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Atuação teatral e risco físico: fronteiras do corpo como instrumento de expressão

André Carreira1 e Lara Matos2

Este artigo aborda o uso de elementos de risco na cena teatral a partir de nossa
experiência como atriz e diretor onde temos desenvolvido projetos que exploram tais elementos.
Pretendemos com este texto propor uma reflexão sobre questões que consideramos podem afetar
a construção de uma cena que busca estabelecer vínculos íntimos com os espectadores; uma cena
que se baseia na ideia de um teatro da experiência construído a partir da premissa de que a
vivência de uma condição de risco por parte do ator permitiria uma experiência "contaminante"
nos termos de Antonin Artaud.
A noção que sustenta a argumentação do presente trabalho considera como risco físico
toda ação corporal que representa a possibilidade de dano físico ou emocional. Trabalhamos
com a ideia de que o risco físico pode ser um elemento disparador e estruturante do vínculo entre
performer e espectador.
Também é uma premissa deste texto a ideia de que o âmbito do espetáculo não deveria
ser um espaço de segurança absoluta, pois se trata de um lugar propício para se negociar em
permanentes tensões. O evento teatral ao estabelecer, conforme diz Jean Duvignaud, uma
cerimônia social diferida, cria um espaço de convivência no qual a visita a lugares limítrofes
poderia estar autorizada. As dinâmicas instáveis, próprias dos vínculos humanos, são no palco
ainda mais voláteis, pois a função básica do teatro é exatamente explicitar tais tensões ou até
mesmo fazê-las mais fortes. É exatamente a contenção que o acontecimento teatral oferece por
sua condição de convencionalidade que sugere a possibilidade do risco da experiência. Ao
parecer um tempo e fenômeno suspenso do fluxo cotidiano esta cerimônia pode estimular os
espíritos a experimentações às quais não estaríamos muito abertos no contexto de nosso dia a dia.
O âmbito ficcional protege de forma que se possa visitar algo do real. Qual sentido tem um teatro
que não corre o risco de realizar com seus espectadores algo que faça vislumbrar a hipótese da
1 Diretor do grupo Experiência Subterrânea e professor do PPGT UDESC, e coordenador do PRFOARTES.
2 Atriz do grupo Experiência Subterrânea, e doutoranda em teatro no PPGT UDESC
irrupção do real?
Coerente com esse ponto de vista questionamos se o lugar do espectador deve ser um
lugar de segurança. Estar seguro seria assistir o espetáculo como quem o vê desde fora.
Usualmente consideramos a separação entre o espaço da cena e o espaço do espectador como
elemento gerador daquilo que se seria um lugar de conforto da mirada. No entanto, também
podemos considerá-lo como um lugar de resistência ao que é oferecido desde a cena.
Essa resistência que pode ser identificada como uma negação daquilo que é proposto na
cena, mas, ao mesmo tempo pode representar um elemento vital das relações entre o espectador e
os atores. A resistência vista como tensão dialógica seria um signo de que o espetáculo se
constitui como acontecimento, deve ser pensada como resultado da produção de acontecimentos
intensos na cena. Resistir é passar pela experiência que o Outro propõe descobrindo lugares.
Ainda que a ideia do espetáculo como acontecimento ou como experiência possa parecer
vaga, é importante dizer que estamos pensando tais noções à luz das reflexões que consideram a
experiência como a realização de uma XXX
Em princípio o público do teatro está confortável em seu espaço na condição de plateia,
pois, é cômodo poder assistir à realização cênica sem estar comprometido com seu processo e
desenlace. Quando o espetáculo exige do espectador um tipo de participação que o desloca dessa
zona de conforto começa a produzir outras formas de recepção, e consequentemente modifica a
condição de expectação intensificando a participação da audiência quando estabelece uma
conexão conflitante entre o que se expõe ao risco e quem assiste à esta exposição. Assim,
também se modifica a própria condição do espetáculo.
Quando nos referimos à participação não estamos apenas pensando em uma cena na qual
o espectador seja convocado a estar em cena com os atores. A participação também pode ser
pensada quando o espetáculo produz nos espectadores desconforto ou exige que os mesmos se
sintam comprometidos com aquilo que está ocorrendo na cena. Então é possível observar a
amplitude da ideia de participação, por isso tomamos no caso desse texto, uma noção de
participação que está relacionada com a busca de modificação da condição dos espectadores em
relação aos performers.
Consideramos que a cena contemporânea conta com um público que quer ver seu espaço
“ser vencido” pelas forças da cena, uma audiência quer ser conquistada pela representação ainda
quando não tenha consciência desse embate, nem da possibilidade de que a linguagem da cena
possa perfurar as barreiras da sua segurança. Por isso, o contato entre cena e plateia deve
implicar no estabelecimento de um território de risco, dado que assim se poderia pensar o
espetáculo como um jogo de interações fortes.
Há algo que é interessante pensar para tratar desse tema: as tensões que se produzem
quando em um ato coletivo e público nos enfrentamos com imagens, informações polêmicas ou
com acontecimentos com os quais nos sentimos comprometidos. Imaginemos várias pessoas em
uma sala de espera de uma clínica feminina de diagnóstico por imagens com uma televisão
mostrando um informativo que mostra uma reportagem sobre o casamento de lésbicas, de
repente um beijo na boca entre duas mulheres. As senhoras a espera de suas mamografias ou
ultrassons, não podem mais que compartilhar uma imediata necessidade de expressar algum
comentário ou até de desconforto. Imaginemos então uma plateia teatral frente à qual é
apresentada uma cena na qual o corpo nu de uma atriz é maltratado e exposto ao risco físico ao
ser arremessado de uma mesa. Aquela atriz é real e seu corpo pode sofrer algum dano no
decorrer da cena. O espectador sabe disso e não tem a menor possibilidade de apenas assistir tal
acontecimento apenas como um narrativa de um história.
O presenciar tais acontecimentos em marcos coletivos propicia reações que podemos
explorar como material para criar espetáculos baseados no compartilhamento de experiências
entre espectadores e performers.

Qualidades do risco

O trabalho com o risco físico na construção de espetáculos teatrais implica uma proposta
de cena que deseja produzir possibilidades de oferecer uma experiência espetacular desde o
extremo da vivência do ator como ato compartilhado com o espectador. A introdução do risco faz
evidente que algo da cena é real e está além da mera representação. O risco sempre supõe uma
cena aberta para qual podemos supor desenvolvimentos, mas, não podemos ter certeza absoluta
de seus desenlace.
Mas, não devemos pensar o risco apenas como elemento de destreza que seduz pelo
inusitado. Por isso, é necessário compreender o papel do elemento de risco como peça chave na
materialização de uma performance teatral que se dá como uma experiência compartilhada.
Desde esta perspectiva o risco não seria meramente um elemento técnico, mas sim um
componente da poética e da ética do espetáculo. Algo que definiria a natureza do espetáculo.
A partir desta perspectiva podemos observar que o território do risco é amplo e
diversificado. Portanto, vale a pena delimitar nosso foco considerando que ao abordarmos a
noção de risco devemos supor que isso se define pela especificidade da experiência de cada
indivíduo frente aos seus receios e medos. Apesar de que podemos dizer que ao introduzir
deslocamentos de altura, ou fogo em cena estamos trabalhando com o risco, é preciso ir além
disso que é evidente, para podermos dimensionar com justeza as múltiplas variedades da
presença do risco na cena. O risco trabalha em dimensões que partem do envolvimento do ator
com o que está sendo executado, antes mesmo de uma plateia. O risco propõe que o ator de abra
à uma cena viva que nunca cristaliza, apesar das técnicas de segurança e dos ensaios para que
não a cena não ultrapasse a técnica e o jogo não se sobreponha à vida.

Risco no circo e no teatro

Um primeiro passo seria tratar de compreender qual a diferença entre o risco no território
teatral e o risco no espetáculo circense. No âmbito do circo assumir risco serve principalmente à
demonstração de destreza que é o elemento chave desse tipo de espetáculo. No circo temos seres
humanos que buscam ultrapassar seus (nossos) limites como fator estrutural do divertimento.
Para tanto, oferecem uma cena que explora ao máximo a visibilidade do risco de tal modo que a
ênfase se aproxima de uma hipérbole do momento do risco. Tal ênfase separa este momento
daquilo que seria a preparação, e também do aplauso, instante do triunfo onde podemos ver o
artista que superou o perigo e sorri sem se mostrar contaminado com a experiência recente.
Com todas as variações que podem caracterizar o espetáculo circense, o risco funciona
dispondo uma linha que diferencia o artista do espectador. Um está projetado para além do
cotidiano como sujeito capaz de ultrapassar os limites, enquanto o outro deve observar e se
maravilhar com tal ato heroico. Esta condição polarizada é fundamental para que frente à
iminência da tragédia nossos olhos se maravilhem quando o trapezista consegue alcançar o corpo
de seu companheiro que fora lançado no ar. O último segundo uma mão interrompe a tragédia
que nosso senso de gravidade antecede. Isso constitui o eixo e o fim do risco no circo. São dois
mundos claramente separados não apenas pelo formato do espaço (picadeiro / plateia), pela
ênfase da iluminação, mas sobretudo pelo procedimento cênico no qual os números são
apresentados de forma fragmentada e sequenciada.
O novo circo, do qual o canadense Cirque Du Soleil é o exemplo mais conhecido, nos
mostra justamente a hibridação com um roteiro dramatizado que modifica esse procedimento
fragmentado oferecendo ao espectador uma linha dramática que percorre todo o espetáculo,
articulando as destrezas. Ainda assim, a forma do picadeiro e magnitude do espetáculo não
permitem os estreitamento dos vínculos entre artistas e espectadores, o que sustenta a separação
que garante o “maravilhamento” dos olhares que assistem estes super-humanos que voam, se
equilibram em estruturas impossíveis, e expõem seus corpos a perigos extremos.
Observando o modelo do circo é inevitável nos questionarmos quais relações podemos
estabelecer entre essa experiência do risco que supõe a possibilidade real da tragédia (a morte no
circo), com o risco proposto pelo teatro, um tipo de espetáculo que não leva o risco ao extremo
característico do picadeiro? Na proposta teatral o risco opera de forma direta na relação com
espectador, pois este pode tomar imediata consciência do duplo lugar da ficção e do real.
Enquanto no circo o risco reside no aspecto técnico, na cena a visitação aos limites do corpo e da
emoção determina a matéria ficcional, produzindo sentidos para os discursos.
Ainda que possamos supor uma cena na qual os atores corram risco de morte ou de uma
acidente grave – coisa comum no circo -, no caso da cena teatral estamos falando de riscos que
nos levam a um outro lugar, porque não faz parte desse tipo de performance o pacto ao redor do
risco. A lógica performática supõe que o performer cruze as fronteiras da representação e da
apresentação buscando que a exposição de sua experiência provoque o público a abandonar sua
condição de mero assistente.
O teatro não está estruturado a partir do pressuposto de que o espetáculo oferecerá risco
iminente aos performers. Existe risco em toda artes performática porque a realização ao vivo
sempre supõe a possibilidade do erro, e, portanto, do fracasso. Está ali o risco das falhas
comunicacionais, está o imprevisível do comportamento dos espectadores. Todos estes são
imponderáveis que implicam em riscos. Isso é particularmente claro quando consideramos como
o fato de que o teatro exige dos atores, como mínimo, o risco da repetição e a possibilidade do
fracasso a cada dia que se representa novamente o espetáculo. É esse contato diário com os
espectadores e a necessidade de estabelecer uma e outra vez novos vínculos que mantenham viva
a encenação o que permite supor o teatro como uma arte do risco.
No entanto, estamos pensando neste texto sobre um tipo de risco que pode ter origem, no
teatro, na decisão do ator de realizar um ato integral frente ao espectador, um ato no qual o ator
ultrapasse seus limites físicos ou emocionais. Se um artista circense se lança ao vazio esperando
que o outro trapezista esteja no tempo justo para segurá-lo pelos pés, no teatro o ator se lançará
em cena a territórios nos quais não encontrará duas mãos que o ampare. Enquanto no circo todos
sabemos do desenlace dos números, no teatro o risco opera de forma aberta e continuada, e o
espetador não terá à mão um código que o tranquilize com relação ao que está ocorrendo com o
ator. Nasce aqui uma promessa ou ameaça de vínculo com a qual os espectadores devem lidar no
próprio transcorrer do espetáculo isso constitui parte da natureza do espetáculo teatral. Artaud já
pedia um teatro que provocasse o espectador deslocando-o do seu mundo de conforto. Podemos
relacionar essa proposta moderna com o papel primitivo das festas dionisíacas. A violência da
festa dionisíaca, sua força mobilizadora que nos estimula a questionar o estado de passividade da
cena atual.

Risco e uma cena do real

Partindo do ponto de vista exposto acima, podemos supor que a introdução do risco físico
e emocional na cena pode produzir um desdobramento da performance teatral em busca de uma
qualidade de vínculo superior ao da relação de fruição estabelecida pelo mero consumo do
entretenimento. Por isso, o uso de técnicas de risco visa aprofundar a própria performance cênica
como acontecimento compartilhado.
O trabalho com o risco que abandona a noção de destreza como elemento articulador,
investe na dimensão dramática da presença do risco considerando a imbricação entre este e os
processos dramatúrgicos centrais do espetáculo. Por isso, o risco não pode servir apenas ao efeito
de impacto que este pode causar, mas fundamentalmente deve estar a serviço da realização da
experiência do espetáculo. Isso implica considerar a necessidade de que o risco esteja
relacionado com o efeito do real, com vistas à produção da irrupção do real na cena. Pensamos
isso a partir dos estudos de José Antonio Sanchez que retomando Hal Foster analisa a ideia de
irrupção do real na cena contemporânea como parte da estratégia de artistas que tratam de
romper como a simples lógica do consumo do bem cultural, buscando formas de interferência na
realidade compartilhada por performers e espectadores.
O pressuposto de nossa argumentação parte da ideia de que devemos refletir se haveria
sentido em um teatro que não ofereça a possibilidade de algum tipo de experiência para além do
entretenimento. Como afirma Denis Genoud em seu livro O Teatro é Necessário .... CITAÇÃO.
O teatro é uma arte periférica, e como tal não tem mais opção que buscar seu espaço a
partir de um tipo de acontecimento que esteja baseado na intensidade dos vínculos entre
performers e espectadores, Dado que dificilmente esta arte pode competir com as formas
industriais do entretenimento, ela deve descobrir formas de romper com o espaço protegido
daqueles que assistem ao espetáculo propondo uma aproximação que será o instrumento de uma
experiência que repense os sentidos da cena teatral.
Certamente, podemos encontrar variadas formas de realizar isso, mas essa é uma tarefa
iniludível se queremos realizar um teatro vivo. Quando presenciamos uma cena na qual os
performers experimentam seus limites somos estimulados atravessar alguns de nossos limites,
ainda que isso não implique em nada mais que uma visita ao nossos fantasmas e desejos não
explicitados.
O risco é um fator de produção de intensidades na cena e pode ser um instrumento de
mobilização do espectador. O risco introduz incerteza ao mesmo tempo que coloca o espectador
de frente ao performer não apenas como alguém que assiste, mas que compartilha a experiência.
Isso demanda algum tipo de compromisso entre estes dois vetores da cena, e é isso se dispara a
possibilidade de um tipo de vínculo que iria além da compreensão da narrativa do espetáculo. O
elemento chave neste caso é a hipótese de que este espetáculo possa produzir um tipo de
experiência vinculante com espectadores, um tipo de vivência que persista como resíduo no
espectador depois que este assiste à encenação. Resíduo seria neste caso uma memória ativa da
experiência da presença do espectador no acontecimento, como uma persistência que quase
convoca a quem assistiu um espetáculo a transformar sua vivência em narrativa. Alguns
espetáculo que presenciamos nos impactam com tanta força que somos impelidos a conta-lo para
outras pessoas. Produzimos assim um tipo de experiência muito cara ao teatro, arte efêmera que
se dissolve com facilidade no passar dos dias. Propor um acontecimento cênico que residue nos
espectadores é tratar não de fazer apenas que o espetáculo seja conhecido e reconhecido, mas que
este estimule que o espectador recrie narrativamente sua experiência.
Considerando essa perspectiva, e reconhecendo que o risco tem a capacidade de produzir
tensões junto aos espectadores, é importante dizer que introduzir o risco na cena não seria um
capricho de linguagem, mas uma forma de buscar produzir um elemento condicionante para o
processo criador, que ao mesmo tempo ofereça ao espectador um dado real que interfira na
percepção da cena.
O teatro é um acontecimento uno, no qual os campos do espectador e do performer são
espaços virtuais estreitamente entrelaçados por redes de significação e sentidos. Ao
presenciarmos uma performance teatral (usamos esses dois termos associados com o fim de
deixar claro que suas diferenças, são atualmente quase insignificantes), estamos sempre
submetidos a uma condição de compartilhamento. Vemos a realização como ficção, e como
trabalho real que nos oferece a ficção. Isto é, na cena teatral temos inevitavelmente a experiência
dos dois planos que funcionam articuladamente conformando o que hoje consideramos
fundamental nas práticas performativas. Como afirma a pesquisadora Julia Elena Sagaseta O
TEATRO PERFORMATIVO...
A realização de um teatro que crie possibilidade de atravessamento da condição da
expectação protegida é condição sine qua non dos projetos cênicos que pretendem se instalar
como uma fala política que discute o próprio “estar no teatro”, ou o “ser espectador”. Estamos
nos referindo a um teatro que se realiza buscando as zonas de fusão entre o ficcional e o real,
entre o mostrar e o realizar, entre a representação e a apresentação. A presença do risco projeta o
teatro nesta direção, pois atores e espectadores saberão que estão presenciando acontecimentos
que podem tomar rumos próprios para além das sequências narrativas propostas pela
dramaturgia.

Corpos em risco

Estar em cena é expor o corpo ao escrutínio do outro, é oferece sua experiência como
prática para/com o outro. Quando pensamos uma cena que não tem seu foco na representação das
personagens e da história, mas sim da intensidade das construções da cena como procedimento,
que considera prioritário a experiência criativa vivencial dos performers devemos supor corpos
em risco. Isso não quer dizer a negação da personagem e da história como coisas obsoletas no
teatro contemporâneo, mas, afirma a potência poética de um teatro que tem como principal
material a realização da experiência criativa compartilhada no ato da representação.
Atores expostos e espectadores ameaçados de invasão de seu espaço preservado.
Por outro lado, cabe aqui discutir a potencia do corpo exposta como.... DESENVOLVER
aqui poderíamos incluir a ideia da biopolítica.

Risco e espaços de ludicidade: ensaio e cena

Pensar o teatro a partir da lógica do jogo, isto é, da abertura de espaços lúdicos que
funcionem como rupturas do cotidiano, permite supor que é desde esse lugar que o teatro pode
desorganizar os procedimentos sociais consolidados. O risco pode ser compreendido como um
elemento de jogo porque estimula tanto performers como espectadores a se colocarem a
disposição dos acontecimentos, de seus medos, e das sensações produzidas pela vivência do
risco. Como diz Duvignaud, o jogo tem a capacidade de colocar o mundo de cabeça para baixo,
pois, abre espaços inusitados.
Produzir deslocamentos na condição de expectação é colocar o público em uma situação
de insegurança, é tensionar sua atenção para uma direção que vai além do plano da história
contada, e é, ao mesmo tempo, obrigar o espectador a tomar relativa consciência de seu processo
de recepção e fruição do acontecimento cênico.
Por isso, todo espetáculo que experimenta com esse tipo de procedimento está obrigado a
exercitar a auto crítica com o fim de evitar a introdução formalista do risco, ou seja o risco como
efeito da destreza. Prática essa que pode esvaziar as tensões que tramam os procedimentos com o
foco ficcional. O elemento ficcional, ainda no caso de formas teatrais que se propõem livres das
amarras do dramático, estará presente por força do conceito “teatro”, que implica em uma
recepção que convive com o real, mas que reconhece como seu substrato básico a tensão deste
com o terreno da ficção.
O risco como material de expressão não parece apenas se concentrar na experiência
estética do risco. Quando pensamos em um risco objetivo as tensões proporcionam uma nova
maneira de ver a situação de determinada cena e, além disso extrapolam o envolvimento do ator
com seu trabalho. Ao realizar performances com elevado risco físico o ator pode criar uma
necessidade de buscar seus limites em todas as situações cênicas que encontrar, e para além
disso, desenvolver uma busca constante por um maior envolvimento em cada espetáculo ou cena,
criando, o que podemos chamar de um ciclo virtuoso: o enfretamento do risco como elemento
propiciatória da exploração de limites da própria linguagem teatral.
O trabalho com o risco também supõe uma experiência anterior ao próprio momento da
performance porque no caso dos atores o risco é também um material chave para os processos de
preparação técnica e criação. Neste sentido, podemos observar que um treinamento cujo
princípio é a exaustão psicofísica é um dos procedimentos que pode utilizar o risco como
componente.
Ao levarmos o corpo a um ponto extremo, como supõe a exaustão, adentramos ao
território do risco tanto físico como emocional. Neste ponto o trabalho com o risco pode levar o
performer a lugares desconhecidos, e isso configura um risco totalmente relacionado com os
limites pessoais.
Ao refletirmos sobre os procedimentos de treinamento dos performers pensamos que
antes que uma preparação técnica para standards previamente determinados, consideramos que
toda preparação atorial deve ser ao mesmo tempo uma exploração dos limites da linguagem.
Vemos a ideia de treinamento como espaço de construção da poética e do próprio corpo como
instrumento poético. Portanto, realizar tal construção sob condições de risco seria levar tal
experiência aos seus limites. Assim, pensamos treinamento, criação e apresentação como um
processo continuado do fazer a linguagem e do artista, processo este que inclui os espectadores
como partícipes.

Ainda é importante pensar como funciona a linguagem da encenação e o risco. Se por um


lado o risco tratado como destreza pode velar sua potência como elemento da experiência,
também é verdade que a linguagem da encenação pode tornar invisível a situação do artista em
risco. Assim, seria preciso preservar aquele sujeito que é em si mesmo objeto da arte que se
expõe e se sacrifica pelo espetáculo. Considerando isso o espectador deveria ser convidado a se
tornar cúmplice deste sujeito em risco. Esta experiência compartilhada que se dá entre o público
e os atores é o elemento fundamental de uma cena que busca ir além do mero entretenimento.

Referências

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