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Uberlândia (MG)
2021
© Rafael Machado Michalichem, 2021.
4 2021
Impresso no Brasil
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
SUMÁRIO
Prefácio, 9
Texto 1 Aguante, 13
Texto 4 Materna, 73
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
PREFÁCIO
N
os tempos atuais, é possível se afirmar que o teatro
brasileiro não é só dramaturgia, mas as formas cênicas
que fazem uso do texto e da palavra ocupam uma
considerável parte da história de nossas artes da atuação.
As experiências corporais já eram uma presença nos ritos
indígenas, quando os portugueses por aqui aportaram, o que
nos leva a falar em teatralidades brasileiras e não somente
num ‘único’ teatro brasileiro. No entanto, há que se reconhecer
que o encontro das culturas ameríndias, europeias e africanas
trouxe profundas transformações no fazer cênico, uma delas é a
introdução de outras noções de palavra poética como elemento
da espetacularidade.
Assim, temos uma longa tradição de dramaturgias que
podemos chamar de nossas e, sem descartar nossas lendas
nativas, há que se situar as peças jesuítas, os nossos autores do
romantismo e do realismo, a nossa comédia de costumes, nossas
revistas e tantas outras experiências com a palavra em cena, que
tivemos até o século XIX.
O longo século XX trouxe outras tantas profundas
transformações e inovações na cena e na dramaturgia nacionais.
Incorporamos as vanguardas europeias, as tecnologias de palco, 9
incorporamos as diversas prosódias regionais em nossos textos
e, a partir da segunda metade de século, construímos nossa
‘modernidade teatral’, que não ficou devendo a nenhuma
outra experiência cênica estrangeira. Construímos, sim, nossa
singularidade cênica e dramatúrgica.
Neste contexto da segunda metade do século XX em
diante, outro elemento pode ser acrescentado, qual seja, o
surgimento e a consolidação de nossas escolas de artes cênicas. A
criação de muitas e variadas graduações em artes cênicas/teatro
nas universidades brasileiras tornou possível as condições para
formação de atores e diretores e, indiretamente, profissionais
para a criação e a experimentação com novas dramaturgias.
O autor deste livro que chega até suas mãos, caros
leitores, pode ser situado neste mencionado último giro da
história. Rafael Michalichem graduou-se em teatro, pela
Universidade Federal de Uberlândia, em 2015, e concluiu seu
mestrado em Artes Cênicas, na mesma universidade, em 2019.
Como muitos de sua geração, transita bem pelas mídias e redes
sociais, possui múltiplas habilidades no campo teatral, pois é
ator, professor, diretor, produtor cultural e, com esta obra que
vem a público, insere-se na experiência e no campo da escrita
para teatro.
Nas ocasiões em que conversamos sobre dramaturgia,
como seu ex-professor e seu interlocutor, Rafael Michalichem
sempre deixou claro a sua preocupação com a busca de métodos
para a escrita, entendendo que não basta a simples inspiração.
Frisava sempre a importância dos ‘gatilhos’ disparadores, tais
como uma imagem, um trecho de uma conversa cotidiana,
um sonho, uma história de vida etc., estalos que o levam para
a folha em branco. Tão importante quanto este momento da
escrita, aparece também a sala de ensaio e o contato com os
atores na cena para a escrita e aprimoramento de seus textos.
Muitos autores e ficcionistas sempre sublinham que
todo escritor é, antes de tudo, um importante leitor. Em 9
dramaturgias para pessoas e coisas, o leitor encontrará as marcas de
10 um jovem dramaturgo lendo seu mundo e, claro, lendo livros e
dramaturgias, mas também leitor do seu entorno, do seu tempo
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AGUANTE
(Um ator)
E
nfim: há semanas interrompendo o fluxo da água,
impedindo os dejetos de irem embora e atravancando
espaço dentro das paredes, podia-se ouvir os canos
gemendo levemente, a cada pequeno movimento da massa
cinzenta irradiando um silêncio asqueroso. Tenho a impressão
de que meu irmão se movia mais para pedir desculpas pela
quietude do que para ir embora de fato. A cada ranger de canos,
cada vez mais próximo da partida, eu imaginava que ele dizia:
"me desculpe, logo não vou incomodar mais". Mas a verdade é
que ele não dizia nada. Uma tarde foi ao porto, avisou, com
aquela voz de sempre, que ia olhar o mar. Se não tiver dito
propriamente “olhar o mar”, disse outra desculpa semelhante,
ou um resmungo, é certo que me dirigiu a palavra. Estávamos
em época de chuvas – o que significava chuva quase o tempo
todo – e meu irmão decidiu aproveitar o tempo nublado para
esticar as pernas, creio. Passou algumas horas por lá, decerto
– o máximo que posso fazer é confiar no que relatou – e nessas
algumas horas sentiu o mar invadi-lo, como se estivesse 15
afogando, mas a respiração não parou, e então ele estava em
AGUANTE
(2019)
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PRA ERRAR O CHÃO¹
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(Seguem repetindo a frase andando de um lado para
o Nostradamus?
PÊ: Morreu.
OLI: Isso eu já sei. Quero saber o que você fez com ele.
PÊ: Fiz nada. Tá lá, no mesmíssimo lugar, caído dentro da
gaiola.
OLI: E vai ficar por lá?
PÊ: O que quer que eu faça? Arranje um caixão e dê um
funeral pra ele? Me poupe, Oli, me poupe.
OLI: A gente podia, sei lá, jogar ele pela janela –
PÊ: Pra ver se ele voa? Me poupe, Oli, me poupe.
OLI: (Pausa) Foi tão de repente, não foi?
PÊ: Você acha? Já tinha uns dias que eu tava esperando ele
morrer. Não lembra de eu te dizer, à noite, “Oli, vai lá
e olha o Nostradamus, eu acho que ele não tá bem, não
mexe mais as asinhas, não pia mais, os olhinhos estão
fechados e nem respirar parece que ele respira, vai lá,
Oli.”, mas você nunca me escutou. Deixou ele morrer
primeiro pra daí se preocupar, quando o pobrezinho já
tinha alcançado o céu, batendo as asas para além das
nuvens, foi que você veio se preocupar com o fim.
OLI: Eu sempre me preocupei com o fim.
PÊ: Dele?
OLI: Não dele. Não dele, especificamente.
PÊ: Que fim, então? O nosso fim?
OLI: Não nosso. Não nosso, especificamente.
PÊ: Eu me preocupo com o nosso fim. Com o fim... (olha em
volta do palco) disso tudo.
OLI: Não, não me preocupo com esse fim também. Não sei o
fim que me preocupa, mas sei que me preocupo no fim
das contas com algum fim que no fim não sei que fim é.
PÊ: Você é difícil de conversar! Com o Nostradamus eu me
34 entendia. Agora vem você aí, jogando as nossas taças pela
janela, imaginando o que os pedestres lá em embaixo não
(Pausa)
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(Permanecem estáticos, acompanhando com os olhos
PRA ERRAR O CHÃO
II
(Silêncio.)
(Silêncio.)
coisas acontecem.
PÊ: Mas não acontecem, Oli! (Desculpando-se) Não atirei
nada pela janela, entende?
OLI: Não sei se entendo, mas sei que você tem que começar
a assumir as coisas que faz, Pê, ou elas vão voltar pra te
perseguir.
PÊ: O que está insinuando?
PÊ: Sim, elas vão voltar pra me perseguir, vão estar nos meus
pesadelos e nessa porcaria de mundo que não –
PÊ: Não atirei nenhuma xícara, Oli, porque não aguento mais
estilhaços, pedaços, partes. Quero as coisas completas
dessa vez, sabe, Oli, quero –
OLI: E se a gente...
PÊ: Diga.
OLI: E se a gente tentasse... errar o chão?
PÊ: Nós já fizemos isso, Oli, você lembra do desastre que foi. 45
OLI: Não lembro disso, não. Mas lembro que –
PRA ERRAR O CHÃO
(Blackout.)
(2011-2012)
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PEQUENOS PODERES
Querida Cecília,
Bernardo
e nada disso importa muito. Aqui é que mora o nó. Nada disso
importa porque nada importa. Nem os relatórios, nem museu,
nem coisa nenhuma fala comigo, nada disso tem nenhuma
importância, por mais bonito que seja. Nem dicionário, nem
apostila de matemática, álbum de fotografia, filme B... Parece
que nem mesmo o amor tem sabor, significado, substância.
CECÍLIA: (Esmurrando a mesa) Bernardo, você está aí? Me
responde, pelo amor de Deus!
BERNARDO: (Em pé, sobre a mesa. Epifania) Amorteci,
entende? Se eu levar umas boas porradas, vou continuar a ser
o mesmo cara, lendo poesia e tratando-a como um documento
qualquer, um arquivo. Sinto falta do fascínio, sinto falta de olhar
o desconhecido e ser encarado nos olhos por ele. Dele me ver por
dentro. Não saber o que vem pela frente, do lapso de segundo
em que o coração para não por nervosismo, não por medo de
nada, de não ser bom o suficiente, não pelo medo da falha, da
angústia de ser menos do que eu sou e, talvez, essa seja a única
certeza que permanece e vem crescendo alucinadamente, a
certeza de me tornar cada vez menor e menos interessante. Não
é esse lapso. O lapso que falo é... (Pausa.) Por que eu não consigo
dizer o que é esse eco aqui dentro? Já tentei tantas vezes. Não
consigo dizer o que é esse eco todo, não consigo pensar numa
forma de contar pra você que eu sou feliz.
CECÍLIA: (Gritando) Bernardo!
BERNARDO: (Olhando-a) Pois não?
CECÍLIA: (Ofegando) São... dez... mil... Bernardo... dez mil...
BERNARDO: Quantos quiser, Cecília! (Desce da mesa de um
salto) Quantos quiser! Dez mil, duzentos mil, um bilhão deles!
É pra já! (Senta-se na cadeira, retira mais uma pilha de papéis de
uma gaveta na mesa e volta a carimbar, dessa vez furiosamente)
Um, dois, três, quatro, cinco... (segue contando).
(Pausa.)
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CECÍLIA: Bernardo. (Bernardo segue contando) Uma vez
Querido,
Preciso dizer que esqueci seu nome. Não é uma boa forma
de começar esse tipo de documento, mas formalidades
são formalidades. Regras são regras. Etiqueta é etiqueta.
Lembrei que você existe esses dias – num desses
momentos em que você decide não existir. Te enviei
alguns pedidos de socorro, uns fraquejos e solidões,
mas você nunca retornou. Estou começando a achar
que eu meio que imaginei você. Naquele momento em
que eu ainda não sabia bem quem eu era, você estava lá.
Engraçado e conveniente, não? Você estava lá, quando
eu precisava me encontrar, esperando de mão estendida
pra me guiar pelo labirinto, a minha Ariadne e o meu
Minotauro. Dando sentido a ele. Um guia turístico de
mim mesma. Você sabia todos os atalhos, qual a melhor
temporada de férias e tinha sempre um quarto vago,
pernoite e café da manhã. Podia estar no sul ou no norte,
eu sabia que no centro disso existia um singelo abrigo,
chalé romântico pra me hospedar. Meu lugar para passar
a noite. Em camas separadas, claro, mas mesmo assim
você segurava a minha mão. Onde é que você foi parar?
Espero que o carteiro te encontre, onde quer que esteja
vagando.
Cecília
tem a Rússia.
CECÍLIA: Menos do que 25. Óbvio.
BERNARDO: Vou escalar essa pilha de papel toda. Vou olhar lá
de cima e ver a Rússia e vou rir do tamanhozinho dela. Vou te
puxar pela mão e a gente vai pular de asa-delta.
CECÍLIA: (Estourando uma bola de chiclete) Lá de cima?
BERNARDO: É.
CECÍLIA: (Levando as mãos à boca) Da pilha de papel?
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: É.
CECÍLIA: (soltando as mãos, revelando um sorriso) Que ótimo.
BERNARDO: Não.
CECÍLIA: Não?
BERNARDO: Não. Eu nunca faria isso. Eu nunca me arriscaria a
esse ponto.
CECÍLIA: (sorrindo) Eu sei. Você nem mesmo iria até lá.
BERNARDO: (sorrindo, cúmplice) Eu nunca sairia desta mesa.
CECÍLIA: (rindo um pouco) Você nunca desgrudaria a bunda
dessa cadeira.
BERNARDO: (rindo) Ah é, é?
CECÍLIA: (rindo) É.
BERNARDO: (rindo) Quer apostar?
CECÍLIA: (rindo) Claro. Aposta o quê?
62 BERNARDO: (rindo) Aposto umas férias juntos.
CECÍLIA: (rindo, mas parando) O... o quê?
Querido Bernardo,
Cecília.
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Querido Bernardo,
PEQUENOS PODERES
att.
Cecília
Querida Cecília,
Bernardo.
(Silêncio.)
(Silêncio.)
(2013)
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MATERNA
E
dois mais dois são quatro! E quatro mais quatro são
oito! E oito mais oito... Mãe... Mãe? Você tá acordada?
(Pausa) Que tá fazendo? (Pausa curta) Shhhhhh... acho
que tá dormindo. Ela não gosta quando eu acordo ela. Tenho
sempre de andar na ponta do pé, fingir que não existo.
Quando abro a porta do quarto, morro de medo de fazer
barulho, da porta ranger, e o clec clec da maçaneta… ela não
gosta de barulho. Eu faço muito barulho, acho. Ela não gosta
de um bocado de coisa. Um bocado de coisa. Ela não gosta
muito de doce. Nem de quando o vento assovia na janela
(Assovia). Disso nem eu gosto (Pausa. O mundo parece não 75
girar, às vezes – e talvez faça isso de propósito em momentos
MATERNA
de ser minha mãe, a senhora era quem? Vai ver a senhora não
era ninguém (Pausa). Ou vai ver agora é que a senhora não é
ninguém, agora é só minha mãe. Todo mundo diz “Aquela é a
sua mãe?”, então é isso que a senhora é agora, não é? Minha
mãe (Pausa). Será que você queria ser menos mãe? Vai ver
você não encontrou a chave de propósito, pra ser só meia-
mãe. Será que a senhora nunca quis ser mãe? Ou nunca ter
crescido – igual o Peter Pan. A Wendy que queria ser mãe, ela
até fala no filme: "Mamãe é uma pessoa que gosta e cuida de
nós, conta histórias. Aquela que nos dá boa-noite, beija o
nosso rosto, e diz: dorme, filhinho...". Porque eu não chamo
você de mamãe, mãe? Será que mamãe é duas vezes mãe?
Então, mãe é meia-mamãe? Mamãe mais Mamãe é
Mamamamãe. E mamamamãe mais mamamamãe é
mamamamamamamamãe. Você podia ser minha
mamamamamamamamãe, mas não. Você nunca faz nada
direito, olha só pra você, caída aí, dormindo o dia todo, não
abre esse olho nunca. Nem se mexe. É por isso que é só meia-
mamãe! Você não serve nem pra isso, não serve nem pra ser
só isso! É isso que você tem que ser e nem isso você consegue!
Dormindo o tempo todo, a sujeira pela casa acumulando,
corta o dedo fazendo comida e enche tudo de sangue, você
não sabe cuidar de uma criança, você não sabe cuidar de mim,
todo mundo fala, todo mundo fala isso pra senhora. Todo
mundo fala que você só reclama! Preguiçosa! Todo mundo
sabe como é ser mãe, menos a senhora! (Pausa curta) Olha pra
mim! Abre esse olho, vamos, me olha! Me olha, nem que seja
como eles me olham. (Pausa) Mãe, eles ainda estão aqui, me
olhando. Eles só me olham, mas não dizem nada. Eles me
olham como se não tivessem nada pra dizer. Acho que não
tem muita coisa pra falar sobre mim, mesmo… Mas parece
que eles não vão embora nunca. Não sei qual é a graça de me
olhar. Se, pelo menos, eu morasse dentro da TV... A senhora
não vai fazer nada? A senhora vai deixar eles ficarem me
84 olhando? Vai ficar aí deitada? Quando é o Felisberto a senhora
apronta um escândalo, grita, berra, eu tenho até medo da
(2017-2019)
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OH, NON!
[PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]
AUGUSTA: Très bien. (Ele sai. Para si, novamente) Não dá pra
esperar nada de você, não é?
JEAN: (Para Philippe) Vocês são namorados?
PHILIPPE: Senhor, aqui está seu pedido.
AUGUSTA: (Quando Philippe se aproxima, retomando o tom
investigativo) E, então, onde estará andando nosso querido
Jean?
PHILIPPE: (Sentando-se atrás do balcão, perto de Augusta,
entrando no jogo como de costume) Pediu uísque para
acompanhar a torta e não são nem dez da manhã.
AUGUSTA: (Incrédula) Não se bebe uísque com torta.
PHILIPPE: Quer que eu ensine a ele como se alimentar,
Augusta?
(Tableau.)
(Fecham-se as cortinas.)
II
III
(Fecham-se as cortinas)
IV
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(Ela corta um pedaço da torta e leva-o à boca.
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]
nenhuma!
PHILIPPE: Como posso confiar em você agora? Você disse
que envenenou uma torta! Então uma pessoa morreu na nossa
frente! Depois de comer uma torta! A lógica é clara!
AUGUSTA: Coincidências, Philippe! Acasos do destino!
PHILIPPE: Quais são as probabilidades?
AUGUSTA: Pequenas, obviamente. Recursos narrativos.
PHILIPPE: Pois é. É bem mais provável que alguém aqui tenha
envenenado o recheio de mirtilo ontem à noite, como saiu
dizendo por aí, mais cedo.
AUGUSTA: Mas eu não fiz nada disso! Eu sequer tenho a chave!
Como entraria aqui, para sair envenenando tortas, Philippe? É
impossível.
PHILIPPE: Eu diria inverossímil.
AUGUSTA: Basta! Eu não envenenei nada, e você sabe bem.
Você e todo mundo! Sabe bem que não passava de uma
brincadeira, um passatempo.
PHILIPPE: Pode provar, senhorita?
AUGUSTA: Isso é um inquérito?!
PHILIPPE: É um ensaio, para quando for de verdade.
AUGUSTA: (Violenta) Philippe, pare com isso! Você sabe que
não pus nada em torta nenhuma!
PHILIPPE: (Inquisitivo) Sei dos fatos: você me disse
que envenenou uma torta. Uma senhora faleceu neste
estabelecimento, após comer uma de nossas tortas. Não há
muita escapatória para você, Augusta.
AUGUSTA: (Exasperada) Volte para a Terra, Philippe! Eu não
seria capaz de envenenar a senhora Doux-Bleu!
PHILIPPE: Será que não?
AUGUSTA: Claro que não! (Hesitante) Pelo menos não
intencionalmente.
PHILIPPE: Onde esteve ontem à noite, Augusta Corneille?
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AUGUSTA: Pare de besteira, Philippe. Não existe ontem à noite.
(2016-2018)
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MANTENHA DISTÂNCIA
(Blackout)
II
(Silêncio.)
CAÍQUE: Você tinha mesmo uma banda? (Jorge faz que sim)
Como chamava?
JORGE: Cristatusaurus.
CAÍQUE: Como é?!
JORGE: Cristatusaurus. A gente chegou a lançar um CD
independente. Chamava "Fraqueza, desgraça e maldade".
CAÍQUE: Puts.
JORGE: É.
CAÍQUE: Fala o nome de uma das músicas.
JORGE: Ah, sei lá.
CAÍQUE: A que você mais gostava de tocar.
JORGE: Tá. Chamava "Nunca Mais".
CAÍQUE: E do que falava?
JORGE: Porra, sei lá. O vocalista bundão que escreveu a letra.
Eu só ajudei a compor.
CAÍQUE: (exasperado) Você deve ter escutado ela um milhão
de vezes, não é possível que não saiba do que ela falava. 131
JORGE: Sei lá. Olha esse título. Pode falar de qualquer merda.
MANTENHA DISTÂNCIA
(Blackout)
III
Não te ouvi rir ainda, mas vocês têm o mesmo riso. O mesmo
riso de bife acebolado que eu me forcei a comer, mesmo odiando
carne e cebola, engoli junto com a lição de moral que o pai dele
me deu. Longa, triste, cheia de certezas, e eu engolindo o bife
acebolado e ele rindo por baixo. A distorção da sua voz entra
pelas minhas orelhas pra me esfregar aquele bife acebolado na
garganta. Nunca odiei ele, nunca vou odiar alguém que ri carne
frita com cebola. Sempre vou ouvir esse chiado overdrive de
carpete que sobe em espiral – sem corrimão, sempre pra cima
– até a lavanderia coberta, os pregadores coloridos, o seu tato,
a sua língua, o seu corpo, aquele beijo que a gente não deu,
lembra? Aquele beijo que eu jamais insinuei, aquele mesmo,
que você nunca imaginou. Enquanto você descia os três andares
pra ver quem estava tocando a campainha, eu ficava sozinho lá
em cima, forçando meu estômago a sorrir. Feridas nos joelhos,
arranhões por causa de uma mentira, aquele soco que você
me deu eu nunca esqueci. Não me lembro daquele dia, não
me lembro como foi, mas aquele beijo que eu jamais te dei eu
nunca esqueci. A sua mão se chocando com o meu crânio, o
meu nariz estralando e de repente sangue pra todos os lados,
como eu podia esquecer o gosto? Aquele beijo que eu esperei,
enquanto você ia ver quem tocou a campainha, era mais do que
todos os degraus terrivelmente acarpetados, aquele beijo que eu
nunca nem insinuei e um gostinho de sangue, que você até hoje
não deve imaginar. Suas sobrancelhas franzidas, o meu sangue
na sua mão, eu caí no asfalto e arranhei o meu dedão do pé
também, lembra? Os joelhos, o cotovelo, o nariz, colisões. Todos
os outros garotos berrando coisas que na minha cabeça eram
pulsações, eram distorções e chiados. Transistores e pedal de
overdrive. Ruídos. Sonoplastia daquilo tudo que eu nunca vivi
com você.
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IV
noite!
CAÍQUE: Jorge.
JORGE: Quer?
CAÍQUE: Você tem seguro?
JORGE: Claro que não.
(Blackout.)
(2012)
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SEU CORPO²
meus braços, até quando segue morta? De uma vez por todas
ou enquanto deseje seguir fingindo? – ou talvez eu. Vamos,
façam um esforço, eu sei que não é tão interessante quanto no
cinema, onde a câmera nos carrega e aqui temos de caminhar
com nossas próprias pernas, apontar nossos olhos e fazer todo o
trabalho do zoom e... mas eu confio na capacidade de vocês, eu
sei que vocês inventam tanta coisa, vocês são excelentes nisso,
em inventar... melhores do que eu, tenho certeza, eu confio em
vocês.
HEITOR: Espera.
ANA: Que foi?
HEITOR: Não sei. Não sei, tem algo de errado.
ANA: Como assim?
HEITOR: Acho... parece que... parece que você não me ama.
ANA: Eu morro de amor por você.
HEITOR: (Atira um elástico em Ana. Uma pausa. Ambos
riem. Volta-se para o público. Enquanto Heitor atira elásticos
na plateia, Ana está estourando pipocas num micro-ondas e
cantarolando um blues) Ah, que bobagem o amor! Nascer é
começar uma busca para achar a pessoa que passará a vida com
a gente, que dará sentido a tudo que, a olhos nus, não faz sentido
nenhum. E assim vamos passando por experimento e teste,
audições, quem é o próximo? O que você sabe fazer? Canta,
150 dança? Interpreta? Chora pra eu ver. Eu, por exemplo, entro em
super mercado e vou experimentando todas aquelas amostras
151
3. "AS CANÇÕES DE AMOR INVENTAM O AMOR"
SEU CORPO
(pausa)
ANA: Meu coração já não bate mais, meu corpo já não se mexe,
minha mente para de existir. Nada ao redor parece se mover,
tudo está parado como... Antes, ao prender a respiração, tinha
a sensação de que ia explodir, ouvia meu coração bater forte
dentro de mim. Como em um mergulho no profundo das águas.
Aqui, já não tem tempo, não tem batimento nem respiração. Um
156 sufoco preso e constante permanece. Corpo duro, intacto, não
existe. Não tem vida, não tem respiração. Lembro-me do dia
fácil! É TÃO BOM ESTAR VIVO! Vai e não volta, que agora
a vida é muito mais simples. MUITO. MAIS. SIMPLES.
MUUUUUUUUUUUUUUUUUUUITO MAIS SIMPLES!
ADEUS! A minha única tarefa agora é saber o que eu vou fazer
com essas coisas todas que você largou aqui. Esse seu incenso
fedido pra caralho, que eu fingia gostar só pra você poder
purificar a casa, pra ela ficar "cheirosa". Os vizinhos é que vão
ficar aliviados de não sentir mais essa tua carniça zen. Assim
como essas suas plantas que traziam bichos pra dentro de casa.
Tchau moscas, insetos! Sem mais essas borboletas que as pessoas
acham que são bonitas, mas que, na verdade, são apenas insetos
que eu poderia matar numa pisada. Mas o que você deixou aqui
de mais pesado foi. (Pausa.) Ontem me deitei pra dormir e as
luzes da cidade que faziam reflexo no teto do nosso quarto – do
meu quarto, e fui assombrado pelo movimento da rua. Tudo
era tão quieto dentro de casa, a vida ficou mais fácil, porque
aqui eu podia me esconder dela, a realidade é moldável, eu
edito, corto, mudo o ângulo, troco a lente, faço o que eu quiser
com a tua imagem – o pôster oficial vai ser você. Cercada por
umas borboletas, boiando num rio verde escuro, insondável.
Até assim você é linda. Desgraçada. Espero que você tenha ido
pra um lugar onde você possa perceber todas essas coisas e ser
assombrada por todas elas, assim como eu sou todos os dias. E
quem sabe essa não é uma maneira de sermos mais próximos.
Nunca estivemos tão juntos. Tão bonito o apodrecer, a carne
ficando verde e despregando dos ossos. Que nojo. A escuridão
nos aproxima. O medo e o remorso nos unem. Nunca ficaremos
separados. Nunca.
(2016)
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ONDE REINA O SILÊNCIO?
ARIEL: E se você –
ALEX: Eu sinto muito.
(Silêncio.) 163
ARIEL: Pode ser que eu não esteja aqui quando –
ONDE REINA O SILÊNCIO?
(Silêncio.)
ARIEL: Eu sei.
(Silêncio.)
ARIEL: Você não vai encontrar sua casa numa cidade grande
qualquer. A concretude dessa sensação só existe em um lugar
– (Pausa) e este lugar já não existe mais. Por favor... por favor,
eu –
ALEX: Me escuta.
ARIEL: Por favor.
ALEX: Você não conhece as passarelas, os sobrados nem os
escadões. Você não conhece as rodovias e a periferia e as
calçadas e os trajetos de ônibus e as subidas e as ruas sem saída.
É impossível entender do que eu falo sem conhecer tudo isso.
ARIEL: (como quem não ouviu nada) E se não encontrar nada
por lá?
164 (Silêncio)
ALEX: Então eu volto. (Pega novamente a mala e sai.)
leva mais do que cinco minutos. Uma verdade não leva mais
do que cinco minutos, e é mais certeira do que uma ilusão
centenária. (Aproxima-se para tocá-lo. Este permite. Em silêncio,
o beija.) Não há retorno.
ALEX: (Para a plateia) E não lhe passei boa impressão, confere?
Meus pés estão pregados e eu preciso correr para longe daqui.
(Para Amanda) Está me achando idiota, não está? (Para a
plateia) Claro que está. Não há código indecifrável neste tipo
de gesto. Não lhe passei boa impressão, não é mesmo? (Para
Amanda) Está me achando um imbecil, não está?
AMANDA: Ainda não. (Vira-se para sair, vacilante. Se aproxima
da coxia e torna a olhá-lo) Ainda não. (Sai. Seu vestido segue se
arrastando pelo palco lentamente, até o fim da cena e não deve
nunca aparecer sua ponta do outro lado. Alex vacila por uns
instantes e, então, sai, pelo outro lado do palco.)
173
35.641 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA
ONDE REINA O SILÊNCIO?
(Silêncio.)
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ADRIANA: É aqui?
ONDE REINA O SILÊNCIO?
(2014-2018)
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
MARTE ALIVE
B
OAAAAAAA NOITE GALERA! É com muito prazer que
dou início ao nosso espetáculo, desta noite, patrocinado
pela empresa de nano robôs mais filantrópica de todos os
mundos, inclusive dos que estão para acabar! É claro que eu
estou falando da Okane Bimyo Inc., a empresa que, exatamente
como eu, dispensa apresentações. E não só a Okane Bimyo está
patrocinando este show hoje, desta pessoinha aqui que vos fala,
como também começaram as doações para quem precisa de
dinheiro para ter o mínimo para viver hoje em dia. Vocês sabem,
com a situação atual do nosso novo planeta, nem todos têm
condições para implantar partículas irrigadoras e, assim, se
manterem nutridos e alimentados. Por isso, a Okane Bimyo
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começou a doação de 6 milhões de Garegares, palmas! Palmas,
MARTE ALIVE
(2020)
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Obra preparada pela Assis Editora Ltda. - ME
(34) 3222-6033 (MG)
AE.2008-03.02.2021(175)-21-0127(N)
eBook PDF 16x23cm cor 1x1
em 2 de fevereiro de 2021.
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