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Rupturas e resquícios do controle militar na ditadura – rua, arte e manifesto1

Lara T. de Matos2

RESUMO

As ditaduras e seus processos de terrorismo e controle são importantes marcos na


história do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. É um fato conhecido que os regimes
militares destes países trabalharam na tentativa de “moldar a cultura e o
comportamento” e ainda, tinham um foco constante no trabalho de despolitização da
sociedade. Hoje atravessamos momentos de evidente transformação desde as
aberturas democráticas, transformação que pode ser vista no confronto de
posicionamentos sobre todos os tipos de temas sociais, e mais que isso, na
visibilidade/notoriedade/importância que estes confrontos ocupam. Temos uma
organização virtual dos movimentos, através das redes sociais, mas uma concretização
física (e parece, decisiva), que se dá na rua. A rua é o palco final dos confrontos de
ideias, é nela que se expressa a concordância ou a baixa adesão sobre determinado
posicionamento político, como uma “prova final” de determinada organização ou
causa. Este artigo busca pensar o que se rompe e o que permanece desde o regime
militar no Brasil em relação a atual circunstância da rua como espaço latente da
manifestação política.

Palavras-chave: ditadura, política, arte, manifestação, rua.

Introdução

O primeiro contato com a história recente da América Latina, mais


especificamente do Brasil, Chile, Uruguai e Argentina, - história marcada por
articulações políticas civis em conjunção com as forças militares que resultaram em
confrontos e ações violentas cometidas contra civis opositores ao regime, é sempre
um encontro com uma parte esquecida, ou ainda um reencontro com uma parte da
história brasileira relegada ao imaginário, afinal do ponto de vista da minha
experiência cotidiana no meio acadêmico fora da área de história, mesmo em se
tratando de uma vivência acadêmica nas ciências humanas - é pequena a importância
1
Trabalho exigido como parte da avaliação da disciplina Democracia e autoritarismo na América
Latina, ministrada pela professora doutora Mariana Joffily, no primeiro semestre de 2015 – Faed.
2
Doutoranda em Teatro pelo PPGT – UDESC.
destes temas para outras áreas de conhecimento ou ainda, existe uma indisposição
para falar sobre este longo período da história recente nacional, seja por descaso, e
muito recorrentemente por desconhecimento.
Meu primeiro contato de fato não foi um simples, em se tratando da disciplina
que gerou este trabalho, e sim um profundo mergulho nas problematizações acerca do
tema, principalmente no que diz respeito ao distanciamento da dualidade bem/mau
para tentar compreender a lógica das ações dentro dos contextos, e é claro que este
movimento, de olhar os fatos com cuidado é ainda mais delicado, pois é necessário
não deixar que a dualidade se imponha, mas também é preciso não esquecer as
vítimas diretas de determinadas ações. Esse processo mostra o quão sutil é o trabalho
o historiador, ou o estudante da história recente, quando em contato com os relatos e
análises do período das ditaduras militares nestes países, e em especial no Brasil.
Na tentativa de dialogar com o tema da disciplina, que para mim foi um
semestre intenso e um momento essencial para ampliar minha visão sobre o assunto e
sobre as articulações entre política, estado, projetos sociais, interesses de classes, de
partidos e ideologias. As descobertas que fiz foram muito além do conhecimento
histórico e muito além das problematizações simples e recorrentes, entre as
descobertas que posso destacar esta a minha melhor compreensão de como se dá a
história e seus modos de produção, e de como ela se molda de acordo com o ponto de
vista e as possibilidades de variantes inimagináveis de olhar sobre um fato, assim
como a compreensão do contexto atual a partir de uma relação direta com o passado,
não muito distante neste caso.
A escolha pela rua como o espaço a ser analisado se dá principalmente pela
importância da rua como espaço aglutinador das capacidades políticas, como espaço
destinado às manifestações que dizem respeito a uma determinada comunidade, em
conjunção com as regras sociais estabelecidas por determinado país e cultura. A rua é
o espaço que une as classes, palco das disputas de poder, de espaço, de visibilidade.

Roberto Lobato Corrêa (1989) define a grande cidade capitalista como um


conjunto de diferentes usos justapostos entre si. Esse espaço se define por
ser: simultaneamente fragmentado e articulado, cada uma de suas partes
mantém relações espaciais com as demais, ainda que de intensidade muito
variável. Essas relações manifestam-se empiricamente por meio de fluxos
de veículos e de pessoas associados às operações de carga e descarga de
mercadorias, aos deslocamentos cotidianos entre as áreas residenciais e os
diversos locais de trabalho, aos deslocamentos menos freqüentes para
compras no centro da cidade ou nas lojas do bairro, às visitas aos parentes
e amigos, e às idas ao cinema, culto religioso, praias e parques. Quando
pensamos na complexidade de usos dos espaços da cidade, já estamos
colocando nossa atenção nas práticas de significação que articulam os
sentidos da rua dentro do marco cultural no qual esta está inserida.
(CARREIRA, p145)

A rua é o espaço inóspito da negociação, que vai além da compra e venda, a


negociação das liberdades sutis do indivíduo junto às imposições das leis por aqueles
que as “fazem valer”. É a rua o objeto para análise das interferências biopolíticas que
tratarei mais adiante.
Nesta busca por trazer meu tema de pesquisa sem forçar demais a ligação com
a temática da disciplina e ainda pensar nossa conjuntura social atual encontrei o que
poderia ser um tema explorado neste artigo, os resquícios da presença da ditadura
militar que moldam ainda nossa relação com o espaço público, mais especificamente
a rua.
Como estes resquícios interferem diretamente nas percepções sobre
legitimidade do espaço público como espaço de articulação de movimentos sociais, de
apresentação de temas a serem discutidos publicamente, expressão artística política ou
não, reinvindicação, protesto e festas, e como os mecanismos de controle agem ainda
hoje sob as orientações e concepções da rua a partir da visão da ditadura militar? Na
primeira busca por articular estes vários pontos, surge facilmente nas redes sociais e
mecanismos de busca na internet a questão da desmilitarização da polícia, o muito
discutido atualmente, fato de a Polícia Militar ter sido criada durante o AI-5 da
ditadura militar brasileira.
Para pensar esses pontos específicos, elenquei cinco tópicos bastante
interseccionados, mas que me servirão metodologicamente para articular meu
pensamento ainda tateante no escuro controverso do primeiro contato com um tema
tão complexo. O primeiro tópico trata da despolitização como projeto político da
ditadura, neste aspecto procuro compreender até que ponto esse processo foi
intencional, projetado, ou uma consequência do método repressor utilizado pelo
regime. O segundo ponto, os moldes de cultura e comportamento pregados pela
ditadura, me interessam principalmente porque agem diretamente sobre o corpo do
indivíduo, e faz com que ele perceba também o outro a partir de seu corpo e códigos
de conduta, para pensar arte é fundamental pensar o corpo, e para pensar a rua
também.
O Terceiro aspecto que me interessa é a abertura - aspectos negados e
proclamados da ditadura, ou seja o que dos dois pontos anteriores foi negado ou
realçado como ações da ditadura logo a seguir da abertura democrática. O quarto
aspecto trata dos resquícios na atualidade, a rua democrática hoje, a repressão e como
a arte dialoga com estes resquícios hoje, e a isso ligo o quinto ponto tratando de
pensar a resistência e reconfiguração do processo de articulação do corpo na rua, seja
daquele que age (artistas, militantes) quanto daquele que vê (trabalhadores,
comerciantes, polícia, moradores de rua) sob a perspectiva da biopolítica.
É claro que não é possível neste artigo, dar conta de todos os aspectos
(principalmente no que diz respeito a estatísticas, pesquisa de campo, diferença entre
regiões, ou aspectos psicossociológicos) que envolvem as categorias de pessoas que
frequentam e utilizam a rua, os aspectos jurídicos que se transformaram ou estão
estacionados, as tecnologias, entre outros, por isso insisto, este texto é um primeiro
movimento de articulação das ideias, um movimento cuidadoso, mas ainda impreciso.
Assim, este texto tem como intensão condensar ideias, ou ainda, listar impressões
iniciais na tentativa de rever um passado histórico recente, na busca de estabelecer
pontes com ações sociais do presente que misturam em sua estrutura aspectos de
política combinados com estratégias estéticas, mesmo quando estão completamente
desinteressados em ser artísticos.
Compreendo as limitações da proposta de análise, primeiro porque está dentro
de um tema pouco discutido ainda sobre a ditadura no Brasil, uma análise mais fria
sobre os aspectos repressivos criados na ditadura que permanecem na cultura
brasileira, isso somado à ebulição de manifestações nas ruas, que tiveram maior
evidencia nos últimos tempos, mas que estão longe de possuírem uma análise madura.
Primeiramente porque não temos a distância necessária para ver as manifestações de
junho de 2013 e as que seguiram, depois porque este trabalho leva um tempo para ser
analisado dentro das consequências que imprimem, principalmente porque estamos às
voltas com um elemento relativamente novo, mas que possuem um papel fundamental
na articulação política atual, as redes sociais e a internet como um todo.

Despolitizar
Assim, o que primeiro me parece importante é pensar o papel “despolitizador”
ou neutralizador do pensamento político na sociedade brasileira: onde e como agiu a
ditadura para “amansar” o envolvimento político do cidadão e quais foram as
consequências surgidas desta investidura, sobre isto, Marcelo Ridenti diz:

As grandes massas começavam a conquistar uma consciência democrática


quando veio o golpe, com o intuito de estancar esse processo de
emergência de novos sujeitos de direito, crescentemente críticos da
excludência econômica, política e social a quem sempre foram submetidos
os trabalhadores brasileiros. Nesses termos, era de se esperar que a
resistência contra a ditadura fosse empreendida pela camada mais
politizada dos trabalhadores manuais, ainda minoritária, e, após o golpe,
desorganizada, bem como por uma parcela das camadas médias –
especialmente as mais intelectualizadas -, que haviam crescido
numericamente sobretudo a partir dos anos 50, quando adquiriram direitos
de cidadania que seriam afrontados após 1964. (1993, p 66)

É necessário fazer estas análises sempre tentando desvencilhar as dos


esquemas dicotômicos para trazer à tona as “ambivalências”, como propõem Denise
Rollemberg Samantha Viz Quadrat na introdução do livro A construção social dos
regimes autoritários.
Estas ambivalências são fundamentais para pensar o papel da sociedade civil
no apoio à ditadura militar, e neste sentido levar em consideração o quanto o regime
militar era representante, ou ainda, colocava em prática o projeto repressivo de uma
pequena parte da sociedade em relação à determinadas maneiras de pensar ou agir, e
ainda à utilização de determinados espaços. No entanto, é preciso estar atento ao
perigo destas conjecturas, para não cair na afirmação do argumento dos militares,
ainda hoje utilizado, de que o povo estava do lado da ditadura.
Algumas questões que surgem, é possível traçar linhas que conectam as ações
militares durante a ditadura com as opiniões sociais ainda vigentes e cada vez mais
visíveis na sociedade brasileira? Afinal, se a ditadura promovia determinados tipos de
comportamento, pensamento, ação social e utilização de certos espaços públicos a
partir da opinião de uma parcela da sociedade, podemos talvez ainda hoje localizar
estas conexões no respaldo que ainda possuem certos mecanismos de repressão ainda
atuantes ou cada vez mais elaborados?

Reprimir
A primeira onda de repressão, no Brasil, foi, portanto, típica da maioria
dos golpes, no sentido de ter-se voltado contra os partidários do governo
deposto. A segunda onda de repressão ocorreu em fins da década de 1960,
com o surgimento de uma esquerda armada. Essa repressão foi mais brutal,
mais generalizada e mais centralizada que a onda anterior, mas ainda foi
bastante seletiva, uma vez, que a esquerda armada era pequena e
desprovida de apoio de massa. O regime militar criou as temidas unidades
especiais, policial-militares, os Departamentos de Operações Internas –
Comando Operacional de Defesa Interna (DOI-Codi), para erradicar a
“subversão” nos estados e trocar informações sobre a esquerda armada
com outros órgãos. [...]
Diferente da primeira onda que visou trabalhadores, militares, comunistas
e partidários de Goulart, esta nova onda concentrou-se nos obscuros
grupos da esquerda armada e suas supostas bases de apoio, que incluíam
estudantes, acadêmicos, jornalistas e clérigos. O Ato Institucional n. 5 (AI-
5), de fins de 1968, suspendeu o habeas corpus para crimes contra a
segurança nacional, conferindo às forças de segurança uma tremenda
liberdade de ação no tratamento dos presos. Os assassinatos e
desaparecimentos políticos aumentaram durante essa fase, que durou até
cerca de 1975. (PEREIRA, 2010 p. 56-57)

São fatos, a repressão da ditadura aos movimentos sociais, a perseguição aos


opositores do regime, como a ilegalidade dos partidos, a perseguição, prisão, tortura e
morte em alguns casos dos membros dos partidos e outras figuras opositoras, a
censura de imprensa e da arte. Mas também é frequentemente citada por teóricos a
falta de coerência dentro das diretrizes que guiavam as ações militares, o que de certa
maneira coloca em questão tanto esta lógica da opinião pública que guiava o regime,
quanto a própria lógica dos mecanismos de repressão utilizados na ditadura,

Para compreender a natureza paradoxal do regime autoritário é


fundamental perceber a influência de certos traços da cultura política
brasileira. A própria tendência a acomodar no “barco” do poder grupos
diferentes, com projetos díspares e às vezes contraditórios, é parte da
tradição política do país. (MOTTA, 2014 p 58)

Parece que esta dinâmica paradoxal da política se estendeu também aos outros
mecanismos de repressão, assim, se estas diretrizes sobrevivem ao tempo, e
sobreviveram à abertura democrática, estão elas intimamente ligadas com o
pensamento social? Ou, para além disso, podemos trazer ainda algumas questões que
aparecem em alguns debates historiográficos: o que é a democracia restabelecida
depois do regime militar brasileiro? O que se esperaria de uma democracia depois de
vinte anos de ditadura? Quais as possibilidades democráticas vislumbradas sobre uma
sociedade sob um regime militar? O que é uma democracia? Quais as diferenças entre
a ditadura militar e a democracia no Brasil, no que diz respeito ao mecanismo sutil de
organização social política que se amplia e age no corpo?

O que ficou daqueles tempos, marcas e resíduos

Levando em consideração o que diz Hannah Arendt sobre a sociedade política


de cenário perfeito, repleto de diferentes posicionamentos políticos em discussão,
onde a liberdade se caracteriza exatamente pela efervescência de opiniões
divergentes, certamente podemos localizar na ditadura militar brasileira um trabalho
evidente na despolitização social através da repressão, ao tornar ilegal alguns partidos
políticos, principalmente os da esquerda e a perseguição das figuras centrais da
esquerda. A ação da ditadura de calar os opositores, utilizando a proibição da
existência dos partidos e das manifestações públicas, é um fato e é preciso pensar
como ela é residual ainda hoje na opinião pública e como influencia na relação com a
manifestação urbana.
Outro fator importante para pensar a ação da ditadura, a repressão sob forma
de censura que atinge diretamente o teatro principalmente nas capitais. Esta ação
repressiva ainda é muito lembrada por diretores e atores de teatro no Brasil, no ano
passado no Centro de Artes da Udesc, em lembrança aos cinquenta anos do golpe de
estado de 1964, os professores André Carreira e Edélcio Mostaço, para uma plateia
curiosa formada por alunos de graduação majoritariamente, deram depoimentos sobre
suas experiências como artistas de teatro durante a ditadura, as prisões, os
desaparecidos no caso de Mostaço, a relação com a censura, a necessidade de ensaiar
um espetáculo especialmente para o censor, que compreendia o diálogo com este
censor, os mecanismos utilizados para burlar os cortes de texto, os cortes de cena e
ainda as prisões e cancelamento de espetáculos pela polícia.
Outras questões que vem à tona quando pensamos a ditadura a partir de um
ponto de vista do corpo e da presença e interação do corpo com o espaço público, é o
que sobra da relação que a ditadura instaurou articulando o pensando com teorias que
complementam ao entendimento sobre política e fazem a ponte entre teoria política,
história, e o corpo e seus processos de moldagem política.
Corpo e política hoje

Estas questões trazem em si, primeiramente a problemática do lugar da arte


hoje e como ela se difunde na cultura atual, como sua prática não está restrita a certos
espaços, esta arte traz em si, como princípio um envolvimento político com o espaço
que habita. Uma das características da performance que aparece a partir dos anos
1960 e 1970 é um posicionamento político fortalecido e expandido, mesmo quando
não se posiciona politicamente sobre uma lei ou regra apenas, mas quando extrapola o
pensamento do que é político, ultrapassando a ideia de que o político se situa somente
no ambiente “onde se faz política”. A política aparece hoje para a arte como um dos
componentes da vida cotidiana, como diz Oscar Cornago sobre o teatro e a política,

Ahora bien, desde el teatro político de Erwin Piscator hasta las últimas
acciones urbanas, los acercamientos de la escena a la realidad y los modos
de entenderla no han dejado de variar. En respuesta a una realidad
mediatizada por las tecnologías de la imagen, en los últimos años se asiste
a una reivindicación de una realidad humana en bruto, que recupere al
individuo más allá de tecnologías mediáticas y discursos teóricos; se trata
de la defensa de una subjetividad más allá de intelectualismos, que vuelva
a presentarse, antes que nada, como una suerte de enigma, el enigma que
esconde toda vida humana en su expresión más irreductible como
presencia. Con el fin de acentuar esta dimensión física, sensorial e
inmediata, la escena se revela como un instrumento idóneo. El plano
político e histórico que aparecía de modo explícito en el teatro documental
de otras épocas queda ahora como telón de fondo de una realidad personal
y cotidiana, de las pequeñas realidades de personas anónimas en muchos
casos, esa intimidad azarosa y poética que Boris Vian bautizó como la
espuma de los días. (CORNAGO, 2005 p 3)

Acredito que a nudez na performance segue esta mesma lógica política atual
que acomete o teatro, a percepção de que a ideia sobre onde se concentra e como age
a política em nossos dias se amplia, ao mesmo tempo em que se complexifica,
deixando de se concentrar em um ambiente, ou à algumas pessoas, ou funções que
determinadas pessoas exercem.
A política se constrói em todos os lugares, por todas as pessoas, e é no corpo
que ela se mostra e se concentra cada vez mais fortemente. Principalmente porque o
corpo do indivíduo já não pode ser segmentado, o corpo e a identidade estão
completamente atrelados e a luta hoje se concentrar em liberar as percepções que
surgem do corpo e pintam a identidade e o comportamento, assim como aquelas que
fazem o caminho inverso, partem do comportamento e da identidade e são expressas
no corpo.
E neste sentido o primeiro conceito importante para embasar meu olhar sobre
essa nudez hoje é o de Biopolítica, no que diz respeito ao corpo como campo político
direto, e campo de controle direto, na primeira formulação sobre biopolítica Foucault
diz:

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela


consciência ou pela ideologia, mas também no corpo e pelo corpo. Para a
sociedade capitalista é o biopolítico que importava acima de tudo, o
biológico, o somático, o corporal. O corpo é uma realidade biopolítica; a
medicina é uma estratégia biopolítica. (FOUCAULT apud FARHI NETO,
2010 p 34)

Farhi Neto, explica este posicionamento de Foucault desta maneira: “A


biopolítica aparece como a prática política de apreensão social dos corpos dos
indivíduos, no capitalismo; e a medicina como instrumento de controle político.”
(2010, p 34)
Ou seja, no capitalismo as frentes de ação do controle aparecem atreladas às
estratégias de doença e cura, de contenção de doenças, de programas de saúde, sejam
os governamentais, ao que a indústria farmacêutica se alia, seja os privados, e aí,
acredito, aparecem as lógicas culturais de padrões corporais baseados na saúde e na
doença.
A terceira formulação de Foucault para biopolítica, segundo Farhi Neto, liga
sexualidade e medicina, e traz à frente do conceito a capacidade de controle da
biopolítica que inverte as noções de controle normalmente conhecidas, principalmente
aquelas que se baseiam na hipótese repressiva3:

O dispositivo de sexualidade não é o poder que esconde, que reprime, que


recalca, em nome da civilização burguesa, o sexo, e com ele nosso sentido,
nosso corpo e nossa identidade autênticos. Pelo contrário, é no afã de

3
“Para refutar o viés revolucionário da liberação sexual, Foucault vai negar a validade dos dois
corolários da hipótese repressiva. Ele vai contestar a realidade histórica da interdição do discurso sobre
o sexo e a realidade histórica de que os mecanismos de poder operam no sentido de restringir a
sexualidade a alianças conjugais legítimas.”(86).
produzir as respostas adequadas a essas questões, que nos tornamos os
sujeitos do dispositivo de sexualidade. “ Ironia deste dispositivo – nota
Foucault - : ele nos faz crer que se trata de nossa ‘liberação’”. Quanto mais
nos debatemos na areia movediça da sexualidade, tanto mais nos
afundamos nela. (FARHI NETO, 2010 p 84-85)

Este ponto da terceira formulação me parece extremamente importante, no que


diz respeito a não repressão de determinada “busca por respostas” e sim, e talvez, até
um incentivo às tentativas de reconhecimento das identidades na sexualidade. A via
de ação da biopolítica neste caso é o incentivo, a liberação dos discursos sobre a
sexualidade. Ela age não na repressão, mas na capacidade de criar mecanismo que
partam do controle sobre si próprio,

A exigência de colocação do sexo em discurso, exigência que se torna cada


vez mais frequente e minuciosa, cada vez mais penetrante, desvia-se do ato
sexual em si para todos os pensamentos e sentimentos que o circundam. A
“carne se torna a raiz de todos os pecados”; o momento mais importante
do pecado não é mais o ato sexual ilícito, mas a sua raiz, as tentações da
carne – mal disperso e camuflado. É preciso o penitente persegui-las,
descobri-las nos seus ínfimos esconderijos, nas suas primeiras
manifestações, na imaginação que vagueia, nos pensamentos, desejos; é
preciso encontra-las, essas insinuações da carne, nos detalhes do dia-a-dia,
e expurga-las pela confissão e penitência. (FARHI NETO, 2010 p 87)

A partir desta visão sobre a sexualidade e a lógica de operação da biopolítica a


nudez na arte e no protesto aparece como um levante político de resposta ao controle
difundido pela busca das respostas. O controle do corpo é a base para as
manifestações e as performances que trabalham com nudez. Sobre isso, é importante
revistar alguns aspectos sobre a nudez que caracterizam nosso tempo.

Para não concluir

Pensar a ditadura como uma das balisas da compreensão da política hoje é um


exercício que deve ser feito constantemente, primeiro para as proposições que muitas
vezes partem da ditadura como referencia política, como se houvesse alguma
legitimação no regime que não ferisse automaticamente a democracia, depois como a
noção de democracia foi pensada a partir deste mesmo ponto de vista. Nas artes que
trabalham diretamente com o espaço público é preciso ver o corpo como uma
extensão política, e cada passo na rua também o é.
Por isso a potencia das manifestações que partem deste corpo político, no
encontro explosivo com o espaço urbano coletivo, e suas ações necessitam pensar
sobre as referencias históricas e o pensamento autoritário que habitam e moldam o
encontro do corpo com o urbano, do privado com o público. Sobre isto Michel Hardt
e Antonio Negri trazem a problemática dos limites do público e privado, e segundo os
outores são sintomas, para não dizer estratégias do sistema neoliberal,

A privatização é um componente central da ideologia neoliberal que


determina a estratégia dos grandes poderes que governam a economia
global. O “público” que é privatizado pelo neoliberalismo é geralmente
constituído de propriedades e empresas de negócios até então controladas
pelo Estado, de ferrovias e prisões a parques naturais. (2014 p 264)

O corpo esta no centro da discussão que os autores trazem, pois é ele que figura
neste limiar do público/social e privado/subjetivo, o enfoque dos dois autores, apesar
de não tocarem no conceito de biopolítica, complementa a discussão iniciada com
Foucault e apontando uma direção prática efetiva, rever as fronteiras do público e
privado na com olhares atentos aos domínios e intenções do mercado.
Efetivamente este percurso, ainda não fechado e bastante brumoso, é o que mais
parece contemplar todas as faces de uma ação simples mas potente, que é praticada
hoje em todo o mundo, em protestos e performances artísticas.

Referências bibliográficas

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