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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS

Uberlândia (MG)
2021
© Rafael Machado Michalichem, 2021.

Projeto gráfico | Assis Editora


Revisão gramatical | Ione Mercedes Miranda Vieira
Revisão técnica | João Davi Resende
Prefácio | Luiz Humberto Arantes
Orelhas e Capa | Rafael Michalichem
Ilustrações | Rafael Michalichem
Sinopse | Ivone Gomes de Assis
Produtora | Rosiane Aparecida Nogueira Martins

Projeto nr. 326/2020, aprovado na Lei Federal 14017/20 Aldir Blanc

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Angélica Ilacqua CRB-8/7057)

M569n Michalichem, Rafael


9 dramaturgias para pessoas e coisas [livro
eletrônico]/ Rafael Michalichem. - Uberlândia (MG) :
Assis Editora, 2021.
192 p. il.

ISBN 978-65-87354-25-5 PDF

1. Teatro brasileiro 2. Dramaturgia I. Título.

21-0038 CDD B869.2


CDU 82-2(81)

Índices para catálogo sistemático:


1. Teatro brasileiro

Direitos Reservados em Língua Portuguesa à


ASSIS EDITORA LTDA.
Rua José Antônio Teodoro, 76 – Aparecida
CEP: 38400-772 – Uberlândia/MG
Telefone: (34) 3222-6033
www.assiseditora.com.br / assis@assiseditora.com.br

Reprodução proibida sem prévia autorização.


Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

4 2021
Impresso no Brasil
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
SUMÁRIO

Prefácio, 9

Texto 1 Aguante, 13

Texto 2 Pra errar o chão, 27

Texto 3 Pequenos poderes, 49

Texto 4 Materna, 73

Texto 5 Oh, non! [pequena


tragédia açucarada], 91

Texto 6 Mantenha distância, 121

Texto 7 Seu corpo, 139

Texto 8 Onde reina o silêncio?, 161

Texto 9 Marte alive, 181

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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
PREFÁCIO

N
os tempos atuais, é possível se afirmar que o teatro
brasileiro não é só dramaturgia, mas as formas cênicas
que fazem uso do texto e da palavra ocupam uma
considerável parte da história de nossas artes da atuação.
As experiências corporais já eram uma presença nos ritos
indígenas, quando os portugueses por aqui aportaram, o que
nos leva a falar em teatralidades brasileiras e não somente
num ‘único’ teatro brasileiro. No entanto, há que se reconhecer
que o encontro das culturas ameríndias, europeias e africanas
trouxe profundas transformações no fazer cênico, uma delas é a
introdução de outras noções de palavra poética como elemento
da espetacularidade.
Assim, temos uma longa tradição de dramaturgias que
podemos chamar de nossas e, sem descartar nossas lendas
nativas, há que se situar as peças jesuítas, os nossos autores do
romantismo e do realismo, a nossa comédia de costumes, nossas
revistas e tantas outras experiências com a palavra em cena, que
tivemos até o século XIX.
O longo século XX trouxe outras tantas profundas
transformações e inovações na cena e na dramaturgia nacionais.
Incorporamos as vanguardas europeias, as tecnologias de palco, 9
incorporamos as diversas prosódias regionais em nossos textos
e, a partir da segunda metade de século, construímos nossa
‘modernidade teatral’, que não ficou devendo a nenhuma
outra experiência cênica estrangeira. Construímos, sim, nossa
singularidade cênica e dramatúrgica.
Neste contexto da segunda metade do século XX em
diante, outro elemento pode ser acrescentado, qual seja, o
surgimento e a consolidação de nossas escolas de artes cênicas. A
criação de muitas e variadas graduações em artes cênicas/teatro
nas universidades brasileiras tornou possível as condições para
formação de atores e diretores e, indiretamente, profissionais
para a criação e a experimentação com novas dramaturgias.
O autor deste livro que chega até suas mãos, caros
leitores, pode ser situado neste mencionado último giro da
história. Rafael Michalichem graduou-se em teatro, pela
Universidade Federal de Uberlândia, em 2015, e concluiu seu
mestrado em Artes Cênicas, na mesma universidade, em 2019.
Como muitos de sua geração, transita bem pelas mídias e redes
sociais, possui múltiplas habilidades no campo teatral, pois é
ator, professor, diretor, produtor cultural e, com esta obra que
vem a público, insere-se na experiência e no campo da escrita
para teatro.
Nas ocasiões em que conversamos sobre dramaturgia,
como seu ex-professor e seu interlocutor, Rafael Michalichem
sempre deixou claro a sua preocupação com a busca de métodos
para a escrita, entendendo que não basta a simples inspiração.
Frisava sempre a importância dos ‘gatilhos’ disparadores, tais
como uma imagem, um trecho de uma conversa cotidiana,
um sonho, uma história de vida etc., estalos que o levam para
a folha em branco. Tão importante quanto este momento da
escrita, aparece também a sala de ensaio e o contato com os
atores na cena para a escrita e aprimoramento de seus textos.
Muitos autores e ficcionistas sempre sublinham que
todo escritor é, antes de tudo, um importante leitor. Em 9
dramaturgias para pessoas e coisas, o leitor encontrará as marcas de
10 um jovem dramaturgo lendo seu mundo e, claro, lendo livros e
dramaturgias, mas também leitor do seu entorno, do seu tempo

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presente.
Em Aguante (2019), que abre esta publicação, temos uma
dramaturgia ‘quase prosa’, narrada em primeira pessoa, temos
alguém que trata da ausência de outro ser, que parece ter ido
embora de forma tão absurda. Como pode um ente querido
transformar-se em baleia e ir embora pelo encanamento?
Também não seria nada normal, tal como acontece em Pra
Errar o Chão (2012), saber que o mundo está prestes a acabar
por meio de uma notícia de jornal. Que faríamos diante e
tal despropósito? Teríamos direito a escolhas? Com quem e
pra onde iríamos? Situações e absurdos que os dramaturgos
Eugene Ionesco e Harold Pinter também confrontaram seus
personagens.
Pequenos Poderes (2013) nos apresenta a ideia de que a
dramaturgia pode misturar estilos e gêneros, pois, em tempos
de comunicação tão multifacetada e virtual, as relações
tratadas nas dramaturgias precisam acompanhar estes novos
formatos. Assim, assistimos a curtos diálogos e alguns trechos
monologados entre pessoas presas em espaços, lugares e
situações cotidianas, nas quais se encontram os personagens
Cecília e Bernardo.
A ideia de uma dramaturgia monólogo retorna com
Materna (2019), na qual uma menina se vê na presença do corpo
da mãe morta, momento em que emergem as relações entre
mães e filhas, os receios de abandonos que permeiam toda
infância, mas, a todo instante, se frisa que estamos num palco,
que isso é teatro, o que garante algum grau de distanciamento
entre obra e leitor, forma e conteúdo.
Oh, Non! Pequena Tragédia Açucarada (2018) nos traz um
instigante e delicioso jogo, muito próprio de todo fazer teatral,
mas que gira em torno de uma delícia de torta envenenada.
Aqui, Michalichem, se encontra com personagens mais
concretos, não tão soltos. Um autor que parece ser levado
por suas criaturas e suas inesperadas decisões, mesmo que
absurdas. 11
Um cotidiano, aparentemente normal, se rompe em
situações tais como um acidente de trânsito em Mantenha
Distância (2012), simbolizando que todo acidente é uma
fratura, mesmo que uma simples colisão, uma vez que instaura
o inesperado, pleno de um antes, de um durante e suas
consequências no depois. Mas, mesmo na fratura, parece haver
espaço para o encontro e o desejo.
Estranhas situações são visíveis em Seu Corpo (2016) e
em Onde Reina o Silêncio? (2018), peças nas quais o leitor se vê
diante de questões de relacionamento de uma menina morta
– novamente a morte – sendo brinquedo para alguém e, na
segunda, um personagem que sai de casa e percorre tantos
quilômetros, uma escrita de viagem que demonstra maiores
refinamentos no trato das palavras.
Encerrando a coletânea, Marte Alive (2020) serve para
conectar o leitor a tempos tão difíceis, um texto de quarentena,
mas que foge a este lugar da perda e da dor, pois insere o
cinismo no olhar e na percepção de algo tão destruidor e sem
respostas.
Para o autor, é o importante momento de tornar público
seus primeiros textos, para o leitor, a oportunidade de perceber
que teatro também exige, como neste caso, muita leitura,
rascunhos na folha em branco e criação com a palavra poética
na sala de ensaio e, depois, tornar-se cena e movimento aos
olhos de tempos em que a cena é uma ausência.

Luiz Humberto Arantes


Janeiro/2021

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T

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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
AGUANTE

(Um ator)

E
nfim: há semanas interrompendo o fluxo da água,
impedindo os dejetos de irem embora e atravancando
espaço dentro das paredes, podia-se ouvir os canos
gemendo levemente, a cada pequeno movimento da massa
cinzenta irradiando um silêncio asqueroso. Tenho a impressão
de que meu irmão se movia mais para pedir desculpas pela
quietude do que para ir embora de fato. A cada ranger de canos,
cada vez mais próximo da partida, eu imaginava que ele dizia:
"me desculpe, logo não vou incomodar mais". Mas a verdade é
que ele não dizia nada. Uma tarde foi ao porto, avisou, com
aquela voz de sempre, que ia olhar o mar. Se não tiver dito
propriamente “olhar o mar”, disse outra desculpa semelhante,
ou um resmungo, é certo que me dirigiu a palavra. Estávamos
em época de chuvas – o que significava chuva quase o tempo
todo – e meu irmão decidiu aproveitar o tempo nublado para
esticar as pernas, creio. Passou algumas horas por lá, decerto
– o máximo que posso fazer é confiar no que relatou – e nessas
algumas horas sentiu o mar invadi-lo, como se estivesse 15
afogando, mas a respiração não parou, e então ele estava em
AGUANTE

casa afogado do mar, e me contou tudo isso. Me disse que havia


se afogado – continuava seco, e eu não o perturbei com
perguntas, como de costume. Nunca fiz muitas perguntas a ele.
Podia ouvir o som dos navios no cais, enquanto ele subia a
longa escada até o terceiro andar, degrau por degrau, os pés se
arrastando, por estar exausto do afogamento. Não distinguia o
som das tábuas do chão rangendo ou das embarcações menores.
Eu estava lendo um livro, ou talvez estivesse vendo algo na TV,
ou fazendo contas, finanças. Depois que subiu ao quarto, não o
vi por três dias. Três dias de desencontros nos horários, pensei,
três dias de isolamento, de certo se afogar dá alguma coisa na
gente que precisamos de um tempo só nosso, mijar o oceano
inteiro. Ao passo que, no quarto dia, comecei a me perguntar se
devia bater em sua porta, ou se algo mais sério não teria
acontecido. Mas não me rendi a estes pensamentos pessimistas
– e, certamente, não teria feito diferença –, e permiti que seguisse
sua solidão lânguida, aquela porta a nos separar. Durante os
três primeiros dias, por vezes, colava o ouvido na porta, tentava
ouvir algum sinal de vida, um gemido ou um pedido de socorro
– um corpo em decomposição tem som? – um choro baixo,
naquela voz dele. Mas não ouvia nada. O quarto parecia vazio, e
me acostumei a acreditar que assim estava. Após uma semana
de sua ida ao cais, tive um pesadelo. Não me recordo do que se
tratava, nem as circunstâncias, sei que acordei na calada da
noite ensopado de suor. Chovia do lado de fora, uma chuva fina
e gentil, acobertando o cheiro de peixe que em geral se podia
sentir, e tive muito frio na minha cama úmida de transpiração.
Uma urgência em mim me levou até a porta – pode-se encontrar
prazer em quase todo tipo de companhia, desde que se saiba
administrar bem – e quando bati e chamei seu nome em voz
baixa, ouvi, pela primeira vez, em sete dias, um som dentro do
quarto: um gemido grave, como o dos navios maiores
entortando na água. Levei minha mão à maçaneta e, somente
com as pontas dos dedos, encostando o metal frio – o tamborilar
16 baixo da chuva lembrando ainda mais o silêncio dos três
andares que esta casa tem – abri. As dobradiças da porta não
rangeram, o que é bastante estranho agora que me volto para

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esse momento específico, o único som era o da água pingando e
lavando o telhado, a calha, as vidraças, e então eu o vi:
espremido sobre os restos de uma cama destroçada, uma massa
informe e cinza tão grande que ocupava todo o espaço do
quartinho de meu irmão. A pele grossa, cinza-chumbo, oleosa,
na luz baixa que vinha da lua pela janela, movia-se lentamente,
como alguém que respira com dificuldade, os pulmões decerto
alagados como a minha cama: dentro do quarto do meu irmão,
ocupando cada metro quadrado e indo quase ao teto, havia
agora uma cachalote. O monstro tentou me olhar de soslaio – no
momento em que abri a porta, que, por sorte, girava para fora
do quarto e não para dentro – e emitiu um som grave que não
lembrava quase nada aquela voz do meu irmão. Disse algo, sei
que disse, disse algo que pareceu importante, disse enquanto
tentava virar o olho para mim: o pequeno olho preto, perdido
naquela escuridão, na informe matéria acinzentada retorcida
pelo quarto, e eu o vi pelo quadrado de luz que passava pela
vidraça embaçada, refletindo um brilho tão pequeno, que não
condizia com aquele colosso enfiado no quartinho do terceiro
andar. É curioso como a primeira coisa que pensei não foi no
meu irmão, não foi no medo de me encontrar com um monstro
desses dentro de casa, nem mesmo em chamar as autoridades
ou em como me livrar do animal, mas, sim, em como teria sido
possível que o chão não tivesse cedido. Toneladas de carne
daquele mamífero sustentadas por umas poucas vigas de
madeira, a casa toda gemia somente de caminharmos de um
cômodo ao outro, ou de subir e descer escadas. Como seria
possível, afinal, que tantos quilos de gordura de baleia não
tivessem feito a casa desmoronar – e as madeiras já deviam estar
bastante podres graças à maresia. Essa surpresa toda me
impediu de entender o que o monstro me disse, enquanto
tentava voltar os olhos para mim, sem poder mexer a cabeça ou
outra parte qualquer do corpo. A nadadeira dianteira estava
mesmo achatada por parte do tronco, o que decerto deve doer
muito, dormir uma semana inteira sobre o braço. A cauda,
majestosa parte de qualquer mamífero marinho, tenha ele o
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tamanho que tiver, enrolava-se pelo quarto e pendia triste sobre
AGUANTE

o guarda-roupa, alojada como podia no pouco espaço que


restava, sendo essa parte, provavelmente, a mais flexível da
criatura. O chão estava estranhamente úmido – teria meu irmão
transpirado durante a noite, como eu? Ou o oceano estava
vazando de dentro dele? Não demorei a entender que havia,
pouco acima da barbatana dorsal da besta, uma única goteira,
pingando sem cessar. Derramando um fluxo modesto de água,
que se espalhava pelo amontoado que era o bicho, e ia para as
tábuas escurecidas do assoalho. Ele tornou a dizer algo, e sem
dar-lhe atenção, aproximei-me da parte do seu corpo que estava
mais junto à porta. Com um gesto hesitante, que talvez tenha
levado mais tempo do que eu calculo, o toquei, e senti sua pele
grossa, mas curiosamente lisa, em contato com a minha mão.
Não o acariciei, como quem diz que vai ficar tudo bem, mas
deslizei a minha mão analiticamente, tentando entender do que
constituía aquilo que se tornara meu irmão. Racionalmente,
pensei que era impossível que este bicho tivesse qualquer
parentesco comigo, e assim me contive de afeições e gentilezas
– mas ele mais uma vez me dirigiu a palavra, e dessa vez tão
claramente que não pude ignorá-lo. Voltei-me para o olho
negro, miúdo, e cheguei mesmo a vislumbrar qualquer
expressão de humanidade nisso. Ele havia me chamado pelo
nome, com tamanha familiaridade, que qualquer dúvida que
pudesse haver dentro de mim sobre a situação se desfez. Meu
irmão era agora uma enorme baleia, enfiada em seu antigo
quarto, e isso era verdade e eu não duvidei. As primeiras
palavras que saíram da minha boca foram meu primeiro gesto
fraterno com aquela coisa: perguntei-lhe se ele precisava de
algo, e ele me disse apenas uma palavra: água. Desci as escadas
ouvindo o ranger da casa, e outra vez a preocupação com as
vigas me veio à mente. Cada degrau que eu tocava com os pés,
sentia em mim que a casa iria desabar, tão cedo chegasse ao
térreo estaria soterrado por tábuas, telhas e toneladas de meu
irmão. Eu tocava o corrimão, tão levemente, que parecia ter
18 medo de rompê-lo ou empená-lo sob qualquer pressão maior
que a que decerto já agia sobre ele. Desci os dois lances de
escada, adentrei a cozinha e peguei um copo de vidro no

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armário sobre a pia. Abri a torneira para enchê-lo e, enquanto
via a água borbulhando dentro do recipiente, pensei que, talvez,
devesse levar o grande balde de ferro que tínhamos – aliás, os
dois grandes baldes de ferro. Assim, enchi ambos na torneira da
pia, e, sentindo o peso deles em meus braços, me dirigi à escada,
e tive medo. Medo de que a escada não suportasse a soma eu +
baldes + água + meu irmão tornado baleia nas vigas da casa, e
que esse mísero acréscimo de 20 e poucos litros d’água levasse a
casa abaixo. Tomado pelo medo, inquieto e pensativo, quase
não ouvi um ruído vindo do terceiro andar – meu irmão me
chamando, perguntando se eu demoraria. Ou foi o que eu
compreendi. Apoiei os dois baldes na escada e voltei à cozinha,
retomei o copo. Vinte vezes subi e desci as escadas, dois lances,
levando um copo d’água por vez, temendo pela segurança da
casa, temendo pelas estruturas fragilizadas que, sem nenhum
preparo, tinham sido submetidas à tamanha responsabilidade,
vinte vezes subindo e descendo as escadas e não cheguei à
metade do primeiro balde. O primeiro copo, por sinal, foi uma
grande questão entre mim e meu irmão, pois, quando me vi
diante da porta com o pequeno vasilhame, não pude deixar de
notar certo ar de incredulidade vindo do animal. Ainda, sua
boca estava distante e inacessível a mim, estando ela mais
próxima da janela. Fiquei um bom momento parado no corredor
do terceiro andar, pensando o que devia eu fazer com um copo
d’água e uma baleia cachalote. Meu irmão não me disse nada
que pudesse resolver a questão, apenas pediu desculpas, num
tom tão baixo que é possível que tenha dito qualquer outra
coisa. Terminei por atirar-lhe o conteúdo do copo sobre seu
corpo colossal, e assim o fiz por vinte vezes, cada vez que trazia
300 ml de água no copo grosseiro de vidro. Esvaziei o primeiro
balde desta forma, e meu irmão não disse muita coisa no
processo. Quando chegava à metade do segundo, ouvi-o me
agradecer, e segui levando o restante do balde dentro do copo
até esvaziá-lo. O assoalho estava encharcado, mas o animal
seguia com o aspecto oleoso de sempre. Podia ver parte dele se
mover enquanto respirava, e o olho, depois de tanto fazer
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esforço para me ver, tinha repousado na janela embaçada e lá
AGUANTE

permanecera. Ao cabo do último copo d’água, permaneci frente


à porta alguns minutos. O barulho da chuva ainda preenchia o
silêncio, e eu não tinha com o quê quebrá-lo. Meu irmão me
disse que já era tarde, que eu devia voltar a dormir. Comentei
sobre o suor, e ele disse que talvez a cama já estivesse seca, e eu
concordei. Concordei menos por empatia e mais pelo desejo de
me afastar da cena e, fechando cuidadosamente a porta – ainda
houve tempo de um gemido baixo me desejar boa noite – voltei
ao meu quarto e à minha cama. Não consegui dormir, era
impossível tirar da cabeça a imagem do monstro apertado no
quartinho, a pele roçando as cascas de tinta da parede cada vez
que respirava. Meu irmão tinha sido um rapaz exemplar, levava
seus estudos muito a sério, já há algum tempo se dedicava a
escrita de uma tese ou algo do tipo, jamais adentramos
profundamente seus assuntos pessoais. Quando digo “Há
algum tempo”, quero mesmo dizer isso, não sei precisar quanto
tempo já fazia que ele passava mais tempo lendo e escrevendo
do que qualquer outra coisa, mas sei que fazia bastante tempo, e
que isso era algo sempre visto como promissor por todos. Ora,
que grande irmão que eu tinha, não é mesmo?! Pela minha
vidraça, vi o dia levantar-se em meio à chuva fina que seguia
menos ruidosa agora, e acabei por desistir de dormir. Saí do
quarto e, num gesto quase automático, bati à porta do quartinho.
Esperava abrir a porta e encontrar o humano de sempre, barba
por fazer e olhar cansado? A verdade é que não. Ouvi algo que
parecia me dizer para entrar, ou, quem sabe, não fosse isso,
visto que entrar era impossível, mas entendi uma permissão
para abrir a porta e assim o fiz, e lá estava ele, o moby dick
emperrado entre os destroços da cama. Dei-lhe bom dia, e é
possível que isso tenha soado um pouco cínico, porque ele nada
respondeu. Não quis perguntar se ele precisava de algo, não
estava disposto a viver a odisseia dos copos d’água outra vez.
Atestei que estaria ocupado, e ele nada respondeu. Seu olho
preto mantinha-se na vidraça, talvez fosse o lugar mais cômodo
20 para mantê-lo. Desci as escadas, e segui minha rotina. O destino
me presenteou com um dia cheio e assim esqueci as toneladas
de irmão que a casa guardava. Apenas uma ou duas vezes, me

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


peguei pensando na imagem monstruosa que presenciara não
somente no dia anterior, mas também pela manhã, e nestes
momentos me perguntava se ele não estaria morrendo
desidratado, e também pensei se não precisaria alimentá-lo, e,
afinal de contas, com o que poderia eu alimentar uma
cachalote?, não tenho conhecimento algum de biologia marinha,
ainda que more no porto. Nesses anos todos, olhando pra fora
das janelas de casa, jamais houve um dia em que se visse no mar
uma baleia, elas nunca estiveram à minha vista, ou vai ver que
eu nunca lhes dera atenção. Mas agora havia um exemplar em
casa, no terceiro andar, no menor dos quartos, gemendo baixo,
às vezes, como para me lembrar que existia. Quando me atrevi a
conversar com meu irmão sobre como alimentá-lo, ele me disse
que não desejava comer nada, que não sentia fome. Mesmo
quando insisti na pergunta, em ocasiões diferentes, recebi a
mesma resposta, de forma que nunca lhe ofereci nada além de
água – coisa que, a princípio, ele me pedia de forma irregular,
mas com o tempo passei a fazer sem que fosse necessária sua
intervenção. Passou a ser uma espécie de rotina ligada à minha,
todas as manhãs, abrir a porta do quartinho, verificar o estado
do monstro e observá-lo respirar, dar-lhe bom dia e ouvir o
silêncio que se seguia, descer e subir umas tantas vezes com o
copo na mão, ensopá-lo o quanto podia, daí seguir meu dia. Ao
anoitecer, voltava a repetir o ritual com o copo, quantas vezes
terei subido aqueles dois lances de escada por conta do meu
irmão? Dava-lhe boa noite e me retirava para o meu quarto. Às
vezes, conversávamos um pouco, sobre como havia transcorrido
meu dia ou sobre a chuva que não parava. Ele, por outro lado,
me perguntava coisas que eu não entendia plenamente, como se
o mar estava agitado ou se havia navios de passageiros ou
somente de carga, os nomes dos navios. Uma vez me perguntou
se eu estava cansado. Ou pelo menos foi o que entendi. Mas
nossos encontros pendiam ao silêncio, na maioria das vezes. Os
dias se esvaíram dessa forma. Algumas pessoas perguntavam
de meu irmão, como ele estava e como andavam seus estudos, e
tudo que eu pude responder em todas as vezes foram palavras
21
sem nenhum significado real da situação. Em geral, respondia
AGUANTE

que estava bem, ou que estávamos nos falando pouco de


ocupados que estávamos, e quando alguém dizia que nos faria
uma visita eu jamais negava, mas sempre saía da conversa
pensando o que faria eu com meu irmão nesse caso, apesar de o
silêncio dele torná-lo imperceptível a qualquer um que não
soubesse de sua presença. Eu, que sabia do amontoado
enjaulado do terceiro andar, que o via todos os dias e que
cuidava dele com regular afeto, no entanto, sentia o silêncio de
meu irmão como as vigas deviam sentir o seu peso. Uma
tempestade assolou o porto, certa noite, enquanto eu fazia meus
cálculos antes de dar início ao ritual de matar a sede do monstro,
e o vento fustigava com tamanha força a madeira da casa, que
tive absoluta certeza de que tudo viria abaixo. O mar estava
muito bravio, as ondas subiam ao cais e chocavam-se à encosta,
ultrapassavam muitas vezes a orla da praia, e tive muito medo
de que tudo desmoronasse. Subi as escadas cauteloso, e ao abrir
a porta do quarto menor, encontrei meu irmão bastante imóvel,
exceto pelo olho negro – este parecia agitado, girava na órbita
focando em diversas partes do quarto, parou em mim por
apenas alguns segundos quando me viu, seguiu esquadrinhando
as coisas. Foi a primeira vez que ele disse algo sem que eu o
interpelasse desde a noite fatídica em que o encontrei
transmutado em cachalote. Não sei o que ele disse, fui tomado
de assalto pelo som grave que ele emitiu. Pedi que não se
movesse, falei sobre a fragilidade da casa, o medo das vigas,
expliquei mesmo detalhadamente que subia e descia a escada
tantas vezes com o copo por medo de tudo ruir sob seu peso, de
forma que a tempestade podia ela mesma fazer esse serviço sem
que ele ajudasse. Isso o acalmou, aparentemente, porque seu
olho sossegou e sua respiração diminuiu. O bicho chegou
mesmo a fechar o olho, e vi nisso um pedido de desculpas.
Observei o quarto e notei que a goteira tinha aumentado
bastante, pingava incessantemente sobre o dorso de meu irmão.
Toquei sua pele com a mão pela segunda vez e a oleosidade me
22 surpreendeu de novo, para além do medo, senti asco. Não o
afaguei e nesta noite, não levei água. Mas, na manhã seguinte,
passada a tempestade e a chuva dando uma pequena trégua, a

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


casa ainda em pé, milagrosamente, sustentando o mamífero
alojado no terceiro andar, não apenas dei-lhe bom dia, matei sua
sede com todas as viagens entre os andares, como também
separei ferramentas, madeiras e telha, e decidi consertar a
goteira. Quando voltei ao quarto com as coisas, decidi começar
por trocar as tábuas do forro, estas marcadas pela infiltração.
Pela terceira vez, levei a mão em direção à pele grossa de meu
irmão, mas dessa vez com uma intenção nova: preparei-me para
trepar sobre seu corpo e alcançar o teto. Antes de fazê-lo, lhe
avisei que subiria nele – temia que reagisse e, movendo-se
subitamente, não apenas me derrubasse e me esmagasse, como
demolisse o edifício em seu todo. Ele pareceu não se importar, e
de fato não deu mais que um leve gemido quando subi sobre
seu tronco, a nadadeira livre moveu-se uns poucos centímetros.
Com as tábuas sob o braço e os pregos na boca, anunciei, com o
afeto que pude reunir, que ia trocar as tábuas para consertar a
goteira. O bicho estremeceu, e, na medida do possível para o
pouco espaço que restava ao seu corpo no quarto, se moveu em
protesto. Quis mesmo me derrubar, o infeliz, logo eu, um irmão
tão cuidadoso, zeloso do animal que ele havia se tornado,
responsável por sua hidratação diária, preocupado com o
possível – talvez até previsível – desabamento, e o maldito quis
me levar ao chão. Foi a primeira vez que brigamos, eu ouvia
seus urros e sentia o edifício inteiro tremer, mas decidi que valia
a pena desabar uma casa por uma situação como essa. Gritei
para que me ouvisse – não sei como baleias fazem para ouvir as
coisas – que ele era um mal agradecido, que eu estava fazendo
de tudo por ele e que, se não fosse por mim, ele já estaria morto,
o imprestável. Tenho a nítida impressão de que os uivos e
gemidos dele se configuravam em palavras, mas não entendi, e
não quis mesmo entender, e bradei mais uma infinidade de
coisas para colocá-lo em seu lugar, e saí batendo a porta,
esperando a demolição eminente. Depois deste incidente, o
silêncio se tornou ainda mais contundente. Eu segui sendo um
bom irmão, levando-lhe água, dando-lhe bom dia e boa noite,
mas ele parara de me responder. Muito raramente, soltava
23
algum gemido que não podia, de forma alguma, configurar
AGUANTE

palavra, que dirá comunicação, e, aos poucos, eu fui me calando


também. A rotina de levar-lhe água já estava imbricada demais
no meu cotidiano para que evitasse fazê-lo, mas agora sentia
cada vez mais asco, e levava cada vez menos água. Um dia, levei
somente um copo. Ele não se moveu, não emitiu nenhum som.
Eu não despejei o líquido sobre ele, apenas apoiei o copo do
lado de dentro do quarto, no pouco chão que havia. E lá o copo
permaneceu, dias e dias. Esse silêncio dele me matava, me dava
náuseas. Enquanto ainda emitia algum som, enquanto se podia
conversar com ele e dosar uma relação qualquer, ele podia ser
pelo menos um bicho, um animal de estimação. Mas agora não
era nada, era uma cadeira, um móvel velho qualquer,
atravancando espaço, enfiado num quarto porque não tem mais
serventia, e o cuidado de levar-lhe água era mesmo como retirar
o pó de um móvel num quarto esvaziado. Pra que serve alguém
com quem não se pode nem mesmo conversar? Todos os dias,
eu abria a porta e desejava encontrar o quarto vazio, me ver
livre da ameaça silenciosa que ele se tornara. E, um dia, esse
meu desejo se concretizou. Abri a porta certa manhã, chuvosa
como a grande maioria das manhãs dessa época do ano, e dei de
cara com o quarto vazio. A cama quebrada, o colchão pútrido, o
chão oleoso, mas nenhuma cachalote. Não entendi. Chamei por
meu irmão e não obtive resposta. Comecei a chamá-lo por toda
a casa e eis que, descendo a escada para o segundo andar,
quando gritei seu nome ouvi um gemido abafado sair de dentro
da parede. Esta foi a última vez que ele me dirigiu a palavra, e
tenho certeza de que o fez somente para que eu me calasse.
Tateei a parede, apoiei o ouvido sobre ela e ouvi o encanamento
gemer. Com espanto, compreendi o que se passava: meu irmão
se alojara nos canos da casa, talvez para desatravancar o espaço
do quarto, talvez num plano de fuga que, infelizmente, não
saíra como planejado. Bati levemente com a mão fechada na
parede, esperando alguma resposta, e tudo o que pude ouvir foi
o ferro do encanamento estalando. Por alguns dias, estranhei a
24 suposta ausência de meu irmão – não tinha mais que levar-lhe
água, e também não havia mais uma baleia à vista sempre que
abria a porta do quartinho (ainda que, verdade seja dita, não

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


mais a abri). Mas o fato é que ele estava lá, o seu silêncio
insensível ressonando pela casa toda. Também logo sua
presença nos encanamentos começou a ser sentida, e a privada
entupia, as torneiras não forneciam mais água, passei dias sem
poder tomar banho e tendo de recorrer a água da chuva para
tudo. De quando em quando, eu o maldizia, deixava claro a sua
culpa e o quanto ele era um estorvo, queria que ele se sentisse
tão mal quanto eu estava me sentindo, depositava sobre ele a
raiva na esperança de que o peso dela o levasse encanamento
abaixo em direção ao esgoto. Às vezes, esmurrava a parede e
bradava o irmão de merda que ele era, contava para ele como
todos estavam me olhando estranho pelo estado em que eu me
apresentava, perguntava se ele não tinha nenhuma piedade de
mim, o irmão que fez tudo por ele, o mandava embora e gritava
que estava farto, mas não recebia nenhuma resposta. O silêncio
asqueroso vinha agora de todos os lados, em que parte do
encanamento estaria esse meu grande irmão de merda, dentro
de qual parede estaria aquela massa cinzenta e oleosa, os quilos
de gordura tapando os canos? A casa toda estava infestada
desse silêncio maldito, eu sentia a viscosidade de suas entranhas
quando tocava o papel de parede gasto do corredor, e o bicho
não ia embora por nada. Algumas vezes, me peguei desejando
que, na noite da tempestade, um tufão tivesse destruído tudo,
levado esse animal de volta pro mar, não via problema nenhum
estar morto, caso isso acontecesse, queria somente me ver livre
de todas as conversas que eu e ele não tivemos, esse silêncio
gordo e moribundo que não me deixava esquecer que ele estava
lá.

(2019)

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9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

2
28
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
PRA ERRAR O CHÃO¹

(Subúrbio de uma grande cidade. No centro do palco,


um aparador. Sobre ele, um telefone branco antigo,
de disco. Personagens de costas para a plateia.)

PÊ: Repete, não entendi.


OLI: Derrubei todos os bibelôs, um a um, quebrei a cabeça de
todos os anjinhos, não sobrou nem meia asinha pra contar
história, todos os menininhos de rostos de porcelana, as
bonequinhas todas rachadas sem meio suspiro que sobre,
todos no chão, caídos do aparador, como se pudesse
assim levar com eles qualquer resquício de inocência.
PÊ: Espera. (Pausa) Repete, não entendi.
OLI: Derrubei todos os bibelôs, um a um, quebrei a cabeça de
todos os anjinhos, não sobrou nem meia asinha pra contar

¹ Texto montado em 2012, Grupo Giz de Teatro. 29


história, todos os menininhos de rostos de porcelana, as
PRA ERRAR O CHÃO

bonequinhas todas rachadas sem meio suspiro que sobre,


todos no chão, caídos do aparador, como se pudesse
assim levar com eles qualquer resquício de inocência.
PÊ: E os cachorrinhos de gesso?
OLI: Não, esses eu preservei.
PÊ: Bondade a sua.
OLI: Sempre ao seu dispor. (Pausa) Parti as xícaras, também.
PÊ: De chá?
OLI: De chá, de café, canecas, chávenas, qualquer coisa do
armário que tivesse asas.
PÊ: Céus!
OLI: Olha, –
PÊ: Silêncio. (Pausa) Acho que ouvi alguma coisa.
OLI: Ouviu nada. Faz tempo que as suas orelhas não
funcionam direito.
PÊ: Cale a boca, já disse. (Pausa) Sinto que o telefone vai
tocar.

(Ambos se viram para o telefone. Esperam.)

PÊ: Ouvi o rádio da vizinha esses dias.


OLI: Ouviu nada. Faz tempo que as suas orelhas não
funcionam direito.
PÊ: Parece que o mundo tá pra acabar.
OLI: Com esse céu horroroso, deve tá mesmo.
PÊ: Alguma coisa sobre a virada do milênio. Como se o fato
de que já viramos o milênio não impedisse as pessoas de
acreditarem nessa mesma ladainha de sempre.
OLI: Nessa mesma ladainha de sempre.
PÊ: Nessa mesma ladainha de sempre.

30
(Seguem repetindo a frase andando de um lado para

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


o outro no palco. Subitamente, ambos param juntos e
olham o telefone.)

OLI: Acha mesmo que o mundo vai acabar?


PÊ: Não, deve ser só uma garoinha à toa.

(Nas frases que seguem, aproximam-se do telefone.)

OLI: E se não for? E se o mundo acabar?


PÊ: Você quebrou todos os bibelôs. Não faria diferença.
OLI: Não faria diferença?
PÊ: Nenhuma diferença.
OLI: Mesmo que o mundo acabe, mesmo que tudo isso aqui
que chamam de mundo acabe... (Pausa)
PÊ: Sim?
OLI: Você... Você...
PÊ: Eu nada.
OLI: Você...
PÊ: Sim?
OLI: Ouviu isso? Acho que o telefone vai tocar.
PÊ: Que mal lhe pergunte, que ligação é essa você está
esperando?
OLI: Ligação nenhuma.
PÊ: Algum pretendente?
OLI: Não.
PÊ: Cliente?
OLI: Não.
PÊ: Paciente?
OLI: Não.
PÊ: Parente?
OLI: Não... 31
PÊ: Amigo?
PRA ERRAR O CHÃO

OLI: Não... bem...


PÊ: Cobrador?
OLI: Bem...
PÊ: Vizinho?
OLI: Ééééé...
PÊ: Conhecido?
OLI: Isso, um conhecido distante, que eu não vejo há muito
tempo.
PÊ: Como ele chama?
OLI: (Sem hesitar) Celso.
PÊ: Shhhh. O telefone. (Pausa) Acho que vai tocar.
OLI: Não vai, não.
PÊ: Acho que vai, sim.
OLI: Não vai. Eu inventei o Celso, eu inventei todas as minhas
relações afetivas e não me arrependo. (Num crescente) Só
você que eu não inventei. Só você que o meu cérebro de
merda foi incapaz de inventar.
PÊ: Bondade a sua.
OLI: Sempre ao seu dispor. (Pausa) E você, por que se
preocupa tanto com o telefone?
PÊ: Nada demais.
OLI: Ah, me conta, vai.
PÊ: Não, não...
OLI: Me conta, porra.
PÊ: Ah, é um...
OLI: Sim?
PÊ: Um... bem... ah, um desses que sempre me ligam.
OLI: Sempre te ligam? Quem sempre te liga?
PÊ: Ah, todo mundo. O mundo todo me liga. Eu sou popular.
OLI: Uma ligação atrás da outra.
32 PÊ: O tempo todo. Nem aguento mais atender a este telefone.
(Pausa longa)

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


PÊ: Esses dias a telefonista me ligou.
OLI: É, eu tava escutando na extensão.
PÊ: Ah. (Pausa) Que pena.
OLI: É, pena. (Pausa longa)
PÊ: Quer que eu te conte o que ela me disse?
OLI: Ah, pode ser.
PÊ: Ela telefonou bem cedinho, comentando que o gato dela
não voltava pra casa tinha três dias, aí eu disse:
OLI: Bom saber.
PÊ: Isso. Como soube?
OLI: Intuição.
PÊ: Aí ela seguiu contando que ele era assim, que ele era
assado, que ele isso, que ele aquilo e eu disse:
OLI: É mesmo?
PÊ: E ela comentou como tava sentindo falta dele e que
ia contratar um detetive pra achar o gato, tal era o
desespero, e aí eu falei:
OLI: Sei.
PÊ: E ela ficou toda feliz e desligou o telefone. (Pausa) Mas
logo ele tocou de novo. (Pausa) Mas eu não atendi, pra
fazer um charme. (Pausa) Mas ele não parava de tocar.
(Pausa) Quando eu me levantei e fui atender... (Pausa)
Parou.
OLI: Vai ver não era a telefonista. Vai ver era outra pessoa.
PÊ: Tipo quem?
OLI: Tipo eu.
PÊ: Você nunca me liga.
OLI: Não mesmo.
PÊ: Então quem terá sido?

(Pausa longa. Ambos olham o telefone.) 33


OLI: (como quem prossegue um assunto) Que aconteceu com
PRA ERRAR O CHÃO

o Nostradamus?
PÊ: Morreu.
OLI: Isso eu já sei. Quero saber o que você fez com ele.
PÊ: Fiz nada. Tá lá, no mesmíssimo lugar, caído dentro da
gaiola.
OLI: E vai ficar por lá?
PÊ: O que quer que eu faça? Arranje um caixão e dê um
funeral pra ele? Me poupe, Oli, me poupe.
OLI: A gente podia, sei lá, jogar ele pela janela –
PÊ: Pra ver se ele voa? Me poupe, Oli, me poupe.
OLI: (Pausa) Foi tão de repente, não foi?
PÊ: Você acha? Já tinha uns dias que eu tava esperando ele
morrer. Não lembra de eu te dizer, à noite, “Oli, vai lá
e olha o Nostradamus, eu acho que ele não tá bem, não
mexe mais as asinhas, não pia mais, os olhinhos estão
fechados e nem respirar parece que ele respira, vai lá,
Oli.”, mas você nunca me escutou. Deixou ele morrer
primeiro pra daí se preocupar, quando o pobrezinho já
tinha alcançado o céu, batendo as asas para além das
nuvens, foi que você veio se preocupar com o fim.
OLI: Eu sempre me preocupei com o fim.
PÊ: Dele?
OLI: Não dele. Não dele, especificamente.
PÊ: Que fim, então? O nosso fim?
OLI: Não nosso. Não nosso, especificamente.
PÊ: Eu me preocupo com o nosso fim. Com o fim... (olha em
volta do palco) disso tudo.
OLI: Não, não me preocupo com esse fim também. Não sei o
fim que me preocupa, mas sei que me preocupo no fim
das contas com algum fim que no fim não sei que fim é.
PÊ: Você é difícil de conversar! Com o Nostradamus eu me
34 entendia. Agora vem você aí, jogando as nossas taças pela
janela, imaginando o que os pedestres lá em embaixo não

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


pensam a respeito de um monte de vidro voando de uma
janela qualquer do sexto andar.
OLI: Já disse que só parti coisas que tinham asas.
PÊ: E quem atirou as taças? Eu e o meu sangue-frio insolente?
OLI: Não, não, elas devem ter pulado sozinhas pela janela.

(Pausa)

OLI: Se a gente tivesse cuidado do Nostradamus antes...


PÊ: É, mas agora é tarde. E que importa também, o mundo
vai acabar mesmo.
OLI: É verdade, que importa outra vida qualquer, que já
não mais habita este espaço de, não sei, quatro metros
quadrados quem sabe? O que realmente importa é como
eu me sinto com esta vidraça ensopada, cheia de gotinhas
d’água escorrendo, fazendo desenhos e formas e linhas
transparentes no vidro, refletindo o cinza sem graça do
céu, da cidade, do asfalto, de todo esse maldito mundo
que não faz logo o favor de acabar.
PÊ: (Vai até a boca de cena e posiciona-se ao seu lado, também
olhando a vidraça imaginária entre eles e a plateia) Acho
a paisagem bonita. (Pausa longa. De quando em quando,
olham alternados para o telefone, e sempre voltam a
admirar a vidraça inexistente) Vamos apostar corrida?
OLI: Não.
PÊ: Já escolhi a minha. Vai antes que ela comece a escorrer.
OLI: Já disse que não.
PÊ: Rápido!
OLI: Tá.
PÊ: 1... 2...
Juntos: Três e... já!

35
(Permanecem estáticos, acompanhando com os olhos
PRA ERRAR O CHÃO

o trajeto das gotas, bem lento. A ação deve durar o


máximo possível)

PÊ: (quando as gotas chegam ao fim do trajeto) Talvez não


acabe, no fim. Talvez só acabe a minha maneira de ver o
mundo.
OLI: Acha mesmo que o mundo vai acabar?
PÊ: Acho. E mal posso esperar.

(Olham os dois para o telefone, pausa curta,


retornam a vidraça)

PÊ: Se o mundo acabar, você...


OLI: Sim?
PÊ: Você... Você...
OLI: Eu o que, Pê?
PÊ: Você...
OLI: Ouviu isso? Acho que o telefone vai tocar.
PÊ: Só se for o veterinário.
OLI: Não o acho tão previsível.
PÊ: Não acho nada. Pra mim, ele não fede nem cheira.
OLI: Pra mim, ele nem existe.
PÊ: Silêncio. Tem mais alguém nesse aposento.

(Pausa. Não se movem, nem um músculo)

PÊ: Tem mais alguém aqui, tenho certeza.


OLI: Não tem, não, o Nostradamus morreu e esse maldito
telefone é mais mudo do que –
PÊ: Psiu! (Pausa curta) Acho que está olhando pra gente.
(Pausa)
36 OLI: Você acha que está tudo acabado?
PÊ: Não diga bobagem!

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


OLI: Sinto que já veio e já foi.
PÊ: O fim?
OLI: (relaxando) Esse alguém que invadiu nosso lar para
separar-nos... entre bons e ruins e apontar dedos como
se a gente fosse... como se a gente não fosse importante.
Como se o universo inteiro não estivesse aqui, bem aqui,
dentro desse apartamento...

(Pê olha o telefone, bruscamente)

OLI: E se foi o gato da telefonista que comeu o Nostradamus?


PÊ: Já te disse que o Nostradamus está dentro da gaiola,
morto, sem uma peninha faltando, do mesmo jeito que
estava ontem e que, no que depender de mim, vai estar
amanhã.
OLI: Não, pensa bem. Você acha que a telefonista veio te
ligando toda faceira pra contar do gato dela, se isso não
tivesse nenhuma relação com a gente?
PÊ: Acho. Francamente, acho.
OLI: É, eu também. Na verdade, acho que ela te ligaria pra
contar qualquer coisa.
PÊ: Ligaria nada. Ninguém liga pra mim.
OLI: Eu ligo pra você.
PÊ: Liga nada.
OLI: Um daqueles que sempre te ligam liga pra você.
PÊ: (Pausa, olha o telefone) Ninguém liga pra mim.
OLI: E se a gente comprasse um outro Nostradamus?
PÊ: Pra quê? O mundo já vai acabar mesmo.

(Som de trovão, blackout. A sequência de diálogos


se dá no escuro e o volume do som de chuva deve
ir aumentando gradativamente, até parecer uma
grande tempestade.) 37
PÊ: Mais essa agora!
PRA ERRAR O CHÃO

OLI: Isso é um problema?


PÊ: Claro! Assim o telefone não vai tocar.
OLI: Vai sim, o nosso telefone não precisa de energia elétrica.
PÊ: (Relaxando) Ah, então tudo bem. Até prefiro.
OLI: Eu também. Continuamos acessíveis a qualquer um, por
impulsos elétricos.
PÊ: No escuro.
OLI: No escuro.
PÊ: Espera. Repete, não entendi.
OLI: No escuro.
PÊ: Não, o que você disse antes.
OLI: Eu também. Continuamos acessíveis a qualquer um, por
impulsos elétricos.
PÊ: Mas como o telefone funciona sem energia elétrica, se ele
funciona com impulsos elétricos?
OLI: Sei lá. Não fui eu quem inventou isso.
PÊ: E quem inventou?
OLI: Não sei.
PÊ: Você não sabe quem inventou o telefone?
OLI: E você, sabe quem inventou a lâmpada?
PÊ: Não.
OLI: Então estamos quites.

(Pausa curta. Ouvem-se passos, ainda com o espaço


no escuro.)

PÊ: Pare de andar! Tá me dando tontura.


OLI: Como, se não pode me ver?
PÊ: (titubeando) Tenho a audição e a imaginação muito
desenvolvidas...
38 OLI: Tem nada. Já faz tempo que as suas orelhas –
PÊ: Pare de andar!

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


OLI: Não dei um passo, desde que a luz foi embora, pra
começar a conversa!
PÊ: (fugindo de uma possível acusação) Ora, eu também não!
OLI: E quem está andando aqui?
PÊ: Será que é o Celso?
OLI: O Celso não existe, já te disse um milhão de vezes. Não
tem nenhum maldito Celso.
PÊ: Tudo bem, eu acredito em você.
OLI: Bondade a sua.
PÊ: Imagina. (Pausa) Mas quem estará andando de um lado
para o outro?
OLI: Vai ver que é alguém que cansou de tentar telefonar e
resolveu vir dar o recado pessoalmente.
PÊ: Que recado?
OLI: Ah, sei lá. Meus pêsames pelo Nostradamus, Boa sorte
com o fim do mundo, Acharam o gato da telefonista,
essas coisas.
PÊ: Qual é? O mundo não vai mesmo acabar.
OLI: Claro que vai. Já posso ouvir as trombetas do apocalipse.

(O Telefone toca. A luz acende e nenhum dos atores


está em cena. Ele insiste em tocar por algum tempo,
e para.)

II

(No centro do palco, um aparador. Sobre ele, um


telefone branco antigo, de disco. Personagens de
frente um para o outro.)
39
PÊ: Já estou cansando de dizer. Pela última vez, pela última
PRA ERRAR O CHÃO

vez, não fui eu!


OLI: Como não foi você? Como tem a petulância de dizer que
não foi? (Aumentando o volume da voz) Todo mundo
viu que foi você!
PÊ: Ninguém viu nada, eu sou invisível.
OLI: Você é –

(O telefone toca. Pê vai atender.)

PÊ: Alô? (Pausa. Pê desliga o telefone.)


OLI: Quem era?
PÊ: Sei lá. Rudolph Maté.
OLI: Quem?
PÊ: Rudolph Maté. Ele sempre liga por esse horário.
OLI: Não lembro dele.
PÊ: Lembra sim –
OLI: Não lembro, não. Agora me escute bem, Pê, porque eu
não vou repetir mais:
PÊ: Não fiz nada! Juro por Deus, juro pelo meu anjo da
guarda que não fiz nada! Juro pelo meu anjo da guarda!
OLI: Isso está indo longe demais, Pê. Pra que adiar o
inevitável? Pra que –

(O telefone toca. Pê vai atender.)

PÊ: Alô? (Pausa. Pê desliga o telefone.)


OLI: Quem era?
PÊ: O Franklin.
OLI: Ah, sim. Por que não me deixou falar com ele?
PÊ: Ele desligou antes de falar qualquer coisa.
OLI: Que pena.
40
PÊ: É, pena. Mas olha, por que você não quer acreditar em

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


mim? Quer dizer, tudo bem, eu já atirei algumas coisas
pela janela, mas elas... elas sempre acabavam voltando...
OLI: Como as coisas acabavam voltando?
PÊ: Sei lá, elas... elas meio que voavam...
OLI: AHÁ! Então, aqui está a prov –

(O telefone toca. Pê vai atender.)

PÊ: Alô? (Pausa. Pê desliga o telefone.)

(Silêncio.)

Pê (Com incômodo, comenta como quem não quer nada):


Era o Lars...
OLI: Eu sei. Infelizmente.

(Silêncio.)

PÊ: Qual era a prova, Oli?


OLI: Que importa, Pê? Tá tudo acabado.
PÊ: Não tá, não, Oli. Poxa, não –

(O telefone toca. Oli vai atender.)

Oli: (Suavemente) Consultório da doutora Sandra, boa tarde?


(De um só fôlego) Bem, de segunda a sexta-feira temos
todos os horários possíveis, somos muito prestativos,
capazes, cheios de boas intenções, e não existe ninguém
melhor do que nós pra qualquer que seja o caso, doença,
patologia, infecção, inflamação, problema, sei disso, sei
disso, pode deixar a que horas? (Desliga o telefone em
seguida, sem esperar resposta.)
PÊ: Oli, não tá tudo acabado, não.
41
OLI: Claro que tá. Você precisa entender que, às vezes, essas
PRA ERRAR O CHÃO

coisas acontecem.
PÊ: Mas não acontecem, Oli! (Desculpando-se) Não atirei
nada pela janela, entende?
OLI: Não sei se entendo, mas sei que você tem que começar
a assumir as coisas que faz, Pê, ou elas vão voltar pra te
perseguir.
PÊ: O que está insinuando?

(O telefone toca. Oli vai atender. Ele para de tocar,


quando Oli se aproxima. Silêncio. Oli vai voltando
para o lugar em que estava.)

PÊ: Sim, elas vão voltar pra me perseguir, vão estar nos meus
pesadelos e nessa porcaria de mundo que não –

(O telefone toca. Pê vai atender. Ele para quando Pê


se aproxima. Silêncio.)

PÊ: (Olhando para o telefone) As coisas não aconteceram


como você quer me fazer acreditar. Ou: As coisas não
aconteceram do jeito que você quer me fazer acreditar.
Ou: As coisas não aconteceram do jeito que você está
querendo me fazer acreditar que aconteceram.
OLI: Não quero te fazer acreditar em coisa nenhuma, Pê! Olha
bem pra mim, vê se eu faria alguma coisa assim.
PÊ: Faria, sim.
OLI: Faria nada.
PÊ: Já fez, inclusive.
OLI: Nada disso. Quem fez foi você.
PÊ: Ah, é verda –

(O telefone toca. Ambos avançam para ele, mas Pê,


42 que está mais perto, o atende.)
PÊ: Alô, aqui quem fala é Pê. (Pausa) Pois não. (Estica o fone

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


em direção à Oli.) É pra você.
OLI: (Avançando ao telefone) Ora, mas quem poderá ser? Alô?
(Baixa o fone lentamente, olhando para o chão, e desliga.)
PÊ: Quem era?
OLI: Não sei, desligaram quando atendi.
PÊ: (com pena) Sério?
OLI: Sim. (desconfiando) Ou você está fazendo hora com a
minha cara?
PÊ: Ora essa, tenha a santa paciência, Oli! Eu lá ia ficar
fazendo brincadeira numa hora dessas?

(O telefone toca apenas uma vez. Ambos vão até o


aparador.)

PÊ: (começando num tom de voz baixo, olhando para o


teto) Não fui eu, Oli, juro que não fui, não sei nem onde
guardamos as xícaras, se quer saber. Mas desculpa, ainda
assim.
OLI: (começando num tom de voz baixo também, olhando
para o teto) Não precisa se desculpar, Pê. Você sabe que
eu não me importava com elas.

(Começa-se a ouvir um ruído baixo de chuva, quase


como se fosse uma garoa. Se possível, é interessante
que comece a garoar em cena, também.)

PÊ: Sabe... se o mundo acabar, você...


OLI: ...sim?
PÊ: Você... você...
OLI: O que você quer que eu faça, Pê?

(O telefone toca. Nenhum deles se move. Ao menos


cinco vezes, a campainha deve soar.) 43
OLI: Se o mundo acabar, Pê, que importam as xícaras, os
PRA ERRAR O CHÃO

bibelôs, as taças, que importa tudo isso? Que importa nós


dois, Pê?
PÊ: (Firme) Se o mundo acabar Oli, você –

(O telefone toca. Nenhum deles vai atender. Ele deve


tocar apenas duas ou três vezes)

PÊ: Não atirei nenhuma xícara, Oli, porque não aguento mais
estilhaços, pedaços, partes. Quero as coisas completas
dessa vez, sabe, Oli, quero –

(O telefone toca uma vez só. Ambos viram de costas


um pro outro.)

Juntos: Se o mundo acabar, você –

(Viram-se e se observam. Quando respiram para


dizer algo, o telefone toca, seguidamente. Nenhum
vai até lá.)

OLI: Talvez já seja tarde.


PÊ: Talvez não possamos mais fugir.
OLI: Talvez eu não possa mais fugir.

(O telefone toca. Pê vai atendê-lo.)

PÊ: Alô? Alô?


OLI: Pois não?
PÊ: Não tá dando pra ouvir.
OLI: Perdão.
PÊ: Repete, não entendi.

44 (Oli vai até o telefone e aperta o gancho. As duas


próximas falas são simultâneas)
PÊ: Eu sei que é loucura, mas, se o mundo estiver acabando

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


você –
OLI: Eu sei que é loucura, mas, se eu estiver indo pro inferno
você –

(O telefone toca. Ninguém atende.)

OLI: A gente precisa de um apartamento maior.


PÊ: Precisa mesmo.
OLI: A gente podia se mudar.
PÊ: Podia mesmo.
OLI: A gente devia morar num duplex.
PÊ: Numa cobertura. Com piscina.
OLI: Chove muito por aqui.
PÊ: Eu sei. (Sorri.)
OLI: E se a gente –

(O telefone toca. Ninguém atende.)

PÊ: (Aproxima-se de Oli e toca-lhe o rosto, de leve) A gente


podia esquecer as xícaras, se tivéssemos uma piscina.
OLI: Podíamos passar o fim do mundo nela.
PÊ: (Ainda sem soltar Oli) Que pena.
OLI: Pois é. O fim do mundo deve ser mais bonito debaixo
d’água.
PÊ: Debaixo d’água tudo é –

(O telefone toca. Ninguém atende.)

OLI: E se a gente...
PÊ: Diga.
OLI: E se a gente tentasse... errar o chão?
PÊ: Nós já fizemos isso, Oli, você lembra do desastre que foi. 45
OLI: Não lembro disso, não. Mas lembro que –
PRA ERRAR O CHÃO

(O telefone toca insistentemente, por um longo


tempo. Nenhum dos dois o atende. Ele para de
tocar por um curto espaço de tempo e, quando os
personagens resolvem voltar a falar, ele volta a tocar.
Pê o atende.)

PÊ: Não estamos interessados em passagens aéreas!


Agradeço! (Bate o telefone com força. O telefone
volta a tocar. Toca insistentemente. Toca enquanto os
personagens o entregam um ao outro. Toca quando é
tirado do gancho. Nunca para de tocar, e vai tocar cada
vez mais rápido, sobreposto, excessivo, numa sonoplastia
catastrófica. Depois, silêncio.)
OLI: (Coloca a mão sobre o rosto de Pê, que a segura como se
fosse um telefone.) Shhhh. Alô?
PÊ: Alô. Quem tá falando?
OLI: O seu anjo da guarda!
PÊ: (Rindo) Tudo bem com você?
OLI: Tudo ótimo, e com você?
PÊ: Não sei. Tô com saudades.
OLI: É, eu também. Tá chovendo aí?
PÊ: Bastante. Acho que vai alagar o mundo, sabe?
OLI: Olha, cuidado, hein! Eu ouvi gente dizendo, por aí, que o
mundo vai acabar.
PÊ: (Ri) E você acredita nesse tipo de bobagem?
OLI: Sei lá, neste mundo de hoje, com uma chuva dessas, eu
não duvido de mais nada.
PÊ: Credo, para com isso.
OLI: Ah, mas e daí se o mundo acabar?
PÊ: É, não tem nada demais nele, mesmo, né?

46 OLI: Bom, tem uma coisa.


PÊ: Tem mesmo.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


OLI: (Rindo baixo) Não sei se você pensou na mesma coisa
que eu...
PÊ: (Rindo de volta) Provavelmente, não...
OLI: Sabe, Pê, agora eu fiquei pensando numa coisa.
PÊ: Humm?
OLI: Se o mundo acabar, você...
PÊ: Sim.
OLI: Você fica comigo?
PÊ: Já disse que sim.
OLI: Repete, não entendi.

(Blackout.)

(2011-2012)

47
48
49
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

3
50
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
PEQUENOS PODERES

(Duas mesas com pilhas de papéis. Em uma delas,


um homem sentado usando óculos. Carimba folhas
seguidamente. No outro, uma mulher de cabelos
ruivos, presos num coque, observa uma janela,
enquanto masca chiclete.)

CECÍLIA: Uma pausa?


BERNARDO: É.
CECÍLIA: São duas vezes por ano.
BERNARDO: Sim.
CECÍLIA: No que vai desperdiçar a primeira delas?
BERNARDO: Praia. Vou escolher o meu melhor calção de
banho, vou correr pela areia de Ipanema, vou parar uns
instantes em frente ao mar e ouvir as ondas, sentir o vento. Vou
ficar em silêncio. Vou ouvir as ondas. Sentir a água molhando
meus pés, minhas canelas, vou cair de costas na água salgada.
Vou torcer pra estar nublado todos os dias. Vou tomar picolé de
limão.
CECÍLIA: Humm. (Pausa.) 51
BERNARDO: E você?
PEQUENOS PODERES

CECÍLIA: Vou fazer um castelo de areia. Pode ser?


BERNARDO: Pode. (Pausa.)
CECÍLIA: E a segunda?
BERNARDO: Vou pro Chile. Vou visitar o Machu Pichu e vou
sentir minhas orelhas taparem quando estiver lá no alto. Vou
ter vertigem e pensar em me jogar lá da cordilheira dos Andes.
Vou querer tocar aquela montanha como se ela fosse alguém,
cujo nome eu nunca disse, e vou ouvir tudo que ela tiver pra me
dizer. Vou saber o quanto sou pequenino e insignificante e vou
amar saber disso.
CECÍLIA: E vai sorrir?
BERNARDO: (para de carimbar, para responder olhando pra
ela) Só se for bem barato.
CECÍLIA: (rindo, finalmente desvia o olhar da janela) Você tem
de carimbar dez mil desses, hoje. Você sabe contar até dez mil?

(Bernardo a encara por um instante, em silêncio, e


volta a carimbar ritmadamente. Pausa.)

CECÍLIA: Quantas gravatas você tem?


BERNARDO: O mesmo tanto que você.
CECÍLIA: Eu não tenho nenhuma.
BERNARDO: Eu sei. Eu gosto de fingir que me pareço com
você.
CECÍLIA: (Um pouco surpresa) Sério?
BERNARDO: Uma para cada dia da semana.
CECÍLIA: Humm. (Pausa) E qual delas é a mais bonita?
BERNARDO: A mais bonita é aquela que eu sempre uso.
CECÍLIA: Essa aí?
BERNARDO: Esta aqui. (Pausa. Cecília volta a olhar para a
janela.) E pra você?
52 CECÍLIA: Gosto daquela que você jamais usou.
(Bernardo subitamente larga o carimbo. Silêncio.)

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


CECÍLIA: São dez mil, hein.
BERNARDO: (voltando a carimbar) E você?
CECÍLIA: Humm?
BERNARDO: Vai fazer o quê, na segunda pausa?
CECÍLIA: Vou pular de asa delta.
BERNARDO: (largando o carimbo) Lá de cima?
CECÍLIA: É.
BERNARDO: (batendo com as duas mãos na mesa e se pondo
meio em pé) Da cordilheira dos Andes?
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: É.

(Bernardo desmonta de volta na cadeira, e deixa os


braços pendendo dos lados. Respira fundo. Volta
lentamente a carimbar.)

BERNARDO: Que ótimo.


CECÍLIA: Mando um postal pra você.
BERNARDO: Vou amar.
CECÍLIA: Você coleciona postais, não é?
BERNARDO: Tenho quatro. Eles são meus amuletos. Dois deles
foram destroçados pelo meu cachorro, mas esses são os que eu
mais amo.
53
CECÍLIA: Agora, vai ter cinco.
PEQUENOS PODERES

BERNARDO: (carimbando num crescente) Você jura? (Pausa)


Jura que vai me mandar um postal? Que vai me enviar pelo
correio um pedaço do lugar onde você está? Vai mandar notícias
de lá, não importa se boas ou ruins? Vai me dar um pedacinho
da península ibérica ou da costa leste do Japão? Vai ser só minha
a torre Eiffel e o Stonehenge? A ilha inteira de Madagascar, os
fiordes mais bonitos da Noruega?
CECÍLIA: Que mapa-múndi é esse que você conhece?
BERNARDO: (parando de carimbar, olhando para baixo) Um
que não tem nem Berlin, nem Texas.
CECÍLIA: Te mando um alce do Canadá.
BERNARDO: (voltando a carimbar) Embrulhado pra presente?
CECÍLIA: Com fita vermelha e falando francês.
BERNARDO: (baixinho) Vou pôr na estante...

(Pausa. Ele segue carimbando, ameno. Ela o observa


por um instante, estoura uma bolha de chiclete e,
volta a olhar a janela.)

CECÍLIA: Quando é que você vai me chamar pra sair, Bernardo?

Querida Cecília,

São sete dias de distância até a minha casa. Você sabe


muito bem que não tem taxista que viaje para outras
dimensões, especialmente aos domingos. Venha a pé. Fiz
macarrão com molho branco, comprei vinho tinto, mas
tem coca-cola se você preferir. São sete dias, corre que vai
esfriar. O vizinho da frente me mandou um tchau esses
dias que, mesmo vindo na velocidade da luz, levou doze
mil anos para bater na minha vidraça. Esbarrou num
satélite, por pouco não se perde pelo caminho. Quase
54 não vi. Quando chegar, toque a campainha da direita,
sim? A da esquerda é a da casa dos fundos. Está vazia,

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


o inquilino se mudou. Ainda bem, eu não gostava de
como ele ficava tocando guitarra à noite toda, os mesmos
acordes e nunca aprender música alguma. Acho que ele
era bailarino, talvez? Ator, fotógrafo, meteorologista,
desses que se preocupa muito com a chuva, sabe? Estou
te escrevendo porque, apesar de e-mail ser instantâneo,
acho correio mais romântico. Você nunca receberá esta
carta, e acho que isso me conforta. Seu postal ainda
não chegou – você nunca foi muito de escrever, não é?
O vinho está na geladeira, caso você chegue e eu esteja
dormindo. Tem espaço pra você dormir também.

Você sabe que eu sempre te espero acordado,

Bernardo

CECÍLIA: Dez mil, hein.


BERNARDO: (voltando a carimbar, prossegue como quem
retoma um assunto) Esse ano eu prometi aprender a falar mais
três línguas.
CECÍLIA: É mesmo? Quais?
BERNARDO: Francês, Japonês e Havaiano.
CECÍLIA: Que ótimo. Fala alguma coisa em francês pra mim.
BERNARDO: Qu'est-ce que c'est?
CECÍLIA: O que isso significa?
BERNARDO: Significa “Eu te dou meu lado da cama pra
dormir, se quiser, e hoje te espero pro jantar”.
CECÍLIA: Agora algo em japonês.
BERNARDO: Ohaio Gosaimasu!
CECÍLIA: E isso?
BERNARDO: Significa “Nossas barreiras linguísticas são
maiores que as crateras lunares, mas –“ 55
CECÍLIA: E em Havaiano.
PEQUENOS PODERES

BERNARDO: Havaiano ainda não sei.


CECÍLIA: Nada?
BERNARDO: (um pouco desapontado) Nada, Cecília. (Pausa.
Pega um papel e uma caneta. Entusiasmado) Mas posso
desenhar o Havaí pra você, se quiser –
CECÍLIA: Morei oito anos lá. Conheço o Havaí melhor do que
conheço você.
BERNARDO: (soltando a folha) Humm. (Pausa) E como é lá?
CECÍLIA: Igual você imagina. Só que melhor.
BERNARDO: (visivelmente desapontado) Que legal.

(Pausa. Cecília tira o chiclete da boca. Cola-o embaixo


da mesa. Tira de baixo da mesa um chiclete de outra
cor e começa a mascá-lo.)

BERNARDO: (Carimbando) Cecília. Ei. Cecília. (Não obtém


resposta) Cecília. (Amassa um relatório e atira nela.)
CECÍLIA: Que é?
BERNARDO: Acho que estão nos observando.
CECÍLIA: Quem?
BERNARDO: Eles.
CECÍLIA: Bernardo, olha pra mim. Não existe “eles”, tá legal?
BERNARDO: Mas Cecília, você –
CECÍLIA: Não existe. Ponto.
BERNARDO: (bufando, fala mais baixo, irritado) Que é que
você sabe sobre existir, afinal...
CECÍLIA: (certeira) Quer saber mais da minha existência que
eu? Por que você não cuida da sua?
BERNARDO: (pausa. Hesitante, num crescente) A minha
existência não significa mais nada. Quando eu era mais novo,
sofria por qualquer coisa e morria de alegria em tomar um
56 sorvete que fosse. Hoje nada parece nada. Não existe mais
diferença entre um dia cinzento e um dia de sol, entre o sofrer

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


e o estar feliz. É tudo um pouco amorfo, um pouco apático. Há
anos, não tenho uma crise existencial. Estou procrastinando até
isso. Sei tão bem quem sou eu, se quero ou não ser, que não há
mais sentido estar aqui.
CECÍLIA: (batendo na mesa) Bernardo?
BERNARDO: (levantando-se, cada vez mais decidido) Pode
haver dor maior do que um amor bem resolvido, uma vida feliz
e tranquila, sem receios, medos e problemas? Hoje, só há prazos.
Parece que tudo que faço é viver feliz, esperando. O quê, eu não
sei. Espero um resultado, espero um comentário, espero o fim
do ano, espero que alguém venha até aqui e me diga: "Por que
você não morre, Bernardo?".
CECÍLIA: Bernardoooo?
BERNARDO: Haja mundo pra inspirar alguém mais rochoso
que o Himalaia, mais árido que o Saara, mais desprovido de
vida que a própria superfície de Marte. Não tem Terra suficiente
pela qual eu viaje que me dê sentido e me faça esquecer quem
sou eu, que ponha em xeque esse tanto de certezas que eu,
minuciosamente, construí. Pode ter dor maior do que a certeza
de quem se é?
CECÍLIA: (batendo insistentemente) Bernardo, você está aí?
BERNARDO: (jogando as pilhas de papéis pra fora da mesa e
subindo nela) Na minha vida, tem tanta poesia quanto em dez
relatórios bem entregues, seis pilhas de papel para carimbar.
Dirão os bem-aventurados: e não há poesia nessas coisas? E eu
lhes entregarei as pilhas, os relatórios, e a minha vida, também.
Dou minha vida pra esses felizes cretinos. Feliz que é feliz de
verdade sabe o peso que é a felicidade. (para si) Esqueci meus
sonhos em cima do travesseiro quando levantei e agora não os
encontro mais. Nem pra enfiar uma nova vontadezinha nessa
minha cabeça, um desejo besta que fosse, eu estou servindo.
Este ano, sonhei em ser um trompetista famoso e este mesmo
ano passei preenchendo formulários, fotografando familiares
em aniversários ou paisagens com as mesmas palhetas de cor, 57
desenhando os mesmos tipos de bonecos palitos ou monalisas,
PEQUENOS PODERES

e nada disso importa muito. Aqui é que mora o nó. Nada disso
importa porque nada importa. Nem os relatórios, nem museu,
nem coisa nenhuma fala comigo, nada disso tem nenhuma
importância, por mais bonito que seja. Nem dicionário, nem
apostila de matemática, álbum de fotografia, filme B... Parece
que nem mesmo o amor tem sabor, significado, substância.
CECÍLIA: (Esmurrando a mesa) Bernardo, você está aí? Me
responde, pelo amor de Deus!
BERNARDO: (Em pé, sobre a mesa. Epifania) Amorteci,
entende? Se eu levar umas boas porradas, vou continuar a ser
o mesmo cara, lendo poesia e tratando-a como um documento
qualquer, um arquivo. Sinto falta do fascínio, sinto falta de olhar
o desconhecido e ser encarado nos olhos por ele. Dele me ver por
dentro. Não saber o que vem pela frente, do lapso de segundo
em que o coração para não por nervosismo, não por medo de
nada, de não ser bom o suficiente, não pelo medo da falha, da
angústia de ser menos do que eu sou e, talvez, essa seja a única
certeza que permanece e vem crescendo alucinadamente, a
certeza de me tornar cada vez menor e menos interessante. Não
é esse lapso. O lapso que falo é... (Pausa.) Por que eu não consigo
dizer o que é esse eco aqui dentro? Já tentei tantas vezes. Não
consigo dizer o que é esse eco todo, não consigo pensar numa
forma de contar pra você que eu sou feliz.
CECÍLIA: (Gritando) Bernardo!
BERNARDO: (Olhando-a) Pois não?
CECÍLIA: (Ofegando) São... dez... mil... Bernardo... dez mil...
BERNARDO: Quantos quiser, Cecília! (Desce da mesa de um
salto) Quantos quiser! Dez mil, duzentos mil, um bilhão deles!
É pra já! (Senta-se na cadeira, retira mais uma pilha de papéis de
uma gaveta na mesa e volta a carimbar, dessa vez furiosamente)
Um, dois, três, quatro, cinco... (segue contando).

(Pausa.)
58
CECÍLIA: Bernardo. (Bernardo segue contando) Uma vez

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


eu caminhei por uma longa rua, no centro da cidade. Estava
anoitecendo e eu caminhava com alguém... Bernardo, está me
ouvindo? (Bernardo segue contando) Não me lembro do nome
dele... A gente estava rindo de alguma coisa sobre os japoneses,
ele estava me contando alguma coisa sobre os coreanos, mas nós
estávamos rindo dos japoneses. A rua era bem longa – é aquela
avenida, sabe Bernardo? (Bernardo segue contando) e o assunto
dos orientais durou muito tempo, nós do hemisfério sul temos
esse tipo de comportamento, não é? Acho que falamos disso por
anos e anos, até chegar ao final da rua. Ele me deu um beijo no
rosto... (Bernardo para de contar)
JUNTOS: E subiu no ônibus.
CECÍLIA: Levou dentro da mochila um pedaço de mim, levou
na mochila um amigo de infância que eu nunca tive. Nessa
odisseia urbana, ele partiu, desapareceu no horizonte, dentro do
ônibus, talvez rumo à Austrália, pra conhecer os cangurus, ou
voltou no tempo, pra fotografar brontossauros. (Sorri) Isso seria
bem a cara dele. Me deixou um abraço noturno e uma segurança
em tempos difíceis.
BERNARDO: E ele voltou?
CECÍLIA: (pensativa) Voltou algumas vezes. Eles sempre
voltam, não é? Algumas vezes era ele, outras não. Quando era
ele, até me deixava mais coisas. Um livro azul, um café com
chantili, uma indicação de música. Quando não era, me levava
embora em pedaços, e eu ficava vendo o ônibus partir com
receio de que ele não voltasse. Quando não era ele, o mundo
parecia apertado. Quando era ele, eu sabia que ele ainda estava
aqui.
BERNARDO: E se ele não estiver mais?
CECÍLIA: Não se prende um monumento num cartão postal,
não é? Eu espero ele voltar.

(Pausa em que ambos se olham. Bernardo lentamente


volta a carimbar.) 59
BERNARDO: Talvez, quem precise voltar seja você.
PEQUENOS PODERES

Querido,

Preciso dizer que esqueci seu nome. Não é uma boa forma
de começar esse tipo de documento, mas formalidades
são formalidades. Regras são regras. Etiqueta é etiqueta.
Lembrei que você existe esses dias – num desses
momentos em que você decide não existir. Te enviei
alguns pedidos de socorro, uns fraquejos e solidões,
mas você nunca retornou. Estou começando a achar
que eu meio que imaginei você. Naquele momento em
que eu ainda não sabia bem quem eu era, você estava lá.
Engraçado e conveniente, não? Você estava lá, quando
eu precisava me encontrar, esperando de mão estendida
pra me guiar pelo labirinto, a minha Ariadne e o meu
Minotauro. Dando sentido a ele. Um guia turístico de
mim mesma. Você sabia todos os atalhos, qual a melhor
temporada de férias e tinha sempre um quarto vago,
pernoite e café da manhã. Podia estar no sul ou no norte,
eu sabia que no centro disso existia um singelo abrigo,
chalé romântico pra me hospedar. Meu lugar para passar
a noite. Em camas separadas, claro, mas mesmo assim
você segurava a minha mão. Onde é que você foi parar?
Espero que o carteiro te encontre, onde quer que esteja
vagando.

Com o que resta de afeto,

Cecília

BERNARDO: O que você faz hoje à noite, Cecília?


60 CECÍLIA: Relatório parcial. O prazo é amanhã.
BERNARDO: Poxa.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


CECÍLIA: São vinte páginas.
BERNARDO: Que perigo.
CECÍLIA: Amedrontador.
BERNARDO: Estou sentindo a adrenalina daqui.
CECÍLIA: Por que a pergunta?
BERNARDO: Nada. Só pra saber.
CECÍLIA: Você, querendo saber da minha vida?
BERNARDO: Eu e todos eles.
CECÍLIA: Bernardo. Olha pra mim. Não tem eles, tá bem?
BERNARDO: E amanhã?
CECÍLIA: Tabela orçamentária. Aquele projeto monstruoso,
sabe?
BERNARDO: O que quase me devorou?
CECÍLIA: Esse mesmo.
BERNARDO: Arrepiei só de lembrar.
CECÍLIA: Por que a pergunta?
BERNARDO: Pra saber.
CECÍLIA: Isso é um inquérito? Você tem mandado de prisão?
BERNARDO: (erguendo uma folha) Tenho, sim. Mas não é pra
você.
CECÍLIA: É pra quem?

(Bernardo carimba a folha e começa a fazer um avião


de papel)

BERNARDO: E depois de depois de amanhã?


CECÍLIA: Tenho de fazer arquivamento de todas as fichas. É
uma pilha colossal.
BERNARDO: Maior que a Rússia?
CECÍLIA: Bem maior. São 25 andares de papel.
61
BERNARDO: (terminando o avião) Eu não sei quantos andares
PEQUENOS PODERES

tem a Rússia.
CECÍLIA: Menos do que 25. Óbvio.
BERNARDO: Vou escalar essa pilha de papel toda. Vou olhar lá
de cima e ver a Rússia e vou rir do tamanhozinho dela. Vou te
puxar pela mão e a gente vai pular de asa-delta.
CECÍLIA: (Estourando uma bola de chiclete) Lá de cima?
BERNARDO: É.
CECÍLIA: (Levando as mãos à boca) Da pilha de papel?
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: ...
CECÍLIA: ...
BERNARDO: É.
CECÍLIA: (soltando as mãos, revelando um sorriso) Que ótimo.
BERNARDO: Não.
CECÍLIA: Não?
BERNARDO: Não. Eu nunca faria isso. Eu nunca me arriscaria a
esse ponto.
CECÍLIA: (sorrindo) Eu sei. Você nem mesmo iria até lá.
BERNARDO: (sorrindo, cúmplice) Eu nunca sairia desta mesa.
CECÍLIA: (rindo um pouco) Você nunca desgrudaria a bunda
dessa cadeira.
BERNARDO: (rindo) Ah é, é?
CECÍLIA: (rindo) É.
BERNARDO: (rindo) Quer apostar?
CECÍLIA: (rindo) Claro. Aposta o quê?
62 BERNARDO: (rindo) Aposto umas férias juntos.
CECÍLIA: (rindo, mas parando) O... o quê?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


BERNARDO: Fechado?
CECÍLIA: Espera...
BERNARDO: Fechado! (Levanta-se e sai em disparada.)
CECÍLIA: Bernardo!

Querido Bernardo,

Já faz anos que você partiu. Não recebi nenhuma notícia


sua, até agora. Nem mesmo as ruins. Não vi nenhuma
manchete de homem que escalou uma pilha de fichas,
nem de alguém que invadiu a Rússia com fita métrica
para tomar medições puramente territoriais. São sete
dias até sua casa, mas parece que estou andando desde o
período barroco e não encontro o ponto de referência que
você me deu. Afinal, esse mercadinho “A Pagar” existe
mesmo? Fiquei pensando que talvez devesse ter tomado
o ônibus, e torço pra que esta carta chegue antes de
mim. Mas, se chegar depois, tudo bem. Trouxe comigo
uma coleção de paixonites – tenho planos de deixá-la
com você, então, por favor, pare de me evitar. São duas
baldeações, se eu tivesse ido de ônibus, não é? Ainda bem
que vim a pé. Será que, se continuar caminhando pela
sua rua, chego à Austrália? Tenho um amigo que talvez
more lá...

Posso te trazer uns cangurus pra colocar de enfeite,

Cecília.

BERNARDO: (voltando) Voltei.


CECÍLIA: E como foi por lá?
BERNARDO: Foi incrível. 63
CECÍLIA: Por aqui as coisas continuam iguais.
PEQUENOS PODERES

BERNARDO: Por lá também. Eu comecei a achar que lá e aqui


são o mesmo lugar, na verdade. Se fui a Dublin ou se virei a
esquina não fez muita diferença, parece. O fim do mapa-múndi
não é a borda da terra. Eu rodei ruas e avenidas, atravessei
praças de grama verdinha, fui a Paris, a Veneza, a Osaka e
a Vancouver, fui para a puta que o pariu e para o outro lado
também, no caminho até o banheiro. (Pausa curta) E parece que
não saí daqui. Parece que corri milhas sem motivo e por motivo
nenhum permaneci no mesmo lugar: o mundo inteiro passou
por mim, enquanto eu estava sentado aqui, nesta cadeira, e
enquanto a dor de não ser, de não caber, de não estar – (súbito)
É ISSO! Eu não estou!
CECÍLIA: E me trouxe uns souvenires?
BERNARDO: É isso! É exatamente isso! Eu não estou em Lisboa,
não estou em Curitiba, não estou em Niigata, não estou em
Baltimore, não estou em Nova Iorque, nem estou em Angra!
Não fui à praia, não vivi um verão apaixonante numa ilha, não
toquei a neve das montanhas que escalei, não toquei uma rocha
sequer do pico das agulhas, Cecília! Cecília, é isso, Cecília! Eu
não estou aqui!
CECÍLIA: E quando é que você volta?
BERNARDO: Nunca! Nunca volto, porque nunca saí daqui!
Porque a grande verdade é que eu sofro dessa distância toda
entre o lugar que eu não estou e os lugares a que eu quero ir! Por
que é que aquela cidade me segura ao ponto de eu precisar estar
em toda parte, no mundo inteiro, Cecília? Por que a Austrália
não pode ser no fim da minha rua, por que eu não posso estar
aí junto com você? É tão difícil estar aqui, longe desse lugar, e
te dizer tudo isso gritando pra ver se você me ouve, mesmo a
quilômetros de distância. (rasga folhas de papel, em ritmos
diversos) Eu te amo, Cecília! Eu te amo tanto quanto eu amo
aquela megalópole que nunca me abandonou e nem me amou
de volta! Te amo tanto Cecília, que nem no mapa-múndi cabe
64 a quilometragem do meu amor, que nem se eu atravessasse o
universo a pé, fosse à júpiter, fosse a plutão, que, dizem, nem
planeta é mais, eu conseguiria estender uma fita métrica longa o

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


suficiente.
CECÍLIA: E os alces, Bernardo? Cadê os alces que você me
prometeu?
BERNARDO: Esqueci em casa, estão dentro de uma gaveta do
criado mudo.
CECÍLIA: Podemos ir buscar.
BERNARDO: Então, por que estamos aqui ainda?
CECÍLIA: Mas não estamos, não é?
BERNARDO: Ainda bem!
CECÍLIA: E quando vamos embora?
BERNARDO: (Extasiado) Quando Notredame desabar! Quando
Maria Antonieta quiser! Quando você me der um saco de
alcaçuz! Quando a Jamaica cansar! Estamos prontos, Cecília!
CECÍLIA: (Entrando no jogo) Contagem regressiva para a
decolagem!
BERNARDO: Partimos em dez!
CECÍLIA: Nove!
BERNARDO: Oito!
CECÍLIA: Sete!
BERNARDO: Seis!
CECÍLIA: (de repente, aflita) Espera!
BERNARDO: Quatro!
CECÍLIA: (gritando) Bernardo!
BERNARDO: DOIS!
CECÍLIA: ...!
BERNARDO: Feliz ano noooooovooooo!

(Ouve-se uma sirene estridente.)

65
Querido Bernardo,
PEQUENOS PODERES

Esqueci as chaves de casa sobre a mesa do escritório e


não consigo entrar no meu apartamento. Pode me enviar
via Sedex 10, por favor? Mande para a minha casa de
praia, sim?

att.

Cecília

(BERNARDO e CECÍLIA sentam-se na frente do


palco, ambos com saquinhos de papel com alimentos
dentro. Ela visivelmente chateada com alguma coisa,
ele tentando levantar seu humor. Longa cena muda.
Ao fim, outra sirene. Os dois voltam-se para seus
lugares.)

CECÍLIA: Bem, como estamos de relatórios parciais?


BERNARDO: Não se vê nenhum deles passando por aqui há
semanas.
CECÍLIA: São bem ariscos mesmo. E... (Faz uma pausa,
introspectiva) E as liberações de férias?
BERNARDO: São esses papéis que estou carimbando.
CECÍLIA: Humm. Já carimbou o meu?
BERNARDO: Ainda não vi. (Pausa. Fuça os papéis por um
período extenso. Cecília estala uma bolha de chiclete no
momento em que Bernardo exclama) Ahá! Aqui está o meu!
(Carimba.)
CECÍLIA: (Voltando-se para a janela) Olha só, que ótimo! Agora
já pode ir conhecer a Califórnia brasileira, capital do hóquei
sobre patins!
66 BERNARDO: Sim, e tomar sorvete na praça.
CECÍLIA: E também pode ir até Évora e comer uma bruscheta.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


Com muito molho.
BERNARDO: Sim e –
CECÍLIA: Também pode mergulhar nas águas congelantes
da Antártida e ver os naufrágios, os leões marinhos e os ursos
polares.
BERNARDO: E você pode ir comigo e –
CECÍLIA: Não.
BERNARDO: Ver as avalanches e os icebergs desmoronarem
depois e – não?!
CECÍLIA: Não. Vou ficar por aqui mesmo.
BERNARDO: Ah. Que pena.
CECÍLIA: Quando você voltar e terminar de carimbar os outros,
o meu, por exemplo, aí eu vou me perder uns dias em Veneza.
Talvez me deitar de costas em um dos canais e ficar esperando a
água invadir meus pulmões. Olhando o céu, vendo as gôndolas
passarem do meu lado.
BERNARDO: Cecília, me desculpe, eu vou encontrar a sua
liberação, e –
CECÍLIA: Não precisa. Você fez exatamente o que queria,
preocupado consigo, não é? O que você precisa agora é ir
embora. Todos precisamos ir embora, mais cedo ou mais tarde.
Seja daqui pra outro lugar, seja daqui pro próximo instante, a
cena seguinte, o próximo compromisso, a cama que nos espera
como um dia ensolarado em Copacana. Ver o mundo todo do
topo da torre Eiffel e suspirar de amor não correspondido.
(Bernardo faz menção de falar) Eu sei, eu sei, a gente vai
diminuindo com o passar do tempo, vamos nos tornando
cada vez menores. O céu se torna ainda mais amedrontador,
o mundo inteiro que, antes, parecia coisa simples de alcançar,
algo como atravessar a Imigrantes, agora parece tão distante
que talvez eu nem more na Via Láctea. Você sabe o quanto você
é pequeno, não é Bernardo? Se alguns poucos centímetros de
distância já lhe parecem anos-luz, se nem mesmo o mais rápido
dos foguetes percorre esse mísero espaço entre aí e aqui, o que
67
dirá você quando se ver perdido no Alasca ou caminhando de
PEQUENOS PODERES

uma ponta a outra a muralha da China, certo de que eu não vou


te encontrar no meio dela? Você vê o mundo todo nesse papel
que acabou de carimbar, e aí está: mergulhe nesse documento
como quem arromba um sistema de segurança tão intrincado
quanto o do Louvre, como quem desce de barril as cataratas
do Niágara. Com a certeza de que não vai a lugar nenhum.
Enquanto isso, eu permaneço. (Pausa curta. Finalmente o olha.)
Já que você nunca esteve, pode ir embora.
BERNARDO: Cecília eu...
CECÍLIA: Sim, você, Bernardo. É exatamente sobre você que
estamos falando. Parece que é sempre sobre você. Vocês. Quem
diria que não precisaria encarar a pilha inteira de papel, não é?
É como se tivessem inventado um elevador para subir o Everest.
(Aplaude lentamente.) Grande herói, estupendo Aquiles. Tome
seus louros. Quer uma medalha? Bote na estante junto com os
outros souvenires. E agora me dê licença, pois tenho muito o que
fazer. (Volta a olhar a janela.)
BERNARDO: Vem comigo.
CECÍLIA: É claro que vou com você. Já estou aí.

(Longo silêncio. Bernardo procura folhas diversas.


Exaspera-se. Carimba uma folha qualquer. Ouve-se
um alarme e a iluminação modifica-se para vermelho
por um breve período. Alarmado, olha à sua volta.)

VOZ EM OFF: (Cecília acompanha sem tirar os olhos da janela)


Atenção. É proibido realizar atividades relacionadas ao trabalho
fora do expediente. Tal ação acarreta hora extra e, para ser
realizada, deve ser emitido um Memorando Interno ao Conselho
Geral com 40 dias de antecedência, assinado, carimbado, com
reconhecimento de firma e comprovantes grifados em anexo.

(Longo silêncio. Bernardo está estático com um


68 tempo. Cecília estoura mais uma bolha de chiclete.
Vagarosamente, Bernardo carimba outra folha
qualquer. Ouve-se um alarme e a iluminação

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


modifica-se para vermelho por um breve período.
Novamente, o texto em off. Logo depois que ele
acaba, Bernardo carimba outra folha. Mesma cena.
Antes do texto acabar, Bernardo carimba outra folha.
Ritmo cresce de forma alucinada. Cecília retira o
chiclete da boca, cola-o embaixo da mesa, e vai até a
mesa de Bernardo. Atira a mesa ao chão, espalhando
todos os papéis. Bernardo permanece com o carimbo
erguido, perplexo. Cecília espera o silêncio, então,
calmamente, abaixa-se, levanta a mesa novamente,
pega uma folha de papel, dobra-a e coloca em frente
a Bernardo sobre a mesa)

CECÍLIA: Boas férias, Bernardo. Até mês que vem. (Retira-se.)

Querida Cecília,

Já faz um certo tempo, não é? Todos os adesivos da


minha mala já estão bem desgastados. A rodinha
esquerda quebrou – lembrei por que você tinha dito que
ela devia estar frouxa. Ou fui eu quem disse isso?

Estou em frente à London Eye. É uma roda gigante


muito bonita. Fica aqui pertinho da minha casa, em
Blumenau. Por que você não me olha nos olhos quando
eu falo com você? Estamos tão perto, mas nunca perto o
suficiente. Onde é que você foi parar? Voltei pra sua casa
umas duas vezes e tudo que encontrei foram uns alces
na estante. A porta estava aberta, então entrei e fiquei lá
uns dias, te esperando. Aproveitei pra conhecer a cidade.
Aqui é tudo muito bonito, mas tem uma cara familiar...
parece que conheço esse lugar há anos, parece que sempre
estive por aqui, aqui pertinho, na casa ao lado. Eu senti
seu cheiro no travesseiro e usei o seu xampu. Sei que vai
me perdoar. Passei uma semana investigando seus porta- 69
retratos. Vi sua foto na Irlanda... bom lugar. Mesmo se
PEQUENOS PODERES

você odiar estar na Irlanda, vai amar. Se puder me trazer


uns leprechauns, quando vier me ver... dizem que eles
dão sorte, né? Chutei o seu gnomo de jardim, quando fui
embora – pra deixar uma lembrança.

Pra você não esquecer que eu talvez exista

Bernardo.

BERNARDO: (Voltando ao palco, encontra-o como antes, mas


vazio) Ei, Cecília, você não vai acreditar! Eu estive nas ilhas
Malvinas, Cecília, e elas são inacreditáveis, dá até pra – (Pausa
curta). Cecília? Cecília? (Começa a procurar por todo o palco.
Procura por baixo das mesas, dentro das gavetas, nas coxias,
grita para o urdimento, grita para o público.) Talvez... talvez
ela tenha saído de férias! (Chega perto da mesa dela. Hesita.
Estende a mão e abre uma gaveta.)
CECÍLIA: (Entrando nesse momento) O que está fazendo,
Bernardo?
BERNARDO: (Primeiro disfarçando) Nada, nada. (percebe)
Cecília! Aí está você! Cecília, eu achei que você tivesse ido
embora e –
CECÍLIA: E eu fui.
BERNARDO: (Visivelmente confuso) Como é?
CECÍLIA: (Visivelmente satisfeita) Sensacional, você devia
experimentar qualquer dia desses.
BERNARDO: Não, quero dizer, como assim, você foi embora?
CECÍLIA: Acabei de pedir demissão.
BERNARDO: Você o quê?
CECÍLIA: (Arrumando as coisas da gaveta, divaga livremente)
Estou me mudando para outra cidade. Um novo começo, sabe?
70
BERNARDO: Você pediu demissão? Mas não faz nem 3 minutos

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


que eu saí... (indicando a coxia)
CECÍLIA: Sim, não é ótimo? O mundo é vasto demais, Bernardo,
e eu sou ainda mais vasta e longínqua do que ele. Minha
imensidão é íntima.

(Silêncio.)

BERNARDO: Dá pra notar.

(Silêncio.)

CECÍLIA: Bem, então até qualquer dia, Bernardo! Bom trabalho


pra você. (Acena, e sai)

(Silêncio longo. Bernardo senta-se na cadeira de


Cecília. Pega um chiclete sob a mesa e, com algum
esforço, põe na boca e começa a mascar. Apoia o
rosto sobre a mão. Olha a janela.)

(2013)

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72
73
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

4
74
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
MATERNA

(Inspirada em uma notícia real. Há uma criança sem


nome em cena, talvez – mas não necessariamente
– um menino. Está contando, nos dedos, os
espectadores enquanto entram, mas parece sempre
perder a conta e recomeçar. Uma luz ou algo que
sugira uma janela. Talvez também haja um lençol
amontoado em um canto que pode ou não remeter à
forma humana.)

E
dois mais dois são quatro! E quatro mais quatro são
oito! E oito mais oito... Mãe... Mãe? Você tá acordada?
(Pausa) Que tá fazendo? (Pausa curta) Shhhhhh... acho
que tá dormindo. Ela não gosta quando eu acordo ela. Tenho
sempre de andar na ponta do pé, fingir que não existo.
Quando abro a porta do quarto, morro de medo de fazer
barulho, da porta ranger, e o clec clec da maçaneta… ela não
gosta de barulho. Eu faço muito barulho, acho. Ela não gosta
de um bocado de coisa. Um bocado de coisa. Ela não gosta
muito de doce. Nem de quando o vento assovia na janela
(Assovia). Disso nem eu gosto (Pausa. O mundo parece não 75
girar, às vezes – e talvez faça isso de propósito em momentos
MATERNA

como esse). Eu gosto mesmo é de deitar no tapete da sala!


Sem roupa! E de plantar bananeira! E de correr por aí e gritar
muito! E de me esconder! E de enfiar a mão na piscina (Pausa
curta). Mas eu nunca desço pra tomar banho de piscina,
minha mãe não gosta de me levar. Isso é mais uma coisa que
ela não gosta, de piscina. E são oito andares até lá embaixo... é
bem longe, é tudo bem longe, é o que ela diz, minha mãe
sempre diz. Eu acho que ela é bem esperta. Queria que ela
acordasse pra vocês verem. Ainda bem que vocês vieram,
aliás. Faz um tempo que ela só dorme, eu tava começando a
achar ruim. Fiquei a noite toda junto dela, em silêncio, não dei
um pio, eu até tava respirando menos, mais devagar – ela não
gosta quando eu acordo ela. Nem encostei muito nela que é
pra ela não acordar e não brigar comigo. Daí, levantei e fiquei
assistindo TV. Eu tenho o filme do Peter Pan, na fita, sabe?, e
eu tava assistindo, e tem uma hora que ele perde a sombra
dele, sabe? Sabe nada. Você nem tava aqui pra ver. Eu que
tava assistindo, para de fingir que sabe das coisas, que coisa
feia ficar mentindo, fingindo, se fazendo, você não tava nem
aqui! Aliás, onde é que você tava? Onde foi que você se meteu,
eu te chamei por toda a parte! Eu não tô brincando. Onde
você tava? Eu tava de frente pra TV, a cara colada na tela (Ri
baixinho). Minha mãe não me deixa assistir assim, diz que faz
mal pra vista, mas ela tava dormindo. Eu gosto de sentar
perto da TV. Dá pra ver uns quadradinhos coloridos, parece
que dá pra ver através... Que será que tem atrás do filme do
Peter Pan? Se minha mãe descobre que eu assisti o filme
inteirinho com a cara colada no vidro da TV, ai se ela descobre.
Vocês não podem falar nada disso, viu? Prometem? Prometem
que não vão falar nada? Prometem que vão ficar quietinhos?
Em silêncio? (Contando nos dedos) Mesmo? Mesmo mesmo?
Mesmo mesmo mesmo mesmo? Mesmo? Então tá bom. Além
de não me deixar ficar tão perto da TV, ela também acha ruim
quando eu me escondo embaixo da cama. Né, mãe? Mãe?
76 Conta pra eles que você não gosta que eu fique aí debaixo da
cama. E eu adoro me esconder... Você diz bem assim, "Se eu te

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


perder... eu... o que é que eu vou fazer se eu te perder?". Que
medo bobo é esse que você tem, mãe? Tem medo de me
perder debaixo da cama que nem a gente perde o chinelo? Vai
me perder lá debaixo, como perdeu as chaves um dia? Aquele
dia, lembra? E outra: se me perder lá, quando você passar a
vassoura debaixo da cama você me acha! Que que tem ficar
debaixo da cama? Eu fico sentindo o chão gelado, eu gosto de
ficar olhando o estrado, eu, às vezes, desenho naquela
madeira. Já desenhei uns passarinhos. Na sua cama, eu até
escrevi "Eu te amo", que é pra você nunca me esquecer.
Mesmo se a senhora me perder, e for me procurar debaixo da
cama e eu não estiver lá – vai saber, né – eu deixei um recado
pra você e você vai lembrar de mim e. Mãe? Será que eu
escrevi "Eu te amo" certo? Você não quer ir lá conferir não?
Rapidinho... Eu posso até ir junto, que daí não tem perigo da
senhora se perder lá debaixo. Igual os nossos chinelos. Dois
meus e dois seus. Dois mais dois são quatro. E quatro mais
quatro são oito! E oito – eu gosto de falar oito, parece que
enche a boca e eu fico coa boca redondinha e, quando faz o
barulho do i, eu acho tanta graça. Oito. Oito. (Pausa) Por que
você não ri um pouquinho? Você não é muito de rir mesmo,
né. Mesmo quando tá assistindo Peter Pan comigo e a Sininho
faz graça a senhora não ri. Acho que nunca vi a senhora rindo,
parece que tá sempre triste. Até quando tá feliz parece que a
senhora tá triste. Igual no dia dos porta-retratos, a senhora
lembra? A senhora não gosta quando eu chamo a senhora de
senhora, mas eu chamo a senhora de senhora porque o vovô
disse que é falta de educação, e a senhora sabe que eu gosto
muito de fazer tudo certinho. Eu nunca erro nada. Só não
tenho certeza se acertei o "Eu te amo" debaixo da cama. Mas
isso é porque eu não lembro. Acho que nem foi "Eu te amo"
que eu escrevi. Acho que eu escrevi "Eu amo a senhora", e
desenhei dois passarinhos. Você podia me ensinar a escrever
"Eu te amo", quando acordar, e depois eu ia desenhar mais
dois passarinhos, e depois mais, até dar oito. E depois, a gente 77
podia viajar pra Disney e ver o Peter Pan de verdade. Eu
MATERNA

queria ir pra Disney. (Pausa) A gente nunca vai ir pra Disney,


porque é muito longe, mas eu queria muito e a senhora – você
podia me levar, não podia? A gente ia se divertir muito, eu ia
gostar muito... eu ia gostar muito... Você não vai me levar
nunca, vai? Por que é bem longe... Eu vejo, antes do filme do
Peter Pan começar na fita cassete, os parques da Disney: o
Médic Quindom, lá no Uau Disney Uordi Risorti. É tudo tão
bonito, vocês deviam ver, tem uma bola gigante que parece
de vidro e aquele castelo é bem maior que o prédio que a
gente mora, e olha que a gente mora no oitavo andar! Do
oitavo andar pro chão é bem longe, né... eu lembro (Pausa).
Eu lembro de você dizendo pra eu não debruçar na janela.
"Depois você cai, e daí... é muito longe até o chão! Não vai
sobrar nada de você." E pra onde será que eu vou, quando
não sobrar nada? Será que vem alguém e me leva embora, e
assim não fica nem um pedacinho meu? Nem a unha do meu
dedão do pé? Nem meu olho? O olho fica, não fica? Ou será
que a terra me engole e eu vou parar num mundo mágico
cheio de fadas e talvez até tenha o Peter Pan! Será que é assim
que chega na Disney? A Disney é bem longe... Dá pra ir
voando feito passarinho? (Como nas propagandas das fitas)
Uau Disney Uordi Risorti, férias inesquecíveis, só está
faltando você! (Pausa) Se eu for pra Disney sem você, você vai
ficar brava? Vai, né? Porque vai ficar com medo de me perder.
Mas eu não sou uma chave! Se eu me perder, eu volto. Se eu
me perder, eu me acho. Ou será que é você que me acha? A
senhora é boa em achar coisas, a senhora sempre sabe onde
está tudo – Mãe? Mãe, onde você colocou meu brinquedo?
"Ali, na gaveta. Não sabe fazer nada sem mim." E o meu giz
de cera, mãe? E a fita do Peter Pan, mãe? E a minha meia,
mãe? Que engraçado. Meia-mãe. Como será que é ser só meia-
mãe? A senhora já foi metade disso que a senhora é hoje?
Você. Você já foi metade mãe? Tipo uma sereia! Meio mãe
meio peixe! Quando é que vira mãe por completo? Como que
78 faz pra ser mãe? Você gosta de ser mãe? Gosta de ser minha
mãe? Você quis ser minha mãe? Ou a gente já é mãe e não

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


sabe? Será que eu sou mãe também? Será que pra ser mãe tem
que ser mulher? Ah, eu queria ser meio mãe, saber onde estão
as coisas, nunca perder nada... Só a chave que a senhora nunca
encontrou, né. Será que a senhora é meia-mãe, e por isso não
achou a chave? Já faz tanto tempo que a gente não sai daqui,
que nem tem pra quê achar a chave mesmo, né. Já que a gente
não vai nem até a piscina mesmo… são oito andares até lá
embaixo, deve cansar você, né. Deve cansar ser mãe. (Pausa)
Se você achasse a chave, você podia me levar na piscina, né?
Mãe, por que você fica me olhando quando eu brinco na
piscina, se você não gosta? Hein, mãe? Você sabe que eu gosto
e por isso fica me olhando? Quando a senhora fica me
olhando, eu nunca sei se a senhora tá feliz ou triste. Parece
que já já a senhora vai chorar, mas não chora. Não chora
nunca. Eu fico brincando na água e olhando a senhora me
olhar. Aquela piscina azulzinha, o barulho quando eu pulo e
espalho água pra todo lado… é tão bonito, o mundo podia ser
uma piscina. Eu ia gostar, ia ficar com os dedos todos
enrugados, e a senhora ia falar “Saí daí que vai pegar uma
gripe”. Mas eu não quero sair nunca. Se o mundo fosse uma
piscina, eu não ia querer sair nunca, igual à senhora não quer
sair nunca, pra lugar nenhum. Fica sempre aqui dentro, nem
lembro quando foi a última vez que a gente saiu. Foi bem
antes de a senhora perder as chaves. Mas tudo bem, porque a
senhora não gosta muito de sair, não gosta de ir pra lugar
nenhum. Nem pra Disney! Quem não quer ir pra Disney? É
impossível de acreditar. Eu acho que pelo menos na Disney a
senhora ia ser feliz. O Uau Disney Uordi Risorti é o lugar mais
feliz do mundo, o moço fala na propaganda. Talvez você até
dava um sorrisinho pra eu ver. E, quem sabe, a gente não
tirava umas fotos pra botar nos porta-retratos. Daí a senhora
sorria pra foto! Olha o passarinho! (Pausa) Mãe, me leva na
piscina, por favorzinho. Eu prometo que não vou no mais
fundo. A senhora nem precisa entrar. Você fica do lado de
fora, fica só me olhando... daquele jeito. Igual a senhora ficou 79
olhando a fechadura da porta quando não achou a chave.
MATERNA

Igual a senhora ficou olhando pela janela no dia que me viu


debruçando. Igual a senhora ficou olhando no dia que cortou
o dedo fazendo comida, ficou olhando o sangue, a senhora
nem gritou nem nada. Mãe... acorda vai... tô cansando de ficar
aqui, e eles não me respondem nunca. Ficam só aí, me
olhando. (Pausa) Não dizem nada. (Pausa) Só me olham, e
nem é do jeito que você me olha. Não tiram os olhos de mim
(Pausa). Ficam me olhando como se eu fosse a fita cassete do
Peter Pan – já já eu saio voando! (Ri) Podia, né. Sair voando
pela janela do apartamento, oito andares até a Disney! Aquele
dia que eu tava debruçando na janela me deu uma vontade de
pular e sair voando. Pra voar tem que pensar em uma coisa
bem linda, como uma mãe, por exemplo. Ou a Disney!
Parando pra pensar, a Disney é como se fosse uma mãe. Uau
Disney Uordi Risorti, aí vou eu! Zuuuuuum! Daí, entro numa
nuvem de chuva, no meio dum furacão, um tufão, uma
tempestade! Capitão, baixar velas! Cabruuuuum! O vento vai
destruir o navio! Vamos naufragar, marujos! Daqui só temos
um destino, o fundo, o mais profundo! Não dá pra fugir, não
tem o que fazer! Socorroooooooooo! Vocês já desejaram
dormir com as baleias, marujos? Porque o mais fundo do mar
é o nosso destino. (Pausa curta) Onde pensa que vai, capitão?
Capitão, responda, capitão! O senhor está apto à sua função,
capitão? Você comanda este navio ou não comanda?
Responda, capitão! (Pausa. Triste.) Responde. (Pausa curta.)
“Um capitão afunda com o seu navio!” Ainda bem que eu sou
só um marujo. E dou um mergulho! Tchbum! E tem um monte
de tubarões! (Pausa súbita) E eles estão me olhando. Me
olhando famintos... o que é que eles esperam de mim, mãe? O
que é que vocês esperam de mim? Sou só criança, não sirvo
pra nada, não sei fazer nada sem ajuda. Minha mãe sempre
me diz essas coisas. Eu não tenho nada demais, eu nem sei
escrever "Eu amo a senhora" direito. Não me olha assim, não.
Não me olha assim. Para. Não olha pra mim. Para de me
80 olhar. Por que você tá me olhando? Mãe! Mãe, eles tão me
olhando estranho, esse monte de estranho tá me olhando

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


estranho e a senhora me disse a senhora você foi foi você
quem me disse você me disse pra eu não falar com estranhos!
(Pausa) E me olhar, pode? Pode nada! Não pode, não senhor,
parem de me olhar! Vai estragar a vista! Igual quando eu enfio
a cara na tela da TV. A estática até puxa meu cabelo (Ri.) É
engraçado. Eu queria morar dentro da TV! Todo mundo ia
saber quem eu era, iam ficar me assistindo, e daí quem sabe
eu até ia pra Disney! Eu podia ir, e podia levar a fita do Peter
Pan e até ia ganhar um autógrafo. Ele ia lá e assinava o nome
dele na fita. Pensa nisso! Uma fita do Peter Pan autografada!
Só pra mim! Ai ai, eu ia ficar tão feliz. Eu gosto muito do Peter
Pan. (Pausa curta.) Da Wendy também, mas não tanto. Mas
será que fita autografada funciona igual fita normal? Por que
daí, se o filme der problema, eu não vou mais poder assistir...
Mãe, você tá me ouvindo? Fita assinada passa igual fita
normal? Às vezes, eu acho que a senhora nunca me ouve.
Parece que eu falo, falo, falo, falo, falo, falo, falo, falo oito
vezes, e a senhora não ouve nem duas. Nenhuma. A senhora
não gosta de me ouvir? "Eu não aguento ouvir essa tua
vozinha". Será que a senhora não gosta de ouvir nem quando
eu digo "Eu amo a senhora"? Ainda bem que, ao invés de
falar, eu escrevi, né. Eu sou muito inteligente. Vai ver que é
por isso que a senhora não me ouve, porque a senhora não
entende. Eu falo muito difícil e você não consegue
acompanhar. Coitadinha. Eu sei tanta coisa que a senhora não
sabe. Eu sei onde fica a Disney, é na Flórida. E a Flórida fica
nos Estados Unidos. Passa tudo na propaganda na hora que
mostra o Uau Disney Uordi Risorti. Até a fita do Peter Pan
sabe mais que a senhora! Você nem sabe como liga o vídeo
cassete, eu que sempre ligo sem ajuda. Quando a senhora
passa na sala e o filme tá pausado, ou rebobinando, eu vejo a
senhora me olhando. A sala toda escura e a luz colorida da TV
em cima de mim. Eu, às vezes, pauso a fita só pra ver que cor
a sala fica, o sofá fica. O mundo todo inundado pela cor da
TV. E, às vezes, a fita fica esquisita, a imagem fica torta… 81
parece que tudo tá passando em câmera lenta e o colorido da
MATERNA

TV estremece, parece um monte de fantasmas do filme…


talvez seja de tanto eu assistir. Mas eu assisto muito porque
eu gosto. Eu amo o Peter Pan. Não sei se amo mais a senhora
ou o Peter Pan. Será que a senhora sabe que eu amo a senhora?
A senhora não sabe nem pausar a fita, a senhora não sabe de
nada. De nada! E ainda vem querendo me ensinar. "Não faz
isso! Que coisa feia! Para de fingir que sabe das coisas, que
coisa feia ficar mentindo, fingindo, se fazendo! Vamos, levanta
desse chão imundo, sai debaixo dessa cama! Onde foi que
você aprendeu a fazer isso? Com quem?" Daí, eu só respondo
"Com o Felisberto, ué". A senhora é muito burra mesmo. Você
nem consegue ver o Felisberto. Ele até acha graça de como a
senhora passa do ladinho dele, ri a beça, faz até xixi de tanto
que ri (Pausa). O ruim é que depois a senhora põe a culpa em
mim, mesmo quando eu digo que não fui eu. Não fui eu que
fiz xixi na cama. Então quem foi? Foi o Felisberto. "E cadê esse
maldito, então? E por que ele tava dormindo na sua cama?
Não quero você dormindo com ninguém, ouviu bem? Nem
com o Felisberto, nem com ninguém! (Gritando) Sai daí,
Felisberto! Sai daqui! Sai da minha casa!". A senhora grita
muito com o Felisberto. E comigo também. A senhora grita
muito. Pra que essa gritaria toda? Vai ver que é por isso que
não me ouve. (Grita) Eu amo a senhora! (Pausa) Mãe? Por que
não responde? Tá brava comigo? Você tá brava por que ontem
eu dormi na sua cama? Eu dormi com a senhora, porque tava
com medo. Tava escuro e eu fiquei ouvindo o vento assoviar
na janela… parecia até que a janela tava me chamando...
Quando eu segurei na sua mão, ela tava tão gelada. A senhora
tem as mãos geladas, parece que acabou de tirar elas da
piscina. Eu sei que você não se importa de eu dormir com a
senhora... às vezes, você até vem e deita na minha cama. E
dorme... dorme tanto... parece que nunca vai acordar. Eu vejo
a senhora levantar pra beber água e quando eu olho de novo a
senhora já tá dormindo. Às vezes, dorme o dia inteiro e de
82 noite fica olhando a janela, daquele jeito que a senhora me
olha. Será que a senhora tá esperando o Peter Pan aparecer? O

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


que será que você fica vendo lá na janela, quando não dorme
à noite? Igual na noite que você viu aquele programa
engraçado falando dos passarinhos. A televisão tava sem
volume nenhum. Você lá sentada no sofá, olhando a TV do
jeito que a senhora me olha, e a mãe passarinho empurrando
o filhotinho pra fora do ninho. Dava pra ouvir o barulhinho
que a TV faz, quando tá ligada e sem volume, um barulhinho
mudo, engraçado, sem som. Você nem olhou pra mim quando
eu deitei no seu colo, ficou muda igual a TV, ou até mais
muda que a TV... só vendo o passarinho caindo, caindo... em
câmera lenta... Acho que era pra ele sair voando. E depois
disso você foi dormir, e dormiu tanto que eu achei que nunca
ia acordar. Quando a senhora, finalmente, se levantou,
começou a recolher os porta-retratos todos, lembra? Antes
tinham tantos, espalhados nas paredes, em cima das coisas,
um monte de fotos nossas, fotos com o vovô... (Com carinho)
tinha até foto na piscina... tão bonitas... e você guardou todas,
uma por uma... sem olhar (Pausa). Nem olhou pra elas. Todas
as fotos dentro duma caixa, não sobrou nada pendurado. Os
pregos nas paredes ficaram todos vazios. E depois de guardar
tudo, a senhora foi andando até a janela e ficou olhando lá pra
fora, debruçada (O vento assovia na janela). Quando eu
segurei na sua mão e te chamei, baixinho, mãe, você me olhou
um tempão. E, depois, me segurou no colo e me deu um
abraço... E aí me sentou na janela devagarzinho, me segurando
pela cintura, eu até balancei as pernas e olhei lá pra baixo.
Você tinha razão, é bem longe. As mães sempre têm razão. É
tão longe, dá medo de cair. Será que o filhotinho que a mãe
passarinho empurrou do ninho não teve medo? Eu tive medo.
(Uma pausa estranha) Demorou tanto pra senhora me tirar de
lá. Mas, quando tirou, ficou um tempão comigo no colo, me
deu um iogurte. E, depois, dormiu de novo. Às vezes, a
senhora dorme de dia e de noite também. Que será que a
senhora sonha? Deve sonhar muito, do tanto que você dorme.
Será que você sonha que você não é mãe? Antes de ser mãe, a 83
senhora era o quê? Agora a senhora é minha mãe, mas, antes
MATERNA

de ser minha mãe, a senhora era quem? Vai ver a senhora não
era ninguém (Pausa). Ou vai ver agora é que a senhora não é
ninguém, agora é só minha mãe. Todo mundo diz “Aquela é a
sua mãe?”, então é isso que a senhora é agora, não é? Minha
mãe (Pausa). Será que você queria ser menos mãe? Vai ver
você não encontrou a chave de propósito, pra ser só meia-
mãe. Será que a senhora nunca quis ser mãe? Ou nunca ter
crescido – igual o Peter Pan. A Wendy que queria ser mãe, ela
até fala no filme: "Mamãe é uma pessoa que gosta e cuida de
nós, conta histórias. Aquela que nos dá boa-noite, beija o
nosso rosto, e diz: dorme, filhinho...". Porque eu não chamo
você de mamãe, mãe? Será que mamãe é duas vezes mãe?
Então, mãe é meia-mamãe? Mamãe mais Mamãe é
Mamamamãe. E mamamamãe mais mamamamãe é
mamamamamamamamãe. Você podia ser minha
mamamamamamamamãe, mas não. Você nunca faz nada
direito, olha só pra você, caída aí, dormindo o dia todo, não
abre esse olho nunca. Nem se mexe. É por isso que é só meia-
mamãe! Você não serve nem pra isso, não serve nem pra ser
só isso! É isso que você tem que ser e nem isso você consegue!
Dormindo o tempo todo, a sujeira pela casa acumulando,
corta o dedo fazendo comida e enche tudo de sangue, você
não sabe cuidar de uma criança, você não sabe cuidar de mim,
todo mundo fala, todo mundo fala isso pra senhora. Todo
mundo fala que você só reclama! Preguiçosa! Todo mundo
sabe como é ser mãe, menos a senhora! (Pausa curta) Olha pra
mim! Abre esse olho, vamos, me olha! Me olha, nem que seja
como eles me olham. (Pausa) Mãe, eles ainda estão aqui, me
olhando. Eles só me olham, mas não dizem nada. Eles me
olham como se não tivessem nada pra dizer. Acho que não
tem muita coisa pra falar sobre mim, mesmo… Mas parece
que eles não vão embora nunca. Não sei qual é a graça de me
olhar. Se, pelo menos, eu morasse dentro da TV... A senhora
não vai fazer nada? A senhora vai deixar eles ficarem me
84 olhando? Vai ficar aí deitada? Quando é o Felisberto a senhora
apronta um escândalo, grita, berra, eu tenho até medo da

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


senhora. O Felisberto diz assim, "Vamos embora. Essa sua
mãe não serve. Tem outras melhores". Mas se ele soubesse o
tanto que é difícil ter uma mãe. Acho que tem gente que nem
tem. Ou que não tem mais (Pausa). A gente bem que podia
sair escolhendo, de repente, eu vou lá na Disney e compro
uma mãe nova, mais legal. Mas não, a minha veio de fábrica,
tá aí, e parece que tá quebrada, não funciona. Vamos mãe,
mamãe, a senhora tem que levantar alguma hora. Como é que
eu posso ser criança com uma mãe quebrada dessas? Nunca
funcionou direito, torta, barulhenta, e agora nem ligar não
liga! Será se acabou a bateria? Parecia mesmo, tem um tempo,
que a pilha tava acabando... Eu tenho pilha no controle remoto
do vídeo cassete! Pronto! Tá resolvido! Eu vou, troco a pilha
da senhora, a senhora levanta, e daí pode ser minha mãe de
novo, pode até ser minha mamãe, se a senhora levantar.
Levanta, por favor! Mãe, você não quer levantar? Não quer
ficar comigo, não quer ficar perto de mim? Não quer ser
minha mãe? Finge que quer, então. Me abraça, fica aqui
comigo mãe, mãe, eu quero que você levante, levanta, acorda,
eu quero que você acorde, por que você não acorda? Por que
você não faz o que eu quero?! Nunca posso nada! É tudo
sempre do seu jeito! (Contando nos dedos) Não posso tomar
iogurte, não posso ir pra Disney, não posso assistir TV com a
cara colada na tela, não posso me esconder embaixo da cama,
não posso falar com o Felisberto, não posso ir na piscina, não
posso debruçar na janela, e agora nem levantar você não quer.
Por favor! Por favor, mãe, mamãe, levanta, vai, porfavorzinho,
uma levantadinha só, rapidinho, abre o olho, vai, só um
pouquinho, mãe. Eu não quero passar a noite sem ninguém
de novo, já faz três dias que a senhora não acorda. Parece que
nem respira (Pausa). Eu tenho medo de ficar só, levanta mãe.
Mamãe. Vai. Não vai? Não quer? Se a senhora não levantar...
se você não levantar, eu vou... eu vou entrar debaixo da cama
e me perder! E vou me perder pra sempre! E vou até riscar o
que eu escrevi nas tábuas! Vou riscar tudo! Os passarinhos, as 85
palavras, não vai sobrar nenhuma letra, nem certo nem
MATERNA

errado, a senhora nunca vai saber que eu te amo! Eu nunca


vou falar, nunca! Levanta ou eu vou embora! Ei, vamo,
levanta! VAI! VOCÊ TEM QUE LEVANTAR. EU QUERO
QUE VOCÊ LEVANTE. EU QUERO. VOCÊ TEM QUE FAZER
O QUE EU QUERO. E SE NÃO FIZER EU GRITO IGUAL
VOCÊ. EU GRITO ATÉ MAIS QUE VOCÊ. EU SEI SER
INSUPORTÁVEL. SE A SENHORA É RUIM, EU SOU PIOR,
mãe, mããããe, mãezinha, acorda mãe. Levanta, por favor. Eu
quero ver o filme do Peter Pan de novo. E quero ver com você.
Queria ir pra terra do nunca com você – é o lugar certo de
toda mãe. Ao invés de a gente que é criança nunca crescer,
vocês é que tinham que durar pra sempre. Pra sempre. Até a
gente se perder, e a senhora ficar olhando da janela, vendo de
longe, vendo lá do oitavo andar, a gente perdido no meio dos
chinelos, das chaves da porta. E olhando com aquele olhar,
me olhando, a senhora podia muito me olhar agora. Abre esse
olho vai. Me olha daquele jeito. Eu sei que a senhora quer me
ver. A senhora fica feliz em me ver. Ou não fica? Não fica?
(Pausa) Mãe, eu já cansei dessa brincadeira. Já é muito tarde.
Eu não quero dormir outra vez, eu não comi desde que a
senhora dormiu. Eu tô com fome. A senhora me proibiu de
comer o que tem na geladeira, disse que só depois da janta,
mas não teve janta e eu tava com muita fome e tomei um
iogurte. Ou dois. Dois mais dois são quatro. Quatro mais
quatro oito. Eu tomei uns oito iogurtes, eu tomei todos os que
tinham, eu nem sei contar quantos tinham, a senhora tá brava
comigo? Tá brava? Tomei todos os iogurtes, vai, levanta, briga
comigo, grita, grita bem alto, me deixa ouvir a sua voz. Só um
pouquinho. Eu tô com medo de não ouvir ela mais. De você
ficar aí dormindo pra sempre. Me fala que que você vai fazer
de janta pra gente. Eu vou comer qualquer comida que a
senhora quiser fazer eu como, pode ser até rúcula que eu não
vou fazer cara feia. Se a senhora não fizer janta… (Pausa.)
Como é que o Peter Pan vive sem mãe? Como que alguém
86 vive sem mãe? Eu não consigo, e se a senhora não acordar, eu
vou ter de aprender, e eu não sou muito inteligente. O

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


Felisberto também não sabe cozinhar, aliás, ele já até foi
embora. Eu sei que a senhora não gosta dele, daí eu mandei
ele embora um pouquinho. Mentira, eu mandei pra sempre.
Ele foi embora pra sempre, então agora volta mãe, acorda,
acorda que já passou da hora de dormir. Como é que eu vou
dormir se a senhora não me contar uma história, não me der
boa noite, beijar meu rosto e falar pra eu dormir, igual a
Wendy disse que tem que ser? Como é que eu vou dormir? Eu
não sei dormir sem boa noite da senhora. Eu amo a senhora. É
o que tá escrito no estrado da cama. E fui eu que escrevi,
talvez esteja errado, mas fui eu (Pausa curta). E se a senhora
me amar também, a senhora vai acordar. E vai me contar
história e me ensinar a escrever. Vai, não vai? Se eu soubesse
escrever, eu podia te mandar uma carta quando eu me
perdesse no mundo, debaixo da cama. Pra senhora não me
esquecer, mesmo que eu me perdesse (Pausa). Acho que eu
sempre vou ter alguma coisa pra te dizer, mãe. Até quando eu
não puder mais falar (Pausa). Eu tenho medo de escuro, mãe,
vou ter de deixar a luz acesa, se a senhora não acordar. Ou a
TV ligada, pra ficar olhando os fantasmas coloridos na tela e a
sala mudando de cor. E eu sei que a senhora não gosta quando
eu deixo a TV ligada. Mas não vai ter outro jeito, eu fico com
medo e a senhora não tá nem aí. Parece que não tá nem aqui.
Eu vou ficar com medo, mãe. Eu tenho medo do escuro por
causa dos fantasmas. Mas, mãe, fantasma existe? Será que
depois que a pessoa morre a gente consegue falar com ela de
novo? Será que eles ficam aqui olhando pra gente, vendo o
que a gente tá fazendo, fiscalizando se a gente tá no caminho
certo ou não? Observando, atentamente (Pausa). Com os olhos
brancos, vidrados. Sem nenhuma expressão. Como todos
esses aí (Pausa curta). Julgando a gente... esperando alguma
coisa... Pois não vai acontecer! O que vocês estão esperando
não vai acontecer! Podem ir embora! Eu não vou dar esse
prazer a vocês. Aliás, ainda não entendi por que vocês perdem
o tempo de vocês aqui, deviam estar descansando nas tumbas 87
de vocês, gemendo e se lamentando. Buuuuuuuh.
MATERNA

Uuuuuuuuuh. Chorando pra assustar os outros, passando


medo na gente, brilhando no escuro (Pausa curta). Até que
deve ser legal ser fantasma. Você brilha no escuro, atravessa
paredes. Você até voa! Igual o Peter Pan, só que sem o pó de
pirlimpimpim! E se puder voar dá pra ir até a Terra do Nunca!
(Pausa curta) Dá pra ir até a Disney! A Disney deve ser cheia
de fantasmas, devem estar por todos os lados. Nas filas dos
brinquedos, dentro dos túneis, atrás dos arbustos, nas
lanchonetes, montes de fantasmas. Deslizando por aí,
tomando refrigerante e usando umas orelhas de Mickey
Mouse! Eu, pelo menos, se fosse fantasma, já estava lá. Que
fantasma que não vai querer ir pra Disney? (Como nas
propagandas das fitas) O mundo da magia, diversão e fantasia
do Uau Disney Uordi Risorti está esperando você! (Pausa. O
vento assovia na janela.) Será que um dia eu vou ser um
fantasma também? Será que a senhora vai ser um fantasma
um dia? Daí a gente podia voar pelo céu de mãos dadas, sair
pela janela do oitavo andar, voar a noite inteira, mergulhar
nas nuvens e ver as estrelas de pertinho. E chegar na Disney!
E dar uma festa de fantasmas! Ia ser muito assustador, mas ia
ser muito legal, porque ia ser na Disney (O vento assovia na
janela. A criança olha para a janela.). Eu queria ser um
fantasma agora mesmo. Eu queria pular pela janela e ir pra
bem longe, igual a senhora sempre diz, bem longe, e, quem
sabe, daí a senhora não vinha atrás, me procurando, doidinha
igual ficou com a chave da porta. A gente ficou um tempão
sem poder sair de casa por causa dessa chave, né. No começo,
a senhora tava desesperada, mas depois ficou tão tranquila. "É
bom que assim eu não vou te perder nunca." Daí, me deu um
beijo e ficou me olhando, daquele jeito. Mãe, me dá um beijo?
Só um beijinho, por favor. Eu amo você. (Pausa. O vento
assovia na janela outra vez. Se aproximando da janela, num
crescente.) Eu quero ser fantasma! Vou pular dessa janela,
vou voar pra Disney e vou escrever nos estrados das camas
88 do Uau Disney Uordi Risorti "Eu amo a minha mamãe"! E vou
encher eles de passarinhos! E a senhora vai acordar depois

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


que eu pular, não vai? Vai acordar e eu não vou estar aqui,
nem eu nem o Felisberto, daí a senhora vai se sentir sozinha,
não vai? Igual eu tô me sentindo agora. Você me ama, mãe?
Eu vou pular, e a senhora vai me perder. Mas a senhora me
acha. A senhora sempre encontra tudo, então a senhora vai
me achar. (Escalando a janela e ficando em pé no parapeito,
perigosamente.) Uau Disney Uorld, a magia está no ar! Eu
vou ser um fantasma lá na Disney! A senhora me encontra
por lá? A senhora voa até lá e me encontra? Diz que vai, mãe.
Só isso. Só diz "Vou te encontrar". Só isso. Só diz "Vou".
“Vou!”. Diz: “Vou! Vou!” (Ouve-se uma campainha, e, logo
em seguida, a porta destrancando, uma luz corta a cena como
uma porta que se abre e uma sombra longa se projeta no
palco, demoradamente. A criança corre até a porta.) Vovô!
Vovô! Que bom que você veio. Tava com medo de ficar só! A
mamãe? A mamãe tá dormindo e não quer acordar.

(2017-2019)

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90
91
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

5
92
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
OH, NON!
[PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

(Cortinas Fechadas. Sugere-se certa pompa e


elegância. A frente do palco, uma placa de chão
típica de café, com os dizeres "Deixem que comam
brioches! Especialmente os da Champs Élysées", e
um microfone antigo, em um dos lados. Músicas
francesas, da década de 1930 e 1940. Assim
permanece por um tempo. Então, sobe ao palco
AUGUSTA CORNEILLE. 13 anos, idade em que
nos perguntamos tantas coisas – algumas delas
muito importantes, mas talvez não todas... Está
visivelmente entediada. Atinge facilmente os padrões
de beleza exigidos. É popular. Cabelos pretos e
cacheados. Usa um vestido curto, logo acima do
joelho, azul claro, com renda.)

AUGUSTA: (Respira ofegante no microfone por um período


curto de tempo. Sorri suavemente. Finalmente lança um olhar
para a plateia. De alguma forma, os encanta docemente.)
Bonjour, Mesdames! Et messieurs, aussi. É primavera em
nossa cidade. Os doces corações juvenis estão batalhando 93
corajosamente por um pouquinho de atenção, digladiando e
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

espirrando soda limonada com chantilly por cima do carpete. É


assim que nascem as flores. Os passarinhos cantam e piam por
entre as árvores, e nós aqui, vivendo concursos de beleza pra
ir até a padaria. Oh, que gracioso esboço de vida nós levamos.
Sejam bem-vindos à vida de Augusta Corneille!

(Abrem-se as cortinas e ouve-se o barulho de sinos


como de portas de estabelecimentos, para anunciar
clientes. Vê-se uma típica confeitaria francesa, num
estilo rococó. Tons pastéis. O cenário é bastante
pitoresco. De preferência, deve haver uma pintura
de um céu azul com poucas nuvens ao fundo do
palco. É necessário que haja a sensação de limpeza,
de pureza, e que o cenário seja inclusive um pouco
tedioso. Atrás do balcão, PHILIPPE BOULANGER.
13 anos. Trabalha na confeitaria. Está sempre de
camisa social com as mangas erguidas, bermuda
clara. Usa meias escuras, sapatos um pouco sujos.)

PHILIPPE: Mademoiselle Augusta! Que prazer tê-la aqui na


Champs Élysées!
AUGUSTA: Ora, vamos, Philippe. Estou aqui todos os dias. Não
finja surpresa.
PHILIPPE: Bem, recomecemos então.

(Muito rapidamente, fecham-se as cortinas, abrem-se


novamente e ouvem-se os sinos, como antes. Augusta
já está sentada.)

PHILIPPE: (Com pouco entusiasmo) Mademoiselle Augusta, o de


sempre, presumo?
94 AUGUSTA: Sim, o de sempre. Bastante...
JUNTOS: Açúcar cristal.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


PHILIPPE: Para a mademoiselle, somente o melhor açúcar. (pisca
o olho para ela, sorrindo)
AUGUSTA: (sorri de volta) Mas não demore como sempre faz.
(Philippe começa a servir um bolo) E hoje quero suco de laranja,
por favor. Sem açúcar.
PHILIPPE: (Entregando o bolo e o suco) Aqui está. O açúcar
brilha como estrelas espalhadas, vê?
AUGUSTA: (Sem dar a mínima atenção) Sim, sim, belíssimo.
(Vê entrando um senhor na confeitaria. Sons de sino.) Este é o
senhor Jean, estou correta?
PHILIPPE: (Desviando a atenção) Oh, monsieur Jean! Seja bem-
vindo, seja bem-vindo. (O Homem faz um meneio com a cabeça.
Philippe aproxima-se dele, retira um bloquinho e um lápis, este
amarelo. Conversam em voz baixa.)
AUGUSTA: (Para si, em tom investigativo) Grandes
sobrancelhas arqueadas, este paletó sujo nas costas... Jean andou
se esgueirando por aí, e parece estar preocupado. O sapato está
bastante sujo, também. Por onde tem andado, Jean, querido?
PHILIPPE: (Em voz alta) Num instante, num instante! (Corre
para pegar a torta, cochicha para Augusta, enquanto o faz)
Guarde seus pensamentos para si, estamos todos ouvindo.
AUGUSTA: É o mínimo que uma dama espera, ser ouvida!
PHILIPPE: (Servindo um copo de uísque, visivelmente em
apuros) Augusta! Quer que eu perca meu emprego?
AUGUSTA: (Surpreende-se. As ações seguintes devem parecer
ameaçadoras. Sem esconder a estupefação, olha para sua
bolsa e retira uma nota de dinheiro, de forma elegantíssima e
desagradável. Deposita-a sobre o balcão olhando Philippe nos
olhos.) Fique com o troco. É gorjeta. (Sorri docemente.)
PHILIPPE: Augusta! Vamos parar com isso, por favor. (Serve-
lhe uma porção de Macarons) Aqui, cortesia da casa.
AUGUSTA: Oh, Philippe, por favor. Quer me comprar com uns
bolinhos?

(O homem no canto tosse.)


95
PHILIPPE: (Sério) Como pode pensar isso de mim?
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

AUGUSTA: Très bien. (Ele sai. Para si, novamente) Não dá pra
esperar nada de você, não é?
JEAN: (Para Philippe) Vocês são namorados?
PHILIPPE: Senhor, aqui está seu pedido.
AUGUSTA: (Quando Philippe se aproxima, retomando o tom
investigativo) E, então, onde estará andando nosso querido
Jean?
PHILIPPE: (Sentando-se atrás do balcão, perto de Augusta,
entrando no jogo como de costume) Pediu uísque para
acompanhar a torta e não são nem dez da manhã.
AUGUSTA: (Incrédula) Não se bebe uísque com torta.
PHILIPPE: Quer que eu ensine a ele como se alimentar,
Augusta?

(Augusta silencia. Não parece abalada pelo ataque


de Philippe, pelo contrário. Continua observando o
senhor Jean.)

AUGUSTA: (Depois de certo tempo) Há uma folha presa no


calcanhar do sapato esquerdo, vê?
PHILIPPE: Consegue distinguir que folha é, daqui?
AUGUSTA: É claro que não. (Morde um Macaron) Vá lá dar uma
olhada.

(Philippe parece irritado com a ordem, mas pega


uma vassoura e vai se aproximando da mesa do
senhor Jean. Neste momento, entra uma mulher
bastante elegante com um menininho. Sinos da
porta. Se o menino puder estar segurando um balão
de gás hélio, contribui para o quadro.)

AUGUSTA: Garçon! (Mais alto) Garçon!

96 (Philippe vai rapidamente até Augusta, com a


vassoura em mãos)
PHILIPPE: Oui, mademoiselle?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


AUGUSTA: (Cobrindo a boca com a mão) Esta é a senhora
Marie, e seu filhinho Pierre, estou correta?
PHILIPPE: Sim, por quê?
AUGUSTA: É o mesmo vestido de ontem!

(Tableau.)

PHILIPPE: Oh! É mesmo, senhorita Augusta!


AUGUSTA: Isso só pode significar que –
PHILIPPE: Preciso atendê-la, um instante. (Dirige-se até Marie.)

(Augusta o vê se deslocar até Marie. Quando esta


começa a olhar o cardápio que Philippe lhe entregou
e se prepara para fazer o pedido, Augusta derruba
seu copo de suco no chão, propositalmente.)

AUGUSTA: Oh, non!


PHILIPPE: Um instante, madame. (Dirige-se até Augusta) O que
está fazendo?
AUGUSTA: Não me ignore, Philippe. Não seja como os outros
meninos.
PHILIPPE: (Abaixando para juntar os cacos maiores) Não sou
como eles.
AUGUSTA: Ah, não é? (Suspira e olha na direção contrária)
Vocês homens são todos iguais. (Pausa.) Escondendo-se atrás
das calças curtas, das ceroulas apertadas. (Pausa.) Correndo por
aí com suas pistolinhas, espirrando água nos outros.
PHILIPPE: Eu tenho 12 anos. (Sai para buscar um pano atrás do
balcão.)
AUGUSTA: (Cínica) Oh, Philippe. É tão bom você estar sempre
aqui, sabia? (A mulher no canto tosse.) Vamos, querido, não se
deixa uma mulher esperando, sabia? (Sorri.)
PHILIPPE: (Enxugando o suco de laranja, abaixado) Um
instante, Madame!
97
AUGUSTA: A folha era de que tipo?
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

PHILIPPE: Não sou botânico.


AUGUSTA: (Pisando no pano) Cuidado com o tom. Não
queremos ser mal-educados, não é?
PHILIPPE: Um instante, Madame! (Levanta-se, encara
AUGUSTA por um segundo e, então, coloca o pano sobre o
balcão. Dirige-se à mesa de Marie. Começa a anotar os pedidos.)

(Augusta dirige-se até o microfone da boca de cena.


Enquanto dá o próximo texto, muitos clientes entram
na Champs Élysées e Philippe os vai atendendo.)

AUGUSTA: Bem no coração de nossa cidade, lá de dentro


da Pâtisserie Champs Élysées, de dentro de um sorriso meio
amargo, com raspas de limão, vem um som de esquecimento.
Aquece. São cordas vocais bem esquemáticas, que proclamam
hipocrisias e preces vazias, cheirando a mogno, escorrendo
para a calha das telhas. Não vivemos em Paris. Não vivemos
nem mesmo na França. Este lugar possui ruas e mais ruas de
sobrados enfileirados e parece que há sempre um acordeão
tocando por entre as frestas luminosas. É impressionante. Os
cidadãos cumprimentam-se levemente e mantêm uma vida
regular, retilínea, contida. Pastel. Que milagre a descoberta do
açúcar. Vê-se Outono, Inverno, Primavera – mas nunca o Verão.
Essa estação não é muito boa para as garotas, é o que mamãe me
diz. Não sei se entendo o porquê. Diz que o verão é privilégio
de mocinhas mais velhas do que eu, e que um dia eu vou poder
sentir o sol na minha pele também, ficar corada, usar roupa de
banho. Mamãe nunca viu o mar. (Cantarola um trecho de Bel
Ami, de Louis Poterat e Theo Mackeben. Neste meio tempo, a
confeitaria vai se esvaziando, até todos os clientes irem embora.
Por fim, suspira no microfone e volta-se para Philippe.) Está
ficando tarde, não é?
PHILIPPE: (Varrendo calmamente o chão, observa de relance a
janela) Logo o sol vai se pôr, e então será o momento ideal para
se ver as constelações.
98 AUGUSTA: (Voltando para o interior da loja) Já se vê a lua.
PHILIPPE: Às vezes, dá para vê-la o dia todo... (Apoia-se na

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


vassoura. Suspira. Olhando para cima.)
AUGUSTA: (Olha para Philippe e acompanha o seu olhar.
Muito de repente.) Acho romântico, sabia?
PHILIPPE: (Voltando à terra) …O quê?
AUGUSTA: (Aproximando-se de Philippe) O céu, a noite...
PHILIPPE: (Suspirando outra vez) Acho fascinante.
AUGUSTA: (Contrariada) Fascinante?
PHILIPPE: (Sonhador) Já pensou como deve ser por lá? Será
que existem pâtisseries como essa na lua? Imagine o Crème Brûlèe
lunar! Será que lá existe vida?
AUGUSTA: Não seja ridículo. Não há vida além do nosso
planeta. E todo mundo sabe que a lua é feita de queijo.
PHILIPPE: (Pesaroso) Que pena. Quando eu for à lua, gostaria
de ter companhia.
AUGUSTA: (Irritada) Para quê ir à lua, se temos coisas muito
mais bonitas por aqui.
PHILIPPE: (Olhando-a) O que, por exemplo?
AUGUSTA: (Silencia, contrariada. Hesitante) O amor, por
exemplo!
PHILIPPE: Minha mãe me diz que sou muito novo pra saber o
que é o amor.
AUGUSTA: E ela está absolutamente certa. Você não é mais
do que um garotinho, afinal de contas. Deve até enterrar os
brinquedos na areia do parquinho e procurá-los no dia seguinte.
PHILIPPE: (Envergonhado) Eu nunca fiz isso!
AUGUSTA: Eu já, quando era uma menininha. Foi uma grande
decepção não os encontrar! Por mais que cavasse, por mais areia
que tirasse, eles não estavam mais lá.
PHILIPPE: E onde eles estavam?
AUGUSTA: (Encerrando o assunto) Perdidos no espaço sideral.
Bem, preciso ir, Philippe. Até qualquer hora.
PHILIPPE: Até amanhã, Augusta.
AUGUSTA: Isso se eu vier amanhã, claro. 99
PHILIPPE: (Sorrindo) Você sempre vem.
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

AUGUSTA: Posso ser imprevisível se eu quiser. Sou misteriosa


como a lua.
PHILIPPE: Até amanhã, Augusta.

(Fecham-se as cortinas.)

II

(Saem de trás das cortinas Philippe e Augusta.


Posicionam-se nas pontas do palco e conversam com
o público, simultaneamente.)

PHILIPPE: Ora, vejam só, quantas pessoas aqui hoje! Está


bastante cheio, isso é de fato estupendo! Vêm sempre ao
teatro, senhores? Não, claro que não. Por aqui, as pessoas
evitam grandes acontecimentos que não sejam patrocinados
por digníssimas empresas, não é? Pois bem, chamem todos os
seus amigos para a próxima apresentação, por que a Champs
Élysées patrocina estes 60 minutos que os senhores vão assistir.
Oferecemos tortas diversas, especialmente as mais saborosas e
deliciosas, para nenhuma senhorita botar defeito. São bastante
refinadas e uma mordida é como se alguém sussurrasse em
sua orelha "Mon amour... mon amour...". (Ri) A indicada da
casa é a torta de mirtilo, feita especialmente para paladares
monárquicos e exigentíssimos. Somos bastante orgulhosos em
dizer que nunca recebemos nenhuma reclamação sobre nenhum
produto, mas somos especialmente orgulhosos em dizer que
a torta de mirtilo só recebe elogios. Seu recheio é feito com
somente a mais fresca remessa de mirtilo que se pode encontrar
nas redondezas. Depois de preparado, ele é colocado na torta
e, meus senhores, não posso mentir, sou capaz de passar umas
boas dúzias de minutos olhando bem fundo o negrume azulado
que resulta. Vejo lá dentro a profundidade inteira do universo,
100 enxergo múltiplos sistemas solares e naves espaciais a vagar de
um planeta a outro... carregando viajantes com suas maletas e

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


roupas de astronauta. É doce. Doce como somente nossa torta de
mirtilo pode ser, e lá no fundo é um pouquinho azeda e – meu
Deus, estou salivando só de descrever. Esta torta já começou
casamentos felizes, manteve romances longevos, criou afeição
entre viúvas e maridos há muito falecidos, e sempre sugere
novos amores. (Devaneando) Ah, quando sirvo uma torta
dessas, só consigo pensar no escuro da noite, mergulhar dentro
dele e ver lá no fundo o universo, o recheio da torta de mirtilo.
Jogar açúcar por cima e ver brilhar feito a via láctea. (Suspira)
Bem, pena que não sou nada mais do que um mero atendente,
tome uma gorjeta, Phillipe, e olhe bem para você: só serve para
secar xícaras, limpar o chão. Confinado entre açúcar refinado e
sonhos de creme fresco.
AUGUSTA: Ora, veja, passamos a primeira cena inteira da
minha sensacional e inesgotável vida e não deve ter demorado
mais do que dez minutos, estou correta? São, agora, oito e dez,
e vê-se que vocês estão se divertindo muito, danadinhos. Pois já
adianto que estamos bem longe da melhor parte. É importante,
porém, que vocês estejam completamente atentos, que não
percam um segundo, que não deixem de ver um mísero dedo
mover-se: cada detalhe aqui, senhores, é significativo. Notem os
olhares, os sons, as palavras ditas e especialmente as não ditas,
por que o que não se pode ver é essencial, sim? (pausa curta)
Alguém já deve ter dito isso antes. São muitos os que visitam
esta confeitaria. A Champs Élysées é bastante popular por aqui,
acreditem – assim como eu. Nesta cidade, onde todos os meninos
só enxergam uma única garota, eu sou esta garota, sabia?
Merci. Sim, eu sei. Eu fico bastante bonita neste vestido azul,
o qual eu, aparentemente, uso todos os dias – vocês mesmos
verão. Os corações juvenis, todos batem feito locomotivas de
brinquedo quando eu passo. O que é que se pode fazer, não é?
Eles fazem tudo por mim: me compram presentes, me levam
para sair, declarações em público. (Suspira) Ah, é tão difícil.
Especialmente com todos estes pretendentes que eu nunca vi.
Supostamente, cada um deles me leva ao cinema, e eu os beijo
saborosamente na bochecha esquerda durante as matinês. Meus
pretendentes imaginários são de fato inesquecíveis. É muito
101
simples ser uma arrasadora de corações e ter todos aos seus pés,
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

quando você é a única garota que existe, não é? Nos próximos 40


minutos de peça, vocês verão apenas a mim entrar e sair desta
confeitaria, dizendo e fazendo algumas coisas. Não verão outras
como eu, apesar de tanto eu quanto Philippe afirmarmos que
elas existam. Não verão meus charmosos pretendentes que hoje,
especialmente, gosto de acreditar que me trariam grandes rosas
brancas e chocolates recheados. Ou gomas de mascar sabor toda
fruta. Tragédias da vida de Augusta Corneille, vocês entendem,
não é? Augusta, você não passa de uma invencionice cafona,
de uma cançãozinha francesa, de uma ideia, de um simulacro!
Confinada entre páginas digitadas e cortinas vermelhas.

III

(A cortina abre-se, acompanhada do usual som dos


sinos. Está Philippe atrás do balcão, secando uma
xícara. Augusta está sentada em frente, apoiada
sobre o balcão. Interpretam a cena como se fossem
bonecos. Quanto mais afetados, melhor. Excessiva
dicção.)

PHILIPPE: Bom dia, Augusta.


AUGUSTA: Bom dia, Philippe.
PHILIPPE: Vê-se que tem bom gosto. Voltou mais uma vez à
Champs Élysées.
AUGUSTA: Obrigada pelo elogio. Vim provar uma saborosa
torta.
PHILIPPE: Oh, mas quem poderia imaginar. Que sabor deseja?
AUGUSTA: Gostaria, bem se vê, de uma torta de morango.
PHILIPPE: Ora essa, mas morangos nós não temos.
AUGUSTA: Oh, non, que pequenina tragédia, não é mesmo?
PHILIPPE: Bastante desagradável, é verdade.
102 AUGUSTA: Então desejo uma torta de morango.
PHILIPPE: Mas Augusta.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


AUGUSTA: Oh, é verdade, não tem morangos nessa espelunca.
PHILIPPE: Como?
AUGUSTA: Também me pergunto, como? Mas bem, pode ser
então uma torta de –
PHILIPPE: (Ágil, pegando caderneta e lápis amarelo) Sim?
AUGUSTA: Uma torta de –
PHILIPPE: (Após pausa curta) ...Sim?
AUGUSTA: De que sabor você me indica?
PHILIPPE: Ora, a especialidade da casa, é claro: morango.
AUGUSTA: Ah, não, de jeito nenhum, eu odeio morango.
PHILIPPE: Que ultraje! Ninguém no universo inteiro, em
qualquer galáxia, seja qual for o planeta, odeia morango.
AUGUSTA: Pois se não há ninguém em todo o universo com
gosto tão peculiar, vou-me embora deste para outro, de modo
que você possa continuar acreditando nesta sua doce falácia.
PHILIPPE: Sim, por obséquio, retire-se.

(Ouve-se o sino. Entra um senhor qualquer.)

PHILIPPE: (abandonando a interpretação exagerada) Um


momento, mounsieur!

(Longa cena em silêncio. Enquanto Philippe atende


o senhor, o que deve demorar bastante tempo e ser
bastante inaudível, Augusta permanece sentada junto
ao balcão. Ela vai primeiro fazer bolhas em seu suco,
depois, esfrangalhar alguns guardanapos, então vai
começar a despejar os palitos de dente e tornar o
balcão um caos, sempre muito entediada. Se possível,
causar na plateia certa angústia. Por fim, Philippe faz
um meneio com a cabeça e retorna sorridente até o
balcão, onde se depara com a situação que Augusta
causou sobre ele. Desfaz o sorriso.)
103
PHILIPPE: O que está fazendo?!
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

AUGUSTA: Nada. Não há nada para se fazer. Jamais.


PHILIPPE: Pois eu tenho muito o que fazer.
AUGUSTA: Nada acontece, nunca, Philippe. Eu não passo fome,
nem frio, eu não durmo na rua, não tenho problemas com meus
pais. Eu não tenho questões. (Pensativa) Ou será que tenho?
PHILIPPE: Pois eu tenho, com a sua licença. Tenho muito o que
fazer. (Limpando a sujeira de Augusta) Quantas crianças você
conhece que trabalham?
AUGUSTA: Só você. Vai me dizer que há outras?
PHILIPPE: Aos montes, e elas não têm tempo ou motivo pra
ficar se perguntando: “Ah, que infeliz que sou, o que é este vazio
todo aqui dentro…?”. No caso delas, está muito claro: é fome.
AUGUSTA: (Após uma pausa, incrédula) Pare de dizer
bobagens, Philippe! Eu quero é saber de mim, o importante aqui
sou eu! Eu sou a protagonista! Essas crianças não importam…
acho que essas crianças nem existem! (Olhando bem na cara
dele) Você está é com tempo de sobra pra ficar inventando essas
maluquices… (Joga mais um guardanapo no chão, intencional)
Oh, non. Caiu.
PHILIPPE: (Contrariado, vai buscar o guardanapo) Augusta,
por favor. Já não basta o sumiço de mais uma das peças da
prataria…
AUGUSTA: (Subitamente interessada) Então algo está
desaparecido, Philippe? O quê, exatamente?
PHILIPPE: A espátula.
AUGUSTA: (Elaborando) A espátula, humm? E da última vez
foram duas colheres de sobremesa, não é?
PHILIPPE: Isso mesmo.
AUGUSTA: (Num rompante) E antes disso, a concha da calda
de caramelo!
PHILIPPE: (Surpreso) Sim! Como sabe?
AUGUSTA: (Cheia de si) Está tão claro, Philippe. Está tudo
muito claro. Cristalino. Basta um pouco de cérebro para fazer
104 estas deduções. Eu já consigo vislumbrar o que aconteceu aqui.
PHILIPPE: (Interrogativo) Onde você quer chegar, Augusta?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


AUGUSTA: (Insinuando) Você sabe que há uma confeitaria
nova no bairro, não é mesmo? E se, sorrateiramente, o dono vem
aqui de vez em quando…
PHILIPPE: (Incrédulo) Não é possível…
AUGUSTA: E leva uma peça de cada vez…
PHILIPPE: Augusta…!
AUGUSTA: (Grandiosa) Para que não sobre mais nenhuma! E
este grande estabelecimento, que é nosso cartão postal, venha a
declarar falência!
PHILIPPE: Não!
AUGUSTA: Sim! É claro! Só pode ser isso! (Repensando) Ou
então, pode ser também…
PHILIPPE: Augusta, pare com isso. Sabe qual a única coisa
que me preocupa nessa história toda? Que no fim das contas o
patrão ache que fui eu, e queira descontar do meu salário.
AUGUSTA: (Irônica) Salário! Que salário! Acha mesmo que
pode pagar alguma peça de prataria com o seu salário?
PHILIPPE: (Visivelmente aflito) Ah, mon dieu, é muito caro?
AUGUSTA: Caríssimo!
PHILIPPE: Quanto?!
AUGUSTA: Ah... Muito… Muitíssimo. Um ultraje.

(Um senhor qualquer que estava na loja tosse)

PHILIPPE: Preciso ir. Com licença.

(PHILIPPE começa a preparar um café.)

AUGUSTA: (Após uma pausa silenciosa entre os dois, e pouco


antes de ele sair) Philippe, (Ele não responde.) eu preciso te
contar uma coisa.
PHILIPPE: (Sem olhá-la) O que é, Augusta?
105
AUGUSTA: Não posso falar em voz alta. Vai que algum deles
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

(faz um meneio sem significado com a cabeça) ouve.


PHILIPPE: (Aproxima-se, ainda sem tirar os olhos do café) O
que é?
AUGUSTA: Tem uma torta envenenada na vitrine.
PHILIPPE: (Finalmente olhando para ela): O quê?
AUGUSTA: Tem uma torta envenenada na vitrine, Philippe.
PHILIPPE: Do que está falando, Augusta?
AUGUSTA: Quer que eu soletre? T-E-M-U-M-A-T-O
PHILIPPE: Como é que você sabe? Fica inventando coisas pra
me assustar.
AUGUSTA: (Sorrindo) Eu sei por que fui eu mesma que
envenenei.
PHILIPPE: (Alto) Você o quê?!
AUGUSTA: (Em voz baixa, em tom de aviso) Philippe, quer
que todos ouçam? (Ele passa a olhar as tortas, perplexo) Ontem,
depois que você foi embora, eu entrei aqui e coloquei veneno de
Beladona num dos recheios que vocês deixaram prontos.
PHILIPPE: Isso é impossível, só eu tenho a chave.
AUGUSTA: Não é impossível, é inverossímil. São coisas
diferentes.
PHILIPPE: Qual torta?
AUGUSTA: É claro que não vou dizer, Philippe. Seria ainda
mais inverossímil.
PHILIPPE: Augusta, quer me matar?!
AUGUSTA: Obviamente que não, Philippe. Use este cérebro
que está preso na sua cabeça. Se eu quisesse te matar, não teria
te contado que tem uma torta envenenada.
PHILIPPE: Mas quer que eu perca meu emprego! Ou que eu
seja preso!
AUGUSTA: Fale baixo! Tudo que você precisa fazer é descobrir
qual é a torta envenenada e pronto! Resolvido.
PHILIPPE: Ora essa! (Pega o café que acabou de servir)
106 Monsieur! Aqui está o seu café.
SENHOR QUALQUER: Obrigado, jovem. E a torta que pedi?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


PHILIPPE: A torta acabou.

(Um pequeno silêncio. O homem olha Philippe por


um instante, então olha para o freezer onde se veem
muitas tortas.)

SENHOR QUALQUER: Mas, rapaz...


PHILIPPE: (Firme) Acabou.
SENHOR QUALQUER: (Visivelmente surpreso, depois de uma
curta pausa) Mas, menino –
PHILIPPE: O senhor não prefere alguns biscoitos?
SENHOR QUALQUER: (Estupefato) Biscoitos?
PHILIPPE: Nada melhor do que biscoitos para combinar com o
café que o senhor pediu. (Pega um pote que está ao seu alcance.
Despeja biscoitos sobre a mesa.) Tome. Por conta da casa.
SENHOR QUALQUER: (Olhando os biscoitos) Mon dieu.
PHILIPPE: Vamos preparar mais tortas logo mais, senhor, peço
que aguarde. (Retornando ao balcão) Augusta, eu vou te matar!
AUGUSTA: Não, Philippe! Eu é que sou a assassina, por favor,
respeite seu papel! Já está claro que se alguém vai matar aqui
hoje, sou eu. Este é o enredo, afinal.
PHILIPPE: (Para si) Vou ser preso, vou ser preso, vai cair tudo
nas minhas costas. Sempre sobra pros empregados! Amanhã vai
estar em todos os jornais:
AUGUSTA: (Grandiosa, quase sonhadora) Beldade juvenil
assassina 10 pessoas com torta envenenada na Champs Élysées!
Ah, as selvagerias da infância... (Ri para si) Isso dá uma
excelente história para uma manchete! Sorte do jornalista que
vier a assinar.
SENHOR QUALQUER: (Levantou-se e foi até o balcão) Meu
jovem...
PHILIPPE: (Subitamente notando-o) OH, SIM SENHOR, É
CLARO. É CLARO QUE SIM. ABSOLUTAMENTE.
107
SENHOR QUALQUER: Eu... bem, eu gostaria de uma dessas
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

(Aponta uma torta).


PHILIPPE: Mas o senhor é insistente, hein? Já lhe disse que não
tem mais! Acabou!
AUGUSTA: (Divertida) Acabou, Philippe? Tem certeza?
SENHOR QUALQUER: Rapazinho, está claro para todos aqui
que ainda tem torta.
PHILIPPE: (Hesitante e veloz) Tem. Tem, mas acabou.
SENHOR QUALQUER: Ora, basta. (Debruça-se sobre o balcão,
para alcançar uma das tortas.)
PHILIPPE: (Espeta uma faca no balcão ao lado da cabeça do
velho) A-Ca-Bou.
SENHOR QUALQUER: (Estupefato) Ficou maluco?! Vou
chamar a polícia!
AUGUSTA: (Enquanto o velho se recompõe) Oh, não senhor,
não é necessário, meu amigo está apenas fazendo gracinhas.
(Venenosa) É um grande palhaço, devia mesmo fazer teatro e
largar o ofício de confeiteiro. Vamos, Philippe, entregue a torta
ao bom homem, pare com as piadas.
PHILIPPE: (Cochichando alarmado) Augusta!
AUGUSTA: (Cochichando) Philippe, apenas uma torta está
envenenada. Temos umas 20 na vitrine, isso dá 5% de chance de
que o senhor seja assassinado, o que não é muito. Vamos, deixe
o destino dizer se o velho vive ou morre. (Para o velho) Senhor,
o senhor já jogou roleta russa?
SENHOR QUALQUER: Como é? Bem... não acho esse assunto
apropriado para a idade de vocês.
AUGUSTA: O senhor bem sabe que falamos de coisas piores.
Então, jogou ou não?
SENHOR QUALQUER: (Com um tom incômodo, nauseante) Já,
infelizmente.
AUGUSTA: E ganhou ou perdeu?
SENHOR QUALQUER: (Para Philippe) Uma torta de limão,
rapaz. Agora.
108
PHILIPPE: (Extremamente contrariado, realmente aflito) Tudo

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


bem, senhor, aqui está. (Serve uma torta. Enquanto o velho corta
a torta com o garfo, Philippe torce o avental com as mãos e não
tira os olhos do garfo, uma expressão de horror fixada em seu
rosto. AUGUSTA, por outro lado, diverte-se visivelmente, com
expectativa extremamente alta, também acompanhando o garfo
com o olhar.)
SENHOR QUALQUER: (Notando o olhar dos dois,
incomodado) Algum problema, meninos?
AMBOS: (Disfarçando muito mal) Ora, de forma nenhuma, de
forma nenhuma.
SENHOR QUALQUER: (Ele volta a levar o garfo à boca e a cena
se repete mais velozmente, uma pausa, ele come) Humm.
PHILIPPE: ELA ME OBRIGOOOOOU! (Cai para trás do balcão,
dramático)
SENHOR QUALQUER: Do que está falando?
AUGUSTA: Ora, controle-se, Philippe.
PHILIPPE: (Detrás do balcão) Eu juro inocência! Oh, por Deus,
piedade desta pobre criança, tenho um futuro tão brilhante, eu
ia ser astronauta! Ai de mim.
AUGUSTA: Philippe.
PHILIPPE: (Erguendo as mãos, presas pelo pano como que
amarradas) Estou imobilizado! Sou inofensivo! Piedade!
(Levanta-se rápido. Parece que vai desmaiar) Ah, estou vendo
estrelas, acho que é minha hora. Adeus, mundo. (Cai outra vez)
AUGUSTA: Está gostosa a torta, senhor?
SENHOR QUALQUER: Deliciosa. Não é à toa que venho aqui
sempre... apesar dos pesares. Bem, vou sentar-me, obrigado
pelo espetáculo, rapazinho. (Pega o prato e retorna à sua mesa)
AUGUSTA: Psiu. Ei. Levante-se, seu frouxo.
PHILIPPE: (Lentamente, surgindo atrás do balcão) Ele está
bem?
AUGUSTA: Vivo e satisfeito.
PHILIPPE: Oh, graças a Deus. (Pausa em que respira
audivelmente. Então, súbito) Qual o seu problema?! 109
AUGUSTA: (Indiferente, talvez estourando uma bola de chiclete,
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

óculos escuros) A vida não é suficientemente interessante para


alguém como eu.
PHILIPPE: E eu tenho de ser sua fonte de entretenimento?
AUGUSTA: Estou constantemente entediada, Philippe, é uma
tragédia! Há esta melancolia que me consome, não sei explicar.
(De repente, envolvida) Sinto que nada de muito especial vai
acontecer comigo, que, no que depender do universo, eu vou ser
para sempre quem sou, onde está meu arco de desenvolvimento,
minha jornada do herói? Da heroína, no caso, porque é o que eu
sou. Ou devia ser. Se não há nada para acontecer, então pode
deixar que eu provoco (Sorri. Num crescente ironicamente
patético). Eu faço minha própria história, sou dona do meu
destino, eu me reinvento e me destaco, e, quando menos espero,
estão todos com os olhos em mim! Eu estou aqui para ser vista!
É só para isso que eu sirvo!
PHILIPPE: Vamos, trate de parar com esses monólogos
equivocados e de péssima qualidade e me diga logo qual é a
torta envenenada.
AUGUSTA: Até quando vai impedir o meu brilho, Philippe? Eu
sou a estrela que você vai ver mais de perto…
PHILIPPE: (Desconfiado) Ou não tem torta nenhuma
envenenada? (Pausa. Realiza.) Você inventou tudo isso!
AUGUSTA: (Afetadamente indignada) Moi? Jamais! Damas não
contam mentiras.
PHILIPPE: (Xeque-mate) E nem assassinam pessoas.
AUGUSTA: (Cínica) É o que vocês homens gostam de acreditar.
Mas não é o que as manchetes dirão.

(Fecham-se as cortinas)

IV

(Sai AUGUSTA por entre as cortinas, usando seus


110 óculos escuros, mascando chiclete. Dirige-se ao
microfone. Música ambiente francês, o mais senso-

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


comum possível – La Vie en Rose, por exemplo.
Ao longo da cena, ela vai diminuir de volume
até desaparecer e reinar uma espécie de silêncio
aterrador.)

AUGUSTA: (Um tanto explicativa, quase didática) Isto,


senhores, é um intervalo. A peça aproxima-se de seu ápice, e
tenho certeza de que estamos todos tão curiosos para saber
onde isso tudo vai dar. A peça tem que dar em algum lugar,
não é mesmo? Não é possível que não vá para lugar nenhum.
Pois bem, aqui, neste momento do espetáculo, alguém de bom-
senso decidiu que talvez fosse de bom-tom fazer uma pequena
pausa, para que os senhores todos esticassem as pernas e talvez
socializassem um pouco. Isto é algo deveras importante para
nós, seres humanos: sermos vistos. Encontrarmos pessoas
interessadas em nossos problemas e em nossos problemas,
mas também, e principalmente, em nossos problemas. Há
algo de errado em ter o ego maior do que a torre Eiffel, eu,
por vezes, me pergunto, e a resposta mais clara e óbvia é:
quem se importa?! (Agitada) Ficamos fingindo que não somos
assim tão importantes, uma estratégia óbvia de defesa diante
de outro indivíduo, como se disséssemos "por favor, me faça
um elogio, seja polido comigo, eu não quero lhe perturbar a
existência". E a outra pessoa, de certa forma coagida, se vê na
obrigação de nos tratar com elegância e pompa. Há então um
jogo de poder discreto acontecendo, onde a pessoa que parecia
menos poderosa está ditando o comportamento da outra sem
que ela mesma perceba. Ora, não é exatamente assim que
funciona o amor? Grandes casais por toda parte desta sala, eu
os vejo, estão todos por aí, sendo subalternos e tentando parecer
miseravelmente desimportantes uns para os outros, tentando
assim ganhar a simpatia do seu correspondente. Pois lhes trago
boas novas! Vocês de fato são desimportantes! Parem de fingir!
Não há necessidade nenhuma para este teatro todo, para tanta
representação. Se há algo aqui que não é especial, são essas
tantas cadeiras exatamente iguais deste teatrinho, com seus
estofados especialmente pensados para acomodar seus traseiros 111
e fazer com que vocês pensem que são algo preciosos. Vocês
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

acham mesmo que são importantes e especiais, não é? Como


aqueles que comandam uma belíssima monarquia. (Firme,
quase impiedosa.) Pois não são. São tantas e tantas cadeiras
iguais, tantos reizinhos insignificantes olhando aqui para cima,
como fizeram outros antes de vocês e como farão tantos outros
depois! Olhando aqui para cima, olhando para esta mentira que
eu sou, eu que nem sequer existo, que nem mesmo estou aqui
de fato! E vocês? Vocês estão aqui? (Pausa.) Vocês estão aqui?

(Abrem-se as cortinas, e outra vez o sino da cafeteria.


Entra CATHERINE DOUX-BLEU, cabelos grisalhos.
Usa um vestido florido, de mangas longas e punho
branco. Dirige-se a uma mesa de destaque no
palco, senta-se com elegância, de costas para o
velho qualquer, que ainda toma seu café e come
vagarosamente a torta de limão.)

CATHERINE: (Erguendo a mão) Philippe, pode vir aqui um


instante?
PHILIPPE: Oui, mademouselle. (Aproxima-se) Pois não?
CATHERINE: Uma torta de mirtilo, por favor, como de costume,
querido. (Pausa) E um suco de morango, sim?
PHILIPPE: Oh, mil perdões, madame, mas estamos sem torta de
mirtilo.
CATHERINE: Como? (Visivelmente magoada) Mas eu sempre
deixo uma encomendada especialmente para o dia de hoje...
Você bem sabe que é meu aniversário de casamento com o
pobre senhor Doux-Bleu, que Deus o tenha, pobrezinho.
PHILIPPE: Estamos fora da estação, madame, é muito difícil
conseguir mirtilos nesta época do ano.
AUGUSTA: (Passando próximo à mesa, enquanto se dirige ao
112 balcão) Pare de mentir, Philippe, tenha um pouco de decência.
CATHERINE: Está mentindo para mim, menino?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


PHILIPPE: Jamais, senhora. (Pausa curta em que não consegue
olhá-la nos olhos. Subitamente cheio de coragem, dirige as
palavras a AUGUSTA) Mas acho que conferir não mata.
AUGUSTA: (Baixinho e desafiadora) Uuuuh, não mata, não é?
PHILIPPE: Um instante, Madame Doux-Bleu. (Vai buscar a
torta)
AUGUSTA: (Indicando a outra cadeira): Madame, me permite?
CATHERINE: Sem dúvida, querida, será um prazer tê-la como
companhia.
AUGUSTA: Merci. (Após uma pausa curta) E quando chega
o senhor Doux-Bleu, seu esposo, para a comemoração do
casamento?
CATHERINE: Ele me trazia todos os anos até aqui para saborear
as tortas da Champs Élysées, é nosso rito de comemoração... fazem
15 anos que ele faleceu e, mesmo assim, tenho comemorado,
agora sozinha, como se pode notar...
AUGUSTA: Oh, eu sinto muito.
CATHERINE: Não tem problema nenhum, meu docinho. As
pessoas se vão, cedo ou tarde.
AUGUSTA: (Inexpressiva) Morrer é uma arte.
CATHERINE: (Surpreendida) Ora, não seja mórbida.
AUGUSTA: Desculpe, estava apenas sendo um pouco reflexiva.
Exercitando.
CATHERINE: Pois, pense em assuntos mais alegres. Pense na
França, nos passarinhos... Pense no verão! Eu, na sua idade...
(Faz uma pausa, suspira)
AUGUSTA: Oh, sim, bem sei.
CATHERINE E AUGUSTA: (Suspirando) Ai, ai.
PHILIPPE: (Com a torta e o suco de morango) Aqui está,
senhora Doux-Bleu. Bon appetit!
CATHERINE: Merci.

113
(Ela corta um pedaço da torta e leva-o à boca.
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

PHILIPPE está visivelmente confiante, e Augusta


não esboça muitas reações. Neste momento, o senhor
qualquer levanta-se, deixa algumas notas sobre a
mesa e dirige-se à saída. Enquanto Catherine come,
satisfeita, o senhor vai esbarrar em sua cadeira,
desculpar-se, dizer corriqueiramente "bon appetit" e
"pardon", e se retirar. Todavia, logo após o esbarrão,
Catherine deve parar a ação de comer e apenas
acompanhá-lo sair, com a cabeça.)

CATHERINE: (Depois que o senhor saiu, baixo, para si) Mon


amour... (Levando a mão à testa, excessiva) Oh! Mon amour!
Mas como pode ser?! (Leva as mãos ao peito, apaixonada e
exageradíssima) Mon amour! Como é possível? São fantasmas de
outro mundo que me assombram? É você, meu benzinho? Por
Deus… Como…?

(Subitamente, de forma violenta, Catherine tem


um ataque cardíaco. Chega a derrubar o suco de
morango, de forma que uma poça vermelha se
espalhe por seu vestido, pela mesa e pelo chão. O
quadro deve ficar estabelecido por um tempo, o
público vendo o suco pingar, enquanto Augusta
e Philippe observam o ocorrido ainda com suas
expressões correspondentes: indiferença e confiança.
Então:)

AUGUSTA E PHILIPPE: Oh, non!

(Fecham-se as cortinas, lentas e fúnebres. Pode-se


dar um tom cômico à cena, adicionando uma trilha
que evidencie a tragédia anunciada, ou sugerir um
tom solene. Ambas as propostas funcionam para o
espetáculo. As cortinas permanecem fechadas por
um curto espaço de tempo, então, ouve-se a sirene de
114 uma ambulância.)
VI

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


(Abrem-se as cortinas, dessa vez, sem o sino.
Estão AUGUSTA e Philippe sentados nos mesmos
lugares, expressões nervosas. O corpo de Catherine,
todavia, não se encontra no palco, mas o suco de
morango segue pingando. A luz da cena passou de
aconchegante e vivaz para fria, policial.)

PHILIPPE: Oh, Deus. O que fizemos?!


AUGUSTA: O que quer dizer, Philippe?
PHILIPPE: Nós matamos a madame Doux-Bleu! Nós somos
assassinos!
AUGUSTA: Deixe de ser criança, nós não matamos ninguém.
PHILIPPE: Ela estava morta! Usaram o desfibrilador e tudo!
AUGUSTA: Não é porque ela estava morta que fomos nós que a
matamos, Philippe. Use o cérebro que tem.
PHILIPPE: Tem razão, Augusta. Nós não a matamos.
AUGUSTA: Eu sempre tenho razão. A racionalidade é um
hábito.
PHILIPPE: Você a matou.
AUGUSTA: O quê?
PHILIPPE: (Esquivo) Eu não tenho nada com isso. Eu sequer
imaginava que havia veneno na torta.
AUGUSTA: Deixe de besteira, é claro que não havia veneno
nenhum em torta nenhuma.
PHILIPPE: Oh, então não havia veneno, não é. É o que eu
esperaria ouvir de uma criminosa.
AUGUSTA: Philippe, olhe bem para mim e entenda uma coisa:
primeiro, se eu fosse uma criminosa não teria lhe dito que havia
veneno nas tortas.
PHILIPPE: Será que não diria? Estava tentando me inserir no
seu plano. E conseguiu, aliás. Mas não vou ser seu cúmplice.
Deixe chegar a polícia e boto tudo em pratos limpos. 115
AUGUSTA: Pare de viajar, Philippe. Eu não envenenei torta
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

nenhuma!
PHILIPPE: Como posso confiar em você agora? Você disse
que envenenou uma torta! Então uma pessoa morreu na nossa
frente! Depois de comer uma torta! A lógica é clara!
AUGUSTA: Coincidências, Philippe! Acasos do destino!
PHILIPPE: Quais são as probabilidades?
AUGUSTA: Pequenas, obviamente. Recursos narrativos.
PHILIPPE: Pois é. É bem mais provável que alguém aqui tenha
envenenado o recheio de mirtilo ontem à noite, como saiu
dizendo por aí, mais cedo.
AUGUSTA: Mas eu não fiz nada disso! Eu sequer tenho a chave!
Como entraria aqui, para sair envenenando tortas, Philippe? É
impossível.
PHILIPPE: Eu diria inverossímil.
AUGUSTA: Basta! Eu não envenenei nada, e você sabe bem.
Você e todo mundo! Sabe bem que não passava de uma
brincadeira, um passatempo.
PHILIPPE: Pode provar, senhorita?
AUGUSTA: Isso é um inquérito?!
PHILIPPE: É um ensaio, para quando for de verdade.
AUGUSTA: (Violenta) Philippe, pare com isso! Você sabe que
não pus nada em torta nenhuma!
PHILIPPE: (Inquisitivo) Sei dos fatos: você me disse
que envenenou uma torta. Uma senhora faleceu neste
estabelecimento, após comer uma de nossas tortas. Não há
muita escapatória para você, Augusta.
AUGUSTA: (Exasperada) Volte para a Terra, Philippe! Eu não
seria capaz de envenenar a senhora Doux-Bleu!
PHILIPPE: Será que não?
AUGUSTA: Claro que não! (Hesitante) Pelo menos não
intencionalmente.
PHILIPPE: Onde esteve ontem à noite, Augusta Corneille?
116
AUGUSTA: Pare de besteira, Philippe. Não existe ontem à noite.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


Não foi escrito pelo autor.
PHILIPPE: Neste caso, não há álibi. Parece que é o fim da linha
para você, Augusta, querida.
AUGUSTA: Ora essa, se for assim, você é tão suspeito quanto
eu! Também não há álibi para você!
PHILIPPE: Mas não fui eu quem chegou avisando que uma
torta estava envenenada, fui?
AUGUSTA: Era uma brincadeira! Uma mentirinha! Mentir não
é crime!
PHILIPPE: (Ameaçador) Há coisas com as quais não devemos
brincar...
AUGUSTA: (Implorando) Oh, por favor, Philippe! Me ajude!
PHILIPPE: (Cínico, como nunca) Ajudar? Você espera que eu a
ajude? Depois de me inserir neste seu espetáculo mal pensado,
espera que eu seja seu cúmplice?
AUGUSTA: (Subitamente, iluminada) Na verdade, era isso
desde o princípio. (Pausa. Mudança de tom.) Por que não
assume logo sua real personalidade, Philippe Boulanger? Ou
devo chamar-lhe de... padeiro assassino?
PHILIPPE: (Vil) É óbvio que isso era o que eu esperava,
Augusta. Este sempre foi o nosso destino, escrito nas primeiras
linhas. Nós sempre estivemos prontos para chegar até aqui!
Este ato cruel, o qual suja nossas mãos e nos coloca no hall de
seres humanos imprestáveis, sempre esteve incrustrado atrás
de nossas pálpebras! Não há do que fugir, Augusta! É isso que
somos! Criminosos!
AUGUSTA: (Efusiva, de mãos dadas com Philippe, ganham o
palco) E é assim que deixamos de ser meras crianças, pedaços
insignificantes da história, para nos tornarmos a própria
história! Somos agora assassinos! Talvez, mais do que isso,
sejamos agora apenas crianças!
PHILIPPE: A crueldade infantil!
AUGUSTA: É chegada a hora de nos enxergarmos como somos:
grandes! Poderosos! Interessantes, enfim! 117
PHILIPPE: Criminosos!
ON, NON! [PEQUENA TRAGÉDIA AÇUCARADA]

AUGUSTA: (Saindo do crescente) Mas há um dilema moral,


Philippe. Eu preferiria sair desta história como heroína. Como
mártir que dá sua vida pela justiça.
PHILIPPE: (Prático) Oh, mas essa possibilidade não existe.
AUGUSTA: Existe, é claro. Todo vilão tem sua redenção,
quando se arrepende e toma do próprio veneno em prol da
justiça.
PHILIPPE: Você não está sugerindo...?
AUGUSTA: (Séria) Sim, Philippe, meu bom parceiro. É chegada
nossa hora.
PHILIPPE: Oh, Augusta, mas... mas...
AUGUSTA: Em decisões como essa é que se enxerga o
verdadeiro caráter humano, todas as camadas por trás das
máscaras sociais, a essência mais íntima e palpitante da
humanidade.
PHILIPPE: Oh, por favor, pare, pare.
AUGUSTA: E há tanto a ser dito a respeito da natureza humana,
somos todos uns selvagens incompetentes, enfiados em casinhas
de brinquedo e prestes a matar alguém, uma verdadeira selva
de canibais prontos para –
PHILIPPE: (Real) Para, Augusta.
AUGUSTA: Tudo bem! (Pega dois garfos, corta dois pedaços da
torta de mirtilo. Entrega um a Philippe.) Um brinde ao que resta
de nós!
PHILIPPE: A nós, que somos os restos!

(Comem rapidamente, engolem com urgência e


esperam aflitos o resultado.)

AUGUSTA: Acho que foi pouco.


PHILIPPE: Talvez o veneno esteja mal espalhado. (Comem
mais.)
118
(De pouco em pouco, acabam por devorar toda a

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


torta. Parecem ter se esquecido de sua missão de
honra.)

PHILIPPE: Aaaaah, que delícia.


AUGUSTA: Sim, muito boa mesmo. (Lembrando) Mas… não
estamos mortos.
PHILIPPE: É, que pena.
AUGUSTA: Uma pena mesmo. Seria um ótimo desfecho.
PHILIPPE: Talvez essa não seja a torta envenenada.
AUGUSTA: Ora, então temos de averiguar qual é! Podemos
salvar uma vida assim!
PHILIPPE: Nossa vida em troca de outra! Nada mal. Parece
heroico.
AUGUSTA: E sedutor, imagine como seremos representados
nos jornais!
PHILIPPE: Ou nos livros de história! Talvez estejamos entre os
melhores seres humanos que existem!
AUGUSTA: Está certo, é um mal necessário que vem à tona! O
dever nos chama!

(Atacam as tortas. Comem ferozmente, fazendo


muita sujeira. Lambuzam-se. A cena precisa parecer
apetitosa. A imagem final ideal seria vê-los ambos
estufados de tantas tortas, lambuzados e caídos no
chão, suspirando sua vitória, os rostos, as mãos e o
chão completamente sujos.)

(2016-2018)

119
120
121
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

6
122
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
MANTENHA DISTÂNCIA

(Dois atores, um em cada canto da boca de cena, em


pé. Som de uma batida: imediatamente reagem com
expressões distintas.)

JORGE: (apenas articulando, sem som) Meu Deus.


CAÍQUE: Ah, não. Ah, não, não, não, ah, não, não, ah... ah, não.
(baixa os olhos. Silencia.)

(Permanecem em silêncio por um tempo. Por fim,


Jorge vira-se para Caíque e vai até ele. Postura firme.)

JORGE: (colocando a mão no ombro de Caíque) Beleza? Então…


Boa noite. (Silêncio. Caíque permanece de olhos baixos.) Acho
que não foi nada muito grave não. (Silêncio.) Você tem seguro?
(Caíque levanta os olhos e olha para a plateia.)
CAÍQUE: Pode ser que seja bobo. Tantas coisas, sabe. Até agora
eu não sei exatamente o que aconteceu. Já tem três minutos e, 123
até agora, tudo que eu sinto é a inércia, o meu corpo balançando
MANTENHA DISTÂNCIA

pra frente, o cinto de segurança travando sem delicadeza no


impacto, não tenho nem ideia do que pode ter acontecido. Qual
foi o nível do estrago, quanto vai me custar, (para Jorge) se eu
tenho seguro? Se eu tenho seguro?
JORGE: Isso, você tem seguro?
CAÍQUE: Devo ter. Devo ter, sim. Eu... eu vou procurar os
documentos.
JORGE: (Afastando-se. Vai assumindo gradativamente um tom
narrativo.) Amassou a lataria. Dobrou em dois o capô. Caco
de lanterna pra todos os lados, o asfalto chega a reluzir de
tanto vidro. Os carros que passam dão uma reduzida, checam
a desgraça alheia, dão uma olhadinha nos azarados. Farol
por farol vai iluminando a cena (Vai saindo do tom narrativo
gradativamente.). O meu carro estragou menos. Só o para-
choque, acho. Tem que checar o porta-malas, se está abrindo, se
funciona ainda. Ninguém colocou o triângulo lá trás. Você tem
seguro?
CAÍQUE: Eu me chamo Caíque, muito prazer.
JORGE: Prazer. Já achou os documentos?
CAÍQUE: Já, já achei, sim.
JORGE: E tem seguro?
CAÍQUE: Não tenho nem carteira, moço.
JORGE: Como é?!
CAÍQUE: O carro é roubado.
JORGE: O quê?!
CAÍQUE: Nunca dirigi.
JORGE: Você o quê?!
CAÍQUE: Nem sei o que é embreagem...
JORGE: Mas...
CAÍQUE: O que é câmbio...
JORGE: Espera.
CAÍQUE: Não entendo nada de carro.
124 JORGE: Fez um amassado legal na frente.
CAÍQUE: Como você se chama, mesmo?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


JORGE: Jorge.
CAÍQUE: Qual é a marca do seu carro?
JORGE: Tem gente que mede o pau pela marca do carro.
CAÍQUE: Tenho seguro, sim.
JORGE: Vai ter que fazer boletim, né?

(Silêncio. Ambos se encaram por um tempo. É


importante sentir uma tensão entre eles. As próximas
falas são dadas em alta velocidade.)

JORGE: Conversão à esquerda.


CAÍQUE: Uma placa de Pare.
JORGUE: Sinalização no chão.
CAÍQUE: Alguém buzina.
JORGE: Não dá pra ver o retrovisor.
CAÍQUE: Curva acentuada à direita.
JORGE: Pede pra sua mãe, ué.
CAÍQUE: Tava ouvindo Alcione.
JORGE: Celular no viva-voz.
CAÍQUE: Sessenta por hora.
JORGE: Não tem radar.
CAÍQUE: Não tinha ligado o farol.
JORGE: Cadê o botão do vidro elétrico.
CAÍQUE: "Não deixa o samba morrer".
JORGE: Vou derreter aqui dentro.
CAÍQUE: Esqueci a seta.
JORGE: Pede pra vaca da sua mãe.
CAÍQUE: Retorno em 500 metros.
JORGE: Conversão proibida.
CAÍQUE: Esqueci o velocímetro.
JORGE: Rotatória livre.
125
CAÍQUE: São sete e meia agora.
MANTENHA DISTÂNCIA

JORGE: Não tem semáforo.


CAÍQUE: "Não deixa o samba acabar".
JORGE: Uma placa de Pare.

(Ambos caem no chão. Pausa.)

CAÍQUE: Que que eu vou dizer pro meu pai?


JORGE: Que você bateu o carro e que tem que pagar o conserto.
CAÍQUE: Não posso.
JORGE: Que tem que pagar a franquia do seguro.
CAÍQUE: Ele vai me matar.
JORGE: Que meu carro não pode ficar amassado.
CAÍQUE: Vai me humilhar.
JORGE: Que você estava errado.
CAÍQUE: Vai me xingar de tudo.
JORGE: Caíque.
CAÍQUE: Que é?
JORGE: Qual é o número da polícia rodoviária?
CAÍQUE: 190.
JORGE: Vou ligar.
CAÍQUE: Então, foi assim: eu (fala sem emitir som), e aí ele (fala
sem emitir som), e depois nós (fala sem emitir som), e aí (fala
sem emitir som), por que ele (fala sem emitir som) e eu (fala sem
emitir som), na verdade, ele (fala sem emitir som), acho que foi
isso.
JORGE: Tá ocupado.
CAÍQUE: Tenta outra vez (Pausa curta.). Então, foi assim: dava
pra ouvir um rangido. Um distorção estranha, uma guitarra
guinchando, enfurecida, rasgando as notas, o ferro guinchando
junto com os pneus no breque soava como uma orquestra inteira
tocando uma coisa que eu não sei o nome e que daria uma boa
126 trilha sonora, lembra?
JORGE: Alô. (Levanta-se.) Boa noite, meu nome é Jorge, éééééé...

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


teve um acidente de carro... não, não, nada demais. Não,
nenhum ferido. Não, nenhum carro envolvido. Não, nenhum
engavetamento. Não, nenhuma mulher. Sei. Qual que é o
número? Sei. Tá bem. Obrigado. Boa noite. Dorme bem, viu?
Sonha comigo (ri.) Eu te amo, também. Tá. Tá bem. Então, beijo.
Beijo, amor. Beijo. Tchau.
CAÍQUE: E aí?
JORGE: Vou ter de ligar de novo.
CAÍQUE: (para Jorge) Primeiro: essas coisas não funcionam
assim. Você amanhã já vai ter esquecido de tudo. Não é mais do
que uma aventura. Você não vai contar essas coisas pros seus
netos, seus filhos nunca ficarão sabendo. Tem segredos que não
contamos nem pra nós mesmos. Algumas verdades não existem.
Não convém.
JORGE: Alô. Oi. Tudo bem com você? Seguinte, tô ligando pra
saber se você acha que vai rolar hoje à noite. É. É, aquilo tudo
que a gente planejou ontem. Lembra? Lembra? Você se lembra?
Então. Sou eu, o Jorge. Isso. Éééé... um acidente, um acidente de
carro. Isso, aqui na... como que chama mesmo?
CAÍQUE: Rua dos Leões.
JORGE: Isso. Isso. Tá. Estamos esperando a viatura, viu. Boa
noite. (Silêncio.)
CAÍQUE: Seu nome é Jorge, né?

(Blackout)

II

(Atores sentados em algum espaço do palco.)

CAÍQUE: Que merda, hein.


JORGE: É. Uma merda mesmo.
127
CAÍQUE: E é sempre assim?
MANTENHA DISTÂNCIA

JORGE: Não. Mas hoje em dia... sei lá.


CAÍQUE: Puts.
JORGE: Veio bem devagarinho, bem devagarinho, beirando,
beirando... quando eu vi, já era. Foi tão devagar que não deu
pra ver chegar, não bateu na porta nem nada, só foi entrando e
contaminando tudo, manja? Quando eu vi, era.
CAÍQUE: Afinal, qual é o nome dela?
JORGE: Angelina Jolie.
CAÍQUE: Jorge.
JORGE: Grazi Massafera.
CAÍQUE: Jorge.
JORGE: Marilin Monroe.
CAÍQUE: Jorge.
JORGE: Katheryn Elizabeth Hudson.
CAÍQUE: Jorge.
JORGE: O quê?
CAÍQUE: Você ainda gosta dela?
JORGE: Não. Não sei. Não.
CAÍQUE: Sabe, Jorge. Você tem 26 anos e tem um cachorro
chamado Roger –
JORGE: Por causa do cara do Ultraje. Uma merda.
CAÍQUE: (sem parar) E nunca bateu o carro. Vocês namoram
tem seis meses. Você sabe o que está fazendo?
JORGE: Não.
CAÍQUE: Quer comer cheetos?
JORGE: Quero.

(Caíque abre o pacote, e Jorge pega uma mão cheia.


Caíque também. Comem em silêncio, observando a
plateia.)
128
CAÍQUE: Quer mais?

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


JORGE: Quero. (Pega outro.)
CAÍQUE: Sabe, Jorge. Eu tenho 22 anos, estou com o cartão de
crédito estourado e nunca bati o carro. Estou solteiro. Você sabe
o que eu estou fazendo?
JORGE: Sei.
CAÍQUE: Sabe?!
JORGE: Sei. Está seguindo a pista dupla, não ultrapassa por
causa do radar, dos policiais. Está querendo chegar logo a algum
lugar, está com o pneu murcho e está batendo nas pessoas que
vão na sua frente.
CAÍQUE: Estou.

(Silêncio. Comem cheetos. Estão comendo cheetos a


cena toda. É importante que se tenha a impressão de
que o salgadinho não acaba nunca.)

CAÍQUE: É a primeira vez que você bate o carro?


JORGE: É a primeira vez que batem na minha traseira.
CAÍQUE: Nunca bati, nem nunca bateram em mim, é a primeira
vez. (Silêncio. Cheetos.) Mas vem cá. Ela não percebeu ainda?
JORGE: Claro que já percebeu. Já percebeu tudo. Ela já sabe.
(olhando para Caíque, enfim) A gente já sabe.
CAÍQUE: Então, por que ainda estão juntos?
JORGE: Porque estamos.
CAÍQUE: Não entendo.
JORGE: É o seguinte. Escuta bem, beleza? Pensa que você é um
urso. Que você mora num desses... desses... desses zoológicos
de cidade, e aí, um dia... (um barulho de sirene vem crescendo à
medida que Jorge dá o exemplo, até tornar seu texto inaudível.
Depois, outro ruído de batida. Ambos olham para o lado
esquerdo, e, sobressaltados, levantam-se. Derrubam o restante
do cheetos no chão) Puta que pariu!
CAÍQUE: Meu Deus! 129
JORGE: Duas seguidas! Caralho! Deve ter alguma coisa errada
MANTENHA DISTÂNCIA

com essa rua.


CAÍQUE: Às vezes, é muito óleo na pista. (Silêncio) Sei lá.
JORGE: (sentando-se de novo) Bom que a polícia já faz o boletim
dos dois.
CAÍQUE: (ainda em pé) Foi meio feio... será que tem alguém
machucado?
JORGE: Talvez até alguém tenha morrido...

(Caíque sai. Jorge cantarola baixinho alguma coisa,


depois, começa a falar sozinho, em tom baixo, mas
audível.)

JORGE: Tô aqui pensando: você é um merda, Jorge. Não é


sobre ela, só falta você mesmo admitir. E você aqui. Sentado na
sarjeta, comendo cheetos com outro cara. E pior: achando bom.
Achando bom não ter que ir pra casa, ver nos olhos dela que ela
tá cansada de você, encarar você mesmo nos olhos dela. Tudo
aquilo que você prometeu e não foi. Que você se prometeu e
não foi. Não foi, Jorge. Não foi.
CAÍQUE: (voltando) Acho que tá tudo bem. Parece que tem
dois feridos. Um homem e uma mulher. Eles bateram numa
ambulância, aí os médicos estão atendendo eles e o ferido que
eles tavam carregando.
JORGE: Que sorte hein. Bater numa ambulância.
CAÍQUE: Nada da polícia?
JORGE: Já veio e já foi embora. (Pausa.) Você tem namorada?
CAÍQUE: Não.
JORGE: Curtindo ser solteiro e tal?
CAÍQUE: Não.
JORGE: Sai muito pra balada?
CAÍQUE: Não.
JORGE: Ué.
130
(Silêncio.)

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


JORGE: Você tem cachorro?
CAÍQUE: Tinha.
JORGE: Morreu?
CAÍQUE: Atropelado. (Silêncio.)
JORGE: Puts.
CAÍQUE: Faz um tempo já.
JORGE: Que Merda.
CAÍQUE: Sushi. (Silêncio.) Era o nome dele.
JORGE: Que merda.
CAÍQUE: Melhor que Roger.
JORGE: Touché.

(Silêncio.)

CAÍQUE: Você tinha mesmo uma banda? (Jorge faz que sim)
Como chamava?
JORGE: Cristatusaurus.
CAÍQUE: Como é?!
JORGE: Cristatusaurus. A gente chegou a lançar um CD
independente. Chamava "Fraqueza, desgraça e maldade".
CAÍQUE: Puts.
JORGE: É.
CAÍQUE: Fala o nome de uma das músicas.
JORGE: Ah, sei lá.
CAÍQUE: A que você mais gostava de tocar.
JORGE: Tá. Chamava "Nunca Mais".
CAÍQUE: E do que falava?
JORGE: Porra, sei lá. O vocalista bundão que escreveu a letra.
Eu só ajudei a compor.
CAÍQUE: (exasperado) Você deve ter escutado ela um milhão
de vezes, não é possível que não saiba do que ela falava. 131
JORGE: Sei lá. Olha esse título. Pode falar de qualquer merda.
MANTENHA DISTÂNCIA

CAÍQUE: É, é bem idiota mesmo.


JORGE: Mas a guitarra era foda. (Sorri.)
CAÍQUE: (ri um pouco) Sente falta?
JORGE: Um pouco. Mas as coisas vão embora, né.
CAÍQUE: É. Vão sim. (Silêncio.)
JORGE: E fica um gosto estranho. Requeijão. Cheddar, suíço,
parmesão. Provolone.
CAÍQUE: Provolone?
JORGE: E é tudo num segundo, às vezes.
CAÍQUE: Tudo o quê?
JORGE: E sei lá também. (Silêncio)
CAÍQUE: Eu não acredito nessas coisas. (Silêncio.)

(Parece que falam para si, para o público e para o


outro, ao mesmo tempo:)

JORGE: Senta aqui perto. Olha os carros passando. Olha cada


um deles, e pensa em cada um dos motoristas.
CAÍQUE: Pensa em cada um dos bancos vagos. Dos
compartimentos, exílios, pequenas comportas semiabertas,
exalando uma música qualquer.
JORGE: Não importa a voz. Senta aqui perto. Você tem tantos
e tantos dias perdidos. Tantos e tantos amigos perdidos. Tantos
nomes pra lembrar de gente que você não dá a mínima.
CAÍQUE: (senta-se) Colisões, muitas nem acontecem. Sobram
quatro lugares vazios, airbags demais.
JORGE: No meu porta-malas, não tem estepe.
CAÍQUE: Eu queria ter um carro vermelho.
JORGE: Para mudar a cor do seu carro, você tem que pedir
autorização e falar com muitas pessoas e avisar umas tantas
outras. Preencher tantos documentos falando de você. Dá muito
132 trabalho. Nem vale a pena.
CAÍQUE: (aproximando-se) O meu sonho é ter um Porsche.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


(Silêncio. Beijam-se demoradamente.)

JORGE: Beleza, cadê a polícia?

(Blackout)

III

(Um dos atores somente em cena. O outro percorre a


plateia pedindo celulares emprestados, ligando para
a polícia e descrevendo a batida.)

CAÍQUE: Entra pelos meus ouvidos o ruído da sua voz.


O chiado é como uma nota errada naquela música que eu
odeio, e essa nota faz tudo, de repente, parecer novo, bonito,
interessante. A distorção me lembra um amigo de infância, que
me chamava pra ir na casa dele, a gente subia três andares de
carpete cinza pra jogar videogame, pra ficar na lavanderia e sair
do caminho da mãe dele, acho que ele chamava Rodrigo, digo,
não lembro o nome, não lembro nem do rosto dele. Ele era mais
baixo do que eu. Da mesma idade, mas mais baixo. A sua voz
me lembra aqueles 72 degraus de carpete, me lembra o quarto
dele bonito de doer, a coleção de surpresas de kinder ovo, o
megazord de plástico, que ele nunca tirou da prateleira, nunca
nem brincou com ele. Ele era bem esse tipo de gente, que não
usa os brinquedos por medo de quebrar, a própria prateleira
que sustentava um monte de bichos de pelúcia, o guarda-
roupas embutido de mogno lustrado, cheirando a madeira, uma
luminária azul, que ele nunca usou, a janela que dava pra rua e
o carpete cinza chumbo, o mesmo de antes, esse maldito carpete,
o mesmo que a sua voz me lembrou. Você tem voz de carpete.
Que engraçado. Ele era mais baixo do que eu, digo era porque 133
deve estar da minha altura agora. Ele ria de um jeito engraçado.
MANTENHA DISTÂNCIA

Não te ouvi rir ainda, mas vocês têm o mesmo riso. O mesmo
riso de bife acebolado que eu me forcei a comer, mesmo odiando
carne e cebola, engoli junto com a lição de moral que o pai dele
me deu. Longa, triste, cheia de certezas, e eu engolindo o bife
acebolado e ele rindo por baixo. A distorção da sua voz entra
pelas minhas orelhas pra me esfregar aquele bife acebolado na
garganta. Nunca odiei ele, nunca vou odiar alguém que ri carne
frita com cebola. Sempre vou ouvir esse chiado overdrive de
carpete que sobe em espiral – sem corrimão, sempre pra cima
– até a lavanderia coberta, os pregadores coloridos, o seu tato,
a sua língua, o seu corpo, aquele beijo que a gente não deu,
lembra? Aquele beijo que eu jamais insinuei, aquele mesmo,
que você nunca imaginou. Enquanto você descia os três andares
pra ver quem estava tocando a campainha, eu ficava sozinho lá
em cima, forçando meu estômago a sorrir. Feridas nos joelhos,
arranhões por causa de uma mentira, aquele soco que você
me deu eu nunca esqueci. Não me lembro daquele dia, não
me lembro como foi, mas aquele beijo que eu jamais te dei eu
nunca esqueci. A sua mão se chocando com o meu crânio, o
meu nariz estralando e de repente sangue pra todos os lados,
como eu podia esquecer o gosto? Aquele beijo que eu esperei,
enquanto você ia ver quem tocou a campainha, era mais do que
todos os degraus terrivelmente acarpetados, aquele beijo que eu
nunca nem insinuei e um gostinho de sangue, que você até hoje
não deve imaginar. Suas sobrancelhas franzidas, o meu sangue
na sua mão, eu caí no asfalto e arranhei o meu dedão do pé
também, lembra? Os joelhos, o cotovelo, o nariz, colisões. Todos
os outros garotos berrando coisas que na minha cabeça eram
pulsações, eram distorções e chiados. Transistores e pedal de
overdrive. Ruídos. Sonoplastia daquilo tudo que eu nunca vivi
com você.

134
IV

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


(Ouve-se a sirene novamente. Em conjunto com ela,
pode entrar lentamente alguma música de Mozart.
Quem sabe, a sinfonia nº 40. O ator que estava na
plateia vai voltando ao palco.)

JORGE: De longe, de um ponto distante da rodovia, o qual não


consigo precisar exatamente, vem vindo um carro de polícia.
Um camburão... É enorme. Engole os carros que não dão
passagem a ele, vem fazendo uma linha reta e sem hesitações
em nossa direção. Parece um grande trem, percorrendo um
trilho sem volta. Não fossem os dois faróis mirados em nós e
no que restou dos nossos carros, talvez acreditasse se tratar de
uma manada de animais, uns búfalos gigantes perseguidos por
leões. Ferozes, param ao nosso lado, arrancam folhas de suas
cadernetas, entregam papéis e pedem documentos.
CAÍQUE: Sim, aquele é o meu. Sim, sim. Eu que bati nele. Sim.
JORGE: Não olham de verdade o que aconteceu com o meu
porta-malas nem com o capô dele. Não olham nada. Não nos
veem, não nos notam. Acho que nem leram meu nome no
documento. Cada um com a mão firme na pistola presa na
cintura. Não olham quase nada. O boa noite que deram era
igual a sirene.
CAÍQUE: A minha carteira. Os documentos. Aqui, sim. Só
esperar?
JORGE e CAÍQUE: Tudo bem.
JORGE: Seguem até seu camburão. Se enfiam lá por alguns
minutos, uns quinze. Preenchendo papéis. Canetas Bic. A sirene
projetando sob nós uma luz inconstante, mudando nossas
sombras, a palidez dos rostos tomada por cores que não existem.

(Silêncio. Longo. Suspenso.)


135
CAÍQUE: (gritando e acenando subitamente) Obrigado! Boa
MANTENHA DISTÂNCIA

noite!

(Blackout. Quando as luzes acendem, estão


ambos com pacotes de cheetos nas mãos. Comem
furiosamente, derrubando salgadinhos para todos os
lados. Falam um com o outro enquanto comem.)

JORGE: (simultaneamente) Acabou! Agora, eu volto para a


minha casa do mesmo jeito que cheguei aqui, do mesmo jeito
que estava dentro do meu carro, flexionando os dedos, coçando
a barba e ouvindo o rádio dizer que está tudo errado no mundo,
que alguma loja está cometendo uma loucura, vendendo tudo
pela metade do preço, que agora começa o Top dez, enquanto eu
sinto cheiro de queijo, seus dedos vagando livremente pelo meu
pescoço, sinto ânsia de vômito e, ao mesmo tempo, uma vontade
louca de pular de uma ponte. Por que você não explode? Como
naqueles filmes de ação, que todo mundo vê e fica cheio de
adrenalina nas perseguições policiais, com carros que capotam e
pulam pontes, barreiras, em tomadas cada vez mais alucinantes.
Por que você não explode? Por que você não vai embora
comigo, larga esse carro aí, quem precisa de locomoção? Na
minha casa, eu tenho um filme ótimo, desses que eu acabei de
falar com quatro ou cinco atores famosos explodindo coisas,
se explodindo e atirando pra todo lado. A gente nem precisa
asssitir. Por que você não podia ter batido num poste?
CAÍQUE: (simultaneamente) Você é como o primeiro de todos,
como todos aqueles que não sabiam nada de mim, que nunca
me olharam de outro jeito, você é como aquele filho da puta
que passava a noite inteira acordado comigo, que sorria pra
mim na escola e brincava comigo no recreio, você é exatamente
igual àquele. E também aquele outro. E mais esse. Eu nem vi
quando sua luz de freio acendeu, eu nem vi você pedindo pra
parar – você também está ouvindo? Parece a abertura daquele
programa que a gente adorava assistir juntos, um pacote
136 enorme de salgadinho, os dedos sujos, pegando no controle
do videogame e melecando tudo, óleo pra todos os lados, no
fundo, a gente sempre soube tudo. Você talvez não soubesse,

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


mas a gente sabia de tudo. Quando você ia embora e eu ficava
em casa sem conseguir dormir, olhando a rua deserta até de
madrugada, o barulho da rodovia era só meu, os caminhões
cantando as minhas canções de ninar. Da janela da minha casa,
eu mal conseguia ver a sua. Você também ouve a rodovia? Será
que ela também te conta coisas, será que ela também te coloca
pra dormir? Você também ouve a programação da noite?
JORGE: Então é isso.
CAÍQUE: É, é isso, sim. (Pausa.)
JORGE: Boa sorte com o carro. Com o seu pai.
CAÍQUE: E você também. Com tudo. Ou sei lá.
JORGE: Valeu. (Pausa.)
CAÍQUE: Bom, eu já vou.
JORGE: Eu também. Eu já tô atrasado pro meu compromisso.
CAÍQUE: Eu também. Eu também já me atrasei muito.
JORGE: Não sei que horas são.
CAÍQUE: Você vai pra casa?
JORGE: Vou. (Estende a mão suja de cheetos. Caíque a aperta.
Silêncio longo.) Quer vir também?

(Caíque se aproxima lentamente. Para muito


próximo. Próximo demais.)

CAÍQUE: Jorge.
JORGE: Quer?
CAÍQUE: Você tem seguro?
JORGE: Claro que não.

(Blackout.)

(2012)
137
138
139
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

7
140
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
SEU CORPO²

1. SE VOCÊ NÃO ESTÁ DISPOSTO A PARECER


UM IDIOTA, NÃO MERECE SE APAIXONAR

HEITOR: Imaginem a cena: uma grande piscina olímpica,


azul, reluzindo ao luar. Um casal, talvez parecido com a gente,
sentado na beira dessa piscina, após um romântico e furtivo
piquenique noturno. Foi tudo tão perfeito. Tinha até vagalumes.
O casal está agora se olhando bem de perto, ensaiando um beijo
que não vem. Subitamente, depois de uma frase muito bonita
como, sei lá... (Olha para Ana esperando uma sugestão) Bem,
imaginem vocês alguma frase bonita. Depois de uma frase
muito bonita, ela se joga na piscina de súbito. Ele se surpreende,
está encharcado de respingos. Ri frouxo, ri aberto, ri de fechar
os olhos. Ela sobe pra tomar ar, o olha, afunda outra vez. Passa-
se cerca de um minuto, e as bolhas sobem. Ele ainda ri. O

² Texto escrito em processo criativo com a colaboração de Joaquim Vital e


Mariana Guerron. 141
minuto dura mais que um minuto, as bolhas não sobem mais,
SEU CORPO

nem ela também, e alguma coisa parece bastante errada. Ele


demora a notar: está extasiado, que noite eles viveram! Ah, o
amor é tão... é tão bom estar vivo! É tão bom viver isso! Vamos
lá, façam um esforço, imaginem comigo essa cena: quando vê
que ela não retorna, abandona o riso, abandona o prazer, salta
heroico! Afunda, não sabe nadar direito, mas, em momentos
como esse, brota dentro da gente um senso de protagonista...
Tira seu corpo inerte da piscina. Ele não sabe fazer boca-a-boca,
massagem cardíaca... Como é que se faz um coração funcionar?

(Partitura romântica. É visível o amor entre ambos.


Ao fim, Ana está em uma maca. As luzes falham.
Blackout. Há uma TV em cena, nela surge o título do
espetáculo, talvez algumas informações como nome
do grupo e do elenco. A imagem é de VHS. Vai dar
a sensação de que tudo está um pouco falhando.
Próximo à TV, acende uma lâmpada. É Heitor quem
a segura. Ele vai, lentamente, se aproximar da maca.
Há um corpo nu sobre a Maca. É Ana. Está deitada.
Heitor vai iluminando o corpo de Ana. Começa
cantarolando alguma canção. Ana levanta-se súbita.
A cena segue. A luz passa a tocar o corpo todo de
Ana, que vai se levantando na maca.)

HEITOR: Pronto, terminamos.


ANA: Enfim! E o que faremos hoje?
HEITOR (Retirando uma toalha e comidas): Pensei em um
piquenique.
ANA: Ah, outra vez.
HEITOR: Pensa que é como se fosse um flashback. Pensa que é
como se a gente pudesse viver tudo de novo.
ANA: Tudo é muita coisa, e já foram tantos piqueniques...
HEITOR: Achei que gostasse...
142
ANA: É claro que eu gosto! (Pausa curta) Mas pode começar a

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


inventar outras coisas, ou logo vamos estar entediados.
HEITOR: Se há algo que não sou capaz de suportar é o tédio.
ANA: Pois combina muito com você.
HEITOR: Toma, põe essa camisa.
ANA: Achei que preferia que eu ficasse assim... (Sorri) Trouxe
uvas passas?
HEITOR: Somente o melhor para o meu benzinho! (Sorri
afetado) Você não quer uvinha, amorzinho? Quer? Eu sei que
quer.
ANA: (Afetada) Awnnnn, claro que eu quero, bebê. Eu que te
pedi pra trazer não foi? Foi ou não foi?
HEITOR: Foi.
ANA: Foi ou não foooooi?
HEITOR: Foi siiiim.
ANA: E você trouxe pra mim, não trouxe?
HEITOR: Trouxe pro meu amorrrrr. (Num crescente, falam cada
vez mais afetados e mais idiotas. Socam comida na boca um do
outro. A imagem deve ser primeiramente patética, em seguida,
cômica, e por fim, asquerosa. Heitor cuspindo a comida) Blergh!
O amor enche minha boca e eu não consigo nem engolir!
ANA: (Após um sonoro arroto) Você fala tanta coisa bonita,
Heitor.
HEITOR: (Limpando a língua na camisa) É que eu vejo beleza
na vida.
ANA: Não acho nada demais nela.
HEITOR: Como pode? A vida é emocionante! É tão bom estar
vivo!
ANA: É mesmo?
HEITOR: Eu queria que a minha vida fosse igual o Titanic!
ANA: Então, eu sou o Jack e você é a Rose! Eu adoro o Leonardo
Di Caprio! (Puxa ele e cantarolam muito mal a canção tema,
talvez até encenem brevemente a cena icônica da proa do navio) 143
HEITOR: Pensando bem, achei meio mórbido.
SEU CORPO

ANA: Ah, a gente pode pausar o filme, quando o navio começar


a afundar.
HEITOR: (visivelmente deprimido) "Aqui está o amor jovem,
cheio de promessas, esperança… ignorando a realidade".
ANA: Do que está falando, Heitor?
HEITOR: Você está morta, Ana.

(A luz pisca. Ruídos estranhos. A televisão chia,


imagens diversas perpassam. Ana cai de borco
em frente a Heitor, permanece assim por alguns
segundos. Ela risca com um giz o entorno do seu
corpo e volta a ficar caída. O clima é um tanto
assustador. Ao voltar a cena, cenas distorcidas de
filmes de romance vão aparecendo na tela da TV, a
cada citação dos personagens.)

ANA: (Após uma pausa) Não, Heitor. Você me salvou.


HEITOR: Salvei?
ANA: (Na tela, Titanic) "Você me salvou de todas as maneiras
que alguém pode ser salvo."
HEITOR: (Na tela, Uma Linda Mulher) "É mais fácil acreditar nas
coisas bonitas, já percebeu?"
ANA: (Na tela, Ghost) "O Verdadeiro amor sempre levamos
conosco!"
HEITOR: (Na tela, Ghost) "Muita gente diz eu te amo sem querer
dizer nada."
ANA: (Na tela, Moulin Rouge) "Haja o que houver, eu irei amá-lo
até o dia de minha morte."
HEITOR: (Na tela, Diário de Uma Paixão) "Você já amou alguém
até chegar a sentir que já não existe? Até que não importa o que
aconteça? Até o ponto em que estar com ela já é suficiente. E,
quando você olha pra ela, seu coração para por um instante? Eu
144 já."
ANA: (Na tela, 10 coisas que eu odeio em você) "Eu não faço o

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


que as pessoas esperam. Pra que viver do modo que as pessoas
esperam, se eu posso viver do meu."
HEITOR: (Na tela, E o Vento Levou) "Abra os seus olhos e olhe
pra mim. Não, acho que não vou te beijar. Embora você precise
ser beijada, desesperadamente. Esse é o seu problema. Você
deveria ser beijada, frequentemente, por alguém que sabe como
fazer."
ANA: (Na tela, Casablanca) "Beije-me. Beije-me como se essa
fosse a última vez."

(Num conto-de-fadas às avessas, após o beijo, Ana


cai morta nos braços de Heitor.)

HEITOR: (Com Ana no Colo, após uma pausa.) Bravo, minha


querida. Estupendo, você sempre se sobressai. Sempre há em
você algo de único, de misterioso, essa interpretação triste e
trágica de alguém que não sabe amar. Vamos, meu amor, abra
os olhos. Abra os olhos, me veja aqui, estou aqui, eu estou aqui,
vê? Por favor, meu amor, minta pra mim. Mente pra mim,
como você faz tão bem, como você talvez vem fazendo desde
sempre: levanta, inventa uma mentira. Diz que eu estou aqui.
Você é boa atriz. Me engana, levanta, abre esses olhos. Amor?
Vamos, não precisa ficar tímida, você é minha Greta Garbo,
uma legítima Audrey Hepburn, vamos tomar café da manhã,
minha bonequinha de luxo. Quantos piqueniques mais será
que esse seu corpinho aguenta? O tapete vermelho do Oscar
lhe espera. Ah, e quanto tempo mais antes de apodrecer, não
há formol pra conservar esse teu talento, hã? Ainda mais sob os
holofotes, todo esse calor, todo esse brilho, tua pele reluz e me
ofusca – eu, que sou um personagem plano, tedioso: um mero
secretário deste necrotério (a arte da autodepreciação corre em
minhas veias, sou puro drama burguês). Olhe direito, dá pra
me ver apodrecer mais rápido do que você. Digo isso apenas
porque é preciso localizar quem assiste, imaginem vocês que
isso aqui é um necrotério, imaginem essa cena. Ganha uma certa 145
qualidade trágica, não é mesmo? Meu doce amor, caído em
SEU CORPO

meus braços, até quando segue morta? De uma vez por todas
ou enquanto deseje seguir fingindo? – ou talvez eu. Vamos,
façam um esforço, eu sei que não é tão interessante quanto no
cinema, onde a câmera nos carrega e aqui temos de caminhar
com nossas próprias pernas, apontar nossos olhos e fazer todo o
trabalho do zoom e... mas eu confio na capacidade de vocês, eu
sei que vocês inventam tanta coisa, vocês são excelentes nisso,
em inventar... melhores do que eu, tenho certeza, eu confio em
vocês.

(Blackout. A TV mantém-se ligada. Nela, vídeos do


casal. É tudo muito bonito, mas sei lá.)

2. TAMBÉM NOS AMANDO


VAMOS CONHECER A DOR

HEITOR: (Olhando Ana de Longe. Aproxima-se com uma


câmera). Me olha devagar. Isso, vai virando o rosto.
ANA: Assim?
HEITOR: Isso, isso. Fica de costas. Ergue um pouco o queixo.
ANA: Assim?
HEITOR: É, isso. Perfeito. Você é sempre perfeita. Agora, ergue
o cotovelo esquerdo. Esquerdo.
ANA: Assim?
HEITOR: Isso, exatamente, cada milímetro. Sobe um pouco o
calcanhar, mais um pouco...
ANA: Assim?
HEITOR: Estupendo, nada é tão bonito quanto te ver assim.
Abaixa a alça do vestido. Isso.
ANA: Assim?
146
(Heitor segue guiando Ana em seu vídeo. É

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


romântico, é bonito, mas é também asqueroso. Ela
não precisa sempre responder as vontades dele, mas,
ao final, devemos tê-la nua.)

HEITOR: (Suspira) Cada centímetro da sua pele é... não quero


usar a palavra perfeito, não quero dizer magnífico... parece que
não há palavras pra descrever...
ANA: (Sem constrangimento visível) Você me deixa encabulada.
HEITOR: Como podes ser tão cruel? Como podes me deixar,
esvair-se por entre os meus dedos, feito água, escorrendo,
pingando?... Tudo que estou fazendo aqui é para que não sejas
tão cruel comigo... Para que permaneças...
ANA: Não conjugue os verbos na segunda pessoa, soa artificial.
HEITOR: Você não entende.
ANA: Entendo perfeitamente, Heitor. Só eu te entendo.
HEITOR: Nem você.
ANA: Vamos, olhe para mim.
HEITOR: Não posso.
ANA: Por quê?
HEITOR: Porque sou covarde. Ver-te só me faz recordar que
partiste. Não sou capaz de suportar a tua ausência. Onde tu
estás?
ANA: Aqui. Eu estou aqui.
HEITOR: (incerto, infantil, muito infantil) Então, prova. Me diz
alguma coisa meio bonita.
ANA: Eu estou aqui. Às vezes, me vejo no passado, ou futuro
e, nesses momentos, não estou presente. Se estou aqui, estou
tentando caminhar em uma estrada até o fim. Me destruo e
construo a cada momento – ou é você quem faz isso? Carrego o
peso de trás. Carrego minha alma, e aqui ela deve ser liberta.
HEITOR: Continua...
ANA: Não sou mais o que era antes, mas o que era antes me
compõe. Estou aqui, tentando ficar aqui. Sonho que mergulho
147
sem medo. Vou no fundo e me solto. Há outro chamado aqui.
SEU CORPO

Pra ficar aqui.


HEITOR: Até quando vai estar aqui? Você vai embora, não vai?
ANA: (Talvez acalentadora, mas apenas muito levemente.
A verdade é que Ana é sempre uma incógnita, jamais somos
capazes de aprisioná-la em algo e todos os seus movimentos, e
ações, e palavras, e objetivos em cena são evasivos e incertos.
Nem esta rubrica pode lhe agarrar) Vamos esquecer tudo isso,
por um instante.

(Realizam uma partitura em que utilizam luvas de


borracha para tocar o corpo nu um do outro, depois,
a repetem, separados, tocando o próprio corpo onde
tocaram e onde foram tocados pelo outro, sempre de
luvas de borracha, uma esterelidade triste. Ao fim,
blackout. Há na TV um vídeo inconclusivo, abstrato,
muito bonito. A melancolia é bastante doce e nos
deixa mais fortes para algumas violências. Acendem-
se as luzes.)

HEITOR: ADIVINHA O QUE EU TROUXE?


ANA: Sorvete!
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Um vinil, do Abba!
Heitor: Não! Adivinha de novo!
ANA: Luvas de boxe!
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Um gato! Por favor, me diz que é um gato!
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Morangos?
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Sei lá, um vaso de planta?
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
148
ANA: Duas colheres de manteiga!

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: O Tratado de Tordesilhas.
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Um livro bem chato pra parecer inteligente.
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Uma calculadora sem pilha.
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Um enigma.
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: A orelha de alguém?
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Uma bússola!
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Groselha!
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Uma prótese?
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Um... um...
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Sei lá, um perfume ruim?
HEITOR: Não! Adivinha de novo!
ANA: Ah, que inferno! Sei lá!
HEITOR: Adivinha vai! (Ana não responde) Adivinha! Vamos!
(Ela o ignora. Pode ser que esteja irritada) Tudo bem, tudo bem.
(Aproxima-se) Filme e pipoca!
ANA: Uau.
HEITOR: Não gostou?
ANA: Adorei.
HEITOR: Então, me dá um sorriso (Ela sorri. Ele também.
Sorriem um para o outro por um longo tempo. Tempo demais. 149
Sorriem para o público. Por tempo demais. Se o público rir,
SEU CORPO

eles devem aguardar o riso do público terminar, e caso o riso


recomece, devem aguardar mais ainda. Os músculos devem
doer. Dói muito ser feliz, sabia?). Eu sabia que você ia gostar.
Vem cá, me dá um abraço.

(Abraçam-se. Depois, soltam-se e vão para as


extremidades do palco. Voltam a encontrar-se no
meio. Podem: se abraçar, dar um tapa no outro, ou
um beijo. Retornam para as extremidades do palco,
depois, voltam ao centro e escolhem, mais uma vez,
uma das 3 ações, abraço, tapa ou beijo. Isso se repete
uma porção de vezes. De repente, na televisão, vê-
se escrito: "TODAS AS RELAÇÕES AFETIVAS ESTÃO
FALIDAS. NESTES POUCOS MINUTOS SE RESUMEM
AS POSSIBILIDADES DE AFETO ENTRE DOIS SERES
HUMANOS. VOCÊS JÁ VIRAM TODAS ELAS EM OUTROS
LUGARES, OU VARIAÇÕES DELAS. NÃO TEM NADA DE
MUITO ESPECIAL NO AMOR.")

HEITOR: Espera.
ANA: Que foi?
HEITOR: Não sei. Não sei, tem algo de errado.
ANA: Como assim?
HEITOR: Acho... parece que... parece que você não me ama.
ANA: Eu morro de amor por você.
HEITOR: (Atira um elástico em Ana. Uma pausa. Ambos
riem. Volta-se para o público. Enquanto Heitor atira elásticos
na plateia, Ana está estourando pipocas num micro-ondas e
cantarolando um blues) Ah, que bobagem o amor! Nascer é
começar uma busca para achar a pessoa que passará a vida com
a gente, que dará sentido a tudo que, a olhos nus, não faz sentido
nenhum. E assim vamos passando por experimento e teste,
audições, quem é o próximo? O que você sabe fazer? Canta,
150 dança? Interpreta? Chora pra eu ver. Eu, por exemplo, entro em
super mercado e vou experimentando todas aquelas amostras

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


grátis pra depois poder escolher o produto que eu quero levar.
Daí, um dia, eu encontro esse amor e perco noites de sono
pensando na pessoa, as mãos molhadas e trêmulas guiadas por
aquela vontade de tocar, de sentir. Nós somos ensinados a amar
assim. Não é lindo? Amoooooor! Eu te quero, eu te prendo,
você me pertence, somos só nós pra sempre um outro dentro do
outro. Encaixados. Imersos. Perdidos. Encaixotados. Um órgão
transplantado. E se o cupido erra a flecha? Eu não sei o que
fazer com isso, a minha vida já estava programada, eu já tinha
meus planos eternos com você. Acordo cedo e pego a faca mais
afiada que tenho na gaveta da cozinha, vou até sua casa e bato
na porta, dizendo que preciso pegar algumas coisas que deixei
lá, quando tudo ainda era de verdade. Só que, quando você abre
porta, eu entro apontando a faca e perguntando sobre o amor.
Cadê ele? Tudo era mentira? Mas não podia ser! Você disse
que me amava, que eu era tudo na sua vida! Como assim, as
coisas mudaram? Nosso amor é pra sempre, não é? Adoro essa
expressão: pra sempre. E aí, num gesto de profundo e sagrado
amor, eu introduzo minha faca no seu peito e a lâmina ocupa o
lugar vago do seu coração. Alguma coisa minha tem que ficar
lá dentro. Mas fica tranquila, o amor é invasivo mesmo. Essas
coisas. O lugar no nosso coração fica pra sempre preenchido
pela pessoa amada. Fica tranquilo, meu amor, a gente volta
a se encontrar um dia, nosso amor eterno há de nos juntar
novamente e fazer tudo ficar certo de novo, como naquele filme
que a gente viu junto. Lembra? Lembra? Eu te empresto o VHS.
BEIJO. TE AMO.

(Sentam-se juntos em frente a TV. Assistem ao filme.


A luz da TV permanece por um tempo. Ouve-se uma
telemensagem em off. Quanto mais terrivelmente
brega, melhor. Ao fim, blackout.)

151
3. "AS CANÇÕES DE AMOR INVENTAM O AMOR"
SEU CORPO

(Quando a luz se acende, está Ana em pé, sozinha,


no meio do palco.)

ANA: (Emocionada) Mais uma vez, a luz se acende e eu gostaria


de agradecer-lhes. É graças à presença de vocês que se faz
possível este momento. Muito obrigada. É com profunda alegria
que dou início a mais este monólogo tedioso, já devem estar se
acostumando, estamos cheios deles (subitamente, sorrindo) –
como eu sei que vocês também estão (Tira um celular. Começa
a gravar um áudio). Oi amor, você tá aí? Eu só queria te dizer
que daquela última vez que a gente se viu... Não, espera. (Segue
tentando gravar o áudio, sempre desistindo. Por fim, decide
ligar. O número chamado não existe. Uma pausa curta e, depois,
enchendo bexigas) Eu só queria te dizer que desde a última vez
que te vi, foi como se o ar mudasse de sentido dentro do meu
pulmão. Eu não sabia pra qual direção eu ia. Perdi meu rumo,
fiquei trêmula. Eu fico assim por você, somos tão diferentes.
Mas uma proximidade de corações... Acho que o amor é a
chave que liga o coração e o faz trabalhar, essa máquina mais
poderosa do corpo, que bombeia a vida. Estaria mentindo se
eu dissesse que você é e será meu único amor. Que você foi a
pessoa que eu mais gostei. Não acredite nisso. Me perdoe, eu
sei que você é capaz de me perdoar, eu preciso ir embora. Não
estou mentindo, isso é uma despedida. Não acredite nisso. Meu
amor, me perdoe, mas agora eu saio de cena.
HEITOR: (Aplaudindo) Bravo! Você é sempre brilhante. (Pausa)
Você vai embora?
ANA: Sim. Vou.
HEITOR: Vai o quê? (Pausa) Você não pode.
ANA: Posso. É claro que posso.
HEITOR: Sabe que não pode. Sabe que não é possível.
152 ANA: Basta. Estou farta. Vou gritar até alguém vir.
HEITOR: Pode gritar o quanto quiser. Não tem ninguém aqui

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


essa hora. O necrotério está vazio.
ANA: Pois vou gritar mesmo assim! Vou gritar, e vou gritar até
alguém me ouvir! (Grita) E, vou gritar mais, e depois que eu
gritar mais, vou gritar até você (GRITA). E ai de você se você não
(GRITA) E eu grito sim, e como eu grito! E alguém vai me ouvir.
Alguém aqui me ouve! (GRITA) Alguém aqui está me ouvindo?
Nem que sejam os mortos! (GRITA) Bando de imprestáveis!
(GRITA) Alguém? Alguém! Só me ouve! Não precisa nem vir
aqui, só ouve, me ouve; me ouve, um pouco; me ouve, às vezes,
mas me ouve (GRITA).
HEITOR: Pare de gritar.
ANA: Não paro! Não paro de gritar, nunca! Vou gritar até
esvaziar os pulmões! (GRITA) Esvaziar de vez, sem ar, sem
água, sem pneumonia e, sem voz, e eu grito até que não me
ouçam mais. E se estiver achando ruim, é só ir embora!
HEITOR: Tá, eu vou. (Levanta-se)
ANA: Vai mesmo! Some daqui! Já vai tarde! Até que enfim você
vai embora! Desaparece! Some! Anda! (Começa a pegar coisas)
Aproveita e leva esse seu livro de merda!
HEITOR: Aproveita e me devolve a camisa também!
ANA: Toma! Toma essa merda!

(Explosivos, vão entregando coisas um pro outro,


atirando as coisas, insultando o outro. Variações
de ritmo, pausas. Seguem entregando coisas até
alcançarem o silêncio. Pausas. Variações de ritmo.
Vão diminuindo o ritmo. Estão com os braços cheios
de coisas. Num ímpeto, se abraçam. As coisas estão
entre eles, impedem o contato, os afastam. Ela
abandona o abraço. As coisas caem. Ele permanece
no abraço. Citando Pina Bausch (ou re-imaginando
alguma cena de dança/valsa de filme), ele insiste em
colocar os braços dela sobre seus ombros enquanto
a segura pela cintura, e ela os deixa cair. Música 153
romântica, triste. Ele torna a colocar os braços dela
SEU CORPO

em seus ombros e ela os deixa cair, e isso se repete


sem aumentar a velocidade, como uma náusea
que vai se avolumando e enchendo a boca de uma
água que... Por fim, ele a solta e senta-se sobre a
maca. Pega o pote de pipoca usado na cena anterior
– talvez, agora, reste somente o milho que não
estourou. Ela acende um cigarro. Dança lentamente,
consigo, sem nenhum contato visual com ele.)

HEITOR: Por que sempre chegamos nisso?


ANA: Talvez assim mova alguma coisa ao meu redor.
HEITOR: Não tenho notícias suas há um tempo.
ANA: Alcançar o quê?
HEITOR: Cerveja é ruim e você finge que gosta.
ANA: É bom que dói.
HEITOR: Então, por que os médicos usam azul ou verde ao
invés de branco em centros cirúrgicos?
ANA: Acertou! Você é um autêntico.
HEITOR: Eu fiquei sabendo sim que o fiat atropelou um filhote
de tamanduá.
ANA: Eu peguei tudo o que você falou e escrevi em um papel.
HEITOR: Quer ser seu próprio chefe?
ANA: Está provado, pensado e verificado.
HEITOR: Permaneceu intacto, porque é sublime.
ANA: Que?! Tão rápido?
HEITOR: É como se estivesse voltando ao passado.
ANA: Eu e meu barrigão. Os movimentos calmos.
HEITOR: Minha vontade é de rasgar meu diploma.
ANA: Não acho que a pessoa deva falar algo que não sabe, mas
é compreensível.
HEITOR: Ou seja...
154 ANA: Sempre será o pior.
HEITOR: Meu medo é quando essa infância crescer.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


ANA: Pelo menos uma luz que venha de nível médio.
HEITOR: Eu morro toda vez.
ANA: Isso não é um chapéu.
HEITOR: Pelo menos na minha cabeça.
ANA: Sexo na rua ao vivo!
HEITOR: Basicamente, faça o oposto de tudo o que você tá
fazendo agora.
ANA: Ah, você não é um dermatologista?
HEITOR: Não sei como será o futuro, se houver amanhã.
ANA: Sim, como a sua irmã.
HEITOR: Do que você tá falando?

(pausa)

ANA: Então me deixa ir embora.


HEITOR: Não. Eu preciso de você aqui comigo.
ANA: Você! O mundo não gira em torno desse seu umbigo sujo!
HEITOR: Mas eu preciso de você. Aqui. Comigo!
ANA: Você precisa é de tomar vergonha nessa sua cara! Seu
imbecil! Eu nem tô aqui, panaca! Eu sou só uma invenção da sua
cabeça! Eu nem tô falando nada disso! Eu tô ali! Caída! Morta!
HEITOR: Para com isso.
ANA: (indo em direção ao local que indicou) Olha aqui! Vou
encenar pra você! Morta!
HEITOR: Para com isso!
ANA: Eu não te amo mais, Heitor! Já faz um tempo, na verdade!
E sabe por quê? Porque eu tô morta! Em decomposição! Tô
virando adubo!
HEITOR: PARA COM ISSO!
ANA: Meu coração já não bate nem por mim, que dirá por você!
HEITOR: LALALALALA NÃO VOU TE OUVIR! 155
ANA: Como sempre! Mas adivinha só! Eu sou só um corpo
SEU CORPO

inerte! Quem tá falando é a minha voz na sua cabeça!


HEITOR: LALALALA!
ANA: Vai ficar fingindo que não se importa? Que não te afeta?
HEITOR: Não me afeta! Eu nem ligo!
ANA: Você quer disputar quem sente menos? Já te aviso que eu
sou bem fria.
HEITOR: CHEGA! (Avança para cima dela.)

(Ambos começam a se comportar como animais,


caça e caçador. Uma sonoplastia tribal, que sugira o
início dos tempos humanos cria o clima da cena. A
música vai crescendo até que explode em Animals, do
Maroon 5. Quanto mais vergonhoso esse momento
for para o espectador melhor. A cena termina com
Heitor dando um tapa em Ana e um blackout assim
que Ana cai no chão, que quebra qualquer tipo de
tom cômico que havia na cena).

4. TÃO BOM MORRER DE AMOR!


E CONTINUAR VIVENDO...

(Quando as luzes se acendem, Ana está caída no


mesmíssimo lugar.)

ANA: Meu coração já não bate mais, meu corpo já não se mexe,
minha mente para de existir. Nada ao redor parece se mover,
tudo está parado como... Antes, ao prender a respiração, tinha
a sensação de que ia explodir, ouvia meu coração bater forte
dentro de mim. Como em um mergulho no profundo das águas.
Aqui, já não tem tempo, não tem batimento nem respiração. Um
156 sufoco preso e constante permanece. Corpo duro, intacto, não
existe. Não tem vida, não tem respiração. Lembro-me do dia

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


em que estava com meu pai nas pedras do rio que era cercado
de árvores. A água me hipnotizava, ficava pensando se lá havia
sereias, como no filme da Disney. Pedi para nadar e meu pai
não deixou. Continuei a olhar pra água até não perceber meu
corpo, já estava dentro dela, em um pulo sem controle de mim e
já caía ali, submergia. Glub. Glub. Glub. Que generosidade, dar
espaço pra água entrar. Por dentro de mim é só água, afundar
em si é um excelente exercício de respiração, bom pra quando
vai entrar em cena. Meu pai se assustou e me tirou de lá. Corpo
duro, intacto, sem respiração, sem batimento. Descobri que
morrer é um prazer, uma arte.
HEITOR: (Com um buquê de flores bastante rupestre) Amor.
Amooor. Ana. Me desculpa. Eu... eu só... você sabe, não sabe? É
claro que sabe... o que eu sei, você sabe.
ANA: Vá embora. Eu morri.
HEITOR: Ana, eu não sei mais quanto tempo o seu corpo vai
durar antes de... antes de apodrecer...
ANA: Vá embora.
HEITOR: Eu preciso aproveitar esse pouco tempo que resta.
ANA: Com um cadáver. Eu estou morta, Heitor.
HEITOR: Então eu vou morrer também! Vou me matar, e me
juntar a você! Como Romeu e Jul-
ANA: Cala a boca. Cala essa porra dessa boca!
HEITOR: Mas eu te amo Ana...
ANA: (Deita-se na maca) Só posso lhe dizer: meus pêsames.

(De um jeito asséptico, antinatural e apático, ela


morre de vez, para de reagir e de fingir. Não há
qualquer sinal de dramaticidade nessas ações.
Nada pode ser mais cruel – e justo. Heitor repete a
partitura das luvas, sozinho. Depois, entrega o texto
olhando para Ana.)
157
HEITOR: Quer saber?! Já vai tarde. Respirar nunca foi tão
SEU CORPO

fácil! É TÃO BOM ESTAR VIVO! Vai e não volta, que agora
a vida é muito mais simples. MUITO. MAIS. SIMPLES.
MUUUUUUUUUUUUUUUUUUUITO MAIS SIMPLES!
ADEUS! A minha única tarefa agora é saber o que eu vou fazer
com essas coisas todas que você largou aqui. Esse seu incenso
fedido pra caralho, que eu fingia gostar só pra você poder
purificar a casa, pra ela ficar "cheirosa". Os vizinhos é que vão
ficar aliviados de não sentir mais essa tua carniça zen. Assim
como essas suas plantas que traziam bichos pra dentro de casa.
Tchau moscas, insetos! Sem mais essas borboletas que as pessoas
acham que são bonitas, mas que, na verdade, são apenas insetos
que eu poderia matar numa pisada. Mas o que você deixou aqui
de mais pesado foi. (Pausa.) Ontem me deitei pra dormir e as
luzes da cidade que faziam reflexo no teto do nosso quarto – do
meu quarto, e fui assombrado pelo movimento da rua. Tudo
era tão quieto dentro de casa, a vida ficou mais fácil, porque
aqui eu podia me esconder dela, a realidade é moldável, eu
edito, corto, mudo o ângulo, troco a lente, faço o que eu quiser
com a tua imagem – o pôster oficial vai ser você. Cercada por
umas borboletas, boiando num rio verde escuro, insondável.
Até assim você é linda. Desgraçada. Espero que você tenha ido
pra um lugar onde você possa perceber todas essas coisas e ser
assombrada por todas elas, assim como eu sou todos os dias. E
quem sabe essa não é uma maneira de sermos mais próximos.
Nunca estivemos tão juntos. Tão bonito o apodrecer, a carne
ficando verde e despregando dos ossos. Que nojo. A escuridão
nos aproxima. O medo e o remorso nos unem. Nunca ficaremos
separados. Nunca.

(Heitor deita-se sobre Ana. Ele segura uma de suas


mãos com a mão enluvada. A volta da maca, todas
as flores do buquê. A cena é bastante mórbida, mas
há algo de bonito – e essa beleza é bastante perigosa.
Cena final é uma revelação de que a peça toda é um
158 longa-metragem que teve a verba cortada e jamais
vais estrear. Ou talvez ele seja preso por manter o

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


cadáver, acusado de necrofilia. Ou ele se afoga para
ficar junto dela. A peça termina com Claudinho e
Buchecha, "Sou eu assim sem você". O importante é
que o espectador não saiba bem o que pensar. Faça o
que quiser com este texto. De preferência, destrua-o.)

(2016)

159
160
161
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

8
162
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
ONDE REINA O SILÊNCIO?

(Um corredor de luz. Em uma das pontas, uma


caixa de correio. O palco permanece vazio por um
determinado tempo. Entra Alex, carregando uma
mala de viagem. Caminha pesaroso, mas decidido. A
cabeça baixa. Ouve-se uma voz da coxia.)

VOZ: Você tem certeza?

(Silêncio. Alex para lentamente ao ouvir a voz. A


cena se suspende por alguns segundos. Entra Ariel,
no corredor, atrás de Alex, que não se volta para
olhar.)

ALEX: Sinto muito.

(Ariel olha as mãos. Volta a olhar Alex.)

ARIEL: E se você –
ALEX: Eu sinto muito.

(Silêncio.) 163
ARIEL: Pode ser que eu não esteja aqui quando –
ONDE REINA O SILÊNCIO?

ALEX: Eu não sei se volto.

(Silêncio.)

ARIEL: Eu sei.

(Silêncio. Alex deposita a mala no chão, respira


fundo e olha para o alto.)

ALEX: Nós sabemos quando é a hora de ir embora. Nós


podemos sentir nos dedos das mãos e nos músculos dos
lábios que chegou o momento. Podemos prever a sensação
nos pulmões, sabemos exatamente quando é o momento de
partir. Sabemos quando não cabemos mais no espaço, quando
ocupamos mais do que alguns metros quadrados e mais do que
um sorriso pode conter. (Pausa) Mas você sabe de tudo isso.
ARIEL: E se você não encontrar nada por lá? E se não for
suficiente, e se não for o certo para você?

(Silêncio.)

ARIEL: Você não vai encontrar sua casa numa cidade grande
qualquer. A concretude dessa sensação só existe em um lugar
– (Pausa) e este lugar já não existe mais. Por favor... por favor,
eu –
ALEX: Me escuta.
ARIEL: Por favor.
ALEX: Você não conhece as passarelas, os sobrados nem os
escadões. Você não conhece as rodovias e a periferia e as
calçadas e os trajetos de ônibus e as subidas e as ruas sem saída.
É impossível entender do que eu falo sem conhecer tudo isso.
ARIEL: (como quem não ouviu nada) E se não encontrar nada
por lá?

164 (Silêncio)
ALEX: Então eu volto. (Pega novamente a mala e sai.)

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


(Ariel permanece no foco, observando em silêncio.
Luz cai em resistência.)

1.213 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Entra Alex. Contra ele, uma forte ventania. É preciso


que seus cabelos e suas roupas sacolejem ao vento.
Ele custa a atravessar metade do palco, quando entra,
subitamente, alguém pelo outro lado, empurrado
pelo vento. Os dois se chocam. Durante o diálogo
que segue, empurram-se e seguram-se um ao outro.)

AUGUSTO: Me desculpe, senhor. Me desculpe o –


ALEX: O quê?
AUGUSTO: O incômodo! Me desculpe o incômodo!
ALEX: Para onde você vai?
AUGUSTO: Até a próxima cidade, senhor. Vou visitar um
amigo, levo flores. O senhor também vai para lá?
ALEX: Sim. Que flores são essas?
AUGUSTO: Lírios, senhor. São poucos, escassos nesta época do
ano. "São como bilhetes de amor", dizem.
ALEX: Como os conseguiu?
AUGUSTO: Tenho uma floricultura, senhor. São poucas as
flores que persistem neste inverno que congela os cílios e os
músculos. Os lírios que trago nem deveriam existir.
ALEX: São muito bonitos.
AUGUSTO: São mesmo. A cidade onde mora meu amigo não
tem flores de nenhum tipo, não tem petúnias, amores-perfeitos
e nem tulipas. São muitas vielas e poucas ruas principais.
ALEX: Não tem orquídeas? 165
AUGUSTO: Não tem terra à mostra.
ONDE REINA O SILÊNCIO?

ALEX: Que faz seu amigo?


AUGUSTO: É agricultor.
ALEX: Como?
AUGUSTO: O quê?
ALEX: Como ele pode ser agricultor nessa cidade?
AUGUSTO: É dos desajustes que nascem as flores, senhor.

(Silêncio. O esforço para vencer o vento que ambos


empregam é visível.)

ALEX: Sempre visita seu amigo?


AUGUSTO: O quê?
ALEX: Vai sempre visitar o seu amigo?
AUGUSTO: Quase nunca. Não há tempo para percorrer o
espaço entre a minha cidade e a dele. Há trinta anos que não o
vejo.
ALEX: E de onde surgiu o tempo para ir, desta vez?
AUGUSTO: Da necessidade. A necessidade de vê-lo me obrigou
a sair de casa. Estava cuidando das flores, em silêncio, e me
deparei com estes lírios. De repente, me vi pegando casaco,
malas e lírios. E sabia exatamente para onde ia.
ALEX: Vai-se sempre por esta estrada para chegar à cidade de
seu amigo?
AUGUSTO: Sempre. São alguns quilômetros até lá. Mas com
este vento parece que pouco progredimos... (Pausa) apesar de
que... (Pausa)
ALEX: Há uma cidade no horizonte à nossa frente...
AUGUSTO: Não é possível!
ALEX: Chegamos?
AUGUSTO: Não pode ser. Esta placa e esta rua pertencem à
minha cidade.
166 ALEX: Como?
AUGUSTO: Não caminhei nada. Não saí de minha cidade até

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


agora.
ALEX: Isso é impossível...
AUGUSTO: Impossível, senhor. (Pausa. O vento cessa
lentamente. Augusto para por alguns instantes. Depois, tão
lentamente quanto o vento parou, Augusto volta a mover-se,
em direção à coxia de onde saiu. Os lírios pendurados na mão
frouxamente caída ao seu lado.)
ALEX: Para onde vai?
AUGUSTO: Eu tenho de voltar, senhor. Minhas flores me
esperam.

(Luz cai em resistência.)

3.482 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Alex entra pela mesma coxia que vem entrando


desde o início. Está, agora, sempre olhando para
cima, e parece um pouco espantado. O corredor de
luz é o mesmo desde a primeira cena. Entra andando
de costas, olhando para cima, Alberto.)

ALBERTO: (Falando para a plateia, narrativo) Sempre para


cima, quilômetros e mais quilômetros de janelas, rodeiam a
única rua desta cidade. Sempre para cima, uma aglomeração
de vidas e de pessoas dos mais diversos tipos espiam a única
passagem de um lugar a outro, o único caminho a ser seguido.
Minha família me espia partir. Minha família vê de lá de cima
minha única possibilidade de fuga e sabe exatamente para onde
vou. (Alex para de olhar para cima e o observa caminhando
de costas, lentamente) Minha mãe se debruça em uma dessas
milhares de janelas, e observa o pequeno Alberto caminhar pra
fora de sua vista. Ouve um comentário grosseiro de meu pai e, 167
em silêncio, me dá adeus. Faz isso sem mover um músculo –
ONDE REINA O SILÊNCIO?

um silêncio mais do que sonoro. Minha irmã não se despediu


de mim e não vai se despedir tão cedo. Ela não está me
encontrando, lá em cima, e tão logo procure através da janela,
não vai me enxergar aqui embaixo. Meu amor – que olha de
uma outra janela – acena. Acena como quem diz "me espera", ou
como quem pede desculpas. Acena como quem me chama para
perto de seu rosto, cabelos, mãos, como quem me avisa sobre
um futuro distante. Mas jamais acena como quem se despede.
Meu amor não se despede de mim, porque não sabe o que é ir
embora – nunca nos ensinam essas coisas. Meu amor não vai
me esperar, porque não sabe que não estou lá. Nesta cidade,
convive-se com fantasmas e seres invisíveis que invejam as
pontas desta rua. Hoje, talvez, eu já seja um deles. (Está próximo
a saída por onde Alex entrou.)
ALEX: Boa noite.
ALBERTO: (Súbita mudança de tom. Para Alex) Estou com
medo. A proximidade me assusta como um buraco que se
enviesa em minha frente. Isso não é uma fuga, senhor. Isto não
é uma desistência comum, não, não, não é, senhor. A negação
é meu único recurso discursivo disponível, vê? Serve como
exemplo do que vivia lá em cima e destoa de suas verdades
aqui embaixo. Estou com medo, senhor. Medo do senhor e dos
seus bons desejos, do seu destino e futuro, do qual logo não faço
parte. Não são boas, as noites, senhor. Não são boas. Se o senhor
permanecer aí parado por muito mais tempo, logo saberá do
que falo. É sempre melhor partir, senhor, compreende? Se não
partimos, nunca somos nós. (Sai, como quem pede desculpas,
pela coxia por onde Alex entrou. Alex permanece alguns
instantes em silêncio e sai pela coxia oposta, de cabeça baixa.)

8.683 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Entra Amanda pelo lado pelo qual Alex acaba


168 de sair. Ela usa um vestido muito longo – maior
que a extensão de todo o palco. O corredor de luz

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


permanece o mesmo. Quando ela estiver próxima
de sair pelo outro lado do palco, Alex deve entrar
e se deparar com ela. Ele parece um pouco tímido.
Permanecem alguns instantes em silêncio, até
Amanda quebrá-lo.)

AMANDA: Por que não se aproxima?


ALEX: Não posso, senhora. Não seria de bom tom.
AMANDA: Tem medo de mim?
ALEX: De maneira nenhuma senhora. O medo que sinto não
vem da senhora. (Ao público.) Temo o rompimento que sua
beleza anuncia. Se tenho algo do que ter medo, é o caminho sem
volta do qual me aproximo, se me atrevo a tocar-lhe o rosto. Em
meio a tantas luzes e a um palpitar crescente, épico, como uma
cavalgada desenfreada – a minha proximidade é o meu pesar –,
a senhora me acena com um braço de harpia e me mostra uma
infinidade de incertezas. (De volta à Amanda) E dentro deste
vestido escondem-se todos os meus desejos, o que não encontro
e o que já deixei passar. Tudo que já realizaram por mim e que
jamais ganhou sentidos suficientes para me silenciar ou me
fazer gritar para mais longe, para milhas e milhas de distância.
Seu rosto é tão precioso e rasga meu vazio – para encher com
um novo, talvez ainda mais irresoluto do que o primeiro. Seu
rosto tem sombras de um eu que nunca alcanço, e se me permito
vagar para próximo de ti uma, duas, três vezes e não mais que
isso, espero, enfim, que se aproxime de mim e me toque. Me
toque por completo, do exterior ao mais íntimo dos amores.
Você não sabe, mas te esperei a minha vida toda, e agora que
apareceu, não há condições propícias. Dói deparar-se com o fim,
mesmo que este anuncie um novo começo.
AMANDA: Me dê sua mão.
ALEX: Não posso. Já troquei certezas por sonhos e não há
silêncios como aqueles desde então.
AMANDA: Me dê sua mão. Seu remorso não começa enquanto
não toca meu vestido, não sente em seu rosto as sombras do
169
meu. Sou eu seu remorso e sou eu todos os seus desejos – não
ONDE REINA O SILÊNCIO?

leva mais do que cinco minutos. Uma verdade não leva mais
do que cinco minutos, e é mais certeira do que uma ilusão
centenária. (Aproxima-se para tocá-lo. Este permite. Em silêncio,
o beija.) Não há retorno.
ALEX: (Para a plateia) E não lhe passei boa impressão, confere?
Meus pés estão pregados e eu preciso correr para longe daqui.
(Para Amanda) Está me achando idiota, não está? (Para a
plateia) Claro que está. Não há código indecifrável neste tipo
de gesto. Não lhe passei boa impressão, não é mesmo? (Para
Amanda) Está me achando um imbecil, não está?
AMANDA: Ainda não. (Vira-se para sair, vacilante. Se aproxima
da coxia e torna a olhá-lo) Ainda não. (Sai. Seu vestido segue se
arrastando pelo palco lentamente, até o fim da cena e não deve
nunca aparecer sua ponta do outro lado. Alex vacila por uns
instantes e, então, sai, pelo outro lado do palco.)

13.897 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Alex entra pela coxia que vem entrando desde o


princípio. Vê-se o vestido de Amanda ao longo do
palco, mas não se vê nenhuma das pontas. Entra
Alfredo em pernas-de-pau, engravatado e segurando
um bloco de papel.)

ALFREDO: (Caminhando distraído pelo palco, lentamente. Vai


passar por cima de Alex, em algum momento do discurso que
segue, enquanto derruba folhas de papel) Aqui termina este
parágrafo, este sinal se esvazia e este aluno parte. Reparte e sai,
vai para o outro lado, retorna, torna a retornar. Vai-se. Dois anos
e meio para um simples retrato três por quatro, uma moldura,
um solado gasto, um... um... humm. Depois volta, repartem-
se e reveem-se, mais caminhos, mais trilhas, mais coisas mais
ou menos iguais, mais seleção natural, mais permanências
170 e retornos. Solventes, atritos, poltergeists, depressões e vales.
Eclipses lunares ante-provas, autoavaliações espelhadas,

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


reforçadas de papel maché. Sebosas partidas retornáveis
plásticas. Perfeito. Dois anos e meio para um simples rascunho
2B, borrado com o punho que esfregou, sem querer, um
apontador de metal, um questionamento preso no lado esquerdo
do crânio, um... um... humm. Análise de caso específico: vide
bula, anexa ao fim do relatório parcial. Permanecer por mais um
ou dois anos e meio para mais um caso de goma de mascar sem
sabor, caneta tinteiro velha, permuta não paga e não apaga uma
chave não devolvida. Dois anos e meio para um...
ALEX: Olá.
ALFREDO: (Sem despregar os olhos do bloco de papel) Humm?
Não esvai nada aqui, nada se transborda. Fim da linha de trem
só pode acarretar em descarrilamento. Duas portas grandes
por onde entro todos os dias, vejo ninguém do meu nível,
vejo ninguém com quem conversar. Dois anos e meio que não
despregaram do lado direito do meu cérebro aquele...
ALEX: Olá?
ALFREDO: (Sem despregar os olhos do bloco de papel) Humm?
Um par de anos e mais um pouco de efetividade, é evidente e
efetivo, um pouco mais de cargo e me encarrego de estar a par
de tudo. De par em par a galinha enche o papo, humm? Um
par de óvulos, uma gravidez de gêmeos librianos, um... humm?
Paráfrase mal localizada, citação indevida. Sugiro algumas
correções simples, posso te entregar depois de um ou dois anos,
a chave para o sucesso está na paciência, não é, meus pequenos?
Apaguem as luzes que é hora de partir, até daqui a pouco, ali na
frente, o caminho é longo para quem dá passos curtos. Amplie
a visão, meu jovem. Só desmorona a carreira sem alicerces, sem
argumentos palpáveis e sem objetivos claros, foco! Força de
vontade, onde está o seu caráter? Humm?
ALEX: Pode me dizer como se chega –
ALFREDO: Humm? Onde pensa que estamos, na idade da
pedra? Aqui, segure este trecho e faça uma leitura branca,
simples, objetiva, enumere os personagens e analise as ações. 171
Coordenação motora! Coordenação sensório-motora, sim. Dois
ONDE REINA O SILÊNCIO?

anos e meio é o suficiente, não vamos voltar atrás, sim? Se vemos


mais longe é por que subimos nos ombros dos gigantes, não? A
latitude e a longitude do saber e das instituições, coisas próprias
do ser humano. Não há vida sem alicerces firmes, resoluções
claras, planejamentos e perspectivas. (Como se cumprimentasse
alguém, súbito) Ora, meu querido, sim, sim, o pensamento é
todo meu. (Num crescente) De maneira nenhuma, não há sequer
uma grande reviravolta nestes percursos, são todos iguais,
sempre. Ninguém do meu nível, sem questionamentos, sem
pormenores e sem roupas íntimas. Selecionando alguns trechos
talvez, fazendo uns rascunhos a mão, com aquarela. Quem sabe
ainda há chance, não é? Todo caminho mal percorrido só pode
acabar num abismo. E que haja abismos para aqueles que não
sabem que caminho trilham, que não sabem onde pisam e não
notam as respostas já estabelecidas. Basta! Chega de perguntas.
Um ou dois anos, partidos. À parte, visto que uma hora ou
outra chega-se ao caminho nunca percorrido e isso diferencia os
homens dos gigantes, isso diferencia quem fala e quem escuta.
(Apoteótico) Quem discursa e quem silencia.

(Sai. Alex recolhe algumas folhas. Guarda na mala.


Dentro da mala deve haver alguns souvenirs. Ao
fim, quando faz menção de voltar a caminhar, a luz
apaga-se subitamente.)

28.039 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Alex entra pelo mesmo lado de sempre. O vestido de


Amanda ao fundo, e em alguma parte do palco, um
púlpito com um microfone. Subitamente, uma salva
de palmas que vem de lugar nenhum. Tímido, Alex
vai até o púlpito, retira da mala algumas folhas.)
172
ALEX: Um viva aos rejeitados!

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


Um viva aos insignificantes, aos medíocres, aos
incapazes!
Um viva aos vermes, aos indesejados, aos bastardos,
aos bonecos de madeira, que nunca viraram meninos de
verdade!
Um viva aos doentes, aos que não viram notícia, aos que
se tornam, no máximo, estatística!
Um viva aos infames, aos que engolem o choro, ao pão
que não se fez carne!
Um viva aos que esperam sem resposta, aos que sonham
sem esperança, um viva a todos que já esconderam um
amor!
Um viva a todos os que se escondem.
Um viva aos técnicos, aos mal-pagos, aos não
remunerados, a todos que lhe falta opção!
Um viva aos que não produzem, às engrenagens
desencaixadas que emperram, tão sabiamente, nossa
próspera máquina! Um viva aos inúteis!
Um viva aos vagabundos, aos inférteis, um viva a todos
que não são nem primogênitos, nem caçulas!
Um viva aos que desistem, aos que vão pelo caminho
errado, um viva aos tortos e aos que não sabem ler!
Um viva a todos que não entendem nada do que estou
dizendo, um viva aos estrangeiros e aos estranhos, um
viva a todos e cada um dos que não deviam existir – mas
existem!

(Não há aplausos dessa vez. De fato, a luz começa a


diminuir no instante em que Alex começa a falar, e
se extingue totalmente pouco antes dele terminar de
dizer seu texto.)

173
35.641 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA
ONDE REINA O SILÊNCIO?

(Entra Alex, mais uma vez, pela coxia de sempre.


O vestido permanece no palco, mas o púlpito
desapareceu. Alex caminha um pouco lentamente, há
um certo cansaço visível. Em determinado momento,
para, coloca a mala no chão e senta-se sobre ela.
Tira um lenço do bolso e seca o suor da testa. Expira
audivelmente. Ele, aparentemente, relaxa e começa a
assoviar uma música. Subitamente, sai de baixo do
vestido uma garota muito viva.)

ADRIANA: Ei! Ei, onde você aprendeu essa música?

(Alex cessa o som, mas ignora Adriana por alguns


instantes)

ADRIANA: (Aproxima-se de Alex e o cutuca) Onde – você –


aprendeu – essa – música?
ALEX: Não sei.
ADRIANA: Como não sabe?
ALEX: Não sei. Só não sei.
ADRIANA: Mas tem de ter vindo de algum lugar.
ALEX: Algumas coisas vêm de lugar nenhum.
ADRIANA: Está bem, não quer conversar. (Silêncio) E você,
vem de onde? De lugar nenhum?
ALEX: Não me lembro mais.
ADRIANA: De que serve uma pessoa que não sabe das coisas?
ALEX: Só não lembro, está bem? (Pausa) Já faz muito tempo que
parti.
ADRIANA: E por que foi embora?
ALEX: Também não me lembro.

174 ADRIANA (Exasperada): Você se lembra de alguma coisa, pelo


menos?
ALEX: Quase nada.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


ADRIANA: E pra onde está indo? Disso você se lembra?
ALEX: (Prontamente) Pra Rua dos Elefantes.
ADRIANA: Ah! Pelo menos alguma coisa você tem certeza. E
essa rua existe? Nunca ouvi falar.
ALEX: Acho que não.
ADRIANA: Como é que se chega lá?
ALEX: Não me lembro.
ADRIANA: (Subitamente se afastando em direção ao ponto do
vestido de onde surgiu) Bom, então vou com você.
ALEX: Como é?
ADRIANA: (Debaixo do vestido) Vou com você!
ALEX: É claro que não vai.
ADRIANA: (Saindo de lá com uma mala pequenina) Vou sim.
Você não se lembra de nada. Vai andar uns metros por aí e logo
vai se esquecer de mim. E se você se esquecer de mim... pode ser
que eu nem exista mais. Como a Rua dos Elefantes.
ALEX: Mas eu me lembro dela.
ADRIANA: Lembra é?
ALEX: Lembro. (Pausa curta) Lembro não: sei. (Levanta-se e
pega a mala)
ADRIANA: Que diferença faz, lembrar ou saber?
ALEX: Nenhuma. (Faz menção de sair pela ponta da coxia.
Adriana o segue e, antes que ambos saiam do palco, ela segura
a sua mão.)

40.008 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(Entram Alex e Adriana, cada um carregando sua


mala, as mãos dadas. Vê-se, quase na ponta oposta o
palco, a ponta do vestido vermelho. Ela deve, muito
lentamente, ir se arrastando para fora, ao longo da 175
cena. Alex está ainda mais cansado do que antes, e
ONDE REINA O SILÊNCIO?

Adriana, praticamente, o puxa pela mão.)

ALEX: Calma, calma, vamos fazer uma pausa.


ADRIANA: Outra pausa? Já chega! Você fica parando o tempo
todo! Não vamos chegar nunca!
ALEX: Vamos chegar logo, logo. Não deve faltar muito... (Param
por alguns instantes)

(Entra, pelo mesmo lado que Alex e Adriana


entraram, uma idosa de bengala, com passos ágeis e
convictos que, todavia, percorrem pouco espaço. Ela
deve levar a cena toda para atravessar o palco.)

ALEX: Ah! Por favor, senhora, a senhora poderia me dizer onde


fica a Rua dos Elefantes?
ALICE: (Sem olhar para trás) Não.
ALEX: Oh, me desculpe, senhora, a senhora está com pressa?
ALICE: Me deixe em paz!
ALEX: É que preciso muito chegar a Rua dos Ele-
ALICE: Essa rua não existe.

(Silêncio.)

ADRIANA: Como pode ter tanta certeza?


ALICE: Também estou indo para lá.
ADRANA: Mas se ela não existe, nunca vai chegar lá.
ALICE: É claro.
ADRIANA: Então, por que continua indo, se nunca vai chegar?
ALICE: Para não perder a viagem.
ADRIANA: Mas a viagem já está perdida!
ALICE: Muito pelo contrário. Indo para um lugar que não
176 existe, só resta a viagem.
ADRIANA: Mas isso não faz nenhum sentido.

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


ALICE: Me deixe em paz.
ADRIANA: (Emburrada, corre e se posiciona à frente de Alice
e vai andando de costas) A senhora vai continuar andando para
sempre, desse jeito!
ALEX: (De longe) Deixe ela em paz.
ALICE: Para sempre? O que significa isso?
ADRIANA: (Sempre caminhando de costas) Ué, pra sempre é
algo que se estende pra frente ou pra trás sem nunca acabar.
ALICE: O quê?
ADRIANA: Como essa sua viagem!
ALEX: (Aproximando-se) Vamos, basta. (Puxa Adriana do
caminho)
ALICE: Obrigada. Tenham um bom dia. Me deixem em paz. Só
me deixem em paz. (Resmunga enquanto sai. Em seguida, Alex
pega Adriana pela mão, e saem ambos. Blackout.)

89.021 QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA

(O mesmo cenário da primeira cena. O corredor de


luz, que persistiu ao longo de todo o espetáculo,
independente das variações de luz. A mesmíssima
caixa de correio na mesmíssima ponta do palco,
porém, com visível desgaste. A cena permanece
vazia por algum tempo, o silêncio é audível. Entra
Adriana correndo ruidosa, ágil e veloz vai até o meio
do palco, quando, subitamente, estaca ao ver a caixa
de correio. Parece se deparar com algo inesperado,
e neste mesmo momento entra Alex em cena. Ela
retorna um tanto intimidada e se posiciona um
pouco atrás dele.)

177
ADRIANA: É aqui?
ONDE REINA O SILÊNCIO?

ALEX: É... é um pouco aqui.


ADRIANA: Como pode ser um pouco aqui? Ou é, ou não é!
ALEX: É aqui. Mas talvez já não seja. (Deposita a mala no chão,
um tanto solene.) Já faz tanto tempo...

(Longo silêncio. Adriana se incomoda.)

ADRIANA: Bem, não vamos entrar?


ALEX: Não, não vamos.
ADRIANA: Como é que é?!
ALEX: Não vamos entrar.
ADRIANA: Mas andamos tanto! Já estava farta de tanto – e
agora nós não vamos entrar?
ALEX: Não posso entrar.
ADRIANA: Por que não?! Nem que seja pra beber uma água!
(Pausa) Essa não é sua casa?
ALEX: (Um tanto hesitante) Não...
ADRIANA: E quem mora aí dentro?
ALEX: Uma pessoa que eu conheço... ou não conheço mais...
que talvez esteja me esperando.
ADRIANA: Ora, se está te esperando, é claro que vamos entrar!
ALEX: Não posso entrar.
ADRIANA: Por – que – não?
ALEX: A casa pode estar vazia.
ADRIANA: Só tem um jeito de saber.
ALEX: É melhor não saber.
ADRIANA: O quê?
ALEX: Eu não sei se está vazia. Não sei se alguém aí dentro
me espera. E talvez seja melhor não saber. (Pausa) Talvez seja
melhor nunca atravessar essa porta, nem mesmo bater. Essa
178 porta se abriu para que eu partisse, e pode ser que se abra para
que eu retorne. Mas pode ser que não se abra. Pode ser que não
haja ninguém aí dentro, e eu não sei se devo... se me atrevo a

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


saber. É melhor que eu não saiba. É melhor que eu jamais tenha
a certeza de que essa casa está vazia, que a poeira se acumula
nos cantos e que não há ninguém que me espera lá dentro. É
melhor não saber que esta casa está morta. Esvaziada, uma casca
na qual não habita mais nada. Um abrigo de braços abertos... ou
nada além de móveis e retratos? (Pausa curta) Ou, quem sabe,
nem isso, ou só as tábuas do assoalho, os azulejos do banheiro...
Não, é melhor não entrar. É melhor voltarmos.

(Silêncio. Há mais silêncio do que nunca. Alex,


lentamente, avança em direção à Adriana, pega
sua mão, e caminha em direção à coxia por onde
entrou tantas vezes. Adriana resiste, e por um longo
instante, ambos puxam em direções contrárias. Por
fim, as mãos se soltam, Alex continua sua caminhada
em direção à coxia e, quando está prestes a sair, para
e, enchendo-se de coragem, olha para trás. A luz cai
em resistência, mas ainda podemos vê-lo seguir seu
caminho e sair de cena. Não se ouve um só ruído que
não seu caminhar se distanciando.)

(2014-2018)

179
180
181
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
T

9
182
9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS
MARTE ALIVE

(Texto para uma ou mais pessoas. Todo o espetáculo


é realizado online através de uma live, e deve se
aproveitar da câmera móvel como elemento cênico.
A primeira coisa que acontece quando o espetáculo
começa é uma banda tocar EVA – Rádio Táxi.
A(o) Vocalista canta abrindo o show. Depois, vai
cantar outras músicas em momentos esporádicos, a
escolha.)

B
OAAAAAAA NOITE GALERA! É com muito prazer que
dou início ao nosso espetáculo, desta noite, patrocinado
pela empresa de nano robôs mais filantrópica de todos os
mundos, inclusive dos que estão para acabar! É claro que eu
estou falando da Okane Bimyo Inc., a empresa que, exatamente
como eu, dispensa apresentações. E não só a Okane Bimyo está
patrocinando este show hoje, desta pessoinha aqui que vos fala,
como também começaram as doações para quem precisa de
dinheiro para ter o mínimo para viver hoje em dia. Vocês sabem,
com a situação atual do nosso novo planeta, nem todos têm
condições para implantar partículas irrigadoras e, assim, se
manterem nutridos e alimentados. Por isso, a Okane Bimyo
183
começou a doação de 6 milhões de Garegares, palmas! Palmas,
MARTE ALIVE

isso mesmo, cada Garegare está valendo 3 bitcoins, desde que o


êxodo ocorreu e a moeda online teve baixa, caso você aí de casa
não esteja nadando com economistas nos últimos tempos. Mas
chega desse nhénhénhé burocrático, que hoje a gente quer é
festa! Hoje, o mundo inteiro vai explodiiiiiiiiiiiiiiir de animação
com o nosso show! É isso mesmo que vocês ouviram, eu quero é
ver vocês se acabando de tanto curtir! Algumas pessoas tiveram
a oportunidade de vir assistir ao show aqui no nosso Bunkerotel,
em Marte, e a festa está animadíssima por aqui! Olha só! Desde
que o êxodo estava planejado para se encerrar, esta festa vem
sendo planejada, são anos de trabalho, de produção, para este
grande momento! Temos janelas panorâmicas que ampliam a
visão, milhares de vezes, em direção ao nosso ex-planeta,
ninguém aqui quer perder a demolição, não é? Não é galera?
Mas calma que você, que tá em casa, também vai poder ver de
pertinho tudo isso, porque a nossa equipe de filmagem está
preparada e em comunicação direta com a O.U.P. para que
vocês não percam o espetáculo que será o final do planeta
original, a nossa mãe gaia, o grande planeta água, a Terra!
Sempre achei esse nome tão irônico, ainda mais depois que...
enfim, vocês já sabem tudo o que aconteceu, já faz centenas de
anos que as aulas acabaram, né! Isso é coisa de museu! Quem
tem paciência pra museu! E você que comprou sua passagem
para mudar pra marte na última astronave, minha pequena eva
(evaaa), não esquece de já iniciar seu percurso direto para o
astroponto, as conexões extravias podem estar congestionadas e
é melhor chegar adiantado, hein! Você não quer vir na
velocidade na luz, não é? Também quero avisar a todos que
estão no planeta e ainda não compraram sua passagem, ainda
restam alguns exemplares, e é possível adquirir através do
interlectrom, sem custo adicional. Você que, infelizmente, não
vai poder adquirir a passagem por agora, não se esqueça de
upar sua consciência, seus receptores e também dos seus
animais elétricos para os canais capacitados o quanto antes. Isso
184 mesmo, só restam 50 minutos até o fatídico momento, mas
podem ficar tranquilos que o processo é praticamente
instantâneo e, de quebra, você vai poder assistir a nossa live sem

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


a necessidade de nenhum gadget – quem ainda usa essas
porcarias? Ei, você aí que ainda tem um smartphone, lembra
quando diziam que você tinha o mundo inteiro nas suas mãos?
Cuidado, hein, o mundo está prestes a explodir! Segundo nossa
manager, as doações já estão chegando em 8 milhões de
Garegares, palmas! Aliás, palmas não, desculpa galera, sempre
esqueço de ser inclusiva com nossos amigos Teletraquianos, eles
não têm palmas pra bater, na verdade, não têm nem mesmo um
corpo material, né, então, aplausos e aclamações! Isso mesmo,
aqui, na nossa nova moradia, o preconceito e a segregação não
servem pra nada. Só o melhor do ser humano e não-humano e
pós-humano é o que nos interessa! A propósito, as sobrepartes
estão baratinhas na loja online da Okane Bimyo, uma oferta
especial pra você que está precisando de uma mãozinha, um
pezinho, um corpo novo, mais atual, mais dinâmico, conectado.
Os crânios xtrapp estão com desconto de 40% e já vem com a
entrada green instantânea, pra você assistir a nossa live e tantas
outras sem a necessidade de aparelhos. Que tal conectar a nossa
festa direto no cérebro? Chegou a sua hora de se juntar aos pós-
humanos, super-humanos, sobre humanos, super homens,
smarthumanos, termos que de forma alguma pretendem-se
pejorativos àqueles que não aderem à evolução da espécie. Por
sinal, a O.U.P., em parceria com a Nature & Co., acaba de
anunciar o aumento das reservas naturais dedicadas aos
humanos que não aderiram à inclusão de cibercomponentes,
também chamados de “humanos naturais”. É importante
preservarmos as espécies ameaçadas de extinção, galera, porque
elas são os resquícios da nossa história antiga, o princípio de
civilidade humana que nos permitiu chegar aqui às nossas
novas colônias. Os humanos naturais são gente como a gente,
em alguma medida. Alguns estudos apontam que os espécimes
mais antigos desta classe de humanos chegaram mesmo a ser a
última geração que saiu de casa, que pôde transitar livremente
pelos espaços públicos. Chega a ser engraçado imaginar que os
seres humanos, algum dia, caminharam pela Terra, não é
verdade? Caminharam – que engraçada essa palavra –
185
caminharam por aí, como os grandes dinossauros, ou o leviatã e
MARTE ALIVE

behemot, desprendendo por sobre a superfície da Terra todo o


seu mal-estar. Houve, inclusive, quem pensasse que, assim que
o homem natural deixasse de caminhar por sobre a crosta da
mãe gaia, ela iria se reerguer e se curar, desfazer cada pequena
mudança climática que os homens naturais foram capazes de
causar. Como subestimam os nossos antepassados e a sua
capacidade de ação, não é mesmo? Você que está aí assistindo a
nossa live e não está aqui no nosso Bunkerotel, que faz parte de
nossa geração e não tem mitologias, conhece alguém que, hoje
em dia, não tenha espírito para ser entrepeneur? As crianças
atuais já nascem com o espírito da gestão e da economia criativa
e sustentável, e também com alguns aprimoramentos eletrônicos
aqui e ali... há muito tempo a pedagogia nos ensinou que é
preciso valorizar a infância sensível, por isso mesmo não deixe
de comprar o FARM MYBABY, o melhor simulador de
fazendinha para o seu filhote, e introduza ele, o mais cedo
possível, não só a natureza (morta) como também ao conceito
de economia sustentável! Já está à venda na nossa página, basta
apenas virtulinkar comigo que você já vai ter acesso imediato –
lembrando que os animais presentes no simulador são apenas
códigos e dados, e não exemplares elétricos, hein! Nossa equipe
já respondeu a essa dúvida milhares de vezes... eu sempre falo
disso quando dou entrevista galera, vamos ficar mais
conectados, certinho? E como estão os nossos espectadores que
estão assistindo à nossa live aí do quase ex-planeta Terra? Corre
que já já acaba hein! É bom saber que o mundo está pra acabar,
a gente aproveita melhor o finalzinho, dá umas festas, se diverte.
A última mordida é sempre a melhor! Com a próxima música
que eu vou cantar, eu quero ver vocês pulando tanto que, se a
Terra fosse plana, ela viraria! Desculpem trazer isso à tona, mas
estamos, mais uma vez, tendo que discutir com os terraplanistas,
acreditam nesse absurdo? Parece que voltamos, sei lá, pros anos
2000! Anos sombrios hein, amigos, sombrios. Mas, hoje, com a
transmissão ao vivo do planeta sendo destruído, não haverá
186 mais dúvida sobre o formato da Terra... até porque, não haverá
mais planeta, né! Ai, é de matar, viu, me divirto com essas
coisas... Olha só, chegou aqui no meu interprompt a informação

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


de que não só estamos ao vivo para nossa nova colônia e para o
nosso ex-planeta Terra globo geoide corpo celeste mamãe gaia
mundo nosso lar, como também estamos ao vivo para o
passado! Estamos falando diretamente com os anos 2000, é isso?
Puxa, que prazer hein! Agora entendi melhor esse set list que
escolheram pra eu cantar, por isso, me pediram pra instalar o
pack de infos sobre a virada do milênio. Talvez essa seja a
primeira retrotransmissão que vocês recebem, hein, vocês já
falaram com alguém do futuro aí? Espero que eu esteja
conversando de uma forma que vocês consigam entender, não
temos registros muito claros do vocabulário de vocês, talvez eu
esteja dizendo coisas incompreensíveis. Desculpem a
brincadeirinha agora há pouco, hein, os anos 2000 foram
incríveis, tiveram coisas muito boas... Principalmente, na
primeira década. Não vou citar nada que é pra ninguém ficar se
sentindo excluído, mas tinha muita coisa boa sim. Nós somos
frutos de civilizações primárias como vocês! Por isso, nosso
muito obrigado. Vocês nos definiram, é uma honra pra mim ser
o primeiro contato do futuro com vocês. Segundo meu pack de
infos, não vou dizer, com certeza, por que eu não sei muita coisa
de história e, de verdade, quem é que quer saber né, acho que
foi nessa época que a humanidade ficou presa de vez, nunca
mais saiu de casa. Que loucura, galera, manda aí nos
comentários como foi essa experiência maluca. Vamos interagir!
Interatividade! Hoje em dia, pra gente é tão normal, ninguém
nunca nem viu o céu por aqui senão através de uns chips e
placas eletrônicas. Tem gente que fica em dúvida se essas coisas
existem (ou existiram) de verdade. Mas o que que quer dizer
“verdade”, não é?, é um termo já meio ultrapassado de se usar
nesse sentido. Como que o céu do meu apartamento no
Bunkerotel não é de verdade, gente? Claro que é, eu tô ali, tô
vendo, a experiência, a vivência e a percepção do indivíduo é só
o que resta agora, que a gente pode implantar as realidades em
nós mesmos. Aliás, galera aí dos anos 2000, que loucura, como é
que vocês estão me assistindo? Via smartphone? Puxa, só de
pensar em quantos avanços tecnológicos a gente já viveu... daí
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pra cá, a tecnologia avançou muito sobre nós, avançou mesmo,
MARTE ALIVE

como um animal feroz avança sobre sua presa, estraçalhou


nossa carne, dá pra ver o sangue jorrando pra todo lado se você
prestar atenção... o pessimismo tá na moda gente, liga não. Acho
que foi aí na época de vocês que algumas coisas foram
inventadas, não foi? O já antiquado ensino a distância, o serviço
de entregas totalmente automatizado... As lives se popularizaram
nessa época também, né? Puxa vida, quem diria, vocês meio que
inventaram isso aqui, caramba, uma salva de palm- erm,
aplausos e congratulações para nossos antepassados gente! Eu
diria que vocês são revolucionários! Desbravadores! Assim, não
que isso aqui seja uma live live, né, porque eu de verdade não
estou exatamente vivendoooo não. Mas até aí, vocês também
não, né! Quer dizer, o que significa estar vivo exatamente né.
Eu, de fato, nem existo de verdade, eu sou só uma projeção
metacamprial... Algumas pessoas aí dos anos 2000 diriam que
eu não sou “de verdade”, que eu não sou “real”, que eu não
estou “presente”, mas, gente, que que tudo isso quer dizer de
verdade? Nossa, perda de tempo esse debate viu, vou te falar, a
gente nem discute mais essas coisas, eu não preciso ser “real”
pra ser “de verdade”, ok? Hoje, já é impossível diferenciar uma
realidade fabricada de uma realidade qualquer. Vocês aí dos
anos 2000 estão meio começando a inventar isso, não é? Olha aí,
visionários! Aliás, olha isso que eu falei agora há pouco, onde
que uma realidade “qualquer” vai ser melhor que uma realidade
“fabricada”, especialmente pensada pra você, pra mim, pra nós?
É muito conveniente, e não custa muitos Garegares. Mas não se
apressem, logo logo, vocês estarão por aqui também. Terão de
se acostumar a conviver com robôs e essas coisas. Vocês já meio
que convivem com uns robozinhos primários, não é? Uns robôs
aspiradores, essas maquininhas de lavar roupa, uns robôs em
site de internet, não é isso? A casa de vocês já é smart? Já já, vocês
estarão ultrapassados. Cuidado viu, é a ascensão das máquinas.
Caramba, e pensar que, hoje em dia, a gente nem sabe mais o
que é e o que não é robô. #somostodosrobôs, pra falar aí nas
188 gírias de vocês. Da última vez que o presidente da O.U.P. fez o
teste de Turing, ele foi lá vestindo uma bermuda dourada e
umas luvas de box, e não teve quem soubesse se o danado era

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


robô ou não. Atualmente, é impossível dizer, mesmo. Vão se
acostumando, viu? Agora, eu quero voltar a falar com meus
caros espectadores do planetinha azulado na borda mais brega
da galáxia, nossa grande matriarca gaia, o Planeta Terra – quase
virando ex-planeta já, hein. Vocês estão me assistindo aí?
Aproveitem enquanto é tempo, antes de o corpo material de
vocês se extinguir e ficar só a consciência. Tem muitos fantasmas
aqui nessa live, uma galera num planeta prestes a explodir,
outra galera que, atualmente, já tá toda morta. Que loucura,
gente morta já tem acesso a internet. Pros meus amigos aí da
Terrinha, queria dizer que vocês estão exatamente no lugar
errado e na hora errada, uma pena, realmente, mas, pelo menos,
podem assistir a nós que somos os restos da humanidade, a nata
desse leite azedo – uma coalhada fit! Com granola! Nós somos
valiosíssimos, quase não existem mais exemplares de vacas que
não sejam elétricas... Somente os escolhidos podem apreciar
uma iguaria como essa, comer é um ato supérfluo, então,
sintam-se honrados. Por isso, aproveitem bem o restante de
tempo que vocês têm, porque já está pra acabar. Vamos lá!
Quero ver todo mundo dançando! "Dance bem, dance mal,
dance sem parar! Dance bem, dance até, sem saber dançar" –
quem que não sabe alguma coisa hoje em dia. É só baixar o pack
de infos e pronto, já tá atualizado. Um ser humano atualizado
nunca entraria numa guerra. Guerra é tão antiquado, demodê,
anos 2000. Olha só, já chegamos a 10 milhões de Garegares, a
nova colônia, a velha colônia, o passado e o futuro estão juntos
pela paz do universo, o sustento dos nossos smarthumanos. A
caridade é algo que nunca sai de moda. Faz muito sucesso nas
redes sociais, especialmente se for assim, meio cool e tal. Faz
mais sucesso que revolução. Por exemplo, a revolução das
máquinas não teve cobertura da imprensa. Inclusive, a imprensa
ignorou por um bom tempo, fingiu que não era com ela... a
imprensa, os extintos governos, as nações, o próprio ser
humano, mas aí, de repente, igual um cavalo de tróia... ah, vocês
já sabem né. E se não sabem vão saber logo logo. E se não
souberem e não quiserem saber, pra que saber também, quem
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perde tempo com história. Eu sei, eu sei, eu estou me repetindo,
MARTE ALIVE

mas dizem que é assim com a história, não é? Primeiro, como


tragédia, depois, como farsa. E depois talvez não repita mais.
Depois talvez o silêncio. O vazio. Será que o existencialismo vai
voltar à moda por agora? Quem poderia imaginar uma coisa
dessas. Mas também, quem imaginaria que a O.U.P., a
Organização Universal de Planejamento, pra quem não conhece
a sigla, iria decidir demolir o planeta original, o nosso planeta
água, que, agora, quase nem tem água mais, pelo menos não
com o pH ideal para consumo humano. E se pros humanos é
ruim, imagina pra nós, pós-humanos! Decisão acertada do nosso
presidente universal, tá aí um planetinha que só vinha
ocupando espaço mesmo. Dava pra passar uma bela duma
conexão extravia por aí, e agora, com o espaço vazio... ou talvez
vire um centro de produção de partículas irrigadoras, porque já
batemos os 12 milhões de Garegares! Eu sei, eu sei, tem um
legado que o nosso ex-planeta nos deixa, muita coisa aconteceu
aí mas... who cares! Estamos nos aproximando vertiginosamente
do momento da explosão. Em breve, vamos começar a nossa
contagem regressiva. Chegou a informação aqui, no meu
interprompt, que está havendo alguns protestos contra a
demolição... sinto muito, mas todos foram informados com
antecedência, confiram as caixas de spam de vocês, caso não
tenham visto o iNFORM. Aliás, protestos só atravancam mais as
conexões extravias e podem acabar impedindo alguns de
realizarem o êxodo com efetividade. Vocês não querem ser
responsabilizados pelas mortes de milhares de pessoas que não
conseguiram migrar a tempo, não é? Cada pessoa que não
puder chegar ao astroponto a tempo é uma pessoa que,
infelizmente, vai desaparecer pra sempre, juntamente com
nosso planeta. Segundo o planejamento, mais de 50% da
população pode realizar o êxodo e, dos que não puderam,
aproximadamente, 8% já realizaram a transferência de
conscientes para o nosso banco de dados e já estão vivendo uma
realidade especialmente criada para eles, com carinho e afeto.
190 Todos são bem-vindos, seja material ou virtualmente. A morte
não significa nada. E vamo que vamo, que a nossa live e a vida
do planeta terra já está se aproximando do fim, quero todo

9 DRAMATURGIAS PARA PESSOAS E COISAS


mundo aqui muito conectado, hein, conectados comigo! Que
delícia, chega a me dar um tesão essa conexão toda, eu morro de
tesão quando tô nessa conexão com vocês, a conexão é o amor!
O amor é o nosso bem maior, a dádiva humana que sobrou e
veio na nossa espaço-arca e, agora, invade e contamina o
universo inteiro. E não é qualquer amor não, não é o velho
amor, é um amor modelo novo, 3.0, inovador e reinventado,
feito sob medida, completamente hipercampeado e com
otimização do gasto de energia. Esse é o momento, amigos. Dê
um abraço no seu humano e/ou criatura ao lado, vamos celebrar
a nossa humanidade, vamos lembrar a todo o universo do que a
humanidade é capaz! A única espécie capaz da humanidade é a
humanidade! Escutem, dancem, se celebrem! E se der vontade
de transar, já transa também! Se conectem! Crescei e multiplicai-
vos, essas coisas, Vambora! Vambora que estamos chegando ao
nosso orgasmo, o final EXPLOSIVO do nosso show! Essa é a
última noite do nosso planetinha azul, essa vai pra todas as
noites que não existiram e pra todas as que também não vão
existir mais! (Canta. Ao final da música, realiza a contagem
regressiva) É isso aí, galera! Obrigada pela presença de todo
mundo, queria agradecer a todo mundo, é muita gente pra
agradecer e dizer o nome, então, queria agradecer, pessoal e
especialmente, a todo mundo, todo mundo comigo, vamo lá!
Dez, nove, oito, tá bonito!, seis, cinco, obrigado, galeraaaa, dois,
um.

(2020)

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Obra preparada pela Assis Editora Ltda. - ME
(34) 3222-6033 (MG)
AE.2008-03.02.2021(175)-21-0127(N)
eBook PDF 16x23cm cor 1x1
em 2 de fevereiro de 2021.

Softwares/Tipografia: Palatino Linotype, por


Hermann Zapf, 1948; Agency FB, por Agência-FB,
1995; Biko, por Marco Ugolini, 2013.
Cambria ttf serifa, coleção de fontes Microsoft
ClearType®, por Jelle Bosma, 2004. | QR CODE
qrcodefacil. | Adobe x64: InDesign 15.1.1,
Photoshop 21.2.0; Corel Draw 22.1.1.523

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