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Resumo
Palavras-chave: Reprodutibilidade;
Espontaneidade; Trabalho do ator
Abstract
1 Possui graduação em Teoria do Teatro pela UNIRIO e fez mestrado em Artes da Cena na UNICAMP sob a orientação do Prof. Dr. Matteo
Bontto e co-orientação da Profª. Drª. Tatiana Motta Lima (UNIRIO). Atualmente está no doutorado (UNICAMP) sob a orientação dos
mesmos professores.
2 É Mestre em Artes pela ECA/USP (2001), e Doutor pela Royal Holloway University of London - Inglaterra (2006). Atualmente é professor
Livre-Docente do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas.
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Não é por acaso que no idioma francês parte de cada ator/bailarino. Há também
os ensaios são chamados de ‘répétition’, uma enorme variação conforme a época,
termo cuja tradução para a língua portu- o local e principalmente o estilo em par-
guesa pode ser também ‘repetição’. Essa ticular que se queira analisar em relação
denominação se deve ao fato de que, ao a esta questão especíca. Desse modo, é
longo do processo criativo, o ator prepa- plausível armar que as técnicas de re-
ra-se para reproduzir/repetir, diante dos produção do desempenho são parte cons-
espectadores, um pré-determinado grupo tituinte (implícita ou explícita) da práxis
de falas/movimentos/qualidades de or- artística nas Artes Cênicas, todavia, com
dem psíquica. Assim, “o ator toma como muitas especicidades em cada caso, den-
referência e se apoia em uma série de tro da multiplicidade de manifestações
pontos que formam a conguração e a es- existentes nesse campo artístico e mesmo
trutura de sua atuação. (...) O ator instala fora dele.
passo a passo um trilho de segurança que Mesmo nos estilos teatrais que se carac-
guia sua trajetória, em função de pontos terizam por um grau relativamente maior
de apoio e de referência, que são, ao mes- de improvisação atoral – como nas Atela-
mo tempo, físicos e emocionais” (PAVIS, nas, na Bufonaria, na Commedia dell´Arte,
2005, p. 91). Esses pontos de apoio elenca- no Ru´hozi iraniano, no Chakkiar-Kuttu in-
dos por Pavis, em conjunto, são corriquei- diano, no Teatro Esporte de Keith Johnsto-
ramente denominados como: ‘marcação’, ne e outras vertentes – pode-se perceber a
‘partitura’, ‘repertório’, ‘estrutura’, ‘com- reprodutibilidade cênica se congurando
posição’, ‘coreograa’, ‘linha de ações físi- de um modo sutil. A tipicação (xação de
cas’ e outras expressões análogas que têm uma personagem-tipo) ou a xação de um
em comum remeterem às ideias de xação vocabulário de movimento e de expres-
e reprodução do desempenho cênico. sões verbais são aspectos recorrentes que
Seguindo esse raciocínio, pode-se di- demonstram a presença de um tipo muito
zer que a efemeridade do acontecimento singular de reprodutibilidade nos estilos
cênico impõe ao trabalho do ator/bailari- improvisacionais. Analisando a Commedia
no um tipo muito particular de reprodu- dell´Arte, um dos mais famosos modelos
tibilidade, pois, é através da mobilização de teatro de improviso, historicamente fa-
de seu corpo-mente que se dá a reprodu- lando, Dario Fo comenta que: “os cômicos
ção ou a ‘re-presenticação’ dos elemen- possuíam uma bagagem incalculável de
tos físicos e extra físicos que compõem a situações, diálogos, gags, lengalengas, la-
cena. Desse modo, trata-se de uma repro- dainhas, todas arquivadas na memória, as
dutibilidade ‘não-técnica’, essencialmen- quais utilizavam no momento certo, com
te diferente da atuação para o Cinema, grande sentido de timing, dando a impres-
como pertinentemente percebeu Walter são de estar improvisando a cada instante”
Benjamin (1985, p.165-196)3, pois na cena (FO, 1999, p. 17). Por isso, é ingênuo consi-
é o próprio artista quem reproduz seu derar o desempenho cênico dentro dos es-
desempenho em cada apresentação. tilos de improviso como uma “total impro-
No entanto, o modo como se con- visação” dos atores, em um stricto sensu,
gura essa reprodutibilidade cênica é alta- pois se trata de uma articulação harmônica
mente variável, indo desde a memoriza- entre instâncias de reprodutibilidade e es-
ção de textos e de movimentos físicos à pontaneidade atoral.
elaboração de partituras psicofísicas com- Também seria possível identicar al-
plexas e detalhadas, variando também de gum nível de reprodutibilidade até mesmo
um nível mais inconsciente e intuitivo a nas performances ligadas ao movimento
vários graus de controle consciente por da Live Art e algumas performances con-
temporâneas que problematizam de ma-
3 Aqui se alude ao conceito de “reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin (1985,
neira mais radical a ideia de representação
p.165-196).
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aristotélica4, isto é, a arte vista como imita- que: “não existe o estado de espontaneida-
ção formalizada da realidade5. Neste tipo de absoluta; à medida que existe o pensa-
de proposição artística, na qual o caráter mento prévio, já existe uma formalização e
único e efêmero da experiência cênica é en- uma representação”.
fatizado, de fato se evita propositalmente Em contraposição, nos exemplos mais
a composição e xação de um desempe- radicais de valorização do plano da repro-
nho cênico pré-elaborado a ser reprodu- dutibilidade – como no Ballet clássico, na
zido durante o acontecimento artístico. Biomecânica de Meierhold, na Pantomi-
Todavia, mesmo nestes casos se poderia ma, na mímica de Decroux, no Kabuki, no
reconhecer alguma instância de reprodu- Bunraku, no Kyogen, no Nô, no Topeng, na
tibilidade cênica no que Schechner (2003, Ópera de Pequim, no Kathakali, e outras
p. 27) denomina como “comportamento vertentes igualmente não seria difícil re-
restaurado”. Segundo esse autor,, “não há conhecer um nível implícito de improvi-
nenhuma ação humana que possa ser clas- sação/espontaneidade na atuação. Mesmo
sicada como um comportamento exerci- nos casos mencionados ou outras vertentes
do uma única vez” e, por isso, “todo com- que têm como características fundamentais
portamento consiste em recombinações de a codicação do léxico expressivo (repertó-
pedaços de comportamentos previamente rio xo) e um alto grau precisão formal, o
exercidos” (Schechner, 2003, p. 34). Nesse ator/bailarino não consegue, graças a sua
sentido, toda ação cênica, mesmo de ca- própria condição humana, realizar uma re-
ráter não-representativo, poderia ser en- petição exatamente igual de uma partitura,
carada como uma reprodução de padrões pois “sempre há um mínimo de algo ‘novo’
psicofísicos inconscientemente cristaliza- em cada espetáculo” (Chacra, 2007, p.16).
dos ao longo da trajetória pessoal e artís- Em alguma medida se está inevitavelmen-
tica daquele que a executa. Também seria te improvisando os pequenos detalhes de
possível enxergar como uma instância de uma partitura por mais rígida e detalhada
reprodutibilidade a existência quase inevi- que ela seja. Nesse sentido, cada apresen-
tável de uma proposição artística criada a tação é inevitavelmente diferente das an-
priori, quer dizer, antes que ação de fato se teriores, quer seja em nuances captáveis
materialize em uma cena. Qualquer tipo de somente pelo próprio ator/bailarino, quer
planejamento, combinação entres os artis- seja em mudanças mais evidentes e percep-
tas participantes ou grau de pré-concepção tíveis pelo público. Assim, a repetição de
do acontecimento artístico pode ser inter- uma cena que tem como base uma estru-
pretado como uma maneira de reprodu- tura xa e pré-elaborada, em certo ponto,
zir uma ideia preconcebida, ou seja, uma é sempre uma micro improvisação. Nas
composição preexistente que se reproduz palavras de Peter Brook: “(…) nos detalhes
no aqui-agora da cena. Neste sentido, tra- mais sutis nenhuma apresentação pode ser
ta-se uma dimensão de reprodutibilidade exatamente igual à outra, é esta consciência
se congurando de modo muito singular que lhe permite uma renovação constante”
e tênue; dimensão esta que nem mesmo (Brook, 2002, p. 59).
os Happenings de Allan Kaprow puderam Desse modo, é possível partir da pre-
integralmente anular, já que neles se fazia missa que não há nem espontaneidade ab-
uso de roteiros. Corroborando com esta soluta ou improvisação do ‘zero’, nem re-
perspectiva, Cohen (1989, p. 96) arma produção do desempenho concebida como
uma repetição inteiramente igual e sem
4 Segundo a Poética de Aristóteles: “É a tragédia a representação duma ação grave, de
nenhum grau de improviso. Isto é, não há
alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio como anular categoricamente a reproduti-
adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a
catarse própria dessas emoções” (ARISTÓTELES, 2005, p. 24). bilidade ou a espontaneidade, sendo estas
5 Como exemplos deste perl artístico não-representativo, pode-se citar: os Happe- processadas, quer de modo consciente ou
nings de Allan Kaprow, a Body Art de Gina Pane e as performances de Joseph
Beuys, do Grupo Fluxus, de Marina Abramovic, e dos brasileiros Márcia X, Alex Ham-
não, quer de uma maneira mais particu-
burguer e Eleonora Fabião; dentre outros artistas do Brasil e do mundo.
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greco-romano, somente a partir do século sados por Bontto (2002) e também outros,
XVIII a dimensão psíquica/interior do tra- por exemplo, Vakhtângov, Antoine, Zola,
balho cênico passou a ser um tema concre- Craig, Appia, Copeau, Brook, Schechner e
to de reexão teórico-prática. Através de os brasileiros Antunes Filho, Klauss Viana,
um amplo embate teórico que tinha como Eugênio Kusnet, Luís Otávio Burnier, Gra-
foco a dicotomia entre as noções de ‘Sentir’ ziela Rodrigues, etc., ampliaram considera-
e ‘Representar’, pensadores da Teoria Tea- velmente o número de técnicas e métodos
tral – dentre os quais gura o lósofo fran- de atuação concretamente sistematizados e
cês D. Diderot, autor do famoso “Paradoxo o conhecimento empírico produzido sobre
sobre o comediante” (2000) – começaram a ofício do ator/bailarino dentro de um pris-
debater mais claramente sobre a necessida- ma essencialmente psicofísico.
de (ou não) para o ator de atingir no mo- Dentre esses artistas-pesquisadores,
mento da cena ‘algo além’ da utilização de muitos frisaram a importância da precisão
gestos ‘apropriados’ e da declamação dos (e outros termos ligados à reprodutibili-
versos ‘adequada’; postulações essas liga- dade) ou da organicidade (ou outros ter-
das à noção de decoro, fortemente presente mos ligados à espontaneidade), utilizando,
nos palcos europeus até então. cada um, uma terminologia especíca para
Contudo, foi na virada do século XIX nomear essas instâncias, muitas vezes vis-
para o XX que se expandiu o pensamento tas como conitantes e não passíveis de se-
teórico e o desenvolvimento de metodolo- rem justapostas. Entretanto, poucos foram
gias criativas e pedagógicas voltadas para os que enxergaram e analisaram a relação
o trabalho do ator, antes somente aborda- de complementaridade entre reproduti-
do em alguns poucos manuais para atores bilidade/espontaneidade. Poucos foram
escritos por atores, como “A arte de re- os que trataram do tema demonstrando,
presentar” (1728) de Riccoboni, “O come- através da prática artística e teórica, como
diante” (1747) de Sainte-Albine, e “Lições a precisão cênica trabalhada em um nível
dramáticas” (1861) de João Caetano, por não formal pode estar fortemente imbrica-
exemplo. “De modo geral – arma Pavis –, da à organicidade cênica, antes como seu
a partir de 1880, aproximadamente, quan- catalisador do que como seu antônimo, seu
do a problemática da direção começa a ser contraponto. Nesse sentido, “a maioria dos
globalmente considerada, multiplicam-se grandes mestres do teatro oriental e oci-
reexões teóricas, tratados relativos à téc- dental insiste sobre a importância da pre-
nica do ator, e, um pouco mais tarde, teses cisão e da organicidade de uma ação, no
acadêmicas que fundam um estudo diacrô- entanto, poucos são os escritos sobre esses
nico da prática do teatro” (Roubine, 2002, elementos [...]” (Burnier, 2009, p. 52).
p. 8). Stanislavski, reconhecido como pri-
Também, seguindo a reexão pano- meiro pedagogo6 a sistematizar uma psico-
râmica feita por Bontto (2002), na qual o técnica de atuação baseada no uso da ima-
autor toma como o condutor a noção de ginação, pode ser considerado, também, o
“ação psicofísica” de Stanislavski e seus primeiro a apontar a correlação entre re-
ulteriores desdobramentos, é possível per- produtibilidade e espontaneidade ao dis-
ceber como, no nal do século XIX e ao cernir dois planos de um papel, “o plano
longo do século XX, o trabalho do ator/ interior e o plano exterior” (Stanislavski,
bailarino passou a ser investigado e repen- 2000, p. 223); também através da elabora-
sado por importantes artistas-pesquisado- ção do “Método das ações físicas”, no qual
res: começando por Stanilavski, passando se partiu da premissa de que as ações po-
por Meierhold, Laban, Artaud, Brecht, dem servir como “iscas” para sentimentos
Chekchov, Grotowski e Barba. e estados psíquicos que, se abordados per
Através de sua prática cênica e/ou de
suas formulações teóricas, os artistas anali- 6 Por exemplo, Grotowski e Pico-Vallin falaram sobre o pioneirismo de Stanislaski (cf.
Grotowski, 1987, p. 92; Picon-Vallin, 2008, p. 62).
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