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Sumário

1- EDITORIAL 4
Nohemi Brown

2- ECOS DO VI ENCONTRO DA NOVA REDE CEREDA - BRASIL: 5


Os impasses do sexual e os arranjos da sexuação.

O lugar da clínica com crianças na formação do analista 5


Tânia Abreu

O lugar da psicanálise com crianças na formação do psicanalista 10


Romildo do Rêgo Barros

Comentário: Os impasses do sexual e os arranjos da sexuação. 14


Rômulo Ferreira da Silva

3-  ECOS DO TRABALHO DOS NÚCLEOS DA NOVA REDE CEREDA-BRASIL

Ecos e Pontuações do Núcleo Pandorga sobre o VI Encontro da Nova Reda Cereda-Brasil: 17


Jussara Jovita e Márcia Frassão

Dizer o indizível através das marcas no corpo 19


M. Aparecida Farage Osório

Uma leitura do texto “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual” de Daniel Roy. 22
Tereza Facury

Sobre a sexuação 26
Cristiana Gallo

4- XXXIII ENCONTRO BRASILEIRO DO CAMPO FREUDIANO


Jornada Brasileira de Cartéis: Cajuínas de Cartéis: A infância

O objeto na clínica psicanalítica com crianças: o atendimento online 28


Inês Seabra Rocha
30
A criança imigrante: na passagem de lalíngua a estrutura da linguagem
Jeannine Narciso
Como fazer do sonho um instrumento do despertar na clínica dos autismos ? 32
Ana Martha Wilson Maia

O indizível do sonho do pequeno Hans e o real do corpo 33


Ceres Lêda F. Rubio

5- TEXTOS DE ORIENTAÇÃO DA NOVA REDE CEREDA-BRASIL

O que chamamos de “acontecimento de corpo”? 35


Daniel Roy

6-ACONTECE

Resenha da reunião do Núcleo Ciranda-SP 40

O infantil na construção do caso clínico. 42


Blanca Musachi

7- LINKS DOS TEXTOS DE ORIENTAÇÃO 47


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. 1- EDITORIAL
Nohemi Brown (EBP/AMP)

Aproveitando a contingência da pandemia, realizou-se o VI Encontro da Nova Rede Cereda on-


line, resultando num efeito inesperado. Foi, efetivamente, uma série de Encontros que se construiu em três
momentos, que nos permitiram extrair uma orientação no trabalho. No primeiro, na pesquisa no interior
dos 12 Núcleos ao longo de 2020, produziu-se uma brochura e, a partir deste material, se deu lugar a um
segundo momento em janeiro e fevereiro, quando se realizaram duas conversações entorno das elaborações
da brochura. Em março, no terceiro momento, culminamos com a realização do VI Encontro dos Núcleos.
Neste percurso, fomos da Diferença sexual à sexuação. Não se tratou de uma pesquisa sobre a sexuação como
um conceito, mais bem das modalidades a partir das quais se conforma a sexuação da criança, precisando
os modos como a criança faz uma escolha a partir de seu objeto de gozo.
“Os impasses do sexual e os arranjos da sexuação” não só circunscreveu o tema, se constituiu em
uma orientação. Nos permitiu estar abertos aos diferentes modos como a criança ou o adolescente pode lidar
com o que não se pode simbolizar, mas que está aí. Há gozo e ele se apresenta de diferentes maneiras. Há um
elemento inassimilável que se inscreve numa contingência corporal. Daí a importância de localizar bússolas
que nos orientem na clínica, no trabalho com crianças e adolescentes, e na leitura do que se apresenta nos
nossos consultórios ou instituições como impasses do sexual. Para que a criança ou adolescente em análise
possa localizar e consentir à pergunta pelos enredos com suas pulsões.
A imagem do cartaz do VI Encontro dos Núcleos da Nova Rede Cereda é a foto de um trabalho de
Toshiko Horiuchi, uma artista japonesa que fez um playground em crochet. A ideia de um playground veio
por uma escultura que fez para ser observada, mas que estimulou algumas crianças a perguntar para ela se
podia ser escalada. Dessa pergunta ingênua, absurda, feita por uma criança, surgiu todo um trabalho... Um
espaço vivo e colorido, entre playground e instalação artística, onde as crianças podem colocar o corpo e se
arranjar como podem para usufruir dele. Escalá-lo, se pendurar, pular, rolar...
Como diz Tânia Abreu em seu texto, devemos – nós, analistas praticantes com crianças – saber o que é o
mais importante, no sintoma da criança.
Nesta Folha trazemos os ecos desse Encontro. Com as ricas e fundamentais contribuições de Tânia
Abreu, Romildo do Rego Barros, Rômulo Ferreira da Silva. Agora na distância essas contribuições tomam
uma densidade que enriquece a discussão e orienta a pesquisa que tem tomado um viés diferente. Também
temos nesta Folha os Ecos do trabalho feito no interior dos Núcleos Pandorga, Pererê, Ciranda.
E em um último recorte, a presença do trabalho dos Núcleos no XXIII EBCF, que mostra a importância
da pesquisa na NRC no laço com a Escola como um todo.
Contamos com um adendo sobre a Construção do caso clínico e o infantil, de Blanca Musachi.
Finalmente, trazemos a preciosa contribuição de Daniel Roy que precisa o que chamamos de
“acontecimento de corpo” nesta clínica à qual a sexuação nos convoca.

Boa leitura!
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. 2- ECOS DO VI ENCONTRO DA NOVA REDE CEREDA - BRASIL:


Os impasses do sexual e os arranjos da sexuação.

O LUGAR DA CLÍNICA COM CRIANÇAS NA FORMAÇÃO DO ANALISTA


Tânia Abreu (EBP/AMP)
Seres de Linguagem

Gostaria de iniciar minha explanação pelos agradecimentos, especialmente à Nohemi Brown, que
me convidou para estar no evento da NRCEREDA 1, na condição de praticante da psicanálise com crianças.
Agradeço, também, às coordenadoras Mônica Hage e Fátima Sarmento (organizadoras dos eventos paralelos,
promovidos pelo CIEN e NRCEREDA, durante o XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano) a
receptividade do meu nome, assim como a todos os envolvidos que trabalharam para que ele acontecesse.
Neste momento obscuro e doloroso que atravessamos, não poderia deixar de evocar, diante de todos
que me ouvem, uma personagem criada em 1986 já um tanto esquecida, mas, recentemente, trazida à tona:
o Zé Gotinha! Eis um excelente mote para o que quero lhes trazer sobre o lugar da clínica com crianças na
formação do analista, pois ele aponta um traço primário, que se manifesta, de modo singular, em cada um
de nós: o medo das vacinas. O trauma das primeiras agulhadas, hoje tão ansiadas! Medo, fobia, guardadas
suas diferenças, nos remetem à infância e ao direito de experimentá-la, com todo o respeito e dignidade
merecidos. Infância e vacina para todos!
Para dar sustentação à ideia central deste artigo – a importância da clínica com crianças na formação
analítica – sirvo-me, além de um anseio político, de uma entrevista dada pelo psicanalista Eric Laurent a
Silvia Elena Tendlarz, em 1987, na qual ele reafirma não haver diferença entre um adulto e uma criança
em análise, visto que ambos estão, na condição de sujeitos, mergulhados na linguagem. A diferença estaria
em que uma criança é trazida por seus pais, que não lhe são indiferentes, que a apresentam ao analista,
colocando, no tabuleiro, os S1 (significantes mestres) que a representam.
A criança manifesta em seus sintomas a verdade do discurso familiar, nos diz Laurent, sustentado na
famosa carta de Lacan (1969/2003) à Jenny Aubry.
Entretanto, devemos – nós, analistas praticantes com crianças – saber que o mais importante, nestes
sintomas, é o núcleo de gozo, resistente ao significante. O sintoma infantil criptografa a articulação entre
o pai e a mãe, o que foi o desejo ou o dejeto que produziu esta criança: “A criança é o produto ou o dejeto
de um desejo” (LAURENT, 1987). Lacan dizia que a maneira com que o psicanalista pode intervir mais
facilmente é quando há manifestação sintomática na criança, sendo, a meu ver, a fobia o protótipo desta
manifestação, como corrobora a citação de Laurent (1987): “Os casos mais interessantes publicados foram
sempre casos de fobia”. Os casos mais desfavoráveis são aqueles nos quais a criança não é o sintoma do par
parental, mas o objeto da fantasia materna nos diz Lacan na citada carta.
Uma perspectiva atualizada da questão nos foi proposta pelos trabalhos apresentados na VI Jornada
de Estudos da Criança do Instituto da Criança, realizada em 13 de março de 2021, em Paris. Ali, o sintoma

1 VI Encontro dos Núcleos da Nova Rede Cereda-Brasil e VII Conversação CIEN Brasil, eventos on-line ocorridos em
11.3.2021, pela plataforma Congresse-me.
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foi também tratado, além das interpretações descritas acima, como modo de resposta infantil às perguntas
sobre a sexuação, que ultrapassa a relação sexual com o parceiro na vida adulta, pois inclui, além da posição
sexual, as escolhas do objeto de amor e de gozo, tanto quanto identificações e fantasias. Sob o prisma
freudiano, isto é explicado pela associação entre castração e mito do Édipo. Já sob o lacaniano, pelo Nome-
do-Pai e, posteriormente, pelos quantificadores da sexuação.

Os clássicos
Dirijo-me, agora, à ideia advogada por Eric Laurent, em 1991, de que todo psicanalista deveria
atender, ao menos, uma criança em sua prática, sustentando que tal experiência é de grande relevância para
a formação do analista.
É clássica a afirmação de que Freud não atendeu crianças, mas, também, que agiu como Outro
da transferência para o pequeno Hans. Caso clínico princeps para todo aquele que pretende clinicar com
crianças, publicado em 1909.
Nesta construção, Freud afirma que o caso clínico não provém de sua própria observação e que nada
teria ocorrido sem a participação do pai. Este ponto nos interessa sobremaneira na época atual, aquela que
já vem sendo denominada “Era Coronavírus”, na qual os atendimentos on-line a crianças, dificilmente se
dão sem o apoio dos pais.
É clássico também afirmar que Freud, em 1905, no segundo dos seus Três Ensaios sobre a Teoria
da Sexualidade, formula que a invenção da psicanálise a partir das histéricas, não teria sido possível sem
suas reminiscências. Uma pequena digressão transversal que, em seu conteúdo, reafirma a importância do
atendimento a crianças para a formação do analista.
Valho-me, aqui, da diferença que Lacan (1975-1976/2005) estabelece no Seminário XXIII, entre
reminiscência e rememoração: “A reminiscência é distinta da rememoração. As duas funções são distintas
em Freud porque ele tinha os sentidos das distinções” – no original: “La reminiscence est distincte de la
rémémoration. Les deux fonctions sont distinguées dans Freud parce qu’il y avait les sens des distinctions”
(p.131). A reminiscência implica algo que já estava ali e não foi inventado, esclarece Jacques-Alain Miller
(2006/2007), que há algo desde sempre presente e que não se sustenta com o sujeito suposto saber, ao estilo
de um pergaminho, que contém inelimináveis rastros de um texto anterior.
A rememoração está ligada à impressão, tal como estabelecida por Freud (1895) no Projeto. Podemos
dizer, então, que a reminiscência não tem estrutura de ficção e, assim, jamais será alcançada? Estaríamos
aqui em uma borda com a letra de gozo ou o traço mnêmico, tal como articulado em Freud, em sua “Carta
52”, onde o infantil seria o que nos aproxima desse pedaço de Real? Um pouco mais à frente, retomarei a
questão em sua articulação com o conceito de alíngua.
É clássico também que foi da escuta dos adultos que Freud pôde deduzir a sexualidade infantil.
Decorre daí a afirmação de que o conceito de infância não foi mais o mesmo, depois do acontecimento
Freud que, inegavelmente, deu um lugar ao real do sexo na infância.

Para Freud (1905),


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Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só desperta no
período da vida designado da puberdade. Mas esse não é apenas um erro qualquer, e sim um equívoco de
graves conseqüências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da
vida sexual. Um estudo aprofundado das manifestações sexuais da infância provavelmente nos revelaria os
traços essenciais da pulsão sexual, desvendaria sua evolução e nos permitiria ver como se compõe a partir
de diversas fontes. É digno de nota que os autores que se ocuparam do esclarecimento das propriedades e
reações do indivíduo adulto tenham prestado muito mais atenção à fase pré-histórica representada pela vida
dos antepassados - ou seja, atribuído uma influência muito maior à hereditariedade – do que à outra fase pré-
histórica, àquela que se dá na existência individual da pessoa, a saber, a infância. É que, como se pode supor,
a influência desse período da vida seria mais fácil de compreender e teria direito a ser considerada antes da
influência da hereditariedade. É certo que na literatura sobre o assunto encontramos notas ocasionais acerca
da atividade sexual precoce em crianças pequenas, sobre ereções, masturbação e até mesmo atividades
semelhantes ao coito. Mas elas são sempre citadas apenas como processos excepcionais, curiosidades ou
exemplos assustadores de depravação precoce. “Nenhum autor, ao que eu saiba, reconheceu com clareza a
normatividade da pulsão sexual na infância, e, nos escritos já numerosos sobre o desenvolvimento infantil,
o capítulo sobre o “Desenvolvimento Sexual” costuma ser omitido. (p.21)

Retomando as reminiscências histéricas e sua narrativa em análise, é importante ressaltar que não
implicam, necessariamente, um retorno ao passado, mas ao conceito de alíngua e sua incidência no corpo
do parlêtre. Corpo que goza. Reminiscências que apontam para o infantil como estrutura, visto que é na
infância que os sintomas se cristalizam, daí advindo o valor da leitura do infantil, no caso a caso, para a
formação do analista.
Anne Lysy, em seu texto “Acontecimento de corpo e fim de análise”, nos explica que2:

Esta ênfase no gozo – e, portanto, no corpo – repercute na prática analítica, que se torna “uma disciplina do
gozo” [7], na qual a pergunta “o que isso significa?" se subordina à outra: "a que isso satisfaz?”. “Procurar
lá, no lugar onde isto goza”[8]! Portanto, numa análise, certamente deciframos os sintomas, mas é para visar
o real do sintoma, para além do sentido, para além dos desvios do desejo. Ler um sintoma, diz J.-A. Miller,
"visa esse choque inicial", "visa reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, ou seja, ao encontro material de
um significante e o c No original - Cet accent sur la jouissance - et donc sur le corps – se répercute dans la
pratique analytique, qui devient « une discipline de jouissance » [7], où la question « qu’est-ce que ça veut
dire ? » est subordonnée à une autre : « qu’est-ce que ça satisfait ? » « Chercher là où ça jouit » [8] ! Dans
une analyse, donc, certes on déchiffre les symptômes, mais c’est pour viser le réel du symptôme, au-delà du
sens, au-delà des détours du désir. Lire un symptôme, dit J.-A. Miller, « vise ce choc initial », « vise à réduire
le symptôme à sa formule initiale, c’est-à-dire à la rencontre matérielle d’un signifiant et du corps, au choc
pur du langage sur le corps ». C’est « viser (…) la fixité de la jouissance, l’opacité du réel » [9].
orpo, sob o puro choque da linguagem sobre o corpo”. É "visar (...) a fixidez do gozo, a opacidade do real" [9

2 No original - Cet accent sur la jouissance - et donc sur le corps – se répercute dans la pratique analytique, qui devient «
une discipline de jouissance » [7], où la question « qu’est-ce que ça veut dire ? » est subordonnée à une autre : « qu’est-ce que ça sat-
isfait ? » « Chercher là où ça jouit » [8] ! Dans une analyse, donc, certes on déchiffre les symptômes, mais c’est pour viser le réel du
symptôme, au-delà du sens, au-delà des détours du désir. Lire un symptôme, dit J.-A. Miller, « vise ce choc initial », « vise à réduire
le symptôme à sa formule initiale, c’est-à-dire à la rencontre matérielle d’un signifiant et du corps, au choc pur du langage sur le
corps ». C’est « viser (…) la fixité de la jouissance, l’opacité du réel » [9].
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Atualidades

Em 1953, Lacan advertiu que “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (p.321). Sendo assim, concluo meu texto, a ele
acrescentando a discussão contemporânea que se ocupa da diferença sexual, não pela perspectiva binária
– absolutamente em desacordo com a noção de inconsciente, onde só há um significante para representar
o sexo, o falo –, apresento mais um argumento reforçando a indiscutível importância da dimensão da
experiência dos atendimentos a crianças na formação do analista.
Convido-os a acompanhar as ponderações de Laura Sokolowsky e Hervé Damase, coordenadores da
VI Jornada de Estudos do Instituto Psicanalítico da Criança/Universidade Jacques Lacan, citada acima.
Do argumento proposto por eles para esta Jornada, depreende-se que:3
O modelo freudiano permanece atual, pois, para a criança, trata-se de tomar uma posição: ela deve criar
a própria solução com os meios que lhe são disponíveis. O que acontece quando ela cresce numa família
monoparental ou quando sua família está fundada num vínculo homossexual? Hoje, o caso do pequeno Hans,
de Freud, encontraria uma solução diferente da sua fobia a cavalos, para tratar o gozo de suas primeiras
ereções, das quais ele não sabe o que fazer nem o que pensar? Os sintomas infantis evoluem em função dos
discursos contemporâneos?
Deste argumento, pode-se também extrair o quão valioso é escutar a criança como sujeito que fala
e que pode, sob transferência, inventar suas ficções atuando como protagonista da própria história.
Preferencialmente, em parceria com as interpretações que um analista possa fazer de seus encontros
com o Real. Ainda cabe ressaltar que, do lado do analista, ao deixar-se ensinar pelas crianças e ao fazer bom
uso das contingências que a experiência com o infantil nos brinda, está cuidando de sua formação, que não
advém de outro lugar que não do Inconsciente, política da psicanálise.
Para concluir, algumas palavras a mais sobre a clínica baseada na sexuação, aquela que dá à criança
uma posição para além do discurso do Outro.
Por seu turno, a clínica analítica revela que as identificações infantis não coincidem, necessariamente,
com as designações que provêm do Outro. Às vezes, um rapaz sente-se mais feminino, mais próximo da
irmã do que do irmão ou do pai. E, às vezes, uma moça aspira ser um rapaz, refutando certos signos
associados ao feminino.
Tal passagem permite afirmar que não há clínica da diferença sexual sem passar pelo infantil,
fonte primária da sexuação, sobretudo na atualidade, em que o atravessamento discursivo da cultura visa
muitas vezes, impor uma fluidez dos gêneros, em detrimento da escolha do próprio sexo. Se Freud recorreu
ao infantil para tratar os sintomas histéricos da sua época, tomados como formações do Inconsciente,
recorremos hoje ao infantil para desenredar os sintomas vigentes, que mais se configuram como cifras de
gozo, em um para-além-das-narrativas.

3 No original - Le modèle freudien est toujours d’actualité puisqu’il s’agit pour l’enfant de prendre position : il doit inventer sa
solution avec les moyens dont il dispose. Que se passe-t-il lorsqu’il grandit dans une famille monoparentale ou que celle-ci s’avère
fondée sur un lien homosexuel ? Aujourd’hui, le petit Hans de Freud trouverait-il une solution différente que sa phobie des chevaux
pour traiter la jouissance de ses premières érections, dont il ne sait quoi faire ni penser ? Les symptômes infantiles évoluent-ils en
fonction des discours contemporains ?
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Para arrematar, e de modo determinante, a formação analítica não pode passar ao largo do infantil.

Tânia Abreu – AE - EBP/AMP


Núcleo de Investigação de Psicanálise e Criança – Carrossel – IPB.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. (1901-1905/2016), Trad: Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
FREUD, Sigmund. Projeto de uma psicologia científica. (1895/2010), Trad: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975/1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. (1969/2003) In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
LAURENT, Eric. La incidencia del Psicoanálisis con niños en el psicoanálisis con adultos. (1991/2003). In:
Hay un fin de análisis para los niños. Buenos Aires: Colección Diva.
LYSY, Anne. Événement de Corps et fin d’analyse. (2021). Texto acessado no dia 25.03.2021. Fwd: [nls-
messager] 3662.fr/ TRACES - ORIENTATION .
MILLER, Jacques-Alain. El reverso del passe. El ultimíssimo Lacan. (2006/2007) v. l. Buenos Aires:
Paidós, 2014.
SOKOLOWSKY, Laura e DAMASE, Hervé. Comment le sexe vient-il aux enfants ? In: Zappeur de 12 de
fevereiro de 2020. Argument. Acessado em 10.03.2021, https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/argument-2/
TENDLARZ, Silvia Elena. Entrevista a Eric Laurent: Niños en análisis. In: Malentendido 2.
Argentina: Buenos Aires, 1987.Editor.
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O LUGAR DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS NA FORMAÇÃO DO PSICANALISTA


Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)

Gostaria de agradecer, sobretudo à Nohemí, pelo convite para estar aqui hoje nessa discussão tão in-
teressante. Enquanto eu ouvia os trabalhos, passavam coisas na minha cabeça como, por exemplo, o fato de
sempre discutirmos o papel da psicanálise com crianças para a psicanálise. A Nova Rede Cereda-Brasil está
dando um passo à frente quando se pergunta pelo papel da psicanálise com crianças na formação do psicana-
lista.
Assim, ouvindo os casos, vejo pontos que servem para minha formação, como a questão de que uma
diferença se constrói, ela não está de antemão dada. Isto, para os tempos de hoje, é precioso. Portanto, não es-
tamos mais, necessariamente, aprisionados ao cruzamento das duas diferenças que foram terrenos para Freud:
a diferença de gerações e a diferença sexual.
Começaria dizendo que, se existe, clinicamente, uma construção da diferença - também eu aprendi
aqui ouvindo vocês -, isso tem uma manifestação muito clara na psicanálise com crianças - afinal eu trabalhei
muitos anos com crianças, mas já faz uma eternidade -, a posição do analista determina que a análise com uma
criança não seja simplesmente a regressão para a relação com os pais. Podemos dizer, tradicionalmente, que
a psicanálise com crianças teve uma tendência a isso, a ponto de alguém como Anna Freud, a quem Lacan
chamou uma vez de reacionária, achar que não dava para fazer análise com crianças, a não ser que houvesse
um fundo pedagógico. Essa é a famosa discussão com Melanie Klein em 1927, um dos momentos importantís-
simos da história da psicanálise.
Portanto, a diferença se constrói, mas não se pode postular a não existência de uma diferença prévia; a
meu ver, esse é o sentido mais profundo da carta de Lacan a Jenny Aubry, ou seja, o fato de que há no sujeito
alguma coisa arrastando algo do desejo ou da fantasia do Outro, do Outro parental.
Existe uma diferença, uma desconstrução da diferença prévia e uma construção. Então, se isso é pos-
sível de se fazer, até com maior clareza do que na análise com um adulto, qual posição resta ao psicanalista,
qual posição ele deveria ocupar para que essa construção, desconstrução e reconstrução possam ser possíveis?
Parece-me interessante pensar que, nos casos, existe aquilo que se oferece à análise - digamos, o
sintoma oficial de cada uma das crianças, ou seja, o sintoma que vem do Outro -, e existe a maneira como o
sujeito é reconhecido no Outro e que na análise com criança se manifesta sob a forma da queixa.
“De que vocês se queixam em relação ao Fulaninho?” Essa talvez seja a primeira pergunta do encontro
com o analista e a resposta do pai ou da mãe será: “Ele é muito violento”. Trata-se aqui de um caso de violên-
cia, dois casos de identidade sexual e o último um caso de identidade sexual com a questão da filiação.
O que se apresenta são as queixas do Outro, isso é bem particular na relação da análise de crianças.
Existe, em geral, uma importância muito grande na queixa representada por aquilo que, da criança, incomoda
os outros: a violência, a questão da pele, a identidade sexual e a questão da filiação. O Outro não sabe o que
fazer disso, indaga o médico e diz: “Procure a doutora fulana porque ela sabe muito e, ela sabendo muito, vai
ajudar você a dar esse passo”. Também o médico aponta uma coisa muito importante: a existência de um saber
a ser produzido, mesmo se ele supõe que este saber já é prévio no analista.
Vocês vejam a importância da função da psicanálise com crianças para a formação do psicanalista. Um
psicanalista nem sempre tem isso tão claramente numa análise com um adulto porque não existe essa divisão,
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em geral, entre a figura de adulto do analista - que o médico diz saber tudo - e a figura dos pais.
Sabemos que, na análise com crianças, existe uma queixa vinda do Outro, a criança é levada até o
psicanalista, a demanda de análise muitas vezes não parte da criança.
Vemos um momento muito interessante em que a criança cria o sintoma analítico. Não é a identidade
sexual, não é a filiação, nem a violência exatamente, mas sim a tentativa de cada uma destas crianças para
produzir uma diferença. Lacan diz no Seminário 11 que a função da análise é de criar uma diferença absoluta,
trata-se exatamente disso. Como é que uma criança pode se reconhecer, ou bem radicalmente, pode se no-
mear? Como é que uma criança pode se nomear a partir de um significante que não veio da mãe, do pai, das
mães, mas do Outro?
Trata-se de um trabalho muito difícil, e que exige. Percebe-se, na análise com crianças, mais ou menos
universalmente, o fato de que para a criança conseguir produzir a diferença, e a partir dela uma nova no-
meação, é preciso haver uma ruptura com aquilo que a trouxe à análise, ou seja, haver uma preponderância
do sintoma analítico em detrimento daquilo que fez com que a criança procurasse o analista. Sabemos ser isso
fundamental e é um momento bem delicado porque muitas vezes é o momento em que os pais retiram a cri-
ança da análise, quando aparece o que a criança pode inventar, criar, produzir alguma coisa na análise, gerando
assim uma ruptura com o Ideal ou com a maneira de gozar dos pais com relação à criança.
Os casos apresentados mostram a coragem, a aposta das psicanalistas no sentido de que em nenhum
momento elas se apresentam como sucedâneos dos pais, em nenhum momento elas se apresentam, por exem-
plo, para falar como Melanie Klein, como “mãe boa”. Ficam ao lado da produção sintomática do sujeito, eu
acrescentaria, ao lado da nova nomeação do seu paciente, criança.
É interessante notar, sem Lacan não teríamos isso, que a primeira ruptura é feita pela própria psicanálise
quando ela abre mão da pedagogia. Lacan quando expressava antipatia por Anna Freud era por causa disso,
porque ele precisava propor algo à psicanálise que estivesse em ruptura com qualquer ideal pedagógico,
embora não seja tão evidente assim o intuito de ruptura com o ideal pedagógico, já não digo no tratamento,
mas no contato com as crianças, uma vez que diante de uma criança somos quase naturalmente pedagógicos.
Torna-se difícil analisar uma criança em ruptura com esse ideal quase natural.
É muito atual, muito dos nossos tempos, a ideia de que uma diferença se constrói, ou que existe um
trabalho de produção da diferença. Algumas crianças terão a ajuda do analista nesta construção, outras vão
se virar como podem, mas é inevitável no destino de cada sujeito que em algum momento ele produza uma
diferença, ou tenha que se haver com ela.
Discussão
Pergunta: O que está dado?
O que está dado são aquelas duas dimensões apontadas por Lacan na carta a Jenny Aubry: ou a criança
representa o sintoma parental ou ela está amarrada à fantasia materna, nos casos mais graves, como Lacan nos
chama a atenção.
Então, isso é prévio, a criança não tem nada a ver com isso, se eu posso dizer assim, mas ela vai
começar a repetir alguma coisa em relação a isso que vem desde antes dela.
Haverá um trabalho de diferenciação até a construção de uma diferença, efetivamente, que começa
numa certa ruptura com o que a fez vir ao mundo. É muito sério isso! Fantasias e sintomas parentais trouxeram
a criança ao mundo, para fazer alguma coisa disso, a criança terá que fazer uma ruptura. O analista poderá
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ajudar nisso, mas a invenção será da própria criança. É isso que nos tempos de hoje, com Lacan, a gente pode
chamar de diferença, que é diferente dos ideais da contemporaneidade, os quais confundem, muitas vezes,
diferença com diversidade.
A diversidade, no sentido que é tomado hoje em dia, é um beco sem saída. É um beco sem saída porque
não oferece nenhum limite, basta observarmos a sequência de letras de LGBTQIA+. Podem ser todas as letras
do alfabeto, quando o essencial é que o sujeito, ao assumir um modo de gozo, seja acompanhado por um sig-
nificante que marque a diferença. Então, parece-me que isso é uma lição que a psicanálise com crianças nos
dá.
Tomo aqui um pouco do exemplo do caso de Samurai: ele era um inferno – para os adultos. Ninguém
devia aguentar Samurai.
Então, ele vai construindo alguma coisa em análise, essa é uma pergunta que faço: certamente provo-
cando a rejeição da própria analista, com sua pergunta “em que ponto eu sou insuportável?” E é nisso que ele
vai produzindo uma sequência de S1, por exemplo: “Eu sou menino, foi o médico quem disse, mas sou eu que
sou menino.” Este S1 que vem do Outro, se eu entendi bem, vem do “menino trabalhoso”. Não existe queixa
mais universal de uma criança do que dizer que ela dá trabalho.
Então, o menino trabalhoso é exatamente a face demoníaca do filhinho de mamãe, que diria: “você é
meu filhinho”, em outra situação diria “você é um menino trabalhoso”.
No trabalho com a criança feito com o analista numa forma muito interessante de neutralidade, Rômu-
lo falou da ousadia, eu ressalto o outro lado também, da neutralidade da análise com criança, que é um assunto
relativamente pouco discutido: o que quer dizer a neutralidade na análise com criança? Se você senta no chão,
brinca disso, brinca daquilo, inventa historietas, trata-se de neutralidade?
Bom, existe uma função que pertence ao analista, seja qual for a idade do seu paciente, que nesses
casos aparecem com clareza: a posição de quem autoriza o enigma. Depois do desejo imperioso do Outro, isso
retrocede a um enigma, e só quem pode responder ao enigma é o próprio sujeito.
O analista poderá fazer uma torção naquilo que vem do Outro, por exemplo, na queixa de uma criança
trabalhosa e isso se tornar um enigma: o que é uma criança trabalhosa, ou então produzir um giro, um “Che
vuoi?”: O que querem de mim quando me chamam de criança trabalhosa?
Podemos ver que existe um processo com vários momentos, o analista inicialmente é a testemunha
desses movimentos e nunca vai estar no lugar do Outro propriamente dito, ou seja, daquele Outro com quem
a criança estava mais ou menos em ruptura.
A expressão de Miller, estar ao lado do sintoma, é muito interessante. De fato, ele não está ali para ori-
entar a criança, ele não está, a rigor, nem sequer para curar a criança, mas para fazer com que a criança chegue
a um ponto em que aquele sintoma diretamente plugado no Outro possa ser deixado cair como, por exemplo,
a violência.
É claro que isso tem uma grande extensão, são casos espinhosos para o psicanalista quando se mani-
festa, por exemplo, como uma disfunção corporal. Sabemos das dificuldades de tratar uma criança, a partir de
uma disfunção corporal, como no caso do despelamento, das psoríases, enfim, diversas outras enfermidades.
Mas o desafio é que o analista calcule a posição do sujeito, sem que seja necessariamente em algum
lugar entre a diferença de gerações e a diferença sexual.
Ajudou-me muito ouvir vocês agora, e aprofundando um pouco nas minhas reflexões, uma pergunta
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surge: qual é a especificidade da análise da criança? Durante muitos anos o nosso combate foi sustentado di-
zendo “é uma análise como outra qualquer”, ou como nos coloca Robert Lefort: “a criança é um analisando
por inteiro”. Mas a análise com criança é uma análise como outra qualquer?
Bom, parece-me que, ouvindo os casos de crianças, vejo que é uma análise como outra qualquer, mas
que somente se torna possível a partir das suas diferenças ou das suas especificidades, uma delas, talvez a
principal: o que se manifesta como sintoma, denominado por mim de oficial, não vai ser o que será analisado.
Quer dizer, a produção de um sintoma analítico, incluindo o psicanalista, vai se dar, em geral, em ruptura com
o que chamamos de “queixa”.
Certamente isso também acontece na clínica psicanalítica com os adultos, mas, no caso das crianças,
parece-me ser especial o fato disso exigir personagens diferentes. Então, a delicadeza da análise com criança
passa também por aí.
Parece-me que nesses casos, dos Núcleos Carrossel e Pastoril, onde a questão é de identidade sexual,
seja importante marcar que antes da identidade sexual, ou ao mesmo tempo, existe a questão da identidade.
Quer dizer, será que uma criança pode se nomear alguma coisa? Isso ela pode ensinar ao psicanalista, inclusive
a ter a paciência de não tornar esse movimento de modo brusco demais, e saber que a produção da diferença
equivale a uma nova nomeação. Isto não é tarefa dos pais, não é tarefa do psicanalista, é tarefa da criança.

Romildo do Rêgo Barros (EBP/AMP)


Palestra realizada no VI Encontro da Nova Rede Cereda-Brasil: Os impasses do sexual e os arranjos da sexu-
ação (2021).

Transcrição: Cristiana Gallo


Revisão: Inês Seabra e Gustavo Ramos

REFERÊNCIAS
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
2003.
_______. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Trad. de M.D. Mag-
no. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LEFORT, Rosine. A unidade da psicanálise. In: MILLER, Judith (Org.). A criança no discurso analítico. Trad.
de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
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COMENTÁRIO: OS IMPASSES DO SEXUAL E OS ARRANJOS DA SEXUAÇÃO.


Rômulo Ferreira da Silva (EBP/AMP)

Quero agradecer à Nohemí pelo convite de estar neste VI Encontro "Os impasses do sexual e os arran-
jos da sexuação". Eu agradeço aos autores dos trabalhos apresentados e também aos vários participantes que
compõem a Nova Rede Cereda-Brasil.
Neste Encontro teremos a nossa AE Tânia Abreu, quem com muita alegria vem nos falar, inaugurando
sua participação neste evento da EBP, dizendo sobre a importância da psicanálise com crianças na formação
do psicanalista.
Começo com a questão que aparece no texto da Maria Correia: “O que é ser um menino?”, “Como é
ser um menino?”. Ela traz no caso a violência surgindo como um sintoma na busca de respostas para essas
perguntas.
Trata-se de um menino de 12 anos que tem uma relação com o pai, mas teve a oportunidade de encon-
trar uma analista, a qual manteve em suspenso, na vertente enigmática - muito importante essa observação
– essa identificação apresentada em relação ao pai. Isto quer dizer que o excesso pulsional, como o texto nos
diz, apresentado de forma disruptiva e desajustada, mostra não haver lugar para a palavra mediar esse excesso.
Desse modo, há uma ultrapassagem da barreira da agressividade e aparece a violência.
Portanto, é precioso, no meu entender, o modo como Maria Correia aponta a posição desse sujeito com
as tentativas de escapar dos ditos que o marcaram: “menino trabalhoso”, significante no qual ele se ancora.
Na acolhida do modo hesitante frente a tal significante, uma questão se apresenta – achei delicada a maneira
que é trazido: “captar o modo hesitante do sujeito” frente a esses significantes. De certa maneira o sujeito se
exalta: “as pessoas nem acreditam no que eu sou capaz de fazer...” Mas coloca uma pergunta: “Por que aqui é
diferente?”
Aparece o “Che vuoi?”, o sujeito direciona sua pergunta: “aqui, o que queres de mim?” Instaura-se o
amor transferencial possibilitando uma nova volta ao estádio do espelho para reformular a sua pergunta sobre
o que ele é no mundo, nesse mundo ampliado para além daquele chão onde ele habitava.
Assim, os confrontos e desafios que a analista pode suportar e o próprio sujeito passa a suportar apon-
tam para novas soluções, para possibilidades de novas soluções aos impasses vividos por esse sujeito. A partir
de uma contingência, o tratamento tem uma virada: um objeto fálico, do tamanho que lhe cabe querer se apos-
sar - dá abertura para a entrada da palavra, da ficção que pode fazer a mediação entre ser e ter o falo. Depois,
a entrada na adolescência será marcada pela demanda ao Outro sobre uma posição sexuada.
No texto aparece um parágrafo, uma frase, sobre essa tomada da “ficção como recurso inventivo e em
sua dimensão de saber e verdade parece ser uma referência importante, uma bússola clínica, uma aposta me-
diante o enigma que se descortina”.
Portanto, o analista, ao mesmo tempo em que ousa, inventa, deverá calcular o momento de permitir
que o sujeito continue na construção da sua ficção.
No caso do Núcleo Carrossel, apresentado por Daniela Araújo, uma pergunta se apresenta: “o que nos
ensina um caso clínico acerca do que o reconhecimento do corpo diz das marcas de acontecimentos iniciais?”
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Dizemos que é necessário um tempo para se construir a diferença sexual em uma criança. Sabemos
que o sexual faz a diferença e determina uma posição que é o que viabiliza a ação do analista: preservar a
singularidade, acolhendo a novidade colocada pela criança no tratamento.
O caso Ava, apresentado por Késia Ramos a partir do Núcleo Pastoril, nos instiga a escutar o surgi-
mento de novos significantes surgidos na contemporaneidade e as invenções criadas pelas crianças para lidar
com o real do sexo.
A mãe, angustiada, queixa-se da aparência da filha. A princesa esperada se apresenta como um boy,
quando vem chegando a puberdade. Um vazio de palavras diante do sexo? Só esse semblante de princesa que
estava posto, a partir das palavras da mãe?
Os seus desenhos apresentam - novamente aqui eu faço um recurso ao estádio do espelho – corpos
despedaçados e a analista não acolhe simplesmente os desenhos, mas também outros elementos que compõem
a trajetória desse sujeito, apoiado na figura do irmão mais novo, sempre atento ao olhar do pai. O efeito de
linguagem extraído daí possibilita a sustentação do enigma em torno da posição sexuada da paciente.
Poderíamos nos indagar: trata-se de uma fixação de gozo, pelo significante, desde a entrada desta
menina na linguagem, ou foi uma construção que ela pôde fazer no tratamento para dar resposta ao fenótipo,
um corpo sem pelo, que se apresentou para ela em sua puberdade?
O corpo apresenta-se reconstituído, vestido de jogador de basquete: Niks, um Avatar, e ela endereça à
analista a questão sobre os “superpoderes” que esse Avatar deveria portar, ou seja, a busca no Outro pelas pala-
vras que possam dar lugar à passagem da infância à idade adulta se apresenta sob transferência. A analista não
perde o timing: “Niks é Skin ao contrário. 'Pele' escrito em inglês”. E me pareceu um forte apelo à expressão
Skin head, que quer dizer “careca”.
As intervenções da analista culminam com a devolução do enigma: “O super algo, pele Enigma”,
mirando “o real do sintoma”. Muito importante também na condução desse tratamento essa passagem que
“desalinha os velhos significantes do gozo”. O enigma então é transposto para suas jogadas no basquete.
Niks foi um significante captado mais tardiamente, possibilitando a transposição do enigma para o
jogo de basquete. Com suas jogadas enigmáticas, transmite algo do gozo feminino inscrito não-todo na ordem
fálica.
Estamos diante do que chamamos novos sintomas? O Avatar de Ava não se refere a dizer não ao ser de
boneca que a mãe esperava dela? De princesa à Niks, a rainha do basquete, por que não?
É possível “Ava’(e)star” em um tempo de descoberta! “Ava’star” do basquete, “av/fastar de sua mãe e
descobrir o “desejo sexual por garotas e garotos.”
Na época do que se chamou uma chuva de AEs, muitos AEs homens, nossa comunidade pode extrair
deste ensino como é complexo para o menino aceder à sexualidade, a qual também não é algo já dado, terá
que ser construído o caminho. Como disse Maria Josefina Sota Fuentes à época: "eu não sabia que era tão
complexo para o menino aceder a sexualidade! Sempre me pareceu que a coisa já estava dada, explícita!" E
se divertia com a descoberta. "Confesso sentir certa pena desses meninos cuja busca por um lugar no mundo
dos homens causa muito sofrimento."
`Vimos também nos casos apresentados surgirem dificuldades na construção do viril para o menino, assim
como a feminilidade surge como um enigma para o sujeito na experiência psicanalítica com crianças e ado-
lescentes.
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Rômulo Ferreira da Silva (EBP/AMP)


Palestra realizada no VI Encontro da Nova Rede Cereda-Brasil: Os impasses do sexual e os arranjos
da sexuação (2021).

Transcrição: Cristiana Gallo


Revisão: Gustavo Ramos e Inês Seabra Rocha
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3-  ECOS DO TRABALHO DOS NÚCLEOS DA NOVA REDE CEREDA-BRASIL

ECOS E PONTUAÇÕES DO NÚCLEO PANDORGA1 SOBRE O VI ENCONTRO DA NOVA


REDE CEREDA-BRASIL: OS IMPASSES DO SEXUAL E OS ARRANJOS DA SEXUAÇÃO.
Jussara Jovita e Márcia Frassão

O Núcleo Pandorga segue em sua pesquisa, trabalhando sobre a diferença sexual, sobre a construção do saber
da criança frente ao enigma da sexualidade. Discutimos em nossas reuniões a emergência dos arranjos da
sexuação na atualidade da clínica infantil, onde a urgência na escolha sexual pode surgir. O que queres ser?
Pergunta que pode orientar o analista como centro de um quebra-cabeças onde as peças não se encaixam, o
que fazer com a emergência de um real sem lei e sem sentido?
Jorge Sosa e Gabriela Medin2 ao falarem do tempo, dizem da necessidade de um tempo de
compreender, em detrimento da demanda de soluções cada vez mais rápidas para a troca de sexo. Diversas
soluções surgem, hormônios e cirurgias para dar conta da mudança de sexo, demarcando que a sexuação
requer um tempo para sua realização.
Lacan (1998), em seu texto sobre O Tempo Lógico e Asserção da Certeza Antecipada, nos coloca
que: “O tempo de compreender pode reduzir-se ao instante do olhar, mas esse olhar, em seu instante, pode
incluir todo o tempo necessário para compreender. Assim, a objetividade desse tempo vacila com seu limite.
Subsiste apenas seu sentido, com a forma que gera de sujeitos indefinidos, a não ser por sua reciprocidade, e
cuja ação fica presa por uma causalidade mútua a um tempo que se furta no próprio retorno da intuição que
o objetivou”3. Tempo da infância, tempo de fazer-se um enodamento, um modo de resposta ao Real.
O que nos é apresentado pela clínica infantil, nos casos estudados na Nova Rede Cereda, mostram
que a busca de sentido, status de verdade que é dado à enunciação do sujeito, da criança ou adolescente que
é trazido para a análise, apontam para a urgência na escolha sexual, apontam para a imiscuição do adulto na
criança, ponto que discutimos em nosso texto: “De como se diz o acesso ao como se escreve o sexo?”.
As discussões apontavam para o que podemos chamar de “intromissão do adulto na criança”,
semblantes de menino e menina segundo a lógica do adulto, sendo a urgência na escolha sexual um dos
arranjos na clínica infantil, uma invenção sintomática. Miller, em seu texto: Em direção a Adolescência,
já nos coloca: “Apreende-se aqui, e eu gosto muito desta expressão, ‘a imiscuição do adulto na criança’.
Poderíamos tentar justamente precisar os momentos de tal imiscuição. Há uma espécie de antecipação de
posição adulta na criança”.4
Em nossas discussões no Núcleo Pandorga, a partir das leituras dos casos que se apresentaram no
Encontro Brasileiro e na apostila da Nova Rede Cereda-Brasil, o tempo, ou dar tempo, emerge como um saber
produzido pelos laços com os outros Núcleos. Em sua pesquisa, Inês Seabra, pode discutir em seu livro

1 Coordenadoras do Núcleo Pandorga: Jussara Jovita e Marcia Frassão.


2 Encuentro de la DHH-NRC Diagonal Hispanohablante de la nueva Red Cereda. ¿Qué posicion sexu-
ada para el niño en la época de la diversidade? - 27 de fevereiro de 2021.
3 LACAN, Jacques, 1901-1981. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. (p.205).
4 Miller, J. A. Em direção a adolescência. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de
Psicanálise. São Paulo: Edições Eólia, n. 72, mar. 2016, p.22.
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O objeto e o tempo na clínica psicanalítica com crianças, e nos coloca que: “Um tempo se faz necessário
para que o sujeito possa fazer uma mudança subjetiva e construir um saber sobre seu sofrimento, sobre seu
gozo”5. A falta de cada um provocando as respostas sintomáticas, as ficções, enodamentos necessários para
que a sexuação se realize.
Pontos evidentes da importância da psicanálise com crianças na formação do psicanalista aparecem
nesse percurso de encontros e pesquisas dos Núcleos: o encontro com o analista, os efeitos dessa presença
para a criança, e a incidência nos corpos de discursos que falam da pluralização das identidades, aparecem
como norteadores para que a aposta na clínica infantil siga em nossas práticas na Rede Cereda-Brasil.
Romildo do Rego Barros6, nos coloca a premissa de que a diferença sexual se constrói, não está
dada, nos aponta para um caminho onde o analista pode auxiliar o sujeito nessa nova nomeação produzida
pela criança, demarcando uma ruptura com o sintoma que a trouxe para a análise, com o sintoma dos pais.
Existe um trabalho de produção da diferença, da diferença sexual, qual a verdade do sintoma? A emergência
de um gozo que indica a não complementaridade, apontando para uma perda, onde o analista se faz parceiro,
possibilita a produção de um novo saber para a criança, produções que surgem nas pesquisas desenvolvidas
pelos Núcleos da Rede Cereda-Brasil, a partir dos estudos dos casos clínicos.
Fomos convocados para a discussão da Diferença Sexual e a cada encontro do Núcleo Pandorga ou
com os colegas dos outros Núcleos da Rede Cereda-Brasil, ainda nos vemos sob o efeito dessa convocação,
efeitos do desejo do analista na causa perdida do sujeito.

Jussara Jovita e Márcia Frassão – Coordenadoras do Núcleo Pandorga

Núcleo de Pesquisa e Investigação Clínica de Psicanálise com Crianças - Pandorga

5 ROCHA, Inês Seabra Abreu. O tempo e o objeto na clínica psicanalítica com crianças. Belo Horizon-
te: Editora Scriptum, 2019, p.18.
6 Convidado do Encontro NRCEREDA/Brasil- Março de 2021.
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DIZER O INDIZÍVEL ATRAVÉS DAS MARCAS NO CORPO


M. Aparecida Farage Osório (EBP/AMP)

Durante a quarta parte da entrevista feita a Raquel Cors, para a XI Jornadas da NEL, intitulada:
O Insuportável da Infância, Éric Laurent argumenta sobre a necessidade do analista poder ler sobre o
corpo da criança, como se depositam as marcas de gozo que ela tem recebido, tem encontrado, que ela tem
atravessado e que foram escritas. Ler estas marcas faz parte da nossa tarefa, e, podemos lê-las como marcas
imaginárias, simbólicas ou reais que se depositam no corpo.
Laurent nos diz que no infantil há algo do que não se atravessa, as marcas produzidas na infância
que perduram, marcas do encontro inaugural sempre traumático com lalíngua. Essas marcas deverão ser
primeiro lidas no corpo do analista, enquanto analisante, serão elas que irão comandar o “programa de gozo
do ser falante”.
Mas, de que corpo nos fala Laurent? O corpo na pratica atual orientado pelo real? Corpo que não o
do vazio de gozo?
Vemos uma promoção do corpo no último ensino, onde Lacan ressalta que o parlêtre é uma categoria
que inclui o corpo. Não o corpo tal como é tomado no Estádio do espelho, que se define pela imagem, pela
forma, mas o corpo que se define como um corpo que goza de si mesmo.
Assim, trata-se de um corpo que recebe marcas do significante, saber ler essas marcas é se defrontar
com o choque da lalingua sobre o corpo.
Dizemos que lalingua é esse depósito de significantes sem sentido, um S1 sem o S2. Aqui
o significante sozinho, tem um efeito de afeto no corpo, criando vida com o gozo opaco, diferente da
mortificação e da extração de gozo produzida pela cadeia significante S1 - S2, gozo que não cessa de se
escrever dando entrada ao acontecimento de corpo.
O tecido desses S1 é equivalente
9 às marcas produzidas no corpo pela lalíngua: ressonâncias no corpo
do bebê da linguagem da mãe. Ruídos, sons, palavras soltas, que põem em primeiro plano a materialidade
sonora do significante, que se incrustam no corpo marcando-o, produto do mal entendido na junção do
significante e do gozo.
Na lalingua não há relações binárias, não há relações diacríticas, nenhuma relação diferencial, cada
fonação é igual e diferente da outra, sob a forma do gozo do laleio.
A lalingua foi definida por Lacan no Seminário 20 como uma aliança entre a palavra, disjunta
da estrutura de linguagem, e o gozo. Podemos dizer que na perspectiva do gozo, a palavra não visa o
reconhecimento, a compreensão, ela não passa de uma modalidade do gozo uno.
Assim, tomando o gozo como fato, Miller desenvolve seu “Sexto paradigma”do gozo. Para Miller
nesse paradigma, o conceito da palavra como comunicação, o Outro, o Nome-do-pai e o símbolo fálico,
ficam reduzidos a uma “função de grampo de elementos fundamentalmente disjuntos”.
O Um está encarnado na lalingua”, fundado sobre um “não há relação sexual”, que toma seu
complemento, do “há Um”. Há gozo a partir do Um, o corpo aparece como o Outro do significante, e este
faz no corpo acontecimento, que é o gozo. Um como marca de gozo que itera e em torno dele gira a questão
da existência. Um como a “última estação antes do real” segundo Miller.
Página 20

Lacan aloja o sinthoma no Um, tendo em Joyce sua encarnação, encarnação do que há de mais
singular em cada um. O sinthome como acontecimento de corpo, se deduz das marcas sonoras ditadas pela
lalingua e que provoca o impacto do significante sobre o corpo, dando conta, assim, da pulsão “como o
eco no corpo de que tem um dizer”. O corpo consente a alguns significantes e a outros não, uns passam
outros não passam, estes ressoam, marcando o corpo, de uma forma puramente contingente, produzindo
uma perturbação no corpo, um esburacamento pelo significante. A orientação ao real é a tomada
da primazia do gozo no estatuto desse acontecimento, conjunção do uno e do corpo. Para Miller, o Um é o
nome disto que Freud isolou como restos sintomáticos.
Mas, será preciso o que faz furo (trou), para alojar essas marcas, marcas do que não se pode falar,
porque não implicam o sujeito do significante. “O trou está ao nível do real e do trou, ele faz o efeito maior
do significante, o significante como tal faz trou”. Trata-se pelo efeito do trou (buraco), de dar existência ao
puro “não há”.
Lacan chamou o choque material do significante com o corpo de troumatisme, instaurando para o
parlêtre a marca de um gozo inassimilável e insuportável do Uno sozinho, restando ao falasser a invenção
de um “truc”. Lacan cunhou o troumatique para introduzir a noção de furo, trou, com a irrupção do trop-um
excesso, um gozo.
Portanto, ser traumático, significa o que faz furo.Do encontro entre o corpo como vivente e a língua
materna, encontro primeiro, traumático, estrutural, que aponta para o real impossível de suportar,vão se
somar outros traumas vividos pelo parlêtre, derivados da contingência que marca a vida de cada um.
Para Laurent, o corpo falante não é outro “senão esse corpo marcado que nos fala, mediante
suas irrupções na língua”...“corpo marcado, atravessado por afetos, por marcas que chegam do que ele
experimenta pelo fato que um dizer o atravessa. Sabemos que em cada sessão de análise podem surgir essas
irrupções, como marcas de gozo, podendo ser resgatadas, atravessadas, traduzidas.
Uma análise pode ser levada até o seu osso, quando veremos que ao ser reduzida a questão do Outro
é a questão do Uno que repercute, demonstrando o infantil e seus efeitos e como cada parlêtre se arranja
com esta marca que esburaca o corpo.
Guy Briole, no seu texto “La frase-Una del todo sola”, recolhe a maneira como essas frases sozinhas,
podem aparecer em uma análise: “são da ordem do não-advindo, do que está nas margens do inconsciente,
são marcas que permanecem por sua sonoridade, pela maneira como foram pronunciadas; são frases que
permanecem fora do saber, unidas a um gozo”.
O testemunho de Araceli Fuentes, demonstra como a frase “uma de todo sozinha”, se fixa em seu
corpo. Araceli nos transmite sua dificuldade para fazer o luto da perda de sua mãe, ocorrida quando tinha
8 meses de vida. Aquela perda não pode ser subjetivada. Uma frase ouvida a partir da morte da mãe, falada
pelas mulheres da sua vila quando a viam, a marcou: “- Ay!sisumadrelaviera! (Ai! Sesuamãeavisse!)”.
“A jaculatória invocava la mirada de una morta, percutia em mi corpo, me produzia um grande
malestar. Asisti muda a esta cena uma e outra vez”. Araceli também nos reporta a uma dor de ouvidos que
teve durante sua infância. Por ocasião da morte de seu pai, Araceli se vê submersa em um estranho estado
de congelamento, quando ao ser ativada a memória do gozo fixada pela frase, surge uma enfermidade
autoimune, lupus eritematoso.
Podemos dizer que o acontecimento traumático não foi o fato histórico em sua vida da morte da mãe,
senão o encontro com essa voz que repercutiu em seu corpo, fixando ai o gozo opaco do S1, marcando o
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simbólico do corpo. Fica um resto, “o resíduo da voz, o mais singular e o mais opaco de mim mesma”, é a
resposta sinthomática ao silêncio imposto pelo trauma, conclui Araceli.
Termino trazendo o tão explorado relato de Suzanne Hommel, que se analisou com Lacan em 1974,
ano da intervenção de Lacan “A Terceira”.
No documentário organizado por Gerard Miller, Suzanne Hommel nos transmite uma de suas
experiências mais traumáticas, uma marca sonora de repetição em sua vida.
Ela tinha sempre um pesadelo, do qual acordava com angústia e que a remetia à “Gestapo”. Ela
relata: “- Eu estava contando um sonho a Lacan em uma sessão, fiz uma associação com uma lembrança
infantil, aos oito anos. Associei que, como acordo toda manhã às cinco horas, e esse era o horário que a
Gestapo passava, no prédio onde eu morava para levar os judeus para os campos de concentração. Então,
Lacan se levanta rápido e me faz carinho muito doce no rosto, entendo como um geste à peau, gesto na pele.
Essa surpresa não diminui a dor, mas fez algo mais, prova que 40 anos depois dessa marca inesquecível,
sinto a mão de Lacan na minha bochecha”.
Vemos que a iteração do insuportável, que comemora o acontecimento de corpo vai até a constatação
do incurável.
O efeito do equívoco, posto em ato por Lacan, marca o corpo de Suzanne, fazendo ressoar outro
efeito nele, que faz limite ao Uno que traumatiza e marca o corpo. Confrontado ao Um, é outra a função do
analista.

Núcleo de Pesquisas em Psicanálise com crianças – Pererê - IPSMMG

REFERÊNCIAS
HOLGUÍN, CM. Argumento de las Jornadas de la NEL. Online, n.4, 2020, N.4
LACAN, J. (1971/1972). O Seminário, livro 19: Ou pior. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN, J. (1975/1976). O Seminário, livro 23: O Sinthome. Rio de Janeiro: JZE.
LACAN Quotidien N.576- Le corps parlantes: L`inconsciente e les marques de nos experiences de
jouissance. Entretien avec Éric Laurent par Marcus André Vieira, 2016.
MILLER, J. Perspectivas do Seminário 23: O Sinthome. Rio de Janeiro: JZE, 2006.
MILLER, J. O Ser e o Uno. Inédito, 2011.
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UMA LEITURA DO TEXTO “QUATRO PERSPECTIVAS SOBRE A DIFERENÇA SEXUAL”


DE DANIEL ROY.
Tereza Facury1

A civilização e a subjetividade da época experimentam transformações principalmente no tocante


à estrutura familiar e aos modos de parentesco. Os elementos civilizatórios como a moral, o pudor, a
moderação e a medida, acrescidos a uma decadência do Nome do Pai e a pouca efetividade do valor fálico
dão lugar a um individualismo, onde o que impera é o direito ao gozo ao qual os semblantes já não fazem
mais barreira. A clínica analítica com crianças tem nos mostrado que as identificações infantis não coincidem
necessariamente com as denominações que vêm do Outro, elas já não são mais suficientes. Na esteira disto
vemos surgir junto à teoria do gênero a denominação trans, usada para dar nome àquilo que não se encaixa
mais nesta ordem binária.
Com a denominação trans, se fala então, em uma fluidez de gênero. Seria um novo padrão imposto
em nome da liberdade de escolher seu próprio sexo? O padrão edipiano, ou seja, a identificação com os pais
do mesmo sexo, já não aponta o caminho no labirinto da neutralidade e não ajuda as crianças a se libertarem
dos preconceitos e ideais que recaem sobre elas.
Lacan retoma a ideia explícita em Freud do sexual como traumático e o insere no campo da linguagem,
a partir da afirmação o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ressalta a distância entre o corpo
e a linguagem destacando a força das pulsões parciais que atravessam o corpo do ser falante em busca da
satisfação.
A psicanálise se guia em uma direção diferente das teorias de gênero que se popularizam apontando
o caminho e a possibilidade de uma sexualidade neutra. Ela se importa com a posição do sujeito, como
efeito da linguagem, na sua relação com o Outro e com o corpo próprio. É por isto que o analista, quando
interpelado pelas questões de gênero, não se encontra nem do lado do guardião do templo edipiano, nem
como propagador do liberalismo moral como os ativistas dos movimentos LGBTQi+ se colocam.
Junto ao tema da diferença sexual um desvio nos foi apresentado e acrescido pela Nova Rede Cereda
como orientação para os trabalhos da Jornada do Instituto da Criança “A sexuação das crianças”. Rabanel
pergunta como podemos tratar este desvio que vai da diferença sexual à sexuação. Seria um desvio do
inconsciente estruturado como uma linguagem, aquele do Outro anterior, em direção ao Lacan do objeto
até o Lacan do gozo? Na passagem do significante à função proposicional Lacan isola a função sintoma, a
função fálica e a função do escrito para o gozo.
Daniel Roy chama a nossa atenção ao dizer que a sexuação é o fato sexual enquanto ela se elabora
em um espaço secreto, aquele ao qual responde o inconsciente, e constitui um lugar para um saber, também
secreto, que não se sabe e que faz furo, por isto,um saber sintomático. No caso das crianças, a psicanálise
de orientação lacaniana permite que se ofereça um lugar de endereçamento e de resposta para cada itinerário
singular. Torna-se cada vez mais premente que a nossa orientação caminhe em direção às variadas formas
de declínio seja do pai, dos semblantes e às modalidades de gozo que nos são apresentadas quando a função
fálica não opera.
1 Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG) | terezafacury@gmail.com
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Um percurso
Com os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) Freud introduz o fator sexual no discurso
universal, deixando aberto o campo do saber sobre o sexual e problematizando a inocência infantil e a
sexualidade feminina. O sexual marca e instaura uma diferença absoluta com a qual cada ser falante terá
que se haver durante toda a sua vida.
A característica principal da organização genital infantil consiste no fato de, para ambos os sexos,
entrar em consideração apenas um órgão genital, o masculino. O que está presente é uma primazia do falo.
As observações de Freud sobre a primazia do falo libertaram a sexualidade de uma visão psicogenética da
pulsão dos fatores cronológicos, e da referência anatômica como critério da diferenciação entre os sexos.
Desde esse momento da elaboração de Freud, a diferença entre os sexos torna-se uma questão
complexa, pois, o complexo de Édipo na menina resulta problemático em função das dificuldades de se
conceber a sexualidade feminina a partir do Édipo.
Para Lacan em seu texto “A significação do falo”, o falo passa a ter um valor de significante,
significante do desejo do Outro, mas como esse significante se encontra aí velado e como razão do desejo
do Outro, faz-se necessário que o sujeito reconheça a imposição deste desejo. O encontro com o falo da mãe
designa um momento essencial no tratamento da criança em que se repete na transferência esse enigma “O
que ele quer de mim?
Nos anos 70, Lacan reformula as coordenadas da inscrição de cada ser falante no que ele chama de
o “discurso sexual”. É no discurso que se estabelece a diferença. Portanto, se o homem busca a mulher e
vice-versa, se trata de serem tomados no discurso. Isto é, não há nada de simetria ou de complementariedade
dos sexos. A noção de discurso é crucial na medida em que o significante se refere à utilização da linguagem
como laço entre os discursos. O homem não é outra coisa senão um significante, e é por esta razão que a
mulher o procura. O que está em jogo, portanto, é fazer crerem alguma coisa que não é outra senão um
significante, evidenciando desta forma, a dimensão do semblante.
Uma vez que, é a partir do dizer que os significantes tomam sua função, trata-se para o menino de
“parecer-homem” e a partir daí tudo no comportamento infantil pode ser interpretado como orientação a
este parecer-homem.
Porém, nos dias de hoje, nos deparamos cada vez mais na nossa clínica, com os efeitos do declínio
dos semblantes que pode se apresentar como um acting-out, momento que consiste em fazer o semblante
“passar para a cena”, ou seja, fazer dele um exemplo.Este semblante, pelo fato de ser veiculado no discurso,
pode também ter algum efeito que não seja semblante, o que exige um esforço para mantê-lo e faz com que,
de vez em quando,exista o real. É o que Lacan chama de passagem ao ato (p. 31), muitas vezes evitada,
porém, acontece ao acaso.
Uma identificação sexual é sempre uma identificação de crise, primeiramente porque ela é instável
e projeta os seres falantes no universo dos semblantes, o que não se opera sem uma perda sem garantia, a
castração. É sempre sintomática na medida em que os semblantes fracassam em inscrever o gozo sexual
sempre em excesso na economia de gozo do corpo próprio e coloca em relevo a discordância entre os
semblantes e o gozo. Diante desta falha estrutural, denominada diferença sexual e confrontados com os
embaraços da castração, cada criança lança mão de seus recursos próprios e únicos.

Página 24

O erro comum
A diferença sexual é marcada primeiramente peloOutro e depende de critérios de linguagem. É o
adulto queconstata que o menino se comporta diferentemente da menina. O que Lacan qualifica de erro
comum é a tendência a confundir o órgão com o falo. Quando a criança admite que a menina não tem falo e
persiste com a ideia de que sua mãe é fálica, ela crê em alguma coisa que é imaginária e que não é idêntica
ao pênis.
Um desvio
No momento em que a sexuação aparece no ensino de Lacan a diferença é tratada a partir do gozo
e do Outro que não existe e isto é radicalmente diferente do gênero. Para ele, na identificação não se
tratado fato de se crer homem ou mulher, mas sim saber que há mulheres para os homens e homens para
as mulheres e isto depende de uma inscrição do ser falante na função fálica. O sexo não é mais subjetivado
por um sujeito definido como o que representa um significante para outro significante. A função do escrito
aparece no lugar da função da palavra para definir as consequências psíquicas desta diferença.
Com as fórmulas da sexuação, Lacan leva em consideração o modo próprio a cada sujeito de se
colocar como variável na função fálica. Há duas maneiras de se inscrever na função fálica, correspondente
aos dois modos de gozo possíveis na relação ao outro sexo, o sujeito pode se inscrevertodo na função fálica
(Fx=homem), ou se inserir como não-todo na função fálica (Fx=mulher). Considerar a função fálica como
função de gozo faz valer o real da diferença dos sexos. Opera-se a virada da significação ao real. Da verdade
da diferença sexual na identificação ao real da diferença. Considerar o falo como significante corresponde
à identificação, ao passo que o considerar como função de gozo, vale como identidade.
Para Damase, este desvio até a sexuação nos leva em direção a clínica e à sua apropriação para
uso clínico. A sexuação, um termo psicanalítico, toca a ética e traz à tona a experiência ela mesma. Como
consequência apostamos na produção de um saber novo sobre a criança, que não visa assujeitá-la mais
ainda, mas sim, liberá-la da determinação do Outro. Uma vez concernida pela sexuação, trata-se de restituir
à criança uma responsabilidade quanto à sua relação com o gozo, muitas vezes obscura para ela mesma.
O caminho se dá pela prática da palavra na transferência. Uma prática orientada pela escuta do parlêtre,
definido como aquele que se reduz a ter um corpo para falar.
É inevitável não nos referirmos ao trabalho desenvolvido no Núcleo em 2002 cujo tema era “Como
o sexo chega às crianças”. Hoje nos encontramos novamente em nossa prática clínica com a questão da
sexualidade infantil formulada a partir das questões atuais, principalmente quanto à efetividade da função
separadora do semblante. Na atualidade estamos diante de um império da imagem que escraviza os
indivíduos, ao passo que o semblante, tal como Lacan o elabora, não encarna a ilusão da totalidade nem
de autonomia, portanto, ele tem uma função separadora. O semblante é separador porque ao circunscrever
o gozo torna-se possível abordá-lo sem dar lugar a sua infinitização mortífera. Nohemi Brown, em sua
entrevista nos indica: devemos estar mais atentos à relação do falo com a castração do que aos engodos do
falo.

REFERÊNCIAS:
DAMASE, H. Entrons dans la danse.
https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/entrons-dans-la-danse/
Página 25

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.VII, 1905.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: JZE . p. 31
RABANEL, J.R. Vers le réel de la sexuation chez l’énfants.
https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/vers-le-reel-de-la-sexuation-chez-lenfant/
SOKOLOWSKY, L. La sexuation des enfants a le preuve du réel.
https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/la-sexuation-des-enfants-a-lepreuve-du-reel/

Núcleo de Pesquisas em Psicanálise com crianças – Pererê - IPSMMG


Página 26

SOBRE A SEXUAÇÃO
Cristiana Gallo1 (EBP/AMP)

O VI Encontro dos Núcleos da NRCereda no Brasil que teve como tema “Os impasses do sexual
e os arranjos da sexuação”, trouxe como um dos seus efeitos a extração de algumas orientações clínicas
importantes diante das questões inicialmente colocadas e trabalhadas, além de permitir novas aberturas
acerca disto com o qual cada falasser se arranja buscando encontrar a saída para aquilo que o acomete,
vivido como um embaraço no corpo, com o próprio corpo e com o corpo do Outro.
Nesta trilha aberta, a entrevista concedida por Marie-Hélène Brousse a Laurent Dupont na Lacan
Web Television sobre “Les modes du sexe”2, trouxe elementos importantes para esta pesquisa ao indicar a
perspectiva borromeana para a abordagem das questões relativas à posição sexual do ser falante, uma vez
que tal posição não se definirá, como sabemos, apenas pela corporiedade biológica.
Em sua fala, pareceu importante destacar dois momentos em relação à época, sendo o primeiro 5
a
menção a diminuição da metáfora no discurso corrente, onde “não há mais tanta diferença entre a fala e o
real” e um outro efeito para a subjetividade da época, que se traduz em termos da separação entre corpo e
falante. Neste sentido, ela indica que cabe a psicanálise manter ligado o corpo com o falante, uma vez que
nossa prática se dirige aos modos de gozar.
Caberá então não se colocar restrito ao corpo biológico ou ao gênero, para onde percebe-se que o
discurso atual força a questão, isolando-a.
Marie-Hélène Brousse comenta ter lido dois artigos no jornal, de homens homossexuais, que na
infância se perguntaram se eram trans, contudo, mais tarde se esclareceu para eles que tal pergunta se
colocou por não conhecerem o modo de gozar homossexual “que estava em gestação neles”, diz Brousse.
Disto podemos depreender uma clara orientação para a escuta clínica e a posição do psicanalista
na época, ao acompanhar esta “gestação”, colocando-se “ao lado do sintoma da criança”, tal como se
apresentará no tratamento: falado como queixa por seus pais, pela escola, pelo médico, mas decisivamente
pela própria criança em seu movimento de “construção, desconstrução e reconstrução” dos “arranjos” diante
do sexual - como Romildo do Rêgo Barros nos permitiu perceber a partir de seus comentários em nosso
Encontro.
A perspectiva borromeana e topológica se colocam, na consideração do corpo falante, uma vez que
os registros se enlaçam no espaço e tempo que lhe são dados.
Gustavo Stiglitz, exemplifica tal perspectiva ao trazer a fala de uma adolescente que não
acreditava suficientemente em sua experiência de gozo corporal para nomear-se, uma vez que não lhe
era possível definir-se dentre a multiplicidade de nomeações possíveis a partir de sua singular experiência
de satisfação. Neste sentido, Stiglitz localiza a sexuação como um dos registros em questão em seu exemplo,
explicitando se tratar da “aceitação e consentimento a seu modo de gozo sexual e sua eleição de objeto de

1 Membro da EBP/AMP e Coordenadora do Núcleo CIRANDA – Ribeirão Preto ao lado de Matheus Matioli.

2 ntrevista com Marie-Hélène Brousse realizada por Laurent Dupont. “Les modes du sexe”. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=kM2Ogcq3CaU. Acesso em: 19 jun. 2021.
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satisfação”3.
Neste sentido, trago a contribuição de Sérgio Laia em seu texto “Meninos e meninas não são (ainda)
homens e mulheres”:
“Em um mundo onde a liberação sexual torna-se cada vez mais paradoxalmente a forma de se
liberar do que há de real nos corpos sexuados, verifico que muitas vezes a experiência analítica
poderá ser uma ocasião de se efetivar, especialmente no que concerne aos jovens, o que Miller
(2015/2016, p.22-23) destacou de um escrito de Lacan (1958a/1998), ou seja, uma “imiscuição”
da sexuação no que concerne às diferenças dos modos de gozo dos corpos sexuados.”4
Destaco o “ainda” que entre parênteses lança e relança a dimensão do tempo em uma análise, seja
a análise de uma criança, de um adolescente ou de um ‘dito adulto’, uma vez que a questão da sexuação,
colocada em termos de “aceitação e consentimento” pode percorrer a vida de um falasser.
O desenvolvimento feito por Sérgio Laia neste texto, traz aportes importantes ao que se desdobra
em uma análise, apontando para a importância de tomarmos a dimensão do falo, tal como abordado no
Seminário 23 de Lacan, a fim de extrairmos consequências acerca da conjugação entre o corpo e a fala.
Particularmente na oitava lição deste Seminário, Laia destaca que nela encontramos “novos elementos
para abordar o parasitismo do falo em sua conjugação de uma parte do corpo tomada pelo gozo com a não
menos dimensão gozante da fala, ou seja, na conjugação do que a fantasia recorta nos corpos e do que ressoa
foneticamente no que se fala.”
Tratam-se de alguns aportes para seguirmos em nossa pesquisa que agora se conjuga nos seguintes
termos: “Sobre a sexuação: a criança e seus pais”.

Núcleo Ciranda - Ribeirão Preto.

3 STIGLITZ, G. Sexo. “Identificaciones, género y sexuación”. La sexualidad en el siglo XXI; la elección


del sexo. Olivos: Grama Ediciones, 2019. p. 226 (no original: “aceptación y el consentimento a su modo de
goce sexual y su elección de objeto de satisfacción”)

4 LAIA, S. “Meninos e meninas não são (ainda) homens e mulheres”. p. 11-12. Disponível em: http://
ppg.fumec.br/ecc/wp-content/uploads/2016/08/Meninosmeninas-Homensmulheres.pdf. Acesso em: 19 jun.
2021.
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4- XXXIII ENCONTRO BRASILEIRO DO CAMPO FREUDIANO


Jornada Brasileira de Cartéis - Cajuínas de Cartéis: A infância

O OBJETO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS: O ATENDIMENTO
ONLINE
Inês Seabra Rocha (EBP/AMP)

A clínica psicanalítica que vem sendo realizada através dos recursos online nos coloca diversos
questionamentos. Analistas de nossa própria experiência, podemos testemunhar alguns impasses que nos
colocam a trabalho e a não recuar do desejo de levar adiante a psicanálise frente à subjetividade de nossa
época, atravessada pelo confinamento e a pandemia.
Algumas das questões que nortearam nossas discussões no cartel continuam por serem investigadas:
como se enlaçam os registros, real, simbólico e imaginário, como podemos situar a presença do analista na
5

experiência online? Como sustentar a transferência sem a presença real do corpo do analista? Como operar
com a dimensão do ato analítico e com os cortes de sessão nos dispositivos online?
A clínica online com crianças nos convoca à invenção diante dos desafios que nos traz cada caso.
Destaco aqui a questão do estatuto do objeto que surge na análise de crianças: dos objetos que utilizamos
na clínica como caminho de separação da criança da demanda do Outro, como manejar a cessão necessária
destes objetos que figuram na vertente do objeto perdido, online? Como operar uma subjetivação da
castração sem a dimensão real do objeto?
Outra vertente diz respeito ao lugar de objeto a que a criança pode ocupar na fantasia materna: como
manejar esta presença-ausência da mãe, a realização deste primeiro fort-da necessário para o surgimento da
linguagem e do sujeito, manejo que se torna muito difícil no dispositivo online, seria necessária a presença
real, do corpo do analista se interpondo entre a mãe e a criança? Portanto nos deparamos com os limites
do ato analítico e os princípios do seu poder de corte e separação, aí refletidos nas dificuldades virtuais ou
online.
Considerando-se que uma psicanálise se dá no tempo de separação do sujeito da demanda do Outro,
estará em jogo o objeto do desejo e sua causa. Assim, vemos surgir no atendimento online, a potência da
presença-ausência do objeto olhar e também do objeto voz que sustentam a presença do analista, o manejo
da transferência e as interpretações na direção do tratamento.
Ressaltamos aqui que a noção de objeto na psicanálise aponta para a vertente do indizível, para o
que não pode ser todo recoberto pela ordem simbólica, para o que não pode ser todo dito, para o que resta
como fora do significante, o estranho e infamiliar.
Estamos então, também na clínica online, bem próximos da nossa experiência com o fracasso da
palavra para dar conta do real sem lei e sem sentido, mas apostamos na importância do encontro com o
analista, nos diversos modos da presença do analista, parceiro da aventura do falasser com o gozo que
escapa à linguagem.


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Cartel: A presença do analista


Participantes: Nohemi Brown (Mais um), Analícea Calmon, Cristina Drummond, Maria do Rosário
C. Rego Barros, Inês Seabra Rocha.

REFERÊNCIAS
BROUSSE, M.H. A origem e o lugar dos objetos. In: Arquivos da Biblioteca. Seção Rio da Escola Brasileira
de Psicanálise. Rio de Janeiro, junho 2008.
ROCHA, I.S.A. O tempo e o objeto na clínica psicanalítica com crianças. Belo Horizonte: Editora Scriptum,
2019.
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A CRIANÇA IMIGRANTE: NA PASSAGEM DE LALÍNGUA À ESTRUTURA DA


LINGUAGEM
Jeannine Narciso (EBP/AMP)

A língua é minha pátria


E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero fratria
( Caetano Veloso)
Antes da pandemia, havia um movimento de pessoas em mudança de um país para outro. Para Freud
(1930), sem os avanços tecnológicos, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe
e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Segundo Lacan (1972-
1973), o discurso científico inventou todo tipo de instrumentos que utilizamos e que se tornaram elementos
da nossa existência determinando uma forma de laço social.
Desde o início de 2020, atendo crianças que saíram do Brasil como imigrantes legais. Muitas vezes,
a criança muda de país quando está aprendendo a falar, rompendo com as rotinas com as quais tinha
intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar a sua língua materna e nem
a outra língua com desenvoltura, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha.
Ao imigrar, outra criança tem que aprender uma terceira língua, mas não mostra interesse em
participar das atividades na escola, fala muito pouco, não interage com os colegas. A família é chamada
para tratar as dificuldades da criança, pois a impedirão de ter o acesso à Universidade. Este fato desperta a
angústia dos pais.
No atendimento online e presencial foi possível acompanhar como cada criança tentou inventar uma
maneira de dizer como estava difícil vivenciar a separação, aceitar as novas rotinas, a solidão, a falta de
intimidade, o medo. A angústia aparece transvestida pelos sintomas da infância.
Para Bassols (2019), o estrangeiro traz algo do infamiliar, “encarna, para cada um, um gozo estranho,
segregado, alheio (...) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante”. Na
clínica, quando o infamiliar se apresenta, no encontro com o Outro ou com um gozo invasivo, o falasser
pode não encontrar recurso simbólico para essa convocação, que suscita a angústia. Afinal, a língua é
sempre estrangeira para o sujeito.
Na modernidade, com a globalização a família passou a apresentar um estatuto reduzido; deixando o
sujeito desatado da sabedoria tradicional e junto ocorreu ‘a feminização do mundo’, a extensão de um gozo
no social, não capturado pelo universal que a exceção masculina sustentava e que corresponde a um modo
de gozar feminino.
O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, precisa fazer cálculos
“para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do
fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Assim, para a psicanálise, ser um
imigrante é o estatuto do sujeito, definido por seu lugar no Outro. Sabemos que na análise, o sujeito busca
uma base de operação contra o mal-estar, colocando em palavras o que não pode permanecer em silêncio.
Na clínica com crianças pode-se perguntar se na passagem de uma língua a outra haverá um retorno a
Página 31

lalíngua, que é tecida de significantes, mas anterior à linguagem.

Cartel: Os avatares da pulsão de morte na psicanálise.


Participantes: Elisa Alvarenga (EBP/AMP) (Mais um), Jeannine Narciso ( EBP/AMP), Mércia
Pimenta, Andréia Guisoli, Jonas Almeida.

REFERÊNCIAS 
BASSOLS, M. O bárbaro: Transtornos de linguagem e segregação. Opção Lacaniana online, São Paulo, n.
25/26, 2018. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/texto2.html. Acesso em: 30 de outubro de
2019.
FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. 18. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
LACAN, J. (1972-1973). O seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER, Jacques-Alain. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011.
Página 32

COMO FAZER DO SONHO UM INSTRUMENTO DO DESPERTAR NA CLÍNICA DOS


AUTISMOS ?
Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP)

Freud considera que os sonhos de crianças « não oferecem enigmas para resolver, mas são
inestimáveis para demonstrar que o sonho, segundo sua essência mais íntima, significa uma realização de
desejo. » (p.148) Em seu exemplo do Sonho de Anna Freud, a criança mostra como opera com a linguagem.
Depois de uma indisposição, numa certa manhã, pelo excesso de morangos que comeu, é impedida de
ingerir alimentos até o final do dia. À noite, diz Freud, ela se vinga durante o sonho, ao gritar : « Anna
Freud, molango, molango silvestre, ovo mexido, mingau ! » (151)
Numa leitura sobre este sonho, Lacan aponta o trabalho topológico que Anna faz com os significantes,
numa série de nomeações e ressalta que uma escrita do sonho deve ser buscada « muito mais na forma das
letras do que no sentido do texto. » (p.81) Ao longo de seu ensino, ele faz um percurso do desejo ao gozo, da
insondável decisão do ser ao modo como cada parlêtre responde ao trauma da língua e como o Um do gozo
fica marcado no corpo, o que me leva a pensar nos equívocos reais de lalíngua que proliferam nos autismos.
Se cada parlêtre produz o sonho a partir de sua própria língua e se, como diz Laurent, o gozo « é
o que não pode ser articulado nos caminhos do desejo » porque nele não se trata de uma realização, como
acontece no desejo, mas de uma satisfação, que lugar tem o sonho na clínica com uma criança autista ?
Como fazer do sonho um instrumento do despertar ? E se a voz é « o objeto que comanda o aparelho de
gozo que permite estruturar o mundo das imagens e das sensações do infans » (Maleval, 2017, p.91.) e se a
lalíngua no autismo é constituída de S1s sozinhos numa alienação retida (Maleval, 2019a) em que não há a
queda do objeto, de que despertar se trata ?
Assim, se o sonho pode tocar no real singular de um parlêtre, poderíamos supor que os sonhos nos
autismos também revelam o que ele produz com o seu próprio modo de fazer com sua lalíngua. Meu estudo
segue nesta direção e se desdobra em outras questões em torno da letra, no trabalho que desenvolvo neste
Cartel.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos. Porto Alegre : L & PM. 2018. Vol.1.
LAURENT, É. O despertar do sonho ou o esp d`um desp [1]. Site do XII Congresso da AMP.
LACAN, J. (1958-9) O seminário, livro 6 : o desejo e sua interpretação. RJ: Zahar. 2016.
LACAN, J. (1972-3) O seminário 20 : mais, ainda. RJ : Zahar. 2008, p.62.
MALEVAL, J-C. O autista e a sua voz. SP : Blucher. 2017.
MALEVAL, J-C. De l`alinénation retenue chez l`autiste. Ornicar ? 53 : L’inconscient encore, sa vérité, son
réel. 2019.
Cartel : Sonhos e pesadelos na clínica com crianças e adolescentes.
Participantes : Ana Martha Wilson Maia (mais-um), Bárbara de Campos, Ceres Lêda Rubio, Fabíola Fiuza
Santos, Renata Soares.
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O INDIZÍVEL DO SONHO DO PEQUENO HANS E O REAL DO CORPO.


Ceres Lêda F. Rubio

Há um para além da realização de um desejo que o sonho descrito por Freud nos aponta. Aquele que
é da ordem do indizível e do não interpretável e que se experimenta como um encontro com pedaços de real.
O sonho que não satisfaz à precisão de prolongar o sono (LACAN,1964/1985, p. 59) e que faz despertar.
O que desperta?  Pergunta Lacan. Algo nos desperta para um real, para uma falta, um vazio de
representação significante, um lugar de falta-a-ser, apontando para o objeto  a da pulsão. Assim o real,
está para além do sonho, por trás da falta de representação, o sonho aquilo que o revestiu, o recobriu, o
envelopou. (LACAN, 1964/1985, p. 61). Freud diz de um ponto que é insondável no sonho, um umbigo.
Ponto de contato com o desconhecido (FREUD, 1900/1987, p.132).
O sonho de Hans descrito na parte II do texto de Freud Análise de uma fobia em um menino de cinco
anos (1909) irá nos servir para tratar desse ponto teórico. 
O menino Hans está às voltas com seu pipi que se manifesta no corpo, promovendo uma masturbação
corriqueira, como também a atenção do olhar do Outro, e uma ternura acentuada pela mãe que o torna
“muito sentimental”, diz o pai.  Ele tem medo de sair de casa e teme que um cavalo vá mordê-lo, uma fobia
se apresenta.
O sonho: Hans, com quatro anos e nove meses, acordou chorando, despertou em lágrimas. Ele
nos conta: “Quando eu estava dormindo, pensei que você tinha ido embora e eu ficava sem a Mamãe para
mimarmos juntos”. (FREUD, 1909/1987, p.34)
Freud interpreta o sonho, afirmando que a afeição tornou-se intensa, resultando na ansiedade
quanto sair à rua, que sucumbiu à repressão. Para ele a ansiedade de Hans correspondia a uma ânsia erótica
reprimida, que não tinha um objeto para dar saída, era ansiedade e não medo. A ansiedade aqui é colocada
como sem objeto. (FREUD, 1909/1987, p. 46).
Sobre isso, Lacan aponta a dolorosa dialética do objeto, ao mesmo tempo ali e nunca ali, considerando
ser essa a base da relação do sujeito com o par presença-ausência. A criança aniquilaria, na satisfação, a
insaciedade fundamental dessa relação. (1956-1957/1995, p.186).
O sonho de Hans aponta para isso e confirma o que Lacan diz sobre o sonho, que há a persistência
do desejo, no plano simbólico, mas o que se mantém certamente expresso sem disfarce é o desejo do
impossível. (1956-1957/1995, p.187). Assim, o sonho envelopa aquilo que é da ordem do impossível de
dizer, de realizar. Por isso Hans desperta.
Hans angustia-se porque o pênis se torna real para ele, começa a agitar (LACAN, 1956-1957/1995,
p.231) e não só pela presença acentuada da mãe. A angústia se torna presente no sonho porque aparece a ele
o objeto a da pulsão. O falo aparece como objeto real. A angústia emerge para o sujeito cada vez que ele é
deslocado de sua existência, e onde ele se percebe como estando prestes a ser capturado por alguma coisa,
de imagem do outro.
A angústia é correlativa do momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele
não sabe mais onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá
reencontrar, como um objeto perdido. Isso é a angústia. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 231). Portanto Hans
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não consegue responder à pergunta sobre o que ele é no desejo do Outro, e diante do fracasso do pai em
mediar este desejo, ele constrói sua fobia.
Hans desperta, mas para seguir sonhando. Segundo Miller: “O despertar é igualmente apenas
sonho”, porque o sujeito do sonho se torna sujeito dos diversos discursos que o constitui. O despertar para
a realidade seria uma fuga daquilo que se apresenta no sonho para seguir não querendo saber nada, do
despertar do real. (MILLER, 1996, p.105).

Cartel: Sonhos e pesadelos na clínica com crianças e adolescentes.


Participantes: Mais-Um: Ana Martha Wilson, Ceres Lêda Félix F. Rubio; Bárbara de Campos; Fabíola
Fiúza; Renata Soares.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. O método de interpretação dos sonhos: Análise de um sonho modelo Cap.II In.: A Interpretação
dos Sonhos (1ª parte) 1900. Rio de Janeiro: Imago Ed. Vol IV. Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, 1987, p. 132.
FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). Rio de Janeiro: Imago Ed.  Vol X.
Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 1987, p.34.
LACAN, J. Tiquê e Automaton. In: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise- Livro 11 (1964). Ed.
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, pág.55-65.
LACAN, Jacques. O falo e a mãe insaciável. In: A relação de objeto – Livro 4 (1956-1957). Ed. Jorge
Zahar, Rio de Janeiro, 1995, pág.185.
LACAN, Jacques. Sobre o Complexo de Castração. In: A relação de objeto – Livro 4 (1956-1957). Ed.
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1995, pág. 22—236.
MILLER, J.A. Despertar. In: Matemas I. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996, p.102.
Página 35

5- TEXTOS DE ORIENTAÇÃO DA NOVA REDE CEREDA-BRASIL

O QUE CHAMAMOS DE “ACONTECIMENTO DE CORPO”?


Daniel Roy (ECF/AMP)
 
Essa expressão «  acontecimento de corpo  » como definindo o sintoma se encontra no texto que
Lacan fez para as Atas do Simpósio Joyce em 1975, sob o título de « Joyce o sintoma ». Eis a passagem:
« Deixemos o sintoma no que ele é: um evento corporal (un événement de corps), ligado a que: a gente
o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem (l’on l’a, l’on l’a de l’air, l’on l’aire,
de l’on l’a) Isso pode até ser cantado e Joyce não se priva de fazê-lo. »[1]. Por que Lacan nos pede para
«deixar o sintoma no que ele é»? Indo ao mais elementar, isso se escuta como uma recomendação de não
separar o sintoma, em seu « ser », do « ter » do corpo que caracteriza o homem: então o corpo não se
sustentaria senão com o apoio do sintoma? E o sintoma, ele não deveria mais então ser considerado sem
seu « enganche » ao corpo?
Uma primeira resposta a essas perguntas, já não está incluída na própria frase? Lacan indica aí, com
efeito, que o sintoma « isto pode até ser cantado », sob a forma de fora do sentido do ritornelo infantil.
Na grande obsessão do homem dos ratos, nos sintomas corporais de Dora e das primeiras histéricas
« freudianas », nas compulsões do homem dos lobos, na fobia dos cavalos do pequeno Hans, poderíamos
então escutar uma « musiquinha » que constitui seu osso? Parece-me que Lacan nos convida aí a nos
desprender, como analistas, do apelo ao sentido exercido pela cadeia significante enquanto tal, para acolher
o gozo-sentido do sintoma como o pequeno ritornelo do corpo falante, o ar que se tem na orelha e que
insiste sem razão, mas não sem ressonâncias, o ar que faz nosso arejar (notre aire) (nosso assentamento-
assise) e nosso passo (nossa errância - erre). A musiquinha que guia nossa existência.
 
Que corpo ? 
Se partirmos do corpo tal como Lacan o aborda de modo absolutamente renovado nesse texto
contemporâneo ao seminário, Livro 23, O Sintoma [2], somos tocados pela afirmação repetida diversas
vezes nesse texto de que « o homem tem um corpo e só tem um », mas uma repetição que se apoia sobre
a extraterritorialidade entre palavra e escrita, da qual Lacan demonstra a eficácia usando a escrita fonética
nessa frase (« UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium »[3]). Com efeito, ele opera
fazendo isso, um fracionamento do sentido, que faz literalmente explodir nossa tendência a compreender
essa frase e a transformá-la em banalidade. Enunciando essa frase Lacan realiza em ato o que ele diz,
ele cria um « acontecimento de corpo», isto é, um acontecimento de discurso que é ao mesmo tempo
acontecimento de gozo, fazendo-a dar um « pulo do sentido (le bond du sens) »[4] – que se opõe ao « bom
sentido (bon sens) » - se servindo das mesmas palavras. Ele dá por esse meio o modelo da interpretação:
fazer surgir com as mesmas velhas palavras, « amarrotadas » um pouco, seu valor de gozo-sentido. Ele
o efetua porque ele consegue reunir conjuntamente o que ele produziu durante seu ensino como sentido-
gozado a propósito do corpo, a saber, a construção de três corpos derivados de « três ordens »: imaginário,
simbólico e real. Uma frase desse texto as reúne para fazer escutar de forma clara que o homem só tem
um corpo: o que testemunha isso, diz ele, é « o fato de que ele tagarela para se azafamar com a esfera
que faz para si um escabelo »[5]. É muito importante aqui para nós captar essa insistência de Lacan, pela
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seguinte razão: o que ele define como sintoma, é o que acontece (o acontecimento) a este corpo aí, e LOM
não tem senão isso, esse um-corpo, não tem outros recursos além disso para se reconhecer aí naquilo que
lhe acontece.
À pergunta « O que você tem? », que serve ao sujeito para « se interrogar ficticiamente», mas que
nos coloca na direção, só há uma resposta : « eu tenho isso… ». Vamos ilustrá-lo de maneira simples: o
que você tem para chorar, para gritar, para ficar zangado, para se angustiar…? A isso, o sujeito só pode
responder declinando um fenômeno do corpo imaginário (anatômico, fisiológico), ou um fenômeno do
corpo simbólico (da mentalidade, do psiquismo), ou um fenômeno que deriva do real do corpo (aquilo que
o atravessa, aquilo no qual ele tromba aquilo que ele não consegue dizer), ou seja, que ele responde com
o saber retirado dos discursos correntes, e se ele está em análise, ele responde com o inconsciente. Esses
diversos fenômenos de corpo só são registrados como « acontecimentos de corpo » na medida em que eles
advêm ao corpo que se tem como um. Tomados em outros discursos que os dominam, eles não podem
encontrar seu valor de acontecimento. Eles são acontecimentos, sem Outro, na medida em que eles se dizem
no tratamento, pois é neste dizer que se revela seu valor de gozo, num relâmpago. É na medida em que eles
se dizem que se registra para aquele que fala, e para o analista, o « preço do corpo »[6] que eles carregam
à revelia do sujeito: é o sujeito histérico que nos faz perceber isso, ele/ela que aceita este sintoma no outro,
que percebe isso em um outro corpo. Mas é isso que faz seu drama, na medida em que ela/ele procura assim
a se extrair daquilo que, no final de se ensino, aparece para Lacan como o único limite ao qual o homem tem
que se haver, seu corpo, limite que é também sua única responsabilidade.
 
Três experiências do corpo

1 - « A esfera » ou os efeitos da língua sobre o corpo imaginário


A esfera é aquilo a que Lacan reduz o corpo imaginário no final de seu ensino, esse corpo que, no
« Estádio do espelho », é chamado a se identificar como uma unidade, uma imagem na qual o homem se
reconhece, aí onde ele é visto pelo outro que o acolhe. Mas neste próprio movimento no qual a imagem
unifica os pedaços do corpo pulsional, até então esparsos, esta imagem, o corpo imaginário, lhe furta seu
ser, e o entrega a todas as capturas imaginárias (rivalidade, ciúme, concorrência). Assim quando o corpo se
constitui como imagem, ele não existe mais como corpo vivo, eis o que diz o estádio do espelho, e a marca
do vivo se inscreve naquele corpo como falta (manque), designado por Lacan como falo imaginário. Os
efeitos subjetivos da língua sobre a consistência imaginária do corpo são duplos: por um lado o narcisismo,
termo freudiano, ao qual Lacan vai substituir aquele de « adoração », e por outro todos os termos que,
numa língua, designam aquilo que falta a uma imagem para ser completa: « um defeito (défaut) », « um
dano », mas isso pode ir até o furo nessa consistência, tomando emprestado os furos anatômicos. Portanto,
dois efeitos da língua sobre o corpo imaginário: 1) a adoração do corpo; 2) a falta sob todas as suas formas
imaginárias.
Aquilo que faz falta, defeito, não se registra unicamente como um « a menos », mas eventualmente
como um « em excesso ». Assim podemos acrescentar um terceiro efeito: 3) aquilo que faz mancha, mancha
física ou mancha moral.


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2 – Os efeitos da língua sobre o corpo concernido pelo simbólico


 É fundamentalmente um corpo mortificado pela língua, aí onde o sujeito é representado por um
significante para outro significante: é o corpo da sepultura antiga, cercado pelos diversos bens de uso e de
troca, até mesmo de outros corpos sobre os quais ele tinha direito de gozo. Notemos aqui que esses objetos
de gozo não fundam em nada o gozo como absoluto, mas ao contrário como demarcado, limitado: « eis
qual é o valor possível dos gozos para um homem, seja ele o mais poderoso entre os homens! ». Nessa
perspectiva, aquela do corpo concernido pela linguagem, a marca do vivo é uma marca de divisão que
atinge o sujeito, enquanto vivente e para além mesmo de sua morte, divisão entre o possível de seu desejo
e de seus gozos, por um lado, e por outro lado um real impossível de situar. « O corpo, a levá-lo a sério, é,
para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes. »[7].
Essa marca, o falo simbólico, designa o efeito sobre o corpo dessa incorporação do corpo do simbólico. É
ao mesmo tempo uma negativação e uma localização de gozo, ao mesmo tempo um « não » ao gozo – o
efeito de castração - e um « nome » - o traço unário. Mas há no corpo vivo alguma coisa que não se deixa
negativar, alguma coisa que não se deixa capturar por um « dizer que não » e que, por isso, por sua vez, cria
um furo no simbólico, um furo no saber, « um furo que não há meio de saber »[8], o sexual.
Dois efeitos da língua sobre o corpo dessa mortificação simbólica: 1) A marca, o brasão, a queimadura
com o ferro em brasa, que podem fazer nomeação; 2) Um efeito de furo, que se registra subjetivamente
como enigma, fundamentalmente enigma do sexual.
Mas J.-A. Miller nos ensinou a reconhecer o efeito de impacto sobre o corpo vivo do significante
sozinho, que se isola num regime da palavra que privilegia o não- sentido, os nadinhas de sentido, nos
sonhos, nos lapsos, nos equívocos significantes, ou seja, todas as aparas do discurso. Isso aí « para que o
sujeito se aperceba que esse inconsciente é o seu», senão ele pode sempre pensar que isso vem do Outro, o
que é a condição mais comum daquele que vem ver um psicanalista. É esse saber, esse inconsciente– que
não é nem aquele das leis da aliança e da filiação nem aquele dos significantes mestres — « que afeta o
corpo do ser que só se torna ser pelas palavras, isso por fragmentar seu gozo, por recortar através delas
até produzir as aparas com que faço o (a), a ser lido objeto pequeno a, a (a)causa primária de seu desejo
»[9]. Não se trata aí dos efeitos corporais do significante, não mais mortificação, mas efeitos de gozo, um
movimento de « corporisação »[10] da língua enquanto que ela afeta o corpo vivo. Há, portanto, um terceiro
efeito corporal da língua: 3) o afeto, essencial para tomar a clínica atual.
É nesse momento de báscula em seu ensino que Lacan vai condensar esses três efeitos corporais da
língua em sua dimensão simbólica através do verbo « tagarelar (jaspiner) » que designa na língua francesa
a tagarelice (bavardage). Trata-se aí do puro gozo da língua em sua materialidade, em seu «latido », pois
« jaspiner » é derivado da palavra « japper (ganir) » que designa o pequeno latido do cachorro!
Não se deixar identificar às marcar do significante tal como ele circula nesse « tagarelar (jaspiner) »,
não ser tomado em sua dimensão de semblante, deixa o sujeito entregue aos objetos pulsionais que vieram
em seu lugar: ei-lo no centro dos olhares, ou das chacotas às suas costas, ele vai se fazer empanturrar ou
rejeitar como um dejeto. Não há mais meio de franquear o umbral do colégio ou do liceu, esse corpo não
pode mais se alojar neste espaço tecido pelas marcas significantes, e ele se ejeta desse lugar.

3 - É preciso falar aqui desses fiapos de gozos, desses pedaços de real, dessas lascas de corpo,
que são os objetos (a).
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Eles são, com efeito, o produto desse fato de que « ele tagarela para se azafamar com a esfera » que
constitui a experiência de uma análise. Retirados do gozo do corpo no encontro com a demanda do Outro da
linguagem, provenientes então dos objetos pulsionais, eles localizam e difratam esse gozo em extensões que
são os objetos que causam o desejo, como objetos preciosos escondidos no coração da fantasia do analisante,
mas também como objetos mais de gozar que aumentam com prazer o corpo que se tem. Esses objetos
designam então « o real do corpo» tal como ele infiltra na esfera imaginária e na tagarelice significante. Os
efeitos desses objetos « reais » sobre o corpo se recolhem 1) como « aquilo que é impossível de suportar »,
como « aquilo contra o que se tromba », « aquilo que não pode se dizer» ; 2) como aquilo que cai, aquilo
que é rejeitado ou que surge do furo, aquilo que retorna; 3) mas também na cifração da língua através dos
meios pulsionais do corpo, cifração oral, anal, escópica, invocante da língua, tal como escutamos na criança
muito pequena.
 
Se fazer um escabelo
O corpo foi de início abordado por Lacan como despedaçado e unificado como corpo imaginário,
depois se apresenta como corpo simbólico concernido pela linguagem, que reparte os gozos e o torna
suporte de marcas, condensadoras de gozo, para enfim se produzir como real de um corpo despedaçado pelo
golpe « besta » da língua. Isso faz Lacan dizer que é a língua que traumatiza o corpo, enquanto que ela lhe
impõe esse trabalho de cifração, que acabará por constituir o gozo fálico, que designa no final do ensino de
Lacan tanto o gozo da palavra, como o gozo sublimatório e o mais de gozar [11]. Esse gozo que aparece fora
do corpo no sentido de « de fora( en dehors) » da « esfera » do corpo imaginário, é entretanto constituinte
do corpo do ser falante enquanto que ele é feito de substância gozante.
Esse corpo « que o homem tem » é assim fundamentalmente um corpo que « se goza », que se goza
por todos os meios que são a palavra, os objetos mais de gozar, a sublimação. Lacan vai dar um nome a
esse corpo constituído de substância gozante, um corpo que não opera nem na substância extensa, nem
na substância pensante, um corpo que ex-siste ao espaço físico e ao espaço mental. Um corpo que não se
sustenta nem por um « eu sou… », nem por um « eu penso » mas por um « se goza ». O nome dado por
Lacan a esse um-corpo é aquele de escabelo, um corpo graças ao qual cada um se crê belo, que serve a cada
um de pedestal, isto é, também de ocasião de quedas. Assim o escabelo é a condição mesma do ser que fala,
o homem (UOM) que não tem outro ser do que o corpo que ele tem como um corpo, o « um » designando
aqui o Um de gozo que sustenta esse escabelo,
Este equilíbrio é ao mesmo tempo robusto e frágil, como o indica essa frase que me serve aqui de
bússola: « ele tagarela para se azafamar com a esfera que faz para si um escabelo».
É robusto e isso se registra de bom grado como « traços de caráter », como « a personalidade », isto
é, os hábitos, as modalidades de gozo.
É frágil pelo fato de que esse escabelo repousa sobre uma amarração que, para um sujeito, se operou
pela sorte, de modo contingente, entre um patchwork de imagens, recortes de discurso e fiapos de gozo.
É uma amarração sintomática que contém em seu cerne a contingência mesma da presença no mundo
do sujeito, contingência que ganhou valor absoluto de gozo (o melancólico é confrontado sem mediação
a esta marca que faz furo) e ao qual se articula o desejo inconsciente. É isso que a histérica decifra sobre
o corpo de um/uma outro. Ela lê no sintoma que afeta o outro corpo o índice do valor de gozo que veicula
o desejo enquanto falta. Ela o lê também no Outro, no discurso do mestre, do qual ela revela a verdade de
sujeito dividido.
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Assim o sintoma é o acontecimento que vem afetar esse corpo aí, que vem afetar o escabelo e vem
mostrar sua trama, sua lógica. É nesse sentido que Lacan fala de Joyce dizendo que ele « é sintomato-
logia »; ele atualiza com efeito em sua escrita e em sua vida a lógica do sintoma, « fazendo a volta de sua
reserva » de escabelos, se fazendo assim pedestal.
Esse sintoma aí funda uma nova clínica que é aquela dos efeitos corporais da língua, efeitos se
produzindo na consistência imaginária do corpo, em sua trama simbólica, em suas epifanias reais. Esses
sintomas, que nós chamamos de novos, são para ser construídos no tratamento como acontecimentos do
corpo de gozo, que são os únicos verdadeiros acontecimentos de vida, de uma vida de homem.
Uma psicanálise se define então como o dispositivo que lhe permite fazer com o que o determina
1) alguma coisa « que lhe ocorre » como se você o tivesse escolhido, 2) fazer daquilo que lhe ocorre um
sintoma 3) enquanto que acontecimento de corpo, quando se atualiza na sessão analítica um dizer que
morde sobre um gozar. Ele faz acontecimento, contingente portanto, já que ele realiza uma amarração entre
um dizer e um gozar « para se fazer um escabelo » : é assim que Lacan termina sua frase. Se fazer um
escabelo do corpo de gozo em sua consistência imaginária, seu furo simbólico e seus mais de gozar, é se dar
uma chance de « escabelastração », castração do escabelo, para usar dele de uma boa maneira, para aprender
a se servir da consistência imaginária, do furo simbólico e de seus mais de gozar.

Tradução: Cristina Drummond (EBP/AMP)


Revisão: Dony Antunes

REFERÊNCIAS
[1] Lacan J., Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 565.
[2] Lacan J., O Seminário, livro 23, O sinthoma, Rio de Janeiro, Zahar ed., 2007.
[3] Ibid., p. 561.
[4] Ibid., p. 562.
[5] Ibid., p. 561.
[6] Lacan, J. O Seminário, livro 16, De um Outro ao outro, Rio de Janeiro, Zahar ed.,  2008, p. 359.
[7] Lacan J. « Radiofonia », Outros escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 2003, p. 407.
[8] Lacan J., Le Séminaire Livre XXI, RSI, leçon du 8 avril 1975, Ornicar n° 5, dec-janv 75/76, p.39.
[9] Lacan J., « …Ou Pior, Relatório do Seminário de 1971-1972 », Outros escritos, op.cit., pp. 547-548.
[10] Miller J.-A., « Biologie Lacanienne et événement de corps », La Cause freudienne N° 44, Février 2000,
pp. 57-59
[11] Miller J.-A., « Les six paradigmes de la jouissance », La Cause freudienne N° 43, octobre 1999, pp.
24-29.
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6 - ACONTECE

RESENHA DA REUNIÃO DO NÚCLEO CIRANDA-SP EM 10.06.2021

Iniciamos a retomada da discussão do caso da Jovem Homossexual, destacando a questão de como


pensar o feminino, considerando que desde Freud se apresenta, por estrutura, como rejeição ao feminino. Com
Lacan, a contribuição sobre a dimensão do gozo aponta para a importância de se avançar para além das iden-
tificações, ponto no qual Freud se detém em sua interpretação do caso e que resulta no fracasso do tratamento.
É importante lembrar que esta dificuldade também se revela no caso Dora.

Neste caso, pudemos desenvolver uma elaboração sobre a versão do feminino na Jovem não como
perversão, mas como uma “resposta perversa”. Isto se localiza no momento em que a mãe engravida e o filho
como objeto real incide no que Lacan aponta como uma “virada” em sua posição sexuada. Identificada ao pai
imaginário, a Jovem “zomba” da castração, “não aceitando”, e faz um movimento de desafiar a lógica fálica.
Neste desafio, ela se transforma em instrumento de gozo para a Dama na tentativa de restituir o gozo no Outro.

Ao trazer o caso Dora para cotejar com a Jovem, pudemos marcar algumas diferenças em relação à
versão que cada uma constrói em relação ao pai e as identificações em jogo, assim como cada uma se posi-
ciona frente ao enigma sobre o feminino, onde se recorta uma pergunta sobre o que é ser uma mulher em Dora.
Vale dizer que ao enaltecer a Dama em que pese a idealização de modo extremo, a Jovem tenta fazer existir A
Mulher.

A partir dos elementos clínicos do caso Dora1, vamos aprofundar a localização das marcas e o estatuto
da fixação do gozo para trabalhar a vertente da repetição no segundo ensino de Lacan e como se formula o
“saber fazer” com o gozo.

O link da próxima reunião, que será no dia 24.06.2021 às 20:00 hs será enviado 15 minutos antes aos
que já estão inscritos. Novos interessados poderão se inscrever através do email: nucleocirandasp@gmail.
com.

Até lá!

Coordenação Núcleo Ciranda-SP


Camille Apolinario Gavioli
Raquel Diaz Degenszajn
Colaboração
Silvia Jacobo

1 https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/dora-enfant-sexualite-et-difference-des-sexes/

Referências que foram comentadas na última reunião:

1)http://www.isepol.com/asephallus/numero_27/pdf/3%20-%20ERIKA%20VIDAL%20E%20MAR-
CIA%20MARIA.pdf
2)http://almanaquepsicanalise.com.br/a-homossexualidade-feminina-no-plural/
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3)https://www.youtube.com/watch?v=RIieh39c6dQ
4)https://www.youtube.com/watch?v=3mvgNwmsFMQ
5)http://uqbarwapol.com/lo-trans-una-respuesta-mas-viviana-mozzi-eol/
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O INFANTIL NA CONSTRUÇÃO DO CASO CLÍNICO1

Blanca Musachi (EBP/AMP)

“El factor infantil no es un concepto, menos una ortodoxia, sino un intento de profundizar
este punto clínico alrededor del cual podemos estructurar un caso”
Débora Rabinovich


Primeira escansão Atualidade do infantil

Quando Lacan diz no seminário 16 qual é a biografia infantil que interessa à psicanálise, e que nos
interessa considerar para a construção do caso clínico, me lembrei da expressão “imiscuição do adulto na
criança”, que podemos colocar em tensão com algo que diz Lacan no citado seminário, e que tem a ver com
aquilo que traz sempre o chamado adulto, que Lacan prefere chamar de “profundamente adulterado”, quando
vem nos falar das relações interpessoais levando a confundir as relações interpessoais (entre as pessoas do pai,
da mãe, os irmãos), com as relações primordiais.
A biografia chamada infantil, que chamamos de original, diz Lacan, é algo sobre o qual temos que
nos interrogar verdadeiramente, para entender o que ela emascara e o que a determina. O contexto no qual
Lacan nos coloca esse interrogante é a relação entre o saber e o gozo e as “aporias respostas”2 em torno dessa
relação. As anedotas e circuitos biográficos que se repetem na transferência, diz Lacan, apresentam sempre a
fronteira aberta entre o saber e o gozo que o neurótico interroga, “hiato que nada de fato pode suturar”, porque
se encontra com um ponto de impossível.
Lacan diz que o momento da eclosão da neurose, -está falando da neurose infantil, me parece- se
presentifica entre “o ponto de impossibilidade ou o ponto ao infinito sempre introduzido pela proximidade da
conjunção sexual e sua face correlativa, que é a projeção dessa impossibilidade em termos de insuficiência,
devido ao tempo prematuro em que ela se joga na infância. Mas por que esse tempo não seria sempre prema-
turo a respeito da impossibilidade? A insuficiência emascara essa impossibilidade...”3
O que diz Lacan é que o fato de que o ser vivo seja prematuro, reduzido a suas próprias forças, e por-
tanto no tempo da infância não estar, por força, à altura para concluir sobre a impossibilidade da relação do
saber e o gozo, permite que a insuficiência seja um álibi para mascarar a impossibilidade em jogo.
1 Conferência pronunciada no Ateliê de construção de caso clinico, coordenado por Fernanda Turbat.
Instituto clínico de orientação lacaniana de Santa Catarina. 21/7/2020 2 Título do capítulo XXI do Seminário
16. 3 Lacan, J.: O Seminário, livro 16, De um Outro ao outro; pág. 303 Há um hiato impossível de suturar entre
o saber e o gozo. Ou seja, algo do gozo permanece irredutível ao saber na biografia chamada de original. Nesse
lugar, as “aporias respostas”, as ficções. E as letras de Lacan nos permitem ler a partir de quais elementos se
tecem essas ficções.
Voltarei sobre isso, mas antes gostaria de lembrar com vocês que Freud ensinou que o núcleo da neu-
rose é a neurose infantil. Poderíamos dizer, parafraseando Freud, que a neurose infantil é o grão de areia no
centro da pérola neurótica. Algo irredutível.
No núcleo da neurose do adulto Freud se encontrou com a neurose infantil, ou seja, com a maneira com
1 Conferência pronunciada no Ateliê de construção de caso clinico, coordenado por Fernanda Turbat.
Instituto clínico de orientação lacaniana de Santa Catarina. 21/7/2020
2 Título do capítulo XXI do Seminário 16.
3 Lacan, J.: O Seminário, livro 16, De um Outro ao outro; pág. 303
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a qual o falasser respondeu em sua infância, para tratar o encontro traumático com o desejo do Outro e com o
gozo.
Constatamos nas análises, e nos testemunhos dos analistas que finalizaram a experiência, que o infantil
é uma experiência sempre atual, algo do infantil perdura ao longo da vida, algo que tem a ver com as marcas
que deixaram cicatrizes indeléveis do encontro do vivo com a linguagem. No testemunho de Anne Béraud, AE
em exercício da Escola Una, encontramos que: “A neurose infantil revelou que desde a infância, fazia fazer-
me objeto que se joga fora, objeto que cai”4 . Ela dirá que do infantil do trauma cai um resto inanalisável, lugar
da marca, do traço, cicatriz, inscrição. Furo que constitui o limite da análise, umbigo do reprimido primordial
“ponto de costura em tanto que escritura no nível do umbigo”5 .

A neurose infantil é o tempo no qual o sujeito elabora um saber que lhe servirá como meio de gozo.
Esse saber o sujeito o elabora a partir do que lhe foi oferecido, como diz Lacan no seminário 16, pelo Outro
parental, em termos de saber, gozo e objeto a, para tecer uma ficção que será a biografia que nos interessa para
a construção de caso em psicanálise. E a transferência analítica é o tempo de elaboração, de leitura da neurose
infantil.

O infantil tem um destino de leitura na análise. Mas como diz Miller, na análise a leitura não é sem o
apoio da escritura. Irei retomar esse ponto mais adiante.

Segunda escansão

A construção do caso clínico.


Da fala à leitura
Irei me apoiar nessa primeira escansão sobre o tema da construção do caso clínico, em um livro de
Enric Berenguer que se intitula Cómo se construye un caso?, produto de um seminário teórico clínico que o
colega da ELP realizara em Caracas, Venezuela; e em uma conferência de Alexandre Stevens, colega da ECF,
que não está publicada, mas que podem encontrar em Rádio Lacan; a conferência se intitula: Desenvolver o
caso e ler o sinthoma. E em todas as referências que surgiram a partir desse material.
As primeiras questões em torno das quais decidi organizar um seminário na EBPSP desde o ano pas-
sado, e que hoje trago para vocês como parte de um work in progress: Como se constrói um caso? Por que e
para que haveria de construir-se um caso? Quem constrói o caso? Da história à lógica, uma crise do relato de
caso em psicanálise: falsas oposições, falsos dilemas. Fica em questão: a função da supervisão, dos seminários
clínicos, da apresentação de pacientes. Dos dois tipos de sequências se apresentam nas construções de caso:
as do início do tratamento e as do final. Podemos nos perguntar se os testemunhos de passe fazem parte da
construção de um caso clínico.
Começo por dizer que não existe um padrão para a construção de caso, existe heterogeneidade,
distinções, diversidade. O que verdadeiramente importa é que a construção de caso é um instrumento de for-
mação e de transmissão da psicanálise, que não é uma ciência, mas uma práxis que preza pela singularidade.

Mas antes de mais nada, é bom precisar a que chamamos de caso em psicanálise. Eric Laurent diz que,
“um caso é um caso se ele testemunha sobre a incidência lógica de um dizer no dispositivo da cura, e sobre

4 Béraud, A.: L’amur de l’amour em “Revista La cause du désir, Nro. 101; abril 2019.-
5 Béraud, A.: El sueño ?índice de la verdad o de lo real? La mordedura; em Revista Freudiana Nro 86;
mai-ago 2019; pág. 159.-
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sua orientação em direção a um problema real, de um problema libidinal, de um problema de gozo.” Só as-
sim “poderemos falar do caso no sentido do casus latino, isso que cai, contingência inoportuna, ou o Einfall
freudiano que recobre a mesma zona semântica”6 .
A partir daqui já podemos ver que o que interessa para a construção de caso em psicanálise, não é a
escuta das anedotas, das histórias biográficas que se repetem na transferência, mas a leitura lógica de um dizer.
O que se lê nas entrelinhas entre os ditos, e que é a enunciação que tem a ver com um problema libidinal, de
gozo. Essa é a direção pelo real, a que convém à transmissão da psicanálise.
Não se trata então da recopilação de dados e ditos em excesso, que o praticante inexperiente pode
considerar erroneamente como uma garantia de fidelidade ao caso, de “objetividade”, pois isso não atende à
leitura da enunciação em jogo.
Também não se trata de pecar por defeito, diz Enric Berenguer. Às vezes o analista experiente pode
pecar por defeito, e tentar suprir essa falta com o recurso à teoria, o qual também é desaconselhável, pois não
se trata de transformar a construção de caso em uma metalinguagem.
Também não se trata do meio termo. A tensão entre defeito e excesso se reproduz de fato ante qualquer
relato clínico. Não há o todo do caso clínico, e no início vimos que é algo de estrutura: há um ponto de impos-
sível, de irredutível do real ao sentido. Então não é a mesma coisa fazer uma descrição do material recolhido
das sessões, que construir um relato clínico onde algo do real possa ser, não traduzido, mas nomeado sob
transferência. Esse fator é muito importante, sempre o caso que se constrói é de uma clínica sob transferência,
que inclui o desejo do analista, o estilo do analista.
Então o importante é poder situar quais são os fundamentos e a função da construção de um caso.
Começo pelo termo caso, para após ver algo em relação ao termo construção. Como bem diz Enric
Berenguer, é legítimo falar em construção de caso, pois já a neurose e a psicose são construções. No âmbito
mesmo da análise, a neurose de transferência é um artifício que inclui o analista. O sintoma, o fantasma são
construções. O delírio é uma construção. Que sejam “formações substitutivas” não fazem delas menos reais.
Quer dizer que as construções do sujeito tem efeitos bem reais, para a vida mesma do sujeito.
A teoria também é uma construção. Miller no curso El ultimíssimo Lacan diz “Que el significante en lo
real no hable, que el significante en lo real sea mudo, quiere decir que nos perdemos –excepto cuando hacemos
construcciones” 7p.230. A teoria é portanto, uma ferramenta que nos permite a leitura da lógica em jogo no
caso a construir.
Por exemplo, voltando à biografia. Como orientar-se para saber o que é importante a partir dos relatos
do analisante? Lacan vai dizer no seminário 16, de Um Outro ao outro, que não se trata apenas das relações
interpessoais e a historia da criança para deduzir a neurose infantil. O que é preciso levar em conta é como o
sujeito constrói sua biografia, uma verdade que tem estrutura de ficção, a partir, diz Lacan, de como tem se
oferecido ao sujeito o saber, o gozo, o objeto a. Essas são as relações primordiais.
A neurose infantil é uma construção para responder a esses três termos em que se destacam as relações
primordiais. Primeiro, o saber e o gozo tem a ver com o Outro primordial, de como o pai e a mãe transmitiram
algo disso para o sujeito, de como isso foi inscrito no simbólico para o sujeito e o que ele fez com isso, como
isso se fez romance familiar, verdade do par parental, teorias sexuais infantís.

Segundo, quanto ao gozo: trata-se de ler o que está em excesso na relação ao gozo, o que está excluído
do significante, que não se inscreve mas insiste, se repete, com o qual o sujeito se choca, se confronta e inventa
6 Laurent, E.: O relato de caso, crise e solução; em revista Almanaque 9, ano 6, nov de 2003; IPSMMG;
pág. 69.-
7 Miller, J-A.: “El ultimísimo Lacan”; Paidós; Buenos Aires; 2013; pág. 230.-
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respostas sintomáticas.

Quanto à relação ao objeto. O objeto representa o sujeito no desejo do Outro. O objeto é o ser do sujeito
em seu estado inicial. Mas também é um resto de gozo do qual tem de responder. O objeto é o que circula ou
é impedido de circular e se coloca em jogo na transferência sob as modalidades do oral, do anal, do olhar, da
voz.
Também podemos mencionar as construções em Freud e as construções em Lacan. Podemos dizer que
para Freud as construções estavam do lado do analista e para Lacan fundamentalmente do lado do analisante.
Alexandre Stevens nos apresenta uma série de lugares onde se realiza a construção de caso, aqui men-
cionados: Apresentação de pacientes, Apresentação de casos em seminários, Conversações clínicas, Jornadas,
Congressos; Supervisão.

Terceira escansão:

A leitura não é sem o apoio da escrita.



“Ler de outro modo” é a definição da interpretação do analista que nos dá Miller, desde uma leitura de
Lacan do seminário “Momento de concluir” (aula de 20/12/1977, inédito). Cito: “La interpretación como leer
de otro modo necesita del apoyo de la escritura, es decir de la referencia a que los sonidos emitidos pueden es-
cribirse de un modo distinto a lo que se quiso”. E continua: “Por ello Lacan dice...: ‘hay seguramente escritura
en el inconciente’. La otra lectura, la del analista, se apoya en la intención del analisante de decir algo” 8. Aqui
é preciso lembrar mais uma vez da distinção entre os ditos e o dizer. Os ditos estão do lado da palavra, do lado
dos enunciados proferidos. A leitura, como vimos, se situa em relação ao dizer, àquilo que está nas entrelinhas,
que tem mais a ver com o silêncio nas entrelinhas, com o silêncio daquilo que não se pode dizer porque está
no limite do simbólico, onde ressoa a pulsão. Considerar o inconsciente como um escrito implica uma escrita
singular, a escritura da lalíngua. Assim, avançamos para dizer que o que se lê é o significante em seu valor de
letra, que não se articula para produzir um saber. O analista lê a letra em termos de equívocos sonoros, para
fazer surgir outra coisa diferente daquilo da intenção de dizer do analisante.
E aqui, para continuar, retomo, mais uma vez, a citação do mesmo curso do Miller: “Que el significante
en lo real no hable, que el significante en lo real sea mudo, quiere decir que nos perdemos –excepto cuando
hacemos construcciones” 9 E nos perdemos se não contamos com outra construção, que é a elaboração da letra
no ensino de Lacan. É o que nos propõe Alexandre Stevens na conferência Desenvolver o caso, ler o sinthoma,
onde se trata de uma operação de leitura do caso, Não-toda, não fechada, pois não diz o todo do caso, que
inclui o resto real que escapa à simbolização. Uma leitura com que bordeja com a escrita da lalíngua, com a
letra, o que está fora das representações, e indica mais uma vez a orientação do real na construção do caso.
Lacan se interessa pela leitura desde o inicio do seu ensino, e já começa uma elaboração sobre a letra,
nos anos 50. O que se acentua no avanço do seu ensino é a importância que dará ao que se escreve ou não,
desde as modalidades da contingência, do necessário, do possível e do impossível. Já no seminário 16 desde o
qual trabalhamos a biografia que nos importa para a construção do caso, a importância da escrita está presente,
assim como a importância da marca de gozo no vivo, que não se apaga, que se pode ler mais tarde como a
escrita de uma letra, e constitui a singularidade do ser falante.

8 Miller, J-A.: “El ultimísimo Lacan”; Paidós, Buenos Aires, 2013; pág. 191.-
9 Ibídem, pág. 230.-
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Para terminar, deixo em aberto para vocês continuarem trabalhando, uma citação do seminário 20 de Lacan,
do início do capítulo III, A função do escrito. Esse capítulo situa a função do escrito entre “O inconsciente é o
que se lê” e “O ilegível”. Penso que é um caminho interessante a percorrer no que tem a ver com a construção
do caso clínico. Depois da introdução do cap. 3 do seminário 20, onde Lacan diz que temos que situar no
discurso analítico a função do escrito, a cita: “A letra, lê-se, como uma carta. Parece mesmo feita no prolon-
gamento da palavra. Lê-se, e literalmente. Mas não é justamente a mesma coisa ler uma letra, ou bem ler. É
evidente que, no discurso analítico, só se trata disto, do que se lê e tomando como o que se lê para além do
que vocês incitaram o sujeito a dizer, que não é tanto como sublinhei da última vez, dizer tudo, mas dizer não
importa o quê, sem hesitar em dizer besteiras.”10

Blanca Musachi
São Paulo, 21 de julho, 2020.

9 Ibídem, pág. 230.10 Lacan, J.: O seminário, livro 20 mais, ainda; Zahar; fev. 2009; pp 31-32 Psicanalista em
São Paulo Membro da EBP-AMP

BIBLIOGRAFIA
Béraud, A.: L’amur de l’amour; Revista La cause du désir, Nro. 101, abril, ECF, 2019.
Béraud, A.: El sueño ¿Indice de la verdade o de lo real? La mordedura; em revista Freudiana Nro 86; 2019;
ELP.
Berenguer, E.: “¿Cómo se construye un caso?” NED ediciones, Barcelona, 2018.
García, G.: Recurir a la infancia; em Revista Consecuencias digital, Nro 4, abril, 2010. ICBA.
http://www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/004/template.php?file=arts/alcances/garcia.html
Lacan, J.: “O seminário, livro 16”; cap. XXI; Ed. Zahar; 2008.
Lacan, J.: “O seminário, livro 20”, cap. III; Ed. Zahar; 2008.
Laurent, E.: O relato de caso, crise e solução; em revista Almanaque, ano 6, Nro. 9, IPSMMG; 2003.
Miller, J-A.: “El ultimísimo Lacan”; Paidós, Buenos Aires, 2013.
Miller, J-A.: Ler um sintoma; conferência de clausura do Congresso NLS; Londres, 2011.
http://www.lacan21.com/sitio/2016/04/16/ler-um-sintoma/?lang=pt-br
Stevens, A.: Desenvolver o caso e ler o sinthoma; conferência em Genebra-Suiza ago2018; disponível em
Rádio Lacan: http://www.radiolacan.com/pt/topic/

10 10 Lacan, J.: O seminário, livro 20 mais, ainda; Zahar; fev. 2009; pp 31-32
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7- LINKS DOS TEXTOS DE ORIENTAÇÃO

1- A DIFERENÇA SEXUAL Nohemi Brown- (EBP/AMP) e Coordenadora da NRCEREDA. LINK:


https://www.youtube.com/watch?v=79s4NN1xxgg&fbclid=IwAR1m8XCgSEbUX3iuEsPPIs eoJ1ye8bma_
Ah019GQRfCTIKywKdY6dgVhCFY

2- PAIXÃO DA IGNORÂNCIA: UM PROBLEMA RESPIRATÓRIO Cristina Drummont (EBP/AMP)


https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/04/24/paixao-da-ignorancia-um-problema-respiratorio/

3 - QUATRO PERSPECTIVAS DA DIFERENÇA SEXUAL - Daniel Roy (AMP)


LINK:http://www.revistarayuela.com/pt/006/template.php?file=notas/cuatro-perspectivas-sobre-
ladiferencia-sexual.html

4- O BURACO NEGRO DA DIFERENÇA SEXUAL: Marie-Hélène Brousse (AMP)


LINK http://www.revistarayuela.com/pt/006/template.php?file=notas/el-agujero-negro-de-la-diferencia-
sexual.html

COORDENADORA DA NOVA REDE CEREDA BRASIL : NOHEMÍ BROWN.


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