânico e o espaço concreto de
intervenção do atuante permaneciam referencialmente estáveis diante do
espectador. (idem, p. 336)

Como dito por Tonezzi, mesmo com as fragmentações narrativas, no contexto geral,
ainda havia uma permanência nas questões espaciais que só foram fragmentadas devido ao
meio digital, sendo estruturadas pelo olhar do receptor que vê a cena como um todo,
reestruturando sua formação espacial. Estes recursos só podem ser pensados e configurados
devido às mídias digitais, que abriram espaço para essa expansão de possibilidades criativas.
Trata-se, assim, não apenas de um redimensionamento, mas também de uma
reconstituição do espaço cênico por meio de seu deslocamento e
desmaterialização. Algo praticamente impensável há algumas décadas: a) ao
mesmo tempo em que se apresenta num determinado espaço físico, o evento
cênico é aberto e disponibilizado para acesso em rede. Por opção do
espectador, o espetáculo pode também ser apreciado presencialmente; b) um
trabalho cênico reúne e faz jogar artistas que, por sua vez, podem se
encontrar num mesmo lugar ou em espaços concretamente distintos e muito
distantes um do outro. Durante a performance, os espetáculos se integram e
os artistas jogam entre si através da mídia. (TONEZZI, 2014, p. 345)

Novas constituições são formuladas, chegamos assim a um momento no qual


novamente o teatro começa a sair para rua e procurar novos espaços de interação, sendo o
digital o espaço em suspensão, o novo espaço por vezes habitado também pelo teatro.

Criações de novos espaços

O período de experimentação no qual nos encontramos abre um leque de


probabilidades que possibilita mais observar do que valorar os resultados obtidos, pois os
mesmos em um primeiro momento nos fazem conhecer o recurso, para só então desassocia-lo
de seu primeiro uso, para ser um recurso com sentido na cena.

Vários grupos começam a realizar experimentos que vão além do espaço do palco,
trazendo o uso do vídeo e projeção a cena, permitindo que novas compreensões de leitura
sejam estabelecidas. Grupos como a PHILA7 e o Teatro Para Alguém (TPA) podem ser
considerados com bons objetos de estudos, pois propõem em suas experimentações novas
significações, nos apresentando que poderíamos compreender presença cênica de outras
formas que não só as convencionais.
Um dos principais espetáculos da Phila7 feito por essa companhia foi o “Play on
Earth”, 2006, nele havia uma conexão entre três espaços distintos do mundo, no qual a cena
acontecia simultaneamente (Brasil; Inglaterra e Cingapura) o público presente acompanhava
uma cena que se desenrolava com atores reais no palco enquanto a todo momento ao fundo
existia 3 telões nos quais eram projetados tanto a cena real digitalizada, assim como a cena
ocorrida nas outras duas localidades justapostas. Vale observar que não ocorriam as mesmas
ações, ou mesmo o que era projetado era um adendo a cena, mas cada elemento apresentado
nos telões e sua justaposição criava o sentido da própria cena, quer sejam no Brasil, na
Inglaterra ou em Cingapura. Toda essa união podemos dizer só foi possível se estabelecer
devido a Internet e a uma forte estruturação digital.
Se observarmos atentamente a este espetáculo compreenderemos que a cena em si não
ocorre nunca em apenas um dos espaços, mas cada uma das localidades é essencial para
formar um todo, criando assim um quarto espaço que somente existe na união desses três,
espaço este existente devido à internet, e um eterno espaço de suspensão. Mesmo com o
recurso digital vemos que o teatro não perde sua efemeridade e sim nesse caso
especificamente aumenta essa constante mudança, pois o ator não necessitava dialogar ou
mesmo se retroalimentar somente com o público presente, mas se fazer presente para os
outros atores projetados e para o público, que embora não estivesse próximo a estes, aparecia
e possuía uma forma de presença.
Há outro espetáculo da Cia que também faz uso de distintos espaços que é o caso de
“A verdade relativa da coisa em si”, 2006, no qual temos o palco como centro principal de
acontecimentos, porém o uso de telões nos faz observar outros espaços que não somente os da
cochia, mas alguns que não consigamos valorar a distancia, mas tem significado. Por vezes os
telões justapõe esse espaço, tal qual um momento que vemos os personagens conversando em
um corredor em preparação a entrar na cena, embora que estejamos como público, sentados
perante a cena presente, o que nos é projetado em sua coerência nos leva além do físico,
possibilitando a partir do virtual que estejamos em novos espaços. Em “What’s Wrong with
the World”, 2008, há novamente uma relação entre Brasil e Inglaterra e diálogos são criados
entre personagens, não somente falados, mas visuais. Nesses espetáculos vemos a partir da
projeção a criação de vários espaços, mas em certos momentos os atores reais, são
digitalizados, pois vão pra espaços além do espaço teatral e os acompanhamos em seus
caminhos entrando em novos locais, quer sejam salas com cenários montados, ou mesmo indo
para fora do edifício onde a cena ocorre, mas para nós como público não é como um
distanciamento, mas somos levados além do limite real, como se estivesse em todos os
espaços indo além do fator somente imaginativo, mas como uma extensão de nós mesmos.
Outra experimentação que possibilita novas leituras do espaço cênico é a realizada
pelo TPA, na qual a Internet é o seu espaço de exposição. O grupo apresentava inicialmente
as cenas em um espaço sem público, totalmente em uma estética teatral, e gravava o material,
colocando-o posteriormente na internet, onde o público tinha acesso. Dessa forma, este seria
um teatro virtual, no qual o espaço cênico não se limita a um edifício, mas poderia ser
instaurado em diferentes suportes, como um computador, um notebook, um tablet, celular etc.
Para manter a estética teatral, aspectos como um plano sequência, planos abertos, dentre
outros eram utilizados, obviamente também fazendo uso da linguagem da Internet com cenas
curtas.

Nessa proposta do TPA temos a construção de um espaço digital como espaço cênico,
sendo assim, a peça poderia estar em todos os locais, por momentos houve cenas apresentadas
com um público, ou seja, estavam realmente criando a retroalimentação possível teatralmente.
Nessa ideia é possível levar o teatro e sua linguagem para os diferentes espaços, tanto pela
apresentação em streaming quanto pela possibilidade de banco de dados, permitindo uma
distribuição universal dos materiais.
O espetáculo “Júlia” que provém da peça “Senhorita Júlia” de August Strindberg,
adaptação e direção de Cristiane Jatahy (2012), é outro exemplo de construção de espaço
distinto, há vários telões em cena e constantemente os atores jogam com o espaço e caminham
entre eles tornando-se virtuais e reais, inicialmente podemos até mesmo nos questionar sobre
essa constante modificação, porém por vezes, enquanto se digitalizam, somos levados para
outros espaços que não são nem de memória nem de sonho, mas de presente. Há um momento
em que os personagens estão na piscina, mas não nos estranha o que nos é apresentado, pois é
como se os tivéssemos acompanhado até aquele espaço, como um suspensão de nós mesmos
nesse espaço.
Esses são somente alguns exemplos dos vários que podemos citar que ocorrem pelo
Brasil afora, vemos que cada um destes grupos e espetáculos propõe diferentes formas de
expansão, mas procuram cada um a seu modo, construir novas espacialidades e expandir a
cena para além do presencial físico.

Considerações finais

Podemos visualizar que estamos ainda em um período de experimentação, tão logo, os


recursos digitais ainda se encontram em um processo tanto de compreensão de sua função,
quanto de possibilidades cênicas. As quebras dos limites físicos e do espaço ainda são, por
vezes, usadas de forma tímida, configurando assim a transição dos recursos digitais para a
cena teatral e para novas hibridizações e modificações ainda possíveis e que surgirão nesse
processo, indo além do uso inicial desse recurso, usando-o a favor da cena. iO computador,
celulares, Ipads, projeções, estão ainda em um processo de relação inicial com a cena,
contudo vale ressaltar que há a tendência de serem cada vez mais agregados as
experimentações, configurando novas formas de espaço e presença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ISAACSSON, Marta. Diálogos do ator com a tecnologia. IN: Território Teatral, nº9,
set.2008. Disponível em: <http://territorioteatral.org.ar/html.2/articulos/pdf/n3_02.pdf>.
Acesso em: Jan de 2013.
_________________. A Presença como Movimento da Cena. Anais do VI Congresso
Abrace, 2010. Disponível em:
<http://www.portalabrace.org/vicongresso/processos/Marta%20Isaacsson%20-
%20A%20Presen%E7a%20como%20Movimento%20da%20Cena.pdf>. Acesso em: Jan de
2013
LEHMANNN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ática, 1989.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996 (3ª edição).
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. São Paulo: Razar, 1998 (2ª
edição)
TONEZZI, José. Inovação e significação em cena. Revista Brasileira de Estudos da
Presença. Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 333-350, maio/ago. 2014. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/presenca> Acesso em: 20 de junho de 2014.

Sites
http://phila7.com.br/
http://www.teatroparaalguem.com.br/

Arquivos Visuais
A verdade relativa da coisa em si. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R1kuplMhw00>. Acesso em: 02 de jul de 2014
Julia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uQxRd9SXg-0>. Acesso em: 02
de jul de 2014
____. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GPtKvCokCFs>. Acesso em: 02
de jul de 2014

Play On Earth. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CeTENBxG_hs>.


Acesso em: 02 de jul de 2014
What’s wrong with the world. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nrX-
JREDijY>. Acesso em: 02 de jul de 2014

i
Este trabalho foi fruto de pesquisa do PIBIC intitulada “TEATRO E NOVAS MÍDIAS: hibridismo no trabalho
teatral da Cia. Phila7”, realizada entre agosto de 2012 a agosto de 2013, com financiamento do CNPQ.
 
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A RECONTRUÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO NA AÇÃO DE DESNUDAR-SE: NA


PERFORMANCE E NO PROTESTO

Lara Tatiane de Matos (CAPES) André Luiz Antunes Netto Carreira (Orientador); Programa de
pós-graduação em teatro – PPGT – Doutorado; UDESC

Gostaria   de   argumentar   que   desde   a  


metade   do   século   XX,   a   presença   do  
corpo  nu  em  espaços  públicos  e  privados  
constitui   uma   resistência   ao   poder   que  
tenta  regulá-­‐la,  ou  seja,  à  onipresença  do  
olhar   cultural   regulador   (que   mesmo  
quando   ausente   se   transmuta   em   auto-­‐
policiamento).  (BOODAKIAN,  2006  p  143)  
 
 
É importante dizer, primeiramente, que este artigo trata de um tema cuja
execução é proibida por lei no Brasil e em muitos países. No Brasil enquadrado
judicialmente como “ato obsceno”1, o praticante da nudez pública pode ser detido por
até um ano. No entanto a nudez na rua tem aparecido cada vez mais estampada em
jornais quando se trata dos protestos empreendidos por todos os cantos do mundo, na
cena artística brasileira, até mesmo a catarinense.
Recorrentemente esta nudez, seja no protesto, seja na performance arte, se
debate nos braços do policial, que faz cara de nojo ou se diverte. A nudez é calada
muitas vezes antes de acontecer, a nudez anunciada é reprimida pela presença da
polícia, antes mesmo de se mostrar. Quando isto acontece, um mal-estar se instala entre
as pessoas que pensam o corpo nu como meio de reação às circunstância sociais ou
estandarte de determinadas causas, e gritos ecoam por todos os espaços de expressão:
jornais, revistas, redes sociais e mais protestos seguem, mais performances, artísticas ou
de protesto aparecem.
No texto A politização da nudez: entre a eficácia reivindicativa e a obscenidade
real, Paula Sibilia traça uma genealogia da utilização da nudez como protesto e
investiga os deslocamentos da polêmica em torno da nudez na sociedade
contemporânea,

Nos últimos anos surgiram também certas agrupações políticas de novo


cunho, cuja principal arma é precisamente essa: tirar as roupas em público,
sobretudo nas ruas das grandes cidades, com o intuito de chamar a atenção
para diversos assuntos que consideram importantes. (2013 p 2)

Para a autora a nudez em si já não encontra a repressão que teve no passado, no


entanto há uma “purificação imagética” que condiciona o corpo nu à beleza da pele lisa
e jovem, sem marcas, deixando o obsceno para os corpos que não atendem as regras
estéticas do mercado, o corpo esteticamente imperfeito para o mercado é o protagonista
do obsceno hoje. Parece que este ponto é fundamental para pensar os protestos e as
performances com nudez na rua hoje, porém deixarei esta perspectiva para um próximo
momento. Interessa aqui, para iniciar a discussão, fazer uma breve exposição de
situações e materiais artísticos e de protesto que exemplificam a utilização da nudez na
rua e sua relação com o espaço da cidade.
Neste tempo-espaço histórico a nudez se mostra como ligação entre o protesto e
a performance arte. Mas como se dão os processos de utilização da nudez como meio
expressivo, tanto por artistas como por ativistas? E onde o pensamento sobre a nudez
liga arte e política e amplia o olhar sobre a expressão na rua através do corpo?
A partir das reações populares através da nudez como meio de obter atenção
social para determinada causa, a performance se instaura. No entanto essa nova
percepção da utilização da performance, que preserva muito de suas estruturas básicas,
intensificando-as: a relação espacial, histórico-temporal, a reação ao poder público
direto, propõe novas bases para sua realização, tendo o anonimato como um elemento
fundamental. O cidadão e seus direitos como agente e a utilização das redes virtuais em
intensidade como mecanismo de organização e como divulgação posterior. São dados
que permitem pensar a performance arte expandida e a transformação do lugar do
performer.
A proximidade entre performance arte e performance social, mediada pela
nudez, mostra que o artista e o cidadão comum, buscam hoje expressar suas opiniões
políticas voltando de certa maneira ao estado básico e irrevogável do ser humano: o
corpo nu. O que os coloca em uma mesma linha de pensamento, que torna o artístico
parte recorrente de um pensamento popular, e o político parte fundamental de um
pensamento performático. Este elemento de “real” é fundamental para o engajamento
anti-representacional que a performance busca, ao mesmo tempo que no protesto este
“real” vincula determinada causa ao cidadão, através do risco que significa expor-se em
público.
Estas conexões estão mudando o engajamento performático e a presença do
artista de performance no ambiente social. Para tanto o artista de performance perde um
lugar de incompreensão, e é incorporado ao meio, aos cidadãos que agora “praticam”
arte, sem necessariamente ser identificado como um artista.
Foi pensando o corpo da mulher que me aproximei das discussões sobre a força
da imagem da nudez e como a nudez se transforma de acordo com o espaço e com a
ação que realiza ou que se realiza sobre ela. É interessante pensar que a nudez das
mulheres sempre foi alvo e objeto do olhar artístico em sua maioria praticado do
homens ao longo da história. Hoje, nas manifestações recentes de nudez pública, há
uma apropriação da nudez por parte das mulheres que produzem diferentes materiais
artísticos politicamente engajados, Sibilia comenta em seu texto,

Esse vínculo entre o novo tipo de protestos e a feminilidade também é


sublinhado por Philip Carr-Gomm, autor do livro A brief history of
nakedness (p. 89): "enquanto a história da nudez na religião é dominada pelos
homens", diz ele, "a situação oposta se aplica no campo da ação política,
onde a nudez tem sido usada com mais frequência pelas mulheres".(2013 p 4)

Estes elementos acima citados, o empoderamento do próprio corpo pelas


mulheres, a nudez estética (que muitos chamam de “o nú”), em contraponto à nudez
obscena, a nudez em ação, a nudez engajada, a nudez artística, a nudez que torna real as
ações em performance e em protesto, os usos do corpo nú para chocar, e a nudez como
filosofia anticonsumismo entre outras, são categorias de uso que tomam parte hoje do
cotidiano de todos.

Um contexto pessoal

Atuo em um espetáculo teatral, onde represento um corpo morto, sendo lavado


por uma faxineira de necrotério. Há mais de cinco anos faço e refaço o espetáculo
Women’s juntamente com Ana Fortes e André Carreira. É sobre a nudez deste
espetáculo que discorri em meu trabalho de conclusão da graduação, e nesta análise
concluí que o grande elemento castrador da nudez é o olhar do outro. Este olhar cultural
tem me acompanhado nas diferentes experiências com a nudez. De um ponto de vista de
quem age através da nudez, tenho percebido a força que possui o olhar de quem observa
esta ação.

O olhar cultural é mais do que uma simples lente, pois ele possui esse
aspecto de autocensura/observação que implica no controle do corpo nu por
razões determinadas culturalmente. [...]
Visto que a identidade é fluída e ganha fruição a partir de discursos e
performances, o corpo nu torna-se identificável somente após ser submetido
ao olhar cultural. (BOODAKIAN, 2006 p 143)

Durante um ano tive a experiência de trabalhar como modelo vivo para artistas de
uma escola de arte. Nesta perspectiva, a nudez se mostra completamente diferente, e
talvez se possa comparar à nudez clínica. Aqui o corpo é a massa que é forma, luz e cor.
Desprovido de desejo, de contexto, de conflito ou drama. Neste trabalho não é a nudez,
o corpo nú que se mostra, como na morta, mas o conjunto total que mistura forma e
contexto, pele. A pele toma lugar central no trabalho como modelo vivo, a pele conduz
as percepções dos artistas. A pele reflete a luz, interage no espaço, moldando o fundo e
contrastando com as cores. Mas esta pele também transcende a matéria e se apoia no
contexto e toma outro significado, “Curiosamente a pele retira do corpo seu status de
objeto, no momento em que ela não é mais percebida como involucro das formas. Tal
qual uma superfície com seus próprios relevos, ela transforma o corpo-objeto em corpo-
texto.” (JEUDY, 1945 p 84)
É a partir destas duas percepções pessoais e práticas do corpo nu, bem como suas
divergências, que em minha trajetória como artista e pesquisadora passei a perceber os
atos de nudez na rua, através de mecanismo midiáticos e cheguei a textos e teorias da
performance.
O corpo político da performance é citado por Carlson quando revisita a história da
performance e estabelece a classificação de performance política,

A obra de performance, baseada primeiramente em material autobiográfico e


frequentemente dedicada a dar voz aos indivíduos ou grupos previamente
silenciados, tornou-se, no início de 1970, e ainda permanece nos anos 1990, a
maior parte da performance social e politicamente engajada. Mas outra
performance também comprometida se desenvolveu sob formas diferentes e,
em geral, mais claramente resistentes. Aqui, como na performance da
identidade, o caminho foi tomado, tanto na teoria como na prática, por
mulheres, embora mais recentemente homens gays e minorias étnicas
continuem a desenvolver essas estratégias canalizando-as para suas próprias
preocupações. (CARLSON, 2009 p 115)

Em meu contato com mulheres que há alguns anos vem mostrando os seios, em
marchas pelos direitos femininos (a “Marcha das Vadias” principalmente), inclusive em
Florianópolis, pude perceber esta performance política, mas poeticamente artística,
visualmente carregada de significação. No entanto esta manifestação ainda estava no
território do compreensível, pois eram cobertas de razões políticas que eu conhecia
profundamente. Mas então começaram a aparecer outras manifestações nos mais
diferentes países, sob as mais diferentes óticas: o direito dos animais, o direito de andar
de bicicleta com segurança, a preservação dos direitos sociais, a indignação com o
desiquilíbrio social .
Seguidamente pode ser visto um post no Facebook que, compartilhado inúmeras
vezes, se tornou um mantra virtual, “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o
corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou
uma festa.” Eduardo Galeano”. Inúmeras vezes o compartilhamento aparece na Time
line, sempre acompanhado de uma imagem antiga, talvez uma fotografia dos anos
cinquenta onde duas pessoas, um homem e uma mulher, dançam nuas em um campo.
Apesar de muitos dos que me conectam pela rede social estarem envolvidos com arte, é
comum ver esta postagem sendo compartilhada também por pessoas que não possuem
nenhum vínculo direto com o fazer artístico.
O nu aparece, agora, vinculado também ao cidadão comum, mesmo que ainda
na postagem virtual. A poética do corpo nu, relacionado à liberdade e à simplicidade, a
imagem básica do ser humano, já está no domínio do público que não possui
aparentemente um contato direto e recorrente com arte. Na mensagem o efeito é de
manifestação de aceitação do corpo nu. Nesta postagem, o corpo não é pesado como
antes, o corpo esta em fase de libertação.

Um contexto local

Em Florianópolis tivemos três eventos que nos mostram bem o contrário do que
se publica na rede virtual, o posicionamento do governo e da polícia quanto ao ato de
desnudar-se, seja qual for o fim, na rua. Como já foi dito, a nudez na rua é enquadrada
judicialmente como “ato obsceno” podendo custar a quem o pratica até um ano de
prisão.
Ainda em 2012, e em 2013 na cidade de Curitiba, o Erro Grupo, importante em
sua trajetória de 11 anos de pesquisa cênica na rua, apresentou o espetáculo Hasard,
onde ao final, durante um jogo de sorte, uma das possibilidades envolvia a nudez total
de alguns atores. A polícia se colocou a postos nos dias das apresentações e repreendeu
os atores.
Em 2010, o performer Betinho Chaves, foi detido dentro do campus da
Universidade Federal de Santa Catarina, por apresentar a performance Na brasa de
Pindorama onde estava totalmente nu. Ironicamente a performance fazia parte da
Semana Ousada de Artes, promovida pela universidade onde estava sendo realizada
juntamente com a UDESC. A guarda do campus foi acionada por alunos e levou o
performer para a delegacia onde prestou depoimento e foi liberado.
Conversando com um participante da “peladada” ou pedalada pelada, um
protesto que tem acontecido em diferentes cidades do país, onde os participantes andam
nus, ou seminus, de bicicleta pelas ruas da cidade, ele questionava a eficácia do ato,
para ele havia um desvio do olhar do público passante sobre o tema que importava: as
condições de segurança de quem anda de bicicleta nas ruas.
A rua tem sido tomada por manifestos, protestos e ações isoladas ou vinculadas
à uma causa. A conjuntura social mundial tem mostrado uma força popular sem igual no
que diz respeito a articulação popular. A divulgação entre mídias, principalmente as não
oficiais como as redes sociais, tem mostrado a preocupação de camadas sociais com
decisões políticas ou causas em geral. O protesto tem levado as pessoas às ruas, tem
tornado presente o corpo daqueles que se encontram ou se organizam pelo meio virtual.
A ação de corpos nus tem se tornado presente em diferentes protestos por
diferentes causas, e esta ação não está desvinculada de um pensamento crítico, político e
principalmente estético e poético. A nudez nestes lugares, é o símbolo de um
pensamento que flerta com o pensamento artístico. Porque estamos ficando nus? O que
nos move? Seria a necessidade de mostrar que frente à polícia, ao poder, ao governo,
não temos nada – que temos consciência disso? Nem armas, nem armaduras, nem
roupas, nem símbolos ou marcas que nos identifiquem? Ou estamos mostrando que a
essência do corpo, a nudez, a fragilidade da pele nos torna iguais e apenas humanos? Ou
somente queremos chamar atenção, e sabemos que a nudez ainda é uma ação
desconcertante? Seria uma reinvindicação de uma humanidade perdida? Seria uma
identificação animal com a natureza?
A crise que se apodera dos pensamentos, que desilude do capitalismo, do
consumo, o apelo constante para as causas ambientais, ecológicas e de estrutura urbana,
somadas, resultam em questionamentos profundos sobre a sociedade atual. A constante
insatisfação com o sistema regente, os modelos que desabam, o europeu e o americano,
principalmente, e a constante e insistente busca por eles; o desdobrar de crenças
religiosas e espirituais, as novas percepções sobre o corpo e sobre o ser humano,
aparentemente transbordam em ações públicas que se misturam com o artístico e que
reivindicam a performance.
Para uma revisão política sobre contemporaneidade é preciso visitar a obra de
Zygmunt Bauman, principalmente O mal-estar na contemporaneidade, entrevistas e
artigos publicados nos últimos tempos são valiosos para pensar a conjuntura de nossa
sociedade. Atuais observações tais como “a situação de interregno”, momento de
contradições e dúvidas que colocam os cidadãos em um ambiente caótico e com poucos,
ou quase nenhum, lugares onde depositar suas certezas, mesmo quando em se tratando
de valores, nos dá uma noção poética e profunda sobre a sociedade atual,

Recentemente, eu comecei a chamar a presente situação de “situação de


interregno”. O interregno é um conceito bem antigo, da época de Tito Lívio,
um historiador da Roma Antiga, que escreveu a história de Roma em “Ab
Urbe Condita”, “desde a fundação da cidade”. O primeiro interregno ocorreu
quando o primeiro rei da Roma Antiga, Rômulo, após 38 anos de reinado,
morreu. Não está muito claro, pois alguns dizem que ele foi direto para o
Paraíso, que ele não morreu. Mas ele desapareceu, após 38 anos. A
expectativa de vida naquela época era de 38 anos, o que significa que, no
momento em que ele morreu, praticamente não havia ninguém que se
lembrasse de como era a vida antes de Rômulo. Em toda parte, todas as
prescrições e proscrições vinham de uma só fonte: Rômulo. E, de repente, ele
desaparece. Imagine-se nessa situação. O que fazer? Não se sabe o que fazer,
de verdade. (BAUMAN, 2012, entrevista concedida ao jornalista Cílio
Bocanera do programa Milênio, Globo News, transcrita e publicada pelo site
Direito Constitucional, p 2)

Para Bauman essa situação é bastante parecida com a situação que vivemos
atualmente. Vivemos um momento de mudanças simultâneas, o que nos deixa sem
tempo para processá-las. É possível que as gerações futuras estejam adaptadas a viver
neste turbilhão, mas nossa época é a linha que separa o passado do futuro, mudanças
profundas nas comunicações se encontraram exatamente no ponto onde vivemos e daqui
podemos tocar o futuro e o passado.
Esta pode ser uma pista para compreender as motivações que levam as pessoas a
voltar para seu corpo e vê-lo como material expressivo, mas as implicações sobre este
ato, e tudo que discorre dele merecem estudos profundos.
Quando pensamos a nudez, o corpo se resume à imagem e ao contexto acionados
por uma ação. É possível dizer que a nudez enquanto tema, afastada da materialidade e
objeto corpo, está intrinsecamente relacionada à uma ação, por isso isolada do corpo em
sua totalidade. Nesta perspectiva, informações sobre este corpo, subjetividades,
identidades, informações sobre sua saúde, etc. não são tão relevantes como a imagem,
como o ato de desnudar-se e o contexto social e espacial em que se insere.
O pensamento artístico tomou estes ambientes, e responde, como em muitos
outros momentos históricos, pela condensação de pensamento, crítica, imagem e ação.
O pensamento artístico se espalhou e se tornou constante nas ações sociais. O cidadão
faz arte, porque a arte lhe serve de mecanismo, de meio e método, porque a arte faz
parte da composição social do qual ele é parte, e pela qual ele é feito. A expressão
humana não pode ser parada ou encaixotada, e por isso a performance toca a rua, e se
traduz em protesto arte, sem necessariamente necessitar desta classificação.
A nudez nos protestos é o símbolo de uma revolução de pensamento, tanto para
aqueles que estão conectados com o pensamento da performance, sem necessariamente
pensar sobre isto, quanto para a arte da performance, que hoje habita outros espaços,
naturalmente.
É fundamental mostrar as conexões visíveis entre a performance arte e o
protesto, revelar estas conexões expandindo o conceito, ampliando o olhar sobre a
manifestação pública, conectando artistas e suas ações e cidadãos e as causas que os
levam a pensar performaticamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOODAKIAN, Florence Dee. Despindo os códigos: gênero, relativismo cultural e o


corpo nu. In: Garcia, Wilton. (org) Corpo e subjetividade – estudos contemporáneos.
São Paulo: Factasch Editora, 2006.

CARLSON, Marvin A. Performance: uma introdução crítica. Tradução de Thaïs Flores


Nogueira Dinis, Maria Antonieta Pereira. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. Tradução Tereza Lourenço. – São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.

SIBILIA, Paula. A politização da nudez: entre a eficácia reivindicativa e a obscenidade


real. In: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação.
Anais do XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de
maio de 2014 disponível em:
http://compos.org.br/encontro2014/anais/Docs/GT06_COMUNICACAO_E_SOCIABI
LIDADE/paulasibilia-compos2014-novo_2185.pdf acesso em 07/07/2014

Planalto Central
Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm acesso em
04/04/2013

Consultor Jurídico (Entrevista concedida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman ao


jornalista Sílio Boccanera)
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jan-27/ideias-milenio-zygmunt-
bauman-sociologo-polones acesso 02/02/2013

Erro Grupo
Disponível em: http://www.errogrupo.com.br/v4/pt/ acesso em 04/05/2014

Marcha das Vagabundas Florianópolis


Disponível em: https://www.facebook.com/MarchaDasVadiasFlorianopolis acesso
03/05/2014

Notas:  

                                                                                                                       
1
Ato obsceno é definido como crime no Código Penal Brasileiro
“CAPÍTULO VI DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.”
 
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESPAÇO E IMAGINAÇÃO NA TEATRALIDADE DE ROBERT LEPAGE
Luciana Paula Castilho Barone (FAP; UNESPAR)

A questão da teatralidade, se já impulsionava os encenadores do início do século XX,
em sua busca pela autonomia da linguagem teatral em relação à literatura dramática,
volta à pauta do debate teórico da cena contemporânea. Em “Teatralidades
Contemporâneas”, Sílvia Fernandes (2010) nos conduz a uma passagem por algumas
de suas perspectivas, desde a diferenciação entre a teatralidade denegada e à da
convenção consciente, proposta por Patrice Pavis, até a diferenciação e posterior
aproximação entre as noções de “teatralidade” e “performatividade” de Josette Féral,
em sua crítica à generalização do termo “pós-dramático”, apresentado em 1999 por
Hans-Thies Lehmann.

Efetivamente, ao enfocarmos a teatralidade híbrida do encenador canadense Robert
Lepage, que investe no jogo entre os elementos que a compõem como porta de acesso
ao universo poético, o termo ‘pós-dramático’ nos parece vago para defini-la. As
análises que Lehmann propõe dos aspectos da cena de Lepage, concentram-se
principalmente no exemplo de Os sete afluentes do Rio Ota, especialmente pelo
caráter épico, dessa “viagem teatral político histórica” (LEHMANN, 2007, p.379),
que aproxima-se da estrutura onírica, pelo uso que faz das mídias e dos “estilos de
representação” (ibidem) e por sua longa duração representacional (idem, p. 307). O
autor identifica ainda a recorrência a montagens solo na cena pós-dramática, passando
pelo exemplo de Agulhas e Ópio (idem, p.209), sem no entanto, aprofundar-se em
sua análise, ou na de outros exemplos, como Vinci e Elsinore, também concebidas e
interpretadas por Lepage. Mas o que mais chama a atenção, além de serem poucas as
vezes que Lehmann refere-se efetivamente à produção deste encenador embora
configure como um dos “nomes” listados em seu “Prólogo”, como expoentes da cena
pós-dramática, é que a dramaturgia lepageana, embora apresente elipses temporais e
entenda-se como sempre em progresso (retroalimentando-se da relação com o
público), apoia-se predominantemente numa estrutura de linearidade temporal, não
totalmente desvencilhada do enredo dramático.

Embora Lehmann contemple uma coexistência entre o dramático e o pós-dramático,
afirmando que o drama continue a existir como estrutura – "mesmo que enfraquecida,
falida – do teatro ‘normal’" (idem, p. 33), afirma que os “membros ou ramos do
organismo dramático” presentificam-se como “material morto” (idem, p. 34),
constituindo o espaço de “uma lembrança em ‘irrupção’”(ibidem) na chamada cena
pós-dramática. As estruturas dramatúrgicas das peças de Lepage, embora
evidentemente focadas na cena e não no texto, apoiam-se na noção de personagem, e
de desenvolvimento linear da trama, entrelaçada por conflitos que possibilitam,
inclusive, a relação de identificação com o espectador. Assim, parece-nos controverso
que sua dramaturgia configure-se como exemplar da cena pós-dramática desde o
“Prólogo” da publicação de Lehmann, ainda que outros aspectos de sua cena se
enquadrem nas diversas possibilidades que o autor define ao longo de sua defesa.
Se, conforme Sílvia Fernandes (2010, p. 113), “o conceito de teatralidade tem se
revelado um instrumento eficaz de operação teórica no teatro contemporâneo”, o de
Josette Féral, por considerar as relações de criação e recepção, nos parece mais
pertinente para se lançar um olhar sobre a cena lepageana, do que a proposição pós-
dramática de Lehmann. Este trabalho, enfoca a relação entre espaço e imaginação na
teatralidade de Lepage, considerando justamente que a imaginação potencializa-se dos
dois lados da cena - o espaço do palco e o da plateia - estabelecendo-se como elo da
criação em progresso.

O espaço da representação

Os espetáculos de Lepage priorizam a frontalidade que, por si só, já direciona a
relação de visualidade entre plateia e cena. Esta relação espacial favorece a
emergência do que “literatura cênica canadense convencionou chamar de ‘teatro de
imagens’” (BARONE, 2007, p. 228). Explorando a relação entre cena ao vivo,
projeções de vídeo ou filmográficas e o movimento cenográfico, Lepage oferece à
perspectiva do espectador a possibilidade de diversos pontos de vista, conduzindo-o
para dentro do espaço da representação, fazendo-o seguir, muitas vezes, o percurso de
seus protagonistas.

Em Vinci, por exemplo, a plateia embarca no avião em que o palco é transformado
pelo uso que o ator faz da cadeira em cena, além de passear no ônibus turístico
londrino, representado pela sombra de um retrovisor, e de adentrar um Burger King
em Paris, ambientado pelo copo de refrigerante que a Gioconda tem em mãos.
Abordando a viagem iniciática de Philipe, um fotógrafo canadense que viaja para a
Europa em busca de motivação artística, a montagem estabelece a espacialidade
metonimicamente, pois um objeto referencial – a cadeira, o retrovisor, o copo –
representa o todo. A inserção da plateia no ambiente expandido do palco se dá através
do jogo que o ator com ela estabelece, mediado pelos signos da espacialidade.

Esta relação metonímica também pode ser identificada em Trilogia dos Dragões,
espetáculo em que uma guarita de estacionamento vai sendo ressignificada para
referir-se aos diversos espaços da representação por que transita. Para Ludovic
Fouquet (2006), há, nesta trilogia, uma herança das marionetes (com que Lepage
trabalha no início de sua carreira), como se a lógica dos bonecos fosse empregada no
gestual dos atores e em sua relação com os objetos ou em sua ampliação cenográfica.
Os atores que interpretam o Chinês e Crawford, por exemplo, para provocar a ilusão
de descida de uma escada para o subsolo, caminham, dentro da guarita, em círculos,
dobrando progressivamente os joelhos. Quando desaparecem, simplesmente abrem a
porta da guarita, transformando o espaço externo (a rua, no início da cena), no subsolo
de uma lavanderia. É o jogo entre o corpo e o objeto, aqui amplificado na cenografia,
que estabelece o espaço da representação.

Em Agulhas e Ópio, o jogo entre cenário, ator e projeção transporta o espectador a
novos espaços, revelados pelo movimento da tela, que gira em torno do próprio eixo
horizontal. A relação que o ator vai estabelecendo com cada um dos lados da tela,
amparada ou não por projeções, transporta a imaginação do espectador, para o avião
que em 1949 leva Jean Cocteau de Nova York a Paris, para o quarto de hotel em que
Robert se hospeda, na Paris de 1989, ou para o restaurante parisiense que recebe
Miles Davis e Juliette Gréco, em 1949. Tempo e espaço são convencionados pelo jogo
do ator com a cenografia física e virtual. Flutuando entre as hélices, ele representa
Cocteau de 1949, quando oculta-se atrás da tela, mostrando apenas sua silhueta em
sombra chinesa, nos remete a Davis do mesmo ano e quando revela-se sob a lâmpada
do quarto de parede vermelha, envolto no lençol da cama, é o Robert de 1989,
descobrindo o universo dos outros personagens. Transitando entre estas três figuras e
suas vivências amorosas, a peça conduz a seu apelo às agulhas da acupuntura ou do
ópio para superar a dor decorrente destes amores. Por meio de sua cenografia virtual,
a montagem mergulha o espectador na abstração do vórtice a que conduz a alucinação
do ópio, junto com o ator que dança no ar, suspenso por dois fios cenotécnicos. Este
recurso possibilita ainda a queda de Jean Cocteau do alto de um edifício, ilusão
promovida pela relação entre os movimentos do ator, no ar e as imagens do vídeo,
projetadas atrás dele -um travelling vertical de janelas de um prédio que se sucedem
uma à outra.

É no jogo entre os diferentes elementos da cena que se estabelecem as espacialidades
evocadas. A imaginação do espectador é motivada pelas imagens poéticas que se
configuram em cena. A partir do real, é estimulada a função irreal do psiquismo, para
que o espectador complemente as imagens sugeridas pelo palco, como a vertigem do
personagem que despenca do alto de um prédio, ou a alucinação proporcionada pelo
ópio. Há nestas sugestões, uma espacialidade interior, relacionada à vertigem, à
sensação do espaço, mais do que sua ocupação objetiva. Lepage parte de um espaço
real, para sugerir a sensação ou emoção que vive o personagem naquele momento -
paixão, alucinação, queda – convidando a plateia a adentrar este jogo de (sua própria)
intimidade.

A cena da alucinação é tomada por uma grande espiral virtual, que transporta
personagem e espectador do mundo físico para o subjetivo – o outro lado da tela
cenográfica. Gaston Bachelard, ao tratar da dialética entre o exterior e o interior no
que chama de 'língua filosófica' (2008, p. 217), afirma que

O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A
metafísica mais profunda está assim enraizada numa geometria
implícita, numa geometria que – queiramos ou não – espacializa o
pensamento; se o metafísico não desenhasse, seria capaz de pensar?
Para ele, o aberto e o fechado são pensamentos (BACHELARD,
2008, pp. 215-216).


Podemos estender seu pensamento à poética cênica para pensa-la em termos
geométricos, em termos de desenhos que espacializam não o pensamento organizado,
mas sua abstração. A espiral de Lepage concretiza em cena este desenho, o ator nela
mergulha e a tela gira, de modo a fazer com que sua alucinação o engula, desapareça
com ele da cena e reste ao espectador apenas o espaço da imaginação, que completa a
espiral infinita. Voltando a Bachelard:

Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído
do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é
circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de
permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.

E que espiral é o ser do homem! Nessa espiral, quantos dinamismos
se invertem! Já não sabemos imediatamente se corremos para o
centro ou se nos evadimos. Os poetas conhecem bem esse ser da
hesitação de ser (BACHELARD, 2008, p. 217).

Como poeta da cena que é, Lepage transita entre o dentro e o fora do ser e, na
concreção de suas espacialidades internas e externas, nos conduz por estes caminhos
do ser apaixonado de seu Agulhas e ópio.

A espiral, assim como outras formas geométricas, volta à cena em Geometria dos
milagres (1998), que aborda a relação de mestre e discípulo, bem como de
conhecimento e organicidade, através do encontro entre o arquiteto Frank Lloyd
Wright e o espiritualista Giorgi Ivanovich de Gurdjieff. Nesta montagem, as formas
são geometrizadas através do desenho dos corpos no espaço, explorando tanto os
movimentos físicos propostos por Gurdjieff, quanto os da biomecânica de Vsevolod
Meyerhold. Arquitetura e corpo, teatro e espiritualidade se encontram em cena, por
meio da geometria miraculosa de Lepage que espacializa círculos, quadrados,
triângulos, espirais e linhas paralelas (formas que nomeiam os quadros do espetáculo),
para transitar no imaginário do dentro e do fora, do aprendizado e da criação, da
transformação interna, à revolução social.


Etéreas fronteiras

Em entrevista a Rémy Charest, Robert Lepage conta que quando esteve no Japão,
antes de montar Os sete afluentes do Rio Ota, seu primeiro impacto, que muito lhe
inspirou na montagem do espetáculo, foi justamente o da percepção do espaço, por
seu uso otimizado e pela necessidade de transparência de seus limites: “O Japão é um
país feito de papel de arroz - as paredes das casas são literalmente feitas disto - então,
fronteiras são sempre um pouco etéreas, enevoadas: elas são feitas de ar” (LEPAGE in
CHAREST, 1999, p. 38, tradução livre).

Em contraposição à imensidão territorial canadense, e a sua consequentemente baixa
densidade demográfica, Lepage se defrontou com um país altamente populado, onde o
valor do espaço toma novas dimensões:

os japoneses vivem em apartamentos do tamanho de lenços, o que
significa que eles têm que criar um espaço interior considerável,
infinito. No Canadá, o espaço é concreta e obviamente disponível;
nós temos potencial para desenvolver um espaço interior, mas não
tendemos a isso, dado nosso condicionamento, devido a nossa
percepção espacial (idem, p.39).

Essa distinção cultural, Lepage também identificou no interior do teatro, pelas
diferenças comportamentais entre os atores japoneses e os ocidentais; enquanto estes
aproveitam os intervalos para conversar sobre diversos assuntos, os japoneses
“refugiam-se em si mesmos”, numa espécie de tempo ‘privado’: “Todos os atores têm
seu local pessoal marcado na sala de pesquisa para o qual eles voltam durante os
intervalos. Abordá-los é invadir seu espaço pessoal” (ibidem).

Em Os sete afluentes do Rio Ota, a influência dessa percepção é notória. A ideia da
peça surge de “sete caixas, sete afluentes, sete portas de correr
japonesas” (FOUQUET, 2006, p.251, tradução livre). O formato cênico concretiza
esta ideia: uma grande caixa, retangular, com portas de correr, que se abrem a uma
multiplicidade de pequenos espaços ao longo das sete horas de duração do espetáculo,
que aborda desde os dias que se seguem ao bombardeio de Hiroshima, em 1945, até
os anos de 1990, apresentando personagens que viveram as consequências da bomba,
o holocausto, a epidemia da AIDS.

A ocupação espacial, nas cenas que se dão no Japão, segue a lógica oriental de
otimização do espaço por meio de transparências e uso de poucos objetos, para causar
a sensação de amplitude dentro de pequenas áreas. Assim, a fachada da casa das
personagens Nozomi e Hanako, em Hiroshima, é feita de portas com moldura de
madeira e papel de arroz. Estas portas correm para os dois lados, revelando, na
profundidade do palco, os três ambientes da casa (dois quartos nas pontas e uma sala
ao meio). À frente, a menção (verbal e recorrente) a um estreito jardim de pedras
provoca o imaginário do espectador a completar este ambiente. Há uma fronteira
física entre o dentro e o fora, estabelecida pelas portas. O espaço externo é sugerido à
imaginação do espectador pelas palavras descritivas das personagens. O espaço
interno é paulatinamente revelado, conforme abrem-se as portas.

Bachelard, em sua topoanálise da casa, aborda o espaço habitado como um espaço de
proteção do eu. A casa é um espaço de intimidade, de memórias, que “retém o tempo
comprimido” (2008, p. 28). O Prólogo de Os sete afluentes do Rio Ota apresenta
Hanako, personagem que tem deficiência visual em decorrência da bomba de
Hiroshima, ainda menina, vendada, na casa de sua mãe. No último quadro da peça,
voltamos à mesma casa, onde ela se recorda onde estava, no momento da explosão da
bomba:

HANAKO – Eu estava lá, perto do rio. Você pode escuta-lo? O que


amo nesta casa é que ela fica justamente onde o Rio Ota se divide
em sete afluentes. Meu irmão decidiu vende-la (LEPAGE et al.,
2002, s/p, tradução livre).

A casa como o habitat da memória. A venda da casa como seu esfacelamento.


A venda, nos olhos, remetendo à impressão da última memória visual da
personagem. A privação da vista reconstituindo o espaço da memória visual
que ela guarda da casa. E, como afirma Bachelard (2008, p. 33): “(...) para
além das lembranças, a casa natal está fisicamente inserida em nós. Ela é um
grupo de hábitos orgânicos”.

A ideia da intimidade, estritamente ligada à casa natal, é retomada por
Bachelard, quando devaneia sobre gaveta, cofres e armários. Se Lepage faz do
palco uma grande caixa com pequenas caixinhas que se abrem, dentro destas
caixinhas, são iluminados segredos que se revelam por suas momentâneas
transparências. As imagens do segredo de Bachelard são devaneios de
intimidade, que na cena de Os sete afluentes do Rio Ota, se concretizam na
ocupação dos espaços de intimidade.

Quando a casa de Hanako se transforma na pensão em Nova York, não é mais a
intimidade da casa natal que está em jogo, mas a intimidade que se estabelece
pela divisão do espaço coletivo, em outra situação de moradia: transitória, que
aproxima desconhecidos. A caixa luminosa da casa japonesa, que revela sombras
íntimas, quando fechada, transforma-se (pela abertura das portas) na pensão norte-
americana, que apresenta dois quartos, à esquerda e à direita e o banheiro coletivo ao
centro. Nele, todos os hóspedes se encontram, em diferentes cenas, ocupando, cada
um, um local (o vaso, a pia, a banheira). Este coletivo serve também de espaço para o
ensaio da banda de alguns hóspedes, que se dá de madrugada, incomodando os
demais. Este espaço do banheiro, tão íntimo, é o local em que todos se encontram,
mesmo sem ter a menor intimidade.

Há uma diferença, dada pela cenografia e pelo uso que se faz dela, na ocupação
espacial oriental e ocidental, que se estende ao comportamento das personagens e à
relação que estabelecem entre si. Se a ideia de transparência e a projeção de sombras
(silhuetas dos personagens) predominam nas cenas que se dão no Japão, revelando os
contornos de uma intimidade que não poderia se dar à vista direta do público, em se
tratando de personagens cuja cultura valoriza este espaço interno, uma certa
privacidade ou reserva, o contraste com o barulho e a proximidade entre os corpos nos
Estados Unidos da América, evidencia as diferenças entre as relações que em cada um
dos lugares se estabelecem. O encontro entre personagens das duas diferentes culturas
também sublinha o contraste entre elas. Na cena em que o jovem canadense Pierre
chega na casa de Hanako, em Hiroshima, ela, gentilmente, vai lhe mostrar o quarto
que ele alugou, o que provoca no hóspede uma frustração em relação às expectativas
que criara, provavelmente num acordo feito à distância:



HANAKO – Aqui é o quarto.
(Pierre, surpreso, deixa cair seus sapatos, depois entra no quarto,
onde deixa sua bagagem)
PIERRE - É isso?
HANAKO - Sim, são dois tatamis
PIERRE - Desculpe-me, eu não estou entendendo direito.
HANAKO - Dois tatamis... um, dois.
PIERRE - Dois tatamis ! Oh ! Eu achei que fossem dois quartos
com tatamis.
HANAKO - Dois quartos? Não, é um quarto com dois tatamis. Não
te agrada?
PIERRE - Não, não, não...Sim! É... íntimo.
HANAKO - Então, vou deixar você dormir. Boa noite! (idem)

Outro exemplo marcante desta diferença comportamental é comicamente ilustrado na
cena em que a canadense Patrícia entrevista Jana Capek, nascida em Praga e tornada
monja budista que passa a morar em um templo em Hiroshima:

JANA - Sabe, às vezes é preciso abandonar tudo, para tudo obter...
Eu comecei a praticar o zen quando vivia em Paris. Nesta época, eu
fazia tudo com excesso: o amor, a arte, a política, eu estava em
todos os combates. Eu era uma mulher em cólera. O zen entrou em
minha vida e pela primeira vez, eu conheci um pouco de silêncio, e
eu senti que talvez eu tivesse encontrado, enfim, aquilo pelo que eu
buscava tão desesperadamente (idem).

Esta sua relação com o silêncio é contraposta à impaciência de Patrícia: no momento
em que sua equipe precisa de silêncio para gravar o som ambiente, ela, querendo
fumar no templo, fala sem parar, explicando todos os motivos ideológicos pelos quais
abandonou os cigarros franceses Gauloises, e finalmente, cede impacientemente à
quietude verbal:


PATRÍCIA - Nós não terminamos tudo, de fato, agora vamos fazer
aquilo que chamamos de som ambiente (...), é para a montagem, nós
podemos precisar disto na montagem, trata-se simplesmente de
gravar um minuto de silêncio (tempo). Isso não será muito difícil
para você ! (...) Você está pronto, Régis? Vamos? (à Jana). Então,
agora, basta fazer silêncio por todo um minutinho... (Jana ficará
perfeitamente imóvel durante a gravação de som, enquanto Patrícia
gesticulará e fará todos os tipos de sinais para Régis) (idem).





Portas, quadros, cosmos

Fouquet (2006) identifica um pensamento cinematográfico na encenação de Lepage,
como se o palco se configurasse como uma tela cênica, em que se operam princípios
de enquadramento e edição. As portas, então, potencializam a ideia de
enquadramento, ao viabilizar o recorte de um quadro dentro de outro, que é
emoldurado pela caixa cênica. O palco fica também dividido em dois (a frente e o
fundo, o fora e o dentro, o visível e o invisível), possibilitando a simultaneidade entre
diferentes cenas, emolduradas pelos limites que cada porta define. Assim, cenas de
fundo se dão simultaneamente a cenas de frente, revelando paroxismos entre o interno
e o externo, fazendo com que vários quadros vivos possam ser assistidos ao mesmo
tempo.

Há, na visão espacial de Lepage, uma concepção arquitetônica que elabora o espaço
segundo sua plasticidade e sua funcionalidade, dando-lhe uma mobilidade orgânica. O
espaço é tornado, assim, um antagonista ou protagonista da cena, em seu jogo com o
ator. Formas geométricas (uma tela retangular, uma caixa quadrada etc) estão sempre
amparando luz, sombras ou projeção e sua mobilidade (dada pelas imagens em
movimento que recebem, ou pela própria mobilidade cenotécnica) contracena com os
atores, criando uma cena viva em que as transformações espaciais se dão à vista do
espectador, como parte do jogo espetacular. A espacialidade de Lepage estabelece,
portanto, sugestões para o campo da imaginação do espectador, ao relacionar o espaço
da ação à atmosfera subjetiva vivenciada pelos personagens.

O recurso das portas, já explorado em Os sete afluentes do Rio Ota, aparece também
em A face oculta da Lua, possibilitando modificações espaciais, através do
movimento cenográfico, que remetem à espacialização objetiva dos personagens
(interna ou externa, para lá ou para cá da porta), sugerindo, muitas vezes, um
movimento subjetivo, do dentro para o fora, ou vice versa. Apresentando a visão
cosmonauta da personagem Philippe, a peça nos conduz de seu percurso acadêmico
sobre o tema, à elaboração de um vídeo sobre a vida no planeta para ser transmitido
ao cosmos. A descrição espacial que Philippe faz de seu apartamento para o vídeo que
produz é predominantemente subjetiva, partindo de suas sensações em relação a seu
modo de viver, pleno de espaços vazios que ele vai revelando, conforme abre as
portas de sua casa, para o registro.

A dimensão do imaginário do personagem também é espacializada em cena, por meio
do flutuar de um pequeno boneco cosmonauta que nos leva a um espaço cósmico,
onde não impera a gravidade. O espaço é dado pelo vazio, preenchido apenas pela
movimentação leve e quase onírica do boneco. O ventre materno também é poetizado
em cena, através da projeção do interior da máquina de lavar em que o protagonista,
seduzido pela semelhança entre sua abertura e a janela de uma espaço-nave, adentra,
extraindo dela o pequeno boneco, a ela ligado, pelo cordão umbilical. A pequena porta
da máquina de lavar nos conduz ao imaginário de Philippe, aos sonhos que mobilizam
e conduzem sua ação.

O grande espelho, que representa a mesa do bar, não só contextualiza espacialmente a
cena, mas reflete a imagem do protagonista que está acompanhado apenas de si
próprio, como que conversando consigo mesmo, seja quando fala ao bar man, seja
quando se dirige aos extra-terrestres, através de sua câmera autobiográfica. O
elemento do espelho tem esta dupla função cenográfica: representar o espaço externo
à personagem, bem como sua condição interna, solitária, à procura de si próprio.
Somos transportados assim, de um espaço físico a um espaço imaginário, ou
psicológico, de uma lavanderia, à face oculta da lua, onde podemos, como
espectadores, olhar para nós mesmos, no vazio. Ao final do espetáculo, durante a
dança em que Philippe flutua sonhando, é a plateia que o grande espelho reflete,
inserindo-nos nesse sonho pela conquista do cosmos.

O espelho também tem significativo papel na encenação de Os sete afluentes do Rio
Ota, e a ideia de reflexo como reflexão sobre si mesmo se presentifica em Vinci e
Elsinore. Em Vinci, o protagonista, em busca de sua motivação artística, encontra-se
com um guia (de um ônibus de tour londrino) que lhe sugere que olhe para o espelho
e, em caso de enjôo, abra a janela. Para sua versão de Hamlet, Elsinore, Lepage parte
da ideia de que todas as personagens são como projeções do príncipe da Dinamarca.
O vídeo é utilizado para espelhar o ator (no duelo que executa entre Hamlet e Laertes,
por exemplo), mas também para refletir o suposto antagonista como projeção do
personagem em duelo consigo mesmo. Já em Os sete afluentes do Rio Ota, aparece
diversas vezes, seja como objeto que não se pode mirar, no caso de Nozomi e Hanako
(a mãe, devido ao estrago estético que a bomba causou em seu rosto, e a filha, pela
cegueira nata que herdou de suas consequências), seja como reflexo de si mesmo,
como no caso de Jana Capek que revê a história de sua infância em campos de
concentração através do espelho. O espelho simboliza a descoberta de si. Não
conseguir olhá-lo é não poder ver-se a si próprio, através dos olhos, essas janelas da
alma. Mira-lo, é descobrir-se, no reconhecimento da própria história e da própria
alma. Ao duplicar, o espelho singulariza. O uso espacial do espelho, por Lepage
expande a subjetividade dos personagens, para além do espaço físico, no espaço
composto pelo imaginário do espectador.

A teatralidade de Robert Lepage explora e verticaliza as possibilidades de significação
e poetização do espaço para completar-se no imaginário do espectador, em seus
próprios devaneios. Ela se estabelece no jogo com o espectador, através do jogo
proposto no palco, entre os diversos elementos da cena que vão compondo os
diferentes espaços, seja de representação, objetivos ou subjetivos, pelos quais
transitam os personagens. Os elementos da cena se hibridizam no palco para
suscitarem a imaginação e o devaneio do espectador.







Referências:

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BARONE, Luciana Paula Castilho. Sete Afluentes para Robert Lepage. Tese de
Doutorado. Campinas, Instituto de Artes, 2007.

CHAREST, Remy. Connecting Flights: Robert Lepage in conversation with Remy
Charest. New York: TCG Books, 1999.

FERNANDES, Sílvia. “Teatralidades Contemporâneas” in Teatralidades
contemporâneas. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2010.

FOUQUET, Ludovic. Robert Lepage - L’horizon en images. Québec : Éditions Les
400 coups, 2006.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.

LEPAGE, Robert. Vinci. VHS, gravado no Théâtre Repère em 11/1986. (duração: 59
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_____. La Trilogie des Dragons. VHS, gravado em 18/07/1992. (duração: 4h
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_____. Geometry of Miracles. DVD, gravado em 12/01/1999 na Brooklyn Acad. of
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_____. Les Sept Blanches de la Rivière Ota. VHS, s/r (duração : aproximadamente
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_____. Les Aiguilles et L’Opium. (avec Robert Lepage), VHS, s/r (duração : 1h
16min). Arquivos Ex-Machina.

_____. Elseneur. (avec Robert Lepage) VHS, gravado em 12/09/1996 (duração: 108
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_____. La Face Cachée de la Lune (avec Robert Lepage), DVD, gravado em
03/2002 em Ottawa, (duração: 2h 19min). Arquivos Ex Machina.

L E PA G E , R o b e r t ; B E R N I E R , E r i c ; B I S S O N N E T T E , N o r m a n d ,
BLANKESHIP,;Rebecca; BRASSARD, Marie; DANEAU, Normand; FRÈCHETTE,
Richard; GIGNAT, Marie; GOYETTE, Patrick; VINCENT, Ghislaine; LIMONCHIK,
Macha; BIBEAU, Gérard. Les sept branches de la Rivière Ota. Versão atualizada
em 2002. Quebec: arquivos Ex Machina.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
CARTOGRAFIAS DA CONDUÇÃO DE UM PROCESSO CRIATIVO NA RUA:
REFLEXÕES DO TRABALHO DE AMIR HADDAD E PETER BROOK
Luiz Eduardo Rodrigues Gasperin1
Narciso Laranjeira Telles da Silva2
O escrito inicia um processo de cartografar os procedimentos e métodos de se conduzir
um processo criativo para a rua. Ao começar o estudo um personagem surgi na escrita, o
alterbiografico seu João-Coveiro, ele será o responsável por desenterrar os estudos de
alguns encenadores, para traçar as primeiras pistas e construir hipóteses, problematizando
a figura do encenador em criação cênica, para o espaço rua, as relações que se estabelecem
com a cidade e as formas de guiar seus atuadores. Neste em especifico, pretendo realizar
um estudo do trabalho cênico de rua, dirigidos por Amir Haddad, diretor do grupo Tá na
rua, através de seus escritos e relatos de direção de atores. Atravessado a ele, os estudos
de direção do encenador Peter Brook, suas inquietações e seus escritos para a encenação.
Problematizando a intuição amorfa e os métodos utilizados nos ensaios abertos, deixando
que os atores tragam os materiais para dar início ao processo criativo.
Introdução
Mãos repletas de calos e roupas cheias de terra; um cheiro estranho de velas
queimando, um silêncio sepulcral. Sou João-Coveiro; sim, estou em um cemitério, lugar
de trabalho, e onde escavo na busca por detritos de processos criativos.
Com a minha principal ferramenta apoiada nos ombros, minha pá, ando nas
primeiras ruas e avenidas que cortam a cidade do silêncio. Um ponto. Escavar;
Desenterrar; Trazer para fora o que está morto. Palavras, ditas, escritas, pensadas e
projetadas ao tempo. Amir Haddad e Peter Brook, dois condutores de processos criativos,
convergências, movimento involuntariamente psicologizado, a intuição. Quando começo
a trabalhar numa peça, parto de uma intuição profunda, amorfa, que é como um perfume,
uma cor, uma sombra. (BROOK, p.19, 1994) Aberto as experiências, deixando
especifico, que o trabalho de condução deve ser movido por essa ação, gerando afetos nos
encenadores, atores, como em todos que estão envolvidos no processo criativo.
Neste sentido, Amir Haddad, tendenciosamente no fim dos anos 60, junto a outros
artistas, reinventam seus fazeres, provocando um novo olhar para a sala de ensaio e uma
liberdade nas encenações. Arremetendo a figura clássica do encenador, que pré-elaborava
toda sua produção, deixando que as pistas levantadas com os atores, sejam tidas como um
resíduo que constroem um fazer.
Rastros de Amir Haddad
Uma palavra salta da boca de um homem no meio da rua e reverbera em minha
ferramenta de trabalho. O teatro está morto! Viva o Teatro. (HADDAD) Desse ponto de
vista, estamos tratando de um material que se encontra estático, que existia vida, que
obteve uma energia. Que hoje está para ser revirado, por um mineiro de Guaxupé, nascido
em 1937, que se torna carioca após um tempo, por uma escolha, desejo movedor de

1
Mestrando em Artes-Teatro/UFU e Docente do curso de Artes Cênicas/UFGD
2
Pós-Doutor em Teatro/UDESC e Docente da pós-graduação em Artes-Teatro/UFU
situações e produções. Este homem chama-se Amir Haddad, desenvolve seu trabalho
junto ao grupo de atuadores do Tá na Rua, na capital do estado do Rio de Janeiro. Sua
trajetória vem sendo marcada, por lutas e enfrentamentos, de uma sociedade e de um
modo de fazer teatral. Sua produção interfere em um fluxo pensado para uma cidade
estática e neutra, movendo este lugar, desestabilizando as bases.
Quando você trabalha numa rua, numa praça, trabalha com toda a
estratificação social misturada; o nosso público deixa de ser
homogêneo e passa a ser heterogêneo, como era o público dos
gregos, dos romanos, da Idade Média, dos espanhóis, do
Shakespeare, do Molière. Voltamos a trabalhar toda a humanidade
e podemos, dessa maneira, refazer o espetáculo do mundo, e não o
espetáculo de um grupo social apenas. (HADDAD, 2009, p.213)

[Re]formar um pensamento e uma ação, manifestação, termo utilizado por ele,


que designa o ato teatral. Palavra preenchida de significados, como: expressão, revelação
ou fenômeno3. Citando um trecho de um dicionário que encontrei no bolso de um paletó
deixado em cima de uma sepultura.
O olhar de manifestação, possibilita uma evolução e quebra do ensaio como algo
que se repete, que cria ou é criado por um outro, e se torna afazer a mesma ação inúmeras
vezes, tornando-se parte dela. Ao contrário do que o encenador Haddad, propunha aos
seus atores, em Construção4, com o coletivo Comunidade, o ensaio propunha
desconstruções da linguagem.
A demolição de uma linguagem, de uma estrutura, de uma
arquitetura, de uma dramaturgia – e isso foi muito bom por que eu
estava ali naquele gueto, isolado, proibido, não podendo fazer
nada... Se eu não podia fazer nada, ia roer... [risos]. E fui roendo,
roendo, dando espaço pras minhas inquietações e trabalhando com
um coletivo totalmente voltado pra isso, disposto a encarar essas
coisas. ( HADDAD, 2009, p.191)

Fato de ruir com as convenções de um teatro clássico feito até o momento, sinaliza
um movimento gerado pela repressão da época, um espetáculo experimental, definição
para a Construção. Sendo este o primeiro detrito encontrado na condução de um processo
criativo para rua do encenador Amir Haddad. Parafraseando o autor, um cozimento das
ideias.
Rastros de Peter Brook
O encenador Peter Brook, londrino, nasce em 1925, inicia sua carreira artística
com dezenove anos de idade, um fazer que experimentava ações e linguagens, uma
contracorrente do espaço-tempo em que estava habitando, em seus escritos encontro um
resíduo que pode ser um possível ponto de revelar quem o era.
A única concepção de que o diretor precisa - e deve descobri-la na
vida, não na arte – vem como resposta ao seu questionamento sobre
o sentido de um evento teatral no mundo, a sua razão de ser.
(BROOK, 1994, p.23)

Um evidente entrecruzamento de vida e arte, um jovem que parte de questões


movedoras de ações, movimentando o pensamento da figura de um condutor de teatro.
Em resposta à uma carta, ele escreve: O senhor se torna diretor dizendo que é diretor e
3
Extraído: dicionário de filosofia/Nicola Abbagnano, 5ªed. Martins Fontes, 2007.
4
Texto de Altimar Pimentel (1959) encenado pelo Grupo Comunidade em 1968-1969, sendo proibido
pela censura, mas encenado como improvisações.
convencendo outras pessoas que isso é verdade. (BROOK, 1994, p.33) Na afirmativa
escrita por ele, reflete-se no sujeito ativo escrito por Focault, um homem responsável por
seu espaço no mundo.
Ponto de partida do saber moderno, o Homem é concebido como
sujeito ativo, autor de seu próprio ser, seja destinado à revolução, à
liberdade ou à conquista da natureza. É no interior de um projeto em
que seu ser deve se realizar que o Homem se revela como sujeito,
construindo-se a si próprio. É no interior do projeto que os
obstáculos à realização do Homem deverão ser analisados, como
outras tantas figuras de sua finitude: a alienação, a morte, o
inconsciente. (BRUNI, 1989, p. 200)

O seu trabalho conduzindo processos criativos presava na liberdade do ator, em


demonstrar tudo o que podiam para uma ideia gerada na sala de ensaio. Investigando,
experimentando, aprofundando estados e relações entre atores e o encenador. Formando
uma grande quantidade de material, que seria usado ou não em uma montagem.
Utilizando da posição daquele que se encontra fora da cena, para deixar ou jogar o
material levantado no processo, neste caso, Peter Brook.
O diretor, por seu trabalho prévio, pela sua função e também em
virtude de sal intuição, está em melhor posição para dizer, nessa
altura, o que pertence à peça e o que pertence aquela superestrutura
de entulho que todos carregam consigo. (BROOK, 1994, p.21)

Na relação entre ator e encenador, o evento teatral, como dizia o encenador Brook,
por conter não apenas imagens, ou mesmo, formas, o que estaria acontecendo no palco,
seria único e experienciado naquele momento, por aqueles atores e por aquele espectador.
Surgindo como um estalo a ideia de deixar tudo claro, sem sombras e a utilização do
tapete como palco e cenário. A ação acontece sem decorações, desvinculada de toda a
maquinaria disponível, ela ocorre naquele momento, para os que ali estão.
Rastros de um encontro
Dois caminhos se misturam, encontros não marcados, vividos e escritos, no
desenterrar da intuição. De um lado as palavras descritas e registradas por Amir Haddad,
em entrevistas, em processo com atores; e de outro a escrita de Peter Brook, que traça
seus pensamentos e procedimentos com palavras.
Ambos declaram não haver uma técnica, mas sim, técnicas, plurais e diversas,
construídas juntas ao ator, constituídas entre provocações da figura que ora se encontra
dentro da cena, ora fora dela. A sala de ensaio, local de trabalho, suor, torna-se um campo
de criação coletiva e individual, cada um, se encontra livre a propor. Propondo ao teatro,
uma arte coletiva, feita por indivíduos. (HADDAD, 2009, p.203)
A sala de ensaio se transforma em um espaço de verdade e improviso, perdendo o
caráter repetitivo, ganhando uma energia de experiência total, entre e sobre a proposta do
coletivo. Uma cidade vai sendo construída, com ruas, vielas e avenidas que são
provocadas pelo condutor aos atores, dando autonomia para o sujeito e abrindo para
deixar se provocar e ser provocado, em todos os sentidos que são possíveis. A coragem
proposta, desperta no ator o descarte do que pra ele é supérfluo, editando seus gestos e
ações e condensado cada estado. Percebido na latência, do que está presente e do que não
está e não pode ser encontrado no trabalho.
Uma relação possível e proposta por Amir em Agamenon de fazer da sala de
ensaio, um espaço para o ato espetacular, abrindo a atmosfera criada para o espectador,
colocando-se em risco, e liberto ao erro. O encontro acontece no local, onde se pode errar,
se pode transitar, pode voltar, sair quando quiser, e todos os materiais se encontram neste
meio. Para elucidar este encontro abro uma página, encontrada dentro de um sapato velho,
que estava jogado por aqui.
Então abri o espetáculo em forma de ensaio: era uma coisa que
deixava os atores tensos, porque não tinha nada feito. Havia todos
os papéis, os atores conheciam a peça inteira, ela estava decupada,
cortada, do jeito que os atores quisessem. Cada sequência, um ator
assumia, se ele quisesse. Tínhamos ali uns elementos: as roupas, por
exemplo. Se ator botava aquela roupa, significava que ele queria
fazer o papel tal, e então todo mundo trabalhava com ele pra dar
aquilo. E mais: outro ator podia pegar um manto, uma capa e jogar
pra ele fazer o personagem, o que era uma sacanagem; mas tinha
gente que fazia isso [risos]. (HADDAD, 2009, p.196)

Neste especifico trabalho o condutor de todo processo, se encontrava em cena,


transformando o lugar da manifestação em um grande playground. Para o período do
ensaio espetáculo, rompia com os conceitos de palco, plateia, bastidor, camarim, uma
mistura de tudo que envolve uma encenação. Hoje, ele afirma que seu trabalho nasce
dessa fusão como um treinamento para seus atores. Tudo permanece em aberto, e para o
público o evento ocorre naquele preciso instante: nem antes nem depois. (BROOK, 1994,
p.25)
Registrando os rastros
Utilizo agora, de um termo médico, aprendi através do contato com eles no meu
trabalho, a arte da necropsia, um procedimento que consiste em examinar um cadáver.
Pistas, rastros e detritos foram sendo encontrados nos caminhos que cortam está cidade
do silêncio. Muitos deles, necessitam de um trabalho maior e de uma escavação mais
profunda. Dessa forma, junto o que foi exumado, para rascunhar um possível registro
dessa intuição na condução de um processo criativo. Não tenho estrutura para montar uma
peça, porque trabalho a partir daquela sensação amorfa e informe, e daí começo a me
preparar. (BROOK, 1994, p.19)
Formas que se constrói no durante, atravessamentos que surgem do contato entre
outros corpos, uma preparação que conduz em direção a ideia. Vão se desenhando
rabiscos, sentimentos, personagens, gestos, objetos, que podem ser apagados ou
potencializados durante o ensaio. Nesse momento a intuição começa a tomar forma nos
encontros, e salta da terra como um fator determinante sendo algumas delas excluídas no
continuar.
Em uma condução precisa e clara, tanto para quem está como encenador, como
também para quem atua, por esse motivo, a problematização do fazer e de procedimentos
para se chegar a direção da ideia são para uma vida inteira. Buscando por respostas, que
serão reveladas no encontro e na ação proposta. O estimulo integra esse pensar que deve
ser gerado em todo o momento para que o potencial oculto, seja descoberto,
[re]descoberto e intensificado no coletivo.
De acordo com a ideia corrente, a função do diretor é tomar os vários
meios ao seu dispor – luz, cores, cenário, figurinos, maquilagem,
bem como texto e interpretação – e utiliza-los conjuntamente, como
se fossem teclado. Combinando essas formas de expressão, criaria
uma linguagem diretorial peculiar, na qual ator seria apenas um
substantivo, um substantivo importante, mas dependente de todos
os outros elementos gramaticais para ter significado. (BROOK,
1994, p.34)

Uma concepção de teatro do todo, lançando-se na construção com várias mãos,


onde todos têm seu espaço de sujeito no trabalho. Inviabilizando um foco maior em uma
figura, mas clareando todos os detritos encontrados e os juntando parte a parte. Desta
intuição que surgi, do instante, do encontro, no encontro, um caminho que se soma e
produz uma obra de arte, ou um outro.
Referência Bibliográfica
BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais. Tradução
de Antônio Mercado e Elena Gaidano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
BRUNI, José. C. O Sujeito em Foucault. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo,
1989.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3ª Ed. Trad. A. F. Cascais e E. Cordeiro,
Lisboa, Vega, 1992.
PEREIRA, Victor Hugo A.; LIGIÉRO, Zeca; TELLES, Narciso. Teatro e dança como
experiência comunitária/organização. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

AUTOMÁKINA - UNIVERSO DESLIZANTE

Márcio Silveira dos Santos; (Aluno especial Doutorado) UDESC.

A presente pesquisa consiste na análise, um olhar em recortes, sobre a


reverberação do espetáculo/instalação “Automákina – Universo Deslizante” do
Grupo de Teatro De Pernas Pro Ar, da Cidade de Canoas – RS, durante a realização
de uma apresentação no Largo Glênio Peres, na Cidade de Porto Alegre – RS, dentro do
Projeto de circulação: “De Porto em Porto”, contemplado com o Prêmio Funarte de
Teatro Myriam Muniz, executado no verão presente ano. Bem como um estudo inicial
sobre a relação da recepção entre espetáculo-ator-plateia e o espaço da rua.

A título de informação completa, cabe citar aqui que o projeto desenvolvido pelo
grupo consistiu na sua totalidade, na realização de dez funções por cidades portuárias
dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, culminando com uma exposição:
Mostra fotográfica e vídeo documental na sede do grupo, chamada de “Inventário”. Este
projeto também fez parte das ações comemorativas de 25 anos do grupo fundado por
Luciano Wieser e Raquel Durigon.

Foi à segunda vez que assisti ao espetáculo, em busca de um segundo olhar


sobre o prisma desta obra artística inquietante e instigadora. Segundo o grupo, o
espetáculo trata de uma questão pertinente a todos os homens de todos os tempos: "a
arte da sobrevivência". Há uma linguagem hibrida que mescla o teatro de bonecos com
seus personagens autômatos fazendo uma metáfora a existência humana, o virtuosismo
das técnicas circenses e a poética do teatro de rua. Sem dúvida alguma o trabalho
transcende esta questão da sobrevivência-existência, não só pelo trabalho do ator, em
atuação solo, Luciano Wieser, mas também pela estética, uma poética de sublimação
que estabelece uma comunicação imediata com o espectador/público.

O Público

Observo a chegada de um menino-espectador desavisado, ele leva um susto-


surpresa ao dobrar a esquina do Largo Glênio Peres com a Avenida Voluntários da
Pátria. Segurando firme a mão de seu pai aproximam-se da parafernália maquinal do
estranho mundo do Duque Hosain’g. Seu olhar se estende para o alto, o pequeno
extasiado contempla o gigante universo móvel de ferro-fios-flor-pele-plástico-poesia-
etc-etc-etc..........(retinas esticadas)............ que aos poucos vai identificando alguns
objetos na busca de um entendimento do todo, de uma explicação do que é e por que
está ali tudo aquilo que sobrepostos desconhece. Ele muda o olhar em direção ao pai e
pergunta: “Pai o que é isto?” E o homem, que deveria naquele mesmo tempo-esticado
na memória de ambos, maquinando no entendimento e assimilação, ou no agarrar dos
neurônios catando algo que lhe fosse familiar para responder a si e ao pequeno filho,
que talvez tivesse entendido mais que ele, responde: “Ah! Sabe o filme Edward Mãos
de Tesoura?” (pausa) “Tipo isso!” O menino se desloca do olhar do pai e se espraia
novamente no olhar do Duque e sua portátil e móvel casa-montanha-sótão-solidão-
sobrevivência-jardim-esculturas; mas ainda permanecem marcado na face do menino-

1
espectador alguns pensamentos interrogativos: “mas onde estariam as tesouras dele?”. É
perceptível que seu conhecimento de mundo, e ampliação de novas possibilidades, já
adquiriu horizontes outros.

Interessante destacar o que Paulo Balardim coloca a cerca do viver no espaço


coletivo com a rua e as transformações neste convívio,

Viver num espaço coletivo, do qual somos partícipes no cerne de seu


funcionamento social, mobiliza uma dimensão experiencial do humano que
constrói ativamente os lugares físicos e simbólicos. O homem lê e produz
sentido em suas relações sensíveis com o meio; pela razão, projeta e constrói o
seu entorno. (...) As interações humanas que se estabelecem no lugar habitado
modificam a percepção desse mesmo lugar. O diálogo entre sujeito social, as
dinâmicas coletivas e individuais e a conjuntura espacial são capazes de ressoar
no ambiente bem como em seu repertório de uso, transformando-os.
(BALARDIM, 2011:52).

Esse cruzamento do cidadão citadino com um espetáculo teatral que reconfigura,


recompõe o espaço urbano, promove outro patamar de interação social e fruição
estética. Tanto na relação ator e espectador, como também na estrutura de relações
entre os espectadores, onde um colabora com o outro na compreensão do que presencia,
diante do desafio estético que o espetáculo provoca-proporciona.

A atitude do espectador no evento teatral, seu interesse em se lançar no embate


estético, efetiva-se, assim, primordialmente, a partir do desafio estabelecido
pelas proposições artísticas com que se depara, e que podem ser dinamizadas
por procedimentos pedagógicos de mediação, que aprofundem seu
conhecimento da linguagem teatral, intensifiquem seu diálogo com a obra e
agudizem formulações estéticas. (DESGRANGES, 2010: 176).

E nesta mediação entre o espetáculo e o espectador e a cidade, está o ator; figura


central na condução do evento em curso. Vejamos um pouco sobre o ator no
Automákina – Universo Deslizante.

Wieser – Um ator pós-dramático (?)

Importante salientar o trabalho de ator neste espetáculo. O Duque Hosain’g é um


desses personagens que vivem em nosso inconsciente, deriva de muitas influências de
seu criador, quase um alterego do inquieto Luciano Wieser. O Duque, aliás, parece ser
primo de outro personagem seu, o genial Lançador de Foguetes, dois distintos e
inesquecíveis da galeria de personagens do teatro de rua gaúcho, sem dúvidas. Mas
como sabemos, esta capacidade de composição é uma das características de grandes
atores. Wieser desenvolve ao longo de menos de uma hora, uma atuação catalisadora, e
diria mais profundamente: uma complexa rede de ações/ partituras. O que leva a refletir
se seria, assim, ele, um ator pós-dramático? Conceito muito discutido ultimamente, e
Matteo Bonfitto colabora na busca de uma possível resposta.

O ator pós-dramático deve possuir competências que transitam entre o teatro


dramático, o circo, o cabaret, o teatro de variedades, o teatro-musical, o teatro-
dança, e a performance, dentre outras manifestações que compõem o continuum
das artes cênicas ou performáticas. (...) Deverá saber reconhecer

2
pragmaticamente a diferença existente entre os processos de produção de
significado e os de produção de sentido. (BONFITTO, 2009:93).

Sua atuação é constituída de um amplo leque de linguagens artísticas que


acumulou-vivenciou em sua trajetória. Um circense, malabarista, bonequeiro, menestrel,
“cantator”, rueiro, performer. Há a presença de elementos do teatro de formas animadas,
através dos bonecos “autômatos” (máquinas que se movem por meios mecânicos, que
imitam movimentos humanos), além do impagável boneco-escultura da “vaca voadora”
no topo da máquina; outro detalhe a destacar são os seres/bonecos, a imagem e
semelhança de seu criador, que pedalam maquinando o funcionamento da estrutura
gigante medindo 6,0 m de comprimento, por 7,0 m de altura. Também há o lado
circense onde brinca com acrobacias no interior da máquina. Em certo momento chave
do espetáculo, Luciano anda de pernas de pau, ou de mola, também conhecida como
“Skyrunner” produzindo certo impacto ao sair da máquina para recolher com suas
tarrafadas, um pouco de DNA para sua obra que perde força. Encaminhando para um
poético e sanguíneo final, que resplandece junto ao desabrochar de uma linda e gigante
flor autômata.

Em certo momento há uma cena em que o Duque, ao colocar um véu negro


(chispa de luto!) e emitindo gritos de lamentos diante da possível tragédia em percurso,
se transforma num ser andrógeno, se torna Pai e Mãe de sua criatura. Situação/condição
típica dos estranhos doutores da ficção como o marcante Dr. Frankenstein ou outros
seres híbridos que o cinema já nos revelou. O Duque-duquesa ressalta o feminino dentro
de qualquer criação, que não se destina só a parir e criar, e sim possui um papel de
grande importância para manter, entre outras questões, o equilíbrio vital nas estruturas
do conhecimento e relações sociais. Esse feminino avoluma o desesperador sentimento
de proteção do criador, de pai/mãe da criatura, um pedaço da síntese de nossa condição
humana.

O fato de o personagem sair do interior da “mákina-útero” e ganhar outros


espaços-energias junto ao público conduzem ao rompimento do até então, como
informado no programa/cartaz impresso, “mundo impenetrável” do Duque Hosain’g,
pois é esta interação, embora rápida, que estabelece uma conexão vital, e um novo
fôlego ao universo deslizante e incerto do Duque. Possibilitando um novo ponto de
vista, a partir de uma reorganização do olhar daquele espectador citadino que no
amontoado de significados da obra também pode estabelecer novos sentidos na sua
apreciação estética. Há uma “fratura espacial”, que segundo Josette Feral, “é uma
mudança de posição, uma tomada de atitude frente ao espetáculo, o que provoca a
percepção de uma intencionalidade no ato do performer, fazendo brotar o elemento
teatral, a teatralidade, a qual se descola da cotidianidade”. (FERAL apud Balardim,
2011: 54).

Um desenvolvimento mais profícuo desta relação público-ator provoca uma


espécie de micro catarse que alavanca para o poético final. Há uma sútil curva-ápice na
encenação, tudo está lá na síntese presente e circundante de um mobile em formato de
DNA, estruturado por arames fixados a um caniço gigante que gira em torno de toda
estrutura cenográfica.

3
A Mákina e a Espacialidade

Wieser transforma seus devaneios criativos em realidade, através de uma


excepcional metalurgia - arte de purificar e transformar os metais - comparável, e sem
nada a perder em qualidade/efeito, as maquinarias de grupos faraônicos da Europa. A
“mákina” enquanto cenário é indiscutível sua funcionalidade, mas a cidade com seus
edifícios de ecléticas arquiteturas ganha um novo significado e também provoca na
encenação outra dinâmica.

Sabemos que todo cenário, ou quase todo, deve ter função no espetáculo. No
teatro de rua este cenário é constituído não só pelo cenário afirmado pelo grupo como
também a cidade passa a ser cenário, o local onde se efetua a apresentação. Não importa
o tipo de espetáculo, seja ele em deslocamento, de invasão, de roda parada, arena ou de
outras formas inventivas de ocupação do espaço público, a cidade continuará sendo
parte do cenário. E esse cenário fixo possui outra função, pois a maioria dos edifícios
são departamentos de vendas, setores comerciais e bancários, com suas finalidades
outras e que devido a isso tem ocorrido grandes intempéries no fazer teatral de rua. Um
cerceamento do espaço público.

A cidade com seu complexo fluxo de ruas, praças, parques, largos e avenidas é
forçada a esquecer do humano que ali circula. Os espaços da cidade estão focados cada
vez mais para o comércio, para o consumo desenfreado, perdeu seu caráter de domínio
público de espaço e “patrimônio da coletividade”. Pois,

Nas últimas décadas, em um contexto de fluxos globais, o espaço público é


considerado o lugar das oposições – carros x pedestres, estacionamentos x
espaços livres, mobiliário urbano x pedestres, painéis publicitários x
perspectivas panorâmicas -, do vazio, do afastamento do convívio social, do
perigo e da violência, do distanciamento entre arquitetura e cidade.
(ALBERNAZ, 2007: 42).

No caso do “Automákina – Universo Deslizante” é um pouco diferente, pois o


“espetáculo-instalação” tem duração de nove horas. Neste período, os transeuntes que
perderam a apresentação com o ator, podem conferir uma outra apresentação; a máquina
fica ali exposta para fotografias-filmagens, para perguntas ao grupo e apreciação dos
olhares curiosos e hipnotizados, seja qual for o tempo disponível, todos podem conferir
um pouco destas nove horas. Exaustas horas, por que Luciano, mais a
produtora/figurinista/maquiadora Raquel Durigon, o diretor Jackson Zambelli e mais
cinco integrantes do grupo: Arthur F. Côrtes, Odair F. de Souza, Tayhú D. Wieser, Txai
D. Wieser e Vitor Brasil, montam, monitoram, registram por fotos e vídeos, desmontam
tudo. Uma espécie de acampamento/ocupação no local durante o dia inteiro da função.
Esta ocupação de nove horas com teatro de rua, resignifica o espaço da cidade, rompe
com os códigos e situações hierarquias no cotidiano, o que amplia as possibilidades de
retomar os espaços públicos enquanto espaços de convívio social.

O teatro de rua, como manifestação não hegemônica propõe novas zonas de


conflito a busca de situações em que a rua reconquiste ou reforce sua
característica de lugar (Augé), isto é, seja um âmbito de convivência social que
supere a superficialidade do universo do consumo, rompendo, ainda que
momentaneamente, com a lógica pragmático do sistema de mercado.
(CARREIRA, 2007: 37-38)

4
O “espetáculo/instalação” enquanto intervenção transgressora de longa duração
provoca durante nove horas uma nova ordem para a rua, reestrutura a dinâmica da
cidade, reformula o deslocamento do pedestre que por vezes se transforma em
espectador.

Camada estética

O Cenário móvel, a “mákina”, ou um triciclo gigante constituído de universos


alternativos, está repleto de parafernálias recolhidas por Wieser e Durigon por muitos
anos. Conseguiram dar cabo ao que é praticado pela maioria dos artistas: juntar coisas
sem saber o real destino, um acumulo de sucatas ou lixo que em certo momento
precisamos urgentemente descartar. O resultado aqui neste caso é a ótima reutilização-
transformação de materiais, agregados a uma pesquisa ousada e inovadora de um grupo.

Hoje os trabalhos do grupo mostram nitidamente que suas inovações estéticas


propostas são fruto de um acumulo de 25 anos de empenho e trabalho. O resultado neste
espetáculo não poderia ser outro que não um aparato cênico impar em qualidade visual e
sonora. A estrutura gigante constituída de ferro, em sua maioria, dialoga com o espaço
da cidade. Há uma profusão de texturas em relação aos prédios, por exemplo, o
espetáculo utiliza as estruturas de concreto e aço ao redor como moldura da encenação.
É possível perceber que o local escolhido possui em seu bojo arquitetônico um conjunto
de prédios em estilo “art noveau”, estilo esse que teve seu ápice na virada do século
XIX para o século XX, muito presente em prédios como, por exemplo, o Chalé da Praça
XV, localizado a quinze metros da encenação. Esta parte do centro da cidade estabelece
uma relação/conexão com o cenário, figurinos e adereços do espetáculo caracterizado
em sua totalidade pelo “steampunk”, estilo também próximo a estética da virada do
século XIX.

Há no “Automákina” uma proximidade de estilos estéticos; há a elaboração de


uma “camada estética” constituída pelas mãos de Raquel Durigon, há o seu toque
peculiar no visual do todo. Durigon criou de forma exemplar figurino e adereços
conectados-imbricados com o visual do “espetáculo – instalação”. O efeito produzido
pelo figurino, misto de steampunk-gótic-bizarre com as vestes de alguém que lida com
ferro-graxa-solda, um figurino ferroso que remete a muitas referencias e servem como
uma luva as movimentações do ator dentro da “Mákina”. Um figurino e maquiagem
funcionais que na cena já citada do véu, causam imagens impressionantes no topo da
estrutura. Em tempo, sobre o gênero Steampunk, eis breve elucidação:

Gênero derivado da ficção científica. Trata-se de obras ambientadas no passado,


no qual os paradigmas tecnológicos modernos ocorreram mais cedo do que na
história real (ou em um universo com características similares), mas foram
obtidos por meio da ciência já disponível naquela época. Um exemplo é o
universo de ficção cientifica criado por autores consagrados como Júlio Verne
no final do século XIX. (Fonte: Wikipédia).

Outro destaque de reverberação neste “ambiente” criado pela encenação é


música original, composta por Jackson Zambelli – também diretor do espetáculo - em
parceria com Claudio Veiga. Uma trilha executada ao vivo com efeitos de som
mecânico e instrumentos construídos pelo grupo que enriquecem a estética do
espetáculo. Aqui a trilha dialoga com os sons locais, não só nos ritmos e tons musicais

5
variados do agudo ao grave, como também no sistema de ampliação sonora dentro da
estrutura da “mákina”. O espaço urbano, centro da cidade neste caso, possui seus ruídos,
por exemplo, vê-se no entorno: um terminal de ônibus, muitas lojas com vendedores
anunciando em alto-falantes, grande circulação de automóveis no estacionamento ao
lado e o burburinho característico dos transeuntes no Largo Glênio Peres. A cidade está
viva e neste complexo sonora das ruas o espetáculo deve dialogar, sem perder suas
características de transgressão no cotidiano, com a cidade e seus cidadãos.

Há também um fio condutor de entendimento, uma linha dramatúrgica


compreensível no trabalho, se soubermos diferenciar e aglutinar as várias dramaturgias
presentes: a do ator, do diretor e das cenas. Poderá ocorrer um “não entendi” ao
espectador desacostumado a ver artes de rua e poderá passar dias juntando os caquinhos
de entendimento a partir do seu próprio conhecimento referencial. Pois há uma polifonia
de dramaturgias, sons, cenas, que o diretor, com mão precisa, deixa fluir para que
desperte o que de mais significativo possa aflorar na mente do espectador. É possível
assim, para aquele transeunte que só pode ver metade, ou menos ou mais, ter uma ideia
do que viu e potencializar uma assimilação do essencial daquilo que o grupo quis trazer
para a rua com seu trabalho-acampamento-ocupação do espaço público.

O espetáculo “Automákina – Universo Deslizante” é um compêndio de possíveis


interpretações e análises; é coerente ao seu tempo e dialoga com a vida que escorre
pelas ruas.

Referências

ALBERNAZ, Paula. Reflexões sobre o espaço público Atual. (in) Espaço e Cidade:
Conceitos e Leituras. Lima, Evelyn Furquim Werneck. Maleque, Miria Roseira. (orgs.).
Rio de Janeiro: Editora 7 Letras. 2ª edição, 2007.

BALARDIM, Paulo. Microdramaturgias no ambiente urbano. (in) Teatralidade e


Cidade. Carreira, André. (org.). Florianópolis: Ed. da UDESC, 2011 (Cadernos do
Urdimento; n.1)

BONFITTO, Matteo. O Ator Pós-Dramático: Um Catalisador de Aporias?. (in) O Pós-


Dramático – Um Conceito Operativo?. Guinsburg, Jacob. Fernandes, Silvia. (orgs.).
São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

CARREIRA, André. Teatro de rua: (Brasil e Argentina nos anos 80): uma paixão no
asfalto. São Paulo: Editora Hucitec, 2007.

DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo: Editora Hucitec,


2010. (2ª Ed).

LUFT, Celso Pedro. Dicionário de Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Ática, 2010.

De Pernas Pro Ar. De Porto em Porto. Programa/Cartaz da Circulação. Canoas, 2014.

6
Sitios: (consultados em Junho de 2014)

www.grupodepernasproar.com.br

www.wikipédia/Steampunk

7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
A IRRUPÇÃO DO REAL NO ESPETÁCULO “OS PEQUENOS BURGUESES”

Marco Antonio de Oliveira1 (PIBIC: Iniciação Científica)2; Orientador: André Luiz


Antunes Netto Carreira3; Universidade do Estado de Santa Catarina.

O teatro contemporâneo tem, cada vez mais, forçado os limites entre o campo da
ficção e da realidade, da representação e da apresentação, através de procedimentos que
se mostram como uma possível alternativa para atualizar o teatro no tempo presente. Tal
confronto do teatro com a realidade tem gerado inúmeros questionamentos e
possibilidades de pesquisa acerca dessas práticas que intentam envolver no simulacro
teatral elementos provenientes da realidade.
É a partir dessa perspectiva que analiso a construção e a experiência de
apresentação do espetáculo laboratorial “Os pequenos burgueses”4 processo
desenvolvido pelo grupo ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação
Artística5, coordenado pelo professor Dr. André Carreira, do qual participo enquanto
ator e pesquisador, além das práticas de atuação a partir de estados, pesquisa central em
andamento no grupo, que também foi o eixo da construção de “Os pequenos
burgueses”. Proponho-me aqui a investigar quais os elementos reais estão contidos
nesse procedimento de criação artística laboratorial, além de investigar as implicações
da presença do real em uma montagem cênica.

Um: cruzamentos entre a realidade e o teatro


É certo que a questão da verossimilhança e também o conceito de mímesis
trabalhados por Aristóteles conferem ao teatro uma relação íntima com a realidade
desde as teorias mais antigas. Também ao longo da história os criadores teatrais se
posicionaram de maneiras distintas frente ao real: correntes estéticas como o realismo e
o naturalismo buscavam representar de maneira fidedigna a realidade em cena, em
contraponto com as vanguardas artísticas do século XX, que buscavam se relacionar
com o real não pela representação do mesmo. Mas o que ainda mantém essa discussão
tão presente nas pesquisas teatrais contemporâneas? Certamente as transformações
culturais que se dão através da história deslocam a questão e exigem um novo
posicionamento do teatro em relação à realidade. De acordo com o pesquisador José
Sánchez:
A criação contemporânea não esteve alheia à renovada necessidade de
confronto com o real que se tem manifestado em todos os âmbitos da cultura
durante a última década. Essa necessidade tem dado lugar a produções cujo
objetivo é a representação da realidade em relatos verbais ou visuais que, não
por restringir o representável ou assumir conscientemente um determinado
ponto de vista, renunciam à compreensão da complexidade. Mas também a
iniciativas de intervenção sobre o real, seja em forma de atuações que
intentam converter o espectador em participante de uma construção formal
coletiva, seja em forma de ações diretas sobre o espaço não delimitado pelas
instituições artísticas (SÁNCHEZ, 2007, p.9).

Destaco, a partir desse fragmento, que a relação e a intervenção sobre o real,


bem como a busca por uma construção de realidade compartilhada entre atores e
espectadores que almeja produzir uma experiência são demandas da cultura de nosso
tempo, o que justifica as inúmeras investigações apontando para procedimentos
estéticos que envolvem o real em cena. Sánchez (2007) reconhece a vasta produção de
documentários como um sintoma da necessidade cultural de confrontação com o real.
Compreendo o conceito de experiência a partir de Jorge Larrosa Bondía: “em português
se diria que a experiência é ‘o que nos acontece’” (BONDÍA, 2002, p.21). De acordo
com Bondía, para que uma experiência nos aconteça, é necessário:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer
um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (BONDÍA, 2002, p.24).

Sobre os apontamentos de Jorge Larrosa Bondía, ressalto a questão dos tempos


atuais como empecilho da experiência. Mas de fato quais foram os acontecimentos que
exigiram uma nova mirada do teatro sobre o aspecto da realidade? Destaco dois
importantes acontecimentos. O primeiro deles é o advento da fotografia e do cinema,
que problematizou a pintura e o teatro enquanto representações do real. O teatro entra
em crise visto que seu funcionamento é ineficaz como forma de reprodução da realidade
diante da invenção do cinema. De acordo com Óscar Cornago:
Desde o aparecimento do cinema e logo a televisão, os criadores mais lúcidos
reconciliaram o teatro com sua inevitável carga de falsidade. Seu efeito de
realidade se deslocou à verdade do mecanismo, ou seja, a realidade que
adquire o processo de representação, o jogo visível de situações, fingimentos
e enganos (CORNAGO, 2005, p.12).

Como forma de reação, o teatro busca na sua própria especificidade uma


potência criadora, expondo seu mecanismo e escancarando a materialidade da cena em
contraste com a camada ficcional.
A segunda questão de bastante importância que modificou o posicionamento dos
artistas teatrais em relação à realidade é a crise do real na sociedade contemporânea.
Sobre a manipulação e crise do real, Sánchez afirma:
O auge do documentário, sem dúvida, não é mais que uma das faces de um
fenômeno que tem sua outra face nos televisivos ‘reality shows’ que
prolongam e democratizam um fenômeno mais antigo: a imprensa da fofoca
e a imprensa sensacionalista. A confusão de realidade e ficção se mantém
nesse tipo de programas mediante a indução de realidades artificiais, somente
concebidas para sua conversão em espetáculo, e mediante a espetacularização
do privado que perpetua a suplantação da realidade histórica (coletiva) pelo
real (individual) quase sempre insignificante (SÁNCHEZ, 2007, P.9).

A arte trataria de se opor a essa espetacularização da realidade, que enfraquece a


potência real dos acontecimentos sociais, e se coloca radicalmente como lugar de
possibilidade de experiências reais, como maneira de evitar o torpor causado pela
espetacularização da vida:
Jean Baudrillard descrevia a cultura contemporânea como uma fábrica de
imagens com as quais já não se pretende representar a realidade, uma
indústria que haveria provocado, por reação ao desvanecimento do real, uma
espécie de arte do imediato, da experiência vivida, da realidade crua
(SÁNCHEZ, 2007, p. 12).
Dessa maneira, a arte se coloca no plano da experiência, da vivência do real, que
paradoxalmente tornou-se escasso fora do campo das artes.
O desvanecimento do real e o surgimento do cinema forçaram um novo olhar
sobre a realidade para os artistas de teatro, e é dentro dessa perspectiva que atualmente
estão problematizadas as relações do real no teatro. Mas no acontecimento teatral,
como, de maneira prática, se dá a presença do real?

Dois: o real na cena teatral


Dado o contexto e as problemáticas contemporâneas que o teatro enfrenta em
relação à realidade e o posicionamento que os artistas teatrais têm tomado, me dedico
agora às aplicações práticas do real em cena. Segundo André Carreira, existem “(...) três
tipos de ações relacionadas com o real e o teatro: representação da realidade;
compreensão do real; intervenção sobre o real” (CARREIRA, 2011, p.334). A
representação da realidade relaciona-se a correntes estéticas como, por exemplo, o
realismo, e segundo a pesquisadora Julia Elena Sagaseta: “Real/realidade e realismo não
são sinônimos. O realismo é uma construção artística da realidade” (SAGASETA, 2008,
p.1). A compreensão do real se dá quando o acontecimento teatral é abertamente
construído a partir de elementos reais, o que envolve a realidade como tema – teatro
autobiográfico, teatro documental – ou como risco real que é compactuado entre
espectador e ator. A intervenção sobre o real é justamente o jogo que se estabelece entre
o nível ficcional a abrupta irrupção de algum elemento real. A esse respeito, Sánchez
discorre:
A representação da realidade é, com efeito, um problema muito distinto ao da
irrupção do real. (...) Sem dúvida, em muitos casos, a apresentação do real
não é mais que uma desculpa, mesmo uma armadilha, quando do que se trata
é precisamente de renunciar a uma construção de eventos significativos, ou
seja, de uma realidade compartilhada ou possível de ser compartilhada. Se o
reality show é a cara feia do documentário, a proliferação do trivial é uma das
dimensões de preocupação pelo real que pode acompanhar o esforço para
construir a realidade. (SÁNCHEZ, 2007, p.10).

Destaco a importância dada por Sánchez da utilização do real em cena com um


propósito maior: a criação de uma realidade compartilhada: a geração de uma
experiência que acontece mutuamente ao espectador e ao ator, sem a qual a utilização
do real torna-se somente um estilismo. Julia Elena Sagaseta problematiza a seguinte
questão: “Que ocorre se não se informa ao público que é um ciclo que se trabalha com o
real, como assistiriam os espectadores à obra?” (SAGASETA, 2008, p.3).
No espetáculo “Os pequenos burgueses”, a análise que faço se relaciona com a
irrupção de elementos reais em cena. Sobre a irrupção do real, Sagaseta afirma: “Mas a
situação se faz diferente quando não se pretende esconder a cena, se mostra a
teatralidade e de imediato irrompe o real” (SAGASETA, 2008, p.1) e Sánchez:
A irrupção do real na cena dos vinte, tinha, pois, um efeito contrário ao que
Antoine buscava mediante a utilização de móveis ou alimentos reais em suas
obras: não se tratava de reforçar o efeito de realidade da ficção dramática
representada, se não de melhor mostrar a distância entre qualquer ficção e a
realidade do teatro (SÁNCHEZ, 2007, p. 97).

Ressalto na fala de ambos sobre a irrupção do real o elemento relacional: a


ficção em contraste com a realidade, produzindo um jogo em que o elemento de
concretude do teatro – corpo do ator, materialidade dos objetos cênicos e do espaço –
não pode ser omitido em função de uma ficção, ao passo que ainda assim o nível
ficcional não deixa de existir.

Três: o que de fato é real?


Tenho discorrido até o momento nesse artigo sobre a relação do teatro e a
concepção contemporânea de realidade, além de adentrar nas três possíveis formas de
utilização do real em cena. Mas, de fato, o que é real? Cabe interromper o fluxo do texto
para delimitar o recorte daquilo que chamo de real em cena. Para essa tarefa, utilizo o
Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes:
real (lat. medieval realis, de res: coisa) 1. Que existe, que diz respeito às
coisas, aos fatos. Oposto a fictício, ilusório, aparente. Ex.: poder real, ameaça
real. Que pode ser objeto de nossa experiência, de nosso conhecimento.
Oposto a imaginário. 2. Em um sentido metafísico, distingue-se o real, aquilo
que existe por si mesmo, autonomamente, da *idéia ou da *representação que
formamos dessa *realidade. Distingue-se ainda o real, existente, do real
possível, ou seja, aquilo que existe em um momento determinado daquilo que
contém a *possibilidade de existir (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).

Utilizo, da acepção acima, o caráter de oposto a fictício, ou seja, para ser real, é
necessário estar antes de qualquer aspecto imaginativo, como uma ficção, por exemplo.
Para ser real, deve-se ser em materialidade. Além disso, destaco que, segundo o
Dicionário Básico de Filosofia, para ser real, deve-se ser um objeto passível de se obter
uma experiência. Essa acepção certamente pode ser relacionada ao conceito de
experiência de Bondía, o que reforça a ideia de Sánchez de que uma grande questão da
utilização do real no teatro se relaciona com o compartilhamento de uma realidade
passível de experiência por parte da audiência e também dos atores. Faço então uma
provocação: seria possível, então, afirmar que se o fazer teatral não acontece para o
espectador enquanto experiência, ele não deve ser chamado de real?
Encontro também, no Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, o termo realidade
cênica:

Onde se situa a realidade cênica ou teatral e qual é seu estatuto? Desde


Aristóteles se reflete sobre essa questão sem que se tenha encontrado uma
resposta definitiva e segura. É que, nesse caso, somos vítimas da ficção* e da
ilusão* teatral nas quais se baseia nossa visão do espetáculo. (...) Que
percebemos de fato em cena? Objetos, atores, às vezes um texto (PAVIS,
1996, p. 325).

Pavis propõe que a realidade dos elementos teatrais está presente na maquinaria
teatral, “[...] único objeto que não tem valor de signo [...]” (PAVIS, 1996, p. 326), nos
objetos, atores e texto em suas materialidades, antes de qualquer agregação prévia de
sentido. Portanto, entendo que a presença do real em cena se instaura na materialidade,
antes de um esquema de construção de sentido anterior ao acontecimento cênico. A
partir dessa delimitação – real é aquilo que é concreto, passível de se obter uma
experiência, que não tem prévio valor de signo – posso enfim adentrar no processo de
“Os pequenos burgueses”.

Quatro: o que há de real na atuação a partir de estados?


Após o panorama da relação contemporânea do teatro com o real, passo às
práticas do grupo de pesquisa ÁQIS. A principal pesquisa desenvolvida no grupo
atualmente é a atuação a partir de estados. Sobre isso, utilizo o relato da atriz
pesquisadora Ligia Ferreira, ex-integrante do grupo de pesquisa:
[...] uma interpretação que nascesse a partir de estados emocionais, na qual o
ator pesquisa em si formas para atingir determinado estado, sem a
intervenção prévia de um texto, de uma situação dramática ou de uma
personagem. A ideia básica era produzir o estado, buscando os estímulos
corporais necessários para que se pudesse criar um mapa dessa energia no
corpo (CARREIRA; FORTES, 2011, p.17).

A atuação a partir de estados parte de estímulos físicos ou emocionais que


possam deslocar de alguma maneira o corpo do ator, produzindo um nível de
acontecimento real, que é induzido concretamente no corpo do ator, se distanciando de
uma representação a partir da imitação de acontecimentos. Nesse sentido, a atuação a
partir de estados aproxima-se da leitura de mímesis de Aristóteles feita por Denis
Guénoun (2004), que propõe encarar a mímesis como mímesis práxeos, colocando em
evidência a ação de representar e não somente a representação de uma ação, conforme a
leitura mais simplória da mímesis. De acordo com Guénoun: “[...] a mímesis é ao
mesmo tempo representação de ação e ação de representar” (GUÉNOUN, 2004, p.20).
Entendo o estado, portanto, como a ação concreta que é preciso executar durante a
representação.
Portanto a atuação a partir de estados é um dos elementos reais que estão
presentes no trabalho do grupo de pesquisa ÁQIS, visto que algum acontecimento real
deve ser produzido para que o estado esteja em ação, ou seja, alguma modificação
corporal deve realmente ser induzida, deslocando o corpo do ator do repouso e
produzindo uma alteração, seja na respiração, seja a partir de contrações ou
relaxamentos musculares. Essa proposição de atuação pode ser entendida a partir da
concepção de teatro performativo, proposto por Josette Féral:
Essa noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de representação no
sentido mimético do termo. (...) É evidente que esse fazer está presente em
toda forma teatral que se dá em cena. A diferença aqui – no teatro
performativo – vem do fato de que esse ‘fazer’ se torna primordial em um
dos aspectos fundamentais pressupostos na performance (FÉRAL, 2008, p.
201).

A atuação a partir de estados coloca ator e espectador em relação muito mais


com o acontecimento teatral na sua execução da ação do que no nível de narração de
uma história – no caso, a dramaturgia de “Os pequenos burgueses” – colocando o
enfoque em uma questão concreta – a atuação – e, portanto, localizando a irrupção do
real que constantemente invade a cena ficcional proposta pelo texto. A atriz
pesquisadora Heloísa Marina, ao assistir ao espetáculo afirmou perceber que existe um
nível de acontecimento anterior ao texto, muito mais instigante do que o nível narrativo.

Cinco: outros elementos que irrompem à cena


A proposta do espaço teatral do espetáculo é também um elemento real que
irrompe a cena. O espaço, composto por móveis reais a fim de compor o ambiente de
uma casa, pode servir ao nível ficcional do espetáculo – uma casa de família e os
pensionistas dessa casa, ao mesmo tempo em que estão em sua concretude e não são
meramente ilustrativos: são elementoS de jogo para os atores na construção das cenas e
também servem de acomodação ao público, visto que não há divisão entre plateia e
atores.
A não marcação das cenas é também um elemento de risco real que coloca os
atores num nível de engajamento com o aqui agora e com a construção da cena, visto
que toda apresentação é sempre um jogo inédito de novas ações a partir de estados.
Visto isso e encarando os elementos sem um significado prévio como elementos reais
do teatro, aqui temos mais uma questão importante: cabe ao espectador formular,
através da performance do espetáculo, sua leitura, articulando signos que se dão
aleatoriamente em cena, o que proporciona ao espectador um lugar muito mais de
participante ativo do que de observador de uma cena fechada. Além disso, existe o jogo
real prévio à dramaturgia que se estabelece entre os espectadores e atores: se o ator
tocar no espectador, esse deve se levantar e se acomodar em outro lugar, pois o ator
quer utilizar o lugar do espectador. Essa regra de jogo coloca em risco e inclui o
espectador numa esfera de jogo real, concreta e inesperada.

Seis: conclusões acerca de se fazer um espetáculo em que o real irrompe


A imprevisibilidade real do jogo cênico propõe sempre que o ator esteja
engajado para produzir um nível de acontecimento, de experiência que seja possível de
se compartilhar com o espectador. A atuação que se distancia da imitação e se produz
no nível de um acontecimento real no corpo do ator cria um lugar de cumplicidade por
parte do espectador, de acordo com Carreira: “[...] existiria um gozo particular em
sentir-se testemunha de algo real, no pensar-se convidado a observar o que seria
proibido, isto é, alguns elementos da vida íntima do performer” (CARREIRA, 2011,
p.340). Além disso, o espetáculo “Os pequenos burgueses”, através da irrupção de
elementos reais, cria com o todos que estão presentes – sejam atores ou audiência – a
esfera de acontecimento compartilhado, jogo a ser jogado por todos, em que todos estão
de alguma maneira engajados nessa experiência coletiva.

REFERÊNCIAS:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência in Revista


Brasileira de Educação. Campinas, n.º19, pp. 20-28, 2002.

CARREIRA, André. A intimidade e a busca de encontros reais no teatro in P* Revista


Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v.1, n.º2, pp. 331-345, 2011.
Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/presenca.

CARREIRA, André e FORTES, Ana Luiza et al (Org.). Estados: relatos de uma


experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis: Editora da UDESC, 2011.

CORNAGO, Óscar. ¿Qué es la teatralidad? Paradigmas estéticos de la Modernidad in


Telondefondo revista de teoria y critica teatral. N.º 1, 2005. Disponível em
http://www.telondefondo.org.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo in Sala


Preta, Revista de Artes Cênicas, nº 8, pp. 191-210. São Paulo: Departamento de Artes
Cênicas, ECA/USP, 2008.

GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SAGASETA, Julia Elena. Intromisiones, cruces, relaciones entre lo ficcional y lo real


in território teatral revista digital. N.º 3, 2008. Disponível em
http://www.territorioteatral.org.ar.

SÁNCHEZ, José A. Prácticas de lo real en la escena contemporânea. Madrid: Visor


Libros, 2007.

1
Acadêmico do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa
Catarina, ator e pesquisador integrante do grupo ÁQIS desde 2013.
2
Apoio: CNPq
3
Professor do Departamento de Artes Cênicas e PPGT da Universidade do Estado de Santa Catarina.
4
O processo de montagem não previa ensaios: os atores decoraram suas falas, e em laboratório eram
desenvolvidos os estados que seriam experimentados em cena. Não há marcações: as cenas são compostas
no momento da própria encenação. Adaptação de Otten Severonoe do texto homônimo do dramaturgo
russo Máximo Gorki, seu primeiro texto teatral escrito em 1901.
5
O grupo de pesquisa ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística é coordenado
pelo Professor Doutor André Carreira e é formado por estudantes de graduação, mestrado e doutorado e
ex-estudantes. Desenvolve atualmente a pesquisa Laboratório Interpretação por Estados dentro do projeto
Ambiente e Interpretação Teatral.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

A PERFORMANCE ART E A CIDADE NA CULTURA DIGITAL

SCHIOCCHET, Michele Louise; (Doutorado /CAPES); André Carreira; UDESC.

Pode-se dizer que a performance art foi definida formalmente a partir de questões que apareciam já
em movimentos que datam o inicio do século XX, conectando-se à ideia de anti-arte ou com o que
Britta Wheeler chama de ideais de vanguarda, relacionando a produção artística com questões
sociais além de questionamentos à partir do próprio fazer artístico. Acredita-se que algumas das
questões trazidas pela performance art, dialogavam com invenções e indagações do campo da
tecnologia, sendo estas invenções bastante determinantes em modelar novas operações cotidianas,
alterando convenções e formas de produção artística ao mesmo tempo em que se alteram também
dinâmicas de produção de valor e formas de comercialização da arte. Sugiro aqui uma relação de
mútua influência, uma vez que a produção artística é também parte do entrelaçado de operações que
formam o espaço urbano constantemente.

Podemos dizer que em face desta dinâmica que inter-relaciona arte e contexto, o efeito social de
certas estruturações formais de trabalhos artísticos, pode ser constantemente reavaliado, uma vez
que estratégias propostas em um contexto cultural, podem ter efeito diverso em um diferente
contexto cultural. Embora a performance art tenha assumido diversas formas desde sua
determinação como tal, nos anos 70, todavia, algumas características continuam sendo
frequentemente associadas ao termo, como: a desmaterialização da obra de arte, o corpo como
mídia, a obra processo, dentre outras características que podem ser associadas à tentativas de
descomodificação da arte principalmente nos anos 60 e 70.

Quase em paralelo à delimitação da performance art enquanto linguagem, o site-specific também


aparecia na teoria da arte, segundo Miwon Kwon, por volta da metade dos anos 60 propondo
críticas institucionais semelhantes à performance art, negando os espaços oficialmente dedicados à
arte e reinserindo-a em relação ao universo cotidiano da rua. Esta busca pela aproximação entre
arte e vida cotidiana como forma de transformação social foi trabalhada anteriormente por artistas
diversos como os ligados ao Situacionismo e estava sendo abordada também pelos artistas ligados
aos Happenings e o Fluxus.

Se relacionarmos a performance art e a site-especificidade à mudanças sociais dos anos 60 e 70,


pode-se perceber que diferentes campos do conhecimento iniciavam a se entrelaçar com as
proposições destes artistas sendo a tecnologia um dos campos que trazia muitas inovações seja do
ponto de vista técnico que poético. Com tais mudanças, a própria noção de espaço inicia a ser
alterada, ampliando a noção de site a partir de fatores históricos, sociais ou mesmo a partir da
imaterialidade e do trânsito através de diferentes espacialidades. A site-especificidade passou
também a se modificar ao longo dos anos, gerando uma série de sub-termos, de acordo com as
transformações na noção de espaço advindas da contemporaneidade. Termos como site-determined,
site-responsive, site-oriented, site functional, dentre outros, surgem, respondendo ao modo como os
artistas buscavam dialogar com estes espaços. Embora sejam mencionados nesta pesquisa tais
termos, o termo site-specific será utilizado como um termo guarda-chuva que incorpora todas as
suas sub-divisões.

Robert Irwin é um dos artistas que escreveu sobre a site-especificidade, acreditando que a obra de
arte em lugares públicos deve partir de duas coordenadas primárias: "o ser e a circunstância",
devendo a obra estar 'em plena relação com o ambiente de onde retira sua razão de ser' (IRWIN em
STILES e SELZ, 1996, p. 572). Além de Irwin, diversos outros autores como Miwon Kwon ou
Gillian McIver descrevem desdobramentos do termo site-especificidade, partindo da relação que
estes estabelecem com o espaço sendo para Irwin, por exemplo, a obra site-dominant, reconhecida
pela técnica e conteúdo, baseando-se em princípios clássicos de permanência, ao passo que a arte
site-adjusted é feita em estúdio e eventualmente se adapta ao local para onde será transferida. A
palavra site-specific em si, para Irwin, refere-se a um tipo de arte que considera o site como fator
que define parâmetros para a realização da obra, inter-relacionando-a com seus arredores,
preservando, contudo um foco no trabalho do artista. A obra site-conditioned ou site-determined,
por sua vez, seria definida à partir do diálogo com o espaço, suas propriedades e níveis espaciais,
fazendo com que o processo de reconhecimento da obra rompa 'com as convenções da referência
abstrata de conteúdo, linhagem histórica, obra do artista, estilo, etc' (IRWIN, 1996, p. 572),
colocando o observador em contexto dando a ele responsabilidade de dar sentido à obra
(SCHIOCCHET 2011, p. 134). Gillian McIver traz o termo site-responsive, para tratar de algo que
parece ser semelhante à arte site-conditioned ou site-determined, descrita por Irwin, relacionando a
criação do trabalho, à relação destas obras com as diversas camadas espaciais de um determinado
espaço.

Na texto de Miwon Kwon `One Place after Another`, outros três desdobramentos do termo site-
specific são propostos, levando em consideração a dimensão do 'aqui-agora', a participação, os
atributos físicos do local, dentre outros fatores, evidenciando a impossibilidade de transposição de
uma obra idealizada nestas condições a uma outra espacialidade. A autora menciona o termo site-
oriented, onde os aspectos socio-culturais e políticos de um espaço se fazem mais relevantes que
atributos fisicos do local, sendo na articulação do discurso que a obra adquire propriedade. Miwon
cita também o termo arte site-functional, descrito por James Meyer, em sua obra 'The Functional
Site; or, The Transformation of Site Specificty'. Este tipo de obra mais do que caracterizar-se por
um espaço, é definido pelo deslocamento através de espacialidades, referindo-se também a formas
midiáticas e transmidiáticas. Este tipo de obra relaciona-se com noções de desmaterialização e
desterritorialização, fluxos e interatividade (MEYER 2000, p. 23-27)

Se pensarmos no modo como estas linguagens se estruturaram como uma tentativa de


questionamento do modo como a arte estava dialogando com os modos de produção do capitalismo
e sua influencia na vida cotidiana, é esperado que a transformação destes modos de produção e da
estruturação da cotidianidade venham a afetar não somente o discurso da arte, como sua expressão
material, da mesma forma em que se espera que a arte tambem proponha olhares e modos de pensar.
Em paralelo ao desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, e do processo que Debord
chamava de comodificação da vida social, o campo da tecnologia começou a trazer uma série de
inovações que vieram também a afetar seja a percepção e utilização do espaço, como as relações
sociais e cotidianas assim como também os próprios métodos de produção da arte, sendo possível
traçar alguns paralelos entre produção artística e pesquisas em tecnologia. Com estas invenções não
somente técnicas e modos de produção se alteram, como surgem novos olhares e posicionamentos
em relação a como a produção artística poderia contribuir para a transformação da sociedade e o
almejado 'direito à cidade'. É pertinente dizer que independente do uso direto de máquinas e
aparelhos tecnológicos, processos cognitivos, ou formas de pensamento provenientes de tais
invenções, se alteram, vindo a impactar o modo como obras artísticas são pensadas e concebidas,
sendo ao mesmo tempo iniciatívas artísticas, capazes de subverter usos programados de ferramentas
tecnológicas apontando também percursos possíveis em outras esferas sociais.
Embora muitos dos envolvidos em pesquisas e descobertas tecnológicas tenham sido financiados e
sejam ligados à pesquisas militares, existe uma produção textual em períodos como a década de 60,
que revelam o interesse de muitos destes pesquisadores em desenvolver métodos e formas de
comunicação e de relação sociais mais igualitárias. Vanevar Bush por exemplo ou Ted Nelson,
podem ser citados como figuras que de uma certa forma traziam ideais compatíveis ou
complementares aos dos artistas anteriormente mencionados. Ideias como o memex ou a escrita
hipertextual, podem ser vistos como tentativas práticas de estruturar relações sociais de modo mais
igualitário sendo o cidadão apto não só a acessar uma variedade de conteúdos e informações como a
participar ativamente no processo de produção do que Pierre Levy chamara de inteligência coletiva,
descrita em seu livro 'Cyberculture', originalmente publicado em 1997, traduzido para o português
em 1999. Estes projetos visavam não somente uma maior acessibilidade à informação como
também uma democratização no seu processo de produção.
Podemos dizer que existia de certa forma, uma interface entre artistas e cientistas sendo
concretizados textos, conceitos e eventos, como fruto desta colaboração evidenciando a mútua
influência de um campo no outro.
Se retomarmos algumas das características principais que todavia são associadas à performance art
como a desmaterialização na obra, a utilização do corpo como mídia, a participação ou a obra como
processo, é possível observar que tais princípios também se relacionam com inovações trazidas pelo
campo da tecnologia. A utilização de processos de composição que se utilizam de algoritmos, ou
hipertextualidade, por exemplo, também podem ser mencionados. Entretanto convém questionar de
que forma o efeito social do uso destas técnicas se altera desde os anos 60, provocando efeitos
diveros em um contexto contemporâneo. Se por um lado a desmaterialização e a participação
podiam ser relacionadas à descomodificação da arte e à relação direta e imediata desta com o
público, estes princípios podem também ser associados ao que vem a ser a interatividade e a
imaterialidade advinda de processos digitais, e a noções como de trabalho imaterial ou mesmo free-
labour. A hipertextualidade, em relação à ideias de inteligência coletiva, também pode ser
relacionada a uma tentativa de achatamento de hierarquias e intenção de criar reciprocidade nos
processos de produção de conhecimento e cultura, sendo entretanto pertinente questionar se a
utilização destes princípios efetivamente proporciona tal democratização do saber.
Embora durante toda a história da performance art, seja possível observar trabalhos de artistas que
propõem formas de resistência e alternativas aos modos de produção oficial, o que parece acontecer
desde a década de 70, como nota Britta Wheeler (Wheeler 2003 online), é que muitos dos artistas
envolvidos com a performance art parecem ter aos poucos investido em ampliar seu público,
buscando formas de subsistência financeira que por vezes acomodavam-se aos modos tradicionais
de produção artística. Com a intenção de estabilizar-se como linguagem, Wheeler sugere que os
artistas iniciam neste período a primeira das quatro fase do processo de institucionalização da
performance art que a autora descreve até os anos 2000 (Wheeler 2003 online).
Durante os anos 80, a pesquisa desenvolvida em espaços experimentais era financiada pelo governo
estado-unidense, fazendo com que, segundo Wheeler, o nome performance art passasse quase a ser
um termo genérico para uma série de experimentos diferentes, que entretanto pareciam em sua
maioria preservar o aspecto político e provocador, sem contudo apresentar uma grande quantia de
inovações formais, ou melhor dizendo, sem que a estruturação formal em si, fosse um dos principais
meios de questionamento, ao menos no contexto estado-unidense. Na virada dos anos 80 para os 90,
o financiamento dado a estas instituições é restringido enormemente sendo cancelada a modalidade
de financiamento para artistas individuais. A causa destes cortes fora a censura e repressão aos
temas e conteúdos trabalhados sendo os artistas: Karen Finley, Holly Hughes, John Fleck and Tim
Miller acusados de denegrir o conceito de arte, vindo estes a perder o financiamento que lhes havia
sido dado.
À partir da década de 90 com a popularização da internet e da computação pessoal, um novo
ambiente se cria, vindo a ampliar ainda mais o conceito de performance art, acentuando muito mais
seu caráter híbrido e intermidial, que seu aspecto político. Entretanto, o que parece acontecer a
partir do surgimento da rede e do digital, é que novas dimensões espaciais e formas de relação
parecem ter sido facilitadas, aumentando o acesso efetivamente à recepção e produção de
informação. Questões que já vinham sendo sentidas no campo da arte, como as mudanças nos
modos de produção e de atribuição de valor às obras de arte parecem emergir com mais força, uma
vez que as formas de produção de cultura iniciam a ser transformadas. Se por um lado existia uma
distinção entre cultura popular e cultura erudita, o fortalecimento de uma cultura pop ou de massa,
pode ser associada ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TIC's),
chegando por vezes a fazer com que a performance art se confunda realmente com a cultura pop. A
questão da reciprocidade, entretanto pode ser traçada como diferença principal entre a fase das
mídias de massa mais características da década de 80 e a fase das mídias digitais, popularizadas à
partir dos anos 90.
Embora o acesso à ferramentas e meios de comunicação tenha sido facilitado, este fator não implica
que a produção da cultura ou do espaço urbano, em decorrência, tenha sido democratizada de forma
consistente, pois novas formas de 'comodificação' ou regulação surgem deste novo modelo de
sociedade. Nota-se que o ciberespaço, embora esteja entrelaçado à epacialidade urbana, é
estruturado de forma diferente dos espaços geográficos, sendo relativamente independente destes ao
mesmo tempo em que é sujeito à imposições governamentais e a uma infra-estrutura material. Da
interação entre espaços definidos geograficamente e ciberespaço, resulta uma tensão, que ao meu
ver abre espaços possíveis de questionamento.
Como fora observado anteriormente com relação à performance art, pode-se notar que dentro do
campo da tecnologia também, iniciativas que foram antes atreladas à tentativas de democratização e
reconfiguração de formas de hierarquia e de produção social, iniciam a ser apropriadas pelo
capitalismo, alterando o efeito prático destas proposições. A ideia de imaterialidade, por exemplo,
inicia a ser associada à mudança nos modos de produção, com a transição do modelo fordista para o
pós-fordista, ou sociedade industrial, para a pós-industrial que inicia na década de 70, deixando de
representar uma impossibilidade de comodificação da arte, e passando ao invés a ser o próprio
modo de produção do capitalismo contemporâneo.
Termos como free labour e imaterial labour, iniciam a ser cada vez mais recorrentes na análise das
dinâmicas econômicas contemporâneas. A noção de free labour trabalhada por Tiziana Terranova
(Terranova 2000 online), trata do modo como o trabalho produzido por iniciativas ligadas à ideia de
economia colaborativa ou gift economy, como o open source vem sendo explorado por corporações,
sendo possível extrair lucro das atividades que são produzidas gratuitamente, principalmente na
internet. Uma destas formas de extração de lucro é a utilização de dados produzidos pelos usuários
da internet, através de sua movimentação cotidianas online, sendo estes coletados e vendidos por
data brokers para empresas que muito frequentemente utilizam estas informações para fins de
publicidade. Este tipo de dados são, entretanto, também usados como material para a produção de
visualizações, sendo utilizados como forma de produzir as mais variadas formas de estatística,
podendo ser inclusive baseadas em likes no facebook.
O trabalho imaterial, estudado por autores como Maurizio lazzarato, Antonio Negri e Michael Hardt
é associado à ideia de capitalismo cognitivo, ou affective labour, sendo responsável não só por
suprir uma demanda, mas também por criá-la, sendo este conectado à atividades de produção do
conteúdo cultural e informacional de uma comodidade, através de atividades envolvidas na
formação da opinião pública como a criação de modas e gostos. Neste tipo de produção, que
envolve a criação de valores, a subjetividade do indivíduo é o eixo central sendo este envolvido no
processo de produção antes mesmo da manufatura do objeto. O modelo pós-fordista pressupõem
que o produto tem de ter sido vendido antes mesmo de sua produção.
Neste tipo de sistema, nota-se uma fusão entre processos de produção cultural e processos
econômicos, sendo possível dizer que uma transformação no funcionamento da relação entre cultura
e economia, afetou principalmente os mecanismos de produção de valor. O conceito de 'rent' ou de
'capital simbólico coletivo', descritos por David Harvey, também são pertinentes a este tipo de
dinâmicas de inter-relação entre produção cultural e produção de valor econômico. Harvey
relaciona o conceito de rent (renda) à estratégia de extração de lucro através do monopólio privado
e direito exclusivo das condições para se obter uma comodidade, cuja qual é de alguma forma única
e irreproduzível. Este tipo de dinâmica pode ser observável nos processos contemporâneos de
gentrificação planejada, onde as estratégias de atribuição de valor ao território como único ou
irreproduzível, podem ser as mais diversas, inclusive a associação deste a atividades de economia
alternativa e principalmente à atividade criativa, que trariam uma atmosfera vibrante à localidade,
mesmo que estas manifestações tenham um tom contestador (Harvey 2012, p. 89-112).
Este tipo de estratégia vem sendo usada intencionalmente desde a década de 80, sendo os artistas e a
noção de criatividade, mais do que uma forma de contestar os processos de produção de valor da
sociedade capitalista, utilizados para elevar o capital simbólico coletivo daquela localidade,
elevando também o valor comercial dos imóveis. Neste sentido, podemos retomar a ideia de
trabalho imaterial como uma atividade produtiva, sendo neste caso, o trabalho dos artistas, um
trabalho que indiretamente, gera lucro.
Nota-se neste contexto, que o início do processo de institucionalização da performance art, coincide
com o momento em que a transição entre os sistema de produção industrial para o pós-industrial
inicia a acontecer, sendo necessário, a meu ver, buscar entender que tipo de modificações ocorreram
na relação entre cultura, tecnologia e economia, para que seja então possível repensar não só a arte
como de que forma ela pode atuar como questionamento social.
Se considerarmos este período como um período de transição, podemos dizer que cartografar estes
campos de estudos ou as interfaces entre eles, é um desafio que implica um questionamento também
metodológico, sendo a noção de conhecimento, neste contexto, um fluxo coletivo que não é mais
baseado no simples acúmulo de informações totalizantes ou em pontos de vista únicos e estáticos.
A questão posta aqui seria não somente se as novas tecnologias poderiam propiciar formas mais
democráticas de relações entre cidadãos e a cidade, mas também como as experiências da
performance art e da site-especificidade podem ser revisitadas à luz de uma sociedade
contemporânea em constante transformação. Com o desenvolvimento de mídias contemporâneas,
surgem formas colaborativas de produção de informação, documentação ou de estruturação de
pensamentos em relação a uma cultura que é definida por sua dinamicidade mais do que por
qualquer ponto em sua trajetória. Com a internet, a capacidade de conectar espacialidades, objetos e
sujeitos, e de resignificá-los, substitui o desejo de dar conta de um todo, sendo a intenção da minha
pesquisa, apresentar um percurso possível de interpretação.
Embora tenham sido mencionado processos de institucionalização da performance art, acredito que
artistas continuaram experimentando formas de expressão e de relação com o universo que os
rodeia, tencionando constantemente os limites desta técnica anteriormente definida. Este
tensionamento parece constantemente gerar novas expressões artísticas assim como obras que não
são encaixáveis sob nenhum tipo de linguagem, sendo muitas vezes inclusive atreladas a outros
campos que não o da arte.
A performance art é tida pela maioria dos autores que tratam do campo, como uma linguagem que
resiste a ser definida sob aspectos fixos, vindo a incorporar constantemente uma série de expressões
estéticas diferentes assim como de motivações artísticas diferentes, sendo muito difícil e
possivelmente um equivoco buscar definir uma só tendência para esta linguagem como um todo. O
que pode ser percebido, entretanto, é que muitas das características que definiram a performance
art da década de 70 como um movimento que propunha uma reação ao universo institucional,
como; a desmaterialização do objeto artístico, a noção de interatividade, dentre outras, passam, com
o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, a tornar-se inefetivas como modo de
questionamento, pois estes mesmos atributos parecem, ao contrário de uma crítica, o próprio
mecanismo econômico do capitalismo contemporâneo. Entretanto, como a própria cultura digital
parece propor ao menos potencialmente novas possibilidades de relações de poder, sugiro útil
buscar na interface entre performance e a cultura digital, possíveis formas contemporâneas de
estruturação de estéticas artísticas que parecem atualizar o questionamento trazido pela
performance art e pela site-especificidade no que concerne à relação que estas linguagens pareciam
buscar com o espaço urbano.
Diante deste fato, mais do que buscar definir a performance art ou a site-especificidade a partir de
suas motivações políticas dos anos 60 e 70, ou de seus atributos estéticos, me parece interessante
buscar individuar a partir das transformações seja das artes que do contexto social contemporâneo,
que tipos de manifestações estéticas e estratégias contemporâneas são utilizadas para investigar e
tencionar hoje, os limites entre arte e sociedade, propondo poéticas e questionando padrões a partir
das condições sociais contemporâneas.
A questão das especialidades contemporâneas pode ser aprofundada através de conceitos como os
de cibercultura, novas mídias e cultura digital tratados por autores como Pierre Levy, Arturo
Escobar, André Lemos e Lev Manovich, a fim de investigar como algumas invenções
contemporâneas como a rede e o digital afetam relações entre corpo, objeto e espaço, criando a
necessidade de repensar as formas de diálogo entre arte e cidade. A experiência urbana vem a ser
reconsiderada a partir da relação do ciberespaço com a cidade definida geograficamente,
considerando que as formas de estruturação destes níveis espaciais venham a se influenciar
mutuamente à medida que se percebe um crescente entrelaçar dos mesmo através de mídias
locativas por exemplo.
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TEATRALIDADE E PRODUÇÃO DE ESPACIALIDADES
IMAGEM E REPRESENTAÇÃO NO TEATRO DE RUA: ação comunicativa e
subjetividade no espaço público.
Michelle Nascimento Cabral1 (Bolsa Doutorado – CAPES; Orientador Antônio
Hohlfeldt; Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da FAMECOS;
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS).

1- Entre a vida e o discurso: o teatro de rua como mediador.

As primeiras elaborações teóricas sobre a arte de um modo geral a


relacionava com a capacidade do homem de criar a partir de sua subjetividade e
necessidade de explicação do mundo a partir dos mitos.

A história da arte tem mostrado, no entanto, que esta sempre esteve


imbricada com seu contexto histórico e não escapou, portanto, de suas implicações
político-sociais e econômicas ao longo dos séculos. O teatro, dentre todas as artes, por
sua própria constituição e especificidade em inter-relacionar outras artes em seu fazer
artístico, sempre ocupou espaço privilegiado na história cultural dos homens. A relação
do teatro com o universo subjetivo do homem há muito é conhecida. Suas origens mais
remotas já denotavam diferentes narrativas muito antes da criação do texto
dramatúrgico (BERTHOLD 2003), e em sua evolução através dos séculos sempre
esteve, ora institucionalizado, ora transgredindo a normatização e a lei. Esta
característica acompanhou o teatro em suas diferentes formas estéticas. O teatro de rua,
uma de suas formas mais antigas (pois muito antes do advento das cidades já percorria
os feudos, feiras e se adaptava a diferentes espaços para sua manifestação), esteve ao
longo de diferentes períodos históricos cumprindo um papel mediador entre a
organização social e a sua contestação.

Na Antiguidade foi um importante instrumento de controle social na


consolidação da Polis. No período medieval o teatro se misturou à festa popular para
sobreviver à perseguição da igreja, em meio ao povo descobriu seu poder de sátira e
contestação. No Renascimento o teatro tomou as praças, assim contribuiu para o
advento das cidades, na Modernidade retomou as ruas e superou guerras assumindo o
discurso político que sempre o acompanhou. Na atualidade, esta arte milenar se
transmuta, para disputar no âmbito da cidade o seu público, um público muitas vezes
hostil, num espaço fragmentado e assoberbado de informações.

Este breve relato da trajetória do teatro de rua visa apenas esclarecer que o
mesmo não é uma “arte nova”, que sempre esteve presente ao longo da história e das
relações do homem, sobretudo, nos momento de crise e perseguições, esta modalidade
teatral esteve em evidência, posicionando-se para além de suas raízes estéticas, como
também políticas, é o caso do Brasil no período ditatorial quando o teatro ganhou as
ruas para confrontar o golpe militar e reivindicar a liberdade de expressão. Esta
característica privilegiada do teatro de rua, em relação com o espaço da cidade é
instigante para nossas análises, no que se refere a pensar a relação público/imagem.
1
Michelle Nascimento Cabral (Michelle Cabral) é professora do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA, diretora teatral e pesquisadora de teatro.

1
Como se dá a relação a comunicação com o público passante e o espetáculo tendo nas
imagens ali representadas como a grande mediadora dessa ação comunicativa no espaço
público. Interessa-nos pensar como esta ação comunicativa se dá nas diferentes
narrativas (imagem/representação, encenação/discurso) e sobretudo esta interação com
o público da rua.
Esta força comunicativa, que encontramos no teatro de rua, é em muito
superior à interação que se dá na sala de espetáculo. A relação espetáculo e espectador
no teatro de sala, é mediada pelos rituais pré-instituídos entre ambos. Ou seja, há uma
preparação do público, desde sua saída de casa até sua chegada ao edifício teatral. Este
“contrato” estabelecido entre artistas e público, inclui a aceitação de um valor financeiro
(preço do ingresso) e do lugar onde se dará o espetáculo, como também está implícita a
aceitação do ritual da experiência artística, que compõe desde uma vestimenta de
“passeio” para o espectador, obedecer aos horários e o lugar na plateia, fazer silêncio e
aplaudir ao final.

No teatro de rua, estes procedimentos acordados entre plateia e artistas são


subvertidos. O teatro de rua poderá ser convocado previamente (KOSOVSKI 2001),
contudo, em geral chega de assalto tomando o público de surpresa. A ocupação do
espaço onde se dará o espetáculo deverá ser negociado por artistas e público, e esta
“negociação” não é pacífica, mas sobretudo tensa e envolve diferentes contextos, desde
pagamento de taxas e solicitações à órgãos governamentais, até a ocupação não
institucionalizada de diferentes setores sociais, como moradores de rua, camelôs,
bicheiros, flanelinhas, dentre outros. No que se refere às relações entre artistas e
público, não há restrições ou acordos pré-estabelecidos. O transeunte que passa por
aquele lugar, somente será classificado como “público” se parar para ver o espetáculo,
por sua vez enquanto público poderá assisti-lo de qualquer lugar, mas próximo e/ou
mais distanciado. Poderá assistir a manifestação artística do teatro de sua janela, da sua
barraquinha de cachorro-quente ou ainda, da esquina, da calçada e em meio a outros que
como ele formam uma roda em torno do artista. As interferências urbanas não podem
ser controladas e muitas vezes acabam por fazer parte da encenação sendo inseridas no
espetáculo.

Uma vez conquistado o público, a interação do espetáculo com o mesmo é


intensa e neste aspecto se dá muitas vezes de forma imprevisível, por permitir em sua
estrutura e teatralidade, a intervenção, participação e ou negação do público.
Neste aspecto, é importante entendermos o que Habermas quis dizer quando relacionou
a palavra ação à palavra comunicação, tendo em vista que um termo parece ir na
contramão do outro. No teatro a ação é uma característica fundamental para diferenciá-
lo da literatura, aja vista que o texto literário é um de seus componentes. Para teatralizar
é preciso mostrar, portanto agir. Assim, a comunicação no teatro se dá por meio das
ações, são elas que narram a fábula contida no texto. Isto não quer dizer que as ações
devem suprimir o texto falado, mas se inter-relacionar com ele, dando à ação e a fala
uma dimensão maior. Para entender a teoria de Habermas precisamos também entender
a ação, como no teatro, de forma muito mais ampla que simplesmente o movimento de
realização de um fazer material, mas, sobretudo, como uma relação social.

A compreensão e leitura das imagens contida ao longo de um fenômeno


teatral na rua, requer a investigar o fazer teatral, na criação do espetáculo. Entendendo o
espetáculo teatral para além de sua composição estética, mas como o meio para alcançar

2
um fim. Tendo em vista que o teatro é realizado de forma coletiva por seus fazedores e
também experienciado de forma coletiva por seu público.

Pensar o espetáculo teatral neste contexto nos leva a refletir sobre o


conteúdo do discurso de uma encenação e o papel da imagem/figura dentro deste
processo.

2- A imagem respira: sentido e percepção de um corpo-cidade.

Qualquer análise da imagem no teatro é um grande desafio. Isto porque,


entre outras coisas, em um espetáculo teatral elas – as imagens – brotam de todos os
lugares. Tudo que é visual no teatro (cenário, figurino, luz, o corpo do ator em
movimento, dentre outras) , assim como o texto e a fala, todo o discurso narrativo posto
em cena é, de forma mais direta, e ou produz, de forma indireta, imagens. Nas palavras
de Coelho Neto (p. 97, 2012):

A arte do espetáculo é, entre todas as artes e talvez, entre todos os domínios


da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza,
variedade e densidade.

Diante deste desafio, a primeira questão que se apresenta, quando pensamos


na manifestação do teatro no espaço urbano, é sua relação com o público. Independente
de qual seja a mensagem abordada, a estética ou técnica utilizada, é sempre em como
este será recebido, apreendido, significado e/ ou ressignificado que move seu fazer.
Desta forma, o desafio da encenação teatral na rua é confrontar-se com o espetáculo da
cena pública que a cidade já desempenha cotidianamente. Para Jean Duvigaud (1977, p.
121):

A forma mesmo da ação teatral, da representação de uma imaginária pelos


meios da poesia, depende menos da concepção de mundo que os homens ou a
sociedade se dão delas mesmas, menos do estado geral desta sociedade ou de
sua situação econômica, menos da religião ou da estética, que das relações
mesmo do homem com espaço.

Pensando com o autor, na ação teatral, a relação do homem com o espaço se


dá no e pelo diálogo. Assim, o acontecimento teatral, ao se inserir ao espaço da cidade,
instaura formas de diálogo dentro de um universo que já contém, em sua estrutura
físico-social, uma série de discursos. Sem ele, o teatro não seria um lugar da experiência
e do encontro.

Para somar-se a este caleidoscópio de som, cores e sensações diversas, o


teatro de rua busca diferentes formas e conteúdos e, por meio de inúmeras narrativas,
destaca cada vez mais o uso da imagem. Aqui, entenderemos imagem, não do ponto de
vista da iconografia, mas como figuração no sentido de objeto representado ou ainda
como signo representativo de algo ou de sua ausência. Assim, utilizaremos o uso da
imagem no teatro de rua como figurabilidade, conceito proposto por Didi- Huberman
(1998, p.87): “Ao mesmo tempo jogo de palavras e jogo de imagens”. Desta feita,
buscaremos problematizar o pensamento lógico e representativo, o que no teatro de rua
dar-se-á de forma muito específica num jogo de justaposições, deslocamentos e
colisões.

3
É esta figurabilidade contida na encenação que possibilita ao público
receptor inserir-se no espetáculo e achar nele um espaço confortável para sua
manifestação pessoal. É neste jogo de mostrar, contar e sugerir, por meio de palavras e
ações visíveis, de silêncios e pausas em meio ao caos da agitação das ruas, que reside a
dinamicidade deste teatro.

3- Imagem e Representação: A Cena é Pública.

O espetáculo A Cena é Pública tem como tema central as questões políticas


no Brasil. Mas especificamente o tema da corrupção política e as mazelas que dela se
originam. Sua estrutura cênica traz uma composição em quadros que surgem e
desaparecem aos olhos do público que se desloca no espaço acompanhando a sequencia
dos quadros/cenas a partir do direcionamento dos atores, que fazem essa condução por
meio de sons e efeitos luminosos como o uso de sinalizadores e fogos de artifício.

Vamos adotar para nossa análise a descrição das cenas do espetáculo objeto
de nossas reflexões, seguida das análises e comentários. Desta forma faremos uma
decupagem do espetáculo, para isso diversas apresentações foram acompanhadas na
cidade de São Luís/MA e na cidade do Rio de Janeiro/RJ. vejamos momentos do
espetáculo A Cena é Pública, levado às ruas pelo Grupo de Teatro de Rua Teatro de
Operações do Rio de Janeiro.

Quadro 1- O primeiro quadro que abre o espetáculo é chamado pelos


artistas de “Dança das Cadeiras” e reproduz uma brincadeira infantil, onde várias
pessoas disputam para sentar em uma única cadeira. Assim, vários atores caracterizados
com máscaras políticos e governantes de várias nacionalidades dançam em torno de
uma cadeira a fim de ocupá-la. Entre presidentes e presidenciáveis de diversos países,
candidatos a governos de Estado, dentre outras personalidades políticas, disputam e se
revezam na cadeira ao som de uma música inteligível.

Esta é uma cena de abertura, ela ambienta o público que algo vai se passar
ali, a intensão do grupo é provocar um estranhamento, a dança não é exatamente uma
dança, a música não é exatamente uma música, mas a cena avisa que “algo” está
acontecendo e isso gera curiosidade em quem passa por aquele lugar.

Quadro 2- A cena é composta de várias televisões que são distribuídas por


determinado espaço onde ocorrerá o ritual. Ao som do toque de tambores uma mulher
(ou mais de uma) nua da cintura para cima e com o corpo pintado com desenhos tribais
e máscara de animal (em geral o cavalo) dança solenemente ao som rítmico de
tambores. Também em meio aos televisores um personagem, vestido de terno e com
máscara de um político (dependendo da região onde o espetáculo de apresenta a
máscara é sempre do rosto de um político influente naquela região) segura uma marreta
e ao som dos tambores quebra os televisores a fortes marretadas.

O público orientado a assistir a tudo a certa distância para evitar acidentes


com os estilhaços, reage a cada marretada com gritos e ás vezes aplausos.

4
Em uma apresentação do grupo na cidade de Angra dos Reis na região da
Costa Verde no Rio de Janeiro, o ator ao realizar uma das primeiras marretadas, teve a
marreta presa no interior do aparelho e não conseguia retirá-la. Os esforços do ator que
chutava, empurrava e puxava a marreta com força, foram em vão e a marreta continuava
presa ao aparelho de televisão. Ao perceber o fato inusitado, o público começou a se
manifestar com murmúrios e risos percebendo o desespero do ator que precisava dar
continuidade à cena. Foi quando uma voz anônima se fez ouvir da multidão: A Globo é
mais forte! Tal frase desencadeou uma série de reações e manifestações no público que
além do riso, incluíam toda série de chacotas e comentários sobre o poder da mídia e da
televisão enquanto sistema.

A visualidade da televisão sendo quebrada, representando um gesto de


libertação e ao mesmo tempo uma crítica à linguagem da televisão como sistema de
dominação ideológico/cultural, reverberou em significados representativos para o
público na imagem do poder político da emissora de maior audiência no Brasil, no caso,
a Rede Globo de televisão.

Como representação a cena então ganhou neste momento uma dimensão


bem maior, a dimensão do diálogo reivindicado por Habermas, conforme nos coloca
Luiz Repa (2008, p. 172) :

O que é importante para Habermas agora não é tanto o resultado desse


processo, isto é, o consenso ou dissenso, mas justamente as condições e as
regras que todos precisam supor para que seja possível obter um consenso. É
nessas condições e nessas regras, nesses procedimentos de argumentação,
que está o cerne da racionalidade comunicativa.

Quadro 2- Neste segundo quadro um ator nu com o corpo pintado com


motivos tribais, com a genitália coberta apenas por uma tanga indígena, entra em cena
solfejando a música O Guarani de Carlos Gomes. Deslocando-se com movimentos
lentos e solene, segue em direção ao centro do espaço. Aparecem junto a ele dois atores
que, como os outros, estão vestidos de terno e gravata e com máscaras representando o
rosto de políticos. Estes personagens entregam ao índio uma garrafa com gasolina. O
público sabe que é gasolina pelo cheiro e pela coloração do líquido. O índio faz em
torno de si um círculo de gasolina bem grande. Outro político vem até ele e entrega
outra garrafa com o líquido que o índio derrama sobre si.

A ação física de derramar o líquido, anteriormente identificado como


gasolina, sobre o corpo, gera imediatamente uma tensão entre o desenrolar da cena e o
público, expressada geralmente com murmúrios de incredulidade. O outro político
aproximasse com uma tocha de fogo e ateia fogo no círculo de gasolina que foi
derramado no chão. Ao mesmo tempo as chamas formam um circulo de fogo em torno
do índio que em nenhum momento para de cantar a música O Guarani.

A imagem das chamas com o índio de joelhos e braços abertos de frente ao


público que observa estarrecido é muito impactante e gera inúmeras reações e
comentários, a mais comum delas é o aplauso.
Esta imagem que representa a situação em que se encontram os índio
brasileiros, é também uma crítica político-social de uma realidade que, mesmo distante

5
do cotidiano de nossa urbanidade, se faz presente, quase que de forma “fantasmagórica”
em nossa memória coletiva. Didi-Huberman, ao falar da imagem crítica, nos esclarece:

A imagem dialética, com sua essencial função crítica, se tornaria então o


ponto, o bem comum do artista e do historiador: Baudelaire inventa uma
forma poética que, exatamente enquanto imagem dialética – imagem de
memória e de crítica ao mesmo tempo, imagem de uma novidade radical que
reinventa o originário - transforma e inquieta duravelmente os campos
discursivos circundantes; enquanto tal, essa forma participa da “sublime
violência do verdadeiro”, isto é, traz consigo efeitos teóricos agudos, efeitos
de conhecimento. (2010, p.178).

Esta sublime violência do verdadeiro provoca este efeito de conhecimento,


ou seja, traz à tona uma memória esquecida, uma informação histórica e/ou ancestral
sobre o fato exposto na poética da cena. O público espectador é levado a uma visitação
anterior, que de forma ampla o relaciona, mesmo que de forma indireta, com o fato
exposto. Esta imagem, ao mesmo tempo de memória e de crítica é o detonador que
provoca as mais diversas reações coletivas, como o aplauso, o riso, dentre outras.

Quadro 3- Ao som de uma corneta que entoa toque de avançar e


sinalizadores que de longe chamam a atenção, o público é conduzido para um outro
espaço – em geral algum órgão público como câmaras legislativas ou fórum de justiça,
dentre outros – onde se encontram diversos atores mascarados como políticos
enforcados, pendurados em arvores, postes e onde permitir a arquitetura do lugar onde a
cena se apresenta. Ao som do hino nacional uma atriz com a cabeça coberta pela
bandeira do Brasil tira lentamente a roupa. Já despida, um ator caracterizado como um
político contorna todo o corpo da atriz com um arame farpado. A atriz por sua vez,
permanece em pé, imóvel, com os braços abertos ao lado do corpo.

A cena sem texto verbal provoca no público várias reações, desde a


reclamação da nudez explicita até comentários sobre a simbologia das imagens
produzidas pelo grupo. Mas em geral o público permanece em um silêncio significante,
em alguns casos cantam junto o hino nacional. A reação do público e sua intervenção na
cena de rua sempre vai afetar o desenvolvimento da mesma, seja na mesma ora em que
se dá a interferência do público, que poderá ter uma resposta direta do artista, como
também na sala de ensaio, onde as escolhas e a avaliação sobre o trabalho apresentado
são realizadas entre seus propositores.

Quadro 4- O espetáculo termina em uma hilária cena onde os


personagens/políticos perfilados na frente do público fazem pilhérias, gestos obscenos e
provocações variadas, ao mesmo tempo em que outros atores despejam aos pés do
público inúmeras bolas (bexigas de balão de festa) coloridas cheias de água.
Imediatamente o público reage às provocações dos “políticos” jogando contra eles as
bolas cheias de água em sinal de resposta. Rapidamente tudo se transforma em uma
grande confusão de gritos, risos, correria e bolas e água para todos os lados. Neste
instante, fogos de artifício rasgam o céu como que a celebrar uma grande festa.

A interação com o público no momento final do espetáculo, não é apenas


mais uma participação/intervenção do público frente ao que é mostrado, mas parte
integrante da encenação. Sem ela a cena seria outra e não teria o mesmo significado.

6
No momento em que o indivíduo que até então se coloca como público
observador, toma em suas mãos uma das bolas de água e a atira contra o “político” em
cena, ele toma em suas mãos também a sua cidadania. Torna-se sujeito e atuante. Este
movimento simbólico de agir frente a situação apresentada o faz retomar por alguns
instantes o poder que lhe foi tirado de tomada de decisão. Assim, o público passa a
integrar também o quadro imagético proposto pela encenação.
Provocar o público a reagir contra os “políticos” ao final de tudo, sem perder a
fábula e a consciência de que fazemos teatro, é abrir por meio da encenação uma
mediação com o mundo no qual a arte e a vida habitam.

4- Conclusão: uma imagem inacabada.

Uma das grandes dificuldades de análise da imagem e ou mesmo do que


esta venha a apresentar, é sem dúvida, perceber e ou capturar os significados a que esta
mesma imagem possa remeter para quem a vê, no caso do teatro, para quem a vivencia.
Há que se descortinar estas relações de recepção de forma a entendê-las e decodifica-
las. Sabemos que uma mesma forma, poderá ter significados diferentes para pessoas
reunidas num mesmo tempo/espaço:

As coisas materiais podem apresentar aparências diferentes a diferentes


observadores, ou ao mesmo observador em diferentes condições, e que a
natureza destas aparências é, até certo ponto, casualmente determinada pelo
estado das condições e do observador (AUSTIN, 2004, p. 21).

Neste contexto reside uma dificuldade instigante e alvissareira, que nos


empurra para um universo complexo e denso para além da representação, como também
das significações geradas. Desta feita, a representação dos fatos gerados nas imagens
vivas e em tempo real, reverbera de forma intensa o ato comunicativo, que faz do teatro
este lugar de intensa de comunicação. Em sua teoria sobre ação comunicativa,
Habermas (1996) defendia que através do diálogo o homem poderia emancipar-se,
tornando-se sujeito de sua história. Este diálogo que antecede o processo comunicativo,
não se resume na busca do consenso ou do dissenso, na compreensão da argumentação
oral entre grupos ou indivíduos, mas sobretudo, se encontra no processo argumentativo
que se desenvolve a partir da construção e instauração das regras do jogo.

O teatro de rua se caracteriza então, como este espaço de diálogo, um hiato,


uma intersecção onde o homem encontra naquele momento com sigo, com seu papel
criador e recriador do meio em que vive. Não somente reproduzindo-o, mas, sobretudo,
questionando-o, sendo capaz de transformá-lo por sua vontade e ação.
Assim, podemos também verificar que esta comunicação não se dá apenas pelo diálogo
(fala/texto), mas, sobretudo pela relação dialógica que se dá também, pela imagem, pelo
corpo/gesto. Ou seja, pela representação imagética do discurso. Não podemos entender
o discurso apenas como a ideia/tema gerada pelo artista, mas um conjunto de relação
que se entrelaçam formando a tessitura deste discurso. Para Austin (2004, p. 20):

Nós nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos (ou “sentimos”), ou de


qualquer maneira, nunca percebemos ou sentimos diretamente objetos
materiais (ou coisas materiais), mas somente dados dos sentidos (ou nossas
próprias ideias, impressões, sensa, percepções sensíveis, perceptos, etc.).

7
É nesta relação complexa que este tecido discursivo é composto também
pela memória histórica, mediada pelas relações na experienciação da arte teatral como
mediadora. Naquele tempo espaço – em meio à cidade e a cena – mediado por imagens,
este tecido será trançado e completado pelas experiências, memórias, críticas e
sensações do público espectador.

Bibliografia:

AUSTIN, J. L. Sentido e Percepção. São Paulo. Martins Fontes, 2004.


BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo/SP. Perspectiva, 2001.
COELHO NETO, J. Teixeira. Semiologia do Teatro. São Paulo. Perspectiva, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo. 2ª ed. Editora
34, 2010.
DUVIGNAUD, Jean. Lieux et non lieux. Paris: Galilée, 1977.

HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e Comunicação. Lisboa/PO. Edições 70, 1996.


NOBRE, M. Curso Livre de Teoria Crítica. In: REPA, Luiz. Jürgem Habermas e o
modelo reconstrutivo de Teoria Crítica. Campinas/SP. Papirus, 2008.
TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (org). Teatro de rua: Olhares e perspectivas.
In: KOSOVISKI, Lídia. A casa e a barraca. E-Papers Serviços Editoriais, 2005.

8
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

PRESENÇAS QUE SE SUSTENTAM NOS AFETOS: CONFIGURAÇÕES E


RECONFIGURAÇÕES DO (NO) ESPAÇO DO ENCONTRO

Autora: Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer
Nunes; Instituição: UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina)

Que elementos determinariam a potência dos encontros nas artes da presença? O


trabalho a seguir lança um olhar sobre a presença do artista em relação à configuração e
reconfiguração do corpo, e do espaço no aqui-agora do encontro nas artes presenciais
contemporâneas. Nesta apresentação procuro identificar algumas possibilidades de
emergência de acontecimento diante da abertura aos dados do ambiente, partindo da
noção de embodiment, e investindo na possibilidade de criação de um espaço dialógico,
ao expor uma abordagem da presença do artista e sua proposição estética não somente
como interferência no espaço, mas em composição com ele. Escuta e disponibilidade são
palavras recorrentes neste texto que, ao tatear noções de presença em relação, observa
possibilidades de uma proposição artística partilhável, na qual se assume a
interdependência entre produção de espacialidade e produção de presença. Referências de
autores como Bento Espinosa, Jacques Rancière, Erika Fischer-Lichte, Maria Beatriz de
Medeiros, Fernanda Eugénio e João Fiadeiro serão a base para os argumentos aqui
expostos.

Palavras-chave: Presença; Afeto; Corpo; Espaço

Produzir presença no espaço, ou permitir que o espaço e as presenças produzam


intensidades na experiência? Eis uma questão que me move. Parece muito cômodo o
lugar do conforto, aquele do assistir sem ser visto, e o do fazer com garantia de sucesso,
mas na atualidade há outras demandas no fazer artístico que nos convidam ao
movimento, que propõem ações responsivas, cujas escolhas e consequências são
partilhadas. Arcarei aqui com algumas escolhas que me são pertinentes, sem a garantia de
sucesso, mas com um convite na mão: Produção de potência na partilha. Vamos?
A arte presencial poder ser uma possibilidade de encontro, e, tornar este encontro
potente não está somente nas mãos (corpo) do artista. Há inúmeros fatores que justificam
esta proposição, como o fato de o ambiente influenciar a ação do artista/performer, e de,
cada pessoa ter um modo de recepção sujeito à sua herança cultural, territorial, que
também leva em conta suas conexões singulares na experiência. Por isso a noção de
presença é tão evocada nas práticas contemporâneas, e já parece consensual que esta
presença é atributo da relação entre artista e ambiente. O artista que “tem” presença é
esse que está sempre atento aos dados do ambiente, que se renova no olhar do outro, que
está, no aqui-agora. Mas não é bem dessa especificidade da presença que eu gostaria de
tratar agora, convido-o leitor a elaborar uma noção de presença partilhada, que passa a
considerar todas as presenças do ambiente como elementos compositivos da ação,
alçando chegar a uma potência de acontecimento gerada no encontro “entre” presenças.
Bento Espinosa1 (1992) já havia sugerido a potência do encontro ao tratar do
afeto, nós na arte é que andávamos em passeio pelo mundo da aura, da figura iluminada,
poderosa, que apesar de tantos louros, se manteve, ironicamente recolhendo migalhas
institucionais para a sobrevivência. Retomando a questão do afeto: a possibilidade de
afetar o outro com o que se propõe artisticamente é um desejo bastante explícito nas artes
presenciais contemporâneas, e de fato é o que acontece no encontro entre os corpos, de
acordo com a teoria de Espinosa (1992), porém, ao tratar do encontro na arte, poderíamos
colocar uma lupa sobre a noção de afeto, na intenção de observar suas nuances de
intensidade. Assim, nos aproximamos também da noção de eficácia, que é entendida
como a capacidade de provocar transformações nos corpos, como afirma o italiano Marco
De Marinis2 (2005).
A acepção espinosiana de afeto (affectus) o traz como efeito que emerge do
encontro entre os corpos. Segundo Espinosa o corpo é constantemente modificado diante
dessas relações, o que poderia aumentar ou diminuir sua potência de agir. Há, para ele,
um esforço inerente à existência para conservar sua natureza, o que é chamado de
conatus, mas há também os efeitos dos encontros que não são passíveis de controle, pois
não seria possível comandar a interferência de um corpo sobre outro. Diante disso,
poderíamos entender a operação da proposição artística em um campo de intensidades de
afeto. A proposição de Espinosa (1992) para a noção de afeto trata da vida se fazendo e
refazendo em interação com outras vidas, sem que se possa apreender conscientemente
todo esse processo, muito menos prevê-lo, uma vez que os corpos não se relacionam de
maneira preestabelecida. Existe, neste contexto, a ação – que são as minhas vontades; e a
paixão – que são as vontades que não vêm de mim. Há o resultado dos encontros entre os
corpos, apresentado inicialmente pelo filósofo como bons e maus afetos, como alegria e
tristeza, por exemplo, e identificá-los seria um modo de percepção imediata do que se
imprimiu no corpo durante o encontro. Tal possibilidade estaria inerente ao ato de
raciocinar, na tentativa de compreender o que acontece ao corpo, e de explicar os afetos,
o que é apresentado por Espinosa como paixões ativas. Por mais que os afetos possam ser
imprevisíveis, e que não seja possível ter consciência de todos os afetos que incorrem em
um encontro, conforme nos esclarece o autor, é possível compreender as impressões dos
afetos no corpo ao reconhecê-los. Ao partir dessa análise de Espinosa (1992), chegamos à
afirmação de que não poderíamos antecipar os efeitos do encontro na arte, mas apenas
produzir ações a partir de nossas referências de afeto.
Vincular produção de afeto à proposição artística, reconhecendo os efeitos que um
corpo ou um objeto artístico tem sobre o outro corpo, conforme observa Simon
O’Sullivan3 (2011), é um movimento que se mostra contra a efetivação de uma
abordagem transcendente da arte. O afeto, neste contexto, estaria ligado à factualidade
nas relações, o que escapa à ideia de controle do que pode incorrer em uma relação
presencial. Sendo assim, ao laçarmos o convite a uma experiência partilhada, estaríamos
abdicando de uma ideia de domínio sobre as ocorrências do encontro na arte, dividindo

1
Filósofo holandês
2
Professor de disciplinas das artes do espetáculo na Universidade de Bolonha.
3
Professor de História da Arte / Cultura Visual no Departamento de Culturas Visuais da Goldsmiths
College University de Londres.
responsabilidades quanto à potência de acontecimento, pois esta seria emergente das
relações criadas no aqui-agora.

Potências da presença em relação

O desejo de provocar sensações no espectador/participante é um dos fatores que


movem a criação nas artes presenciais, e a potência de afeto, aquele da lupa, pode ser
resultante das relações entre os corpos, para isso, o papel do artista estaria muito mais
próximo ao de um articulador de ações e reações, suas, e do que percebe/recebe do outro,
o que exige, além de um “saber-fazer”, escuta e disponibilidade ao que insurge no aqui-
agora. Suzanne M. Jaeger 4 (2006) situa algumas conexões, acerca da presença, que vão
além do potencial do artista de dominar uma técnica específica de movimento, por
exemplo. De acordo com a autora, a presença pode ser definida como uma configuração e
reconfiguração de uma força em resposta ao ambiente, o que exige do artista capacidade
de escuta, consciência de si e do que o cerca, considerando nessa relação o modo singular
de cada corpo agir e reagir.
Philip Auslander5 (apud JAEGER, 2006) afirma que Constantin Stanislavski,
Beltolt Brecht e Jerzy Grotowski perceberam que a presença do ator não se daria apenas
com a incorporação de uma persona que não é ele, mas sim com a apresentação autêntica
do self do ator, em contraposição à cultura de massa. De acordo com Jaeger, as mídias
alteram as percepções e o esquema corporal, de modo diferente da presença ao vivo. O
surgimento dessa presença requer um modo reconhecível de estar no mundo, mas
também requer o poder de se concentrar na singularidade do momento, pronto para seus
deslocamentos, acomodações e adaptações, que pertencem ao desafio da ação, o que
ocorre com completo engajamento do corpo no momento presente. A audiência
perceberia isso, e todo esse desencadeamento de percepções manteria viva a performance
(JAEGER, 2006).
Ao tratar da presença, Érika Fischer-Lichte6 (2011) faz um paralelo entre as
abordagens do corpo fenomênico e do corpo semiótico direcionando uma discussão
acerca da presença que considera o ambiente:

A presença não é uma qualidade expressiva, e sim puramente performativa.


Gera-se por meio de processos específicos de corporização que o ator engendra
em seu corpo fenomênico ao ponto de dominar o espaço e prender a atenção
dos espectadores [grifo meu] (FISCHER-LICHTE 2011, p.197) [tradução
minha]7.

Em Fischer-Lichte (2011) e em Jaeger (2006) é possível identificar essa


consideração do potencial de encantamento que o artista pode exercer sobre o público,
como resquícios de manutenção de uma espécie de aura, da presença entendida como
4
Professora de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Central Florida em Orlando.
5
Professor da Faculdade de Literatura, Mídia e Comunicação, Georgia Tech, em Georgia – EUA.
6
Professora no Instituto de Estudos de Teatro na Universidade Livre de Berlim.
7
“La presencia no es uma cualidade expressiva, sino puramente performativa. Se genera por médio de
processos específicos de corporización com los que el actor engedra su cuerpo fenomênico em tanto que
dominador del espacio y acaparador de la atención de los espectadores”
poder de prender a atenção do outro, e se alimentar na relação. O argumento em favor da
abertura, para o alimento das presenças na relação, pode ser observado em uma
abordagem da presença do artista como convite ao jogo, à partilha, e a configuração do
acontecimento nesse encontro, é o que parece estar mais evidente em práticas
contemporâneas, que buscam formas de deixar os afetos mútuos emergirem entre essas
presenças, em suas diferenças e semelhanças. O ato de imposição do artista sobre o
público não tende a permitir, de certa forma, uma troca. Estabelecer a figura aurática
imprime uma noção de inacessibilidade, de algo inatingível. É um caminho que dá conta
de certas demandas na arte, mas ao mesmo, tempo ratifica algumas diferenciações
hierárquicas de poder.
Rancière (2010, p. 108)8 afirma que a condição do espectador como aquele que
olha “é uma coisa ruim”, uma vez que “olhar é considerado o oposto de conhecer” e “o
oposto de agir”. Ao considerarmos o espectador como passivo, “desprovido de qualquer
poder de intervenção” o trânsito de afetos e afecções não é favorecido. Rancière (2010, p.
109) ressalta que se deve buscar um teatro “sem espectadores”, tornando-os
“participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores
passivos”. Diante dessa afirmação, o autor reconhece um antagonismo na legitimação da
prática teatral, declarando que:

[...] Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador


que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as
personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo
estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão
deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador
passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas
causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero
observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo
distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder
mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de
observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais
do teatro (RANCIÈRE, 2010, p. 109).

Fischer-Lichte (2011), ao trazer a questão da performatividade e do corpo


fenomênico, contempla o corpo em devir, o que muitos artistas e teóricos consideram em
suas práticas. E se a presença do artista fosse o convite à experiência? E se
transferíssemos a potência do que se chamou obra de arte para o que surge na relação
entre os corpos que fazem parte de um mesmo ambiente? Conquistar uma qualidade de
presença diferenciada implicaria, ao invés de ser a diferença, em deixá-la emergir,
perceber quando ela surge como um acontecimento, próxima à ideia de presença, possível
de se observar na pesquisa de Fernanda Eugénio e João Fiadeiro9 (2012). A atribuição

8
Filósofo Francês, professor da European Graduate School de Saas-Fee e professor emérito da
Universidade de Paris.
9
João Fiadeiro é bailarino, coreógrafo e pesquisador em dança, e Fernanda Eugénio é antropóloga, ambos
desenvolveram o MODO OPERATIVO AND, que é uma metodologia relacional de composição baseada em
uma filosofia que, dentre outras coisas, busca formas de re-existência na configuração de um plano comum.
Eugénio e Fiadeiro coordenam os processos do AND Lab no Atelier Real, em Lisboa. Outras informações
essencial do artista passaria então à capacidade de compartilhar experiência e articular
possibilidades poéticas emergentes no jogo. E para que essa presença se transforme em
convite ao outro, a apreensão de um modo de fazer é imprescindível, mas incluir a
abertura ao aqui-agora, às interferências do ambiente na ação proposta pelo artista
aparece como urgência nas práticas presenciais contemporâneas. Seria possível propor
relação sem uma aguçada percepção de si e abertura ao ambiente?
A prática do AND Lab de Eugénio e Fiadeiro resiste na seguinte questão: Como
criar condições para que a matéria apareça no acaso? Como preservar a potência e o devir
da matéria? O espaço do já saber, da interpretação, da representação, do sentido – que se
traduz por importância/valor, não contemplam as emergências, reforçam o “pressuposto
do saber para depois agir”. Desse modo, “abdicar das respostas, largar a obstinação por se
definir o que as coisas são, o que significam, o que querem dizer, o que representam”
[grifos dos autores] parece pertinente. (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 3). Algumas
possibilidades de re-existência surgem então na pausa, na inibição, na vontade de adiar o
fim, na possibilidade de identificar a potência de afeto no acidente. Para isso, um
refinamento da percepção é constantemente solicitado: ver o que a coisa tem, e não o que
é, aproveitar o inesperado – achar meios para que ele emerja –, aceitar, retribuir, re-parar,
são estímulos constantes nessa prática. Assim se constrói o ambiente comum:

Dessa implicação recíproca emerge um meio, um ambiente mínimo cuja


duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como
paisagem comum. O encontro, então, só se efetua – só termina de emergir e
começa a acontecer – se for reparado e consecutivamente contra-efetuado –
isto é, assistido, manuseado, cuidado, (re) feito a cada vez in-terminável.
(EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p. 66).

Esse poderia ser o ambiente da partilha de sensibilidades, o local do encontro, que


exige estar presente, vivo, atento e poroso, pois “encontrar é ir ‘ter com’”. Ter o quê?
Uma experiência. Essa experiência em que se quer deixar emergir o acontecimento, na
concretude do que está, a fim de gerar e de gerir outras possibilidades de acontecimento.
Para isso renúncias são necessárias, dentre elas, abrir mão do protagonismo, recuar,
ouvir, viver o jogo do encontro. Encontrar é um “entreter que envolve desdobrar a
estranheza que a súbita aparição do imprevisto nos traz. Desdobrar o que ela tem e, ao
mesmo tempo, o que nós temos a lhe oferecer [...]” (EUGÉNIO; FIADEIRO, 2012, p.
68). A relação é um “encaixe situado entre possibilidades compossíveis que co-incidem”
para enfim – ou na protelação do fim – “acolher o que emerge no acontecimento”,
acontecimento esse “que só dura enquanto não é, que só dura enquanto re-existimos” para
“reencontrar aí, nesse comparecer recíproco” o que há na multiplicidade. (EUGÉNIO;
FIADEIRO, 2012, p. 4). Nessa perspectiva há a possibilidade de partycipação na qual
Eugénio e Fiadeiro questionam os mecanismos de poder, nos convidam a suspensão do
ato impulsivo, e da vontade de ser genial ou criativo em favor da formação e manutenção
de um comum.
E isso na cidade, no ambiente urbano, como fica?

sobre esse processo podem ser consultadas no site: <www.re-al.org> e no blog: <
http://andlabpt.blogspot.com.br/>.
Pois, então, se a presença e o afeto são aspectos das relações com o ambiente, se
há uma busca por um comum em favor da emergência de acontecimento nas relações que
se criam no espaço do encontro, ao artista caberia observar atentamente o que o cerca,
adaptar-se ao que lhe é apresentado, do modo que está, e agir conforme o ambiente lhe
solicita. Escuta? Sim. E novamente, disponibilidade, não?
Beatriz de Medeiros10 e seus Corpos Informáticos tratam da arte como
fuleiragem, chamam de composição o que fazem em uma conversa com a cidade na
perambulação, Medeiros e Albuquerque11 (2013, p. 25) dizem que não fazem
intervenção, nem urbana nem cirúrgica, pois estas “invadem, rasgam, rompem e
implantam o que na urbs, na internet ou no corpo não cabe”. A ação de intervir parece, de
fato, o oposto de fazer-com, e só ratifica a imposição da vontade individual. Acho que eu
já não consigo mais caber na ideia de intervir na cidade, de mutilá-la com minha presença
inflada e determinante. E você? O mundo já tem muitos donos, muita gente mandando e
impondo seus desejos particulares, o meu tem sido negociar, mesmo que eu ainda queira
coisas, venha armada de criatividade e expectativas. Corpos Informáticos compõe e
decompõe corpos na cidade. Não, não são defuntos, a cidade é um espaço vivo e o corpo
é um habitante/habitado por ele. Como diz Suely Rolnik (1996, p. 3): “cada indivíduo é
permanentemente habitado por fluxos do planeta inteiro”. Se é assim que somos, porque
a ilusão de domínio do mundo, de concentração do poder? Uma potência do corpo
coletivo haverá de emergir no encontro.
Não dá para ignorar esse movimento, não dá para fazer-de-conta que não somos
efeitos dos múltiplos encontros diários, e ao propormos uma relação com o outro
considerando o espaço como lugar de emergências compositivas, haveremos de ouvir,
negociar, dividir e mantermos atenção aos dados do ambiente. Às artes da presença
parece pertinente assumir as consequências de habitar esse terreno movediço. Que tal nos
movermos juntos?

Referências:

DE MARINIS, Marco. En busca del actor y del espectador. Coleção Teatrologia:


compreender o teatro II. Org. Osvaldo Pellettieri. Buenos Aires: Galerna, 2005.

ESPINOSA, Bento. Ética. Parte II (Da Natureza e da Origem da alma) e Parte III (Da
origem e da Natureza das Afecções). Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

EUGÉNIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Secalharidade como ética e como modo de


vida: o projeto AND_Lab e a investigação das práticas de encontro e de manuseamento
coletivo do viver juntos. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro,
Florianópolis, Vol. 1, nº 19, p. 61 –69, nov 2012.

FISCHER-LICHTE, Estética de lo performativo. Tradução: Diana González Martín e


David Martínez Perucha, Madrid: Abada, 2011.

10
Professora do curso de Artes da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de pesquisa Corpos
informáticos.
11
Artista colaboradora do Grupo de pesquisa Corpos informáticos.
MEDEIROS, Maria Beatriz de; ALBUQUERQUE, Natasha de. Composição urbana:
Surpreensão e fuleragem. Catálogo Palco Giratório – Rede SESC de intercâmbio e
difusão de artes cênicas. Circuito nacional 2013, Rio de Janeiro, SESC – Serviço Social
do Comércio, p. 24 – 35, 2013.

O’SULLIVAN, Simon. La estética del afecto. Pensar el arte mas allá de la


representacion. Exitbook: Revista de libros de arte y cultura visual, Madri, nº. 15, p. 8 –
21, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Urdimento – Revista de Estudos em


Artes Cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação
em Teatro. Tradução: Daniele Ávila. Florianópolis: Vol 1, nº15, p. 107 – 122, out 2010.

ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Percurso – Revista de Psicanálise,


Ano VIII, nº 16, p. 43 – 48, 1º semestre de 1996. Departamento de Psicanálise, Instituto
Sedes Sapientiae, São Paulo. Disponível em:
<http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf>. Acesso em 02/08/20013.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA CENOGRAFIA DO ESPETÁCULO BABEL


Natália de Oliveira Martins (Orientador: Prof. Dr. Ismael Scheffler; UTFPR - Curitiba)
Mariana Garcia da Silva (Orientador: Prof. Dr. Ismael Scheffler; UTFPR - Curitiba)

1. Introdução
O presente estudo apresenta o processo de criação da cenografia do espetáculo Babel
desenvolvido como projeto de extensão universitária na Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, em Curitiba, no ano de 2013. O espetáculo foi resultado do trabalho de dois grupos de
extensão: o TUT (Grupo de Teatro da UTFPR), e o GDC (Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico). Ambos os grupos coordenados pelo professor Ismael Scheffler, autor do texto e
diretor do espetáculo. Inicialmente, é feita a contextualização dos grupos com enfoque na
composição multidisciplinar e no funcionamento do GDC. Após, são pontuados aspectos do
texto teatral, propostas da encenação e condições de produção. A seguir, são relatadas as
diferentes etapas da criação da cenografia: pesquisas de referência, definições conceituais,
croquis de estudos, definição da forma e dos materiais, detalhamento do projeto executivo e
acompanhamento da confecção e montagem. O artigo finaliza com considerações de avaliação
do processo criativo do ponto de vista pedagógico e artístico.

2. Surgimento do projeto
O Grupo de Desenvolvimento Cenográfico (GDC) foi criado em 2013 como um
programa de extensão universitária contemplado com recursos do edital ProExt (Programa de
Extensão Universitária) da Secretaria de Ensino Superior, do Ministério da Educação, e realizado
na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Curitiba, PR. Idealizado e coordenado pelo
professor Ismael Scheffler (da área de Teatro) com a colaboração das professoras MSc. Ivone de
Castro (Design), Dra. Maurini de Souza (Letras e Comunicação) e Dra. Adriana Wan Stadnik
(Educação Física) ; o GDC foi composto por 14 acadêmicos da UTFPR de seis cursos de
graduação (Arquitetura e Urbanismo, Comunicação Institucional, Design, Educação Física,
Engenharia Elétrica e Licenciatura em Letras) que, juntos, realizaram uma série de ações
relacionadas à cenografia e ao design cênico. A maioria dos integrantes não possuía nenhum tipo
de experiência com teatro, embora alguns alunos já houvessem atuado de forma amadora em
espetáculos.
No decorrer do ano de 2013 foram desenvolvidos três projetos principais: a criação e a
produção do espetáculo teatral Babel, juntamente com o Grupo de Teatro da UTFPR (TUT); a
criação e produção da exposição Babel: o processo de criação do espetáculo teatral (realizada
na Biblioteca Pública do Paraná, de 09 de dezembro de 2013 a 30 de janeiro de 2014, e na
UTFPR, de 30 de janeiro a 14 de março de 2014) e seu catálogo; e o Seminário de Design
Cênico: os elementos visuais e sonoros da cena, realizado também na UTFPR, entre 06 e 09 de
novembro de 2013, bem como a produção dos anais do evento.
O TUT (Grupo de Teatro da UTFPR) foi criado em 1972 e permanece em atividade
ininterrupta até hoje. Esse grupo organiza e desenvolve oficinas na área teatral, montagens de
espetáculos, atividades performáticas, laboratórios de pesquisa, seminários de estudos,
exposições pedagógicas e clube de cinema, incentivando o acesso da comunidade a espetáculos
teatrais. Ele tem coordenação do professor Ismael Scheffler desde 2005. Seu elenco é composto
por alunos da UTFPR, bem como de membros da comunidade externa. Embora seja um grupo de
teatro universitário amador, já contou eventualmente com a participação de atores profissionais1.
O TUT já desenvolveu cerca de 40 espetáculos.
Para o espetáculo Babel, os dois grupos trabalharam articuladamente: o TUT fornecendo
os recursos humanos para a composição do elenco e o GDC, para a criação dos demais
elementos artísticos do espetáculo e para a produção.
Dentro do GDC foram organizados diferentes subgrupos de produção que atendiam
demandas como design gráfico dos materiais de divulgação do espetáculo, assessoria de
comunicação e infraestrutura. Para a criação artística, os alunos foram divididos em cinco
subgrupos: cenografia, figurino, iluminação cênica, sonoplastia e maquiagem. Cada subgrupo era
responsável por trabalhar suas concepções e propostas em relação à direção artística do
espetáculo, assistindo ensaios das atrizes, estando em sintonia também com as possibilidades
financeiras e logísticas de produção2.
Os dois grupos seguiram percursos paralelos de trabalho tendo encontros que visavam
unificar a proposta e afinar a relação dos diferentes artistas envolvidos no processo de criação do
espetáculo. Alguns encontros envolviam atividades práticas corporais e espaciais, outros
corresponderam a ensaios do elenco tendo o GDC como observador e outros ainda tinham
função técnica de produção.

3. O texto dramático
O texto foi escrito por Ismael Scheffler em 2004 e revisado em 2013. O texto é marcado
pela mistura de gêneros literários (dramático, épico e lírico), em uma estrutura fragmentada na
qual as atrizes assumem a tarefa de narradoras e personagens, alternando-se temporalidades do
presente e do passado. O título da peça faz referência direta à torre de Babel bíblica, embora não
corresponda a uma encenação desta história.
A torre de Babel do livro de Gênesis da Bíblia é uma referência muito presente em nossa
sociedade, tomada recorrentemente como símbolo de confusão ou profusão de idiomas. Torres
podem ser tomadas como símbolo de vaidade, arrogância e de domínio de tecnologia, mas
também são por vezes consideradas como locais de solidão, de isolamento e de clausura. De
certa forma, este espetáculo poderia ser referido como um “drama espacial”. Afinal, segundo o
autor do texto (SCHEFFLER, 2013), foi a partir da escolha de uma forma arquitetônica (a torre)
que todo o texto e encenação foram construídos. O texto é constituído, significativamente, por
fragmentos literários, apropriando-se de poesias e trechos de monólogos teatrais de diversos
autores. Os fragmentos, dispostos como em uma colagem, aparecem por vezes de forma mais
contrastante no recorte de suas bordas, em outras vezes delicadamente colados de maneira que
seus contornos se fundiram com o texto como um todo (SCHEFFLER, 2013).
A Babel da peça é uma torre, uma máquina, uma cidade onde vivem cinco mulheres,
únicas sobreviventes de toda humanidade. A rotina de Babel é marcada pelo trabalho automático
e por uma agonia constante. A Rainha-Mãe lidera e orienta, do alto da torre-máquina, suas quatro
filhas, que trabalham incessantemente na construção e manutenção da estrutura que as mantém
unidas - Babel. O esforço contínuo é mantido pela esperança na promessa de que da grande
máquina Babel surgiria a nova humanidade. As habitantes de Babel, contudo, mal sabem as
razões que as levam a, de fato, permanecer trabalhando. Um dia, uma das filhas, em meio à sua
rotina vazia de trabalho ininterrupto, sobe ao alto da torre Babel atingindo um ponto onde não se
costumava ir. De repente, ela vê algo inesperado à distância. Depois daquela visão tudo mudou.
A possibilidade de existirem outros horizontes, outras Babéis, outras pessoas, irradiou às demais
habitantes de Babel despertando novos sentimentos e outras dúvidas.

4. O processo de criação da cenografia


O projeto do cenário foi fruto de um processo de pesquisa e assimilação de conceitos da
peça Babel. Antes de ter acesso ao texto da peça, a equipe do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico trabalhou durante cerca de um mês com elementos de referência em diversos
exercícios (físicos, plásticos e arquitetônicos) que estavam vinculados às sensações e impressões
que pretendiam ser provocadas no público durante a peça. Parte da pedagogia adotada para a
criação do espetáculo está baseada nas considerações de Jacques Lecoq e na proposta do
Laboratório de Estudo do Movimento, considerado como o departamento cenográfico da Escola
Internacional de Teatro, em Paris, França. Essa pedagogia propõe a experimentação corporal do
espaço estabelecendo experimentações plásticas, articulando aspectos de escultura, pintura,
desenho, literatura, entre outros, ao teatro e à pesquisa do Movimento presente no corpo humano
e no mundo (SCHEFFLER, 2013).
O acesso ao texto se deu apenas em um segundo momento. O estudo do texto teatral
forneceu referências simbólicas e conceituais, dando algumas informações sobre as ações que as
personagens desempenhariam ao longo da história, revelando necessidades e exigências da
cenografia. O cenário de Babel consistiu em uma grande torre, poderosa grandeza além do
tamanho humano. Essa grande estrutura deveria ser habitável, isto é, comportar dentro de si
todas as cinco personagens na realização de ações. Desta forma, ela deveria assumir certo caráter
de "refúgio" das personagens. Não obstante ser uma torre e um abrigo, Babel deveria ser uma
grande máquina, uma torre-máquina, que oferecesse estruturas que possibilitassem o trabalho
corporal das atrizes, em parte ações do trabalho da construção civil, em parte como engrenagens
de uma máquina.
A definição das pessoas que comporiam o grupo responsável pela criação da cenografia
se deu apenas neste segundo momento. O grupo foi formado com quatro pessoas, todos alunos
de Arquitetura: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira
Martins.
Outro princípio norteante para a concepção da cenografia da torre foi o de procurar
potencializar possíveis sensações e simbolismos vinculados à verticalidade, como pequenez,
insignificância e medo. Uma das propostas da direção do espetáculo era de que a cenografia
tivesse aproximadamente seis metros de altura, para que, de certa forma, o espectador tivesse,
diante da torre cenográfica, uma experiência corporal direta com a verticalidade.
Inicialmente, a proposta era de o espetáculo ser apresentado em forma de arena dentro de
um galpão da universidade, estando cenário e cena ao centro e o público disposto em círculo ao
redor. A torre deveria ser, então, visualmente permeável a fim de garantir máxima visibilidade de
tudo o que acontecesse dentro e em torno dela. Para isto, seria necessária a locação de uma
estrutura para a sustentação dos equipamentos de iluminação cênica. Posteriormente, considerou-
se apresentar o espetáculo em um dos cantos do galpão, num espaço que ocupasse 100 m², tendo
duas frentes, estando a plateia disposta em forma de “L”. Nesta configuração, os grandes
paredões do galpão poderiam ser utilizados para a projeção de sombras do cenário e das
personagens, ressaltando formas e figuras, utilizando, assim, a iluminação também para a criação
de silhuetas. A imagem de “sombras” aparece diversas vezes no texto teatral, de forma
simbólica. Dessa forma, foi tomado também este simbolismo que permite uma duplicação e
ampliação, até mesmo do movimento, já que as sombras podem incidir em diferentes lugares
conforme varie a posição do ponto de luz.
O cenário deveria favorecer o movimento corporal das atrizes. Assim, a arte produzida
pelo movimento artístico Construtivista, desenvolvido na Rússia no início do século XX, em
particular, a cenografia teatral utilizada por encenadores como Vsevold Meyerhold e suas
propostas de exploração da biomecânica no trabalho dos atores, foi considerado como importante
referência (HAMON-SIRÉJOLS, 2004). O cenário de Babel foi projetado de forma a possibilitar
diversos percursos a serem percorridos pelas atrizes dentro e fora da torre, aproveitando os
cheios e vazios criados pela estrutura metálica. Os mecanismos da máquina anexados à torre
foram concebidos para explorar diferentes dinâmicas do movimento, entre ações de puxar e
empurrar, ritmos, linhas, níveis de altura e dimensões de ações.
Uma das propostas centrais é que nada nessa torre-máquina pudesse sugerir conforto e
estabilidade - exceto sob o abrigo da mãe, que foi pensado em conjunto com os figurinistas para
criar uma espécie de saia-barraca que fundisse o corpo da mãe a Babel e fosse como o ninho das
filhas. Além deste ambiente, nenhum outro deveria sugerir conforto e estabilidade ou demonstrar
condições de ser habitado por seres humanos - afinal, elas tendem a perder esta característica.
Após uma série de esboços, optou-se por trabalhar com múltiplas torres treliçadas e
retorcidas que, juntas, provocariam a sensação de ascensão ao mesmo tempo que remeteriam à
uma construção inacabada e/ou em ruínas. Assim como o steampunk, onde o futuro remete ao
passado, a torre deveria passar a impressão de algo futurístico, porém precário, com aspecto
obsoleto. O desequilíbrio e a instabilidade sugeridos pela forma da torre reforçam esse
sentimento de defasagem e de abandono.
Para aumentar a estabilidade das torres treliçadas e retorcidas, optou-se pelo uso de três,
dispostas em base triangular, de maneira que distribuíssem seu peso uma sobre a outra no
processo de ascensão, encontrando assim, estabilidade. As três torres são retorcidas para passar a
ideia de desequilíbrio, instabilidade, dando dinamismo e movimento. Este retorcido em espiral
ascendente aumenta a sensação de verticalidade, potencializando o movimento e evocando certa
ordem mística.
Foram agregados às torres diversos elementos como plataformas gerando, ao mesmo
tempo, uma maior complexidade visual e possibilitando mais formas de interação das atrizes
com o cenário. Ao centro desse vórtice treliçado há um andaime, elemento temporário que
transmite a sensação de inacabado, de algo em construção. A torre está em processo de
construção há anos e, de certa forma, o próprio andaime temporário acabou fundindo-se à
edificação, similarmente como a vida das personagens que construíam a Babel, não como um fim
em si, mas como um meio de gerar a nova humanidade. Uma transitoriedade que se perpetuou,
que se calcificou - aspecto que entra em crise na existência das personagens e gera o conflito
central do espetáculo.
Uma das personagens, a Rainha-Mãe, está há tanto tempo vivendo nessa torre que já se
encontra em um processo de fusão à estrutura. Essa criatura também é a coordenadora da
construção da torre-máquina, vigilante, e, por isso, precisava de um local fixo e alto para poder
visualizar tudo ao seu redor. Foi concebida, então, uma plataforma anexada ao andaime a cerca
de três metros do chão. Acima da metade da estrutura, mas não no ponto mais alto, pois na
história é justamente quando uma personagem sobe ao topo da torre, local que ninguém
frequentava, que há uma reviravolta na trama. A plataforma da Mãe é o elemento de aspecto
mais estável e equilibrado da cenografia.
O material escolhido para a construção do cenário foi o metal, estrutura relativamente
leve ao pensarmos em uma edificação e que suporta grande peso. Uma das propostas para a
concepção da cenografia é que ela deveria ser toda desmontável para que pudesse ser
transportada e facilmente remontada em outros espaços, e assim, poder viajar e ser utilizada em
outros lugares. Por isto também, a torre não poderia ser fixada no chão, devendo ter estabilidade
completa apenas colocada sobre o solo. Conceitualmente, o metal transmitiria também a
impressão de grande máquina e com tratamentos de superfície, poderia dar a impressão de
envelhecido. A estruturação em treliça se apresentou como uma solução que ofereceria mais
estabilidade, garantindo maior segurança para as atrizes, além de dinamismo e ritmo. A opção
pelo metal também atendia ao desejo de exploração de sonoridades da estrutura pelo trabalho das
atrizes.
Até chegar a forma definitiva da estrutura, foram realizados vários croquis livres,
buscando-se primeiramente integrar diferentes elementos: formas variadas que compusessem a
verticalização da torre oferecendo dinâmica ao conjunto, áreas de circulação, plataformas,
engrenagens de trabalho. Os croquis foram dando forma às ideias e maquetes virtuais e físicas
auxiliavam na visualização e percepção espacial. O processo de amadurecimento das formas foi
acompanhado por consultas técnicas ao professor de estruturas do departamento de construção
civil da UTFPR Wellington Mazer, a fim de garantir a estabilidade de estrutura criada e
segurança às atrizes.
A confecção de uma maquete tridimensional em madeira auxiliou no trabalho de toda
criação. A partir da maquete, alguns testes de iluminação puderam ser feitos, o que foi
determinante para a criação e exploração de sombras e definição do posicionamento dos
equipamentos de luz. Foi essencial também para o trabalho do elenco, visto que permitia a
marcação de algumas cenas antes mesmo do aparato ter sido concluído e instalado. Para o
figurino, foi imprescindível, pois ajudou a entender as dinâmicas corporais exigidas como as
escaladas e os trabalhos das personagens. Quanto à sonoplastia, diversas sonoridades foram
exploradas a partir do trabalho das atrizes sobre o metal.
Após a definição da forma e do material, assim como as dimensões, foram realizados os
desenhos técnicos do cenário, considerando-se as especificidades dos materiais (dimensões,
espessuras, encaixes), as bases de apoio, as angulações, levando-se em conta também questões
de confecção, transporte, montagem e possíveis remontagens. Os desenhos técnicos foram
discutidos com os serralheiros responsáveis pela confecção e sofreram ajustes, sendo finalmente
encaminhados para a produção. Como a UTFPR conta com uma serralheria própria, na Divisão
de Obras e Manutenção de Móveis, parte do cenário pôde ser construído na universidade, como a
torre da mãe e as plataformas. As três torres treliçadas, porém, devido à especificidade e
complexidade de sua construção tiveram que ser encaminhados a uma serralheria especializada
na construção de cenários, a Villa Hauer Cultural, coordenada pelo cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho. Foram necessárias algumas visitas de acompanhamento da construção da
cenografia a estas duas equipes a fim de sanar dúvidas e fazer adequações necessárias ao
projeto3.

5. Considerações finais
Para nós, enquanto alunas, a interdisciplinaridade do programa foi um grande desafio,
que nos forneceu muitas possibilidades. A convivência com um grupo de criação grande e muito
heterogêneo foi difícil, mas aprendemos a lidar com a individualidade de cada um e procuramos
tirar partido de tal fato.
As diferentes áreas de graduação que englobaram o projeto fizeram com que muitos
graduandos tivessem contato pela primeira vez com a área teatral, com o trabalho corporal e
afinassem seus sentidos e a percepção do espaço.
Outra condicionante do nosso percurso foi o tempo restrito que nos levou a prazos
apertados para cada etapa de produção com impacto direto na forma que condicionamos o
trabalho, tentando fazer o melhor possível e muitas vezes até mudando o rumo das decisões caso
algo não pudesse ser confeccionado a tempo ou a verba para tal processo fosse demasiadamente
demorada. Como lidávamos com dinheiro público, foi preciso desenvolver os projetos o mais
rápido possível para que o trâmite dos processos de licitação e contratação de serviços não
prejudicasse o cronograma para a estreia do espetáculo.
Esse projeto ofereceu uma oportunidade única de adaptação de nossos conhecimentos
específicos de cada área em uma produção artística. O desafio desta criação em uma
universidade tecnológica também deve ser levado em conta, pois na UTFPR não há cursos de
graduação na área de artes e os alunos que participaram do Grupo de Desenvolvimento
Cenográfico – GDC levaram o projeto em paralelo aos estudos e possíveis estágios. Alunos,
professores e servidores não estão muito acostumados com produções artísticas dentro da
universidade, embora tenham aumentado as iniciativas nos últimos anos, principalmente com o
surgimento de novos cursos de graduação como Licenciatura em Letras, Comunicação
Institucional, Design e Arquitetura e Urbanismo, um projeto desse porte ainda não havia sido
implementado no contexto da universidade.
Compreender como funcionam a criação e a produção de um espetáculo teatral desde sua
concepção à logística foi uma experiência extremamente enriquecedora. Além da vivência na
produção teatral, adquirimos grande aprendizado sobre o espaço cênico e consciência espacial.

Referências:

BABEL. Programa do espetáculo. TUT - Universidade Tecnológica Federal do Paraná.


Impresso. 14 p. Curitiba, 2013.
HAMON-SIRÉJOLS, Christine. Le constructivisme au théâtre. Paris: CNRS Éditions, 2004.
SCHEFFLER, Ismael (Org.) Babel : o processo de criação do espetáculo teatral : catálogo da
exposição. Curitiba: UTFPR, 2013.
TUT. Grupo de Teatro da UTFPR. Acesso: <http://www.ct.utfpr.edu.br/tut/> Disponível em: 20
jun. 2014.

1
Elenco de Babel : Mariane Filomeno, Carol Pellegrini, Monique Rau, Uliana Kovalczuk e Sissa Oliveira e Patricia
Goulart, com assitência de direção de DiegoVon Ancken.
2
Cenografia: Betina Bonilauri, Mariana Garcia da Silva, Matheus Mayer e Natália de Oliveira Martins; Figurinos:
Lívia Gariani, Lucas Queiroz Morais e Maria Lígia Freire; Maquiagem: Amanda Marciniak, Betina Bonilauri e
Mariana Garcia da Silva, com consultoria de Juliane Friedrich; Iluminação: Felipe Serenato Leal e Luiz Ricardo
Castro; Sonoplastia: Henrique Jakobi, Lua Volpi e Ismael Scheffler. Com a colaboração na produção de Diogo
Duda, Jaqueline Modesto e Dáphene Zandoná.
3
A execussão da cenografia foi feita por duas equipes: a) Villa Hauer Cultural, tendo o cenógrafo e cenotécnico
Alfredo Gomes Filho encabeçando o trabalho em conjunto com os serralheiros Ademar Cesar Silva Brasileiro e
Adilson “Magrão” ; b) a Divisão de Obras e Manutenção de Imóveis da UTFPR, tendo como serralheiros Rafael
Gonçalves Soares e Ataíde Sanches.
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES.
JOHAN HUIZINGA: JOGO CULTURAL - RELAÇÕES COM OS ESTUDOS DAS
PERFORMANCES CULTURAIS.

Mestranda Onira de Ávila Pinheiro Tancrede; Orientador Prof. Dr. Eduardo Reinato;
Mestrado em Performances Culturais; UFG (Universidade Federal de Goiás)

Resumo
No presente artigo escrevo sobre a pesquisa em fase inicial que investiga as
manifestações culturais apresentadas através das características do jogo cultural elaboradas
por Johan Huizinga que se mostram nos contextos artístico, social e cultural e de que
forma se relacionam com os estudos das performances culturais. Busco nesta pesquisa um
trabalho teórico à luz da minha experiência com a prática tanto em sala de aula, com jogos
teatrais, brincadeiras e nas cirandas cantadas, como também em outras vivências educativas
do contexto cultural. A pesquisa irá contemplar de forma interdisciplinar as relações
metodológicas que competem uma pesquisa teórica, colaborando com os estudos
pretendidos durante a investigação que se inicia. Com essa pesquisa, poderei fazer algumas
considerações sobre a importância que os processos desenvolvidos pelos jogos têm em uma
determinada cultura e compreender o sentido lúdico dos jogos culturais. O que exige a
compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto estético com características
próprias e como forma de abordagem relacionada à construção do conhecimento. Assim, o
estudo em questão me permitirá não somente, refletir sobre as características dos jogos
culturais, como também trará benefício e contribuições para a área quanto ao tema
investigado.

Palavras chave: História, jogo cultural, patrimônio.

JOHAN HUIZINGA: CULTURAL GAMES – RELATIONS WITH CULTURAL


PERFORMANCES STUDIES
Abstract
In this article I write about a research that investigates, in an early stage, cultural
events presented by the features of the cultural game developed by Johan Huizinga, that
show themselves in artistic, social and cultural contexts and how they relate to the study of
cultural performances . Seeking a theoretical work in this research in light of my experience
with the practice both in the classroom with theater games, jokes and sing alongs, as well as
other educational experiences of cultural context. The research will include an
interdisciplinary view of the methodological relations competing theoretical research,
collaborating with the studies intended for initial research. With this research, I can make
some considerations about the importance of the processes developed by the games in a
particular culture and I can get a better understanding of the playful sense of cultural
games. This requires an understanding of art as a phenomenon of culture as an aesthetic
object with its own characteristics and as a way of relating to the construction of knowledge
approach. Thus, the present study will allow me to not only reflect on the characteristics of
cultural games, but to bring benefit and contributions to the field as the subject is
investigated.

Keywords: History, cultural game, patrimony.


2

A pesquisa em questão, objetiva analisar os pontos de diálogo entre as


características do jogo cultural elaborado por Johan Huizinga1, apresentadas no livro Homo
Ludens, e as performances culturais. No livro Homo Ludens, Huizinga (2007) define o jogo
cultural como:
Jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo,
acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e uma consciência de ser
diferente da vida cotidiana. Assim definida, a noção parece capaz de abranger
tudo aquilo a que chamamos “jogo” entre animais, as crianças e os adultos: jogos
de força e de destreza, jogos de sorte, de adivinhações, exibições de todo gênero.
(p.33)

Este conceito de jogo de Huizinga, já apresenta, em sua própria definição, um


diálogo com as performances culturais, visto que ambos correspondem ao desempenho dos
jogadores, tanto na vida cotidiana como também na atividade de socialização, como
brincadeira ou em algum entretenimento cultural, como mostra Richard Schechner (2006).
Performances culturais foi um termo utilizado por Schechner2 (2006), que levou em
consideração o conceito elaborado por Milton Borah Singer3 (1972) de “performance
cultural” - uma forma de expressão artística que obedece a uma programação prévia da
comunidade, com local próprio para sua ocorrência, horário definido para início e fim das
atividades, delimitação entre performers e público.
Nas performances as expressões simbólicas concorrem para uma “unidade dos
sentidos” (sinestesia) que habilitaria a cultura a entreter a si própria com a ideia da unidade
de significados. Dessa maneira percebo que o jogo também é uma situação onde as
performances podem acontecer. Afinal de contas, elas podem tanto pertencer à vida
cotidiana, quanto a uma atividade de socialização, tal como brincadeira e/ou, em algum
entretenimento cultural, como mostra Schechner (2006).
Todavia, além de recorrer aos estudos de Schechner, buscarei analisar as
características das performances culturais4 sob o ponto de vista de outro autor, a saber,
Milton Singer (1972). Assim, em grande parte a fundamentação teórica que dará suporte a
esta proposta de investigação teórica contará com ambos os autores para investigar se
existem pontos de diálogos entre as performances culturais com o jogo cultural.
De uma maneira mais plural, Robson Camargo de Corrêa5 (2012) define
performances culturais como:

[...] um conceito que está inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e


que pretende o estudo comparativo das civilizações em suas múltiplas
determinações concretas; o estabelecimento de seu processo de desenvolvimento
e de suas possíveis contaminações; assim como do entendimento das culturas

1
Johan Huizinga ( 1872 – 1945) foi um professor e historiador, conhecido por seus trabalhos sobre a Baixa Idade Média, a Reforma e
o Renascimento.Destaca-se ainda a sua principal contribuição: o Homo Ludens, escrito por ele no ano de 1938.
2
Richard Schechner (1934 - ) é professor de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts daUniversidade
de Nova Iorque, editor da TDR: The Drama Review e diretor da East Coast Artists. Schechner é um dos iniciadores do programa de
Estudos da Performance e fundador do The Performance Group, um grupo de teatro experimental.
3
Milton Borah Singer (1912- 1994), antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte americano.
4
Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955 por Milton Borah Singer (1912- 1994) em estreito diálogo com as
construções teóricas de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo, comunicador e etnolinguista Robert
Redfield (1879 - 1958).
5
CAMARGO, Robson Corrêa de. Coordenador do mestrado Interdisciplinar em Performances Culturais – Universidade federal de Goiás.
3

através de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade, ou seja, como o


homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe sua gênese, sua
estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser. Neste movimento as performances
são sempre plurais, pois pretendem o estudo comparativo, seja a partir de uma
perspectiva macro, em contraste com as micro experiências (as variadas formas
não oficializadas e diversas a que temos acesso) ou mesmo entre as pequenas
tradições ou vice-versa. (p.1)

Percebemos, portanto, a partir dos conceitos aqui brevemente expostos, que o jogo
cultural e as performances culturais, sugerem ser um tema de pesquisa que articula diversas
áreas do conhecimento humano: experiência, memória, aspecto lúdico, estética, tradição e
teatralidade, entre outros. Em algumas leituras sobre jogo cultural como, por exemplo, os
estudos de Ricardo Japiassu (2001) sobre jogos tradicionais e o jogo teatral, e as
performances culturais, encontramos alguns aspectos comuns: a história do jogo como uma
história da cultura, as características e função do jogo em cada período histórico.
Esta articulação entre o jogo cultural e o teatro é visível no comentário de Japiassu
(2001) quando afirma ser o teatro um:

Importante meio de comunicação e expressão que articula aspectos plásticos,


audiovisuais, musicais e linguísticos em sua especificidade estética, o teatro
passou a ser reconhecido como forma de conhecimento capaz de mobilizar,
coordenando-as, as dimensões sensório-motora, simbólica, afetiva e cognitiva do
educando, tornando-se útil na compreensão crítica da realidade humana
culturalmente determinada. (p. 22)

O entendimento do autor quanto à amplitude da teatralização como compreensão e


crítica a cultura aproxima-se do entendimento de Huizinga (2007) sobre o fenômeno
cultural, não obstante a publicação de Homo Ludens ser publicado nas primeiras décadas do
século XX. A partir das características e classificações estabelecidas por Huizinga (2007),
busco analisar a relação com as performances culturais, utilizando conceitos de Schechner
(2006) e Singer (1972). Assim, minha pesquisa parte das características do jogo cultural,
partindo do pressuposto que a aproximação entre ambos ocorre pelo viés cultural. Jogar é
estar em um momento imaginativo, em um espaço ficcional, preestabelecido, com códigos
e regras sociais, onde ficamos fora da vida cotidiana, mesmo que ainda estejamos nela.
Vejamos o que Huizinga (2007) descreve sobre jogo quando fala sobre o estado da
criança de se sentir “transportada”:

Sabemos que as exibições das crianças mostram, desde a mais tenra infância, um
alto grau de imaginação. A criança representa alguma coisa diferente, ou mais
bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um
príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou tigre. A criança fica literalmente
“transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a
acreditar que realmente é está ou aquela coisa, sem, contudo perder inteiramente
o sentido da “realidade habitual”. (p.17)

Huizinga (2007) enxerga o jogo como elemento da cultura humana. Aliás, ele
afirma ser o jogo anterior à cultura, visto que esta pressupõe a existência da sociedade
humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais. O autor acrescenta: “A
existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer
4

concepção do universo.” (Huizinga, 2007, p.32). Afinal, o objetivo inicial não é ensinar
apenas técnicas para formar atores, mas poder estimular a imaginação criativa do aluno,
que já se faz dramática desde a sua concepção, pois ser criativo é uma característica natural
do ser humano.
Ao falar sobre o processo criativo dos artistas, Japiassu (2007) explica: “não é a
formação de artistas, mas o domínio, a fluência, e a compreensão estética dessas complexas
formas humanas de expressão que movimentam processos afetivos, cognitivos e
psicomotores.” (p. 24). O jogo cultural ou jogo teatral não busca apenas a formação de
atores, mas os constantes exercícios da prática social, permitindo que se trabalhem melhor
em conjunto, se expressem com mais desenvoltura e, obviamente desenvolvam sua
consciência crítica. Processo criativo é o que podemos perceber bem na brincadeira cantada
a saber as “cirandas”, que é considerada uma atividade lúdica, rítmica e de expressão do
movimento corporal que integra nossa cultura. Assim quando a criança, jovem e adulto
brincar, estará movimentando o corpo, trabalhando ritmos e assim possibilitando-os
experimentar o som e cultivar a escuta. Privilegiando os aspectos culturais de forma
coletiva, trabalhando socialmente em grupos.
Entre as brincadeiras infantis, em outro estudo (MAFFIOLETTI, 2004, p.37) a
autora destaca que a brincadeira cantada é uma atividade cooperativa e coletiva em que
aprendemos a ser mais humanos, por gerar o sentimento de “estar com”. Por meio da
brincadeira cantada são criados vínculos sociais e é retratada a cultura do meio social. Nas
brincadeiras cantadas às crianças realizam movimentos sincronizados em que cada um é
fundamental para o sucesso do desempenho do grupo. A palavra ciranda tem origem
portuguesa e significa “peneira grossa” ou “joeiro”. Lembra o movimento rotativo das
peneiras ao serem manuseadas. A roda pode ser considerada uma das formas mais primitiva
de dançar e está presente em todos os povos com influência de várias culturas.
Outro ponto de interesse investigativo desta proposta é analisar e comparar as
interfaces dos jogos e as performances culturais: Como se articulam as diferentes
linguagens e as concepções estéticas inseridas nessas atividades?
Schechner (2006) apresenta oito tipos de situações onde as performances culturais
poderão ocorrer: “1) Na vida diária, cozinhando, socializando-se, apenas vivendo; 2) Nas
artes; 3) Nos esportes e outros entretenimentos populares; 4) nos negócios; 5) na
tecnologia; 6) No sexo; 7) Nos rituais – sagrados e seculares; 8) Em ação.” (SCHECHNER,
2006. p.33-34). Como podemos notar o conceito de performances culturais é amplo e
abarca várias situações que podem ser vivenciadas em separado ou entrecruzadas com
outras, em um campo multidisciplinar de conhecimento, onde as áreas se misturam e se
completam. Por exemplo, jogar em teatro implica colocar o aluno numa situação lúdica em
que ele precise solucionar um problema cênico. Existem regras as quais ele deve seguir e
objetivos que devem alcançar. Os alunos/jogadores interagem ora jogando, ora assistindo.
Desse modo, é possível desenvolver o senso crítico, além do senso estético, além do
aprendizado tornar-se prazeroso e independente.
Marvin Carlson (2009) tece considerações a respeito dessa relação quando afirma:

O Huizinga (2007) considera, como uma das características básicas do jogo, o


desenvolvimento e o reforço de um Espirito e de uma Consciência de
comunidade, e sugere que seus efeitos sempre continuam para além da
experiência momentânea do jogo. Assim, o jogo cultural, como a performance
cultural de Singer, permite um fortalecimento da comunidade, e a
“presentificação pela representação” dos valores escondidos, das suposições e
5

crendices da cultura. E isso se torna claro quando Huizinga (2007) explora a


proximidade das relações entre jogo e ritual. (p.38)

Assim como Huizinga (2007) não teve a pretensão de responder todas as questões
sobre o jogo cultural, por considerar que a cultura passa por constantes transformações,
Schechner (2006) também não teve a pretensão de definir as preposições usadas para
definir as performances culturais, uma vez que as mesmas apresentam conceitos bem
amplos. Como tal, não tenho a pretensão de definir nada, nem desmistificar tudo sobre o
jogo cultural e a performances culturais, pela totalidade imensa de informações acerca do
tema. Meu foco recai nos possíveis pontos de diálogos entre esses conceitos tão amplos e
desafiadores. É possível estabelecer relações entre os estudos sobre o jogo cultural de
Johan Huizinga com os estudos das performances culturais? Quais são? Como ocorrem?
Com essa pesquisa, poderemos fazer algumas considerações sobre a importância
que os processos desenvolvidos pelos jogos desenvolvem em uma determinada cultura e
compreender o sentido lúdico dos jogos culturais considerando minhas experiências
práticas. O que exige a compreensão da arte como fenômeno da cultura, como objeto
estético com características próprias e como forma de abordagem relacionada à construção
do conhecimento. Assim, o estudo em questão me permitirá, não somente, refletir sobre
minha experiência com jogos teatrais como também, trará benefício e contribuições para a
área quanto ao tema investigado. Particularmente, a investigação trará benefícios para
minha prática docente ao permitir aprofundamentos teóricos, conceituais e procedimentais,
que me permitirão desdobramentos em outros estudos, no futuro.
A pesquisa busca estabelecer as possíveis relações dos estudos sobre o jogo cultural
de Johan Huizinga com os estudos das performances culturais; Refletir sobre o jogo
cultural e as performances culturais, Compreender o sentido aprender/entender o jogo
cultural; Identificar, compreender e analisar as características do jogo cultural - elaborados
por Johan Huizinga -, bem como as características das performances culturais; Reconhecer
as possíveis relações de similaridade e/ou diferenciações entre as propostas de Huizinga e
as performances culturais.
Esta pesquisa se fundamentará a partir das leituras feitas do livro “Homo Ludens”,
de Johan Huizinga (2007). Jogo, a que se refere Huizinga (2007) é jogo com regras que
constituem o fundamento do processo educacional e serve também como uma forma de
contribuição a criação da realidade cênica. Segundo Huizinga (2007) “o jogo sempre
representa algo”, e a partir desse argumento que busco as possíveis representações feitas
pelo jogo na vida do indivíduo.
As performances culturais alcançam quase todas as atividades humanas, conforme
propõe Schechner (2006) e suas definições têm foco em um ponto: vida cotidiana. O
intento de Schechner (2006) é justamente dar ênfase a amplitude que as performances
culturais têm em sua concepção. Entretanto, ele não coloca essa definição como absoluta ou
como a verdade, mas como algo que vem se constituindo assim, historicamente, como um
processo. Enfim, Schechner (2006) por ser um autor que vem do teatro, contribui de
sobremaneira a esta investigação. Associo de maneira análoga a definição de Schechner
(2006) sobre “comportamento restaurado” na performance, com as brincadeiras, o jogo
cultural, e como tudo que de uma forma ou outra nos transforma e nos faz reviver uma
experiência. Não obstante sejamos a mesma pessoa após um jogo, ainda assim, nos
sentimos transformados, vivendo independentemente de um mundo preestabelecido. O que
pode ser reconhecido nesta definição de Schechner (2006):
6

Comportamento restaurado é o processo chave de todo tipo de performance, no


dia-a-dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas arte. O comportamento
restaurado existe no mundo real, como algo separado e independente de mim.
Colocando isto em termos pessoais, o comportamento restaurado é – eu me
comportando como se fosse outra pessoa, ou eu me comportando como me
mandaram ou eu me comportando como eu aprendi. (p.33-34)

Esta é uma pesquisa teórica, bibliográfica, exploratória e interdisciplinar que se


configura na relação dinâmica entre cada um de seus feixes metodológicos, ou seja, para o
desenvolvimento desta pesquisa é necessário compreender a complexidade das
características do jogo cultural e das performances culturais. Entendo como pesquisa
teórica aquela “dedicada a reconstruir teoria, conceitos, idéias, ideologias, polêmicas, tendo
em vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos.” (Demo, 2000, p. 20). Isto
não implica imediata intervenção na realidade, mas nem por isso deixa de ser importante,
pois seu papel é decisivo na criação de condições para a intervenção. O conhecimento
teórico realizado de maneira adequada, “acarreta rigor conceitual, análise acurada,
desempenho lógico, argumentação diversificada, capacidade explicativa.” (Demo, 1994, p.
36). Neste sentido, constituem os vértices da estrutura metodológica deste projeto: a
pesquisa teórica, bibliográfica, entrelaçada à investigação empírica, sobre minha prática
enquanto professora de teatro. A valorização da investigação empírica ocorre pela
“possibilidade que oferece de maior concretude às argumentações, por mais tênue que
possa ser a base fatual. O significado dos dados empíricos depende do referencial teórico,
mas estes dados agregam impacto pertinente, sobretudo no sentido de facilitarem a
aproximação prática.” (Demo, 1994, p. 37).
Para tanto, conto com leituras primárias e secundárias de livros, artigos, revistas e
site que tratem do assunto pesquisado, discriminados nas referências e levantamentos
bibliográficos abaixo. Estas leituras visam contribuir com a compreensão do contexto em
que o jogo cultural e as performances culturais estão inseridos, bem como os enfoques
teóricos desenvolvidos por autores que tratam desses assuntos.

Referências
Referências Bibliográficas
CARLSON, Marvin. Performance – Uma Introdução Crítica. UFMG, 2009. Capítulo I
Performance e Ciências Sociais.
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caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro1994.
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2007.
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Infantil, Ano II, n.4, abr./jul., 2004.
7

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Press, 1972.

Referências virtuais
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Acesso em: 12 de agosto de 2013.

Levantamento Bibliográfico
BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental
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CAMARGO, R.; CAPEL, H.; REINATO, E. Performances Culturais. São Paulo: Editora Hucitec,
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra,
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SPOLIN, Viola. [1963] Improvisação para o teatro. Tradução: Ingrid Dormien Koudela e
Eduardo José de Almeida Amos. 4ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

DA PENA DE SHAKESPEARE AO ‘ROMEU E JULIETA’ DO GALPÃO: UMA


EXPERIÊNCIA DO NOVO LUGAR DA DRAMATURGIA CLÁSSICA

Paula Mathenhauer Guerreiro (Fapesp; Bolsa de Mestrado); Orientador: Isa Kopelman;


Unicamp

Faz quase duzentos anos que o termo encenação existe com o sentido que lhe
atribuímos hoje e, em 18801 – com o início da era dos encenadores –, irrompe-se a crise
do drama. Drama: vocábulo que serve tanto para descrever a obra literária, quanto a sua
representação cênica, paralelo que não representa uma coincidência, visto que “o drama,
como forma literária, é uma obra destinada à cena e, de modo semelhante, a maioria dos
espetáculos teatrais parte de obras literárias” (WILLIAMS, 2010, p. 215). Se, em termos
etimológicos, os dois conceitos habitam a mesma forma, a prática evidencia uma intensa
tensão entre ambas as instâncias, sobretudo a partir de 1970, quando teria começado o
que Hans-Thies Lehmann batizou de teatro pós-dramático, em uma obra que parte da
hipótese de que

ocorreu uma profunda ruptura no modo de pensar e fazer teatro. Algo que já
estava anunciado pelas vanguardas modernistas do começo do século XX – a
valorização da autonomia da cena e a recusa a qualquer tipo de
“textocentrismo” – se desenvolve mais radicalmente, a ponto de assumir um
sentido modelar como contraponto da arte do processo de totalização da
indústria cultural. Desse modo, a tendência “pós-dramática” seria uma
novidade histórica não apenas por razões formais, mas também pela negação
estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática
(CARVALHO in LEHMANN2, 2007, p. 7)

Se o que se observa, desde 1880, é uma crise, seria de se pressupor um período


breve, demarcado, necessariamente, por uma resolução: a morte do drama é o que
postula Lehmann, mas montagens marcantes da nossa história recente parecem, a
contragosto do teórico alemão, afirmar que a dramaturgia clássica ainda é o legado de
que partem grandes espetáculos dos nossos tempos. O Romeu e Julieta (1992) do grupo
Galpão é uma das mais consagradas obras do teatro brasileiro e colabora com esse
estudo na medida em que leva à cena contemporânea possibilidades concretas de
diálogo com uma dramaturgia clássica, ao atualizar o que Shakespeare tem a dizer com
uma história em que o ódio e a violência, ainda que banhados de lirismo, arrastam tudo
que é belo, mesmo o amor entre dois adolescentes.
Perscrutando procedimentos utilizados nessa montagem e o resultado artístico
que se apresenta, encontram-se algumas características dessa nova aliança entre texto e
1
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013. O autor considera que o
advento da encenação se deu por volta de 1820 e que o surgimento de encenadores acontece a partir dos
anos 1880, “visto que a era dos encenadores não começou antes da crítica radical ao teatro feita por Zola
ou Antoine, da mesma maneira que não começou “nem antes” da contraproposta do simbolismo” (p. 2).
2
CARVALHO, Sérgio de. in LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Editora Cosac Naify,
2007.
cena, que revelam as inúmeras possibilidades à disposição do artista que dialoga com o
devir cênico de que fala Jean-Pierre Sarrazac, ensaísta e dramaturgo francês cuja visão
ampara este estudo na perspectiva de que, ao contrário de uma rescisão entre o drama e
a cena, o que aconteceu foi uma mutação benéfica da abordagem que se pode propor ao
texto dramático.

No fim do século 19, com o advento da encenação moderna – Wagner,


Antoine, Stanislavski –, o texto dramático encontrou, na sua própria
incompletude, a sua abertura. Em cada peça, há um vazio que chama o palco,
a relação com o espectador. É o que eu chamo de devir cênico de um texto
teatral. Um texto forte para o teatro é aquele que tem a forma aberta,
rapsódica, que não só expressa seu desejo pela cena, pelos atores, pelo
público, mas também reinventa essa relação (SARRAZAC, 2012)3

A teatralidade do Romeu e Julieta da rua

Pode-se dizer que o vazio do texto a que se refere Sarrazac corresponde, na


prática, à teatralidade que se observa na obra encenada. A famosa definição de Roland
Barhes da teatralidade como o “teatro menos o texto”, embora não seja falsa, peca por
não sugerir as relações que podem ser estabelecidas entre o texto dramático e outros
componentes da representação teatral, entre os quais, ao lado da cenografia, iluminação,
trilha sonora – dentre outros recursos –, figura-se, saliente e vivo, o jogo entre os atores.
Conforme será visto adiante, na experiência do Galpão, todos esses componentes,
sobretudo o trabalho da interpretação, são influenciados pelo texto, considerado tanto
como material compreensível, quanto como material sonoro.
Com a direção de Gabriel Villela, o conjunto desses elementos foi considerado
uma “preciosidade” por Bárbara Heliodora. “Mesmo adaptando para as necessidades do
grupo e das circunstâncias, o novo texto foi absolutamente fiel às intenções de
Shakespeare”4. Tal fidelidade, tão temida no século da experimentação, não coloca a
perder os avanços conquistados pelo surgimento do encenador moderno; explora, antes,
a teatralidade que, em potência, repousa no legado daquele que é considerado o maior
dramaturgo da história do teatro.
Uma breve interrupção antes do início da análise que se segue: este estudo não
quer discutir a emancipação da cena em relação ao texto, que já é ponto pacífico no
campo da definição desses gêneros artísticos. “O velho debate para saber se o teatro é
literatura ou arte autônoma não mais se coloca há já muito tempo” (PAVIS, 2013, p.
382). A busca é por verificar, diante da boa adaptação de uma obra clássica, algumas
3
Trecho de entrevista publicada no jornal Estadão, na edição de 14/03/2012, que Sarrazac concedeu em
sua vinda ao Brasil, para lançar seu “Léxico do drama moderno e contemporâneo” (Cosac Naify, 2012).
Disponível em: http://search2.estadao.com.br/noticias/arteelazer,teorico-jean-pierre-sarrazac-defende-
sobrevivencia-do-teatro,848271,0.htm Acessado em: 06/07/2014.
4
Entrevista concedida ao Jornal do Commercio, publicada em 20/04/2014, em ocasião aos 450 anos de
Shakespeare. Heliodora, considerada uma das maiores críticas teatrais brasileiras e a maior autoridade de
Shakespeare no nosso país, afirmou que o espetáculo do Galpão foi a melhor adaptação do Bardo a que
ela já assistiu. A entrevista está disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/artes-
cenicas/noticia/2014/04/20/barbara-heliodora-fala-dos-450-anos-de-shakespeare-125499.php Acessado
em 06/07/2014.
características que revelam existir, entre essas duas instâncias, um imbricamento
indissociável, uma relação que, ao invés de depor contra a obra – como afirmaria
Lehmann –, torna-a integralizada. “Nós não pensamos, como este brilhante teórico5, que
a encenação “do teatro da época moderna” não é “geralmente mais que declamação e
ilustração do drama escrito”” (SARRAZAC, 2007).
Nesse sentido proposto pelo teórico francês, serão pontuados alguns aspectos
que fazem do Romeu e Julieta do grupo Galpão uma experiência emblemática daquele
que seria o novo lugar da dramaturgia clássica na cena contemporânea: o texto como
conteúdo compreensível e material sonoro; a figura do dramaturg; e o empréstimo de
artes exteriores.

O texto como conteúdo compreensível e material sonoro

A teatralidade da montagem – o que Villela propõe à cena e o que conquistam os


atores – leva em consideração o texto tanto como conteúdo compreensível quanto como
material sonoro. O conteúdo compreensível – com um caráter de “tragédia da
precipitação”, em que as personagens agem por impulso e atravessadas por um risco
constante – é simbolizado, sobretudo, pelo uso de pernas de pau. Eduardo Moreira, ator
que interpreta Romeu e um dos fundadores do Galpão, afirma que “a perna de pau dá
muito bem essa ideia de falta de equilíbrio. Você está lá em cima, mas pode cair a
qualquer momento”6. Esse desequilíbrio foi presente em todo o processo de montagem,
não só em cima das pernas de pau, como atravessando, em exercícios frequentes, uma
trave de madeira, a um metro e meio do chão, enquanto se pronunciavam as falas.
O perigo da queda iminente conferiu ao texto uma qualidade que dialogava com
o texto também como material sonoro, na medida em que essa ideia de precipitação, no
espetáculo, é construída também a partir da escolha da tradução de Onestaldo
Pennaforte, que, primando pelo rigor com as rimas e tamanho dos versos, consegue
estabelecer a velocidade e a pulsação adequadas à fala. Cacá Brandão, dramaturgista do
espetáculo e autor de seu diário de montagem, registra que

A virtuosidade exigida ao corpo dos atores equivale à virtuosidade retórica e


confere ao texto a pronúncia acrobática e vibrante com que as palavras da
clássica tradução de Pennaforte se convertem em ação, para explodir junto à
plateia, acrescidas de um sentido não racional, vivo e imprevisto
(BRANDÃO, 2003, p. 96).

5
Com “brilhante teórico”, Sarrazac refere-se ao Lehmann, no artigo “A reprise (resposta ao pós-
dramático)”, disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-
dramatico/ Acessado em: 06/07/2014.
6
Declaração feita durante entrevista concedida à BBC, para matéria sobre a reestreia do espetáculo no
Globe Theatre, em Londres, que foi publicada no site do jornal Estadão, em 20/04/2012. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-galpao-reestreia-romeu-e-julieta-em-londres,863556
Acessado em: 06/07/2014.
A figura do dramaturg

“Para Pavis (1999, p. 177), o emprego técnico moderno do termo Dramaturg


designa atualmente “o conselheiro literário e teatral agregado a uma companhia teatral,
a um encenador e ou responsável pela preparação de um espetáculo”” (QUADROS,
2007, p. 11). Foi essa a função que exerceu Carlos Antônio Leite Brandão – Cacá
Brandão – na montagem: sua marca na encenação começa já no trabalho de mesa,
quando oferece, a toda equipe, extensivos estudos acerca de Shakespeare e sua era,
história da arte, maneirismo e barroco (que influenciariam a montagem), e se
desenvolve, ao longo do processo, não só no delicado processo de adaptação do texto à
rua, como em aspectos relacionados à interpretação dos atores.
A adaptação do texto tem duas frentes: a condensação do texto dramático, que
deveria ser cortada em cerca de 50%, para que a encenação durasse, em média, noventa
minutos, e a criação do texto para um narrador.

Como critério inicial, através do qual cortei um terço da peça, procurei


preservar no texto o essencial do trágico e do cômico e o que se adequava às
intenções cênicas de Gabriel. Apoiava-me nos comentadores da peça, na
intuição daquilo que conhecia do diretor e na árdua tentativa de enxergar o
que tinha força no texto para funcionar como “pré-texto” capaz de inspirar o
diretor e o elenco (BRANDÃO, 2003, p. 102).

Quanto à criação desse narrador, encontra-se um Shakespeare do sertão, que,


muitas vezes lembrando ao público de que se trata de uma representação, faz emergir
um tom de metalinguagem, como o que acontece quando ele diz: “Convido-vos a
transformar esta praça no salão de festa dos Capuleto”. É ele quem costura a peça,
suprimindo, com uma postura de contador de histórias, lacunas relativas a partes do
texto eliminadas e à redução do número de personagens.
Essa figura remete, em algum grau, à rapsódia, conceito desenvolvido por
Sarrazac em O futuro do drama que “corresponde ao gesto do rapsodo, do ‘autor-
rapsodo’, que, no sentido etimológico literal – rhaptein significa ‘costurar’ – ‘costura ou
ajusta cânticos’” (SARRAZAC, 2012, p. 152), conferindo à obra a estrutura de uma
montagem dinâmica.

Empréstimo de artes exteriores

O que favorece essa pulsão rapsódica da forma dramática, para Sarrazac, é a


incorporação de artes exteriores. No Romeu e Julieta do Galpão, é evidente a
intervenção de duas outras naturezas artísticas: o circo e a literatura não-dramática.
A arte circense, de que o espetáculo herda todo o trabalho com o desiquilíbrio –
tão caro à montagem –, é também o que enquadra a obra, com muita potência, como
teatro de rua, restituindo o caráter popular com que Shakespeare concebeu o texto e
estabelecendo um contato direto com o público.
Da literatura, o processo pinça duas influências: a linguagem de Guimarães
Rosa, cujo ritmo e musicalidade são agregados à fala do narrador, e sonetos de
Shakespeare, que também são evocados na concepção desse discurso.
É nesse ambiente popular, em que a influência de Guimarães Rosa se imbrica
com a linguagem circense, que caracterizações grotescas, como os peitos enormes da
Ama e maquiagens fortes, convivem com elementos oriundos da religiosidade popular:
“na festa de Julieta, no seu casamento ou no seu funeral, os personagens usavam folhas
de comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge, arruda e outras plantas mágicas com as
quais eles faziam menção de estar se benzendo” (LOPES, 2009, p. 164).

Considerações finais

O breve apontamento desses três aspectos – a abordagem do texto como


conteúdo compreensível e como material sonoro, a figura do dramaturg e o empréstimo
de artes exteriores – traz apenas alguns dos recortes pelos quais é possível abordar esse
novo lugar da dramaturgia clássica, sublinhando não a rescisão entre o texto e a cena,
mas o alargamento da noção de drama e das possibilidades de levá-lo à cena.
Mestre de Sarrazac, o teórico Bernard Dort (1995) acredita que

Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está
em vias de apagar-se. Ela deixa progressivamente espaço para a ideia de uma
polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem
para o fazer teatral. [...] É a representação teatral como um jogo entre as
práticas irredutíveis de um ao outro e, todavia, conjugadas como momento
onde eles se confrontam e questionam, como combate mútuo no qual o
espectador é, no final das contas, o juiz (DORT apud SARRAZAC, 2007).

A tendência é que essa polifonia – tão bem-vinda a uma criação em que


confluam os trabalhos de um encenador, dos atores, do dramaturgo, do dramaturg e dos
tantos outros artistas que muitas vezes participam de um processo artístico – submeta-se
à aprovação do século da experimentação, em um discurso que se pauta em rótulos
como “autenticamente contemporâneo”, “extremamente contemporâneo”, etc.. Tal
perspectiva elege

esta contemporaneidade como um valor em si, que se substitui pela antiga


noção de “vanguarda”. [...] De sua parte, Lehmann invoca a “verdadeira
contemporaneidade”: “a questão seria saber se a estética de certa prática
teatral testemunha uma verdadeira contemporaneidade, ou se ela não
perseguiria apenas antigos modelos com técnicas bem dominadas”
(SARRAZAC, 2007)

Contudo, a relação polêmica entre a dramaturgia clássica e o teatro dos nossos


tempos, mais do que se reduzir a esses rótulos contemporâneos, aponta um dos aspectos
mais paradoxais do teatro: o convívio do que é eterno no texto com o que é efêmero – e
nunca reprodutível – da cena. Quer no terreno imperecível, quer no fugaz, as cenas de
Romeu e Julieta, a mais famosa história de amor da humanidade, chegam aos leitores e
espectadores da grande Londres, da romântica Verona ou da pequena Morro Vermelho7,

7
Cidade do interior mineiro, em cuja praça central o grupo Galpão realizou ensaios de Romeu e Julieta.
porque há algo de universal no legado de Shakespeare que o mantém vivo tanto na
Inglaterra do século XVI, quanto no interior mineiro do século XXI. Como disse Peter
Brook, o Bardo é como um carvão, cuja real qualidade só se contempla diante do fogo
ateado pela cena.

Referências bibliográficas

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Commercio, Rio de Janeiro, 20 de abril de 2014.
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CABRAL, Paulo. Grupo Galpão reestreia Romeu e Julieta em Londres. Estadão,
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PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013
QUADROS, Magali Helena de. Buscando compreender a função de dramaturgista.
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SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Sala Preta, v. 13, n. 1, p. 56-70,
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____________________. A reprise (resposta ao pós-dramático). Trad. Humberto
Giancristofaro. Questão de Crítica: Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais,
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____________________. Léxico do drama moderno e contemporâneo. Editora
Cosac Naify, 2013.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESPAÇO OUTRO: CONSTRUINDO RELAÇÕES

Paulo Eduardo Pinheiro Rosa (CAPES; Mestrado); Orientadora: Sandra Meyer Nunes;
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

INTRODUÇÃO

De acordo com Patrice Pavis (2008, p. 113-114) em seu livro “Dicionário de Teatro”,
a palavra Dramaturgia tem origem no Grego, que significa compor um drama, e essa
significação sofre uma evolução do sentido original e clássico.

Dramaturgia designa então o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas


que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer.
Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do
espaço cênico, a montagem, a interpretação do ator, a representação
ilusionista ou distanciada do espetáculo. Em resumo, a dramaturgia se
pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e
cênico e de acordo com qual temporalidade. A dramaturgia, no seu sentido
mais recente, tende portanto a ultrapassar o âmbito de um estudo do
texto dramático para englobar texto e realização cênica. (grifo meu)

Assim, todas as escolhas da cena (atuação, iluminação, espaço, entre outros) podem
ser encaradas como dramaturgia e as mesmas devem estar consoantes com a direção
proposta.
A busca de uma nova percepção do público quanto à obra (historicamente) levou à
alterações no espaço de encenação, disposição do público, propostas de novos locais, etc.
“Assim como Grotowski e Artaud - para citar os mais representativos -, outros encenadores
que utilizam a tradicional estrutura italiana passam a questionar os mecanismos de recepção
nesse espaço” (REBOUÇAS, 2009, p. 127). A partir disso, a experimentação em espaços não
convencionais - como igrejas, manicônios e outros - se fez presente, mas sem deixar de
configurar uma experiência teatral.

o trabalho imediatamente contemporâneo consiste em mudar eventualmente o


lugar cênico, em fazer teatro em toda parte e nos lugares menos feitos para
isso: fábricas, terrenos baldios, praças públicas, cinemas ou... teatros em
ruínas como o Bouffes-du-Nord; a descentrar o espaço, a fraturá-lo em zonas
diversas, a explorar as suas várias dimensões; a jogar com as oposições
espaciais para exaltá-las ou apagá-las (o fechado e o aberto, o contínuo e o
descontínuo); a salientar os signos da teatralidade, a nunca deixar o
espectador esquecer que está no teatro. (UBERSFELD, 2002).

Mas como validar essas escolhas? Não existe na arte uma lei geral, capaz de orientar
todas as escolhas referentes à obra e, portanto, é irreal a existência de um procedimento
correto a ser seguido. O decurso dessas escolhas se dará justamente durante o processo
artístico, sendo o mesmo, definidor de uma regra individual e própria, que não possibilita ser
prevista anteriormente. A obra é a lei de seu fim, governando e regendo o processo criativo.
Cabe ao artista, o lugar paradoxal de seguidor e autor, pois a obra é autônoma ao tempo em
que é regida pelo artista; é, simultaneamente, lei e resultado da sua formação, tendo como
critério o êxito. Assim, a obra prevalece quando resulta, tal e qual, deveria ser. (PAREYSON,
1989).

SOBRE O TEMPO

Dizer, em Godot, quanto tempo se passou desde a última situação beira o impossível.
Os indicativos temporais são cíclicos suspendendo a noção do tempo tal e qual conhecemos.
O segundo ato repete a estrutura do primeiro nos deixando sem conseguir afirmar se é o dia
posterior ou não. As tentativa de localizar qualquer evento no tempo são inúteis. “Embora
pudéssemos localizar o que vem antes e o que vem depois dentro do mesmo dia, já não
saberíamos se aquela ação se refere a um antes e um depois, pois todos os dias seriam o
mesmo” (SCHERER, 2003, p. 61). A vontade de montar Beckett nasce desse universo,
construído à espera de Godot. Da discussão suscitada do tempo e da espera. Da possibilidade
de relacionar, através das situações e relações criadas no texto, nosso espectador com o
tempo.
A relativade irá nos dizer que a condição do tempo não é absoluta e poderá variar de
acordo com o observador. O tempo então se une ao espaço formando o tecido do espaço-
tempo que se deforma e se adequa a cada situação.

O estado não-absoluto do tempo e do espaço foi substituído pela idéia de


estado absoluto do espaço-tempo. Em palavras simples, o espaço e o tempo
estão vinculados um ao outro e são intercambiáveis. (...) Esse novo
significado de simultaneidade mostrou, por sua vez, que aquilo que
entendemos por agora não é universal. Em outras palavras, o meu “agora”
não é o seu “agora”, a não ser estejamos nos movendo à mesma velocidade e
o mesmo sentido. Se não estivermos, nossos “agoras” não serão os mesmos.
(TOBEN; WOLF, 2008, p. 142)

Assim, poderíamos arriscar dizer que o passar de cinco minutos não são iguais para
duas pessoas distintas. Outra possível relação, é a de que o fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
Peter Pál Pelbart, em seu estudo sobre a noção de tempo para Deleuze, nos apresenta a
noção de “Cadeia de Presentes” ao falar da temporalização de imagens para o cinema.
Dizendo que o presente, não se restringe ao momento em que aparece por ele fazer parte de
um todo que o representa; mostra coexistir passado (que não seria um presente antigo),
presente e futuro (que não é um presente por vir). (PELBART, 2010). O fluxo do tempo não é
unidirecional, assim, passado, presente e futuro; coexistem na malha do espaço-tempo e
vivenciamos o presente por nos localizarmos no mesmo lugar do continuum espaço-tempo
ocupado pela realidade que nos apresenta.
A arte, no entanto, possui um tempo próprio, original, que ultrapassa suas dimensões,
um tempo “complicado”, idêntico à eternidade. Sendo que a eternidade não é o mesmo que a
ausência de mudanças ou uma existência ilimitada, mas a própria essência complicada do
tempo. (DELEUZE, 1987, apud PELBART, 2010).1
Aproveitando essa característica do tempo na arte, ao colocar nosso espectador em
espera possibilitamos à ele se relacionar com essa característica do tempo. Esse tempo fluido,
mutante e particular.
“Para o teatro, a questão é sempre o tempo vivido, a vivência temporal que atores e
espectadores partilham e que evidentemente não é mensurável com exatidão, mas apenas
experimentável.” (LEHMANN, 2007, p. 287) Pretendendo criar nessa encenação, um espaço
de suspensão do tempo, retirando do público, as noções de elipses convencionais de tempo,
como exemplificado com a árvore presente no texto base.
Renato Ferracini vai trazer essa tempo experimentável em outros termos, ao dizer que
os elementos de cena confluem para criar um espaço-tempo outro; “essa relação turbulenta,
geneticamente dinâmica, gera uma bolha lírico-poética altamente complexa, que se
movimenta em continuum e se torna independente do espaço-tempo cotidiano, atualizando,
poderíamos dizer, um espaço-tempo poético” (2006)

PRODUZINDO PRESENÇA

Hans Ulrich Gumbrecht em seu livro “A produção de presença” formula sobre a


materialidade da comunicação e como toda comunicação gera presença. Presença essa que,
no entanto, é deixada de lado em virtude de uma geração de sentido, uma interpretação
racional (GUMBRECHT, 2010, p. 39).

A palavra ‘presença’ não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma


relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e
seus objetos. (...) Por isso, ‘produção de presença’ aponta para todos os tipos
de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos
objetos “presentes” sobre corpos humanos. (idem, p. 13).

Gumbrecht ainda irá teorizar que essa materialidade da comunicação e sua


tangebilidade se encontra em constante movimento possibilitando maior ou menor
aproximação e intensidade (idem, p. 38-39). Mas como podemos então “produzir presenças”?
Ao buscar as palavras de outros estudiosos acerca do mesmo fenômeno, encontramos
diversas formas de descrever e explicar essa “energia”.

(...) os atores, em seu longo aprendizado, conseguem, de certa forma, utilizar


e manipular essa energia de maneira expandida, dilatada, quando em cena.
Na Índia, essa presença, que provém da manipulação da energia, é chamada
de prana ou shakt; no Japão, koshi, ki-hai e yugen; em Bali, chikara, taxu e
bayu; na china, kung-fu ou chi.” (FERRACINI, 2003, p. 108).

Ou descrita como o “jogo alquimista” onde “o corpo humano comum, com a sua
experiência comum se transforma em puro ouro de presença dramática através de um ator que
facilita o fluxo de energia, um ‘jogo de oposições’ que negocia as ‘diferenças de potencial’.”2
(LEABHART, 2003, p. 398). Luís Otávio Burnier apresenta o conceito de “corporeidade”,
que seria a forma como essa energia “toma corpo” intervindo no espaço e no tempo, sem, no
entanto, representar o aspecto puramente físico dessa ação, antecedendo-a (BURNIER, 2009,
p. 55).
Mas bastaria o corpo do ator como veiculação dessa presença? Como poderia o
controle dessa energia ser o suficiente para produzir momentos de presença numa cultura de
sentido? Ora, se “todas as culturas e objetos culturais podem ser analisados como
configurações de efeitos de sentido e de efeitos presença, embora suas diferentes semânticas
autodescritivas acentuem com frequência apenas um ou outro aspecto” e se “o tempo é a
dimensão primordial em qualquer cultura de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 41; 110).
WAITING FOR…

Em 1952, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett publicou uma peça intitulada


“Esperando Godot” (En attendant Godot, no original em francês), que gira em torno de dois
personagens, Estragon e Vladimir, em sua eterna espera por Godot. Dois atos ali ocorrem,
pessoas passam, vidas passam, ações acontecem, discussões, vontades... no mesmo lugar ou
seriam lugares diferentes? A árvore mudou, mas os sapatos estão ali... No entanto, Estragon e
Vladimir continuam a esperar Godot.
Em um recente trabalho entitulado “Waiting for…” – o qual assinei a direção –
produzimos essa icônica peça utilizando uma casa abandonada (que fazia parte de uma vila,
também, por inteira abandonada). Acreditamos que tal espaço fosse proporcionar uma
experiência consoante com a proposta dramatúrgica, por ser a efetivação de uma expectativa
não concretizada; um espaço à espera; à espera de algo; à espera por algo. SUSPENSA! Um
edifício abandonado, uma fachada não terminada, uma casa semi-demolida... Aqui, o
espectador assumiria o papel de expectador; ou aquele que tem expectativa. Mas como
manter alimentada essa espera? Ou, em termos de cena: como manter a atenção do público?
Acredito que a resposta possa estar na dupla Tensão e Expectativa na qual Pavis
(2008, p. 152) define que “enquanto forma dramática, o teatro especula sobre a expectativa
do acontecimento no espectador, mas esta expectativa tem sobretudo por objeto, por
antecipação, a conclusão e a resolução final dos conflitos” sendo que, ainda segundo o autor,
certas cenas servem apenas para preparar a sequência criando uma tensão, um suspense.
Assim, podemos supor que o espectador se mantém conectado à cena, pois espera algo
anunciado - ou apenas pressuposto como possível - anteriormente, uma probabilidade. Godot
virá hoje!
Mas a pergunta fica... porque esperar? Seriam essas expectativas o suficiente para se
manter numa espera? Acreditando que Vladimir e Estragon sabem que Godot não virá;
mesmo assim se mantêm à espera, dia após dia, tornando essa a sua rotina, a ponto de não
saberem mais o que fazem e fizeram; pessoas e acontecimentos passam sem modificar o
objetivo da espera... Seria justamente essa espera que dá razão à existência de Vladimir e
Estragon? Seria esperar Godot, aquilo que mantém Didi e Gogo vivos?
O que nos atraiu à esses espaços foi a suspensão por tempo indeterminado. O não
saber até quando aquele lugar estaria daquela forma. Porque não foi concluída a intervenção
iniciada? Quando será retomada? Será retomada? Essa sensação expandida é o que
direcionou à tal escolha espacial.

Um cenário construído no teatro nos moldes tradicionais é uma espécie de


cópia de uma determinada realidade, um simulacro, uma representação, ao
passo que quando o mundo real, o cotidiano urbano funde-se à cena esta idéia
de representação é transformada. Isto se dá uma vez que esta inscreve uma
dimensão de signo nos elementos de composição que dizem respeito à outra
coisa. O que de fato ocorre quando o mundo cotidiano funde-se à cena na
constituição do espaço cênico é que os elementos que a compõem adquirem
uma carga de sentidos por si só, por existirem na cena. (RODRIGUES,
2008).

Todo o processo de criação foi realizado já inserido no local de encenação pois o


mesmo teria influências gigantescas nas concepções cênicas. A qualidade energética do
espaço, as sensações do entorno (táteis, auditivas, olfativas, etc.), a arquitetura espacial...
Tudo contribuiria para o discurso e teria influências nas definições do processo.
O espaço teatral não é mais um dado, ele é uma proposta, onde podem ser
lidas uma poética e uma estética, mas também uma crítica da representação;
com isso, a leitura pelo espectador desses espaços-criações o remete a uma
nova leitura do seu espaço sócio-cultural e da sua relação com o mundo. Em
todo o caso, o espaço teatral desempenha um papel de mediação entre o texto
e a representação, entre os diversos códigos da representação, entre os
momentos da cena (como espaço-tempo unificador), enfim entre espectadores
e atores. (UBERSFELD, 2002).

Hans-Thies Lehmann irá caracterizar uma possibilidade teatral como “Teatro


específico ao local”, onde o local é definido não por corresponder ao texto ou tema tratado;
mas por que se objetiva que o próprio local seja trazido à comunicação. “O espaço se torna
co-participante, sem que lhe seja atribuída uma significação definitiva.” (2007, p. 282).
Poderíamos então subverter o tempo para nos aproximarmos à uma cultura de
presença? Ou poderia esse efeito ser alcançado ao trabalharmos o espaço? A produção de
presença pode ser controlada ou apenas almejada?
BIBLIOGRAFIA:

BURNIER, L. O. A arte de ator: da técnica à representação. 2a ed. Campinas: Editora da


Unicamp, 2009.
FERRACINI, R. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. 1a ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
__________. As setas longas do palhaço. Sala Preta, v. 6, p. 65–69, 2006.
GUMBRECHT, H. U.. Produção de Presença: O que o sentido não consegue transmitir.
Trad. Ana Isabel Soares. 1a ed. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC- Rio, 2010.
LEABHART, T. Sport, statuaire et redécouverte du corps précartésien dans le travail du
mime corporel d’Étienne Decroux. In: PEZIN, Patrick. Étienne Decroux, mime corporel:
textes, études et témoignages. 1er ed. Saint-Jean-de-Védas: L’Entretemps éditions, 2003.
LEHMANN, H. Teatro Pós-Dramático. 1a ed., São Paulo: Cosac Naify, 2007.
PAREYSON, L. “O Processo Artístico” in _____. Os problemas da estética. 1a ed., São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. 3a ed., São Paulo: Perspectiva, 2008.
PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. 1a ed., São Paulo: Perspectiva, 2010.
REBOUÇAS, E. A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional. 1a ed., São
Paulo: Ed. UNESP, 2009.
RODRIGUES, C. C. O espaço do jogo: Espaço cênico teatro contemporâneo. 123 f.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
SCHERER, T. Exercícios do tempo: Dias felizes e Esperando Godot, de Samuel Beckett; O
Marinheiro, de Fernando Pessoa. 142 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) -
Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
TOBEN, B.; WOLF, F. A. Espaço-Tempo e além. 15a ed., São Paulo: Editora Pensamento-
Cultrix, 2008
UBERSFELD, A. Espaço e Teatro. Trad. Roberto Mallet. Disponível em: http://
www.grupotempo.com.br/tex_ubersfeld.html. Acesso em 05/05/2012.

1
DELEUZE, G. Proust et les signes, 7a ed., Paris: PUF, 1986.
2
Tradução minha. “le corps humain ordinaire, avec ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
2
«jeu
Tradução
d’oppositions»
minha. “le
quicorps
négocie
humain
les «différences
ordinaire, avec
de potentiel».”
ses expériences ordinaires se transforme
en or pur de la présence dramatique à travers l’acteur qui facilite une circulation d’énergie, un
«jeu d’oppositions» qui négocie les «différences de potentiel».”
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
ENCENAÇÃO DESTERRITORIALIZADA: A PERFORMATIVIDADE COMO
GERADORA DE ESPAÇOS NÃO IDENTIFICÁVEIS NA CENA
CONTEMPORÂNEA

Paulo Ricardo Maffei de Araujo (Bolsa de Mestrado - CAPES1)


Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elvina Maria Caetano Pereira
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC2); Instituto de Filosofia, Arte e
Cultura (IFAC); Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Neste artigo nos propomos apresentar algumas considerações acerca da produção de


espacialidade na encenação contemporânea a partir de sua relação/tensão com a
performatividade. Contudo, julgamos necessário apresentar a estrutura de pensamento a qual
estamos investigando em nossa pesquisa3, para de fato abordarmos os apontamentos acerca da
produção de espacialidade supracitada.
Em nosso estudo acerca da encenação contemporânea buscamos enfatizar as relações
estabelecidas entre teatro e performance na encenação contemporânea sob a luz do operador
conceitual “teatro performativo” defendido pela pesquisadora Josette Féral, analisando a
performatividade como um elemento desterritorializador na encenação contemporânea. Trata-
se de articular este conceito de leitura do teatro contemporâneo apresentado por Féral
juntamente com os conceitos de “agenciamento” e de “território, desterritorialização e
reterritorialização”, apresentado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a fim de se enfatizar a
presença de novas formas de apresentação do “enunciado cênico” e de outras vias de
comunicação na encenação contemporânea.
Para tanto partimos do operador conceitual intitulado “teatro performativo”
apresentado por Josette Féral, no qual a pesquisadora irá fazer importantes considerações
acerca da performance, e a forma como esta tem atravessado a linguagem teatral.
De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros permitindo-nos
pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da performance teve uma
incidência radical sobre a prática teatral como um todo. Dessa forma, seria preciso
destacar também, mais profundamente, essa filiação que opera uma ruptura
epistemológica nos termos e adotar a expressão “teatro performativo” 4.

O conceito “teatro performativo”, apresentado por Féral, busca compreender


características acerca do teatro contemporâneo. Segundo a pesquisadora muitas questões
intrínsecas ao teatro hoje tem uma forte relação com a ideia de performance, pois a forma do
teatro dramático – que, em sua estrutura linear dos acontecimentos cênicos visando à
apresentação de uma narrativa fabular, contada por meio de personagens bem definidos em
seu caráter psicológico – como forma única vem, há algum tempo, se enfraquecendo na
produção teatral contemporânea. Contudo, Féral prefere não apontar o fim do drama, mas sim,
abrir questionamentos sobre a estrutura dramática.

1
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Concessão de bolsa auxílio evento por parte da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
3
Pesquisa de Mestrado em andamento intitulada: “A performatividade como elemento desterritorializador na
encenação contemporânea”.
4
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 200.
O que irá sustentar o estudo de Féral é a ideia de que um espetáculo se configura num
jogo de relação e/ou tensão entre teatralidade e performatividade, pois para a pesquisadora a
teatralidade é o que permite ao espectador reconhecer, por meio de convenções e referências
socioculturais, que está diante de uma ficção, já a performatividade, intrincada com os
elementos da performance, tem a intenção de desarticular esses “acordos” prévios, colocando
o espectador, mesmo que por instantes, dentro da ação.
Em nossa pesquisa propomos pensar a encenação como um território já consolidado
no que compete à pesquisa e a prática teatral contemporânea, porém entendendo o território
tomando de empréstimo a definição filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari:

O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o


território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma
expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções
que nele se exercem são produtos da territorialização.5

O território tal qual a concepção a cima, circunscreve o campo “do familiar e


vinculante”, pois marca as distâncias em relação a outrem. Nos parece interessante pensar a
encenação como um território, pois esta se apresenta como um espaço de enunciação, na qual
as mais diversas funções são produtos de territorialização. Porém esta noção de território, não
é pensada como um espaço fixo, ou seja, há uma complexa movimentação neste espaço. Esta
movimentação existente no território é apresentada pelos autores como agenciamento.
O agenciamento “pressupõe, de modo geral, dois eixos: o primeiro, ligado ao
conteúdo e à expressão, e o segundo, ao território e a desterritorialização” (SILVA, 2008:198).
Sobre o primeiro eixo, Silva nos apresenta uma relação com a encenação bastante
interessante:

Assim o eixo conteúdo/expressão parece traduzir uma possibilidade de composição


do território da encenação, como agenciamento, por um lado de atuadores – que se
inter-relacionam, se conectam ou se „maquinam‟ por meio de ações e de afetos – e,
por outros, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se
funda, ela também, nesta simultaneidade de conteúdo e expressão.6

Neste sentido, pensar a encenação neste eixo conteúdo/expressão nos permite


compreender quais são as suas marcas territorializadoras, ou seja, de que maneira são
articulados os elementos cênicos, assim como as ações cênicas, e por outro lado os
enunciados construídos pelo território.
Já o segundo eixo do agenciamento está ligado ao território e sua desterritorialização,
suas “linhas de fuga” que fazem com que os enunciados transbordem ao território, escapando
a este, e promovendo assim uma desarticulação do mesmo, o que não significa
necessariamente abandonar o território.

Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em
muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência
suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos
desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar
efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma
função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento

5
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 122.
6
SILVA, Antônio C. de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo
colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo 2008, p. 198.
constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro
agenciamento.7

É justamente aqui que se apresenta a principal proposta de nossa pesquisa, qual seja,
pensar a performatividade como um elemento desterritorializador na encenação
contemporânea. Ao considerarmos a encenação como um território, no qual são agenciados
diversos elementos cênicos que constituem um enunciado, a proposta aqui é a de pensar como
a performatividade desterritorializa a encenação interferindo na composição deste enunciado,
ou ainda, reterritorializando este a partir deste novo elemento.
Podemos enxergar esta desterritorialização numa passagem do ensaio de Josette Féral,
no qual a pesquisadora fala sobre a descrição dos fatos e sobre a ação do performer no
espetáculo performativo, e sugere que estas sejam agentes de desconstrução dos códigos da
encenação e que, portanto:

Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis,
fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de
uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre
a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer
instala a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de
sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a
linguagem.8

Nos parece evidente considerar aqui a performatividade como uma elemento


desterritorializador da encenação, pois ao invés de unificar o seus sentido, como ocorria em
outrora, agora a encenação se estilhaça sugerindo inúmeras possibilidades de leitura para o
espectador.
É diante desta perspectiva apresentada a cima que gostaríamos de evidenciar a questão
da espacialidade na cena contemporânea. Ao considerarmos essa desconstrução do sentido
unificado do discurso da encenação, provocado pela presença da performatividade e/ou da
relação/tensão entre performatividade e teatralidade, nos parece evidente considerar que a
noção de “lugar” claro e definido sofre grande alteração, pois não se trata mais de representar
um espaço mimeticamente, mas sim de produzir espacialidades também desterritorializadas.
Levando em consideração os acordos prévios estabelecidos entre obra teatral e o
publico, implícitos na noção de teatralidade apresentada por Féral, e o rompimento com estes
acordos por conta da presença da performatividade, podemos localizar que a produção de
espacialidade na encenação contemporânea sofre algumas fraturas na produção de sentido
unívoco, pois o ato performativo carrega em si a proposta de não representação.
Em seu artigo “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”, Josette
Féral empreende uma discussão acerca da nomenclatura teatro pós-dramático cunhado pelo
pesquisador alemão Hans Thies-Lehman. Féral possui algumas criticas acerca do termo, pois
para ela a noção de rompimento com o drama, “constitui um horizonte de espera mais que
uma realidade, na medida em que é impossível para uma forma teatral, qualquer que ela seja,
de escapar à narratividade e, de fato, à representação” 9. Nesse sentido Féral propõe
chamarmos esse teatro de “teatro performativo”, como ela explicita abaixo:

Este teatro, que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi
definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,

7
DELEUZE, Gilles; FÉLIX, Guattari. Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997,
p. 133.
8
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo,
nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 203.
9
Ibid. p. 208/209, nota de roda pé número 29.
publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria
mais justo chamar este teatro de 'performativo', pois a noção de performatividade
está no centro de seu funcionamento 10.

Apesar da critica ao termo “pós-dramático”, Féral aponta para a precisão da análise de


Lehmann acerca das estruturas que compõe o teatro contemporâneo. Nesse sentido nos parece
interessante trazermos alguns apontamentos apresentados por Lehmann, uma vez que
observamos certa semelhança nas análises de Lehmann e Féral, qual seja, que a noção de
“ação” e “acontecimento” – ou seja, da performatividade – em detrimento da representação,
seja o centro e o ponto nevrálgico do teatro contemporâneo.
Nos parece evidente considerar aqui, que a estrutura do drama seja o modelo
convencional para compreendermos o desenvolvimento e a história do teatro, e por
consequência para compreendermos quais as aporias do teatro contemporâneo, pois é
justamente numa busca de desconstrução da forma dramática que podemos identificar o
investimento das poéticas das encenações contemporâneas.
Buscando focar na questão da espacialidade no teatro, trazemos para esta discussão
uma reflexão de Lehmann acerca do espaço dramático:

De modo geral, pode-se dizer que o teatro dramático precisa privilegiar um espaço
“mediano”. O espaço imenso e o espaço muito íntimo tendem a se tornar perigosos
para o drama. Tanto num caso quanto no outro a estrutura do espelhamento deixa de
existir ou fica em perigo, na medida em que o quadro cênico funciona como um
espelho que permite ao mundo homogêneo do observador reconhecer-se no mundo
fechado do drama. Para que haja essa equivalência e esse espelhamento – ainda que
eles sejam ilusórios ou ideológicos –, são necessários o isolamento, a independência
e a identidade própria de ambos os mundos. O processo de identificação depende
desse isolamento para que haja certeza das linhas divisórias entre a emissão e
recepção dos signos 11.

Diante desta consideração podemos concluir que no teatro dramático há uma grande
necessidade de se instituir processos de identificação na composição do enunciado cênico,
uma vez que sejam estes processos que permitirão o espectador estabelecer este espelhamento
e logo se reconhecer com aquilo que é contado no palco. Nesse sentido a produção de
espacialidade por parte do teatro dramático estará fortemente vinculado a uma produção de
um espaço reconhecível ao espectador, no qual este possa realizar o recorte do que é narrado
juntamente com o espaço praticado, criando-se assim a noção de unidade na composição da
encenação.
Ainda nesse ponto acerca da identificação provocado pelo drama, achamos pertinente
traça uma breve relação com a noção de teatralidade. Segundo Féral a teatralidade é
construída a partir do olhar do observador que, recorta aquilo que é visto e transforma-o em
um processo semiótico de representação. A autora utiliza o termo “framed theatrical space12”
– que podemos traduzir como “espaço teatral enquadrado ou emoldurado – , que se refere
justamente ao ato do observador de recortar e emoldurar o que é visto e traçar desenhos
ficcionais, a partir dos códigos e convenções socioculturais, evidenciando os acordos prévios
presentes na teatralidade, como já apresentamos antes. Portanto a construção de um espaço
reconhecível por parte do drama vem justamente mediar, ou facilitar, este emoldurar por parte
do espectador, permitindo com que a representação cênica aconteça de maneira, mais ou
menos, linear e homogênea.

10
Ibid. p.197.
11
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.p. 265.
12
FÉRAL, Josette. Theatricality: The Specificity of Theatrical Language. Substance, issue98/99, v.31,n 2 e 3,
2002. p. 98.
Ao corroborarmos com a ideia de teatro performativo proposta por Féral, podemos
considerar que se a teatralidade propicia justamente o reconhecimento e a identificação por
parte do espectador, a performatividade produzirá um efeito reverso, pois sua utilização na
encenação aparece justamente para desviar esta identificação traçando lacunas na composição
do enunciado cênico.
Para autora a noção de performatividade está atrelada ao “fazer”, e ao mostrar o que se
“faz em cena”, fugindo a representação mimética e se aproximando do que podemos pensar
como “real”. Nesse sentido o performer irá causar rupturas nesse processo de identificação
por parte do espetador, pois esta ênfase no fazer em detrimento do representar produz
instabilidades na linearidade e na compreensão homogênea da produção de sentido, que
podemos considerar como um jogo entre “produção de sentido” e “produção de presença”.

O ato performativo se inscreveria assim contra a teatralidade que cria sistemas, do


sentido e que remete à memória. Lá onde a teatralidade está mais ligada ao drama, à
estrutura narrativa, à ficção e à ilusão cênica que a distancia do real, a
performatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto lúdico do
discurso sob suas múltiplas formas – (visuais ou verbais: as do performer, do texto,
das imagens ou das coisas) 13.

Se o a noção de performatividade está atrelada a ideia do fazer, causando rupturas na


teatralidade, podemos considerar que este fazer irá interferir completamente na produção de
espacialidade na encenação, pois como salienta Féral o performer desloca os sentidos da cena,
interfere nos signos e desfoca o direcionamento da comunicação, gerando outras formas de
apreensão do enunciado cênico. Nesse sentido podemos localizar uma produção de espaços
não identificáveis para o espectador, pois ao compreendermos estas relações/tensões entre
teatralidade e performatividade, não temos a constituição de espaço específico, mas sim de
espaços: fragmentados, desterritorializados, metafóricos, – a depender da forma como são
articulados estas relações tensões – que obrigam o espectador a migrar de um referência a
outra e a organizar sua compreensão muito mais pela via do que se sente e não mais do que se
entende. É destas espacialidades não identificáveis que virão à noção de atmosfera da cena,
pois sendo o teatro o acontecimento no aqui e agora a compreensão – e no caso do teatro
performativo a não compreensão plena – do espaço e das ações – dramáticas e não dramáticas
– realizadas neste é que comporão a comunicação do espetáculo teatral.
Gostaríamos de por fim, enfatizar que estes apontamentos, tratam-se muito mais de
reflexões acerca da produção de espacialidades geradas pela performatividade, do que
verdades intactas sobre o fazer teatral contemporâneo. Ainda é preciso ressaltar que estas
considerações estão atreladas a nossa pesquisa de mestrado que ainda é muito recente.
Nesse sentido concluímos que estes processos de composição e leitura dos enunciados
cênicos, dentro da perspectiva de uma encenação em vias de reterritorialização, a partir das
linhas de fuga causadas pela performatividade, apresentam espacialidades não identificáveis –
considerando os diversos graus possíveis desta não identificação, pois dependerá das relações
entre teatralidade e performatividade a considerar a especificidade de cada encenação –
propiciando ao publico traçar a sua leitura da cena, ou seja, a livre associação, tanto no
trabalho como um todo, mas também em suas particularidades, ou seja, no transitar entre o
sentido claro e o abstrato. Encerramos com uma fala de Féral que clarifica – abrindo novos
caminhos - muito bem a compreensão deste teatro performativo:

13
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São
Paulo, nº 8, 2008. Tradução: Lígia Borges, p. 207.
“A escrita cênica não é aí mais hierárquica e ordenada ela é desconstruída e caótica, ela introduz o evento
[événement], reconhece o risco. Mais que o teatro dramático, e como a arte da performance, é o processo, ainda
mais que o produto, que o teatro performativo coloca em cena14 [...]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1995.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala
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ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará,


2004.

14
Ibid. p.204.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

SENTIR A VOZ, OUVIR O GESTO: POÉTICA E TEATRALIDADE DA


PERFORMANCE NARRATIVA NO VALE DO JEQUITINHONHA.

Rafael Lorran; Bolsista CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior; Programa de Apoio a Pós-graduação – Mestrado; Orientadora: Maria do
Perpétuo Socorro Calixto Marques; Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

O Vale do Jequitinhonha: A mina dos Causos de Minas

Falar da performance de narrativas orais no Vale do Jequitinhonha é


submeter-se, primeiramente, ao difícil ofício de identificar de “qual Vale” se pretende
tratar. Isto porque a região é composta por 80 cidades que ocupam 85.467,10 km² e esse
número representa nada menos que 14,7% do território do estado de Minas Gerais. 1
Localizada na maior porção territorial do nordeste mineiro e estendendo-se ao sul da
Bahia, a região é marcada pelos contrastes naturais, econômicos e sociais; Abordar o
Vale2 requer consciência da grandiosidade espacial e cultural da região.
A fim de afunilar a diversidade mencionada anteriormente, e interessado
primordialmente nessa prática específica, o artigo aqui desenvolvido debruça sobre as
características que compõem a performance de narradores de histórias no Vale do
Jequitinhonha – especificamente a prática narrativa de feirantes rurais moradores da
cidade de Itamarandiba/MG, situada no alto Jequitinhonha – refletindo o valor poético
compartilhado e vivenciado nas rodas de prosa experimentadas naquele espaço.
Por um breve apanhado histórico que contextualize a tradição oral e as
primeiras anotações acerca da performance narrativa no Jequitinhonha, é inevitável
lembrar que, mesmo com todo o controle e truculência do governo português sobre as
terras em que se desenvolveu a porção territorial do Vale do Jequitinhonha, durante o
século da mineração no Brasil, o botânico e viajante francês Pierre Saint-Hilaire em
terras mineiras descreve a seguinte impressão sobre a população que encontrara no
recente Vale:

Em toda província de Minas, encontrei homens de costumes delicados, cheios


de afabilidade e hospitaleiros; os habitantes do Tijuco 3 não possuem tais
qualidades em menor grau, e, nas primeiras classes da sociedade, elas são
acrescidas por uma polidez sem afetação e pelas qualidades de sociabilidade.
(SAINT-HILAIRE apud PEREIRA, 1999, p. 33)

Quase um século depois da viagem de Saint-Hilaire pelas terras do Vale, a


arte de contar histórias no território do Jequitinhonha foi novamente observada pelo
botânico Martius e pelo zoólogo Spix na primeira metade do século XIX, quando, em
viagem pelo território brasileiro chegaram até o estado de Minas Gerais e descreveram
as qualidades do evento narrativo proporcionado pelos habitantes que povoavam o
nordeste do estado, alto Vale do Jequitinhonha:

A numerosa companhia regressou ao tijuco só quando a lua apareceu, pois


entreteve em caminho conversação animada cujos assuntos principais foram
pilhérias e aventuras amorosas. Possui [...] particular talento para contar, e
sobretudo gosta de descrever cenas eróticas, cada qual, mesmo o mais
simples, sabe falar, ora com ênfase ora com deliciosa elegância, com incrível

1
graduação no tom da voz e escolha de palavras, e acompanhado de
gesticulação eloqüente. Não raro tivemos ocasião de admirar esse talento,
mesmo no nossos tocadores da tropa quando alguns contavam anedotas com
inimitável seriedade cômica, e os mais escutavam com satisfação ou
adubavam as estorietas com observações e piadas sutis. (SPIX;MARTIUS,
1981 apud PEREIRA, 1996, p. 46).

Segundo Spix e Martius (1981 apud. PEREIRA, 1999), a arte de narrar


histórias, apresentada pelos habitantes com quem conviveram durante a expedição,
confere aos sujeitos dessa localidade uma presença digna de admiração por aqueles que
ouvem seus casos e presenciam a totalidade simbólica da performance narrativa
apreciada naquele espaço, daqueles sujeitos conscientes de sua exposição e criadores
dos aspectos aguçados, alterados do cotidiano que garantem a atenção dos que ouvem
suas histórias, observam seus corpos, partilham de sua presença. Subsídios que
presentes aos atuais narradores de histórias conferem sentido à discussão acerca da
teatralidade e poesia observada em suas contações.
Portanto, ao tratar da performance narrativa dos contadores de caso do
Jequitinhonha em suma, ainda que assentado essencialmente sobre o evento narrativo
no referido município específico, compreendo (a partir das literaturas já existentes sobre
o mesmo tema/região em articulação com a experiência prática dessa pesquisa em
Itamarandiba/MG) dados e informações que se fazem comuns ao território e sujeitos
que o habita, reconhecendo imediatamente elementos e procedimentos significativos
que tornam possível traçar uma primeira noção do contexto cultural em que se inserem
as narrativas e performance de seus narradores; considerando assim como PEREIRA e
GOMES (2002), que os conhecimentos transmitidos pela voz dos sujeitos.

[...] se combinam às noções de tradição, conservadorismo, natureza e


ingenuidade a partir das quais o observador intenta definir uma identidade
para a cultura popular e seus representantes. Ou seja, está-se diante de um
modelo cultural onde se destacam as totalidades – de práticas econômicas,
políticas, religiosas – que se exprimem como a identidade do grupo.
(PEREIRA; GOMES, 2002, p.93).

Assim sendo, refiro-me a amplitude do Vale do Jequitinhonha significada


pela porção municipal de Itamarandiba/MG, uma vez que a experiência das
performances narrativas nesse espaço específico apresenta características (históricas,
sociais e culturais) comuns à totalidade do Vale, que já foram refletidas e apontadas por
pesquisadores que me auxiliarão durante o decurso desse estudo. Portanto, esclarecido o
solo onde pretendo germinar esse estudo, passemos para a apresentação do Vale e as
questões da oralidade vivenciada nesse lugar.
A forte expressão da oralidade no Jequitinhonha pode ser entendida como uma
representação de resistência. Nessa região, por muito tempo isolada do processo de
desenvolvimento político e econômico do país, os conhecimentos e habilidades dos
indivíduos são notoriamente sustentados pela tradição da palavra transmitida oralmente.
Em se tratando dos espaços de troca material e simbólica, como é o caso das feiras
rurais, grupos de manifestações e rituais religiosos, ateliês de artesanato e culinária, que
ainda afastados dos mecanismos modernos de produção e organização continuam a
manter na transmissão oral o principal vínculo entre os sujeitos, perpassando o tempo e
coexistindo na atualidade.
Neste ponto acabamos por esboçar uma primeira referência sobre a forma e
função pela qual os narradores perpetuam suas histórias e refletem a realidade
contextual onde se situam: a performance, enquanto ato reflexivo e dotada de valor

2
poético, onde interagem gestos corporais, vocais, presença de sujeitos em contato e
comunicação, num emaranhado de ações capazes de criar laços e proporcionar
experiências.
Sentir a Voz, Ouvir o Gesto: pela sensível compreensão da Performance

Não soaria demasiado indicar imediatamente as armadilhas conceituais, as


fragilidades epistemológicas que enfrentam os pesquisadores que buscam entender as
acepções da performance em diferentes contextos e áreas de conhecimento. Segundo
Marvin Carlson (2009), as proposições acadêmicas, artísticas e a compreensão do
campo teórico e prático da performance tem sido, desde a década de 60 e 70,
amplamente discutidos e teorizados por pesquisadores de diversos campos de saberes,
sendo as ciências sociais, a etnografia e a antropologia as pioneiras nos estudos do
comportamento humano, abrindo as perspectivas científicas para que os estudos das
artes, especialmente o teatro, pudessem debruçar sobre esse paradigma, vertendo-o
inclusive uma categoria exclusiva de análise.
Assim, adentrar os estudos das ações humanas performativas requer um
mergulho interdisciplinar e multifacetado, o que acaba por suscitar uma gama de
problemáticas epistemológicas e conceituais, constituindo o campo dos estudos da
performance um terreno delicado e muitas vezes, confuso. Porém, assim como Marvin
Carlson, entendo que:

Precisamente, o que a performance executa e como ela o faz


claramente pode ser abordado de várias maneiras, embora haja um
consenso geral de que, dentro de cada cultura, pode ser descoberta
uma espécie de atividade, separada de outras atividades por espaço,
tempo, atitude ou por todos eles juntos, que pode ser analisada como
performance e nomeada como tal. (CARLSON, 2009. p. 25)

Portanto, ao tratar da performance narrativa dos contadores de histórias do


Jequitinhonha como experiência poética, é preciso atentar para a importância do olhar
investigativo lançado ao universo observado, bem como a importância da articulação
com conhecimentos adquiridos de outras áreas (que não as artes e a sociologia, apenas)
e que possam conduzir o pensamento a fim de compreender o comportamento de
interesse da pesquisa como pertencente ao hall dos estudos da performance.
Sobre o comportamento humano, considerando os sujeitos performers de
um determinado espaço físico e social, Schechner (2003, p. 25) realça o caráter cultural
da performance, sem restringir seu entendimento ao campo da antropologia e
sociologia, destacando que o “Ser performance é um conceito que se refere a eventos
definidos e delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição”. Para além,
aponta que entender e investigar um objeto, obra ou produto como performance implica
em conhecer como “esta coisa” interage com outros objetos e seres, como se relaciona
com outros objetos e seres. Assim:

Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e


adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados. Ações performadas que as
pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. Está
claro que fazer arte exige treino e esforço consciente. Mas a vida
cotidiana também envolve anos de treinamento e aprendizado de
parcelas específicas de comportamento e requer a descoberta de como

3
ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às circunstâncias
pessoais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003, p. 27)

Segundo Schechner (2003), sobre o sujeito que se comporta à mostra de


outros, o “estar consciente” do ato como performance se inscreve numa relação
circunstancial e individual, atrelada ao contexto social, histórico e cultural onde estão
imergidos. Esse dinamismo de ações é entendido pelo autor como comportamento
restaurado, para Schechner, esse é o processo chave de todo tipo de performance. Ao
passo em que os narradores do Jequitinhonha compartilham suas histórias através de
vozes, gestos, modulação do corpo e do estado de presença em contato com os ouvintes,
instaura-se um valor “simbólico e reflexivo, seus significados tem que ser decodificados
por aqueles que possuem conhecimento para tanto”. (SCHECHNER, 2003, p. 35).
Partindo das assertivas de Richard Schechner (2003) sobre os empregos da
performance, tangenciamos assim o objetivo central desse estudo, cunhado sobre o
intento de compreensão da performance narrativa dos contadores de histórias do
Jequitinhonha como uma experiência poética em sua qualidade teatral, considerando-a
experiência que por semelhante intuito busca o prazer, o estímulo da comunidade, a
persuasão e atenção dos sujeitos ouvintes e a relação entre a realidade vivida e a
subjetivação compartilhada e idealizada pelo narrador em suas histórias, pondo-se à
mostra para uma audiência 4.
Dessa forma, parto da investigação em campo, da experiência participativa
no evento narrativo como apreciador da performance de Adão do Nelo5, ao encontro das
proposições sobre a poesia oral do narrador, cunhadas pelo medievalista estudioso da
oralidade, Paul Zumthor. O teórico realça os traços da performance narrativa como
linguagem e comunicação verbal, considerando para além dos códigos da palavra em
sua máxima sensível. Percebe-se para além das fronteiras entre aquele que narra, e
aqueles que observam, uma concepção da performance que acontece durante o elo
sensível entre os sujeitos envolvidos no evento narrativo. Segundo o teórico:

[1] a performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu


reconheço, da virtualidade à atualidade; [2] a performance situa-se
num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional: nesse contexto
ela aparece como uma “emergência”, [3] performance é uma conduta
na qual o sujeito assume, aberta e funcionalmente, a responsabilidade,
e é um comportamento que pode ser repetitivo sem ser redundante, [4]
a performance modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um
meio de comunicação: comunicando ela os marca. (HARTMANN,
2005, p. 129)

Assim, a performance narrativa, como compreendida por Paul Zumthor (2010),


situa-se mais no espaço “entre” os sujeitos, do que na própria ação do indivíduo que se
comporta diante de uma audiência. A ação reflexiva e participativa do ato performativo
insere-se na existência dos indivíduos e representa um veículo, forma e conteúdo pelo
qual a experiência torna-se possível. Comunicando, a performance marca os envolvidos,
adentra suas existências, inverte a realidade conferindo outro “sentido aos sentidos” dos
sujeitos. De tal modo, a performance narrativa dos feirantes rurais no Vale do
Jequitinhonha, em sua experiência poética e caráter reflexivo, acaba por aproximar-se
nesse ponto da discussão, daquilo que tratarei no próximo tópico como qualidade de
teatralidade.

4
Poesia e teatralidade nas Performances Narrativas do Vale.

Em se tratando da cultura textocentrista sobre a qual o teatro debruçou-se em sua


constituição epistemológica e na emancipação de conceitos oriundos dessa área de
saber, o termo teatralidade, antigo em sua utilização e valorização, esteve atrelado à
produção do teatro em detrimento ao texto encenado nos palcos. Nesse sentido, a
aproximação entre as interações cotidianas de caráter popular e as implicações acerca da
qualidade teatral observada nessas manifestações alcança um processo ainda recente,
cunhado por perspectivas metodológicas interdisciplinares e multirreferenciais.
As performances populares, caracterizadas como espaços de celebração
comunitária, em que, simultaneamente, todos são atores e espectadores, a cada passo
retornam aos indivíduos sentimentos de autenticidade e permanência num contexto
dinâmico e vívido. A experiência surge como um fato e ideal importantíssimo na
partilha e comunicação dentro da comunidade através da ativação da expressividade
poética e estética. (Bauman, 2003; Turner, 1986). Dessa forma, relaciono os conceitos
de teatralidade e poesia à medida em que ambos servem à análise do sensível
representacional vivenciado durante as performances narrativas. Principalmente, realço
o valor inerente de tais qualidades ao comportamento humano posto à mostra de uma
audiência, as estruturas e subjetivações da performance narrativa acabam por denotar a
representação artística da vida social em sua própria constituição enquanto vida.
Para Edélcio Mostaço, o teatral parece guardar, nesta perspectiva, um estatuto
genético e funcional de procedência, decorrência do próprio dinamismo da cultura, onde
o mimetismo, o jogo e a representação constituem impulsos que encontram nas práticas
sociais canais de manifestação:

[A teatralidade] é tomada, portanto, como um núcleo


organizado de mecanismos de produção de efeitos simbólicos,
facetas que a corporificação adquire no tempo e espaço das
sociedades históricas. Adquirindo o formato de uma metonímia
(a parte pelo todo) ou a prevalência adjetiva sobre a substantiva,
a teatralidade é tangível enquanto cumulação do que é teatral.6

À medida em que compreendemos a teatralidade segundo seus mecanismos de


produção de efeitos simbólicos na relação entre os sujeitos de uma comunidade
específica, atentamo-nos ao sentido reflexivo localizado na interface entre os agentes
imersos na condição de experiência que paira sobre o vivido. A consciência do caráter
teatral e poético experimentados durante a performance, dá-se atrelada ao contexto das
interações, à subjetivação da experiência e representação dos modos de ação, recepção e
compreensão do evento narrativo, estritamente, à paixão que ronda os sujeitos que
exprimem sentido à performance.
Os narradores possuem uma capacidade de manter e seduzir a atenção. Suas
palavras são ditas com ênfase e intencionalmente escolhidas a fim de conferir um grau
de sensibilidade na relação entre contador e ouvintes, expressando uma maneira de se
comportar e dialogar com a preocupação de seduzir e instigar o prazer e afabilidade dos
agentes envolvidos no evento narrativo. Walter Benjamin (1994), ao tratar do narrador
em sua obra Magia e Técnica, Arte e Política, aponta a seguinte descrição:

O narrador detém de recursos próprios que são capazes de seduzir e chamar a


atenção daqueles que o ouve, convencendo-os do fato narrado, aconselhando
segundo suas vivências, entretendo a partir de seu humor e afabilidade. Essa

5
capacidade acaba por revelar a arte popular que provém da experiência
humana. (BENJAMIN, 1994, p. 200).

Essa habilidade notada por W. Benjamin (1994), de que dispõe o


narrador como recurso para tornar atraente sua fala e exposição de si mesmo confunde-
se, por vezes, com o próprio desempenho do artista posto intencionalmente à
apreciação. O autor ainda afirma que tal capacidade representa a primazia geradora do
artista popular, suas experiências humanas, histórias que acompanham seus trajetos de
vida, e o arsenal de “comportamentos” que se apresentam como dispositivos a serem
restaurados em performances no presente, viabiliza uma experiência poética, reafirma
corpos e personagens, delimita o espaço entre aquele que emite sua arte e o outro que a
reflete, concomitantes em tempo e espaço, pertencentes à ação teatral instaurada.
O sociólogo Erving Goffman (2001), em suas assertivas sobre o desempenho
dos papéis sociais, as funções representacionais que as sociedades complexas produzem,
acaba por assumir a rubrica sobre a “teoria do personagem”. Em se tratando do sentido
de representação que perpassa as performances do médico, o engenheiro, o feirante, que
sedimentados no potencial extracotidiano de suas ações, acabam por delinear a
dramatização de seu desempenho social. Tais representações na vida cotidiana dão
corpo à teatralidade e à dramatização inerentes à própria vida social, uma nova
dimensão da auto-apresentação dos indivíduos entre si.
Quando a campo em junho deste ano de 2014 7 estive com os feirantes
narradores de história da cidade de Itamarandiba/MG, perdíamos – nós, ouvintes,
amigos e transeuntes em contato com suas narrativas orais – a noção do tempo
transcorrido e as tardes eram inteiras preenchidas por contações de histórias. Mais do
que imersão numa experiência poética e teatral, a experiência junto aos sujeitos
observados por esse estudo: feirantes rurais contadores de histórias, homens que não
tiveram contato com a escrita e leitura (não possuindo, portanto, a concepção objetiva
do saber científico, por vezes, controlador), que possuem na relação intersubjetiva a
principal forma de transmissão e recepção dos saberes comuns e individuais (aqueles de
fato significativos às suas vidas), trabalhadores rurais que controlam
circunstancialmente suas relações com o tempo, espaço e mercado, segundo as
intempéries naturais e necessidades de subsistência familiar, a qualidade da relação fui
substancialmente, e adjetivamente estabelecida a partir do envolvimento passional. Um
do narradores obervados atende pelo nome de Adão do Nelo e é dona da performance
narrativa cujo caráter teatral faz-se latente em toda sua ocorrência.
O Sr. Adão do Nelo, ao contar a história de D. Liópordina – personalidade
real do município, falecida amiga do narrador que se tornara personagem fictícia da sua
narrativa – o feirante discorre sobre as marcas da experiência passada, transformadora e
componente de sua existência no presente.

Se a gente não tivê motivo pra rir nessa vida, de quê que adianta, minino?
Pensa só procê vê, num é? uma veia pobre que nem Dona Lió, fazia era todo
mundo rir. Morreu com a boca escancarada, atolada, encascaiada, cheia de
dente e feliz, paricêno que tinha comido fartura de rico. E eu que tô vivo,
num vô ri das palhaçada dela? Vô, uai. Eu que convivi com ela sei que ela
agora deve ta é rindo tamém, muié de alma boa, era safada mas era de alma
boa. Eu aprendi muito com ela, prendizage de vida mêrmo. Igual, contá caso
e fazê os outros feliz era cum ela mesmo. As história dela a gente multiplica
dez vezes mais né, pra fazê mais graça, né?E povo larga o que tivê fazêno
pra saber, né? As pessoa gosta de orvi, U que é bunito de orvi, num é não?
(risos).8

6
Ao passo em que apresenta e descreve a personalidade de Dona Liopordina,
Adão do Nelo compartilha dos valores interiorizados em contato com a personagem
quando viva e pertencente ao seu círculo social. Para além de expor as marcas de sua
experiência, o narrador pretende através da história alertar os ouvintes para a
necessidade de rir-se da vida, de gozar os momentos de alegria enquanto vivem e reflete
o contraste da senhora, que vivendo no imaginário do município pelo reconhecimento
de suas façanhas e espertezas, tornou-se igualmente digna de respeito e responsabilidade
por boa parte da “prendizage (aprendizagem) de vida” do feirante, que relembra e
transmite suas histórias.
Apontando a necessidade de propiciar aos outros o mesmo teor
transformador vivenciado por ele (quando junto a protagonista de suas histórias) o
narrador intenta “restaurar” o comportamento vivo na memória através das ações de seu
próprio corpo, demonstrando em gestos e postulações da voz as características da velha
amiga falecida. O narrador oferece em sua presença a performance que julga representar
sua lembrança, claro, interpretações que agora estão sujeitas à repetição reformulada,
criada e condicionada na ação de um outro corpo, uma nova intenção. Ora, o material
que inspira a ação do narrador (lembrança do comportamento da amiga falecida) é uma
referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da forma e conteúdo da
Performance narrativa (comportamento original, se é que assim podemos chamá-lo) é
desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela performance do narrador,
tornando efetiva a comunicação entre performer e ouvintes/observadores como
experiência poética.
Esse caráter de constante atualização da experiência interiorizada
assemelha-se à concepção do valor poético da oralidade descrito por ZUMTHOR
(1997): “uma poesia oral que é ao mesmo tempo visível e audível e, em performance,
atualiza a obra. Essa atualização sugere sempre em movência, uma instabilidade radical
do poema” (ZUMTHOR, 1997, p. 264). Uma experiência que reside no contato com a
voz e presença que se transforma no transcorrer de uma nova contação, um novo dedo-
de-prosa, uma nova roda de causos.
Assim sendo, a voz só pode ser capturada no movimento entre o texto
(falado) e a obra (narrativa oral), na relação entre o que é palavra e sua reutilização
orada. Paul Zumthor, atento ao compromisso da experiência entre sujeitos que
vivenciam enquanto agentes ou espectadores da performance narrativa afirma que, “o
homem também vive a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer que a linguagem
se torna verdadeiramente signo das coisas e ao mesmo tempo, significante dela mesma”
(ZUMTHOR, 1993, p. 74).
Ainda sobre o caráter poético nas performances narrativas, Zumthor afirma
que:

[...] o poético (diferente de outros discursos) tem de profundo, fundamental


necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da
presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica
particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo, e que ouve,
vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja
reconhecido por poético (literário) ou não, depende do sentimento que nosso
corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer.
(ZUMTHOR, 2000, p. 41).

7
Adão do Nelo, valendo-se do lirismo, da repetição, da rima e da função
fática da linguagem oral (“num é?”, “né”), recursos que literariamente já garantiriam a
forma poética da comunicação do narrador, reside nessa oralidade uma característica
poética, como descreve Paul Zumthor (2000) na citação acima, que excede o que é
reconhecido por poesia de acordo com a literatura. Está além do conteúdo e além da
forma, a poesia na experiência da performance narrativa reside na capacidade de
proporcionar o prazer e deleite, adentrar as emoções dos envolvidos no evento narrativo
e sobretudo, promover a reflexão através do contato, a transformação a partir das
diferentes interpretações e sensações da experiência.
Trata-se do que Merleau-Ponty (1991, p.79) notou, ao afirmar que “as
palavras, os traços, as cores que me exprimem saem de mim como os meus gestos, são
me arrancados pelo que quero dizer como os meus gestos pelo que quero fazer”. O
corpo, voz e ação do narrador pode significar para além de sua existência, e de sua
confiança no real, e assim, inserir um sentido àquilo que o convém como função
sensível, poética da comunicação:

Aí D. Lió tinha mais de cinco métro de artura, só a cabeça dela


tinha um métro. tinha umas perna seca quinem sariêma, sabe?
E sabe ocê o que ela fazia? Ela andava de casa em casa, tinha
que deitar no chão pra entrar nas casa de tão grande que ela
era, e pidia pro povo cárça (calça) de homem usada pra ela
fazê uma saia, custurano uma cárça na outra. Porque assim, cê
sabe né? Homem trabalha mais que mulher, intão a frente da
cárça fica gasta, não vale nada, e a traseira da perna da cárça
fica boa, dá pras mué fazê saia imendano uma na ôtra, assim
fazia Lió. Até nisso ela pruveitava (aproveitava) dos homi.9

Vozes e gestos modificados segundo as características de cada personagem,


função fática da linguagem e toque corporal para obtenção e constante validação da
atenção da audiência, utilização do canto e dos objetos de mesa (prato, talher, garrafa e
lençol) na elaboração e ilustração do enredo narrado, na organização de um espaço
tempo cujo o bjeto da ação é instaurar um ambiente de troca de signos, seus
significantes e significados. O material que inspira a ação do narrador (memória da
narrativa) é uma referência particular, individual do intérprete. Assim, a origem da
forma e conteúdo da Performance narrativa (comportamento original, se é que assim
podemos chamá-lo) é desconhecida pela audiência, mas fundada e validada pela
performance do narrador, tornando efetiva a comunicação entre performer e
ouvintes/observadores como experiência teatral, como mecanismo poético de
adjetivação da metáfora da arte em sua suma vitalidade pertencente à própria vida.

A teatralidade parece ser, mais do que uma propriedade; de fato, nós


podemos chamá-la de um processo que reconhece sujeitos em processo,
é um processo de olhar e ser olhado. É um ato iniciado em um ou dois
espaços possíveis: tanto aquele do ator quanto do espectador. Em ambos
os casos, esse ato cria uma ruptura do cotidiano, que se transforma no
espaço do outro, o espaço onde o outro tem lugar. Sem tal ruptura, o
cotidiano permanece intacto, excluindo a possibilidade da teatralidade, e
menos ainda do teatro em si 5 (FÉRAL, p.98, 1998).

Assim, a experiência poética e teatral vivenciadas durante a performance


narrativa surge justamente na audácia, na habilidade de um pensamento e ação que se

8
reinventa inaugurando sentidos, representando lembranças, objetos, seres e sensações ao
tomar a iniciativa de agir e produzir marcas nas pessoas e no mundo. Portanto, está
atrelado ao esforço da conquista de um novo, e não à renúncia de uma circunstância,
contexto, na absroção dos espaços que compõem a troca e reafirmação dos sujeitos à
deriva de suas próprias intenções à cerca do que é visto, a partir de quem o faz, através
da integridade da sedução de quem admira o que lhe é posto à mostra. E se averso ao
encontro, ou passível de envolvimento, a teatralidade encontra-se na interseção do
contato, na disposição de fazer-se pertencente ao outro, ao evidente, ao demasiado
humano refeito. Tem aí, a performance narrativa no Jequitinhonha um material vasto de
produção da experiência poética, bem como de associação ao caráter reflexivo do fazer
teatral: O apreço e prazer dos habitantes dessa região por narrar e reinventar suas
próprias histórias, e a dos outros.

Concluir que nada, é preciso diluir

Como Jequitinhonhense, quero refletir o lugar de onde venho,


contribuindo para que outros (sujeitos e lugares outros) também intentam entender as
camadas sensíveis de suas histórias, reforçando seus conhecimentos a partir dos
sentidos. Como pesquisador não pretendo estabelecer uma verdade acerca da
experiência poética da performance narrativa, até porque “a voz não tem espelho [...] é a
própria realidade” (ZUMTHOR, 2007, p. 84). Dessa forma, a pesquisa debruçada sobre
esse universo representa a conquista por novos olhares, por possíveis perspectivas da
compreensão do simbólico, por diferentes experiências; visa a busca pela autonomia do
conhecimento que desbrava a si próprio, subjetivando o saber comum.
O que é preciso entender sobre a “modalidade” de performance observada
por esse estudo, bem como sobre o caráter estético e teatral do evento narrativo, são as
noções de qualidade, afabilidade, e sensação de prazer da contação e audição de
histórias comuns, particulares, reais e imaginárias; histórias que constrói os sujeitos
nelas imersos, isto é poesia. Portanto, não pode ser vista apenas como material de
registro historiográfico de um território, apresentação de fatos, mera representação da
cultura ou etnografia somente; a arte que reside nas performances narrativas reside nos
indivíduos, tornando-os seres sensíveis e conhecedores de suas existências, torna-os
passíveis de sentir e criar relações com o espaço e com outros indivíduos,
transformando suas realidades e subjetivando suas impressões sobre o mundo.
Lanço-me a novas perspectivas conceituais e abordagens epistemológicas como
quem desvela a si mesmo num intuito sensível de fundamentar aquilo que antes de
conhecimento é sentido, antes de fazer-se ciência vive na paixão e que antes mesmo de
ser cultura, é arte. Concluir que nada, é preciso diluir as amarras utilitaristas do saber,
promover a sensibilidade das interações e assim, esclarecer os acessos aos pequenos
prazeres da existência humanas, grandiosos pela capacidade de transformação.

9
NOTAS
1
Dados da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). Janeiro de 2013.
2
Intentando dinamizar a leitura e compreensão do leitor, em determinados momentos deste texto
utilizarei apenas a palavra Vale, iniciada com letra maiúscula, referindo-me exclusivamente ao Vale do
Jequitinhonha/MG.
3
O Arraial do Tijuco (atual cidade de Diamantina) corresponde à região de maior expressão mineradora
do país durante o século XVII e constitui-se como o propulsor da extensão populacional de povoamento
do Vale do Jequitinhonha. (PEREIRA, 1996).
4
As considerações acerca do olhar lançado para performance narrativa segundo seu caráter poético e
teatral, serão explanadas no próximo tópico deste estudo.
5
Adão do Nelo (79 anos, feirante narrador de histórias, sujeito observado por essa pesquisa). Em apreço
à experiência vivida quando imerso no evento narrativo participado, por mim, pesquisador, todas as falas
do feirante transcritas neste artigo mantiveram também na ortografia a identificação fonética da voz
registrada via gravador sonoro. Depoimento cedido em dezembro de 2012, na cidade de
Itamarandiba/MG.
6
MOSTAÇO , Edélcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. Revista Da pesquisa da UDESC.
Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.pdf>.
Acessado em 04 de julho de 2014.
7
Pesquisa de campo ainda em andamento com intuito para desenvolvimento da dissertação:
“Performatividade e Teatralidade: Um olhar estético sobre a performance narrativa de feirantes rurais do
Vale do Jequitinhonha, MG., requisito para obtenção do título mestre em artes cênicas pela Universidade
Federal de Uberlândia – UFU.
8
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.
9
Fragmento da narrativa oral do feirante Sr. Adão do Nelo, registrada em dezembro de 2012, na cidade
de Itamarandiba/MG. Arquivo do pesquisador.

. Pesquisa patrocinada pela Comissão de Aperfeiçoamente de Pessoal de nível Superior – CAPES.

10
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter (1994). Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política:


ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.

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graduação em Educação, jan/abril, nº19. pp. 20-28.

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Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG.

FÉRAL, Josette (1998). Theatricality: The Specifity of Theatrical Language.


SubStance, Vol. 31, Edição 98/99.

GOFFMAN, Erving (2005). A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro.


13ª Ed.Editora Vozes.

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fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai. Horizontes Antropológicos, Porto
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PEREIRA, E.A; GOMES, N.P.M (2002). Flor do não esquecimento, cultura popular e
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teatro, crítica e estética. Ano 11. N° 12. Rio de Janeiro: Departamento de Teoria do
Teatro, Programa de Pós Graduação em Teatro, Universidade Federal do Rio de Janeiro
– UNIRIO, 2003, p.30.

ZUMTHOR, Paul (2010). Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG.

__________, Paul (2000). Performance, recepção, leitura. São Paulo: Hucitec/Educ.

__________, Paul (2005). Escritura e nomadismo. São Paulo: Edito

11
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPECIALIDADES

PERSONA EX MACHINA - O TEATRO DIALOGANDO COM A INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL

Saulo Popov Zambiasi; PPGEAS – UFSC


Patricia Leandra Barrufi Pinheiro; PPGT – UDESC

Resumo
Vários elementos compõem uma peça teatral (música, luz, cenário, etc). Como
qualquer outra tecnologia utilizada na construção destes, novas tecnologias são inseridas para
o auxílio no enriquecimento dos sentidos, tais como tecnologias computacionais. Vendo o uso
das tecnologias como algo comum nas artes, torna-se natural visualizar uma cena composta
por robôs, virtuais ou mecatrônicos, com um certo nível de Inteligência Artificial (IA),
interagindo com atores. Um exemplo disso é o que define-se como Persona Ex Machina, ou
PEM, uma proposta de IA com enfoque no uso em espetáculos teatrais. Esta é baseada em
certos princípios: autonomia: age por si, não controlada por humanos; percepção: percebe
seu ambiente via sensores; ação: age em seu ambiente; interação: interage com os demais
atores; roteiro: segue roteiro estipulado para o espetáculo teatral; improvisação: pode
improvisar, se necessário; interpretação: pode seguir as mudanças de humor de seu
personagem conforme o roteiro. Uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que
siga os princípios supracitados. No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes
podem se encaixar nos princípios citados e serem utilizados em um espetáculo teatral tal como
uma PEM. Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.
Palavras-chave: Inteligência Artificial; Interação Humano-computador; Espetáculo-
laboratório.

1. Introdução
Entre os contextos da aplicabilidade de diferentes recursos e elementos para compor
uma peça teatral, incluindo música, luz, cenários, figurino, ou mesmo os próprios atores,
novas ideias sempre acabam por surgir conforme a evolução tecnológica. Essas servem como
importantes peças de inserção à cena para auxiliar no enriquecimento dos sentidos do público.
Certamente é de grande importância a análise da utilização desses novos recursos junto à
quem produz e também à quem presencia tais espetáculos. Todos esses elementos de cena não
podem ser vistos apenas como acessórios secundários, mas também como elementos tão
importantes quanto os atores, conforme a linha de raciocínio de Kantor (MORETTI, 2008).
Já há alguns anos, recursos diretamente ligados ao conjunto da mecânica, eletrônica e
tecnologias computacionais também têm sido utilizadas na composição de espetáculos teatrais,
performances e dança, e muito já foi discutido sobre esses. Entretanto, como tais elementos
têm tido uma crescente evolução, ainda há muito o que se experimentar e discutir (ABRAÃO,
2007). Entretanto, não se limita aqui apenas a discussão sobre a utilização de datashows,
iluminação automatizada, sonorização tridimensional, pernas e braços mecânicos, etc., na
forma de elementos secundários, mas a utilização de robôs em cena. Discute-se aqui robôs
com certa autonomia sobre a cena, composto por elementos de Inteligência Artificial, com
tanta importância no contexto geral quanto um ator.
É evidente que a forma de utilização de robôs em cena, com ou sem o provimento de
técnicas e algoritmos de Inteligência Artificial, é bastante ampla e que a limitação da maneira
de utilização desses recursos não pode ser efetivada. Contudo, para estudo e análise, alguns
caminhos podem ser norteados para propostas de discussões sobre tal aplicabilidade.
Neste contexto, o presente trabalho se apóia no conceito de Persona Ex Machina
(PEM), apresentado por Zambiasi e Pinheiro (2013). Uma PEM pode ser classificada como
um elemento de cena tão importante quanto um ator, mas que permeia sua ação com base na
artificialidade, ou seja, pode ser um ator virtual apresentado em uma tela (televisão, datashow,
etc) ou por agentes robóticos interagindo em um ambiente real. A utilização de tais recursos no
teatro, performance e dança não é nova e já vem sido executados em alguns trabalhos.
O termo Persona Ex Machina utilizado aqui provém do Latim Pessoa
da Máquina e é inspirado no Deus Ex Machina, o “Deus descido da
máquina”, dispositivo mecânico utilizado na Antiga Grécia
(ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

O Deus Ex Machina, segundo Berthold (2004), “vinha em auxílio do poeta quando este
precisava resolver um conflito humano aparentemente insolúvel”. Já, no caso desse trabalho, a
PEM se refere à um ser artificial que surge como mais um ator em cena.
Entretanto, não é qualquer robô definido como PEM, Zambiasi e Pinheiro (2013)
apresentaram um conjunto de princípios para definir tal elemento espetacular. Os princípios
são: autonomia, percepção, ação, interação, roteiro, improvisação e interpretação. Em tempo,
uma PEM não precisa ser um robô humanoide, contanto que siga os princípios supracitados.
No cenário atual da robótica, diversos projetos já existentes podem se encaixar nos princípios
citados e podem ser utilizados em um espetáculo teatral tal como uma PEM.
Com o intuito de dialogar sobre a perspectiva da interação humano-computador na
arte, o presente trabalho apresenta a proposta de um Espetáculo Teatral Laboratório com a
utilização de uma PEM.

2. A Persona Ex Machina e seus Fundamentos


A proposta da PEM é fundamentada em certos princípios, cada qual com sua própria
fundamentação e propósito. Nesta seção são apresentados os conceitos destes.
Princípio da Autonomia: Uma PEM deve ser um agente autônomo,
possuindo uma certa inteligência artificial para poder agir sozinho, sem
a intervenção humana por controle remoto, teclado ou joystick, durante
um espetáculo teatral, dança ou performance (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).

O princípio da Autonomia da PEM rege a regra de que um elemento robótico


nominado de PEM não deve ser controlado por um humano durante a apresentação do
espetáculo. Muito da autonomia já é tratado há anos pelas vertentes da robótica e da
Inteligência Artificial nas áreas da Ciência da Computação. Um Agente Inteligente, por
exemplo, possui sensores para poder sentir o ambiente, atuadores para poder interagir com o
mesmo e certa autonomia para analisar as informações de recebidas pelos sensores para
responder da melhor forma possível (RUSSEL e NORVIG, 2004).
Princípio da Percepção: Uma PEM deve utilizar as informações de
seus sensores, analisando-as, processando-as e respondendo com
ações, ou não, em tempo de apresentação. Nada deve ser
preprocessado (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

O princípio da Percepção da PEM também está diretamente ligada ao agente de Russel


e Norvig (2004). Para um robô, sendo ele virtual ou real, poder participar do que acontece com
seu ambiente, é necessário que ele possa ter informações dinâmicas do que está ocorrendo no
momento como forma de responder condizentemente.
Princípio da Ação: Uma PEM deve poder agir no ambiente real ou
virtual em que se encontra por meio de atuadores, como por exemplo
braços mecânicos, rodas, cabeça robótica, expressões animadas em
uma tela de computador ou datashow (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).

Um robô que não responde e não age é apenas mais um elemento na cena como
qualquer outro. Por isso o princípio da Ação é citado para uma PEM. Mesmo que tal interação
seja uma resposta textual em uma tela ou uma fala, ainda é uma ação. Toda a PEM deve poder
responder ao seu meio conforme as informações de percepção recebidas por seus sensores.
Princípio da Interação: Um humano ou outra PEM deve poder interagir
com uma PEM por meio de conversa, gestos e ações, tal como
interagiria com outra pessoa (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

A PEM não deve apenas receber informações e agir. As ações devem condizer com as
informações de entrada dos sensores, inclusive para poder interagir com outras PEMs ou
mesmo atores em cena.
Princípio do Roteiro: Uma PEM deve ter um roteiro de base para
seguir, deve poder encontrar as deixas dos outros atores em cenas e
deve poder seguir seu roteiro conforme pontos de checagem no tempo
da execução do espetáculo (ZAMBIASI e PINHEIRO, 2013).

Para uma PEM, deve ser possível seguir o Roteiro de um espetáculo teatral. É certo de
que há diversas formas de atores seguirem roteiros ou o fluxo temporal de um espetáculo,
tendo seu início ou fim e, inclusive, poderem iniciar ou fechar deixas. Dessa forma, uma PEM
também deve seguir o fluxo do espetáculo.
Princípio da Improvisação: Uma PEM deve ter a possibilidade de
improvisar, em alguns pontos do espetáculo e escolher a melhor
resposta que lhe convier conforme interações não planejadas com
outros atores e, inclusive, com o público (ZAMBIASI e PINHEIRO,
2013).

Para Pavis (1999), em um espetáculo improvisado, “os atores agem como se tivessem
que inventar uma história e representar personagens”. Quando há o recurso da improvisação, o
ator é “desligado do texto e das falas previstas na peça, o ator poderá voar na mesma direção
com forças próprias, emoções e objetivos nascidos de suas experiências e projeções pessoais,
infundindo ao seu desempenho uma qualidade interpretativa mais convincente (GUINSBURG,
1992). Tal como é permitido à um ator improvisar, à uma PEM também deve ser permitida a
Improvisação, sendo essa característica também selecionada como um princípio desta.
Princípio da Interpretação: Uma PEM deve poder interpretar sua
personagem e utilizar de mudanças de humor conforme as
necessidades do espetáculo e das interações (ZAMBIASI e
PINHEIRO, 2013).

Atuar não é apenas apresentar um roteiro de falas e ações à um público. Para


Meyerhold (2012), o ator “possui uma tarefa bem mais significativa que do que apenas levar
ao espectador a concepção do diretor. O ator será capaz de contaminar o espectador se recriar
em si tanto o autor como o diretor, expressando-se em cena”. Há muito mais nessa questão do
que apenas uma atividade automatizada. O princípio da Interpretação traz à PEM,
provavelmente, o ponto mais importante para discussão que este trabalho intenta propor.

3. Proposta de Espetáculo-Laboratório
O presente artigo apresenta uma proposta de Espetáculo-Laboratório como forma de
discutir a utilização da robótica, atrelada à Inteligência Artificial, em espetáculos teatrais. Para
isso, é proposto a utilização de uma PEM, seguindo seus princípios, em um espetáculo.
Entretanto, essa proposta não se firma apenas na apresentação de uma uma peça, mas na
posterior análise das suas aplicabilidades.
Dessa forma, a proposta segue a seguinte metodologia:
1. Criação do Roteiro;
2. Definição do cenário, figurino e demais elementos da cena;
3. Criação dos recursos mecânicos e computacionais necessários para a PEM;
4. Ensaios com ator(es) e PEM;
5. Apresentação do Espetáculo;
6. Análise e Avaliação;
7. Escrita de Artigos com os resultados.
Uma análise de requisitos iniciais, recursos mínimos necessários e aplicabilidade para
uma primeira versão desse espetáculo já se encontra atualmente em avaliação. São eles:
• Atores: Para suprir o princípio da interação da PEM, o espetáculo terá um ator para
que tal interação possa acontecer. Entretanto, não é necessário inicialmente que haja
mais de um ator em cena.
• PEM: Apenas um ator do tipo PEM é suficiente para uma discussão inicial.
Certamente que pode-se haver mais de uma PEM, inclusive interagindo entre elas.
◦ Computador: Um computador para executar os softwares e um Tablet com câmera
e audio como sensores para interação com o ator;
◦ Softwares: Em uma análise inicial, os softwares necessários para essa PEM
envolvem um chatbot (softwares para conversa em linguagem natural), softwares
para detecção de fala, sintetizador de voz, interface visual para mostrar pelo menos
o rosto da PEM com suas expressões e mudanças de humor;
◦ Mecânica: Um braço mecânico para suportar um Tablet com câmera que deve
seguir o ator. Este elemento não é obrigatoriamente necessário e ainda deve ser
avaliada a sua aplicabilidade inicial;
◦ Datashow: para mostrar graficamente os módulos de software que se encontram
em execução durante o espetáculo;
• Roteiro: Um roteiro ainda deve ser elaborado. A ideia é propor um roteiro sobre uma
discussão recursiva acerca da própria análise do que é a Inteligência Artificial e sua
aplicabilidade na interação humano-computador. O foco é um cientista discutindo com
sua criação o que é a Inteligencia Artificial.
• Cenário: Um laboratório mecatrônico para a criação de robôs.
Devido ao fato de que há o envolvimento de custos para a aplicação dessas ideias e de
que o projeto é independente e sem financiamento, alguns desses elementos ainda podem ser
reavaliados.

4. Considerações
Este artigo apresentou uma proposta da utilização de um robô provido de Inteligência
Artificial em um espetáculo-laboratório teatral como forma de discutir a aplicabilidade da IA
no teatro. Para tal foi sugerido a utilização de um robô seguindo os princípios da Persona Ex
Machina e uma ideia inicial de espetáculo a ser ainda criado, apresentado e analisado por um
público selecionado. Os próximos passos são a criação do roteiro, escolha do ator, montagem
do hardware necessário, implementação dos softwares, ensaios, apresentação e discussões.
Este espetáculo terá o suporte e auxílio do Grupo de Pesquisa em Ciberarte (Subverse, 2014).

Referências
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Pensar a Prática. v10, n2. 2007.
BERTHOLD, Margot. A história mundial do teatro. 2a. ed. São Paulo : Perspectiva. 2004.
GUINSBURG, Jacob; SILVA, Armando. Diálogos sobre teatro. São Paulo: EDUSP, 1992
MEYERHOLD, Vsevolod. 2012. Do teatro. São Paulo. Iluminuras: 2012.
MORETTI, Maria F.S.; BELTRAME, Vamor. Kantor, Duchamp e os objetos. Em: Valmor
Beltrame. (Org.). Teatro de Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e Prática. Florianópolis:
Design Editora, v.1, pg.07-142. 2008.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo : Editora Perspectiva, 1999.
RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Inteligência Artificial. 2aEd, Tradução da 2a ed. Rio de
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Subverse: grupo de pesquisa em ciberarte. <http://subverseproject.blogspot.com.br/>.
Acesso: 07/2014.
ZAMBIASI, Saulo P.; PINHEIRO, Patricia L.B.. Diálogos Performáticos Interativos para
Atores Virtuais. VI Jornada Latino Americana de Estudos Teatrais. Blumenau : Furb, 2013.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

CRUZAR SIGNIFICADO E DESEJO: A MONTAGEM D’ O TEATRO


DOS OUVIDOS DE NOVARINA COMO EXEMPLO DE UMA INSTALAÇÃO
TEATRAL
Stephan Baumgärtel – Universidade do Estado de Santa Catarina

O entrecruzamento entre práticas provenientes das Artes Visuais e outras das


Artes Cênicas é um procedimento artístico corrente e nada novo. A história da
cenografia é impossível de entender sem refletir sobre essa relação. O que aconteceu nas
últimas décadas é que surgiu um interesse comum em procedimentos tais como o
happening, a performance, a arte ambiental e a instalação. Esse interesse pode ser
interpretado como sintoma pelo qual se articula uma crise tanto da mimesis
representacional quanto da recepção tradicional hermenêutica. No contexto teatral, essas
práticas foram denominadas de ‘teatro imersivo’ e também em alguns casos de ‘teatro-
instalação’, como Marvin Carlson (2014) aponta em suas reflexões sobre a crise da
representação no teatro contemporâneo. Mas não precisamos buscar referências apenas
no teatro europeu ou norte-americano, pois as montagens do Teatro da Vertigem se
relacionam bem um teatro chamado ‘imersivo’. Entretanto, nem todas as montagens
imersivas podem ser qualificadas de ‘instalação teatral’, mesmo que toda instalação
(teatral ou não) trabalhe criticamente com a noção de imersão.1
Como o conceito de instalação configura, desloca e até potencializa a prática de
encenação na contemporaneidade?
Para responder a essas questões, me parece importante pensar as consequências
de dois vetores presentes no teatro contemporâneo que atuam sobre a prática de
encenação: o primeiro vetor é o fortalecimento do eixo comunicativo entre palco e
plateia, assumindo muitas vezes uma hegemonia sobre o segundo eixo: a comunicação
intra-ficcional entre as figuras ficcionais. Este fortalecimento encontra seu primeiro
grande teórico em Brecht e suas teorias de uma dramaturgia da recepção, o seja, um
agenciamento das ações cênicas a fim de induzir uma recepção crítica ativa. Está
presente nas reflexões mais radicais sobre um teatro que torna espectadores em co-
participantes, como também em muitas discussões atuais nas artes cênicas (e visuais)
sobre o problema da participação.2
Trata-se não apenas de uma poética cênica disposta a romper com os horizontes
de expectativa da recepção dos espectadores, mas de uma poética cênica que teima na
possibilidade e necessidade de instalar essa ruptura de modo estratégico: a poiesis
cênica enquanto provocação da recepção deve instaurar novos modos de olhar para a
cena e, a partir dessa percepção, induzir novos olhares para outras possibilidades de
existir no mundo empírico. No contexto das artes visuais, a instalação procura induzir
esse olhar novo não apenas pela provocação (ainda moderna) de uma narrativa não-
linear e associativa a ser construído pela percepção sinestésica do espectador. Antes, ela
instala outra relação temporal entre esse olhar e o espaço cênico com seus elementos aí
colocados, pois a instalação continua existindo enquanto o espectador entra nela como
um elemento fugaz. O tempo real e empírico com suas ausências de fronteiras e
consequentemente de formas bem delineadas ameaça a pertinência do tempo de uma
narrativa psíquica linear, uma narrativa de maturação na qual importam origem, conflito
contraditório e direcionado, desenvolvimento e resolução final. Nesse tempo real pode-
se instalar com mais facilidade uma recepção (multi-)sensorial direta que não depende
da compreensão intelectual dos signos e da narrativa para ser ativada.
Portanto, o segundo vetor da instalação teatral é de certa forma uma
consequência indireta do primeiro. Trata-se do foco na presença de um real em cena,
seja esse real um elemento cênico marcado enquanto empírico, ou seja ele a realidade
performativa da cena. Um vetor que induz uma fratura num regime fechado da
representação e simbolização; que perturba a separação clara entre o fingimento
artístico e os impactos supostamente mais reais e duradouros do mundo empírico.
Este segundo vetor leva a pensar a apresentação teatral como acontecimento real
e/ou como situação social, mais do que como texto espetacular. Entretanto, no contexto
teatral, uma situação precisa ser configurada. Ela nunca pode ser uma situação no
sentido forte da palavra (penso por exemplo no exemplo da língua inglesa, na qual
‘we´ve got a situation here’ significa ‘temos um problema aqui’), sem que haja um
adensamento estrutural entre os elementos envolvidos que produz certo tipo de tensão e
conflito. Em outras palavras, uma configuração cênica que pensa o teatro como situação
na qual se cruzam realidades e ficções, temporalidades e espacialidades imaginárias e
reais, materialidades e camadas simbólicas para que se produza um confronto entre o
mundo artístico e o olhar dos espectadores (participantes da situação), essa configuração
focaliza a interação direta entre público e artistas, entre recepção e construção da cena,
como o campo no qual devem emergir as tensões agonais. Esse campo conflituoso se dá
agora não apenas por via de um pensamento reflexivo, mas do contato físico e sensorial
direto entre os artistas e seu fazer e os espectadores-observadores e sua recepção.
Entretanto, por criar a participação enquanto problema e desafio, essa
configuração não exclui a vontade artística de dar a essa situação um acabamento
formal, de configurar essa situação ao instalar nela elementos teatrais e reais, momentos
ficcionais bem como momentos e objetos concretos de ações reais, para que a dimensão
temática seja experimentada de várias maneiras pelo público presente: intelectualmente,
sensorialmente e afetivamente. Essa vontade artística pagaria homenagem à velha
paixão narrativa do teatro, uma vez que a relação dos fragmentos e das camadas de
recepção no interior da situação teatral nada mais é para a instalação teatral o que era a
sequência das ações para a narrativa ficcional: o veículo para cativar artista e espectador
imaginaria, reflexiva e afetivamente, impregnar neles um conjunto de valores, de
reconhecimentos intelectuais e afetivos, de torna-los conscientes de suas estruturas de
sentimento e padrões de percepção, a fim de subverter alguns e fortalecer outros.
Nesse sentido, a situação da instalação teatral, a copresença de fragmentos do
real e do ficcional e o convite ao espectador de participar ativamente na construção
dessa situação, produz um risco para a construção de uma narrativa (de uma
“mensagem” ou de um “significado inscrito na obra”), mesmo que essa narrativa seja
diluída numa configuração antes temática do que temporal. Como também a insistência
em um fio temático norteador desafia a amplitude e liberdade da participação ativa do
espectador. Nesse desafia reside também um projeto pedagógico dos artistas em
conjunto com os espectadores, de testar as capacidades da situação teatral e da recepção
ao compartilhar a autoria e a responsabilidade pelo jogo cênico e pela potência
simbólica deste.
Dentro desses vetores, então, surgem algumas características da cena teatral que
a aproximam ao conceito da instalação, sobretudo o fato de que as propostas teatrais
contemporâneas incluem, de diferentes maneiras e intensidade, oportunidades para a
interação direta entre artistas e espectadores; ofertas de imersão que não passam por
uma identificação imaginária com figuras ficcionais da narrativa, bem como o uso de
adereços que evidenciam em cena seu pertencimento a um mundo ‘não-ficcional’ e
portanto se aproximam aos ‘ready mades’ no campo das Artes Visuais, além do
cruzamento de uma temporalidade real prolongada e outra ficcional de tempo marcado.
Se a instalação é marcada principalmente por propriedades tais como sua estrutura
imersiva e alegórica, seu foco na percepção intensificada do espectador e nos processos
de uma recepção ativa, bem como uma importância equivalente entre tempo e espaço
reais e ficcionais, a questão é como o teatro pode entrar nessa situação com o que ela
tem de específico: a presença do ator e o jogo entre corpo biográfica, performativo e
ficcional perante e em relação aos espectadores.
Quando falo de uma instalação teatral, então, quero me referir a um dispositivo
no qual essas propriedades da instalação formam um contexto básico e a dimensão
teatral entra nesse espaço como uma força para intensificar e subverter processos de
identificação com o jogo dessa situação: jogar com a situação da instalação é sobretudo
jogar com processos de concretização de ideias (invisíveis) na concretude material do
corpo humano e jogar com as tensões inscritas na participação dos espectadores:
recepção ativa intelectual, recepção interativa guiada, recepção participativa com
diversos graus de poder de intervenção. O jogo do ator permite alterar esses modos de
participação com muito mais agilidade do que uma instalação é capaz. Sobretudo,
permite apresentar o jogo na apenas como um tipo de transubstanciação estética, a ideia
virando carne, mas também – e mais importante talvez – a pulsação da carne no
contexto dessa ideia. Por meio dessas alterações, pode problematizar uma questão que
em instalações aparece muitas vezes implícito: Quem define as regras do jogo artístico
(do fio temático que une os diversos fragmentos e forma sua alegoria) e como essa
definição se relaciona com o corpo humana, com a existência concreta? Nesse sentido,
acredito que os trabalhos de instalação teatral mais instigantes são aqueles que frustram
um olhar unificante e que estimulam uma percepção de múltiplas perspectivas com
relações internas tensas (de poder e de funcionalidade distinta), que são também
relações estimulantes.
Quem foi visitar a apresentação do texto O teatro dos Ouvidos de Valère
Novarina realizada em 2012 pela companhia Teatro do Pequeno Gesto e o diretor
Antônio Guedes no Rio de Janeiro, seja na galeria do Espaço Cultural Municipal Sérgio
Porto, seja no Parque das Ruínas,3 deparou-se com diversas formas de tratar esse texto:
dito ao vivo pela atriz e tradutora Angela Leite Lopes; gravado e apresentado em
looping sem a presença da atriz; misturando a fala presencial da atriz com gravações do
autor em francês; frases isoladas impressas em panos semitransparentes que,
pendurados do teto, formaram um labirinto; mais fragmentado ainda nas palavras
bordadas a mão sobre outros panos; mas também palavras isoladas projetadas sobre
alguns panos e cujas letras aos poucos sumiram ou pularam para fora do espaço da
projeção, somente para voltar um pouco mais tarde, devido aos recursos técnicos da
projeção.
Essas observações sugerem que o protagonista dessa “performance plástico-
poética com texto”4 não é a performer e muito menos uma possível figura ficcional que
se articula por meio do texto teatral, mas antes o próprio texto, ou melhor talvez, a
relação do ser humano com a língua, seja ela falada, escrita, ou projetada tecnicamente.
Relação corporal e relação midiatizada. Uma vez afirmado isso, me parece bastante
patente que o interesse principal dessa apresentação recai sobre a investigação de
questões relativas às possibilidades de entender e subverter a língua como expressão
pessoal ou autêntica de um ser humano; ou, dito de modo mais aberto, recai sobre
possibilidades de expressar diferentes relações entre ser humano e língua, diferentes
impactos da língua sobre os seres humanos. Essa relação forma também uma camada
semântica importante desse texto escrito de Novarina. O que lhe interessa é sobretudo a
possibilidade de usar a língua de maneira concreta e performativa de modo que esse uso
subverta e dinamize um uso das palavras engessado na pseudo-clareza do uso comum.5
A estrutura fragmentada do gênero da instalação, com suas lacunas estruturais e seu
foco na materialidade do espaço, se oferece bem a esse projeto de Novarina.
Mesmo que os criadores não denominem o trabalho de instalação no material de
divulgação oficial, ele se assemelha a esse gênero artístico por diversos motivos: a
criação de um espaço imersivo (os espectadores entram num espaço organizado por
meio de panos semi-transparentes que continua presente para além do momento da
performance teatral); de uma estrutura espacial e ficcional-simbólica fragmentada cujos
elementos concretos e simbólicos apontam de diversos modos para um tema inscrito
indiretamente no texto teatral; de suas estratégias de recepção multisensoriais (os
espectadores podem se relacionar com o texto por meio das palavras bordadas, de
projeções animadas, das palavras ditas ao vivo e pré-gravadas). Portanto, é adequado
denominar o trabalho de instalação, como fez o diretor Antonio Guedes em um e-mail
enviado para mim.6 O elemento relativamente ausente é a qualidade interativa ou
participativa da presença dos visitantes no espaço da instalação. Pois ainda que o
público possa perambular pelos corredores formados pelos diferentes panos, não pode
intervir na lógica dos procedimentos da apresentação nem manusear diferentes
elementos para experimentar sensações e reflexões distintas conforme o modo de
contato estabelecido.
O que torna o trabalho interessante no contexto de uma pesquisa sobre
encenação enquanto instalação é a construção de uma recepção que permite
experimentar pela multiplicidade dos estímulos simbólicos e sensoriais uma abertura da
situação teatral enquanto cruzamento do texto escrito e do texto espetacular. A criação
de um espaço simbólico, por meio do uso dos panos com bordados e projeções que se
relacionam com o texto dito pela atriz presente, dentro do espaço encontrado, no qual o
primeiro se mostra vagamente transparente ao segundo, e vice-versa, essa criação pode
ser lida como indagação concreta das relações entre o espaço empírico e o espaço
artístico e das capacidades do arranjo cênico de articular essa relação de modo crítico e
enriquecedor – tarefa que antes pertencia no contexto teatral quase unicamente ao
discurso textual falado. O universo simbólico apresenta qualidades metaforizantes para
explicar o universo empírico (ver a metáfora do labirinto), mas ao mesmo tempo, e
talvez mais importante para o projeto de montagem, ele indaga a pertinência dessa
explicação, uma vez que os espectadores-visitantes se encontram e relacionam
possivelmente em diferentes situações e relações: contemplando a sensação de estar
nesse labirinto levemente transparente ou buscando interpretar esse enquanto signo em
relação a sua vida empírica; distanciando-se e perdendo-se nos caminhos do labirinto;
olhar para a cara nítida do outro espectador ou percebê-la apenas vagamente no outro
lado do pano; juntar-se em um lugar para observar a atriz falando o texto ou vagueando
solitariamente como um flanêur pelo espaço ouvindo o texto como se esse fosse uma
sonoplastia do momento vivido aqui e agora. O uso de panos semitransparentes coloca
em cheque a suposta transparência de signos socialmente clarificados (o significado
hermenêutico) e introduz nesse campo transparente uma presença enigmática, uma
dúvida que desestabiliza a clareza do olhar (um força que corresponde ao impacto do
verbo performativo).
Como entra o corpo e a voz da atriz nesse projeto? No registro do vídeo a
atuação apresenta uma série de trocas de olhares sorridentes entre atriz e público (o que
inclui a câmera). Por mais que esse olhar personalizado possa criar uma relação íntima
entre atriz e espectadores-visitantes e levar os a focar a atenção no modo como o texto
atravessa o corpo da atriz e torna-se fala, a personalização me parece diminuir o texto,
chamar atenção ao enunciado e não ao espaço “entre”. Ou seja, radica a atuação no
campo da subjetividade, e não numa membrana lacunar onde o subjetivo se desfaz e a
fisicalidade biológica e transhumana se materializa; onde a palavra enquanto mot é
pulverizada pelas energias corporais da parole. Entretanto, nada impedia a percepção do
espectador-visitante de encontrar na atuação o signo dessa membrana dramática, mesmo
que eventualmente sentisse falta do impacto pleno de seu acontecimento. De fato, a atriz
passou pelos dois tipos de situação, como mostra seu depoimento: “Houve sessões em
que havia menos gente e as pessoas ficavam mais no seu canto, ouvindo, não
procurando ‘assistir a cena’, e isso me dava uma sensação de grande liberdade! Houve
sessões em que as pessoas se aglomeravam me acompanhando e aí batia uma postura de
atriz que joga para aqueles olhares.”
Pensando na presença pré-gravada da voz do autor lendo um trecho em francês e
na cantiga infantil francesa cantada pela própria atriz, me parece evidente que havia
uma percepção por parte dos artistas criadores da necessidade de criar esse vetor como
uma materialização dessa dinâmica do verbo encarnado. Talvez faltasse coragem ou
determinação de levar esse embate para além de uma estrutura apolínea bem organizada
e deixar que esse embate atravesse o corpo da atriz no momento da atuação, criando um
jogo tanto com as palavras quanto com os outros elementos da cena. Um jogo que atua
no texto na tentativa do autor de destruir a língua por meio dos recursos da linguagem.
Para ativar a força da parole, são necessários procedimentos performativos que mostram
a língua enquanto força transformadora de um discurso pulsante. Como esse pulsar pode
se tornar perceptível? Ao criar um atrito dinâmico que vai além de ambivalências
semânticas. Ou seja, sobretudo na presença de um elemento corporal performativo,
como o traço do bordado das palavras no pano, e como o corpo ressonante da atriz.
Oferecer essa pulsão ao espectador constitui a meu ver um equivalente cênico daquilo
que o autor em seu texto chama “o desejo de ver o teatro da linguagem”. O contexto de
instalação pode aumentar a força dessa fricção no contexto da situação espacial, como a
atuação da atriz pode introduzir a potência do verbo em ação: o agon entre parole e mot,
no contexto da situação temporal. Desse modo, o aqui e agora da apresentação se
tornam contextos para ativar a tensão entre o contexto social e outro libidinal, entre
significado e desejo. O cruzamento entre instalação e encenação pode ser um
procedimento potente para iluminar e tornar palpável a riqueza e as tensões de nossa
existência humana no contexto das linguagens.

Referências
BISHOP. Claire. Installation Art – A critical history. London: Tate, 2005.
---. Participation. Cambridge: MIT Press, 2006.
DORT, Bernard. “A representação emancipada.” In: Sala Preta, vol 13, n 1,
jun 2013, p.47-55.
CARLSON, Marvin. “Sobre algumas implicações contemporâneas do termo
‘pós-dramático’.” In: Nas fronteiras do representacional.
Florianópolis: Letras Contemporâneas/CNPQ, 2014 (no prelo), sem
página disponível.
COULTER, Graham. Deconstructing Installation Art. Southampton: CASIAD,
2006. Disponível em http://installationart.net/, acesso 03/05/2014.
GUEDES, Antonio. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 17 de março de
2013.
GUENOUN, Denis. O teatro é necessário. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LOPES, Angela Leite (org.). Novarina em Cena. Com a colaboração de Ana
Kfoury e Bruno Netto dos Reys. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
---. E-mail para o autor. Arquivo pessoal. 19 de março de 2013.
RANCIÈRE, Jacques. “O espectador emancipado.” In: Urdimento, no. 15,
Florianópolis: UDESC/PPGT, 2010, p.107-122.
1
Ver Coulter, 2006.
2
Ver sobretudo Bishop, 2005 e 2006, e também Rancière (2010) e Guenoun (2004).
3
O trabalho estreou em agosto de 2011, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto e foi
retomado em Maio e Junho de 2012 no Parque das Ruínas do bairro Santa Teresa.
4
Assim ela é descrita nas credenciais do DVD produzido pelo Teatro do Pequeno Gesto como
registro e material de divulgação.
5
O autor francês define como mot a palavra engessada em um significado supostamente
conhecido e comum. A essa palavra, ele opõe o verbo falado (parole) que recoloca a palavra (mot) em
movimento e a queima, pois a respiração empregada no uso do verbo age como combustão “das ideias
prontas sobre a linguagem e o real”(Lopes 2011, p.13). Mas o texto também deixa claro em sua
dificuldade reconhecida de realizar esse objetivo que o verbo performativo necessita da presença da
palavra estabelecida para poder articular sua força relativa.
6
E-mail para o autor em 17 de março de 2013.
VII JORNADA LATINO-AMERICANA DE ESTUDOS TEATRAIS

TEATRALIDADES E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE
Tiago Luz (CAPES); Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos; Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
2014
TEATRO E ALTERIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A DRAMATURGIA DE JEAN-LUC LAGARCE

Que o Teatro se configure como uma experiência espacial não é novidade: a


palavra Teatro define, além de uma Arte, um espaço físico, originalmente, o “lugar de
onde se vê”. Se existe um lugar de onde se vê, há um lugar que é visto, ou seja, é
fundamental para que exista Teatro esses dois lugares: a cena e o público.
Aqui a palavra experiência ganha certa relevância na medida em que o teatro
contemporâneo, por uma série de fatores, e em grande parte da sua produção, desloca o
foco do evento teatral da narrativa para o encontro entre pessoas – público/atores,
público/público, atores/atores.
As tentativas de confundir ou até mesmo de apagar as fronteiras entre cena e
público, num desejo de aproximação, de encontro, seriam um indicativo desse
deslocamento da prática teatral na direção do outro e temos refletido sobre isso como
uma ideia de prática da Alteridade – que a principio pode parecer tautológico, mas que
pretendemos aqui organizá-la enquanto escolha, enquanto conduta sensível do evento
teatral.
Sendo a enunciação teatral um sistema composto, híbrido, formado por uma
série de signos, para os nossos objetivos aqui, destacaremos o texto, a dramaturgia,
como elemento disparador da Alteridade como mecanismo aqui perseguida.
Dialoga com esse nosso entendimento o pensamento de Michel de Certeau ao
afirmar que “o espaço é um lugar praticado” 1, exemplificando:

“Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em


espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela
pratica do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito2”.

Da mesma forma, pensando na experiência teatral, alguém, um dramaturgo,


escreve algo para outro alguém, um ator ou diretor, que se destina ainda a outra pessoa,
o público. Instâncias se leitura se organizam a partir da enunciação do texto pelos
atores. Ora, esse ato enunciativo estabelece um lugar, um ‘eu’ que fala no presente e,
por consequência, outro que escuta: esta constituída a experiência teatral.
Além disso,

“É essa compreensão do ato enunciativo, enquanto retomada do lugar para novas


reorganizações espaciais, que permitirá a Certeau destacar os relatos (récits)
como organizadores do espaço social. Como atos performativos, os relatos, na
forma de estruturas narrativas, ‘têm valor de sintaxe espacial’” 3.

Apropriamo-nos da ideia de ‘relato’ como organizador de espaço social para


refletir, nesta pesquisa, sobre a dramaturgia de Jean-Luc Lagarce como organizadora de
um espaço de criação e prática da Alteridade. Para isso, afinaremos nosso foco sobre a

1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Petrópolis : Vozes,
1994. Pag 202
2
Idem, ibidem.
3
JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo :
Escrituras Editora, 2005. pag. 80
2
personagem lagarceana, a fim de refletir sobre como ela se constitui e como o ator, a
atriz, pode se relacionar com essas figuras.
De modo geral, encontramos na sua dramaturgia ‘apenas’ figuras que, embora
no presente, contam, narram e até mesmo sonham com tempos passados ou futuros, e
esse momento presente – o que nos é proposto enquanto experiência teatral – constitui-
se basicamente desses relatos e, com isso, nos envolvemos numa experiência temporal
e, por consequência, espacial. Teatro fundado na palavra, teatro da escuta, desafiante
para atores e público: de um lado, como ser portador daquelas palavras em cena e, do
outro, o convite a um estado de atenção, receosos de perder algum novo detalhe que
apareça na fala de algum dos personagens, a fim de juntar as peças do quebra-cabeça
proposto pelo texto.
Adentremos, então, o universo do autor de Besançon, procurando perceber sua
estratégia de proposição das personagens em alguns dos seus textos.
Com uma produção intensa, localizada entre o fim dos anos 70 até meados dos
anos 90 – contemporânea de outros importantes dramaturgos da cena francesa como
Bernard-Marie Koltés, Philippe Minyana, Valère Novarina e Michel Vinaver – Lagarce
escreveu vinte e cinco peças teatrais reunidas em quatro volumes, o ensaio Théâtre et
Pouvoir em Occident (2001), três textos em prosa, L'Apprentissage, Le Baine e Le
Voyage à La Haye (2001) e vários artigos reunidos no volume Du Luxe et de
l'Impuissance (1997), publicado postumamente.
Sua incursão pelo universo teatral começa após o fim do ensino médio, no início
de seus estudos universitários em Besançon, no curso de Filosofia e Letras onde,
paralelamente, passa a frequentar um curso de Arte Dramática oferecido pelo
Conservatório Nacional Regional. Após terminar sua graduação, em 1977, se junta a
alguns amigos e funda uma companhia de teatro amador chamada Théâtre de La
Roulotte, em homenagem à trupe criada pelo ator francês Jean Vilar.
É nessa companhia – “Teatro da Caravana” – que Lagarce encena diversos
autores como Kafka, Ionesco, Molière, Beckett e Wedekind e onde encontra espaço
para a criação dos seus próprios textos. A imagem da caravana, além disso, será uma
tradução possível de algumas características da escrita lagarceana: errante, aventureira,
flexível e bastante provocadora.
A grande questão para o dramaturgo em construção e seu grupo era fazer um
teatro verdadeiramente contemporâneo e isso significava, naquele momento, responder
a indagação fomentada por Lagarce no seu ensaio Théâtre et Pouvoir em Occident:
“como escrever depois de Ionesco, Beckett e Tchekov?”4
Assim, ao eleger sua herança, Lagarce debruça-se sobre a linguagem a fim de
construir um teatro que falasse a seu tempo, desdobrando e ampliando as questões
desses grandes mestres ao longo da sua trajetória.
Suas primeiras peças publicadas – Erreur de construction e La bonne de chez
Ducatel – ambas de 1977, trazem características do ‘teatro do absurdo’, herdadas, por
exemplo, de A Cantora Careca, de Ionesco.5 Outros trabalhos iniciais como Carthage,
encore, La place de l’autre, Voyage de Madame Knipper vers La Prusse Orientale e
Les Serviteurs ressoam o tratamento da linguagem operado por Beckett e Tchekhov e
começam a apontar alguns temas que serão recorrentes no universo do autor de
Besançon: o retorno ao país, ao lugar de origem; personagens que falam do passado ou
sonham com um futuro; figuras suspensas no tempo-espaço que só existem à medida
4
Jean-Pierre Thibaudat. Parcours de Jean-Luc Lagarce in www.lagarce.net/auteur/biographie
(consultaem 24/07/13)
5
idem
3
que falam, ou seja, temas que se relacionam com um estar em movimento, em
deslocamento ou sentir-se deslocado, em trânsito, em eterna busca – como também
sugere o próprio nome da companhia.

“Essas pessoas vagando num mundo arruinado, o retorno a um lugar de origem


devastado e o ato de contar o que se viveu como única alternativa possível a um
quadro tão desolador são próprias da escrita de Jean-Luc Lagarce” 6
De maneira geral, uma das estratégias que o autor utiliza e que primeiro nos
chama a atenção é a despersonalização de suas personagens. Nos textos lagarceanos,
com frequência, os nomes são substituídos por letras, como em Voyage de Madame
Knipper vers La Prusse Orientale, de 1979 – A. une femme / B. une femme / C. um
homme / D. um homme / E. um homme / F. domestique, muet, homme ou femme / G.
domestique, muet, homme ou femme; as vezes, artigos – Elle / Lui como em La place
de l’autre, 1980; ou são reduzidos ao mínimo referente possível: gênero ou classe a que
pertencem, por exemplo – O Rádio / A Primeira Mulher / A Segunda Mulher / O
Primeiro Homem / O Segundo Homem, em Carhtage, encore, 1979, peças do início da
carreira do autor.
Em agosto de 2006 realizou-se no Teatro Laboratório da ECA/USP a ‘Semana
Lagarce’. O evento estava inserido nas atividades do “Ano Lagarce” em comemoração
aos 10 anos de falecimento do autor francês morto prematuramente. Uma oportunidade
de imersão na obra de um dos dramaturgos franceses mais montados na atualidade, mas
pouco conhecido no Brasil, através de espetáculos teatrais e leituras dramáticas de
textos do escritor, além de workshop e exposição fotográfica.
Dos textos apresentados nesta Semana, somente o Apenas o fim do mundo,
espetáculo apresentado pela Cia Brasileira de Teatro, traz uma lista de personagens com
nome, parentesco e idade. Talvez por se tratar da “peça mais íntima de Jean-Luc
Lagarce” 7, de acordo com Marcio Abreu, diretor da montagem curitibana.
Luiz, 34 anos, é a personagem que, após ausentar-se por muito tempo, retorna à
casa da família para comunicar sua morte próxima. O texto se desenvolve em longas
falas, revelando um desejo enorme das personagens de se fazerem entender, de dizer o
que nunca foi dito.
As outras personagens são:
SUZANA, sua irmã, 23 anos.
ANTONIO, irmão deles, 32 anos.
CATARINA, mulher de Antonio, 32 anos.
A MÃE, mãe de Luiz, Antonio e Suzana, 61 anos.
Chama à atenção aqui, numa lista que cita nominalmente as personagens, a
existência de uma chamada simplesmente de ‘a mãe’, sem um nome específico e ao
mesmo tempo autoexplicativo: Lagarce abre espaço para que um nome, ou personagem,
seja uma relação.

6
OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no teatro de Jean-
Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011. Pag. 31
7
Marcio Abreu, programa da peça, Curitiba, 2006
4
Nota-se certa problematização da personagem, na medida em que, a partir dessa
única informação, caberá à atriz encontrar no texto, naquilo que a sua personagem diz –
e no que dizem dela – outros índices que a ajudem a sustentar essa figura em cena. Em
se tratando de um texto lagarceano, porém, não será surpresa se tudo o que essa busca
revelar for a necessidade de se colocar como instrumento de passagem para as palavras
do texto.
Para se aventurar no universo lagarceano é preciso “conservar no centro do
nosso mundo o lugar das nossas incertezas, o lugar da nossa fragilidade, da nossa
dificuldade de dizer e de entender” 8. Sem dúvida um desafio, de forma e conteúdo,
para o ator mais tradicional, acostumado a ‘incorporar’ e defender uma personagem em
cena.
Nas outras peças da Semana Lagarce, todas da fase final da produção do autor,
as personagens são apresentadas na mesma estratégia de despersonalização e mínimo
referencial possível, colocando o foco do seu teatro muito mais naquilo que é dito do
que em quem diz. Essa mudança de perspectiva é fundamental no teatro de Jean-Luc e
cerne de nossa pesquisa.
A temática do retorno a casa aparece em outro trabalho apresentado naquela
semana em 2006. Desta vez, o foco recai não naquele que volta, mas nos que ficaram.
A Cia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto fez a
leitura dramática do texto Eu estava em casa e esperava que a chuva viesse, de 1997,
penúltima obra escrita por Lagarce.
Nesta peça, uma espécie de coro formado por
A Mais Velha
A Mãe
A Filha mais velha
A Segunda
A Filha mais nova

está à espera do filho/irmão que foi expulso de casa pelo Pai, que já faleceu.
Como se vê, as personagens também não têm nome, mas são apresentadas numa
hierarquia familiar. Essa informação não deixa dúvida quanto ao tipo de relação
existente entre elas, embora todas façam parte do mesmo “oratório dramático para cinco
vozes9”.
Sobre a organização das personagens na lista de apresentação, uma vez que não
indica a ordem em que aparecem no texto, podemos supor que Lagarce poderia querer
indicar certa rigidez no universo dessas cinco mulheres que passaram anos de suas vidas
aguardando o retorno do filho/irmão querido. E novamente temos uma personagem
indicada apenas como A Mãe, e se pensarmos nas demais figuras a partir dessa, cria-se
certo ruído com relação à personagem A Mais Velha: seria a avó?
O texto é formado por uma longa sucessão de monólogos que se permeiam e o
tema da espera remete diretamente ao Esperando Godot, de Beckett, mas vai além.

8
LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les Solitaires Intempestifs,
2004. Pag. 19 (tradução nossa)
9
Op. Cit. Pag 147
5
“Lagarce, um autor influenciado por Beckett, amplia a tragédia beckettiana
porque, ao contrário de Godot, que não aparece para Estragon e Vladimir, ele faz com
que esta pessoa, este filho/irmão que vai dar sentido à vida delas, apareça. Só que ele
não faz nada. Chega, cai no meio da sala e não sabemos se está vivo ou morto” 10.

Trazendo essa análise para mais perto do nosso objeto – o trabalho do ator na
construção da personagem lagarceana - para as atrizes, apresentava-se o desafio de dar
voz aos longos monólogos entrecortados e fazer existir, pela palavra, pela ação da
palavra, cada figura, revelando-se e relacionando-se consigo mesma e entre si.
Carolina Fabri, atriz que fez A Filha mais velha na montagem da Cia Elevador,
conta que “lendo o texto, no começo, a gente lia o texto lendo mesmo, era uma leitura
dramática, encenada, e lendo o texto, sem colocar nada em cima, só lendo o texto, já me
trazia tantas afetações, as palavras mesmo, a maneira como elas estão encadeadas,
parecia que você quase não tinha que fazer nada, você só tinha que ler e falar aquilo que
estava escrito, claro, você tem que estar aberto a essas coisas, acho que esse é o maior
trabalho de todos” 11.
Nota-se o exercício de sensibilidade proposto pelo autor e captado pela atriz no
trato com o texto.
O desafio parece ser o de transformar a matéria bruta do texto em experiência
sensível, o que exige dos atores, das atrizes um posicionamento diferente daquele
baseado na construção de uma personagem e mais interessado na comunicação, na
partilha de um momento que seria o da escuta.
Em Lagarce, a busca pelo outro se apresenta como um dos principais temas e a
construção do texto com longas falas é a forma de dar espaço para que a figura se
esforce para se expressar, se colocar e, simultaneamente, abrir espaço para o esforço do
outro em compreender e fazer parte na relação.
Outro trabalho presente na Semana Lagarce, dirigido por François Berreur12 e
que depois teve uma montagem brasileira foi Music Hall. Escrito em 1988, apresenta
três figuras que vivem no universo artístico e expõem as aventuras e desventuras de
quem vive dessa escolha.
Aqui, as personagens são indicadas apenas pelo gênero - La Fille, Le Premier
Boy, Le Deuxième Boy – e na encenação de Berreur, três atores, homens, do Collectif
Artistas Unidos, de Portugal, dividem a cena como muitos anônimos que lutam para
viver da Arte.
Ao optar por um ator no papel da Moça, o diretor comunga com Lagarce o jogo
com a linguagem e suas estruturas e nos provoca um distanciamento cênico que, para
além dos distanciamentos dramatúrgicos, gera um espaço primordial para a elaboração
da alteridade.
A ironia e o bom humor também estão presentes nesse texto que traz na sua
estrutura um jogo metalinguístico, estruturado com longas falas e réplicas e que explora
e favorece a reflexão sobre o fazer teatral. De acordo com Luiz Paëtow, diretor da

10
LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Laga rce. In Revista Pitágoras 500,
vol. 1, Campinas, 2001, pag. 74
11
Carolina Fabri. Entrevista realizada em maio de 2014
12
François Berreur é ator e diretor da Cia de Teatro francesa Les Solitaires Intempestifs, além de
cofundador da editora especializada em publicações teatrais Les Solitaires Intempestifs. Ex-integrante da
Théâtre de la Roulotte (compagnia fundada por Jean-Luc Lagarce no final dos anos 70 e começo dos 80),
Berreur atuou nas peças Histoire d'amour (as duas versões), nas montagens da Cantatrice Chauve e outras
peças da companhia.
6
montagem brasileira do texto, “Lagarce deixa o âmbito familiar/amoroso e cria uma
obra que tem potência de manifesto” 13.
Por fim, mas não na ordem cronológica da programação da Semana Lagarce,
lançaremos um olhar sobre História de Amor (últimos capítulos), cujo texto e a
montagem realizada pelo Teatro da Vertigem dispararam e configuram os principais
objetos de nossa pesquisa.
Também a convite do Consulado Francês, o Vertigem foi o primeiro grupo
brasileiro a levar aos palcos esse texto lagarceano, com direção de Antonio Araújo e
Eliana Monteiro e um elenco formado por Roberto Áudio (O Primeiro Homem), Sergio
Siviero (O Segundo Homem) e Luciana Schwinden (A Mulher).
História de Amor (últimos capítulos) foi escrito em 1990, e teve sua estreia em
abril de 1991 no Espaço Planoise, em Besançon, com encenação do próprio autor. A
peça chegou a Paris em fevereiro de 1992, no Theatre de la Cité Internationale.
Trata-se da segunda versão desse texto, de caráter mais impreciso do que aquela
escrita em 1983 - História de amor (apontamentos). Os motivos pelos quais o autor
retorna a essa texto são desconhecidos, e essa imprecisão da segunda versão se
caracteriza pela maneira como Lagarce estabelece uma camada a mais de leitura sobre o
texto ao inserir de forma mais objetiva o ator, aquele que o lê como mostraremos a
seguir.
Uma possível sinopse para o texto seria: Um homem escreveu uma peça.
Naquele dia, chegaram outro homem e uma mulher. Os três leem juntos o texto. Talvez
representem a peça – são atores – ou apenas a descubram como se descobre o texto de
um amigo.
Logo na primeira fala dessa versão do texto, temos a figura do Primeiro Homem
que, de forma estranhada, mas já muito objetiva, propõe um jogo espaço-temporal que
vai se desenvolver como a espinha dorsal do texto contribuindo para o estabelecimento
de uma cena em suspenso, oscilante, num convite às avessas para a experiência da
presença dos corpos, em cena e na plateia, no aqui agora, reforçando a existência e a
necessidade do outro e do estar junto.
PROLOGO

O PRIMEIRO HOMEM
Prólogo.
O Primeiro Homem.
Uma noite, o Primeiro Homem fica sozinho, se esquecem dele, não sabem o que
ele faz, o que é feito dele.
Foi feito dele.
<< que idade é que ele tem? >>
O Primeiro Homem, uma noite...

13
Luiz Paëtow, diretor e ator, dirigiu a montagem de Music Hall com a Cia da Mentira em 2009 com
reestréia no 2º semestre de 2013. Entrevista realizada em julho de 2013.
7
É a historia de dois homens e uma mulher.

A MULHER
Ela, a Mulher (eu), ela, ela ri delicadamente.
Talvez – não a distinguimos muito bem – talvez chore também, um pouco, é
possível. [,,,]

Quando o Primeiro Homem repete a rubrica, ele acaba por se localizar dentro da
história e ao mesmo tempo desloca a atenção para aquilo que está escrito, para a
palavra, anunciando, talvez, que o que interessa neste texto é ele mesmo, o texto, e tudo
aquilo que ele é capaz de gerar no espaço e nas pessoas envolvidas nele e com ele.
Em seguida, na fala da Mulher, a atriz/personagem se apresenta, tenta se
localizar dentro do jogo de forma explicita, revelando também que há, sim, um espaço
entre elas (a atriz e a personagem) e que isso será preservado aqui como forma mesmo
de sobrevivência, de prática da escrita e da cena. Trata-se de uma personagem quase
sempre apresentada de forma nebulosa, vista quase sempre na penumbra, com ações
vacilantes e por vezes ambíguas.
Ao longo do texto há um refinamento dessas imprecisões que tende a estabelecer
um elo cada vez mais coeso entre quem fala e quem ouve, reforçando o lugar do público
enquanto testemunho daquilo que é dito e do que acontece em cena.
De acordo com Roberto Áudio, “História de Amor é um texto difícil, cheio de
sutilezas, variação de tempos, falas que se dirigem a um e, de repente, termina se
dirigindo para outro14”. Nota-se, assim, o desafio do texto de Lagarce: fazer do terreno
movediço da sua escrita uma pista de dança!
Podemos perceber outras características da sua escrita como o jogo verbal entre
presente, passado e futuro, às vezes na mesma frase, o uso recorrente de vírgulas como
um recurso de construção e desconstrução de ritmos, revelando alguém cuidadoso,
preocupado em encontrar a melhor palavra, a melhor frase ou expressão, que dê conta
de comunicar aquilo que realmente se quer, o que é verdadeiramente necessário,
importante.
Nesse sentido, a repetição – de palavras ou até de frases inteiras, aparece como
um elemento constituinte da escrita lagarceana e de acordo com Cícero Oliveira, “a
regularidade com que o autor a utiliza leva a crer que em seu teatro esse procedimento
adquire o status de um verdadeira modus operandi, tornando-se quase que um estilo do
autor” 15. Em sua dissertação, Cícero aprofunda essa discussão, dando muitos exemplos
do uso desse recurso e suas consequências na leitura e na fala dos textos de Lagarce.
Trabalhando assim, o autor elabora uma fala repleta de detalhes, propondo um
estimulante jogo tanto para os atores, na medida em que precisam dar conta das nuances
e sutilezas do texto, quanto para o público, que vai construindo e adentrando o universo
da peça, e a relação com cada personagem, na medida em que recebe cada peça desse
aprimorado quebra-cabeça.
Diante desse quadro, como pensar o trabalho do ator, enquanto primeiro espaço

14
Roberto Áudio, entrevista realizada em julho de 2013.
15
Op, Cit. Pag. 69
8
de criação e alteridade? Segundo Jean-Pierre Ryngaert, “o ator não pode mais tomar a
cargo esses personagens segundo os sistemas de representação vigentes, procurem eles a
identificação ou formas de distanciamento. Nós o dizemos ‘atravessado’ pela fala (...), o
imaginamos portador de uma energia alternada, muito presente e subitamente
fantasmática, engajado em seu discurso ou como que hibernado. Em todo caso, cabe-lhe
assumir essas figuras empalidecidas às quais um suplemento de carne e contornos
firmes dariam uma existência resoluta e falsa de ‘personagem em excesso’” 16.
Acreditamos que uma alternativa possível nesse panorama é um trabalho de ator
que abra espaço para o jogo sensível da linguagem proposto por um texto com
características específicas, como os de Jean-Luc Lagarce, que favorecem um caminho
de elaboração e revelação da ficção, e da própria alteridade.
A relevância dessa atitude, talvez seja a de nos alertar que o Teatro, enquanto
linguagem e ‘espelho da vida’, é construção, estrutura elaborada e, por isso, passível de
interpretações, reorganizações e mudanças. Uma atitude política.

16
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São
Paulo: Cosac Naify, 2012. Pág. 139
9
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves,


Petrópolis : Vozes, 1994.

JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e Invenção: os espaços de Michel de Certeau. São


Paulo : Escrituras Editora, 2005.

LAGARCE, Jean-Luc. Du luxe et d’impuissance et autres textes. Besançon. Les


Solitaires Intempestifs, 2004.
SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad.
André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

ARTIGO

LAZZARATTO, Marcelo: Memória e Imaginação em Jean-Luc Lagarce. Pitágoras


500, vol. 1, Campinas, 2001.

DISSERTAÇÃO

OLIVEIRA, Cícero Alberto de Andrade: Brechas na eternidade: tempo e repetição no


teatro de Jean-Luc Lagarce. Dissertação de Mestrado, São Paulo, 2011.

SITE
www.lagarce.net

10
TEMA: TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

PIETÁ EM PRETO&BRANCO
ESTUDO DE UMA IMAGEM HISTÓRICA NA REPRESENTAÇÃO DO TEATRO
DE SOMBRAS
Tuany Fagundes Rausch1
Fátima Costa de Lima2

O presente artigo analisa a relação da construção de imagens no teatro de sombras e o conceito de


“imagem dialética”, que o crítico alemão Walter Benjamin (1892-1940) entende como encontro
entre imagem, mito e história.

Antes de adentrarmos na análise do teatro de sombras, precisamos sublinhar que nossa percepção
sobre as sombras vem muito antes do conhecimento deste gênero teatral. Sobre isso, o psicólogo
suíço Jean Piaget realizou um estudo que

revelou que a maneira como as crianças percebem as sombras varia de acordo com
a idade. A partir de 5 anos, tendem a achar que são feitas do mesmo material que a
noite – a escuridão. Depois, entre os 6 e 8 anos, acreditam que sejam objetos
materiais. Só mais tarde, a partir dos 9 anos, é que elas percebem que as sombras
são fruto da relação entre objetos e a luz. Já é algo muito próximo do que
entendemos quando nos tornamos adultos: sombras são áreas escuras onde a luz
foi bloqueada. (GOMES, 2004).

As interpretações tanto literais quanto metafóricas variam de acordo com a cultura e o contexto
histórico de cada pessoa. Apesar desse tipo de estudo não ser abordado aqui, ressaltamos que nossa
visão será positiva ao abordar a utilização da sombra como meio expressivo de criação. Ao
contrário, comumente se remete, quando se fala de sombras, a algo desconhecido e obscuro.

A relação entre luz e sombra é elementar na construção de uma imagem no teatro de sombras. Ela
torna-se dialética no momento em que consideramos as etapas de sua construção como partes da
tríade dialética formada por positivo, negativo e negativo do negativo. Ao criarmos uma obra na
linguagem do teatro de sombras, primeiro definimos que imagem se quer construir (a ideia). Depois,
vemos como passaremos essa imagem para a tela (a ação), que obstáculos colocaremos entre luz e
tela, podendo ser estas silhuetas, corpo humano, objetos; e como ela se formaria nos olhos do
público. E, por último, o resultado, como se dá a imagem em si.

Assim, analogamente à tríade, essas três percepções de composição se dão como: positivo, a ideia;
negativo, a ação; e o negativo do negativo, a imagem.

Entretanto, nem todas as imagens são dialéticas mesmo no teatro de sombras, ainda que este tenha
tendência a criá-las por operar dialeticamente a construção de suas imagens. Apenas algumas,

1
Acadêmica do curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro - CEART - UDESC - bolsista PIBIC/CNPq.
2
Orientadora do Departamento de Artes - CEART – UDESC.
porém, conseguem configurar-se como síntese dialética de imagem, história e mito. Para Benjamin,
imagens dialéticas são figuras da dialética histórica e da natureza mítica:

profunda intuição sobre as relações entre dialética, mito e imagem. Pois não é como
algo sempre vivo e atual que a natureza se impõe na dialética. A dialética detém-
se na imagem e ela, no acontecimento histórico mais recente, o mito como passado
muito antigo, a natureza como história primeva. Por isso, as imagens, como as dos
intérieur, que conduzem a dialética e o mito a um ponto de indistinção, são
verdadeiramente ‘fósseis antediluvianos’. (BENJAMIN, 2007, p.503).

O sombrista3 utiliza elementos potencialmente oníricos: luz e sombra. Quando uma pessoa fecha
seus olhos, revela-se o escuro. Com o passar do tempo ele toma outras formas, coloridas, subjetivas,
além do visível a pálpebras abertas. Do ponto de vista benjaminiano, em que “A utilização dos
elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o pensador
e obrigatória para o historiador” (Benjamin, 2007, p. 506, [N 4, 4]), o espectador do teatro de
sombras assume, quanto à imagem a ele mostrada, o papel de historiador e intérprete do onírico:

Na imagem dialética, o ocorrido de uma determinada época é sempre,


simultaneamente, o “ocorrido desde sempre”. Como tal, porém, revela-se
somente a uma época bem determinada - a saber, aquela na qual a
humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente esta imagem
é onírica. É nesse instante que o historiador assume a tarefa da interpretação
dos sonhos. (BENJAMIN, 2007, p. 506)

Dentro do teatro de sombras, o sombrista seria o pensador e o espectador, o historiador. Seu objeto
de estudo em comum é a imagem dialética. Ou, ainda que não a imagem em si, sua construção
dialética, necessária para que qualquer imagem chegue aos olhos do espectador.

Como objeto de estudo e exemplo imagético a serem analisados a partir de tais conceitos, escolhi a
imagem que denominei Pietá de Chador4. A imagem aparece na série autobiográfica Persépolis, de
Marjane Satrapi. Na série, Satrapi conta sua história desde a infância até sua ida à França, onde mora
atualmente. A autora conta de maneira singular e sincera as mudanças que presenciou a partir de
1979, com o advento da Revolução Islâmica. A obra teve sua versão para o cinema em 2007, dirigida
por Satrapi e Vincent Paronnaud, que ganhou o Oscar de Melhor Animação naquele ano.

3
Conceito elaborado por Alexandre Fávero, num texto originariamente elaborado para a ABrIC - Associação Brasileira
de Iluminação cênica para encaminhamento ao Ministério do Trabalho e o SATED Nacional para possível aprovação
nas categorias profissionais de técnicos em iluminação. “São profissionais que pesquisam, criam, idealizam, projetam,
constroem, montam, atuam, operam e elaboram cenas dramáticas através da utilização das luzes e sombras projetadas.
Lidam com diferentes matérias-primas e tecnologias, exigindo conhecimentos e habilidades manuais para a criação de
objetos cênicos e na elaboração de soluções técnicas para o seu funcionamento na cena. [...] É uma função de alta
capacitação artística por estar relacionada com as mais diferentes áreas das artes, exigindo conhecimentos de artes
cênicas, gráficas, plásticas, cinematográficas, fotográficas, e conhecimentos técnicos nas áreas da elétrica, ótica,
cenografia, dentre outros aspectos de interesse artístico. [...]”.
4
Termo criado por Tuany Fagundes para diferenciar da obra Pietá, de Michelangelo, de 1499.
Para que se criasse uma república islâmica, a revolução, uma das poucas
manifestações incontestáveis da vontade popular contra um regime político, sofreu
algumas mudanças em sua trajetória. O novo governo estabelecido proporcionou o
regresso do Irã aos valores tradicionais do Islã. Costumes ocidentais difundidos na
cultura iraniana durante o regime do xá foram proibidos, entre eles a proibição às
mulheres do uso de maquiagem e de minissaias; música pop e rock; cinema; jogos
e jogatinas. Velhos códigos morais foram ressuscitados, como o açoite e castigos
corporais aos que praticassem adultério, aos que praticassem sexo fora do
casamento e aos que consumissem álcool.
Para garantir a Revolução Islâmica, muitos dos que a apoiaram foram executados,
entre eles os marxistas, os grupos maoístas e de esquerda, por defenderem o estado
laico, uma ameaça aos princípios teocráticos do islã. Também foram executados os
considerados doentes ou escórias da sociedade, como os homossexuais e as
prostitutas. (LEE-MEDDI, 2014)

A obra já teve várias análises, dentre elas, a de Valéria Pisauro, professora de Literatura e História
da Arte:

A primeira parte do filme apresenta um divisar da vida e da luta de três gerações


da família de Marjane: a história da ditadura; do petróleo; revolta e revolução.
Diálogos e imagens simples relembram a história amarga, ridicularizam os tiranos,
enquanto seduz o espectador a um contexto histórico-social e cultural de um país
que aderiu ao conservadorismo e repressão muito parecidos à Inquisição.
Sem intenções moralistas, Persépolis parte do particular para o universal, cruzando
ambas as narrativas e sendo simultaneamente íntimo como uma biografia e
abrangente no testemunho, à procura de uma identidade no contexto de uma vida
sob tirania. (PISAURO, 2014).

É importante salientar que não se pretende realizar uma visão dicotômica entre Ocidente e Oriente.
Mesmo que eu tenha nascido deste “lado” do mundo, pretendo observar diferentes pontos de vista,
inclusive o da participação de países ocidentais na implementação de regimes autoritários para que
lhes favorecessem economicamente.

A partir da Revolução Islâmica, o mundo árabe emergiu nos noticiários ocidentais


não só pelo poder do petróleo, como pela volta aos princípios islâmicos, numa
contraposição à influência corrosiva dos costumes ocidentais.
O modelo de implantação de uma república islâmica feita pelo Irã, serviu de
inspiração para o surgimento de vários movimentos de grupos islâmicos radicais.
A luta desses grupos gerou hostilidades entre o ocidente e o mundo árabe, que
tomou como expoente o conflito entre Israel e os palestinos. Das hostilidades
sofridas, as mais terríveis vieram em forma de terrorismo, sendo os Estados Unidos
o principal alvo, não só pelo seu apoio ao Estado de Israel, mas por sua política
maniqueísta, que teima em ver nos preceitos islâmicos e na sua concretização como
força política, uma ameaça à paz e à sua democracia arraigada, transformando em
inimigos todos que se lhe opõem, classificando-os como nação do bem ou do mal.
(LEE-MEDDI, 2014)

Sem resolução dos conflitos, a atualidade tem que lidar com os conflitos muitas vezes ignorados
pelos noticiários.
Quanto ao destino do regime estabelecido pela revolução de 1979, somente o povo
iraniano poderá responder até onde irá e até quando o legitimará. Quanto ao
ocidente, há de se aprender a conviver com as diferenças culturais, que se
sobrepõem ao poder econômico, seja ele emanado do petróleo ou da força das
armas. (Ibidem)

Após essa breve contextualização, voltemos à imagem. A Pietá de Chador aparece quando Marjane
já está na fase adulta. Ela fez parte de seu exame de admissão na faculdade de artes no Irã, como
conta Satrapi:

Para entrar na faculdade de artes, além dos testes de múltipla escolha havia uma
prova de desenho. Eu tinha certeza que um dos temas seria "Os mártires",
obviamente! Então treinei copiando umas 20 vezes uma foto da "Pietá" de
Michelangelo. Naquele dia eu a reproduzi, mas pus um chador negro na cabeça de
Maria, uma farda em Jesus, acrescentei duas tulipas, símbolo dos mártires*, de
cada lado, para evitar confusão. *dizem que as tulipas vermelhas crescem com o
sangue dos mártires. (SATRAPI, 2007).

Analisando a imagem em nosso contexto histórico ocidental atual, vemos a pertinência de uma
discussão estética dialética sobre ela, à qual facilmente caberia o fragmento a seguir, de Walter
Benjamin:

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz
sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num
lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética
na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente
temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma
progressão, e sim uma imagem, que salta. - Somente as imagens dialéticas são
imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a
linguagem. (BENJAMIN, 2007, p. 504).

Embora a imagem Pietá de Chador não seja originária de um processo de montagem em teatro de
sombras, possui os elementos formais para sua possível construção neste gênero: é em preto e
branco, em “sombra e luz”. Além disso, contém os elementos de conteúdo da imagem dialética:
dialético: imagem, mito e história.

A Pietá de Chador é uma alegoria aos mártires de guerra que envolve o mito de Maria no Islão com
a história da Revolução Islâmica e guerra Irã-Iraque.

Existe uma noção que resume todos os ensinamentos e todas as tradições que o
Islão possui acerca de Maria: é a da “Mulher Perfeita que corresponde em todos os
graus ao princípio passivo e substancial da Existência”. (...) Assim se encontra
ilustrada a afinidade que o Islão representa com a função mariana e o espírito de
servidão que é sua marca. (BORAU, p.136).

Como vemos, segundo os estudos de Borau, vê-se a figura de Maria ocupando um lugar
particularmente eminente no Islão.
A importância de Maria no Islão é realçada pelo facto de a sura do alcorão (Alcorão
19) relatar a Anunciação e a Natividade. Esta é a passagem principal: <<Maria
deixou sua família e retirou-se para um local que dava para o Leste. E colocou uma
cortina para ocultar-se dela (da família), e lhe enviámos o Nosso Espírito, que lhe
apareceu personificado, como um homem perfeito. Disse-lhe ela: Guardo-me de ti
no Clemente, se é que temes a Deus. Explicou-lhe: Sou tão-somente o mensageiro
do teu Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado. Disse-lhe: Como poderei
ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de sercasta? Disse-lhe:
Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para
os homens, e será uma prova de nossa misericórdia. E foi uma ordem inexorável>>
(Alcorão 19, 16-21) [...] <<Regressou ao seu povo levando-o (o filho) nos braços.
E disseram-lhes: Ó Maria, eis que fizeste algo extraordinário! Ó irmã de Aarão, teu
pai jamais foi um homem do mal, ou tua mãe uma (mulher) sem castidade! Então
ela disse-lhes que interrogassem o menino. Disseram: Como podemos falar a uma
criança que ainda está no berço? Ele disse-lhes: Sou o servo de Deus, o Qual
Meconcedeu o Livro e Me designou como profeta. Fes-Me abençoado, onde quer
que Eu esteja, e encomendou-Me a oração e (a paga do) zakat, enquanto Eu viver.
E fez-Me piedoso para com a minha mãe, não permitindo que Eu seja arrogante ou
rebelde. A paz está comigo desde o dia em que nasci; e estará comigo no dia em
que Eu morrer, bem como no dia em que Eu for ressucitado>>. (BOURAU, p. 135
e 136).

Maria é o único nome mencionado no Alcorão, tornando-a a mais venerada. Ela foi concebida para
ser um instrumento das vontades divinas, estando como principal exemplo de submissão e
obediência.

Historicamente, a Revolução Islâmica foi construída desde quando os árabes invadiram a Pérsia, em
642 e, derrotados, adotaram o Islã, mais precisamente o xiismo. Desde então, a região sofreu várias
mudanças de poder e, especificamente a ocorrida em 1979, teve suas origens décadas antes.

A Pérsia se via em meio à cobiça da Rússia e da Inglaterra. Ao longo do século


XIX, tornou-se um Estado-tampão entre as duas potências. Os russos anexaram o
Cáucaso e a Ásia Central, e os ingleses se apoderaram do Afeganistão e do Tibete.
A descoberta de petróleo e a Primeira Guerra Mundial aceleraram a investida dos
ingleses, que passaram a interferir cada vez mais na economia do país.
Em 1925, um oficial, Rezah Khan, tomou o poder, expulsando o último soberano
Qadjar. ele deu oficialmente ao país o nome de Irã e acelerou sua ocidentalização,
para grande ir dos religiosos, que começaram a sonhar com um poder islâmico.
Com a Segunda Guerra Mundial, o norte do país foi ocupado pelos soviéticos, e o
sul, pelos ingleses recém-chegados, os americanos, que obrigaram o Irã a declarar
guerra à Alemanha. Diante do pouco entusiasmo do xá, depuseram-no e o
substituíram pelo filho dele, Mohammad Rezah.
Em 1953, a CIA organizou seu primeiro golpe de Estado contra Mossadeq, o chefe
do governo, que contestava a divisão dos lucros provenientes da exploração de
petróleo feita pela Anglo-Iranian Oil Company. Os americanos submeteram o país
a um embargo, impedindo a exportação do produto. Então Mossadeq foi derrubado,
e Mohammad Rezah, que havia fugido, voltou ao trono. Ficou no poder até 1979,
quando fugiu da Revolução. (DAVID B. In SATRAPI)
A imagem contém uma concatenação dialética entre três elementos. Considerando a Pietá de
Chador como parte singular, temos a história como elemento particular - e ponto central da análise
estética dialética- em que a Revolução Islâmica interfere tanto do cotidiano de pessoas comuns,
quanto na economia mundial. O mito de Maria corresponderia à universalidade, sustentando tanto
uma crença teológica que tomou o poder político, levando a atitudes repressoras à população
cotidianamente. Dessa maneira, a Pietá de Chador não é só uma imagem estática ilustrativa de uma
revolução e consequente ditadura, mas sim uma contentora de elementos dialéticos que nos fazem
refletir sobre nossa própria colaboração nessa parte da história e quais as consequências que isso
nos traz no dia-a-dia. Até que pontos ajudamos a construir aquilo que tanto condenamos
midiaticamente? Até quando vamos ignorar a inexistência de uma realidade objetiva dicotômica?
Até que ponto a Pietá de Chador não é a Maria ocidental que veneramos?

Em minha pesquisa de iniciação científica e em meu trabalho de conclusão de curso, aprofundarei


essas questões em diálogo com os conceitos benjaminianos aqui citados.
Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. p.503 [N 2,
7], p.504, p.506 [N 4,4] [N4,1]

BORAU, J. L. Vásquez. As religiões do livro. Tradução de Lara Almeida Dias. Lisboa: Paulus,
2002. P.135 e p. 136.

GOMES, João Carlos. À Luz de Sombras. Disponível em: http://super.abril.com.br/ciencia/luz-


sombras-444547.shtml Acessado em 01 julho de 2014.

LEE-MEDDI, Jeocaz (postado por). Revolução Islâmica do Irã. In: Virtuália – O Manifesto
Digital. Disponível em: http://virtualiaomanifesto.blogspot.com.br/2009/02/revolucao-islamica-
do-ira.html Acessado em junho de 2014.

PISAURO, Valéria. Blog do Amstalden. Disponível em:


http://blogdoamstalden.com/2013/03/09/persepolis-por-valeria-pisauro/ Acessado em: julho de
2014.

SARTRAPI, Marjane. Persépolis. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p. s/n.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

TROCAS CULTURAIS E CRIAÇÃO CÊNICA NOS DISCURSOS DEARIANE


MNOUCHKINE E PETER BROOK

Autora: Vanessa Cristina Petrongari


(Projeto de Iniciação Científica1)
Orientador: Eduardo Okamoto
Departamento de Artes Cênicas; Instituto de Artes; Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP)

A cena teatral contemporânea tem abrangido inúmeros espetáculos de cunho


intercultural, mostrando-se, assim, um rico espaço onde ocorrem encontros e diálogos
de diferentes culturas. Segundo Patrice Pavis, as trocas culturais são importantes para o
teatro contemporâneo por colocarem em cena fenômenos que ultrapassam questões
socioeconômicas, exigindo, por isso, uma metalinguagem que, ao mesmo tempo, as
englobe e também as transcenda. No entanto, as trocas culturais são muito mais
complexas do que a união de várias culturas em um mesmo espaço cênico. Trata-se de
um campo amplo, rico em possibilidades e, ao mesmo tempo, de difícil formalização.

Há qualquer coisa de presunçoso, ou melhor, de ingenuidade no sentido de


querer propor uma teoria do interculturalismo na encenação contemporânea,
quando se sabe da complexidade de fatores em jogo em qualquer troca
cultural e a dificuldade de sua formalização. Qualquer tipologia das relações
culturais exige uma metalinguagem que esteja, de alguma forma, “para além”
delas e que, no entanto, as englobe todas: pode-se ver muito pouco onde o
teórico encontraria tal metalinguagem, tanto mais que ele mesmo estaria
empenhado numa língua e cultura das quais dificilmente poderia abstrair-se.
E, por outro lado, não existe uma teoria geral da cultura que integre
corretamente os fatores históricos, sociais e ideológicos sem que para isso os
reduza. As abordagens culturalistas têm tido o mérito de reabilitar fenômenos
que não se situam na infra-estrutura socioeconômica e que, portanto, não
podem ser descritas em termos puramente econômicos ou sociológicos. No
entanto, inversamente, elas têm, atualmente, por vezes a tendência de
dissolver todos os fatores socioeconômicos, políticos e ideológicos na
cultura, a apresentar o cultural como o social inscrito nos comportamentos
individuais, a pôr em evidência a influência do inconsciente individual nos
fenômenos culturais. (PAVIS, 2008, p. 177)

As relações entre processos de trocas culturais e teatro não constituem um


fenômeno recente, mas, a partir da segunda metade do século XX, o teatro se tem valido
de diferentes culturas de forma mais afirmativa e consciente (sobretudo algumas figuras
como Eugênio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine) colocando como objeto de
busca em suas pesquisas essa hibridização cultural. Assim, para estudar as relações de
trocas culturais no teatro contemporâneo, é importante entender o uso de quatro termos
centrais: “multiculturalismo”, “interculturalidade”, “transculturalidade” e
“intraculturalidade”. Para Pavis, as relações de trocas culturais seriam melhor definidas
pelo termo “interculturalismo”, não apresentando definição distinta para os conceitos de
“multiculturalismo” e “transculturalismo”.

1
Projeto desenvolvido com financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo.
O termo interculturalismo parece-nos adequado, melhor ainda que os de
multiculturalismo ou transculturalismo, para nos darmos conta da dialética de
trocas dos bons procedimentos entre as culturas. (PAVIS, 2008, p. 2)

Entretanto, Eduardo Okamoto, orientador deste estudo, em sua tese de doutorado


(2009, p. 59-71), especifica definições para cada termo (“multiculturalismo”,
“interculturalidade” e “transculturalidade”) e ainda traz um conceito utilizado por
Rustom Bharucha (1993) - “intraculturalidade”. Para Okamoto, ainda que os termos
estejam intimamente relacionados uns aos outros, podem apresentar diferentes
perspectivas de entendimento sobre o fenômeno de trocas culturais. O
“multiculturalismo”, como prática no teatro, é a reunião de artistas formados em
culturas diferentes, como são, por exemplo, os coletivos dirigidos por Ariane
Mnouchkine e Peter Brook, onde a experienciação das trocas entre esses indivíduos é o
principal objeto de estudo e matriz de criação. “Interculturalidade” é o próprio processo
de diálogo e trocas entre os indivíduos provenientes de diferentes culturas.
“Transculturalidade” é a busca, a partir do diálogo entre essas culturas, por uma
generalização, algo que seria intrínseco a todos os homens, independente de sua origem.
E “intraculturalidade”2 é a pesquisa das circunstâncias locais através de uma
investigação aprofundada da própria cultura em que se vive.
Os diretores Brook e Mnouchkine tornaram-se conhecidos, entre outras
realizações, por dirigir coletivos multiculturais na produção teatral europeia, tendo
grandes inspirações em manifestações culturais orientais, africanas e árabes. Valendo-se
de tradições, ritos e formas espetaculares de culturas não-europeias, esses diretores
montam espetáculos com atores de diversas nacionalidades, hibridizando tais tradições
para a construção de um discurso cênico multicultural, valorizando o que seria comum a
todas nacionalidades produtoras de teatro, “a língua do teatro”.

Je pense qu’il y a un élément qui nous unit, c’est l’amour du théâtre. Je suis
persuadée, au contraire, que la richesse des cultures est un atout. Les gens qui
ont rejoint le “Théâtre du Soleil” avaient une raison bien particulière de le
faire: ils voulaient explorer l’essence du théâtre. La nationalité, la langue
maternelle sont alors transcendées. Tous partagent une seule et même langue,
la langue du théâtre. (MNOUCHKINE, 2003.) 3

Este lugar comum de encontro de diferentes culturas é visto pelos diretores


como um campo rico onde tudo pode se produzir. Um terreno de encontros, conflitos e
diálogos que, se bem entendido e explorado, pode ser enriquecedor para a cena teatral.
Explorando os conflitos surgidos do diálogo entre seus atores, os quais trazem
diferentes vivências e experiências culturais, os diretores almejam transpor barreiras e
chegar a um campo que seria comum a todos: a linguagem teatral.

Notre travail, au Centre, consiste tout simplement à créer un lieu où un petit


groupe de personnes peut explorer pendant une longue période les
possibilités réelles qui sont données par ces traversées des barrières. Si le

2
Termo que não é utilizado por Brook nem Mnouchkine, mas este conceito é abordado de forma
tangencial em seus discursos.
3
Eu creio que há um elemento que nos une, é o amor ao teatro. Estou persuadida, ao contrário, que a
riqueza das culturas é um trunfo. As pessoas que vieram para o “Théâtre du Soleil” tinham uma razão
bem particular para tal: eles queriam explorar a essência do teatro. A nacionalidade, a língua materna são,
então, transcendidas. Todos dividem uma só e mesma língua, a língua do teatro. (Trad. minha)
mélange est mal pris, c’est une dilution, si c’est pris d’une autre manière,
c’est un enrichissement. (BROOK, 2007, p. 28 e 29) 4

Desta forma (como em diversas outras passagens estudadas ao longo da


pesquisa), Brook e Mnouchkine revelam partilhar de forma semelhante do entendimento
dos conceitos de “multiculturalismo”, “interculturalidade” e “transculturalidade”. O
“multiculturalismo” é apontado pelos diretores como um trunfo, um aspecto positivo
que enriquece o trabalho cênico. A convivência de atores provindos de diferentes
culturas abre espaço para a “interculturalidade”, que é o próprio processo de trocas
culturais entre o coletivo multicultural. A partir deste diálogo e do trabalho teatral, os
diretores almejam alcançar um território comum que estaria além das barreiras culturais
de cada um, um campo “transcultural”. Para eles, seria possível estabelecer uma
comunicação cênica que não fosse pautada nos signos de determinada língua ou cultura
e sim em códigos (verbais e não-verbais) inteligíveis a qualquer ser-humano. Assim,
Brook e Mnouchkine parecem buscar um teatro concernente a todo e qualquer
indivíduo, independentemente da cultura na qual nascera e crescera. Por isto a busca em
formas espetaculares não-europeias ocupam um lugar importante em seus trabalhos.
Entretanto, esta atitude de se inspirar em outras culturas, diversas daquelas em
que estão inseridos, a fim de se criarem novas cenas teatrais, tem sido alvo de críticas
por se assemelhar à atitude colonizadora da Europa em relação a países africanos,
asiáticos e americanos a partir do século XVI. Rustom Bharucha, diretor e crítico teatral
indiano, é um dos principais nomes que faz frente a essa proposta de teatro intercultural
europeu. Segundo ele, essas formas de apropriação ocidental limitam-se a reproduzir
apenas a aura cultural enxergada pelos diretores do que tentam compreender
verdadeiramente o que estaria por trás motivando tais manifestações.

I would argue, but through the very enterprise of the work itself : its
appropriation and reordering of non-western material within an orientalist
framework of thought and action, which has been specifically designed for
the international market. It was the British who first made us aware in India
of economic appropriation on a global scale. They took our raw materials
from us, transported them to factories in Manchester and Lancashire, where
they were transformed into commodities, which were then forcibly sold to us
in India. Brook deals in a different kind of appropriation : he does not merely
take our commodities and textiles and transform them into costumes and
propos. He has taken one of our most significant texts [The Mahabharata]
and descontextualized it from its history in order to ‘sell’ it audiences in the
West. (BHARUCHA, 1993, p. 68) 5

4
Nosso trabalho, no Centro, consiste simplesmente em criar um lugar onde um pequeno grupo de pessoas
pode explorar durante um longo período as possibilidades reais que são dadas por essa travessia de
barreiras. Se a mistura é mal apreendida, é uma diluição, se é apreendida de uma outra maneira, é um
enriquecimento. (Trad. minha)
5
Eu argumentaria, mas através da empresa do próprio trabalho: a sua apropriação e reordenação de
material não-ocidental num quadro orientalista de pensamento e ação, que foi projetado especificamente
para o mercado internacional. Foi o britânico que primeiro fez-nos conscientes na Índia da apropriação
econômica em escala global. Eles tomaram nossas matérias-primas de nós, transportaram-nas para
fábricas em Manchester e Lancashire, onde foram transformadas em commodities, que foram, então,
forçosamente vendidas a nós na Índia. Brook trata de um tipo diferente de apropriação: ele não se limita a
levar nossos produtos e tecidos e transformá-los em trajes e costumes. Ele tomou um de nossos textos
mais significativos [O Mahabharata] e descontextualizou-o a partir de sua história, a fim de "vendê-lo" a
um público no Ocidente. (Trad. minha)
Desta forma, a criação artística baseada em trocas culturais atinge escalas mais
complexas e delicadas. A busca por diferentes formas espetaculares não-europeias é
vista como inspiradora e enriquecedora por parte dos diretores europeus, mas também
traz consigo semelhanças a atitudes exploradoras, como apontado por Bharucha.
Exploradoras no sentido de utilizar uma matéria-prima, transformá-la em um produto
comerciável (a obra de arte) e revende-la.
Longe de apontar uma teorização ou resposta, os estudos sobre trocas culturais
no teatro problematizam os atritos gerados no encontro de diferentes culturas para a
produção cênica. Como apontado por Pavis, seria presunçoso apontar uma formalização
para estas relações, devido a complexidade que pressupõem. Entretanto, sua
problematização e discussão fazem-se necessárias devido à crescente importância que o
multiculturalismo e a interculturalidade assumem na cena contemporânea. São inegáveis
as qualidades dos trabalhos de Brook e Mnouchkine, no entanto, são pertinentes as
críticas sobre o modo de enxergar uma cultura distinta e utilizar-se dela. Até que ponto
utilizar-se de determinadas fontes pode ser considerado “inspiração” e a partir de que
ponto torna-se uma atitude antiética?

Bibliografia

BHARUCHA, Rustom. Theatre and the world: performance and the politics of culture.
London: Routledge, 1993.
__________________. The Politics of Cultural Practice. Thinking Through Theatre in
an Age of Globalization. Oxford University Press, India, 2011.

BROOK, Peter. Avec Grotowski. Éditions Actes Sud, France : 2009.


_____________ Avec Shakespeare. Éditions Actes Sud, France : 1998.
______________Climat de confiance. L’instant même. Quebec, 2007.
______________Entre deux silences. Éditions Actes Sud, France : 2006.
______________Le diable c’est l’ennui. Propos sur le théâtre. Éditions Actes Sud,
France : 1989.
______________Oublier les temps. Éditions du Seuil collection Fiction & Cie, France :
2002.
______________Points de suspension. Éditions du Seuil collection Fiction & Cie,
collection Points Essai. France : 1992.
______________The empty space. Simon & Achuster. New York, 1995.
______________The open door. Achor Books, 2005.
______________The shifting point. Forty years of theatrical exploration 1946 – 1986.
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______________There are no secrets. Thoughts on acting and theatre. Methuen Drama.
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______________Threads of time. Methuen Publising, 1999.

MNOUCHKINE, Ariane. L’art du présent. Entretiens avec Fabienne Pascaud. Plon,


France : 2005.
_____________________Entretien avec Ariane Mnouchkine. Entretien avec Silke
Greulich, ARTE-TV Magazine, le 13 janvier 2003. Disponível em :
http://www.arte.tv/fr/entretien-avec-ariane-mnouchkine/362192,CmC=362282.html
_____________________De l’apprentissage à l’apprentissage, Alternatives Théâtrales,
n°70-71 ("Les penseurs de l’enseignement, de Grotowski à Gabily"), décembre
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_____________________On n’invente plus de théories du jeu : Entretien avec Ariane
Mnouchkine. Jeu : Revue de théâtre, n. 52, 1989, p. 7 – 14. Disponível em :
http://id.erudit.org/iderudit/26676ac

OKAMOTO, Eduardo. Eldorado : dramaturgia de ator na intracultura. – Campinas,


SP: [s.n.] 2009. Tese de doutorado.

PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADE

Cinema e Teatralidade: Deslocamento mítico e ressignificação espaço-


temporal na minissérie A Pedra do Reino

Yuri de Andrade Magalhães


Jerônimo Vieira de Lima Silva
Francisco Wellington Rodrigues Lima

No ano de 2007, a Rede Globo de Televisão exibiu a seus telespectadores, em


comemoração aos 80 anos de idade do escritor Ariano Suassuna, a minissérie intitulada A
Pedra do Reino, sob a direção de Luiz Fernando Carvalho, inspirada na obra do autor
intituladaRomance d’ A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Ao ler a obra
e assistir a minissérie, podemos perceber que tanto o autor quanto o diretor optaram por uma
abordagem aparentemente não linear que siga “adequadamente” as unidades aristotélicas de
tempo, espaço e lugar.

Ariano Suassuna em sua obra opta por uma estrutura in media res, ou seja, os
acontecimentos são evocados em forma de flashback. Podemos encontrar a estrutura in media
res na Ilíada, de Homero, onde o autor grego inicia a narrativa já no final dos acontecimentos,
utilizando o recurso in media res, a fim de explicar tudo o que ocorrera anteriormente, até
chegar no ponto de onde se iniciou a epopeia. Do mesmo modo, ocorre na tragédia de Édipo
Rei, de Sófocles, em que todo o passado virá à tona após as investigações em torno do
assassinato do rei Laio. Em A Pedra do Reino, o protagonista, Pedro Dinis Quaderna, situa o
leitor acerca dos acontecimentos que o levaram a situação em que se encontra - preso em uma
cadeia. Os recursos perpetrados por Carvalho retomam a estrutura in media res, em que o
protagonista vê os acontecimentos do passado, fruto da sua própria imaginação. De um lado
os fatos do passado, e do outro o Pedro Dinis Quaderna que a tudo observa no presente,
estabelecendo assim a linha divisória entre os tempos estabelecidos. Tanto a leitura da obra
quanto à apreciação da minissérie exige um leitor / espectador “avisado”, o trabalho de Ariano
Suassuna e Luiz Fernando Carvalho parece não se destinar a um público que possua poucas
referências no que concerne à cultura sertaneja, popular, que dialoga diretamente com a
cultura européia medieval e possui ecos notáveis da cultura clássica da Antiguidade.

Conforme aponta Rodrigues (2010), buscando aprofundar-se no melhor da tradição


popular nordestina e na estrutura de um texto popular/erudito que possui formas estéticas
variadas, pertencentes ao mesmo tempo ao litoral e ao sertão – as quais são ligadas às nossas
origens ibéricas -, em 1958, Suassuna começou a escrever o Romance d’A Pedra do Reino e o
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, sendo este adaptado, anos depois para o cinema. Assim, o
autor paraibano conseguiu enriquecer sua obra de uma matéria-prima sublime – crença
popular, superstições, religiosidade e moralidade popular-, unindo o espontâneo ao elaborado;
o popular ao erudito; a linguagem comum ao estilo do verso; o regional ao universal.
Ressaltamos também o encontro e a influência do autor com outras formas populares de

1
cultura como os espetáculos de mamulengo, o Bumba-meu-boi e o circo, além, claro, do
cinematográfico. (Rodrigues 2010).

Sendo assim, em sua produção literária, é possível perceber, como relata Rodrigues
(2010), modelos formais dramáticos da alta literatura ocidental como também influência do
teatro religioso medieval, sobretudo ibérico, na qual se acrescentam traços elementares do
barroco, associando-se com formas estéticas da dramaturgia profana vigentes na época de
transição do período medieval para o renascimento, como a Comédia dell’Arte e de outras
estéticas que muito contribuíram para a essência Literária de Suassuna, sendo por este motivo,
uma obra de denso valor estético e cultural; de difícil entendimento.

Luiz Fernando Carvalho em sua minissérie apela para uma “suspensão da descrença” no
espectador brasileiro que já se acomodou a uma estrutura narrativa na televisão onde tudo
deve se esclarecer de maneira “plausível” e tudo deve supostamente chegar a algum lugar, ou
algum resultado. O diretor coloca em evidência o seu potencial criativo, demarcando o lugar
do diretor como também um “re-criador” da obra literária, muitas vezes acrescentando
aspectos que o autor possivelmente não havia pensado. Sob o seu olhar criativo, Carvalho
situa a vila de Taperoá em uma cidade cenográfica que possui uma perspectiva quadrangular,
o espaço representativo de Taperoá se encontra cercado entre quatro paredes de casas, e dois
imensos portões se abrem e se fecham para a entrada de personagens.

O tempo da memória e o tempo presente se entrecortam tanto na obra quanto na


minissérie, essa aparente ausência de definição entre o que é passado e presente, entre o que
aconteceu antes ou depois, torna-se ainda mais evidente quando Carvalho coloca Pedro Dinis
Quaderna ora participando ativamente das suas lembranças (como geralmente ocorre quando
nos lembramos de algo) ora presenciando fatos da sua lembrança em terceira pessoa,
assistindo aos acontecimentos como se houvesse sido transportado para o tempo da memória.

Logo no inicio da minissérie podemos ressaltar um aspecto da teatralidade da obra, ou


melhor, da metateatralidade; o teatro dentro do próprio teatro. A minissérie inicia com todos
os personagens dançando em uma grande roda de ciranda, onde Pedro Dinis Quaderna se
encontra dançando ao centro, notavelmente envelhecido, corcunda, com maquiagens pesadas,
e um figurino que nos remete simultaneamente a Miguel de Cervantes e a seu personagem
mais célebre, Dom Quixote. Essa semelhança entre Pedro Dinis Quaderna e Dom Quixote, em
determinados trechos da minissérie, parece bastante pertinente, uma vez que Quaderna é um
personagem notoriamente “quixotesco”. Assim como Dom Quixote, grande parte da obra de
Suassuna e da minissérie de Carvalho é preenchida com os devaneios que oscila entre a
loucura e a lucidez de Quaderna.

De acordo com informações contidas na obra Almanaque Armorial, organizada pelo


pesquisador Carlos Newton Júnior (2008), Ariano Suassuna teve influências de nomes
conceituados da história do teatro clássico e da literatura mundial como Boccaccio, Cervantes,
Stendhal, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoievski, Calderón de La Barca, Gil Vicente, Lope de
Vega, Molière, Shakespeare, Federico Garcia Lorca etc, além de influências que melhor
representaram o Romanceiro Popular Nordestino entre as quais podemos citar José Laurenio
de Melo, Leandro Gomes de Barros, Leonardo Mota, Francisco Brennand, Maritain e
Bérgson, Chico da Silva; e influências de teóricos, pesquisadores e literários que escreveram a

2
história da cultura e da literatura brasileira como Gilberto Freyre, Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego. Dessa forma, ressalta-se aqui, como
dissemos antes, a influência do “quixotesco” na obra do autor, dentre outras.

Podemos observar que a roda de ciranda com todos os personagens é um aspecto


potencialmente metateatral, pois na ocasião o diretor parece querer mostrar ao espectador que
tudo aquilo é “apenas teatro”, buscando fazer com que o espectador entenda que estamos
todos em uma “comunhão”, como geralmente se busca no teatro; uma comunhão entre ator e
espectador, apelando, todavia, para a “suspensão da descrença”, conforme mencionamos
anteriormente neste artigo.

Assim como as tragédias e as epopéias clássicas, a obra de Ariano Suassuna é permeada


por momentos líricos, épicos e dramáticos. Suassuna introduz em sua obra um elemento que
foi de fundamental importância para a preservação e sobrevivência das epopéias de Homero;
o rapsodo. O rapsodo na Grécia é um grande responsável pela tradição oral que manteve viva
por várias gerações os cantos da Ilíada e da Odisseia. Os rapsodos eram poetas cantadores
que cantavam trechos das epopéias em locais públicos, em festejos religiosos, e até mesmo
em frente às residências dos gregos. Desta forma, o rapsodo se insere como um elemento
lírico e épico na cultura clássica.

Possivelmente, imbuído dessa influência do rapsodo, Ariano Suassuna, seguido por Luiz
Fernando Carvalho, desenvolve uma apresentação inicial de Pedro Dinis Quaderna, conforme
podemos observar:

Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1º


de Julho de 1935, pela estrada que nos liga à Vila de
Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma
cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas
mais poderosas do lugar, incluindo entre estas o modesto
Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão
que lhes fala neste momento. (SUASSUNA, 2007, p.35)

Na minissérie A Pedra do Reino, podemos observar que o diretor optou por fazer um
deslocamento temporal no que concerne ao cenário. Na minissérie, no momento em Pedro
Dinis Quaderna se dirige ao público explicando-os sobre a trama que está por vir, ele
pronuncia tais palavras de cima de um “carro-palco”, carro esse completamente feito de
madeira e que possui uma estrutura que segue o formato de uma casa capaz de girar 360 graus
sob o próprio eixo, na Inglaterra medieval essa estrutura era conhecida como peageant cart.

Ao utilizar o “carro-palco”, Luiz Fernando Carvalho nos transporta diretamente para o


teatro religioso existente no decorrer da Idade Média, o carro-palco foi um elemento
frequentemente presente nos autos sacramentais portugueses e espanhóis e nos mistérios da
Inglaterra e França, bem como nas farsas e soties que ocorriam, com maior freqüência, nos
intervalos dos mistérios. Deste modo nós podemos entender o carro-palco de Quaderna como
um elemento de ressignificação espaço-temporal.

A apropriação oriunda de culturas estrangeiras de outras épocas, feita por Luiz Fernando
Carvalho, pode se relacionar diretamente com o teatro contemporâneo no que concerne a ideia

3
de apropriação como matriz estética, o que comumente entendemos por “adapatação”. Beigui
(2006) esclarece-nos que o que está em jogo na contextualização e no conceito de
“Apropriação” é sempre a experiência de leitura, a adesão aos elementos que constitui não
apenas a trama presente no texto literário, mas todo o universo de referência dos escritores em
jogo. Neste sentido, o hibridismo contido no romance de Ariano Suassuna, proporcionado por
suas múltiplas referências de ordem literária dialoga diretamente com o hibridismo das
referências teatrais que Luiz Fernando Carvalho possui.

No que concerne ao “deslocamento mítico” na Pedra do Reino de Luiz Fernando


Carvalho, podemos deduzir a principio que a própria estrutura da cidade cenográfica de
Taperoá é uma possível menção à cidade de Tróia, famosa por suas imponentes e
intransponíveis muralhas. Na homérica Tróia existem dois imensos portões que é por onde se
dá a entrada e a saída principal da cidade, esses mesmos portões assumem função de entrada
da vila de Taperoá.

O deslocamento mítico também permeia as páginas do romance de Ariano Suassuna bem


como as cenas da minissérie de Luiz Fernando Carvalho. A começar pela enigmática morte do
influente ancião Pedro Sebastião Garcia-Barretto, tio e padrinho do protagonista Pedro Dinis
Quaderna. Pedro Sebastião Garcia-Barretto é sempre descrito como um rei generoso e
bondoso, Quaderna sempre faz questão de enfatizar as qualidades de seu padrinho e o desejo
de algum dia vingar seu assassinato.

Podemos deduzir que Ariano Suassuna se inspirou no rei Príamo, de Tróia, para compor
seu personagem. Sabemos que Príamo é considerado um modelo de rei bondoso e generoso.
A influência mítica na Pedra do Reino também se estende à tragédia grega, a exemplo da
vingança da morte do pai na trilogia de Ésquilo, Oréstia, e a temática da disputa pelo trono
entre os dois irmãos filhos de Édipo em Os Sete Contra Tebas do mesmo tragediógrafo. Em
entrevista realizada em sua residência na cidade de Recife/PE em Agosto de 2013, Ariano
Suassuna admite:
Tem um parentesco muito... inclusive, a Orestíadaé um livro que
me toca muito, e Ésquilo é um dramaturgo que me toca muito,
Ésquilo e Sófocles, mas Ésquilo sobretudo por causa de Orestes
por causa daquilo que lhe disse... Então você tem Orestes... e você
em Hamlet e Horácio, filhos como Orestes de um rei assassinado.
Não é? E você tem Ariano Suassuna (Risos), filho de um rei
assassinado. (MAGALHAES, 2013, p.128)

Além da influência da Orestíada de Ésquilo, o autor também admite na mesma


entrevista que a disputa entre Arésio e Sinésio pela herança de Pedro Sebastião Garcia-
Barretto é uma herança literária da disputa de Etéocles e Polinices pelo trono de Tebas em Os
Sete Contra Tebas. Podemos observar que o diretor Luiz Fernando Carvalho coloca notória
ênfase na disputa entre os dois irmãos. Um elemento repleto de possíveis significações é o
figurino utilizado em cena pelos personagens Arésio e Sinésio, o diretor optou por vestir os
personagens com uma indumentária atípica da realidade sertaneja. Sinésio veste uma
armadura prateada e Arésio, frequentemente nu da cintura para cima, utiliza uma capa
vermelha, remetendo-nos talvez a um espartano. Podemos entender nessa indumentária uma
possível menção aos beligerantes heróis das epopéias.

4
Outro fato existente na minissérie, porém não na obra de Suassuna, é o momento em
que Pedro Sebastião Garcia-Barretto pede que Pedro Dinis Quaderna acompanhe seu filho
caçula, Sinésio, à Natal, onde supostamente Sinésio ficaria protegido dos rivais políticos de
seu velho pai, na casa de Swendson. Podemos também deduzir que essa atitude de Pedro
Sebastião Garcia-Barretto em esconder o filho em outra cidade está ancorada na postura
tomada pelo rei de Tróia, Príamo, ao enviar seu filho mais novo, Polidoro, para a Trácia, onde
lá estaria oculto dos inimigos de Tróia, os gregos, protegido pelo rei Polimestor. O rei da
Trácia, contudo, ao saber da queda de Tróia, mata Polidoro, e na tragédia de Eurípedes
intitulada Hécuba, Polimestor é alvo da vingança de Hécubapela morte de seu filho caçula.

Nas últimas partes da minissérie e da obra, Pedro Dinis Quaderna está enfrentando um
inquérito. Lembremos que o romance começa com a narração de Quaderna feita a partir de
sua cela na cadeia, todo o romance se constrói no objetivo de esclarecer ao leitor como o
protagonista chegou àquela situação. Duas situações sustentam o eixo narrativo do romance
de Suassuna; a morte de Pedro Sebastião Garcia-Barretto e achegada de Sinésio à vila de
Taperoá após cinco anos de desaparecimento, o que ocasiona a disputa política entre os dois
irmãos Arésio e Sinésio.

Conforme já falamos anteriormente o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto


está, segundo admite o próprio autor, ancorada (além dos fatos pessoais do próprio autor) na
tradição mítica da Antiguidade, no assassinato de Agamênon por Clitemnestra e Egisto na
trilogia Orestíada de Ésquilo e a temática da rivalidade entre os dois irmãos está ancorada na
rivalidade entre Etéocles e Polinices em Os Sete Contra Tebas, também de Ésquilo. Contudo,
o desaparecimento e o exílio de Sinésio, também presente em muitos heróis trágicos da
Antiguidade como Édipo e Orestes, é uma influência direta do mito de Dom Sebastião, rei de
Portugal, que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir contra os mouros na África.

Podemos observar que na obra de Ariano Suassuna, Sinésio é descrito por Quaderna
como o grande esperado pela população de Taperoá, que crê que será libertada da miséria e da
opressão quando Sinésio a ela retornar. Esse caráter messiânico de Sinésio, diretamente
inspirado em Dom Sebastião, é potencializado por Luiz Fernando Carvalho que, designou
para o papel um ator que possui feições semelhantes às que as pessoas genericamente
atribuem a Jesus Cristo, cabelos compridos e olhos claros. Em dissertação escrita sobre o
Romance d’A Pedra do Reino, podemos observar:

Pelas razões políticas mencionadas anteriormente, o rei D. Sebastião


era esperado pelo povo português antes mesmo de seu nascimento,
passando a ser também conhecido como “O Desejado”. No Romance
d’A Pedra do Reino, a espera pelo retorno de Sinésio faz com que este
seja chamado, por Pedro Dinis Quaderna, como “O Alumioso”.
Versões conflituosas também servem para reforçar o aspecto mítico
tanto em D. Sebastião quanto em Sinésio. Em relação ao
desaparecimento de D. Sebastião dizia-se que ele havia sido morto, e
seu corpo recolhido pelos árabes, outras versões apontam que ele
simplesmente não foi encontrado após a batalha de Alcácer-Quibir.
No romance de Ariano Suassuna há pessoas que crêem que Sinésio foi
seqüestrado, outros crêem que ele fugiu, e há também a versão do

5
irmão mais velho (Arésio) que diz ter visto o cadáver de Sinésio.
(MAGALHÃES, 2013, p. 96)

A postura altiva e silenciosa de Sinésio montado em seu cavalo branco utilizando uma
armadura, como mencionado anteriormente, também nos remete à duas figuras lendárias que
habitam o imaginário do povo cristão; São Jorge o Apóstolo Santiago. Luiz Fernando
Carvalho coloca grande ênfase na temática do “retorno do Rapaz-do-Cavalo-Branco”,
lembremo-nos que o apóstolo Santiago é também conhecido como Rapaz-do-Cavalo-Branco
e, segundo relatos, foi visto combatendo os mouros junto aos espanhóis, passando a ser
conhecido como Matamoros. Na obra de Ariano Suassuna, bem como na minissérie, Sinésio é
visto como um personagem mítico e também descrito como “Rapaz-do-Cavalo-Branco”.

Nas cenas referentes ao inquérito na minissérie, podemos observar que é onde há,
possivelmente, maior trabalho de ressignificação do espaço de representação e maior
metateatralidade. Enquanto na obra de Ariano Suassuna podemos observar uma narração feita
a um juiz-corregedor, Luiz Fernando Carvalho traz para a cena, além do depoimento de
Quaderna, personagens que surgem naquele recinto, à medida que Quaderna os evoca. Vale
ressaltar que, ao se apropriar da linguagem cinematográfica, e mais especificamente no
formato televisivo, Luiz Fernando Carvalho possibilita desdobramentos na narrativa do
protagonista, já que a linguagem fílmica permite tais recursos, fato este não explorado por
Suassuna na linguagem literária. Deste modo, ao mesmo tempo em que os personagens
pareciam estar literalmente ali, sendo vistos tanto por Quaderna quanto pelo corregedor, cabe
ao espectador compreender que aqueles personagens não se encontravam ali, todos eles
compunham a imaginação de Quaderna, e todos se “materializavam” ali sentados assistindo
ao seu inquérito como se todos estivessem diante de um monólogo. Denotando mais uma vez
seu teor puramente metateatral.

O passado e o presente se encontram ali na cena do inquérito. Tanto para o leitor da


obra quanto para o espectador da minissérie, Ariano Suassuna parece não ter o compromisso
com as unidades aristotélicas, contudo o autor respeita a unidade de tempo, conforme
podemos observar na entrevista contida na dissertação de Yuri de Andrade Magalhães sobre o
romance onde lhe é perguntado se a ausência deuma linearidade na obra é uma contraposição
intencional à unidade aristotélica, o autor responde: “Não, olhe, eu sou um admirador das
unidades aristotélicas... Não sei se você se lembra, mas a Pedra do Reino, em si, ela dura um
dia”. (MAGALHAES, 2013, p.128)

A guisa de conclusão, podemos entender que Luiz Fernando Carvalho se utilizou das
inúmeras ferramentas que o teatro pode fornecer para recriar o espaço de representação do
romance de Ariano Suassuna. O diretor utiliza-se com maestria do elementos inerentes ao
teatro simbólico como a alegoria, a metonímia e a metáfora. Como exemplo de alegoria
podemos observar a utilização de uma mulher nua, com seu corpo pintado em tons vermelhos
e negros, como representação da morte; a mulher caetana. Na minissérie na cena em que
ocorre o assassinato de Pedro Sebastião Garcia-Barretto o diretor coloca também mulheres de
aspecto luxurioso, com seus corpos pintados de vermelho, utilizando asas metálicas nas costas
como representações alegóricas da morte que se aproximava do ancião. A representação da
Pedra do Reino situada no sertão de Pernambuco se dá de maneira metafórica e metateatral;
em vez de o ator que interpreta Pedro Dinis Quaderna, Irandhir Santos, se deslocar
literalmente ao sertão de Pernambuco para estar de frente com a Pedra do Reino, são

6
estendidas duas grandes lonas com a representações pictórica das duas pedras. E como
exemplo de uma representação metonímica; podemos utilizar o carro-palco que se constitui
como um índice que é sempre utilizado para transições de tempo e espaço no decorrer da
minissérie. Desse modo, podemos concluir que Luiz Fernando Carvalho através de sua
minissérie mostra ao espectador que o teatro é um espaço poroso para a inventividade, o
diretor mostra que o Teatro pode se reinventar em diversos aspectos que tecnologia do
Cinema pode talvez não acompanhar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEIGUI, Alex. Dramaturgia por Outras Vias: A Apropriação Como Matriz Estética do
Teatro Contemporâneo – Do Texto Literário à Encenação. São Paulo/SP: Universidade de
São Paulo, 2006. (Tese de Doutorado)
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RODRIGUES, Wellington. A Representação do Diabo no Teatro Vicentino e seus Aspectos
Residuais no Teatro Quinhentista do Padre José de Anchieta e no Contemporâneo de Ariano
Suassuna. Fortaleza/CE: UFC, 2010 (Dissertação de Mestrado)
SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta.
9ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
________________. Almanaque Armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton
Júnior. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
MAGALHAES, Yuri de Andrade. A Travessia do Trágico no Romance d’A Pedra do Reino
de Ariano Suassuna. Natal/RN: UFRN, 2013. (Dissertação de Mestrado)

7
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES

ESTRATÉGIA COMO CAMPO POTENCIA PARA O JOGO E MIGRAÇÃO DE


AFETO NO ESPAÇO DA CIDADE

Autores:
Zilá Muniz; Orientador: prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e PPGT,
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Mayana Machado Marengo
Milene Lopes Duenha (Bolsa CAPES); Orientadora: Prof. Drª Sandra Meyer Nunes;
Instituição: PPGT, UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Nastaja Brehsan; Orientador: Prof. Dr. André Carreira; Instituição: Ronda Grupo e
PPGT, UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Cláudia Simone Oliveira do Nascimento (bolsa CAPES); Orientador Stephan Arnulff
Baumgärtel; Instituição: PPGT,UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina.

Este artigo faz uma reflexão a partir do conceito de campo potência como
possibilidades de emergência co-compositivas do coletivo Estratégia no espaço da
cidade e o jogo como principio de agenciamento disparador das ações executadas em
tempo real. Análise de aspectos da improvisação na relação entre indivíduo e coletivo,
entre performer e espectador como fenômeno de articulação da criação do evento. O
campo de experiência viva como nó de relações e como ecologia que ativamente
compõe-se também na migração de afeto e que dá ao evento intensidade duracional.
Estratégia articula a partir do movimento relacional e cria conexões e estabelece
relações a partir da improvisação como técnica de co-composição do evento emergente.
Pensar sobre os modos de percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo
de ação para que se desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo. O jogo
como ativador do movimento relacional para habilitar restrições na improvisação.

Palavras-chave: Improvisação em dança, Afeto, Composição,

Estratégia! Esse é o grito que iniciou, e que finda nosso encontro a cada novo
espaço. Somos vários a articular no tempo-espaço, no aqui agora, possibilidades de
emergência do evento, o que pode depender de nós, mas não somente de nós, pois é o
espaço que tece junto a dramaturgia. Dançamos no espaço da cidade a olhar a dança que
a rua nos dá. Captamos fluxos, ações, cheiros e olhares. Renunciamos desejos,
propomos quando enxergamos o caminho, e nos transformamos no desejo comum,
quando o encontro torna-se potente.
Estratégia é como um campo potência em que se não há campo não há jogo e as
restrições que habilitam a improvisação perdem força. O campo é o que é comum para o
potencial de improvisação, é o que atualiza o jogo, também são versões deste que
coexistem com o atual e subsequentes evoluções do mesmo. Ou seja, não pode ser
considerado como forma mesmo que se desdobre em estados de forma embrião. Neste
sentido Estratégia como campo potência é analisado como um campo que forma
entidades de diferentes topologias e de diversas ordens causais a partir dos indivíduos e
do espaço que se origina e da forma que retorna. Para Massumi (2002, p. 34) esse
estado germinal não deve ser considerado uma estrutura implícita ou uma forma, mas
deve ser entendida como um feixe de potenciais. Para cada momento de atualização da
improvisação existe a possibilidade emergente de surgir uma forma ou uma estrutura,
porém esta se dissolve e se desloca em relação ao próximo momento e agrega nesse
processo elementos com os quais está em tensão. Por isso a imprevisibilidade e a
necessidade de escuta e do estado de prontidão e disponibilidade que rigorosamente é
fundamental para que Estratégia aconteça como um evento coreográfico.
Erin Manning (2013) pensa sobre o conceito de coreografia não como um
princípio de organização de corpos pré-constituídos, mas sim como uma técnica para
acionar e desencadear a modelagem expressiva de uma atividade incipiente em direção
à definição de um evento de movimento. “Coreografia é um verbo – a atividade de
organizar relações entre corpos” (Klien, Valk and Gormley apud Manning, 2013, p. 76).
O que sugere que a coreografia trabalha as relações entre corpos e que não se defina
como uma prática feita pelo homem para o homem, e sim que é uma prática que se
fundamenta em como o evento por si próprio se conecta com um “milieu relacional que
excede o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo”
(Manning, 2013, p. 76). A maneira como um evento coreográfico se constrói parte das
relações que surgem entre todos os elementos que o constituem, é, portanto no “entre”
que num campo de forças os elementos se conectam para dar sentido.
Estratégia é um campo de possibilidades de emergência co-compositivas do
coletivo Estratégia, no espaço da cidade e tem no jogo o principio de agenciamento
disparador das ações executadas em tempo real. O evento Estratégia acontece “com” o
espaço, que busca meios de compor com a sua configuração movediça, com o agora que
temos, sem a intenção de transformá-lo, ou de inter(ferir) nele, mas com o desejo de
perceber e evidenciar seus fluxos como potência. Estratégia ativa o espaço e se resolve
como uma ecologia, em que todos os elementos que compõe o ambiente atuam na sua
formação. Nós temos algumas pistas ou restrições para o desenvolvimento de
Estratégia: um percurso sugerido, um modo de deslocamento em filas, um início, e
alguns sinais estabelecidos para um final. Não temos um dar a ver, mas um dar-se ao
outro que, ao nos retribuir, permite que o evento se configure. Dançamos no encontro e
sobre o efeito dos afetos que nos incorrem e o que desencadeia o evento pode ser
qualquer um dos elementos que constitui esta ecologia.
O afeto é o saldo do encontro entre corpos, como nos esclarece o filósofo
holandês Bento Espinosa (1992), o corpo é constantemente modificado diante das
relações, o que pode aumentar ou diminuir sua potência de agir. Se já no Século XVII
Espinosa nos sugeria a potência dos encontros, porque ignorá-la agora. A proposição
espinosiana de afeto trata da vida se fazendo e refazendo em interação com outras vidas.
Em um processo de negociação entre o que há de perceptível e não perceptível, entre os
arrebatamentos do encontro os desejos sobressalientes. Trata-se do trânsito entre a ação
– que são as minhas vontades; e a paixão – que são as vontades que não vêm de mim. O
resultado dos encontros são os bons e maus afetos, como alegria e tristeza, por exemplo.
Ao identificá-los em uma percepção imediata do que se imprimiu no corpo, operaríamos
na possibilidade de compreender, e em certa medida potencializar ou refrear seus efeitos
por meio das paixões ativas.
A filósofa francesa Chantal Jaquet (2011, p. 126) afirma que Espinosa “restringe
o domínio dos afetos somente às afecções que aumentam ou diminuem, ajudam, ou
coíbem a potência de agir”. Segundo ela, Espinosa chega a fazer uma separação do que
são afetos e afecções. A admiração é afecção mais não é afeto. Alegria e tristeza o são
porque alteram nossa potência de agir. Desta forma, Jaquet (2011, p. 124) conclui que
“todo afeto é uma afecção, mas nem toda afecção é um afeto”. Segundo a autora, a
afecção é uma espécie de estado da essência humana, inato ou não, em suas
transformações no tempo, seja atribuído pela extensão seja pelo pensamento.
Se nos aproximarmos das noções de afecção e de afeto, do modo que Espinosa
(1992) as expõe, a presença do artista em relação com o espaço consideraria também as
afecções que circunscrevem o encontro. O bailarino/performer é capaz de afetar com
sua presença, mas ao mesmo tempo perceber os afetos que a presença do público e a
configuração do espaço lhe causam. Nas palavras de Espinosa: “Por afeto, entendo as
afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções” (1992, p.
267). O filósofo holandês traz as proposições de afecção e afeto nesse trânsito entre o
afetar e perceber-se afetado.
O afeto, segundo exposição do filósofo francês Gilles Deleuze, é o que não
representa nada, que não está relacionado ao sentido, à ideia de algo, como o sentimento
de amor, angústia ou esperança, “que qualquer um chama de afeto” (1978, p. 2). Para
Deleuze, o afeto trata de “uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira
alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado
numa ideia, mas o fato de querer não é uma ideia, é um afeto, porque é um modo de
pensamento não representativo” (1978 p. 2). A noção de afeto (affectus) liga-se,
portanto, ao que escapa a definições de significado, e está relacionada às afecções do
corpo e suas percepções no ato de afetar e ser afetado.
Simon O’Sullivan (2011) vincula a produção de afeto à proposição artística,
reconhecendo os efeitos que um corpo ou um objeto artístico pode ter sobre o outro
corpo. Mas ao considerarmos a acepção espinosiana de afeto haveremos de considerar
também que se trata de algo em trânsito, emergente da relação, mas não
necessariamente passível de controle. Ou seja, o bailarino/performer não poderia
antecipar o que o espectador vai apreender da experiência artística. Quando vamos para
o espaço da cidade, somos afetados por ele, do modo em que ele está, e operamos na
reverberação desses afetos apreendidos, por nós, mas não temos uma garantia de que
nossa presença afetará o público participante do mesmo modo que somos afetados.
Porém, como acontecimento, iremos afetá-los, isto é certo, mas, no entanto são
imprevisíveis as intensidades que esta relação de afetos constrói.
Já vivemos situações muitos distintas na realização do percurso em Estratégia,
fomos completamente ignorados, tivemos cúmplices, dançarinos, pessoas nos ensinando
a dançar, intimidamos, fomos intimidados, aplaudimos, fomos aplaudidos, e em muitos
momentos não passávamos de pedestres anônimos na sequência de um fluxo surdo do
cotidiano. Provocar estranhamento? Nem sempre. Propor poesia, sempre que possível,
mas vê-la emergir do encontro, isso sim nos interessa, porque é vivo, é fresco, cheio de
ar, acontece em tempo real por meio da improvisação. Nós nos movemos em busca
desses instantes e somos movidos por eles.
Nós subimos escadas, mesas, muros, árvores. Convidamos a olhar para cima. –
Vai cair! Você tem idade para subir na árvore? Disse um passante/participante. E
alguém perguntou: – Tem idade pra subir na árvore? E outros subiram, e subimos
sempre que podemos.
Dia desses estávamos nós, a dançar “com” a Rua Felipe Schmidt e a procurar
encontros, afetos e eventos. Eis que surge um momento para explorar essa configuração
mais vertical da cidade. Nessa rua não tem árvore, mas tem poste. Egon olha para
Milene com convicção, olha para o poste. Os outros integrantes do grupo logo se
direcionam para compor este momento de tensão. Pequena pausa... Milene vê uma
criança de 10 anos e diz: – Eu preciso subir ali, será que você poderia me ajudar? Ela,
não hesita, mesmo com a diferença de tamanho entre as duas. Alguns dos passantes, ao
verem aquela situação contraditória, se comovem, e logo se juntam a menina. Era difícil
subir, Milene não escondia a dificuldade. Ela percebeu que a aparente fragilidade da
criança, a voz e pernas trêmulas, e o engajamento dos integrantes do grupo é que as
mantiveram ali, todos envolvidos naquele instante poético (ou patético, ou estranho –
dependendo da perspectiva). Compúnhamos, com corpos, desejos e fragilidades a dança
na cidade. O público é quem decidia se Milene deveria prosseguir na subida arriscada
ou parar. Paramos a surda Rua Felipe Schmidt que, por alguns minutos, se dedicava ao
não funcional/comercial. E continuamos com nossa estratégia de encontro e a
improvisação seguiu seu fluxo.
A pesquisa que por alguns anos o Ronda Grupo desenvolve (Estratégia desde
2009) para dar tratamento ao trabalho na rua tem como ferramenta principal a
improvisação. Da sala de ensaio para o espaço da cidade, seja ele qual for, trouxe
dificuldades e ao longo da prática e da pesquisa percebemos que a improvisação como
jogo para a abordagem da criação de eventos coreográficos nos resulta eficiente. Vários
aspectos foram demarcados e um olhar sobre alguns vetores que criaram ressonância no
mundo da dança servem como referencia para o trabalho que discutimos aqui neste
estudo.
Foi a partir da década de 1960 que um novo modelo cultural surgiu e
transformou o modo de olhar e fazer arte, assim como a sua noção. Neste período ideias
como paisagem urbana, comunidade, liberdade de normas, vida comum, diversão e
fisicalidade foram apropriadas. Surgem assim novas estruturas, padrões de composição
e técnicas de criação. Tanto o Judson Church Dance Theatre paralelo ao movimento da
Nova Dança trouxe a estruturação dos jogos, tarefas e acontecimentos em improvisação,
que encarnaram o ideal de liberdade e desenvolveram uma nova inteligência do corpo
que dança e cria em contraste com a formulação de decisões conscientemente
predeterminadas. Os artistas nestes movimentos investigaram as formas de dilatar a
espontaneidade, a informalidade e a ação coletiva na produção e na performance.
Preceitos estéticos foram pervertidos e caracterizados pela experimentação do
movimento e por novas possibilidades de estruturação coreográfica. A improvisação
como um elemento transformador se estabelece como uma prática amplamente
desenvolvida que cria ressonâncias tanto na dança como no teatro, sua prática constante
e com rigor acentua e valoriza as diferenças, ao ressaltar as imperfeições e as
especificidades de cada corpo. Como técnica a improvisação oferece suporte para tornar
o corpo mais hábil, responsivo e criativo para enfrentar e compor com diversas
situações em tempo real. Aliada a outras técnicas de formação, a improvisação também
amplia e fortalece o vocabulário do bailarino, fazendo com que os movimentos sejam
aprendidos, incorporados e reorganizados o tempo todo com o vocabulário e o contexto
ao qual este corpo é submetido.
Estratégia utiliza-se da improvisação e de seus princípios como técnica de
criação e de agenciamento, justamente porque todo agenciamento pressupõe um
território e ações de um coletivo. A improvisação com restrições (dadas por nós e
impostas pelo espaço) tem o ambiente como ponto fundamental disparador das ações.
Estratégia retira o corpo do seu lugar de conforto e o entrelaça em uma rede de
negociações ao espaço da cidade. Como evento coreográfico a improvisação por meio
do jogo estabelece ou fortalece conexões e sentidos e ativa o espaço, “considerando-o
poeticamente sob todos os ângulos, entregando-se a sucessivas impressões
relacionando-se (grifo nosso) e as traduzindo todas ao mesmo tempo no presente”
(Muniz, 2004 p. 61).
Estratégia exige que durante o trajeto percorrido, o passeio realizado aconteça
de “janelas abertas”, que é uma analogia que encontramos para relacionar com a
consciência do bailarino, sua presença e seu estado de atenção. Este estado de prontidão,
de escuta e de atenção é o que assegura a troca e o dialogo constante entre o grupo
e/com o meio. Com efeito, isso permite que os corpos integrem-se ao movimento e
fluxo que cada espaço imprime, engendrando relações que em sua totalidade ressalta e
intensifica sentidos, direciona olhares, recria espaços ou possibilita novas experiências
aos transeuntes.
Durante a improvisação os corpos dos bailarinos/performers, com tudo que cada
um é reúne e compõe com o meio e conduz a cena através dos movimentos num corpo
que busca encontrar sua própria integridade dentro de um coletivo. O principal desafio é
como cada indivíduo traz através da criação sua contribuição para a pesquisa e como
esta contribuição se torna material para o coletivo. Qual a medida para que isto
aconteça? Qual é o limite entre o desaparecimento do eu ou o fortalecimento do
coletivo?
A cada uma das apresentações/ensaios o que nós começamos a perceber é que
esta charada se desvenda através dos eventos que se criam, principalmente quando
afetamos as pessoas que por ali circulam. Portanto é afetar-se e afetar. Básico, mas
difícil de dar conta, tudo ao mesmo tempo, são camadas e camadas de restrições, de
repertório de material, de comandos, de tarefas e principalmente o estado de estar atento
e acima de tudo as diversas relações entre os elementos que compõe o ambiente. É abrir
as janelas e olhar o mundo. Como o espaço contribui para o que começa a surgir? No
caso aqui, com uma trajetória de passeio, com o movimento e com o fluxo destes
espaços, porque passamos por diferentes ambientes e dinâmicas que acabam por nos
fazer repensar as noções de estar na rua e de refletir sobre como olhamos o mundo. Por
estas e outras temos que estar flexíveis e alertas para que o inesperado seja incorporado
e passe a ser material de criação. A improvisação em Estratégia, além de possibilitar
uma gama maior de material coreográfico, permite o surgimento de eventos no
firmamento de novos acordos e conexões espaciais, ampliando e recombinando
estruturas sociais inseridas na cidade.
Outro rastro que é consequência do movimento que se instaurou desde as
vanguardas artísticas é como a arte vai explorar novos espaços, além dos idealizados
pelas instituições, configurando na cena contemporânea uma composição com o espaço
cotidiano da vida. É assim que Estratégia se torna um evento coreográfico, numa
aproximação com a realidade do espaço onde se insere e com o público/espectador que
ali transita. Ou, num passeio que cria eventos e produz desvios da obra artística que se
dilui na efemeridade do instante presente, do artista, que se imiscui nesse espaço
tornando-se às vezes anônimo, e do espectador, que algumas vezes torna-se protagonista
neste espaço improvisado. A poética em Estratégia dialoga com o mundo, que se reflete
no percurso objetivo e subjetivo desse passeio que promove encontros, relaciona-se com
a arquitetura e a dinâmica da cidade, a partir do modo de conceber/ocupar este espaço.
Uma dinâmica que também gera alterações no artista, no espectador e na arquitetura, ao
produzir uma revitalização da cidade, enquanto espaço público, como observa Paola
Berenstain Jacques (2005), a respeito de intervenções artísticas que transformam o seu
entorno.
O sentido de revitalização aqui não seria mais o econômico, mas sim o de vitalidade,
como vida decorrente da presença de um público e atividades diversificadas – só
poderia se realizar de forma não espetacular quando ocorrer uma apropriação popular e
participativa do espaço público, o que evidentemente não pode ser completamente
planejado, predeterminado ou formalizado. A maior questão das intervenções não
estaria na requalificação em si do espaço físico, material – pura construção de cenários
– mas sim no tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, na própria apropriação
pública desses espaços. Somente através de uma participação efetiva o espaço público
pode deixar de ser cenário e se transformar em verdadeiro palco urbano: espaço de
trocas, conflitos e encontros. (Jacques, 2005, p. 19).

Na arte, estas novas espacializações correspondem às configurações espaciais


engendradas desde o século passado pelas vanguardas históricas e que se estendem até a
atualidade. Segundo Leão (2007), o espaço contemporâneo coloca em xeque os
preceitos newtonianos, instaurando noções como a da ubiqüidade inerente a uma lógica
de fluxos de informação. Ao invés de se subordinar às clássicas noções de trecho ou
território, às noções geográficas e fixas, o espaço da atualidade abre-se para a condição
da mobilidade. Hoje o espaço troca sua fixidez e imobilidade por um espaço em fluxo
que se coloca na conexão, na mobilidade, nas relações e no sujeito em trânsito seu eixo
fundamental.

Já no inicio do século 20 temos o surgimento, seja através das procissões


dadaístas realizadas em Berlim e das deambulações futuristas e surrealistas,
nos anos 60/70 encontramos não somente as práticas de land-art que
problematizaram os conceitos de site e non-sites desenvolvendo
experimentações efêmeras no espaço externo ao ambiente da galeria e museu,
como, também as práticas performáticas realizadas pelo grupo Fluxus. (Leão,
2007 p.161)

Na busca pelo diálogo do corpo que dança com o corpo social urbano,
abordamos em Estratégia uma intenção de aproximar a arte da vida, do seu pulsar e sua
imaginação constante e pulsante, saindo do espaço confinado dos teatros e salas de
ensaios e deslocando-se para cidade. Contudo, Estratégia surge sem o intuito de colocar
uma obra pronta num espaço urbano, mas de investigar e se apropriar da dinâmica, dos
fluxos de movimentos e comportamentos urbanos para criação artística. Esta proposição
provoca uma ação que rompe com o olhar contemplativo da estética tradicional e
propõem experiências e investigações efêmeras, propositoras de espaços relacionais
entre a arte e principalmente entre a dança e a sociedade.
Nesse sentido, Estratégia dialoga também com a ideia de site specific, tendência
contemporânea de produção artística que se volta para o espaço congregando ou
transformando a obra ao sítio. Um evento site-specific de dança é criado para
existir também em um determinado lugar. O evento coreográfico é gerado por meio de
pesquisa e de interpretação de uma matriz original do site cultural, através das
características e topografias que podem ser arquitetônicas, histórico-sociais ou
ambientais. Não se trata de uma paisagem contemplativa, pois traçamos ali infinitos
percursos em que vivemos, sentimos, criamos, construímos e reconstruímos o espaço,
utilizando todos os nossos sentidos e nos relacionando com ele/nele de diferentes
maneiras, criando memórias afetivas. Desta forma, Estratégia trabalha para descobrir o
sentido contido como memória e desenvolver técnicas para ativar, ampliar, reconfigurar
ou ignorar o espaço da cidade.
Segundo Bennaton (2009) “as ruas seriam espaços que despertam memórias,
significados, ações e transformações, em experiências”. Se o espaço é reconstruído de
acordo com as nossas experiências e construção de memórias afetivas, entendemos que
ele pode ser considerado fluido, pois esta em constante fluxo de transformação. Assim,
Estratégia brinca com a possibilidade de vivenciar o espaço, significa levar o indivíduo
ao campo da experiência cotidiana, colocando-o numa postura ativa e inter(ativa). Pois
longe de idealizar o espaço pré-concebido, o corpo do bailarino/performer como
acionador de potência criativa poética, torna-se um construtor de territórios afetivos e
relacionais. Ou seja, pensa e ativa a cidade e sociedade como um espaço de relações
comunicativas e afetivas que se constroem a partir de contextos e relações. E por meio
da dança coloca em/na cena um sujeito em trânsito, num movimento constante e em
conexão permanente com o meio.
Esta forma de interação pode remeter à ideia de revolução urbana do
situacionista Guy Debord (1997), que sinaliza em seus textos a importância de uma arte
independente, fundamentalmente urbana e que crie situações de liberdade possibilitando
as relações entre os ocupantes deste espaço. No trabalho de criação artística desta
natureza precisa-se de mediações para que o movimento, a ação, o pensamento e a
comunicação possam acontecer. As mediações são feitas a partir de códigos, gestos,
textos, espaços e do corpo. Para tanto, certos eventos e restrições são pré-estabelecidos
na improvisação para que possam ser habilitadas e ativam-se no espaço. Contudo, o
evento coloca o espectador e o bailarino/performer numa posição de incertezas onde
todos tem que decidir o que fazer e como encarar o que lhe é proposto ou o que emerge
do contexto como uma unidade de grupo, como um coletivo.

Há riscos na criação, e riscos reais (embora controlados) de quem recebe a


criação. Há riscos de não saber onde me posiciono enquanto espectador, para
onde me desloco se reparo que preciso me deslocar, se a cena exige que eu
me desloque, riscos nas escolhas a serem feitas para o próprio olhar, pois não
há mais limites entre o que é real da cena e o real da realidade, e se não há
esses limites, como devo reagir? [...] que atitudes tomar frente a essa
cumplicidade instaurada por um olhar em outro olhar, por um corpo próximo
ao meu que não segue as normas da convivência social, que se atreve a me
impor uma presença erótica, atrevida e propõe um contato detonador de
emoções? (Azevedo, 2008. P.134,135)

Neste sentido a improvisação não é uma maneira de conquistar a liberdade da


restrição ou para quebrar todos os limites, é, de fato, desenvolver a capacidade de
reconhecer as limitações e explorar as possibilidades de movimento dentro destas
limitações. Goldman descreve improvisação como sendo um fenômeno "ao vivo e
urgente, que lida com o jogo, é inteligente e trabalha interações espontâneas com
restrição" (2010, p. 54).
Estamos interessados em explorar as possibilidades e potências concretas da
improvisação em dança e construir essas situações de encontros. O que nos fascina é a
possibilidade de transformar uma situação cotidiana em um encontro, ou seja, em uma
situação na qual as relações humanas e suas qualidades estético-sensoriais se destacam;
de propor e concretizar essa transformação por meio de improvisações.
Para isso, articulamos como base do trabalho corporal o desenvolvimento de um
corpo instrução, ou seja, o bailarino/performer trabalha o corpo para ampliar a
capacidade de responder a instruções, regras, comandos e principalmente às
imprevisibilidades da improvisação em um ambiente que não pode ser controlado. Esse
corpo muitas vezes habilita uma restrição ao destacar e eventualmente quebrar ou
transformar regras. Colocar uma restrição potencializa o acontecimento cênico e por ser
cumprida a regra a mesma passa a oferecer a possibilidade de ser extrapolada e
quebrada em momentos estratégicos. É nestes momentos que o bailarino/performer
encontra o desafio do jogo e da interação que vai estabelecer o movimento relacional no
espaço em tempo real.
O jogador é aquele que se experimenta multiplicando suas relações com o
mundo (Ryngaert, 2009), a pesquisa em Estratégia propõe um trabalho que se desenrola
a partir do movimento relacional entre jogador/improvisador/performer e ambiente.
Este movimento acontece a partir do jogo e por meio do jogo, como defendem as ideias
de Guénoun (2004) e Muniz (2011). Ambos discutem que o que se designa como jogo,
para o jogador, abrange todo o espaço cênico, portanto o ambiente é referência
primordial nesta relação. Jogamos entre o grupo, com o espaço e com os espectadores.
Compomos o jogo por meio do nosso corpo em movimento que, através da
percepção interpessoal, consegue transformar as restrições composicionais em potências
para a composição improvisada. Estas restrições geram questões tais como: não posso
invadir, mas posso convidar; minha ação não pode apresentar dúvidas; não posso insistir
em uma proposta que não é legitimada pelos integrantes do grupo, não posso insultar as
pessoas; não posso eleger sozinha o que é potente, etc. Trata-se do desafio de entrar e
permanecer em um estado de atenção que é uma percepção em alerta, psico-física e
relacional. Além disso, está aberta e pronta a responder aos estímulos simultaneamente
internos e externos. Na ação física, no movimento que resulta desse estado, revela-se o
jogo tal como estabelecido e potencializado pelo bailarino/performer. As propriedades
do jogo e as características de cada indivíduo do grupo se fundem em um self
performativo, no sentido dado por Guénoun, a partir de sua colocação sobre o trabalho
atoral. “Os atores mostram, hoje, em primeiro lugar, que estão apresentando. Eles
expõem a nudez de seu jogo [...]. Neste espaço de visibilidade descoberta, deixam
nascerem os efeitos figurais de sua exibição” (Guénoun, 2004, p.132)
É possível perceber esse self performativo tanto em quem atua como em quem
assiste que muitas vezes participa e interfere no acontecimento e deixa de ser um
espectador passivo. O espectador que percebe uma intensidade não usual nas ações do
bailarino/performer, é capaz de qualificar o self performativo de quem está atuando e
este passa também a participar, no sentido de se deixar passar por esta experiência,
assim ambos, bailarino/performer e espectador estabelecem percepções interpessoais.
Interessa pensar que a experiência afeta a produção de sentido e que o indivíduo cria
novas relações com o espaço do cotidiano e repensa seu lugar de pertencimento.
O poder de ser afetado escrevem Deleuze (1978) “não significa passividade, mas
afetividade, sensibilidade, sensação”. As forças que se afetam estão em constante
dinâmica, ativando e reativando qualidades, potências de força em eterno devir. Como
artistas e pesquisadores potencializar a sensibilidade vem com as práticas de criação,
com o trabalho constante de composição e com tudo que vem como consequência,
principalmente a maneira de olhar o mundo. Este lugar de “entres” nos coloca diante
das partículas dos corpos em vizinhança num percurso estético onde as durações se
conectam, afetando e se deixando afetar. O sentido que o artista trabalha é vinculado à
experiência de afetar-se. Mesmo assim a cada experiência de fazer Estratégia os
sentidos são afetos que aconteceram ali, num determinado encontro, de certo momento,
no encontro entre as várias subjetividades de cada colaborador e de cada indivíduo no
grupo, ou ainda, com certo espectador, numa dada época de uma determinada cultura e
assim por diante. Nos importa, com um coletivo justamente experimentar e agir com o
espaço da cidade para produzir impulsos que nos dá estofo para explorar os modos de
percepção e de reconhecimento das forças virtuais do campo de ação para que se
desencadeie o procedimento de criar cada vez algo novo e único.

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