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NARRATIVAS EM CENA:
Rio de Janeiro
2015
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Os pensamentos valem
se estão em movimento.
Aderbal Freire-Filho
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Duas bibliotecas e um oceano em meio
PRÓLOGO
Aspectos de uma trajetória artística
Percursos de uma investigação acadêmica
1. NARRATIVAS EM CENA
A narrativização do palco e a consolidação do encenador-autor: a escrita cênica
nas tensões entre texto e representação
Uma cena que se abre e se revela: a fratura do drama tradicional, o Teatro Épico e a
dramaturgia rapsódica
A biblioteca do encenador-autor: modos de leitura e escrita cênica
O romance como gênero inacabado: o presente em transformação
A linguagem romanesca e suas interseções com o drama
A performatividade narrativa na construção de novas relações entre palco e plateia
Ver e ouvir o texto: relações entre oralidade, escrita, leitura e performance
Performatividade e teatralidade na formação de um teatro narrativo-performativo
A palavra no centro da performance narrativa: vocalidade e corporalidade
Procedimentos de encenação de textos narrativos: a dramaturgia e o ator como
elementos estruturantes
EPÍLOGO
Reflexões sobre pontos de chegada
Interlocuções na prospecção de um futuro
BIBLIOGRAFIA
VIDEOGRAFIA
FICHA TÉCNICA DOS ESPETÁCULOS
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PREFÁCIO
Há cerca de um século, homens das letras inventaram o projeto de uma publicação que
pudesse fazer uma ponte sobre o mar para unir Brasil e Portugal através das artes, da cultura e
da história. Era a Revista Atlântida, editada entre 1915 e 1920, obra acalentada pelo escritor
João do Rio e pelo poeta João de Barros. Ambos acreditavam no projeto de uma comunidade
luso-brasileira de inteligência e sentimentos. Mas o ambiente se revelava pouco propício para
esta utopia nostálgica. Havia, já na época, um clima de mútuo desinteresse entre os países e, na
perspectiva brasileira, de evidente antagonismo aos imigrantes portugueses. A combinação de
ideais estéticos modernistas e posições políticas de teor nacionalista, dentre outros motivos,
acabou por inviabilizar o projeto da publicação.
O estudo, posto à disposição dos leitores dos dois países, exibe, em primeiro lugar, a
disciplina necessária para buscar no século XX as rotações estéticas que permitiram a abertura
do terreno do drama para o narrativo. A síntese histórica é didática e passa em revista uma vasta
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Todo este repertório histórico e teórico adquire utilização dinâmica quando o livro se
aproxima dos espetáculos e do trabalho da cena. A empiria se confronta com o horizonte
projetado. Surgem, então, novos pontos de observação e conceitos para a análise, desta feita
desentranhados do corpus que o pesquisador tem diante de si. O pensamento dos espetáculos é
descrito sempre acompanhado de ideias que os encenadores propagam em entrevistas e textos.
O conceito de edição, em suas conexões com o cinema e com o trabalho visando a tornar
o texto legível para publicação, ganha força operatória. Destaca-se como uma das vias de leitura
de procedimentos diversos de produção dramatúrgica quando se tem um romance que ganhará
novas materialidades. No entanto antes de se dedicar ao estudo de espetáculos, generosamente,
o autor nos forneça preciosa informação sobre cada um dos encenadores e suas trajetórias.
delineando paulatinamente. Décadas depois de sua opção definitiva pelo teatro, surge o
romance-em-cena, conceito criado por Aderbal para definir alguns de seus espetáculos, cuja
genealogia o autor deste livro traça com apuro. Registra-se, nesse sentido, a experiência do
Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, companhia que expôs posições políticas
claras em relação a modos de produção teatral, tendo exercido papel decisivo na formação de
um grupo especialmente criativo de atores, além de ter provocado grande fascínio sobre o
público carioca, entre 1989 e 1996.
No Centro de Demolição, no final dos anos oitenta, surge a primeira experiência de abrir
em cenas, como um livro se abre em páginas, o texto de um romance – A mulher carioca aos
22 anos, de João de Minas. Outros dois espetáculos – O que diz Molero, de Dinis Machado, e
O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, também analisados no livro, retomam uma década
depois a pesquisa iniciada. E nas três produções estão parceiros do “coletivo de afinidades”,
com o qual Aderbal Freire-Filho não abre mão de trabalhar. Ao defrontar-se com o encenador,
seja na plateia ou nas inúmeras “sessões” de vídeos dos espetáculos, seja nas entrevistas
realizadas, que também incluíram atores dos romances-em-cena, instala-se o ponto de vista
compartilhado entre criadores e o pesquisador-artista.
O estudo dos espetáculos do encenador João Brites assenta-se sobre bases diferentes das
que alicerçam o caso brasileiro, porque é fruto de uma viagem de pesquisa a Lisboa e seus
arredores. Se havia bibliotecas a palmilhar, também havia de se compartilhar com o diretor a
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PRÓLOGO
percurso criativo-investigativo: O que diz Molero do português Dinis Machado em 2003 e, por
último, O púcaro búlgaro de Campos de Carvalho em 2006. Aos dois últimos assisti
presencialmente, mas O que diz Molero foi definitivo na proposição desta pesquisa, por meio
do qual me deparei pela primeira vez com o romance-em-cena que para mim se revelou como
um dos mais intensos encontros interdisciplinares no teatro contemporâneo.
Situo essa busca nos gestos particulares de leitura, escrita e encenação que se iniciaram
no Grupo Teatral Pannus Finis, criado e gerido por discentes de Comunicação Social da ex-
Fafi-BH (atual Uni-BH) nos idos de 1996, do qual fui ator, encenador e dramaturgo. O grupo,
que conduzi durante os quatro anos da nossa graduação, proporcionou-me intensas
experiências, das quais destaco Sonhos misteriosos (1998, dramaturgia de corte e colagem de
fragmentos de autores diversos, de Morris West a Nelson Rodrigues) e A confissão de Leontina
(1999, adaptação do conto homônimo de Lygia Fagundes Telles), onde se originaram minhas
primeiras experiências com o teatro narrativo e uma dramaturgia rapsódica. Nessa época,
paralelamente, fui convidado por Marco Antonio Cruz, meu mestre e conterrâneo, para dirigi-
lo em sua adaptação de textos em prosa de Baudelaire, que resultou no espetáculo Paraísos
artificiais que, junto com A confissão de Leontina, arrebatou os principais prêmios do Festin!,
festival de teatro estudantil e universitário. Com a conclusão do bacharelado, o encerramento
das atividades do Pannus Finis originou um novo agrupamento, envolvendo jovens artistas e
profissionais de Belo Horizonte em torno da obra de Hilda Hilst.
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A Cia. de Outros Atores teve uma carreira breve (2002-2004), mas não passou
despercebida no circuito artístico cultural da capital mineira. O evento Círculo de atividades
integradas Hilda Hilst (2002), concebido por mim e produzido pelo grupo, reuniu quase 30
artistas, entre iniciantes e veteranos, para uma grande exposição da vida e obra da escritora
paulista, até então praticamente desconhecida em Belo Horizonte. O evento, dividido em
exposição fotográfica, leituras, saraus poéticos, cenas curtas (adaptações da prosa poética), e
um intercâmbio com a Cia. Teatral do Movimento de Ana Kfouri (RJ) que trouxe a montagem
Fluxo, o projeto, que teve aval e aprovação da escritora, conquistou espaço na mídia e atraiu,
ao longo de seus nove dias de realização, um público de iniciados e interessados. Ao orientar a
criação de algumas atividades, pude realizar diversas experiências de adaptações de textos em
prosa da escritora destinados a leituras encenadas e também a cenas curtas, o que foi
extremamente salutar para a pesquisa que agora empreendo.
A Cia. de Outros Atores se desfez, tendo sido encerrada com a montagem de Um canto
para Pedro Nava, projeto selecionado pelo Centro de Cultura Belo Horizonte para honrar as
comemorações do centenário de um dos mais ilustres memorialistas brasileiros. A peça teve
concepção e dramaturgia minhas, onde novamente os procedimentos de edição de fragmentos
narrativos junto a músicas do cancioneiro popular construiu um panorama sobre o autor e sua
obra, recebendo primorosa direção de Sávio William. Pela primeira vez órfão de grupo, que
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estava no cerne de minha formação desde a Oficina de Iniciação Teatral (1993-1994) com
Marco Antônio Cruz e Geni Gomes no Cine-Teatro D. Pedro II em Conselheiro Lafaiete (MG)
minha terra natal, fui convidado por Léo Quintão e Neise Neves para dirigir a nova montagem
da Cia. Pierrot Lunar que por sua vez estava em jejum de palco há quase sete anos. A
companhia tivera duas experiências com montagem de textos literários (o espetáculo Alice, dos
originais de Lewis Carroll e dirigido por Fernando Mencarelli em 1996, e Visões do paraíso,
leitura encenada de contos da mineira Branca Maria de Paula sob direção de Leo Quintão em
2004). O convite relacionava-se a uma nova imersão do grupo no trabalho da literatura no teatro
a partir de minhas experiências e pesquisas empreendidas nesse campo. Não havia um texto
definido para a montagem, apenas um tema: a mulher contemporânea e, entre leituras e
conversas, pesquisas em nossas bibliotecas, chegamos ao Falar – um romance de amor e ódio,
que rendeu ao autor Edmundo de Novaes Gomes o Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana.
A maneira fragmentada como o autor compôs o romance fez com que desejássemos uma
adaptação construída de forma coletiva, através de ensaios e improvisações, ampliando assim
as possibilidades de experimentação. Dessa maneira, dois atores e eu, como dramaturgo e
encenador, estivemos durante um ano em sala de ensaio num intenso processo de pesquisa sobre
a encenação desse romance, que intensificou para mim as relações entre Teatro e Literatura.
Testando procedimentos, experimentando, duvidando, acertando e errando, mergulhamos a
fundo na realização deste trabalho que foi batizado de Atrás dos olhos das meninas sérias,
homenagem ao verso de Manuel Bandeira e ao poema de Ana Cristina César. A pesquisa
também envolveu interseções com a teoria, em que foram discutidos e lidos textos do meu
acervo de disciplinas que havia cursado no Mestrado em Literatura.
De outro lado, os ótimos resultados também obtidos por Atrás dos olhos das meninas
sérias – que segue em cartaz desde sua estreia em 2007, tendo se apresentado em diversas
capitais, cidades do interior de MG e importantes festivais como o FIT-BH e recebido prêmios
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e indicações – fizeram com que desejássemos alçar novos voos juntos nessa seara e a Cia.
Pierrot Lunar decidiu investir na continuidade da pesquisa, agora de forma aprofundada e
sistematizada sob minha orientação e direção, em que se somavam nossas experiências
anteriores para a construção de uma prática-experimental comum.
A proposta levou o grupo a conquistar nova sede, batizada de Espaço Aberto Pierrot
Lunar, através do Prêmio Cena Minas, e abriu-se a novos atores convidados à imersão.
Novamente, estava diante de um coletivo para o desenvolvimento de nova etapa da pesquisa
que, não por acaso, coincidiu com a retomada de minhas investidas acadêmicas no Programa
de Pós-graduação em Artes Cênicas da Unirio, onde desenvolvi a tese que resultou neste livro.
O curso, as diversas indagações e o desejo profundo de estudar oficialmente Teatro foram
decisivos e esclarecedores, ao confrontar essas novas experiências cênicas com a investigação
teórico-analítica.
dos documentários Ensaio sobre teatro e Se podes olhar vê, se podes ver repara, ambos
dirigidos pelo cineasta Rui Simões. Adquiri exemplares dos livros já publicados sobre O Bando
e também a trilha sonora de Ensaio sobre a cegueira. O profícuo e extenso material, ao mesmo
tempo em que oferecia um rico acervo de pesquisa, apontou também um exaustivo exercício de
concentração nos aspectos mais relevantes para esta investida intelectual.
O retorno ao Brasil trouxe na bagagem uma ampliação do olhar para o teatro além-mar,
em que se confrontaram os meus modos particulares de fazer artístico-investigativo com o
trabalho dos dois encenadores-objetos. Para finalizar a apuração sobre o trabalho de Aderbal
Freire-Filho foi feita uma entrevista com ele e também com três atores que participaram de
montagens do romance-em-cena: Cândido Damm, Chico Diaz e Gillray Coutinho.
O trabalho de análise, por sua vez, partiu da leitura e estudo dos romances, contrapondo-
os à dramaturgia e, em consequência, aos espetáculos em vídeo, buscando uma incursão no
campo da Genética teatral, cujo pioneirismo é atribuído ao trabalho de Jean-Marie
Thomasseau, por meio de artigos do fim da década de 1990 na França, e também McAuley Gay
na Austrália. A genética de espetáculos refere-se à reconstituição e análise de algumas etapas
do percurso que atores, dramaturgos, encenadores e artistas da cena trilharam na confecção de
seus trabalhos. O work in progress, que tem caracterizado muitas práticas cênicas
contemporâneas, e por isso está na ordem do dia, tem suscitado enorme interesse da Genética
teatral, com o objetivo de esclarecer a trajetória de criação artística, capitaneada por
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encenadores. Para Josette Féral, o campo atual dos estudos teatrais “opera dentro do centro
nervoso onde a performance está em processo de construção, escolhendo retroceder no tempo
para descobrir como o artista chegou a suas escolhas e de como a estética foi se construindo”
(FÉRAL, 2008: 229).
NARRATIVAS EM CENA
quebrado em fins do século XIX: “A performance teatral não era mais pensada como uma
contribuição a uma produção colaborativa da peça, mas vista como um simples veículo (‘por
nós’) de transmissão da obra do autor.” (CHARTIER, 2002: 73-74). A impressão de peças
também ofereceu ao teatro o processo inverso: publicadas, podem ser encenadas por outros
artistas e companhias, sofrendo, portanto, outras alterações, adaptações, cortes e
remanejamentos dos textos. Aqui se encontra o embrião do que vai se instituir a partir do final
do século XIX como dramaturgia, ou seja, o ofício de escrever e preparar o texto que será
encenado, seja um texto autoral ou uma reelaboração de uma escrita de outrem.
Desde fins do século XIX, com o encenador responsável pela autoria do espetáculo, a
problemática entre mythos e opsis ganhou novos contornos: a linguagem da cena, o espetáculo
propriamente dito, sobressaiu-se ao texto, isso quando não promoveu sua negação ou exclusão.
Disso, passa-se a verificar no teatro moderno e contemporâneo variadas combinações entre
esses elementos, estando a figura do encenador como reguladora desse (des)equilíbrio, o que
ampliou decisivamente o sistema do palco e sua conformação autônoma. No campo assinalado,
o texto passa a sofrer inúmeras reformulações, tanto pelas mãos de dramaturgos quanto de
encenadores, que contrariam as normas vigentes do neoclassicismo em direção a uma
modernização do palco, em que textualidades diversas passam a compor sua dramaturgia,
dirigindo-se à investigação da teatralidade e, depois, de seus aspectos performativos.
Para Jean-Jacques Roubine, o surgimento do encenador está ligado ao fim das fronteiras
entre países, que passaram a circular e a confrontar suas estéticas, e à descoberta dos recursos
da luz elétrica, que apontava novas composições cênico-espaciais e complexificava a
organização dos elementos do espetáculo. Entretanto, para Bernard Dort, está atrelado à
mudança de paradigma do público, cuja homogeneidade dava lugar à heterogeneidade,
provocando um estilhaçamento etário e social de acordo com os gêneros dos espetáculos. Ele
entende que a diversidade da recepção desestabilizou o acordo prévio entre espectadores e
realizadores sobre o estilo e o sentido dos espetáculos apresentados. Os antigos diretores tinham
apenas como função assegurar a chegada do texto ao palco “segundo os legados da tradição ou
tal como o público da época as imaginava.” (DORT, 1977: 67).
fazia prevalecer seu trabalho em detrimento dos outros. Ele solicitava que o encenador se
tornasse o centro de decisão:
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Em polêmica contra o naturalismo defendido por Antoine, o textocentrismo marcou-se por ser a base da
encenação simbolista, já que se tratava de um movimento centrado na escrita, articulado e apoiado por poetas
como Maeterlinck e Mallarmé.
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Não se trata de uma completa e total derrocada do texto no teatro, mas de sua
desierarquização, de colocá-lo a par e passo com o ator, o cenário, a luz, o figurino e a música.
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Para Patrice Pavis, a encenação coloca em relação, num determinado tempo e espaço, distintos
materiais em função de um público espectador. O paradigma está invertido: é a encenação que
provoca o texto e o coloca sob tensão, conformando um discurso paralelo à escrita, sempre
marginal e paródico em seu sentido etimológico. O termo encenação, para além de uma
atividade ou prática, estende-se a uma noção estrutural do teatro e também a um objeto de
teorização e conhecimento da arte do palco.
Por outro lado, para provar que o teatro não se resumia à palavra (falada), vários artistas
se debruçaram sobre ele para revelar outros aspectos da teatralidade. Vsévolod Meyerhold,
contrariando os princípios mimético-ilusionistas e psico-realistas da encenação de Stanislavski,
seu mentor, desejou outro estatuto como encenador, desobrigando-se de qualquer subserviência
ao autor para “intervir nos textos clássicos e contemporâneos, arriscando-se às vezes a conflitos
violentos. Ele pratica a montagem, a colagem, a compilação das variantes ou leva o autor a
reescrever um ato […] em função das orientações da encenação.” (PICON-VALLIN, 2006: 78).
Tal postura o levou a interferir nos textos para colocá-los à prova de suas investigações e
pesquisas quanto à espacialidade, à interpretação e à própria dramaturgia. Meyerhold foi um
dos primeiros encenadores a praticar a adaptação de textos, num processo em que a autoria do
espetáculo promove ajustes e adequações da escrita à linguagem do palco, devendo ultrapassar
a condição de mero ilustrador do texto:
Além dos inúmeros textos inéditos que escreveu Bertolt Brecht também criou versões
para clássicos da dramaturgia como Antígona, além de uma adaptação do romance A mãe, de
Maximo Gorki. Seu trabalho revela o domínio do encenador na criação teatral, em que os gestos
de escrever e encenar fazem parte de um mesmo movimento. Gaston Baty também declarou
sua oposição ao textocentrismo, reivindicando a excelência do encenador como criador,
inventor, transportando ao palco obras-primas do teatro dramático como Racine e Musset, e
ainda adaptações de romances literários, como Madame Bovary de Gustave Flaubert e Crime e
castigo de Fiódor Dostoievski.
Uma cena que se abre e se revela: a fratura do drama tradicional, o Teatro Épico e a
dramaturgia rapsódica
de elementos épicos, como analisado por Peter Szondi nas obras de Tchekov, Strindberg, Ibsen,
Maeterlink e Hauptman.
O romance literário, por sua vez, naquela altura apresentava melhores soluções para a
representação da complexidade da vida moderna ao dispor de dispositivos narrativos mais
eficientes. O drama foi sendo novamente contaminado por procedimentos épico-narrativos, mas
não exatamente como fizeram os dramaturgos clássicos: a narrativização (ou epicização) da
dramaturgia, além do rompimento com o drama, vai proporcionar uma diversidade de
propostas, cujo objetivo já não será mais a reafirmação dos parâmetros tradicionais de conflito,
fábula e ação dramática.
Os títulos das cenas e as telas cenográficas, por exemplo, são um impulso para conceder
ao teatro aspectos oriundos da literatura: “Atribuir uma feição literária ao teatro significa impor
a figuração dos acontecimentos através da sua formulação. Tal processo possibilita ao teatro
aproximar-se de outras instituições da atividade intelectual.” (BRECHT, 2005: 40). Assim,
pode-se refletir que a verticalização dos elementos épicos na dramaturgia promoveu um
movimento que explodiu a quarta parede, visto que toda enunciação de cunho narrativo requer
obrigatoriamente alguém que a ouve, no caso do teatro o espectador. As inspirações marxistas
de Brecht clamavam por uma arte de comunicação com o receptor, de desvelamento da
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Para isso, sua escrita não investe numa evolução linear do enredo, que por sua vez se
desenvolve em curvas ou mesmo saltos, obrigando o espectador a atentar-se aos
acontecimentos, a ter uma participação ativa, ainda que mental. Essa escrita desconstrói a ideia
de progressão da ação, recorrendo à descontinuidade e à elipse, devendo-se considerar cada
parte como autônoma e independente. Tal anti-ilusionismo impõe ao teatro assumir sua
teatralidade, assim como já haviam procedido Shakespeare e alguns dramaturgos do teatro
grego, garantindo ao espectador que ele se encontra no teatro. Aderbal Freire-Filho declara que
é com Brecht “que o palco é aberto, escancarado, fertilizado, preparado para a explosão da nova
poesia cênica, para ser novo, amplo, vivo, rico de possibilidades, em suma, infinito.” (FREIRE-
FILHO, 2005: 12).
expressivo e atravessa os limites da caixa cênica, configura novas relações entre ator e
espectador, amplia as possibilidades sígnicas dos elementos cênicos, além de oferecer uma
multiplicidade de matrizes textuais à encenação. Ao propor a emancipação do conceito de
drama da noção de gênero por essa nova dramaturgia, Jean-Pierre Sarrazac pensa nas
singularidades desse novo dramaturgo, a quem não interessa a preservação de velhas formas do
passado, como o drama burguês, pelo fato de carregar em seu bojo velhas ideologias.
coser e descoser, como se o corpo do drama fosse uma matéria a ser remodelada, refeita; a outra
remete ainda à percepção dessa escrita como um monstro que, no sentido arquetípico, é o ser
que se constitui pela hibridação de partes de seres distintos num mesmo corpo. Como a célebre
criatura de Mary Shelley, o drama contemporâneo é fraturado, fragmentado, com suas partes
oriundas de materiais diversos, e seu dramaturgo é o Dr. Frankstein, responsável pela
construção do conjunto da obra.
Sarrazac reforça esse impulso narrativo no teatro como uma necessidade de alguns
encenadores romperem a quarta parede e voltarem a se comunicar diretamente com o público,
sem necessidade do intermédio do diálogo dramático. Anne Ubersfeld percebe nesse fascínio
pela narrativa o desejo de romper as barreiras da continuidade do texto convencional, enquanto
eixo estruturador da narrativa, e de se lançar à descontinuidade do romance com suas rupturas,
fragmentações, idas e vindas espaço-temporais. Pode-se também compreender nesse
movimento da cena contemporânea um restauro da narrativa, cuja organização permite a
constituição de um imaginário comum e ativo entre o palco e o espectador, esse elevado ao
posto de interlocutor, já que o sistema obriga o desaparecimento da quarta parede. O teatro que
narra excede as determinações mais visuais de um teatro pós-moderno e reinstala a escuta do
receptor e sua participação: “Através da narrativa o público é também construtor das imagens
do espetáculo e o espetáculo teatral, ao invés de ser um sistema predominantemente sensível,
torna-se também um sistema fortemente imaginativo”. (ABREU, 2000: 124). Soma-se a isso o
fato de que o espetáculo não se priva de seus elementos dramáticos: a cena híbrida acolhe, no
mesmo espaço, narrativa e representação.
Sílvia Fernandes pensa que essa preferência pode estar relacionada ao desejo de uma
escrita cênica que ultrapasse os limites do drama e possa se relacionar com uma obra em sua
amplitude constitutiva. Dessa forma, o texto não-teatral se oferece ao encenador quase como
uma folha em branco, destituído de prévias determinações, sugestões ou marcações do autor,
visto que seu destino era de outra natureza: apresentando-se virgem à cena, está disponível a
experimentações e riscos de toda ordem. O encenador-autor pode ser responsável pela escolha
do texto e administrar seus cortes, deslocamentos e edições, construindo ou interferindo na
matéria dramatúrgica. Assim, seu trabalho se apropria também das ideias de encaixe e
montagem, cujas mãos manipulam e organizam o espetáculo, obtendo dele um conjunto
harmônico, uma totalidade.
Reforça-se dessa forma a dessacralização da escrita de autor, visto que o texto nas mãos
do encenador pode ser reescrito, adaptado, montado, recortado e remontado, configurando
operações sobre ele, seja escrito ou não para o teatro. A passagem do trabalho do encenador de
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servir ao texto para servir-se do texto em prol de uma obra autônoma e singular sustenta uma
postura de liberdade criativa que, por sua vez, estabelece relações de ambiguidade com a escrita.
Jean Pierre Ryngaert distingue as práticas que visam explorar sentidos diversos de leitura de
um mesmo texto e aquelas que o utilizam apenas como pretexto para a encenação: “Já que tudo
é permitido, também os autores podem se permitir imaginar as formas mais originais e mais
inovadoras, dado que as convenções do passado explodiram e não exercem mais sua ditadura.”
(RYNGAERT, 1998: 65).
É nesse sentido que se está a pensar no encenador-autor, nos casos em que sua
encenação se opera a partir de textos não-teatrais e dos procedimentos utilizados para sua
transposição que estão diretamente relacionados à liberdade de composição e criação do
espetáculo. Bruno Tackels denomina-o como escritor de palco por perceber que muitas dessas
escrituras (independentes se operadas pelas mãos do dramaturgo ou do encenador) se realizam
nos ensaios, em que podem ser testadas, experimentadas, refeitas. Na passagem do livro à cena,
“Os escritores de palco não fazem outra coisa. Cada um à sua maneira, eles buscam os meios
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justos para traduzir um corpus textual na linguagem viva do teatro, composto de corpos vivos,
de máquinas, de técnicas e de efeitos.” (TACKELS, 2009: 12, tradução minha).
De outro lado, a presença do dramaturgo na sala de ensaio incide numa escrita que
também se realiza a partir de improvisações, de materiais pesquisados e fornecidos pelos atores.
Principalmente por meio dos dispositivos tecnológicos como o computador e a internet, que
alteraram os modos de ler e escrever no século XXI, pode-se pensar também numa dramaturgia
Ctrl C/ Ctrl V, termo proposto por Antônio Hildebrando que corresponde ao mesmo gesto de
recortar e colar, organizar, juntar, ainda que para ele isso se dê de forma aleatória,
descompromissada, descolada de uma biblioteca (anterior) de leitura. O recurso técnico de
escrita digitalizada transformou o modo de se pensar numa escrita autoral, que passa a ser
tomada como uma rede de tessitura coletiva. Entretanto, por sua vez, ao colocar um texto do
gênero narrativo à prova da cena, esses encenadores acumulam o ofício da dramaturgia e
assumem outra natureza, a dos encenadores-autores. Ana Pais observa que o dramaturgo, na
posição de elemento externo à criação, revela-se como contraponto crítico importante para o
encenador, pois sua função é também questionar. Entretanto, “Quando o encenador assume essa
função ele passa a eliminar a possibilidade de interlocução e de questionamentos.” (PAIS,
2004a: 29), reforçando a autonomia da criação cênica.
Para Barthes, a palavra escrita é ambígua, pois se refere tanto à sua materialidade (gesto
físico, corporal, gráfico) quanto à imaterialidade (valores estéticos, linguísticos, sociais,
metafísicos): é “uma prática significante de enunciação na qual o sujeito ‘apresenta-se’ de um
modo particular.” (BARTHES, 2009: 72). A dramaturgia é o principal suporte material da
escrita cênica, em que se grafam a concepção e a estrutura do espetáculo, os textos falados,
divisões de cenas, rubricas e subtextos, podendo abarcar inclusive marcações, movimentações,
mapas da cenografia, pontuações musicais e sonoras e mudanças de iluminação. “Aberta e
instável, a escrita é, portanto, performativa. Ela é multisignificante e, portanto, decodificável.”
(FÉRAL, 2009: 74). Assim, a dramaturgia escreve a concepção autoral do encenador, revelando
aspectos de sua poética, dando-se a (re)conhecer ao público. A escrita cênica se realiza
integralmente (corporal, sonora e visualmente) no palco, no encontro com o espectador. A
possibilidade de melhor compreensão da escrita do encenador fora do ambiente teatral pode
residir no vídeo do espetáculo que, dependendo da maneira como é filmado, é capaz de revelar
a poética de seu realizador. A dramaturgia, ao contrário, é invisível porque,
por um lado, é uma práxis, um modo de fazer que se confina ao processo de gestação
de um espetáculo; e, por outro, porque permanece nele como o conjunto de relações
de sentido entre os materiais cénicos estruturados, decorrentes do olhar artístico. A
dramaturgia é o outro lado do espetáculo, o seu avesso invisível que, como um objecto
côncavo, implica uma complementaridade convexa. (PAIS, 2004a: 15-6)
Ao abrir o palco para outras textualidades que não resumem mais à forma canônica do
texto dramático, o encenador-autor investe nessa dramaturgia da leitura e de leitura, pois
envolve o universo ficcional que compõe sua biblioteca e seu imaginário. Trata-se de uma
dramaturgia “que se faz fundamentalmente como livre manipulação de arquivos, de acervos e
de bibliotecas por dramaturgos-leitores ou dramaturgos-pesquisadores”, formando um banco
de dados para sua utilização “em arranjos mais ou menos fragmentários e descontínuos, mas
necessariamente intertextuais, paródicos e plurívocos, na medida em que se trata de criações a
partir de criações, ou de escrita como comentário e como retomada de escritas e discursos de
outros autores” (COSTA FILHO, 2009: 44).
Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1978. Ele mesmo retomou esse processo em 2010 com
a estreia de Policarpo Quaresma, do romance O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, conquistando a reverência de público e crítica. Desde a década de 1970, vários
encenadores se utilizaram da matéria-prima narrativa, impondo a ela graus maiores ou menores
de adaptação, como Luiz Carlos Vasconcelos (Vau da Sarapalha, do conto Saparalha, de João
Guimarães Rosa), Luiz Arthur Nunes (A vida como ela é e O correio sentimental de Nelson
Rodrigues, da prosa de Nelson Rodrigues), Enrique Diaz (A paixão segundo G.H., romance de
Clarice Lispector), Gilberto Gawronski (Meu destino é pecar, de Nelson Rodrigues, Dama da
noite, de Caio Fernando Abreu, Queridinha, conto de Tcheckov), Bia Lessa (Cartas
portuguesas, textos de Madre Mariana Alcoforado; O homem sem qualidades, obra de Robert
Musil; Viagem ao centro da terra, romance de Jules Verne; e Orlando, livro de Virginia Woolf)
e, mais recentemente, José Celso Martinez Corrêa (Os sertões, narrativa de Euclides da Cunha;
O banquete, de Platão), Gabriel Villela (A crônica da casa assassinada, romance de Lúcio
Cardoso), Nara Keiserman (Eu, Caio – jogo teatral e No se puede vivir sin amor, com textos
de Caio Fernando Abreu), José Possi Neto (O evangelho segundo Jesus Cristo, de José
Saramago); Clarice Niskier (A alma imoral, do livro de Nilton Bonder); Hector Babenco (Hell,
texto de Lolita Pille), Denise Bandeira (A Eva futura, narrativa de Auguste Villiers de L’Isle-
Adam), Cibele Forjaz (O idiota, de Dostoievski), Cia. dos Atores de Laura (O filho eterno, obra
de Cristovão Tezza) e Priscilla Rozenbaum (Um coração fraco, conto de Dostoievski), Moacir
Chaves (A lua vem da Ásia, obra de Campos de Carvalho).
Teatro (Vulgaridades Sublimes, baseada nos contos Pai Contra Mãe e A Cartomante, de
Machado de Assis), Cláudio Dias (A máquina de fazer espanhóis, romance de Walter Hugo
Mãe, montagem de formatura do Cefar).
Principalmente por meio da declaração de Antoine Vitez que se pode “fazer teatro de
tudo”, a cena moderna e contemporânea sustenta a prerrogativa de que tudo é representável, ou
seja, “nenhum texto está, a priori, excluído do campo do teatro por falta de teatralidade.
(RYNGAERT, 1998: 31). Nesse sentido, toma-se o conceito de dramaturgia da leitura de Ana
Pais para quem se trata de “um modo de estruturar o espetáculo que se prende com uma visão
ou uma interpretação do mundo, orientada por princípios estabelecidos no início do processo
criativo e em função dos quais o espetáculo se realiza.” (PAIS, 2004: 34). A opção de alguns
encenadores por textualidades narrativas está relacionada à libertação da própria dramaturgia
de seus indícios canônicos e o romance, o maior representante do gênero, torna-se a matriz
textual fundadora de um campo vasto de criações e experimentações cênicas.
Tomado por Hegel como a epopeia da era burguesa, o romance se desenvolveu durante
o Realismo e desde então tem revelado um folêgo intenso para se reinventar, formal e
tematicamente, podendo ser reconhecido como um fenômeno multiforme. Georg Lukács,
filósofo húngaro e um dos mais importantes intelectuais europeus do último século, propôs um
tratado sobre o romance logo em sua juventude, obra que se tornou um clássico da Teoria da
Literaura e que influenciou as reflexões de Walter Benjamin e Theodor Adorno sobre o assunto.
Inicialmente para ele a correspondência alemã entre os conceitos de romance e romântico
justificava-se pelo fato do primeiro ser a forma que expressa o desabrigo transcendental do
homem moderno. O romance é o equivalente histórico da epopeia na época moderna, em que o
rompimento entre homem e comunidade/ divindade exige uma nova forma literária que o
institua e represente.
Daqui podem ser extraídos dois conceitos que são caros a Lukács e que serão também
explorados por Mikhail Bakhtin, cada um a seu modo: a polifonia vocal e a linguagem
monológica. Para o linguista russo, o discurso romancesco foi tratado durante muito tempo por
pesquisadores da Filosofia, da Linguística e da Estilística como uma unidade de linguagem de
caráter monológico por corresponder a uma individualidade de escrita e de narrativa,
constituindo-se como um universo autônomo e dirigido a um leitor empírico passivo. Percebido
em seu conjunto, Bakhtin caracteriza o romance como um fenômeno plural no que diz respeito
ao estilo, à língua e à vocalização: “O pesquisador depara-se nele com certas unidades
estilísticas heterogêneas que respousam às vezes em planos linguísticos diferentes e que estão
submetidas a leis estilísticas distintas.” (BAKHTIN, 1988: 73).
39
No século XVII, quando o leitor já se encontra projetado no texto, sua relação com o
romance passa a ser individualizada, e “a leitura em voz alta era vista, assim, como um meio de
ler que fundava e alimentava as relações de sociabilidade, mas também como uma prática que
impossibilitava o investimento completo da sensibilidade no texto lido.” (CHARTIER, 2002:
9). O romance moderno, por conseguinte, propõe um novo estatuto a partir dos recursos de
impressão e circulação das obras em massa. Emblemático quanto à autoria e à recepção
individuais, promoveu a transformação do hábito de leitura em voz alta para a silenciosa, ainda
que isso custasse alguns questionamentos quanto aos “perigos da leitura”, principalmente em
relação às mulheres. Numa época em que a figura feminina ainda se mantinha nos domínios do
lar, alienada da vida produtiva e do trabalho, pensava-se que a subjetividade do romance e a
introspecção de sua fruição pudessem trazer graves consequências físicas e mentais ao
indivíduo2. Sua própria escrita em princípio objetivava a inscrição de alguns indícios de
2
A controversa expressão “revolução da leitura”, que transformou as práticas de escrita em meados do século
XVIII, remete às posições defendidas por alguns intelectuais que identificaram efeitos maléficos, físicos e morais
quanto à fruição da imaginação pela ficção romanesca. A leitura particularizada desses textos, em oposição àquela
coletivizada e audível, parecia instaurar para o leitor uma indistinção entre o mundo do texto e o do leitor. O
excesso de leitura era tratado como patologia individual ou como uma epidemia social, além de ser considerada
41
oralidade para manter sua destinação à leitura em voz alta; por outro lado, a complexidade da
linguagem romancesca exigia uma apreensão à parte, em solidão. Chartier expõe algumas
reflexões, exaltações e elogios de Diderot à leitura, incluindo a de voz alta, dos romances de
Richardson, cuja escrita envolve o receptor:
A voz do autor emerge na prosa romanesca: ele também é sujeito, estando ou não
disfarçado na voz da personagem; é soberano, pois, além de deter as propriedades da escrita,
sabe mais que os personagens, correspondendo a uma entidade divina onipotente que conduz
suas criaturas numa sucessão de acontecimentos que se encaminha a uma conclusão, a um fim.
Sua representação do humano dirige-se à interioridade, situada na divergência entre aparência
e essência, influenciada pelos procedimentos cômicos que desnudam os seres, expõem seu
propícia à desorganização mental, pela negação do mundo real e a preferência pela fantasia. Pensada a partir de
seus feitos físicos, corporais, a leitura é aproximada dos prazeres solitários.
3
Ao ser utilizado como matéria-prima dramatúrgica de espetáculos, o texto romanesco ganhará novamente a voz
falada, aspecto que será examinado no tópico seguinte.
42
avesso e revelam deles aspectos distintos. O autor do romance estabelece novas relações com
o mundo que representa, promovendo uma hibridização entre seu discurso e o da personagem:
O romance está ligado aos elementos do presente inacabado que não se deixam
enrijecer. O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado.
Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode representar
os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão, pode se intrometer na conversa
dos personagens, pode polemizar abertamente com os seus inimigos literários, etc.
[…] É exatamente esta nova posição do autor, primeiro e formal, na zona de contato
com o mundo representado, que torna possível a sua aparição no campo de
representação da imagem do autor. (BAKHTIN, 1988: 417)
Construído numa zona de contato com o presente em devir, o romance tem como
premissa a sua instabilidade formal e temática, capaz de sofrer alterações e acompanhar as
mudanças da realidade a ele vinculadas. A crise do romance da era burguesa, o romance
romântico, foi indicada principalmente pelo aperfeiçoamento dos dispositivos de impressão em
massa e invenção dos novos meios tecnológicos. Entretanto, como temiam alguns pensadores,
não configurou como uma ameaça ao romance. O século XX viu este gênero transformar-se e
estabelecer contaminações entre as novas linguagens. O romance influenciou o jornalismo,
assim como o cinema, o teatro e os meios de comunicação de massa, ao passo que ele sofria
influência desses mesmos sistemas.
O realismo literário, assim como o teatral, encontra seu espaço até as primeiras décadas
do século XX e sua configuração do real está atrelada, para o leitor, ao conceito de ilusão.
Adorno, contemporâneo de Brecht, compara o romance burguês a um palco à italiana, onde o
afastamento físico do público em relação ao espetáculo pode provocar sensações de fantasia,
43
irrealidade. Daí, seu pensamento articular-se em torno dos problemas gerados pelas mudanças
sociais pós-Revolução Industrial: extensas jornadas de trabalho, tempos reduzidos de lazer,
alienação do indivíduo etc. Não é mais possível o narrador se manter incólume sob pilares da
objetividade dos fatos narrados, pois o mundo não tem mais o sentido que tinha para as pessoas
do século XIX.
Deve haver uma distância estética na relação entre narrador e leitor, que implica em
variações semelhantes às que são possíveis pelas câmeras do cinema: o leitor é guiado pela
narrativa, outras vezes pode ser deixado de lado, apenas como mero espectador, ou levado para
os meandros da construção textual, por meio de comentários do narrador, como se adentrasse
os bastidores de um teatro e descobrisse as maquinarias, as amarras escondidas para provocar
a ilusão da realidade. Isso configura aspectos de metanarratividade, pois, enquanto narra, mostra
seu gesto, o que aproxima essa escrita da escrita teatral brechtiana, por exemplo. Está claro que
Adorno e Brecht, para além de serem contemporâneos, tinham afinidades de pensamento sobre
esse campo.
O ritmo é inseparável da frase, pois é imagem e sentido, assegura Paz. A frase poética,
unidade indivisível e compacta, se forma pela simultaneidade entre ritmo, imagem e
significado: nisso reside esse hibridismo entre verso e prosa na narrativa contemporânea. O
investimento nas pontuações marca essa escrita, como se percebem nas incessantes vírgulas de
José Saramago, Hilda Hilst e James Joyce, que buscam imprimir outro ritmo de leitura,
aproximando-a de uma prosa poética em que ora se constitui como círculo, ora como linha,
ainda que espiralada. Ao relacionar prosa e verso, a narrativa contemporânea toma posse de
imagens poéticas e conceitos, narrativa e discurso, em meio a uma profusão de vozes (polifonia)
que ecoam no fluxo da escrita. Se só a imagem é capaz de dizer o indizível, a interpenetração
entre prosa e verso encaminha a narrativa para a pluralidade de sentidos:
A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer.
Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais sentido que as suas
imagens. Ao ver a cadeira, apreendemos instantaneamente seu sentido: sem
necessidade de recorrer à palavra, sentamo-nos. O mesmo ocorre com o poema: suas
imagens não nos levam a outra coisa, como ocorre com a prosa, mas nos colocam
diante de uma realidade concreta. (PAZ, 1996: 47)
“Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe
e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais
eficaz que qualquer tecnologia.” (ECO, 2012: 49).
Tal percepção se potencializa nos últimos anos, quando o romance se depara com novos
procedimentos de escrita como a linguagem da internet e mídias digitais e seus novos
mecanismos de transmissão (blogs, arquivos digitais, audiobooks, tablets etc). A literatura,
considerada muitas vezes como um passatempo de luxo é, ao contrário, “uma atividade
insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática” (LLOSA,
2009: 21). O romance se reajusta e se renova, provando sua vitalidade para expressar as
questões humanas. Portanto, de Cervantes a Flaubert, de Dostoievski a Joyce, de Machado de
Assis a Guimarães Rosa, de Hilda Hilst a João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho, de Eça de
Queiroz a Augusto Abelaira, de Saramago a Gonçalo M. Tavares, o romance ocidental tem
revelado grande disposição de se reinventar e sua virilidade, como cunhou Lukács (2000), ainda
se mantém, mesmo que alguns pensadores descrentes acreditem na sua extinção.
narrativa, visto que essa “exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança, a diferença.”
(TODOROV, 1980: 62). A narrativa configura um encadeamento cronológico de
acontecimentos, algumas vezes marcado pela causalidade de unidades descontínuas, tendo
como dois princípios a sucessão e a transformação. A sucessão implica numa ordenação de
fatos que se seguem numa ordem lógica, enquanto a transformação envolve uma alteração de
um termo em outro, podendo ser de negação, de modo, de intenção, de conhecimento.
Para Paul Ricoeur, o ser humano existe em relação à linguagem e à alteridade e sua
compreensão do mundo é relativizada no confronto com a interpretação do outro. O que vai
48
diferenciar um homem de outro é a sua postura diante da linguagem (ou do mundo), mas sua
compreensão do sentido enunciado é ampliada a partir da percepção de que aquele é um
interpretante semelhante. O autoconhecimento se realiza na dialética com a alteridade,
interceptado pela linguagem. A noção de identidade é também mediada pela narratividade, em
que a configuração temporal de um enredo produz outros processos de compreensão do sujeito.
A narração não garante os efeitos da enunciação sobre o receptor, podendo resultar em
interpretações concordantes ou discordantes, estando na ordem do subjetivo. A identidade
narrativa do sujeito, assim como a linguagem, é sempre inacabada, inconclusa, aberta a
interpretações diversas. Narrar é uma forma de estar no mundo e entendê-lo; é por meio da
narrativa que se pode reunir e representar distintas perspectivas sobre o tempo.
Outro aspecto que irmana teatro e romance é a organização em cenas, unidades mínimas
de estrutura, que conquista seu estatuto de enquadramento, apresentando, portanto, bordas e
limites. É por meio de quadros (capitulares, cênicos) que o narrador promove seus
deslocamentos espaço-temporais e, como discutido a partir de Derrida, conforma uma
conjunção entre presente, passado e futuro. O texto narrativo pode ser tomado, portanto, como
um conjunto de quadros verbais que permite ao leitor uma coexistência entre espacialidade e
temporalidade, de estático e dinâmico, corte e fluxo, simultaneidade e sucessão. Bakhtin
acrescenta que o estilo do romance pode ultrapassar o conceito de épico e constituir-se de
elementos dramáticos, “reduzindo-se o elemento narrativo à simples indicação cênica para os
diálogos dos personagens.” (BAKHTIN, 1988: 77).
49
A princípio, o drama requer uma diferente organização dos seus elementos, mas
Todorov encontra em Notas de um subterrâneo, de Dostoievski, ademais da exposição de ideias
do autor, a sua aproximação com o drama, por meio de uma encenação sem falas e pela
disposição de vários papéis. O hibridismo entre diálogo e narrativa caracteriza, por exemplo, a
prosa ficcional de Hilda Hilst4 que muitas vezes parece mais apropriada à encenação teatral do
que à leitura. Ainda, alguns de seus narradores, como o escritor Osmo de Fluxo-floema,
parecem dirigir-se a uma plateia, transformando a figura do narratário numa entidade coletiva:
“há três dias que dou umas cusparadas pelos cantos, a minha mãezinha não me aguentava desde
pequenininho, não só por causa dessas cusparadas, não me agüentava por tudo, entendem? Não,
não entenderam, já vi.” (HILST, 2003: 76, grifos meus). Não é à toa que suas narrativas
costumam ser mais encenadas que sua própria obra dramática, mais lírica e poética.
Uma mulher lê em voz alta histórias para o filho adormecer. Para tanto, busca uma voz
que possa conduzir seu ouvinte ao estado de atenção e quietude, incitando-o a imaginar os
eventos narrados e personagens descritos. Modula sua voz algumas vezes, quando reproduz a
fala de uma ou outra personagem, procurando distingui-la da do narrador, destaca um ou outro
gesto. O ouvinte, por sua vez, atravessa um percurso, acompanhando os acontecimentos
imaginados, agarrando-se à sequência de eventos, como numa corda que não o deixe cair, até
4
Tomei a escritora Hilda Hilst para exemplificar, pois foi objeto de minha investigação de Mestrado em Literaturas
de Língua Portuguesa, publicada pela Ed. Annablume em 2010 sob o título O fluxo metanarrativo de Hilda Hilst
em Fluxo-floema.
50
chegar ao final dessa travessia, quando há o gozo da sua conclusão e seu esvanecimento, e o
processo se reinicia. Essa imagem, de uma performance de leitura, revela uma prática ancestral
de vocalização de textos, reais ou ficcionais, que têm caracterizado uma das formas de interação
humana ao longo dos tempos.
Esse tipo de comunicação, que se funda pela narrativa como mensagem e transmissão
de fatos, personagens, acontecimentos e sentimentos, retoma alguns princípios fundamentais
para esta investigação: as relações entre a palavra impressa e a palavra falada, entre escrita e
oralidade, entre leitura silenciosa e leitura performatizada (onde os corpos participam todo
ouvidos); o estabelecimento de um processo de comunicação que se dá na interação entre dois
seres humanos no mesmo tempo e espaço mediados pela palavra em que importam a
performance de quem fala (e atua, em alguns casos) e a recepção de quem ouve; a passagem
que se opera do escrito para o vocal/ corporal promove alterações temporais e espaciais pelo
lugar onde essa performance se realiza e atualiza no presente algo similar a um acontecimento
teatral; a ligação dos seres humanos com a narrativa que, fundados sobre o mito de Sherazade,
mantêm viva a ideia de adiamento da morte.
O gosto pelo narrar e ouvir histórias remonta às Mil e uma noites, em que a narradora
Sherazade se propõe a entreter o rei persa Shariar, que tinha como hábito deflorar mulheres
virgens e depois mandar decapitá-las. Oferece-se a ele como esposa e inicia seu plano de conter
as práticas assassinas de seu recém-marido, contando-lhe histórias que duravam o percurso de
uma noite, findavam ao amanhecer e recomeçavam na noite seguinte. Curioso para conhecer o
desenrolar dos acontecimentos, Shariar vai renovando diariamente sua concessão de vida a
Sherazade, desde que as histórias narradas por ela fossem retomadas. Dessa forma, mil uma
noites atravessadas e três filhos gerados neste percurso levaram o rei a rever suas atitudes e
oficializar sua narradora como rainha.
enganar a morte: “A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa à morte. [...] O livro que
não conta nenhuma narrativa mata.” (TODOROV, 2003: 128). Isso atribui à palavra um poder
encantatório ao ser transformada em carne pela sua corporificação/ vocalização. Adélia Bezerra
de Menezes confirma o poder dessa palavra, a partir da perspectiva das Mil e uma noites e sua
protagonista:
A sultana era uma contadora de histórias, não em primeira linha uma escritora: ela as
contava de viva voz. […] Não podemos esquecer da carga corporal que a palavra
falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo: modulada pela voz humana, e
portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz
humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos
da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso:
ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca
dimensão sensorial. (MENEZES, 1995: 22)
A sensorialidade oferecida pela fala, que não se resume à voz, ao som ou aos
movimentos da cavidade bucal, pois que integrada ao próprio corpo, é capaz de contaminar
simultaneamente falante e ouvinte. A comunicação por meio da palavra falada realiza-se pela
audição, centro da percepção humana, que confere uma experiência de unidade: “O som nos
invade por todos os lados e passa através de nós. Todo nosso corpo é uma unidade auditiva,
porque estamos no centro do campo sonoro.” (MATOS e SORSY, 2009: 6). Portanto, nesse
aspecto, o corpo é um corpo todo ouvidos pela capacidade do som de ocupar o espaço, promover
uma integração entre falantes e ouvintes. Os corpos ouvem e compreendem, pois “Nossos
‘sentidos’, na significação mais corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as
ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento” (ZUMTHOR, 2007: 81). Não apenas
pode-se pensar que o conhecimento é dado através do corpo, mas também porque ele é
primordialmente conhecimento do corpo.
Por isso a oralidade se opõe a outro meio de transmissão de textos, a palavra escrita,
cujo maior expoente é o livro, ou seja, um objeto que se caracteriza por uma reunião de folhas
de papel encadernadas, formando um volume recoberto por capa resistente, envolve a narrativa
de um autor sobre personagens, enredos e mundos imaginados por ele e destinados à leitura
silenciosa. O corpo do leitor se manifesta nesse tipo de leitura, entretanto a ausência da presença
física de quem fala no papel impresso oferece sua sonoridade invisível à mente de quem lê. O
centro da percepção do leitor quanto à palavra escrita dirige-se ao campo visual.
52
Por meio de Zumthor (2007) e Chartier (2002) pode-se pensar que a distinção entre
leitura oral e leitura silenciosa de textos e seus mecanismos de transmissão têm perpassado a
historiografia do teatro e literatura, enquanto artes autônomas, ainda que sejam irmanadas pelo
texto enquanto meio de comunicação entre artistas e receptores. Entretanto, para Jacques
Rancière a ideia de literatura não é trans-histórica, reunindo todas as formas da arte de falar e
de escrever desde tempos imemoriais, pois seu conceito foi elaborado nos últimos 200 anos e
relaciona-se ao surgimento das sociedades democráticas. O termo literatura, que hoje designa
a arte dos escritores, anteriormente referia-se a uma prática erudita conformada numa sociedade
aristocrática.
Paul Zumthor, pesquisador da poesia medieval, interessa-se pela arte da palavra oral,
aquela compartilhada entre falantes e ouvintes e cuja prática antecede a era da escrita e do livro
como suporte. Esse processo calcava-se, de um lado, pela vigência da ideia de uma autoria
53
coletiva e anônima, que se refere à transmissão de um saber comum, e que depois será
confrontada pela autoria singular, que alude a um saber individualizado, particularizado,
nomeado. O aspecto performático está implicado diretamente na oralidade: seja por meio de
uma enunciação literária ou de uma representação teatral, a veiculação do texto dá-se a partir
de uma conjunção de fatores extra-textuais que conjugam com ele e, de certa forma, modificam
sua apreensão por parte do ouvinte-espectador.
5
Paul Zumthor denomina seu objeto de investigação como “poético”, pois para ele o termo “literatura” envolve
uma noção historicamente demarcada, instituída, inaugurada no século XVII com o romance: “Eu a distingo [a
literatura] claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de
seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.” (ZUMTHOR, 2007:
12)
54
o real e a ficção (que representa o real, infunde a ilusão)?” (FÉRAL, 2009: 83). Portanto, o
espaço em que se inserem a leitura e a performance se configuram pelo caráter ficcional a ele
atribuído. Esse encontro espacial entre locutor e espectador-ouvinte aproxima teatro e literatura
pelo aspecto ritualístico que os envolve e se dirige a uma coletividade.
Dessa forma, o palco se esvaziou, perdeu aquele sentido, o que levou Sarrazac a
reconhecer que ao teatro restou a exibição de si mesmo e não mais de um universo ilusionista
fabricado por diversos dispositivos que pretendem convencer os espectadores de que ali se
representa um fragmento de realidade. “O palco, mesmo (e sobretudo) o mais preenchido,
continua vazio; e é justamente esse vazio – o vazio de toda e qualquer representação – que ele
parece estar destinado a exibir perante os espectadores.” (SARRAZAC, 2009: 16). A
teatralidade, portanto, foi revelada pela nudez do palco, pelo esvaziamento de sentido de
representação, estando disponível à criação e a novas construções a partir dos mesmos
mecanismos e elementos que o fundaram, e ainda incorporando linguagens modernas, como o
próprio cinema, os meios de comunicação de massa e, mais recentemente, os novos recursos
tecnológicos e virtuais.
Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos,
forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma
referência a outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena
no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala a
ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido.
Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.
(FÉRAL, 2008: 203-4)
essa oscilação. A teatralidade, por meio da performance, instaura um tipo de comunicação entre
ator e público, em que a exposição dos mecanismos de fabricação da ilusão não destitui suas
propriedades, ao contrário, potencializa seu sentido. É como se o mágico, ao revelar o truque,
não desfizesse o poder de sua magia porque nesse jogo acabou por afirmar um novo truque. “O
que o espectador olha, e aquilo pelo que ele se deixa seduzir, é precisamente esta arte da
esquiva, da falsa aparência, do jogo em que ele está precisamente num lugar onde não sabia que
estava. Ele descobre assim a força da ilusão.” (FÉRAL, 2008: 205-6).
Esta “materialidade do texto”, que deve ser entendida como a inscrição de um texto
na página impressa ou como a modalidade de sua performance na representação
teatral, introduz uma primeira descontinuidade, fundamental, na história dos textos:
as operações e os atores necessários ao processo de publicação não são mais os
mesmos antes e depois da invenção de Gutenberg, da industrialização da imprensa e
do começo da era do computador. (CHARTIER, 2002: 11)
e a voz do autor/ narrador se revela internamente para quem lê. Sobre a relação entre escrita e
vocalidade, José Da Costa Filho reflete que
os sons vocais podem ser entendidos como marcas de uma escrita por meio da voz e
não de um registro gráfico. As marcas vocais têm a particularidade de serem menos
fixas que aquelas de caráter gráfico. Elas estão irremediavelmente ligadas a um
âmbito contingencial ou efêmero, mas isso não faz com que deixem de ser marcas.
(COSTA FILHO, 2009: 85)
O texto como escritura apresenta-se como linguagem sem voz, tanto quanto o olhar,
que mesmo quando exerce seu poder expressivo, apresenta-se desprovido da
tactibilidade do corpo, da urgência do respiro. Sem corpo, sem respiração e sem gesto,
a escritura não é suficiente para fixar o texto, que está sujeito a remanejamentos de
reelaboração da boca. [...] E quando se interpretam os textos, também prevalecem
valores atribuídos à voz. (WERNECK, 2009b: 72)
no espaço intersubjetivo: “escuto quer dizer escuta-me” (BARTHES, 1990: 217). Essa
capacidade humana também atua como seleção, ligada a uma função de inteligência, muitas
vezes impedida pelos excessos da poluição sonora. Quando o sujeito fala primeiramente escuta-
se sua própria voz, cujo eco deve atingir o parceiro, rompendo uma zona de silêncio:
Mas o teatro é, antes de tudo, uma arte específica na qual a audição e a visão sofrem
estranhas metamorfoses: uma arte que trabalha uma matéria teatral na qual palavras,
sons e imagens se irrigam reciprocamente, numa forma cujas proporções e relações
são constantemente modificáveis, na qual a imagem visual ou sonora nunca é inferior
ao texto, falado ou escrito. (PICON-VALLIN, 2006: 109)
61
Ao imprimir sobre esse texto uma ação vocal, seja em direção à plateia ou a outro ator
ou personagem, o ator redimensiona sua condição narrativo-monológico-silenciosa para
alcançar uma condição dramática-dialógica-sonora. Picon-Vallin percebe que as palavras, ao
serem apoderadas pelo palco, acabam por se tornarem outras, pois o espaço cênico “as
desestabiliza, concretiza, adensa, modifica.” (PICON-VALLIN, 2006: 84). A palavra escrita
literária não foi pensada em sua dimensão auditiva, mas sua vocalização é portadora de sentidos,
independente das intenções que o ator lhe oferece, levando o espectador-ouvinte à escuta em
direção ao seu próprio silêncio. Além disso, tanto a literatura quanto o teatro têm a ganhar ao
ampliar suas possibilidades expressivas no processo de transposição de um para a linguagem
do outro, conforme aponta o diretor Luiz Arthur Nunes:
Comparato esclarece que esse procedimento é “uma transcriação de linguagem que altera o
suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale a transubstanciar, ou seja,
transformar a substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem.” (COMPARATO,
1995: 330). A noção de transcriação também é cara a Linei Hirsch, que vê no termo adaptação
certa inadequação, em detrimento de aproximar-se de ajustamento, acomodação ou, mesmo em
sentido estrito, referir-se à “facilitação e/ou modernização de uma obra literária narrativa, para
torná-la mais acessível ao público.” (HIRSCH, 2000: 151). Tomando a denominação de
Haroldo de Campos para tradução poética no campo da Teoria da Literatura, Hirsch apropriou-
se da terminologia transcriação teatral ao aludir a espetáculos cuja dramaturgia prescinde de
uma obra narrativa.
No exame dos romances encenados por Aderbal Freire-Filho e João Brites, partiu-se
primeiramente de tomar a edição como gesto dramatúrgico primordial de ambos, em que
nomeei e classifiquei alguns gestos de escrita que se aproximam de operações matemáticas. Os
procedimentos básicos de edição, apontados neste trabalho e que serão devidamente explorados
e conceituados nos capítulos de análise, são subtração (exclusão e eliminação), adição
(acréscimos extra-textuais ao original), divisão (distribuição de textos por ator/ personagem) e
multiplicação (repetição/ reiteração de personagens, excertos ou informações). A esses
acrescenta-se o deslocamento como recurso de manipulação, ordenação e reorganização, que
se refere à edição propriamente dita. Reunidos na composição dramatúrgica, formam diversas
equações que, por meio delas, operam a escritura cênica desses encenadores.
64
A rejeição à quarta parede pela narração faz com que o ator volte-se diretamente à
plateia. Os recursos de distanciamento obstruem a produção do efeito de empatia sobre aquele
que assiste. Entretanto, para Brecht, o ator, ao se esforçar para reproduzir determinadas
personagens e assim revelar seu comportamento, não carece abrir mão da empatia, contanto
que a recorrência à Psicologia se realize durante o processo de criação, na preparação do papel.
Sua relação com a personagem desde os ensaios deve cultivar tanto uma atitude de surpresa
quanto de contestação, devendo assimilá-las ao caractere que representa. Dessa forma, o ator
brechtiano precisa renunciar à metamorfose stanislavskiana e proferir o texto em caráter
citacional. Dentre os recursos que promovem o distanciamento entre o intérprete e a
personagem, Brecht aponta o investimento na terceira pessoa do discurso e no tempo passado,
na intromissão de indicações sobre a encenação e comentários do ator.
O ator brechtiano não é um objeto entre objetos. Quanto mais sua interpretação leva
em conta a materialidade da existência, mais exige uma distância em relação a esta
materialidade. Muitas vezes o ator precisa sair de si mesmo e, voltando-se para o
público, cantar para a plateia a verdade de uma personagem da qual, até então, havia
revelado apenas as aparências ou a ideologia. (DORT, 1977: 302)
para as emoções de sua personagem, ou então uma ação que revele objetivamente os
acontecimentos que se desenrolam no seu íntimo” (BRECHT, 2005: 108). Somente dessa forma
é possível tratar a emoção com grandeza: distanciado da personagem como um historiador, deve
dominar o gesto social, compreendido como “a expressão mímica e conceitual das relações
sociais que se verificam entre os homens de uma determinada época.” (BRECHT, 2005: 109).
Ampliando a reflexão sobre os postulados brechtianos sobre o trabalho do ator, Aderbal Freire-
Filho reforça tais contribuições para o teatro contemporâneo: “O palco que pode tudo, que não
tem limites expressivos, precisa, em primeiro lugar, ser o palco do ator. Isto é, precisa confiar
plenamente no ator para a exploração das suas infinitas possibilidades.” (FREIRE-FILHO,
2005: 17).
Luiz Arthur Nunes, professor e encenador gaúcho radicado no Rio de Janeiro, dentro de
suas reflexões sobre a narrativização da cena a partir de sua experiência também como
pesquisador e de alguns trabalhos práticos desenvolvidos nesse campo, cunha o termo ator-
rapsodo, a partir do autor-rapsodo sarrazaquiano. Para designar o ator-narrador e configurar o
modo épico de exposição de relatos, recupera a terminologia dada aos antepassados gregos que
iam de cidade em cidade cantar poesias e, sobretudo, fragmentos extraídos das obras de
Homero. O ator a que se refere trabalha sua composição num teatro em que a própria
dramaturgia está na categoria do narrativo. Diferenciando sua proposta da convencional
adaptação literária, em que o texto do autor é transferido ao ator, Nunes estabelece para esse
intérprete o estatuto de ator-rapsodo: “A fala autoral – o enunciado narrativo – é confiado aqui
ao ator. Este, graças a isso, resgata uma forma de comunicação milenar, que lhe possibilita
saltar fora do mundo ficcional para contá-lo, descrevê-lo ou comentá-lo.” (NUNES, 2000: 40).
A passagem de um texto de natureza literária à sua concretude teatral deve ocorrer por meio da
realização de ações cênicas e vocais.
Augusto Boal, à frente do Teatro de Arena de São Paulo, experimentou outra forma de
desvincular o ator de sua personagem: batizado como Sistema Coringa, prevê o revezamento
dos atores em torno da mesma personagem ou, numa variante mais radical, quando todos os
atores encarregam-se, alternadamente, de todos os personagens. O procedimento amplifica e
diversifica tanto a abordagem da peça sobre um caractere quanto à percepção que o público terá
dele. Ao Coringa também cabe uma função narrativa de estabelecer as conexões entre os
fragmentos da dramaturgia e oferecer seu ponto de vista acerca dos acontecimentos encenados,
bem ao modo de Brecht, por quem Boal tinha grande admiração e que influenciou suas
propostas. Antes do encenador alemão, o ator meyerholdiano já praticava esse estilhaçamento
do ator/ personagem. O procedimento, que nesta investigação nomeei como multiplicação, faz
a cena emergir de forma prismática, ambígua, pois a voz autoral é dilacerada, estilhaçada pelas
vozes distintas de vários atores-narradores, desestabilizando uma convenção tradicional de
paridade ator/ personagem. O recurso também pode se dirigir à apresentação do mesmo
caractere desdobrado em uma vertente real e outra metafórica.
pensador: “Falamos hoje de personagens cada vez mais abertas, deixando zonas de sombra em
sua construção, incompletas do ponto de vista da ficção, alternadamente encarnadas e
distanciadas pelo ator.” (RYNGAERT, 1996: 129).
A base da interpretação do ator nesse tipo de encenação pode ter como componente
basilar a performance do contador de histórias, cuja premissa é o contato mais direto com o
ouvinte-espectador: o que os distingue é o contador apresentar um texto não-decorado
(destacado geralmente de histórias de tradição oral) e portanto criado no instante de sua
performance, enquanto o ator trabalha sobre uma escrita prévia, elaborada, decorada e
preparada. Entretanto, ator e contador irmanam-se na atualização de sua performance na
comunicação com o espectador-ouvinte. Nunes corrobora esta percepção de que a contação de
histórias/ rapsódia é uma performance tão teatral quanto a de interpretar textos tradicionais. O
ator que pretende investir nessa proposta deve conscientizar-se de que a alternância entre
personagem e narrador demanda dele rearranjos constantes e instantâneos de postura, de gestos,
de impostações vocais, pois as transições devem se dar de maneira fluente, natural, deslizante.
6
Os demais procedimentos utilizados por Aderbal Freire-Filho e João Brites serão devidamente explorados,
algumas vezes nomeados, e analisados nos capítulos específicos.
69
gregos7 e de Sherazade. Pensa-se que, mais do que entreter uma plateia, a performance do ator-
narrador e as narrativas em cena ligam-se intensamente à ideia de afastamento da morte, da
sensação de seu adiamento, pois narrar é presentificar a vida.
7
Recomendo a leitura de Íon, em que Platão reproduz o diálogo de Sócrates com o rapsodo que dá título ao texto,
sobre as características do ofício rapsódio e as semelhanças com o trabalho do intérprete (ator) e sua relação com
o texto poético (literário) que enuncia.
70
Em 2012, ano em que completou quarenta anos de atividades como encenador, Aderbal
Freire-Filho e a inventividade do seu romance-em-cena tornaram-se um dos objetos deste
estudo. Este capítulo inicia-se com a exposição sobre a biografia e a carreira do encenador,
destacando suas influências artísticas, pensamentos e reflexões sobre teatro e a apresentação de
seus modos de criação. Em seguida, dá-se relevo ao Centro de Demolição e Construção do
Espetáculo, quando ocupou o abandonado Teatro Gláucio Gill e onde Freire-Filho pôde
aprimorar sua poética cênica, criou o romance-em-cena, desenvolveu inúmeros projetos
artísticos-culturais e debateu políticas públicas da cidade do Rio de Janeiro a respeito das
questões éticas e artísticas no apoio ao desenvolvimento de grupos de pesquisa e atividades
continuadas. Ao fim, atinge-se o eixo desta investigação a partir do exame da linguagem do
romance-em-cena e seus espetáculos, dos conceitos e principais paradigmas, da observação e
nomeação de procedimentos recorrentes de dramaturgia, encenação e atuação, ressaltando-se
aspectos como a comicidade e a vocalização textual.
Aderbal Freire-Filho nasceu em 8 de maio de 1941 em Fortaleza (CE), onde viveu até
quase completar 30 anos. Entretanto, antes de migrar definitivamente para o Rio de Janeiro,
esteve por ali no período de 1960 a 1962 para um curso técnico em prospecção de petróleo,
promovido pela Petrobrás, pois já tinha concluído o Ensino Médio e experenciado com êxito
durante um ano locução na Rádio Dragão do Mar ainda no Ceará, o que desagradava sua
família. O curso anunciava-se como uma oportunidade de deixar sua terra natal, da qual ele se
8
No início de sua carreira, o encenador assinava seus trabalhos como Aderbal Júnior. A mudança para Aderbal
Freire-Filho, ao que tudo indica, coincide com a fundação do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo e
a estreia de A mulher carioca aos 22 anos, visto que na primeira edição do jornal A máquina de pensar ele se
inscreve como “Aderbal Freire-Filho, dito Júnior”.
71
lembra com certa tristeza pela forte contradição entre a miséria e a riqueza; ainda, significava
se apresentar diante dos parentes com um trabalho considerado sério. Retirando-se como muitos
de seus conterrâneos Freire-Filho desejava seguir sua carreira no teatro que iniciara muito
tempo antes: aos 12 anos de idade envolveu-se com um grupo formado por alunos de uma
faculdade de filosofia nos arredores do colégio onde estudava.
A viagem de ônibus demorou dois dias e meio de Fortaleza ao Rio e ele lembra como
um dos momentos mais felizes, pois lhe permitiu cruzar o Brasil do Nordeste ao Sudeste,
contemplando e conhecendo as alterações na paisagem geográfica e preparando-se para o
nascimento de uma nova vida que pretendia começar na capital fluminense. A paixão pelo teatro
nasceu no período da infância e deveu-se a três fatores principais: o edifício do Teatro José de
Alencar, por onde passava e considerava um lugar de magia; um palco construído no jardim do
sítio de uma família vizinha à de seus avós, onde cada espectador levava sua cadeira para assistir
72
O gosto pela leitura, cultivado desde a infância e marcado principalmente pelas peças
de autores brasileiros da primeira metade do século XX e de autores estrangeiros clássicos,
como O’Neill, Cocteau e Tennessee Williams, remete à reflexão inicial de Sobre a leitura, de
Marcel Proust: “Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles
que julgamos deixar sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.” (PROUST,
2009: 21). Aderbal se reconhece como um leitor voraz e procura na leitura o prazer de ler boas
histórias. O contato pessoal com os pequenos livros impressos capturou-o para sempre, abrindo-
lhe o universo do teatro, da leitura e da escrita, sobre os quais se dedicaria a conhecer cada vez
mais profundamente.
O Rio de Janeiro que Aderbal encontra na sua chegada definitiva à cidade em 1970 não
era mais a capital do Brasil: com a transferência para Brasília, foi transformada sob a alcunha
de Estado da Guanabara que, cinco anos depois, se fundiria ao Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, a Cidade Maravilhosa seguia assombrada pelo Golpe Militar iniciado seis anos
antes. Vivendo os primeiros tempos no Solar da Fossa, que abrigava artistas iniciantes, uma
espécie de “cortiço melhorado” como ele mesmo pontua, seus primeiros trabalhos artísticos
foram em caráter de substituição de atores. Logo se juntou a um grupo de artistas baianos recém-
chegados ao Rio e representou O diário de um louco, romance de Nikolai Gogol, adaptado por
Francisco Dantas e encenado dentro de um ônibus que saía todas as noites da Praça General
Osório em Ipanema e percorria ruas de Copacabana ao Leblon9.
O trabalho inaugural como ator nessa nova fase carioca foi na peça A mãe, de
Witkiewicz, dirigido por Claude Régy, contratado pela atriz Tereza Raquel em 1971, que
exerceu enorme influência sobre Aderbal, como se verá. Dando relevo ao ator e à apropriação
do texto em suas montagens, investindo numa poética minimalista, o encenador francês tornou-
9
Aderbal repetirá essa experiência de espetáculo itinerante em Tiradentes, em que “o público é distribuído em seis
ônibus, visitando separadamente seis diferentes locações no centro da cidade do Rio de Janeiro, para
reencontrarem-se todos na Praça Tiradentes, cenário final do espetáculo.” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL
– TEATRO, 2012)
73
A peça 4.48 Psicose, de Sarah Kane e também dirigida por Régy, conjuga um fluxo
contínuo de palavras e a quase total imobilidade física da personagem, interpretada por Isabelle
Huppert que, durante a performance, realiza apenas sutis movimentos nas mãos, braços e rosto.
Para ele, o texto interpretado e compreendido de certa maneira é um elemento dramático em si
mesmo e muito mais forte que os meios técnicos habituais de encenação. Numa entrevista à
Revista Obscena, Régy reforça a imobilidade como uma marca de suas criações, pois parte do
princípio de que o ator é o meio de passagem do texto do autor para o público, cujo percurso
deve ser o mais simples, menos carregado de elementos parasitários, como ele mesmo define.
Assim, a criação desse encenador ancora-se profundamente na palavra, buscando re-transcrever
as sensações originárias da escrita, transmitir as imagens proporcionadas pelo texto e,
finalmente, colocar o público em “estado de criação” e não de contemplação e admiração. O
contato com o pensamento e o trabalho artístico do encenador francês parece ter reforçado para
Freire-Filho o gosto pelo teatro em que o ator, a palavra e a escrita têm papéis determinantes na
concepção do espetáculo teatral e seu envolvimento com o público. Confessou: “Trabalhar com
Claude Régy foi muito revelador” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 87).
montagem de As três irmãs, de Tchekov: “Eu que vim atrás do grupo que era meu farol, que eu
queria entrar, acabei chegando aqui e encontrando todos esses navios afundados.” (FREIRE-
FILHO, 2011). Com essa declaração, Aderbal ressente-se do fim desses grupos que admirava e
que compunham sua geração. Pode-se perceber tal momento do teatro brasileiro como uma
transição entre os agrupamentos conduzidos por encenador(es) e aqueles que surgiriam mais
tarde, marcados pela coletividade. Nesse mesmo ano, escreveu e dirigiu seu primeiro
espetáculo, uma adaptação de Flicts, do Ziraldo, que ele chamava de “uma história contada em
cores e versos”. O autor do original advertiu-o de que não se tratava de uma adaptação, mas de
uma recriação, antecipando sua percepção de que nesses trabalhos o encenador era também um
autor. A experiência revelou-lhe o processo de traduzir cenicamente um texto e lhe rendeu o
convite para dirigir O cordão umbilical, de Mário Prata:
A primeira vez que eu dirigi foi meio de surpresa. Eu nunca tinha me pensado como
diretor, eu achava que era ator e que tinha vontade de escrever, […] e nunca escrevia
teatro. Quando dirigi pela primeira vez, até dirigi porque escrevi uma peça, não achei
diretor e então me descobri diretor. Nisso existia um sentido, uma ciência. Claro que
na segunda vez que fui dirigir tive medo, uma insegurança que não tive da primeira
vez. (FREIRE-FILHO in DELGADO e HERITAGE, 1999: 138)
Pequeno dicionário da língua feminina e Reveillon, de Flávio Márcio, com destaque para essa
última, que Yan Michalski considerou como uma das peças mais originais e densas daquela
época. Na altura dos trabalhos do Grêmio, já se podia reconhecer a busca de Aderbal por novas
formas de dramaturgia e a encenação, que tem no ator o principal mecanismo de comunicação
do texto com a plateia.
No belo e impiedosamente frio cenário branco e preto de Mixel Gantus, Aderbal Jr.
realizou um espetáculo bonito e inteligente, rompendo a toda hora a convenção
realista que o texto à primeira vista sugere, mas sem nunca cair no preciosismo da
fantasia arbitrária. (MICHALSKI, 2004: 217)
10
O título foi cunhado por Antonio Mercado, que fez uma busca nas gavetas de papeis do Vianinha, tornando-se
o responsável por descobrir a peça, visto que a original havia sido batizada de Corpo a corpo, o mesmo nome de
outro trabalho do mesmo autor. A iniciativa acaba por distinguir as duas dramaturgias, cujos enredos são distintos:
em Mão na luva, o autor revela um casal que se separa depois de nove anos juntos; Corpo a corpo concentra-se
em um único personagem, um publicitário que vive momentos de crise existencial e que passa a lutar contra os
fantasmas que o assombram.
11
Em 2014, Aderbal rebatizou essa peça de Vianinha, cujo título original era “Em família”, estreando nos palcos
como “Vianinha conta o último combate do homem comum”.
77
Lidia Kosovski, em sua tese Comunicação e espaço cênico: do cubo teatral à cidade
escavada, analisa a empreitada aderbaliana, que ainda apresentava um forte compromisso
político no contexto da repressão: “A complexidade deste acontecimento, fruto de um olhar
sobre o espaço-tempo de uma metrópole, é aqui considerado como o mais instigante precedente
de experiências cênicas realizadas na cidade do Rio de Janeiro.”. E acrescenta, utilizando
algumas palavras do próprio encenador, em destaque: “Um fragmento da cidade subterrânea é
valorizado como lugar de forte concentração de energias da superfície, como fator de
teatralidade que só palavras não podem traduzir” (KOSOVSKI, 2001: 169). Entretanto, se o
experimento na época ganhou relevo nas páginas dos jornais e também o apoio de artistas e
intelectuais, a crítica considerou A morte de Danton um fracasso, acompanhado também pela
escassez de público. Se Freire-Filho vinha sendo apontado como um diretor maldito, por certo
hermetismo e pela sofisticação visual de sua linguagem, o resultado do espetáculo levou-o a
um novo período de reclusão:
Ele recorda que as viagens pelo SNT foram cruciais para que pudesse, finalmente,
desenvolver um balanço sobre seus primeiros trabalhos e assim tentar sistematizar sua prática,
balanceada entre sucessos, malogros, tentativas e ideias. Percebe-se que a instabilidade é um
valor para o trabalho de Aderbal Freire-Filho que, entre êxitos e fracassos, segue correndo
riscos, investe em experimentalismos, mantendo sua inquietação criativa em exercício. O
infortúnio de A morte de Danton possibilitou a organização de suas ideias sobre teatro. 34 anos
depois, Aderbal reflete sobre esse espetáculo como projeto-embrião de um coletivo: “Eu era
ambicioso demais, a gente fazia no buraco do metrô em construção, tinham trinta e tantos
atores... […] E acabou que não vingou como grupo, mas a tentativa era essa.” (FREIRE-FILHO,
2011).
78
Nos primeiros anos da década de 1980 o encenador obteve alguns sucessos comerciais
com espetáculos cômicos, “tentando resolver pelo método direto a imponderável questão da
conciliação entre o comercial e o vital” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 95): em O
desembestado (1980) de Ariovaldo Mattos, experimentou uma exposição exagerada da classe
média a partir de inúmeros artifícios e elementos do teatro de revista, tendo no elenco dois
experientes comediantes das escolas mais populares, Grande Otelo e Rogéria. Destaca-se que a
experiência lhe rendeu outros frutos, pois a principal característica da linguagem do romance-
cem-cena, criada anos depois, é a comédia, em procedimentos claramente inspirados no próprio
teatro de revista: travestimentos, clichês, paródia, caricaturas e estereótipos.
Encenou ainda no mesmo ano Dom Quixote de la Pança, adaptação de Camila Amado
para o clássico de Cervantes, o que revela um encenador multifacetado e inquieto ao transitar
em diversos estilos, formas e gêneros. Também se dedicou a experiências de teatro de rua, onde
adaptou (e publicou) uma série de contos de Machado de Assis (A sereníssima República, O
dicionário, Fulano, Pai contra mãe, Evolução, Ideias de canário e Noite do Almirante),
experiências que futuramente serão lembradas pelo encenador como uma antecipação ao seu
trabalho com textos narrativos12. O período também incluiu a montagem, durante quatro anos
consecutivos nas sextas-feiras santas, de sua versão da Paixão de Cristo13.
12
Após a leitura desta pesquisa, Aderbal recordou-se que, naquela época, ainda nem sonhava com os futuros
“romances-em-cena”, mas reconheceu que as experiências foram tão proveitosas que, logo depois, escreveu e
montou também na rua um texto a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade, basicamente uma adaptação
de O caso do vestido, no início dos anos 1980.
13
Não se obteve mais informações sobre esses espetáculos, nem onde e em que condições foram realizados.
79
grandes companhias estatais. E outro era um grande grupo privado, o nome era El
Galpón, Institución Teatral El Galpón. E aí fiquei com o barato de trabalhar com os
atores que estavam sempre trabalhando juntos, ou seja, tudo aquilo que eu tinha, todo
aquele desejo, toda aquela luz que eu via na frente e que pela necessidade das
circunstâncias eu fui deixando para trás, de novo é realimentado e trazido à tona nesses
meus anos uruguaios, nesses meus primeiros anos uruguaios, a partir de 84. Tanto que
o Centro começa em 89. (FREIRE-FILHO, 2011)
Percebe-se que desde os anos 1990 ele é um dos diretores mais celebrados do Rio de
Janeiro, requisitado por atores e atrizes consagrados pelo grande público de massa, por meio
das telenovelas e também do cinema15: Pedro Paulo Rangel (Anônima, 1997), Cláudia Ohana,
Marcos Winter e Rogério Fróes (O carteiro e o poeta, 1997), Bárbara Bruno e Ney Latorraca
(O Martelo, 1998), Ricardo Blat (Luzes da boemia, 2000), Fernanda Torres e Débora Bloch
(Duas mulheres e um cadáver, 2000), Ana Paula Arósio (Casa de bonecas, 2001), Andréa
Beltrão, Emílio de Melo e Gisele Fróes (A prova, 2002), Louise Cardoso, André Valli e Guida
Vianna (Sylvia, 2002), Luis Melo (Cão coisa e a Coisa Homem, 2002), Marília Gabriela e
Reynaldo Gianecchini (A peça sobre o bebê, 2003), Débora Bloch e Diogo Vilela (Tio Vânia,
2003), Giulia Gam e Wagner Moura (Dilúvio em tempos de seca, 2004), Marieta Severo e
Andréa Beltrão (Sonata de outono, 2005 e As centenárias, 2007), Drica Moraes (A ordem do
mundo, 2008), Wagner Moura (Hamlet, 2008), Débora Falabella e Ângelo Antônio (O
continente negro, 2009) e Daniel Dantas e Renata Sorrah (Macbeth, 2010).
14
Depois desse período concentrado, Aderbal seguiu trabalhando no Uruguai por mais de dez anos.
15
Não se trata apenas de prestígio, mas de perceber que o encenador conseguiu consolidar sua carreira e ser
remunerado por ela.
80
Em 2011 estreou Depois do filme, monólogo escrito e dirigido por ele e para ele,
retomando o personagem Ulisses que havia feito no filme Juventude, de Domingos de Oliveira
– um de seus parceiros geracionais e amigo de longa data –, além de algumas substituições em
seus próprios espetáculos. É artista residente do Teatro Poeira, onde criou Jacinta (2012),
elenco encabeçado por Andréa Beltrão e Incêndios (2013) protagonizado por Marieta Severo,
esse vencedor do prêmio Shell de Melhor Direção, recordista de indicações ao prêmio APTR,
tendo conquistado quatro das dez categorias (Espetáculo, Atriz: Marieta Severo, Atriz
Coadjuvante: Kelzy Ecard e Cenografia: Fernando Mello da Costa) e contemplado com o
Prêmio Questão de Crítica de Melhor Ator pela atuação de Marcio Vito. No mesmo ano, dirigiu
Deixa que eu te ame, peça de seu amigo já falecido Alcione Araújo. Em 2014, dirigiu e atuou
no espetáculo de dança Caprichosa voz que vem do pensamento, dividindo a cena com uma
bailarina e um músico. Como proposta de revitalizar a SBAT, dirigiu nova montagem de “Em
família”, de Vianinha, rebatizada por ele de “Vianinha conta o último embate do homem
comum”, outro sucesso de público e crítica.
Depois de muito titubear, principalmente por não ter aparelho de TV em casa, Aderbal
aceitou convite da TV Brasil para assumir um programa semanal sobre arte e preencher a lacuna
deixada por Sergio Britto após seu falecimento. Sob seu comando, Arte do artista segue no ar
desde setembro de 2012 e inspira-se nas transmissões radiofônicas de George Orwell, onde o
diretor conjuga encontro com artistas e a inserção de pequenas e fantásticas histórias no roteiro.
Já estiveram em sua companhia grandes nomes brasileiros e estrangeiros como Pedro Sá
Moraes, Paulo Betti, Carminho, Nani, Domício Coutinho, Judivan, Domingos de Oliveira,
Mario Prata, Sergio Ricardo, Michel Melamed, Carlinhos Brown, Marília Gabriela, Charles
Watson, Maria Klabin, Lauro César Muniz, João Mota, Marcos Caruso, Tonico Pereira, Angel
Vianna, José Manuel Castanheira, Joel Birman, Chico Diaz, Wagner Moura, Théâtre du Soleil,
Cia. Mundana, Cecília Boal, João Saldanha, Márcio Abreu e Cia. Brasileira, Daniel Veronese,
Mateus Solano, Hamilton Vaz Pereira, Selton Mello, Pedro Brício, Gerald Thomas, Ruy
Guerra, Fagner, Marieta Severo, Guti Fraga, Paulinho da Viola, Companhia do Latão, João
Moreira Salles, José Dias, Sérgio Sá, Maria Luiza Mendonça e Vanessa Gerbelli, Amir Haddad,
Armazém Cia., O Tablado, Giulia Gam e Antonio Cícero.
Ainda que se considere anti-televisivo, Aderbal teve estreia inédita como ator na TV
Globo em 2014 na minissérie Dupla identidade interpretando o senador Oto Veiga, ao lado de
Bruno Gagliasso e Luana Piovani e em 2015 fez uma participação especial como Norberto na
série global Tapas e beijos de Cláudio Paiva. Multiartista, com desejo cada vez mais forte por
81
atuar, confessou-me em entrevista que antes de desejar ser ator (ou artista de teatro) sua paixão
primeira era a escrita, o que não deixou de realizar, pois escreveu peças de teatro, apresentações,
prefácios, posfácios, prólogos16 e orelhas de obras de outros autores (João de Minas, Bertolt
Brecht, Campos de Carvalho, etc), artigos e textos de programa, material que serve a esta
pesquisa como fonte bibliográfica. Além disso, deve-se já perceber que a escrita aderbaliana
ultrapassa a palavra impressa, pois como encenador desenvolveu uma escrita cênica própria,
utilizando-se da linguagem teatral como seu principal veículo expressivo.
16
Aderbal é responsável pela escrita do Prólogo da nova safra editorial da Revista de Teatro da Sociedade Brasileira
de Autores Teatrais (SBAT), da qual é também membro do Conselho Diretor e Conselho Editorial.
17
FISCHER, Lionel. Depois do filme. Disponível em <http://lionel-fischer.blogspot.com/2011/05/teatrocritica-
depois-do-filme.html> Acesso em 28 jan 2012.
82
Shakespeare e Molière ou Ibsen, e ao mesmo tempo alucinado com os textos das mais diferentes
épocas do teatro brasileiro.” E complementa: “Sem contar seu interesse pelas relações entre o
teatro e a literatura, traduzido em espetáculos brilhantes que marcaram a cena brasileira”
(MOREIRA, 2010: 87). A Aderbal interessa o bom teatro, independente de onde venha a
matéria-prima textual que dá origem a seus trabalhos: entre dramaturgias clássicas, modernas e
contemporâneas, brasileiras, latino-americanas, europeias ou estadunidenses, ou mesmo textos
literários como romances e contos. Portanto, não se trata somente do respeito à erudição desse
encenador, mas, indiscutivelmente, de sua atração pela literatura como fonte, seu gosto pela
leitura, pela fala e pelo partilhar conhecimentos.
essas práticas artísticas, o que parece relevante é que Aderbal e Barba se reconhecem como
arquitetos e artesãos do teatro e mantêm profundos laços de amizade e convivência,
normalmente regadas a vinho uruguaio de uva Tannat.
Para afirmar a importância de Brecht não apenas para si, mas para o teatro em todo o
mundo, Aderbal conta de sua visita aos Estados Unidos a convite de uma instituição que agrega
vários grupos off-Broadway. Entre visitas, conversas e peças a que assistiu, Freire-Filho disse
ter-se impressionado com o que via, presumindo que o teatro norte-americano é um teatro por
onde o Brecht não teria passado. Na época percebeu no palco norte-americano uma limitação,
pela falta de viço, pela ausência de quebra da ilusão. Ele acredita que a não-contaminação
brechtiana naqueles palcos pode dever-se à autossuficiência dos estadunidenses. Entretanto, ao
observar o período em que Brecht viveu lá, percebe-se que o país vivia plenamente o
macarthismo, período de intensa patrulha anticomunista, de perseguição política e desrespeito
aos direitos civis. De qualquer maneira, Aderbal argumenta a importância do encenador alemão
para o teatro a partir do século XX:
cinema, quando você entra e vê ali o Jack Nicholson e ele é aquele personagem do
começo ao fim do filme e não vem nem agradecer. Pra você levar aquele personagem
pra casa. E no teatro não. O ator pode entrar, sair e voltar pra poder interligar. Esse é
um conceito do Brecht. (FREIRE-FILHO, 2011)
O teatro como espaço onde tudo é permitido para Aderbal é uma consequência da
abertura das artes dramáticas para outros sistemas de linguagem, como o cinema e a televisão.
Sendo o teatro uma representação viva e independente, recupera seu poder de origem e torna-
se uma arte poderosa, pois apresenta a possibilidade de recriar o mundo, como o fazem todas
as criações imaginárias (como a literatura, por exemplo), dispondo de recursos especiais,
85
linguagens, símbolos, para provocar o público. Segundo ele, o teatro do ponto de vista do
espectador é uma “festa dos sentidos”, onde se assiste à criação de novos mundos e, por sua
capacidade imaginativa, torna-se também um coautor na construção de significados. “Com
meios materiais pobres, o teatro volta a contar com a imaginação do espectador.” (ADERBAL
JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 14). Destaca o teatro como uma arte cuja produção e consumo
se irmanam na coletividade e na simultaneidade, pois configura um espaço social tanto entre a
equipe de realizadores quanto o conjunto do público que o assiste. Entende sua função de
encenador como aquele que trabalha sobre o cênico, composto pelo ator e pelo drama, é o
coautor da obra teatral; ainda, seu ofício de tradutor revela-se ao oferecer ao texto todos os
recursos do palco, redescobrindo-o para o ator. Entretanto, como leitor e tradutor, Aderbal
acentua que no teatro não se cria sozinho, mas em coletividade. “O bom teatro é
fundamentalmente ligado ao equilíbrio dos discursos: do diretor, dos atores, do autor, um
coletivo cujo desafio é conciliar todos esses discursos. (FREIRE-FILHO in DELGADO e
HERITAGE, 1999: 151).”
A sala de ensaio é seu laboratório de criação, espaço onde questões são colocadas,
investigadas, testadas, revistas e compreendidas. Ele não prepara anteriormente o ensaio, é no
encontro e no confronto com os atores e demais criadores que o espetáculo vai sendo construído.
Tem como característica singular o ato de falar, falar muito, expondo seu pensamento em voz
alta, ainda que seja para si mesmo: “[…] em cada ensaio percebo que as coisas sobre as quais
tenho que falar acabam sendo novas para mim também. Diante do conhecimento que tenho de
uma situação, se produz uma descoberta nova. E eu falo dessa descoberta.” (ADERBAL
JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 11-2). Algum tempo depois, mais consciente de si e de seu
trabalho, assumiu:
Não tenho uma concepção silenciosa. Eu, pelo contrário, quero compartilhar com todo
mundo, dividir com todo mundo o que está sendo trabalhado, o processo, se isso quer
dizer tal coisa, tal outra e até com o autor ausente, porque muitas vezes estou fazendo
um texto e digo que falta aqui uma pontuação cênica, aqui mudou de capítulo, e depois
a gente volta ao texto e tinha lá uma rubrica do autor, que dizia tal coisa, que não é
exatamente a que nós fizemos, mas que identificava a necessidade dessa pontuação.
(FREIRE-FILHO in DELGADO e HERITAGE, 1999: 139)
E é muito interessante, porque ele realmente se coloca... equações... ele faz perguntas.
E ele faz pra ele mesmo e, claro, como sábio que é, cria um vazio e um bando de puxa-
sacos, que somos nós, atores, preenchem o vazio. E isso é muito inteligente, porque
ele faz a pergunta e que ele não sabe. Mas ele sabe que aqui tem que ter uma pergunta.
“Como nós vamos responder essa porra?” Ah... sugestão, sugestão e tentativa e erro,
tentativa e erro, tentativa e erro... “Aí, não dá. Vamos mudar de pergunta então”. E
muda a pergunta. Assim ele foi conseguindo a linguagem e a construção de todo o
espetáculo. (DIAZ, 2011)
A solução encontrada por Aderbal Freire-Filho foi deslocar o episódio do romance para
uma cena no bar onde Leduc vai comemorar a feitura de seu Cristo perfeito, compondo um
quadro cênico com outros personagens: um homem (que vai atacar Leduc, responsável pelo
acidente) acompanhado da namorada e um garçom. Como o romance não explica o que
efetivamente se passou no bar, Freire-Filho criou cenicamente uma situação em que a Leduc é
assediado pela namorada de um dos clientes que, junto ao garçom, constituem personagens
extradiegéticas. Leduc conta para os presentes no bar de sua façanha artística, enquanto a
namorada do sujeito insinua-se e roça seus pés sobre a perna dele. A descoberta da paquera
constrói o conflito cênico e justifica para o espectador a ação do sujeito de atacar Leduc com
uma cadeira nas costas, encerrando-o numa cadeira de rodas. “Então, por exemplo, escolher
esse momento é uma opção dramatúrgica capital à criação do romance-em-cena, deste tipo de
adaptação.” (FREIRE-FILHO, 2011), sentencia, reforçando que a resposta vem do ensaio.
88
Sem se desmentir quanto à preparação prévia dos ensaios, Freire-Filho revela que
apenas durante o processo das leituras afetivas ele se ocupa deles com antecedência, ao escolher
os materiais e pensar nos estímulos que pode oferecer aos atores. Em seguida, para iniciar a
fase da exposição (que não significa a conclusão da compreensão), determina um espaço cênico
básico como ponto de partida para começar a criar o universo que vai ser a peça, imprimido
transformações sobre ele durante os ensaios, juntamente com o cenógrafo. Os ensaios de
exposição compõem paulatinamente aquilo que virá a ser o espetáculo na estreia, sendo que
toda interferência criativa deve se dar em função da exposição que é feita. Trata-se de um
sistema prático, de responder cenicamente às perguntas que o texto e a plateia, ou seja, a
sociedade, propõem. Assim sendo, seu trabalho é fruto da práxis do palco, do fazer cênico, que
somente é possível estando os criadores disponíveis e dispostos num determinado espaço.
Entretanto, prefere não pensar a estrutura do espetáculo fora da sala de ensaio, embora
reconheça que seja um atributo do diretor e que muitos o fazem: “Vou para o teatro cada dia
tratar de expor as cenas da peça, isto é, mostrar no palco o que compreendemos delas. E é no
teatro, no ensaio, que isso vai acontecer.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 32). Se
o encenador é um autor, um escritor de cena, aqui se pode averiguar que o palco nu é o
equivalente à folha em branco e os atores às canetas (ou lápis) para o escritor.
Por outro lado, o escritor cênico Freire-Filho tem em sua gramática um conjunto de
figuras, construções, elementos, mas isso não constitui um manual para consultas, como
acontece com a gramática linguística, com suas regras e exceções. A gramática da encenação
depende em larga medida do que foi posto em cena, que suscitará primeiramente a compreensão
e, a partir dela, a exposição. Seu conhecimento, elaboração e reelaboração competem ao
encenador. Aderbal reconheceu-se como diretor quando descobriu que, ao somar sua
compreensão de uma peça à dos atores, era capaz de transformar um texto escrito em espetáculo.
Dessa forma, assumiu que o palco era o seu meio de expressão, em cuja gramática desenvolve
89
pontuações, vírgulas, parágrafos, utiliza metáforas, desenvolve elipses, constrói frases cênicas.
Entretanto, adverte: “As regras de uma gramática são o meio de descrever uma linguagem, mas
não são a linguagem.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 38).
Em Sonata de outono (2005), um diálogo entre o casal Eva (Andréa Beltrão) e Vitor
(Isio Ghelman) dá-se na sala de jantar, que na encenação de Freire-Filho compõe-se de oito
cadeiras em torno de um espaço vazio, no qual a mesa torna-se visível para o público por meio
do recorte de luz que reconstitui seu formato retangular. Em outra cena, Eva toca piano para
sua mãe (Marieta Severo), mas o espectador apenas ouve o som do instrumento, assistindo à
concentrada performance das mãos de Andréa Beltrão sobre um piano imaginário. Depois de
uma explanação sobre Chopin, Marieta Severo também dedilha o mesmo piano, como se o
dispositivo musical estivesse concretamente diante de si. Na selva das cidades (2011), as
cadeiras também compõem e constroem espaços cênicos, estando os atores divididos nas duas
laterais do palco onde aguardam sua entrada em cena, seja como personagem ou como contra-
regra.
No solo Depois do filme (2011), a cenografia composta por diversas cadeiras metálicas
espalhadas e amontoadas sobre o palco oferece a Aderbal inúmeras possibilidades de espaço
cênico, como um bar, uma praia, um posto de gasolina, um banco de carro, um apartamento etc.
Por outro lado, a imagem de uma coletividade que os assentos sugerem vão correspondendo
pouco a pouco aos inúmeros personagens que Aderbal encena, colocando-se como elemento
aglutinador de vozes, gestos, pessoas. Aqui, o encenador mostra como dramaturgo e ator o que
absorveu de suas experiências com o romance-em-cena. Alternando-se entre narrador e
personagens, ele dá sequência a Ulisses, seu personagem do filme de Domingos de Oliveira,
90
numa dramaturgia que estreita relações com o roteiro cinematográfico. Tal performance
sustenta-se na poética do romance-em-cena, em que narra, descreve, atua no tempo presente e
promove trânsitos entre distintos personagens apenas com os recursos vocais, corporais e
gestuais, às vezes sustentado por alguns elementos, como uma canga de praia, um pote etc. A
dramaturgia promove viagens no tempo e no espaço, em que o texto falado e algumas
movimentações são suficientes para incitar a imaginação do espectador e manter seu estado de
atenção. Os objetos ressignificados também compõem essa escrita cênica: uma lata de
refrigerante vazia transforma-se, pela utilização, em interfone (abafando sua voz), e telefone
celular. Depois do filme pode ser considerada a síntese do pensamento e da poética aderbaliana,
em que ele exerce simultaneamente suas principais atividades de ator, dramaturgo e encenador.
Entretanto, ele não reconhece a visibilidade de seu trabalho: “O diretor não tem nada
material e palpável que o represente; a presença do diretor é uma presença abstrata, intuída.
Nos meus espetáculos me reconhecem aqueles que conhecem o meu trabalho, não o público em
geral.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 23). Entretanto, a crença na invisibilidade
pode ser um equívoco, visto que o encenador é autor e, portanto, sua poética é visível e inscreve
suas marcas na obra, conforme observam tanto Foucault quanto Picon-Valin. Sobre os textos
que encena, Aderbal parte sempre do princípio da fidelidade e utiliza o termo tradutor para
definir seu trabalho, ainda que se saiba das perdas implicadas nesse processo, que demanda
muitas vezes uma reescrita ou uma recriação da matéria original, em que pese sua interpretação
pessoal e também dos atores e demais criadores. O texto deve influenciar a encenação e, entre
conceitos de cópia, influência, fidelidade, o encenador reflete sobre a questão da liberdade no
exercício do seu trabalho em dois momentos distintos, comparando-se e confrontando-se com
o trabalho do escritor literário:
Uma das diferenças das condições de trabalho do autor e do diretor de teatro é que o
autor pode entregar-se mais livremente à sua imaginação, enquanto o diretor, que
reescreve, está preso aos dados da criação original. Mas, na medida em que para cada
situação há infinitas possibilidades cênicas, apenas a liberdade do diretor começa
depois, mas ele também é infinitamente livre. As matemáticas conhecem as medidas
de grandeza do infinito. (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 32)
Às vezes penso que essa função para mim é indiscutível: o autor de um espetáculo é
o diretor, mas na verdade ele é o autor de alguma coisa que ele não escreveu, das
palavras que ele não concebeu, dos personagens que ele não representa como ator.
[…] Então eu sou pleno autor, sinto inclusive essa questão toda de dramaturgia, que é
uma questão que hoje se discute muito desde que se confrontou o autor do texto com
o autor do espetáculo, e se diz que o diretor usurpa o que seria um direito do autor. É
91
toda uma discussão vista de alguma forma equivocadamente porque o poeta do palco
é o diretor e é o autor dessa dramaturgia. (FREIRE-FILHO in DELGADO e
HERITAGE, 1999: 129)
Ao ser inquirido por mim se o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo foi sua
experiência mais marcante à frente de um grupo que criou e conduziu, Aderbal Freire-Filho não
titubeia: “Sim, indiscutivelmente. Foi minha experiência mais bem sucedida. As outras foram
tentativas” (FREIRE-FILHO, 2011). O ideário do trabalho em grupo sempre acompanhou a
trajetória de Aderbal, como já se viu. Entre tentativas e erros, inspirado nos grupos brasileiros
dos anos 1960 e naqueles com que trabalhou no Uruguai nos anos 1980, o encenador decidiu
investir novamente e, procurando não repetir as experiências anteriores, traçou duas frentes de
trabalho: convidou alguns atores para montar um espetáculo (e não de partida um grupo), em
que pudessem conversar, estar junto e descobrir o que iriam fazer, mesmo que o convite já
anunciasse a formação de um coletivo.
Considerando um disparate, pois percebia que o desprezo pela palavra vinha de algumas
poucas peças encenadas na cidade, Aderbal Freire-Filho decidiu participar da discussão,
publicando no semanário Opinião o artigo Peço a palavra, cuja ambiguidade do título recusava
a proposta da campanha e anunciava os perigos de retrocesso à evolução do próprio teatro que
ela encabeçava. Não apenas isso, a campanha ameaçava o seu teatro, que prezava por ser tanto
“palavrista” quanto “teatralista”, utilizando-se os termos como ele mesmo definiu no programa
Palco e Plateia, do Canal Brasil18. Sua melhor resposta à polêmica deu-se com a montagem de
A mulher carioca aos 22 anos, um projeto audacioso de levar um romance, na íntegra, para o
palco: “E eu queria mostrar um teatro que fosse extraordinariamente teatral e cheio de palavras,
18
O programa, comandado pelo ator José Wilker, foi exibido em 4 de abril de 2011.
93
as personagens diziam o que estavam fazendo, comentavam como estavam fazendo, negavam
o que estavam dizendo com palavras, enfim, era pura palavra e puro teatro” (FREIRE-FILHO,
2002: 95).
Ao propor a montagem do romance de João de Minas, que havia descoberto e lido com
voracidade ainda nos anos 1970, já sabia que não desejava uma adaptação formal do romance,
no sentido de converter a escrita narrativa-descritiva em diálogos dramáticos: era uma proposta
de investigação e experimentação. Dividindo com os atores a remuneração de uma bolsa da
Fundação Vitae que tinha conquistado para pesquisar a obra desse (desconhecido) escritor,
Aderbal insistiu na convicção de que somente um grupo estável de artistas é capaz de se dedicar
a um processo de risco e descoberta. Sobre a escolha do material a ser encenado, Freire-Filho
afirmou, relembrando a decisão naquela época:
Eu quero botar um romance no palco. Como, não sei, mas quero fazer, eu não quero
adaptar. Eu quero trabalhar com romance e ir fazendo a cena com o romance e ver
como é que dá isso e tal. Quero trabalhar o romance, quero ver as possibilidades
expressivas, quero ver como que o teatro se comporta dentro dessa camisa de força e
se liberta e é super teatral e, ao mesmo tempo, pega isso que era uma camisa de força,
e pega os valores incríveis que estão aí, potencializa e põe pra frente. (FREIRE-
FILHO, 2011)
Todavia, para que o projeto pudesse se concretizar, faltava o espaço para a instalação
dos dois grupos, que veio a ser o Teatro Gláucio Gill, situado na Praça Cardeal Arcoverde, em
Copacabana. Naquela altura, o teatro encontrava-se fechado pelo governo, em completo estado
de degradação, sem infraestrutura e funcionários e sob o risco de demolição em detrimento das
obras do metrô nas imediações. Aderbal se lembra do teatro com ambiguidade, entre memórias
saudosas e mágoas: nele havia encenado duas peças importantes na sua carreira, O vôo dos
pássaros selvagens e Besame mucho, e teve suas portas fechadas à cara duas vezes: a primeira,
quando lá fazia As três irmãs junto ao Teatro Oficina em 1972 e a outra quando o CDCE foi
expulso do edifício.
um grupo espanhol que esteve na programação do CDCE: La conquista despacio remete tanto
à conquista de espaço (de espacio) como também a uma conquista devagar (despacio): “E aí a
gente foi aos poucos ocupando, ocupando, ficando. Aí aos poucos, as ideias... por exemplo essa
ideia de dar um curso ao mesmo tempo em que eu ensaiasse e tal... (não perco tempo, não quero
perder tempo) foi encontrando condições de se realizar.” (FREIRE-FILHO, 2011).
O projeto ganhou novos contornos, ampliando suas ações para a ocupação do teatro
público, promovendo intercâmbio com grupos de várias partes do Brasil, da América Latina e
também de outros continentes. Realizou seminários, propôs uma programação coerente com o
projeto ético e estético do CDCE e permitiu a continuidade de suas atividades de pesquisa e
investigação. Tudo isso mais tarde rendeu ao grupo acusações de favoritismo, incitou calorosos
debates, estimulou protestos. Nesse ponto, retoma-se a influência de Brecht sobre o pensamento
de Freire-Filho, para quem sua contribuição extrapola os limites da poética ao avançar sobre a
política e a ética do fazer teatral. O Centro de Demolição e Construção do Espetáculo
apresentava uma proposta de política pública para a cultura do Rio de Janeiro por meio de uma
prática do partilhar, do estar em grupo(s), envoltos numa ética da coletividade e, assim,
assumindo uma posição na cidade, com ares de revolução. A principal reivindicação era fazer
com que o Estado assumisse o investimento no teatro, na pesquisa e no seu desenvolvimento,
nos moldes das grandes cidades europeias, conforme trecho extraído de artigo de Aderbal
(Júnior) no primeiro número do jornal Máquina de pensar19, produzido e distribuído pelo grupo,
que inicialmente assinava como Centro de Estudos e de Criação Teatral, mas depois rebatizado
de Centro de Demolição e Construção do Espetáculo:
O Brasil não tem companhia estatal estável, como as que existem no mundo todo; não
conseguimos que sobrevivessem os grupos e as companhias privadas; não tem
ninguém cuidando de manter presentes nas temporadas o repertório clássico e o
repertório nacional; não foram criadas novas estruturas. É uma terra sem lei. Pior: na
falta de valores, adota-se os valores da televisão, que, no teatro, criam a lei do
boulevard.
Existem dois grandes gêneros nacionais: o teatro comercial com culpa e o teatro
comercial sem culpa. Quanto aos meios de produção, pouca gente está pensando em
construir estruturas para recuperar o prazer de fazer teatro inteiramente teatral, isto é,
com a ética do teatro, desse jogo que cresceu na Grécia e foi enriquecido tanto que,
em plena era das engenhocas, não me deixa agarrar pela imagem gravada.
19
O exemplar está disponível para consulta no CEDOC da Funarte, no Rio de Janeiro, no acervo de Aderbal Freire-
Filho. Como o CEDOC não disponibiliza os materiais para fotocópias, as páginas do jornal foram fotografadas e
posteriormente impressas para constarem do acervo da pesquisa.
95
Por que os teatros fecham? Por que o público nos abandona? Porque nós não nos
entendemos? Eu vou responder: porque perdemos nossas referências. A história já
chega tarde a Copacabana, esse bairro fulminante. Na encruzilhada da rua Barata
Ribeiro, Toneleros e Praça Cardeal Arco Verde está o velho Teatro Glaucio Gill. Eu
resolvi entrar nele porque cansei de ver que ninguém se dava conta dessa maravilha
no meio do mundo (Copacabana). E que viviam querendo construir aqui o
Ringtheater, que se incendiou em 1880.
Primeiramente, antes investigar o conteúdo dos textos, destaca-se que esse jornal
tornou-se um importante veículo expressivo para Aderbal, espaço onde exerceu a escrita,
reflexões sobre teatro, política e cultura. Esse gesto de escrita, que ele tanto se ressente de não
desenvolver tanto, converteu-se em algumas publicações, em que revela um conhecimento
erudito, empírico, autodidata e profundo do teatro, das artes, da cultura e da sociedade. Como
mestre e senhor dos palcos, Freire-Filho não é apenas um escritor de cena, mas um pensador do
seu ofício e métier. Retomando a citação acima, os ataques recebidos pelo CDCE relacionavam-
se à estabilidade e permanência do grupo nas dependências do Gláucio Gill, pois alguns artistas
requeriam as concorrências para ocupação. Observa-se, ao ler a edição de Máquina de pensar,
que esse teatro estava abandonado pelo poder público, ninguém havia tomado nenhuma
providência para sua recuperação e manutenção. Mas, quando foi cedido para Aderbal e seu
grupo, uma parte da classe se sentiu ferida, atraiçoada, enciumada.
sobre as produções, da mídia e da televisão sobre a cena carioca e o descaso das políticas
públicas. A intenção da ocupação, bem explícita nos jornais e em depoimentos e entrevistas de
alguns envolvidos (Cândido Damm e Gillray Coutinho), era propor modelos mais coerentes
com a nova realidade da cultura, exigindo do Estado a responsabilidade na manutenção de seus
edifícios e consequentemente de sua programação permanente, além do estímulo à criação
continuada. Estava-se falando de um projeto amplo e não apenas de como colocar espetáculos
em cartaz.
sobre o personagem shakespeareano incluindo estudo de Rei Lear para apresentação no ciclo
de leituras do Espaço Cultural Sérgio Porto; reuniões semanais de diretores, autores e atores,
um “clube de opinião” com participação de Alcione Araújo, Amir Haddad, Domingos de
Oliveira, Márcio Souza, Pedro Cardoso e Aderbal Freire-Filho. Entretanto, no mesmo ano, a
estreia de A mulher carioca aos 22 anos promoveu a reinauguração oficial do Teatro Gláucio
Gill, depois de passar por uma breve reforma, e o grupo já se chamava Centro de Demolição e
Construção do Espetáculo. A estreia também foi acompanhada de uma edição extra da Máquina
de pensar, em cujo editorial Freire-Filho expõe novamente seu pensamento:
Poucos dias antes do começo das obras, à meia-noite de uma sexta-feira, fizemos um
concerto para piano (o nosso saudoso e querido Luiz Antonio Barcos!) e andaimes.
Com texto de Adorno, ligeiramente esculhambado por mim, os mesmos atores que
agora representam “A mulher carioca aos 22 anos” despediam-se das velhas poltronas
amontoadas na velha platéia e exortavam os fantasmas dos personagens que
maravilhosas atrizes e atores representaram aqui a que, mesmo saindo os velhos
trastes, continuassem impregnando estas paredes.
O relatório ainda abarca outras atividades, como I Feira do Livro na calçada do teatro,
as exposições João de Minas, vidaobra, Dez anos sem Nelson Rodrigues, Na Holanda, Chico
99
Mendes, Oficinas do Olodum, Três anos (do CDCE). Quanto aos seminários, seguem os títulos-
temas: Viva o teatro brasileiro, Ética e cultura, A importância do teatro, Teatro, arte e
consumo, A liberdade do cênico, Teatro e ideologia, Os teatros públicos e Os teatros públicos
e a criação teatral. Para finalizar esse inventário, cujas informações não estão tão acessíveis e,
portanto, são difíceis de serem encontradas, mas relevantes para compreender a ação do grupo,
o CDCE ainda promoveu lançamentos dos seguintes livros Vianninha, cúmplice da paixão
(Dênis de Moraes), Além das ilhas flutuantes (Eugênio Barba) e Teatro e estado – as
companhias brasileiras subvencionadas (Yan Michalski e Rosyane Trotta).
20
Na primeira edição da Máquina de pensar constam apenas os nomes que compuseram a ficha técnica de A
mulher carioca aos 22 anos, mas é importante mencionar outros fundadores do CDCE, recobrados por Aderbal
posteriormente com o peso da memória não abarcar a todos, como Eleonora Fabião, Gisele Fróes, Christiane
Jatahy, Dudu Sandroni, Cristine Braga, Carmen Frenzel, Cláudio Mendes, Maria Luiza Cardoso e Vera Ribeiro.
Da equipe de montagem tem-se: a) Elenco: Suzana Saldanha, Malu Valle, Cândido Damm, Thiago Justino, Gillray
Coutinho, Eduardo Mamberti, Marcelo Escorel e Orã Figueiredo; b) Diretor de pesquisa: Maurício Lissovski; c)
Compositor/ Diretor musical: Luis Antônio Barcos; d) Preparadora corporal: Rossella Terranova; e) Projetistas:
José Dias e Jorginho de Carvalho; f) Administradores: José Carlos Ferreira e Alexandre Ferreira; g) Diretor-
assistente: Marcos Vogel; h) Diretor geral: Aderbal Freire-Filho; i) Equipe de funcionários do teatro: Paulino
Ramos da Silva, Maria Auxiliadora Santana Tavares, Adelmo Cavalcante de Oliveira, Antônio Carlos da Silva,
Arlindo José de Moraes, Marlene da Conceição Rodrigues Osório, Silvino Paraná e Antônio dos Santos.
100
Quando estive em grupo, eu me vali dessas vantagens e, quando não estive, tendi a
isso, ou seja, busquei uma ética de grupo na relação com os meus atores. (FREIRE-
FILHO, 2002: 93-4)
Contudo, quatro anos depois, com a mudança no Governo do Estado do Rio de Janeiro,
o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo foi expulso das dependências do Teatro
Gláucio Gill. Segundo declarações de Aderbal Freire-Filho, uma pessoa que tinha relações no
Governo pediu o teatro, pois naquela altura o Gláucio Gill havia ganhado uma reforma e muita
visibilidade. Concedido o cargo de administrador e diretor artístico a Jesus Chediak21, Aderbal
pediu uma audiência com o Secretário de Cultura e descobriu que não era o desejo do Estado
que o CDCE deixasse o teatro. Daí iniciou-se um impasse que não se definia. Até que chegaram
para o trabalho rotineiro e encontraram o teatro trancado com um novo cadeado. Não podiam
mais entrar, a resolução do Governo foi fechar as portas.
Entretanto, o grupo se manteve resistente do lado de fora, num protesto que arrebanhou
membros da classe artística, imprensa e políticos. Freire-Filho recorda que, toda noite depois
de seus espetáculos, vários atores e atrizes se dirigiam ao calçadão do Gláucio Gill para somar
esforços nos protestos que reunia banda, bandeiras, livro de assinatura. Scarlet Moon fazia um
talk show ao vivo, Tonico Pereira encenou uma invasão simbólica do teatro (construiu uma pré-
fachada com jornal e depois rasgou-a), as pessoas começaram a mobilizar amigos e as
reivindicações atingiam uma dimensão política: estiveram lá discursando a favor do Centro de
Demolição personalidades que depois se tornaram ainda mais (re)conhecidas: Betinho,
Leonardo Boff, César Maia, entre outros. Lula (atualmente ex-Presidente da República Luis
Inácio Lula da Silva) também se fez presente, como conta o próprio Aderbal:
Ninguém do Centro esquece ele [Lula] perguntando: “O que é isso que vocês fazem
assim?” É que quando “aplaudia” todo mundo fazia assim, estalava os dedos. “Ah, a
gente tá aplaudindo para não acordar os vizinhos”. Aí ele disse: “É o primeiro
movimento de protesto que não quer acordar os vizinhos. Vocês têm que começar
acordando os vizinhos!” (FREIRE-FILHO, 2011).
21
Jesus Chediak é atualmente proprietário da empresa Chediak Arte & Comunicação, tendo ocupado anteriormente
cargos de Diretor na RIOARTE e na FUNARJ, segundo informações de seu perfil na rede social LinkedIn.
101
A batalha não foi vencida imediatamente pelo Centro de Demolição. Sem conseguir
ocupar novamente as dependências do Gláucio Gill, vendo o espaço cênico ser retomado no
formato à italiana e novamente ocupado por concorrências públicas, ou seja, ao perceber que
seu projeto estava sendo destruído, o grupo acabou migrando para o Teatro Carlos Gomes, a
convite da Secretaria Municipal de Cultura, onde trabalhou durante mais três anos antes do
encerramento oficial de suas atividades. Todavia, Freire-Filho hoje aponta que as sementes
plantadas no período 1989 a 1993 foram germinar um tempo adiante22. “A bandeira que a gente
levava ganhou a guerra”, aponta. “A ocupação dos teatros públicos por artistas é hoje um
modelo. […] Primeiro, começou com os teatros municipais, que desenvolveram esse sistema a
partir das experiências do Centro, porque fui chamado a dar palpite. Depois vieram os teatros
federais [os recentes editais de ocupação artística da Funarte] e agora os teatros estaduais estão
fazendo isso. E eu me lembro que a gente brigou por isso” (FREIRE-FILHO, 2011). No Carlos
Gomes, o CDCE realizou Instruções de uso de Aderbal Freire-Filho, uma apresentação da nova
casa e sua história, a montagem de Senhora dos afogados, de Nelson Rodrigues e No verão de
1996…, último trabalho do grupo, baseado em quadros de Rubens Gerchman e escrito e dirigido
por Aderbal.
22
Não por acaso, no ano de 2012 a ocupação do Gláucio Gill pelo CDCE foi motivo de um encontro promovido
pelo Complexo Duplo para debater com a presença de Aderbal novos paradigmas para o pensamento e para a
prática dos núcleos de trabalho continuado na cidade do Rio de Janeiro.
102
23
Gillray Coutinho, Raquel Iantas, Orã Figueiredo, Augusto Madeira e Ísio Ghelman têm desenvolvido também
outros projetos e espetáculos com Aderbal Freire-Filho, formando seu coletivo de afinidades. Deve-se incluir nesse
agrupamento Marieta Severo e Andréa Beltrão, cuja parceria com o encenador já resultou em quatro montagens,
além de outras atividades na programação do Teatro Poeira, e dá sinais de longevidade.
103
24
Chico Diaz, Cândido Damm e Gillray Coutinho.
104
que o encenador alemão promoveu uma das maiores revoluções no teatro universal porque
estava insatisfeito com a forma dramatúrgica convencional, que não se enquadrava mais ao que
ele queria dizer. Era preciso buscar novas formas de escrever a cena, tentando ultrapassar as
convenções, em direção a um formato que fosse mais condizente com o seu tempo e seu
discurso.
Dessa feita, Aderbal aproxima-se mais uma vez do autor e diretor de Mãe coragem e
seus filhos. “Provavelmente essa mesma insatisfação eu sinto, até por ser mais leitor de
romances, há muito tempo, do que de teatro.” (FREIRE-FILHO, 2011). Para ele o romance
mapeia muito mais o Brasil que a dramaturgia, pois se pode ir de Érico Veríssimo a Graciliano
Ramos, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Nilson Cardoso, por mais que se tenha um texto
genial como o de Nelson Rodrigues e tantos outros. Essa observação quer dizer que o Brasil
está mais próximo de uma tradição literária que teatral? Ou a literatura brasileira é mais
difundida que o nosso teatro, muitas vezes restrito ao que se produz no eixo SP-RJ, portanto
desconhecendo a dramaturgia de outros Estados ou imobilizado pela falta de fôlego editorial?
Sem ocupar em responder essas questões, aponta-se outra, dirigida ao seu arsenal de leituras
versus os espetáculos que encenou ao longo de sua carreira: por que um romance na sua poética
teatral, já que o trabalho com textos literários corresponde à menor parte de seu portfólio?
Para responder, pode-se distinguir duas falas recortadas de nosssa entrevista: “O que
está dentro de uma narrativa me atrai muito mais como possibilidades de dizer, coisas a dizer
do que o que está dito numa peça.” Em outro momento, complementa: “[…] porque uma coisa
fascinante do romance é o convite à imaginação.” (FREIRE-FILHO, 2011). Ressalta-se a
ambiguidade nessa declaração: se o romance oferece tantas possibilidades cênicas, por que não
investir em outras propostas nesse campo? Primeiramente, o próprio Aderbal reconhece que
essa afirmação não vale como um conceito, pois ele nunca abandonou a encenação de textos
teatrais; em sua carreira, esteve mais ligado à dramaturgia tradicional do que a adaptações de
romances. Uma explicação pode estar no fato de que Freire-Filho trabalha muito mais como
encenador convidado por artistas e produtores, normalmente com o texto a ser montado pré-
determinado e de origem dramática. Em consequência, encontra pouco tempo para desenvolver
seus projetos pessoais, do qual o romance-em-cena é sua criação mais difundida e que marcou
com sua assinatura a história mais recente do teatro contemporâneo no Brasil. Entretanto, há
outros pontos nessa fresta: as exigências que a transposição de um romance ao palco impõe
como a disponibilidade de elenco e apoio financeiro para investigar, experimentar; e ainda o
105
Essa definição tem sido regularmente utilizada e difundida por Aderbal Freire-Filho,
provavelmente por atribuir a ideia de fusão ao fato do ator no romance-em-cena interpretar um
personagem (em primeira pessoa, configurando o elemento dramático) cujo texto é uma
narração-descrição de si mesmo em terceira pessoa (componente épico e recurso de
distanciamento/ estranhamento). É bem sabido, principalmente pela leitura de Anatol
Rosenfeld, que o épico e o dramático coexistem na história do teatro e que um sempre esteve
amalgamado de alguma forma no outro, sendo que Brecht é o principal expoente nesse campo
no teatro moderno.
Ao investigar o termo fusão, incitado por Freire-Filho, descobre-se que guarda na raiz
etimológica do verbo fundir as seguintes acepções: verter, derramar, derreter, estender, alargar,
derrubar, produzir, dispersar, borrifar. No sentido de derreter, a metáfora de fundir um gênero
em outro implicaria que os dois se desfizessem para dar origem a um terceiro, o que não se
aplica ao romance-em-cena. Compreende-se melhor o ato de fundir como verter (traduzir) ou
ainda estender, alargar, pois ao realizar um encontro entre o épico e o dramático Aderbal alarga
as possibilidades da gramática cênica, pois escreve a partir de outra escrita, a literária,
oferecendo-lhe os elementos do palco, desejando novas possibilidades de expressão por meio
do teatro. No romance-em-cena os diálogos são cênicos, pois o narrativo-descritivo transforma-
se em ação física e vocal pela divisão textual entre atores-personagens e pela sintaxe da cena, e
106
Gillray Coutinho, o único ator que trabalhou nos três espetáculos do romance-em-cena,
arrisca alguns conceitos, dos quais um apresenta-se como suplementar à definição aderbaliana:
“Eu acho que é uma forma de ampliação dos limites do teatro contemporâneo” (COUTINHO,
2011). Quer-se inferir, mesmo sob o risco de uma proposição prematura, que o romance-em-
cena de Aderbal Freire-Filho, de certa forma, é uma atualização, uma ampliação do Teatro
Épico de Brecht. O próprio encenador brasileiro parece concordar: “Eu reajo ao pensamento
andante do Brecht, porque nas novas circunstâncias você vê como toma aquele ponto de partida
do pensamento e reage a ele” (FREIRE-FILHO, 2011). Essa atualização dá-se no romance-em-
cena porque a proposta obriga-o a reorganizar um texto tipicamente narrativo-descritivo, não
escrito para ser levado ao teatro, e, portanto, necessitando operar sobre ele interferências e
ajustes na composição dramatúrgica. A realização deu-se por meio de diversos procedimentos
que serão devidamente nomeados e analisados, como a constituição de diálogos cênicos, a
construção de personagens, encenação, ações, movimentos etc. Quanto à terminologia, Freire-
Filho esclarece que quando encenou o primeiro romance não encontrava uma definição que o
satisfizesse; portanto, cunhou o termo “romance-em-cena” para batizar a poética que estava
criando junto ao elenco do CDCE:
Eu achava que não podia chamar adaptação, achava que não era transcriação, até podia
ser... E achava que tinha que ter um nome. Quando eu comecei a fazer não tinha nome.
Eu não me lembro em que altura dos ensaios, pois ensaiamos um ano e meio, eu peguei
e cunhei essa expressão, esse termo “romance-em-cena”. Porque era um jeito
particular de fazer. Era o romance que eu dizia que era sem adaptação. Hoje em dia
eu passei a dizer que é com muita adaptação. A diferença que quando eu dizia “sem
adaptação” eu estava me referindo a uma adaptação literária. […] Agora quando eu
falo que é com muita adaptação, é porque para que aquilo vire uma peça tem que
sofrer um processo de recriação muito grande. Eu me lembro de um amigo que quando
viu Púcaro Búlgaro disse: “Esse livro é uma peça. O que está escrito aí é uma peça”.
E não era. Essa adaptação é feita de tal jeito que transforma o romance numa peça, é
uma profunda adaptação. (FREIRE-FILHO, 2011)
adaptação, quando se trata de uma escrita destinada prioristicamente a outro suporte e meio de
comunicação. As experiências do romance-em-cena vêm desestabilizar e extrapolar as demais
terminologias como transcriação, transposição, versão etc. Não se pretende com isso retirar a
expressão do domínio da poética cênica aderbaliana e oferecê-la ao teatro contemporâneo: é
que a práxis do romance-em-cena desobriga a insistência em determinadas terminologias, já
que não é o diálogo intersubjetivo que caracteriza o texto teatral, mas a performance no tempo
presente e a ação cênica entre sujeitos.
Porque o ator brasileiro tem essa comunicação direta com a plateia. E no romance não
pede isso, né, do ator falar direto com a plateia sem fazer o jogo cênico diretamente,
porque não é um teatro aberto, um teatro participativo. Ele não é participativo de
forma alguma. A plateia não está excluída da brincadeira, mas o texto é narrado para
ela, você conversa diretamente com a plateia. Na verdade, eu acho que um exercício
legal é a triangulação... “Você contou, eu contei... você contou eu contei...” e o tempo
todo você está triangulando, jogando com a plateia. Não tem como fechar nesse tipo
de teatro, não tem como determinar ou se pretender uma quarta parede aí.
(FIGUEIREDO in COUTINHO, 2011)
três espetáculos na encenação de Aderbal Freire-Filho, ainda que não seja por meio de imagens
concretas que se sustenta o romance-em-cena. Ao contrário, realçam-se as imagens sonoras,
pois a vocalização do texto narrativo-descritivo oferece ao espectador, por meio da escuta, a
construção mental de imagens. Portanto, infere-se que está em evidência para o público do
romance-em-cena a performance narrativa dos atores, exuberante, potente, viva, mas que
muitas vezes se sobrepõe aos demais elementos da cena. Sobre a instabilidade da encenação,
ela está diretamente relacionada à quantidade de personagens, temporalidades e espacialidades
que o romance oferece. Quanto mais esses elementos se fixam, mais a encenação conquista sua
estabilidade, pois diminui o trânsito entre os atores e permite que sua composição seja cada vez
mais profunda e menos aportada no traço, na caricatura.
“O que o teatro tem a oferecer ao romance é outro universo poético que vai potencializá-
lo. Senão é melhor você ler”, disse Aderbal Freire-Filho. No que corresponde à encenação, a
gramática do romance-em-cena prima pelo jogo de montar e desmontar imagens, quadros e
cenas em movimento, criando uma instabilidade na encenação cujo grau vai variar de um
espetáculo a outro, como se poderá verificar na análise das peças. Incorre em modos de
teatralidade porque persegue a ação incessante (cênica, vocal), estimula o imaginário e a
imaginação do publico, evidencia os recursos de fabricação da ilusão, e recorre à
(des)construção da ilusão do palco, concretizadas na interpretação multifacetada dos atores que
são personagens, contra-regras e também nos objetos ressignificados, explicitando o que a cena
tem de mais singular, pois tudo é feito diante dos olhos do espectador.
110
30 min/ 5 min), podendo ultrapassar um pouco mais ou antecipar, a peça inicialmente podia
chegar a cinco horas. Estreou em 10 de novembro de 1990 no Teatro Gláucio Gil, no Rio de
Janeiro, e tinha no elenco original os atores Cândido Damm, Orã Figueiredo, Gillray Coutinho,
Duda Mamberti, Thiago Justino, Malu Valle, Suzana Saldanha e Marcelo Escorel, figurinos de
Biza Viana, cenografia de José Dias, assistência de Marcos Vogel e direção musical de
Ubirajara Cabral. Rendeu a Aderbal Freire-Filho no ano de estreia o Prêmio Shell, sendo
considerado um marco que estimulou inclusive outros encenadores e atores na investigação do
teatro narrativo.
Quando os espectadores entravam no teatro Gláucio Gill eram recebidos pelos atores,
que os ajudavam a se acomodar na arquibancada defronte ao palco quase nu, não fosse a grande
mesa retangular e giratória fixada no centro. No fundo e nas laterais estavam à vista os demais
dispositivos cenográficos e araras exibindo as peças de figurino. O elenco misto vestia
uniformemente uma base composta por camiseta e short/calças de diversas cores, sobre os quais
entravam outras indumentárias, como num quebra-cabeça ou mesmo como naquelas bonecas
de papel que acompanhavam diversos moldes de roupas para serem acopladas ao corpo-base.
Nesse pré-ato, o elenco se apresentava de baby dolls brancos, já antecipando visualmente a
primeira cena e a apresentação da protagonista. Algum estranhamento já se impõe ao público,
que desfaz de imediato qualquer desejo de ilusão, pois incita ao despojamento, ao humor,
estimulado pelo travestimento masculino. Tudo é visível aos espectadores e a magia do
romance-em-cena, já evidente, não se apóia na ilusão de um teatro convencional. Muito ao
contrário, configura-se pela dinâmica de montar e desmontar inúmeras cenas e personagens
diante do público, diluindo as fronteiras que o separam da encenação. Um prólogo escrito por
Freire-Filho e lido por Gillray Coutinho orientava a plateia quanto ao ineditismo da proposta,
principalmente por se tratar do trabalho inaugural dessa linguagem. O texto comparava a saga
da encenação de um romance, na íntegra, ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro:
GILLRAY – Este espetáculo tem quatro horas de duração [risos da plateia] e três
intervalos, um intervalo de hora em hora. É um espetáculo curtíssimo [novos risos],
se comparado com o Desfile das Escolas de Samba. E podemos comparar: temos
muitas fantasias, cenas que se sucedem como alas, o público assiste em arquibancadas
e também fazemos em dois dias: quintas e sextas.
Por isso, como nos desfiles, só que sem o locutor oficial, vamos começar pelas
instruções para assistir. [risos] O primeiro e o terceiro intervalo devem ser bem curtos,
quanto mais curtos, melhor. O intervalo do meio, o segundo intervalo, dura meia hora.
Dá tempo até pra sair um pouco do teatro, ir aos bares perto etc.
112
Quem estiver com dores nas costas, quem dormiu mal noite passada, quem não estiver
bem [gesticula a fome] e precisar sair antes do final, mas se quiser voltar outro dia,
deve passar na bilheteria para carimbar o ingresso.
Obrigado.
25
Aderbal revelou que em cada cidade por onde o espetáculo passou o texto do Prólogo se modificava, buscando
co-relacioná-lo ao ambiente e às características locais.
26
Apenas aos sábados e domingos o espetáculo era feito em única sessão, com a duração de quase cinco horas,
com os intervalos a que o texto de abertura se refere.
113
pela Royal Shakespeare Company.”, mas não se furtou a reconhecer os méritos da proposta do
encenador radicado no Rio de Janeiro: “A opção […] revela-se acertada, mesmo que talvez
fosse a mais difícil de sustentar, pois a escolha de um tom exacerbado e artificial paga o preço
de certa limitação de possíveis variações de tom; mas nada talvez impressione tanto […] do que
a coerência de sua concepção cênica” (HELIODORA, 1990: s/p). Ressalta a boa qualidade do
aproveitamento cênico da cenografia e dos figurinos em detrimento das visíveis deficiências
orçamentárias da produção. Para Macksen Luiz do Jornal do Brasil a encenação tem um tom
homogêneo e reclama a falta de nuances, de intensidades dramáticas, esquecendo-se talvez de
que se trata de um romance e não de uma dramaturgia tradicional. Reconhece que “A palavra
ganha, sem dúvida, uma relevância sobre toda a construção teatral, adquirindo uma presença
avassaladora no espetáculo” (LUIZ, 1990, s/p), apesar de considerar que a valorização da
palavra enfraqueceu outros aspectos do espetáculo, como a diversão. Porém, Heliodora parece
discordar: “A direção de Aderbal é imaginativa e gozadora, trazendo um sopro de alegria para
nossos palcos de verão” (HELIODORA, 1990: s/p).
Treze anos depois, Aderbal voltava à linguagem do romance-em-cena com O que diz
Molero, de Dinis Machado, cuja estreia se deu 17 de outubro de 2003 no Teatro Casa Grande,
também no Rio de Janeiro. Compuseram o elenco original Chico Diaz, Claudio Mendes, Orã
Figueiredo, Augusto Madeira, Raquel Iantas e Gillray Coutinho; a cenografia ficou ao encargo
de José Manuel Castanheira, figurinos novamente de Biza Viana, iluminação de Maneco
Quinderé e trilha sonora de Dudu Sandroni. Conquistou o Prêmio Shell de Melhor Ator para
Orã Figueiredo e Melhor Direção para Aderbal Freire-Filho, além de inúmeras críticas
elogiosas27, consagrando a proposta do encenador:
As quatro horas de duração se diluem no percurso ágil com que a palavra é devolvida,
retrabalhada nas suas possibilidades teatrais […] Aderbal Freire-Filho, que há anos
assinou a transcrição de um romance na íntegra para o palco – A mulher carioca aos
27
Os excertos dessas críticas foram extraídos do blog na Internet de Renata Caldas, que também pesquisa o
romance-em-cena, e podem ser conferidos no endereço < http://renatacaldas.wordpress.com/o-que-diz-molero/>
Acesso em 12 abr 2010.
114
22 anos, de João de Minas -, atinge com O que diz Molero o depuramento dessa
técnica. (Macksen Luiz, Jornal do Brasil, 1º/11/2003)
“O que diz Molero é um generoso e suculento espetáculo que, durante quatro horas,
faz seis atores conduzirem o espectador por uma delirante viagem pelo mundo dos
humanos, das artes, da cultura, do inesperado, do patético, do risível, tudo isso por
um mar de palavras magistralmente usadas. […] Aderbal Freire-Filho realiza um
notável trabalho, no qual podemos ver até que ponto o melhor teatro nasce da
criatividade orgânica, que transforma em ação cênica um texto, enriquecendo-o sem
procurar substituí-lo, minimizá-lo, desrespeitá-lo. (Bárbara Heliodora, O Globo,
23/10/2003)
Antes de promover uma explanação sobre a obra, chamo a atenção para o destaque no
terceiro extrato crítico: a partir do que foi divulgado e difundido por Aderbal Freire-Filho,
levou-se a crer que sua poética seguiu radicalmente a proposta original (não alterar uma vírgula
sequer do romance), o que deve ser relativizado, como se vai verificar no decorrer desse
capítulo: o encenador aqui explora mais o procedimento dramatúrgico da edição para operar
um corte significativo no texto do romance, como proposta para solucionar o problema de sua
inviabilidade junto ao público, pois muitas pessoas deixavam de ir pela longa duração. Ainda
que a poética do romance-em-cena não tenha sido descaracterizada por isso, defendeu-se,
todavia, em entrevista a Roberta Oliveira:
Talvez não se trate de consumo, pode ser até mesmo falta de hábito ou preconceito.
Nosso mundo midiaticamente globalizado oferece uma enormidade de opções de lazer que
115
O registro audiovisual do espetáculo a que tive acesso para a pesquisa consiste numa
edição de cenas previamente escolhidas, com duração total de aproximadamente 30 minutos,
editado para fins promocionais. O material completo da peça original, cuja duração é de quatro
horas, encontra-se bruto e até o presente momento não editado, compondo um acervo de em
média 60 fitas mini-DV, indisponível para consulta, segundo Aderbal. A edição que será por
hora analisada encontra-se em formato de DVD e destinou-se à promoção e divulgação do
espetáculo, principalmente visando à participação em festivais de teatro, tendo sido realizada
por Daniela Ramalho com apoio da TV Zero. A captura do áudio, cujo idioma é o português
brasileiro, dá-se pela disposição de microfones dispostos na ribalta do palco, implicando na
oscilação do volume das falas entre uma movimentação e outra dos atores e também por sua
localização na cena. O áudio apresenta ótima qualidade, entretanto o vídeo é legendado em
português, provavelmente para dar suporte à leitura, acompanha sincronizadamente as falas.
dos dizeres, pois, dentro do relatório, Molero diz o que disse outro personagem sobre o Rapaz
e constrói um abismo infindável, relativizando noções como verdade e mentira.
Na primeira cena, o Rapaz está diante de uma gaveta aberta, da qual uma luz emana
sobre seu rosto. Simultaneamente, tem-se a entrada de Austin e Mister DeLuxe, que se sentam
à mesa e começam a consultar o relatório de Molero. A apresentação do Rapaz no espetáculo
antecipa à do romance, que só se inicia pelo diálogo entre os dois investigadores. O Rapaz retira
o primeiro objeto de um arquivo, uma garrafa vazia, e o deixa sobre a mesa da dupla,
117
constituindo uma simultaneidade que promove interseções: dentro da sintaxe cênica, o real
(investigadores, relatório) e o ficcional (Rapaz, garrafa) se interceptam, mas ainda não
interagem. A garrafa será tomada pelo personagem do pai do Rapaz quando adentra a cena, ao
ser evocado pela narrativa, para refazer com ela um jogo de boliches, ilustrando o romance.
Todos os personagens assumem a co-presença e assistem à representação, como se ocupassem
o lugar do leitor-espectador que se põe a imaginar o que foi relatado. Há ainda certa interação
entre os personagens, pois o Pai, enquanto reconstitui o boliche, repreende o Rapaz, seu filho,
com um gesto; e no final da cena ameaça Mister DeLuxe com um safanão. Pelo vídeo é possível
perceber os pormenores da dinâmica da encenação, a contra-regragem feita pelos atores, a
entrada e saída dos bastidores, o desdobramento do elenco em diversos personagens (com
exceção de Chico Diaz), a vocalização da narrativa simultânea a ações físicas e movimentações.
No decorrer das cenas, o Rapaz vai ocupando o lugar dos investigadores na mesa, lugar da
memória, de onde passa a narrar, recordar e a ser espectador de sua própria biografia, encenada
pelos demais atores no palco.
[…] não se pode ignorar que o prazer da engenhosidade verbal contida em O púcaro
búlgaro emana do humor agressivo, do caráter surreal da narrativa, do alívio catártico
provocado pela complexidade dos jogos de palavras, que ridicularizam o poder, a
sociedade, a ciência, as relações humanas. O narrador atinge o “riso impossível” a
partir das possíveis impressões que causa naquele que faz rir. Ele utiliza o leitor e se
reúne a ele para suscitar seu próprio riso. Além disso, obtém duas fontes de prazer: o
da verbalização, no jogo das palavras com o arbitrário do significante ou no nonsense,
e o de escapar da censura, ao dizer o que quer dizer, sob disfarce. (SANTOS, 2009:
522)
28
Púcaro é um vaso provido uma asa, feito de alumínio ou barro e utilizado para beber água.
119
de que aquele país não existe mesmo. Dessa forma, inicialmente tem-se a origem do nome do
país no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: Bulgária refere-se ao povo bulgar, tribo
étnica formadora daquela civilização, cuja etimologia aponta para a derivação de burg, palavra
germânica para castelo. Ora, reunidos no apartamento de Hilário, os expedicionários acabam
por manter-se confinados naquele espaço, onde realizam conferências, reuniões e inúmeras
digressões sobre diversos temas e assuntos. A questão primordial que os reuniu nesse “castelo”
no Alto da Gávea, Rio de Janeiro, é o estopim para dar vazão à imaginação, faculdade
essencialmente humana e ilimitada. A palavra castelo também costuma ser cara ao ofício da
escrita, pois representa a metáfora do escritor isolado em sua torre de marfim. Sem praticamente
sair das paredes que os envolvem, os personagens do romance viajam sem sair do lugar: esse
verbo nos encaminha tanto ao projeto da expedição à Bulgária quanto à gíria comumente
atribuída àqueles que deliram e alcançam outras percepções da realidade ao usar determinadas
drogas entorpecentes (normalmente ilícitas) que os levam, portanto, a viajar. Hilário é o Ulisses
que vai sem nunca ter ido, que sabe que a viagem pode ser um mecanismo interno, de uma
busca existencial, essa sim uma verdadeira odisseia humana. O autor, por meio de seus
personagens, convida o leitor a acompanhá-lo nessa jornada, que pode ou não se realizar, pois
não é isso que importa, através da imaginação. Nesse ponto, atinge-se o espetáculo de Aderbal
Freire-Filho, que se propõe a encenar e a explorar essa viagem, pois o palco tão limitado quanto
o apartamento de Hilário não tem raias para a criatividade do encenador e para a imaginação
do espectador.
Percebe-se que a encenação em O púcaro búlgaro torna-se mais estável em relação aos
romances-em-cena anteriores, diminuindo intensamente o trânsito entre dispositivos
cenográficos e atores, porque o romance oferece um leque mais reduzido de personagens e
espaços (a viagem sem sair do lugar). O espaço cênico em formato de arena total (quatro
arquibancadas) é preenchido pela ambiência e móveis do apartamento de Hilário, que se
120
distribuem metonimicamente: uma cama de solteiro, uma mesa com quatro cadeiras, um vaso
sanitário, uma banheira, uma poltrona com duplo acento (sem frentes e costas, podendo ser
usada dos dois lados) e uma pequena cozinha, que praticamente não é utilizada e nem se vê
pelo vídeo do espetáculo (filmado com três câmeras, mostra o espetáculo de pontos de vista
diferentes, como a plateia em arena), além de um grande tapete sobre o assoalho. Os móveis
reunidos no espaço cênico, sem paredes ou divisões, compõem um mosaico do apartamento do
protagonista. Por fim, a cenografia envolve uma escada em formato de caracol que não leva a
lugar algum e que, pelo menos pelo vídeo, é utilizada uma única vez, quando nela Augusto
Madeira enuncia a dedicatória do romance. Os bastidores, à mostra como em A mulher carioca,
é o espaço de espera para entrar em cena, de trocas de figurinos, depósito de objetos cênicos e
adereços.
Inicia-se, portanto, o exame dos procedimentos de escrita cênica, com destaque para
dramaturgia, atuação e encenação, utilizados por Aderbal Freire-Filho no romance-em-cena,
percebendo as descobertas e transformações pelas quais essa poética foi passando, como um
work in progress. Serão utilizados quadros para demonstrar as passagens e transferências do
texto do romance para sua escrita em dramaturgia. Entretanto, a linguagem será abordada de
forma fragmentada, pois os excertos destacados privilegiarão uma melhor visibilidade das
operações por ele realizadas e da(s) categoria(s) nele analisada(s). Os procedimentos foram
nomeados por mim, alguns a partir de conceitos oferecidos por Aderbal no material pesquisado,
outros por meio do referencial teórico, o que me levou a organizar parte dessa gramática e
propor terminologias que podem ser aplicadas a outros trabalhos no mesmo campo.
Quando decidiu levar A mulher carioca aos 22 anos ao palco, Freire-Filho iniciou os
primeiros convites para formar o elenco. Entretanto o livro estava esgotado e ele não tinha
interesse em fazer fotocópias. O recurso que encontrou para disponibilizar o romance para a
montagem foi transcrevê-lo em sua máquina de escrever, sem promover nenhuma alteração,
mantendo a escrita como no original: “Só para poder riscar, voltar, trabalhar com isso”, afirmou,
122
antevendo os gestos de escrita dramatúrgica e cênica que seriam necessários durante o processo.
O processo de datilografar o livro permitiu-lhe ganhar intimidade com a matéria-prima textual.
Na sala de ensaio, portanto, tinha-se o texto do romance, um encenador e um elenco, que chegou
a oito atores, mas se iniciara com quatro, e um palco vazio sob os escombros do abandonado
Teatro Gláucio Gill.
Tendo a cópia do romance em mãos, sabendo-se que não queria uma adaptação formal
e que, portanto, tudo o que estava escrito seria dito pelos atores, Aderbal iniciou a construção
de sua gramática do romance-em-cena entre tentativas e erros, experimentos, reflexões,
perseguindo a ideia estrutural do projeto: transformar o livro em teatro. O grupo investiu na
pesquisa e na experimentação numa montagem que durou 18 meses. Tudo isso porque se estava
diante de um material textual inédito para todos eles, um romance literário, “colocado à prova
da camisa de força do palco”, como definiu Freire-Filho. O elenco, formado por jovens atores,
com exceção de Suzana Saldanha – mais experiente –, entregou-se totalmente à proposta
aderbaliana. Entende-se que um bom ator não teme o risco e coloca-se à disposição para a
descoberta de novos mundos, senhor que é do palco, sujeito imprescindível na realização do
acontecimento teatral em contato com o espectador.
A primeira iniciativa de Aderbal foi pedir aos atores que lessem o romance previamente.
Nos primeiros ensaios, que se referem à etapa de compreensão ou leitura afetiva, o encenador
e o elenco liam alguns trechos juntos, conversavam e realizavam experiências cênicas. No
começo, o sistema de tentativa e erro era uma proposta consciente para que se pudesse
realmente exercitar a pesquisa. Não partidário da improvisação como método de criação, apesar
de já ter utilizado muitas vezes em trabalhos anteriores no início de sua carreira, ele foi
abandonando essa prática porque desejava uma maior objetividade nos ensaios. É
compreensível que para ele a improvisação livre, solta, em que os atores dão o ponto de partida,
pode não ser tão produtiva em seu processo. Entretanto, pode-se reconhecer que os estímulos,
sugestões e determinações que oferece ao elenco muito provavelmente estimularam o exercício
improvisacional, pois está em ação no tempo presente do ensaio, propondo e experimentando
gestos e movimentos pela primeira vez. E, ainda, não se deve esquecer que Aderbal Freire-
123
Filho é encenador-autor que tem assinatura em suas criações, cuja mão é responsável por muitas
determinações sobre o trabalho do ator e a composição da cena, ainda que ele não invista numa
postura autoritária:
Eu dizia assim: “Olha, vou distribuir [o texto] para vocês e vocês façam aí”. Aí faziam.
“Ah, não ficou bom. Vamos de novo.” Eu gosto muito de caminhos, de determinar
caminhos. Na verdade, os atores que trabalham comigo não se sentem nem um pouco
castrados, ameaçados e esvaziados, sob pressão. Eu tenho a impressão que um desses
atores que fez um romance desses comigo, e até outra peça, não saiba ao certo se tal
ou qual cena foi criada por ele ou por mim. Sendo a maior parte das vezes criadas por
mim. Eu sou um diretor que define. Eu tenho definições. Não que eu tenha pré-
definições. Eu vou para o ensaio sem saber o que eu vou fazer. Mas quando eu chego
ao ensaio e aí vou falando e vendo a cena e tal, e vou para o palco... tudo isso é para
ser feito assim. Até eu botar esses dois pontos eu não sei o que é o acerto. Se tal coisa
e tal coisa, claro que é isso aqui. Eu sou muito de definições, de caminhos, mapas. E
os atores, ouço também. Os atores vão junto. Então, chega um momento que se apaga
um pouco a memória de quem fez isso e quem fez aquilo. (FREIRE-FILHO, 2011)
A distribuição a que se refere Aderbal era a definição de quem diz o quê, primeira etapa
para o processo de construção dessa linguagem, já que se está no reino absoluto da palavra,
preservada em sua quase total integralidade de escrita. A proposição de Aderbal trata de
eliminar (ou esconder, camuflar, disfarçar) cenicamente a figura do narrador que, em A mulher
carioca aos 22 anos, é de terceira pessoa, onisciente. Portanto, o procedimento que encontrou
foi dividir a narrativa pelo elenco, seguindo o critério do personagem a que o narrador se refere.
As narrações relativas aos personagens são ditas pelos atores que os interpretam, configurando
o que ele denominou como “o personagem que narra sobre si mesmo na terceira pessoa” ou
auto-narração, mas que passo a denominar como personagem referente. Quando o narrador do
romance não se referir especificamente a alguém, a narrativa é oferecida ao personagem que
tenha mais proximidade com ela, de acordo com o sentido da leitura, e há aqueles que aparecem/
desaparecem em instantes apenas porque foram citados pela narrativa e que nomeamos como
personagem citado. Percebe-se aqui uma proposição própria do drama que intenta eliminar a
figura do narrador para que a ação cênica se desenrole apenas no plano das personagens e das
relações entre elas.
cena encarrega-se da criação de diálogos cênicos, o que contribui para instaurar uma
dramaticidade, uma teatralidade, pela oposição e confronto entre os falantes, como se pode
confirmar a partir de uma comparação entre um trecho de A mulher carioca aos 22 anos,
romance de João de Minas, e sua versão dramatúrgica:
ROMANCE DRAMATURGIA
Angélica, na Escola, procurou evitar Claudia ANGÉLICA: Angélica, na Escola, procurou evitar
o quanto pôde. Claudia o quanto pôde.
Mas uma manhã, foi impossível.
A vampira deu com ela de testa, na escada. CLAUDIA: Mas uma manhã, foi impossível. A vampira
Estendeu-lhe a mão: deu com ela de testa, na escada. – Estendeu-lhe a mão –
– Vem cá, meu bem. Vamos fazer as pazes. Vem cá, meu bem. Vamos fazer as pazes. O carro está
O carro está aí. Vamos farrear… aí. Vamos farrear…
Angélica não respondeu, e foi descendo a
escada, correta. ANGÉLICA: Angélica não respondeu, e foi descendo a
Cláudia enfureceu-se, e ameaçou-a: escada, correta.
– Você está bancando a santa, miserável!
Mas você me paga, cachorrinha. Você vai ver… CLAUDIA enfureceu-se, e ameaçou-a: Você está
Em baixo, surgia Chiquilha, comandando um bancando a santa, miserável! Mas você me paga,
grupinho seleto de colegas. cachorrinha. Você vai ver… - Claudia engoliu a sua
Angélica, que simpatizava com ela, foi raiva, chocada com a indiferença da ex-amiga.
abraçá-la.
Claudia engoliu a sua raiva, chocada com a CHIQUILHA: Em baixo, surgia Chiquilha,
indiferença da ex-amiga. comandando um grupinho seleto de colegas.
Chiquilha estava justamente contando
histórias de sua última viagem a Paris, de onde ANGÉLICA: Angélica, que simpatizava com ela, foi
chegara na véspera. abraçá-la.
Oh, Paris!
Ela ia sempre a Paris, sozinha, como um E veio também para o grupinho refinado de alunas.
rapaz.
Era rica, filha do milionário Alcides Elpenor, CHIQUILHA Chiquilha estava justamente contando
um corno de mão cheia, casado em segundas histórias de sua última viagem a Paris, de onde chegara
núpcias, também louco por Paris. na véspera.
As línguas perversas, nas rodas nortunas do
Copacabana Palace Hotel, até diziam que no último TODAS: Oh, Paris!
carnaval, em Nice, o pai e a filha tinham dormido
juntos num bordel, tendo ambos na bebedeira (ALUNA 1): As línguas perversas, nas rodas nortunas
esquecido de tirar as máscaras. do Copacabana Palace Hotel, até diziam que no último
Mas isso não tinha importância. carnaval, em Nice, o pai e a filha tinham dormido juntos
num bordel, tendo ambos na bebedeira esquecido de
tirar as máscaras.
a estrutura dramatúrgica do texto teatral, em que as falas são separadas por personagens e
construindo diálogos nesse encadeamento sequencial. Entretanto, pode-se observar no fim do
trecho que os dois últimos parágrafos não se referem a nenhuma personagem. Portanto, o
dramaturgo-encenador, percebendo pela diegese que Chiquilha está acompanhada de outras
alunas, dispõe de alguns atores para a composição desse grupo e oferece a dois deles espaço de
voz (que chamei de Alunas 1 e 2), imprimindo sobre o texto sua opção de eliminar a figura do
narrador e de tomar posições quando o procedimento mais geral não dá conta de resolver alguns
pormenores. Na cena, constrói-se um clima de fofoca sobre Chiquilha entre as colegas.
Nesse caso, pode-se reconhecer que algumas frases ocupam o lugar da rubrica na sua
transferência à dramaturgia, conforme se observa pela performance dos atores e pela encenação,
que parecem seguir essas orientações. “Estendeu-lhe a mão” transforma-se em cena na ação
correspondente feita por Claudia, acrescida de um acariciar os seios de Angélica; “enfureceu-
se, e ameaçou-a” indica intenção de fala (ação vocal) e ação física (no caso da cena, de apontar);
“Claudia engoliu a sua raiva, chocada com a indiferença da ex-amiga.” pode servir como
subtexto para a interpretação da personagem; o quadro composto pelas colegas de Chiquilha e
por mais quatro personagens-alunas remete a “E veio também para o grupinho refinado de
alunas.”, cujo sujeito da ação no romance é Claudia, mas na escrita cênica de Aderbal foi
substituída por Angélica.
ROMANCE DRAMATURGIA
126
Claudia era órfã de pais, e tinha um vasto prédio CLAUDIA: Claudia era órfã de pais, e tinha um vasto
colonial, na rua da Alfândega. prédio colonial, na rua da Alfândega. Era uma escritora,
Era uma escritora, gênero moderno. gênero moderno. Publicava artigos remunerados, nos
Publicava artigos remunerados, nos Diários Diários Associados, semanalmente no O Cruzeiro,
Associados, semanalmente no O Cruzeiro, ensinando o seu sexo a ser feliz e discutia a entrada das
ensinando o seu sexo a ser feliz. saias para a Academia Brasileira de Letras. Ela era
Ultimamente o seu nome inchara, em plena candidata. Por cima de tudo isso, não era feita. Tinha fé
evidência, depois de uma viagem ao Norte. – não nos destinos humanos, ou no espírito, ou na alma,
O Dr. Aldo Fonseca, governador do Rio Grande mas, fé na carne, fé na matéria, fé na lama darwiniana.
do Norte, e não menos feminista, lhe oferecera um De vez em quanto, a ilustre escritora matriculava-se na
banquete. Escola Normal. Não fazia exames nem nunca
Claudia voltou ao Rio dando entrevistas: e pretendera diplomar-se. Para quê?... Ela se matriculava
discutia a entrada das saias para a Academia só para remoçar, para ser aluna, para ser estudante. Que
Brasileira de Letras. vidão! Podia assim estar na intimidade dessas meninas
Ela era candidata. fresquinhas, doiradas uvas e maçãs humanas, e que lá
Por cima de tudo isso, não era feita. Tinha fé – um dia, de repente, se viam mulher, com o sexo e o bico
não nos destinos humanos, ou no espírito, ou na dos seios coçando. Claudia oficialmente era a vampira
alma, ou nos ideais e princípios – mas, fé na carne, dessas jovens sarapintadas de divindade, como que
fé na matéria, fé na lama darwiniana. redondinhas Nossas Senhoras, rijamente imaculadas,
Sim, Claudia era muito prática. com o ventre de veludo digno de receber a concepção
As suas narinas às vezes tremiam, chupando no brocha do Espírito Santo. A famosa literata gostava de
ar cheiros fecundos, caprinos, esses odores da libido emporcalhar essas santas estúpidas, ensinando-lhes as
que esvoaçam nos ambientes aquecidos. mais refinadas patifarias. Ela – a Cesar o que é de Cesar
Que delícia! – sabia vencer, impunha-se, como uma aranha de ópio.
Ela então fazia como os bodes, de ventas
universalmente arreganhadas, os olhos bêbados de
volúpia.
De vez em quanto, a ilustre escritora
matriculava-se na Escola Normal.
Não fazia exames nem nunca pretendera
diplomar-se.
Para quê?...
Ela se matriculava só para remoçar, para ser
aluna, para ser estudante.
Que vidão!
Podia assim estar na intimidade dessas meninas
fresquinhas, doiradas uvas e maçãs humanas, e que
lá um dia, de repente, se viam mulher, com o sexo e
o bico dos seios coçando.
Claudia oficialmente era a vampira dessas
jovens sarapintadas de divindade, como que
redondinhas Nossas Senhoras, rijamente
imaculadas, com o ventre de veludo digno de
receber a concepção brocha do Espírito Santo.
A famosa literata gostava de emporcalhar essas
santas estúpidas, ainda com a ingenuidade do
irracional, ensinando-lhes as mais refinadas
patifarias.
Essas lições eram em lugares finos, quartos de
casas de “rendez-vous”, com bebidas e cigarros,
cocaína, frutas.
Para esse fim Claudia tinha até aparelhos de
borracha, órgãos sexuais fabricados na Argentina.
Ela – a Cesar o que é de Cesar – sabia vencer, (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:
impunha-se, como uma aranha de ópio. 00:07:42-00:08:34)
ROMANCE DRAMATURGIA
– Quarenta páginas são dedicadas a Paris – AUSTIN: Quarenta páginas são dedicadas a Paris,
disse Austin –, Molero esteve lá por causa da tal Molero esteve lá por causa da tal história relacionada
história relacionada com La Petite Mireille, a com La Petite Mireille.
candidata ao elenco da Comédie Française.
– É verdade, isso – disse Mister DeLuxe –, LA PETITE MIREILLE: La Petite Mireille, a
havia isso. candidata ao elenco da Comédie Française.
– Ela não chegou a entrar para a Comédie –
continuou Austin –, o que, de resto, é secundário, AUSTIN: As fontes de informação, se excluirmos
apenas deu oportunidade a Molero para tecer aquilo a que Molero chama, com ambiguidade
considerações de vária ordem sobre algumas facetas resvaladiça, o oásis pantanoso da infância, eram muito
da sua personalidade. dispersas. Molero teve necessidade de seleccionar.
– Dela? – perguntou Mister DeLuxe.
– Mais dele do que dela – informou Austin, LA PETITE MIREILLE: Daí ter escolhido La Petite
solícito. – As fontes de informação, se excluirmos Mireille. Tratava-se de uma mulher com mais de 30
aquilo a que Molero chama, com ambiguidade anos que não podia ter filhos, tinha sido casada
resvaladiça, o oásis pantanoso da infância, eram anteriormente com um negociante de antiguidades,
muito dispersas – continuou Austin – e ele teve
necessidade de seleccionar, daí ter escolhido La SVOBO: Um tal Svobo.
128
[…]
Detecta-se ainda nesse quadro, mesmo que sutilmente, a escrita de Freire-Filho sobre a
escrita de Machado nos trechos em negrito: nomeamos o procedimento como reiteração, no
caso do nome da personagem “La Petite Mireille”, para ajustar a dramaturgia ao recurso do
personagem referente; os nomes “Molero” e “O Rapaz” recuperam os sujeitos da ação na
diegese; a tradução de palavras estrangeiras para o português: “antiques” é substituída por
“antiguidades”, “bowling” por “boliche; ou mesmo reescrita de frases e expressões, visando a
uma melhor compreensão do público, como “vindo de um meio em que proliferava a cópula a
129
taxímetro, em quartos alugados, de uma ligação sexual adornada de mimos e ternuras” para
“da possibilidade de uma relação sexual orlada de mimos e ternuras”, “tinha o Rato Mickey
tatuado no peito, estava sempre a dizer ao rapaz para se pôr em guarda” para “Havia um amigo
da família que tinha o Mickey Mouse tatuado no peito e pedia ao Rapaz para bater na tatuagem”.
29
Optou-se aqui por indicar apenas as páginas do romance para não interromper o fluxo do texto, visto que a
referência completa acompanha a primeira citação.
130
ninguém, mas sim a uma referência espacial que permite criar um personagem extraído daquele
contexto.
ROMANCE DRAMATURGIA
O sábio agora me olhava atentamente, o lápis PSICANALISTA: O sábio agora olhava atentamente,
suspenso no ar, o bloco de papel com rascunhos o lápis suspenso no ar, o bloco de papel com rascunhos
sobre o joelho. Sua máscara traia uma grande sobre o joelho. Sua máscara traia uma grande
inquietação, como se temesse alguma coisa ou já inquietação, como se temesse alguma coisa ou já
começasse a pôr em dúvida a minha sanidade. começasse a pôr em dúvida a sanidade do paciente.
Lá pelo meio-dia tocou à porta o tal Ivo que viu IVO VIU A UVA: Lá pelo meio-dia tocou à porta o tal
a uva – ou talvez fosse o seu nome e eu não tenha Ivo que viu a uva
escutado bem – o qual me pareceu muito mais velho
do que eu imaginava, o que leva a crer que já tenha HILÁRIO (Raquel): me pareceu muito mais velho do
visto toda espécie de uva que há no mundo e só lhe que eu imaginava, o que leva a crer que já tenha visto
reste agora conhecer as famosas uvas búlgaras. toda espécie de uva que há no mundo
Disse-me, e provou com documentos, descender em
linha reta do tal sábio hindu que inventou o zero, IVO VIU A UVA: só lhe resta agora conhecer as
circunstância que lhe garante e à sua família um famosas uvas búlgaras. Disse, e provou com
royalty sobre todos os zeros usados no mundo até o documentos, descender em linha reta do tal sábio hindu
fim dos tempos. Aproveitou para, discretamente, que inventou o zero, circunstância que lhe garante e à
cobrar-me o que lhe devia. sua família um royalty sobre todos os zeros usados no
mundo até o fim dos tempos. Aproveitou para,
discretamente, cobrar o que lhe devia.
olhava”, “…pôr em dúvida a minha sanidade” para “pôr em dúvida a sanidade do paciente”.
No segundo quadro, além de explicitar o procedimento de divisão de textos entre atores e
personagens, tem-se “…só lhe reste agora conhecer” para “…só lhe resta agora conhecer”,
“Disse-me” para “Disse” e finalmente “…cobrar-me o que lhe devia” para “…cobrar o que lhe
devia”. Tal procedimento, que aparece em outros momentos da dramaturgia, descaracteriza em
alguma medida o original, pois altera a pessoa do discurso (de primeira para terceira) a partir
de rearranjos gramaticais, entretanto revela-se eficiente para que a linguagem do romance-em-
cena possa se realizar. Ainda no campo da escrita, o que chama a atenção ao comparar todo o
romance com sua versão dramatúrgica é a enormidade de trechos e parágrafos que são
abandonados por Aderbal, em direção a uma proposta ainda mais concisa para o espetáculo.
Por ser a terceira experiência nesse campo de investigação, o encenador não tem mais pudor
para editar, cortar, reescrever (mesmo que discretamente) visando, sobretudo, a diminuição do
tempo da peça. Em alguns casos, verifica-se que Freire-Filho necessita disfarçar sua voz de
dramaturgo na voz do autor (em negrito), buscando não revelar ao espectador os bastidores
desse coser:
ROMANCE DRAMATURGIA
Neste livro não se pretende firmar nenhuma ÍSIO: Neste livro não se pretende firmar nenhuma
verdade definitiva sobre essa imortal controvérsia, verdade definitiva sobre essa imortal controvérsia, em
em que pese ao número crescente de que pese ao número crescente de outros aventureiros
pseudoviajantes e outros aventureiros que, munidos que provam ou tentam provar o seu respeitável ponto de
de documentos irrefutáveis, provam ou tentam vista – escudados muitas vezes no prestígio de
provar a cada passo o seu respeitável ponto de vista assembléias ou conferências as mais internacionais.
– escudados muitas vezes no prestígio de
assembléias ou conferências as mais internacionais. RAQUEL: Sociedad Geografica de España.
O autor pessoalmente, e é o que se verá, já teve
oportunidade de conhecer e mesmo de entabular AUGUSTO: Société de Geographie de Lyon.
conversação com mais de um relutante búlgaro, e
até mesmo uma búlgara, todos de uma reputação CÂNDIDO: Sociedade Geográfica da Eslováquia.
acima ilibada e merecedores da maior estima e
simpatia: mas como também já viu de perto alguns GILLRAY: National Geographic Society.
fantasmas e até o próprio Diabo, reserva-se o direito
de só opiniar definitivamente sobre o assunto depois ÍSIO: Sociedade Geográfica da Universidade de
que outros mais abalizados ou afortunados o tenham Bolonha.
feito, à luz das novas ciências ou das que porventura
ainda estejam por surgir. AUTOR (Raquel): O autor pessoalmente, e é o que se
verá, já teve oportunidade de conhecer e mesmo de
entabular conversação com mais de um relutante
búlgaro
ROMANCE DRAMATURGIA
E como a Verdade paira acima de quaisquer HILÁRIO (Cândido): E como a Verdade paira acima de
verdades (…), quaisquer verdades!
Outro tipo de adição textual refere-se à leitura de verbetes de dicionário, que são
convocados quando o texto do espetáculo sugere: “Nos dicionários eles lá estão, um e outro
[púcaro e búlgaro], com seus verbetes” (CARVALHO, 2004: 313); Raquel Iantas lê em cena,
como sequência do texto anterior: “Búlgaro: natural da Bulgária; Púcaro: pequeno vaso com
asas” (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:08:51). Não se trata, nos textos adicionados, apenas
de misturar sua escrita à do autor, disfarçar seu gesto de costurador, de cirurgião, mas também
de assegurar à cena potencialidades de expressão e comunicação com o espectador. A palavra
escrita, por sua vez, se materializa nos espetáculos, através de objetos cênicos como dicionários,
livros, diários, enciclopédias. Presentes na encenação, tais objetos reiteram a
autoreferencialidade nos espetáculos, sobre os quais emerge essa linguagem.
ROMANCE DRAMATURGIA
Estava agora no terceiro ano da Escola Normal. ANGÉLICA: Estava agora no terceiro ano da Escola
Alta e fina, com pernas de praia, repousava na teia Normal.
fluídica dos seus olhos negros, de uma doçura casta.
TODAS cantando:
Juntas cantemos
A nossa marcha triunfal
Eia marchemos
Na escalada do ideal
Vibra nossa alma
De entusiasmo juvenil
Pela glória do Instituto
Pela glória do Instituto
E a grandeza do Brasil
30
A canção foi composta no Instituto de Educação General Flores da Cunha, escola pública de Porto Alegre e o
mais antigo estabelecimento de ensino secundário e de formação de professores da cidade, com letra das alunas
do Curso Secundário de 1940 e música de Maria de Lourdes Rangel. No Rio de Janeiro, onde se passa o enredo
do romance-espetáculo, pode se referir ao Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ), antigo
Instituto de Educação.
134
31
A autoria da canção não foi identificada, talvez tenha sido composta durante a montagem.
32
Essa música parece tratar-se de domínio público, de autor desconhecido, cuja letra apresenta uma série de
variantes, como própria das obras populares, conforme se verificou em pesquisa na internet.
135
O principal desafio para o elenco de A mulher carioca aos 22 anos era narrar um texto
em terceira pessoa e interpretar o personagem em primeira, ou seja, compor um personagem
que utiliza um discurso distanciado para falar de si mesmo. Os ensaios envolviam discussões e
reflexões entre encenador e elenco, investigações sobre a possibilidade de fusão do gênero épico
com o dramático (na acepção de Aderbal), enquanto verificavam em cena a viabilidade ou não
das propostas de criação. “A gente fazia muitas cenas, improvisações, muitos jogos.
Montávamos os personagens, trabalhava com alguns personagens... fisicamente, vocalmente...
como era fazer, como era a exposição disso. […] E em vários momentos a gente não sabia se
era o certo.” (COUTINHO, 2011, grifo meu), recorda o ator expondo os sentimentos de risco e
insegurança que acometiam os envolvidos no caminho de descoberta, de tentativa e erro, e a
revelação de que improvisavam, pelo menos nesse momento inaugural da linguagem.
Porque ele [Aderbal] é preciso, ele traz a referência certa. É difícil te dizer, a gente
não tem improviso nenhum. A gente vai marcando. A gente vai levantando a duras
136
penas cada gesto, cada marca, cada traço na pintura é um parto. “Para, volta, não,
vamos fazer assim.” Qualquer detalhe é revelador. Se você tem uma taça que sobrou
da cena anterior, aí o ator diz assim: “Não, vou levar essa taça, que já acabou a cena”.
Aí ele dizia: “Não, deixa essa taça aí. Essa taça a gente vai aprender com ela daqui a
pouco.” E aí acontecem as coisas mais loucas. O motivo pra tirar a taça surge e você
diz: Não conseguiria imaginar se fosse diferente. Parece que essa marca já existia.
Parece que a gente fez igual Rodin, tirou as imperfeições e a escultura já tava lá dentro
esperando pra sair. É uma coisa impressionante. O Aderbal é um mago, uma coisa que
eu nunca vi igual. (DAMM, 2011, grifo meu)
Com essas palavras, Cândido Damm nos revela como Aderbal escreve a encenação e,
por essa escrita ser invisível, para ele tem ares de magia, de loucura e, claro, de profundo
encantamento e admiração. Entretanto, essa escrita é audível, pelas indicações, orientações,
reflexões em voz alta de Freire-Filho na condução da criação. Se o encenador não escreve toda
a cena sobre a dramaturgia, a fala, a voz, é sua caneta, seu teclado. Para os atores, requer escuta
desenvolvida para absorvê-la e transformá-la com seus recursos corporais, vocais, emocionais,
imaginativos. A criação teatral é um espaço de comunicação entre falantes e ouvintes, entre
atuantes e observadores, entre criadores e a matéria criada.
Eu pouco li das teorias do Boal sobre Sistema Coringa, mas eu fiz isso porque alguém
veio antes de mim e o que foi feito eu vi, talvez não no original, não me lembro de ter
visto nenhum espetáculo do Boal no original, mas já num processo influenciado e essa
influência chega até mim. E, claro, é uma coisa da minha geração até... Eu tenho que
admitir que é isso. É a minha geração, são caminhos abertos por gente da minha
geração, da minha época. (FREIRE-FILHO, 2011)
ROMANCE DRAMATURGIA
Angélica tinha dezoito anos. ANGÉLICA (Malu): Angélica tinha dezoito anos.
Ela se fizera mulher numa noite aziaga, de
tempestade. ANGÉLICA (Gillray): Ela se fizera mulher numa noite
Ela se lembrava do susto pudico que tivera, pela aziaga, de tempestade. Ela se lembrava do susto pudico
manhã, ao erguer-se do leito. O lençol e suas calças que tivera, pela manhã, ao erguer-se do leito. O lençol e
de seda tinham pétalas de sangue. A rosa da sua suas calças de seda tinham pétalas de sangue. A rosa da
puberdade se desfolhara na sua carne pálida, nessa sua puberdade se desfolhara na sua carne pálida – em
noite comunista, nessa noite cheia de murros. tom de arauto, exibindo o lenço ao público – nessa noite
comunista, nessa noite cheia de murros.
O mesmo trecho do texto, como se pode observar, é repetido por três atores, todos
homens, que intepretam Angélica cada um ao seu modo, seguindo orientações da preparadora
corporal Rossella Terranova33, enquanto os demais restringem-se às ações com lenços e lençóis
manchados de sangue, representando a menstruação da personagem. Aqui há tanto o
procedimento da multiplicação quanto da reiteração, quando o mesmo episódio do enredo é
reforçado. Essa primeira e curta cena explicita o que o espectador vai confirmar ao longo do
espetáculo: na roleta-russa de A mulher carioca aos 22 anos todo o elenco se reveza nos
personagens principais (Angélica, Claudia, Anfrísio e Anica), desconstruindo o recurso
comumente utilizado do protagonismo no teatro convencional.
Como encenador-autor do espetáculo, Aderbal delega à cena essa tarefa, à medida que
faz surgir os personagens descritos pelo texto na representação dos atores. O Rapaz,
protagonista do enredo, é interpretado apenas por um único ator (Chico Diaz), o que de alguma
forma permitiu-lhe uma composição mais profunda do personagem, oferecendo-se à
identificação do espectador, ainda que atravessada pelo estranhamento do veículo narrativo.
Mesmo que outros atores do elenco fixem-se na instabilidade da troca incessante de
personagens, o protagonismo do Rapaz é evidente: a diegese trata da sua biografia, colocando
os demais personagens numa coadjuvância coletiva.
33
Rossella Terranova, professora de dança, nasceu em Atenas e atuou como preparadora corporal de A mulher
carioca aos 22 anos. Seu trabalho varia de acordo com cada proposta de montagem e com a disponibilidade do
elenco, portanto não tendo desenvolvido um método pré-concebido. É preparadora de elenco da TV Globo.
139
Outro procedimento escolhido por Aderbal para revezar o elenco nesse personagem é o
anúncio feito pelo próprio ator em voz alta, nos bastidores, da página do diário que vai ser
encenada. Acompanha-se o girar de uma das manivelas “do barco”, que muda a cena e tempo,
auxiliada pelas alterações na luz e vinhetas sonoras. O ator que anuncia a mudança é o mesmo
que vai interpretar Hilário na cena subseqüente. Para além de Hilário, os personagens que se
fixam no romance e no espetáculo são interpretados por Cândido Damm (Pernacchio), Ísio
Ghelman (Expedito), Augusto Madeira (Ivo que viu a uva), Gillray Coutinho (Professor
Radamés) e Raquel Iantas (Rosa), mas vale lembrar que o elenco representa outros como o
Diretor do Museu, o Psicanalista, o Vizinho, a Tataraneta, o Algebrista, o Marinheiro Fenício,
O Fulano C. Meireles, o Apóstolo Paulo, o Papa, entre outros personagens citados.
34
Deve-se observar a recomposição da dramaturgia dessa cena realizada na página 120, em que nomeamos o
narrador pelo nome do ator, distinguido-o do Autor (Hilário, o personagem protagonista).
140
atores (algumas vezes atuando como contra-regras ou objetos) que dão suporte cênico ao
protagonista, enquanto veiculam informações do texto ao espectador. Assume-se a distinção
entre caracteres diegéticos e extradiegéticos, entre ator e personagem. Na cena subsequente,
que encena a visita de Hilário ao Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia, onde vai encontrar
o exemplar do púcaro búlgaro, os atores representam, cada um, uma estátua-obra do museu,
acompanhados apenas de alguns objetos e adereços.
como sendo a do típico ator brasileiro35: “O [Grande] Otelo, o Oscarito, o [Jorge] Dória… […]
Nossas referências mais conhecidas, mais próximas da interpretação brasileira, a interpretação
mais escrachada; não tem nenhum psicologismo, nenhuma frescura, é uma escola de
interpretação brasileira.” (COUTINHO, 2011). É interessante perceber a influência desse tipo
de atuação bastante característica do teatro de revista, da chanchada, de programas humorísticos
de TV (Chico Anysio e Jô Soares, por exemplo), pois aspectos como o travestimento, o humor,
a caricatura e o escracho encontram lugar na linguagem aderbaliana.
35
Chama-se a atenção para uma prática comum de generalizar aspectos como “ator brasileiro”, “teatro brasileiro”
àquilo que se produz no Rio de Janeiro e São Paulo, sob o prejuízo de se excluir desse denominador a diversidade
de propostas no território nacional, cujo mapeamento ainda se encontra incipiente para sustentar algumas
universalidades.
142
Se no romance, pela sua extensão, o autor pode delinear mais densamente seus
personagens, no romance-em-cena essa profundidade fica delegada ao correspondente textual
na fala dos atores sobre os personagens. Entretanto, o ritmo frenético do romance-em-cena
inviabiliza a absorção mais marcada das descrições e perfil dos caracteres veiculados pelo texto,
concentrando a percepção dos vários personagens por meio de poucos traços, que aproximam
essa composição do caricatural, onde se acentuam determinadas características em detrimento
de outras. Gillray Coutinho comprova a intertextualidade visual, ao se referir à Mulher carioca
aos 22 anos: “Os espetáculos eram muito... não sei se é a palavra, não sei se rígidos, mas muito
desenhados, presos mais nas questões físicas e vocais […]” (COUTINHO, 2011). No processo
de construção dessa peça, por exemplo, Aderbal Freire-Filho oferecia como referência cartoons
e caricaturas do início do século XX, época em que se passa o enredo do romance, para
estimular a criação dos atores, segundo recordações de Cândido Damm sobre indicações do
encenador: “Essa peça que a gente tá fazendo é nos anos 30, têm aqueles velhos escrotos de
monóculos, todos que têm uma garçonière, tem a família, os tipos eram todos mais ou menos
definidos, mas cada um dá a sua contribuição do jeito que quiser.” (DAMM, 2011). O rodízio
cênico dos atores com seus personagens-tipo, caricaturais, deságua diretamente na comicidade,
como reitera o encenador avaliando a qualidade dos intérpretes:
36
BREUER, J.; FREUD, S.. Estudos sobre a histeria. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 15-297.
143
Então, mas para essa alta rotatividade, uma caracterização, uma caricatura é mais
eficiente do que um desenho. Então, a caricatura, que não precisa ser nem menor, nem
falsa. Caricatura também, talvez mais do que o desenho, precisa ser verdadeira... mas
a caricatura exige o humor, exige uma observação de humor. E todos eles são bons
comediantes, têm humor. (FREIRE-FILHO, 2011)
É, eu acho que o ator tem que ter isso pra poder ter essa diversidade de tipos. Tem que
ter uma coisa bem histriônica mesmo, pra passar de um tipo que esteja bem definido
na sua frente, pra outro, que seja o oposto. Mais ainda se for outro que tenha a mesma
idade, mesma... Mesmo porque, se você quer caracterizar, é muito mais fácil você
passar de um velhinho pra uma garotinha do que de um velhinho pra outro velhinho.
E não só o histrionismo, como um preparo mesmo, de escolhas né. E de trabalho feito,
e de pesquisa, de laboratório, de um dia depois do outro pra você ter essa firmeza de
descobrir quais são as... qual é o ritmo, qual é a musculatura que você vai usar, como
é que esse cara senta e como ele levanta. (DAMM, 2011)
Em O que diz Molero, a transa entre La Petite Mireille e o Rapaz, encenada de forma
grotesca e exagerada contrapõe o texto falado: “Foi ela que o salvou, inventou as carícias mais
leves [esbofeteia o Rapaz], mais suavemente penetrantes [insinua uma penetração anal],
punham um cobertor no chão e ela não gemia, foram as noites dos beijos mais húmidos e do
amor mais surdo [silabando em silêncio “puta que pariu”]” (O QUE DIZ MOLERO, 2003:
00:04:24). Ao mesmo tempo, do outro lado da cena, Austin e Mister DeLuxe estão recostados
na cama, como se estivessem imaginando a cena narrada e descrita pelo relatório de Molero.
Em outra cena, tem-se um acidente sofrido por Leduc, amigo do Rapaz, que se
despencou do alto de um despenhadeiro em sua cadeira de rodas, de onde observava o mar.
Augusto Madeira, sentado, encena a queda chacoalhando-se em velocidade gradual sobre a
145
A utilização de objetos, para Chico Diaz, foi uma grande descoberta nesse processo,
visto que impõem altos níveis de teatralidade: “Isso me fascinou muito também, porque eu não
tinha esse cuidado com objetos. […] Você estava por aqui e aparecia um objeto, a cena ia atrás
do objeto. E eu via como as pessoas cuidavam dos objetos […]” (DIAZ, 2011). O mesmo
guarda-chuva preto de Bigodes Piaçava em duas cenas de O que diz Molero, por exemplo,
assume sentidos diferenciados: em uma tem sentido denotativo, quando se apresenta ao
espectador, em outra é utilizado como teto para formar cenograficamente seu automóvel, cujo
suporte é uma cama, outra ressignificação. A mesa e as cadeiras transformam-se e criam
diversos espaços cênicos, como muros, ringue de boxe, escadaria da igreja etc. O mesmo
recurso é explorado nos outros dois espetáculos: em A mulher carioca…, altera-se a disposição
da sala de jantar para transformá-la, com as mesmas cadeiras e mudando apenas a direção da
mesa, em um piano que é tocado pela personagem Madeleine, recurso que depois será repetido
em Sonata de Outono, com Marieta Severo e Andréa Beltrão.
Os procedimentos de preparação da cena para o que vai ser dito posteriormente pelo
texto podem ser exemplificados pela chegada de Radamés ao apartamento de Hilário em O
púcaro búlgaro. Para que Raquel Iantas encene a passagem de Rosa de toalhas diante do
Professor, a sintaxe cênica começa no início da cena, em que Freire-Filho busca uma construção
paralela ao texto, ainda que haja uma defasagem temporal, preparando o que a palavra ainda
vai comunicar, conforme descrito e narrado no quadro abaixo:
ESPETÁCULO
146
Rosa está na banheira, cantando uma música búlgara, enquanto o Hilário auxilia-a no banho. O Professor bate
palmas, entra e senta-se. O anfitrião vem recebê-lo.
RADAMÉS (Gillray): Chegou o professor Radamés, com mala e tudo. – Vi que o sr. morava sozinho e resolvi vir
morar sozinho com o senhor.
HILÁRIO (Augusto): Só que há também a Rosa, que também mora sozinha. Assim seremos três a morar sozinhos
– entrega a toalha a Rosa.
ROSA (Raquel) ergue-se na banheira, tampando os seios. Hilário leva a tolha para ela, o Professor mantém-se
na poltrona. Rosa sai enrolada na toalha e passa insinuante diante do professor, enquanto diz: sobretudo depois
que viu Rosa saindo do banheiro envolta numa toalha felpuda.
O texto do romance nos espetáculos ganha potência a partir da vocalização dos atores,
imprimindo sobre ele sonoridades diversas, em que as frases dão relevo a sentidos de leitura
também distintos para o espectador. Seja negando ou reforçando pela intenção a frase do autor,
a determinação das pontuações vocais muitas vezes vai contrariar a pontuação gráfica e
gramatical do escrito, pois se refere a dois universos textuais distintos: a palavra impressa e a
palavra falada – a primeira é fixa, visual, enquanto a segunda molda-se no tempo e no espaço
sonoro.
Na peça A mulher carioca aos 22 anos todo o elenco criou uma vocalização silábica de
palavras que será utilizada nos dois outros espetáculos: a última palavra de uma frase é proferida
de forma fragmentada, prolongando-se o fonema da última sílaba: “Angélica na escola procurou
evitar Claudia o quanto pô-deeeee” (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990: 00:21:17);
“Embaixo surgia Chi-qui-lhaaaa” (00:21:57), “Angélica foi ver o berço, vaporoso de cambrais
e ren-daaaas” (01:41:19). Em O que diz Molero, o nome do investigador é recorrentemente
repetido dentro dessa musicalidade silábica: “Mo-le-ro”. Para Aderbal Freire-Filho a
vocalização do texto é um grande ponto de interesse, já que a palavra em seu teatro ocupa um
lugar de destaque. Questiona alguns métodos de preparadores que se guiam mais ou apenas pela
construção de sonoridades, desvinculas muitas vezes de qualquer sentido de leitura do texto:
Eu digo: “Gente, espera aí. A gente diz tudo igual. A gente não pensa como é que a
gente vai dizer. A gente é movido pelo sentido. Quando a gente quer enfatizar uma
coisa a gente repete, repete, repete, repete e de repente tudo igual. Então é o sentido e
é a verdade. Então, a partir de adquirir o sentido e a verdade, a gente ainda pode dar
esse passo do estilo. […] Isso que me interessa, a melhor forma de abordar essa fala.
Em vez de falar no sentido, e falando, é falar no presente. Essa fala está sendo dita
pela primeira vez agora. […] É presente. Então esse presente é fundamental. Pra mim,
147
Portanto, a fala é crucial para o romance-em-cena, porque ela é a base estrutural dessa
linguagem, principalmente pelo extenso corpus textual que cada espetáculo oferece ao
espectador. O contraponto da fala, o silêncio, também torna-se importante pois a torrente textual
sobre o espectador pode causar desconforto na escuta. Gillray Coutinho acentua que havia
momentos nos ensaios em que ele mesmo não suportava ouvir a própria voz, situação que o
impelia a buscar novos contornos para a fala, recorrendo ao humor para superar essas
dificuldades. Em O que diz Molero, ele recorda a preocupação do encenador:
Eu me lembro que no Molero, ele dizia assim: “Cara, tem que ter um silêncio, se não
a pessoa não aguenta mais ouvir.” Depois de uma certa hora tem que ter um intervalo,
porque chega uma determinada hora que as pessoas não conseguem mais ouvir o som
das palavras que falando, falando, falando, direto, né, não tem silêncio, tem pausa. Eu
falo, você pensa e responde. Fala, fala, fala... Então talvez o humor ajude a suportar
isso, ajuda a suportar o tempo e o mundo de palavras que você ouve. (COUTINHO,
2011)
Por outro lado, a sonoridade também contribui para explicitar nuances do texto,
emprestar-lhe ou ressaltar sua comicidade, oferecer mais possibilidades de leitura que o texto
escrito é impedido de fazer sem os mesmos recursos. A palavra impressa tem outra potência,
diferente da que pode alcançar com a vocalização. “Ela é sempre igual, ela não tem ênfase, não
tem tempos”, observa Freire-Filho. A voz dos atores ainda pode dar relevo aos trocadilhos e
jogos de palavras que se pode extrair do texto: Em O púcaro búlgaro, as palavras púcaro e
búlgaro se repetem sucessivamente no romance e sua vocalização dá brilho à homofonia de
uma escrita tornada som, música. Em outros casos, o texto original conquista em cena relevos
148
O título A partida do epílogo desse livro propõe uma ambiguidade e leva o leitor a supor
que finalmente os personagens vão concretizar a expedição à Bulgária, quando na realidade eles
vão mesmo é jogar uma partida de cartas. No espetáculo, a sonoridade potencializa a
ambiguidade. Terminada a cena anterior, a luz mais uma vez cai, deixando apenas uns pontos
iluminados nos bastidores e retoma-se o procedimento cênico de passagem de tempo ao
manipular as engrenagens da embarcação, construindo movimentos que incitam ao sentido de
viagem, enquanto os atores anunciam “A partida!”, como se estivessem num cais de porto,
despedindo-se. Repetem, simultaneamente, várias vezes, prolongando a vocalização da palavra,
como se aos poucos o barco estivesse se movimentando: “A partidaaaaaa!”, “Aaaaa
partidaaaaaa!”. Quando a luz emerge sobre o palco, vê-se os três personagens na mesa central
jogando cartas. Do romance para o espetáculo, a investida do trocadilho de Campos de Carvalho
conquista maior expressividade, pois os recursos vocais e cênicos reforçam a construção de
sentido da partida como viagem, enquanto o corte brusco da luz anuncia instantaneamente a
partida de cartas, como se o leitor virasse a página do livro.
Por outro lado, a alternância entre os falantes, que ora concordam ora discordam uns
dos outros, oferece à cena algum dinamismo, incitado principalmente pelos conflitos entre as
ideias propostas, mediadas por Hilário, o presidente da expedição. O espaço democrático da
fala, além de apresentar a diversidade de pontos de vista, permite a cada ator apresentar mais
singularmente seus personagens, enquanto os demais e o público são seus ouvintes e
150
Na terceira cena, para impedir que o Professor Radamés incorra em novo monólogo
histórico-científico, Hilário toma a palavra, literalmente, buscando o pedestal e o microfone e
levando-os mais perto da mesa onde se encontram Pernacchio e professor de Bulgarologia.
Aqui se observa a mesma estrutura da segunda cena, em que o espaço de fala é compartilhado,
nesse caso “tomado”, pois cada falante se apossa do microfone e leva-o para outro lugar no
espaço cênico, conferindo mobilidade à cena. Roubar a fala nessa cena explicita o debate de
ideias entre os personagens, agora menos civilizados e mais anárquicos. O professor Radamés
chega a levar o pedestal e o microfone para a privada: nem para realizar necessidades
fisiológicas o personagem abre mão de seu espaço de fala e suas convicções.
Corresponde no romance a 14 páginas escritas, mas não se sabe se e o quanto do texto foi suprimido, pois no
37
DVD do espetáculo, que contém cenas isoladas, essa não é exibida integralmente.
151
lugar, o texto e o elenco podem levar o público a passear por distintas paisagens sonoras e
visuais (mentais) e pela (des)construção de sentidos.
38
Curiosamente, trata-se da peça de Büchner que Aderbal Freire-Filho encenou em fins dos anos 1970, o que
configuraria uma auto-homenagem se não estivesse no texto do romance.
152
para investigar modos de constituição do imaginário do público. Tratam-se de quatro atores que
representam 80 homens embarcados em alto mar e ainda uma baleia.
Por conseguinte, avançou mais ainda na liberdade de sua poética com Depois do filme,
onde sozinho interpreta inúmeros personagens e abre portas à figura do narrador. Durante o
período do romance-em-cena insistiu na ausência mais explícita do narrador, porque acreditava
que somente assim conseguiria atingir sua proposta cênica, apesar de parecer um preconceito.
Entretanto, em seu solo, Freire-Filho interessou-se mais explicitamente pela figura do
narrador39, o que parece ter ampliado suas possibilidades cênicas e de atuação: “É verdade que
à medida que ele vai andando, o narrador e o personagem vão se confundindo um pouco, mas
tem o narrador. E num próximo romance-em-cena pode ter um narrador, em algum momento
ou em alguma coisa […]” (FREIRE-FILHO, 2011).
Quanto aos planos para o futuro, Aderbal confessa viver um momento de dúvidas40:
deseja escrever outro monólogo para si, há a possibilidade de encenar outro romance de João
de Minas com o Grupo Galpão (com quem tem sempre contato, por meio de encontros e
workshops, mas ainda não concretizaram nenhum trabalho) e, principalmente, o temor da idade
(completou 70 anos em 2011). Ele não se refere ao aspecto físico, mas o cultural, pois almeja
escrever muito mais e atuar, sua meta primordial. Há que se reconhecer a intensa produção e
criação de espetáculos que Aderbal vem desenvolvendo desde a sua estreia oficial como
encenador, em 1972, conquistando mais de quarenta anos de carreira praticamente dedicados
ao palco, contando com mais de cem montagens no currículo e inúmeros prêmios, além de ser
o responsável pela inventividade do romance-em-cena.
39
A figura cênica do narrador no romance-em-cena já havia apontado em O púcaro búlgaro.
40
O marco temporal refere-se ao nosso encontro para a entrevista em 2011, visto que todo o texto, informações
biográficas e curriculares foram atualizadas para esta publicação em julho de 2015.
153
No século XX, que se inscreveu na História por seus inúmeros avanços tecnológicos,
reviravoltas políticas e econômicas e disputas de regimes, além das diversas guerras que
dizimaram milhões de pessoas, a sociedade portuguesa viveu durante 48 anos uma ditadura
(Estado Novo) sob o controle de António de Oliveira Salazar e no final assumida por Marcelo
Caetano, quando da Revolução dos Cravos. O percurso político de Salazar iniciou-se em 1926
com o cargo de Ministro das Finanças, alcançando um novo patamar com a instituição do
Estado Novo em 1933, cujo autoritarismo marcou-se por duas frentes principais, a propaganda
154
Para o teatro isso se traduziu no privilégio da palavra sobre o corpo do ator ou, melhor
dizendo, as partes baixas do corpo passavam a ser reprimidas para dar relevo às superiores
(abdômen e cabeça), o que vai refletir numa postura “palavrista” do teatro português no Regime
do Estado Novo. A perda da liberdade física e intelectual imposta aos atores, tendo o
Conservatório (atual Escola Superior de Teatro e Cinema – ESTC) como principal aparato nessa
formação, convergia-se numa postura declamatória, uma performance vocal estilizada e
artificial: o belo devia se sobrepor ao verdadeiro.
manifestações mais perseguidas e confiscadas pelo Regime. A censura não autorizava nenhum
espetáculo cujo texto colocasse em causa o sistema. O resultado, segundo Graça dos Santos, é
que Portugal tornou-se o país com menor porcentagem de textos nacionais encenados, o que
reduziu também a frequência do público às salas de exibição. Certamente, a força do rito
comunitário oferecida pelo teatro era temida pelo Regime, que acentuou a constituição de um
teatro acéfalo, por vezes divertido e facilmente digerível.
Para Rui Pina Coelho, crítico, pesquisador e professor da ESTC, o teatro português no
século XX até 1974, quando finda o salazarismo, esteve atrasado em relação a muitas
vanguardas modernas europeias. O período ditatorial abarcou uma primeira fase singularizada
pelo textocentrismo, pela busca de técnicas de declamação, postura e dicção do ator. Duarte Ivo
Cruz salienta que a dramaturgia portuguesa do século XX marca-se por uma variedade de
correntes que coexistiram e dominaram, umas mais que as outras, como o historicismo e o
simbolismo. Entretanto, o realismo naturalista, que retardadamente chegava a Portugal no início
do século XX, “encontra […] razões poderosas de inspiração. O ambiente é-lhe propício, pois
a crise de mudança de regime [da Monarquia à República] […] determina uma inquietação que
o teatro soube reproduzir.” (CRUZ, 1983: 137).
O pós-Segunda Guerra Mundial, ainda que Portugal não tenha participado efetivamente
do confronto, implicou numa maior abertura política e um abrandamento da censura salazarista.
Esse período marcará o teatro português pelo desejo de renovação e atualização frente às
156
Com o fim do regime salazarista, deposto pela Revolução dos Cravos, a renovação do
teatro português pareceu alcançar melhores patamares. A abertura política pós-1974 apontou o
início de uma nova fase, segundo Rui Pina Coelho, em que emergiram movimentos de teatro
independente, como os grupos Teatro da Cornucópia, A Barraca, Teatro da Comuna, O Novo
Grupo, Teatro Aberto e Teatro O Bando. Sobre esse último, já se adianta que sua constituição
foi fruto da restituição da democracia em Portugal a partir de um movimento de regresso de
artistas e exilados políticos como João Brites, no caso dO Bando, que trouxeram consigo novas
perspectivas e propostas para o teatro feito em terras lusas.
Não apenas o teatro português dirigia-se ao encontro de sua atualização, mas também a
dança contemporânea indicou a vanguarda das artes cênicas em Portugal nos anos 1980. No
fim do decênio anterior, o Ballet Gulbenkian passou a ser dirigido por Jorge Salavisa e
constituiu um espaço de experimentações e formação de bailarinos e coreógrafos, que mais
tarde se destacaram no cenário local e internacional como Olga Roriz, Vera Mantero,
Maragarida Bettencourt, Paulo Ribeiro e Rui Horta. Alguns deles emigraram para os Estados
157
Unidos e outros países europeus com o objetivo de experenciar novas estéticas e aperfeiçoar a
aprendizagem, enquanto outros se mantiveram em Portugal experimentando linguagens
autônomas, como Elisa Worm, Madalena Victorino e Paula Massano.
Década e meia após a Revolução e a explosão das mais variadas formações teatrais,
bem como a inevitável conquista e hegemonia do território por parte de algumas delas
– Comuna, Cornucópia, Cendrev, Companhia de Teatro de Almada, Novo Grupo,
Teatro o Bando – os anos 90 fazem, portanto, nascer essa nova geração armada de um
158
Em Portugal, estas novas tipologias de escritas são recentes e surgem, na sua maioria,
já no século XXI, com autores como André Murraças, Tiago Rodrigues (Mundo
Perfeito), Visões Úteis, José Maria Vieira Mendes (Teatro Praga), Mickael de Oliveira
(Colectivo 84) e outros, em que todos eles fornecem materiais textuais para um
determinado espectáculo (o seu ou de um encenador), para uma determinada equipa e
para um lugar performativo específicos. (OLIVEIRA, 2010: 55)
de Sara de Castro pelo Teatro O Bando, Natureza morta de Dinis Machado, Han shot first de
Diogo Bento e Inês Vaz, Guintche de Marlene Monteiro Freitas e especialmente Só os idiotas
querem ser radicais de Mickael de Oliveira e John Romão e o evento Ciclo de Nova
Dramaturgia Contemporánea, ambos realizados pelo Colectivo 84. Brilhante observa que para
essa geração de novos criadores
É também diferente a sua relação com o discurso crítico e teórico, já que são cada vez
mais fluidas as fronteiras entre os que fazem e os que pensam, e também porque eles
próprios alimentam um circuito de reflexão, mesmo se marginal, que funciona não
raras vezes como meio de legitimação da sua criação. Estão conscientes de que o seu
trabalho criativo tem de se escudar num pensamento contemporâneo para o qual
contribuem.” (BRILHANTE, 2009: 129)
João Brites e O Teatro O Bando: o estar em grupo como modus vivendis, artístico e político
João Brites
160
Assim João Brites define sua prática como dramaturgo e encenador. Artista plástico de
formação estudou pintura e gravura na Ecole Nationale Superieur des Arts Visuels – La
Cambre, em Bruxelas, onde viveu o exílio político durante oito anos, de 1966 a 1974. Nesse
período, com outros artistas e amigos, experenciou um modo de vida em comunidade,
contagiada especialmente pelas manifestações de maio de 1968 na França, que desencadeou
uma greve geral de estudantes e trabalhadores, alcançando proporções revolucionárias. Nessa
altura, incitada por ideologias esquerdistas, comunistas e anarquistas, a maioria dos
participantes dessa insurreição estava decidida contrapor aos valores sociais antiquados novas
ideias sobre sexualidade, educação e prazer. Da França, espalhando-se pelo restante da Europa,
as manifestações buscavam alterar as relações entre raças, sexos e gerações e, nas décadas
posteriores, “ajudaram o Ocidente a fundar ideias como as das liberdades civis democráticas,
dos direitos das minorias, e da igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros e
heterossexuais e homossexuais.” (PIACENTINI, 2011).
Portanto, acredita-se que estar na Bélgica em fronteira com a França e ser exilado
político do regime salazarista potencializaram as convicções político-democráticas e artísticas
de João Brites. Ele revelou que, no princípio, viviam juntos em comunidade numa casa em
Bruxelas, dividiam as tarefas e todos produziam seus trabalhos, cuja remuneração também era
compartilhada. Tudo o que cada um ganhava era colocado num fundo comum e que a este todos
podiam recorrer para as suas compras pessoais sem ter de justificar as respetivas despesas.
Entretanto, com o passar do tempo, um dos integrantes começou por destacar-se
financeiramente e necessitava produzir mais o próprio trabalho, impedindo-o de contribuir com
os afazeres domésticos, o que gerou uma série de conflitos e acabou por desfazer a comunidade.
O breve relato assinala, por antecipação, a ética do partilhar que acompanha a biografia pessoal
e artística de Brites e que será o princípio norteador do Teatro O Bando.
Sua cidade natal foi conquistada em 1148 por Afonso Henriques, cuja figura será o
objeto principal de um espetáculo homônimo dO Bando com dramaturgia, espaço cênico e
161
encenação de João Brites, em cartaz desde sua estreia em 1982 41. Com atual população em
torno de 36 mil habitantes, Torres Novas tem como principal atrativo histórico um castelo
medieval que se avista logo à entrada da cidade. Em entrevista, Brites recorda sua infância
humilde relacionando-a à escolha do romance Gente feliz com lágrimas, de João de Melo,
encenado por ele no Teatro O Bando em 2002 e que será um dos objetos de análise desta
pesquisa:
[…] Existem pormenores no romance que me tocam muito. A minha mãe era
professora primária… E eu lembro-me das escolas antigas, dos meninos descalços,
lembro-me do cheiro da madeira, das reguadas, lembro-me daquelas escolas no
interior do país, onde os meninos […] no frio do inverno, tinham de deixar as botas
à entrada para não sujarem com terra e com bosta de bois o assoalho de madeira lavado
semanalmente a sabão amarelo. (BRITES, 2011)
Ao retornar a Portugal com o fim do período de degredo, João Brites fundou de forma
independente o Teatro de Animação O Bando ao lado dos companheiros Cândido Ferreira,
41
Afonso Henriques, criado a partir de um poema épico de tradição oral e crônicas medievais, é o espetáculo que
está há mais tempo no repertório do grupo, tendo sido alterado seu elenco ao longo desses anos.
162
Carmem Marques, José Janeiro, Jorge Barbosa e Jacqueline Tison, essa a única estrangeira do
grupo. Artistas desconhecidos em seu país, estavam muito influenciados pelo teatro de rua de
Bruxelas, teatro operário de Paris, teatro universitário de Lisboa. Não eram exatamente
profissionais, mas sim um grupo de artistas que desejava intervir na construção de um novo
país e que constatou uma carência absoluta de animações 42 e espetáculos voltados para as
crianças. Portanto, João Brites e Jacqueline Tison esclarecem, no pedido de subsídio à Direcção
Geral de Acção Cultural (DGAC) em julho de 1974, “o quanto a juventude é importante na
edificação de um país novo e como nossa criança foi oprimida pelo fascismo de duas gerações”.
Destacam-se as formulações marxistas que originarão os princípios do grupo e sua capacidade
de interferir e propor mudanças na situação política do país: a militância percebeu no 25 de
abril uma “situação histórica relativamente favorável”, cujos propósitos panfletários
encontraram na animação voltada para crianças e na itinerância uma “aproximação do público
pelas margens” (SERÔDIO, 1994: 142).
Percorrendo vilas, aldeias e cidades de Portugal, buscando afetos com a cultura popular,
o Teatro O Bando produziu os primeiros espetáculos contrariando a tendência de um teatro
infantilista e tentando esquivar-se de um tipo de espetáculo que tratasse as crianças de forma
paternal ou altruísta. Partiam de animações culturais e do desejo de educar o cidadão por meio
da pedagogia das artes, desenvolviam com as crianças atividades de jogos, incluindo os
dramáticos e dramatizações que ao fim do processo resultavam em espetáculos de teatro. Nessa
perspectiva, intentavam estimular na infância o espírito crítico por acreditar que as crianças
seriam capazes de transformar sua realidade e de organizar-se coletivamente. Para Ana Pais
esse público preferencial, no início, foi responsável pela obsessão do grupo pela abstração, por
“outras formas de ver e de construir universos simbólicos que permitissem a reunião afetiva e
social das comunidades” (PAIS, 2009: 38). João Brites corrobora essa percepção ao lembrar-se
42
Inicialmente, O Bando desenvolvia mais animações que teatro propriamente dito: seu público eram as crianças,
seu espaço de atuação era o campo e não as cidades. As animações tratam de atividades lúdicas de recreação, jogos,
histórias, música, bonecos, enfim, em que os artistas privilegiam uma comunicação direta com o público, estando
por vezes mais próximo do contador de histórias que do ator. No caso d’O Bando, estavam associadas à busca das
raízes culturais do país e integradas em projetos de descentralização, em escolas e associações culturais.
163
Tudo tinha de ser feito rápidamente. Era uma espécie de teatro de guerrilha. O que era
preciso era estar no terreno, aproveitar aquele momento histórico irrepetível, numa
relação com o povo em ebulição. Tudo parecia ser possível. Já calculávamos que
depois existiria o apaziguamento e entraríamos outra vez numa espécie de rotina,
menos propícia aos movimentos de mudança. Nessa altura, o texto era experenciado
e fixado coletivamente. Os cenários eram construidos à pressa e não eram bem feitos,
e nós lá íamos por aí afora, aos saltos dentro de uma velha carrinha. O que nós
queríamos era estar com as pessoas, compreender as pessoas, para que o nosso teatro
podesse estar com elas. Não vínhamos com ideias feitas. (BRITES, 2011)
Ao desenvolver uma linguagem própria, O Bando entende que a “a arte só tem qualidade
para as crianças se tiver qualidade como produto artístico”, como consta em texto do programa
do espetáculo Nós de um segredo (1990). Do “teatro de animação” e “teatro para crianças”, o
grupo encaminhou-se para amadurecer o pensamento e a práxis de um “teatro para todos” ou
“teatro comunitário”. O modo não “infantil-ista” d'O Bando de tratar a criança de alguma forma
tornou seus espetáculos acessíveis a todas as idades, o que reforça a ideia de dirigir-se a uma
comunidade: “O nosso teatro tem de ser acessível à infância porque quer ser popular. […] Ao
trabalharmos para a infância, exigimos das nossas próprias obras que elas sejam acessíveis a
todos” (TEATRO O BANDO, 1980: 21). Oito anos depois, explicitava a substituição dos
termos:
Fazer Teatro Comunitário, para todos maiores de 6 anos, obriga-nos, sim, a contar em
cada representação com tudo o que o espetáculo tem de irrepetível, de efémero, de
teatral. Cada interveniente tem que saber responder a um público variável e
heterogêneo, porventura mais imprevisível, mais disponível, com reacções e opiniões
menos estereotipadas e, por isso mesmo, de certa forma, mais irreverente que o
público habitual das salas de teatro da cidade. (TEATRO O BANDO, 1988: 31)
com as outras pessoas – os públicos e os meus parceiros. E achava que a intervenção política e
estética era importante” (BRITES in CAETANO, 2011). Portanto estar em itinerância e com as
pessoas, interagir e trocar, promover um encontro entre artistas e público foram os primeiros
alicerces que caracterizaram o grupo.
O período de itinerância (postura que o grupo não abandonou, mesmo tendo se fixado
numa sede), de contato mais profundo com o meio rural e o conhecimento in loco da cultura
popular tornaram-se decisivos para construir e consolidar sua identidade, criando um estilo de
fazer teatral que se liga a uma relação de proximidade e confronto com o espectador. Trata-se
de fazer espetáculos com as pessoas e não para elas, iniciativa que vai encontrar seu sentido de
unidade na ocupação de espaços não convencionais (ruas, praças, edifícios, castelos,
miradouros etc.), outro componente de base do grupo.
Inscritos nos rituais populares, tanto a morte quanto o carnaval são capazes de promover
a reunião entre as pessoas, recuperando um processo social de participação e vivência em
conjunto. Humanizar as relações através do teatro e do encontro entre artista e público pode ser
compreendido como uma ação efetiva contra os valores tecnocráticos e massificados da
sociedade contemporânea. Maria Helena Serôdio percebe nessa apropriação da cultura popular
uma retórica rabelaisiana, que Bakhtin havia identificado em sua obra, pois a ideia de festa
conduz a duas reflexões que tiveram impacto na prática artística do grupo:
43
Junção feita pelo autor da citação do adjetivo ingênuo ao substantivo naïf, que originalmente designa um tipo
de arte moderna e primitiva, produzida de forma amadora, mas cujas obras não implicam numa qualidade inferior.
De forma geral, a arte naïf caracteriza-se pela simplicidade e pela falta de alguns elementos ou qualidades presentes
nas artes produzidas por profissionais. No caso da palavra ingenaïf, ele parece dar relevo à ingenuidade e
simplicidade da experiência dO Bando em Vila Real de Trás-os-Montes. O próprio grupo assume uma
característica naïf quanto à sua dimensão alegória, apresentada no Manifesto 2 (1988).
165
A diluição das fronteiras entre artista e público e o ritual para promover um espaço de
coletividade acompanha a carreira dO Bando. Em 1994, João Brites foi responsável por encenar
espetáculos e coordenar eventos de grande porte na realização da Europália e da Lisboa94.
Dirigiu a Unidade de Espetáculos da Expo’98, em que encenou talvez seu projeto mais
ambicioso e emblemático, Peregrinação, construído como um grande palco a céu aberto e visto
por aproximadamente quatro milhões de espectadores. Os bigodes na Res-pública, realizado
pelo grupo na Praça do Município de Lisboa em 5 de outubro de 2010, como matéria das
comemorações oficiais do Centenário da República Portuguesa, envolveu a participação de
atores, cantores e 400 voluntários, entre eles este pesquisador que pôde experenciar de dentro
um trabalho artístico do grupo. A proposta de João Brites, dramaturgo e encenador da peça-
evento, foi promover um encontro para a celebração da República, seus ideais e utopias.
Divididos em grupos variados, os voluntários eram direcionados por atores convidados e
representavam setores da sociedade portuguesa: comerciantes, marinheiros, militares, donas-
de-casa etc. O elenco era capitaneado por atrizes profissionais do grupo que representavam a
República nos seus aspectos míticos e simbólicos, expondo os discursos de liberdade e
igualdade em contraposição ao sistema anterior a ela vigente, a Monarquia.
Dessa feita, sobre o caráter misto de espaço público e festa, Ana Pais percebe que, “Fruto
de profundos afectos ao universo popular e de uma diligência constante em aproximar artes e
públicos, a condição festiva tem sido uma componente basilar nO Bando.” (PAIS, 2009: 38).
O Pino do Verão, que o Teatro O Bando realiza sazonalmente44 no miradouro do castelo de
Palmela, é um evento de caráter comunitário de grande porte e envolve música, poesia e teatro
a partir da obra de Eugénio de Andrade, com dramaturgia, espaço cênico e encenação de João
Brites e direção musical de Jorge Salgueiro. A sazonalidade é associada ao ritmo cíclico das
festividades populares. Realizado ao ar livre e à noite, a entrada é franca e o próprio grupo
44
O Pino do Verão aconteceu pela primeira vez em 2001 e até 2013 aconteceu 10 vezes sem a tão desejada
periodicidade anual.
166
recomenda ao público que “se se quer sentar, traga uma cadeira/ se se quer ver, traga uma
lanterna/ se não quer ter frio, traga uma manta”, pois “esta é uma festa que necessita da
participação de todos. Quem sabe aqueles que virão poderão ainda assistir a um ritual imemorial
vindo da viragem do milénio.”, nas palavras de João Brites, transcritas do projeto. Nessa
homenagem ao verão participam em média 300 artistas, entre atores, cantores líricos e músicos,
do Teatro O Bando, de bandas filarmônicas, coros e associações regionais, que buscam nos
ritos e nas cerimônias festivas a sua forma de criar e manter as tradições do povo de Palmela.
Primando ética e artisticamente pelo estar em grupo, O Bando tem em sua gênese o fazer
teatral como prática de uma coletividade que deve se sobrepor a qualquer individualismo,
característica da década de 1970 em que grupos de teatro de diversos países emergiram,
reivindicando uma liberdade (e autonomia) na criação, sem as duras rédeas de um encenador
autoritário. Conforme pontua Sílvia Fernandes, esse modo de se fazer teatro divide os
integrantes entre diversos setores além do artístico, como o administrativo e o organizacional.
De outro lado, as dificuldades financeiras ou a falta de um empresário levava os grupos a
assumir coletivamente a responsabilidade de se produzir de forma socializada, constituindo um
trabalho independente.
Internamente, esse grupo específico organiza-se de forma que todos os seus cooperantes possam
desenvolver tanto trabalhos artísticos e de criação quanto atividades administrativas e de
produção. Seu funcionamento prima pela ausência de patrões, pela divisão de tarefas, cargos e
funções, pela não separação daqueles que pensam dos que executam. Preza ainda pelas
discussões ideológicas, artísticas e sociais cujo consenso é um fator de responsabilização,
disciplina, rigor e profissionalismo. Os integrantes do grupo devem trabalhar em ao menos dois
de seus três setores estruturais: o artístico, o oficinal e o administrativo, corroborando com a
premissa de que os espetáculos do grupo não seriam os mesmos se as tarefas necessárias à sua
realização não fossem partilhadas por todos. Seu nome é uma expressão da coletividade e tem
como postura política o questionamento do status quo social, político e artístico, além de
recursar atender às demandas mercantilistas da cultura.
Formalmente o Teatro O Bando constitui uma Cooperativa, dirigida por João Brites,
Raúl Atalaia e Sara de Castro e composta por mais 20 integrantes45, segundo informações do
programa do espetáculo Rua de dentro (2010). Quanto à equipe de Direção Artística,
responsável por discutir os projetos do grupo e também as questões estéticas, culturais e
políticas, é formada por João Brites (Dramaturgia, Encenação e Espaço Cênico), Rui Francisco
(Espaço Cênico e Cenografia), Jorge Salgueiro (Trilha Sonora, Arranjos e Música), Teresa
Lima (Oralidade), Clara Bento (Figurinos e Adereços) e Miguel Jesus (Dramaturgia e
Encenação). A sede do grupo46, uma quinta (propriedade rural) em Palmela a aproximadamente
40 km de Lisboa, situa-se no Vale dos Barris, dentro do Parque Natural da Arrábida, ao pé da
Serra do Louro, e anteriormente havia sido um espaço dedicado à suinocultura. Aquirida pela
Cooperativa do grupo em 1999, concretizou um desejo antigo de “poder dar continuidade a um
projecto de Teatro Comunitário” (TEATRO O BANDO, 1988: 32) como assim o entendem.
45
Adelaide João, Ana Brandão, Antónia Terrinha, António Braga, Bibi Gomes, Clara Bento, Fátima Santos,
Gonçalo Amorim, Guilherme Noronha, Horácio Manuel, Isabel Atalaia, Jorge Salgueiro, Lima Ramos, Miguel
Jesus, Miguel Moreira, Nicolas Brites, Paula Só, Pedro Gil, Rui Francisco e Suzana Branco.
46
Desde sua fundação, O Bando desejou uma sede própria e passou duas décadas em sistema de peregrinação.
Inicialmente ocupados com as ações da itinerância e das ações culturais nos lugares onde atuava, o grupo passou
a demandar um espaço de criação e que também pudesse abrigar um espaço de convivência. Inúmeras tentativas
foram desenvolvidas nesse sentido, como ocupação e cessão de espaços por instituições governamentais, centros
culturais e sedes de grupo, como o Palácio de Valenças em Sintra, Quinta da Boa Vista em Meleças, Centro Cultural
de Marvila, sede da Comuna e Teatro do Bairro Alto, Estrela 60. As tentativas incluem a construção de uma sede
num terreno no Benfica, em Lisboa, a partir da cessão de 4 autocarros (ônibus) e uma lona de circo, entretanto o
projeto não vingou. Houve um projeto de um caminhão-teatro, que também não se concretizou. O desejo mais
ambicioso talvez foi a proposta de construir uma sede em Telheiras, também na capital lusitana, que acabou por
não passar de uma utopia, dado seus altos custos que o grupo não conseguiu viabilizar.
168
O primeiro galpão, que se avista logo à entrada da quinta, comporta no centro uma
grande sala de estar com duas lareiras, mesas, sofás e cadeiras, espaço em que costumam
receber o público nas diversas atividades; de um lado da sala há a cozinha, onde se preparam
os alimentos, e um espaço de oficina e acervo; do outro lado tem-se um corredor que dá acesso
aos banheiros, aos arquivos e acervo documental, sobre o qual eleva-se um mezanino com sala
de reuniões e o escritório da diretoria artística; ainda no primeiro nível, após o corredor, há o
escritório onde trabalham os responsáveis pela produção e administração. No segundo galpão,
que corre horizontal e paralelamente atrás do primeiro, localizam-se salas para ensaios, oficinas
e apresentação de espetáculos, camarim, acervo e espaço para alojamento de estudantes e
grupos convidados. Ao lado desse galpão há ainda uma pequena casa que se destina a hospedar
artistas residentes e convidados.
O entorno dos galpões reveste-se de uma extensa área gramada, de onde emergem
principalmente as oliveiras, cenário para ato de celebração de cada aniversário do grupo,
quando a apanha das azeitonas é realizada coletivamente. A entrada para a quinta é sinalizada
com uma placa que anuncia as atividades principais do mês. Antes que se chegue ao primeiro
galpão, a área é dividida em dois níveis pela topografia: o primeiro ganhou recentemente a
implementação de um lago artificial, que visa abastecer a quinta de água utilizável na sua
manutenção e que é símbolo da recente investida do grupo em ações de sustentatibilidade, e o
segundo nível abriga um estacionamento para veículos. Atrás do segundo galpão inicia-se a
ascenção de uma parte da Serra do Louro, que há poucos anos passou a abrigar a exposição
permanente Ao relento, que consiste na distribuição de elementos cenográficos (denominados
por eles de máquinas de cena) e figurinos ao longo do espaço da serra. O caminho que vai
subindo a serra tem sua trilha iluminada e é uma exposição a céu aberto, buscando uma
(des)integração dos dispositivos cenográficos e da indumentária com a natureza.
alimentação são fixados numa caixa, exposta numa bancada na sala de estar, divididos para o
número de participantes do almoço (é necessário confirmar previamente a presença). Cada um
se dirige à caixa e por si mesmo realiza o pagamento, dá-se o troco quando for o caso. Nenhum
dos membros do grupo recolhe o dinheiro ou fiscaliza o pagamento dos participantes. Cada um
é convocado à responsabilidade de colaborar com o coletivo. Ressalta-se essa peculiaridade dO
Bando quanto à pratica do “estar junto”, de uma ética do compartilhar, de um exercício de
participação e cidadania num nível raro de ser praticado e encontrado em outros coletivos
similares.
47
O texto foi extraído da correspondência em minha caixa particular de e-mail.
170
reconhecido pela singularidade de seus trabalhos, atitude que a equipe privilegia para não
incorrer em lugares-comuns. A cada nova montagem, coloca-se em causa as prerrogativas
anteriores para se lançarem a outro desafio. “A necessidade de procurar soluções sempre
diferentes estabelece a inovação e a renovação do actor que, como artista, se torna mais atento,
mais atuante.”48
Não por acaso, o conceito de singularismo tem assaltado O Bando nos últimos anos em
substituição ao coletivismo utilizado nas duas primeiras décadas de existência. João Brites
pontua que sob a influência do Maio de 1968 os integrantes do grupo eram coletivistas, pois
todos discutiam tudo. Entretanto, a alteração de nomenclatura vem apresentar uma nova
concepção na relação que se estabelece entre indivíduo e coletivo. Ao singularismo interessam
as pessoas, com suas idiossincrasias e pontos-de-vista que, ao participarem da direção artística
do grupo, contribuem nas discussões e decisões. Tal participação é aberta a todos que se
interessarem, não há uma escolha ou permissão do grupo, porque, de acordo com o encenador
nessa direção artística podem estar os que quiserem. São essas as pessoas que
concebem o processo criativo do espetáculo, sabendo que umas contribuirão de uma
forma mais determinante do que outras, mas que ninguém reinvindica a explicitação
do seu contributo. Desenvolve-se a capacidade de conseguir construir uma obra que
resulta de um contributo coletivo, onde as partes deixam de ser reconhecíveis e onde
o resultado não é o somatório das partes. Apesar das momentâneas tensões estamos
quase sempre numa saudável interdependência que só é possivel porque há muitos
anos trabalhamos juntos na apropriação de conceitos que recorrem a um vocabulário
comum. Queremos estar nos antípodas da condescendência e queremos acreditar que,
são precisamente os outros que potenciam a inesperada materialização das convicções
particulares. Na génese do espectáculo está a liderança de um encenador que não se
quer repetir e que precisa da contracena dos outros para se rearticular, para se reciclar.
A coerência da formalização cénica resulta de pressupostos e de processos de
construção partilhados que o próprio encenador seria incapaz de estabelecer.
(BRITES, 2011)
48
Texto escrito por João Brites para sua participação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado Do outro lado:
o que fazemos transcende o que pensamos.
171
garante do grupo, daquele que nunca o abandonou, que mais criou e mais criações assinou, o
único a quem é reconhecida a qualidade de encenador).” (DIONÍSIO, 1994: 98). Idalina Conde
no mesmo período, ao pesquisar a percepção da crítica especializada em relação ao trabalho
d’O Bando (no excerto refere-se a menções feitas por críticos), conclui que “De resto, se em
geral para a crítica o bando é, quer dizer, tornou-se João Brites – e desde então não se poupam
elogios a este ‘criador/inventor’ dos ‘mais inteligentes e sensíveis do teatro português’, ‘este
grande senhor do espetáculo’”. (CONDE, 1994: 53).
Ela acrescenta que o singularismo dirige-se à criação de obras “tanto mais únicas quanto
mais alargadas” pela capacidade de partilhá-las com uma direção artística. Dividindo a direção
com João Brites nesse espetáculo, que na prática resultou numa supervisão (no sentido do
diálogo e do contraponto), Sara de Castro teve sua autonomia preservada como autora e diretora
do projeto. Ela ainda menciona o cenógrafo Rui Francisco que, apesar de não ter seu nome na
ficha técnica do trabalho, inúmeras vezes esteve trocando ideias com ela durante almoços e
refeições na sede.
Não é gratuito que o grupo comumente utilize a metáfora do cozinhar para se referir à
sua criação artística, porque se trata de um processo e não de atos e respostas imediatos, mas
algo que se vai construindo durante a feitura. De alguma forma, a transição do coletivismo para
o singularismo dilui o protagonismo de João Brites, a quem interessa a continuidade do grupo
para além de si: “o testemunho que o João está a passar aos mais novos, aos que começam agora
a fazer espetáculos aqui, tem mais a ver com esse princípio do singularismo do que
propriamente com uma estética.” (CASTRO, 2011). Sara de Castro percebe que o singularismo
relaciona-se mais a uma postura, a uma atitude dentro do grupo:
172
O que sinto é que o João Brites tem conseguido passar aos mais novos o princípio do
singularismo através de uma prática, de uma atitude cotidiana. Porque essa atitude não
está presente só na criação de espetáculos. Nós exercemos o singularismo na nossa
organização, todos os dias, nas coisas mais pequenas. Por exemplo, quando dirijo a
reunião semanal da equipa fixa, uma reunião de coordenação, pratico o princípio do
singularismo. Portanto acredito que a transmissão deste legado aos outros é muito
simples porque não passa pela herança de uma estética, mas sim de uma maneira de
viver o dia-a-dia que pode ser apreendido pela vivência cotidiana. (CASTRO, 2011)
acontecimento, podendo alterar o desenvolvimento da peça em alguns casos. Para além dessa
interferência concreta, ao público também é oferecida a partilha do imaginário, pela exigência
de sua capacidade de imaginação e decodificação das obras, entendendo a diversidade de
sentidos que se pode construir a partir de espetáculos não-lineares e simbólicos, metafóricos.
Eugénia Vasques percebe nas metodologias de criação artística partilhada d’O Bando e
em sua abertura para a discussão pública um apelo ao público para “a partilha, a intimidade e a
actividade solidária […], de um teatro concebido para intervir e modificar.” (VÁSQUES, 2009:
126). Portanto, ao alargar o exercício da liderança para outros integrantes do grupo, o Teatro O
Bando persegue seus modos de estar em coletivo, de associar ética, política e arte, como descrito
na finalização do Manifesto 2: “Somos artesãos e artistas em busca de reinventar outras formas
de contar umas tantas mesmas histórias, abordando a representação da vida pelos seus lados
menos visíveis. Queremos intervir. Queremos um teatro que convença.” (TEATRO O BANDO,
1988: 34).
Os Manifestos são uma forma que o grupo encontrou para assinar suas convições,
sistematizar e refletir sobre seu trabalho. Relaciona-se prioritarimente ao duplo viés “prática-
teoria” sem a obrigação de uma regularidade. Como suporte de transmissão de conhecimentos,
a práxis cotidiana dos modos do fazer teatral acabou por exigir uma fixação das experiências
em escrita, abarcando reflexões sobre os posicionamentos éticos e políticos cultivados, iniciada
com a publicação do jornal O pião, em 1975. A teoria transforma-se em instrumento para lançar
luz sobre a prática, contribuir para delinear os contornos do fazer, constituir suas bases estéticas
e garantir seu estado de independência. A redação coletiva dos Manifestos implica nessa autoria
descentralizada, compartilhada, mas que preserva o modo de ser e pensar o teatro: “A prática,
a reflexão e o gosto do colectivo que somos servirá para encontrar as soluções que levem a
habitar um espaço nosso à nossa maneira e a enriquecê-lo fazendo-o habitar por outros […].”
(TEATRO O BANDO, 1988: 34).
grupo realizou, sem regularidade, quando disso sentiu necessidade, parando para tal o seu
trabalho.” (DIONÍSIO, 1994: 97). Variando o período dedicado à elaboração, 15 dias para o
Manifesto 1 e sete dias para o segundo, chama-se a atenção para a criação desse espaço dentro
do coletivo para pensar e afirmar suas convicções e práticas. O segundo Manifesto (1988)
atualizava as proposições, revia as transições pelas quais o grupo foi passando, principalmente
quanto à constituição mais efetiva do teatro, em detrimento da animação, por exemplo.
Depois dele outro Manifesto ainda não foi elaborado porque, de acordo com João Brites,
O Bando passou a ter cada vez menos certezas, estando mais livre para lidar com o presente e
com a recepção. Portanto, deixou de assinalar suas propostas para investir na reflexão coletiva,
não mais restrita aos integrantes. Em 1994 O Bando publicou um livro comemorativo dos 20
anos de existência, O Bando: monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário,
abrigando artigos de intelectuais, acadêmicos, artistas, críticos e pensadores sobre o trabalho do
grupo em diversos campos (dramaturgia, encenação, cenografia, atuação, sociedade, pedagogia,
etnografia e antropologia). Outra publicação, O Bando – Máquinas de cena dirigiu-se à
documentação e ao pensamento sobre esses singulares dispositivos cenográficos que acabaram
por se tornar uma das principais assinaturas d’O Bando. Em celebração aos 30 anos, alguns
anos mais tarde, propôs a realização de jornadas de reflexão durante quatro dias intensos em
sua sede e de cujos encontros foram extraídos textos, artigos e notas, revertidos em um novo
livro: Teatro O Bando: afectos e reflexos de um trajeto. De alguma forma, o grupo passou a
abrigar outra coletividade, mista de integrantes e pessoas externas, para o prosseguimento na
elaboração de reflexões sobre sua prática, estando aberto a um possível confronto com suas
próprias convicções e incertezas.
Entretanto, das crenças que o grupo persegue ao longo de sua existência, destaca-se a
condenação do individualismo e do vedetismo de seus integrantes, pois não há distinção
(hierárquica, de prestígio) entre o artista e o público, exatamente pela proposta de estar em
comunidade a partir da perspectiva do teatro como espaço de convívio de gerações. O encontro
com o público acompanha desde o início o sentimento do coletivo: ele é convidado, estimulado
à participação, seja pelo exercício do seu imaginário, da sua capacidade de abstração ou até da
sua presença concreta em cena. Em Vassilissa ou a boneca no bolso (1998), texto de Bruno
Stori e encenação de Letícia Quintavalla49, uma atriz conta uma história a crianças de 3 a 6
anos, introduz alguns gestos e depois convida uma menina entre o público presente na sessão
49
O caráter de coletividade n’O Bando estende-se a outros artistas que encenam trabalhos no grupo.
176
Pode-se pensar nesse teatro abraçando algumas influências, como a de Brecht, pela
capacidade de mobilizar socialmente o indivíduo espectador e ativar sua capacidade de
transformar o mundo a partir de ações concretas no seu dia-a-dia; e também de Augusto Boal e
o Teatro do Oprimido, contemporâneo brasileiro d’O Bando, cujas práticas e reflexões também
se encaminhavam nessas direções. A boneca, primeira criação do grupo, inspirou-se em O
círculo de giz caucasiano e em procedimentos épicos do dramaturgo-encenador alemão: três
atores interpretavam dez personagens, incluindo a utilização de bonecos em tamanho real de
madeira (com o lugar da face vazada) para que os atores circulassem entre a mãe, o pai, o
menino, a criada, a avó etc. Tanto os atores quanto as crianças podiam integrar o jogo cênico,
vertendo o teatro aos moldes da animação. A representação, nesse caso, desvinculava
explicitamente o ator do personagem (distanciamento) enquanto a fábula era valorizada
enquanto matéria-prima textual suscetível de transformações para dialogar com a realidade. O
grupo também se reconhece no instante, no tempo presente, em que o processo é mais
importante que a obra acabada, pois a cada encontro com o público o resultado pode ser
alterado. Assim, toda sessão dos espetáculos reforça o caráter de efemeridade e irrepetição
também para os atores, cujos princípios orientadores de trabalho prezam por essas mesmas
exigências. O Manifesto 1 explicita devidamente a função do teatro para O Bando, nessa relação
com seu público que se caracteriza pelo ato de comunicar, e cujo sentido implica duas direções
opostas (ator/público e público/ator):
3/3 Quando se escolhe ir ao teatro com o mesmo interesse, apetite, como quando se
combina uma patuscada com os amigos, o teatro está a cumprir a sua função vital.
Quando o espetáculo a que se assiste […] nos faz salivar, saborear cada naco da festa
com prazer (físico e mental) e que no fim há aquele bem estar reconfortante da barriga
cheia e da força física e mental capaz de transformar o mundo; quando o espetáculo
nos faz partilhar a emoção, o riso, a reflexão para além de nós mesmos, fazendo-nos
ganhar confiança de existir também na nossa dimensão social, podemos estar certos
de que é teatro necessário a esta vida, que é este o teatro que queremos. (TEATRO O
BANDO, 1980: 11)
177
Quanto à dramaturgia, os primeiros trabalhos d’O Bando, num período que vai de 1974
a 1984, caracterizavam-se de maneira geral pela criação coletiva, em que os textos eram escritos
em grupo com ou sem uma coordenação ou por uma autoria interna, construindo peças a partir
de temáticas sociais, do gosto pela descentralização e itinerância e a integração da festa popular
na ação como um dos recursos de participação do público. Aqui podem ser mencionados os
trabalhos A Boneca (1974), O pastor (1974), A Máquina (1976), Cristóvão, o Homem do Saco
e a Vaca de Vilar de Vacas (1977) e Feijões são sempre feijões (1979).
49. Também o texto, ainda que inserido nestas premissas, tem vindo a sofrer uma
evolução: começámos por textos de autoria do colectivo e chegamos a textos que são
adaptações ou colagens elaboradas por elementos do grupo, tendo passado entretanto
por textos coordenados ou de autoria individual de elementos do colectivo.
178
50. Preferimos os textos não escritos para teatro. Também aqui gostamos de elaborar
e de reelaborar. (TEATRO O BANDO, 1988: 23-24)
Nesses excertos já se percebe que, durante quatro anos, período que compreende o início
desse novo paradigma e a escrita do novo Manifesto, o grupo experimenta trabalhar com textos
de outros autores, estabelecendo um diálogo com literatura em língua portuguesa, em que
prevalece a lusitana. Esse paradigma, entretanto, acabará por se configurar como uma
importante definição poética dO Bando, que passa a ser reconhecido como um grupo que
trabalha textos não escritos para o teatro, objeto desta investigação. Portanto, de uma proposta
inicial de textualidade coletiva, o grupo encaminha-se para uma elaboração dramatúrgica mais
complexa, que envolve a escrita a partir de uma escrita fixada previamente em contos, crônicas,
documentos históricos, romances e poemas. A transição para textos exteriores ao grupo faz
emergir a figura de João Brites como dramaturgo-encenador, funções que passam a caminhar
para ele a par e passo. Portanto, passo a assinalar as singularidades do pensamento, da prática
e do fazer artístico desse multiartista português.
A trajetória artística de Brites n’O Bando deu-se de forma não ortodoxa: inicialmente
ocupava-se da cenografia, em decorrência da sua formação, atuou em alguns trabalhos e
animações e, aos poucos, se encaminhou para a dramaturgia e encenação. Nos últimos anos
tem-se distinguido ainda como diretor de atores, a partir do desenvolvimento de um sistema de
trabalho de interpretação apoiado principalmente pela investigação da consciência do ator em
cena, cujos princípios serão explicitados e analisados mais adiante neste capítulo. Importa neste
momento perceber que os primeiros trabalhos artísticos desenvolvidos por João Brites, ainda
na Bélgica, assinalaram a ideia de um fazer teatral que se constrói pela prática de seus agentes
e não de uma apropriação de propostas e estéticas de encenadores e artistas seus
contemporâneos:
179
Como eu vinha das Artes Plásticas tinha talvez uma maior apetência para percepcionar
e circunscrever o estilo de representação. Logo no princípio intui que o nosso estilo,
a nossa maneira de fazer teatro, teria de resultar da nossa prática específica. Não nos
podíamos reunir e dizer que estaríamos nesta ou naquela “corrente artística”. Claro
que tínhamos algumas linhas-mestras, algumas opções e referências, mas não eram
essas referências que poderiam enquadrar uma maneira especial de estar no teatro e
fazer teatro. […] Na altura, há 30 e tal anos, defendíamos, e eu defendia
convictamente, que teria de ser a prática a definir essa maneira de representar.
Tínhamos de conhecer as nossas gentes e de ir para as aldeias. Tínhamos de
experimentar os textos de tradição oral e estar dispostos a percorrer o nosso caminho
como artistas sem saber a que ponto chegaríamos. Não queríamos chegar a este país,
que em grande parte desconhecíamos, com uma espécie de modelo que quiséssemos
aplicar. (BRITES, 2011)
Para Antonino Solmer, João Brites foi construindo ao lado de seu grupo o que ele
denomina como “pintura ao vivo no palco”, numa tentativa de “obra de arte total”, recobrando
os pressupostos wagnerianos, pois “Sabemos como os artistas plásticos são responsáveis
pioneiros por grande parte das experiências nas artes, que por sua vez originaram alguma
liderança no campo da reflexão teórica.” (SOLMER, 1994: 162). Sua formação encaminhou-o
para a fuga ao realismo e às tentativas de imitação da realidade, porque Brites acredita na
linguagem da metáfora e do símbolo como condição sine qua non para pensar a representação,
lugar de excelência do espetáculo teatral. Para ele, a maior vitória da humanidade foi quando
um pastor junto ao seu rebanho decidiu contar as ovelhas e, no lugar de desenhá-las, foi
marcando-as cada uma com um traço em seu cajado. Assim, Brites atribui aos deuses a
capacidade de abstração do ser humano e de criar metáforas. Portanto, corrobora com os
princípios norteadores do trabalho d’O Bando, que ajudou a fundamentar, em que há um repúdia
a um teatro de ilustração, pois se percebe nele uma individualização dos sentimentos humanos
ao isolá-los de sua sociabilidade. Ainda, inferem que a “ilustração e a decoração reduzem
sempre o público a espectadores, têm pois mais a ver com a informação do que com a
comunicação.” (TEATRO O BANDO, 1980: 7).
Brites e O Bando afirmam seu gosto mais pela representação do que por espetáculos
(aqui, no sentido de espetacular e não como sinônimo de peça), procuram surpreender o
espectador, envolvê-lo, fasciná-lo. Desejam que ele possa se emocionar e também pensar, se
inquietar. Perseguem uma não-literalidade dramatúrgica, pois confiam na capacidade do
público de se envolver com a peça e lidar com os enigmas propostos. Acreditam num teatro que
se fixa na memória dos espectadores e sedimenta-se quanto mais se distancia do acontecimento
cênico, pois para eles isso não diz respeito a uma espetacularidade de efeitos, mas “com a tensão
180
dos mistérios quando se tem a sensação que foi levantada mais uma ponta do véu.” (TEATRO
O BANDO: 1988: 14).
Dessa forma, o pensar a linguagem do teatro e da encenação para João Brites está
diretamente associado a um pensar pictórico, como ele mesmo define em Textos e pretextos:
“Como actuámos? Talvez como o pintor que em vez de linhas, formas e cores, usa palavras e
imagens tridimensionais”. Ainda que não se considere um escritor, porque a princípio utiliza-
se sempre das palavras dos autores para compor a dramaturgia das peças que dirige, reconhece
seu ofício como dramaturgo que “se serve mais da tesoura e da cola que da caneta, não só para
colar quase sempre textos alheios, mas para fundir, associar, sobrepor outros fragmentos de
outras linguagens.” (BRITES, 1990). Nota-se seu gesto de escrita equivalente ao do
dramaturgo-rapsodo sarrazaquiano, em que a edição é o principal procedimento.
Para ele, a teatralidade relaciona-se com a capacidade de exprimir em teatro o que não
se consegue expressar de outra maneira, conceito que envolve uma gama enorme de hipóteses,
sobre as quais têm se debruçado vários intelectuais e pensadores do teatro. O que se quer dizer
com “exprimir em teatro”, pois a constituição de sua linguagem, dada à reunião de múltiplos
elementos artísticos têm alargado as fronteiras entre as artes contemporâneas? A princípio,
parece se referir ao encontro ao vivo entre atores e espectadores, ao estabelecimento de um
conflito, à ideia de ação como condutora do espetáculo e ao status da representação por meio
da metáfora.
O teatro para João Brites é prioritariamente artifício, diferente de artificial, visto que o
primeiro é um meio, um veículo ou um mecanismo, enquanto o segundo diz respeito ao
resultado final, à obra acabada. Em Os Anjos, os personagens são mostrados ao espectador
quase como fantoches ou bonecos, pois os atores usam pés falsos (o público tem a impressão
de que estão flutuando sobre a passadeira) e mãos agigantadas. A ausência de adereços e objetos
encaminhou a interpretação para a construção de gestos (não miméticos) que pudessem
representar algumas ações: o artifício para o personagem tomar a sopa, por exemplo, se revelava
no andar com mãos sobre o peito, parar, engolir uma bola de ar (acompanhado de um ruído
vocal). A plateia no início não decodificava esse e outros movimentos, mas durante o
espetáculo, com a repetição, o artifício se revelava: “Isso conferia ao público uma apreensão
lúdica do espetáculo” (BRITES, 2009a: 278).
Tanto do ponto de vista econômico quanto poético, acredita que o teatro se sobressai ao
cinema pela sua capacidade de realizar viagens no tempo e no espaço com tão poucos recursos
que podem se limitar ao ator e por estabelecer uma ponte de comunicação com o espectador. A
narrativa, linguagem dramatúrgica preferencial utilizada por Brites, também se apresenta como
um desses mecanismos que promovem saltos no tempo e no espaço. Ele entende o teatro como
algo inominável, que não se explica totalmente, pois não se restringe às ideias, mas também às
emoções e aos afetos que nem sempre podem ser explicados por meio de palavras e
pensamentos. A verossimilhança para ele é substituida pela credibilidade, porque a
representação, a metáfora e o símbolo extrapolam os sentidos do que pode ser verossímil,
bastando ser credível para aquele que assiste: suas obras não se ligam à representação da
realidade porque deve haver constrangimento em arte.
O conflito está no centro de sua poética teatral: não apenas o dramatúrgico que coloca
em relação dois ou mais personagens, mas o que confronta também o ator e o espectador, o ator
e os demais componentes do espetáculo, porque tudo deve estar integrado de forma
interdependente. Nesse sentido, a noção de constrangimento aplica-se ao estabelecimento de
alguns conflitos cênicos, cujo conceito refere-se à apropriação, imposição e aceitação de
obstáculos que criam uma desestabilização de alguns elementos do espetáculo e que obrigam,
por exemplo, o ator a manter-se atualizado no tempo presente da representação, sem incorrer
em mecanizações. São desafios que mantêm os criadores envolvidos com o projeto e que
estimulam o elenco a dominar a espacialidade proposta que, muitas vezes, exige dele respostas
concretas e imediatas a situações novas. “Por isso, cada representação é um risco, um desafio,
uma aposta – individuais e colectivos.” (TEATRO O BANDO, 1988: 26). Os principais
182
As máquinas de cena, ainda que sua criação esteja diretamente vinculada às propostas
dramatúrgicas e cênicas, podem ser isoladas como obras de arte independentes, pois ganharam
exposições, incluindo a atual permanente na quinta do grupo. São polvos de múltiplos braços
que se metamorfoseiam em cena e propõem uma fusão entre a beleza e a arte. Em As horas do
diabo, três parelelepípedos iguais, mas apoiados em faces distintas (100 x 50 cm; 70 x 50cm;
100 x 70cm), o que dá a impressão para o público de serem diferentes, são utilizados como
casas para três personagens. A proposta, que tem dramaturgia a partir de Alberto Caeiro, Álvaro
de Campos e Fernando Pessoa (ele mesmo), discute o sentido da religião, pois um judeu, uma
183
mulçumana e uma católica dizem o mesmo texto, cada um em sua língua de origem e por isso
não se entendem. A metáfora aborda a diversidade religiosa, já que no fundo todas têm o mesmo
sentido do sagrado, o que não justificaria os conflitos e guerras que têm provocado em várias
partes do mundo. Pelas caixas-casas, os personagens entram (totalmente), ajustando seu corpo
ao paralepípedo e saem, criando belas imagens poéticas de isolamento, enquadramento e
solidão. Outra máquina curiosa é a de Afonso Henriques, um objeto móvel articulável que
guarda adereços de cena. Sua configuração inicial (trono) assume outras variações, conforme
desdobramentos e manipulações dos atores: berço, castelo, igreja, carreta.
Para João Brites, as máquinas de cena e os espaços não convencionais são um convite
do grupo ao público para uma viagem ao desconhecido, que não se repete e que modifica para
ambos a percepção do espaço que por hora ocupam. Entretanto, a máquina mais instigante é a
de Alma grande, uma estrutura metálica convexa, composta por dois arcos de circunferência
cruzados, a dez metros do chão e raio do arco de 8 metros. Móveis e atores eram supensos pela
estrutura e o público assistia recostado em cadeiras de praia, o que lhes permitia uma visão de
baixo para cima. Entretanto, a grandiosidade da máquina cênica apresentou problemas à peça,
pois seu impacto foi excessivamente espetacular, o que encobria o trabalho dos atores, do texto
e da música. A opção de João Brites foi simplificar, abrir mão da estrutura e dos figurinos
originais e levar a encenação para um palco convencional, tornando-o despojado e simples, mas
teatralmente mais eficiente.
Por sua vez, a ideia de conflito impulsiona a constituição da ação, substantivo que
fundamenta a gênese do teatro e que está etimologicamente ligado ao vocábulo drama, mas que
em sua poética expande-se para a ideia de ação vocal, ação física, ação visual. Eugénia Vasques,
professora e crítica teatral, aponta que João Brites e o Teatro O Bando “estabeleceram […] as
bases de uma filosofia que elege a acção (o acto, o que se vê) como princípio-motor do
acontecimento teatral.” (VASQUES, 2009: 124).
Ele acredita que o resultado teatral de um processo determina-se pela dramaturgia e pela
concepção global do espetáculo e não por uma somatória de palavras, efeitos visuais, sons e
marcações limpas e organizadas. Essa resultante constrói-se pela fusão dos elementos, como se
acontecesse quase por acaso, capaz de arrebatar tanto atores como espectadores a ponto de
surpreender a ambos. Contudo, a poética cênica de Brites afirma-se pela visualidade, como se
o encenador conseguisse pintar tridimensionalmente por meio de corpos, dispositivos
cenográficos, espaços cênicos, iluminação e indumentária. O texto, princípio organizador do
pensamento desse encenador, também se oferece à construção de imagens mentais e sonoras,
por meio de sua vocalização, aliado à música. Os elementos, portanto, compõem uma totalidade
visual marcante para o espectador: Pode-se “visualizar este encenador a trabalhar como o fará
no atelier, colando, organizando, apagando, riscando, colando de novo, ideias antigas, recém-
cehgadas, formas com sons, movimentos e, claro, sentidos também” (SOLMER, 1994: 169),
claros estãos seus modos de escrever a encenação.
“Criar é escolher entre uma infinidade de hipóteses”, João Brites afirma inúmeras vezes
em textos e também nas suas aulas na ESTC. Seu processo criativo tem início com a escolha
do texto, que sempre passa pela aprovação do grupo ou, mais recentemente, da Direção
Artística. Sara de Castro ressalta a capacidade do encenador de lançar ideias e linhas de ação
para os espetáculos, indicando os constragimentos que são postos desde o princípio, mas tendo
alargada a abertura para outras tantas hipóteses, que podem surgir do elenco ou de outros
integrantes da equipe. Ele corrobora:
185
Quer dizer que é perfeitamente admissível que nos primeiros ensaios ou nas primeiras
reuniões existam contributos que pareçam não ter sentido nenhum. À partida não se
trata de construir uma lógica demasiado coerente e em total sintonia com os princípios
dramatúrgicos estabelecidos. O contraste insólito, a inesperada complementaridade e
até a aparente aberração disparatada podem aumentar o número de hipóteses e serem
determinantes para um mais multifacetado esclarecimento dramatúrgico. (BRITES,
2011)
Os processos criativos têm início com os estágios, sistema laboratorial que o grupo vem
perseguindo ao longo dos tempos e que atua como uma preparação para os ensaios propriamente
ditos. Normalmente, a direção artística e o elenco isolam-se fora da sede de trabalho em
períodos que variam de dias a semanas, conforme disponibilidade e/ou necessidade. Algumas
vezes os estágios ocorrem até um ano antes da montagem se concretizar, como no caso de
Ensaio sobre a cegueira. Todos os integrantes envolvem-se em conversas, discussões a respeito
do assunto tratato pelo texto escolhido, realizam workshops, experimentações, construindo
coletivamente uma partilha do universo a ser encenado. Às diretrizes pré-formuladas que
orientam o encenador (seu projeto de encenação que ele denomina como “mapa de
desenvolvimento”) vão se somando contribuições de todos os artistas, colocando em causa
algumas proposições, reafirmando outras e agregando novas. Os estágios parecem funcionar
como uma espécie de incubadora de criação, em que ideias, conceitos e perspectivas têm a
oportunidade de serem testadas, discutidas e amadurecidas. A primeira versão da dramaturgia
é escrita pelo encenador na tentativa de materializar e visualizar o conceito e a proposta da
montagem, mas que será reescrita ao longo do processo, principalmente no encontro com o
elenco. Para João Brites, o tempo disponível para os estágios é fundamental para
divisão é determinar o que pode ser mostrado pela cena e aquilo que pode ser dito pelos
personagens, buscando não incorrer numa ilustração do texto falado. “Não vou dizer e
demonstrar. Vou fazer uma seleção que abra no discurso verbal algo que o discurso visual não
contém. Quando eu não resolvo o discurso visual tenho tendência a estabelecer uma
complementaridade no discurso verbal.” (BRITES, 2011).
falado dos personagens e nem às indicações para a encenação: é uma escrita que busca
determinar os aspectos globais do espetáculo.
O texto de trabalho divide-se em quatro colunas: a primeira apresenta o texto a ser falado
pelos personagens e os diálogos; a segunda inclui a descrição da ação, títulos das cenas/quadros,
rubricas e partitura gestual; a terceira busca apontar os efeitos pretendidos na cena (música, luz,
projeções) e a última a cronologia temporal do espetáculo. Esse material dramatúrgico permite
dois tipos de leitura: por um lado há a verticalizada, em que se pode perceber a sequência de
cenas e acontecimentos, enquanto a horizontalizada oferece a perspectiva da simultaneidade,
ou seja, indica qual o subtexto do ator/ cena no momento em que se fala um determinado texto
e quais os efeitos cênicos, como se pode observar abaixo numa reprodução da dramaturgia de
Gente feliz com lágrimas (2002: 4):
TEXTO DE TRABALHO
1 2 3 4
RECORDAÇÕES DA CASA........3 3........................... N (90) / M (00-01) LUM B 02: Solar 02/19 05:00
Desiste de procurar. Pousa as malas e 05:02
é como se chegasse a sua casa. Imita 05:04
os barulhos das coisas. Olha para a Voz Marta: bébé 05:06
porta que acaba de transpôr e Nuno: ar agudo 05:08
NUNO 90 surpreende-se de a ver aberta. Motor Marta: pulsos 05:10
A porta range sob o impulso do Nuno: coluna su 05:12
joelho. O seu vidro fosco tilinta nas 05:14
calhas. (460) 05:16
ILUM A 05: Pernas 05:18
MARTA 3 MESES Repara na imagem de um bébé que se 05:20
Uáhh!... encolhe como um novelo de lã. 05:22
Compreende a intençao: 05:24
05:26
NUNO 90 Tenho a perfeita consciência de não 05:28
É o pior momento da minha vida. Não estar sonhando. E... 05:30
estou vivo nem morto. Apenas entre o 05:32
tudo e o nada de uma coisa que não 05:34
existe. (454) 05:36
Nuno continua o jogo de melhor se 05:38
relacionar com ela através da viagem 05:40
MARTA 6 MESES no tempo. Aproxima-se do bébé para 05:42
Uáhh! Uáhh!... se proteger do mundo. 05:44
Examinando a primeira coluna (da esquerda para a direita) tem-se o título da cena
“Recordações da casa”, acompanhado na segunda por indicações da idade que os personagens
têm: N [Nuno] (90) [anos] e M [Marta] 00-01 [do nascimento a 1 ano]. A composição mostra
na terceira coluna referências à iluminação “solar” da cena. Os diálogos são acompanhados pela
188
rubrica que anuncia a idade dos personagens, “NUNO 90”, “MARTA 3 MESES” e insere as
páginas do romance em que foram extraídos os respectivos textos, “460”, “454”, o que já
explicitar o cortar e colar sarrazaquiano, pois não obedece à sequência do original.
Paralelamente há as rubricas da encenação e orientações à interpretação: “Desiste de procurar.
Pousa as malas e é como se chegasse a sua casa. Imita os barulhos das coisas. Olha para a porta
que acaba de transpor e surpreende-se de a ver aberta.” O dramaturgo-encenador incorpora às
rubricas fragmentos do romance, que na dramaturgia se convertem em subtexto para o ator,
como pode-se encontrar destacado por cor diferente no texto de trabalho: “Tenho a perfeita
consciência de não estar sonhando. E...”.
A dramaturgia de João Brites realiza uma nova escrita a partir do texto original. Destaca-
se um fragmento de Jerusalém para demonstrar algumas operações dramatúrgicas, como a
passagem do discurso indireto (narrador do romance) para o direto (personagem da
dramaturgia): os trechos em negrito referem-se aos que foram suprimidos, enquanto os
sublinhados são aqueles que passaram para o texto falado do personagem, restando os demais
à rubrica (segunda coluna):
3
A única mulher que
A única mulher que frequentava a casa de Hinnerk
frequentava a casa de Hinnerk era era Hanna. Ela era como que a
Hanna. Ela, dada as sua noiva. Parte do dinheiro
circunstâncias, era como que a sua que Hanna ganhava deixava-o
noiva. na casa do seu noivo, mas não
Parte do dinheiro que Hanna havia aquilo a que se pudesse
ganhava deixava-o na casa do seu chamar de contrato, nem
noivo, mas não havia aquilo a que se sequer invisível. Tirava o
pudesse chamar de contrato, nem dinheiro da sua carteira e
sequer invisível; não se estabelecer pousava-o na mesa da sala com
qualquer proporção exata entre o a mesma tranquilidade com
que Hanna ganhava na que deitava as cinzas do
prostituição e o que deixava em cigarro no cinzeiro.
cima da mesa, quase sempre sem
qualquer comentário, como se
fizesse afinal parte de um hábito,
de um movimento de mulher.
Tirava o dinheiro da sua carteira e
pousava-o na mesa da sala de
Hinnerk com a mesma
tranquilidade com que deitava as
cinzas do cigarro no cinzeiro. Como HANNA 41 FALA De facto o
se de facto o dinheiro deixado não dinheiro que te deixo não é algo
fosse algo de significativo, de de significativo, de importante
importe para a existência, mas sim, para a existência, mas sim, como
189
O médico disse, Sentem-se, por MÉDICO: Sente-se, por favor, O Médico vai ajudar o paciente a
favor, ele próprio foi ajudar o Conte-me lá então o que se passa acomodar-se. Tocando-lhe na
paciente a acomodar-se, e depois, consigo. mão, falou directamente para ele.
tocando-lhe na mão, falou
directamente para ele, Conte-me CEGUINHO: Vejo tudo branco, O cego explica que ficou
lá então o que se passa consigo. senhor doutor. subitamente sem ver, e que um
O cego explicou que estando homem o acompanhou a casa
dentro do carro, à espera de que o porque ele sozinho não podia
sinal vermelho mudasse, tinha valer-se.
ficado subitamente sem ver, que MÉDICO: Nunca lhe tinha
umas pessoas acudiram a ajudá- acontecido antes,
lo, que uma mulher de idade, pela
voz devia ser, dissera que aquilo CEGUINHO: Nunca, senhor
se calhar eram nervos, e que doutor, eu nem sequer uso
depois um homem o acompanhara óculos,
a casa porque ele sozinho não
podia valer-se, Vejo tudo branco, MÉDICO: E diz-me que foi de
senhor doutor. Não falou do repente,
roubo do automóvel.
O médico perguntou-lhe, CEGUINHO: Sim, senhor
Nunca tinha acontecido antes, doutor,
quero dizer, o mesmo de agora, ou
parecido, Nunca, senhor doutor, MÉDICO: Como uma luz que se
eu nem sequer uso óculos, E diz- apaga,
me que foi de repente, Sim,
senhor doutor, Como uma luz CEGUINHO: Mais como uma O cego abre-os muito, como para
que se apaga, Mais como uma luz que se acende, facilitar o exame mas o médico vai
luz que se acende, Nestes últimos instalá-lo por trás de um aparelho.
dias tinha sentido alguma MÉDICO: Bom, vamos lá então Como um confessor a olhar
diferença na vista, Não, senhor observar esses olhos. Apoie aqui directamente para dentro da alma
doutor, Há, ou houve, algum caso o queixo, mantenha os olhos do pecador.
de cegueira na sua família, Nos abertos, não se mexa.
parentes que conheci ou de quem
ouvi falar, nenhum, Sofre de CEGUINHA: Verás como tudo Aproxima-se dele, pondo-lhe a
diabetes, Não, senhor doutor, De se irá resolver. mão no ombro. O médico sobre e
sífilis, Não, senhor doutor, De baixa o sistema binocular.
hipertensão arterial ou MÉDICO: Não lhe encontro Principia o exame. Não encontra
intracraniana, Da intracraniana qualquer lesão, os seus olhos nada. Afasta-se do aparelho,
não sei, do mais sei que não sofro, estão perfeitos. esfrega os olhos, Recomeça o
lá na empresa fazem-nos exame desde o princípio, sem
falar, e quando termina tem na
inspecções, Deu alguma pancada cara uma expressão perplexa.
violenta na cabeça, hoje ou ontem,
Não, senhor doutor, Quantos anos
tem, Trinta e oito, Bom, vamos lá
então observar esses olhos. O
191
Pela edição, o exercício da liberdade defendido pelo encenador-autor consente que ele
promova saltos na ordem do romance, servindo-se do gesto de recortar e colar e por isso
remontar o texto original. Trata-se de reunir na mesma cena trechos recolhidos em páginas e
capítulos distintos (assinalados na primeira coluna entre parênteses, 182/ 304/ 182/ 225),
192
realizando elipses narrativas com vistas a manter concentrado aquele conflito cênico, como em
Gente feliz com lágrimas (2002: 16), cujo fragmento do texto de trabalho inclui ainda mapa da
cenografia, apontando a posição em que os personagens devem estar naquele momento (o
círculo e o quadrado em negrito):
MARTA 25
Ele abraça-a, distraído, como se se
No dia da tua ida para Mafra, vou despedir- despedisse.
me de ti à estação do Rossio, choro
perdidamente no teu ombro e tenho pena da Marta ao tentar acalmá-lo vai se
tua cabeça rapada de recruta. lembrando de
alguns bons momentos que viveram
juntos.
NUNO 21
Estou a pensar em fugir para França. (225)
Queres vir até Paris ou Estocolmo? ILUM A 12: Recruta
Compete ainda à cenografia as relações que serão demarcadas entre o ator e o público,
a localização da plateia e o campo de visão que oferece a cada um dos espectadores. A potência
193
visual da cenografia deve atentar-se para a conjugação de elementos binários como perto-longe,
claro-escuro, à frente-atrás, que se convertem em aspectos de tridimensionalidade. Para o
dramaturgo-encenador-cenógrafo João Brites a cena versa como uma escultura em que a ação
visual determina os volumes, sombras, movimentos, alternando-se entre o que dá a ver e o que
esconde.
Como artistas, estamos empenhados em tornar visível, mas não no sentido de uma
revelação. O jogo de ocultação, sendo fundamental para quem quer criar
ambiguidades e despertar consciências, manifesta assim a vontade de partilhar
cumplicidades, de indiciar, sugerir e insinuar caminhos num movimento contínuo de
interrogação e inquietação.50
Se para Didi-Huberman todo objeto artístico reside na visualidade, o ato de ver liga-se
diretamente ao corpo, pois a obra toca o sujeito que a vê. Dessa forma, impõem-se duas atitudes
diante de uma obra de arte: na primeira, o olhante quer ver além do que é visto (crença) enquanto
na outra se vê apenas o que é visto (tautologia): ambas requerem um olhar puro, um olhar sem
sujeito, pois recusam à imagem a possibilidade de abertura para que ela nos olhe. Para desfazer
o impasse entre as duas atitudes, o filósofo aponta o conceito de “imagem crítica”, em que a
imagem se desdobra em pensamento e memória e reconhece-se sua dimensão temporal. Essa
imagem interroga o olhante e exige resposta, mas uma resposta que vai modificar o sujeito que
50
Texto escrito por João Brites para sua participação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado Do outro lado:
o que fazemos transcende o que pensamos.
194
responde a ela. A imagem crítica produz deformações e por isso suscita outras imagens: ao
inquietar o olhante, obriga-o a olhá-las de um modo verdadeiro.
Os espetáculos encenados por João Brites, por seu caráter eminentemente plástico,
oferecem ao espectador imagens ambíguas, plurais, que justapõem elementos distintos (corpos,
projeções, dispositivos, máquinas de cena, texturas, cores, tons, volumes) que inquietam quem
olha, principalmente por corroborarem a construção da ação visual que as coloca em movimento
e em estado de transformação. São imagens intrigantes porque investem na abstração, e o
princípio teatral da transformação promove nelas deslocamentos de sentido, altera a percepção
de quem olha, desestabilizando noções como permanência e estabilidade. A composição dos
quadros cênico-visuais desse encenador joga com a apreensão e a fruição do público, exigindo
um olhar atento, crítico, em busca de respostas. Ao contrário de outros objetos artísticos, como
pinturas e esculturas, que permitem um olhar mais demorado pela sua constituição estável, o
teatro, dinâmico, ainda conjuga suas imagens com outros elementos verbais e sonoros,
construindo uma intrigante rede de sentidos.
Gente singular (1993) colocava os espectadores num comboio (trem) a viajar por
paisagens urbanas, algumas modificadas pela ocupação de personagens, o que oferecia outros
modos de ver a cidade. Em outros casos, a proposta de itinerância da plateia, que assiste em
movimento, abre múltiplas possibilidades de ver: em Montedemo (1987), cada espectador
recebia uma lanterna para iluminar a cena, atribuindo-lhe o poder de escolher o que quer ver e
se quer ver. “A capacidade de ver, de um outro ponto de vista, é um exercício inesgotável de
imprevisível criatividade”, escreve João Brites em outro texto apresentado na Quadrienal de
Praga em 2010. Assim, o encenador e seu grupo ampliam para o espectador o sentido da visão,
principalmente nesses casos em que a localização da plateia está em aberto, pois permite que
todo o seu corpo olhe e, na percepção de Didi-Huberman, seja olhado.
A novidade dessa investigação é perceber que corpo e cérebro não estão dissociados,
muito ao contrário: “o corpo é o alicerce da consciência”, destaca o neurocientista, pois tudo o
que se passa na mente do sujeito estende-se à cabeça e ao corpo. Entretanto, não se trata de uma
percepção mental, porque a consciência advém de sensações concretas. As emoções passam
pelo corpo a partir de alguns estudos que revelam as interações entre o corpo e mente. Para
Manuela Correia, médica psiquiatra, o corpo é uma entidade viva e, no caso do ator ou daqueles
que se envolvem em atividades criativas, converte-se num circuito emocional que envia
estímulos ao cérebro: “Tem-se chegado a conclusões que consideram, simplificadamente, o
corpo como consciência, ou seja, as emoções tanto vão para o corpo como para o cérebro e
interagem umas com as outras.” (CORREIA, 2009: 107).
A consciência do ator refere-se à percepção do que ele faz e de como faz e inclui o
espectador, não apenas no sentido do público que assiste, mas como um espectador de si
mesmo, por conseguinte um “ator emancipado”: ao aplicar ao intérprete o conceito de
“espectador emancipado” proposto por Jacques Rancière, Brites pretende que o ator assuma sua
51
Essa metodologia vem sendo desenvolvida e aprimorada por João Brites no Teatro O Bando e na Escola Superior
de Teatro e Cinema (ESTC) em que leciona uma disciplina de direção de atores para os alunos do último ano da
graduação em interpretação.
197
autonomia enquanto artista, que esteja em ação consciente e (re)conheça suas características,
maneirismos e recorrências.
O exercício proposto por Brites para seu desenvolvimento consiste em dois momentos.
Inicialmente cada aluno-ator deve representar em cena a personagem intermédia de um colega,
chamado de “ator visado”, e tomando como referência suas recorrências como intérprete e como
pessoa, ou seja, sua “personalidade cênica”, sem incorrer em ilustração ou imitação. O aluno-
ator deve se apropriar das recorrências do ator visado para desenrolar junto aos demais uma
cena completa, improvisada, com textos na primeira pessoa. A partir do momento que o ator-
visado se reconhece em cena, ele é impedido de participar, colocando-se na condição de
observador de si mesmo na interpretação dos demais.
No segundo momento, ele improvisa sozinho uma cena sobre sua própria personagem
intermédia, utilizando-se de textos na terceira pessoa, como uma “resposta em cena” do que viu
e ouviu. É interessante observar que o exercício prescinde do procedimento de multiplicar
cenicamente um mesmo personagem e colocá-lo em interação consigo mesmo, além de oferecer
ao ator visado a dicotomia identificação/ estranhamento. O enigma sobre a identidade da
Texto escrito por João Brites e Miguel Jesus para a apresentação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado
52
Esse deslocamento visa a uma consciência de cada actor de sua presença em cena e,
sobretudo, das suas recorrências estilísticas, a partir da sua personalidade, do seu
imaginário particular, do seu corpo. A consciência através de um olhar exterior serve
um propósito pedagógico, mas envolve-se ainda de importantes questões estéticas. De
facto, trata-se de identificar aquele preciso momento de desvio, a subtileza do primeiro
instante de devir, em que um se torna outro. (MANUEL, 2009: 119-20)
Não basta ao ator nesse campo apenas reconhecer e desenvolver seu próprio personagem
nos aspectos físicos e vocais, visto que seu imaginário e discurso também integram a
composição da personagem intermédia. João Brites tem conceituado o ator de sua preferência
como um “ator-artista”, porque atuar significa expressar-se através do corpo e da voz, ter uma
interioridade singular, criar rupturas no estilo de interpretação (do mais realista ao mais
grotesco), não incorrer em registros muito formais (porque o teatro é, sobretudo, a relação com
as emoções) e ter a consciência de sua função dentro da sociedade. Espera-se do ator-artista
mais do que uma performance potente em cena, mas de sua posição artística, ética e política no
contexto social em que se insere:
O ator é um duplo manipulador: manipula as próprias emoções – claro que ele nunca
está fora de si e, portanto, implica-se e gasta-se nessa atitude de manipulação interna
– e manipula a emoção do público quando, como artista, o consegue fazer bem. É por
isso mesmo que a sua responsabilidade cívica e ética é tão elevada. (BRITES, 2009b:
25)
A metodologia para o trabalho do ator de João Brites parte do princípio de que tudo que
é feito em cena deve ser observável do ponto-de-vista do espectador, para isso sua presença
deve ser dilatada. Os exercícios iniciais visam desenvolver no ator a direção do olhar, o ponto
de fuga (perspectiva), o corpo no espaço, interdependência entre os elementos, mobilidade
(dinâmico versus estático), dilatação do tempo-presença. Recobrando o “estado de alerta” de
Eugenio Barba, insiste que o estar em cena requer do ator outra qualidade de expressão, para a
qual a personagem intermédia é o principal mecanismo.
199
A oralidade53, que no grupo tem sido desenvolvida e pesquisada por Teresa Lima,
refere-se a tudo o que pode ser produzido pela cavidade bucal do ator como textos, palavras,
sons, respirações, ruídos etc. Um tanto influenciada por Artaud, a oralidade revela que o
“interesse pela palavra como matéria sonora e como efeito inesperado vai abrindo à admissão
da sua ambiguidade e polissemia e favorecendo a atualização visual e espetacular de suas
potencialidades significativas” (SERÔDIO, 1994: 148). Para Teresa Lima, a oralidade envolve
tanto os materiais vocais (sonoridades) e verbais (lexicais e gramaticais) quanto se relaciona
com os demais elementos do espetáculo. O trabalho nesse campo prescinde da desconstrução
das recorrências mimético-realistas do cotidiano, investindo numa prática em que se trabalha a
partir do que pode ser perceptível para o espectador.
53
Coloca-se em causa o termo oralidade, largamente defendido pelo grupo, mas que nesta investigação assume
outras conotações, pois, a partir de Paul Zumthor (2007) refere-se a uma qualidade da língua oral, aquela formulada
em condições de performance, em ação, e que não tem uma escrita que a anteceda. Portanto, prefere-se o termo
vocalidade para se referir ao trabalho da voz sobre um texto escrito, de acordo com o método proposto por Teresa
Lima e pel’O Bando.
200
embalam ou entediam o espectador, muitas vezes por falta de compreensão daquilo que se fala,
e, portanto, afasta-o do compromisso com o espetáculo. Teresa Lima expõe sua crítica às peças
que menosprezam ou desconhecem a potencialidade vocal: “Admito que a reprodução
monotonal de um texto possa ser uma opção estética, mas arrisco que, muitas vezes, é apenas
o reflexo da pouca importância que é dada ao trabalho técnico e artístico sobre a comunicação
desse mesmo texto.” (LIMA in O BANDO, 2009: 151). Em Horas do diabo, o mesmo texto de
Fernando Pessoa dito em três línguas distintas imprimia ações sobre a construção vocal que
colocavam em conflito os personagens, remetendo à contradição das religiões que discordam
dizendo os mesmos princípios.
A corporalidade, que durante muito tempo esteve a cargo de Luca Aprea, consiste na
utilização dos recursos corporais do ator, ainda que a cena peça um rigoroso estatismo, como
movimentos, gestos, partituras físicas etc. Esse trabalho investe em uma especificidade corporal
para cada espetáculo por meio da concepção e da proposta cênico-dramatúrgica, conectando-se
também aos demais planos expressivos e aos elementos da cena. Numa primeira etapa, o ator
desenvolve-se em tarefas-exercícios que propõem obstáculos reais, cujo objetivo é estimular
sua subjetividade a partir de um trabalho concreto, objetivo. “São exercícios que interrogam a
relação com a acção na base da percepção. Confrontado com tarefas reais o actor responde com
acções reais”.
Em uma segunda etapa, o ator passa a reunir fragmentos, formar partituras físicas e
encadear sequências de movimentos sem significado aparente, “embora ligados por algo
invisível que não se interrompe, como o élan de uma subjetividade que vai tomando corpo”
(APREA in O BANDO, 2009: 114). Ao integrar o trabalho da corporalidade aos outros planos
de expressão, as sequências criadas anteriormente passam a compor a escrita cênica por meio
de um vocabulário sensível que permeia todo o espetáculo. Para Luca Aprea, essa última fase
é a mais delicada e variável, pois se trata de um confronto-integração com a cena.
A interioridade, por sua vez, relaciona-se ao universo interior do ator, seu imaginário,
convicções, sentimentos, intenções e emoções, aspectos do mundo não-visível que devem ser
trazidos à tona principalmente pelo olhar e pela máscara facial, onde se revelam “a convicção,
o enigma, a sedução e o compromisso dos actores”54. Aqui, tem-se uma noção radical de
54
Extraído de texto escrito por Eugénia Vasques para apresentação d’O Bando na Quadrienal de Praga, em 2011,
intitulado O “Oikos” de O Bando: da comunidade ao ambiente.
201
João Brites interroga-se se é possível construir teatro sem que o ator não esteja a fazer
nada, nem falar. Para ele, pode-se desenvolver a presença cênica partindo-se apenas das
emoções, basta que advenham de um pormenor concreto que ofereça ao ator uma sensação. A
escolha desse pormenor oferece soluções inesperadas, além de revelar novos conteúdos,
conjugando a realidade concreta e a ficção. A explicitação e o prolongamento do efeito visível
provocado pela sensação busca criar o interesse no público. Entretanto, não se deve explicitar
tudo porque dessa forma desfaz o enigma que o mantém ligado ao espectador.
Ainda que o ator não seja o eixo estruturante dos espetáculos de Brites, o personagem é
o elemento que ocupa o espaço cênico e o legitima, além de contribuir na constituição visual
dos trabalhos, principalmente porque a opção pelo grotesco em detrimento de uma exibição
mais realista é a tônica da interpretação. Dessa forma a representação não-realista demanda do
ator a investigação de outras hipóteses e soluções para sua criação que ultrapassem os vícios e
202
A metodologia de interpretação do ator desenvolvida por Brites prevê que ele deva
exercitar em cena gradações entre personagem mais realista (grau menor, próximo da
personagem intermédia) e não-realista (grau maior, caricato, grotesco), não exatamente de
forma linear (crescente ou descrescente), mas impondo rupturas e passagens para graus distintos
e não sequenciais. A isso somam-se os três planos de expressão do ator que podem variar em
combinações, de acordo com o foco e a gradação de cada um deles, criando assimetrias e
dissonâncias na disposição do personagem-figura.
Uma característica mais geral do grotesco é a sua miscibilidade, ou seja, sua capacidade
de combinar de forma tensa elementos atrativos e repulsivos, cômicos e trágicos, absurdos e
horripilantes. O grotesco é uma figura ambígua que se encontra na interseção de várias esferas,
“aproveitando-se do cómico, do trágico, do burlesco, do fantasmático, do bizarro, do ridículo e
do satírico” (SOURIAU apud SIMÕES, 2005: 43). A pesquisadora Maria João Simões mapeou
alguns procedimentos para a construção do grotesco: inflação refere-se ao avolumamento
desmedido visando causar estranheza e repulsa, como a obesidade; contrastando, tem-se o
encolhimento por meio da magreza, do definhamento ou da secura; a convulsão dá-se pelo
esgarçamento e contorcionismo do corpo, que conquista uma rigidez e mecanicidade inusitadas;
e o animalesco conjuga características e/ ou detalhes de corpos de animais para compor a
caricatura de um personagem.
203
Em Os bichos, adaptação d’O Bando de contos de Miguel Torga, os corpos dos atores
“besuntados de muitas camadas de argila, a que se soma algum detalhe do corpo animal (uma
orelha, uma cauda) aparecem e desaparecem, flutuando entre a escuridão e a luz.” (WERNECK,
2009: 12). O procedimento de inflação para a construção de personagens caricaturais deu-se na
montagem de Montedemo, onde cada ator criou o corpo, o pensamento e a voz de seu
personagem a partir de um nariz exagerado.
A filiação de Brites à poética de Brecht constitui-se na relação mais direta entre o ator
e o público em situação de comunicação, pois para ele o ator é, sobretudo, um artista e não
simplesmente um intérprete: portanto devem se assumir e se reconhecer como integrantes de
um mesmo acontecimento (teatral). Consequentemente, ator e personagem divorciam-se, ainda
que haja identificação do primeiro com o segundo, mas principalmente deve estar claro para o
ator que ele finge ser o personagem. Ao aceitar o risco do confronto entre o personagem e o
espectador, exige-se do ator uma maior consciência em cena, além de firmeza, maleabilidade e
prontidão para responder às reações da plateia.
Ainda que a dramaturgia de João Brites privilegie a escolha de textos em discurso direto,
é nos momentos de maior narratividade (discurso indireto) que o ator deve encontrar seu
ouvinte, o espectador, e dirigir-se a ele. Em Jerusalém, há um único momento em que os
personagens narram sobre si mesmos na terceira pessoa (autonarração em discurso indireto ou
o personagem referente), no reencontro de Mylia e Ernst: “MYLIA 39 EXPLICA Mylia sorri;
a voz transformara-se num corpo,/ ERNST 40 EXPLICA Ernst encontrou-a porque veio por
um caminho não material./ MYLIA 39 EXPLICA Mylia pensa: reconheci a tua mão calma.”
204
(JERUSALÉM, 2008: 33). Em outra cena, Mylia e Theodor dirigem-se ao proscênio para
justificar ao público a crise do seu relacionamento conjugal. Utilizando-se da alternância entre
“falar” (diálgo intersubjetivo) e “explicar” (para o público), a cena porta-se como uma janela
que se abre e se fecha ao espectador, transitando entre o dramático e narrativo:
THEODOR 58 FALA Tenho colocado a relação do acção do sistema de defesa ou por qualquer aproximação a
casal de igual para igual, de personalidade para estranheza que é universal –
personalidade. Não é, por (.) não suportar mais a tua
estranheza, mas sim porque tu Mylia começas a ser
perigosa para ti própria.
É verdade que me sinto mais livre ao trabalhar com textos literários, não escritos para
teatro. O teatro não é uma exposição de ideias ou de conversas. [...] Nas adaptações
que faço de um texto, as didascálias e as descrições das ações ou das atmosferas são
tão importantes como os textos em diálogo. De qualquer modo, tenho sempre
assumido que nunca tive a pretensão de reverter para a cena o texto do escritor e
recuperar o imaginário que ele terá tido ao escrevê-lo. (BRITES, 2009a: 271)
Questionado sobre a relação entre hábito de leitura e encenação desses textos, João
Brites revelou: “Isso agora é um problema pra mim. […] Já não consigo ter uma leitura
despreocupada. Cada vez leio mais o que me parece ter à partida relação com o que estou a
investigar e que é passível de me interessar sob o ponto de vista do teatro.” (BRITES, 2011).
De outro lado, ele se mostra um leitor voraz, apaixonado pela literatura em todas as suas
dimensões: poéticas, romanescas, ficcionais, que há tantos anos tem levado a’O Bando uma
parte de sua biblioteca e autores, criando com eles um espaço de leitura.
Assim sendo, destaca-se por hora a adaptação de romances, objeto de investigação deste
trabalho e que no momento de escrita somavam-se quatro criações, das quais apenas uma55 não
entrou no corpus de análise56, que por sua vez se concentrará em Gente feliz com lágrimas
(2002), premiado romance de João de Melo; Ensaio sobre a cegueira (2004), romance do
Prêmio Nobel José Saramago e Jerusalém (2007), romance que projetou Gonçalo M. Tavares.
Observa-se que os romances escolhidos e, consequentemente, seus autores, receberam prêmios
55
O espetáculo Salário de poetas (do romance do brasileiro Ricardo Guilherme Dick) foi realizado em parceira
com a Cia. D’Artes do Brasil, em 2005. Cada grupo montou sua versão do mesmo romance e seus encenadores,
João Brites e Amauri Tangará, realizaram uma parceria colaborativa, o que merece um estudo particular, ficando
de fora do nosso corpus de análise.
56
Um ano depois de concluída esta pesquisa, João Brites retornou ao romance para encenar, finalmente, sua versão
de Jangada de Pedra, de José Saramago. O espetáculo estreou em 2013 no Teatro São Luiz em Lisboa, com
Dramaturgia e Dramatografia de João Brites, Encenação e Cenografia de João Brites e Rui Francisco e Música de
Jorge Salgueiro. Em 2015, o grupo encenou Em nome da terra, romance de Vergílio Ferreira, tendo dramaturgia e
encenação de Miguel Jesus.
207
e distinções, tornando-os muito difundidos junto ao público, o que poderia inibir ou mesmo
suscitar controvérsias quanto à adaptação.
Por outro lado, o mais curioso é perceber que essa trilogia foge de alguns lugares-
comuns do próprio grupo57, acostumado a explorar e ressignificar espaços ao ar livre, espaços
não-teatrais como castelos, pontes, lagos: nesses romances encenados o grupo dirige-se a
espaços fechados (palcos à italiana ou alternativos), como outro tipo de constrangimento. João
Brites não se furta em assumir suas dificuldades para trabalhar nesses lugares, mas define que
sua ação mais imediata é verificar as maneiras e possibilidades de desconstruir a caixa preta
dos teatros. Reconhece que não se sente bem nos palcos convencionais, é como se a estrutura
do palco à italiana atribuísse amarras à sua criação e impedisse uma liberdade na concepção.
57
A utilização do palco convencional e/ ou espaços fechados não se restringe a esses espetáculos, estendendo-se a
outros como Grão de bico, A caça, Quixote, apesar do gosto e da maior preferência pelos espaços não-teatrais e
ao ar livre.
208
O autor escreve também contos, crônicas, poesia, crítica literária e ensaios, tendo
iniciado sua carreira em 1975 com o livro Histórias da resistência. Romance autorreferente,
pois se trata da sua própria escrita, Gente feliz com lágrimas constitui-se de uma tríplice
entidade autoral: João de Melo, Nuno e Rui Zino, que de alguma forma parecem contar uma só
história, a própria biografia. O primeiro, o escritor real cujo nome consta na capa do livro (João
de Melo); o segundo, o personagem-escritor (Nuno) e narrador multifacetado do romance que,
209
por sua vez, comporta a terceira entidade, seu pseudônimo (Rui Zinho). Esse, inclusive, admite
que recorrerá a um pseudônimo para gravar na capa do livro, que é João de Melo. Trata-se de
um encadeamento de máscaras e disfarces utilizados por João de Melo para confundir,
distanciar e aproximar o que pode ser quase uma autobiografia romanceada e ficcionalizada.
As narrativas de João de Melo, Rui Zinho e Nuno se confundem, colam-se ao mesmo tempo
em que se despregam pelo vigor poético da narrativa. Há outros narradores, que emergem pela
escrita de Nuno-Rui Zinho e que são alguns de seus irmãos: pelo recurso da primeira pessoa,
fazem ressaltar essas vozes para contar episódios de suas histórias particulares: Luíz Miguel e
Maria Amélia.
Dessa forma, constrói-se para o leitor um painel diversificado pelos olhares dos vários
narradores que acabam por oferecer um mosaico de uma gente que buscou superar, cada uma a
seu modo, o sofrimento em busca de uma talvez utópica felicidade. Não se pode atribuir uma
unidade à linguagem desse romance, pois ela não se encerra em si mesma e nem se completa:
“Ela consolida-se num misto de vozes variadas e opostas que se desenvolvem e se iluminam,
se renovam e se anulam mutuamente.” (BATISTA, 1990: 48). Criando máscaras de si mesmo,
o escritor macula o “nome de autor” foucaultiano, ao mesmo tempo em que insiste em sua
nomeação, no caso potencializada pela sua multiplicidade. Contudo, o título da obra, assim
como o primeiro capítulo do Livro Primeiro, Um qualquer de nós, reúne todos esses narradores
na ideia de uma “gente feliz com lágrimas”, visto que essas biografias se reunem pelo
sofrimento, pelo passado sombrio, pobre e doloroso na ilha de São Miguel nos Açores.
João de Melo parece revelar alguns aspectos de sua vida por meio da biografia desses
personagens, filhos de um pai autoritário e repressor e uma mãe distante e omissa. A essa
família empresta sua naturalidade açoriana, o mesmo tempo histórico e a leitura desse cotidiano
cruel que se desvenda com tanta riqueza de imagens e sentimentos. A ida para o continente
português aos dez anos de idade para prosseguir estudos num internato, o despertar para a arte
e a política e a luta contra o regime ditatorial, a residência em Lisboa e a carreira de escritor e
professor universitário ligam-no ao personagem Nuno. A Luís Miguel e Maria Amélia, João de
Melo oferece sua experiência na Guerra Colonial em Angola e seus conhecimentos como
enfermeiro, quando lá esteve nesse período turbulento. O contraponto à versão do autor Nuno-
Rui Zinho encontra-se no Livro Quarto, narrado em primeira pessoa por Marta, sua esposa, com
quem teve um relacionamento intenso, mas que não sobreviveu às diferenças individuais. O
autor oferece ao leitor um diálogo, feito de textos mais longos, quase monólogos, entre Nuno e
Marta, que apontam possibilidades de dramaturgia, quando fazem o último acerto de contas
210
antes do divórcio. É a partir desse duo que João Brites estruturará sua versão teatral, ao eleger
como personagens centrais Nuno e Marta.
Gente feliz com lágrimas compõe-se de seis partes ou livros, do primeiro ao zero e
distribuídos ao longo de 480 páginas, estruturando-se numa narrativa à qual não interessa a
cronologia dos acontecimentos, mas uma representação do tempo por meio da memória que se
alterna entre o presente e os vários tempos passados de seus personagens. As pessoas da
narração também se alternam, não apenas nos personagens narradores, mas nos modos de
enunciação entre primeira e terceira pessoa. Esses Livros que dividem a obra acabam por
configurar um todo estilhaçado em que múltiplos discursos e pontos de vista objetivam apurar
um painel da família de Nuno, com destaque para sua biografia, além de revelar aspectos do
contexto histórico e político de Portugal, atravessado pelo regime salazariano, passando pelo
25 de Abril e buscando ainda revelar o país pós-revolução no fim da década de 1980.
No romance o tempo é circular: inicia-se com a narração da partida de Nuno para Lisboa
na infância e encerra-se algumas décadas depois, na velhice, com o seu retorno à casa desabitada
da família. A memória concentra-se na casa, espécie de ventre materno, depósito da infância e
espaço capaz de reunir o presente e o passado, onde se fixaram os episódios marcantes da vida
de Nuno Miguel, reunidos nesse tempo sem tempo circular. A ilha e o continente remetem à
ambiguidade dos sentimentos do narrador-escritor protagonista: ao mesmo tempo em que o
estar fora dela o desestabiliza e oferece medo, por desconhecimento e pela novidade que o
aguarda, também se apresenta como libertação dos punhos duros do pai e da miséria da vida
familiar. A casa-ilha representa, assim, a temporalidade fragmentária do romance, que promove
idas e vindas no enredo e nas biografias de seus personagens, dando relevo às suas
expressividades, às raízes e à família. A infância é tomada como o tempo mais marcante do ser
humano, espaço em que cada um constrói suas referências e firma sua visão de mundo. Quando
Nuno retorna a casa no último livro o círculo temporal se encerra, levando a personagem a
reconciliar-se com sua própria história e compreender a completude do ciclo.
dramaturgia e o romance, cuja transposição é a mais radical entre as três analisadas neste
capítulo: “Pelo fato de ser um romance com mais de quatrocentas páginas, é sempre mais
complicado escolher as partes que constituirão as palavras ditas e as didascálias.” (BRITES,
2009a: 280).
A proposta inicial do espetáculo partiu do contato de Brites com os dois atores, Sara de
Castro e Nelson Monforte, na época seus alunos na ESTC. O interesse do encenador por eles
residia nas personalidades e biografias distintas: Sara é natural de Lisboa, enquanto Nelson
Monforte é dos Açores, ilha onde se passa o romance de João de Melo, cujas distinções
coincidiam com as dos personagens. Portanto, propôs ao grupo a montagem de Gente feliz…,
cuja dramaturgia concentrar-se-ia em Nuno e seu relacionamento amoroso com Marta, que ele
conhece ao se mudar para Lisboa. O espelhamento entre ficção e realidade, entre Nuno/Nelson
e Marta/Sara, torna-se proposital para representar um casal que se amou, mas não conseguiu
superar e vencer as diferenças entre eles:
São duas pessoas muito contrastantes [Nelson e Sara], com imaginários muito
distantes, e até estilos de representação muito diferentes. Pensei que nunca poderiam
se amar na vida, e que não seria fácil reuni-los num palco. Com o conhecimento deles
tentei aproveitar essas diferenças tão dinâmicas e a sua comum entrega e
generosidade. (BRITES, 2009a: 280)
Como já explicitado anteriormente e reforçado pela citação acima, Brites promove uma
adaptação radical do romance ao reduzir o núcleo de personagens a dois. Nuno, por sua vez,
traz outros caracteres à cena, por meio do procedimento da evocação, que compõe uma
polifonia: é o personagem e não o ator que evoca, porque o personagem evocado está ligado à
biografia daquele que o faz surgir, sendo a dramaturgia a responsável por assinalar essa
transferência: “NUNO FAZ DE PAI MORIBUNDO”, “NUNO FAZ DE MÃE PIEDOSA”,
“NUNO FAZ DE IRMÃ MAIS NOVA”, “NUNO FAZ DE PADRE PROVINCIAL”.
Observando-se o espetáculo, apenas Nuno incide na evocação, visto que o romance concentra-
se na sua biografia, estando a de Marta ligada à dele e, portanto, recortada, incompleta. A
inscrição dos nomes dos personagens também recebe qualidades (ou estados emocionais) que
se dirigem à composição por parte dos atores, em que pode se observar diferentes tons ao longo
do espetáculo: “Pai moribundo”, “Pai vigoroso”, “Pai desesperado”, “Pai desvairado”, “Pai
abrutalhado”; “Mãe piedosa”, “Mãe exasperada”, “Mãe divertida”, “Mãe compadecida” e “Mãe
212
remediada”. A escrita dos títulos das cenas-quadros na dramaturgia de Gente feliz com lágrimas
confere à encenação tons líricos e poéticos por meio da escrita de Brites, como “22 horas do
último dia”, “Solidão de velho”, “Recordações da casa”, “Eterno emigrante”, “Felicidade de
apaixonados”, “Perplexidade de namorado”.
Para revelar o desencontro entre os personagens, Brites propõe que o jogo se estabeleça
em direções contrárias: Nuno, muito velho, vai rejuvenescendo enquanto Marta, recém-nascida,
vai crescendo, amadurecendo e envelhecendo. O cruzamento entre Nuno e Marta é operado
213
pelas mãos da dramaturgia que explicita em cada quadro a idade que os personagens têm: Nuno
90 e Marta 3 meses/ Nuno 80 e Marta 2 anos/ Nuno 70 e Marta 8/ Nuno 40 e Marta 16 e assim
sucessivamente. Como o procedimento utilizado pelo escritor norte-americano Scott Fitzgerald
em O curioso caso de Benjamin Button, o espetáculo d’O Bando joga com a passagem do
tempo, cuja interseção se dá no período da juventude (por volta dos 20 anos cada um), quando
se dá o encontro amoroso.
Foi nesse espetáculo que João Brites levou o trabalho que desenvolvia na ESTC sobre
a consciência do ator em cena, naquela altura ainda em nível muito experimental, para o
trabalho artístico d’O Bando. Culminou na investigação e, consequentemente, na concepção
dos três planos de expressão do ator: corporalidade, oralidade e interioridade. Sara de Castro
recorda o processo em que percebia o deslumbramento do trio João Brites, Luca Aprea e Teresa
Lima na construção dessa metodologia, sustentada na busca das sensações concretas, do
exterior para o interior. Os dois atores, como eram egressos recentes da ESTC, tinham
experenciado com o encenador aquelas propostas e conceitos, o que de alguma maneira facilitou
o trabalho de criação. Entretanto, o projeto inaugural desse método dentro do grupo propiciou
um processo rico de descobertas, mas também de muitas dúvidas e angústias.
Quanto à espacialidade, João Brites concebeu para o espaço uma máquina de cena
denominada Relógio, descrito como um “mecanismo desmontável com ponteiros motorizados
que se movimentam em sentidos contrários. O ponteiro mais comprido dá meia volta durante
os 95 minutos que dura a representação / O outro ponteiro mais curto dá uma volta e meia no
mesmo tempo” (O BANDO: 2005: 100). Nesse espaço limitado convivem os dois personagens,
Nuno e Marta, em suas diferentes representações etárias, sustentados por esse mecanismo que
faz transcorrer em tempo real a representação do tempo. A plateia não percebe de imediato a
engrenagem criada para contar aquela história e o movimento quase imperceptível dos estrados.
“Nos primeiros vinte, trinta minutos existe alguma perplexidade, porque é como se as coisas
acontecessem e as pessoas não percebessem o sentido.” (BRITES, 2009a: 281). E é exatamente
nessa altura do espetáculo que a progressão etária dos personagens vai se estabelecendo e o
público começa a adquirir as chaves para a decodificação da encenação, o que lhe confere mais
prazer e interesse em acompanhar a evolução contrária do binômio rejuvenescimento/
envelhecimento. O grande relógio cenográfico aponta ainda para a imagem algutinadora da ilha,
não só aquela de São Miguel onde nasceu Nuno, mas à ilha metafórica do casamento, de uma
relação que pode tanto confortar quanto aprisionar seus amantes.
Em seguida, pediu-se que o ator passasse de velho a bebê, num percurso de vida ao
contrário, representando diversas fases da vida. A atriz, por sua vez, deveria tomar o caminho
oposto, ou seja, de bebê à velha. Ainda não se tratava de recorrer ao romance, mas de uma
improvisação orientada pela dramaturgia. O obstáculo apontado pelo relatório do estágio
referia-se ao desencontro temporal entre os dois personagens quando tivessem a mesma idade.
Disso, infere-se que o tempo particular de cada ator no seu percurso biográfico variava
individualmente, o que parece ter apontado a necessidade da dramaturgia demarcar e fixar as
alterações etárias.
No dia seguinte, foi pedido a Nelson Monforte que interpretasse como Nuno contaria
sua biografia, representando cenicamente as diferentes fases, de bebê a velho, num exercício
que deveria durar 15 minutos. O ator demonstrou insegurança quanto à história do personagem,
levando o grupo de trabalho a distinguir previamente essas etapas: infância nos Açores,
seminário em Lisboa, faculdade e encontro com Marta, vida de casado, velhice. O mesmo
exercício foi proposto a Sara de Castro, contando a história de vida de Marta, que apontou a
escassez no romance de informações sobre a biografia da personagem.
Outra proposição colocava um novo elemento em cena, um espelho, que deveria ser o
espaço confessional dos personagens, vendo sua imagem refletida. O relatório do estágio
assinala os aspectos mais marcantes dos experimentos como a possibilidade do espetáculo
passar-se em tempo real, a imagem do bebê refugiado nos braços da mulher velha (que se tornou
a imagem final do espetáculo), a expressiva utilização das costas quando Nelson representava
o Nuno velho etc. É interessante verificar a processualidade da criação, que parte de um
princípio organizador da dramaturgia, mas está aberta a inúmeras hipóteses. Entretanto, assim
como no trabalho de Freire-Filho, é na sala de ensaio, na realização efetiva, que as questões de
Brites são respondidas, reafirmadas ou desconsideradas.
O projeto inicial era encenar Jangada de pedra, mas o coletivo d’O Bando contrapôs a
proposta com o Ensaio sobre a cegueira, que apresentava alguns desafios, tanto quanto às
resoluções cênicas (multiplicidade de espaços e personagens) como também nos custos mais
abastados para a produção. Entretanto, como o grupo reconhece-se nesse escritor, decidiu por
encená-lo como forma de intervir na sociedade. A escolha de Saramago pelo Teatro O Bando
pode soar polêmica, pelo fato de o escritor não ser bem quisto em seu país, salvo exceções.
Ateu convicto e conhecido por inúmeras controvérsias, entre as quais a de que Portugal deveria
se assumir como uma província espanhola na constituição da península ibérica, o autor ainda é
muito criticado em terras lusas, dividindo opiniões e preferências do público, para o qual
António Lobo Antunes tem melhor aceitação.
Para João Brites, essa hostilidade não passa de “dor-de-cotovelo”, porque alguns
“lobbistas”58 das Letras achavam que outros escritores mereciam o Prêmio Nobel e atacavam
como menor a literatura de Saramago, à medida que a forma se sobrepunha ao conteúdo. Por
isso, o escritor decidiu viver na Espanha ao lado da sua esposa Pilar del Río, em oficial protesto
contra o cerceamento, o desprezo e a censura59 sofridos em Portugal. Saramago encontrou em
Lanzarote um lugar para fincar suas raízes até sua morte, em 2010, na geografia inóspita de
uma ilha vulcânica com pouca vegetação e nenhuma fonte de água potável.
O diretor d’O Bando reflete que o autor não se refugiou numa estética, ao contrário: seu
olhar crítico levou-o à universalização de sua obra, remetendo-a a tensões metafóricas. “Ele
nunca deixou de ter os pés na terra em relação à função que ele teria também como cidadão,
como homem político. É também isso que me agrada nele” (BRITES, 2011). Nesse sentido, a
aversão dos portugueses parece residir, no fundo, à sua ligação explícita com o Partido
58
Trocadilho para se referir aos defensores/ fãs de Lobo Antunes.
59
Sua obra O evangelho segundo Jesus Cristo chegou a ser proibida no país.
217
Comunista e sua identidade ateia, características bastante controversas para um país católico e
conservador. Sem medo de expor suas convicções, de reivindicar uma sociedade mais justa e
de lutar contra o império do capitalismo, o espírito contestador e transgressor de Saramago
encontrou resistência entre os pares. Brites conclui: “Aqueles que saem fora do carreiro acabam
por atrair o olhar desconfiado de quase toda a gente.” (BRITES, 2011).
Neste romance, que depois foi adaptado ao cinema pelo brasileiro Fernando Meirelles e
tem no elenco Juliane Moore, Gael García Bernal e Danny Glover, o Prêmio Nobel narra o
surto de uma epidemia de cegueira branca que acomete os habitantes de uma metrópole,
aprisionados em quarentena pelo Governo com o intuito de conter a peste. Na obra o escritor
faz uma intensa crítica à sociabilidade humana e aos valores que cultiva; persegue a hipótese
do que pode nos acontecer quando nos falta em coletivo um de nossos sentidos primordiais, a
visão. Os personagens não têm nome próprio e são designados pelo narrador pelas suas
características, função social ou particularidades, como o médico, a mulher do médico, a
rapariga dos óculos escuros.
Não há marcas que evidenciem tempo e espaço do enredo, o que torna a obra ainda mais
universal, pois sua fábula poderia ter ocorrido em qualquer cidade de qualquer país. Saramago
propõe ir a fundo no exame das relações sociais: seus personagens, despidos de uma identidade
não nomeada, tornam-se somente humanos. Nas camaratas onde são aprisionados, as máscaras
sociais dos cegos se fazem desnecessárias: nessa babel onde passam a conviver homens,
mulheres, adultos, jovens e velhos, ricos, remediados e pobres, honestos e mau-caráteres, o
instinto de sobrevivência se sobressai. É onde se instauram os conflitos entre os contaminados
pela cegueira branca, divididos entre a preservação da individualidade e a solidariedade de um
coletivo. Aponta a pesquisadora Lívia Lemos Duarte que, “ao utilizar a cegueira como uma
alegoria, o autor configura o estado de crise por que passam as sociedades capitalistas do século
XX, nas quais, freqüentemente, os limites entre civilização e barbárie são rompidos.”
(DUARTE, 2012: 1).
Saramago discute as distinções, ainda que sutis, entre o olhar e o ver: o primeiro trata-
se de uma característica fisiológica, objetiva, ligada ao aparelho humano ocular da visão,
enquanto o outro, de natureza subjetiva, tem a ver com a faculdade da observação, da percepção,
da interpretação da realidade que os olhos captam. A epígrafe do romance (Se podes olhar vê,
se podes ver repara) assinala que o sentido da visão transcende a fisiologia ocular porque sua
ausência permite a expansão do ver para outros sentidos: as aparências do mundo organizado,
218
correto, desfazem-se quando se pode ver além delas. Basta lembrar um dos personagens mais
emblemáticos sobre a cegueira da história do teatro ocidental: Tirésias, o cego adivinho de Rei
Édipo, é capaz de ver sem ver, pois está isento das máscaras e dos artifícios de encobrimento
da realidade. Édipo, por sua vez, fura os próprios olhos ao descobrir seu infortúnio, pois quando
os tinha não foi capaz de ver sua tragédia.
Perseguindo a proposta de colocar em causa a vida em sociedade e dialogar com ela por
meio do público, o Teatro O Bando encontrou na metáfora da cegueira a discussão sobre a perda
das emoções, da frieza e da insensbilidade das relações humanas no contemporâneo. Na
metrópole criada por João Brites as personagens não sentem, são vazias interiormente, apesar
das belas e coloridas vestimentas, dos carros, das posses. A sociedade de massa na qual os
comportamentos estão automatizados e as pessoas não se relacionam profundamente é o leit
motiv da concepção cênico-dramatúrgica. A partir de Saramago, João Brites interroga sobre a
necessidade dessas experiências-limite para o humano novamente se humanizar. Se uma
sociedade incentiva e privilegia a individualidade de forma tão selvagem, estaria a solidariedade
relegada a um recurso ou uma estratégia de sobrevivência? Entretanto, é esse constrangimento
que permite aos personagens voltarem a exercitar suas emoções, a readquirir o sentido da vida
e da existência.
Para operar essa transformação, o encenador concebeu que a interioridade inicial quase
nula dos atores vai migrando num processo de paulatina humanização dos personagens a partir
dos eventos trágicos que os vão acomentendo. De bonecos, sem expressão, com a corporalidade
no registro de movimentos e gestos precisos e formatados, cujos figurinos bem modelados e
220
Assim, por meio do procedimento da coralidade o espetáculo revela sua feitura, pelo
movimento de alternar-se entre a montagem e a desmontagem de agrupamentos, aos quais vão
se somando novos personagens a cada entrada de cegos no hospício. “Este procedimento
cênico-dramatúrgico não só recupera a narratividade da obra, mas abre a cena para que se
produzam efeitos imagéticos surpreendentes, intensificando o princípio fabular da narrativa
original, de modo a se operar um deliberado desvio do realismo” (WERNECK, 2009: 15).
Encontra-se também a recorrência à simultaneidade, por exemplo, na cena em que há carros-
peões parados no sinal enquanto o ladrão conduz o primeiro cego à casa com o intuito de assaltá-
lo. Dessa maneira, João Brites conduz o espectador por paisagens mentais, recriadas pelo
espectador a partir da linguagem cênica, principalmente nas partes iniciais e finais (quando os
cegos fogem do manicômio e percorrem a cidade), já que a ocupação mais total da cenografia,
que recria o espaço de confinamento, dá-se durante a maior parte do espetáculo.
de matar, de amar, mas tais ações aparecem em forma de pulsão primitiva, quase instintiva: “Os
atores têm de ser capazes de representar personagens que se emocionam, mas que não
compreendem a sua emoção, não são capazes de elaborar sentimento. Neste aspecto a leitura
do António Damasio tem sido fundamental na procura e na sustentação de um discurso mais
substantivo quanto ao trabalho dos atores”. (BRITES, 2011). A cena do estupro das mulheres,
por exemplo, constrói um potente clímax dramático, principalmente pelo forte impacto de sua
conformação em coral. A luz oferece contrastes com zonas de sombra que jogam com o mostrar
e o ocultar os corpos semi-desnudos sendo violados, cujos gemidos e gritos de dor perfuram a
grave, tensa e agressiva música.
Brites localizou a representação visual da cegueira em um nevoeiro que aos poucos vai
envolvendo o palco e a plateia durante o espetáculo, criado a partir de jatos de pequenas
partículas d’água que emanavam do urdimento do teatro (o público das primeiras filas recebia
capas para se protegerem). A metáfora escolhida por João Brites para representar cenicamente
a cegueira remete diretamente a Lisboa e a D. Sebastião I, desaparecido numa batalha no século
XVI, cuja lenda prevê que ele regressará num nevoeiro. Todavia no espetáculo de Brites não é
o retorno de um rei que se espera, mas da volta aos valores humanitários. O jogo com o visível
e o invisível da encenação atinge a relação com o público, que vai lentamente cegando-se pelo
“nevoeiro”, num tempo defasado em relação ao dos personagens. Quando no final os
personagens voltam a ver o teatro está encoberto pelo nevoeiro, fazendo a plateia ocupar o lugar
da mulher do médico que no último instante passa a ver tudo branco. Resta ao público senão a
visão de vestígios, sombras, corpos de personagens que flutuam pelo espaço cênico, fantasmas
de si mesmos depois da experiência do purgatório a que foram submetidos.
Essa cenografia é uma máquina de cena nomeada Cegueira, criada por Rui Francisco:
apresenta uma estrutura metálica que se inicia na plateia, por meio de uma passarela que leva
à cloaca no proscênio do palco, um grande buraco de onde emanam cheiros de dejetos, de
excrescência humana e espaço onde são enterrados alguns personagens. Logo depois da cloaca,
ergue-se verticalmente uma rampa curva até o alto da rotunda, onde um corredor cercado por
grades constrói outro espaço de representação. O conjunto passarela-cloaca-rampa-corredor,
acrescido de painéis que simulam cabeceiras das camas das camaratas, configura o espaço
cênico onde os cegos são levados em estado de quarentena e observação.
No início do espetáculo, entretanto, uma rotunda preta esconde a rampa para deixar o
espaço mais limpo e livre para a representação de outros espaços do enredo, como a rua, a casa
222
do médico, o apartamento do primeiro cego, o consultório. A rampa, por sua vez, impõe
diversos constrangimentos aos atores, provocados pelo encenador e pelo cenógrafo a
desenvolver sua atuação em constante estado de desequilíbrio e tensão. Destaca-se ainda uma
ponte elevadiça erguida na segunda parte do espetáculo, “um baloiço central equilibrado em
eixo horizontal” que se move em quatro posições representando espaços distintos como
manicômio, casa da velha, casa do médico, casa do escritor e cena final. A cenografia e a
iluminação investem na sinestesia, por meio do nevoeiro, dos cheiros, da construção de
sensações visuais, e a verticalização do palco do teatro propõe uma relação hierárquica em
decomposição, desestabilizando noções reguladas de alto/baixo, rico/pobre, regra/exceção,
incluído/ excluído. O objeto cenográfico, pelas suas grandes proporções e volume, parecia
“entalado no palco”, nas palavras de João Brites, e por isso chegava a enganar o espectador
quanto ao tamanho da sala, naquele contexto ilusioriamente diminuída. Assim, “O Rui
Francisco, autor do cenário, conseguiu materializar e ideia de perigo eminente e de
claustrofobia”. (BRITES, 2009a: 281).
grandiloquência da banda sonora de Ensaio sobre a cegueira, contudo, foi um desafio para a
encenação, que a aceitou pela possibilidade de ter nela outro constrangimento. Perguntava-se
“Será que este lado mais épico da música não vai abafar a sutileza de outros registos cênicos?”
(BRITES, 2009a: 283). Influenciando a encenação, a música conseguiu equilibrar-se e ser
dosada na construção da sintaxe cênica.
A montagem de Ensaio sobre a cegueira levou quase três anos para se concretizar.
Desde 2001, quando o grupo optou por esse romance em detrimento de Jangada de pedra, o
grupo passou a trabalhar na viabilidade do espetáculo. Em janeiro de 2003, quando a direção
artística se reuniu oficialmente para inicar o processo, já tinham acordado a coprodução com o
Teatro Nacional do Porto na pessoa de Ricardo Pais e encontrado e obtido a autorização de José
Saramago que fez questão de comparecer à estreia. Até a finalização, em 2004, diversas seções
de estágio foram realizadas, espaçadas ao longo do tempo, quando a equipe esteve envolvida
em oficinas e workshops, tanto com artistas do grupo quando externos a ele. Entretanto, o
estágio em Viseu foi crucial e decisivo para toda a equipe.
mais sensível. Entretanto, a presença de uma câmera não isentava o cineasta de algum
constrangimento pela vulnerabilidade dos atores diante dos desafios propostos pelo processo.
“Mostrar o trabalho dos actores, que é muito complexo, exige muita generosidade e implica
grande dificuldade” (SIMÕES in FRANÇA, 2006: 36). Pelos vídeos pode-se acompanhar,
ainda que de forma fragmentada, os distintos aspectos da complexa estrutura de encenação de
Ensaio sobre a cegueira, ainda que o vídeo atinja uma dimensão mais ampla ao se propor a um
ensaio-filme sobre a arte de se fazer teatro.
O livro, vencedor do Prêmio José Saramago, consiste numa sombria fábula sobre a
morte ou sobre a vida encenada como escudo da morte. Sete personagens têm suas tramas,
pensamentos e lembranças cruzados em uma única noite pelas mãos do narrador: Theodor
Busbeck, médico e pesquisador da relação entre o Horror e a História; Mylia, sua mulher
esquizofrênica que consegue ver a alma e que ele internou num hospício cujo diretor é o
60
Trata-se da terceira incursão de Brites pela obra de Gonçalo M. Tavares: em 2005 montou Os Henriques
(adaptação de O senhor Henri) com o Grupo de Teatro As Avozinhas, de Palmela; seguiu-se a montagem do
romance Um homem: Klaus Klump com os alunos da ESTC.
225
antiético Dr. Gomperz; Kaas, filho de Mylia e de Ernst Spengler, outro doente mental da mesma
instituição; Hinnerk, um ex-combatente de guerra e sua noiva, Hanna, uma prostituta que o
sustenta financeiramente. Trata-se do terceiro volume da tetralogia O Reino, os livros pretos
que Gonçalo M. Tavares escreveu sobre o mal, dos quais fazem parte Um Homem: Klaus
Klump, A Máquina de Joseph Walser e Aprender a Rezar na Era da Técnica: todos os romances
não explicitam a ambientação e nem a época em que se passam, mas os nomes de origem
germânica (e a referência à guerra) parecem relacionar essas obras a uma Alemanha
holocáustica.
A boa narrativa pensa, é evidente, e o bom pensamento conta histórias. Pensar não é
mais do que contar uma história que é a história de uma ideia. Uma das coisas que
gostava de desenvolver é esta: porque é que a ideia de narrativa se associa à ideia de
personagem? O pensamento é a história de uma ideia. Alguém que pensa está a ter
uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse
uma personagem que vai se transformando. […] Pensar é uma narrativa. (TAVARES
in MARQUES, 2010: 38)
No romance o escritor raramente utiliza o discurso direto para fazer emergir diálogos
entre os personagens, muitas vezes restritos a seus pensamentos e subtextos. Os capítulos
numerados ganham nos títulos os nomes dos caracteres a que se referem, como se se tratasse
de uma rubrica dramatúrgica para inscrever quem fala ou, no caso do livro, de quem se fala. De
outro lado, os capítulos muitas vezes curtos oferecem-se como peças de um mosaico que
embaralham o passado, o presente e o futuro, até avançar derradeiramente para o desfecho final.
No espetáculo d’O Bando, a representação se dá muitas vezes de forma concomitante, por meio
da dramaturgia que entrecruza temporalidades distintas. De outro lado, alguns lugares referidos
pelo texto do romance são explicitados pelo texto dos personagens ou pelo contexto da cena
que se apresenta: “ERNST 40 EXPLICA Estou sozinho no sótão, já com a janela aberta. Estou
preparado. A janela tem espaço suficiente para um corpo, e o meu corpo quer agir.”.
Simultaneamente, tem-se Mylia em seu apartamento: “MYLIA 39 EXPLICA [depois de um
grito de dor] Não posso fechar os olhos. Tenho medo de morrer.” (JERUSALÉM, 2008: 1, grifo
meu). Os dois, iluminados ao mesmo tempo, mas separadamente pelas letras vazadas, enunciam
para a plateia (e não como num diálogo intersubjetivo) e confirmam a dupla configuração
espacial. Irmanam-se pelo sentimento da morte: um está prestes a suicidar-se (“o meu corpo
quer agir”) enquanto a outra sente muitas dores, mas tem “medo de morrer”. Observa-se que
nessa primeira cena a dicotomia vida e morte, bem e mal, já se anuncia ao espectador.
ocupada”61, muitas vezes sem saída, os montes de engaço são distribuídos de forma que
permitam a abertura de “ruas” ou espaços de trânsito e passagem dos personagens de um canto
a outro do palco. Dessa forma, João Brites desenha uma espacialidade cuja unidade metafórica
remete à cidade, não correspondendo exatamente a nenhum espaço físico concreto, mas ao
espaço interior ocupado por esses personagens. O espaço cênico, dessa maneira, oferece à
encenação uma apropriação integral e simultânea, em que atores, personagens e espectadores
habitam o mesmo mundo.
Assim como Mallarmé (entre outros poetas e artistas plásticos), que investe na tipografia
como recurso significante, visual e espacial, tomando a escrita em sua dimensão corpórea e
concreta, Brites escreve em perspectiva a partir dessa progressão. Sente-se a mão do escritor,
do pintor e do escultor em prol de uma visualidade poético-verbal. Aqui, a máquina de cena,
recorrente nos trabalhos do grupo e naqueles anteriormente analisados, é substituída por uma
máquina-texto, em que a materialidade das palavras, da escrita, sobrepõe à oralidade. Tem-se
tempo e espaço conjugados pela palavra, que é física em seus aspectos sonoros e gráficos. Diz
Maurice Blanchot sobre Marllamé que há “o desejo de substituir a leitura ordinária, na qual se
deve ir de parte em parte, pelo espetáculo de uma fala simultânea em que tudo seria dito ao
mesmo tempo, sem confusão, num brilho total, pacífico, íntimo e enfim uniforme.”
(BLANCHOT, 2005: 85-86).
61
Programa do espetáculo Jerusalém.
229
Brites compõe fortes e enigmáticas imagens ao jogar o conteúdo dos textos com o
contraste de luz e sombra da encenação. A luz pontua mudanças de quadro ou cena, o que
colabora para realizar o discurso cênico promovendo alternâncias de tempo e espaço. “Longe
de estar apenas na origem de efeitos pontuais e limitados, a luz se torna um modo de escrever
os acontecimentos em cena, de conduzir uma narração plástica.” (PICON-VALLIN, 2006: 96).
A grafia de João Brites é a fonte primária de iluminação do espetáculo, sob a qual os
personagens movem-se e se dão a ver ao público pelas frestas das letras iluminadas. À medida
que as palavras e frases projetadas vão diminuindo de tamanho e, portanto, compondo um painel
de escrita, essa fonte de luz também se torna escassa, configurando uma textura visual. O
iluminador João Cachulo acompanha essa evolução do apagar da escrita complementando o
espaço cênico com outras fontes de luz, em sua maioria de tons incandescentes (o que lembra
a iluminação de rua) e em momentos tinge a composição visual mais fechada com cores: verde-
água sobre a área do engaço e vermelho e azul sobre a rotunda de tijolos. Entre sombras e
projeções, portanto, as palavras vazadas escrevem sobre a cenografia e os corpos dos atores,
ampliando a dimensão da escrita para a visualidade. Metaforicamente, a palavra é tomada pela
sua condição de iluminar, de explicar e compartilhar as questões humanas existenciais. Picon-
Vallin lembra também que “Essa estratégia de visibilidade e enquadramento de palavras tem
um função ao mesmo tempo dramatúrgica e estética, visto que é possível utilizar todo tipo de
grafias e tipografias.” (PICON-VALLIN, 2006: 104).
penumbra. Nessas, os pensamentos ressaltam pela potência vocal, pois o rosto dos atores está
obscurecido pela sombra, como se o encenador criasse uma voz em off ao vivo e em cena.
Quando pensam, os personagens recuam, afastam-se, isolam-se: a corporalidade do ator se
fecha e a intenção mais circunspecta sobre o texto falado promove o distanciamento. As outras
prerrogativas não se inserem nessa composição visual contrastada: quando o dramaturgo indica
“falar” ele se refere ao diálogo entre personagens; “evocar” significa trazer à tona outro
personagem.
Assim como nas primeiras, nas últimas cenas do espetáculo que se situam no presente
ficcional, a encenação conjuga todos os personagens distribuídos pelo espaço cênico, mas
concentrados em núcleos (Theodor e Hanna, Hinnerk e Kaas, Mylia e Ernst), explicitando que
estão em lugares diferentes da cidade: o espectador, portanto, é capaz de perceber
simultaneamente onde cada um se encontrava no mesmo momento. Se no início o público
desconhece a relação entre eles, ao final está de posse desse conhecimento, o que amplia sua
compreensão do desfecho. Há ainda na escrita dramatúrgica o procedimento de antecipação da
cena em relação ao texto falado. No primeiro quadro da cena 2 (segunda parte), Theodor
Busbeck leva Mylia ao hospício Georg Rosenberg aos cuidados do doutor Gomperz. Enquanto
os médicos conversam, numa cena paralela Mylia se apresenta a Ernst e o seduz, atracando-o
pelas pernas, o que já anuncia o contato íntimo entre os personagens. No terceiro quadro, que
representa um ano depois, Gomperz chama Busbeck em seu consultório para informar-lhe que
Mylia e Ernst haviam feito sexo na frente de todos do hospício. As cenas interpenetram-se:
basta entrar um elemento novo para o quadro se desfazer e originar um novo. Nesses momentos
torna-se mais visível a qualidade de personagem intermédia na performance dos atores que, eles
mesmos, montam e desmontam as cenas, onde tudo é teatro e representação.
João Brites serve-se de dois recursos para instalar o presente cênico, performatizando
sua encenação: um personagem cuja função é atravessar o espaço empurrando um carrinho onde
232
transporta engaço e um cachorro (real) que passeia pelas montanhas de engaço e serve muitas
vezes de interlocutor para a confissão ou pensamento de alguns personagens. Além de atualizar
os atores e o público quanto ao presente do acontecimento teatral, o cão está associado à morte,
aos infernos e ao mundo subterrâneo em várias mitologias. Segundo o Dicionário de símbolos
o cão é “guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida” 62.
Assim, o cão acompanha esses personagens arruinados, cuja morte os espreita num ambiente
de guerra e destruição humana, desaguado no adolescente Kaas, morto por Hinnerk, que por
sua vez depois será assassinado acidentalmente por Ernst.
A poesia da teatralidade de Jerusalém convoca Mylia a desenhar uma porta com giz
branco sobre a parede de tijolos na tentativa de conseguir abrir a igreja logo no início do
espetáculo. Na última cena, após o assassinato de Hinnerk, ela retorna à igreja procurando
proteger-se, refugiar-se (e até mesmo confessar-se, pois assume o crime em lugar do amante):
a iluminação projeta uma luz recortada sobre o desenho inicial de giz, sugerindo que a igreja
foi aberta. A circularidade da dramaturgia, acompanhando a estrutura do romance, conclui-se
na última cena, cuja imagem retoma a projeção inicial da grade de letras e números. Entretanto,
para encerrar o espetáculo, Brites cria uma imagem coletiva em que participam todos os
personagens, de pé, distribuídos pela cenografia e tenho as cabeças cobertas por sacos,
remetendo ao anonimato, à morte e ao desfalecimento. A abertura da luz sobre o palco
acompanha o descobrir as faces para os agradecimentos ao público. Depois, os personagens
recuperam a primeira posição, vestem os capuzes e a luz da plateia se acende: o espetáculo
terminou, mas o público ainda leva um tempo para perceber que os atores não sairão de cena.
A crítica da revista portuguesa Time Out, assinada por Rui Monteiro, atribuiu quatro
estrelas ao espetáculo e destacou o trabalho dos atores, por responderem às exigências da
montagem, “desenvolvendo os seus papéis e arrastando com desenvoltura as personagens até a
beira do abismo, corporizando o medo como quem tenta exorcizar o terror, legitimando a
cobardia com a vontade de viver apesar de todas as contrariedades”. E sobre a investida e a
postura do grupo assinalou que o encenador e o grupo “criam, em Jerusalém, obra nova com a
determinação experimentalista característica dos seus melhores trabalhos. Não fazem do teatro
62
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 176.
233
uma arma: antes não desistem de lhe acrescentar consciência e responsabilidade social.”
(MONTEIRO, 2008: 52).
De modo mais amplo, a principal questão cênico-dramatúrgica para João Brites, ao que
parece, é a representação do tempo e é sobre o tempo que encontra nos textos narrativos um
importante elemento para a realização de seu pensamento artístico. Se de um lado aproxima-o
de Sherazade, para quem o narrativo é o adiamento da morte, de outro requer a consciência do
presente a partir da conjugação com os tempos passado e futuro na construção de uma percepção
prismática das questões humanas. A narratividade também é um recurso decisivo para o
encontro com o espectador, prática e ética que acompanham seu trabalho e o do grupo, pois
admite a presença do público, demanda sua escuta e ativa seu imaginário. Dessa feita,
cenógrafo, criador das máquinas de cena, dramaturgo, encenador e diretor de atores, pensador
e ativista político, João Brites é um dos artistas de sua geração mais celebrados em seu país e
fora dele. Apesar de praticamente desconhecido no Brasil, o que é um pesar e espero que este
trabalho pode contribuir para sua difusão, foi um dos responsáveis pela renovação do teatro
português e tem se mostrado inquieto e atento às transformações pelas quais passa a cena, a
sociedade e o mundo no percurso de sua carreira.
234
EPÍLOGO
Julho de 2015. Enquanto realizo a revisão final deste texto para publicação, estou no
Rio de Janeiro para estrear um novo espetáculo, EuCaio, solo de Matheus Soriedem com
dramaturgia e encenação minhas, a ser apresentado no projeto Teatro de Cama que leva peças
de pequena estrutura para serem apresentadas dentro de um quarto num apartamento no Morro
do Vidigal para até quinze espectadores por sessão. O solo, um retrato da Ditadura Militar a
partir da vida e obra do escritor Caio Fernando Abreu, tem sido desenvolvido work in progress
desde julho de 2014, inicialmente como uma cena curta, depois uma versão estendida e agora
posso afirmar que estamos próximos à ultima versão, guardadas as devidas atualizações
propostas pela dramaturgia. A criação partiu de uma pesquisa da repressão ao corpo por meio
do medo e da violência, em diálogo com fatos e documentos históricos, músicas, cartas e
fragmentos do primeiro e premiado livro de contos do jovem escritor, O inventário do ir-
remediável de 1970, onde se manifestou em vários textos sobre o terrível momento político que
assolava o país. Os materiais dessa construção cênico-dramatúrgica apontam para os gestos
estruturais de escrever, recortar, colar, costurar e organizar.
Peço licença para escrever no presente, pois esse é o tempo em que residem o teatro e a
escrita, que por sua vez conformam gestos performativos. Se no Prólogo desenvolvi um
memorial do percurso, esse Epílogo dialoga com o agora, em direção a perspectivas de futuro,
caminho de continuidade que se espera de toda pesquisa. Em EuCaio, as questões aqui
examinadas ganham relevo e continuidade na investigação de uma dramaturgia rapsódica e de
um teatro narrativo-performativo, síntese deste trabalho. Tenho apreço pela circularidade
espiralada dos processos, pois não por acaso a revisão final deste livro coincide com a estreia
na cidade do Rio de Janeiro onde desenvolvi o Doutorado e me abriu tantas portas e janelas, o
que me orienta a investir mais na reflexão por meio da escrita como registro e legado para
futuros pesquisadores.
A pesquisa de Narrativas em cena tem como princípio uma investigação sobre a escrita
(cênica e dramatúrgica) e um exercício de escrita (acadêmica e inteletual) que me possibilitou
compreender os seus diversos mecanismos e o reconhecimento dos modos de escrever que
tenho desenvolvido ao longo desse percurso e que agora parecem ter encontrado um sentido,
uma afirmação. O principal desafio deste trabalho foi tentar ampliar o gesto de escrever como
dramaturgo, essa práxis preferencial de reunir textos, fragmentos e colocar em diálogo sobre
235
um mesmo registro. Percepciono agora o quanto a escrita acadêmica e intelectual foi em larga
medida aproximada da escrita dramatúrgica, que venho praticando em diversos espetáculos,
incluindo os que atuo também como encenador: escrever a partir de uma escrita alheia,
referenciada, e que o conjunto organizado, costurado, revelasse qualidades dessa autoria. Ou
melhor, esse processo permitiu um aprendizado ao estudar profundamente o trabalho de
Aderbal Freire-Filho e João Brites e uma tomada de consciência do meu modo de escrever, em
que a autoria costuma localizar-se nas tramas da colcha de retalhos textual: é preciso virá-la do
avesso para encontrar mais precisamente seu autor.
O que isso revela sobre esta autoria? No âmbito aqui examinado, trata-se do sujeito que
exerce a criação, que desenvolve a expressão de seu pensamento, que lê, elabora, escreve e
reescreve, seja a partir de uma escrita própria ou oriunda de escritas externas, mas cujo gesto
determina sua singularidade. Neste caso, revela escolhas e preferências, promove diálogos e
interseções, constrói-se no movimento de coser e descoser; privilegia muitas vezes a abordagem
narrativa-descritiva enquanto persegue os aspectos analíticos que podem ser extraídos,
oscilando entre o reconhecimento/ identificação e o estranhamento necessários para o melhor
desenvolvimento do trabalho. Disso resultou um intenso exercício para permitir que a autoria,
o espaço de fala, não seja apenas concedida a outrem, mas que faça emergir um pensamento
autônomo, uma observação sobre o próprio trabalho e sobre o ofício dos encenadores Aderbal
Freire-Filho e João Brites.
No balanço geral, tem-se aqui uma pesquisa, um campo de estudos, duas áreas de
conhecimento, dois encenadores-autores e seus coletivos de criação, duas poéticas, seis
romances e respectivas dramaturgias e espetáculos, dois países, uma língua e duas sonoridades
e um pesquisador-artista que simultaneamente busca o confronto entre autorias e é confrontado
por elas. Não posso me eximir dessa qualidade dupla e ambígua, por isso busco no resultado
desse percurso (até o presente) algumas pistas para a compreensão desse processo investigativo.
Começa-se pelo gosto pela leitura, pela narrativa e pela faculdade da imaginação: não se trata
apenas de uma contraposição ao texto dramático tradicional, nem mesmo de buscar soluções a
possíveis crises da escrita teatral: está-se falando, sobretudo, de um espaço de comunicação
236
entre palco e plateia, da diluição de fronteiras entre o ator e o espectador que conquistam no
acontecimento teatral uma prática milenar de oralização/ vocalização/ performatização de
textos narrativos. Estão ligados profundamente de um lado aos rapsodos gregos e de outro aos
contadores de história, dos quais Sherazade aparece como emblema fundador de uma prática
tanto ocidental quanto oriental, que tem atravessado muitas gerações e, ao que parece, não tende
a desaparecer, mas, ao contrário, se fortalecer dado ao crescente número de espetáculos que têm
tomado como objeto cênico-dramatúrgico textos não-teatrais.
Ter vivido em Lisboa durante seis meses não apenas proporcionou a aproximação com
uma de nossas matrizes culturais e tantos encontros, trocas e interlocuções, mas principalmente
o contato mais estreito com João Brites e o Teatro O Bando: pela primeira vez estava
acompanhando o trabalho de um encenador, na condição de pesquisador e também de aprendiz,
tendo oportunidade de confrontar minhas experiências com a sua prática e o seu pensamento.
Identifico-me com os modos de encontro com o público, que não é apenas objeto-alvo da
representação, mas um integrante ativo e decisivo nesse processo. Estando com eles, assalta o
desejo de uma vivência mais integral do trabalho artístico, que a condição de estar em grupo (e
dedicar-se a ele) pode proporcionar. Seja nos almoços-convívio ou nos ensaios abertos na sede
do grupo, o espírito de comunidade contagia os participantes, que têm a oportunidade de
conversar sobre os trabalhos, celebrar o encontro com a arte e seus princípios humanistas e
sociais. Reconheço-me nesse desejo de encontro e convivência com os espectadores, e espero
que eles possam sair dessa condição anônima e coletivizada para uma abordagem mais pessoal,
pois as fronteiras entre vida e arte podem ser diluídas, fundidas.
Como João Brites não estava dirigindo nenhum espetáculo no período em que estive em
terras lusas, o estágio docente e artístico na ESTC possibilitou-me observar seu trabalho de
direção de atores, que tem conceitos e determinações desenvolvidos ao longo de sua trajetória
241
artística, e que parte da consciência do ator em cena. Interessa-me esse ator-artista que ele
procura, já que cada vez mais busco conjugar nas minhas encenações o ator e o personagem e
as ambiguidades que de suas combinações podem resultar. Seu trabalho a partir de uma
materialidade concreta, que se explicita para o espectador, provoca meu pensamento e me
propõe descobertas no campo da atuação. Percebia durante as aulas a dificuldade dos jovens
alunos-atores, acostumados a um tipo de interpretação mais realista, que parte da interioridade,
das emoções, para a exterioridade.
atentos à percepção externa e ao diálogo com outros artistas e pensadores, o que dessacralizou
para mim a imagem de um encenador-autor que detém conhecimentos não-partilháveis. O
hábito de sempre colocar em causa suas próprias convicções simultaneamente humaniza sua
figura e manifesta sua grandeza.
No Brasil, o contato com Aderbal Freire-Filho deu-se de modo distinto, quase impessoal
e formal, o que também é eficaz para uma pesquisa. Além da troca de alguns e-mails, estivemos
juntos em dois encontros: o primeiro, em fins de 2009, para buscar os DVDs dos espetáculos,
quando gentilmente me apresentou as instalações do Teatro Poeira e mencionou o espetáculo
Moby Dick cuja feitura o estava ocupando demasiadamente naqueles tempos. O segundo
encontro, que resistiu às dificuldades de sua agenda atribulada de compromissos, realizou-se
em seu apartamento para a entrevista de conclusão da pesquisa sobre o romance-em-cena.
Durante três horas, pude perceber por trás de sua figura amplamente reconhecida e
requisitada um homem simples, de abastada biblioteca de leitura, devotamente apaixonado por
seu ofício, que se formou sobre o piso do palco, como ator, dramaturgo e encenador. As
questões dirigidas a ele não apenas cumpriam um protocolo de pesquisa, mas foram
transformadas em importantes interlocuções, a partir do confronto de ideias e pensamentos.
Apesar do cansaço explícito que se encontrava depois de um dia intenso de trabalho e
preparação para mudança de residência, Aderbal revelou-se gentil e interessado na pesquisa
que nos tinha aproximado. Desse contato, revelou-se o homem por trás do artista; ampliou
minha percepção do palco como lugar sagrado, de magia e encantamento, espaço em que todos
os mundos são possíveis e a vida pode ser recriada, repensada, questionada, atualizada.
A escrita cênica não é apenas uma organização dos materiais de cena e de texto, mas se
dirige à proposição de um sentido para o espetáculo como um todo. Escrever é criar, é
comunicar uma ideia (sobre a vida, o mundo, o humano) por meio de uma linguagem concreta
e oferecê-la ao seu receptor, destinatário da produção de toda obra artística. Penso que a
dramaturgia, ou escrita cênica, independentemente de sua origem ou situação de escrita, é o
guia que conduz o cego (o público). Aliada à encenação, como a mão direita e a esquerda, não
se refere exclusivamente ao que é falado pelos atores, ao contrário: o espectador quando chega
para um espetáculo é como um cego a entrar num ambiente de escuridão profunda. Ele não sabe
o que o aguarda e, portanto, é a escrita cênico-dramatúrgica que o guiará durante o tempo em
que reside (ou resiste?) no espaço da representação.
Tomo a escrita cênica como o guia que conduz através de imagens, sensações, palavras
e gestos que se oferecem à construção do sentido do público. Por vezes, a dramaturgia pode
abandonar o cego, deixar que ele experencie por si alguns momentos, mas depois deve retomar
a condução, pois são elementos interdependentes no acontecimento teatral. Não há nada mais
frustrante para a plateia que um espetáculo que se desenvolve à parte no palco e mantém-na
244
É hora de colocar o ponto final, ainda que doa a sensação invitável de inacabamento, de
incompletude de toda pesquisa. Entretanto, não posso encerrar sem destacar a profunda
cooperação e parceria de artistas e grupos nessa trajetória, os meus “coletivos de afinidade”
com quem pude trabalhar até o momento, Grupo Teatral Pannus Finis, Cia. de Outros Atores,
Cia. Pierrot Lunar e mais recentemente Mutanti, pelo privilégio de podermos testar e
experimentar aspectos da investigação em montagens, possibilitando o cruzamento das
descobertas nos dois níveis, teórico e prático. Assim, antevejo o futuro: o percurso avança,
agora renovado e estimulado pelos conhecimentos e reflexões adquiridos, em direção a novas
criações e desafios.
Esta publicação culmina num ritual de passagem: a vida está chamando, é preciso seguir.
Penso no gosto pela narrativa e na milenaridade de se contar histórias, que levou o diretor
Robert Le Page a declarar que o teatro deve reestabelecer o contato com o público, no sentido
de comunhão e compartilhamento, pois as pessoas ainda vão ao teatro para se sentar ao redor
do fogo e ouvir histórias. Assim, este ponto final não é uma conclusão, porque essa relação
entre teoria e prática não se desfaz, está em curso, em desenvolvimento, work in progress na
245
reflexão e na sala de ensaio. Fecho o notebook para entrar em mais um palco vazio, espaço onde
a beleza do teatro se manifesta e se renova.
246
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VIDEOGRAFIA
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Direção João Brites. Elenco: Adelaide João, Ana Brandão,
Antónia Terrinha (et al). Porto: Acervo Teatro O Bando, 2004. 2 DVD (194 min.), som direto,
cor.
ESTÁGIO ORALIDADE JERUSALÉM. Com Teresa Lima. Elenco: Nicolas Brites, Horácio
Manoel, Rosinda Costa (et al). Cinegrafia: Miguel Jesus. Palmela: Acervo Teatro O Bando, s/d.
1 DVD (62 min), som direto, cor.
GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS. Direção: João Brites. Elenco: Sara de Castro e Nelson
Monforte. Palmela, 2002. 1 DVD (96 min), som estéreo, cor.
GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS (Vídeo promocional). Direção: João Brites. Elenco: Sara
de Castro e Nelson Monforte. Palmela, 2002. 1 DVD (6 min), som estéreo, cor.
JERUSALÉM. Direção: João Brites. Elenco: Nicolas Brites, Horácio Manoel, Rosinda Costa
(et al) Lisboa: Acervo Teatro O Bando, 2008. 1 DVD (91 min), som digital, cor.
O QUE DIZ MOLERO. Edição: Daniela Ramalho. Direção: Aderbal Freire-Filho. Elenco:
Chico Diaz, Claudio Mendes, Orã Figueiredo, Augusto Madeira, Raquel Iantas, Gillray
Coutinho. Rio de Janeiro: TV Zero, 2003. 1 DVD (29 min), som digital, cor, legendado.
SE PODES OLHAR VÊ. SE PODES VER REPARA. Direção: Rui Simões. Elenco: Adelaide
João, Ana Brandão, Antónia Terrinha (et al). Lisboa: Real Ficção, 2006. 1 DVD (90 min), som
digital, cor, legendado.
262
O púcaro búlgaro
Romance de Campos de Carvalho
Dramaturgia e encenação: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Augusto Madeira, Cândido Damm, Gillray Coutinho, Ísio Ghelman e Raquel Iantas.
Cenografia: Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque
Figurinos: Biza Vianna
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Tato Taborda
Adereços: José Maçaira e Luiz Amadi
Preparação corporal: Duda Maia
Realização: Teatro Poeira – Marieta Severo & Andréa Beltrão
Estreia: 1º de junho de 2006, Teatro Poeira, Rio de Janeiro (RJ)
Elenco: Adelaide João, Ana Brandão, Antónia Terrinha, Gonçalo Amorim, Horácio Manuel,
João Ricardo, Luís Godinho, Maria João Pereira, Martinho Silva, Miguel Moreira, Mónica
Garnel, Nicolas Brites, Paula Só, Pedro Gil, Raul Atalaia, Rita Calçada, Romeu Costa, Sabri
Lucas, Sara Belo, Sílvia Filipe, Dulce Silva e Rafael Freire
Composição Musical: Jorge Salgueiro
Espaço cênico: Rui Francisco
Oralidade: Teresa Lima
Corporalidade: Luca Aprea
Assistência de encenação: Miguel Moreira
Figurinos: Maria Matteucci
Adereços: Clara Bento
Fotografia em adereços: Lia Costa Carvalho
Desenho de luz: Cristina Piedade
Sonoplastia: Sérgio Milhano
Estreia: 6 de maio de 2004, Teatro Nacional São João, Porto.
Jerusalém
Romance de Gonçalo M. Tavares
Dramaturgia, Encenação e Espaço cênico: João Brites
Corporalidade: Luca Aprea
Oralidade: Teresa Lima
Análise literária e dramatúrgica: Rui Pina Coelho
Figurinos e adereços: Clara Bento
Desenho de luz: João Cachulo
Elenco: Cristiana Castro, Horácio Manuel, João Barbosa, Nicolas Brites, Raul Atalaia, Rosinda
Costa e Suzana Branco
Assistência à direcção: Sara de Castro
Estreia: 23 de outubro de 2008, Centro Cultural Belém, Lisboa.