Você está na página 1de 264

1

JUAREZ GUIMARÃES DIAS

NARRATIVAS EM CENA:

Aderbal Freire-Filho (Brasil) e João Brites (Portugal)

Rio de Janeiro
2015
2

Para Marco Antonio Cruz,


em sua grandeza de Homem de Teatro.
3

Os pensamentos valem
se estão em movimento.
Aderbal Freire-Filho

Os processos são divinos,


os resultados são humanos.
João Brites
4

SUMÁRIO

PREFÁCIO
Duas bibliotecas e um oceano em meio

PRÓLOGO
Aspectos de uma trajetória artística
Percursos de uma investigação acadêmica

1. NARRATIVAS EM CENA
A narrativização do palco e a consolidação do encenador-autor: a escrita cênica
nas tensões entre texto e representação
Uma cena que se abre e se revela: a fratura do drama tradicional, o Teatro Épico e a
dramaturgia rapsódica
A biblioteca do encenador-autor: modos de leitura e escrita cênica
O romance como gênero inacabado: o presente em transformação
A linguagem romanesca e suas interseções com o drama
A performatividade narrativa na construção de novas relações entre palco e plateia
Ver e ouvir o texto: relações entre oralidade, escrita, leitura e performance
Performatividade e teatralidade na formação de um teatro narrativo-performativo
A palavra no centro da performance narrativa: vocalidade e corporalidade
Procedimentos de encenação de textos narrativos: a dramaturgia e o ator como
elementos estruturantes

2. ADERBAL FREIRE-FILHO, O CENTRO DE DEMOLIÇÃO E


CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO E O ROMANCE-EM-CENA
Aderbal (Júnior) Freire-Filho: o encenador da palavra
Pensamento artístico e modos de criação
O Centro de Demolição e Construção do Espetáculo: um coletivo de afinidades
A gramática do romance-em-cena: do livro ao espetáculo
“A mulher carioca aos 22 anos” (1990): a encenação carnavalesca
“O que diz Molero” (2003): a memória dos objetos
“O púcaro búlgaro” (2006): a imaginação sem limites
Procedimentos e recorrências no romance-em-cena: uma linguagem em
desenvolvimento
No reino das palavras: procedimentos de dramaturgia
A performatividade narrativa e a instabilidade do personagem: procedimentos de
atuação
Travestimentos, caricaturas e histrionismo: procedimentos de comicidade
Ilustração versus subversão: procedimentos de encenação e vocalização do texto

3. JOÃO BRITES, O TEATRO O BANDO E OS ROMANCES ENCENADOS


Breve panorama da cena portuguesa no século XX e início do XXI: o moderno tardio e
o contemporâneo sem fronteiras
5

O Teatro O Bando: o estar em grupo como modus vivendis, artístico e político


A animação, o teatro e a rua: princípios fundadores do grupo
Do coletivismo ao singularismo: a ética do trabalho em grupo
Os manifestos e a inscrição das (in)certezas: a dramaturgia em movimento
João Brites: a encenação como escrita e pintura tridimensional
A poética da cena britiana: artifícios, constrangimentos e o conflito na atualização do
tempo presente
Procedimentos de criação: estágios, textos de trabalho, a tríade dramaturgia-
cenografia-encenação e a consciência do ator em cena
A literatura como fuga dos lugares-comuns: os romances encenados
“Gente feliz com lágrimas” (2002): o tempo-ilha e a circularidade narrativa
“Ensaio sobre a cegueira” (2004): o visível e o invisível na fábula de Saramago
“Jerusalém” (2008): a palavra que ilumina sobre os escombros

EPÍLOGO
Reflexões sobre pontos de chegada
Interlocuções na prospecção de um futuro

BIBLIOGRAFIA
VIDEOGRAFIA
FICHA TÉCNICA DOS ESPETÁCULOS
6

PREFÁCIO

Duas bibliotecas e um oceano em meio

Maria Helena Werneck

Há cerca de um século, homens das letras inventaram o projeto de uma publicação que
pudesse fazer uma ponte sobre o mar para unir Brasil e Portugal através das artes, da cultura e
da história. Era a Revista Atlântida, editada entre 1915 e 1920, obra acalentada pelo escritor
João do Rio e pelo poeta João de Barros. Ambos acreditavam no projeto de uma comunidade
luso-brasileira de inteligência e sentimentos. Mas o ambiente se revelava pouco propício para
esta utopia nostálgica. Havia, já na época, um clima de mútuo desinteresse entre os países e, na
perspectiva brasileira, de evidente antagonismo aos imigrantes portugueses. A combinação de
ideais estéticos modernistas e posições políticas de teor nacionalista, dentre outros motivos,
acabou por inviabilizar o projeto da publicação.

O livro Narrativas em cena: Aderbal Freire-Filho (Brasil) e João Brites (Portugal)


redimensiona o interesse na aproximação entre Brasil e Portugal pela via da pesquisa
acadêmica, disposta a examinar, de modo contrastivo, o teatro que se dedica a experimentações
cênicas oriundas da leitura de romances. O estudo se lança sobre este material textual incomum
e, ao mesmo tempo, desafiador para a arte teatral, se pensarmos o século XX como aquele que
propagou definitivamente a distância entre a literatura dramática e o teatro como encenação.

Aderbal Freire-Filho e João Brites, cujos trabalhos constituem o objeto de análise do


livro, são leitores-encenadores de grande projeção em seus países e continentes. Manejam um
acervo particular de narrativas, de forma a moldarem poéticas arrebatadoras, sempre em
trabalhos compartilhados com atores e coletivos de criação. Sem nunca se terem encontrado, os
dois criadores se tornam inesperadamente próximos e extraordinariamente singulares ao longo
deste livro, cujo autor, também um artista, tomou a tarefa científica como oportunidade de
diálogo e formação entre pares das artes cênicas.

O estudo, posto à disposição dos leitores dos dois países, exibe, em primeiro lugar, a
disciplina necessária para buscar no século XX as rotações estéticas que permitiram a abertura
do terreno do drama para o narrativo. A síntese histórica é didática e passa em revista uma vasta
7

e indispensável bibliografia dos estudos de teatro, atenta, ainda, ao propósito de descrever os


modos de desarmar o campo do dramático e de introduzir dois conceitos-chave: o de teatro
épico e de dramaturgia rapsódica. A inspiração propositiva do sistema brechtiano combina-se
com o mosaico dos modos rapsódicos de escrita encontrados por Sarrazac ao analisar a
produção de textos teatrais franceses da segunda metade do século XIX. O romance não é visto
apenas como gênero de origens e variações passíveis de descrição, mas também como discurso
de larga inventiva, em que se abrigam não só cortes e temporalidades diversas, mas também
múltiplo espectro de vozes que conduz ou abre dispersivamente os processos de narração.

O direcionamento mais especificamente sincrônico em direção ao conjunto de


espetáculos dirigidos por Aderbal Freire-Filho e João Brites faz o pesquisador armar um
intrincado arcabouço de categorias teóricas, necessário para se perceberem as rotações
conceituais que definem o teatro contemporâneo. A relação entre narrativa e performatividade
indica que o foco da análise foi guiado para os efeitos cênicos decorrentes de novos
investimentos no trabalho do ator, já direcionado tanto pelo necessário salto da palavra da
página para a densidade nova do espaço, quanto pela substituição das noções clássicas de
personagens e representação em prol da concepção de figuras, a serem percebidas como
suportes corporais de imagens sonoras e visuais.

Todo este repertório histórico e teórico adquire utilização dinâmica quando o livro se
aproxima dos espetáculos e do trabalho da cena. A empiria se confronta com o horizonte
projetado. Surgem, então, novos pontos de observação e conceitos para a análise, desta feita
desentranhados do corpus que o pesquisador tem diante de si. O pensamento dos espetáculos é
descrito sempre acompanhado de ideias que os encenadores propagam em entrevistas e textos.

O conceito de edição, em suas conexões com o cinema e com o trabalho visando a tornar
o texto legível para publicação, ganha força operatória. Destaca-se como uma das vias de leitura
de procedimentos diversos de produção dramatúrgica quando se tem um romance que ganhará
novas materialidades. No entanto antes de se dedicar ao estudo de espetáculos, generosamente,
o autor nos forneça preciosa informação sobre cada um dos encenadores e suas trajetórias.

O leitor, de um lado ou do outro do Atlântico, conhecerá o perfil do diretor Aderbal


Freire-Filho que, como outros brasileiros, afasta-se de sua terra natal, no Nordeste. O exílio no
Rio de Janeiro se prolonga e se torna opção definitiva para quem busca fazer do teatro a sua
arte, atravessando fronteiras e línguas, entranhando-se em países, ainda mais ao sul, na América
Latina. A fidelidade e a reinvenção da plataforma de Brecht no trabalho do diretor vão-se
8

delineando paulatinamente. Décadas depois de sua opção definitiva pelo teatro, surge o
romance-em-cena, conceito criado por Aderbal para definir alguns de seus espetáculos, cuja
genealogia o autor deste livro traça com apuro. Registra-se, nesse sentido, a experiência do
Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, companhia que expôs posições políticas
claras em relação a modos de produção teatral, tendo exercido papel decisivo na formação de
um grupo especialmente criativo de atores, além de ter provocado grande fascínio sobre o
público carioca, entre 1989 e 1996.

No Centro de Demolição, no final dos anos oitenta, surge a primeira experiência de abrir
em cenas, como um livro se abre em páginas, o texto de um romance – A mulher carioca aos
22 anos, de João de Minas. Outros dois espetáculos – O que diz Molero, de Dinis Machado, e
O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho, também analisados no livro, retomam uma década
depois a pesquisa iniciada. E nas três produções estão parceiros do “coletivo de afinidades”,
com o qual Aderbal Freire-Filho não abre mão de trabalhar. Ao defrontar-se com o encenador,
seja na plateia ou nas inúmeras “sessões” de vídeos dos espetáculos, seja nas entrevistas
realizadas, que também incluíram atores dos romances-em-cena, instala-se o ponto de vista
compartilhado entre criadores e o pesquisador-artista.

Nas páginas em que analisa os espetáculos encenados por Freire-Filho em teatros do


Rio de Janeiro, o autor realiza, com rara competência, estudos que combinam a análise
semiológica do espaço cênico com minucioso cotejo de romances e textos dramatúrgicos
reconstituídos a partir das gravações em vídeo. O resultado é o estabelecimento das gramáticas
narrativas dos espetáculos e a análise, baseada em reconstituição a posteriori, da escrita cênica,
concebida em processos intensos de criação com o conjunto de atores. Nesta tarefa de
reconstituição arqueológica da dramaturgia dos espetáculos percebe-se a segurança do
pesquisador em transitar da teoria literária para a teoria do teatro em busca de decifrar a
teatralidade em estado nascente. Além disso, como diretor que é, o autor percebe o rendimento
performativo da dramaturgia no complexo sistema de atuação do espetáculo. Descreve-se o
material cênico e dramatúrgico para desvendar o processo de criação, para se refazerem
movimentos, gestos e falas dos atores, para se admirar o mestre.

O estudo dos espetáculos do encenador João Brites assenta-se sobre bases diferentes das
que alicerçam o caso brasileiro, porque é fruto de uma viagem de pesquisa a Lisboa e seus
arredores. Se havia bibliotecas a palmilhar, também havia de se compartilhar com o diretor a
9

prática do ensino de atuação, além de se desfrutar da imersão no cotidiano de criação e gestão


em um grupo de teatro, O Bando, merecedor de incontestável reconhecimento em Portugal.
O livro ganha um novo direcionamento quando se abre para a apresentação da cena
portuguesa contemporânea, cujos múltiplos aspectos estão sintetizados na precisa designação
“o moderno tardio e o contemporâneo sem fronteiras”. As chamadas de atenção para o
novíssimo trabalho de dramaturgos e encenadores, que convivem com a arte de grupos que se
sedimentaram em décadas posteriores à Revolução dos Cravos são convites para futuras
travessias do oceano.
O perfil de João Brites, o encenador e diretor artístico do coletivo O Bando, vai da
infância vivida com simplicidade à juventude no exílio em Bruxelas, em tempos duríssimos da
ditadura em Portugal. No retorno ao país, o artista encaminha-se no sentido do teatro
comunitário para a infância, com abertura para a animação cultural e o propósito de reunir
pessoas, adultos também, de modo a compartilhar histórias originárias do acervo popular e
literário da língua portuguesa. Era tempo de recomeçar e construir laços sociais e artísticos, de
fazer teatro de guerrilha.
A mudança, tão esperada, acerta relógios e ritmos. Para pequenos ou grandes públicos,
as mais de cem encenações concebidas por Brites vão tomando formatos diversos e
surpreendentes, como aquela de que participou o autor do livro, no centro de Lisboa em 2010,
para comemorar os 100 anos da República em Portugal, ou como o tradicional Pino do Verão,
na encosta do Castelo de Palmela, na vizinhança da sede do coletivo. Mesmo acolhendo
mudanças, o grupo permanece fiel a princípios éticos e artísticos de manter o coletivismo e de
sempre inventar novas singularidades a cada nova proposta. Um percurso historicamente
acompanhado de balanços e manifestos, que deram origem a vários livros.
Tendo diante de si um pensador do teatro que atualiza a cada nova produção certos
princípios como o de encenação como escrita e pintura tridimensional, o autor do livro investiga
e descreve a trama de conceitos que norteia a diretiva criativa do encenador, sem renunciar ao
encantamento com as máquinas de cena, dispositivos cênicos que atualizam desenhos de
encenação e produzem efeitos de teatralidade particulares no trabalho d’ O Bando. Diante das
várias máquinas de cena espalhadas “ao relento”, na encosta do Vale, ao fundo da sede, não se
furta a analisar seu rendimento estético no projeto cênico de que participavam, mesmo se, agora,
estão carcomidas pelo tempo, estranhamente integradas à paisagem.
Ao abordar três espetáculos cuja dramaturgia incorpora o texto de romances, o autor vai
ao encontro de poéticas fortes. As narrativas de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago,
Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo, e Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, são
10

submetidas a reescrituras em que sobressaem o trabalho potente de criação dramatúrgica,


orientado pela construção de uma visualidade sempre impactante por seu teor escultórico e por
sua força determinante sobre as demais linguagens postas em cena.
No correr da pesquisa, o autor depara-se com um material documental precioso: os
Textos de Trabalho, concebidos por João Brites para orientar todo o processo de encenação.
Impossível ficar indiferente às cartografias de cenas, desenhadas e redesenhadas algumas vezes
ao longo do período em que acontece a montagem dos espetáculos. Lá estão as principais
operações dramatúrgicas, de decisiva interferência nos romances, a fonte textual de onde se
parte. Ao exercício preciso de cada composição escritural de Brites, corresponde o exame
descritivo perspicaz feito pelo pesquisador, que analisa os múltiplos procedimentos
dramatúrgicos registrados em quatro colunas: a primeira apresenta o texto a ser falado pelos
personagens e os diálogos; a segunda inclui a descrição da ação, títulos das cenas/quadros,
rubricas e partitura gestual; a terceira busca apontar os efeitos pretendidos na cena (música, luz,
projeções) e a última indica a cronologia temporal do espetáculo. Nada parece escapar ao
estudo, que anota os modos de construção de diálogos, dramatúrgicos e cênicos; as vozes
narrativas assumidas por personagens; a redação de rubricas de encenação e orientações de
atuação, entre outras intervenções escriturais.
Tirando partido da experiência de ter acompanhado passo a passo o trabalho de Brites
com estudantes-atores, o autor analisa a metodologia estruturada que tem na ideia de ator
consciente, inspirada em proposições da neurociência, sua principal alavanca. Mas também
procura levantar outros conceitos como o de personagem intermédio e avaliar a utilização do
conceito de planos expressivos do ator na cena, como os de oralidade, corporalidade e
interioridade. Aos poucos, revela-se a prática do trabalho harmonioso da equipe de criação do
coletivo, ativada a cada nova montagem.
Nas encenações de romances dirigidas por Brites, por conta das incisivas intervenções
do diretor na dramaturgia e na encenação, a obra ressurge radicalmente editada e subtraída de
personagens e fios narrativos, como em Gente Feliz com Lágrimas; superdimensionada em seus
aspectos de fábula não apenas violentamente visual, mas também monumentalmente musical
(partitura de Jorge Salgueiro) em Ensaio sobre a Cegueira; redirecionada, em Jerusalém, pela
combinação de diferentes canais de recepção, quando atores e público são nivelados pelo
engaço, a sobra da videira após a macega da uva ter sido concluída, que domina todo o espaço
cênico, marcado ainda, pelo reaparecimento da matéria caligráfica do texto literário, como se
as materialidades do texto literário e da escritura cênica encontrassem um território comum, de
plasticidade irresistível.
11

Diante de tanta inquietude e inteligência nas cenas contemporâneas do Brasil e de


Portugal, o autor não parece exausto ao término do livro. Afinal, através de pesquisa acadêmica,
alimentou-se de referências estéticas, ampliou sua rede de afinidades eletivas. A tarefa foi
cumprida com a firme disposição dos schollars, sem abrir mão da persistente disponibilidade
dos intrépidos criadores do palco. Os leitores e os espectadores que têm o oceano em meio
podem, de fato, se alegrar com a arte literária e a arte teatral de seus países.
12

PRÓLOGO

Este livro é o resultado da minha pesquisa de Doutorado, que recebeu o título “A


encenação de romances no teatro contemporâneo: Aderbal Freire-Filho (Brasil) e João Brites
(Portugal)”, e agora recebe tratamento editorial. Foi defendida na Pós-graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em março de 2012 e
indicada pelo Programa ao Prêmio Capes de Tese 2013. O trabalho propõe um exame teórico-
analítico de espetáculos contemporâneos que encenam romances literários e seus processos de
escrita cênica, tendo como objetos de estudo o trabalho do brasileiro Aderbal Freire-Filho e do
português João Brites. Investiga, portanto, um teatro de caráter narrativo e performativo que
toma como matéria cênico-dramatúrgica obras à priori destinadas à leitura individual e
silenciosa, transportando-as para a linguagem verbal, sonora e visual do teatro, em que o ator é
o eixo principal da comunicação dessa textualidade com o espectador.

A matéria textual da narrativa distingue e aponta a relação do teatro contemporâneo com


a palavra, num cenário em que a ideia de texto ampliou sua potencialidade para outros sistemas
de significação como a própria cena, a cenografia, a iluminação, a virtualidade, pois pretende
torná-la ação cênica e vocal, imagem, sonoridade, ao saltar das páginas de um livro e eclodir
em teatralidade. Parte-se dos conceitos de “escrita cênica”, “dramaturgia rapsódica” e “teatro
narrativo-performativo” para compreender procedimentos e operações de dramaturgia, atuação
e encenação no trabalho com romances, muitas vezes não reconhecidos nem nomeados, mas
que passam pela pesquisa, experimentação em coletivos de criação e consequente reflexão de
seus respectivos encenadores.

Sobre o corpus destinado à análise, inicialmente escolhi como objeto empírico o


trabalho de Aderbal Freire-Filho, consagrado encenador brasileiro com uma carreira de mais
de 40 anos e aproximadamente 100 espetáculos e que criou a linguagem do romance-em-cena,
cuja proposta original é levar ao palco o texto do romance em sua integralidade de escrita (da
primeira à última página) para ser falado, interpretado e encenado. A primeira investida nesse
campo experimental deu-se em 1990 com a montagem de A mulher carioca aos 22 anos,
romance de João de Minas, com seu extinto grupo Centro de Demolição e Construção do
Espetáculo (CDCE). Aderbal Freire-Filho produziu até o presente momento outros dois
espetáculos com essa proposta, tendo atores recorrentes nessas montagens, configurando uma
trilogia a partir desse coletivo de afinidades, cujos procedimentos vão se alterando ao longo do
13

percurso criativo-investigativo: O que diz Molero do português Dinis Machado em 2003 e, por
último, O púcaro búlgaro de Campos de Carvalho em 2006. Aos dois últimos assisti
presencialmente, mas O que diz Molero foi definitivo na proposição desta pesquisa, por meio
do qual me deparei pela primeira vez com o romance-em-cena que para mim se revelou como
um dos mais intensos encontros interdisciplinares no teatro contemporâneo.

Buscando uma contraposição ao romance-em-cena e uma ampliação da pesquisa sobre


os modos de se fazer teatro narrativo na cena contemporânea, fui apresentado por Maria Helena
Werneck, minha orientadora, a um de seus objetos de estudo: o português João Brites do Teatro
O Bando, encenador de extrema relevância nesse campo, mas ainda pouco conhecido no Brasil.
Artista plástico, cenógrafo, dramaturgo, encenador e fundador do grupo, possui por volta de 80
criações em 41 anos de carreira e sua principal matéria dramatúrgica versa sobre textos não
escritos para o teatro (contos, romances, poemas, textos etnográficos e históricos), dos quais
escolhi aqueles que se originaram de romances: Gente feliz com lágrimas (de João de Melo) em
2002, Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago em 2004 e Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares
em 2008. Seu trabalho, de certa forma, se confunde com o do Teatro O Bando, pois é seu
principal encenador, ainda que a feitura dos trabalhos dê-se muitas vezes de forma coletiva,
prática que, nos últimos anos, foi transformada numa Direção Artística, constituindo um núcleo
central de criação.

De imediato, a escolha desses objetos empíricos me possibilitou o reconhecimento das


relações histórico-culturais entre Brasil e Portugal a partir de seus encenadores, que apresentam
de imediato algumas interseções: são contemporâneos, irmanam-se pelo gosto pela palavra e
pela língua portuguesa, apresentam quase a mesma idade e têm ainda como aproximação o
tempo de carreira e uma atividade produtiva e criativa de intenso fôlego, principalmente por
desenvolverem simultaneamente o gesto da dramaturgia e da encenação. São encenadores que
têm como princípio o trabalho em coletivo, ainda que Freire-Filho tenha uma larga carreira
como encenador convidado de outros artistas e grupos, a quem costuma oferecer essa ética de
trabalho. Ambos também investem na reflexão de suas práticas e poéticas cênicas, seja por meio
de entrevistas, artigos publicados em jornais e revistas, programas de espetáculos e a
participação em colóquios, conferências, seminários e produção intelectual.

Aspectos de uma trajetória artística


14

Esta pesquisa é resultado de um percurso pessoal em que se cruzam, no plano interior,


memórias, apetências e gostos, desejos, escolhas e dúvidas e, no exterior, práticas cênico-
dramatúrgicas, experiências, reflexões e conhecimentos adquiridos nos campos do Teatro, da
Literatura e da Comunicação que aqui se reúnem formando um mosaico interdisciplinar.
Entretanto, onde se inicia essa jornada? Talvez numa certa garagem da infância, junto a amigos
representando quadros de programas da TV para reunir as famílias e os vizinhos; ou nas tantas
bibliotecas que fascinavam (e angustiavam) pela possibilidade infinita de universos a serem
descobertos e explorados; na escrita juvenil de peças de teatro, contos e romances não
publicados, mas que se constituíram como intensos exercícios de escrita; num auditório escolar
que anualmente abria-se para o exercício artístico e cultural de alunos; num palco vazio de um
teatro quase abandonado no interior de Minas, onde se reuniu um grupo de alunos-atores sob a
orientação de um ator-encenador-professor; ou num grupo de estudantes de graduação que tinha
o teatro como ferramenta de comunicação e ocupação de espaços na universidade, ou,
finalmente, no encontro entre este pesquisador-artista e um grupo de atores com a mesma idade
de carreira? Pergunto e não encontro um lugar, mas todos esses e outros que não se reavivam
na memória.

Situo essa busca nos gestos particulares de leitura, escrita e encenação que se iniciaram
no Grupo Teatral Pannus Finis, criado e gerido por discentes de Comunicação Social da ex-
Fafi-BH (atual Uni-BH) nos idos de 1996, do qual fui ator, encenador e dramaturgo. O grupo,
que conduzi durante os quatro anos da nossa graduação, proporcionou-me intensas
experiências, das quais destaco Sonhos misteriosos (1998, dramaturgia de corte e colagem de
fragmentos de autores diversos, de Morris West a Nelson Rodrigues) e A confissão de Leontina
(1999, adaptação do conto homônimo de Lygia Fagundes Telles), onde se originaram minhas
primeiras experiências com o teatro narrativo e uma dramaturgia rapsódica. Nessa época,
paralelamente, fui convidado por Marco Antonio Cruz, meu mestre e conterrâneo, para dirigi-
lo em sua adaptação de textos em prosa de Baudelaire, que resultou no espetáculo Paraísos
artificiais que, junto com A confissão de Leontina, arrebatou os principais prêmios do Festin!,
festival de teatro estudantil e universitário. Com a conclusão do bacharelado, o encerramento
das atividades do Pannus Finis originou um novo agrupamento, envolvendo jovens artistas e
profissionais de Belo Horizonte em torno da obra de Hilda Hilst.
15

A Cia. de Outros Atores teve uma carreira breve (2002-2004), mas não passou
despercebida no circuito artístico cultural da capital mineira. O evento Círculo de atividades
integradas Hilda Hilst (2002), concebido por mim e produzido pelo grupo, reuniu quase 30
artistas, entre iniciantes e veteranos, para uma grande exposição da vida e obra da escritora
paulista, até então praticamente desconhecida em Belo Horizonte. O evento, dividido em
exposição fotográfica, leituras, saraus poéticos, cenas curtas (adaptações da prosa poética), e
um intercâmbio com a Cia. Teatral do Movimento de Ana Kfouri (RJ) que trouxe a montagem
Fluxo, o projeto, que teve aval e aprovação da escritora, conquistou espaço na mídia e atraiu,
ao longo de seus nove dias de realização, um público de iniciados e interessados. Ao orientar a
criação de algumas atividades, pude realizar diversas experiências de adaptações de textos em
prosa da escritora destinados a leituras encenadas e também a cenas curtas, o que foi
extremamente salutar para a pesquisa que agora empreendo.

Como etapa seguinte, a nossa montagem de A possessa (A empresa), primeira


dramaturgia de Hilda Hilst e até então nunca encenada, dividiu opiniões, causou frisson,
provocou a crítica, num processo de montagem, pesquisa e experimentação que marcou
profundamente todos os envolvidos. O trabalho colocou-me diante de uma nova circunstância:
a relação entre a práxis e a teoria me encaminhou ao Mestrado em Literaturas de Língua
Portuguesa da PUC-Minas, com o objetivo de adquirir conhecimentos sobre essa área e
mergulhar, em âmbito teórico, na investigação da obra da autora paulista e da linguagem
narrativa. A pesquisa propiciou o aprofundamento em algumas Teorias da Literatura, permitiu
uma imersão em literaturas de língua portuguesa que, para além-mar, contemplavam Portugal
e alguns países da África (São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo
Verde), o que, anos depois, se revelou extremamente oportuno, quando de meu estágio de
doutoramento em Lisboa. Tal experiência ampliou minhas perspectivas quanto ao confronto
entre a teoria e a prática, essa há muito estimulada pelos trabalhos sobre Hilda Hilst no grupo,
percebendo nesse encontro a riqueza da co-alimentação entre o fazer e o pensar, uma
experiência singular e definitiva.

A Cia. de Outros Atores se desfez, tendo sido encerrada com a montagem de Um canto
para Pedro Nava, projeto selecionado pelo Centro de Cultura Belo Horizonte para honrar as
comemorações do centenário de um dos mais ilustres memorialistas brasileiros. A peça teve
concepção e dramaturgia minhas, onde novamente os procedimentos de edição de fragmentos
narrativos junto a músicas do cancioneiro popular construiu um panorama sobre o autor e sua
obra, recebendo primorosa direção de Sávio William. Pela primeira vez órfão de grupo, que
16

estava no cerne de minha formação desde a Oficina de Iniciação Teatral (1993-1994) com
Marco Antônio Cruz e Geni Gomes no Cine-Teatro D. Pedro II em Conselheiro Lafaiete (MG)
minha terra natal, fui convidado por Léo Quintão e Neise Neves para dirigir a nova montagem
da Cia. Pierrot Lunar que por sua vez estava em jejum de palco há quase sete anos. A
companhia tivera duas experiências com montagem de textos literários (o espetáculo Alice, dos
originais de Lewis Carroll e dirigido por Fernando Mencarelli em 1996, e Visões do paraíso,
leitura encenada de contos da mineira Branca Maria de Paula sob direção de Leo Quintão em
2004). O convite relacionava-se a uma nova imersão do grupo no trabalho da literatura no teatro
a partir de minhas experiências e pesquisas empreendidas nesse campo. Não havia um texto
definido para a montagem, apenas um tema: a mulher contemporânea e, entre leituras e
conversas, pesquisas em nossas bibliotecas, chegamos ao Falar – um romance de amor e ódio,
que rendeu ao autor Edmundo de Novaes Gomes o Prêmio Casa de Cultura Mario Quintana.

A maneira fragmentada como o autor compôs o romance fez com que desejássemos uma
adaptação construída de forma coletiva, através de ensaios e improvisações, ampliando assim
as possibilidades de experimentação. Dessa maneira, dois atores e eu, como dramaturgo e
encenador, estivemos durante um ano em sala de ensaio num intenso processo de pesquisa sobre
a encenação desse romance, que intensificou para mim as relações entre Teatro e Literatura.
Testando procedimentos, experimentando, duvidando, acertando e errando, mergulhamos a
fundo na realização deste trabalho que foi batizado de Atrás dos olhos das meninas sérias,
homenagem ao verso de Manuel Bandeira e ao poema de Ana Cristina César. A pesquisa
também envolveu interseções com a teoria, em que foram discutidos e lidos textos do meu
acervo de disciplinas que havia cursado no Mestrado em Literatura.

Durante essa montagem, um convite do projeto Cabaré Voltaire do Centro de Cultura


Belo Horizonte envolveu-me em outra produção, em que propus uma versão cênica de O
unicórnio, prosa poética de Hilda Hilst. O processo originou o espetáculo Do desespero de
contar uma história ou Da arte de ser um unicórnio, cuja proposta era manter o texto original
enquanto alterava-se o contexto da cena (um ringue de boxe, um programa de TV, um
consultório de psicanálise etc). O trabalho teve enorme aceitação e atingiu públicos muito
distintos, rendendo um convite para apresentação no Salão do Livro de Minas Gerais.

De outro lado, os ótimos resultados também obtidos por Atrás dos olhos das meninas
sérias – que segue em cartaz desde sua estreia em 2007, tendo se apresentado em diversas
capitais, cidades do interior de MG e importantes festivais como o FIT-BH e recebido prêmios
17

e indicações – fizeram com que desejássemos alçar novos voos juntos nessa seara e a Cia.
Pierrot Lunar decidiu investir na continuidade da pesquisa, agora de forma aprofundada e
sistematizada sob minha orientação e direção, em que se somavam nossas experiências
anteriores para a construção de uma prática-experimental comum.

A proposta levou o grupo a conquistar nova sede, batizada de Espaço Aberto Pierrot
Lunar, através do Prêmio Cena Minas, e abriu-se a novos atores convidados à imersão.
Novamente, estava diante de um coletivo para o desenvolvimento de nova etapa da pesquisa
que, não por acaso, coincidiu com a retomada de minhas investidas acadêmicas no Programa
de Pós-graduação em Artes Cênicas da Unirio, onde desenvolvi a tese que resultou neste livro.
O curso, as diversas indagações e o desejo profundo de estudar oficialmente Teatro foram
decisivos e esclarecedores, ao confrontar essas novas experiências cênicas com a investigação
teórico-analítica.

O processo de doutoramento foi caminhando e contagiando a par e passo os novos


trabalhos que realizei junto à Cia. Pierrot Lunar, que inaugurou um Núcleo de Pesquisa, tendo
como referência inicial o romance-em-cena de Aderbal Freire-Filho, e disso produzimos
diversas atividades e experimentos que culminaram nas montagens de Sexo (2010, do romance
de André Sant’Anna) e Acontecimento em Vila Feliz (2008-2011, do conto de Aníbal
Machado). É preciso dar relevo a esse novo encontro e interseção entre a teoria e a prática, que
foi para nós dos mais intensos e produtivos, em que as experiências de uma se refletiam nas
descobertas da outra, no confronto de linguagens e procedimentos de criação.

Percursos de uma investigação acadêmica

Esta investigação se iniciou com uma pesquisa bibliográfica, a fim de compreender as


instâncias e questões relacionadas ao teatro contemporâneo em que se inserem as
experimentações cênico-dramatúrgicas com textos literários, reunindo autores e estudos sobre
Teorias do Teatro, da Literatura e Filosofia, formando um painel inter e transdisciplinar.
Seguiu-se a reunião do material empírico destinado à análise: primeiramente a aquisição de
exemplares dos romances e, depois, com Aderbal Freire-Filho, cópias em DVD dos referidos
espetáculos. Também realizei uma investigação e levantamento de informações no acervo desse
encenador no Centro de Documentação (CEDOC) da Funarte, no Rio de Janeiro, onde recolhi
18

cópias de diversos materiais, como programas de espetáculos, críticas, matérias de jornal.


Apesar da incompletude de seu acervo, encontrei os dossiês (preciosos) do Centro de
Demolição e Construção do Espetáculo que permitiram uma averiguação das atividades
desenvolvidas pelo grupo durante a ocupação do Teatro Gláucio Gill: a coleta possibilitou a
reconstituição dessa decisiva etapa no trabalho de Freire-Filho, que aclarou seus modos de
trabalho, sua perspectiva do teatro enquanto agente social e o desenvolvimento de uma ética de
criação em grupo.

Para a inclusão de João Brites e do Teatro O Bando na pesquisa, foi fundamental o


Estágio de Doutoramento no Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, a partir
do Programa de Acordo de Cooperação Internacional CAPES-FCT (Unirio, UL e USP). O
plano de estudos, que teve a orientação local da Prof. Maria João Brilhante, ofereceu relevantes
contribuições para o desenvolvimento da investigação. De forma ampla, proporcionou um
mapeamento e conhecimento das artes cênicas e performativas contemporâneas de Portugal (e
também da Europa a partir de espetáculos assistidos), com o intuito de verificar em que cenário
se insere João Brites e o Teatro O Bando. Permitiu contato e aproximação com o grupo, no qual
foram percebidos aspectos dos procedimentos de trabalho e, especificamente, de direção de
atores e dramaturgia. Ainda na Universidade de Lisboa, acompanhei um seminário de Jean-
Pierre Sarrazac sobre estética da dramaturgia ocidental moderna e contemporânea, compondo
um dos cursos da série Ciências das Artes Performativas: interpelações ao século XXI.

Foi feito um levantamento e pesquisa bibliográfica complementar nas Bibliotecas da


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UL) e da Fundação Calouste Gulbenkian e na
Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em que se constatou uma predominância de
publicações estrangeiras, pois no campo das Teorias do Teatro, o Brasil tem adquirido a grande
maioria dos direitos de tradução para o português. No Centro de Estudos de Teatro da UL foi
realizada pesquisa documental sobre o Teatro O Bando, que se complementou no acervo do
grupo, e sobre teatro português contemporâneo, para mapameamento de companhias e artistas
em atividade cadastrados no acervo virtual CETBASE. Oportunamente, a pesquisa nas pastas
possibilitou organizar a lista de materiais a serem solicitados posteriormente a’O Bando.

Na sede do grupo, em Palmela (a 40 km de Lisboa), foi feita uma seleção no acervo


bibliográfico, documental, videográfico e iconográfico, priorizando os trabalhos escolhidos
para esta pesquisa. Foram copiados os registros em vídeo dos espetáculos que são objetos
empíricos e de outros para que houvesse uma melhor compreensão da estética do coletivo, além
19

dos documentários Ensaio sobre teatro e Se podes olhar vê, se podes ver repara, ambos
dirigidos pelo cineasta Rui Simões. Adquiri exemplares dos livros já publicados sobre O Bando
e também a trilha sonora de Ensaio sobre a cegueira. O profícuo e extenso material, ao mesmo
tempo em que oferecia um rico acervo de pesquisa, apontou também um exaustivo exercício de
concentração nos aspectos mais relevantes para esta investida intelectual.

A convite de João Brites realizei um estágio-docência e artístico no Curso de


Licenciatura em Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), em Amadora (região
metropolitana de Lisboa), que me permitiu acompanhar, como observador e interlocutor, sua
disciplina A consciência do ator em cena. Meu principal objetivo, cumprido a posteriori, foi
aprofundar conhecimento sobre o pensamento artístico desse encenador e verificar seus
procedimentos de direção de atores e de dramaturgia, que se aplicam ao seu trabalho no Teatro
O Bando. As matérias oriundas das práticas e improvisações ao longo do curso serviram de
base para a construção de um “Exercício Comentado” como encerramento do curso, que ganhou
o título No limbo, apresentado publicamente no Pequeno Auditório Estúdio João Mota, da
ESTC, em 16 de dezembro de 2010, para o qual fiz sua assistência de direção. A última etapa
do Estágio de Doutoramento consistiu em entrevistas com João Brites e os atores/ diretores Sara
de Castro e Miguel Jesus para interlocução e melhor conhecimento das questões investigadas
no trabalho do encenador e do grupo.

O retorno ao Brasil trouxe na bagagem uma ampliação do olhar para o teatro além-mar,
em que se confrontaram os meus modos particulares de fazer artístico-investigativo com o
trabalho dos dois encenadores-objetos. Para finalizar a apuração sobre o trabalho de Aderbal
Freire-Filho foi feita uma entrevista com ele e também com três atores que participaram de
montagens do romance-em-cena: Cândido Damm, Chico Diaz e Gillray Coutinho.

O trabalho de análise, por sua vez, partiu da leitura e estudo dos romances, contrapondo-
os à dramaturgia e, em consequência, aos espetáculos em vídeo, buscando uma incursão no
campo da Genética teatral, cujo pioneirismo é atribuído ao trabalho de Jean-Marie
Thomasseau, por meio de artigos do fim da década de 1990 na França, e também McAuley Gay
na Austrália. A genética de espetáculos refere-se à reconstituição e análise de algumas etapas
do percurso que atores, dramaturgos, encenadores e artistas da cena trilharam na confecção de
seus trabalhos. O work in progress, que tem caracterizado muitas práticas cênicas
contemporâneas, e por isso está na ordem do dia, tem suscitado enorme interesse da Genética
teatral, com o objetivo de esclarecer a trajetória de criação artística, capitaneada por
20

encenadores. Para Josette Féral, o campo atual dos estudos teatrais “opera dentro do centro
nervoso onde a performance está em processo de construção, escolhendo retroceder no tempo
para descobrir como o artista chegou a suas escolhas e de como a estética foi se construindo”
(FÉRAL, 2008: 229).

O processo de escrita deste trabalho assemelhou-se, em parte, à construção dramatúrgica


a que estou habituado, marcada pela reunião e organização de textualidades, ideias e conceitos,
uma aproximação quase inevitável dada a minha condição de pesquisador-artista, saudável e
produtiva contaminação entre a teoria e a prática. O texto apresenta uma estrutura
multifacetada, cujo princípio construtivo e ordenador envolve camadas discursivas distintas,
historiográficas, biográficas, inventariáveis, teóricas-conceituais, jornalísticas, narrativas e
críticas-analíticas. De certa forma, tal característica coloca essa escrita numa fricção entre uma
pesquisa que visa abarcar uma totalidade, ao envolver os objetos investigados, ao mesmo tempo
em que persegue as instâncias conformativas dos procedimentos de criação contemporânea dos
trabalhos analisados.

Esta pesquisa, de forma ampla, realizou-se de maneira oportuna e revelou-se crucial


para o reconhecimento das poéticas desses dois encenadores, em que podem ser observados
pontos tangenciais e também distinções, que os aproximam ao mesmo tempo em que os
singularizam, unidos pelo gesto de escrever e encenar.
21

NARRATIVAS EM CENA

Como eu suportaria viver se não pudesse ser também poeta?


Viver é mais do que sobreviver – é narrar.
Nietzsche

O texto dramático e seu autor se mantiveram como elementos hegemônicos e


reguladores do acontecimento teatral, via de regra, do período grego antigo (século V a.C.) até
meados do século XIX, quando operaram importantes transformações no contexto da cena, cujo
principal expoente é o surgimento da figura do encenador. No período assinalado, os nomes
que se inscreveram na historiografia do teatro ocidental, como se pode observar a partir de John
Gassner e Margot Berthold, têm em comum a apetência para escrita teatral, em alguns casos
também responsáveis pela passagem do texto ao palco: Sófocles, Plauto, Calderón de la Barca,
Shakespeare, Racine, Molière, Goethe, Büchner, somente para apontar alguns principais
expoentes de um período extenso e de uma produtividade abastada. As principais exceções, que
não tinham o texto e o autor como pilares do espetáculo, são os dramas medievais e a Commedia
dell’Arte no período barroco.

Ao se encerrar no fim da performance pública, o teatro esteve durante muito tempo


relegado apenas à memória de seus espectadores e agentes, esses responsáveis muitas vezes
pela conservação das obras encenadas, além da platei. Nesse sentido, textos como os de
Shakespeare, por exemplo, só puderam atravessar o tempo por meio dos atores que, de posse
de sua faculdade mneumônica, permitiram que fossem escritos e chegassem até nós, ainda que
tal processo e sua legitimidade autoral tenham sido objetos de investigação de muitos
intelectuais como Roger Chartier. As tentativas de fixar a palavra teatral na escrita envolveram
inúmeras polêmicas: a recusa de dramaturgos à publicação levou editores a roubarem textos,
alegando que a versão impressa era oriunda da memória de espectadores que os transmitiam.
Certamente, essa operação de circulação dos textos desestabilizava a noção de autoria, de
colaborativa para individual, e constituía ruídos na transmissão, visto que o dramaturgo muitas
vezes não era convidado a participar da versão escrita de sua peça.

Todavia, de maneira ampliada, a impressão de peças de teatro no período moderno


estabeleceu o dramaturgo (escritor) como o verdadeiro (ou único) autor da peça de teatro,
sobrepondo-se a todos os outros artistas e construindo uma era soberana cujo paradigma só será
22

quebrado em fins do século XIX: “A performance teatral não era mais pensada como uma
contribuição a uma produção colaborativa da peça, mas vista como um simples veículo (‘por
nós’) de transmissão da obra do autor.” (CHARTIER, 2002: 73-74). A impressão de peças
também ofereceu ao teatro o processo inverso: publicadas, podem ser encenadas por outros
artistas e companhias, sofrendo, portanto, outras alterações, adaptações, cortes e
remanejamentos dos textos. Aqui se encontra o embrião do que vai se instituir a partir do final
do século XIX como dramaturgia, ou seja, o ofício de escrever e preparar o texto que será
encenado, seja um texto autoral ou uma reelaboração de uma escrita de outrem.

As relações entre texto (mythos) e espetáculo (opsis) anunciam-se desde a Poética de


Aristóteles, cuja interpretação ao longo dos séculos atribuiu sua prioridade ao primeiro, somado
ao elemento do personagem em ação (ethos), em detrimento do segundo. Entretanto, no século
XVIII quando o aristotelismo foi recuperado e revisto, a leitura radical neoclássica da Poética
colocou em relevo e distância o mythos, postura contestada por Diderot, que buscou estabelecer
um melhor equilíbrio entre os elementos literários e cênicos, valorizando os aspectos visuais da
composição dramatúrgica. “O aspecto interno da dramaturgia da cena, a sua estrutura literária
e ficcional, sufocava a sua dimensão externa ou as suas possibilidades semânticas enquanto
espetáculo.” (RAMOS, 2009: 96).

Desde fins do século XIX, com o encenador responsável pela autoria do espetáculo, a
problemática entre mythos e opsis ganhou novos contornos: a linguagem da cena, o espetáculo
propriamente dito, sobressaiu-se ao texto, isso quando não promoveu sua negação ou exclusão.
Disso, passa-se a verificar no teatro moderno e contemporâneo variadas combinações entre
esses elementos, estando a figura do encenador como reguladora desse (des)equilíbrio, o que
ampliou decisivamente o sistema do palco e sua conformação autônoma. No campo assinalado,
o texto passa a sofrer inúmeras reformulações, tanto pelas mãos de dramaturgos quanto de
encenadores, que contrariam as normas vigentes do neoclassicismo em direção a uma
modernização do palco, em que textualidades diversas passam a compor sua dramaturgia,
dirigindo-se à investigação da teatralidade e, depois, de seus aspectos performativos.

A narrativização do palco e a consolidação do encenador-autor: a escrita cênica nas


tensões entre texto e representação
23

Para Jean-Jacques Roubine, o surgimento do encenador está ligado ao fim das fronteiras
entre países, que passaram a circular e a confrontar suas estéticas, e à descoberta dos recursos
da luz elétrica, que apontava novas composições cênico-espaciais e complexificava a
organização dos elementos do espetáculo. Entretanto, para Bernard Dort, está atrelado à
mudança de paradigma do público, cuja homogeneidade dava lugar à heterogeneidade,
provocando um estilhaçamento etário e social de acordo com os gêneros dos espetáculos. Ele
entende que a diversidade da recepção desestabilizou o acordo prévio entre espectadores e
realizadores sobre o estilo e o sentido dos espetáculos apresentados. Os antigos diretores tinham
apenas como função assegurar a chegada do texto ao palco “segundo os legados da tradição ou
tal como o público da época as imaginava.” (DORT, 1977: 67).

A historiografia oficial convencionou conferir ao francês André Antoine o título de


primeiro encenador do Ocidente nos moldes como hoje se conhece esse ofício, ainda que o
termo encenação tenha sido já empregado anteriormente em 1820. Tal comenda corresponde
ao fato de que Antoine foi o primeiro a assinar um trabalho como encenador e porque
paralelamente buscou sistematizar sua prática e teorizar sobre a arte da encenação. Ele fundou
o Théâtre Libre em 1887 e ficou marcado por aplicar ao teatro os princípios do naturalismo,
fazendo uma oposição à interpretação tradicional do Conservatório de Paris.

Ao encenador é atribuído o esfacelamento do primado do autor sobre o espetáculo


teatral, ao propor uma dicotomia na relação do texto com o palco. Ele destitui a autoria do
espetáculo do escritor para reivindicá-la a si, visto que o encenador passa a ser não somente o
responsável pela organização dos elementos cênicos e pelas marcações, mas pela construção de
um sentido global da obra teatral. Impõe-se como artista, destacado dos demais integrantes de
uma montagem, aplicando sua interpretação da obra, sua visão pessoal, na construção do
espetáculo. Das principais motivações, “é para ocupar o espaço aberto pelo texto que o
encenador começa o lento trabalho de elaboração de uma escritura própria, iniciando o
movimento de justaposição do texto cênico ao dramático, até que o primeiro adquira plena
autonomia.” (FERNANDES, 2000: 32). Ainda que inicialmente os primeiros encenadores se
dispusessem a serviço do texto buscando a melhor forma cênica de realizar os desejos do autor,
as divergências entre as duas figuras colocaram-se como fundamentais para a noção polissêmica
de uma obra e a revelação para o teatro de sua teatralidade para além daquilo que o texto exige
ou restringe. Adolph Appia, um dos mais importantes teóricos e realizadores do teatro moderno,
atacou a heterogeneidade estética dos espetáculos de seus contemporâneos, pois cada artista
24

fazia prevalecer seu trabalho em detrimento dos outros. Ele solicitava que o encenador se
tornasse o centro de decisão:

Appia preconiza a entrega de todos os poderes ao encenador, cuja jurisdição deveria


sobrepor-se a qualquer outra instância. Com efeito, somente uma vontade artística
individual, dispondo de meios de ação sobre o conjunto dos elementos do espetáculo,
poderá ordenar esses elementos, entrosá-los, promover a devida articulação entre eles
e fazer da encenação uma autêntica obra de arte. (ROUBINE, 1998: 135)

Se o encenador conquistou a chancela de autor do espetáculo, o texto não


necessariamente manterá seu status destacado e superior em relação aos demais elementos, pois
a cena não se limita a ele. O encenador russo Constantin Stanislavski, por exemplo, tinha como
principal objetivo combater o artificialismo no trabalho dos atores e para isso desenvolveu um
sistema de interpretação que buscava dar maior vida aos textos, eliminando declamações ou
atuações forçadas, exageradas, que não permitissem ao público o reconhecimento e o
envolvimento com a realidade apresentada no palco. Termos como simbiose, identificação,
viver a vida da personagem, aproximar-se e confundir-se com ela são comuns em seus escritos.
Privilegiando o texto dramático, o trabalho de Stanislavski provocou controvérsias com autores,
com destaque para os desentendimentos com Tchekov. Assim, o conflito de leituras e pontos
de vista acerca de uma mesma obra desorganizou o modo de se fazer teatro nos fins do período
oitocentista e início do nonocentista.

A autoria do encenador se sobrepõe à do escritor, levando-a até mesmo propor revisões


quanto à imprescindibilidade do texto para a realização do acontecimento teatral: “o
textocentrismo1 desviou o espetáculo ocidental para o trilho do mimetismo e do ilusionismo. O
que significa que as possibilidades específicas do palco e do teatro não foram exploradas, nem
sequer experimentadas, senão de modo intermitente.” (ROUBINE, 1998: 59). Assim, iniciava-
se o processo de dissecação do palco, de investida nos recursos teatrais, em direção à ideia de
teatralidade, divorciando o teatro de seu vínculo estrito com a literatura e o realismo.

A modernidade, a partir do século XIX e adentrando as primeiras décadas do século


XX, inaugurava novos paradigmas, por meio da criação de inventos tecnológicos, da expansão

1
Em polêmica contra o naturalismo defendido por Antoine, o textocentrismo marcou-se por ser a base da
encenação simbolista, já que se tratava de um movimento centrado na escrita, articulado e apoiado por poetas
como Maeterlinck e Mallarmé.
25

do comércio e da indústria, do desenvolvimento dos grandes centros urbanos e dos transportes,


da Fotografia e Cinema, da consolidação do império capitalista, em que emergiram meios de
comunicação de massa, máquinas, guerras e regimes totalitários. Esse novo mundo demandava
novas formas de representação, que não afetariam exclusivamente a linguagem cênica, mas
também as Artes plásticas, a Literatura, a Arquitetura e a Música. Naquilo que se refere à matriz
do drama, no teatro especificamente, as relações intersubjetivas (características do texto
dramático convencional) davam sinais de enfraquecimento diante das relações macrossociais;
o indivíduo, pertencendo a uma sociedade de massa e, portanto, anônimo, sofria o esgarçamento
da interpessoalidade. Dessa forma, antecipava-se a constatação brechtiana: para o teatro não era
preciso apenas dizer coisas novas, mas buscar novas formas de dizê-las.

A representação teatral, desvinculada de suas obrigações com a fidelidade ao texto


dramático, passou a constituir uma obra autônoma, independente, cujo autor é o encenador. “A
meu ver, só tem o direito de se chamar autor, quer dizer, criador, aquele que tem a seu cargo o
manejo direto da cena.” (ARTAUD, 1978: 133), reivindicava Artaud no início do século XX.
Atacando a representação teatral, compreendida como um processo que submete a cena a uma
exterioridade textual, Artaud investia em seu Teatro da Crueldade, por meio da retomada do
ritual, alegando que o teatro ocidental havia nascido de sua negação. Jacques Derrida observa,
nesse sentido, que “o teatro da crueldade não é representação. É a própria vida no que ela tem
de irrepresentável. A vida é a origem não-representável da representação.” (DERRIDA, 1971:
52). A radicalidade desse encenador investia contra o texto dramático tradicional, tomando dele
as palavras como matéria sonora e como fonte ancestral de expressão poética e encantamento,
capaz de unir atores e espectadores. Para Artaud, o sentido do espetáculo deve emergir do
acontecimento teatral, sustentado nas práticas ritualísticas que o fundaram.

A reivindicação, feita pelos artistas, bem cedo no século passado, de uma


especificidade do teatro associada à sua dimensão não-verbal, plástica, performativa
foi-se fazendo ouvir e foi ganhando espaço em práticas classificadas como
vanguardistas, mas os críticos encartados e os teóricos nas academias pouca atenção
concediam às diversas formas de criação que ora expulsavam a palavra, ora a
submetiam a um tratamento de choque, materializada, perdendo o seu caráter
instrumental de espelho do mundo e de veiculadora de sentido. (BRILHANTE, 2009:
123)

Não se trata de uma completa e total derrocada do texto no teatro, mas de sua
desierarquização, de colocá-lo a par e passo com o ator, o cenário, a luz, o figurino e a música.
26

Para Patrice Pavis, a encenação coloca em relação, num determinado tempo e espaço, distintos
materiais em função de um público espectador. O paradigma está invertido: é a encenação que
provoca o texto e o coloca sob tensão, conformando um discurso paralelo à escrita, sempre
marginal e paródico em seu sentido etimológico. O termo encenação, para além de uma
atividade ou prática, estende-se a uma noção estrutural do teatro e também a um objeto de
teorização e conhecimento da arte do palco.

A representação teatral parece, então, ser uma figura emblemática da heterogeneidade


artística, sendo o palco um lugar de convocações, reuniões, uniões, fusões, acordos,
conversas a distância, comunicações, montagens, interações de todas as artes que
colaboram para a obra comum, transformando-se, ou não, visando a uma criação de
tipo homogêneo ou dissonante, em ruptura. A encenação, arte nova que marca o século
XX, é a atividade artística que regula as transações entre literatura dramática, atuação,
pintura, escultura, arquitetura, música, dança, canto, etc. Aliás, os apelos à
colaboração são cada vez mais numerosos, já que, à medida que o século avança, artes
consideradas menores como o circo, e artes novas, como o cinema, o vídeo, as novas
imagens, integram-se à ciranda das artes irmãs. (PICON-VALLIN, 2006: 68-9)

Por outro lado, para provar que o teatro não se resumia à palavra (falada), vários artistas
se debruçaram sobre ele para revelar outros aspectos da teatralidade. Vsévolod Meyerhold,
contrariando os princípios mimético-ilusionistas e psico-realistas da encenação de Stanislavski,
seu mentor, desejou outro estatuto como encenador, desobrigando-se de qualquer subserviência
ao autor para “intervir nos textos clássicos e contemporâneos, arriscando-se às vezes a conflitos
violentos. Ele pratica a montagem, a colagem, a compilação das variantes ou leva o autor a
reescrever um ato […] em função das orientações da encenação.” (PICON-VALLIN, 2006: 78).
Tal postura o levou a interferir nos textos para colocá-los à prova de suas investigações e
pesquisas quanto à espacialidade, à interpretação e à própria dramaturgia. Meyerhold foi um
dos primeiros encenadores a praticar a adaptação de textos, num processo em que a autoria do
espetáculo promove ajustes e adequações da escrita à linguagem do palco, devendo ultrapassar
a condição de mero ilustrador do texto:

A ilustração é escrava da exatidão, ela redobra o que deve valorizar, explicar,


esclarecer. Longe de criar em cena ilustrações cuja legenda explicativa seria o texto
de teatro, longe de realizar no palco, […] o encenador estaria em busca de imagens
capazes de sintetizar, de aprofundar, de trespassar, de contradizer o texto, em busca
de uma cena na qual os ritmos, as cores, o movimento, viriam entrelaçar-se com as
palavras e os sons. (PICON-VALLIN, 2006: 89)
27

Além dos inúmeros textos inéditos que escreveu Bertolt Brecht também criou versões
para clássicos da dramaturgia como Antígona, além de uma adaptação do romance A mãe, de
Maximo Gorki. Seu trabalho revela o domínio do encenador na criação teatral, em que os gestos
de escrever e encenar fazem parte de um mesmo movimento. Gaston Baty também declarou
sua oposição ao textocentrismo, reivindicando a excelência do encenador como criador,
inventor, transportando ao palco obras-primas do teatro dramático como Racine e Musset, e
ainda adaptações de romances literários, como Madame Bovary de Gustave Flaubert e Crime e
castigo de Fiódor Dostoievski.

O teatro no século XX, portanto, viu suas possibilidades expressivas alargadas,


multiplicadas, (re)descobertas, inscrevendo em sua historiografia nomes de encenadores como
o de Gordon Craig, Adolph Appia, Vsévolod Meyerhold, Constantin Stanislavski, Erwin
Piscator, Bertolt Brecht, Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, Bob Wilson, Robert Lepage, Peter
Brook, Ariane Mnouchkine. Entretanto, o surgimento do encenador não maculou e nem sufocou
a escrita para o palco, com destaque para os dramaturgos modernos como Tchekov, Strindberg,
Maeterlink, Hauptman, Gorki, Eugene O’Neill, Bernard Shaw, Federico García Lorca,
Tennessee Williams, Luigi Pirandello, Ionesco, Samuel Beckett etc. De qualquer maneira, a
história do teatro moderno e contemporâneo destaca-se mais como a história dos encenadores
do que propriamente de autores ou atores.

Uma cena que se abre e se revela: a fratura do drama tradicional, o Teatro Épico e a
dramaturgia rapsódica

Paralelamente ao surgimento do encenador, a escrita dramatúrgica em fins do século


XIX sofreu profundas alterações e reelaborações, em cujo processo viu suas bases serem
atingidas por novas expressividades. É importante compreender que o desenvolvimento do
teatro, particularmente da dramaturgia, não é um fenômeno isolado, mas, ao contrário, pertence
a um conjunto de transformações distintas que convergem numa reformulação mais ampla das
artes de um modo geral. Assim, enquanto a forma dramática tradicional buscava sustentar-se
sob tais transformações, sua estrutura foi sendo fraturada, a partir da inserção, inicialmente sutil,
28

de elementos épicos, como analisado por Peter Szondi nas obras de Tchekov, Strindberg, Ibsen,
Maeterlink e Hauptman.

O romance literário, por sua vez, naquela altura apresentava melhores soluções para a
representação da complexidade da vida moderna ao dispor de dispositivos narrativos mais
eficientes. O drama foi sendo novamente contaminado por procedimentos épico-narrativos, mas
não exatamente como fizeram os dramaturgos clássicos: a narrativização (ou epicização) da
dramaturgia, além do rompimento com o drama, vai proporcionar uma diversidade de
propostas, cujo objetivo já não será mais a reafirmação dos parâmetros tradicionais de conflito,
fábula e ação dramática.

Como a evolução da dramaturgia moderna se afasta do próprio drama, o seu exame


não pode passar sem um conceito contrário. É como tal que aparece o termo “épico”:
ele designa um traço estrutural comum da epopéia, do conto, do romance e de outros
gêneros, ou seja, a presença do que se tem denominado o “sujeito da forma épica” ou
o “eu-épico” (SZONDI, 2003: 27)

Neste contexto, há o assumidamente Teatro Épico de Brecht, criado e desenvolvido a


partir de Um homem é um homem, de 1926. Contrapondo elementos dramáticos a épicos, o
dramaturgo e encenador alemão abalou as bases do drama convencional, de cunho aristotélico,
emancipando o teatro moderno do cânone ao qual estava atrelado. Em seu projeto há a
explicitação, a retomada, a reconfiguração e a proposição de elementos épicos na dramaturgia
e na encenação. Se “por teatro moderno entendemos teatro épico” (BRECHT, 2005: 30), ele
buscou combater a magia e o êxtase do teatro de ilusão, oferecendo maior independência à
palavra, à imagem e à musica. É importante destacar que Erwin Piscator foi o primeiro
encenador a utilizar o termo “Teatro Épico”, antecedendo Brecht.

Os títulos das cenas e as telas cenográficas, por exemplo, são um impulso para conceder
ao teatro aspectos oriundos da literatura: “Atribuir uma feição literária ao teatro significa impor
a figuração dos acontecimentos através da sua formulação. Tal processo possibilita ao teatro
aproximar-se de outras instituições da atividade intelectual.” (BRECHT, 2005: 40). Assim,
pode-se refletir que a verticalização dos elementos épicos na dramaturgia promoveu um
movimento que explodiu a quarta parede, visto que toda enunciação de cunho narrativo requer
obrigatoriamente alguém que a ouve, no caso do teatro o espectador. As inspirações marxistas
de Brecht clamavam por uma arte de comunicação com o receptor, de desvelamento da
29

realidade, de dialética e de reflexão, de um exame científico e historicizador do mundo


representado. Seu realismo, em oposição ao naturalismo, reflete uma dinâmica essencial entre
indivíduo e sociedade, em que se transformam e são transformados, como observa Dort. O
espectador foi convidado a compartilhar o mundo do palco, rompendo seu isolamento e
alienação.

O palco principiou a “narrar”. A ausência de uma quarta parede deixou de


corresponder à ausência de um narrador. [...] Não era mais permitido ao espectador
abandonar-se a uma vivência sem qualquer atitude crítica (e sem consequências na
prática), por mera empatia para com a personagem dramática. (BRECHT, 2005: 66)

Visando, sobretudo, o distanciamento crítico do espectador por meio do anti-


ilusionismo da cena, utilizava alguns procedimentos como o ator-narrador, cenas intituladas,
cartazes, projeções, músicas, que carregam consigo funções narrativas e interrompem o
percurso do drama convnencional. Para Jacques Rancière, a cena e a performance teatrais
brecthianas tornaram-se o mecanismo para retirar os espectadores de sua passividade para se
converterem em agentes de um prática coletiva: “a mediação teatral torna-os conscientes da
situação social que dá lugar a essa mesma mediação, e desencadeia neles o desejo de agir para
transformar a dita situação social” (RANCIÈRE, 2010: 15-6).

Para isso, sua escrita não investe numa evolução linear do enredo, que por sua vez se
desenvolve em curvas ou mesmo saltos, obrigando o espectador a atentar-se aos
acontecimentos, a ter uma participação ativa, ainda que mental. Essa escrita desconstrói a ideia
de progressão da ação, recorrendo à descontinuidade e à elipse, devendo-se considerar cada
parte como autônoma e independente. Tal anti-ilusionismo impõe ao teatro assumir sua
teatralidade, assim como já haviam procedido Shakespeare e alguns dramaturgos do teatro
grego, garantindo ao espectador que ele se encontra no teatro. Aderbal Freire-Filho declara que
é com Brecht “que o palco é aberto, escancarado, fertilizado, preparado para a explosão da nova
poesia cênica, para ser novo, amplo, vivo, rico de possibilidades, em suma, infinito.” (FREIRE-
FILHO, 2005: 12).

A partir da segunda metade do século XX a dramaturgia moderna definitivamente não


se pauta mais por generalizações, visto que a diversidade de formas e conteúdos híbridos,
distintos, foi seu denominador comum. Este palco, que procura a narratividade como recurso
30

expressivo e atravessa os limites da caixa cênica, configura novas relações entre ator e
espectador, amplia as possibilidades sígnicas dos elementos cênicos, além de oferecer uma
multiplicidade de matrizes textuais à encenação. Ao propor a emancipação do conceito de
drama da noção de gênero por essa nova dramaturgia, Jean-Pierre Sarrazac pensa nas
singularidades desse novo dramaturgo, a quem não interessa a preservação de velhas formas do
passado, como o drama burguês, pelo fato de carregar em seu bojo velhas ideologias.

Incitados pelas propostas de Brecht, surgiram autores que investigaram novas


representatividades textuais para a contemporaneidade. O drama moderno também se libertou
dos temas unificadores para além da questão do gênero e passou a se ocupar de um emaranhado
de assuntos, cuja paridade pode ser encontrada no romance literário. Pode-se inferir, nesse
movimento de fratura e reconstrução, o paradoxo que envolve a aspiração do drama aos
elementos romanescos, que fricciona a escrita teatral, e sua negação, pelas tentativas de insistir
na possibilidade de uma dramaturgia escrita para a cena. A aproximação do romance com o
texto teatral, inaugurando novos modos e formas de escrita, levou Sarrazac a pensar nesse novo
dramaturgo como um autor-rapsodo, cuja metáfora pode ser reconstituída pela etimologia
grega da palavra rapsodo (rhaptein, que significa coser). Esse dramaturgo avizinha-se do
escritor do romance pela forma e linguagem rapsódicas, que implicam no movimento de juntar
o que anteriormente havia despedaçado e, logo em seguida, despedaçar o que acabara de unir.
Sua matéria-prima se assemelha a retalhos de textos, fragmentos, que vão se reunindo numa
tapeçaria textual, construindo uma dramaturgia rapsódica.

O espaço do quadro, que se origina em Brecht, instaura a substituição dos valores de


progressão dramática pela noção moderna de sincronia. A ordem cronológica sofre uma
desvalorização pelas vantagens de uma ordem lógica, sustentada no sistema do pensamento. O
recorte em quadros e a titulação contribuem para o espaçamento do texto pela incorporação das
estrelinhas, do vazio, da falta de arquitetura do texto dramático. Para Jacques Derrida, o traço,
que simultaneamente se inscreve e se apaga na escritura, marca a presença de uma ausência em
um presente que se renova a cada instante. Os traços se ordenam pelo espaçamento que ao
mesmo tempo é o que permite sua inscrição e apagamento, por meio do qual Derrida indica
uma temporalidade desierarquizada e não linear que marca sua produção, pois a inscrição
conjuga simultaneamente passado, presente e um futuro que está por vir.

Sarrazac recorre a duas metáforas para compreender essa dramaturgia: a primeira,


retirada de procedimentos cirúrgicos, refere-se à prática da vivissecação, do cortar e cauterizar,
31

coser e descoser, como se o corpo do drama fosse uma matéria a ser remodelada, refeita; a outra
remete ainda à percepção dessa escrita como um monstro que, no sentido arquetípico, é o ser
que se constitui pela hibridação de partes de seres distintos num mesmo corpo. Como a célebre
criatura de Mary Shelley, o drama contemporâneo é fraturado, fragmentado, com suas partes
oriundas de materiais diversos, e seu dramaturgo é o Dr. Frankstein, responsável pela
construção do conjunto da obra.

Como o autor do romance, o autor-rapsodo do teatro comporta-se como um narrador,


pois é ele quem conduz a história, interrompe, suspende, comenta, refaz, intromete sua voz nas
vozes das personagens, multiplica os narradores, desnuda os dispositivos do texto e da cena e
questiona o desenvolvimento da peça, da mesma forma como propunha o encenador no Teatro
Épico. As intervenções do autor-rapsodo, sejam elas explícitas ou implícitas, podem ligar
diferentes planos dramáticos, espaciais e temporais de uma obra polifônica, estando elas
convertidas em rubricas ou disfarçadas no interior de uma ou mais personagens.

Na perspectiva de um teatro de ordem narrativa, Hans-Thies Lehmann observa que um


dos traços essenciais do teatro pós-dramático é o princípio da narração, pois se torna o lugar do
ato de contar. “Freqüentemente tem-se a impressão de assistir não a uma representação, cênica,
mas a um relato sobre a peça em questão. Nesse caso o teatro oscila entre narrações delongadas
e episódios de diálogos espalhados aqui e ali.” (LEHMANN, 2007: 185). Tratam-se por vezes
de lembranças/ narrativas pessoais dos atores e o interesse nelas se torna o ponto principal da
peça. Trazer o ator e sua biografia para a cena, comentar as passagens da encenação,
desconstruir e fragmentar o enredo são algumas características da dramaturgia pós-dramática.
A narração, que por outro lado prolifera e se perde no mundo dos meios de comunicação de
massa e das novas tecnologias, encontra um novo lugar no teatro, promovendo um processo de
redescoberta da representação de fábulas. Comparando-a ao Teatro Épico, esse autor oferece
uma profunda avaliação:

Enquanto o teatro épico transforma a representação dos procedimentos fictícios e


procura distanciar de si o espectador para fazer dele um especialista, um jurado
político, nas formas de narração pós-épicas trata-se da valorização da presença
pessoal do narrador, e não de sua presença demonstrativa, trata-se da intensidade auto-
referencial desse contato, da proximidade na distância, e não do distanciamento do
próximo. (LEHMANN, 2007: 187)
32

Sarrazac reforça esse impulso narrativo no teatro como uma necessidade de alguns
encenadores romperem a quarta parede e voltarem a se comunicar diretamente com o público,
sem necessidade do intermédio do diálogo dramático. Anne Ubersfeld percebe nesse fascínio
pela narrativa o desejo de romper as barreiras da continuidade do texto convencional, enquanto
eixo estruturador da narrativa, e de se lançar à descontinuidade do romance com suas rupturas,
fragmentações, idas e vindas espaço-temporais. Pode-se também compreender nesse
movimento da cena contemporânea um restauro da narrativa, cuja organização permite a
constituição de um imaginário comum e ativo entre o palco e o espectador, esse elevado ao
posto de interlocutor, já que o sistema obriga o desaparecimento da quarta parede. O teatro que
narra excede as determinações mais visuais de um teatro pós-moderno e reinstala a escuta do
receptor e sua participação: “Através da narrativa o público é também construtor das imagens
do espetáculo e o espetáculo teatral, ao invés de ser um sistema predominantemente sensível,
torna-se também um sistema fortemente imaginativo”. (ABREU, 2000: 124). Soma-se a isso o
fato de que o espetáculo não se priva de seus elementos dramáticos: a cena híbrida acolhe, no
mesmo espaço, narrativa e representação.

Sílvia Fernandes pensa que essa preferência pode estar relacionada ao desejo de uma
escrita cênica que ultrapasse os limites do drama e possa se relacionar com uma obra em sua
amplitude constitutiva. Dessa forma, o texto não-teatral se oferece ao encenador quase como
uma folha em branco, destituído de prévias determinações, sugestões ou marcações do autor,
visto que seu destino era de outra natureza: apresentando-se virgem à cena, está disponível a
experimentações e riscos de toda ordem. O encenador-autor pode ser responsável pela escolha
do texto e administrar seus cortes, deslocamentos e edições, construindo ou interferindo na
matéria dramatúrgica. Assim, seu trabalho se apropria também das ideias de encaixe e
montagem, cujas mãos manipulam e organizam o espetáculo, obtendo dele um conjunto
harmônico, uma totalidade.

A biblioteca do encenador-autor: modos de leitura e escrita cênica

Reforça-se dessa forma a dessacralização da escrita de autor, visto que o texto nas mãos
do encenador pode ser reescrito, adaptado, montado, recortado e remontado, configurando
operações sobre ele, seja escrito ou não para o teatro. A passagem do trabalho do encenador de
33

servir ao texto para servir-se do texto em prol de uma obra autônoma e singular sustenta uma
postura de liberdade criativa que, por sua vez, estabelece relações de ambiguidade com a escrita.
Jean Pierre Ryngaert distingue as práticas que visam explorar sentidos diversos de leitura de
um mesmo texto e aquelas que o utilizam apenas como pretexto para a encenação: “Já que tudo
é permitido, também os autores podem se permitir imaginar as formas mais originais e mais
inovadoras, dado que as convenções do passado explodiram e não exercem mais sua ditadura.”
(RYNGAERT, 1998: 65).

Nesse sentido, observa-se que a autoria do encenador refere-se a dois movimentos, um


de leitura e outro de escrita. Sobre a leitura, quer-se inferir que o encenador, ao realizar um
texto escrito, previamente lhe oferece sua percepção e interpretação; no segundo, o gesto
implica tanto na escrita (de um texto original) ou na reescrita (de um texto de outrem) quanto
no ato de escrever cenicamente o espetáculo. Por escrita cênica, termo cunhado por Roger
Planchon, entende-se os modos de colocar em cena personagens, espaços, lugares e ações,
designando por metáfora a prática da encenação que, por sua vez, apresenta instrumentos,
materiais e recursos singulares para construir significados da obra teatral para o espectador.
Não sendo responsável apenas pela translação do texto ao palco, o encenador controla e
organiza os sistemas cênicos e suas interações, em que a representação legitima o sentido mais
fundamental do teatro, como na síntese da definição de Pavis:

o texto cênico é fruto da composição de vários códigos que o encenador mobiliza na


estruturação de uma gigantesca partitura, em que espaço, ator, texto verbal, música e
demais matérias teatrais traçam figuras, ritmos, organizações formais, cadeias de
motivos e atitudes, quadros estáticos e em movimento, mutações de situação e de
ritmo, na organização de um discurso teatral de múltiplos enunciadores.
(FERNANDES, 2010: 116)

É nesse sentido que se está a pensar no encenador-autor, nos casos em que sua
encenação se opera a partir de textos não-teatrais e dos procedimentos utilizados para sua
transposição que estão diretamente relacionados à liberdade de composição e criação do
espetáculo. Bruno Tackels denomina-o como escritor de palco por perceber que muitas dessas
escrituras (independentes se operadas pelas mãos do dramaturgo ou do encenador) se realizam
nos ensaios, em que podem ser testadas, experimentadas, refeitas. Na passagem do livro à cena,
“Os escritores de palco não fazem outra coisa. Cada um à sua maneira, eles buscam os meios
34

justos para traduzir um corpus textual na linguagem viva do teatro, composto de corpos vivos,
de máquinas, de técnicas e de efeitos.” (TACKELS, 2009: 12, tradução minha).

De outro lado, a presença do dramaturgo na sala de ensaio incide numa escrita que
também se realiza a partir de improvisações, de materiais pesquisados e fornecidos pelos atores.
Principalmente por meio dos dispositivos tecnológicos como o computador e a internet, que
alteraram os modos de ler e escrever no século XXI, pode-se pensar também numa dramaturgia
Ctrl C/ Ctrl V, termo proposto por Antônio Hildebrando que corresponde ao mesmo gesto de
recortar e colar, organizar, juntar, ainda que para ele isso se dê de forma aleatória,
descompromissada, descolada de uma biblioteca (anterior) de leitura. O recurso técnico de
escrita digitalizada transformou o modo de se pensar numa escrita autoral, que passa a ser
tomada como uma rede de tessitura coletiva. Entretanto, por sua vez, ao colocar um texto do
gênero narrativo à prova da cena, esses encenadores acumulam o ofício da dramaturgia e
assumem outra natureza, a dos encenadores-autores. Ana Pais observa que o dramaturgo, na
posição de elemento externo à criação, revela-se como contraponto crítico importante para o
encenador, pois sua função é também questionar. Entretanto, “Quando o encenador assume essa
função ele passa a eliminar a possibilidade de interlocução e de questionamentos.” (PAIS,
2004a: 29), reforçando a autonomia da criação cênica.

Aqui, promove-se um desvio para deslocar o conceito de autoria de Michel Foucault,


emprestando-o ao campo da encenação teatral. Foucault aponta que a figura do autor carrega,
por meio de seu nome próprio, uma série de referências e características imanentes à própria
obra. Um nome de autor destaca-se entre os demais quando delimita singularidades de escrita,
reserva aos discursos determinados papéis, assegura funções classificativas, permitindo que
desse modo se possa selecionar e agrupar textos. A figura do autor é construída como resultado
de uma operação complexa, racional e não espontânea e simplesmente como atribuição de um
discurso a certo indivíduo. O autor é também o sujeito que garante uma unidade à escrita, cujas
diferenças são reduzidas pelos princípios da maturação, da evolução ou da influência; é quem
permite ultrapassar as contradições que podem se manifestar em uma série de textos. O próprio
texto, a dinâmica de sua construção e linguagem, entre outros fatores, remeterá o leitor à figura
do autor, cuja função é criar esse painel de referências e promover a unidade de discurso.
Portanto, o encenador-autor é aquele que organiza a dramaturgia e encena, desenvolve uma
série de procedimentos e métodos de criação para a construção de uma linguagem cênica e por
vezes escreve e reflete sobre seu trabalho.
35

Para Barthes, a palavra escrita é ambígua, pois se refere tanto à sua materialidade (gesto
físico, corporal, gráfico) quanto à imaterialidade (valores estéticos, linguísticos, sociais,
metafísicos): é “uma prática significante de enunciação na qual o sujeito ‘apresenta-se’ de um
modo particular.” (BARTHES, 2009: 72). A dramaturgia é o principal suporte material da
escrita cênica, em que se grafam a concepção e a estrutura do espetáculo, os textos falados,
divisões de cenas, rubricas e subtextos, podendo abarcar inclusive marcações, movimentações,
mapas da cenografia, pontuações musicais e sonoras e mudanças de iluminação. “Aberta e
instável, a escrita é, portanto, performativa. Ela é multisignificante e, portanto, decodificável.”
(FÉRAL, 2009: 74). Assim, a dramaturgia escreve a concepção autoral do encenador, revelando
aspectos de sua poética, dando-se a (re)conhecer ao público. A escrita cênica se realiza
integralmente (corporal, sonora e visualmente) no palco, no encontro com o espectador. A
possibilidade de melhor compreensão da escrita do encenador fora do ambiente teatral pode
residir no vídeo do espetáculo que, dependendo da maneira como é filmado, é capaz de revelar
a poética de seu realizador. A dramaturgia, ao contrário, é invisível porque,

por um lado, é uma práxis, um modo de fazer que se confina ao processo de gestação
de um espetáculo; e, por outro, porque permanece nele como o conjunto de relações
de sentido entre os materiais cénicos estruturados, decorrentes do olhar artístico. A
dramaturgia é o outro lado do espetáculo, o seu avesso invisível que, como um objecto
côncavo, implica uma complementaridade convexa. (PAIS, 2004a: 15-6)

Ao abrir o palco para outras textualidades que não resumem mais à forma canônica do
texto dramático, o encenador-autor investe nessa dramaturgia da leitura e de leitura, pois
envolve o universo ficcional que compõe sua biblioteca e seu imaginário. Trata-se de uma
dramaturgia “que se faz fundamentalmente como livre manipulação de arquivos, de acervos e
de bibliotecas por dramaturgos-leitores ou dramaturgos-pesquisadores”, formando um banco
de dados para sua utilização “em arranjos mais ou menos fragmentários e descontínuos, mas
necessariamente intertextuais, paródicos e plurívocos, na medida em que se trata de criações a
partir de criações, ou de escrita como comentário e como retomada de escritas e discursos de
outros autores” (COSTA FILHO, 2009: 44).

Em nosso panorama, aqui representados por montagens, sobretudo, do Rio de Janeiro e


São Paulo, esse tipo de experimentação tem produzido um incontável número de espetáculos
significativos, cujo precursor foi Antunes Filho e sua antológica montagem do romance
36

Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1978. Ele mesmo retomou esse processo em 2010 com
a estreia de Policarpo Quaresma, do romance O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, conquistando a reverência de público e crítica. Desde a década de 1970, vários
encenadores se utilizaram da matéria-prima narrativa, impondo a ela graus maiores ou menores
de adaptação, como Luiz Carlos Vasconcelos (Vau da Sarapalha, do conto Saparalha, de João
Guimarães Rosa), Luiz Arthur Nunes (A vida como ela é e O correio sentimental de Nelson
Rodrigues, da prosa de Nelson Rodrigues), Enrique Diaz (A paixão segundo G.H., romance de
Clarice Lispector), Gilberto Gawronski (Meu destino é pecar, de Nelson Rodrigues, Dama da
noite, de Caio Fernando Abreu, Queridinha, conto de Tcheckov), Bia Lessa (Cartas
portuguesas, textos de Madre Mariana Alcoforado; O homem sem qualidades, obra de Robert
Musil; Viagem ao centro da terra, romance de Jules Verne; e Orlando, livro de Virginia Woolf)
e, mais recentemente, José Celso Martinez Corrêa (Os sertões, narrativa de Euclides da Cunha;
O banquete, de Platão), Gabriel Villela (A crônica da casa assassinada, romance de Lúcio
Cardoso), Nara Keiserman (Eu, Caio – jogo teatral e No se puede vivir sin amor, com textos
de Caio Fernando Abreu), José Possi Neto (O evangelho segundo Jesus Cristo, de José
Saramago); Clarice Niskier (A alma imoral, do livro de Nilton Bonder); Hector Babenco (Hell,
texto de Lolita Pille), Denise Bandeira (A Eva futura, narrativa de Auguste Villiers de L’Isle-
Adam), Cibele Forjaz (O idiota, de Dostoievski), Cia. dos Atores de Laura (O filho eterno, obra
de Cristovão Tezza) e Priscilla Rozenbaum (Um coração fraco, conto de Dostoievski), Moacir
Chaves (A lua vem da Ásia, obra de Campos de Carvalho).

O inventário pesquisado é extenso, portanto, encerro com alguns trabalhos relevantes


nesse campo realizados em Belo Horizonte nas últimas décadas: Cia. Luna Lunera (Aqueles
dois, conto de Caio Fernando Abreu, e Cortiços, do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo),
Cia. Sonho e Drama (Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa e O processo, de Franz
Kafka), Cida Falabella (A hora da estrela, de Clarice Lispector; A casa do girassol vermelho,
contos de Murilo Rubião; e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago), Grupo Galpão
(Partido, da narrativa O visconde partido ao meio, de Ítalo Calvino; Eclipse, textos narrativos
de Theckov), Odeon Cia. de Teatro (Noites brancas, novela de Dostoievski, e Servidão, do
romance Servidão humana, de William Somerset Maugham), Cia. de Teatro Adulto (A morte
de DJ em Paris, de Roberto Drummond, e A última canção de amor deste pequeno universo, de
Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe), Asterisco Cia. (A casa do sol, textos de Hilda
Hilst), Cia. Clara (Nada aconteceu, do conto A dama do cachorrinho, de Tchekov), Glauce
Guima e Ana Hadad (O caderno rosa de Lori Lamby, prosa de Hilda Hilst), Insensata Cia. de
37

Teatro (Vulgaridades Sublimes, baseada nos contos Pai Contra Mãe e A Cartomante, de
Machado de Assis), Cláudio Dias (A máquina de fazer espanhóis, romance de Walter Hugo
Mãe, montagem de formatura do Cefar).

Principalmente por meio da declaração de Antoine Vitez que se pode “fazer teatro de
tudo”, a cena moderna e contemporânea sustenta a prerrogativa de que tudo é representável, ou
seja, “nenhum texto está, a priori, excluído do campo do teatro por falta de teatralidade.
(RYNGAERT, 1998: 31). Nesse sentido, toma-se o conceito de dramaturgia da leitura de Ana
Pais para quem se trata de “um modo de estruturar o espetáculo que se prende com uma visão
ou uma interpretação do mundo, orientada por princípios estabelecidos no início do processo
criativo e em função dos quais o espetáculo se realiza.” (PAIS, 2004: 34). A opção de alguns
encenadores por textualidades narrativas está relacionada à libertação da própria dramaturgia
de seus indícios canônicos e o romance, o maior representante do gênero, torna-se a matriz
textual fundadora de um campo vasto de criações e experimentações cênicas.

O romance como gênero narrativo inacabado: o presente em transformação

Tomado por Hegel como a epopeia da era burguesa, o romance se desenvolveu durante
o Realismo e desde então tem revelado um folêgo intenso para se reinventar, formal e
tematicamente, podendo ser reconhecido como um fenômeno multiforme. Georg Lukács,
filósofo húngaro e um dos mais importantes intelectuais europeus do último século, propôs um
tratado sobre o romance logo em sua juventude, obra que se tornou um clássico da Teoria da
Literaura e que influenciou as reflexões de Walter Benjamin e Theodor Adorno sobre o assunto.
Inicialmente para ele a correspondência alemã entre os conceitos de romance e romântico
justificava-se pelo fato do primeiro ser a forma que expressa o desabrigo transcendental do
homem moderno. O romance é o equivalente histórico da epopeia na época moderna, em que o
rompimento entre homem e comunidade/ divindade exige uma nova forma literária que o
institua e represente.

O romance é a escrita inaugural da era do indivíduo, da desintegração subjetiva entre o


eu e o mundo exterior. O princípio de totalidade da epopeia é substituído pela fragmentação,
heterogeneidade e descontinuidade do romance, cujo herói encontra-se alienado de sua
comunidade. Portanto sua aventura passa a ser a subjetiva, íntima, de seu universo interior
38

desconectado da realidade externa. O mundo antropocêntrico conquistou seu locus no gênero


épico da era moderna, inaugurado no século XVII com a publicação de Dom Quixote de la
Mancha, de Miguel de Cervantes, considerado o primeiro grande romance da literatura
mundial. Nesse “Novo Mundo, ser homem significa ser solitário”, a arte tornou-se desintegrada
do mundo, investiu-se no plano da expressividade interior, subjetiva, “pois a unidade natural
das esferas metafísicas foi rompida para sempre.” (LUKÁCS, 2000: 34). O gênero romanesco
versa sobre uma narrativa extensa, que revela uma personagem ou personagens em um processo
de desenvolvimento decorrente dos eventos da trama, cada um assumindo o controle da escrita
e o direcionamento de sua própria tragédia individual, rumo ao autoconhecimento, como o
protagonista de Crime e castigo, de Dostoievski.

A subjetividade do romance situa-se nesse projeto existencial, enquanto sua


objetividade dirige-se à diversidade de projetos existenciais representados pelo caráter
polifônico que assume, ainda que a multiplicidade de vozes seja orquestrada por uma única
personagem narradora: “O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade;
seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca
aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência.”
(LUKÁCS, 2000: 91). Pode-se pensar que se está diante de uma forma artística que revela um
tempo histórico em que os seres humanos foram abandonados pelos deuses e que o indivíduo
independente e solitário é representado por uma estética que se apresenta como a história do
sofrimento metafísico. A ironia é o elemento estrutural que fundamenta o romance, pois
representa a liberdade do escritor perante a divindade e a subjetividade do sujeito é tomada
como objeto de reflexão.

Daqui podem ser extraídos dois conceitos que são caros a Lukács e que serão também
explorados por Mikhail Bakhtin, cada um a seu modo: a polifonia vocal e a linguagem
monológica. Para o linguista russo, o discurso romancesco foi tratado durante muito tempo por
pesquisadores da Filosofia, da Linguística e da Estilística como uma unidade de linguagem de
caráter monológico por corresponder a uma individualidade de escrita e de narrativa,
constituindo-se como um universo autônomo e dirigido a um leitor empírico passivo. Percebido
em seu conjunto, Bakhtin caracteriza o romance como um fenômeno plural no que diz respeito
ao estilo, à língua e à vocalização: “O pesquisador depara-se nele com certas unidades
estilísticas heterogêneas que respousam às vezes em planos linguísticos diferentes e que estão
submetidas a leis estilísticas distintas.” (BAKHTIN, 1988: 73).
39

O plurilinguismo no romance forma-se pela interação dialogizada entre outras


enunciações ou unidades, como os discursos do autor, dos narradores e dos personagens, além
da intercalação de gêneros. O filólogo define o estilo do romance pela diversidade de estilos e
línguas “organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais” (BAKHTIN,
1988: 74). Portanto, no romance há uma estratificação interna de linguagens que estabelece
conflitos entre vozes autônomas. Encerrado muitas vezes à compreensão pelo discurso poético,
o autor reatribui ao romanesco as categorias da retórica, que durante muitos séculos governaram
a literatura em prosa e com as quais mantém estreitas semelhanças genéticas.

E no curso de toda a evolução ulterior do romance, a sua profunda interação (tanto


pacífica, quanto hostil) com os gêneros retóricos vivos (jornalísticos, morais,
filosóficos e outros), não se interrompeu e não foi, talvez, tão interrompida quanto a
sua interação com os gêneros literários (épicos, dramáticos e líricos). Porém, nessa
constante inter-relação mútua o discurso romanesco conservou sua originalidade
qualitativa irredutível à palavra retórica. (BAKHTIN, 1988: 80)

Bakhtin toma o romance como um gênero versátil, que se constitui em processo, em


devir, e que não dispõe de uma conceituação rígida por estar em constante evolução devido ao
seu inacabamento. Trata-se de um gênero e uma língua jovens, em relação à epopeia e à tragédia
(que ele considera como línguas mortas); seus princípios passaram a contaminar ou romancizar
os demais gêneros literários como o drama, o poema e a lírica, oferecendo-lhes mais liberdade
e desenvoltura, tendo suas linguagens afetadas pelo plurilinguismo extraliterário e pelos
estratos literários. Dessa forma, o romance estabelece um diálogo, algumas vezes paródico, com
os demais gêneros, integra-os, elimina-os e reinterpreta-os, oferecendo-lhes um novo tom. Por
estar diretamente ligado ao tempo presente, o romance (assim como o teatro) reformula-se a
cada época, transforma-se por seu inacabamento; ele nunca é, sempre está. É o um dos poucos
gêneros literários em desenvolvimento constante (ao seu lado está a dramaturgia) e pode refletir
com mais profundidade, rapidez, substância e sensibilidade o desenvolvimento da própria
realidade em que se inscreve: “Somente o que evolui pode compreender a evolução”
(BAKHTIN, 1988: 400). Ao romance se atribui a qualidade de expressar as tendências do novo
mundo, renovar e antecipar as transformações futuras da literatura, contagiando os demais
gêneros por sua incompletude e também por seu vínculo com a realidade. Sua maleabilidade
inaugura uma era de contaminações entre expressões artísticas que não se restringem à
literatura.
40

Na tentativa de caracterizar o romance, Bakhtin avança sobre as restrições de sua


definição e aponta como singularidades: a não inscrição no campo do poético, no sentido
usualmente atribuído a outros gêneros; o protagonista não um herói na acepção épica ou trágica,
pois deve apresentar características antagônicas, revelar-se como uma personagem complexa
que dispõe de traços sérios e cômicos, positivos e negativos, inferiores e elevados, mostrar-se
como alguém em evolução; e, assim como Lukács, percebe o romance como típico do mundo
contemporâneo, assim como a epopeia havia sido para a antiguidade. “A experiência, o
conhecimento e a prática (o futuro) definem o romance.” (BAKHTIN, 1988: 407).

Gênero multiestilístico, representante maior da nova fase do “nome de autor”


foucaultiano, é herdeiro da paródia dos romances de cavalaria que culminou na escrita de Dom
Quixote, estando vinculado de certa maneira aos gêneros sério-cômicos, pois o riso é capaz de
destruir a distância épica. A comicidade é um procedimento de descompostura e de
aproximação, de uma atualização vinculada ao espaço e ao tempo presente, o que promove uma
dessacralização, um desmembramento. Vale recuperar a percepção de Georg Lukács, quando
afirma que o romance presta-se a um mundo sem deus, e que a natureza da personagem é
demoníaca, pois ela é humana, inteiramente humana e está só, assim como seu autor.

No século XVII, quando o leitor já se encontra projetado no texto, sua relação com o
romance passa a ser individualizada, e “a leitura em voz alta era vista, assim, como um meio de
ler que fundava e alimentava as relações de sociabilidade, mas também como uma prática que
impossibilitava o investimento completo da sensibilidade no texto lido.” (CHARTIER, 2002:
9). O romance moderno, por conseguinte, propõe um novo estatuto a partir dos recursos de
impressão e circulação das obras em massa. Emblemático quanto à autoria e à recepção
individuais, promoveu a transformação do hábito de leitura em voz alta para a silenciosa, ainda
que isso custasse alguns questionamentos quanto aos “perigos da leitura”, principalmente em
relação às mulheres. Numa época em que a figura feminina ainda se mantinha nos domínios do
lar, alienada da vida produtiva e do trabalho, pensava-se que a subjetividade do romance e a
introspecção de sua fruição pudessem trazer graves consequências físicas e mentais ao
indivíduo2. Sua própria escrita em princípio objetivava a inscrição de alguns indícios de

2
A controversa expressão “revolução da leitura”, que transformou as práticas de escrita em meados do século
XVIII, remete às posições defendidas por alguns intelectuais que identificaram efeitos maléficos, físicos e morais
quanto à fruição da imaginação pela ficção romanesca. A leitura particularizada desses textos, em oposição àquela
coletivizada e audível, parecia instaurar para o leitor uma indistinção entre o mundo do texto e o do leitor. O
excesso de leitura era tratado como patologia individual ou como uma epidemia social, além de ser considerada
41

oralidade para manter sua destinação à leitura em voz alta; por outro lado, a complexidade da
linguagem romancesca exigia uma apreensão à parte, em solidão. Chartier expõe algumas
reflexões, exaltações e elogios de Diderot à leitura, incluindo a de voz alta, dos romances de
Richardson, cuja escrita envolve o receptor:

O romance toma conta do leitor, o captura, governa seus pensamentos e seu


comportamento. Ele é lido, relido, decorado, citado, recitado. O leitor é invadido por
um texto que o habita e, ao identificar-se com os heróis da narrativa, ele decifra sua
própria existência por meio da ficção. Nesta leitura particularmente intensa e
“intensiva”, toda a sensibilidade fica comprometida e o leitor, ou a leitora, não
consegue reter a emoção com as lágrimas. (CHARTIER, 2002: 108)

A coexistência entre a solitude e a socialização da leitura, entre silêncio e oralidade,


alarga as práticas que envolvem a apreensão de um texto, diversificadas quanto ao tempo,
espaço e gêneros3. Passado o tempo em que a leitura individualizada era entendida como um
mal para o sujeito, o romance firma-se a como o expoente de uma nova era, a partir de sua
capturação pelos dispositivos de impressão massiva e sua entrada na sociedade de consumo,
tendo ainda o autor como o novo sacerdote das letras, venerado e sacralizado pelo público.
Zumthor reflete que “Para o homem do fim do século XX, a leitura responde a uma necessidade,
tanto de ouvir quanto de conhecer. O corpo aí se recolhe. É uma voz que ele escuta e ele
reencontra uma sensibilidade que dois ou três séculos de escrita tinham anestesiado, sem
destruir.” (ZUMTHOR, 2007: 60).

A voz do autor emerge na prosa romanesca: ele também é sujeito, estando ou não
disfarçado na voz da personagem; é soberano, pois, além de deter as propriedades da escrita,
sabe mais que os personagens, correspondendo a uma entidade divina onipotente que conduz
suas criaturas numa sucessão de acontecimentos que se encaminha a uma conclusão, a um fim.
Sua representação do humano dirige-se à interioridade, situada na divergência entre aparência
e essência, influenciada pelos procedimentos cômicos que desnudam os seres, expõem seu

propícia à desorganização mental, pela negação do mundo real e a preferência pela fantasia. Pensada a partir de
seus feitos físicos, corporais, a leitura é aproximada dos prazeres solitários.
3
Ao ser utilizado como matéria-prima dramatúrgica de espetáculos, o texto romanesco ganhará novamente a voz
falada, aspecto que será examinado no tópico seguinte.
42

avesso e revelam deles aspectos distintos. O autor do romance estabelece novas relações com
o mundo que representa, promovendo uma hibridização entre seu discurso e o da personagem:

O romance está ligado aos elementos do presente inacabado que não se deixam
enrijecer. O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado.
Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode representar
os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão, pode se intrometer na conversa
dos personagens, pode polemizar abertamente com os seus inimigos literários, etc.
[…] É exatamente esta nova posição do autor, primeiro e formal, na zona de contato
com o mundo representado, que torna possível a sua aparição no campo de
representação da imagem do autor. (BAKHTIN, 1988: 417)

Construído numa zona de contato com o presente em devir, o romance tem como
premissa a sua instabilidade formal e temática, capaz de sofrer alterações e acompanhar as
mudanças da realidade a ele vinculadas. A crise do romance da era burguesa, o romance
romântico, foi indicada principalmente pelo aperfeiçoamento dos dispositivos de impressão em
massa e invenção dos novos meios tecnológicos. Entretanto, como temiam alguns pensadores,
não configurou como uma ameaça ao romance. O século XX viu este gênero transformar-se e
estabelecer contaminações entre as novas linguagens. O romance influenciou o jornalismo,
assim como o cinema, o teatro e os meios de comunicação de massa, ao passo que ele sofria
influência desses mesmos sistemas.

Theodor Adorno percebe que, com o desenvolvimento massivo da imprensa, a


objetividade épica do romance passa a encontrar lugar de mais expressividade na narrativa
jornalística. Portanto, o romance teve que extrapolar os limites do relato para alcançar novas
formas de expressão, assimilando do “Novo Mundo” a fragmentação, a heterogeneidade, a
simultaneidade e a descontinuidade. A narrativa suplantou o livro impresso e ocupou outros
mecanismos simbólicos: “os cineastas nos contam histórias, ao passo que os escritores encenam
as palavras...” (TODOROV, 1980: 74). Por isso, o romance precisou transpor as fronteiras do
relato: para Adorno, o ato de narrar deve significar para o leitor mais do que o simples ato de
sentar-se para ler um bom livro.

O realismo literário, assim como o teatral, encontra seu espaço até as primeiras décadas
do século XX e sua configuração do real está atrelada, para o leitor, ao conceito de ilusão.
Adorno, contemporâneo de Brecht, compara o romance burguês a um palco à italiana, onde o
afastamento físico do público em relação ao espetáculo pode provocar sensações de fantasia,
43

irrealidade. Daí, seu pensamento articular-se em torno dos problemas gerados pelas mudanças
sociais pós-Revolução Industrial: extensas jornadas de trabalho, tempos reduzidos de lazer,
alienação do indivíduo etc. Não é mais possível o narrador se manter incólume sob pilares da
objetividade dos fatos narrados, pois o mundo não tem mais o sentido que tinha para as pessoas
do século XIX.

Deve haver uma distância estética na relação entre narrador e leitor, que implica em
variações semelhantes às que são possíveis pelas câmeras do cinema: o leitor é guiado pela
narrativa, outras vezes pode ser deixado de lado, apenas como mero espectador, ou levado para
os meandros da construção textual, por meio de comentários do narrador, como se adentrasse
os bastidores de um teatro e descobrisse as maquinarias, as amarras escondidas para provocar
a ilusão da realidade. Isso configura aspectos de metanarratividade, pois, enquanto narra, mostra
seu gesto, o que aproxima essa escrita da escrita teatral brechtiana, por exemplo. Está claro que
Adorno e Brecht, para além de serem contemporâneos, tinham afinidades de pensamento sobre
esse campo.

Em contraposição, Wolfgang Iser percebe, analisando contos de Henry James, as


mudanças paradigmáticas que envolveram uma interpretação teórica da literatura que, em fins
do século XIX, buscava desvendar significações ocultas na obra literária. O narrador, então, é
visto como aquele que esconde e o crítico como aquele que descobre ou desvenda. Dessa
maneira, o raciocínio de que o sentido da obra pode ser subtraído do texto revela-se enganoso,
pois, ao realizar-se, esvazia a própria obra “como uma casca vazia” (ISER, 1996: 25). James,
no conto O desenho no tapete, promove a crítica à crítica que, ao buscar o sentido oculto, não
é capaz de ver coisa alguma, ou seja, não perceber as redes de sentido que a obra oferece às
múltiplas interpretações. Nesse campo, a arte moderna e abstrata vem desconstruir tal prática
interpretativa, caminhando em direção a uma plurissignificação. O texto romanesco, portanto,
rompe a partir da modernidade com o paradigma narrativo clássico, caminhando em direção a
experimentalismos de toda a ordem, percebendo a representação das identidades humanas e da
linguagem não mais como uma unidade, mas como uma multiplicidade fragmentária e híbrida.

Um dos teóricos que se debruçou sobre a questão da identidade na pós-modernidade foi


o inglês Stuart Hall. No ensaio Descentrando o sujeito, ele traça um painel das razões que
levaram muitas pessoas a sustentar que a fragmentação das identidades modernas não se deu
apenas pela desagregação do sujeito, mas também pelo seu deslocamento. O autor cita cinco
grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas, ocorridos no pensamento da segunda
44

metade do século XX, que provocaram o descentramento do sujeito cartesiano: a redescoberta


da filosofia marxista, a revelação do inconsciente por Sigmund Freud, a proposição de
Ferdinand de Saussure da linguagem como um sistema social e não individual, o conceito de
poder disciplinar de Michel Foucault, e, finalmente, o impacto do feminismo enquanto crítica
teórica e movimento social. Portanto, o indivíduo, antes cartesiano, “visto como tendo uma
identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias,
inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno.” (HALL, 2000: 46).

A esse respeito, Ítalo Calvino analisa a questão da multiplicidade na produção literária


contemporânea a partir da escrita de Carlo Emilio Gadda. Seu objetivo é examinar o romance
“como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões
entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo.” (CALVINO, 1990: 121). Ele percebe
nessa escrita a construção de uma rede intrincada de relações, da qual o escritor não consegue
escapar; daí a incursão pelo processo de multiplicar os detalhes de cada objeto a ponto de suas
descrições e divagações se tornarem infinitas. Tem-se, portanto, esse movimento como uma
exploração do potencial semântico das palavras, pois constituem vasta variedade de formas
verbais e sintáticas, com suas distintas conotações. O texto abarca uma multiplicidade de
sujeitos, vozes e olhares sobre o mundo, corroborando a ideia bakhtiniana do romance como
um texto dialógico, polifônico. Portanto, se o romance é vulnerável por vincular-se e adaptar-
se à realidade do tempo presente, estabelece pleno diálogo com a pós-modernidade, assumindo
sua linguagem multíplice, suas ideias de sujeitos descentrados e escrita enredada, que abre
novas expressividades para sua escrita.

Conforme expõe Octavio Paz, o romance contemporâneo caracteriza-se também pela


ambiguidade entre prosa e verso. O que a princípio distingue os dois gêneros é o ritmo, elemento
mais antigo e permanente da linguagem e anterior à própria fala. Nesse sentido, o ritmo
apresenta-se plenamente no poema, porque na prosa a violência racional e a organização de um
pensamento desprendem dele as palavras, impedindo sua plena instauração. A prosa, ao buscar
a coerência e a claridade conceitual, afasta-se da corrente rítmica que tende a se manifestar em
imagens (poesia) e não em conceitos. Na prosa, o ritmo se apresenta em incessante movimento
de ir e vir e daí cede lugar à marcha do pensamento. Se se buscasse representar poesia e prosa
em figuras geométricas, a primeira seria um círculo ou uma esfera, pois constitui uma ordem
fechada, universo autossuficiente: o fim é também o princípio que volta, se repete e se recria (o
ritmo). A prosa se configuraria como uma linha – que pode se apresentar nas formas reta,
sinuosa, espiralada, ziguezagueante – mas sempre em direção a uma meta precisa.
45

O ritmo é inseparável da frase, pois é imagem e sentido, assegura Paz. A frase poética,
unidade indivisível e compacta, se forma pela simultaneidade entre ritmo, imagem e
significado: nisso reside esse hibridismo entre verso e prosa na narrativa contemporânea. O
investimento nas pontuações marca essa escrita, como se percebem nas incessantes vírgulas de
José Saramago, Hilda Hilst e James Joyce, que buscam imprimir outro ritmo de leitura,
aproximando-a de uma prosa poética em que ora se constitui como círculo, ora como linha,
ainda que espiralada. Ao relacionar prosa e verso, a narrativa contemporânea toma posse de
imagens poéticas e conceitos, narrativa e discurso, em meio a uma profusão de vozes (polifonia)
que ecoam no fluxo da escrita. Se só a imagem é capaz de dizer o indizível, a interpenetração
entre prosa e verso encaminha a narrativa para a pluralidade de sentidos:

A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer.
Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais sentido que as suas
imagens. Ao ver a cadeira, apreendemos instantaneamente seu sentido: sem
necessidade de recorrer à palavra, sentamo-nos. O mesmo ocorre com o poema: suas
imagens não nos levam a outra coisa, como ocorre com a prosa, mas nos colocam
diante de uma realidade concreta. (PAZ, 1996: 47)

Outros aspectos marcam a escrita em prosa contemporânea, como a aproximação com


a linguagem falada, a inserção de vocábulos de línguas estrangeiras e a convivência entre
técnico e científico, a cultura pop, intertextualidades, a paródia, a invenção de palavras, o fluxo
verbal, associação fortuita e casual de pensamentos e imagens, a performatividade da própria
escrita. Os textos de Marcel Proust, Virginia Woolf e James Joyce, por exemplo, são
emblemáticos da crise do ato de narrar que acomete a literatura da primeira metade do século
XX, em que questionamentos do texto, do mundo e de si mesmos tornaram-se fonte inesgotável
de sua produção. Se o narrador tradicional demonstrava uma segurança sobre a matéria narrada,
a modernidade e a pós-modernidade desestabilizaram-na, colocando-o face a face com as
múltiplas dimensões de consciência e incertezas.

Em decorrência dos fatores enunciados, o romance alcançou outras estruturas e


patamares a partir do século XX, não se encerrando à estrutura clássica, diluindo fronteiras
entre gêneros e produzindo um texto híbrido. Entretanto, Umberto Eco assegura que a obra
Finnegan’s Wake, de Joyce, foi a última fronteira do experimentalismo romanesco, o que
propiciou à pós-modernidade um recuo à narrativa clássica e linear. O romance, para ele, é a
realização maior da narratividade, restaurado a partir das formas e dos artifícios da tradição.
46

“Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe
e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais
eficaz que qualquer tecnologia.” (ECO, 2012: 49).

Tal percepção se potencializa nos últimos anos, quando o romance se depara com novos
procedimentos de escrita como a linguagem da internet e mídias digitais e seus novos
mecanismos de transmissão (blogs, arquivos digitais, audiobooks, tablets etc). A literatura,
considerada muitas vezes como um passatempo de luxo é, ao contrário, “uma atividade
insubstituível para a formação do cidadão numa sociedade moderna e democrática” (LLOSA,
2009: 21). O romance se reajusta e se renova, provando sua vitalidade para expressar as
questões humanas. Portanto, de Cervantes a Flaubert, de Dostoievski a Joyce, de Machado de
Assis a Guimarães Rosa, de Hilda Hilst a João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho, de Eça de
Queiroz a Augusto Abelaira, de Saramago a Gonçalo M. Tavares, o romance ocidental tem
revelado grande disposição de se reinventar e sua virilidade, como cunhou Lukács (2000), ainda
se mantém, mesmo que alguns pensadores descrentes acreditem na sua extinção.

A linguagem romanesca e suas interseções com o drama

A linguagem do romance refere-se a uma representação do mundo por meio da palavra


escrita, sustentado por descrição, argumentação e narrativa em que um narrador (onisciente ou
onipresente) relata fatos e acontecimentos, descrevendo situações, espaços, cenários,
referenciando o enredo nos aspectos temporais. Os diálogos, tão essenciais ao texto dramático,
não são tão caros ao romance tradicional (os modernos e contemporâneos não o dispensam,
como Rubem Fonseca, por exemplo), que busca outros modos de expressão, privilegiando o
ato de narrar. O texto do romance distingue-se ainda pelo trabalho de construção e invenção da
linguagem, pela riqueza de metáforas, metonímias e outros recursos, e também pela sua
comunicação individual com o leitor.

Quanto à literatura em prosa, em que estão incluídos contos e romances, Todorov


explicita que dois de seus principais elementos constituem-se de temporalidade: a narrativa e a
descrição, sendo que a primeira apresenta um tempo descontínuo em detrimento da ação, e a
continuidade do tempo da segunda revela um olhar contemplativo, outro “tempo, pura
duração”, sobre o que é exposto pelo autor. Percebe-se que a descrição por si só não sustenta a
47

narrativa, visto que essa “exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança, a diferença.”
(TODOROV, 1980: 62). A narrativa configura um encadeamento cronológico de
acontecimentos, algumas vezes marcado pela causalidade de unidades descontínuas, tendo
como dois princípios a sucessão e a transformação. A sucessão implica numa ordenação de
fatos que se seguem numa ordem lógica, enquanto a transformação envolve uma alteração de
um termo em outro, podendo ser de negação, de modo, de intenção, de conhecimento.

A narrativa organiza-se nos tipos: mitológico, em que a lógica da sucessão une-se às


transformações de negação; gnoseológico ou epistêmico, em que a percepção que se tem do
acontecimento suplanta sua importância; e ideológico, em que as idéias e os pensamentos do
autor são expostos mais explicitamente. A personagem, por sua vez, pode estar ligada ao
desenvolvimento da ação, mas não é sua determinante, ao passo que nem toda narrativa é uma
descrição de caracteres: “a personagem é uma história virtual que é a história de sua vida. Toda
nova personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homens-narrativas”
(TODOROV, 2003: 123). A personagem serve à ação e aos acontecimentos, representa um
novo que gera e promove ação. Assim, a inserção de um novo caractere ocorre a partir do
procedimento de encaixe, pois uma nova história adentra a estrutura ficcional, promovendo em
alguns casos digressões, pois é a narrativa de uma narrativa.

A enunciação em um texto pode dividir-se em dois níveis: um ficcional (o narrador) e


outro não-ficcional (o autor). A voz do primeiro não necessariamente corresponde à do
segundo, ainda que sua dicção possa ser encontrada ou suas vozes misturadas no corpo da
escrita. Há outras vozes nos textos ficcionais, como observou Bakhtin, que são transmitidas
pela voz do narrador, que por sua vez pode também se apresentar como uma personagem,
protagonista ou coadjuvante na diegese. A voz do autor, entidade empírica e real, portanto, é
aquela que orquestra as vozes do narrador e das personagens ficcionais. O ponto de vista do
narrador é seu filtro do mundo, lugar de nomeação das coisas, formação de conceitos e maneiras
de reconhecer a si e a tudo que o circunda. O ponto de vista pode ser mais do que o lugar de
onde o narrador percebe aquilo que narra. Seus preconceitos, seu caráter ideológico, sua
perspicácia estética, tudo pode constituir sua ótica perceptiva. Tanto no teatro quanto na
literatura o tempo da enunciação dá-se sempre no presente: na oralidade, pelo presente da fala,
e na escrita, pelo presente da leitura.

Para Paul Ricoeur, o ser humano existe em relação à linguagem e à alteridade e sua
compreensão do mundo é relativizada no confronto com a interpretação do outro. O que vai
48

diferenciar um homem de outro é a sua postura diante da linguagem (ou do mundo), mas sua
compreensão do sentido enunciado é ampliada a partir da percepção de que aquele é um
interpretante semelhante. O autoconhecimento se realiza na dialética com a alteridade,
interceptado pela linguagem. A noção de identidade é também mediada pela narratividade, em
que a configuração temporal de um enredo produz outros processos de compreensão do sujeito.
A narração não garante os efeitos da enunciação sobre o receptor, podendo resultar em
interpretações concordantes ou discordantes, estando na ordem do subjetivo. A identidade
narrativa do sujeito, assim como a linguagem, é sempre inacabada, inconclusa, aberta a
interpretações diversas. Narrar é uma forma de estar no mundo e entendê-lo; é por meio da
narrativa que se pode reunir e representar distintas perspectivas sobre o tempo.

Narratividade e temporalidade são interdependentes e Ricoeur distingue tempo


narrativizado de narrativa temporal, pois a narrativa é um recurso de fazer o enredo perdurar
no tempo, enquanto o tempo só se revela para o sujeito por meio da narratividade do enredo. A
narrativa constitui-se como um discurso indireto sobre a temporalidade, propondo mediações
entre os tempos cronológico e psicológico, entre intratemporalidade e historialidade. O tempo
é o elemento comum da experiência humana, pois tudo o que é narrado se desenrola sobre um
tempo e vice-versa. Se a consciência da finitude, da morte, é o que caracteriza o sentido da
existência humana, o sujeito recorre à narrativa como forma de inscrever sua marca no mundo.
Ao mesmo tempo, a noção de morte vincula o ser humano ao passado: entre o presente e o
ausente assentam-se, pela memória, o reconhecimento do que se passou e a consciência do que
ainda perdura. A narrativa articula a experiência humana com o tempo, da mesma forma que o
tempo se humaniza pela narrativa.

Outro aspecto que irmana teatro e romance é a organização em cenas, unidades mínimas
de estrutura, que conquista seu estatuto de enquadramento, apresentando, portanto, bordas e
limites. É por meio de quadros (capitulares, cênicos) que o narrador promove seus
deslocamentos espaço-temporais e, como discutido a partir de Derrida, conforma uma
conjunção entre presente, passado e futuro. O texto narrativo pode ser tomado, portanto, como
um conjunto de quadros verbais que permite ao leitor uma coexistência entre espacialidade e
temporalidade, de estático e dinâmico, corte e fluxo, simultaneidade e sucessão. Bakhtin
acrescenta que o estilo do romance pode ultrapassar o conceito de épico e constituir-se de
elementos dramáticos, “reduzindo-se o elemento narrativo à simples indicação cênica para os
diálogos dos personagens.” (BAKHTIN, 1988: 77).
49

A princípio, o drama requer uma diferente organização dos seus elementos, mas
Todorov encontra em Notas de um subterrâneo, de Dostoievski, ademais da exposição de ideias
do autor, a sua aproximação com o drama, por meio de uma encenação sem falas e pela
disposição de vários papéis. O hibridismo entre diálogo e narrativa caracteriza, por exemplo, a
prosa ficcional de Hilda Hilst4 que muitas vezes parece mais apropriada à encenação teatral do
que à leitura. Ainda, alguns de seus narradores, como o escritor Osmo de Fluxo-floema,
parecem dirigir-se a uma plateia, transformando a figura do narratário numa entidade coletiva:
“há três dias que dou umas cusparadas pelos cantos, a minha mãezinha não me aguentava desde
pequenininho, não só por causa dessas cusparadas, não me agüentava por tudo, entendem? Não,
não entenderam, já vi.” (HILST, 2003: 76, grifos meus). Não é à toa que suas narrativas
costumam ser mais encenadas que sua própria obra dramática, mais lírica e poética.

O romance apresenta-se como uma linguagem polifônica, plural e em processo, pois


está ancorado no tempo presente e sujeito às suas transformações. Seu inacabamento também
se relaciona à maneira como influenciou outras linguagens e também foi acometido por elas,
revelando grande capacidade de se reinventar. Não se tratam apenas de contaminações, pois o
romance foi convocado à criação de muitos espetáculos no teatro moderno e contemporâneo,
num movimento que implica em deslocamentos e na sua desindividualização, pois passa a se
expor diante de uma audiência coletiva, muitas vezes encenado por vários atores, o que exige
compreensão de suas questões performativas em cena.

A performatividade narrativa na construção de novas relações entre palco e plateia

Uma mulher lê em voz alta histórias para o filho adormecer. Para tanto, busca uma voz
que possa conduzir seu ouvinte ao estado de atenção e quietude, incitando-o a imaginar os
eventos narrados e personagens descritos. Modula sua voz algumas vezes, quando reproduz a
fala de uma ou outra personagem, procurando distingui-la da do narrador, destaca um ou outro
gesto. O ouvinte, por sua vez, atravessa um percurso, acompanhando os acontecimentos
imaginados, agarrando-se à sequência de eventos, como numa corda que não o deixe cair, até

4
Tomei a escritora Hilda Hilst para exemplificar, pois foi objeto de minha investigação de Mestrado em Literaturas
de Língua Portuguesa, publicada pela Ed. Annablume em 2010 sob o título O fluxo metanarrativo de Hilda Hilst
em Fluxo-floema.
50

chegar ao final dessa travessia, quando há o gozo da sua conclusão e seu esvanecimento, e o
processo se reinicia. Essa imagem, de uma performance de leitura, revela uma prática ancestral
de vocalização de textos, reais ou ficcionais, que têm caracterizado uma das formas de interação
humana ao longo dos tempos.

Esse tipo de comunicação, que se funda pela narrativa como mensagem e transmissão
de fatos, personagens, acontecimentos e sentimentos, retoma alguns princípios fundamentais
para esta investigação: as relações entre a palavra impressa e a palavra falada, entre escrita e
oralidade, entre leitura silenciosa e leitura performatizada (onde os corpos participam todo
ouvidos); o estabelecimento de um processo de comunicação que se dá na interação entre dois
seres humanos no mesmo tempo e espaço mediados pela palavra em que importam a
performance de quem fala (e atua, em alguns casos) e a recepção de quem ouve; a passagem
que se opera do escrito para o vocal/ corporal promove alterações temporais e espaciais pelo
lugar onde essa performance se realiza e atualiza no presente algo similar a um acontecimento
teatral; a ligação dos seres humanos com a narrativa que, fundados sobre o mito de Sherazade,
mantêm viva a ideia de adiamento da morte.

O gosto pelo narrar e ouvir histórias remonta às Mil e uma noites, em que a narradora
Sherazade se propõe a entreter o rei persa Shariar, que tinha como hábito deflorar mulheres
virgens e depois mandar decapitá-las. Oferece-se a ele como esposa e inicia seu plano de conter
as práticas assassinas de seu recém-marido, contando-lhe histórias que duravam o percurso de
uma noite, findavam ao amanhecer e recomeçavam na noite seguinte. Curioso para conhecer o
desenrolar dos acontecimentos, Shariar vai renovando diariamente sua concessão de vida a
Sherazade, desde que as histórias narradas por ela fossem retomadas. Dessa forma, mil uma
noites atravessadas e três filhos gerados neste percurso levaram o rei a rever suas atitudes e
oficializar sua narradora como rainha.

Ver e ouvir o texto: relações entre oralidade, escrita, leitura e performance

A relação entre o humano e a narrativa associa-se à ideia de adiamento da morte,


herdeiros que somos de Sherazade. Ao acompanhar os eventos narrados, seja pela escuta, pela
leitura silenciosa ou por outras linguagens mais modernas como o cinema, a televisão e a
internet, busca-se ludibriar a sensação de finitude, de afastar os pesares da realidade e assim
51

enganar a morte: “A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa à morte. [...] O livro que
não conta nenhuma narrativa mata.” (TODOROV, 2003: 128). Isso atribui à palavra um poder
encantatório ao ser transformada em carne pela sua corporificação/ vocalização. Adélia Bezerra
de Menezes confirma o poder dessa palavra, a partir da perspectiva das Mil e uma noites e sua
protagonista:

A sultana era uma contadora de histórias, não em primeira linha uma escritora: ela as
contava de viva voz. […] Não podemos esquecer da carga corporal que a palavra
falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo: modulada pela voz humana, e
portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz
humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos
da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso:
ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca
dimensão sensorial. (MENEZES, 1995: 22)

A sensorialidade oferecida pela fala, que não se resume à voz, ao som ou aos
movimentos da cavidade bucal, pois que integrada ao próprio corpo, é capaz de contaminar
simultaneamente falante e ouvinte. A comunicação por meio da palavra falada realiza-se pela
audição, centro da percepção humana, que confere uma experiência de unidade: “O som nos
invade por todos os lados e passa através de nós. Todo nosso corpo é uma unidade auditiva,
porque estamos no centro do campo sonoro.” (MATOS e SORSY, 2009: 6). Portanto, nesse
aspecto, o corpo é um corpo todo ouvidos pela capacidade do som de ocupar o espaço, promover
uma integração entre falantes e ouvintes. Os corpos ouvem e compreendem, pois “Nossos
‘sentidos’, na significação mais corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as
ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento” (ZUMTHOR, 2007: 81). Não apenas
pode-se pensar que o conhecimento é dado através do corpo, mas também porque ele é
primordialmente conhecimento do corpo.

Por isso a oralidade se opõe a outro meio de transmissão de textos, a palavra escrita,
cujo maior expoente é o livro, ou seja, um objeto que se caracteriza por uma reunião de folhas
de papel encadernadas, formando um volume recoberto por capa resistente, envolve a narrativa
de um autor sobre personagens, enredos e mundos imaginados por ele e destinados à leitura
silenciosa. O corpo do leitor se manifesta nesse tipo de leitura, entretanto a ausência da presença
física de quem fala no papel impresso oferece sua sonoridade invisível à mente de quem lê. O
centro da percepção do leitor quanto à palavra escrita dirige-se ao campo visual.
52

Por meio de Zumthor (2007) e Chartier (2002) pode-se pensar que a distinção entre
leitura oral e leitura silenciosa de textos e seus mecanismos de transmissão têm perpassado a
historiografia do teatro e literatura, enquanto artes autônomas, ainda que sejam irmanadas pelo
texto enquanto meio de comunicação entre artistas e receptores. Entretanto, para Jacques
Rancière a ideia de literatura não é trans-histórica, reunindo todas as formas da arte de falar e
de escrever desde tempos imemoriais, pois seu conceito foi elaborado nos últimos 200 anos e
relaciona-se ao surgimento das sociedades democráticas. O termo literatura, que hoje designa
a arte dos escritores, anteriormente referia-se a uma prática erudita conformada numa sociedade
aristocrática.

Com o novo regime literário, o romance se torna a partir do século 19 a encarnação


por excelência da arte literária, misturando condições sociais e linguagens, baseado
num princípio “igualitário” a respeito dos sujeitos, das palavras e dos temas, e
difundindo assim as formas de vida e os modos de sentir que antes eram tomados
como privilégios. (RANCIÈRE, 2012)

A literatura é, dessa forma, um regime da escritura que rompe com o universo


hierarquizado das Belas Letras em que os gêneros eram classificados e organizados segundo a
dignidade de seus temas, isto é, dos personagens que representavam. A poesia era definida,
sobretudo, como uma ação, distinguindo os nobres (aqueles que agem e perseguem um fim) e
as pessoas comuns (que não agem e preservam uma vida ordinária e repetitiva). A escrita estava
subordinada à fala, pois a ação da palavra viva lhe conferia um modelo de excelência. O
romance esteve durante muito tempo marginalizado por conjugar na narrativa pessoas nobres e
comuns, a dicção culta e a popular. Entretanto, o livro escrito, que permite a circulação
democrática da narrativa, passou a se sobrepor à palavra oral, que se dirigia a um público
delimitado e selecionado. Portanto, durante o século XIX, o romance passou da marginalidade
à oficialidade da encarnação da arte literária, “enquanto os gêneros nobres caem na
marginalidade. O próprio do romance, isto é, a faculdade de misturar as condições e as
linguagens, de usar qualquer tema e qualquer forma de expressão para tratá-lo torna-se a
característica da própria literatura.” (RANCIÈRE, 2012).

Paul Zumthor, pesquisador da poesia medieval, interessa-se pela arte da palavra oral,
aquela compartilhada entre falantes e ouvintes e cuja prática antecede a era da escrita e do livro
como suporte. Esse processo calcava-se, de um lado, pela vigência da ideia de uma autoria
53

coletiva e anônima, que se refere à transmissão de um saber comum, e que depois será
confrontada pela autoria singular, que alude a um saber individualizado, particularizado,
nomeado. O aspecto performático está implicado diretamente na oralidade: seja por meio de
uma enunciação literária ou de uma representação teatral, a veiculação do texto dá-se a partir
de uma conjunção de fatores extra-textuais que conjugam com ele e, de certa forma, modificam
sua apreensão por parte do ouvinte-espectador.

Zumthor esclarece que o conceito de performance, como atribuído pelos anglo-saxões,


pode encobrir distintas formas de teatralidade, e arrisca perguntar se toda literatura não é
fundamentalmente teatro. Vale ressaltar que sua proposição se concentra na literatura que se
transmite oralmente, como nos casos da poesia e dos textos de tradição oral5. A performance,
que se constitui pela forma, “designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento
tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados
nesse ato de maneira imediata.” (ZUMTHOR, 2007: 50). É nítido perceber que essas categorias
se aplicam ao acontecimento teatral, o que leva à constatação junto a Zumthor de que teatro e
literatura constituem fenômenos performáticos:

Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e


não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso
das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros
nervosos. (ZUMTHOR, 2007:54)

Não sendo apenas um meio de comunicação, pois ao comunicar ela afeta o


conhecimento transmitido, a performance, de maneira abrangente, refere-se tanto a um
acontecimento oral quanto gestual. Portanto, as presenças físicas do locutor e do espectador-
ouvinte, ou do ator e do público, enlaçam-se pela espacialidade que, por sua vez, configura um
dos aspectos da teatralidade. Para Josette Féral, o corpo do ator não é o elemento exclusivo que
instaura a teatralidade: basta que o espectador reconheça, de antemão, uma espacialidade
ficcional e uma intenção de teatro. “O que é, então, a teatralidade, senão a criação de um
universo ficcional, de um espaço separado da vida quotidiana, de um espaço de transição entre

5
Paul Zumthor denomina seu objeto de investigação como “poético”, pois para ele o termo “literatura” envolve
uma noção historicamente demarcada, instituída, inaugurada no século XVII com o romance: “Eu a distingo [a
literatura] claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de
seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.” (ZUMTHOR, 2007:
12)
54

o real e a ficção (que representa o real, infunde a ilusão)?” (FÉRAL, 2009: 83). Portanto, o
espaço em que se inserem a leitura e a performance se configuram pelo caráter ficcional a ele
atribuído. Esse encontro espacial entre locutor e espectador-ouvinte aproxima teatro e literatura
pelo aspecto ritualístico que os envolve e se dirige a uma coletividade.

Performatividade e teatralidade na formação de um teatro narrativo-performativo

“Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem


atravessa este espaço enquanto outro o observa. Isto é suficiente para criar uma ação cênica.”
(BROOK, 1970: 1). Com essas palavras, o encenador britânico Peter Brook enuncia o princípio
do controverso conceito de teatralidade, delimitado aqui por três elementos: um espaço vazio,
alguém que ocupa esse espaço (em ação) e outro que observa, simultaneamente e
conscientemente. O palco moderno se esvaziou após a derrocada do sentido de ilusão, que
definiu e sustentou o teatro nos dois séculos anteriores e foi capturado por uma linguagem
tecnicamente mais potente na construção de uma ideia de realidade, o cinema. Primeiramente,
porque a linguagem cinematográfica é fotorealista e nela o ator desaparece com mais eficiência
por trás de sua personagem e o sentido de ilusão se amplia; segundo porque, ao se oferecer
como uma opção de lazer e entretenimento de massas a partir de sua capacidade técnica de
reprodução, revelou-se mais potente e capaz de representar a realidade exterior, colocando-se
como um concorrente do realismo no teatro; finalmente, por se apropriar da estrutura do texto
dramático tradicional na composição dos roteiros.

A imagem, substrato da linguagem cinematográfica, tem estatuto de realidade e não de


ficção. No teatro, por sua natureza, a imagem só existe como metáfora, figuração. Portanto, o
cinema capturou o imaginário que o teatro tentava desenvolver. Se no teatro épico o ator se
divorciou da personagem, no cinema eles são uma poderosa unidade. Por outro lado, a
linguagem cinematográfica também contribuiu para a ampliação da sintaxe cênica, a partir da
inserção de imagens e técnicas que passaram a alimentar a dramaturgia e a encenação como a
montagem e enquadramento. Entretanto, a invenção do cinema problematizou e abalou as
estruturas do teatro, colocando em xeque suas convicções e certezas, o que o levou a buscar a
sua autonomia ou, melhor dizendo, a encontrar (ou inventar) sua teatralidade.
55

Dessa forma, o palco se esvaziou, perdeu aquele sentido, o que levou Sarrazac a
reconhecer que ao teatro restou a exibição de si mesmo e não mais de um universo ilusionista
fabricado por diversos dispositivos que pretendem convencer os espectadores de que ali se
representa um fragmento de realidade. “O palco, mesmo (e sobretudo) o mais preenchido,
continua vazio; e é justamente esse vazio – o vazio de toda e qualquer representação – que ele
parece estar destinado a exibir perante os espectadores.” (SARRAZAC, 2009: 16). A
teatralidade, portanto, foi revelada pela nudez do palco, pelo esvaziamento de sentido de
representação, estando disponível à criação e a novas construções a partir dos mesmos
mecanismos e elementos que o fundaram, e ainda incorporando linguagens modernas, como o
próprio cinema, os meios de comunicação de massa e, mais recentemente, os novos recursos
tecnológicos e virtuais.

Entre todos os experimentalismos que se sucederam no início do século XX, a abertura


e a explicitação dos recursos teatrais por Bertolt Brecht é a mais explícita para pensar a ideia
de teatralidade. Abrindo o palco, expondo suas vísceras (estrutura, equipamentos, dispositivos)
e rompendo a quarta parede que alienava o espectador da cena, o encenador alemão provocou
o teatro a se confessar teatro, ou seja, a assumir a sua teatralidade. O conceito mereceu reflexões
de pesquisadores e pensadores como Roland Barthes, que pensa a teatralidade como o teatro
menos o texto; ao isolar esse elemento, bastante vinculado ao campo da literatura e alvo de
ataques no teatro moderno, espera-se encontrar aquilo que seja específico da cena, que parece
residir no contato entre ator e espectador a partir de uma dicotomia assumida entre o que é real
e que é ficcional, como pontuou Peter Brook.

Também a percepção do texto no campo do teatro se alargou, transformando-se em


textualidade que não se restringe mais à palavra escrita ou falada, mas que envolve outros
elementos da representação teatral tomados como signos, capazes de construir sentidos distintos
para cada espectador. Sílvia Fernandes observa que a criação do espetáculo passa a conjugar
cena e texto, num processo de influência mútua, o que levou as fronteiras entre teatralidade e
textualidade a se tornarem mais fluidas e menos rígidas.

A partir da programação do Festival de Avignon de 1998, Patrice Pavis esboçou um


painel de teatralidades plurais, a partir do confronto entre distintos espetáculos e práticas
cênicas concretas. Por isso, a teatralidade pode ser tomada como um termo polissêmico, visto
que sua aplicabilidade/ reconhecimento pode variar para cada espetáculo, ainda que esteja
intimamente próxima do conceito de encenação, pois surge “como um uso pragmático da
56

ferramenta cênica, de maneira a que os componentes da representação se valorizem


reciprocamente e façam brilhar a teatralidade e a fala.” (PAVIS, 1999: 373).

Outro aspecto relevante é a faculdade do teatro de tornar visível a invisibilidade do que


é ficcional a partir de sua materialidade real, seja pela revelação dos mecanismos de construção
da encenação e/ ou dos recursos expressivos do ator, capaz de jogar com a imaginação do
espectador e incluí-lo nos processos de significação do espetáculo. O teatro passa a se oferecer
como um jogo, conforme constatou Denis Guénoun (2004), em que o público é participante
direta ou indiretamente. Daí, o teatro se torna necessário como jogo que desvenda sua
teatralidade para o espectador. Essa lógica reside em sua existência cênica e exigência
apresentativa. A teatralidade restitui ao teatro o sentido de ato, de encontro, de acontecimento
no tempo presente, que o aproxima do conceito de performatividade, pois “aquele que mostra
é sempre aquele que fez. Este princípio de ‘mostrar fazendo’, como Schechner o denomina, por
ele comparado ao efeito brechtiano de distanciamento, aparece como o elemento fundante de
toda performance.” (FÉRAL, 2009: 79).

Richard Schechner, professor de Performance studies da Universidade de Nova Iorque,


define que uma performance se realiza na co-presença espaço-temporal entre performer e
público, a partir de três verbos que representam ações e podem ser reunidos, separados ou
combinados: ser/ estar, fazer e mostrar (o que faz). Aqui, o ator é elemento fundador do jogo
instaurado pela teatralidade ao se assumir, sobretudo, como um performer, em que seu corpo e
seus recursos expressivos ganham maior relevo na cena em detrimento da construção de um
espaço ficcional: o espectador é convidado a participar e a reconhecer a fricção entre verdade e
mentira, entre realidade e ficção, podendo entrar e sair da narrativa, que se constrói e
desconstrói diante de seus olhos, configurando uma estética da presença.

Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos,
forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma
referência a outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena
no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala a
ambiguidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido.
Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.
(FÉRAL, 2008: 203-4)

De outro lado, o mesmo movimento de desconstrução da ilusão é o que promove a sua


reconstrução, não mais como sentido único, mas na instabilidade, no espaçamento que realiza
57

essa oscilação. A teatralidade, por meio da performance, instaura um tipo de comunicação entre
ator e público, em que a exposição dos mecanismos de fabricação da ilusão não destitui suas
propriedades, ao contrário, potencializa seu sentido. É como se o mágico, ao revelar o truque,
não desfizesse o poder de sua magia porque nesse jogo acabou por afirmar um novo truque. “O
que o espectador olha, e aquilo pelo que ele se deixa seduzir, é precisamente esta arte da
esquiva, da falsa aparência, do jogo em que ele está precisamente num lugar onde não sabia que
estava. Ele descobre assim a força da ilusão.” (FÉRAL, 2008: 205-6).

A combinação entre aspectos performáticos e teatrais na construção de ambiguidades


vai levar à ideia de um teatro performativo, em cuja base o processo se torna mais relevante
que o próprio resultado, ou seja, a obra acabada. Conjuga o tempo da representação, real,
concreto, e o tempo da ficcão, abstrato, metafórico, criando frestas para a atualização do
espetáculo no tempo presente. O ensaio, nesse sentido, aproxima-se mais de uma preparação
do que exatamente de um enrijecimento da cena levada ao palco. Se a teatralidade se encerra
no espaço ficcional e, portanto, distancia-se do real, o teatro performativo avizinha-se mais do
seu descortinamento, levantando os véus que encobrem os artifícios da cena para instaurar um
espaço lúdico e de múltiplos discursos verbovisuais. Para Féral a performatividade reside no
fazer enquanto a teatralidade consiste na perceção desse fazer.

A palavra no centro da performance narrativa: vocalidade e corporalidade

Os efeitos do ato performático afetam de alguma forma o espectador-ouvinte e por isso


se avizinham do que Aristóteles apontou como a catarse do fenômeno teatral, pois “Comunicar
[…] não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se
dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação.” (ZUMTHOR,
2007: 52). A comunicação poética inclina-se mais ao prazer que à informação: ainda que muitos
textos literários carreguem consigo grande carga de informação, essa função fica relegada a um
segundo plano, pois a enunciação poética se sobrepõe por sua carga sensorial e se destina a
produzir uma multiplicidade de efeitos sobre o receptor. No campo da oralidade pura, o sentido
de unidade é conferido pela percepção copórea-auditiva-visual, cujas funções somadas à fruição
intelectual e emocional amalgamam-se de forma teatral, no confronto de presenças do emissor
e do receptor, inseridos num contexto espacial, sociológico e circunstancial singular.
58

Zumthor contrapõe a solidão do leitor diante da materialidade do livro e a performance,


em que a co-presença corporal tanto do ouvinte quanto do intérprete carregam em si faculdades
sensoriais. A primeira situação revela um grau performático mais fraco, pois é tão somente
leitura solitária e ação visual orientada para o deciframento dos códigos gráficos, enquanto a
segunda (re)atualiza a enunciação, cuja noção o leva a pensar no discurso como acontecimento:
“A performance dá ao conhecimento do ouvinte-espectador uma situação de enunciação. A
escrita tende a dissimulá-la, mas, na medida do seu prazer, o leitor se empenha em restituí-la.
A compreensão passa por esse esforço.” (ZUMTHOR, 2007: 70-71).

No teatro, numa perspectiva tradicional, o texto, independente de sua natureza


dramática, poética ou épica, exige a encenação e a vocalização, pois é um dos canais de
comunicação entre ator e espectador. Esse texto normalmente advém de uma escrita prévia e
sua passagem ao receptor requer alguns elementos como voz, corpo, gesto e cenografia, além
de sua percepção, escuta, visão e identificação das circunstâncias. Entretanto, nesse translado
da página ao palco pode-se reconhecer a complexidade nas relações entre escrita, fala,
representação e performance quando se examina o campo do teatro:

Esta “materialidade do texto”, que deve ser entendida como a inscrição de um texto
na página impressa ou como a modalidade de sua performance na representação
teatral, introduz uma primeira descontinuidade, fundamental, na história dos textos:
as operações e os atores necessários ao processo de publicação não são mais os
mesmos antes e depois da invenção de Gutenberg, da industrialização da imprensa e
do começo da era do computador. (CHARTIER, 2002: 11)

É preciso distinguir, a partir de Zumthor, oralidade, incapaz de ser reproduzida (e nem


escrita) visto que é uma voz sem letra, e vocalidade, que emana da literatura, já que é um gênero
que produz voz a partir da grafia. Dessa forma, Sílvia Adriana Davini corrobora inserindo a voz
no campo da performance como material corporal e não como costuma ser tratada pela
Fisiologia. Contudo, o método do encenador Jerzy Grotowski busca a articulação fônica, a
fisicalidade da voz do ator, por meio dos conhecimentos dessa área. Ela se recorda ainda de
Artaud, a quem a voz pode portar a si mesma e não apenas mensagem, sentença ou sintaxe, pois
há voz que não vocaliza um texto. A autora pontua que a voz cotidiana expõe a pessoa, enquanto
que no teatro ela a esconde, por meio de disfarces e mascaramentos que envolvem a sua
presença a partir de uma personagem. Enquanto escrito, o texto diante do receptor é silencioso
59

e a voz do autor/ narrador se revela internamente para quem lê. Sobre a relação entre escrita e
vocalidade, José Da Costa Filho reflete que

os sons vocais podem ser entendidos como marcas de uma escrita por meio da voz e
não de um registro gráfico. As marcas vocais têm a particularidade de serem menos
fixas que aquelas de caráter gráfico. Elas estão irremediavelmente ligadas a um
âmbito contingencial ou efêmero, mas isso não faz com que deixem de ser marcas.
(COSTA FILHO, 2009: 85)

Pergunta-se: em que medida a matéria literária é alterada no instante de sua vocalização


na cena? Para Maria Helena Werneck, no ato em que a escrita se converte em voz há o seu
apagamento, sobretudo pelo fato dessa vocalização estar integrada a um conjunto de outros
signos cênicos. Se a textualidade reside no narrativo, “fala e audição se dimensionam mais em
detrimento dos recursos visuais. Entretanto, não podemos tomar a realização material da
narrativa como inferior, mas estabelecer plano de complementaridade.” (WERNECK, 2009b:
72). Há, portanto, em relação ao texto outra construção de sentido quando de sua emissão vocal,
que pode se sobrepor aos demais recursos da cena. Sobre isso, cada ator ao assumir o ato de
narrar imprime sobre ele seu timbre, registro vocal, alcance e projeção, podendo criar variações
distintas, além da construção de sentido reiterar ou deformar a escrita, pelas variáveis intenções
que a fala venha a carregar, somada à expressividade do corpo.

O texto como escritura apresenta-se como linguagem sem voz, tanto quanto o olhar,
que mesmo quando exerce seu poder expressivo, apresenta-se desprovido da
tactibilidade do corpo, da urgência do respiro. Sem corpo, sem respiração e sem gesto,
a escritura não é suficiente para fixar o texto, que está sujeito a remanejamentos de
reelaboração da boca. [...] E quando se interpretam os textos, também prevalecem
valores atribuídos à voz. (WERNECK, 2009b: 72)

O ator encontra no recurso da vocalização de um texto inúmeras possibilidades de


expressão, pois a voz pode ser modulada para estabelecer sensações, imprimir estados
emocionais, construir paisagens sonoras e mentais e abrir as portas da imaginação do
espectador-ouvinte. Nesse sentido, liga-se diretamente à escuta, pela necessidade de um
ouvinte, que Roland Barthes distingue como um ato psicológico e, entre os vários tipos que se
desenvolveram nos seres humanos, há a que constrói significado (sígnica), já que toda
vocalidade é portadora de sentido, e outra que implica numa interação (psicanalítica), que se dá
60

no espaço intersubjetivo: “escuto quer dizer escuta-me” (BARTHES, 1990: 217). Essa
capacidade humana também atua como seleção, ligada a uma função de inteligência, muitas
vezes impedida pelos excessos da poluição sonora. Quando o sujeito fala primeiramente escuta-
se sua própria voz, cujo eco deve atingir o parceiro, rompendo uma zona de silêncio:

A voz é, em relação ao silêncio, o que é a escrita (no sentido gráfico) em relação à


folha em branco. A escuta da voz inaugura uma relação com o outro; a voz, que nos
faz reconhecer os outros (como a letra sobre um envelope), dá-nos a conhecer sua
maneira de ser, sua alegria ou sua tristeza, seu estado; transmite uma imagem do corpo
do outro e, mais além, toda a psicologia (fala-se de voz quente, voz neutra etc.).
(BARTHES, 1990: 225)

Há ainda a corporalidade do falar, na medida em que a voz se estabelece numa


articulação entre corpo e discurso. Nesse hiato pode-se realizar um movimento de vaivém da
escuta que, ativa, também fala, pois participa “do jogo do desejo, cuja linguagem é a cena”
(BARTHES, 1990: 225). Tudo isso remete profundamente à relação que o teatro configura entre
aquele que fala e o que escuta. Numa cena em que um ator narra diretamente à plateia, está-se
diante de um tipo de escuta psicanalítica? E quais mecanismos serão acionados para dar
completude a esse ato? O ator ao emitir um texto realiza-o a partir de um corpo ao qual pertence
a voz, integrada a ele em direção a um coletivo de audiência, mesmo que a escuta possa
construir significados distintos para cada um de seus integrantes.

A exploração sensorial das palavras pode construir imagens e transformá-las em


elementos visuais, plásticos, vinculadas à gestualidade e à corporalidade do ator. A voz atinge
o estatuto de composição imagética ao pintar um quadro na mente do receptor. Marlene Fortuna
esclarece que isso não se refere “à visualização da palavra em si, mas à visualização analógico-
sensorial que ela sugere, em nível de significante, conquistada por operações cerebrais.”
(FORTUNA, 2000: 124). Como em Sherazade, a palavra falada, vocalizada, pode seduzir,
aproximar o ouvinte e encantá-lo; mas também pode afastá-lo, aborrecê-lo, irritá-lo,
dependendo das modulações e intenções que a acompanham.

Mas o teatro é, antes de tudo, uma arte específica na qual a audição e a visão sofrem
estranhas metamorfoses: uma arte que trabalha uma matéria teatral na qual palavras,
sons e imagens se irrigam reciprocamente, numa forma cujas proporções e relações
são constantemente modificáveis, na qual a imagem visual ou sonora nunca é inferior
ao texto, falado ou escrito. (PICON-VALLIN, 2006: 109)
61

No teatro desta pesquisa, que passamos a denominar como narrativo-performativo, pois


investe numa encenação de textos não escritos para o teatro em que o ator é o principal veículo
na sua translação para o palco, ocorre um processo de “despersonalização da leitura, por
natureza estritamente individual, [...] e, por meio de uma oralidade produzida, se instaura a
recepção coletiva.” (WERNECK, 2009b: 74-5). O ato de narrar em voz alta, que recupera a
contação de histórias, enfrenta questões obtusas: qual é a voz do texto literário e que tipo de
voz pode narrar? Se esse texto foi levado à prova da linguagem cênica, poder-se-ia pensar numa
dramaticidade da vocalidade ou na teatralização da vocalidade? O princípio organizador
concentra-se na percepção de que em cena toda fala se transmuta em ação vocal, pois dizer é
fazer, processo que desloca a palavra do enunciado para a enunciação, buscando afetar seu
interlocutor.

Ao imprimir sobre esse texto uma ação vocal, seja em direção à plateia ou a outro ator
ou personagem, o ator redimensiona sua condição narrativo-monológico-silenciosa para
alcançar uma condição dramática-dialógica-sonora. Picon-Vallin percebe que as palavras, ao
serem apoderadas pelo palco, acabam por se tornarem outras, pois o espaço cênico “as
desestabiliza, concretiza, adensa, modifica.” (PICON-VALLIN, 2006: 84). A palavra escrita
literária não foi pensada em sua dimensão auditiva, mas sua vocalização é portadora de sentidos,
independente das intenções que o ator lhe oferece, levando o espectador-ouvinte à escuta em
direção ao seu próprio silêncio. Além disso, tanto a literatura quanto o teatro têm a ganhar ao
ampliar suas possibilidades expressivas no processo de transposição de um para a linguagem
do outro, conforme aponta o diretor Luiz Arthur Nunes:

Ao passar para o teatro, a ficção literária enriquece-o com uma liberdade de


procedimentos e uma multiplicidade de recursos que lhe eram negados pelas velhas
tradições canônicas. Em retribuição, o teatro oferece à palavra do escritor uma
possibilidade de transfiguração ao fazê-la soar na materialidade do palco. [...] Esta
diferença é que faz com que a voz autoral, abandonando seu silêncio para soar pelos
lábios do ator rapsodo, amplie seu poder de sedução, sua força de persuasão e nos
envolva com a nova magia que o palco lhe confere. (NUNES, 2000: 51)

Nessa perspectiva, os recursos da narratividade emprestam-se a esse encontro, que tem


como princípio fundador a reunião de pessoas em torno de uma narrativa, sustentada por alguém
que não apenas conta, mas que também atua, mostra, encena e assume esses movimentos
62

oscilatórios. No teatro narrativo-performativo, a ficção pode ancorar-se muitas vezes no relato,


na descrição da ação, aproximando o ator de um performer-contador, ao mesmo tempo em que
também está em ação, em movimento, na manipulação e explicitação dos dispositivos que
formam a linguagem teatral.

Procedimentos de encenação de textos narrativos: a dramaturgia e o ator como elementos


estruturantes

O teatro narrativo-performativo a que nos referimos busca estratégias de transposição


de textos não escritos originalmente para o palco, especialmente romances neste caso. Utiliza-
se de procedimentos variados de dramaturgia e encenação e tem o ator como performer central
desse processo. Na dramaturgia, podem ser encontradas desde adaptações convencionais a
outras proposições a partir do livro de origem, em que são preservados fragmentos narrativos e
descritivos pelo trabalho de edição (como percebido em João Brites), chegando propriamente
ao uso integral do corpo do texto (como realizado por Aderbal Freire-Filho). Todos esses
recursos convivem com os acréscimos e modificações oriundos da escrita cênica. Destaca-se
de antemão que não há limites neste exercício e cada encenador que se utilizou desta matéria-
prima encontrou um caminho próprio, um modo seu de fazer teatro narrativo na cena
contemporânea.

Inicialmente, a transposição de um gênero acarreta necessariamente o sacrifício de uma


ou outra linguagem envolvida no processo, ainda que se busque preservar os conteúdos de
ordem imaginária e ideológica do texto original. A voz do autor deve ser transferida (ou
transmutada) para as vozes dialogadas das personagens, pois se pretende conservar os
elementos que caracterizam esse texto, como as narrações, descrições, comentários e reflexões.
Tudo isso fundado na possibilidade de emprestar ao texto literário aspectos da teatralidade,
capaz de absorver, remodelar, promover e sugerir instigantes criações para a linguagem do
palco.

A adaptação tradicional implica decisivamente na recriação do texto, condensando-o e


adequando-o à nova linguagem, em que o enredo e alguns personagens são preservados, mas
sua escrita deve ser convertida em discurso direto (dialógico), eliminado-se os elementos
narrativos e descritivos, aproveitando-se os diálogos ali existentes e/ou escrevendo novos. Doc
63

Comparato esclarece que esse procedimento é “uma transcriação de linguagem que altera o
suporte linguístico utilizado para contar a história. Isto equivale a transubstanciar, ou seja,
transformar a substância, já que uma obra é a expressão de uma linguagem.” (COMPARATO,
1995: 330). A noção de transcriação também é cara a Linei Hirsch, que vê no termo adaptação
certa inadequação, em detrimento de aproximar-se de ajustamento, acomodação ou, mesmo em
sentido estrito, referir-se à “facilitação e/ou modernização de uma obra literária narrativa, para
torná-la mais acessível ao público.” (HIRSCH, 2000: 151). Tomando a denominação de
Haroldo de Campos para tradução poética no campo da Teoria da Literatura, Hirsch apropriou-
se da terminologia transcriação teatral ao aludir a espetáculos cuja dramaturgia prescinde de
uma obra narrativa.

Entretanto, o procedimento da edição tem sido comumente mais praticado na


dramaturgia contemporânea. José Da Costa Filho destaca a alusão à montagem cinematográfica
que “diz respeito à organização de sequências fílmicas em certa ordem ou sintaxe” (COSTA
FILHO, 2009: 110) e que se aproxima de uma escrita rapsódica conceituada por Sarrazac. Esse
procedimento ainda pode ser realçado se o espetáculo se realiza também com uso de imagens
fílmicas, videográficas, no corpo da encenação. A edição incide no duplo movimento de
desconstrução e reorganização do material de origem e sua escrita independe de uma ordenação
linear, pois à medida que se aproxima da colagem incorre na descontinuidade. As
determinações não são fixas, mas instáveis, porque dependem em larga medida da literatura
que está originando essa dramaturgia e da concepção e escolhas feitas pelo dramaturgo ou pelo
encenador-autor.

No exame dos romances encenados por Aderbal Freire-Filho e João Brites, partiu-se
primeiramente de tomar a edição como gesto dramatúrgico primordial de ambos, em que
nomeei e classifiquei alguns gestos de escrita que se aproximam de operações matemáticas. Os
procedimentos básicos de edição, apontados neste trabalho e que serão devidamente explorados
e conceituados nos capítulos de análise, são subtração (exclusão e eliminação), adição
(acréscimos extra-textuais ao original), divisão (distribuição de textos por ator/ personagem) e
multiplicação (repetição/ reiteração de personagens, excertos ou informações). A esses
acrescenta-se o deslocamento como recurso de manipulação, ordenação e reorganização, que
se refere à edição propriamente dita. Reunidos na composição dramatúrgica, formam diversas
equações que, por meio delas, operam a escritura cênica desses encenadores.
64

O campo do trabalho do ator no teatro narrativo-performativo deve ao distanciamento


proposto Bertolt Brecht o principal procedimento regulador de sua atividade. No Teatro Épico,
por seu compromisso com a comunicação mais direta com a plateia a fim de levá-la ao
questionamento dos aspectos representados pela peça, o ator deve assumir-se como uma ponte
entre texto e espectador. Alternando-se entre a personagem mostrada e o narrador, o ator
brechtiano não deve imitar integralmente a atitude de seu caractere, basta que o realize na
medida em que oferece ao espectador uma imagem da ocorrência. Para isso, não deve
abandonar sua configuração como narrador, apresentando ao público a personagem que
descreve como uma pessoa externa a si, não promovendo com ela a simbiose: “Quem está em
cena não é a pessoa descrita, mas sim o ator que faz a descrição” (BRECHT, 2005: 97). Somente
neste nível o espectador será capaz de diferenciá-los e assim examinar melhor o que lhe é
mostrado, sem correr o risco de se deixar envolver.

A rejeição à quarta parede pela narração faz com que o ator volte-se diretamente à
plateia. Os recursos de distanciamento obstruem a produção do efeito de empatia sobre aquele
que assiste. Entretanto, para Brecht, o ator, ao se esforçar para reproduzir determinadas
personagens e assim revelar seu comportamento, não carece abrir mão da empatia, contanto
que a recorrência à Psicologia se realize durante o processo de criação, na preparação do papel.
Sua relação com a personagem desde os ensaios deve cultivar tanto uma atitude de surpresa
quanto de contestação, devendo assimilá-las ao caractere que representa. Dessa forma, o ator
brechtiano precisa renunciar à metamorfose stanislavskiana e proferir o texto em caráter
citacional. Dentre os recursos que promovem o distanciamento entre o intérprete e a
personagem, Brecht aponta o investimento na terceira pessoa do discurso e no tempo passado,
na intromissão de indicações sobre a encenação e comentários do ator.

O ator brechtiano não é um objeto entre objetos. Quanto mais sua interpretação leva
em conta a materialidade da existência, mais exige uma distância em relação a esta
materialidade. Muitas vezes o ator precisa sair de si mesmo e, voltando-se para o
público, cantar para a plateia a verdade de uma personagem da qual, até então, havia
revelado apenas as aparências ou a ideologia. (DORT, 1977: 302)

Há ainda o gesto, cuja finalidade é externar os elementos de cunho emocional. Portanto,


a emoção é arrancada de seu domínio subjetivo, abstrato, íntimo e pessoal, para uma
manifestação racional e concreta. “O ator tem de descobrir uma expressão exterior evidente
65

para as emoções de sua personagem, ou então uma ação que revele objetivamente os
acontecimentos que se desenrolam no seu íntimo” (BRECHT, 2005: 108). Somente dessa forma
é possível tratar a emoção com grandeza: distanciado da personagem como um historiador, deve
dominar o gesto social, compreendido como “a expressão mímica e conceitual das relações
sociais que se verificam entre os homens de uma determinada época.” (BRECHT, 2005: 109).
Ampliando a reflexão sobre os postulados brechtianos sobre o trabalho do ator, Aderbal Freire-
Filho reforça tais contribuições para o teatro contemporâneo: “O palco que pode tudo, que não
tem limites expressivos, precisa, em primeiro lugar, ser o palco do ator. Isto é, precisa confiar
plenamente no ator para a exploração das suas infinitas possibilidades.” (FREIRE-FILHO,
2005: 17).

Luiz Arthur Nunes, professor e encenador gaúcho radicado no Rio de Janeiro, dentro de
suas reflexões sobre a narrativização da cena a partir de sua experiência também como
pesquisador e de alguns trabalhos práticos desenvolvidos nesse campo, cunha o termo ator-
rapsodo, a partir do autor-rapsodo sarrazaquiano. Para designar o ator-narrador e configurar o
modo épico de exposição de relatos, recupera a terminologia dada aos antepassados gregos que
iam de cidade em cidade cantar poesias e, sobretudo, fragmentos extraídos das obras de
Homero. O ator a que se refere trabalha sua composição num teatro em que a própria
dramaturgia está na categoria do narrativo. Diferenciando sua proposta da convencional
adaptação literária, em que o texto do autor é transferido ao ator, Nunes estabelece para esse
intérprete o estatuto de ator-rapsodo: “A fala autoral – o enunciado narrativo – é confiado aqui
ao ator. Este, graças a isso, resgata uma forma de comunicação milenar, que lhe possibilita
saltar fora do mundo ficcional para contá-lo, descrevê-lo ou comentá-lo.” (NUNES, 2000: 40).
A passagem de um texto de natureza literária à sua concretude teatral deve ocorrer por meio da
realização de ações cênicas e vocais.

As pesquisas recentes sobre a narratividade, sobre as estruturas do relato, levam a


analisar as personagens como forças, como actantes. Podemos responder a perguntas
como: o que faz a personagem? O que quer fazer a personagem?, sem nos
embaraçarmos com uma relação de causa e efeito, com aquilo que poderíamos chamar
suas motivações – evitando todo ponto de vista moral que procure justificar as ações
da personagem e todo ponto de vista psicológico que leve a considerar critérios de
coerência ou de verossimilhança. (RYNGAERT, 1996: 136)
66

Convencionalmente a narração na cena realiza-se por um ator apenas (caráter


monológico), mas deve-se explorar outras possibilidades quando a narrativa é assumida por
vários atores que, por meio do procedimento de divisão textual e encadeados em sequência,
organizam diálogos cênicos, cuja dramaticidade advém das ações vocais/ verbais/ corporais no
processo de vocalização/ interpretação. O narrador pode (e deve) dirigir-se à plateia e também
à encenação, quando realça o vínculo entre sua atuação e a situação narrada. A alternância entre
público e cena evidencia o destinatário do mundo representado no palco, amplia o envolvimento
no narrador com o material narrado, abrindo passagem para o comentário e a crítica,
reconhecendo essa postura como herança de Brecht.

Augusto Boal, à frente do Teatro de Arena de São Paulo, experimentou outra forma de
desvincular o ator de sua personagem: batizado como Sistema Coringa, prevê o revezamento
dos atores em torno da mesma personagem ou, numa variante mais radical, quando todos os
atores encarregam-se, alternadamente, de todos os personagens. O procedimento amplifica e
diversifica tanto a abordagem da peça sobre um caractere quanto à percepção que o público terá
dele. Ao Coringa também cabe uma função narrativa de estabelecer as conexões entre os
fragmentos da dramaturgia e oferecer seu ponto de vista acerca dos acontecimentos encenados,
bem ao modo de Brecht, por quem Boal tinha grande admiração e que influenciou suas
propostas. Antes do encenador alemão, o ator meyerholdiano já praticava esse estilhaçamento
do ator/ personagem. O procedimento, que nesta investigação nomeei como multiplicação, faz
a cena emergir de forma prismática, ambígua, pois a voz autoral é dilacerada, estilhaçada pelas
vozes distintas de vários atores-narradores, desestabilizando uma convenção tradicional de
paridade ator/ personagem. O recurso também pode se dirigir à apresentação do mesmo
caractere desdobrado em uma vertente real e outra metafórica.

A dissociação entre ator e personagem, recorrente no teatro moderno e contemporâneo,


associa-se à alteração na compreensão do humano que na modernidade percebeu sua identidade
esfacelada, fragmentada, multíplice, como tratado por Stuart Hall. Portanto, a encenação passou
a rever a personagem como uma figura em desconstrução, levando alguns pensadores a
considerar que os seres de ficção haviam morrido. Entretanto, o que há é essa percepção
prismática de uma consciência humana fraturada, divisível, encontrando correspondência
nesses (e em outros) procedimentos de representação e interpretação. Pavis reconhece que “a
personagem não morreu; simplesmente tornou-se polimorfa e de difícil apreensão. Esta era sua
única chance de sobrevivência.” (PAVIS, 1999: 289). Ela aparece cenicamente mais próxima
da figura, da caricatura, do fantasma, por muitas vezes grotesca, ou como observa outro
67

pensador: “Falamos hoje de personagens cada vez mais abertas, deixando zonas de sombra em
sua construção, incompletas do ponto de vista da ficção, alternadamente encarnadas e
distanciadas pelo ator.” (RYNGAERT, 1996: 129).

A base da interpretação do ator nesse tipo de encenação pode ter como componente
basilar a performance do contador de histórias, cuja premissa é o contato mais direto com o
ouvinte-espectador: o que os distingue é o contador apresentar um texto não-decorado
(destacado geralmente de histórias de tradição oral) e portanto criado no instante de sua
performance, enquanto o ator trabalha sobre uma escrita prévia, elaborada, decorada e
preparada. Entretanto, ator e contador irmanam-se na atualização de sua performance na
comunicação com o espectador-ouvinte. Nunes corrobora esta percepção de que a contação de
histórias/ rapsódia é uma performance tão teatral quanto a de interpretar textos tradicionais. O
ator que pretende investir nessa proposta deve conscientizar-se de que a alternância entre
personagem e narrador demanda dele rearranjos constantes e instantâneos de postura, de gestos,
de impostações vocais, pois as transições devem se dar de maneira fluente, natural, deslizante.

Destaco duas pesquisas sobre a formação e o treinamento do ator-narrador e suas


possibilidades de atuação, além de procedimentos de dramaturgia e encenação, que não serão
devidamente exploradas nesta pesquisa por não estabelecerem interlocução direta com os
trabalhos de Aderbal Freire-Filho e João Brites, mas que se revelam importantes para o
desenvolvimento de um teatro narrativo-performativo: 1) Caminho para a formação
pedagógica do ator narrador, tese da Profª Drª Nara Keiserman, Professora Doutora da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, cuja investigação perseguiu a
formulação de uma pedagogia para a formação do ator-narrador, a partir de metodologia
específica constituída por jogos e exercícios e aplicada junto a estudantes de graduação em
teatro, por meio de disciplinas optativas na própria instituição. Sua investigação desenvolve-se
atualmente na busca de um treinamento para o ator num teatro gestual narrativo, a partir de
diferentes articulações entre as instâncias de fala e movimento, em que cruza exercícios e
conceitos de Meyerhold, Stanislavski, Brecht e Grotowski. 2) Entre o Mediterrâneo e o
Atlântico: uma aventura teatral, pesquisa da Profª Drª Maria Lúcia de Souza Barros Pupo, da
Universidade de São Paulo – USP, publicada pela Ed. Perspectiva, expõe um trabalho de ensino
e aprendizagem teatral realizado com professores em formação e estudantes no Marrocos,
utilizando-se da apropriação de textos narrativos, extraídos da cultura local.
68

Quanto aos procedimentos de encenação, do que é dito e feito em cena, há uma


multiplicidade de tipos de relação que podem ser estabelecidas, principalmente porque no teatro
contemporâneo está cada vez mais complexificada a relação entre corpo e voz, entre linguagem
corporal e vocal. A redundância (ou pleonasmo) entre o discurso verbal e discurso cênico
incorre numa ilustração da narrativa, menos interessante do ponto de vista da densidade do
discurso emitido, ainda que a distinção entre fala e cena possa gerar uma ampliação semântica.
Nesses casos em que os atores narram e descrevem, ocupando o espaço do discurso direto pelo
indireto, como se estivessem a falar e a encenar as rubricas do texto,

produzem-se curiosos efeitos de redundância, pois a personagem executa o que diz e


sobretudo o que é dito que ela deve fazer. Tais variantes evidenciam as relações
especiais que se estabelecem no teatro entre a palavra e a ação, entre a situação de
enunciação e a situação dramática, e colocam também o caso-limite do silêncio, de
uma situação em que nada mais pode ser falado. (RYNGAERT, 1996: 104)

A partir de outras perspectivas, pode-se encaminhar à ultrapassagem ou subversão da


cena em relação ao texto, em que se destacam alguns procedimentos que permitem exceder as
tentativas de ilustração: fabricação de imagens fixas, isoladas ou em série, condensando a
situação a ser mostrada, que pode ser de complementaridade ou contradição; formulação de
ações que extrapolem a reiteração textual, encontradas dentro do próprio texto de origem; e um
inventário de termos textuais que ofereçam maior fertilidade criativa em direção à realização
de ações, como verbos, substantivos relacionados a objetos, lugares, espacialidade: “no caso de
uma narrativa ou de um conto (oral ou escrito), em que o relato é expressamente dotado como
imaginário, no caso do teatro, a situação é diferente: o que figura no lugar cênico é um real
concreto, objetos e pessoas cuja existência concreta ninguém põe em dúvida.” (UBERSFELD,
2005: 21).

Os procedimentos cênico-dramatúrgicos sobre o texto narrativo são plurais e o que nos


interessa é uma exposição mais geral de métodos, recursos e técnicas já experimentadas por
dramaturgos, encenadores e pesquisadores6. Ademais, o impulso narrativo do ator moderno e
contemporâneo refere-se em larga medida à manutenção da prática milenar dos rapsodos

6
Os demais procedimentos utilizados por Aderbal Freire-Filho e João Brites serão devidamente explorados,
algumas vezes nomeados, e analisados nos capítulos específicos.
69

gregos7 e de Sherazade. Pensa-se que, mais do que entreter uma plateia, a performance do ator-
narrador e as narrativas em cena ligam-se intensamente à ideia de afastamento da morte, da
sensação de seu adiamento, pois narrar é presentificar a vida.

7
Recomendo a leitura de Íon, em que Platão reproduz o diálogo de Sócrates com o rapsodo que dá título ao texto,
sobre as características do ofício rapsódio e as semelhanças com o trabalho do intérprete (ator) e sua relação com
o texto poético (literário) que enuncia.
70

ADERBAL FREIRE-FILHO, O CENTRO DE DEMOLIÇÃO E CONSTRUÇÃO DO


ESPETÁCULO E O ROMANCE-EM-CENA

Em 2012, ano em que completou quarenta anos de atividades como encenador, Aderbal
Freire-Filho e a inventividade do seu romance-em-cena tornaram-se um dos objetos deste
estudo. Este capítulo inicia-se com a exposição sobre a biografia e a carreira do encenador,
destacando suas influências artísticas, pensamentos e reflexões sobre teatro e a apresentação de
seus modos de criação. Em seguida, dá-se relevo ao Centro de Demolição e Construção do
Espetáculo, quando ocupou o abandonado Teatro Gláucio Gill e onde Freire-Filho pôde
aprimorar sua poética cênica, criou o romance-em-cena, desenvolveu inúmeros projetos
artísticos-culturais e debateu políticas públicas da cidade do Rio de Janeiro a respeito das
questões éticas e artísticas no apoio ao desenvolvimento de grupos de pesquisa e atividades
continuadas. Ao fim, atinge-se o eixo desta investigação a partir do exame da linguagem do
romance-em-cena e seus espetáculos, dos conceitos e principais paradigmas, da observação e
nomeação de procedimentos recorrentes de dramaturgia, encenação e atuação, ressaltando-se
aspectos como a comicidade e a vocalização textual.

Aderbal (Júnior) Freire-Filho8: o encenador da palavra

Aderbal Freire-Filho nasceu em 8 de maio de 1941 em Fortaleza (CE), onde viveu até
quase completar 30 anos. Entretanto, antes de migrar definitivamente para o Rio de Janeiro,
esteve por ali no período de 1960 a 1962 para um curso técnico em prospecção de petróleo,
promovido pela Petrobrás, pois já tinha concluído o Ensino Médio e experenciado com êxito
durante um ano locução na Rádio Dragão do Mar ainda no Ceará, o que desagradava sua
família. O curso anunciava-se como uma oportunidade de deixar sua terra natal, da qual ele se

8
No início de sua carreira, o encenador assinava seus trabalhos como Aderbal Júnior. A mudança para Aderbal
Freire-Filho, ao que tudo indica, coincide com a fundação do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo e
a estreia de A mulher carioca aos 22 anos, visto que na primeira edição do jornal A máquina de pensar ele se
inscreve como “Aderbal Freire-Filho, dito Júnior”.
71

lembra com certa tristeza pela forte contradição entre a miséria e a riqueza; ainda, significava
se apresentar diante dos parentes com um trabalho considerado sério. Retirando-se como muitos
de seus conterrâneos Freire-Filho desejava seguir sua carreira no teatro que iniciara muito
tempo antes: aos 12 anos de idade envolveu-se com um grupo formado por alunos de uma
faculdade de filosofia nos arredores do colégio onde estudava.

Ao fim do Ensino Médio, portanto, a dúvida sobre a escolha da profissão encaminhou-


o ao concurso da Petrobrás e à Cidade Maravilhosa pela primeira vez, onde ficou ocupado todo
o tempo durante um ano. Foi expulso por desavenças com os professores, uma estratégia para
não deixar a cidade em direção ao trabalho de campo na plataforma de petróleo. “Para manter-
me no Rio procurei emprego e acabei fazendo outro concurso, esse para vendedor de móveis
de aço. Aprovado, fiz um curso de dois meses na fábrica, em São Paulo, e voltei para o Rio.”
(ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 84). Por influência da família, retornou a Fortaleza
em 1962 para cursar Direito, pressionado a definir sua profissão e seguir a carreira do pai. Tendo
satisfeitas as exigências paternas, Aderbal Freire-Filho mantinha paralelamente o trabalho no
rádio (que parece relacionar-se ao seu interesse pela palavra falada e a vocalização de textos) e
o envolvimento com o teatro. Todavia, sentia-se deslocado na vida que levava, desacreditado
da possibilidade de concretizar seus sonhos fundamentais. Assim, abrevia esse período:

Como advogado trabalhei de 1967 a 1970. Em 1970 eu tinha 29 anos e um filho de


três. E uma vida de pequeno-burguês. Era um advogado jovem, burguês, a caminho
do suicídio. Havia começado a fazer teatro aos 12 anos, nenhuma profissão “oficial”
me interessara, comecei a trabalhar em rádio aos 16, aos 18 tentei fugir para o Rio,
onde morei mais de dois anos, tive muitos trabalhos disparatados – gerente de cinema,
dono de bar, técnico em prospecção de petróleo, locutor de rádio, vendedor de móveis
de aço –, era muita aventura para tão pouco fim. Não conseguia conformar-me com a
destruição dos sonhos. Aí fugi de vez. (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987:
85)

A viagem de ônibus demorou dois dias e meio de Fortaleza ao Rio e ele lembra como
um dos momentos mais felizes, pois lhe permitiu cruzar o Brasil do Nordeste ao Sudeste,
contemplando e conhecendo as alterações na paisagem geográfica e preparando-se para o
nascimento de uma nova vida que pretendia começar na capital fluminense. A paixão pelo teatro
nasceu no período da infância e deveu-se a três fatores principais: o edifício do Teatro José de
Alencar, por onde passava e considerava um lugar de magia; um palco construído no jardim do
sítio de uma família vizinha à de seus avós, onde cada espectador levava sua cadeira para assistir
72

às peças debaixo de árvores e, finalmente, as leituras de peças de teatro e os livros na extensa


biblioteca paterna. Ao recuperar essas passagens de sua biografia, quer-se destacar aspectos que
podem ter influenciado decisivamente o modo como este encenador vai pensar seu ofício: a
ideia de que o teatro é um lugar de magia e nele todos os mundos são permitidos, seu caráter de
encontro e coletividade, além da paixão pela leitura e pela palavra escrita e falada.

O gosto pela leitura, cultivado desde a infância e marcado principalmente pelas peças
de autores brasileiros da primeira metade do século XX e de autores estrangeiros clássicos,
como O’Neill, Cocteau e Tennessee Williams, remete à reflexão inicial de Sobre a leitura, de
Marcel Proust: “Talvez não haja dias da nossa infância mais plenamente vividos que aqueles
que julgamos deixar sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.” (PROUST,
2009: 21). Aderbal se reconhece como um leitor voraz e procura na leitura o prazer de ler boas
histórias. O contato pessoal com os pequenos livros impressos capturou-o para sempre, abrindo-
lhe o universo do teatro, da leitura e da escrita, sobre os quais se dedicaria a conhecer cada vez
mais profundamente.

O Rio de Janeiro que Aderbal encontra na sua chegada definitiva à cidade em 1970 não
era mais a capital do Brasil: com a transferência para Brasília, foi transformada sob a alcunha
de Estado da Guanabara que, cinco anos depois, se fundiria ao Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, a Cidade Maravilhosa seguia assombrada pelo Golpe Militar iniciado seis anos
antes. Vivendo os primeiros tempos no Solar da Fossa, que abrigava artistas iniciantes, uma
espécie de “cortiço melhorado” como ele mesmo pontua, seus primeiros trabalhos artísticos
foram em caráter de substituição de atores. Logo se juntou a um grupo de artistas baianos recém-
chegados ao Rio e representou O diário de um louco, romance de Nikolai Gogol, adaptado por
Francisco Dantas e encenado dentro de um ônibus que saía todas as noites da Praça General
Osório em Ipanema e percorria ruas de Copacabana ao Leblon9.

O trabalho inaugural como ator nessa nova fase carioca foi na peça A mãe, de
Witkiewicz, dirigido por Claude Régy, contratado pela atriz Tereza Raquel em 1971, que
exerceu enorme influência sobre Aderbal, como se verá. Dando relevo ao ator e à apropriação
do texto em suas montagens, investindo numa poética minimalista, o encenador francês tornou-

9
Aderbal repetirá essa experiência de espetáculo itinerante em Tiradentes, em que “o público é distribuído em seis
ônibus, visitando separadamente seis diferentes locações no centro da cidade do Rio de Janeiro, para
reencontrarem-se todos na Praça Tiradentes, cenário final do espetáculo.” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL
– TEATRO, 2012)
73

se conhecido pelo seu interesse em literatura e a adaptação de obras de grandes escritores


modernos como Marguerite Duras e Nathalie Sarraute, estabelecendo diálogos com autores
contemporâneos. Em seus trabalhos, detém-se mais cuidadosamente sobre a palavra falada e os
gestos realizados pelos atores, em que deve prevalecer o mínimo necessário, conjugados ao
ritmo mais lento e ao silêncio, que oferecem espaço à imaginação do espectador:

Eu trabalho não com o movimento e a demonstração, mas com a interiorização do


texto e com o intuito de liberar uma coisa essencial, que os homens de teatro
curiosamente parecem ignorar, que é o fato de o escritor investir enormemente o seu
próprio inconsciente na peça. Encenar um texto sem se dar conta dessa parte essencial
que é a massa do inconsciente de onde ele vem e que ele está destinado a exprimir é,
com certeza, se privar de quase todas as virtudes da escrita. (RÉGY in LEITE NETO,
2012)

A peça 4.48 Psicose, de Sarah Kane e também dirigida por Régy, conjuga um fluxo
contínuo de palavras e a quase total imobilidade física da personagem, interpretada por Isabelle
Huppert que, durante a performance, realiza apenas sutis movimentos nas mãos, braços e rosto.
Para ele, o texto interpretado e compreendido de certa maneira é um elemento dramático em si
mesmo e muito mais forte que os meios técnicos habituais de encenação. Numa entrevista à
Revista Obscena, Régy reforça a imobilidade como uma marca de suas criações, pois parte do
princípio de que o ator é o meio de passagem do texto do autor para o público, cujo percurso
deve ser o mais simples, menos carregado de elementos parasitários, como ele mesmo define.
Assim, a criação desse encenador ancora-se profundamente na palavra, buscando re-transcrever
as sensações originárias da escrita, transmitir as imagens proporcionadas pelo texto e,
finalmente, colocar o público em “estado de criação” e não de contemplação e admiração. O
contato com o pensamento e o trabalho artístico do encenador francês parece ter reforçado para
Freire-Filho o gosto pelo teatro em que o ator, a palavra e a escrita têm papéis determinantes na
concepção do espetáculo teatral e seu envolvimento com o público. Confessou: “Trabalhar com
Claude Régy foi muito revelador” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 87).

Naquele contexto, Freire-Filho deparou-se também com a decadência e posterior


encerramento de atividades de importantes grupos que marcaram a cena teatral brasileira na
década anterior: o Teatro Oficina e o Teatro de Arena, ambos de São Paulo; e o ainda
sobrevivente carioca Grupo Opinião. Em 1972, duas experiências marcaram sua trajetória.
Primeiramente, a participação no último momento (daquela fase) do Teatro Oficina, com a
74

montagem de As três irmãs, de Tchekov: “Eu que vim atrás do grupo que era meu farol, que eu
queria entrar, acabei chegando aqui e encontrando todos esses navios afundados.” (FREIRE-
FILHO, 2011). Com essa declaração, Aderbal ressente-se do fim desses grupos que admirava e
que compunham sua geração. Pode-se perceber tal momento do teatro brasileiro como uma
transição entre os agrupamentos conduzidos por encenador(es) e aqueles que surgiriam mais
tarde, marcados pela coletividade. Nesse mesmo ano, escreveu e dirigiu seu primeiro
espetáculo, uma adaptação de Flicts, do Ziraldo, que ele chamava de “uma história contada em
cores e versos”. O autor do original advertiu-o de que não se tratava de uma adaptação, mas de
uma recriação, antecipando sua percepção de que nesses trabalhos o encenador era também um
autor. A experiência revelou-lhe o processo de traduzir cenicamente um texto e lhe rendeu o
convite para dirigir O cordão umbilical, de Mário Prata:

A primeira vez que eu dirigi foi meio de surpresa. Eu nunca tinha me pensado como
diretor, eu achava que era ator e que tinha vontade de escrever, […] e nunca escrevia
teatro. Quando dirigi pela primeira vez, até dirigi porque escrevi uma peça, não achei
diretor e então me descobri diretor. Nisso existia um sentido, uma ciência. Claro que
na segunda vez que fui dirigir tive medo, uma insegurança que não tive da primeira
vez. (FREIRE-FILHO in DELGADO e HERITAGE, 1999: 138)

Em 1973, alcançou seu primeiro sucesso profissional com a direção do monólogo


Apareceu a Margarida, texto de Roberto Athayde defendido magistralmente por Marília Pêra.
Assim ele próprio recorda seus primeiros anos no Rio de Janeiro, convivendo com as
transformações pelas quais passava o teatro e buscando encontrar seu lugar nesse cenário:
“Então era um momento novo, o dos anos 70. Cheguei aqui e não tinha mais isso [os grupos e
companhias]. Então comecei a fazer teatro avulso, mas na primeira oportunidade eu tentei fazer
um grupo, que foi o que chamei de Grêmio Dramático Brasileiro.” (FREIRE-FILHO, 2011).
Entretanto, talvez por uma questão geracional, o encenador parece não ter encontrado afinidade
artística com os novos grupos que emergiram na década de 1970, como o Asdrúbal Trouxe o
Trombone, cuja tônica privilegiava a criação coletiva em detrimento de um encenador com
propostas autorais. Disso parece residir o desejo de organizar o próprio grupo, cuja proposta
inicial para o Grêmio foi montar quatro peças simultaneamente para não correr o risco de
encerrar logo na primeira montagem, mas que acabou sucedendo na quinta. Tais trabalhos
tinham a mesma cenografia básica que se modificava com alguns poucos elementos, específicos
de cada um: Um visitante do alto e Manual de sobrevivência na selva, ambos de Athayde;
75

Pequeno dicionário da língua feminina e Reveillon, de Flávio Márcio, com destaque para essa
última, que Yan Michalski considerou como uma das peças mais originais e densas daquela
época. Na altura dos trabalhos do Grêmio, já se podia reconhecer a busca de Aderbal por novas
formas de dramaturgia e a encenação, que tem no ator o principal mecanismo de comunicação
do texto com a plateia.

O projeto de um grupo ligava-se principalmente à insatisfação com as experiências


independentes, que naquela altura somavam-se cinco (Cordão umbilical, Flicts, Amanhã,
Amélia, de manhã, Apareceu a Margarida e Guerra e paz): os elencos distintos e a perenidade
das produções impediam-no de desenvolver continuamente sua poética. Sentia necessidade de
um elenco fixo para progredir em suas investidas cênicas e não recomeçar a cada novo
espetáculo com atores diferentes. Todavia a crítica foi impiedosa com o Grêmio, argumentando
que havia um “excesso de pretensão do grupo”, o que o levou a um período de depressão. “1974
foi o ano em que fiz a viagem ao inferno” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 91).
Deixando o Rio por alguns meses, excursionou por Porto Alegre (para encenar o que será seu
primeiro Vianinha, Corpo a corpo), Paris (onde esteve para assistir à versão local de Apareceu
a Margarida e negociar com o agente das peças de Athayde uma possível montagem na França
de Um visitante do alto) e Lisboa (onde tentou frustradamente encenar a Margarida). O
encenador retomou seu trabalho no Rio no ano posterior em ritmo intenso: uma versão diferente
e local de Corpo a corpo e em seguida O vôo dos pássaros selvagens, de Aldomar Conrado,
que constaram da lista dos cinco melhores espetáculos do ano, merecendo novamente do crítico
Yan Michalski o reconhecimento de seus talentos como encenador que se comprovam nos
respectivos excertos:

No belo e impiedosamente frio cenário branco e preto de Mixel Gantus, Aderbal Jr.
realizou um espetáculo bonito e inteligente, rompendo a toda hora a convenção
realista que o texto à primeira vista sugere, mas sem nunca cair no preciosismo da
fantasia arbitrária. (MICHALSKI, 2004: 217)

A partir dessa matéria-prima dramatúrgica generosa, mas ingênua e artificial, o diretor


Aderbal Júnior construiu um espetáculo surpreendentemente original e belo, e
animado por um exuberante sentido de teatralidade. Para isto, ele teve de conceber e
codificar uma escrita cênica toda especial, inspirada nas características específicas do
texto, e na sua visão muito pessoal desse texto; e o fez com tanta felicidade que não
só superou, em parte, as insuficiências da peça, como também conseguiu tornar-se
num certo sentido co-autor da mesma, na medida em que soube criar, através da
linguagem visual, sugestões de conteúdo complementares àquelas que o texto escrito
transmitia antes da encenação. (MICHALSKI, 2004: 223-4)
76

Yan Michalski explicita as qualidades de Aderbal como encenador, certamente mais


maduro sobre sua poética e de seu gesto como escritor de cena, revelando talento como coautor
das obras. O crítico exalta os recursos cênicos que faziam sobressair aspectos de intensa
teatralidade, principalmente quanto ao texto de Aldomar Conrado que mereceu da encenação
um suplemento à escrita do autor. Ainda percebe sua inventividade na composição de imagens
cênicas, concentradas apenas nos corpos dos dois atores, no caso de Vôo, numa cenografia de
módulos que dispensava móveis ou outros volumes que poderiam ser auxiliares nesse sentido.
Encerrando a análise com a sentença de que O vôo dos pássaros selvagens era a mais bela e
madura encenação de Freire-Filho até então, Yan Michalski não deixou de pontuar certo
hermetismo na construção de uma complexa linguagem simbólica, principalmente por meio de
objetos manipulados pelo elenco; entretanto, acreditava que esse clima lírico oferecia ao
espectador estímulos renovados para decifrar as entrelinhas do espetáculo. De outro lado, com
Corpo a corpo, Freire-Filho iniciou duradoura convivência com a obra de Vianinha: Moço em
estado de sítio, de 1981, lhe rendeu o Prêmio Molière e uma remontagem no ano seguinte tendo
Zezé Polessa no elenco; Mão na luva10, em 1984, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da
Cunha e coreografia de Klauss Vianna, arrebatou os Prêmios Mambembe e Golfinho de Ouro;
em 2011, dirigiu a leitura dramática de Nossa vida em família, no Teatro Poeira11.

Em 1975, que ainda comportou a encenação de O tempo e os Conways de Priestley, e


Crimes delicados de José Antônio de Souza, o sucesso e os prêmios conquistados não
aprisionaram sua inquietação como criador; ao contrário, impulsionaram-no a romper seus
próprios limites, a atrever-se em novos riscos. No ano seguinte, Freire-Filho decidiu investir
novamente na formação de um grupo, partindo da montagem de um espetáculo (e não o
contrário): A morte de Danton, de Georg Büchner, revelou-se não somente uma proposta
ambiciosa como também extremamente ousada, ao utilizar como espaço cênico o canteiro

10
O título foi cunhado por Antonio Mercado, que fez uma busca nas gavetas de papeis do Vianinha, tornando-se
o responsável por descobrir a peça, visto que a original havia sido batizada de Corpo a corpo, o mesmo nome de
outro trabalho do mesmo autor. A iniciativa acaba por distinguir as duas dramaturgias, cujos enredos são distintos:
em Mão na luva, o autor revela um casal que se separa depois de nove anos juntos; Corpo a corpo concentra-se
em um único personagem, um publicitário que vive momentos de crise existencial e que passa a lutar contra os
fantasmas que o assombram.
11
Em 2014, Aderbal rebatizou essa peça de Vianinha, cujo título original era “Em família”, estreando nos palcos
como “Vianinha conta o último combate do homem comum”.
77

subterrâneo de obras da construção do metrô da Glória e comportar em seu elenco


aproximadamente 30 atores.

Lidia Kosovski, em sua tese Comunicação e espaço cênico: do cubo teatral à cidade
escavada, analisa a empreitada aderbaliana, que ainda apresentava um forte compromisso
político no contexto da repressão: “A complexidade deste acontecimento, fruto de um olhar
sobre o espaço-tempo de uma metrópole, é aqui considerado como o mais instigante precedente
de experiências cênicas realizadas na cidade do Rio de Janeiro.”. E acrescenta, utilizando
algumas palavras do próprio encenador, em destaque: “Um fragmento da cidade subterrânea é
valorizado como lugar de forte concentração de energias da superfície, como fator de
teatralidade que só palavras não podem traduzir” (KOSOVSKI, 2001: 169). Entretanto, se o
experimento na época ganhou relevo nas páginas dos jornais e também o apoio de artistas e
intelectuais, a crítica considerou A morte de Danton um fracasso, acompanhado também pela
escassez de público. Se Freire-Filho vinha sendo apontado como um diretor maldito, por certo
hermetismo e pela sofisticação visual de sua linguagem, o resultado do espetáculo levou-o a
um novo período de reclusão:

O fracasso financeiro de A morte de Danton foi enorme para as proporções do


empreendimento. Ficamos dois meses sem público e, quando fomos resgatados,
tínhamos só mais um mês, pois não foi renovada a permissão para o grupo continuar
ocupando as galerias do metrô. E aí, como ocorrera com o fracasso do primeiro grupo,
houve outro período de baixa. Aceitei um convite do Serviço Nacional de Teatro
[SNT] para viajar pelo país dando aulas, fui de Porto Alegre a Manaus, do extremo
Sul ao extremo Norte, numa viagem que durou seis meses. (ADERBAL JÚNIOR in
CASTILLO, 1987: 93)

Ele recorda que as viagens pelo SNT foram cruciais para que pudesse, finalmente,
desenvolver um balanço sobre seus primeiros trabalhos e assim tentar sistematizar sua prática,
balanceada entre sucessos, malogros, tentativas e ideias. Percebe-se que a instabilidade é um
valor para o trabalho de Aderbal Freire-Filho que, entre êxitos e fracassos, segue correndo
riscos, investe em experimentalismos, mantendo sua inquietação criativa em exercício. O
infortúnio de A morte de Danton possibilitou a organização de suas ideias sobre teatro. 34 anos
depois, Aderbal reflete sobre esse espetáculo como projeto-embrião de um coletivo: “Eu era
ambicioso demais, a gente fazia no buraco do metrô em construção, tinham trinta e tantos
atores... […] E acabou que não vingou como grupo, mas a tentativa era essa.” (FREIRE-FILHO,
2011).
78

Nos primeiros anos da década de 1980 o encenador obteve alguns sucessos comerciais
com espetáculos cômicos, “tentando resolver pelo método direto a imponderável questão da
conciliação entre o comercial e o vital” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 95): em O
desembestado (1980) de Ariovaldo Mattos, experimentou uma exposição exagerada da classe
média a partir de inúmeros artifícios e elementos do teatro de revista, tendo no elenco dois
experientes comediantes das escolas mais populares, Grande Otelo e Rogéria. Destaca-se que a
experiência lhe rendeu outros frutos, pois a principal característica da linguagem do romance-
cem-cena, criada anos depois, é a comédia, em procedimentos claramente inspirados no próprio
teatro de revista: travestimentos, clichês, paródia, caricaturas e estereótipos.

Encenou ainda no mesmo ano Dom Quixote de la Pança, adaptação de Camila Amado
para o clássico de Cervantes, o que revela um encenador multifacetado e inquieto ao transitar
em diversos estilos, formas e gêneros. Também se dedicou a experiências de teatro de rua, onde
adaptou (e publicou) uma série de contos de Machado de Assis (A sereníssima República, O
dicionário, Fulano, Pai contra mãe, Evolução, Ideias de canário e Noite do Almirante),
experiências que futuramente serão lembradas pelo encenador como uma antecipação ao seu
trabalho com textos narrativos12. O período também incluiu a montagem, durante quatro anos
consecutivos nas sextas-feiras santas, de sua versão da Paixão de Cristo13.

Aderbal voltou a conhecer o sucesso e o reconhecimento público com os espetáculos


Besame Mucho (1984) de Mário Prata, vencedor dos Prêmios Paulo Pontes e Mambembe, além
de Mão na luva, já citado anteriormente. Contudo, ao dirigir a versão em espanhol de Crimes
delicados em Buenos Aires, em 1979, Aderbal Freire-Filho iniciou alguns anos depois um
percurso de trabalhos pela América Latina que alteraria em muito sua visão de trabalho de
grupo, levando-o, mais tarde, a fundar o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo,
espaço de criação onde nascerá o romance-em-cena.

Eu vinha de trabalhar em grupo fora do Brasil, no Uruguai. Nos anos 80 eu comecei


a trabalhar no Uruguai com dois grupos: um que era a companhia oficial do Estado, a
Comédia Nacional Del Uruguay [onde dirigiu a reconhecida montagem de Mefisto,
de Klaus Mann/ Arianne Mnouchkine], nos moldes da Comédie-Française, dessas

12
Após a leitura desta pesquisa, Aderbal recordou-se que, naquela época, ainda nem sonhava com os futuros
“romances-em-cena”, mas reconheceu que as experiências foram tão proveitosas que, logo depois, escreveu e
montou também na rua um texto a partir de poemas de Carlos Drummond de Andrade, basicamente uma adaptação
de O caso do vestido, no início dos anos 1980.
13
Não se obteve mais informações sobre esses espetáculos, nem onde e em que condições foram realizados.
79

grandes companhias estatais. E outro era um grande grupo privado, o nome era El
Galpón, Institución Teatral El Galpón. E aí fiquei com o barato de trabalhar com os
atores que estavam sempre trabalhando juntos, ou seja, tudo aquilo que eu tinha, todo
aquele desejo, toda aquela luz que eu via na frente e que pela necessidade das
circunstâncias eu fui deixando para trás, de novo é realimentado e trazido à tona nesses
meus anos uruguaios, nesses meus primeiros anos uruguaios, a partir de 84. Tanto que
o Centro começa em 89. (FREIRE-FILHO, 2011)

As experiências com os grupos latino-americanos, concentradas, sobretudo, entre 1984


e 198914, estimularam Freire-Filho a investir novamente na formação de um grupo, o Centro de
Demolição e Construção do Espetáculo (CDCE), quando de sua ocupação do abandonado
Teatro Gláucio Gill em Copacabana, experiência que alterará profundamente os rumos de sua
carreira e revelará sua experiência mais marcante à frente de um coletivo, período que será
devidamente explorado e analisado em tópico posterior. Resgatando o percurso biográfico, com
o encerramento das atividades do Centro, Aderbal retomou sua carreira independente, algumas
vezes encenando projetos pessoais, em outras assumindo como convidado a direção de
espetáculos, como se pode verificar a seguir.

Percebe-se que desde os anos 1990 ele é um dos diretores mais celebrados do Rio de
Janeiro, requisitado por atores e atrizes consagrados pelo grande público de massa, por meio
das telenovelas e também do cinema15: Pedro Paulo Rangel (Anônima, 1997), Cláudia Ohana,
Marcos Winter e Rogério Fróes (O carteiro e o poeta, 1997), Bárbara Bruno e Ney Latorraca
(O Martelo, 1998), Ricardo Blat (Luzes da boemia, 2000), Fernanda Torres e Débora Bloch
(Duas mulheres e um cadáver, 2000), Ana Paula Arósio (Casa de bonecas, 2001), Andréa
Beltrão, Emílio de Melo e Gisele Fróes (A prova, 2002), Louise Cardoso, André Valli e Guida
Vianna (Sylvia, 2002), Luis Melo (Cão coisa e a Coisa Homem, 2002), Marília Gabriela e
Reynaldo Gianecchini (A peça sobre o bebê, 2003), Débora Bloch e Diogo Vilela (Tio Vânia,
2003), Giulia Gam e Wagner Moura (Dilúvio em tempos de seca, 2004), Marieta Severo e
Andréa Beltrão (Sonata de outono, 2005 e As centenárias, 2007), Drica Moraes (A ordem do
mundo, 2008), Wagner Moura (Hamlet, 2008), Débora Falabella e Ângelo Antônio (O
continente negro, 2009) e Daniel Dantas e Renata Sorrah (Macbeth, 2010).

14
Depois desse período concentrado, Aderbal seguiu trabalhando no Uruguai por mais de dez anos.
15
Não se trata apenas de prestígio, mas de perceber que o encenador conseguiu consolidar sua carreira e ser
remunerado por ela.
80

Em 2011 estreou Depois do filme, monólogo escrito e dirigido por ele e para ele,
retomando o personagem Ulisses que havia feito no filme Juventude, de Domingos de Oliveira
– um de seus parceiros geracionais e amigo de longa data –, além de algumas substituições em
seus próprios espetáculos. É artista residente do Teatro Poeira, onde criou Jacinta (2012),
elenco encabeçado por Andréa Beltrão e Incêndios (2013) protagonizado por Marieta Severo,
esse vencedor do prêmio Shell de Melhor Direção, recordista de indicações ao prêmio APTR,
tendo conquistado quatro das dez categorias (Espetáculo, Atriz: Marieta Severo, Atriz
Coadjuvante: Kelzy Ecard e Cenografia: Fernando Mello da Costa) e contemplado com o
Prêmio Questão de Crítica de Melhor Ator pela atuação de Marcio Vito. No mesmo ano, dirigiu
Deixa que eu te ame, peça de seu amigo já falecido Alcione Araújo. Em 2014, dirigiu e atuou
no espetáculo de dança Caprichosa voz que vem do pensamento, dividindo a cena com uma
bailarina e um músico. Como proposta de revitalizar a SBAT, dirigiu nova montagem de “Em
família”, de Vianinha, rebatizada por ele de “Vianinha conta o último embate do homem
comum”, outro sucesso de público e crítica.

Depois de muito titubear, principalmente por não ter aparelho de TV em casa, Aderbal
aceitou convite da TV Brasil para assumir um programa semanal sobre arte e preencher a lacuna
deixada por Sergio Britto após seu falecimento. Sob seu comando, Arte do artista segue no ar
desde setembro de 2012 e inspira-se nas transmissões radiofônicas de George Orwell, onde o
diretor conjuga encontro com artistas e a inserção de pequenas e fantásticas histórias no roteiro.
Já estiveram em sua companhia grandes nomes brasileiros e estrangeiros como Pedro Sá
Moraes, Paulo Betti, Carminho, Nani, Domício Coutinho, Judivan, Domingos de Oliveira,
Mario Prata, Sergio Ricardo, Michel Melamed, Carlinhos Brown, Marília Gabriela, Charles
Watson, Maria Klabin, Lauro César Muniz, João Mota, Marcos Caruso, Tonico Pereira, Angel
Vianna, José Manuel Castanheira, Joel Birman, Chico Diaz, Wagner Moura, Théâtre du Soleil,
Cia. Mundana, Cecília Boal, João Saldanha, Márcio Abreu e Cia. Brasileira, Daniel Veronese,
Mateus Solano, Hamilton Vaz Pereira, Selton Mello, Pedro Brício, Gerald Thomas, Ruy
Guerra, Fagner, Marieta Severo, Guti Fraga, Paulinho da Viola, Companhia do Latão, João
Moreira Salles, José Dias, Sérgio Sá, Maria Luiza Mendonça e Vanessa Gerbelli, Amir Haddad,
Armazém Cia., O Tablado, Giulia Gam e Antonio Cícero.

Ainda que se considere anti-televisivo, Aderbal teve estreia inédita como ator na TV
Globo em 2014 na minissérie Dupla identidade interpretando o senador Oto Veiga, ao lado de
Bruno Gagliasso e Luana Piovani e em 2015 fez uma participação especial como Norberto na
série global Tapas e beijos de Cláudio Paiva. Multiartista, com desejo cada vez mais forte por
81

atuar, confessou-me em entrevista que antes de desejar ser ator (ou artista de teatro) sua paixão
primeira era a escrita, o que não deixou de realizar, pois escreveu peças de teatro, apresentações,
prefácios, posfácios, prólogos16 e orelhas de obras de outros autores (João de Minas, Bertolt
Brecht, Campos de Carvalho, etc), artigos e textos de programa, material que serve a esta
pesquisa como fonte bibliográfica. Além disso, deve-se já perceber que a escrita aderbaliana
ultrapassa a palavra impressa, pois como encenador desenvolveu uma escrita cênica própria,
utilizando-se da linguagem teatral como seu principal veículo expressivo.

Pensamento artístico e modos de criação

“Um bom espetáculo começa na qualidade das interpretações”, afirma Freire-Filho,


alegando que algumas peças podem ser belas visualmente, mas que se tornam ruins caso os
atores não estejam bem. Sua poética cênica tem o ator (um bom ator) como eixo determinante
da encenação, veículo das palavras escritas pelo autor do texto, agente concreto e central da
comunicação entre a cena e o espectador. Talvez por isso nunca tenha abandonado seu trabalho
como ator, ainda que a encenação o ocupe mais, pois lhe permite compreender na carne e no
espírito as idiossincrasias desse ofício: “Eu acho fundamental ser ator. Enquanto ator você vai
entendendo tudo magicamente. […] É o elemento mágico do teatro, é presente o tempo inteiro,
e como ator é que você mais sente a magia do teatro, é o lugar onde a magia do teatro atravessa
seu corpo.” (FREIRE-FILHO in DELGADO e HERITAGE, 1999: 146).

“Sendo Aderbal Freire-Filho um homem de teatro completo, na acepção máxima do


termo – escreve, dirige, atua, dá cursos, traduz, etc. – e, além disso, um artista absolutamente
íntegro, fiel às suas convicções e inteiramente alheio a modismos” nas palavras do crítico Lionel
Fischer17, trata-se de um apaixonado pela linguagem que escolheu como sua expressão artística.
Alargando a visão sobre ele, Eduardo Moreira oferece um depoimento no livro Grupo Galpão:
uma história de encontros: “Nos nossos encontros com o Aderbal sempre nos chamava a
atenção seu interesse pelos mais diferentes estilos e épocas teatrais. Era um apaixonado por

16
Aderbal é responsável pela escrita do Prólogo da nova safra editorial da Revista de Teatro da Sociedade Brasileira
de Autores Teatrais (SBAT), da qual é também membro do Conselho Diretor e Conselho Editorial.
17
FISCHER, Lionel. Depois do filme. Disponível em <http://lionel-fischer.blogspot.com/2011/05/teatrocritica-
depois-do-filme.html> Acesso em 28 jan 2012.
82

Shakespeare e Molière ou Ibsen, e ao mesmo tempo alucinado com os textos das mais diferentes
épocas do teatro brasileiro.” E complementa: “Sem contar seu interesse pelas relações entre o
teatro e a literatura, traduzido em espetáculos brilhantes que marcaram a cena brasileira”
(MOREIRA, 2010: 87). A Aderbal interessa o bom teatro, independente de onde venha a
matéria-prima textual que dá origem a seus trabalhos: entre dramaturgias clássicas, modernas e
contemporâneas, brasileiras, latino-americanas, europeias ou estadunidenses, ou mesmo textos
literários como romances e contos. Portanto, não se trata somente do respeito à erudição desse
encenador, mas, indiscutivelmente, de sua atração pela literatura como fonte, seu gosto pela
leitura, pela fala e pelo partilhar conhecimentos.

Merece consideração a amizade entre Freire-Filho e Eugenio Barba, que no segundo


semestre de 2010 estiveram juntos ministrando o seminário Cruzamento de Dramaturgias, no
Teatro Poeira, Rio de Janeiro. Na ocasião, expuseram seus modos de criação, realizaram
experimentos cênicos e dialogaram com artistas e interessados. Os dois encenadores
conheceram-se em 1986 durante a II Muestra de Teatro Internacional de Montevideo, no
Uruguai, mas somente no ano seguinte tiveram um convívio mais profundo, na ocasião da
primeira visita do italiano ao Rio de Janeiro. Aderbal aceitou o convite de Barba em 1990 para
participar do International School of Theatre Anthropology (ISTA), em Bolonha. Desde então
têm se encontrado, trocado experiências, promovido diversos tipos de intercâmbio, incluindo o
que compôs a programação do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo em 1991,
como se poderá verificar adiante.

A princípio, o que parece unir os dois encenadores é a exigência e o rigor no trabalho


do ator como centro da ação e da cena, o agente de criação e o estado permanente de atenção;
também a utilização precisa e econômica de objetos e a ideia de que o teatro se constrói com
artifícios. Por outro lado, enquanto Freire-Filho tem o texto como princípio organizador de sua
escrita cênica, Barba tem-no como ponto de chegada, que resulta depois de passar por uma rede
labiríntica de textualidades oriundas de improvisações e estímulos que tecerá a dramaturgia
final; o brasileiro é capaz de trabalhar em diversas montagens durante o ano, cada uma levando
poucos meses para sua construção (com exceção dos romance-em-cena), enquanto o italiano
permite-se levar anos para construir um único espetáculo; Barba está à frente do Odin Teatret
há quase 50 anos, enquanto Aderbal aparentemente não tem um elenco fixo, não fosse a hipótese
que será desenvolvida ainda neste capítulo sobre seu coletivo de afinidades. Entretanto, para
ambos o texto está a serviço da cena e, portanto, sofre alterações de diversas naturezas, cada
um fazendo-as a seu modo e com objetivos singulares. Se há ou não profundas diferenças entre
83

essas práticas artísticas, o que parece relevante é que Aderbal e Barba se reconhecem como
arquitetos e artesãos do teatro e mantêm profundos laços de amizade e convivência,
normalmente regadas a vinho uruguaio de uva Tannat.

Entretanto, as influências mais flagrantes para Aderbal encontram-se no teatro de


Bertolt Brecht, cuja fotografia emoldurada num quadro está em exposição em uma das paredes
de sua sala de estar, conforme se pôde observar logo no início da entrevista para esta pesquisa.
É um leitor de seus textos, tendo prefaciado a edição brasileira dos Cadernos de teatro, cita-o
em diversas entrevistas como uma grande inspiração e encenou duas de suas obras: Turandot
ou O Congresso dos intelectuais, em 1993, e em 2011, Na selva das cidades, a convite do ator
Marcelo Olinto, tendo no elenco Maria Luisa Mendonça e Daniel Dantas. Na selva havia sido
encenada no Brasil pelo Teatro Oficina, nos idos de 1969, mas Freire-Filho não chegou a
assistir. Em entrevista a Bruno Yutaka Saito do jornal Valor econômico, estabeleceu paralelos
entre Brecht e Shakespeare, outro dramaturgo que preza: “Brecht é o Shakespeare do século
XX, e o Shakespeare é pós-Brecht. O Brecht tirou o teatro da ilusão absoluta, e leva o espectador
para onde quer. […] Quando ele faz isso, ele me lembra Shakespeare, que te convidava a entrar
naquela mentira e nas verdades que ele queria dizer.” (FREIRE-FILHO in SAITO, 2011).

Para afirmar a importância de Brecht não apenas para si, mas para o teatro em todo o
mundo, Aderbal conta de sua visita aos Estados Unidos a convite de uma instituição que agrega
vários grupos off-Broadway. Entre visitas, conversas e peças a que assistiu, Freire-Filho disse
ter-se impressionado com o que via, presumindo que o teatro norte-americano é um teatro por
onde o Brecht não teria passado. Na época percebeu no palco norte-americano uma limitação,
pela falta de viço, pela ausência de quebra da ilusão. Ele acredita que a não-contaminação
brechtiana naqueles palcos pode dever-se à autossuficiência dos estadunidenses. Entretanto, ao
observar o período em que Brecht viveu lá, percebe-se que o país vivia plenamente o
macarthismo, período de intensa patrulha anticomunista, de perseguição política e desrespeito
aos direitos civis. De qualquer maneira, Aderbal argumenta a importância do encenador alemão
para o teatro a partir do século XX:

Porque o Brecht é fundamental para o teatro tornar-se ilimitado. É graças à discussão


da ilusão no teatro que a gente pode fazer Moby Dick e quatro atores representarem
oitenta homens embarcados e uma baleia e viveram as duas horas da peça em alto-
mar. E o lugar não é alto-mar e esses sessenta e tantos personagens e a baleia são
quatro atores. Então você está o tempo todo jogando com o espectador o jogo da
ilusão, que não é mais a ilusão absoluta do teatro realista, nem a ilusão absoluta do
84

cinema, quando você entra e vê ali o Jack Nicholson e ele é aquele personagem do
começo ao fim do filme e não vem nem agradecer. Pra você levar aquele personagem
pra casa. E no teatro não. O ator pode entrar, sair e voltar pra poder interligar. Esse é
um conceito do Brecht. (FREIRE-FILHO, 2011)

O anti-ilusionismo brechtiano é caro à poética de Aderbal Freire-Filho, principalmente


nas investidas experimentais do romance-em-cena. Se para o encenador alemão o ator deve
dirigir-se diretamente ao público, mostrar o personagem ao invés de sê-lo (e identificar-se com
ele) e utilizar-se recorrentemente da terceira pessoa do discurso e no tempo passado (narrativo),
ser ao mesmo tempo manipulador e manipulado (dos fatos, personagens e acontecimentos),
para o encenador brasileiro tais procedimentos vêm ampliar as possibilidades da cena e revelar
a teatralidade do próprio teatro. Ao transitar por inúmeros personagens, montar e desmontar
diante da visão do espectador, o ator do romance-em-cena aderbaliano mantém sua performance
no tempo presente e filia-se diretamente aos princípios brechtianos da representação. Por outro
lado, é preciso destacar a influência de alguns contemporâneos seus, como Augusto Boal e o
Teatro de Arena que buscaram no recurso do Coringa um correspondente brechtiano para o
teatro brasileiro.

A construção do imaginário do público, que o mantém em estado de observação, análise


e possível crítica/ reflexão, potencializa-se pela explicitação em cena dos recursos do teatro. No
lugar das maquinarias que escondem os artifícios do palco, Aderbal apóia-se em Brecht para
revelar os bastidores da construção cênica ao espectador. Os dois encenadores ultrapassam a
ilusão do teatro burguês para que, junto a ela, mostrem ao público os truques para a sua
realização. O ator “não oculta que o ensaiou, tal como o acrobata não oculta o seu treino;
sublinha claramente que o depoimento, a opinião ou a versão do passado que está nos dando
são seus, ou seja, os de um ator” (BRECHT, 2005: 109). As possibilidades oferecidas pelo
distanciamento brechtiano ampliam a comunicação entre o palco e a plateia, que não estão
separados, mas juntos, pois ambos participam do mesmo acontecimento teatral, lugar de
encontro, de ficção e realidade, de coexistência tensionada entre verdade e mentira.

O teatro como espaço onde tudo é permitido para Aderbal é uma consequência da
abertura das artes dramáticas para outros sistemas de linguagem, como o cinema e a televisão.
Sendo o teatro uma representação viva e independente, recupera seu poder de origem e torna-
se uma arte poderosa, pois apresenta a possibilidade de recriar o mundo, como o fazem todas
as criações imaginárias (como a literatura, por exemplo), dispondo de recursos especiais,
85

linguagens, símbolos, para provocar o público. Segundo ele, o teatro do ponto de vista do
espectador é uma “festa dos sentidos”, onde se assiste à criação de novos mundos e, por sua
capacidade imaginativa, torna-se também um coautor na construção de significados. “Com
meios materiais pobres, o teatro volta a contar com a imaginação do espectador.” (ADERBAL
JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 14). Destaca o teatro como uma arte cuja produção e consumo
se irmanam na coletividade e na simultaneidade, pois configura um espaço social tanto entre a
equipe de realizadores quanto o conjunto do público que o assiste. Entende sua função de
encenador como aquele que trabalha sobre o cênico, composto pelo ator e pelo drama, é o
coautor da obra teatral; ainda, seu ofício de tradutor revela-se ao oferecer ao texto todos os
recursos do palco, redescobrindo-o para o ator. Entretanto, como leitor e tradutor, Aderbal
acentua que no teatro não se cria sozinho, mas em coletividade. “O bom teatro é
fundamentalmente ligado ao equilíbrio dos discursos: do diretor, dos atores, do autor, um
coletivo cujo desafio é conciliar todos esses discursos. (FREIRE-FILHO in DELGADO e
HERITAGE, 1999: 151).”

Ao dirigir Apareceu a Margarida (1973), Aderbal dava os primeiros passos na


construção de seu sistema de trabalho, recolhendo os métodos recorrentes e buscando uma
relação de causa e efeito entre o processo e o resultado. Ele assinala a importância desse
espetáculo, em que procurava uma vinculação entre forma e significado, esmerando-se em
cuidar de cada detalhe, de cada pequeno gesto ou movimento, de descobrir os sentidos do texto
no jogo com a intérprete Marília Pêra. Ao longo de sua carreira, desenvolveu modos (ou
métodos) de criação, como deixou registrado para Rubén Castillo, buscando desvendar por
meio deles sua compreensão do fazer teatral, do lugar do ator e do papel desempenhado pelo
encenador-dramaturgo:

Julgo que ensaiar e encenar uma peça é compreendê-la e expor cenicamente o


compreendido. Então, para mim, objetivamente, o tempo total dos ensaios se divide
em duas partes: os ensaios de compreensão e os ensaios de exposição. […] Hoje, por
exemplo, chamo essas duas etapas do período de ensaios de “leitura afetiva” e
“resposta em cena”. Por que chamo de leitura afetiva a fase de compreensão? Bem,
em princípio, essa fase dos ensaios deve ter uma disposição muito mais coletiva do
que a outra. Eu […] acho que a exposição precisa do domínio da gramática cênica,
que a gramática cênica não pode ser desprezada, e é o diretor quem se mete nos seus
segredos, assim como o poeta nos segredos do verso. Já a compreensão cobra a
participação de todos com total liberdade, a maneira de compreender de cada um, de
cada ator, especialmente. É preciso que cada um “leia” do seu jeito, com o seu “afeto”.
(ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 25-6).
86

A sala de ensaio é seu laboratório de criação, espaço onde questões são colocadas,
investigadas, testadas, revistas e compreendidas. Ele não prepara anteriormente o ensaio, é no
encontro e no confronto com os atores e demais criadores que o espetáculo vai sendo construído.
Tem como característica singular o ato de falar, falar muito, expondo seu pensamento em voz
alta, ainda que seja para si mesmo: “[…] em cada ensaio percebo que as coisas sobre as quais
tenho que falar acabam sendo novas para mim também. Diante do conhecimento que tenho de
uma situação, se produz uma descoberta nova. E eu falo dessa descoberta.” (ADERBAL
JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 11-2). Algum tempo depois, mais consciente de si e de seu
trabalho, assumiu:

Não tenho uma concepção silenciosa. Eu, pelo contrário, quero compartilhar com todo
mundo, dividir com todo mundo o que está sendo trabalhado, o processo, se isso quer
dizer tal coisa, tal outra e até com o autor ausente, porque muitas vezes estou fazendo
um texto e digo que falta aqui uma pontuação cênica, aqui mudou de capítulo, e depois
a gente volta ao texto e tinha lá uma rubrica do autor, que dizia tal coisa, que não é
exatamente a que nós fizemos, mas que identificava a necessidade dessa pontuação.
(FREIRE-FILHO in DELGADO e HERITAGE, 1999: 139)

Ao privilegiar o trabalho a partir de textos escritos, dramáticos ou não, Aderbal Freire-


Filho investe na multiplicidade de leitura que uma mesma obra pode oferecer para distintos
leitores e espectadores e acredita que isso altera a qualidade do escrito para o cênico, pois a
obra pode chegar mais rica ao público, que é seu destinatário final, somando com ele novas
percepções. Nos ensaios de compreensão, disponibiliza diversos materiais relacionados direta
ou indiretamente à obra a ser encenada: textos, objetos, pinturas, máscaras, entre outros, que
vão servir de estímulos para os jogos com os atores. Não se tratam de improvisações: os
materiais destinam-se à compreensão individual do elenco porque proporcionam ao coletivo
essas visões singulares. “[…] representando uma cena em contato com um material reagente
(no sentido da química), o grupo experimenta um conhecimento sensível da essência da cena e
da reação de cada ator à cena, que, depois, penso, vai alimentar a inteligência.” (ADERBAL
JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 27). Interessante observar que Aderbal prefere pensar a partir
da química e do conceito de reação (que se dá entre o ator, o elenco e os materiais), fundamento
crucial para que o teatro se revele a partir do conflito, da ação, do drama, do teatral. Chico Diaz
recorda o espírito inquieto e questionador de Freire-Filho, que nos ensaios comporta-se também
como um matemático, problematizando equações e teoremas (cênicos) que devem ser
solucionados por todos os envolvidos na criação:
87

E é muito interessante, porque ele realmente se coloca... equações... ele faz perguntas.
E ele faz pra ele mesmo e, claro, como sábio que é, cria um vazio e um bando de puxa-
sacos, que somos nós, atores, preenchem o vazio. E isso é muito inteligente, porque
ele faz a pergunta e que ele não sabe. Mas ele sabe que aqui tem que ter uma pergunta.
“Como nós vamos responder essa porra?” Ah... sugestão, sugestão e tentativa e erro,
tentativa e erro, tentativa e erro... “Aí, não dá. Vamos mudar de pergunta então”. E
muda a pergunta. Assim ele foi conseguindo a linguagem e a construção de todo o
espetáculo. (DIAZ, 2011)

Uma das principais questões do romance-em-cena é escolher formas de situar a narrativa


no tempo presente do espetáculo: “Então eu tenho que descobrir numa determinada cena onde
eu vou parar, em que momento dela eu situo meu presente, pra alguém falar do passado e daí
desaguar num futuro.” (FREIRE-FILHO, 2011). Em O que diz Molero, uma das equações
reveladas por Aderbal concentrava-se na passagem em que o personagem Leduc torna-se
paralítico. No romance, a narrativa assim informa ao leitor sobre o ocorrido: “ – Quando Molero
soube de Leduc – disse Austin –, soube logo que ele tinha sido o ginasta […]. Ele tinha feito
ginástica a vida inteira, especializou-se em argolas, sua ambição era fazer um Cristo perfeito e
demorado, trabalhou 15 anos para isso. Tudo aconteceu no dia seguinte, como se o destino
quisesse brincar com ele.” (MACHADO, 2004: 21). Aderbal perguntava-se nos ensaios em que
momento da narração ele iria parar para encenar a passagem. “Onde eu vou parar? Ele [Leduc]
em casa fazendo treino? Ele na cadeira de rodas contando o passado?” (FREIRE-FILHO, 2011).

A solução encontrada por Aderbal Freire-Filho foi deslocar o episódio do romance para
uma cena no bar onde Leduc vai comemorar a feitura de seu Cristo perfeito, compondo um
quadro cênico com outros personagens: um homem (que vai atacar Leduc, responsável pelo
acidente) acompanhado da namorada e um garçom. Como o romance não explica o que
efetivamente se passou no bar, Freire-Filho criou cenicamente uma situação em que a Leduc é
assediado pela namorada de um dos clientes que, junto ao garçom, constituem personagens
extradiegéticas. Leduc conta para os presentes no bar de sua façanha artística, enquanto a
namorada do sujeito insinua-se e roça seus pés sobre a perna dele. A descoberta da paquera
constrói o conflito cênico e justifica para o espectador a ação do sujeito de atacar Leduc com
uma cadeira nas costas, encerrando-o numa cadeira de rodas. “Então, por exemplo, escolher
esse momento é uma opção dramatúrgica capital à criação do romance-em-cena, deste tipo de
adaptação.” (FREIRE-FILHO, 2011), sentencia, reforçando que a resposta vem do ensaio.
88

Sem se desmentir quanto à preparação prévia dos ensaios, Freire-Filho revela que
apenas durante o processo das leituras afetivas ele se ocupa deles com antecedência, ao escolher
os materiais e pensar nos estímulos que pode oferecer aos atores. Em seguida, para iniciar a
fase da exposição (que não significa a conclusão da compreensão), determina um espaço cênico
básico como ponto de partida para começar a criar o universo que vai ser a peça, imprimido
transformações sobre ele durante os ensaios, juntamente com o cenógrafo. Os ensaios de
exposição compõem paulatinamente aquilo que virá a ser o espetáculo na estreia, sendo que
toda interferência criativa deve se dar em função da exposição que é feita. Trata-se de um
sistema prático, de responder cenicamente às perguntas que o texto e a plateia, ou seja, a
sociedade, propõem. Assim sendo, seu trabalho é fruto da práxis do palco, do fazer cênico, que
somente é possível estando os criadores disponíveis e dispostos num determinado espaço.
Entretanto, prefere não pensar a estrutura do espetáculo fora da sala de ensaio, embora
reconheça que seja um atributo do diretor e que muitos o fazem: “Vou para o teatro cada dia
tratar de expor as cenas da peça, isto é, mostrar no palco o que compreendemos delas. E é no
teatro, no ensaio, que isso vai acontecer.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 32). Se
o encenador é um autor, um escritor de cena, aqui se pode averiguar que o palco nu é o
equivalente à folha em branco e os atores às canetas (ou lápis) para o escritor.

Sua gramática da encenação comporta divisão de cenas, pontuações, parágrafos,


ênfases, ritmos, tempos, movimentos dos atores, gestos, símbolos e objetos. Denomina como
coreografia do entendimento a movimentação do elenco sobre o palco, que por sua vez conduz
a outros aspectos formais da linguagem teatral. Nesse sentido, percebe-se sua escrita imaterial,
porque cênica, que desenvolve junto ao elenco, buscando em partituras coreográficas a
transposição e a significação do texto com os elementos do palco. Esse movimento deve se
originar no sentido daquilo que se quer expressar, enquanto as questões técnicas se solucionam
como consequência.

Por outro lado, o escritor cênico Freire-Filho tem em sua gramática um conjunto de
figuras, construções, elementos, mas isso não constitui um manual para consultas, como
acontece com a gramática linguística, com suas regras e exceções. A gramática da encenação
depende em larga medida do que foi posto em cena, que suscitará primeiramente a compreensão
e, a partir dela, a exposição. Seu conhecimento, elaboração e reelaboração competem ao
encenador. Aderbal reconheceu-se como diretor quando descobriu que, ao somar sua
compreensão de uma peça à dos atores, era capaz de transformar um texto escrito em espetáculo.
Dessa forma, assumiu que o palco era o seu meio de expressão, em cuja gramática desenvolve
89

pontuações, vírgulas, parágrafos, utiliza metáforas, desenvolve elipses, constrói frases cênicas.
Entretanto, adverte: “As regras de uma gramática são o meio de descrever uma linguagem, mas
não são a linguagem.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 38).

Outro componente de sua gramática é a simplicidade, que não se alcança com a


simplificação, mas com a afirmação das complexidades que estão postas em cena. A
simplificação leva ao superficial, enquanto a complexificação dirige-se às compreensões
heterogêneas dos atores que serão conjugadas com a diversidade de interpretações vindas do
público: “Digo que se perguntarem qual é o meu método, eu digo que é o de complicar, não
como resultado. É complicar, quanto mais difícil melhor”. (FREIRE-FILHO in DELGADO e
HERITAGE, 1999: 140). A simplicidade na encenação de Aderbal Freire-Filho muitas vezes
reside na utilização de objetos e dispositivos cenográficos (cadeiras e mesas são recorrentes em
vários trabalhos) que podem ser manipulados e ressignificados de acordo com os sentidos de
leitura que deseja imprimir em cada cena.

Em Sonata de outono (2005), um diálogo entre o casal Eva (Andréa Beltrão) e Vitor
(Isio Ghelman) dá-se na sala de jantar, que na encenação de Freire-Filho compõe-se de oito
cadeiras em torno de um espaço vazio, no qual a mesa torna-se visível para o público por meio
do recorte de luz que reconstitui seu formato retangular. Em outra cena, Eva toca piano para
sua mãe (Marieta Severo), mas o espectador apenas ouve o som do instrumento, assistindo à
concentrada performance das mãos de Andréa Beltrão sobre um piano imaginário. Depois de
uma explanação sobre Chopin, Marieta Severo também dedilha o mesmo piano, como se o
dispositivo musical estivesse concretamente diante de si. Na selva das cidades (2011), as
cadeiras também compõem e constroem espaços cênicos, estando os atores divididos nas duas
laterais do palco onde aguardam sua entrada em cena, seja como personagem ou como contra-
regra.

No solo Depois do filme (2011), a cenografia composta por diversas cadeiras metálicas
espalhadas e amontoadas sobre o palco oferece a Aderbal inúmeras possibilidades de espaço
cênico, como um bar, uma praia, um posto de gasolina, um banco de carro, um apartamento etc.
Por outro lado, a imagem de uma coletividade que os assentos sugerem vão correspondendo
pouco a pouco aos inúmeros personagens que Aderbal encena, colocando-se como elemento
aglutinador de vozes, gestos, pessoas. Aqui, o encenador mostra como dramaturgo e ator o que
absorveu de suas experiências com o romance-em-cena. Alternando-se entre narrador e
personagens, ele dá sequência a Ulisses, seu personagem do filme de Domingos de Oliveira,
90

numa dramaturgia que estreita relações com o roteiro cinematográfico. Tal performance
sustenta-se na poética do romance-em-cena, em que narra, descreve, atua no tempo presente e
promove trânsitos entre distintos personagens apenas com os recursos vocais, corporais e
gestuais, às vezes sustentado por alguns elementos, como uma canga de praia, um pote etc. A
dramaturgia promove viagens no tempo e no espaço, em que o texto falado e algumas
movimentações são suficientes para incitar a imaginação do espectador e manter seu estado de
atenção. Os objetos ressignificados também compõem essa escrita cênica: uma lata de
refrigerante vazia transforma-se, pela utilização, em interfone (abafando sua voz), e telefone
celular. Depois do filme pode ser considerada a síntese do pensamento e da poética aderbaliana,
em que ele exerce simultaneamente suas principais atividades de ator, dramaturgo e encenador.

Entretanto, ele não reconhece a visibilidade de seu trabalho: “O diretor não tem nada
material e palpável que o represente; a presença do diretor é uma presença abstrata, intuída.
Nos meus espetáculos me reconhecem aqueles que conhecem o meu trabalho, não o público em
geral.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 23). Entretanto, a crença na invisibilidade
pode ser um equívoco, visto que o encenador é autor e, portanto, sua poética é visível e inscreve
suas marcas na obra, conforme observam tanto Foucault quanto Picon-Valin. Sobre os textos
que encena, Aderbal parte sempre do princípio da fidelidade e utiliza o termo tradutor para
definir seu trabalho, ainda que se saiba das perdas implicadas nesse processo, que demanda
muitas vezes uma reescrita ou uma recriação da matéria original, em que pese sua interpretação
pessoal e também dos atores e demais criadores. O texto deve influenciar a encenação e, entre
conceitos de cópia, influência, fidelidade, o encenador reflete sobre a questão da liberdade no
exercício do seu trabalho em dois momentos distintos, comparando-se e confrontando-se com
o trabalho do escritor literário:

Uma das diferenças das condições de trabalho do autor e do diretor de teatro é que o
autor pode entregar-se mais livremente à sua imaginação, enquanto o diretor, que
reescreve, está preso aos dados da criação original. Mas, na medida em que para cada
situação há infinitas possibilidades cênicas, apenas a liberdade do diretor começa
depois, mas ele também é infinitamente livre. As matemáticas conhecem as medidas
de grandeza do infinito. (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 32)

Às vezes penso que essa função para mim é indiscutível: o autor de um espetáculo é
o diretor, mas na verdade ele é o autor de alguma coisa que ele não escreveu, das
palavras que ele não concebeu, dos personagens que ele não representa como ator.
[…] Então eu sou pleno autor, sinto inclusive essa questão toda de dramaturgia, que é
uma questão que hoje se discute muito desde que se confrontou o autor do texto com
o autor do espetáculo, e se diz que o diretor usurpa o que seria um direito do autor. É
91

toda uma discussão vista de alguma forma equivocadamente porque o poeta do palco
é o diretor e é o autor dessa dramaturgia. (FREIRE-FILHO in DELGADO e
HERITAGE, 1999: 129)

Observa-se que, de alguma forma, há uma maior conscientização no pensamento de


Aderbal sobre seu trabalho nesse período de 1987 a 1999: se no primeiro instante pode-se
extrair certa formalidade quanto a autoria do texto original, no segundo revela-se mais seguro
das inevitáveis opções que o encenador deve ter para colocar um texto em cena, sobrepondo
sua autoria dramatúrgica e cênica à do autor do texto. Proponho a hipótese de que a criação do
Centro de Demolição e Construção do Espetáculo e da linguagem do romance-em-cena
contribuiu para a alteração dessa percepção. Nesse sentido, a consequente investigação sobre a
formação do CDCE e a ocupação do Teatro Gláucio Gill busca perceber nesse parêntese da
carreira de Aderbal Freire-Filho o despertar de uma nova poética cênica e de uma atitute política
mais explícita, que até o presente momento tem acompanhado, mesmo que de forma paralela,
a carreira desse encenador.

O Centro de Demolição e Construção do Espetáculo: um coletivo de afinidades

Ao ser inquirido por mim se o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo foi sua
experiência mais marcante à frente de um grupo que criou e conduziu, Aderbal Freire-Filho não
titubeia: “Sim, indiscutivelmente. Foi minha experiência mais bem sucedida. As outras foram
tentativas” (FREIRE-FILHO, 2011). O ideário do trabalho em grupo sempre acompanhou a
trajetória de Aderbal, como já se viu. Entre tentativas e erros, inspirado nos grupos brasileiros
dos anos 1960 e naqueles com que trabalhou no Uruguai nos anos 1980, o encenador decidiu
investir novamente e, procurando não repetir as experiências anteriores, traçou duas frentes de
trabalho: convidou alguns atores para montar um espetáculo (e não de partida um grupo), em
que pudessem conversar, estar junto e descobrir o que iriam fazer, mesmo que o convite já
anunciasse a formação de um coletivo.

A outra frente relacionava-se a uma série de oficinas em torno da obra de Nelson


Rodrigues aberta a interessados. Num primeiro momento, os dois coletivos ficaram conhecidos
como o grupão (todos os envolvidos) e o grupo (os que iam participar exclusivamente da
92

montagem). O que se sabe é que os agrupamentos foram se misturando, alunos da oficina


acabaram por participar da montagem e vice-versa. Dessa conjunção de artistas surgiu o Centro
de Demolição e Construção do Espetáculo, nome que representa bem a proposta de Aderbal
Freire-Filho de rever as práticas da cena, desconstruir paradigmas da encenação e da
dramaturgia teatrais, promover intercâmbios, trocar informações, experimentar, extrapolar os
limites da cena e caminhar em busca da ideia de que o palco pode tudo, que ele faz caber
inúmeras possibilidades de expressão.

A primeira frente de trabalho do CDCE ligava-se diretamente a um debate que dividiu


a classe artística carioca na altura dos anos 1980: uma campanha encabeçada por um crítico e
jornalista reclamava a “volta da palavra” aos palcos. O argumento, reacionário segundo
Aderbal, utilizou-se de alguns espetáculos experimentais mal sucedidos para atacar toda a
produção da época. Tratava-se de combater a efervescência das experiências cênicas iniciadas
duas décadas antes, cuja evolução encaminhava-se para afirmar a própria ideia de teatralidade,
num contexto em que o cinema e a televisão conquistavam cada vez mais espaço no cotidiano
do público. A reivindicação de um “teatro de palavra” em detrimento de um “teatro da imagem”
e/ou de um “teatro físico” anunciava-se prejudicial, pois atingiria relevantes pesquisas cênicas
que, na verdade, não estavam abandonando a palavra, mas relativizando a importância do texto
ou igualando-o aos demais elementos do espetáculo. Um teatro não exclui o outro e a palavra
não deveria ser privilegiada em razão dos demais elementos da cena. “A palavra é um elemento
muito importante, mas são também importantes os silêncios, os gestos e todos os inumeráveis
meios de expressão do homem.” (ADERBAL JÚNIOR in CASTILLO, 1987: 20). A querela,
entretanto, parecia destinar-se à consagração do velho aparelho burguês: o teatro tradicional.

Considerando um disparate, pois percebia que o desprezo pela palavra vinha de algumas
poucas peças encenadas na cidade, Aderbal Freire-Filho decidiu participar da discussão,
publicando no semanário Opinião o artigo Peço a palavra, cuja ambiguidade do título recusava
a proposta da campanha e anunciava os perigos de retrocesso à evolução do próprio teatro que
ela encabeçava. Não apenas isso, a campanha ameaçava o seu teatro, que prezava por ser tanto
“palavrista” quanto “teatralista”, utilizando-se os termos como ele mesmo definiu no programa
Palco e Plateia, do Canal Brasil18. Sua melhor resposta à polêmica deu-se com a montagem de
A mulher carioca aos 22 anos, um projeto audacioso de levar um romance, na íntegra, para o
palco: “E eu queria mostrar um teatro que fosse extraordinariamente teatral e cheio de palavras,

18
O programa, comandado pelo ator José Wilker, foi exibido em 4 de abril de 2011.
93

as personagens diziam o que estavam fazendo, comentavam como estavam fazendo, negavam
o que estavam dizendo com palavras, enfim, era pura palavra e puro teatro” (FREIRE-FILHO,
2002: 95).

Ao propor a montagem do romance de João de Minas, que havia descoberto e lido com
voracidade ainda nos anos 1970, já sabia que não desejava uma adaptação formal do romance,
no sentido de converter a escrita narrativa-descritiva em diálogos dramáticos: era uma proposta
de investigação e experimentação. Dividindo com os atores a remuneração de uma bolsa da
Fundação Vitae que tinha conquistado para pesquisar a obra desse (desconhecido) escritor,
Aderbal insistiu na convicção de que somente um grupo estável de artistas é capaz de se dedicar
a um processo de risco e descoberta. Sobre a escolha do material a ser encenado, Freire-Filho
afirmou, relembrando a decisão naquela época:

Eu quero botar um romance no palco. Como, não sei, mas quero fazer, eu não quero
adaptar. Eu quero trabalhar com romance e ir fazendo a cena com o romance e ver
como é que dá isso e tal. Quero trabalhar o romance, quero ver as possibilidades
expressivas, quero ver como que o teatro se comporta dentro dessa camisa de força e
se liberta e é super teatral e, ao mesmo tempo, pega isso que era uma camisa de força,
e pega os valores incríveis que estão aí, potencializa e põe pra frente. (FREIRE-
FILHO, 2011)

Todavia, para que o projeto pudesse se concretizar, faltava o espaço para a instalação
dos dois grupos, que veio a ser o Teatro Gláucio Gill, situado na Praça Cardeal Arcoverde, em
Copacabana. Naquela altura, o teatro encontrava-se fechado pelo governo, em completo estado
de degradação, sem infraestrutura e funcionários e sob o risco de demolição em detrimento das
obras do metrô nas imediações. Aderbal se lembra do teatro com ambiguidade, entre memórias
saudosas e mágoas: nele havia encenado duas peças importantes na sua carreira, O vôo dos
pássaros selvagens e Besame mucho, e teve suas portas fechadas à cara duas vezes: a primeira,
quando lá fazia As três irmãs junto ao Teatro Oficina em 1972 e a outra quando o CDCE foi
expulso do edifício.

O abandono do teatro explicitava-se no amontado de poltronas pelos cantos e o teto


repleto de furos, que nos períodos de chuva enchiam o balcão de água, convertendo-o
rapidamente numa cascata. Então, mesmo nessas condições, pediu para ensaiar sob os
escombros que tinha se tornado o Gláucio Gill. Com a autorização, o grupo estabeleceu
residência no teatro. Sobre a ocupação, Aderbal promove um trocadilho com o espetáculo de
94

um grupo espanhol que esteve na programação do CDCE: La conquista despacio remete tanto
à conquista de espaço (de espacio) como também a uma conquista devagar (despacio): “E aí a
gente foi aos poucos ocupando, ocupando, ficando. Aí aos poucos, as ideias... por exemplo essa
ideia de dar um curso ao mesmo tempo em que eu ensaiasse e tal... (não perco tempo, não quero
perder tempo) foi encontrando condições de se realizar.” (FREIRE-FILHO, 2011).

O projeto ganhou novos contornos, ampliando suas ações para a ocupação do teatro
público, promovendo intercâmbio com grupos de várias partes do Brasil, da América Latina e
também de outros continentes. Realizou seminários, propôs uma programação coerente com o
projeto ético e estético do CDCE e permitiu a continuidade de suas atividades de pesquisa e
investigação. Tudo isso mais tarde rendeu ao grupo acusações de favoritismo, incitou calorosos
debates, estimulou protestos. Nesse ponto, retoma-se a influência de Brecht sobre o pensamento
de Freire-Filho, para quem sua contribuição extrapola os limites da poética ao avançar sobre a
política e a ética do fazer teatral. O Centro de Demolição e Construção do Espetáculo
apresentava uma proposta de política pública para a cultura do Rio de Janeiro por meio de uma
prática do partilhar, do estar em grupo(s), envoltos numa ética da coletividade e, assim,
assumindo uma posição na cidade, com ares de revolução. A principal reivindicação era fazer
com que o Estado assumisse o investimento no teatro, na pesquisa e no seu desenvolvimento,
nos moldes das grandes cidades europeias, conforme trecho extraído de artigo de Aderbal
(Júnior) no primeiro número do jornal Máquina de pensar19, produzido e distribuído pelo grupo,
que inicialmente assinava como Centro de Estudos e de Criação Teatral, mas depois rebatizado
de Centro de Demolição e Construção do Espetáculo:

O Brasil não tem companhia estatal estável, como as que existem no mundo todo; não
conseguimos que sobrevivessem os grupos e as companhias privadas; não tem
ninguém cuidando de manter presentes nas temporadas o repertório clássico e o
repertório nacional; não foram criadas novas estruturas. É uma terra sem lei. Pior: na
falta de valores, adota-se os valores da televisão, que, no teatro, criam a lei do
boulevard.

Existem dois grandes gêneros nacionais: o teatro comercial com culpa e o teatro
comercial sem culpa. Quanto aos meios de produção, pouca gente está pensando em
construir estruturas para recuperar o prazer de fazer teatro inteiramente teatral, isto é,
com a ética do teatro, desse jogo que cresceu na Grécia e foi enriquecido tanto que,
em plena era das engenhocas, não me deixa agarrar pela imagem gravada.

19
O exemplar está disponível para consulta no CEDOC da Funarte, no Rio de Janeiro, no acervo de Aderbal Freire-
Filho. Como o CEDOC não disponibiliza os materiais para fotocópias, as páginas do jornal foram fotografadas e
posteriormente impressas para constarem do acervo da pesquisa.
95

Por que os teatros fecham? Por que o público nos abandona? Porque nós não nos
entendemos? Eu vou responder: porque perdemos nossas referências. A história já
chega tarde a Copacabana, esse bairro fulminante. Na encruzilhada da rua Barata
Ribeiro, Toneleros e Praça Cardeal Arco Verde está o velho Teatro Glaucio Gill. Eu
resolvi entrar nele porque cansei de ver que ninguém se dava conta dessa maravilha
no meio do mundo (Copacabana). E que viviam querendo construir aqui o
Ringtheater, que se incendiou em 1880.

Esse galpão formidável resistiu em pé ao nosso desprezo. E não se dobrou às tentativas


de ser reaberto sem que se dissesse porque e para que. Como se quisesse nos mostrar
que quem vai abrir um prédio que tem milênios de conflitos em redor dele e dentro
dele não é o teatro das nossas conveniências, mas sim o teatro de nossos sonhos.

O prédio desprezado da encruzilhada de Copacabana é um teatro pronto. Ele é


inacabado, destruído, arruinado para o teatro burguês padrão. Mas o teatro burguês
padrão já não é mais padrão de nada, assim como o teatro elizabetano deixou de ser
padrão no seu momento. Esse modelo de prédio teatral que ainda tem quem queira
considerar padrão, é do tempo em que todos os cenários eram uma sala e só mudavam
os lugares dos móveis. Lembro pra quem ainda está achando que ir contra esse modelo
é ser novidadeiro.

É uma questão de ponto de vista: quem procura o Municipal, encontra na encruzilhada


de Copacabana uma ruína. Mas quem procura um espaço para o teatro novo,
contemporâneo, experimental, encontra o paraíso. (ADERBAL JÚNIOR in
MÁQUINA DE PENSAR, 1990: 2)

Primeiramente, antes investigar o conteúdo dos textos, destaca-se que esse jornal
tornou-se um importante veículo expressivo para Aderbal, espaço onde exerceu a escrita,
reflexões sobre teatro, política e cultura. Esse gesto de escrita, que ele tanto se ressente de não
desenvolver tanto, converteu-se em algumas publicações, em que revela um conhecimento
erudito, empírico, autodidata e profundo do teatro, das artes, da cultura e da sociedade. Como
mestre e senhor dos palcos, Freire-Filho não é apenas um escritor de cena, mas um pensador do
seu ofício e métier. Retomando a citação acima, os ataques recebidos pelo CDCE relacionavam-
se à estabilidade e permanência do grupo nas dependências do Gláucio Gill, pois alguns artistas
requeriam as concorrências para ocupação. Observa-se, ao ler a edição de Máquina de pensar,
que esse teatro estava abandonado pelo poder público, ninguém havia tomado nenhuma
providência para sua recuperação e manutenção. Mas, quando foi cedido para Aderbal e seu
grupo, uma parte da classe se sentiu ferida, atraiçoada, enciumada.

Contudo, para o encenador não se tratava de favoritismo ou protecionismo, mas de uma


abertura política para se pensar numa ocupação pública feita por artistas. O discurso do
encenador nas páginas do jornal convocava a classe carioca a discutir os novos parâmetros para
a produção teatral, que já não mais se sustentava em temporadas de terça a domingo (incluindo
os dias de sessão dupla), ao contrário: enfrentava a escassez de público, o domínio do marketing
96

sobre as produções, da mídia e da televisão sobre a cena carioca e o descaso das políticas
públicas. A intenção da ocupação, bem explícita nos jornais e em depoimentos e entrevistas de
alguns envolvidos (Cândido Damm e Gillray Coutinho), era propor modelos mais coerentes
com a nova realidade da cultura, exigindo do Estado a responsabilidade na manutenção de seus
edifícios e consequentemente de sua programação permanente, além do estímulo à criação
continuada. Estava-se falando de um projeto amplo e não apenas de como colocar espetáculos
em cartaz.

O novo grupo de Aderbal chamava a atenção para o despropósito dos editais de


ocupação paliativa, fomentava a construção e a desconstrução de paradigmas de produção, tanto
no sentido da circulação de espetáculos, intercâmbios, quanto do investimento em pesquisa de
novas linguagens. Defendia o modelo de produção em grupo em detrimento das produções
isoladas que assolavam a cena cultural brasileira nas duas últimas décadas. Contestava as perdas
que o teatro industrializado (junto com o cinema e a televisão) impunha à criação e manutenção
da prática milenar de um teatro teatral. Para isso, desconstruiu o formato à italiana do palco do
Gláucio Gil, abrindo-o para se aproximar de um galpão, de um espaço alternativo, alegando
que o espetáculo contemporâneo “já não pede uma arquitetura obrigatoriamente frontal, nem
apenasmente circular […]. Com o espaço vazio é possível fazer desde o mais puro teatro, função
do ator, até qualquer ousado jogo de efeitos, quando a própria cenografia produz a reforma que
servirá para esse ato único.” (ADERBAL JÚNIOR in MÁQUINA DE PENSAR, 1990: 3). O
rompimento espacial entre palco e plateia e a abertura do espaço a experimentações cênicas de
diversas naturezas imprimiram sobre o Gláucio Gill ares brechtianos, verdadeira revolução
estética, ética e política. Nos fragmentos transcritos acima, evidencia-se a oposição entre um
teatro comercial, capitaneado pelas estrelas de tevê e produtores caça-níqueis (o que eles
denominavam como “burguês”) e outro teatro inventivo, provocador, inquieto e disposto até a
trabalhar sob os escombros do edifício da Praça Cardeal Arcoverde, em prol da coletividade e
de um projeto artístico amplo.

Em Máquina de pensar, primeira edição, constam ainda as primeiras atividades que


vinham sendo desenvolvidas pelo grupo nas dependências do Gláucio Gill, em que se percebe
a diversidade de propostas: ensaios de A mulher carioca aos 22 anos e pesquisa e organização
da vida e obra de João de Minas com apoio da Fundação Vitae; organização de uma biblioteca
de peças brasileiras não publicadas; oficinas sobre preparação do ator, com textos de Luis da
Câmara Cascudo e Walt Whitman, e oficina de construção do personagem a partir da obra de
Nelson Rodrigues; seminário sobre aspectos do teatro e da cultura latinoamericanos; oficina
97

sobre o personagem shakespeareano incluindo estudo de Rei Lear para apresentação no ciclo
de leituras do Espaço Cultural Sérgio Porto; reuniões semanais de diretores, autores e atores,
um “clube de opinião” com participação de Alcione Araújo, Amir Haddad, Domingos de
Oliveira, Márcio Souza, Pedro Cardoso e Aderbal Freire-Filho. Entretanto, no mesmo ano, a
estreia de A mulher carioca aos 22 anos promoveu a reinauguração oficial do Teatro Gláucio
Gill, depois de passar por uma breve reforma, e o grupo já se chamava Centro de Demolição e
Construção do Espetáculo. A estreia também foi acompanhada de uma edição extra da Máquina
de pensar, em cujo editorial Freire-Filho expõe novamente seu pensamento:

Poucos dias antes do começo das obras, à meia-noite de uma sexta-feira, fizemos um
concerto para piano (o nosso saudoso e querido Luiz Antonio Barcos!) e andaimes.
Com texto de Adorno, ligeiramente esculhambado por mim, os mesmos atores que
agora representam “A mulher carioca aos 22 anos” despediam-se das velhas poltronas
amontoadas na velha platéia e exortavam os fantasmas dos personagens que
maravilhosas atrizes e atores representaram aqui a que, mesmo saindo os velhos
trastes, continuassem impregnando estas paredes.

Já há sintomas de que ficaram, pois devemos a eles ao menos parte do sucesso da


obra, o teatro atraindo o carinho de cada um que projetou, desenhou, cortou madeira,
derrubou ou levantou tijolos, puxou fios, instalou canos, refez pisos, pintou,
argamassou, cortou, bateu, pregou. Um ano depois daquela despedida já estávamos
aqui, com um projeto e uma vontade. Tenho usado uma descrição da minha trajetória
pessoal para começar a explicar este projeto. Falo dos desencantos de um diretor
brasileiro de teatro que acredita que – nesta atividade tão singular no mundo moderno,
cibernético, informático – os valores principais são a ação e a atenção. O teatro é outro
na era da reprodutividade técnica, independente e autônomo, e nem vale o saudosismo
de querer recuperar conceitos antigos, nem basta entregar-se à fruição do
espontaneísmo que, igualando assim a nova atividade à vida, tira-lhe a dimensão
artística. (FREIRE-FILHO in MÁQUINA DE PENSAR, 1990: capa)

No excerto destacado, percebe-se a clara defesa do modelo proposto pelo CDCE de


gestão de um espaço público, em que estão em confronto velhos modelos, representados pelas
velhas poltronas amontoadas que foram deitadas fora, assim como o despojamento de antigas
práticas e conceitos, e o estabelecimento de um teatro conjugado com o tempo presente, que se
pretende autônomo e independente, que preza o valor cultural e o compromisso da política
pública com os artistas e a sociedade. A ocupação do Gláucio Gill durou aproximadamente
quatro anos, conforme relato de Freire-Filho, período em que foram realizadas inúmeras
atividades e desenvolvidos outros tantos projetos, recolhidos no Relatório de atividades 1989-
1993 do CDCE, no acervo do encenador no CEDOC-FUNARTE. Distribuídos em dois grandes
eixos, foram desenvolvidos montagens de espetáculos, oficinas, treinamentos, debates,
encontros.
98

O Programa de Criação destinava-se a produções próprias do grupo: A mulher carioca


aos 22 anos (romance de João de Minas, dirigido por Aderbal Freire-Filho), Lampião, rei diabo
do Brasil (texto e direção de Aderbal Freire-Filho), As alegres mulheres de Windsor (de
Shakespeare e direção de Marcos Vogel), Turadont ou O congresso dos intelectuais (de Brecht
e direção de Aderbal Freire-Filho), Os dois cavaleiros de Verona (de Shakespeare e direção de
Marcos Vogel) e Ay Carmela! (de José Sanchis Sinisterra e direção de Aderbal Freire-Filho).
Os espetáculos O tiro que mudou a história e Tiradentes, inconfidência no Rio (ambos de
Aderbal Freire-Filho e Carlos Eduardo Novaes e direção do primeiro) receberam tratamento
diferenciado, pois não foram encenados nas dependências do Gláucio Gill, mas em estrutura de
itinerância na rua e/ou em espaços históricos.

Em Outros espetáculos constam happenings com textos de Adorno, Vianninha, leituras


dramáticas de Shakespeare, Manuela Fingueret, Antônio Cisneros, Haroldo Maranhão e João
Gilberto Noll, cenas curtas, radioteatro com poemas de Mário de Andrade e textos de Yan
Michalski e da dramaturgia nacional, o projeto Centro de Demolição mostra autores ingleses
(quatro espetáculos) e Cenas do cotidiano brasileiro e Veredas, duas peças integrando o
programa Ação da cidadania contra a fome de Herbert de Souza (Betinho). Ainda, ressalta-se
o experimento O evangelho segundo Saramago, capítulos do livro O evangelho segundo Jesus
Cristo, de José Saramago, transformados em romance-em-cena por Aderbal Freire-Filho em
1991, em co-produção com o Museu da República, mas sem registro.

Quanto ao Programa de Intercâmbio, o Centro de Demolição e Construção do


Espetáculo abrigou os seguintes grupos, artistas e companhias brasileiros e estrangeiros durante
a residência no Teatro Gláucio Gill: Rafael Ponce e Gerardo Esteve (Espanha), Grupo Galpão
(MG), Tá na Rua (RJ), Teatro Radical Brasileiro (CE), Eugenio Barba e Odin Teatret
(Dinamarca), Grupo Oficina da CAL (RJ), Grupo Munganga (Amsterdam, Holanda), Grupo
Poronga (AC), Walderez de Barros (SP), Pontedera (Itália), O Grupo (RJ), O Bando de Teatro
Olodum da Bahia (BA), Domingos de Oliveira (RJ), Kô Produções (RJ) e a estreia do
espetáculo Vau da sarapalha direção de Luiz Carlos Vasconcelos com o grupo Piolim (PB),
Julia Varley (Odin Teatret, Dinamarca) e trocas entre os grupos Potlach (Itália), Cem Modos
(RS), Oikowewa (RJ), Helena Varvaki (RJ), Tá na Rua (RJ), Márcio Vianna e o próprio Centro
de Demolição e Construção do Espetáculo.

O relatório ainda abarca outras atividades, como I Feira do Livro na calçada do teatro,
as exposições João de Minas, vidaobra, Dez anos sem Nelson Rodrigues, Na Holanda, Chico
99

Mendes, Oficinas do Olodum, Três anos (do CDCE). Quanto aos seminários, seguem os títulos-
temas: Viva o teatro brasileiro, Ética e cultura, A importância do teatro, Teatro, arte e
consumo, A liberdade do cênico, Teatro e ideologia, Os teatros públicos e Os teatros públicos
e a criação teatral. Para finalizar esse inventário, cujas informações não estão tão acessíveis e,
portanto, são difíceis de serem encontradas, mas relevantes para compreender a ação do grupo,
o CDCE ainda promoveu lançamentos dos seguintes livros Vianninha, cúmplice da paixão
(Dênis de Moraes), Além das ilhas flutuantes (Eugênio Barba) e Teatro e estado – as
companhias brasileiras subvencionadas (Yan Michalski e Rosyane Trotta).

Composto por uma equipe de aproximadamente 30 integrantes20, entre artistas e


técnicos, o grupo trabalhava no peito e na raça, pois não tinha recursos para desenvolver suas
atividades, mas, como se viu anteriormente, reuniu uma programação de excelência: “Sem
patrocínio, são os atores que fazem a manutenção do espaço, da limpeza ao suprimento de
materiais. Em 1992, a companhia organizou uma exposição sobre Yan Michalski, inaugurou no
teatro uma sala com seu nome e lançou o primeiro livro póstumo do crítico.” (ENCICLOPÉDIA
ITAÚ CULTURAL DE TEATRO, 2011). Em avaliação ulterior, Aderbal Freire-Filho atribui a
manutenção do Centro de Demolição ao idealismo e à juventude do grupo, já que muitos
integrantes ainda eram sustentados pelos pais e os idealistas mais velhos como ele assumiram
viver em condições não tão favoráveis durante o período. Entretanto, com o passar do tempo,
Aderbal reconhece que as más condições financeiras foram decisivas para o encerramento das
atividades. Por outro lado, dos valores imateriais, a ética de grupo e a continuidade da pesquisa
eram os bens mais preciosos cultivados pelo CDCE:

Das coisas óbvias [e boas de se trabalhar em grupo], a melhor é a criação de um terreno


de comunicação, uma gramática interna do grupo, um vocabulário próprio, um
aprofundamento do conhecimento mútuo de possibilidades: uma coisa que aflorou no
fim do processo de um espetáculo, pode ser retomada no seguinte, pode ser um filão.
[…] Na minha vida artística, sempre estive em grupo ou querendo estar em grupo.

20
Na primeira edição da Máquina de pensar constam apenas os nomes que compuseram a ficha técnica de A
mulher carioca aos 22 anos, mas é importante mencionar outros fundadores do CDCE, recobrados por Aderbal
posteriormente com o peso da memória não abarcar a todos, como Eleonora Fabião, Gisele Fróes, Christiane
Jatahy, Dudu Sandroni, Cristine Braga, Carmen Frenzel, Cláudio Mendes, Maria Luiza Cardoso e Vera Ribeiro.
Da equipe de montagem tem-se: a) Elenco: Suzana Saldanha, Malu Valle, Cândido Damm, Thiago Justino, Gillray
Coutinho, Eduardo Mamberti, Marcelo Escorel e Orã Figueiredo; b) Diretor de pesquisa: Maurício Lissovski; c)
Compositor/ Diretor musical: Luis Antônio Barcos; d) Preparadora corporal: Rossella Terranova; e) Projetistas:
José Dias e Jorginho de Carvalho; f) Administradores: José Carlos Ferreira e Alexandre Ferreira; g) Diretor-
assistente: Marcos Vogel; h) Diretor geral: Aderbal Freire-Filho; i) Equipe de funcionários do teatro: Paulino
Ramos da Silva, Maria Auxiliadora Santana Tavares, Adelmo Cavalcante de Oliveira, Antônio Carlos da Silva,
Arlindo José de Moraes, Marlene da Conceição Rodrigues Osório, Silvino Paraná e Antônio dos Santos.
100

Quando estive em grupo, eu me vali dessas vantagens e, quando não estive, tendi a
isso, ou seja, busquei uma ética de grupo na relação com os meus atores. (FREIRE-
FILHO, 2002: 93-4)

Contudo, quatro anos depois, com a mudança no Governo do Estado do Rio de Janeiro,
o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo foi expulso das dependências do Teatro
Gláucio Gill. Segundo declarações de Aderbal Freire-Filho, uma pessoa que tinha relações no
Governo pediu o teatro, pois naquela altura o Gláucio Gill havia ganhado uma reforma e muita
visibilidade. Concedido o cargo de administrador e diretor artístico a Jesus Chediak21, Aderbal
pediu uma audiência com o Secretário de Cultura e descobriu que não era o desejo do Estado
que o CDCE deixasse o teatro. Daí iniciou-se um impasse que não se definia. Até que chegaram
para o trabalho rotineiro e encontraram o teatro trancado com um novo cadeado. Não podiam
mais entrar, a resolução do Governo foi fechar as portas.

Entretanto, o grupo se manteve resistente do lado de fora, num protesto que arrebanhou
membros da classe artística, imprensa e políticos. Freire-Filho recorda que, toda noite depois
de seus espetáculos, vários atores e atrizes se dirigiam ao calçadão do Gláucio Gill para somar
esforços nos protestos que reunia banda, bandeiras, livro de assinatura. Scarlet Moon fazia um
talk show ao vivo, Tonico Pereira encenou uma invasão simbólica do teatro (construiu uma pré-
fachada com jornal e depois rasgou-a), as pessoas começaram a mobilizar amigos e as
reivindicações atingiam uma dimensão política: estiveram lá discursando a favor do Centro de
Demolição personalidades que depois se tornaram ainda mais (re)conhecidas: Betinho,
Leonardo Boff, César Maia, entre outros. Lula (atualmente ex-Presidente da República Luis
Inácio Lula da Silva) também se fez presente, como conta o próprio Aderbal:

Ninguém do Centro esquece ele [Lula] perguntando: “O que é isso que vocês fazem
assim?” É que quando “aplaudia” todo mundo fazia assim, estalava os dedos. “Ah, a
gente tá aplaudindo para não acordar os vizinhos”. Aí ele disse: “É o primeiro
movimento de protesto que não quer acordar os vizinhos. Vocês têm que começar
acordando os vizinhos!” (FREIRE-FILHO, 2011).

21
Jesus Chediak é atualmente proprietário da empresa Chediak Arte & Comunicação, tendo ocupado anteriormente
cargos de Diretor na RIOARTE e na FUNARJ, segundo informações de seu perfil na rede social LinkedIn.
101

A batalha não foi vencida imediatamente pelo Centro de Demolição. Sem conseguir
ocupar novamente as dependências do Gláucio Gill, vendo o espaço cênico ser retomado no
formato à italiana e novamente ocupado por concorrências públicas, ou seja, ao perceber que
seu projeto estava sendo destruído, o grupo acabou migrando para o Teatro Carlos Gomes, a
convite da Secretaria Municipal de Cultura, onde trabalhou durante mais três anos antes do
encerramento oficial de suas atividades. Todavia, Freire-Filho hoje aponta que as sementes
plantadas no período 1989 a 1993 foram germinar um tempo adiante22. “A bandeira que a gente
levava ganhou a guerra”, aponta. “A ocupação dos teatros públicos por artistas é hoje um
modelo. […] Primeiro, começou com os teatros municipais, que desenvolveram esse sistema a
partir das experiências do Centro, porque fui chamado a dar palpite. Depois vieram os teatros
federais [os recentes editais de ocupação artística da Funarte] e agora os teatros estaduais estão
fazendo isso. E eu me lembro que a gente brigou por isso” (FREIRE-FILHO, 2011). No Carlos
Gomes, o CDCE realizou Instruções de uso de Aderbal Freire-Filho, uma apresentação da nova
casa e sua história, a montagem de Senhora dos afogados, de Nelson Rodrigues e No verão de
1996…, último trabalho do grupo, baseado em quadros de Rubens Gerchman e escrito e dirigido
por Aderbal.

O Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, para além de suas contribuições


para a discussão de políticas públicas para a cultura e das inovações de sua programação, deixou
um legado artístico para muitos de seus integrantes, que foi a criação do romance-em-cena.
Depois de A mulher carioca aos 22 anos (1990), Aderbal Freire-Filho voltou a montar outro
trabalho no mesmo gênero, treze anos depois, reunindo atores remanescentes do Centro, em O
que diz Molero (2003). Com o sucesso da nova empreitada, investiu novamente num terceiro
espetáculo, O púcaro búlgaro (2006). Esses novos romance-em-cena contaram também com
atores que não compuseram a formação original do Centro, mas que se somaram à coletividade:
Augusto Madeira, Raquel Iantas, Cláudio Mendes e Ísio Ghelman atuaram junto aos veteranos
Gillray Coutinho, Orã Figueiredo e Cândido Damm. O que se pretende dar relevo é que os
ideais do CDCE e a continuidade do grupo permaneceram por meio das investidas de Aderbal
no romance-em-cena, construindo um “coletivo de afinidades”.

22
Não por acaso, no ano de 2012 a ocupação do Gláucio Gill pelo CDCE foi motivo de um encontro promovido
pelo Complexo Duplo para debater com a presença de Aderbal novos paradigmas para o pensamento e para a
prática dos núcleos de trabalho continuado na cidade do Rio de Janeiro.
102

Uma pesquisa de linguagem necessita de um tempo de incubação, processamento e


investigação e um elenco estável, pois muitas vezes parte-se de uma hipótese de criação cujas
questões serão propostas, testadas, experimentadas, revistas e finalizadas. Muitas vezes os
recursos financeiros não correspondem às necessidades materiais dos artistas para uma
investida e dedicação nesse nível, o que pode levar atores a desistir ou se desestimular, por isso
a importância de políticas públicas que viabilizem a manutenção de grupos e propostas dessa
natureza. Atualmente como encenador residente e membro da curadoria do Teatro Poeira,
Freire-Filho conseguiu, de alguma forma, novamente abrigar seu coletivo de afinidades em uma
nova casa, onde tem desenvolvido projetos similares àqueles do Gláucio Gill, agora em parceria
com as atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão, proprietárias do espaço em Botafogo.

A hipótese desse coletivo de afinidades confirma-se ainda quando estive no Teatro


Poeira para entrevistar Gillray Coutinho e assistir à leitura de uma peça de Vianinha, dirigida
por Aderbal, e deparei-me em cena com os atores mais recorrentes da trilogia do romance-em-
cena23, com exceção de Ísio Ghelman, na plateia como espectador. Aderbal, corroborando com
a percepção desse coletivo, argumenta: “A gente fez muita coisa junto no Centro, muita coisa.
Então ali a gente descobriu um vocabulário, a gente descobriu uma poética. A conversa com
eles já começa no terceiro capítulo. Eu não preciso fazer um prefácio.” (FREIRE-FILHO,
2011). A partilha do sensível, conforme conceito de Jacques Rancière, por meio da investigação
e construção coletivas dessa poética cênica, ultrapassou seu próprio criador, rendendo outros
frutos: Orã Figueiredo dirigiu Amorzinho, conto de Tchekhov, com Raquel Iantas como
protagonista e dedicado a Freire-Filho, cunhando um novo termo, o “conto-em-cena”; Chico
Diaz está à frente de A lua vem da Ásia, romance de Campos de Carvalho e direção de Moacir
Chaves; e Duda Mamberti compôs o elenco de A educação sentimental do vampiro, espetáculo
a partir de contos de Dalton Trevisan, com a Sutil Companhia de Teatro e direção de Felipe
Hirsch. Para além dessa circunferência, o trabalho de Aderbal Freire-Filho tem incitado e
ampliado novas investigações no campo do teatro narrativo, como já apontado, incluindo parte
de minha pesquisa teórico-prática desenvolvida em grupos como Pannus Finis, Cia. de Outros
Atores, Cia. Pierrot Lunar e Mutanti.

23
Gillray Coutinho, Raquel Iantas, Orã Figueiredo, Augusto Madeira e Ísio Ghelman têm desenvolvido também
outros projetos e espetáculos com Aderbal Freire-Filho, formando seu coletivo de afinidades. Deve-se incluir nesse
agrupamento Marieta Severo e Andréa Beltrão, cuja parceria com o encenador já resultou em quatro montagens,
além de outras atividades na programação do Teatro Poeira, e dá sinais de longevidade.
103

A gramática do romance-em-cena: do livro ao espetáculo

No enorme burburinho das novas técnicas, métodos,


práticas e teorias teatrais, o romance-em-cena é só um
jeito mais, um jogo, talvez um gênero, sem número e sem
grau, tão sem sentido como a vida, tão inútil como tudo.
Sendo assim, fica para outra vez anunciada dissertação
sobre teoria e prática, ou fica talvez para nunca.

Aderbal Freire-Filho, no programa de O púcaro búlgaro

Aderbal ainda não se debruçou para escrever a teoria e a prática do romance-em-cena,


o que de alguma forma parece compreensível pela exigência de tempo para a empreitada, pois
se trata de um dos encenadores mais ativos da cena brasileira. Entretanto, pode-se encontrar
fragmentos do seu pensamento, propostas de conceituação e reflexões sobre sua práxis nos
programas dos espetáculos, no jornal Máquina de Pensar e também em inúmeras entrevistas
que concedeu ao longo de sua carreira, que formam prioritariamente nossa bibliografia sobre o
encenador. Apesar desses materiais dispersos e muitas vezes difíceis de serem encontrados e
reunidos, esta pesquisa concentrou-se na investigação de suas ideias, contando ainda com a
colaboração dele e de três atores24 em entrevistas para tentar compor a gramática do romance-
em-cena. Portanto, não se tem a pretensão de um estudo definitivo sobre essa poética, mas
insiste-se na premissa de que o registro escrito, a pesquisa e a análise podem contribuir para as
investidas nesse campo e oferecer outro olhar para seus realizadores. Dessa maneira pretende-
se o exercício do exame e do distanciamento crítico-analítico para seguir os vestígios da criação
aderbaliana.

Na altura da campanha carioca da “volta da palavra”, Aderbal Freire-Filho não poderia


ter escolhido melhor provocação para estimular o debate e propor novas questões, pois levar
um romance para a encenação, com o objetivo de não promover a clássica adaptação e convertê-
lo em diálogos intersubjetivos (conforme definição de Szondi sobre o drama tradicional), é
oferecer ao palco um volume extraordinário de palavras, é desestabilizar estruturas em direção
a algo novo, desconhecido. Aderbal retoma mais uma vez a influência de Brecht para apontar

24
Chico Diaz, Cândido Damm e Gillray Coutinho.
104

que o encenador alemão promoveu uma das maiores revoluções no teatro universal porque
estava insatisfeito com a forma dramatúrgica convencional, que não se enquadrava mais ao que
ele queria dizer. Era preciso buscar novas formas de escrever a cena, tentando ultrapassar as
convenções, em direção a um formato que fosse mais condizente com o seu tempo e seu
discurso.

Dessa feita, Aderbal aproxima-se mais uma vez do autor e diretor de Mãe coragem e
seus filhos. “Provavelmente essa mesma insatisfação eu sinto, até por ser mais leitor de
romances, há muito tempo, do que de teatro.” (FREIRE-FILHO, 2011). Para ele o romance
mapeia muito mais o Brasil que a dramaturgia, pois se pode ir de Érico Veríssimo a Graciliano
Ramos, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Nilson Cardoso, por mais que se tenha um texto
genial como o de Nelson Rodrigues e tantos outros. Essa observação quer dizer que o Brasil
está mais próximo de uma tradição literária que teatral? Ou a literatura brasileira é mais
difundida que o nosso teatro, muitas vezes restrito ao que se produz no eixo SP-RJ, portanto
desconhecendo a dramaturgia de outros Estados ou imobilizado pela falta de fôlego editorial?
Sem ocupar em responder essas questões, aponta-se outra, dirigida ao seu arsenal de leituras
versus os espetáculos que encenou ao longo de sua carreira: por que um romance na sua poética
teatral, já que o trabalho com textos literários corresponde à menor parte de seu portfólio?

Para responder, pode-se distinguir duas falas recortadas de nosssa entrevista: “O que
está dentro de uma narrativa me atrai muito mais como possibilidades de dizer, coisas a dizer
do que o que está dito numa peça.” Em outro momento, complementa: “[…] porque uma coisa
fascinante do romance é o convite à imaginação.” (FREIRE-FILHO, 2011). Ressalta-se a
ambiguidade nessa declaração: se o romance oferece tantas possibilidades cênicas, por que não
investir em outras propostas nesse campo? Primeiramente, o próprio Aderbal reconhece que
essa afirmação não vale como um conceito, pois ele nunca abandonou a encenação de textos
teatrais; em sua carreira, esteve mais ligado à dramaturgia tradicional do que a adaptações de
romances. Uma explicação pode estar no fato de que Freire-Filho trabalha muito mais como
encenador convidado por artistas e produtores, normalmente com o texto a ser montado pré-
determinado e de origem dramática. Em consequência, encontra pouco tempo para desenvolver
seus projetos pessoais, do qual o romance-em-cena é sua criação mais difundida e que marcou
com sua assinatura a história mais recente do teatro contemporâneo no Brasil. Entretanto, há
outros pontos nessa fresta: as exigências que a transposição de um romance ao palco impõe
como a disponibilidade de elenco e apoio financeiro para investigar, experimentar; e ainda o
105

romance-em-cena dispor de demasiados estranhamentos ao público em geral, porque exige mais


de sua fruição, enquanto o texto dramático oferece-lhe códigos mais familiares e palatáveis.

Para uma conceituação do romance-em-cena, a palavra é oferecida primeiramente ao


seu criador, sobre a qual os fios de sua poética foram tecidos:

Eu acho que o romance-em-cena pretende ser um encontro entre o gênero dramático


e o gênero narrativo. Um encontro completo. Eu não quero que seja nem mais
dramático e nem mais narrativo. E que os dois gêneros se fundam num só. É uma
tentativa de uma fusão. Uma fusão que só pode se dar mesmo no palco, porque ela
não tem tradução literária. […] O romance-em-cena eu não tenho como registrar... ele
não é uma forma... ele não tem registro possível, porque ele é um gênero que só
acontece no palco, ele não tem notação, porque ele é uma fusão absoluta entre o
dramático e o narrativo. Desse jeito, ele provoca uma reação simultânea de
aproximação e afastamento, e não alternada. […] O fato de que, num determinado
momento de uma peça, o personagem se dirige à plateia e depois se dirige aos outros,
é uma quebra de ilusão. Então, o romance-em-cena quer fazer essa relação de
envolvimento e afastamento simultaneamente. (FREIRE-FILHO, 2011, grifo meu)

Essa definição tem sido regularmente utilizada e difundida por Aderbal Freire-Filho,
provavelmente por atribuir a ideia de fusão ao fato do ator no romance-em-cena interpretar um
personagem (em primeira pessoa, configurando o elemento dramático) cujo texto é uma
narração-descrição de si mesmo em terceira pessoa (componente épico e recurso de
distanciamento/ estranhamento). É bem sabido, principalmente pela leitura de Anatol
Rosenfeld, que o épico e o dramático coexistem na história do teatro e que um sempre esteve
amalgamado de alguma forma no outro, sendo que Brecht é o principal expoente nesse campo
no teatro moderno.

Ao investigar o termo fusão, incitado por Freire-Filho, descobre-se que guarda na raiz
etimológica do verbo fundir as seguintes acepções: verter, derramar, derreter, estender, alargar,
derrubar, produzir, dispersar, borrifar. No sentido de derreter, a metáfora de fundir um gênero
em outro implicaria que os dois se desfizessem para dar origem a um terceiro, o que não se
aplica ao romance-em-cena. Compreende-se melhor o ato de fundir como verter (traduzir) ou
ainda estender, alargar, pois ao realizar um encontro entre o épico e o dramático Aderbal alarga
as possibilidades da gramática cênica, pois escreve a partir de outra escrita, a literária,
oferecendo-lhe os elementos do palco, desejando novas possibilidades de expressão por meio
do teatro. No romance-em-cena os diálogos são cênicos, pois o narrativo-descritivo transforma-
se em ação física e vocal pela divisão textual entre atores-personagens e pela sintaxe da cena, e
106

a dramaturgia ultrapassa o texto literário em cênico no ambiente mesmo da sala de ensaio, a


partir de experimentações de toda ordem.

Gillray Coutinho, o único ator que trabalhou nos três espetáculos do romance-em-cena,
arrisca alguns conceitos, dos quais um apresenta-se como suplementar à definição aderbaliana:
“Eu acho que é uma forma de ampliação dos limites do teatro contemporâneo” (COUTINHO,
2011). Quer-se inferir, mesmo sob o risco de uma proposição prematura, que o romance-em-
cena de Aderbal Freire-Filho, de certa forma, é uma atualização, uma ampliação do Teatro
Épico de Brecht. O próprio encenador brasileiro parece concordar: “Eu reajo ao pensamento
andante do Brecht, porque nas novas circunstâncias você vê como toma aquele ponto de partida
do pensamento e reage a ele” (FREIRE-FILHO, 2011). Essa atualização dá-se no romance-em-
cena porque a proposta obriga-o a reorganizar um texto tipicamente narrativo-descritivo, não
escrito para ser levado ao teatro, e, portanto, necessitando operar sobre ele interferências e
ajustes na composição dramatúrgica. A realização deu-se por meio de diversos procedimentos
que serão devidamente nomeados e analisados, como a constituição de diálogos cênicos, a
construção de personagens, encenação, ações, movimentos etc. Quanto à terminologia, Freire-
Filho esclarece que quando encenou o primeiro romance não encontrava uma definição que o
satisfizesse; portanto, cunhou o termo “romance-em-cena” para batizar a poética que estava
criando junto ao elenco do CDCE:

Eu achava que não podia chamar adaptação, achava que não era transcriação, até podia
ser... E achava que tinha que ter um nome. Quando eu comecei a fazer não tinha nome.
Eu não me lembro em que altura dos ensaios, pois ensaiamos um ano e meio, eu peguei
e cunhei essa expressão, esse termo “romance-em-cena”. Porque era um jeito
particular de fazer. Era o romance que eu dizia que era sem adaptação. Hoje em dia
eu passei a dizer que é com muita adaptação. A diferença que quando eu dizia “sem
adaptação” eu estava me referindo a uma adaptação literária. […] Agora quando eu
falo que é com muita adaptação, é porque para que aquilo vire uma peça tem que
sofrer um processo de recriação muito grande. Eu me lembro de um amigo que quando
viu Púcaro Búlgaro disse: “Esse livro é uma peça. O que está escrito aí é uma peça”.
E não era. Essa adaptação é feita de tal jeito que transforma o romance numa peça, é
uma profunda adaptação. (FREIRE-FILHO, 2011)

A partir da eureka! de Vitez, “Pode-se fazer teatro de tudo”, confirma-se que a


teatralidade não reside num texto escrito dentro de uma determinada estrutura que se
convencionou como dramática, mas no palco capaz de absorver qualquer tipo de matéria
textual. Aplica-se diretamente ao romance-em-cena, que ultrapassou a tradicional ideia de
107

adaptação, quando se trata de uma escrita destinada prioristicamente a outro suporte e meio de
comunicação. As experiências do romance-em-cena vêm desestabilizar e extrapolar as demais
terminologias como transcriação, transposição, versão etc. Não se pretende com isso retirar a
expressão do domínio da poética cênica aderbaliana e oferecê-la ao teatro contemporâneo: é
que a práxis do romance-em-cena desobriga a insistência em determinadas terminologias, já
que não é o diálogo intersubjetivo que caracteriza o texto teatral, mas a performance no tempo
presente e a ação cênica entre sujeitos.

Quando Freire-Filho afirma que o romance-em-cena exige uma profunda adaptação,


implica certamente menos a adaptação do texto escrito, em que as palavras escritas pelo autor
são preservadas, e mais as transformações que vai sofrer ao se deparar com os demais elementos
do palco. Nesse caso, o texto sofre alterações na composição dramatúrgica, pois a voz do
narrador é substituída pela voz dos atores que narram, levando o dramaturgo-encenador a
promover uma distribuição do texto narrativo-descritivo entre os caracteres que estarão
presentificados na cena. De tal maneira que para esta pesquisa o ofício da encenação, que
envolve as decisões e muitas vezes a escrita da dramaturgia, sobrepõe-se às terminologias
comumente utilizadas: pode-se encenar um romance, um conto, uma biografia, uma
reportagem, uma poesia, uma bula de remédio, enfim, pois a incorporação dessas textualidades
ao palco opera-se pelas mãos do encenador-autor.

No romance-em-cena o público é impossibilitado de fruir e ouvir o mesmo texto, pois


sua matéria-prima é de outra natureza que não a dramática. O fluxo da escrita literária de um
romance, que vai ser vocalizado e encenado integralmente num curto espaço de tempo cênico,
passa a ser jorrado, no melhor sentido da palavra, para o espectador em ritmo quase frenético.
O estranhamento parece proposital. Aderbal Freire-Filho não pretende causar no espectador
uma apreensão usual do texto e nem pretende solucionar esses impasses, mas sim estabelecer
novas relações do texto com a cena teatral e seus demais códigos de significação. Assim, a
matéria textual do romance-em-cena distingue a relação de Freire-Filho com a palavra.

O romance-em-cena oferece uma desfamiliarização ao público, principalmente aquele


que se deparou com a primeira montagem, pelo ineditismo das convenções criadas por Aderbal
Freire-Filho. Compreende-se, nesse ponto, que o romance-em-cena também é uma atitude
política, não apenas porque surgiu em meio às contestações do Centro de Demolição durante o
período de residência no Gláucio Gill, mas principalmente porque desconstrói paradigmas da
dramaturgia e da encenação, ressalta o gosto pela palavra e pela literatura, desestabiliza a
108

fruição do espectador e não obedece às tão duras regras mercadológicas de patrocínio e


subvenção que cada vez mais têm assaltado a liberdade de artistas e criadores.

Por conseguinte, o romance-em-cena demanda do espectador prontidão, atenção e


diálogo, porque insiste que ele construa seus significados durante a exibição. Sua inclusão no
espetáculo tem como principal agente o ator e o texto narrativo-descritivo que, por sua vez,
obrigatoriamente requer um espectador-ouvinte. A narração oficializa a cena como espaço de
comunicação, e não apenas de observação distanciada, incitando o imaginário do público,
dirigindo-se a ele, contando e encenando para ele. Entretanto, o frenesi cênico do romance-em-
cena e os romances escolhidos (que mais jogam com as palavras do que contam histórias, como
se verá adiante) não permitem ao público de maneira ampla apropriar-se da textualidade
veiculada pelos atores. Ainda, a escassez de plateia nesses espetáculos pode revelar o baixo
índice de leitura do espectador médio brasileiro, e consequentemente seu hábito e gosto pela
literatura, o que pode reduzir a apreciação desse trabalho a um público especializado, distinto,
destacado. O palco no romance-em-cena abre-se para somar, ainda que timidamente, a plateia
ao acontecimento, abolindo a quarta parede à la Brecht e estabelecendo com ela alguns modos
de comunicação. Quanto a esse impasse, Orã Figueiredo buscou desvendar melhor a relação do
ator com o público no romance-em-cena:

Porque o ator brasileiro tem essa comunicação direta com a plateia. E no romance não
pede isso, né, do ator falar direto com a plateia sem fazer o jogo cênico diretamente,
porque não é um teatro aberto, um teatro participativo. Ele não é participativo de
forma alguma. A plateia não está excluída da brincadeira, mas o texto é narrado para
ela, você conversa diretamente com a plateia. Na verdade, eu acho que um exercício
legal é a triangulação... “Você contou, eu contei... você contou eu contei...” e o tempo
todo você está triangulando, jogando com a plateia. Não tem como fechar nesse tipo
de teatro, não tem como determinar ou se pretender uma quarta parede aí.
(FIGUEIREDO in COUTINHO, 2011)

A cenografia corrobora com o gesto de escrever cenicamente e paulatinamente o


espetáculo ao utilizar dispositivos cenográficos que entram e saem conforme as necessidades
de composição espacial de cada cena. Quanto aos figurinos, percebe-se a recorrência a uma
roupa-base de apoio sobre a qual os atores inserem outras peças de vestimenta e adereços,
facilitando as trocas muitas vezes rápidas e instantâneas, pelo trânsito intenso entre
personagens, e dialogando com a sua composição caricatural, de traços. A visualidade,
composta pela cenografia, iluminação e indumentária vai ganhando maior relevo ao longo dos
109

três espetáculos na encenação de Aderbal Freire-Filho, ainda que não seja por meio de imagens
concretas que se sustenta o romance-em-cena. Ao contrário, realçam-se as imagens sonoras,
pois a vocalização do texto narrativo-descritivo oferece ao espectador, por meio da escuta, a
construção mental de imagens. Portanto, infere-se que está em evidência para o público do
romance-em-cena a performance narrativa dos atores, exuberante, potente, viva, mas que
muitas vezes se sobrepõe aos demais elementos da cena. Sobre a instabilidade da encenação,
ela está diretamente relacionada à quantidade de personagens, temporalidades e espacialidades
que o romance oferece. Quanto mais esses elementos se fixam, mais a encenação conquista sua
estabilidade, pois diminui o trânsito entre os atores e permite que sua composição seja cada vez
mais profunda e menos aportada no traço, na caricatura.

Aderbal explicita o lado revés do romance-em-cena, que reside na sua falta de


universalidade, explicando o quão difícil (e quase impossível) é levar os espetáculos para outros
países, com exceção dos que têm a língua portuguesa como oficial: “Eu fiz em Portugal, mas é
muito difícil fazer na França. Porque se eu fizer com legenda, a pessoa vai ficar o tempo todo
lendo legenda e não acompanha. […] Então ele não é muito móvel. Estou dizendo isso agora
porque eu queria isso mesmo, não perder a palavra.” (FREIRE-FILHO, 2011). Não se trata
apenas das dificuldades do romance-em-cena, mas de todo espetáculo cujo volume de texto
torna-se inviável à tradução simultânea ou com legendas. Por outro lado, a valorização da
palavra para Aderbal é um componente crucial nesse processo, pois a ele interessa a própria
narrativa e as descrições. O sabor da palavra, mais especificamente dos romances que encenou,
encontra-se para ele na linguagem crua do João de Minas, na fruição do verbal e do poético de
Dinis Machado e nos trocadilhos e jogos de linguagem de Campos de Carvalho.

“O que o teatro tem a oferecer ao romance é outro universo poético que vai potencializá-
lo. Senão é melhor você ler”, disse Aderbal Freire-Filho. No que corresponde à encenação, a
gramática do romance-em-cena prima pelo jogo de montar e desmontar imagens, quadros e
cenas em movimento, criando uma instabilidade na encenação cujo grau vai variar de um
espetáculo a outro, como se poderá verificar na análise das peças. Incorre em modos de
teatralidade porque persegue a ação incessante (cênica, vocal), estimula o imaginário e a
imaginação do publico, evidencia os recursos de fabricação da ilusão, e recorre à
(des)construção da ilusão do palco, concretizadas na interpretação multifacetada dos atores que
são personagens, contra-regras e também nos objetos ressignificados, explicitando o que a cena
tem de mais singular, pois tudo é feito diante dos olhos do espectador.
110

“A mulher carioca aos 22 anos” (1990): a encenação carnavalesca

O romance do escritor, jornalista e publicitário mineiro João de Minas (pseudônimo de


Ariosto Palombo) teve sua primeira publicação em 1934. Narra e acompanha a trajetória de
Angélica, moça ingênua e romântica às voltas com o assédio e as perversões de inúmeros
personagens da capital fluminense da década de 1930. Considerado por Aderbal um precursor
de Nelson Rodrigues, João de Minas desenvolveu um humor ácido e abordou a imoralidade dos
comportamentos humanos. O livro compõe uma quintuplologia, batizada por ele de Revolução
Sexual Brasileira, e mescla uma narrativa breve com alguns poucos diálogos, tão característicos
dos folhetins do início do século XX. Aderbal havia lido o romance ainda na década de 1970
sem cogitar encená-lo e descobriu que João de Minas era em geral desconhecido no Rio de
Janeiro, o que o levou a promover uma investigação sobre sua vida e obra, cuja leitura o havia
fascinado. “Enfim, foi assim o João de Minas, foi assim uma paixão por esse louco que eu
achava que lembrava em alguns momentos o Nelson Rodrigues, uma coisa assim. Então, tem
mais de dez anos a distância entre descobrir o João de Minas e querer montar.” (FREIRE-
FILHO, 2011).

No período de montagem, já tendo adquirido todos os volumes de sua obra, recolhidos


ao longo de anos em sebos e livrarias de várias partes do Brasil, Aderbal investiu mais ainda na
pesquisa, tendo como apoio o ator Gillray Coutinho, naquela altura trabalhando apenas como
assistente de direção: “Eu nem comecei como ator [nesse processo], mas como uma espécie de
pesquisador da obra de João de Minas, ia pesquisar, procurar saber sobre os contos, fazia certa
garimpagem das coisas do João de Minas.” (COUTINHO, 2011). Sentindo-se como um
guardador solitário desse autor, Aderbal confessa que seu desejo era partilhá-lo com outras
pessoas: “Na verdade o João de Minas ficou sempre, provavelmente, me cobrando alguma
coisa. […] Alguma coisa, eu não podia ficar com aquilo só pra mim. E era só pra mim, porque
ninguém conhecia.” (FREIRE-FILHO, 2011). Ao colocar o romance de João de Minas em cena,
Aderbal de alguma maneira retirou a obra e seu autor do anonimato e da leitura individualizada
para partilhá-los em coletividade com o público.

O romance de 210 páginas divide-se em 25 capítulos e seu romance-em-cena organiza-


se em quatro atos com uma média de 1 hora de duração cada um. Com três intervalos (5 min/
111

30 min/ 5 min), podendo ultrapassar um pouco mais ou antecipar, a peça inicialmente podia
chegar a cinco horas. Estreou em 10 de novembro de 1990 no Teatro Gláucio Gil, no Rio de
Janeiro, e tinha no elenco original os atores Cândido Damm, Orã Figueiredo, Gillray Coutinho,
Duda Mamberti, Thiago Justino, Malu Valle, Suzana Saldanha e Marcelo Escorel, figurinos de
Biza Viana, cenografia de José Dias, assistência de Marcos Vogel e direção musical de
Ubirajara Cabral. Rendeu a Aderbal Freire-Filho no ano de estreia o Prêmio Shell, sendo
considerado um marco que estimulou inclusive outros encenadores e atores na investigação do
teatro narrativo.

Quando os espectadores entravam no teatro Gláucio Gill eram recebidos pelos atores,
que os ajudavam a se acomodar na arquibancada defronte ao palco quase nu, não fosse a grande
mesa retangular e giratória fixada no centro. No fundo e nas laterais estavam à vista os demais
dispositivos cenográficos e araras exibindo as peças de figurino. O elenco misto vestia
uniformemente uma base composta por camiseta e short/calças de diversas cores, sobre os quais
entravam outras indumentárias, como num quebra-cabeça ou mesmo como naquelas bonecas
de papel que acompanhavam diversos moldes de roupas para serem acopladas ao corpo-base.
Nesse pré-ato, o elenco se apresentava de baby dolls brancos, já antecipando visualmente a
primeira cena e a apresentação da protagonista. Algum estranhamento já se impõe ao público,
que desfaz de imediato qualquer desejo de ilusão, pois incita ao despojamento, ao humor,
estimulado pelo travestimento masculino. Tudo é visível aos espectadores e a magia do
romance-em-cena, já evidente, não se apóia na ilusão de um teatro convencional. Muito ao
contrário, configura-se pela dinâmica de montar e desmontar inúmeras cenas e personagens
diante do público, diluindo as fronteiras que o separam da encenação. Um prólogo escrito por
Freire-Filho e lido por Gillray Coutinho orientava a plateia quanto ao ineditismo da proposta,
principalmente por se tratar do trabalho inaugural dessa linguagem. O texto comparava a saga
da encenação de um romance, na íntegra, ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro:

GILLRAY – Este espetáculo tem quatro horas de duração [risos da plateia] e três
intervalos, um intervalo de hora em hora. É um espetáculo curtíssimo [novos risos],
se comparado com o Desfile das Escolas de Samba. E podemos comparar: temos
muitas fantasias, cenas que se sucedem como alas, o público assiste em arquibancadas
e também fazemos em dois dias: quintas e sextas.

Por isso, como nos desfiles, só que sem o locutor oficial, vamos começar pelas
instruções para assistir. [risos] O primeiro e o terceiro intervalo devem ser bem curtos,
quanto mais curtos, melhor. O intervalo do meio, o segundo intervalo, dura meia hora.
Dá tempo até pra sair um pouco do teatro, ir aos bares perto etc.
112

Quem estiver com dores nas costas, quem dormiu mal noite passada, quem não estiver
bem [gesticula a fome] e precisar sair antes do final, mas se quiser voltar outro dia,
deve passar na bilheteria para carimbar o ingresso.

Obrigado.

(A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990: 00:01:45-00:03:44)

O texto de abertura dá ao público a primeira nota do tom bem humorado, irônico e


debochado do espetáculo, estabelece curiosas comparações com o carnaval carioca, além de
expor as diretrizes principais da encenação quase como um manual: o formato longo, a
encenação de passagens e as alegorias que a compõem como os carros-cenários e as vestimentas
extravagantes. Ao encenar um texto sobre o Rio de Janeiro dos anos 1930, Aderbal não recusa
a oportunidade de confrontar sua estética com o bem mais precioso e turístico da cidade, o
carnaval, e com isso conquistar a simpatia do público25. Investe na despretensão e na leveza,
por meio do típico humor carioca, e convida a plateia a esse acontecimento, realizado com
intervalos e até mesmo em duas partes, divididas em dois dias26, com possibilidade até de se
poder sair do teatro, fazer um lanche ou tomar uma cerveja no bar da esquina.

A informalidade sustenta-se no despojamento visual do espetáculo: ainda que se perceba


a construção de dispositivos cenográficos, os figurinos parecem recolhidos em peças de brechó.
Reconhece-se a opção da figurinista ao contribuir para um trabalho cujos recursos financeiros
eram escassos e quase inexistentes. Entretanto, exploraram-se vestimentas mais próximas da
época, assumindo chapéus, echarpes, ternos, nos moldes dos anos 1930. A música, para além
das que são cantadas em cena, ganha relevo no intervalo entre o segundo e o terceiro atos: os
próprios atores executam chorinhos instrumentais, corroborando a construção climática e
histórica do Rio de Janeiro do início do século. A iluminação privilegia revelar o palco e a mise-
en-scène carnavalesca, em que atores, personagens, cenografia e objetos desfilam pelo tablado
do Teatro Gláucio Gill. Tem-se a visualidade mais desnuda dos três romance-em-cena,
acentuando a crueza da narrativa e dos tipos que a envolvem.

Por se tratar de uma linguagem inédita e inovadora, em caráter experimental, a crítica


Bárbara Heliodora d’O Globo recordou-se da “memorável montagem de ‘Nicholas Nickleby’

25
Aderbal revelou que em cada cidade por onde o espetáculo passou o texto do Prólogo se modificava, buscando
co-relacioná-lo ao ambiente e às características locais.
26
Apenas aos sábados e domingos o espetáculo era feito em única sessão, com a duração de quase cinco horas,
com os intervalos a que o texto de abertura se refere.
113

pela Royal Shakespeare Company.”, mas não se furtou a reconhecer os méritos da proposta do
encenador radicado no Rio de Janeiro: “A opção […] revela-se acertada, mesmo que talvez
fosse a mais difícil de sustentar, pois a escolha de um tom exacerbado e artificial paga o preço
de certa limitação de possíveis variações de tom; mas nada talvez impressione tanto […] do que
a coerência de sua concepção cênica” (HELIODORA, 1990: s/p). Ressalta a boa qualidade do
aproveitamento cênico da cenografia e dos figurinos em detrimento das visíveis deficiências
orçamentárias da produção. Para Macksen Luiz do Jornal do Brasil a encenação tem um tom
homogêneo e reclama a falta de nuances, de intensidades dramáticas, esquecendo-se talvez de
que se trata de um romance e não de uma dramaturgia tradicional. Reconhece que “A palavra
ganha, sem dúvida, uma relevância sobre toda a construção teatral, adquirindo uma presença
avassaladora no espetáculo” (LUIZ, 1990, s/p), apesar de considerar que a valorização da
palavra enfraqueceu outros aspectos do espetáculo, como a diversão. Porém, Heliodora parece
discordar: “A direção de Aderbal é imaginativa e gozadora, trazendo um sopro de alegria para
nossos palcos de verão” (HELIODORA, 1990: s/p).

“O que diz Molero” (2003): a memória dos objetos

Treze anos depois, Aderbal voltava à linguagem do romance-em-cena com O que diz
Molero, de Dinis Machado, cuja estreia se deu 17 de outubro de 2003 no Teatro Casa Grande,
também no Rio de Janeiro. Compuseram o elenco original Chico Diaz, Claudio Mendes, Orã
Figueiredo, Augusto Madeira, Raquel Iantas e Gillray Coutinho; a cenografia ficou ao encargo
de José Manuel Castanheira, figurinos novamente de Biza Viana, iluminação de Maneco
Quinderé e trilha sonora de Dudu Sandroni. Conquistou o Prêmio Shell de Melhor Ator para
Orã Figueiredo e Melhor Direção para Aderbal Freire-Filho, além de inúmeras críticas
elogiosas27, consagrando a proposta do encenador:

As quatro horas de duração se diluem no percurso ágil com que a palavra é devolvida,
retrabalhada nas suas possibilidades teatrais […] Aderbal Freire-Filho, que há anos
assinou a transcrição de um romance na íntegra para o palco – A mulher carioca aos

27
Os excertos dessas críticas foram extraídos do blog na Internet de Renata Caldas, que também pesquisa o
romance-em-cena, e podem ser conferidos no endereço < http://renatacaldas.wordpress.com/o-que-diz-molero/>
Acesso em 12 abr 2010.
114

22 anos, de João de Minas -, atinge com O que diz Molero o depuramento dessa
técnica. (Macksen Luiz, Jornal do Brasil, 1º/11/2003)

“O que diz Molero é um generoso e suculento espetáculo que, durante quatro horas,
faz seis atores conduzirem o espectador por uma delirante viagem pelo mundo dos
humanos, das artes, da cultura, do inesperado, do patético, do risível, tudo isso por
um mar de palavras magistralmente usadas. […] Aderbal Freire-Filho realiza um
notável trabalho, no qual podemos ver até que ponto o melhor teatro nasce da
criatividade orgânica, que transforma em ação cênica um texto, enriquecendo-o sem
procurar substituí-lo, minimizá-lo, desrespeitá-lo. (Bárbara Heliodora, O Globo,
23/10/2003)

[...] pela consagração definitiva do método do encenador-adaptador Aderbal Freire-


Filho, o “romance-em-cena”, que tem como ponto de honra não modificar uma
vírgula do original, e revela como resgatar a palavra no palco, sem abrir mão da
teatralidade, levada à perfeição pelos atores-criadores […] A crítica raramente foi tão
unânime e no Rio de Janeiro e em Curitiba consagrou o espetáculo por reunir pesquisa
e diversão, lirismo e humor.” (Sergio Salvia Coelho, Folha de São Paulo, 23/06/2004,
grifo meu)

Antes de promover uma explanação sobre a obra, chamo a atenção para o destaque no
terceiro extrato crítico: a partir do que foi divulgado e difundido por Aderbal Freire-Filho,
levou-se a crer que sua poética seguiu radicalmente a proposta original (não alterar uma vírgula
sequer do romance), o que deve ser relativizado, como se vai verificar no decorrer desse
capítulo: o encenador aqui explora mais o procedimento dramatúrgico da edição para operar
um corte significativo no texto do romance, como proposta para solucionar o problema de sua
inviabilidade junto ao público, pois muitas pessoas deixavam de ir pela longa duração. Ainda
que a poética do romance-em-cena não tenha sido descaracterizada por isso, defendeu-se,
todavia, em entrevista a Roberta Oliveira:

Ainda existe um preconceito do público e dos artistas em assistir ou fazer peças


longas. O ideal seria inverter essa idéia e pensar que são mais duas horas de bom
espetáculo. […] Em tudo as pessoas querem mais: as revistas dão brindes, aos
alimentos faz-se questão de escrever quando vem uma quantidade maior. Então por
que não fazer isso no teatro: oferecer um espetáculo e dar mais ao público do que
isso? (FREIRE-FILHO in OLIVEIRA, 2003, s/p.)

Talvez não se trate de consumo, pode ser até mesmo falta de hábito ou preconceito.
Nosso mundo midiaticamente globalizado oferece uma enormidade de opções de lazer que
115

alteraram a percepção do público quanto ao tempo. Vivemos numa “modernidade líquida”


(conforme conceito de Zygmunt Bauman), de temporalidade mais acelerada, de simultaneidade,
multiplicidade e velocidade de informações. É importante que o teatro possa alargar a percepção
do público, oferecendo-lhe outro tempo, mais contemplativo, que exija uma escuta e uma
apreensão diferenciadas. Talvez foi dado mais relevo à questão temporal que às qualidades da
recepção da crítica e do público. Entretanto, Aderbal acabou cedendo e quando O que diz
Molero se apresentou em Belo Horizonte no FIT-BH, um ano após a estreia, o trabalho já
contava com trinta minutos a menos, destacando novamente a prática do encenador de operar
cortes no texto. Considero que a opção do diretor ainda assim se mantém próxima à coerência
de sua proposta.

O registro audiovisual do espetáculo a que tive acesso para a pesquisa consiste numa
edição de cenas previamente escolhidas, com duração total de aproximadamente 30 minutos,
editado para fins promocionais. O material completo da peça original, cuja duração é de quatro
horas, encontra-se bruto e até o presente momento não editado, compondo um acervo de em
média 60 fitas mini-DV, indisponível para consulta, segundo Aderbal. A edição que será por
hora analisada encontra-se em formato de DVD e destinou-se à promoção e divulgação do
espetáculo, principalmente visando à participação em festivais de teatro, tendo sido realizada
por Daniela Ramalho com apoio da TV Zero. A captura do áudio, cujo idioma é o português
brasileiro, dá-se pela disposição de microfones dispostos na ribalta do palco, implicando na
oscilação do volume das falas entre uma movimentação e outra dos atores e também por sua
localização na cena. O áudio apresenta ótima qualidade, entretanto o vídeo é legendado em
português, provavelmente para dar suporte à leitura, acompanha sincronizadamente as falas.

O escritor português Dinis Machado em O que diz Molero descreve um monumental


painel da vida em Lisboa, de suas ruas, praças e personagens. Austin e Mister Deluxe são os
narradores centrais que se veem às voltas com a história de um anônimo (Rapaz) por meio de
um misterioso relatório escrito por Molero que o investigou. Lançado em 1977, revigorando a
literatura portuguesa pós-Revolução dos Cravos, transformou-se num êxito de vendas em
Portugal, atingindo a marca dos 100 mil exemplares, consagrando-se também junto à crítica. A
escrita parte da premissa do “diz que se disse”, pois os investigadores têm em mãos as
informações sobre o Rapaz a partir do que Molero disse. Inclusive, o elenco destaca vocalmente
trechos como “disse Mo-le-ro”, “Molero disse”. No relatório sobre a biografia do Rapaz
constam inúmeros outros personagens como seus pais, amigos (Zuca, Descoiso), a Tia Louca,
o Vampiro Humano, o Eremita das Mãos Frias etc. Há que se notar o procedimento de encaixe
116

dos dizeres, pois, dentro do relatório, Molero diz o que disse outro personagem sobre o Rapaz
e constrói um abismo infindável, relativizando noções como verdade e mentira.

“[…] O Que Diz Molero compõe, integrando uma tendência da novelística


contemporânea para a revisão das coordenadas culturais e ideológicas do mundo ocidental, a
história do Homem contemporâneo, situado num tempo posterior à rutura entre linguagem e
realidade” (O QUE DIZ MOLERO, 2012). Dinis Machado proporciona ao leitor um mergulho
sobre diversos aspectos da vida cotidiana e do sentido da existência: quando o Rapaz decide
viajar o mundo, sua busca da última fronteira é o encontro com a morte e com o sentido da vida,
num dos momentos mais líricos e poéticos do romance. A indeterminação do tempo histórico
do enredo permite a Freire-Filho inteira liberdade no vai e vem de sua encenação. A partir das
referências do relatório, personagens, dispositivos cenográficos móveis (como em A mulher
carioca…), objetos e adereços adentram o espaço cênico, desenvolvem-se e deixam a
encenação para que outros possam ocupá-la.

O espaço cênico revela-se ao espectador quando de sua entrada na sala de espetáculos:


imponente, consiste em um amontoado de arquivos de escritório, de tamanhos, estilos e formas
distintas, que se organizam empilhados em formato de “U” invertido, cobrindo a rotunda do
palco e suas laterais, com espaços para cochias e bastidores, onde o elenco realiza a maioria das
trocas de personagem, não tanto mais à vista do público como no primeiro romance-em-cena.
O palco concentra uma grande área central livre, onde objetos e dispositivos cenográficos são
introduzidos e retirados, de acordo com as necessidades de composição de cada cena. Pensando
na origem portuguesa do romance, os arquivos uns sobre os outros lembram as casas e
edificações de Lisboa, que se encostam umas sobre as outras nas sete colinas da cidade.
Entretanto, para a sintaxe cênica de Freire-Filho, os arquivos informam sobre o contexto
investigativo do enredo, ao mesmo tempo em que são depositários de elementos a serem
utilizados a serviço da teatralidade revelada. Ainda, cada objeto e adereço retirado dos inúmeros
arquivos carrega sua memória sobre a biografia do Rapaz, como uma grande caixa de souvenirs
dividida em diversas gavetas.

Na primeira cena, o Rapaz está diante de uma gaveta aberta, da qual uma luz emana
sobre seu rosto. Simultaneamente, tem-se a entrada de Austin e Mister DeLuxe, que se sentam
à mesa e começam a consultar o relatório de Molero. A apresentação do Rapaz no espetáculo
antecipa à do romance, que só se inicia pelo diálogo entre os dois investigadores. O Rapaz retira
o primeiro objeto de um arquivo, uma garrafa vazia, e o deixa sobre a mesa da dupla,
117

constituindo uma simultaneidade que promove interseções: dentro da sintaxe cênica, o real
(investigadores, relatório) e o ficcional (Rapaz, garrafa) se interceptam, mas ainda não
interagem. A garrafa será tomada pelo personagem do pai do Rapaz quando adentra a cena, ao
ser evocado pela narrativa, para refazer com ela um jogo de boliches, ilustrando o romance.
Todos os personagens assumem a co-presença e assistem à representação, como se ocupassem
o lugar do leitor-espectador que se põe a imaginar o que foi relatado. Há ainda certa interação
entre os personagens, pois o Pai, enquanto reconstitui o boliche, repreende o Rapaz, seu filho,
com um gesto; e no final da cena ameaça Mister DeLuxe com um safanão. Pelo vídeo é possível
perceber os pormenores da dinâmica da encenação, a contra-regragem feita pelos atores, a
entrada e saída dos bastidores, o desdobramento do elenco em diversos personagens (com
exceção de Chico Diaz), a vocalização da narrativa simultânea a ações físicas e movimentações.
No decorrer das cenas, o Rapaz vai ocupando o lugar dos investigadores na mesa, lugar da
memória, de onde passa a narrar, recordar e a ser espectador de sua própria biografia, encenada
pelos demais atores no palco.

“O púcaro búlgaro”: a imaginação sem limites

“O primeiro romance-em-cena, o que quer que signifique essa expressão, que


provavelmente não foi usada antes (provavelmente, mas não seguramente); nenhuma
exclusividade é garantida em mundo tão vasto, o primeiro romance-em-cena é coisa do século
passado.”, escreveu Freire-Filho no programa do espetáculo O púcaro búlgaro, terceira (e até
então) última montagem do gênero. Sua apresentação inaugural deu-se em 1º de junho de 2006,
no Teatro Poeira (RJ), contando com os atores Cândido Damm, Augusto Madeira, Ísio
Ghelman, Raquel Iantas e Gillray Coutinho, com cenografia de Fernando Mello da Costa e
Rostand Albuquerque, figurinos de Biza Viana, luz de Maneco Quinderé, música de Tato
Taborda, adereços de José Maçaira e Luiz Amadi e preparação corporal de Duda Maia. Bem
recebido pela crítica especializada, obteve diversas indicações e prêmios, como Prêmio
Eletrobrás (2006) e Prêmio Qualidade Brasil (2007), Melhor Ator (Gillray Coutinho), Melhor
Espetáculo e Melhor Diretor (Aderbal Freire-Filho) e Prêmio Contigo (2007) de Melhor
Espetáculo no gênero comédia. A peça esteve alguns anos em cartaz desde a estreia, circulando
por várias capitais brasileiras, mas com alterações no elenco de origem.
118

O romance, última publicação de Campos de Carvalho lançada em 1964, pode ser


tomado como a síntese de sua obra, considerada pela crítica como absolutamente original e
idiossincrática, porque se afasta do estilo de uma narrativa mais tradicional para envolver-se
em experimentações de linguagem, mergulhar no surrealismo e na (re)inventividade do mundo
(características da ficção), e assim desestruturar a lógica e subverter o significado das palavras.
No verão de 1958, enquanto visitava tranquilamente o Museu Histórico e Geográfico de
Filadélfia, um escritor chamado Hilário (o nome do protagonista dispensa comentários sobre a
ironia e o humor do autor) avistou um púcaro28 búlgaro. Espantadíssimo, decidiu averiguar a
(in)existência da Bulgária e para isso convocou, em anúncio de jornal, candidatos à expedição.
Entre os aventureiros que se prontificaram, permaneceram Pernacchio (italiano com o corpo
inclinado para a esquerda por viver ao lado da Torre de Pisa), Radamés (Professor de
Bulgarologia), Expedito (seu nome é a razão para se inscrever na expedição), Rosa (empregada
de Hilário e objeto sexual dos demais) e Ivo Que Viu a Uva (descendente de um hindu que
inventou o zero). Escrito em primeira pessoa na forma de um diário, pois Hilário é um escritor,
o romance de Campos de Carvalho coloca em exercício a ironia e o humor para revelar aspectos
da existência humana (e do mundo), questionar verdades absolutas e problematizar a própria
linguagem a partir de algumas disjunções entre significantes e significados (os significantes são
explorados e aproximados por homofonia). Para a pesquisadora Gabriela Azeredo dos Santos,
os jogos de aliterações do autor, os trocadilhos, compõem um texto que explora duplos
movimentos, tornando difícil até mesmo destacar exemplos. E ainda:

[…] não se pode ignorar que o prazer da engenhosidade verbal contida em O púcaro
búlgaro emana do humor agressivo, do caráter surreal da narrativa, do alívio catártico
provocado pela complexidade dos jogos de palavras, que ridicularizam o poder, a
sociedade, a ciência, as relações humanas. O narrador atinge o “riso impossível” a
partir das possíveis impressões que causa naquele que faz rir. Ele utiliza o leitor e se
reúne a ele para suscitar seu próprio riso. Além disso, obtém duas fontes de prazer: o
da verbalização, no jogo das palavras com o arbitrário do significante ou no nonsense,
e o de escapar da censura, ao dizer o que quer dizer, sob disfarce. (SANTOS, 2009:
522)

Portanto, partindo de uma questão aparentemente sem sentido (a existência da Bulgária),


Campos de Carvalho conduz o leitor para uma série de questionamentos da ordem e das coisas
do mundo, capazes de incitá-lo não apenas a novas dúvidas, mas de quase convencê-lo ao fim

28
Púcaro é um vaso provido uma asa, feito de alumínio ou barro e utilizado para beber água.
119

de que aquele país não existe mesmo. Dessa forma, inicialmente tem-se a origem do nome do
país no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: Bulgária refere-se ao povo bulgar, tribo
étnica formadora daquela civilização, cuja etimologia aponta para a derivação de burg, palavra
germânica para castelo. Ora, reunidos no apartamento de Hilário, os expedicionários acabam
por manter-se confinados naquele espaço, onde realizam conferências, reuniões e inúmeras
digressões sobre diversos temas e assuntos. A questão primordial que os reuniu nesse “castelo”
no Alto da Gávea, Rio de Janeiro, é o estopim para dar vazão à imaginação, faculdade
essencialmente humana e ilimitada. A palavra castelo também costuma ser cara ao ofício da
escrita, pois representa a metáfora do escritor isolado em sua torre de marfim. Sem praticamente
sair das paredes que os envolvem, os personagens do romance viajam sem sair do lugar: esse
verbo nos encaminha tanto ao projeto da expedição à Bulgária quanto à gíria comumente
atribuída àqueles que deliram e alcançam outras percepções da realidade ao usar determinadas
drogas entorpecentes (normalmente ilícitas) que os levam, portanto, a viajar. Hilário é o Ulisses
que vai sem nunca ter ido, que sabe que a viagem pode ser um mecanismo interno, de uma
busca existencial, essa sim uma verdadeira odisseia humana. O autor, por meio de seus
personagens, convida o leitor a acompanhá-lo nessa jornada, que pode ou não se realizar, pois
não é isso que importa, através da imaginação. Nesse ponto, atinge-se o espetáculo de Aderbal
Freire-Filho, que se propõe a encenar e a explorar essa viagem, pois o palco tão limitado quanto
o apartamento de Hilário não tem raias para a criatividade do encenador e para a imaginação
do espectador.

Compõem a sintaxe de viagem no espetáculo as diversas malas que alguns personagens


portam: assim como as gavetas e arquivos em Molero, as malas tornam-se depositárias de
inúmeros objetos que delas são retirados para servirem às cenas. Algumas estruturas
cenográficas também remetem à viagem e à navegação, como manivelas, velas, mastros, que
são manipulados a cada passagem de cena que corresponde a cada nova escrita no diário,
imprimindo sobre a encenação movimentos de viagem e embarcação: por essas estruturas
estarem fixas nos bastidores, Aderbal explicita no espetáculo com este mecanismo a viagem
imóvel dos expedicionários rumo à Bulgária.

Percebe-se que a encenação em O púcaro búlgaro torna-se mais estável em relação aos
romances-em-cena anteriores, diminuindo intensamente o trânsito entre dispositivos
cenográficos e atores, porque o romance oferece um leque mais reduzido de personagens e
espaços (a viagem sem sair do lugar). O espaço cênico em formato de arena total (quatro
arquibancadas) é preenchido pela ambiência e móveis do apartamento de Hilário, que se
120

distribuem metonimicamente: uma cama de solteiro, uma mesa com quatro cadeiras, um vaso
sanitário, uma banheira, uma poltrona com duplo acento (sem frentes e costas, podendo ser
usada dos dois lados) e uma pequena cozinha, que praticamente não é utilizada e nem se vê
pelo vídeo do espetáculo (filmado com três câmeras, mostra o espetáculo de pontos de vista
diferentes, como a plateia em arena), além de um grande tapete sobre o assoalho. Os móveis
reunidos no espaço cênico, sem paredes ou divisões, compõem um mosaico do apartamento do
protagonista. Por fim, a cenografia envolve uma escada em formato de caracol que não leva a
lugar algum e que, pelo menos pelo vídeo, é utilizada uma única vez, quando nela Augusto
Madeira enuncia a dedicatória do romance. Os bastidores, à mostra como em A mulher carioca,
é o espaço de espera para entrar em cena, de trocas de figurinos, depósito de objetos cênicos e
adereços.

Os mecanismos de abertura e desconstrução da encenação, para além da curiosa contra-


regragem em cena aberta realizada pelos atores, concentram-se em O púcaro búlgaro nas trocas
que os atores promovem entre os personagens do enredo. Numa mesma cena, dispondo apenas
de pouquíssimos adereços, Augusto Madeira alterna-se, sem sair do palco, entre Ivo que viu a
uva (chapéu-coco na cabeça e um monóculo de mãos em formato de O) e o Marinheiro Fenício
(gorro e óculos escuros): trata-se de adereços da mesma espécie, mas por apresentarem formatos
distintos, aliados às mutações físicas e vocais, diferenciam bastante a percepção do espectador
sobre os dois personagens.

A quebra das convenções explicita-se em outro momento quando um Algebrista telefona


para saber informações sobre a expedição. O encenador coloca os dois falantes sentados na
mesma mesa e o objeto telefone é compartilhado por ambos durante a cena: falam tanto um
para o outro frente a frente, quanto usam o bocal do gancho para manter a situação de
conversação à distância. Na cena da sessão de terapia, uma ida de Hilário ao banheiro é
representada apenas por um ator que lhe entrega uma toalha para enxugar as mãos, sem
demandar deslocamento de lugar. Ainda aqui, o Autor é interpretado por Ísio Ghelman e
Augusto Madeira em cenas sequenciais, tendo elas como elemento estável e aglutinador o
psicanalista representado por Cândido Damm. Em outro momento, ao mencionar que vai à
janela para fechá-la, Damm encena o psicanalista caminhando até a privada, abrindo e fechando
o zíper de sua calça, deslocando o sentido do texto verbal. A sutileza e a presteza na encenação
de O púcaro búlgaro levou o crítico da Folha de São Paulo, Sergio Salvia Coelho, a considerá-
lo “um romance-em-cena puro sangue”. Ao encerrar a trilogia, Freire-Filho revela o quanto seu
121

work in progress se desenvolveu e o quanto aprimorou a gramática dessa linguagem, cujos


procedimentos passam agora a ser investigados e analisados.

Inicia-se, portanto, o exame dos procedimentos de escrita cênica, com destaque para
dramaturgia, atuação e encenação, utilizados por Aderbal Freire-Filho no romance-em-cena,
percebendo as descobertas e transformações pelas quais essa poética foi passando, como um
work in progress. Serão utilizados quadros para demonstrar as passagens e transferências do
texto do romance para sua escrita em dramaturgia. Entretanto, a linguagem será abordada de
forma fragmentada, pois os excertos destacados privilegiarão uma melhor visibilidade das
operações por ele realizadas e da(s) categoria(s) nele analisada(s). Os procedimentos foram
nomeados por mim, alguns a partir de conceitos oferecidos por Aderbal no material pesquisado,
outros por meio do referencial teórico, o que me levou a organizar parte dessa gramática e
propor terminologias que podem ser aplicadas a outros trabalhos no mesmo campo.

A ausência dos textos dramatúrgicos dos espetáculos de Freire-Filho, porque trabalhou


sobre cópia do próprio livro, permitiu-me, de posse do romance e do vídeo do espetáculo,
observar o texto falado e sua distribuição entre elenco/ personagens e características de sua
encenação. Isso possibilitou aprofundar o conhecimento do gesto dramatúrgico do encenador,
perceber os textos residuais que foram excluídos da cena e diversas outras operações realizadas.
Contudo, há o prejuízo de não perceber com muita eficiência quais dos excertos suprimidos
poderiam ter sido indicados por ele, nos ensaios, como subtexto, não fossem alguns casos em
que se conseguiu com certa clareza arriscar hipóteses e construir sentidos de leitura. Os quadros,
com exceção dos que transcrevem trechos do romance, são de minha inteira responsabilidade,
pois me foi necessário estruturar a dramaturgia e o texto cênico para compreender melhor a
passagem da literatura ao teatro.

Procedimentos e recorrências no romance-em-cena: uma linguagem em desenvolvimento

Quando decidiu levar A mulher carioca aos 22 anos ao palco, Freire-Filho iniciou os
primeiros convites para formar o elenco. Entretanto o livro estava esgotado e ele não tinha
interesse em fazer fotocópias. O recurso que encontrou para disponibilizar o romance para a
montagem foi transcrevê-lo em sua máquina de escrever, sem promover nenhuma alteração,
mantendo a escrita como no original: “Só para poder riscar, voltar, trabalhar com isso”, afirmou,
122

antevendo os gestos de escrita dramatúrgica e cênica que seriam necessários durante o processo.
O processo de datilografar o livro permitiu-lhe ganhar intimidade com a matéria-prima textual.
Na sala de ensaio, portanto, tinha-se o texto do romance, um encenador e um elenco, que chegou
a oito atores, mas se iniciara com quatro, e um palco vazio sob os escombros do abandonado
Teatro Gláucio Gill.

Tendo a cópia do romance em mãos, sabendo-se que não queria uma adaptação formal
e que, portanto, tudo o que estava escrito seria dito pelos atores, Aderbal iniciou a construção
de sua gramática do romance-em-cena entre tentativas e erros, experimentos, reflexões,
perseguindo a ideia estrutural do projeto: transformar o livro em teatro. O grupo investiu na
pesquisa e na experimentação numa montagem que durou 18 meses. Tudo isso porque se estava
diante de um material textual inédito para todos eles, um romance literário, “colocado à prova
da camisa de força do palco”, como definiu Freire-Filho. O elenco, formado por jovens atores,
com exceção de Suzana Saldanha – mais experiente –, entregou-se totalmente à proposta
aderbaliana. Entende-se que um bom ator não teme o risco e coloca-se à disposição para a
descoberta de novos mundos, senhor que é do palco, sujeito imprescindível na realização do
acontecimento teatral em contato com o espectador.

No reino das palavras: procedimentos de dramaturgia

A primeira iniciativa de Aderbal foi pedir aos atores que lessem o romance previamente.
Nos primeiros ensaios, que se referem à etapa de compreensão ou leitura afetiva, o encenador
e o elenco liam alguns trechos juntos, conversavam e realizavam experiências cênicas. No
começo, o sistema de tentativa e erro era uma proposta consciente para que se pudesse
realmente exercitar a pesquisa. Não partidário da improvisação como método de criação, apesar
de já ter utilizado muitas vezes em trabalhos anteriores no início de sua carreira, ele foi
abandonando essa prática porque desejava uma maior objetividade nos ensaios. É
compreensível que para ele a improvisação livre, solta, em que os atores dão o ponto de partida,
pode não ser tão produtiva em seu processo. Entretanto, pode-se reconhecer que os estímulos,
sugestões e determinações que oferece ao elenco muito provavelmente estimularam o exercício
improvisacional, pois está em ação no tempo presente do ensaio, propondo e experimentando
gestos e movimentos pela primeira vez. E, ainda, não se deve esquecer que Aderbal Freire-
123

Filho é encenador-autor que tem assinatura em suas criações, cuja mão é responsável por muitas
determinações sobre o trabalho do ator e a composição da cena, ainda que ele não invista numa
postura autoritária:

Eu dizia assim: “Olha, vou distribuir [o texto] para vocês e vocês façam aí”. Aí faziam.
“Ah, não ficou bom. Vamos de novo.” Eu gosto muito de caminhos, de determinar
caminhos. Na verdade, os atores que trabalham comigo não se sentem nem um pouco
castrados, ameaçados e esvaziados, sob pressão. Eu tenho a impressão que um desses
atores que fez um romance desses comigo, e até outra peça, não saiba ao certo se tal
ou qual cena foi criada por ele ou por mim. Sendo a maior parte das vezes criadas por
mim. Eu sou um diretor que define. Eu tenho definições. Não que eu tenha pré-
definições. Eu vou para o ensaio sem saber o que eu vou fazer. Mas quando eu chego
ao ensaio e aí vou falando e vendo a cena e tal, e vou para o palco... tudo isso é para
ser feito assim. Até eu botar esses dois pontos eu não sei o que é o acerto. Se tal coisa
e tal coisa, claro que é isso aqui. Eu sou muito de definições, de caminhos, mapas. E
os atores, ouço também. Os atores vão junto. Então, chega um momento que se apaga
um pouco a memória de quem fez isso e quem fez aquilo. (FREIRE-FILHO, 2011)

A distribuição a que se refere Aderbal era a definição de quem diz o quê, primeira etapa
para o processo de construção dessa linguagem, já que se está no reino absoluto da palavra,
preservada em sua quase total integralidade de escrita. A proposição de Aderbal trata de
eliminar (ou esconder, camuflar, disfarçar) cenicamente a figura do narrador que, em A mulher
carioca aos 22 anos, é de terceira pessoa, onisciente. Portanto, o procedimento que encontrou
foi dividir a narrativa pelo elenco, seguindo o critério do personagem a que o narrador se refere.
As narrações relativas aos personagens são ditas pelos atores que os interpretam, configurando
o que ele denominou como “o personagem que narra sobre si mesmo na terceira pessoa” ou
auto-narração, mas que passo a denominar como personagem referente. Quando o narrador do
romance não se referir especificamente a alguém, a narrativa é oferecida ao personagem que
tenha mais proximidade com ela, de acordo com o sentido da leitura, e há aqueles que aparecem/
desaparecem em instantes apenas porque foram citados pela narrativa e que nomeamos como
personagem citado. Percebe-se aqui uma proposição própria do drama que intenta eliminar a
figura do narrador para que a ação cênica se desenrole apenas no plano das personagens e das
relações entre elas.

Esse gesto dramatúrgico implica no estilhaçar da voz do narrador do romance, que se


divide para tantas vozes quantas estiverem disponíveis em cada cena, faz com que ela saia de
sua condição inicial narrativa para se aproximar de uma constituição dialogada, à medida que
um ator começa a narrar e outro sequencia. Portanto, a escritura dramatúrgica do romance-em-
124

cena encarrega-se da criação de diálogos cênicos, o que contribui para instaurar uma
dramaticidade, uma teatralidade, pela oposição e confronto entre os falantes, como se pode
confirmar a partir de uma comparação entre um trecho de A mulher carioca aos 22 anos,
romance de João de Minas, e sua versão dramatúrgica:

ROMANCE DRAMATURGIA

Angélica, na Escola, procurou evitar Claudia ANGÉLICA: Angélica, na Escola, procurou evitar
o quanto pôde. Claudia o quanto pôde.
Mas uma manhã, foi impossível.
A vampira deu com ela de testa, na escada. CLAUDIA: Mas uma manhã, foi impossível. A vampira
Estendeu-lhe a mão: deu com ela de testa, na escada. – Estendeu-lhe a mão –
– Vem cá, meu bem. Vamos fazer as pazes. Vem cá, meu bem. Vamos fazer as pazes. O carro está
O carro está aí. Vamos farrear… aí. Vamos farrear…
Angélica não respondeu, e foi descendo a
escada, correta. ANGÉLICA: Angélica não respondeu, e foi descendo a
Cláudia enfureceu-se, e ameaçou-a: escada, correta.
– Você está bancando a santa, miserável!
Mas você me paga, cachorrinha. Você vai ver… CLAUDIA enfureceu-se, e ameaçou-a: Você está
Em baixo, surgia Chiquilha, comandando um bancando a santa, miserável! Mas você me paga,
grupinho seleto de colegas. cachorrinha. Você vai ver… - Claudia engoliu a sua
Angélica, que simpatizava com ela, foi raiva, chocada com a indiferença da ex-amiga.
abraçá-la.
Claudia engoliu a sua raiva, chocada com a CHIQUILHA: Em baixo, surgia Chiquilha,
indiferença da ex-amiga. comandando um grupinho seleto de colegas.
Chiquilha estava justamente contando
histórias de sua última viagem a Paris, de onde ANGÉLICA: Angélica, que simpatizava com ela, foi
chegara na véspera. abraçá-la.
Oh, Paris!
Ela ia sempre a Paris, sozinha, como um E veio também para o grupinho refinado de alunas.
rapaz.
Era rica, filha do milionário Alcides Elpenor, CHIQUILHA Chiquilha estava justamente contando
um corno de mão cheia, casado em segundas histórias de sua última viagem a Paris, de onde chegara
núpcias, também louco por Paris. na véspera.
As línguas perversas, nas rodas nortunas do
Copacabana Palace Hotel, até diziam que no último TODAS: Oh, Paris!
carnaval, em Nice, o pai e a filha tinham dormido
juntos num bordel, tendo ambos na bebedeira (ALUNA 1): As línguas perversas, nas rodas nortunas
esquecido de tirar as máscaras. do Copacabana Palace Hotel, até diziam que no último
Mas isso não tinha importância. carnaval, em Nice, o pai e a filha tinham dormido juntos
num bordel, tendo ambos na bebedeira esquecido de
tirar as máscaras.

(ALUNA 2): Mas isso não tinha importância.

(A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:


(MINAS, 1999: 28-29) 00:21:15-00:22:51)

Percebe-se primeiramente que a distribuição dos textos constitui o procedimento do


personagem referente, correspondente ao sujeito da ação; portanto, no excerto destacado do
romance encontram-se Angélica, Claudia e Chiquilha, que ganharão autonomia de voz na
dramaturgia do romance-em-cena. A divisão textual desloca a escrita narrativa do romance para
125

a estrutura dramatúrgica do texto teatral, em que as falas são separadas por personagens e
construindo diálogos nesse encadeamento sequencial. Entretanto, pode-se observar no fim do
trecho que os dois últimos parágrafos não se referem a nenhuma personagem. Portanto, o
dramaturgo-encenador, percebendo pela diegese que Chiquilha está acompanhada de outras
alunas, dispõe de alguns atores para a composição desse grupo e oferece a dois deles espaço de
voz (que chamei de Alunas 1 e 2), imprimindo sobre o texto sua opção de eliminar a figura do
narrador e de tomar posições quando o procedimento mais geral não dá conta de resolver alguns
pormenores. Na cena, constrói-se um clima de fofoca sobre Chiquilha entre as colegas.

Nesse caso, pode-se reconhecer que algumas frases ocupam o lugar da rubrica na sua
transferência à dramaturgia, conforme se observa pela performance dos atores e pela encenação,
que parecem seguir essas orientações. “Estendeu-lhe a mão” transforma-se em cena na ação
correspondente feita por Claudia, acrescida de um acariciar os seios de Angélica; “enfureceu-
se, e ameaçou-a” indica intenção de fala (ação vocal) e ação física (no caso da cena, de apontar);
“Claudia engoliu a sua raiva, chocada com a indiferença da ex-amiga.” pode servir como
subtexto para a interpretação da personagem; o quadro composto pelas colegas de Chiquilha e
por mais quatro personagens-alunas remete a “E veio também para o grupinho refinado de
alunas.”, cujo sujeito da ação no romance é Claudia, mas na escrita cênica de Aderbal foi
substituída por Angélica.

A linguagem do romance-em-cena, por si mesma, vai oferecendo ao público as


diretrizes de leitura do espetáculo: se o personagem veicula seu texto autoreferente na terceira
pessoa (seguindo o critério dramatúrgico), apenas a menção de seu nome é suficiente para o
público saber de imediato qual caractere vai invadir a cena. Portanto, compreende-se que nessa
proposta há mais narradores que personagens (no sentido tradicional, como apontado
anteriormente), pois se estabelecem por meio da frase e desaparecem quando finda sua inscrição
no texto. Pode-se encontrar na trilogia do romance-em-cena alguns momentos de pura narração,
normalmente quando o narrador do romance apresenta e descreve uma personagem. O ator
então se aproxima do diseur, pois praticamente há ausência de ação cênica, concentrando-se na
performance da vocalização. Destaca-se o trecho em que Gillray Coutinho, a cargo da
personagem Claudia, monologa para a plateia:

ROMANCE DRAMATURGIA
126

Claudia era órfã de pais, e tinha um vasto prédio CLAUDIA: Claudia era órfã de pais, e tinha um vasto
colonial, na rua da Alfândega. prédio colonial, na rua da Alfândega. Era uma escritora,
Era uma escritora, gênero moderno. gênero moderno. Publicava artigos remunerados, nos
Publicava artigos remunerados, nos Diários Diários Associados, semanalmente no O Cruzeiro,
Associados, semanalmente no O Cruzeiro, ensinando o seu sexo a ser feliz e discutia a entrada das
ensinando o seu sexo a ser feliz. saias para a Academia Brasileira de Letras. Ela era
Ultimamente o seu nome inchara, em plena candidata. Por cima de tudo isso, não era feita. Tinha fé
evidência, depois de uma viagem ao Norte. – não nos destinos humanos, ou no espírito, ou na alma,
O Dr. Aldo Fonseca, governador do Rio Grande mas, fé na carne, fé na matéria, fé na lama darwiniana.
do Norte, e não menos feminista, lhe oferecera um De vez em quanto, a ilustre escritora matriculava-se na
banquete. Escola Normal. Não fazia exames nem nunca
Claudia voltou ao Rio dando entrevistas: e pretendera diplomar-se. Para quê?... Ela se matriculava
discutia a entrada das saias para a Academia só para remoçar, para ser aluna, para ser estudante. Que
Brasileira de Letras. vidão! Podia assim estar na intimidade dessas meninas
Ela era candidata. fresquinhas, doiradas uvas e maçãs humanas, e que lá
Por cima de tudo isso, não era feita. Tinha fé – um dia, de repente, se viam mulher, com o sexo e o bico
não nos destinos humanos, ou no espírito, ou na dos seios coçando. Claudia oficialmente era a vampira
alma, ou nos ideais e princípios – mas, fé na carne, dessas jovens sarapintadas de divindade, como que
fé na matéria, fé na lama darwiniana. redondinhas Nossas Senhoras, rijamente imaculadas,
Sim, Claudia era muito prática. com o ventre de veludo digno de receber a concepção
As suas narinas às vezes tremiam, chupando no brocha do Espírito Santo. A famosa literata gostava de
ar cheiros fecundos, caprinos, esses odores da libido emporcalhar essas santas estúpidas, ensinando-lhes as
que esvoaçam nos ambientes aquecidos. mais refinadas patifarias. Ela – a Cesar o que é de Cesar
Que delícia! – sabia vencer, impunha-se, como uma aranha de ópio.
Ela então fazia como os bodes, de ventas
universalmente arreganhadas, os olhos bêbados de
volúpia.
De vez em quanto, a ilustre escritora
matriculava-se na Escola Normal.
Não fazia exames nem nunca pretendera
diplomar-se.
Para quê?...
Ela se matriculava só para remoçar, para ser
aluna, para ser estudante.
Que vidão!
Podia assim estar na intimidade dessas meninas
fresquinhas, doiradas uvas e maçãs humanas, e que
lá um dia, de repente, se viam mulher, com o sexo e
o bico dos seios coçando.
Claudia oficialmente era a vampira dessas
jovens sarapintadas de divindade, como que
redondinhas Nossas Senhoras, rijamente
imaculadas, com o ventre de veludo digno de
receber a concepção brocha do Espírito Santo.
A famosa literata gostava de emporcalhar essas
santas estúpidas, ainda com a ingenuidade do
irracional, ensinando-lhes as mais refinadas
patifarias.
Essas lições eram em lugares finos, quartos de
casas de “rendez-vous”, com bebidas e cigarros,
cocaína, frutas.
Para esse fim Claudia tinha até aparelhos de
borracha, órgãos sexuais fabricados na Argentina.
Ela – a Cesar o que é de Cesar – sabia vencer, (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:
impunha-se, como uma aranha de ópio. 00:07:42-00:08:34)

(MINAS, 1999: 15-16)


127

Já o romance O que diz Molero estrutura-se em forma de diálogo, restrito aos


personagens Austin e Mister DeLuxe. Esse dialogismo oferece de pronto uma interlocução
direta com a linguagem teatral. Não obstante, são retirados do texto cênico aspectos do romance
relacionados à indicação de quem fala, como “disse Austin”, “disse Mister DeLuxe”,
absolutamente desnecessários porque não acrescentam informações para o espetáculo, já que o
ator diz e presentifica as falas a ele destinadas pela escrita do autor. A composição do romance
por meio de diálogos constitui um plurilinguismo no sentido atribuído por Bakhtin, propiciando
à encenação um dialogismo, pelo compartilhamento do texto entre os diferentes atores-
narradores-personagens. Austin e Mister DeLuxe são os caracteres mais estáveis da encenação,
cujos diálogos fazem emergir os personagens citados no relatório de Molero, acompanhados
pela presença simultânea e constante do Rapaz.

A operação reguladora e necessária dentro do processo dramatúrgico de Freire-Filho é


a edição, que pode ser identificada na tabela acima, por meio da supressão de alguns trechos
(sublinhados) do romance. Esse procedimento, que corresponde a cortes, reorganizações,
alterações de ordem no discurso, vai ganhando mais espaço no percurso da trilogia do romance-
em-cena, muitas vezes em prol de uma redução na duração dos espetáculos. Assim como
definida por Sarrazac, a dramaturgia que incide no gesto do coser, do costurar, dispõe-se
também a criar tanto relevos quanto emendas, chamando a atenção para os cortes no texto, que
parecem pretender uma concisão do monólogo como será demonstrado por uma cena de O que
diz Molero:

ROMANCE DRAMATURGIA

– Quarenta páginas são dedicadas a Paris – AUSTIN: Quarenta páginas são dedicadas a Paris,
disse Austin –, Molero esteve lá por causa da tal Molero esteve lá por causa da tal história relacionada
história relacionada com La Petite Mireille, a com La Petite Mireille.
candidata ao elenco da Comédie Française.
– É verdade, isso – disse Mister DeLuxe –, LA PETITE MIREILLE: La Petite Mireille, a
havia isso. candidata ao elenco da Comédie Française.
– Ela não chegou a entrar para a Comédie –
continuou Austin –, o que, de resto, é secundário, AUSTIN: As fontes de informação, se excluirmos
apenas deu oportunidade a Molero para tecer aquilo a que Molero chama, com ambiguidade
considerações de vária ordem sobre algumas facetas resvaladiça, o oásis pantanoso da infância, eram muito
da sua personalidade. dispersas. Molero teve necessidade de seleccionar.
– Dela? – perguntou Mister DeLuxe.
– Mais dele do que dela – informou Austin, LA PETITE MIREILLE: Daí ter escolhido La Petite
solícito. – As fontes de informação, se excluirmos Mireille. Tratava-se de uma mulher com mais de 30
aquilo a que Molero chama, com ambiguidade anos que não podia ter filhos, tinha sido casada
resvaladiça, o oásis pantanoso da infância, eram anteriormente com um negociante de antiguidades,
muito dispersas – continuou Austin – e ele teve
necessidade de seleccionar, daí ter escolhido La SVOBO: Um tal Svobo.
128

Petite Mireille, havia a ligação, foram amantes, a


tendência artística mútua aproximou-os, ela LA PETITE MIREILLE: Homem que praticamente não
propunha-se a fazer um estudo sobre Matisse, o é chamado para esta história. O Rapaz acordou nela o
pintor, ele andava a coligir elementos sobre outro adormecido, mas sempre latente, instinto maternal.
pintor, Miró, ele viu uma vez uma tela de Miró e foi
devastado pela tão manipulada inocência da paleta,
encontraram-se no Museu do Louvre.

[…]

– O principal, segundo Molero – continuou


Austin –, era a frustração dela, tratava-se de uma
mulher com mais de 30 anos que não podia ter
filhos, tinha sido casada anteriormente com um
negociante de antiques, um tal Svobo, homem que
praticamente não é chamado para esta história, ele
acordou nela o adormecido, mas sempre latente,
instinto maternal, há que considerar a diferença de
idades, Molero sublinha isto, embora paralelamente
introduza as sugestões implícitas na circunstância de
ele encontrar nela o refúgio para todas as
complexidades congénitas e assimiladas, houve um
encaixe de necessidades, ela e a sua frustração
maternal, ele e a imagem desoladora, ainda tão
fresca, de uma infância golpeada.

(O QUE DIZ MOLERO, 2003: 00:01:55-00:02:54)


(MACHADO, 2004: 13-15)

Nesse espetáculo, realizado 13 anos depois do primeiro romance-em-cena, é visível o


quanto a edição conquistou espaço na escrita cênica de Freire-Filho, ainda que aqui estivesse
restrita a apenas cortes de texto. O volume suprimido (sublinhado e incluindo o parêntese com
reticências) impressiona pelo rigor anteriormente assumido em A mulher carioca aos 22 anos,
entretanto não parece descaracterizar a linguagem porque mantém a divisão de textos a partir
dos personagens referente e citado. Observa-se que no texto de Dinis Machado, não apenas
nesse excerto, mas em todo o romance, a figura do narrador fica restrita basicamente a
indicações de quem fala, pois o texto é inteiramente estruturado no diálogo entre Austin e Mister
DeLuxe que lêem, narram e comentam o relatório de Molero.

Detecta-se ainda nesse quadro, mesmo que sutilmente, a escrita de Freire-Filho sobre a
escrita de Machado nos trechos em negrito: nomeamos o procedimento como reiteração, no
caso do nome da personagem “La Petite Mireille”, para ajustar a dramaturgia ao recurso do
personagem referente; os nomes “Molero” e “O Rapaz” recuperam os sujeitos da ação na
diegese; a tradução de palavras estrangeiras para o português: “antiques” é substituída por
“antiguidades”, “bowling” por “boliche; ou mesmo reescrita de frases e expressões, visando a
uma melhor compreensão do público, como “vindo de um meio em que proliferava a cópula a
129

taxímetro, em quartos alugados, de uma ligação sexual adornada de mimos e ternuras” para
“da possibilidade de uma relação sexual orlada de mimos e ternuras”, “tinha o Rato Mickey
tatuado no peito, estava sempre a dizer ao rapaz para se pôr em guarda” para “Havia um amigo
da família que tinha o Mickey Mouse tatuado no peito e pedia ao Rapaz para bater na tatuagem”.

Freire-Filho acrescentou ao procedimento do personagem referente o do personagem


citado, que corresponde ao sujeito da citação, opção encontrada para manter o espaço dialógico
no espetáculo. Assim, a personagem La Petite Mireille surge em cena a partir da menção feita
por Austin, “por causa da tal história relacionada com La Petite Mireille.” (MACHADO, 2004:
14), de quem o encenador-dramaturgo rouba o espaço de fala. Simultaneamente, enquanto
falam os demais personagens, o ator Augusto Madeira, de cuecas, veste em cena seu
personagem: quando está pronto anuncia-se “E um tal Svobo”, mas é descartado pela resposta
texto-teatral de La Petite Mireille, indignada: “Homem que praticamente não é chamado para
esta história” (1529), levando-o a se retirar, frustrado, de cena. Também incorrem na mesma
categoria do personagem citado Bigodes Piaçava (“quem o levou ao hospital foi o Bigodes
Piaçaba da casa de chapéus-de-chuva” (39), um secreta (“punha-se a dizer o pior do Governo,
depois os secretas iam lá no bairro e levavam-no”) (41). Portanto, alguns caracteres são
convocados ao palco de forma citacional, a partir do texto que será veiculado pelo ator que o
interpreta, fazendo com que surjam de forma fantasmática, quase como uma aparição, um
espectro.

Em O púcaro búlgaro, notam-se outras ocorrências no mesmo procedimento quanto aos


personagens Algebrista (“Telefonou-me um cidadão que se diz algebrista” (CARVALHO,
2002: 332), Médico (“Por via das dúvidas chamaram o médico que o havia examinado na
época”) (339); Policial (“Dar queixa à polícia é como dar queixa ao bispo”) (375), que são
performatizados em cena pelo elenco, fazendo-os saltar da citação frasal para emanciparem-se
como personagens cênicos. Destaque para Ísio Ghelman, que interpreta um executivo da bolsa
de valores, a partir da referência textual ao mercado financeiro norte-americano: “Em vão se
tentou chamar à realidade os espíritos mais pragmáticos, para os quais Wall Street e o Vaticano
sempre se constituíram na última palavra” (312, grifos meus): nesse último, não se há citação a

29
Optou-se aqui por indicar apenas as páginas do romance para não interromper o fluxo do texto, visto que a
referência completa acompanha a primeira citação.
130

ninguém, mas sim a uma referência espacial que permite criar um personagem extraído daquele
contexto.

Ao se interessar pelos jogos de palavras de Campos de Carvalho, Aderbal Freire-Filho


deparou-se com um problema para essa terceira imersão no romance-em-cena: o texto de O
púcaro búlgaro é escrito na primeira pessoa, pois se apresenta em formato de diário, o que
contraria o preceito de sua gramática cênica, ou seja, do personagem que narra sobre si mesmo
na terceira pessoa. Entretanto, para preservar sua linguagem e manter o trânsito do elenco por
diversos personagens, Freire-Filho promoveu uma reescrita no texto do autor: quando o
narrador protagonista se refere a outro personagem são subtraídos da dramaturgia pronomes
pessoais como “me”, “mim”, assim como a alteração de verbos na primeira pessoa para a
terceira e uma ou outra reescrita. Sobressaem no quadro abaixo algumas passagens para
demonstrar essas operações dramatúrgicas:

ROMANCE DRAMATURGIA

O sábio agora me olhava atentamente, o lápis PSICANALISTA: O sábio agora olhava atentamente,
suspenso no ar, o bloco de papel com rascunhos o lápis suspenso no ar, o bloco de papel com rascunhos
sobre o joelho. Sua máscara traia uma grande sobre o joelho. Sua máscara traia uma grande
inquietação, como se temesse alguma coisa ou já inquietação, como se temesse alguma coisa ou já
começasse a pôr em dúvida a minha sanidade. começasse a pôr em dúvida a sanidade do paciente.

(CARVALHO, 2002: 328) (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:25:10-00:25:25)

Lá pelo meio-dia tocou à porta o tal Ivo que viu IVO VIU A UVA: Lá pelo meio-dia tocou à porta o tal
a uva – ou talvez fosse o seu nome e eu não tenha Ivo que viu a uva
escutado bem – o qual me pareceu muito mais velho
do que eu imaginava, o que leva a crer que já tenha HILÁRIO (Raquel): me pareceu muito mais velho do
visto toda espécie de uva que há no mundo e só lhe que eu imaginava, o que leva a crer que já tenha visto
reste agora conhecer as famosas uvas búlgaras. toda espécie de uva que há no mundo
Disse-me, e provou com documentos, descender em
linha reta do tal sábio hindu que inventou o zero, IVO VIU A UVA: só lhe resta agora conhecer as
circunstância que lhe garante e à sua família um famosas uvas búlgaras. Disse, e provou com
royalty sobre todos os zeros usados no mundo até o documentos, descender em linha reta do tal sábio hindu
fim dos tempos. Aproveitou para, discretamente, que inventou o zero, circunstância que lhe garante e à
cobrar-me o que lhe devia. sua família um royalty sobre todos os zeros usados no
mundo até o fim dos tempos. Aproveitou para,
discretamente, cobrar o que lhe devia.

(CARVALHO, 2002: 331) (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:32:12-00:33:01)

Os dois fragmentos, narrados no romance na primeira pessoa (Hilário), sofrem pequenas


modificações, entretanto decisivas para a coerência do jogo cênico de Aderbal: no primeiro, ao
narrar o encontro com o Psicanalista, a versão dramatúrgica transfere todo o trecho para o
segundo personagem, obrigando a reajustes: de “O sábio agora me olhava” para “O sábio agora
131

olhava”, “…pôr em dúvida a minha sanidade” para “pôr em dúvida a sanidade do paciente”.
No segundo quadro, além de explicitar o procedimento de divisão de textos entre atores e
personagens, tem-se “…só lhe reste agora conhecer” para “…só lhe resta agora conhecer”,
“Disse-me” para “Disse” e finalmente “…cobrar-me o que lhe devia” para “…cobrar o que lhe
devia”. Tal procedimento, que aparece em outros momentos da dramaturgia, descaracteriza em
alguma medida o original, pois altera a pessoa do discurso (de primeira para terceira) a partir
de rearranjos gramaticais, entretanto revela-se eficiente para que a linguagem do romance-em-
cena possa se realizar. Ainda no campo da escrita, o que chama a atenção ao comparar todo o
romance com sua versão dramatúrgica é a enormidade de trechos e parágrafos que são
abandonados por Aderbal, em direção a uma proposta ainda mais concisa para o espetáculo.
Por ser a terceira experiência nesse campo de investigação, o encenador não tem mais pudor
para editar, cortar, reescrever (mesmo que discretamente) visando, sobretudo, a diminuição do
tempo da peça. Em alguns casos, verifica-se que Freire-Filho necessita disfarçar sua voz de
dramaturgo na voz do autor (em negrito), buscando não revelar ao espectador os bastidores
desse coser:

ROMANCE DRAMATURGIA

Neste livro não se pretende firmar nenhuma ÍSIO: Neste livro não se pretende firmar nenhuma
verdade definitiva sobre essa imortal controvérsia, verdade definitiva sobre essa imortal controvérsia, em
em que pese ao número crescente de que pese ao número crescente de outros aventureiros
pseudoviajantes e outros aventureiros que, munidos que provam ou tentam provar o seu respeitável ponto de
de documentos irrefutáveis, provam ou tentam vista – escudados muitas vezes no prestígio de
provar a cada passo o seu respeitável ponto de vista assembléias ou conferências as mais internacionais.
– escudados muitas vezes no prestígio de
assembléias ou conferências as mais internacionais. RAQUEL: Sociedad Geografica de España.
O autor pessoalmente, e é o que se verá, já teve
oportunidade de conhecer e mesmo de entabular AUGUSTO: Société de Geographie de Lyon.
conversação com mais de um relutante búlgaro, e
até mesmo uma búlgara, todos de uma reputação CÂNDIDO: Sociedade Geográfica da Eslováquia.
acima ilibada e merecedores da maior estima e
simpatia: mas como também já viu de perto alguns GILLRAY: National Geographic Society.
fantasmas e até o próprio Diabo, reserva-se o direito
de só opiniar definitivamente sobre o assunto depois ÍSIO: Sociedade Geográfica da Universidade de
que outros mais abalizados ou afortunados o tenham Bolonha.
feito, à luz das novas ciências ou das que porventura
ainda estejam por surgir. AUTOR (Raquel): O autor pessoalmente, e é o que se
verá, já teve oportunidade de conhecer e mesmo de
entabular conversação com mais de um relutante
búlgaro

AUTOR (Todos): E até mesmo uma búlgara.


132

AUTOR (Cândido): Mas como também já viu de perto


alguns fantasmas e até o próprio Diabo, reserva-se o
direito de só opiniar definitivamente sobre o assunto
depois que outros mais abalizados ou afortunados o
tenham feito, à luz das novas ciências ou das que
porventura ainda estejam por surgir.
(CARVALHO, 2002: 309)

(O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:01:58-00:03:31)

Essa cena de abertura de O púcaro búlgaro, no prólogo Explicação necessária criado


por Campos de Carvalho, o encenador-dramaturgo utiliza o procedimento da adição, no texto
em que insere nomes de instituições geográficas (verídicas) para demonstrar o prestígio
internacional das entidades de pesquisa: Sociedad Geografica de España, Société de Geographie
de Lyon, Sociedade Geográfica da Eslováquia, National Geographic Society e Sociedade
Geográfica da Universidade de Bolonha. Na cena posterior, correspondente ao capítulo
Explicação desnecessária, tem-se a grande parte do texto suprimido, editado, que demandou
de Aderbal a introdução de outros textos para promover uma elipse, ligando o texto anterior ao
seguinte e ainda constituindo uma fricção na representação: o ator deixa o personagem para
imprimir teatralidade à cena pela quebra da ilusão:

ROMANCE DRAMATURGIA

ÍSIO: O autor vacilava, poderia aceitar o suborno, os


encapuzados sumiam. Então ele, não tendo mais
quem o corrompesse, aí sim fazia um discurso
moralista de quem nunca tinha faltado com a
verdade.

E como a Verdade paira acima de quaisquer HILÁRIO (Cândido): E como a Verdade paira acima de
verdades (…), quaisquer verdades!

ÍSIO: Explicação desnecessária, não é? Então vamos


tocar o barco, que é disso que se trata, e vamos logo
à dedicatória. Em seguinda ao começo do diário,
quando o Autor tem alguns dias de amnésia
profunda e só o psicanalista o recolocará no caminho
da expedição.

IN MEMORIAM AUGUSTO: IN MEMORIAM. Este livro, este


Este livro é dedicado à memória daqueles que, espetáculo, é dedicado à memória daqueles que, em
em todos os tempos e sob as condições mais todos os tempos e sob as condições mais adversas,
adversas, tentaram ou conseguiram heroicamente tentaram ou conseguiram heroicamente atingir as
atingir as regiões mais inatingíveis deste ou de regiões mais inatingíveis deste ou de qualquer outro
qualquer outro planeta, de modo a possibilitar se planeta, de modo a possibilitar se tornassem conhecidos,
tornassem conhecidos, ou quase, nomes e ou quase, nomes e expressões tais como (…)
expressões tais como (…)
(O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:11:07-00:12:16)
(CARVALHO: 2002: 315-316)
133

Outro tipo de adição textual refere-se à leitura de verbetes de dicionário, que são
convocados quando o texto do espetáculo sugere: “Nos dicionários eles lá estão, um e outro
[púcaro e búlgaro], com seus verbetes” (CARVALHO, 2004: 313); Raquel Iantas lê em cena,
como sequência do texto anterior: “Búlgaro: natural da Bulgária; Púcaro: pequeno vaso com
asas” (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:08:51). Não se trata, nos textos adicionados, apenas
de misturar sua escrita à do autor, disfarçar seu gesto de costurador, de cirurgião, mas também
de assegurar à cena potencialidades de expressão e comunicação com o espectador. A palavra
escrita, por sua vez, se materializa nos espetáculos, através de objetos cênicos como dicionários,
livros, diários, enciclopédias. Presentes na encenação, tais objetos reiteram a
autoreferencialidade nos espetáculos, sobre os quais emerge essa linguagem.

A canção, outro recurso de extrema importância para o Teatro Épico, aparece na


composição dramatúrgica de algumas cenas. Na sequência transcrita abaixo, uma das primeiras
cenas de A mulher carioca aos 22 anos tem a ambiência na Escola Normal, onde a personagem
protagonista Angélica estuda: cenicamente, Aderbal Freire-Filho constrói um quadro, com
todas as alunas de pé reunidas para cantar o Hino do Instituto de Educação30, cuja letra encontra
espaço na dramaturgia:

ROMANCE DRAMATURGIA

Estava agora no terceiro ano da Escola Normal. ANGÉLICA: Estava agora no terceiro ano da Escola
Alta e fina, com pernas de praia, repousava na teia Normal.
fluídica dos seus olhos negros, de uma doçura casta.
TODAS cantando:
Juntas cantemos
A nossa marcha triunfal
Eia marchemos
Na escalada do ideal
Vibra nossa alma
De entusiasmo juvenil
Pela glória do Instituto
Pela glória do Instituto
E a grandeza do Brasil

ANGÉLICA: Alta e fina, com pernas de praia,


repousava na teia fluídica dos seus olhos negros, de uma
doçura casta.

30
A canção foi composta no Instituto de Educação General Flores da Cunha, escola pública de Porto Alegre e o
mais antigo estabelecimento de ensino secundário e de formação de professores da cidade, com letra das alunas
do Curso Secundário de 1940 e música de Maria de Lourdes Rangel. No Rio de Janeiro, onde se passa o enredo
do romance-espetáculo, pode se referir ao Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ), antigo
Instituto de Educação.
134

(MINAS: 1999: 13) (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:


00:05:04-00:05:52)

No mesmo espetáculo, outra música insere-se na cena em que Angélica é levada à


garçonière pela primeira vez. Cantada por Mallu Vale, que interpreta a personagem Cláudia,
enquanto despe-se, revela a sexy combinação de espartilho e cinta-liga pretos: Um dia quando
esse amor virar moda/ Vou tomar uísque and soda / no bar da garçonière/ Eu vou ser santa e
mulher/ No sofá da garçonière […]31 (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:
00:14:16). O clima de sedução e suspense acompanha Angélica (Cândido Damm) deitada,
temendo, apavorada sobre o que está para lhe acontecer. Por fim, uma terceira canção de letra
bem mais jocosa introduz uma história picante que Chiquilha vai contar a suas colegas no
colégio: O baile da dona Aurora/ Começa sempre às zero hora/ Piroca dentro, piroca fora/ O
baile é de família/ Primeiro a mãe, depois as filhas/ Piroca dentro, piroca fora/ O baile é de
respeito/ Primeiro a bunda, depois os peitos/ Piroca dentro, piroca fora32” (00:26:21). Cantada
a capella por quatro atores, tem arranjo vocal que lembra um coro de escola, cruzamento de
referências distintas que provocam risos na platéia e ainda compõe um dos procedimentos de
comicidade que serão melhor explorados em subitem específico. A personagem Rosa, de O
púcaro búlgaro, interpretada por Raquel Iantas, canta em algumas cenas um refrão de música
búlgara, conforme descrição de Campos de Carvalho.

Outro procedimento de edição, o deslocamento, promove alterações na ordem de alguns


textos do romance na sua passagem à dramaturgia-encenação. Um exerto destacado da página
350 de O púcaro búlgaro é levado seis páginas adiante, não alterando tanto a construção de
sentido, pois todas as inscrições compreendidas nesse período do diário de Hilário pertencem
ao mês de outubro; não apenas isso, o livro de caráter surrealista incita idas e vindas temporais,
sem se preocupar com uma progressão temporal de diário. Em A mulher carioca, encontram-se
algumas ocorrências desse procedimento: “Isso foi de repente, perfeitamente no dia em que
Angélica fazia sete anos, como se dentro da enorme gordura capitalista explodisse a caldeira da
vida” (MINAS, 1999: 62) enquanto na cena desloca-se para dividir o texto entre dois
personagens, “MANOEL: Isso foi de repente, como se dentro da enorme gordura capitalista
explodisse a caldeira da vida. / ANGÉLICA: Perfeitamente no dia em que Angélica fazia sete

31
A autoria da canção não foi identificada, talvez tenha sido composta durante a montagem.
32
Essa música parece tratar-se de domínio público, de autor desconhecido, cuja letra apresenta uma série de
variantes, como própria das obras populares, conforme se verificou em pesquisa na internet.
135

anos” (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990: 01:00:16). Há outras incursões


similares, não somente nesse, mas também em O púcaro búlgaro, em que alguns parágrafos
são invertidos, conferindo à cena uma melhor organicidade na construção de sentido.

A performatividade narrativa e a instabilidade do personagem: procedimentos de atuação

O principal desafio para o elenco de A mulher carioca aos 22 anos era narrar um texto
em terceira pessoa e interpretar o personagem em primeira, ou seja, compor um personagem
que utiliza um discurso distanciado para falar de si mesmo. Os ensaios envolviam discussões e
reflexões entre encenador e elenco, investigações sobre a possibilidade de fusão do gênero épico
com o dramático (na acepção de Aderbal), enquanto verificavam em cena a viabilidade ou não
das propostas de criação. “A gente fazia muitas cenas, improvisações, muitos jogos.
Montávamos os personagens, trabalhava com alguns personagens... fisicamente, vocalmente...
como era fazer, como era a exposição disso. […] E em vários momentos a gente não sabia se
era o certo.” (COUTINHO, 2011, grifo meu), recorda o ator expondo os sentimentos de risco e
insegurança que acometiam os envolvidos no caminho de descoberta, de tentativa e erro, e a
revelação de que improvisavam, pelo menos nesse momento inaugural da linguagem.

Um processo de investigação exige do encenador mãos firmes em sua condução, pois


cria uma sensação de abismo, de desnorteamento, o que pode desestabilizar o elenco. Anos
depois, Freire-Filho confessou que se surpreende com sua capacidade de transformar literatura
em teatro: “e arrisco loucamente porque sei que vou fazer, e complico.” (FREIRE-FILHO in
DELGADO e HERITAGE, 1999: 140). Além das reflexões em torno dos conceitos e práticas
do teatro épico e aristotélico, Gillray destaca algumas referências para a pesquisa a que Aderbal
costumava se referir: um espetáculo encenado por Amir Haddad, em que os atores diziam em
cena as rubricas do texto dramático, e um trabalho de rua de atores franceses com imagens,
flashes e fotos, dos quais ele não recorda mais detalhes. Para Chico Diaz, o ator no romance-
em-cena vive (n)a rubrica, enquanto Cândido Damm ressalta os contornos instigantes para o
ator que o processo revelava, em contexto menos improvisacional:

Porque ele [Aderbal] é preciso, ele traz a referência certa. É difícil te dizer, a gente
não tem improviso nenhum. A gente vai marcando. A gente vai levantando a duras
136

penas cada gesto, cada marca, cada traço na pintura é um parto. “Para, volta, não,
vamos fazer assim.” Qualquer detalhe é revelador. Se você tem uma taça que sobrou
da cena anterior, aí o ator diz assim: “Não, vou levar essa taça, que já acabou a cena”.
Aí ele dizia: “Não, deixa essa taça aí. Essa taça a gente vai aprender com ela daqui a
pouco.” E aí acontecem as coisas mais loucas. O motivo pra tirar a taça surge e você
diz: Não conseguiria imaginar se fosse diferente. Parece que essa marca já existia.
Parece que a gente fez igual Rodin, tirou as imperfeições e a escultura já tava lá dentro
esperando pra sair. É uma coisa impressionante. O Aderbal é um mago, uma coisa que
eu nunca vi igual. (DAMM, 2011, grifo meu)

Com essas palavras, Cândido Damm nos revela como Aderbal escreve a encenação e,
por essa escrita ser invisível, para ele tem ares de magia, de loucura e, claro, de profundo
encantamento e admiração. Entretanto, essa escrita é audível, pelas indicações, orientações,
reflexões em voz alta de Freire-Filho na condução da criação. Se o encenador não escreve toda
a cena sobre a dramaturgia, a fala, a voz, é sua caneta, seu teclado. Para os atores, requer escuta
desenvolvida para absorvê-la e transformá-la com seus recursos corporais, vocais, emocionais,
imaginativos. A criação teatral é um espaço de comunicação entre falantes e ouvintes, entre
atuantes e observadores, entre criadores e a matéria criada.

A diversidade e a grande quantidade de caracteres comumente encontrados no gênero


romanesco, entre principais, secundários e terciários (e ainda os que são apenas citados),
depara-se com a questão de quantos atores deveriam ser necessários para sua encenação. No
romance-em-cena, de forma geral, o elenco é propositalmente reduzido (entre cinco e oito
atores), chegando à segunda proposição da gramática dessa encenação: cada ator deve
interpretar mais de um personagem, por vezes inúmeros, o que contraria algumas convenções
do teatro, que normalmente estabelece uma paridade e singularidade entre o ator e o ser
ficcional que representa.

Ao entregar ao ator a tarefa de fazer emergir em cena uma diversidade de personagens,


muitas vezes em espaços curtos entre a exibição de um e outro, o ator deve assumir a forma
épica nesse trânsito e recorrer a recursos muitas vezes limitados, não menos eficientes, para o
público reconhecer e diferenciar os caracteres em cena. Entretanto, ainda que a tônica seja a da
diversidade para cada ator, apontamos outro procedimento dramatúrgico: o personagem
multiplicado, inspirado no Sistema Coringa do Teatro de Arena, em que vários atores revezam-
se no mesmo personagem, impondo-lhes a construção, troca e compartilhamento de aspectos
composicionais. Sobre essa influência, aspecto inerente à construção da autoria de todo criador,
Freire-Filho reconhece:
137

Eu pouco li das teorias do Boal sobre Sistema Coringa, mas eu fiz isso porque alguém
veio antes de mim e o que foi feito eu vi, talvez não no original, não me lembro de ter
visto nenhum espetáculo do Boal no original, mas já num processo influenciado e essa
influência chega até mim. E, claro, é uma coisa da minha geração até... Eu tenho que
admitir que é isso. É a minha geração, são caminhos abertos por gente da minha
geração, da minha época. (FREIRE-FILHO, 2011)

A primeira cena de A mulher carioca aos 22 anos, que apresenta a personagem


protagonista, já anuncia ao público o jogo proposto pela encenação. Malu Valle entra como
Angélica, vestida com o uniforme do colégio, para diante do público e diz a primeira frase do
romance “Angélica tinha 18 anos” (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990: 00:04:00)
e sai, trazendo à mesa central os demais atores, devidamente vestidos com baby dolls e
formando uma imagem multiplicada da personagem. Em posições e ações distintas, formam
um mosaico, numa temporalidade anterior à primeira aparição com Malu, para encenar o
momento de sua transformação de moça em mulher no fim da puberdade.

ROMANCE DRAMATURGIA

Angélica tinha dezoito anos. ANGÉLICA (Malu): Angélica tinha dezoito anos.
Ela se fizera mulher numa noite aziaga, de
tempestade. ANGÉLICA (Gillray): Ela se fizera mulher numa noite
Ela se lembrava do susto pudico que tivera, pela aziaga, de tempestade. Ela se lembrava do susto pudico
manhã, ao erguer-se do leito. O lençol e suas calças que tivera, pela manhã, ao erguer-se do leito. O lençol e
de seda tinham pétalas de sangue. A rosa da sua suas calças de seda tinham pétalas de sangue. A rosa da
puberdade se desfolhara na sua carne pálida, nessa sua puberdade se desfolhara na sua carne pálida – em
noite comunista, nessa noite cheia de murros. tom de arauto, exibindo o lenço ao público – nessa noite
comunista, nessa noite cheia de murros.

ANGÉLICA (Marcelo), gritando e em seguida,


magoada: Ela se fizera mulher numa noite aziaga, de
tempestade. Ela se lembrava do susto pudico que tivera,
pela manhã, ao erguer-se do leito. O lençol e suas calças
de seda tinham pétalas de sangue. A rosa da sua
puberdade se desfolhara na sua carne pálida, nessa noite
comunista, nessa noite cheia de murros.

ANGÉLICA (Cândido), agitada, falando muito rápido:


O lençol e suas calças de seda tinham pétalas de sangue.
A rosa da sua puberdade se desfolhara na sua carne
pálida, nessa noite comunista, nessa noite cheia de
murros.

(A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990:


(MINAS, 1999: 13) 00:04:00-00:05:04)
138

O mesmo trecho do texto, como se pode observar, é repetido por três atores, todos
homens, que intepretam Angélica cada um ao seu modo, seguindo orientações da preparadora
corporal Rossella Terranova33, enquanto os demais restringem-se às ações com lenços e lençóis
manchados de sangue, representando a menstruação da personagem. Aqui há tanto o
procedimento da multiplicação quanto da reiteração, quando o mesmo episódio do enredo é
reforçado. Essa primeira e curta cena explicita o que o espectador vai confirmar ao longo do
espetáculo: na roleta-russa de A mulher carioca aos 22 anos todo o elenco se reveza nos
personagens principais (Angélica, Claudia, Anfrísio e Anica), desconstruindo o recurso
comumente utilizado do protagonismo no teatro convencional.

Se no romance O que diz Molero os dois narradores protagonistas constroem entre si


uma interlocução a partir do relatório de Molero, no espetáculo eles dividem a espacialidade
com os demais personagens, pois a encenação assume a coexistência de universos ficcionais
distintos. Os narradores Austin e Mister DeLuxe, ao lerem os relatórios de Molero, fazem saltar
deles as figuras. Dessa forma, Aderbal tenta reproduzir cenicamente o movimento operado pela
relação estabelecida de um leitor com o livro, colocando-se como narrador. Entidade
responsável por contar os acontecimentos, apresentar e descrever os personagens e conferir-
lhes espaço de fala, o narrador do romance porta-se como mediador entre o leitor e a matéria
narrada. Aqui, Freire-Filho busca essa equivalência, na medida em que é a encenação que se
coloca no lugar do narrador, operando para o espectador o mesmo movimento.

Como encenador-autor do espetáculo, Aderbal delega à cena essa tarefa, à medida que
faz surgir os personagens descritos pelo texto na representação dos atores. O Rapaz,
protagonista do enredo, é interpretado apenas por um único ator (Chico Diaz), o que de alguma
forma permitiu-lhe uma composição mais profunda do personagem, oferecendo-se à
identificação do espectador, ainda que atravessada pelo estranhamento do veículo narrativo.
Mesmo que outros atores do elenco fixem-se na instabilidade da troca incessante de
personagens, o protagonismo do Rapaz é evidente: a diegese trata da sua biografia, colocando
os demais personagens numa coadjuvância coletiva.

Se Aderbal Freire-Filho afirma que o romance-em-cena elimina a representação da


figura do narrador do romance, nota-se que O púcaro búlgaro incorre em ambiguidades quanto

33
Rossella Terranova, professora de dança, nasceu em Atenas e atuou como preparadora corporal de A mulher
carioca aos 22 anos. Seu trabalho varia de acordo com cada proposta de montagem e com a disponibilidade do
elenco, portanto não tendo desenvolvido um método pré-concebido. É preparadora de elenco da TV Globo.
139

à entidade literária. Observa-se que na cena inaugural, correspondente ao primeiro capítulo do


livro, intitulado Explicação necessária, coexistem dois tipos de personagem: um que se
aproxima da figura do próprio ator, vestindo apenas um figurino-base, e outro que remete ao
personagem do Autor (Hilário) cuja composição ganha óculos 34. Apesar de todos os atores em
cena vestirem o mesmo figurino-base acrescido de um paletó, é a ação de vestir os óculos que
diferencia esses narradores do personagem Autor. O encenador faz emergir o personagem
protagonista dentro da cena pela interpretação de Raquel Iantas: “O autor [mostra os óculos,
veste-os, assumindo o personagem e senta-se abraçando o diário] pessoalmente, e é o que se
verá, já teve oportunidade de conhecer e mesmo entabular conversação com mais de um
relutante búlgaro”, seguida pelos outros que colocam óculos e dizem, simultaneamente, “e até
mesmo com uma búlgara” (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:02:38), exibição multiplicada e
prismática do personagem, que se desfaz para Cândido Damm assumi-lo sozinho, enquanto os
demais mantêm-se em cena, despidos dos óculos, para prosseguir as explicações do primeiro
capítulo. Além dos óculos para a caracterização de Hilário, a ela por vezes soma-se uma luneta
pela qual espia os vizinhos e o mundo.

Outro procedimento escolhido por Aderbal para revezar o elenco nesse personagem é o
anúncio feito pelo próprio ator em voz alta, nos bastidores, da página do diário que vai ser
encenada. Acompanha-se o girar de uma das manivelas “do barco”, que muda a cena e tempo,
auxiliada pelas alterações na luz e vinhetas sonoras. O ator que anuncia a mudança é o mesmo
que vai interpretar Hilário na cena subseqüente. Para além de Hilário, os personagens que se
fixam no romance e no espetáculo são interpretados por Cândido Damm (Pernacchio), Ísio
Ghelman (Expedito), Augusto Madeira (Ivo que viu a uva), Gillray Coutinho (Professor
Radamés) e Raquel Iantas (Rosa), mas vale lembrar que o elenco representa outros como o
Diretor do Museu, o Psicanalista, o Vizinho, a Tataraneta, o Algebrista, o Marinheiro Fenício,
O Fulano C. Meireles, o Apóstolo Paulo, o Papa, entre outros personagens citados.

O ator em cena, sem portar nenhum personagem e que chamamos de ator-narrador,


aparece em outros momentos do espetáculo, principalmente nas primeiras cenas em que o
elenco, com exceção de Cândido Damm, narra trechos do romance, enquanto contribuem para
a montagem e desmontagem de cenas, entregando a Hilário objetos, como lâmina, toalha e
espuma de barbear. A encenação reitera que não se tratam de personagens do romance, mas

34
Deve-se observar a recomposição da dramaturgia dessa cena realizada na página 120, em que nomeamos o
narrador pelo nome do ator, distinguido-o do Autor (Hilário, o personagem protagonista).
140

atores (algumas vezes atuando como contra-regras ou objetos) que dão suporte cênico ao
protagonista, enquanto veiculam informações do texto ao espectador. Assume-se a distinção
entre caracteres diegéticos e extradiegéticos, entre ator e personagem. Na cena subsequente,
que encena a visita de Hilário ao Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia, onde vai encontrar
o exemplar do púcaro búlgaro, os atores representam, cada um, uma estátua-obra do museu,
acompanhados apenas de alguns objetos e adereços.

A quebra da ilusão explicita-se na cena intitulada Explicação desnecessária, em que o


ator Ísio Ghelman diz ao público “Aqui eu tinha que entrar com um capuz e… dizer que…”,
interrompe-se e retoma o personagem e o texto do romance, com sutis alterações vocais, “Este
espantoso documento estava para ser entregue ao editor quando uma comissão de búlgaros
[…]” (O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:10:28). Em outros momentos, um ator passa seu
personagem a outro em cena aberta, procedimento muitas vezes restrito ao compartilhamento
de adereços e peças de figurino: Ísio Ghelman deixa o personagem Hilário apenas retirando os
óculos, trocando de lugar no espaço cênico e convertendo-se em Expedito; Augusto Madeira
entra em cena, recebe os óculos das mãos do colega e assume o lugar do escritor. Poucos
minutos depois, Ísio entrega a Augusto os adereços que caracterizam Ivo que viu a uva
realizando o mesmo procedimento, como numa espiral em que os personagens vão e veem em
cena ao sabor das decisões do encenador-dramaturgo. Em O que diz Molero, o mesmo ator
alterna-se entre pai e filho na mesma cena, trocando apenas dois adornos, o bigode do Bigodes
Piaçava pelos óculos de Ângelo, brincando com a hereditariedade física. A intensa rotatividade
dos atores entre os inúmeros personagens de cada um dos romance-em-cena leva-os a recorrer
muitas vezes a procedimentos de comicidade, que passam a ser por hora examinados.

Travestimentos, caricaturas e histrionismo: procedimentos de comicidade

O trabalho de atuação requereu dedicação exacerbada do elenco e o rigor para a


descoberta da linguagem em A mulher carioca aos 22 anos demandou uma preparação especial.
“Num primeiro momento a gente tinha uma preparadora, a Rossella Terranova, porque a gente
precisava criar muitos tipos, muitos personagens. O romance-em-cena tem essa característica
de muitos personagens.” (COUTINHO, 2011). Portanto, os atores buscaram dar conta dessa
multiplicidade e versatilidade, cuja inspiração veio de um modelo de atuação que determinaram
141

como sendo a do típico ator brasileiro35: “O [Grande] Otelo, o Oscarito, o [Jorge] Dória… […]
Nossas referências mais conhecidas, mais próximas da interpretação brasileira, a interpretação
mais escrachada; não tem nenhum psicologismo, nenhuma frescura, é uma escola de
interpretação brasileira.” (COUTINHO, 2011). É interessante perceber a influência desse tipo
de atuação bastante característica do teatro de revista, da chanchada, de programas humorísticos
de TV (Chico Anysio e Jô Soares, por exemplo), pois aspectos como o travestimento, o humor,
a caricatura e o escracho encontram lugar na linguagem aderbaliana.

A partir do consagrado estudo de Bergson, sabe-se que o riso é consequência


principalmente de irrupções involuntárias que alteram um determinado contexto, à priori
rígido, quando se esperaria certa maleabilidade, porque humano e vivo. Portanto, o cômico está
na ordem do acaso, do inesperado, do acidental, um automatismo resultante de distração. O riso
ultrapassa sua função estética em direção à ética, pois pode ser considerado uma forma da
sociedade para corrigir e censurar atitudes repetidas de forma inconsciente visando impedir que
o sujeito se distraia diante das mudanças próprias da vida. “Rigidez é a comicidade, e o riso é
seu castigo” (BERGSON, 2001: 23).

O gesto cômico tem natureza fortuita, automática e resultante de distração, enquanto o


personagem cômico pratica gestos gerais, reconhecíveis, na composição de uma conduta
caricatural e repetitiva. Para o russo Vladmir Propp, o riso vincula-se à exposição de defeitos
humanos, especialmente quando revelados de modo brusco, de forma inesperada e
surpreendente (corroborando com Bergson), ou seja, é possível rir das falhas humanas quando
estão no campo da pequenez, da mesquinharia, pois os defeitos graves são matéria do drama ou
da tragédia, capazes de condenação e julgamento.

Dos procedimentos de comicidade mais utilizados no romance-em-cena, destacam-se:


o travestimento, histórico no campo do teatro, originado quando as mulheres eram impedidas
de atuar no palco e os homens obrigados então a se travestir para interpretar os papeis femininos,
foi incorporado como recurso cômico, pois subverte a visão tradicional dos gêneros, evidencia
o caráter de representação de um papel, pode estimular a construção caricatural e revela que
feminino e masculino são construções culturais, ainda que a distinção prevaleça para o senso

35
Chama-se a atenção para uma prática comum de generalizar aspectos como “ator brasileiro”, “teatro brasileiro”
àquilo que se produz no Rio de Janeiro e São Paulo, sob o prejuízo de se excluir desse denominador a diversidade
de propostas no território nacional, cujo mapeamento ainda se encontra incipiente para sustentar algumas
universalidades.
142

comum; a caricatura, originária do desenho e da pintura, visa enfatizar e exagerar as


características de uma determinada pessoa ou personagem, assim como pode destacar gestos,
manias, cacoetes e hábitos individuais, sendo que a distorção e o uso econômico de traços é
uma de suas principais características, tornando-a muitas vezes sinônima do estereótipo ou do
grotesco; o histrionismo, termo bastante utilizado pela Psicologia e cuja patologia psíquica foi
estudada por Freud36, refere-se à apresentação exagerada, over, cujo objetivo é chamar a
atenção sobre si, mas no teatro comumente tem conotação pejorativa, pois se trata de uma
performance excessiva, e sua origem etimológica (histrião) significa um indivíduo bobo, louco,
ridículo. De qualquer maneira, Aderbal atribui ao encenador alemão a potencialidade
expressiva que o ator conquistou no teatro moderno e contemporâneo. Para ele é preciso
“reconhecer Brecht, pois com ele o ator criou uma atitude nova, que faz dele, do ator,
simultaneamente boneco e bonequeiro. Este é o salto mortal que o teatro deve a Brecht.”
(FREIRE-FILHO, 2005: 17).

Se no romance, pela sua extensão, o autor pode delinear mais densamente seus
personagens, no romance-em-cena essa profundidade fica delegada ao correspondente textual
na fala dos atores sobre os personagens. Entretanto, o ritmo frenético do romance-em-cena
inviabiliza a absorção mais marcada das descrições e perfil dos caracteres veiculados pelo texto,
concentrando a percepção dos vários personagens por meio de poucos traços, que aproximam
essa composição do caricatural, onde se acentuam determinadas características em detrimento
de outras. Gillray Coutinho comprova a intertextualidade visual, ao se referir à Mulher carioca
aos 22 anos: “Os espetáculos eram muito... não sei se é a palavra, não sei se rígidos, mas muito
desenhados, presos mais nas questões físicas e vocais […]” (COUTINHO, 2011). No processo
de construção dessa peça, por exemplo, Aderbal Freire-Filho oferecia como referência cartoons
e caricaturas do início do século XX, época em que se passa o enredo do romance, para
estimular a criação dos atores, segundo recordações de Cândido Damm sobre indicações do
encenador: “Essa peça que a gente tá fazendo é nos anos 30, têm aqueles velhos escrotos de
monóculos, todos que têm uma garçonière, tem a família, os tipos eram todos mais ou menos
definidos, mas cada um dá a sua contribuição do jeito que quiser.” (DAMM, 2011). O rodízio
cênico dos atores com seus personagens-tipo, caricaturais, deságua diretamente na comicidade,
como reitera o encenador avaliando a qualidade dos intérpretes:

36
BREUER, J.; FREUD, S.. Estudos sobre a histeria. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 15-297.
143

Então, mas para essa alta rotatividade, uma caracterização, uma caricatura é mais
eficiente do que um desenho. Então, a caricatura, que não precisa ser nem menor, nem
falsa. Caricatura também, talvez mais do que o desenho, precisa ser verdadeira... mas
a caricatura exige o humor, exige uma observação de humor. E todos eles são bons
comediantes, têm humor. (FREIRE-FILHO, 2011)

Ainda perseguindo as referências ao humor, Gillray compara o trabalho do ator nessa


linguagem à figura do contador de piada (portanto, de histórias), que em um momento está de
fora daquilo que conta (narrador) e em outro se traveste no personagem, o que o aproxima da
performance do rapsodo grego. A diferença é que no romance-em-cena o ator é o piadista que
só conta como personagem, sem alternar para o narrador. O travestimento pode ser encontrado
na distribuição dos personagens e não tem como juízo a correspondência entre masculino/
feminino, o que potencializa em muito o humor nesses espetáculos.

Dessa forma, o romance-em-cena ancora-se na comédia, por decisão do próprio


encenador que não desejou encenar um romance sério nesses moldes. Para Gillray Coutinho
essa determinação liga-se ao fato de que o humor alivia para o espectador a extensa duração
dos espetáculos; segundo Freire-Filho, a linguagem que desenvolveram está toda baseada nos
procedimentos de humor, a rotatividade dos personagens, a caricatura, o exagero. Dessa
maneira, o caráter tipológico nessa composição, aliado à instabilidade da encenação que se
caracteriza por um montar e desmontar as cenas e seus personagens, se sustenta pela comédia
e por uma hiperatuação, num histrionismo revisitado. Damm concorda:

É, eu acho que o ator tem que ter isso pra poder ter essa diversidade de tipos. Tem que
ter uma coisa bem histriônica mesmo, pra passar de um tipo que esteja bem definido
na sua frente, pra outro, que seja o oposto. Mais ainda se for outro que tenha a mesma
idade, mesma... Mesmo porque, se você quer caracterizar, é muito mais fácil você
passar de um velhinho pra uma garotinha do que de um velhinho pra outro velhinho.
E não só o histrionismo, como um preparo mesmo, de escolhas né. E de trabalho feito,
e de pesquisa, de laboratório, de um dia depois do outro pra você ter essa firmeza de
descobrir quais são as... qual é o ritmo, qual é a musculatura que você vai usar, como
é que esse cara senta e como ele levanta. (DAMM, 2011)

O ator do romance-em-cena deve ter desenvoltura para a comicidade e o humor, além


de intensa disposição física e vocal, pois se tratam de espetáculos longos, com uma
multiplicidade de personagens e textos. O trânsito dos atores e o vai e vem cênico impedem
144

uma composição mais vertical, deixando os personagens rarefeitos na sua composição de


esboços caricaturais, sem a espessura que comumente exige o teatro convencional. Esse
trabalho não restringe a representação dos seres ficcionais da obra de origem, visto que em
determinados momentos atuam como contra-regras, conduzindo dispositivos cenográficos,
entregando objetos, preparando a cena para os colegas; em outras, podem ser vistos apenas
como escada, termo recorrente do vocabulário teatral que se refere ao ator usado como
trampulim para potencializar a performance de outro. No romance-em-cena, teatro de tipo
narrativo-performativo, o ator é convocado a uma constante atualização de sua performance,
ligada ao risco do instante e seu sentido de presença, de duração, por meio do jogo proposto
por Aderbal, pois compõem uma engrenagem na montagem e desmontagem da construção
cênica onde cada peça é fundamental para sua plena concretização.

Ilustração versus subversão: procedimentos de encenação e vocalização do texto

A encenação, de forma ampla, edifica-se pela dicotomia entre a ilustração/ subversão


do que é dito pelo texto: a ilustração busca uma redundância entre o discurso verbal e o discurso
cênico, mas pode apresentar um resultado menos interessante, porque pleonástico, enquanto a
subversão dissocia os dois discursos, seja pela contradição (diz uma coisa e faz outra), pela
complementaridade ou ainda pela extrapolação da reiteração textual. O romance-em-cena,
pelas mãos de seu encenador-autor, reveste-se principalmente pelo recurso ilustrativo, ainda
que a subversão componha algumas cenas.

Em O que diz Molero, a transa entre La Petite Mireille e o Rapaz, encenada de forma
grotesca e exagerada contrapõe o texto falado: “Foi ela que o salvou, inventou as carícias mais
leves [esbofeteia o Rapaz], mais suavemente penetrantes [insinua uma penetração anal],
punham um cobertor no chão e ela não gemia, foram as noites dos beijos mais húmidos e do
amor mais surdo [silabando em silêncio “puta que pariu”]” (O QUE DIZ MOLERO, 2003:
00:04:24). Ao mesmo tempo, do outro lado da cena, Austin e Mister DeLuxe estão recostados
na cama, como se estivessem imaginando a cena narrada e descrita pelo relatório de Molero.

Em outra cena, tem-se um acidente sofrido por Leduc, amigo do Rapaz, que se
despencou do alto de um despenhadeiro em sua cadeira de rodas, de onde observava o mar.
Augusto Madeira, sentado, encena a queda chacoalhando-se em velocidade gradual sobre a
145

cadeira de rodas, como se estivesse descendo o despenhadeiro. Em seguida, o ator levanta-se,


retira a manta que cobre suas pernas, vira a cadeira de rodas, deita-se de bruços abaixo dela,
cobre-se com a manta e finalmente ergue-se para girar a roda, finalizando a representação do
acidente e conquistando muitos risos do público. A explicitação dos mecanismos de construção
da teatralidade por meio da ruptura com a ilusão, além de revelar-se como um procedimento de
comicidade, é uma poderosa comunicação com o espectador, pois realiza a mágica mostrando
o truque, exigindo a atenção dele para o revés da tapeçaria, para os modos de se fazer teatro.
Isso ganha reforço da iluminação que, nos trechos assistidos pelo vídeo ao menos, praticamente
mantém-se inalterada: uma luz geral aberta, a que se soma o requinte dos pinos sobre alguns
arquivos. Em outras cenas, essa luz geral fecha-se em penumbra, criando uma atmosfera
intimista, em que se destacam alguns focos mais claros.

A utilização de objetos, para Chico Diaz, foi uma grande descoberta nesse processo,
visto que impõem altos níveis de teatralidade: “Isso me fascinou muito também, porque eu não
tinha esse cuidado com objetos. […] Você estava por aqui e aparecia um objeto, a cena ia atrás
do objeto. E eu via como as pessoas cuidavam dos objetos […]” (DIAZ, 2011). O mesmo
guarda-chuva preto de Bigodes Piaçava em duas cenas de O que diz Molero, por exemplo,
assume sentidos diferenciados: em uma tem sentido denotativo, quando se apresenta ao
espectador, em outra é utilizado como teto para formar cenograficamente seu automóvel, cujo
suporte é uma cama, outra ressignificação. A mesa e as cadeiras transformam-se e criam
diversos espaços cênicos, como muros, ringue de boxe, escadaria da igreja etc. O mesmo
recurso é explorado nos outros dois espetáculos: em A mulher carioca…, altera-se a disposição
da sala de jantar para transformá-la, com as mesmas cadeiras e mudando apenas a direção da
mesa, em um piano que é tocado pela personagem Madeleine, recurso que depois será repetido
em Sonata de Outono, com Marieta Severo e Andréa Beltrão.

Os procedimentos de preparação da cena para o que vai ser dito posteriormente pelo
texto podem ser exemplificados pela chegada de Radamés ao apartamento de Hilário em O
púcaro búlgaro. Para que Raquel Iantas encene a passagem de Rosa de toalhas diante do
Professor, a sintaxe cênica começa no início da cena, em que Freire-Filho busca uma construção
paralela ao texto, ainda que haja uma defasagem temporal, preparando o que a palavra ainda
vai comunicar, conforme descrito e narrado no quadro abaixo:

ESPETÁCULO
146

Rosa está na banheira, cantando uma música búlgara, enquanto o Hilário auxilia-a no banho. O Professor bate
palmas, entra e senta-se. O anfitrião vem recebê-lo.

RADAMÉS (Gillray): Chegou o professor Radamés, com mala e tudo. – Vi que o sr. morava sozinho e resolvi vir
morar sozinho com o senhor.

HILÁRIO (Augusto): Só que há também a Rosa, que também mora sozinha. Assim seremos três a morar sozinhos
– entrega a toalha a Rosa.

RADAMÉS (Gillray): A ideia me pareceu excelente.

ROSA (Raquel) ergue-se na banheira, tampando os seios. Hilário leva a tolha para ela, o Professor mantém-se
na poltrona. Rosa sai enrolada na toalha e passa insinuante diante do professor, enquanto diz: sobretudo depois
que viu Rosa saindo do banheiro envolta numa toalha felpuda.

(O PÚCARO BÚLGARO, 2006: 00:37:19)

O texto do romance nos espetáculos ganha potência a partir da vocalização dos atores,
imprimindo sobre ele sonoridades diversas, em que as frases dão relevo a sentidos de leitura
também distintos para o espectador. Seja negando ou reforçando pela intenção a frase do autor,
a determinação das pontuações vocais muitas vezes vai contrariar a pontuação gráfica e
gramatical do escrito, pois se refere a dois universos textuais distintos: a palavra impressa e a
palavra falada – a primeira é fixa, visual, enquanto a segunda molda-se no tempo e no espaço
sonoro.

Na peça A mulher carioca aos 22 anos todo o elenco criou uma vocalização silábica de
palavras que será utilizada nos dois outros espetáculos: a última palavra de uma frase é proferida
de forma fragmentada, prolongando-se o fonema da última sílaba: “Angélica na escola procurou
evitar Claudia o quanto pô-deeeee” (A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS, 1990: 00:21:17);
“Embaixo surgia Chi-qui-lhaaaa” (00:21:57), “Angélica foi ver o berço, vaporoso de cambrais
e ren-daaaas” (01:41:19). Em O que diz Molero, o nome do investigador é recorrentemente
repetido dentro dessa musicalidade silábica: “Mo-le-ro”. Para Aderbal Freire-Filho a
vocalização do texto é um grande ponto de interesse, já que a palavra em seu teatro ocupa um
lugar de destaque. Questiona alguns métodos de preparadores que se guiam mais ou apenas pela
construção de sonoridades, desvinculas muitas vezes de qualquer sentido de leitura do texto:

Eu digo: “Gente, espera aí. A gente diz tudo igual. A gente não pensa como é que a
gente vai dizer. A gente é movido pelo sentido. Quando a gente quer enfatizar uma
coisa a gente repete, repete, repete, repete e de repente tudo igual. Então é o sentido e
é a verdade. Então, a partir de adquirir o sentido e a verdade, a gente ainda pode dar
esse passo do estilo. […] Isso que me interessa, a melhor forma de abordar essa fala.
Em vez de falar no sentido, e falando, é falar no presente. Essa fala está sendo dita
pela primeira vez agora. […] É presente. Então esse presente é fundamental. Pra mim,
147

essa é oralidade do texto dito no presente, com sentido e verdadeiro. De que o


verdadeiro e o presente é muito próximo. (FREIRE-FILHO, 2011)

A Freire-Filho importa a fala como performance vocal em constante estado de


atualização, porque o personagem deve ser interpretado no tempo presente, independente se o
que ele diz está no passado. Dessa maneira, a performatividade narrativa do romance-em-cena
recai bastante sobre o trabalho textual e vocal, pois é sua matéria mais decisiva e que exige do
ator uma embocadura diferenciada para não incorrer também na monocordia que, ao invés de
realçar e dar vida ao texto, acaba por transformá-lo numa monotonia que nem a leitura
individual e silenciosa seria capaz.

Portanto, a fala é crucial para o romance-em-cena, porque ela é a base estrutural dessa
linguagem, principalmente pelo extenso corpus textual que cada espetáculo oferece ao
espectador. O contraponto da fala, o silêncio, também torna-se importante pois a torrente textual
sobre o espectador pode causar desconforto na escuta. Gillray Coutinho acentua que havia
momentos nos ensaios em que ele mesmo não suportava ouvir a própria voz, situação que o
impelia a buscar novos contornos para a fala, recorrendo ao humor para superar essas
dificuldades. Em O que diz Molero, ele recorda a preocupação do encenador:

Eu me lembro que no Molero, ele dizia assim: “Cara, tem que ter um silêncio, se não
a pessoa não aguenta mais ouvir.” Depois de uma certa hora tem que ter um intervalo,
porque chega uma determinada hora que as pessoas não conseguem mais ouvir o som
das palavras que falando, falando, falando, direto, né, não tem silêncio, tem pausa. Eu
falo, você pensa e responde. Fala, fala, fala... Então talvez o humor ajude a suportar
isso, ajuda a suportar o tempo e o mundo de palavras que você ouve. (COUTINHO,
2011)

Por outro lado, a sonoridade também contribui para explicitar nuances do texto,
emprestar-lhe ou ressaltar sua comicidade, oferecer mais possibilidades de leitura que o texto
escrito é impedido de fazer sem os mesmos recursos. A palavra impressa tem outra potência,
diferente da que pode alcançar com a vocalização. “Ela é sempre igual, ela não tem ênfase, não
tem tempos”, observa Freire-Filho. A voz dos atores ainda pode dar relevo aos trocadilhos e
jogos de palavras que se pode extrair do texto: Em O púcaro búlgaro, as palavras púcaro e
búlgaro se repetem sucessivamente no romance e sua vocalização dá brilho à homofonia de
uma escrita tornada som, música. Em outros casos, o texto original conquista em cena relevos
148

expressivos, por meio de recursos como a ironia ou piada: ao mencionar a sigla


MSPDIDRBOPMDB (Movimento Subterrâneo Pró-Descoberta ou Invenção Definitiva do
Reino da Bulgária Ou Pelo Menos De Búlgaros), a reiteração por um dos atores das quatro
últimas letras remete o espectador diretamente a um dos mais tradicionais partidos políticos
brasileiros, o PMDB.

O título A partida do epílogo desse livro propõe uma ambiguidade e leva o leitor a supor
que finalmente os personagens vão concretizar a expedição à Bulgária, quando na realidade eles
vão mesmo é jogar uma partida de cartas. No espetáculo, a sonoridade potencializa a
ambiguidade. Terminada a cena anterior, a luz mais uma vez cai, deixando apenas uns pontos
iluminados nos bastidores e retoma-se o procedimento cênico de passagem de tempo ao
manipular as engrenagens da embarcação, construindo movimentos que incitam ao sentido de
viagem, enquanto os atores anunciam “A partida!”, como se estivessem num cais de porto,
despedindo-se. Repetem, simultaneamente, várias vezes, prolongando a vocalização da palavra,
como se aos poucos o barco estivesse se movimentando: “A partidaaaaaa!”, “Aaaaa
partidaaaaaa!”. Quando a luz emerge sobre o palco, vê-se os três personagens na mesa central
jogando cartas. Do romance para o espetáculo, a investida do trocadilho de Campos de Carvalho
conquista maior expressividade, pois os recursos vocais e cênicos reforçam a construção de
sentido da partida como viagem, enquanto o corte brusco da luz anuncia instantaneamente a
partida de cartas, como se o leitor virasse a página do livro.

A encenação de O púcaro búlgaro abre passagem também para a fruição da própria


palavra, em cenas onde o texto conquista belos níveis de expressividade pela performance
corporal e vocal de alguns atores. As cenas correspondentes aos capítulos do diário, onde os
personagens dedicam-se a exposições sobre temas diversos, só não se tornam enfadonhas pela
inventividade da contralógica de Campos de Carvalho e principalmente pela exuberância de
algumas interpretações, com destaque para Gillray Coutinho e seu Professor Radamés que
realiza intensos monólogos, expondo um texto ancorado no absurdo e no nonsense.

Os expedicionários Ivo que viu a uva, Pernacchio, Expedido e Rosa acompanham


reunidos na mesa uma conferência do Professor Radamés sobre a Bulgária, atuação vigorosa
de Gillray Coutinho tanto nos relevos que oferece ao texto pela voz quanto pela interpretação
que aos poucos ocupa todo o espaço cênico (poltrona, cama, caminhando): o texto incessante
do conferencista leva a performance do ator de uma ponderada e objetiva fala, passando pela
excitação da paixão pelo assunto (e digressões incluídas), atingindo o clímax pelo descontrole
149

histriônico e finalizando no cansaço pleno e absoluto, depois de dez minutos falando


ininterruptamente e praticamente sozinho. Desmontando-se sobre o sofá e dizendo a última
frase da cena “(Aqui Radamés se sentiu um pouco cansado – e nós com ele – e pediu que fosse
servida uma chávena de chá ou uma chocolátevena de chocolate, se possível acompanhada de
torradas” (CARVALHO, 2002: 346), a performance enérgica de Gillray ironiza o texto que a
acompanha “se sentiu um pouco cansado” (grifo meu), oferecendo um jogo de contrários ao
espectador. Destaca-se nessa cena o gozo propiciado pela fala e pela exposição de ideias (ainda
que construam sentidos diversos) que da excitação gradual alcança o furor de um orgasmo e
encerra na exaustão da performance. Aqui, recobra-se Roland Barthes, quando relata que a
relação com a linguagem pode ser erótica, tátil, sedutora:

A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse


palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme
de desejo. A emoção de um duplo contacto: de um lado, toda uma atividade do
discurso vem, discretamente, indiretamente, coloca em evidência um significado
único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a
linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas
palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o
comentário ao qual submeto a relação. (BARHTES, s/d: 98)

A exposição do Professor Radamés, com as sonoridades, melodias e impactos que sua


transmissão pela fala oferece ao espectador-ouvinte pode aproximar-se dessa linguagem que se
esfrega no corpo de quem fala e excita aqueles que a ouvem, porque a boca é também um
veículo, uma mídia, um transmissor de palavras, ideias, sentimentos. Em outra cena, a leitura
da ata de reunião dos expedicionários constitui nova conferência e incita debates, agora tendo
um microfone para compartilhar o espaço de fala, não mais concentrada no Professor Radamés.
Cada falante dirige-se à banheira, onde está o pedestal: o que ali se fala, as palavras veiculadas
pelos personagens, deságua no ralo do aparelho sanitário. Importa nessa cena o durante a fala,
pois a falta de nexo de O púcaro búlgaro quase desobriga os espectadores-ouvintes de reter a
informação que contém.

Por outro lado, a alternância entre os falantes, que ora concordam ora discordam uns
dos outros, oferece à cena algum dinamismo, incitado principalmente pelos conflitos entre as
ideias propostas, mediadas por Hilário, o presidente da expedição. O espaço democrático da
fala, além de apresentar a diversidade de pontos de vista, permite a cada ator apresentar mais
singularmente seus personagens, enquanto os demais e o público são seus ouvintes e
150

espectadores. O microfone, objeto-recurso cada vez mais recorrente no teatro contemporâneo,


confere a essas falas um caráter de autoridade, configura o espaço da fala individualizada,
particularizada. Todavia, o microfone não consegue restringir a fala à sua amplificação, visto
que em diversos momentos os personagens começam a dizer de onde estão no espaço cênico,
encaminham-se a ele, dizem, saem e a fala segue contínua, dividindo-se entre o acústico e o
elétrico amplificado.

Na terceira cena, para impedir que o Professor Radamés incorra em novo monólogo
histórico-científico, Hilário toma a palavra, literalmente, buscando o pedestal e o microfone e
levando-os mais perto da mesa onde se encontram Pernacchio e professor de Bulgarologia.
Aqui se observa a mesma estrutura da segunda cena, em que o espaço de fala é compartilhado,
nesse caso “tomado”, pois cada falante se apossa do microfone e leva-o para outro lugar no
espaço cênico, conferindo mobilidade à cena. Roubar a fala nessa cena explicita o debate de
ideias entre os personagens, agora menos civilizados e mais anárquicos. O professor Radamés
chega a levar o pedestal e o microfone para a privada: nem para realizar necessidades
fisiológicas o personagem abre mão de seu espaço de fala e suas convicções.

Ao iniciarem a discussão sobre os meios de transporte e o roteiro da expedição, o


Professor ocupa novamente o espaço do monólogo, traçando para os presentes o roteiro de toda
a viagem (ida, percursos e volta), numa segunda excitante performance de Gillray Coutinho. Se
o espectador acreditou que ele já tinha oferecido seus recursos à exposição desse personagem
falastrão, enganou-se: o vigor e o talento do intérprete se sobrepõem à exaustão do texto. Chama
à atenção os espaços sanitários (privada, banheira), que costumam ser associados à
introspecção, ao pensamento e à reflexão, e que no espetáculo aparecem como espaço de fala
em coletivo, publicizada, amplificada pelo microfone: tudo está exposto aos olhos e ouvidos do
público e dos demais personagens que estão em cena. Insere-se aqui a performance de Chico
Diaz em O que diz Molero, na longa cena37 em que o Rapaz realiza várias viagens pelo mundo,
brincando com o grande globo terrestre numa alusão-homenagem a’O Grande Ditador de
Chaplin. Percebe-se a construção de um espaço onde a ação de digressar é a tônica dessas cenas,
em que a viagem se realiza em plenitude, incitando a imaginação do espectador. Sem sair do

Corresponde no romance a 14 páginas escritas, mas não se sabe se e o quanto do texto foi suprimido, pois no
37

DVD do espetáculo, que contém cenas isoladas, essa não é exibida integralmente.
151

lugar, o texto e o elenco podem levar o público a passear por distintas paisagens sonoras e
visuais (mentais) e pela (des)construção de sentidos.

Na sessão terapêutica de O púcaro búlgaro, Hilário (Ísio Ghelman) é convocado pelo


Psicanalista a dizer tudo o que lhe vier à cabeça sem escrúpulos. Ele então, como um recipiente
repleto de palavras, vai jorrando-as ao interlocutor: “Escrúpulo. Cabeça. O oceano é azul. Que
calor está fazendo. A morte de Danton38. As metamorfoses de Ovídio. O senhor é uma besta.
Com quantos paus se faz uma canoa? Vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro. As
laranjas da Califórnia são deliciosas […]”. Um pouco adiante, as sonoridades são incitadas
pelos próprios jogos de palavras de Campos de Carvalho que abusa de trocadilhos, criação de
palavras e homofonia: “É a tua, mulher nua, vou pra Lua, jumento, pára-vento, dez por cento,
Catão, catatau, catapulta que o pariu, catástrofe, caralho, […] as sulfas e as para-sulfas,
diametilaminatetrassulfonatosótico, porra de merda, argentino, argentário, argentículo,
testículo […]” (CARVALHO, 2004: 328). Em outro excerto, o recurso de linguagem da
homofonia é assumido por Campos de Carvalho: “Gritei delicadamente que se ele se retirasse
por causa de uma simples ata, que afinal não ata nem desata, seu ato seria tomado como um
desacato, dele e do seu gato, e não mais haveria o seu prato, no dia imediato, diante do suflê de
batata. Este último argumento soou decisivo.” (CARVALHO, 2002, 363, grifo meu). Por
último, no campo sonoro, a trilha musical intervém pontualmente nas passagens de cena,
mixando o bossa-novista João Gilberto a sons de relógio e maquinarias e também músicas que
remetem à ancestralidade, que se supõe serem de origem búlgara, formando uma intricada rede
melódica e harmônica.

Após a realização de três espetáculos sob a alcunha de romance-em-cena, pergunto a


Aderbal Freire-Filho se haverá outra investida nessa linguagem. Ele traz para a discussão a
montagem de Moby Dick, que encenou em 2009 e onde exercitou uma profunda liberdade na
dramaturgia e encenação, como um pós-romance-em-cena. Independente da corpulenta
extensão do romance de Herman Melville, Aderbal se propôs outro exercício, em que atuou
mais verticalmente como dramaturgo, escrevendo cenas, adaptando, promovendo recortes e
colagens. Em Moby Dick, o encenador investe menos no recurso da ilustração cênica do texto

38
Curiosamente, trata-se da peça de Büchner que Aderbal Freire-Filho encenou em fins dos anos 1970, o que
configuraria uma auto-homenagem se não estivesse no texto do romance.
152

para investigar modos de constituição do imaginário do público. Tratam-se de quatro atores que
representam 80 homens embarcados em alto mar e ainda uma baleia.

Por conseguinte, avançou mais ainda na liberdade de sua poética com Depois do filme,
onde sozinho interpreta inúmeros personagens e abre portas à figura do narrador. Durante o
período do romance-em-cena insistiu na ausência mais explícita do narrador, porque acreditava
que somente assim conseguiria atingir sua proposta cênica, apesar de parecer um preconceito.
Entretanto, em seu solo, Freire-Filho interessou-se mais explicitamente pela figura do
narrador39, o que parece ter ampliado suas possibilidades cênicas e de atuação: “É verdade que
à medida que ele vai andando, o narrador e o personagem vão se confundindo um pouco, mas
tem o narrador. E num próximo romance-em-cena pode ter um narrador, em algum momento
ou em alguma coisa […]” (FREIRE-FILHO, 2011).

Quanto aos planos para o futuro, Aderbal confessa viver um momento de dúvidas40:
deseja escrever outro monólogo para si, há a possibilidade de encenar outro romance de João
de Minas com o Grupo Galpão (com quem tem sempre contato, por meio de encontros e
workshops, mas ainda não concretizaram nenhum trabalho) e, principalmente, o temor da idade
(completou 70 anos em 2011). Ele não se refere ao aspecto físico, mas o cultural, pois almeja
escrever muito mais e atuar, sua meta primordial. Há que se reconhecer a intensa produção e
criação de espetáculos que Aderbal vem desenvolvendo desde a sua estreia oficial como
encenador, em 1972, conquistando mais de quarenta anos de carreira praticamente dedicados
ao palco, contando com mais de cem montagens no currículo e inúmeros prêmios, além de ser
o responsável pela inventividade do romance-em-cena.

39
A figura cênica do narrador no romance-em-cena já havia apontado em O púcaro búlgaro.
40
O marco temporal refere-se ao nosso encontro para a entrevista em 2011, visto que todo o texto, informações
biográficas e curriculares foram atualizadas para esta publicação em julho de 2015.
153

JOÃO BRITES, O TEATRO O BANDO E OS ROMANCES ENCENADOS

Quando se pronuncia o nome de João Brites em Portugal imediatamente o que vem à


tona é outro nome, o do Teatro O Bando (e vice-versa), coletivo que fundou e lidera desde o
fim do regime salazarista que culminou com a emblemática Revolução dos Cravos, em 1974.
Separar um nome de outro na investigação que empreendo revelou-se de alguma forma pouco
produtivo: o encenador e seu grupo estão profundamente amalgamados na construção de
poéticas reconhecidamente singulares no contexto das artes cênicas portuguesas das últimas
décadas do século XX. Pronunciar o nome de Brites e d’O Bando em terras brasileiras requer,
no entanto, informações breves sobre o teatro moderno e contemporâneo produzido em
Portugal, pois são praticamente desconhecidos por aqui. Segue-se uma exposição sobre o Teatro
O Bando nos aspectos artísticos, éticos e políticos, a partir de que se busca destacar a figura de
João Brites, sua biografia, pensamento e poética cênica. Finalmente, da extensa obra produzida
por ele, destacam-se encenações de romances, realçando o gosto do grupo pela narrativa e pelo
trabalho com textos não escritos originalmente para o palco. A tarefa é descrever e analisar
procedimentos cênico-dramatúrgicos, ainda que se perceba que cada espetáculo dirige-se à
construção de um universo particular, sustentado por princípios que orientaram a construção da
linguagem do grupo ao longo destes 41 anos de existência.

Breve panorama da cena portuguesa no século XX e início do XXI: o moderno tardio e o


contemporâneo sem fronteiras

No século XX, que se inscreveu na História por seus inúmeros avanços tecnológicos,
reviravoltas políticas e econômicas e disputas de regimes, além das diversas guerras que
dizimaram milhões de pessoas, a sociedade portuguesa viveu durante 48 anos uma ditadura
(Estado Novo) sob o controle de António de Oliveira Salazar e no final assumida por Marcelo
Caetano, quando da Revolução dos Cravos. O percurso político de Salazar iniciou-se em 1926
com o cargo de Ministro das Finanças, alcançando um novo patamar com a instituição do
Estado Novo em 1933, cujo autoritarismo marcou-se por duas frentes principais, a propaganda
154

e a repressão. Sustentado pelo corporativismo estatal, o regime salazarista investiu em um


nacionalismo econômico, em cujas bases estavam o protecionismo e o isolamento do país. Tal
contexto imprimiu sobre Portugal um fechar-se em si e a censura rígida dirigia-se ao controle
das massas populares sob a vigília do Estado que cerceava a liberdade de expressão. As artes e
os artistas, que primam de forma abrangente pela livre expressividade, não escaparam do cerco
do Governo.

Ao contrário, a repressão do Estado Novo no campo das artes e da cultura sustentava-se


na dicotomia entre o espírito (o bem, a alma, o sonho, a limpeza) e a matéria (o mal, a carne, a
realidade, a sujeira). António Ferro, responsável pela propaganda do regime, desenvolveu a
“política do espírito” que exigia das artes uma nova postura a serviço da “Campanha do bom
gosto”, ou seja, que os ideários do salazarismo pudessem ser difundidos por meio de obras
artísticas em caráter moralizante. O poder autoritário deveria ser maquiado por princípios como
a beleza e a alegria, explorados devidamente em cerimônias oficiais, ostentando a nobreza e o
aparato do Estado. As artes, portanto, são tratadas por António Ferro como instrumentos de
sedução coletiva, visando constituir uma vida mais “saudável” do povo português: “Ou seja,
para serem bem vistas pelo Estado Novo, as formas artísticas estarão proibidas de se
debruçarem demasiado sobre a realidade social do país que deverá sempre ser apresentado
como sendo um universo harmonioso e alegre.” (SANTOS, 2008: 62).

Para o teatro isso se traduziu no privilégio da palavra sobre o corpo do ator ou, melhor
dizendo, as partes baixas do corpo passavam a ser reprimidas para dar relevo às superiores
(abdômen e cabeça), o que vai refletir numa postura “palavrista” do teatro português no Regime
do Estado Novo. A perda da liberdade física e intelectual imposta aos atores, tendo o
Conservatório (atual Escola Superior de Teatro e Cinema – ESTC) como principal aparato nessa
formação, convergia-se numa postura declamatória, uma performance vocal estilizada e
artificial: o belo devia se sobrepor ao verdadeiro.

O salazarismo buscava no passado heróico, imponente e grandioso o emblema principal


para o seu nacionalismo mitificado e valorizava ainda a ingenuidade e a simplicidade do
ruralismo e das aldeias, em que a ideia de humildade do povo dirigia-se, nas entrelinhas, à
disseminação do povo português como plácido e submisso, propício ao controle e influência
das mentalidades. Dessa forma, o Estado Novo tem a Arte (permitida, oficial) como adorno,
como embelezamento da realidade e como artifício de propaganda do Governo. O teatro, por
sua vez, ao prezar o conflito entre oposições e, consequentemente, estimular a reflexão, foi das
155

manifestações mais perseguidas e confiscadas pelo Regime. A censura não autorizava nenhum
espetáculo cujo texto colocasse em causa o sistema. O resultado, segundo Graça dos Santos, é
que Portugal tornou-se o país com menor porcentagem de textos nacionais encenados, o que
reduziu também a frequência do público às salas de exibição. Certamente, a força do rito
comunitário oferecida pelo teatro era temida pelo Regime, que acentuou a constituição de um
teatro acéfalo, por vezes divertido e facilmente digerível.

Para Rui Pina Coelho, crítico, pesquisador e professor da ESTC, o teatro português no
século XX até 1974, quando finda o salazarismo, esteve atrasado em relação a muitas
vanguardas modernas europeias. O período ditatorial abarcou uma primeira fase singularizada
pelo textocentrismo, pela busca de técnicas de declamação, postura e dicção do ator. Duarte Ivo
Cruz salienta que a dramaturgia portuguesa do século XX marca-se por uma variedade de
correntes que coexistiram e dominaram, umas mais que as outras, como o historicismo e o
simbolismo. Entretanto, o realismo naturalista, que retardadamente chegava a Portugal no início
do século XX, “encontra […] razões poderosas de inspiração. O ambiente é-lhe propício, pois
a crise de mudança de regime [da Monarquia à República] […] determina uma inquietação que
o teatro soube reproduzir.” (CRUZ, 1983: 137).

Coelho corrobora com a percepção de que o movimento de renovação do teatro


português a emergir no Pós-guerra tem seu ideário já apontado no início do século, com Araújo
Pereira à frente do Teatro Livre (1904) e Teatro Moderno (1905), amparados pelas proposições
naturalistas de Antoine no seu Théâtre Libre. Portanto, pontua-se que o teatro português,
principalmente de 1926 a 1974, menteve-se na esfera de certa tradição realista-naturalista, ainda
que surgissem importantes nomes de sua dramaturgia que propiciaram o rompimento ao propor
o simbolismo, o expressionismo etc. Alfredo Cruz, por exemplo, foi considerado o responsável
por um dos maiores escândalos do teatro moderno por Gladiadores (1934), texto que investia
no Expressionismo, estética praticamente desconhecida em terras lusas até a data de sua estreia,
ou como observa a professora Maria João Brilhante: “Isolado da Europa, o país falhara o
encontro com as experiências vanguardistas da 1ª metade do século XX, com a exceção pouco
consequente do simbolismo de Pessoa e do futurismo de Almada Negreiros.” (BRILHANTE,
2009: 126).

O pós-Segunda Guerra Mundial, ainda que Portugal não tenha participado efetivamente
do confronto, implicou numa maior abertura política e um abrandamento da censura salazarista.
Esse período marcará o teatro português pelo desejo de renovação e atualização frente às
156

vanguardas europeias na linguagem teatral, que passam a investir em experimentalismos, ainda


que efêmeros, isolados e realizados por artistas amadores. Rui Pina Coelho, em Casa da
Comédia (1946-1975) – um palco para uma ideia de teatro, percebe nessa marginalidade o
espaço ideal para o florescimento daquele momento do teatro lusitano e de coletivos teatrais,
cujos princípios norteavam-se pela “busca da simplicidade formal, a moralização da classe
profissional, a não subjugação a interesses comerciais, a reivindicação da figura do encenador,
a subordinação ao texto, os intuitos didácticos, o regresso à essência do teatro.” (COELHO,
2009a: 18).

Amparado por referências europeias anteriores a esse momento, o teatro português


clamará por um segundo momento de renovação nas décadas seguintes, de 1960 a 1970. Na
tentativa de driblar a censura e intervir politicamente, houve quem preferisse o teatro do
absurdo, pois as obras de Brecht, por exemplo, estavam proibidas. Os experimentalismos, que
vão se seguir na segunda metade do século XX em Portugal, têm reforço, sobretudo, com as
propostas de artistas amadores, destacando-se a Casa da Comédia, de Fernando Amado, cujas
expressivas experiências contemplavam montagens de textos clássicos concomitantemente à
apresentação de uma moderna dramaturgia portuguesa. Multiartista, Amado defendia a
renovação da cena e da escrita teatral em seu país e desejava confrontá-las com a produção de
outros Estados com o intuito de tirar Portugal do isolamento e do ostracismo artísticos.

Com o fim do regime salazarista, deposto pela Revolução dos Cravos, a renovação do
teatro português pareceu alcançar melhores patamares. A abertura política pós-1974 apontou o
início de uma nova fase, segundo Rui Pina Coelho, em que emergiram movimentos de teatro
independente, como os grupos Teatro da Cornucópia, A Barraca, Teatro da Comuna, O Novo
Grupo, Teatro Aberto e Teatro O Bando. Sobre esse último, já se adianta que sua constituição
foi fruto da restituição da democracia em Portugal a partir de um movimento de regresso de
artistas e exilados políticos como João Brites, no caso dO Bando, que trouxeram consigo novas
perspectivas e propostas para o teatro feito em terras lusas.

Não apenas o teatro português dirigia-se ao encontro de sua atualização, mas também a
dança contemporânea indicou a vanguarda das artes cênicas em Portugal nos anos 1980. No
fim do decênio anterior, o Ballet Gulbenkian passou a ser dirigido por Jorge Salavisa e
constituiu um espaço de experimentações e formação de bailarinos e coreógrafos, que mais
tarde se destacaram no cenário local e internacional como Olga Roriz, Vera Mantero,
Maragarida Bettencourt, Paulo Ribeiro e Rui Horta. Alguns deles emigraram para os Estados
157

Unidos e outros países europeus com o objetivo de experenciar novas estéticas e aperfeiçoar a
aprendizagem, enquanto outros se mantiveram em Portugal experimentando linguagens
autônomas, como Elisa Worm, Madalena Victorino e Paula Massano.

A década de 1990, por esse processo de formação, expandiu e consagrou a dança


contemporânea portuguesa, quando regressaram artistas que estavam no estrangeiro, trazendo
novas concepções, discussões, uma nova cultura coreográfica, mais transversal e
interdisciplinar, cenário em que emergiram referências como Clara Andermatt. A singularidade
de cada criador não corroborou para se pensar numa (única) estética vigente, a não ser por uma
nova postura frente ao corpo e à dança, no interesse pelas atividades motoras cotidianas, na
intensidade de um treinamento físico mais adequado às novas exigências coreográficas. Ainda,
buscava-se uma independência de criação na combinação entre diferentes linguagens (texto,
narrativa, artes plásticas e performance) e assinalava-se um ceticismo frente às companhias de
dança institucionais, conforme se observa em Movimentos presentes – Aspectos da dança
independente em Portugal, de Cristina Peres.

Ao apontar aspectos da dança contemporânea portuguesa deseja-se apenas recordar que


as artes cênicas pós-1970 não impõem limites estéticos. As fronteiras de linguagem entre teatro,
dança, artes visuais e multimídia abrem seus trajetos para novas perspectivas, porque as
pesquisas de um passam a contaminar as de outro. Quanto ao teatro português, a partir da década
de 1980, há inúmeros artistas que vão reconectar Portugal à Europa do ponto de vista artístico,
abrindo caminhos para as gerações vindouras. Esses grupos também refletirão uma dramaturgia
oriunda de textos não escritos para teatro ou mesmo escritas em coletividade. Mickael de
Oliveira, dramaturgo e pesquisador teatral, em Para uma Cartografia da Criação Dramática
Portuguesa Contemporânea (1974-2004)…, esclarece que o período pós-Estado-Novo e a
Guerra Colonial assinalaram “a figura do encenador-autor como pilar do tecido teatral, a
liberdade de expressão e o financiamento para poder obter um repertório com menos
contingências sócio-económicas e com uma liberdade artística maior.” (OLIVEIRA, 2010: 34).
Maria João Brilhante reflete sobre o impacto em médio prazo da atuação dos grupos pós-
Revolução dos Cravos:

Década e meia após a Revolução e a explosão das mais variadas formações teatrais,
bem como a inevitável conquista e hegemonia do território por parte de algumas delas
– Comuna, Cornucópia, Cendrev, Companhia de Teatro de Almada, Novo Grupo,
Teatro o Bando – os anos 90 fazem, portanto, nascer essa nova geração armada de um
158

imperioso desejo de “matar o pai” na figura do encenador/diretor consagrado e


aparentemente detentor de poder, ou de subverter as regras de criação, impondo
produções híbridas, onde o texto dramático deixou de estar no centro, recusando
representar o mundo ou transmitir uma mensagem política, inscrevendo nessas
produções uma “pulsão” conceitual, nem sempre bem compreendida. (BRILHANTE,
2009: 128)

Pode-se pensar que as reivindicações estéticas da cena contemporânea passaram a


contaminar verticalmente alguns grupos e artistas como Colectivo 84, Teatro da Garagem,
Teatro Meridional, O Cão Solteiro, Chapitô, Patrícia Portela, Tiago Rodrigues, Teatro do
Vestido, Visões Úteis, Teatro Praga, José Maria Vieira Mendes, Primeiros Sintomas e Artistas
Unidos. Oliveira reconhece a projeção e destaque nacional que a nova geração de dramaturgos
da década de 1990 alcançou. Isso se deveu muito à geração precedente, composta por
encenadores e artistas já bem experientes e consagrados. Por sua vez, a safra de artistas
emergentes na primeira década do século XXI cresceu em um país já sem fronteiras, integrado
à Comunidade Europeia, com o trânsito livre para intercambiar e confrontar propostas,
proporcionando-lhes uma visão mais cosmopolita do teatro contemporâneo.

Pina Coelho destaca o espetáculo Hipólito, dramaturgia de Mickael de Oliveira e direção


de John Romão (integrantes e fundadores do Colectivo 84) como um dos expoentes da nova
linhagem de artistas oriundos da revolução tecnológica e da comunicação virtual. A
acessibilidade à informação, os novos suportes midiáticos e a virtualidade impõem novos
paradigmas para a cena contemporânea, impulsionando seus agentes a experimentalismos de
toda ordem, convergindo ainda essa prática para uma relação mais estreita com a reflexão
teórica. Tudo isso em direção às questões mais pulsantes da dramaturgia pós-moderna:

Em Portugal, estas novas tipologias de escritas são recentes e surgem, na sua maioria,
já no século XXI, com autores como André Murraças, Tiago Rodrigues (Mundo
Perfeito), Visões Úteis, José Maria Vieira Mendes (Teatro Praga), Mickael de Oliveira
(Colectivo 84) e outros, em que todos eles fornecem materiais textuais para um
determinado espectáculo (o seu ou de um encenador), para uma determinada equipa e
para um lugar performativo específicos. (OLIVEIRA, 2010: 55)

Durante o perído de estágio de doutoramento em Portugal, assisti a espetáculos que se


inserem nessa novíssima cena portuguesa, entre os quais se destacam Chegadas do Teatro do
Vestido e direção de Joana Craveiro, O arco da histeria de John Romão, Rua de dentro, direção
159

de Sara de Castro pelo Teatro O Bando, Natureza morta de Dinis Machado, Han shot first de
Diogo Bento e Inês Vaz, Guintche de Marlene Monteiro Freitas e especialmente Só os idiotas
querem ser radicais de Mickael de Oliveira e John Romão e o evento Ciclo de Nova
Dramaturgia Contemporánea, ambos realizados pelo Colectivo 84. Brilhante observa que para
essa geração de novos criadores

É também diferente a sua relação com o discurso crítico e teórico, já que são cada vez
mais fluidas as fronteiras entre os que fazem e os que pensam, e também porque eles
próprios alimentam um circuito de reflexão, mesmo se marginal, que funciona não
raras vezes como meio de legitimação da sua criação. Estão conscientes de que o seu
trabalho criativo tem de se escudar num pensamento contemporâneo para o qual
contribuem.” (BRILHANTE, 2009: 129)

Pôde-se verificar, de forma geral, que a narratividade e os aspectos performativos,


visuais, multimídia e corporais têm contaminado essa produção contemporânea, cada uma
desenvolvendo-os à sua maneira. Confirma-se a percepção de uma dramaturgia cuja
textualidade é fragmentária por excelência, contraposta às ideias tradicionais de progressão da
ação cênica em direção a uma linearidade coesa. A construção de sentido pode ser percebida
como uma dilatação do palco rumo à percepção por parte do espectador, cada vez mais
integrado ao acontecimento cênico. Por outro lado, as gerações que emergiram a partir de 1974,
dispostas à renovação do teatro português, assinalaram, cada uma à sua maneira, a atualização
das artes cênicas no seu período de atuação mais vertical. Dentre os precursores desse
movimento, passo a dedicar a atenção a João Brites, fundador do Teatro O Bando, por sua vez
já contextualizado no panorama histórico e artístico das artes cênicas portuguesas do século XX
e início do XXI.

João Brites e O Teatro O Bando: o estar em grupo como modus vivendis, artístico e político

Antes, sobretudo como cenógrafo, eram as mãos que faziam,


e descobriam fazendo, o conteúdo que me predispunha a partilhar.
Agora tudo se passa muito mais na mente, mas o que imagino
continua a ser elaborado, fazendo e desfazendo, como se
fossem as mãos que continuassem a trabalhar.

João Brites
160

Assim João Brites define sua prática como dramaturgo e encenador. Artista plástico de
formação estudou pintura e gravura na Ecole Nationale Superieur des Arts Visuels – La
Cambre, em Bruxelas, onde viveu o exílio político durante oito anos, de 1966 a 1974. Nesse
período, com outros artistas e amigos, experenciou um modo de vida em comunidade,
contagiada especialmente pelas manifestações de maio de 1968 na França, que desencadeou
uma greve geral de estudantes e trabalhadores, alcançando proporções revolucionárias. Nessa
altura, incitada por ideologias esquerdistas, comunistas e anarquistas, a maioria dos
participantes dessa insurreição estava decidida contrapor aos valores sociais antiquados novas
ideias sobre sexualidade, educação e prazer. Da França, espalhando-se pelo restante da Europa,
as manifestações buscavam alterar as relações entre raças, sexos e gerações e, nas décadas
posteriores, “ajudaram o Ocidente a fundar ideias como as das liberdades civis democráticas,
dos direitos das minorias, e da igualdade entre homens e mulheres, brancos e negros e
heterossexuais e homossexuais.” (PIACENTINI, 2011).

Portanto, acredita-se que estar na Bélgica em fronteira com a França e ser exilado
político do regime salazarista potencializaram as convicções político-democráticas e artísticas
de João Brites. Ele revelou que, no princípio, viviam juntos em comunidade numa casa em
Bruxelas, dividiam as tarefas e todos produziam seus trabalhos, cuja remuneração também era
compartilhada. Tudo o que cada um ganhava era colocado num fundo comum e que a este todos
podiam recorrer para as suas compras pessoais sem ter de justificar as respetivas despesas.
Entretanto, com o passar do tempo, um dos integrantes começou por destacar-se
financeiramente e necessitava produzir mais o próprio trabalho, impedindo-o de contribuir com
os afazeres domésticos, o que gerou uma série de conflitos e acabou por desfazer a comunidade.
O breve relato assinala, por antecipação, a ética do partilhar que acompanha a biografia pessoal
e artística de Brites e que será o princípio norteador do Teatro O Bando.

Nascido em 1947 em Torres Novas, cidade pertencente ao distrito de Santarém e


localizada na região central de Portugal, João Brites tem uma atuação diversificada como artista
plástico, dramaturgo, encenador, além de atuar como professor da Escola Superior de Teatro e
Cinema de Lisboa. Realizou exposições individuais e coletivas, há obras suas expostas em
museus portugueses e estrangeiros e já publicou vários artigos sobre teatro e os processos de
construção de espetáculos, nos quais desenvolve um discurso teórico-prático sobre seu trabalho.

Sua cidade natal foi conquistada em 1148 por Afonso Henriques, cuja figura será o
objeto principal de um espetáculo homônimo dO Bando com dramaturgia, espaço cênico e
161

encenação de João Brites, em cartaz desde sua estreia em 1982 41. Com atual população em
torno de 36 mil habitantes, Torres Novas tem como principal atrativo histórico um castelo
medieval que se avista logo à entrada da cidade. Em entrevista, Brites recorda sua infância
humilde relacionando-a à escolha do romance Gente feliz com lágrimas, de João de Melo,
encenado por ele no Teatro O Bando em 2002 e que será um dos objetos de análise desta
pesquisa:

[…] Existem pormenores no romance que me tocam muito. A minha mãe era
professora primária… E eu lembro-me das escolas antigas, dos meninos descalços,
lembro-me do cheiro da madeira, das reguadas, lembro-me daquelas escolas no
interior do país, onde os meninos […] no frio do inverno, tinham de deixar as botas
à entrada para não sujarem com terra e com bosta de bois o assoalho de madeira lavado
semanalmente a sabão amarelo. (BRITES, 2011)

O envolvimento posterior com as artes e o teatro e a formação acadêmica em Bruxelas


não destituíram suas raízes interioranas, com suas adversidades e excelências, que parecem tê-
lo tornado um homem profundamente ancorado nas tradições e nos costumes de seu povo.
Pode-se descrever João Brites como uma árvore muito alta e de profundas raízes, pois
simultaneamente mantém seus pés mergulhados na rudeza da terra, na memória, na história e
na cultura e sua mente elevada à sensibilidade, à erudição e ao fazer artístico como modo
transformador individual e social.

Trata-se de um artista que dispõe de um rico conhecimento sobre o humano, sobre a


vida e o lugar das artes na sociedade, que tem gosto pelo estar entre as pessoas e sua
generosidade parece vir dessa apetência por compartilhar, por acreditar que só se pode ser
estando junto aos outros, dividindo espaços, práticas, informações e conhecimentos.
Comendador da Ordem do Mérito desde 1999, tem estado à frente do Teatro O Bando desde a
sua fundação, em 1974, sendo também responsável pela encenação de 81 das 121 criações já
realizadas: não por acaso a descrição de sua personalidade artística, suas convicções e modos
de fazer podem ser metamorfoseados com os do grupo ao qual pertence.

Ao retornar a Portugal com o fim do período de degredo, João Brites fundou de forma
independente o Teatro de Animação O Bando ao lado dos companheiros Cândido Ferreira,

41
Afonso Henriques, criado a partir de um poema épico de tradição oral e crônicas medievais, é o espetáculo que
está há mais tempo no repertório do grupo, tendo sido alterado seu elenco ao longo desses anos.
162

Carmem Marques, José Janeiro, Jorge Barbosa e Jacqueline Tison, essa a única estrangeira do
grupo. Artistas desconhecidos em seu país, estavam muito influenciados pelo teatro de rua de
Bruxelas, teatro operário de Paris, teatro universitário de Lisboa. Não eram exatamente
profissionais, mas sim um grupo de artistas que desejava intervir na construção de um novo
país e que constatou uma carência absoluta de animações 42 e espetáculos voltados para as
crianças. Portanto, João Brites e Jacqueline Tison esclarecem, no pedido de subsídio à Direcção
Geral de Acção Cultural (DGAC) em julho de 1974, “o quanto a juventude é importante na
edificação de um país novo e como nossa criança foi oprimida pelo fascismo de duas gerações”.
Destacam-se as formulações marxistas que originarão os princípios do grupo e sua capacidade
de interferir e propor mudanças na situação política do país: a militância percebeu no 25 de
abril uma “situação histórica relativamente favorável”, cujos propósitos panfletários
encontraram na animação voltada para crianças e na itinerância uma “aproximação do público
pelas margens” (SERÔDIO, 1994: 142).

A animação, o teatro e a rua: princípios fundadores do grupo

Percorrendo vilas, aldeias e cidades de Portugal, buscando afetos com a cultura popular,
o Teatro O Bando produziu os primeiros espetáculos contrariando a tendência de um teatro
infantilista e tentando esquivar-se de um tipo de espetáculo que tratasse as crianças de forma
paternal ou altruísta. Partiam de animações culturais e do desejo de educar o cidadão por meio
da pedagogia das artes, desenvolviam com as crianças atividades de jogos, incluindo os
dramáticos e dramatizações que ao fim do processo resultavam em espetáculos de teatro. Nessa
perspectiva, intentavam estimular na infância o espírito crítico por acreditar que as crianças
seriam capazes de transformar sua realidade e de organizar-se coletivamente. Para Ana Pais
esse público preferencial, no início, foi responsável pela obsessão do grupo pela abstração, por
“outras formas de ver e de construir universos simbólicos que permitissem a reunião afetiva e
social das comunidades” (PAIS, 2009: 38). João Brites corrobora essa percepção ao lembrar-se

42
Inicialmente, O Bando desenvolvia mais animações que teatro propriamente dito: seu público eram as crianças,
seu espaço de atuação era o campo e não as cidades. As animações tratam de atividades lúdicas de recreação, jogos,
histórias, música, bonecos, enfim, em que os artistas privilegiam uma comunicação direta com o público, estando
por vezes mais próximo do contador de histórias que do ator. No caso d’O Bando, estavam associadas à busca das
raízes culturais do país e integradas em projetos de descentralização, em escolas e associações culturais.
163

dos primeiros anos de atividades dO Bando, em que todos os integrantes contribuíam e


colaboravam:

Tudo tinha de ser feito rápidamente. Era uma espécie de teatro de guerrilha. O que era
preciso era estar no terreno, aproveitar aquele momento histórico irrepetível, numa
relação com o povo em ebulição. Tudo parecia ser possível. Já calculávamos que
depois existiria o apaziguamento e entraríamos outra vez numa espécie de rotina,
menos propícia aos movimentos de mudança. Nessa altura, o texto era experenciado
e fixado coletivamente. Os cenários eram construidos à pressa e não eram bem feitos,
e nós lá íamos por aí afora, aos saltos dentro de uma velha carrinha. O que nós
queríamos era estar com as pessoas, compreender as pessoas, para que o nosso teatro
podesse estar com elas. Não vínhamos com ideias feitas. (BRITES, 2011)

Ao desenvolver uma linguagem própria, O Bando entende que a “a arte só tem qualidade
para as crianças se tiver qualidade como produto artístico”, como consta em texto do programa
do espetáculo Nós de um segredo (1990). Do “teatro de animação” e “teatro para crianças”, o
grupo encaminhou-se para amadurecer o pensamento e a práxis de um “teatro para todos” ou
“teatro comunitário”. O modo não “infantil-ista” d'O Bando de tratar a criança de alguma forma
tornou seus espetáculos acessíveis a todas as idades, o que reforça a ideia de dirigir-se a uma
comunidade: “O nosso teatro tem de ser acessível à infância porque quer ser popular. […] Ao
trabalharmos para a infância, exigimos das nossas próprias obras que elas sejam acessíveis a
todos” (TEATRO O BANDO, 1980: 21). Oito anos depois, explicitava a substituição dos
termos:

Fazer Teatro Comunitário, para todos maiores de 6 anos, obriga-nos, sim, a contar em
cada representação com tudo o que o espetáculo tem de irrepetível, de efémero, de
teatral. Cada interveniente tem que saber responder a um público variável e
heterogêneo, porventura mais imprevisível, mais disponível, com reacções e opiniões
menos estereotipadas e, por isso mesmo, de certa forma, mais irreverente que o
público habitual das salas de teatro da cidade. (TEATRO O BANDO, 1988: 31)

Quando recebeu em 2009 o prêmio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro


(APCT) pelo monumental espetáculo Saga – ópera extravagante, João Brites estendeu a
condecoração aO Bando e comentou no discurso de agradecimento que a fundação do grupo
relacionava-se à sua ruptura com a pintura e a gravura, pois “já não me revia muito naquele
papel de eremita, afastado dos movimentos de massas. Gostava de ter uma relação mais especial
164

com as outras pessoas – os públicos e os meus parceiros. E achava que a intervenção política e
estética era importante” (BRITES in CAETANO, 2011). Portanto estar em itinerância e com as
pessoas, interagir e trocar, promover um encontro entre artistas e público foram os primeiros
alicerces que caracterizaram o grupo.

Em 1977, os integrantes dO Bando estiveram em Vila Real de Trás-os-Montes e


vivenciaram uma experiência que definiu profundamente para eles a relação entre arte e vida,
entre artista e público. O processo intensificou a atenção do grupo para o ambiente rural e a
cultura popular e ressaltou a importância da noção de festa como forma de integração de uma
coletividade (bandas, cantos, procissões, arraial, jogos, brincadeiras). José Carretas analisa a
decisiva influência de Vila Real para O Bando em relação às experiências de exílio de seus
fundadores: “A influência ‘belga’, surrealizante, vanguardista, fundiu-se com um gosto rural,
ingénuo, popular, tradicional. O resultado estético tem sido, assim, muitas vezes ingenaïf 43.”
(CARRETAS, 1994: 208, grifo como no original).

O período de itinerância (postura que o grupo não abandonou, mesmo tendo se fixado
numa sede), de contato mais profundo com o meio rural e o conhecimento in loco da cultura
popular tornaram-se decisivos para construir e consolidar sua identidade, criando um estilo de
fazer teatral que se liga a uma relação de proximidade e confronto com o espectador. Trata-se
de fazer espetáculos com as pessoas e não para elas, iniciativa que vai encontrar seu sentido de
unidade na ocupação de espaços não convencionais (ruas, praças, edifícios, castelos,
miradouros etc.), outro componente de base do grupo.

Inscritos nos rituais populares, tanto a morte quanto o carnaval são capazes de promover
a reunião entre as pessoas, recuperando um processo social de participação e vivência em
conjunto. Humanizar as relações através do teatro e do encontro entre artista e público pode ser
compreendido como uma ação efetiva contra os valores tecnocráticos e massificados da
sociedade contemporânea. Maria Helena Serôdio percebe nessa apropriação da cultura popular
uma retórica rabelaisiana, que Bakhtin havia identificado em sua obra, pois a ideia de festa
conduz a duas reflexões que tiveram impacto na prática artística do grupo:

43
Junção feita pelo autor da citação do adjetivo ingênuo ao substantivo naïf, que originalmente designa um tipo
de arte moderna e primitiva, produzida de forma amadora, mas cujas obras não implicam numa qualidade inferior.
De forma geral, a arte naïf caracteriza-se pela simplicidade e pela falta de alguns elementos ou qualidades presentes
nas artes produzidas por profissionais. No caso da palavra ingenaïf, ele parece dar relevo à ingenuidade e
simplicidade da experiência dO Bando em Vila Real de Trás-os-Montes. O próprio grupo assume uma
característica naïf quanto à sua dimensão alegória, apresentada no Manifesto 2 (1988).
165

uma é a de fazer radicar o teatro (porque arte) à vida, ao trabalho e ao prazer, aí


descortinando a sua função original a que era urgente devolvê-lo; a outra será de
acentuar as marcas do ritualismo e do grotesco, como forma singular de articular o
cômico com a subversão da cultura social que caracteriza o discurso carnavalesco.
(SERÔDIO, 1994: 142)

A diluição das fronteiras entre artista e público e o ritual para promover um espaço de
coletividade acompanha a carreira dO Bando. Em 1994, João Brites foi responsável por encenar
espetáculos e coordenar eventos de grande porte na realização da Europália e da Lisboa94.
Dirigiu a Unidade de Espetáculos da Expo’98, em que encenou talvez seu projeto mais
ambicioso e emblemático, Peregrinação, construído como um grande palco a céu aberto e visto
por aproximadamente quatro milhões de espectadores. Os bigodes na Res-pública, realizado
pelo grupo na Praça do Município de Lisboa em 5 de outubro de 2010, como matéria das
comemorações oficiais do Centenário da República Portuguesa, envolveu a participação de
atores, cantores e 400 voluntários, entre eles este pesquisador que pôde experenciar de dentro
um trabalho artístico do grupo. A proposta de João Brites, dramaturgo e encenador da peça-
evento, foi promover um encontro para a celebração da República, seus ideais e utopias.
Divididos em grupos variados, os voluntários eram direcionados por atores convidados e
representavam setores da sociedade portuguesa: comerciantes, marinheiros, militares, donas-
de-casa etc. O elenco era capitaneado por atrizes profissionais do grupo que representavam a
República nos seus aspectos míticos e simbólicos, expondo os discursos de liberdade e
igualdade em contraposição ao sistema anterior a ela vigente, a Monarquia.

Dessa feita, sobre o caráter misto de espaço público e festa, Ana Pais percebe que, “Fruto
de profundos afectos ao universo popular e de uma diligência constante em aproximar artes e
públicos, a condição festiva tem sido uma componente basilar nO Bando.” (PAIS, 2009: 38).
O Pino do Verão, que o Teatro O Bando realiza sazonalmente44 no miradouro do castelo de
Palmela, é um evento de caráter comunitário de grande porte e envolve música, poesia e teatro
a partir da obra de Eugénio de Andrade, com dramaturgia, espaço cênico e encenação de João
Brites e direção musical de Jorge Salgueiro. A sazonalidade é associada ao ritmo cíclico das
festividades populares. Realizado ao ar livre e à noite, a entrada é franca e o próprio grupo

44
O Pino do Verão aconteceu pela primeira vez em 2001 e até 2013 aconteceu 10 vezes sem a tão desejada
periodicidade anual.
166

recomenda ao público que “se se quer sentar, traga uma cadeira/ se se quer ver, traga uma
lanterna/ se não quer ter frio, traga uma manta”, pois “esta é uma festa que necessita da
participação de todos. Quem sabe aqueles que virão poderão ainda assistir a um ritual imemorial
vindo da viragem do milénio.”, nas palavras de João Brites, transcritas do projeto. Nessa
homenagem ao verão participam em média 300 artistas, entre atores, cantores líricos e músicos,
do Teatro O Bando, de bandas filarmônicas, coros e associações regionais, que buscam nos
ritos e nas cerimônias festivas a sua forma de criar e manter as tradições do povo de Palmela.

Do coletivismo ao singularismo: a ética do trabalho em grupo

Primando ética e artisticamente pelo estar em grupo, O Bando tem em sua gênese o fazer
teatral como prática de uma coletividade que deve se sobrepor a qualquer individualismo,
característica da década de 1970 em que grupos de teatro de diversos países emergiram,
reivindicando uma liberdade (e autonomia) na criação, sem as duras rédeas de um encenador
autoritário. Conforme pontua Sílvia Fernandes, esse modo de se fazer teatro divide os
integrantes entre diversos setores além do artístico, como o administrativo e o organizacional.
De outro lado, as dificuldades financeiras ou a falta de um empresário levava os grupos a
assumir coletivamente a responsabilidade de se produzir de forma socializada, constituindo um
trabalho independente.

No caso dO Bando, a preservação de um núcleo estável de participantes garante a


conservação (e consequentemente a perpetuação) do pensamento e da prática do grupo e em
grupo. Entretanto, como se viu, nos primeiros espetáculos a construção partia de improvisações
e de uma dramaturgia e encenação coletivas, mas rapidamente o grupo demandou por uma
liderança. João Brites tornou-se seu principal dramaturgo e encenador, lugar que também é
ocupado eventualmente por outros artistas tanto do grupo como exteriores a ele. A constituição
dessa autoridade não alterou a base ideológica e artística d’O Bando, visto que, como esclareceu
Brites, o processo do grupo continua a ser coletivo, ainda que liderado por ele.

O Teatro O Bando pertence, assim, a uma geração do teatro contemporâneo que se


caracteriza pela constituição de grupos e companhias estáveis e suas variantes de coletividade,
algumas capitaneadas por um encenador, no caso João Brites, que desenvolvem pesquisas de
linguagem, ancoradas em experimentos cênicos e reflexões conceituais e teóricas.
167

Internamente, esse grupo específico organiza-se de forma que todos os seus cooperantes possam
desenvolver tanto trabalhos artísticos e de criação quanto atividades administrativas e de
produção. Seu funcionamento prima pela ausência de patrões, pela divisão de tarefas, cargos e
funções, pela não separação daqueles que pensam dos que executam. Preza ainda pelas
discussões ideológicas, artísticas e sociais cujo consenso é um fator de responsabilização,
disciplina, rigor e profissionalismo. Os integrantes do grupo devem trabalhar em ao menos dois
de seus três setores estruturais: o artístico, o oficinal e o administrativo, corroborando com a
premissa de que os espetáculos do grupo não seriam os mesmos se as tarefas necessárias à sua
realização não fossem partilhadas por todos. Seu nome é uma expressão da coletividade e tem
como postura política o questionamento do status quo social, político e artístico, além de
recursar atender às demandas mercantilistas da cultura.

Formalmente o Teatro O Bando constitui uma Cooperativa, dirigida por João Brites,
Raúl Atalaia e Sara de Castro e composta por mais 20 integrantes45, segundo informações do
programa do espetáculo Rua de dentro (2010). Quanto à equipe de Direção Artística,
responsável por discutir os projetos do grupo e também as questões estéticas, culturais e
políticas, é formada por João Brites (Dramaturgia, Encenação e Espaço Cênico), Rui Francisco
(Espaço Cênico e Cenografia), Jorge Salgueiro (Trilha Sonora, Arranjos e Música), Teresa
Lima (Oralidade), Clara Bento (Figurinos e Adereços) e Miguel Jesus (Dramaturgia e
Encenação). A sede do grupo46, uma quinta (propriedade rural) em Palmela a aproximadamente
40 km de Lisboa, situa-se no Vale dos Barris, dentro do Parque Natural da Arrábida, ao pé da
Serra do Louro, e anteriormente havia sido um espaço dedicado à suinocultura. Aquirida pela
Cooperativa do grupo em 1999, concretizou um desejo antigo de “poder dar continuidade a um
projecto de Teatro Comunitário” (TEATRO O BANDO, 1988: 32) como assim o entendem.

45
Adelaide João, Ana Brandão, Antónia Terrinha, António Braga, Bibi Gomes, Clara Bento, Fátima Santos,
Gonçalo Amorim, Guilherme Noronha, Horácio Manuel, Isabel Atalaia, Jorge Salgueiro, Lima Ramos, Miguel
Jesus, Miguel Moreira, Nicolas Brites, Paula Só, Pedro Gil, Rui Francisco e Suzana Branco.
46
Desde sua fundação, O Bando desejou uma sede própria e passou duas décadas em sistema de peregrinação.
Inicialmente ocupados com as ações da itinerância e das ações culturais nos lugares onde atuava, o grupo passou
a demandar um espaço de criação e que também pudesse abrigar um espaço de convivência. Inúmeras tentativas
foram desenvolvidas nesse sentido, como ocupação e cessão de espaços por instituições governamentais, centros
culturais e sedes de grupo, como o Palácio de Valenças em Sintra, Quinta da Boa Vista em Meleças, Centro Cultural
de Marvila, sede da Comuna e Teatro do Bairro Alto, Estrela 60. As tentativas incluem a construção de uma sede
num terreno no Benfica, em Lisboa, a partir da cessão de 4 autocarros (ônibus) e uma lona de circo, entretanto o
projeto não vingou. Houve um projeto de um caminhão-teatro, que também não se concretizou. O desejo mais
ambicioso talvez foi a proposta de construir uma sede em Telheiras, também na capital lusitana, que acabou por
não passar de uma utopia, dado seus altos custos que o grupo não conseguiu viabilizar.
168

Estrutura-se em dois complexos de galpões horizontais, paralelos um ao outro e que contêm a


estrutura necessária ao desenvolvimento de seus trabalhos.

O primeiro galpão, que se avista logo à entrada da quinta, comporta no centro uma
grande sala de estar com duas lareiras, mesas, sofás e cadeiras, espaço em que costumam
receber o público nas diversas atividades; de um lado da sala há a cozinha, onde se preparam
os alimentos, e um espaço de oficina e acervo; do outro lado tem-se um corredor que dá acesso
aos banheiros, aos arquivos e acervo documental, sobre o qual eleva-se um mezanino com sala
de reuniões e o escritório da diretoria artística; ainda no primeiro nível, após o corredor, há o
escritório onde trabalham os responsáveis pela produção e administração. No segundo galpão,
que corre horizontal e paralelamente atrás do primeiro, localizam-se salas para ensaios, oficinas
e apresentação de espetáculos, camarim, acervo e espaço para alojamento de estudantes e
grupos convidados. Ao lado desse galpão há ainda uma pequena casa que se destina a hospedar
artistas residentes e convidados.

O entorno dos galpões reveste-se de uma extensa área gramada, de onde emergem
principalmente as oliveiras, cenário para ato de celebração de cada aniversário do grupo,
quando a apanha das azeitonas é realizada coletivamente. A entrada para a quinta é sinalizada
com uma placa que anuncia as atividades principais do mês. Antes que se chegue ao primeiro
galpão, a área é dividida em dois níveis pela topografia: o primeiro ganhou recentemente a
implementação de um lago artificial, que visa abastecer a quinta de água utilizável na sua
manutenção e que é símbolo da recente investida do grupo em ações de sustentatibilidade, e o
segundo nível abriga um estacionamento para veículos. Atrás do segundo galpão inicia-se a
ascenção de uma parte da Serra do Louro, que há poucos anos passou a abrigar a exposição
permanente Ao relento, que consiste na distribuição de elementos cenográficos (denominados
por eles de máquinas de cena) e figurinos ao longo do espaço da serra. O caminho que vai
subindo a serra tem sua trilha iluminada e é uma exposição a céu aberto, buscando uma
(des)integração dos dispositivos cenográficos e da indumentária com a natureza.

A sede envolve, além da produção, ensaios e apresentação de espetáculos, ensaios


abertos e inúmeros projetos como oficinas, leituras, saraus, lançamentos e comemorações etc.
A comunidade também se reúne nos almoços-convívio que ocorrem a cada primeiro sábado do
mês: um dos membros dO Bando sugere um menu de sua especialidade, que é produzido com
a ajuda de outros integrantes. Participam da refeição, além dos trabalhadores costumeiros da
sede, cooperantes, amigos, pessoas da comunidade de Palmela e público em geral. Os custos da
169

alimentação são fixados numa caixa, exposta numa bancada na sala de estar, divididos para o
número de participantes do almoço (é necessário confirmar previamente a presença). Cada um
se dirige à caixa e por si mesmo realiza o pagamento, dá-se o troco quando for o caso. Nenhum
dos membros do grupo recolhe o dinheiro ou fiscaliza o pagamento dos participantes. Cada um
é convocado à responsabilidade de colaborar com o coletivo. Ressalta-se essa peculiaridade dO
Bando quanto à pratica do “estar junto”, de uma ética do compartilhar, de um exercício de
participação e cidadania num nível raro de ser praticado e encontrado em outros coletivos
similares.

Não posso deixar de mencionar as Cartas do mês, correspondência eletrônica que o


grupo envia mensalmente às pessoas cadastradas em seu mailing. Estabelecendo uma
interlocução direta com o leitor e de cunho extremente poético, ainda que por vezes bem
humorado, as cartas informam sobre as atividades d’O Bando, tanto aquelas realizadas na sede
quanto as ações de itinerância, constituindo uma relação de proximidade e compartilhamento
com seu público:

Caros amigos, o coração incendeia todas as criaturas? Para já sabemos que em


ABRIL, ESTREIAS MIL! Num mês cheio do nervosismo próprio das primeiras
apresentações de um espectáculo fomos ao dicionário para perceber que é de bom
presságio que falamos quando estreia é a palavra. As premières começam já no
Sábado, dia 4 de Abril. Susana Vidal estreia CORAÇÃO-ARDE; a nossa Margarida
Mata assume pela primeira vez os comandos do Primeiro Sábado do Mês - almoço
comunitário com uma “ementa espanhola” (o sino toca às 13h30! Marquem o vosso
lugar com a Rita Brito. Depois de almoço Miguel Jesus apresenta um ensaio aberto
de EM NOME DA TERRA, a próxima estreia do Bando em Maio, a partir de Vergílio
Ferreira. O desafio é que aproveitem o repasto, espreitem o ensaio e fiquem connosco
para a noite! [Seguem informes sobre a intensa programação] Temos muitas razões
para nos encontrarmos este mês! Esperamos que seja em breve. Saudações Teatrais
do Mundo Rural. Teatro O Bando.47

O adjetivo singular tem sido regularmente conferido ao percurso e ao trabalho de João


Brites e dO Bando, visto que seus espetáculos em muito não se parecem tanto uns com os
outros, não fossem algumas linhas-mestras que têm atravessado a sua história: a) o eixo
fundamental formado pela dramaturgia, encenação e cenografia; b) a dramaturgia concebida a
partir de textos não escritos para teatro; c) utilização de espaços não-convencionais; d) o teatro
de caráter comunitário; e) a pintura como matriz do gesto de criação. De tal maneira o grupo é

47
O texto foi extraído da correspondência em minha caixa particular de e-mail.
170

reconhecido pela singularidade de seus trabalhos, atitude que a equipe privilegia para não
incorrer em lugares-comuns. A cada nova montagem, coloca-se em causa as prerrogativas
anteriores para se lançarem a outro desafio. “A necessidade de procurar soluções sempre
diferentes estabelece a inovação e a renovação do actor que, como artista, se torna mais atento,
mais atuante.”48

Não por acaso, o conceito de singularismo tem assaltado O Bando nos últimos anos em
substituição ao coletivismo utilizado nas duas primeiras décadas de existência. João Brites
pontua que sob a influência do Maio de 1968 os integrantes do grupo eram coletivistas, pois
todos discutiam tudo. Entretanto, a alteração de nomenclatura vem apresentar uma nova
concepção na relação que se estabelece entre indivíduo e coletivo. Ao singularismo interessam
as pessoas, com suas idiossincrasias e pontos-de-vista que, ao participarem da direção artística
do grupo, contribuem nas discussões e decisões. Tal participação é aberta a todos que se
interessarem, não há uma escolha ou permissão do grupo, porque, de acordo com o encenador

nessa direção artística podem estar os que quiserem. São essas as pessoas que
concebem o processo criativo do espetáculo, sabendo que umas contribuirão de uma
forma mais determinante do que outras, mas que ninguém reinvindica a explicitação
do seu contributo. Desenvolve-se a capacidade de conseguir construir uma obra que
resulta de um contributo coletivo, onde as partes deixam de ser reconhecíveis e onde
o resultado não é o somatório das partes. Apesar das momentâneas tensões estamos
quase sempre numa saudável interdependência que só é possivel porque há muitos
anos trabalhamos juntos na apropriação de conceitos que recorrem a um vocabulário
comum. Queremos estar nos antípodas da condescendência e queremos acreditar que,
são precisamente os outros que potenciam a inesperada materialização das convicções
particulares. Na génese do espectáculo está a liderança de um encenador que não se
quer repetir e que precisa da contracena dos outros para se rearticular, para se reciclar.
A coerência da formalização cénica resulta de pressupostos e de processos de
construção partilhados que o próprio encenador seria incapaz de estabelecer.
(BRITES, 2011)

Portanto, nota-se que a ideia de coletivo se reestrutura para o grupo, privilegiando as


singularidades de seus membros, estimulando a partilha, a discussão, o confronto e a
colaboração entre si que, por sua vez, vai resultar em trabalhos artísticos também singulares.
Entretanto, Eduarda Dionísio discute a função de liderança de João Brites, na altura de 1994,
“por colidir com uma ideia de colectivo, mas incontestada e incontestável (por se tratar do

48
Texto escrito por João Brites para sua participação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado Do outro lado:
o que fazemos transcende o que pensamos.
171

garante do grupo, daquele que nunca o abandonou, que mais criou e mais criações assinou, o
único a quem é reconhecida a qualidade de encenador).” (DIONÍSIO, 1994: 98). Idalina Conde
no mesmo período, ao pesquisar a percepção da crítica especializada em relação ao trabalho
d’O Bando (no excerto refere-se a menções feitas por críticos), conclui que “De resto, se em
geral para a crítica o bando é, quer dizer, tornou-se João Brites – e desde então não se poupam
elogios a este ‘criador/inventor’ dos ‘mais inteligentes e sensíveis do teatro português’, ‘este
grande senhor do espetáculo’”. (CONDE, 1994: 53).

Proponho um cruzamento entre a ideia de protagonismo, comumente atribuído a João


Brites face a’O Bando, seja por sua presença e atuação ao longo dos 41 anos, por ser o líder e
o principal e mais reconhecido encenador, e a proposta do singularismo. Quando questionado
sobre uma possível unidade de estilo do grupo, João Brites contrapõe com a busca pela
diferença no processo de construção, na gênese criativa, que vai determinar as particularidades
de cada trabalho. Ele revelou em entrevista que os espetáculos têm resultado dessa diversidade
ao longo de sua história e que a nova nomenclatura veio de encontro a outro modo de estar no
teatro. Sara de Castro, atriz e atual responsável pela Coordenação Geral do grupo, encenou em
2010 seu primeiro trabalho, Rua de dentro, em que essas questões já se encontravam no
cotidiano d’O Bando.

Ela acrescenta que o singularismo dirige-se à criação de obras “tanto mais únicas quanto
mais alargadas” pela capacidade de partilhá-las com uma direção artística. Dividindo a direção
com João Brites nesse espetáculo, que na prática resultou numa supervisão (no sentido do
diálogo e do contraponto), Sara de Castro teve sua autonomia preservada como autora e diretora
do projeto. Ela ainda menciona o cenógrafo Rui Francisco que, apesar de não ter seu nome na
ficha técnica do trabalho, inúmeras vezes esteve trocando ideias com ela durante almoços e
refeições na sede.

Não é gratuito que o grupo comumente utilize a metáfora do cozinhar para se referir à
sua criação artística, porque se trata de um processo e não de atos e respostas imediatos, mas
algo que se vai construindo durante a feitura. De alguma forma, a transição do coletivismo para
o singularismo dilui o protagonismo de João Brites, a quem interessa a continuidade do grupo
para além de si: “o testemunho que o João está a passar aos mais novos, aos que começam agora
a fazer espetáculos aqui, tem mais a ver com esse princípio do singularismo do que
propriamente com uma estética.” (CASTRO, 2011). Sara de Castro percebe que o singularismo
relaciona-se mais a uma postura, a uma atitude dentro do grupo:
172

O que sinto é que o João Brites tem conseguido passar aos mais novos o princípio do
singularismo através de uma prática, de uma atitude cotidiana. Porque essa atitude não
está presente só na criação de espetáculos. Nós exercemos o singularismo na nossa
organização, todos os dias, nas coisas mais pequenas. Por exemplo, quando dirijo a
reunião semanal da equipa fixa, uma reunião de coordenação, pratico o princípio do
singularismo. Portanto acredito que a transmissão deste legado aos outros é muito
simples porque não passa pela herança de uma estética, mas sim de uma maneira de
viver o dia-a-dia que pode ser apreendido pela vivência cotidiana. (CASTRO, 2011)

O protagonismo e a liderança de Brites ajustam-se mais no singularismo, em que o


coletivo não se sobrepõe ao individual. O próprio encenador admite sua posição, pensando que
essas novas maneiras de pensar o fazer artístico “vão acontecendo, mas vão acontecendo
também pela minha liderança. Tenho de reconhecer que essa capacidade de liderar de uma certa
maneira não deixa de ser uma liderança, ainda que seja mais partilhada.” (BRITES, 2011). A
entrada e permanência de Sara de Castro e Miguel Jesus no grupo apontaram para ele com mais
segurança as perspectivas de sucessão da liderança. Parece coincidir também com a
transformação da visão de um coletivo liderado por um encenador para um coletivo que é
conduzido por uma equipe de direção artística a partir da prática do singularismo. Sobre isso,
Rosyane Trotta percebe que, após a década de 1970, a ideia de coletivo cedeu lugar à de núcleo,
que envolve uma mesma linha de projetos de encenação, ou um grupo definido como núcleo
artístico estável, como se pode encontrar similaridade na Direção Artística d’O Bando: “O
centro nervoso do processo de criação cênica se localiza nas funções de direção, atuação e
dramaturgia, embora outras funções possam participar do percurso.” (TROTTA, 2006: 159), o
que configura outra noção de autoria.

Atribui-se à prática de João Brites e de seu grupo a ideia de partilha do sensível,


proposta pelo filósofo Jacques Rancière. Para ele essa partilha refere-se aos modos de fusão
entre a arte a vida e que se afirmam como uma forma de contaminação entre política e estética.
A partilha do sensível conceitua e descreve a formação da comunidade política com base no
encontro discordante das percepções individuais. A política, para o filósofo francês, é
essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão
artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de
manifestações dentro da comunidade.
173

Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente,


a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo
como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a
divisão de partes exclusivas. (RANCIÈRE, 1995: 7)

Reivindicando o retorno da arte como parte integrante da vida, abandonando uma


postura formal e decorativa, João Brites e o Teatro O Bando sabem que nas origens do teatro
está uma necessidade de comunicação, entendida como processo em dupla direção, e a
possibilidade de poderem viver situações por meio do lúdico, buscando responder às questões
que cada época lhes permite. A eles interessa, sobretudo, atender às funções que consideram
originárias do teatro ligadas à vida, ao trabalho e ritualização e à exteriorização dos sentimentos
do ser humano. Rancière infere que a partilha do sensível dá visibilidade a quem pode tomar
parte no comum em detrimento daquilo que realiza, do tempo e do espaço em que as atividades
se desenvolvem. As ocupações de cada um passam a definir as competências ou incompetências
para o comum. Ele atribui a três formas de partilha estética essa politicidade sensível: o teatro,
o livro e o coro, “artes que podem ser percebidas e pensadas como artes e como formas de
inscrição do sentido da comunidade. Essas formas definem a maneira como obras ou
performances ‘fazem política’, quaisquer que sejam as intenções que as regem.” (RANCIÈRE,
2009: 18). Quanto à cena do teatro, pela perspectiva platônica, “é simultaneamente espaço de
uma atividade pública e lugar de exibição dos ‘fantasmas’, embaralha as partilhas das
identidades, atividades e espaços.” (RANCIÈRE, 2009: 17).

Compreende-se que, em relação a João Brites e consequentemente ao Teatro O Bando,


essa partilha aconteça por meio dos modos de fazer artístico, com destaque para o teatro, lugar
de exercício da sensibilidade, da cidadania e do encontro comunitário e social. Há que
reconhecer essa práxis como uma ação política pela estética, pela troca de conhecimentos e
ensinamentos que se estendem à relação desses artistas entre si e com o público espectador e
participante. As artes e as políticas de dominção, segundo o filósofo francês, têm em comum
“posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível”
(RANCIÈRE, 2009: 26).

Na partilha democrática de Brites e d’O Bando, ressaltada pela proposta do


singularismo, seus agentes preservam suas individualidades e convicções, estando aberto o
confronto de ideias e posições. O espetáculo teatral, por sua presença e pela palavra vivas, passa
a configurar um espaço comum em que atores e espectadores tomam sua parte no
174

acontecimento, podendo alterar o desenvolvimento da peça em alguns casos. Para além dessa
interferência concreta, ao público também é oferecida a partilha do imaginário, pela exigência
de sua capacidade de imaginação e decodificação das obras, entendendo a diversidade de
sentidos que se pode construir a partir de espetáculos não-lineares e simbólicos, metafóricos.

Eugénia Vasques percebe nas metodologias de criação artística partilhada d’O Bando e
em sua abertura para a discussão pública um apelo ao público para “a partilha, a intimidade e a
actividade solidária […], de um teatro concebido para intervir e modificar.” (VÁSQUES, 2009:
126). Portanto, ao alargar o exercício da liderança para outros integrantes do grupo, o Teatro O
Bando persegue seus modos de estar em coletivo, de associar ética, política e arte, como descrito
na finalização do Manifesto 2: “Somos artesãos e artistas em busca de reinventar outras formas
de contar umas tantas mesmas histórias, abordando a representação da vida pelos seus lados
menos visíveis. Queremos intervir. Queremos um teatro que convença.” (TEATRO O BANDO,
1988: 34).

Os manifestos e a inscrição das (in)certezas: a dramaturgia em movimento

Os Manifestos são uma forma que o grupo encontrou para assinar suas convições,
sistematizar e refletir sobre seu trabalho. Relaciona-se prioritarimente ao duplo viés “prática-
teoria” sem a obrigação de uma regularidade. Como suporte de transmissão de conhecimentos,
a práxis cotidiana dos modos do fazer teatral acabou por exigir uma fixação das experiências
em escrita, abarcando reflexões sobre os posicionamentos éticos e políticos cultivados, iniciada
com a publicação do jornal O pião, em 1975. A teoria transforma-se em instrumento para lançar
luz sobre a prática, contribuir para delinear os contornos do fazer, constituir suas bases estéticas
e garantir seu estado de independência. A redação coletiva dos Manifestos implica nessa autoria
descentralizada, compartilhada, mas que preserva o modo de ser e pensar o teatro: “A prática,
a reflexão e o gosto do colectivo que somos servirá para encontrar as soluções que levem a
habitar um espaço nosso à nossa maneira e a enriquecê-lo fazendo-o habitar por outros […].”
(TEATRO O BANDO, 1988: 34).

O Manifesto 1 propôs-se a refletir os seis primeiros anos de atividades, além de


organizar ideias dispersas e atualizar conceitos visando nortear internamente o coletivo. São “o
resultado de reflexões colectivas sobre o estado das coisas e os caminhos percorridos, que o
175

grupo realizou, sem regularidade, quando disso sentiu necessidade, parando para tal o seu
trabalho.” (DIONÍSIO, 1994: 97). Variando o período dedicado à elaboração, 15 dias para o
Manifesto 1 e sete dias para o segundo, chama-se a atenção para a criação desse espaço dentro
do coletivo para pensar e afirmar suas convicções e práticas. O segundo Manifesto (1988)
atualizava as proposições, revia as transições pelas quais o grupo foi passando, principalmente
quanto à constituição mais efetiva do teatro, em detrimento da animação, por exemplo.

Depois dele outro Manifesto ainda não foi elaborado porque, de acordo com João Brites,
O Bando passou a ter cada vez menos certezas, estando mais livre para lidar com o presente e
com a recepção. Portanto, deixou de assinalar suas propostas para investir na reflexão coletiva,
não mais restrita aos integrantes. Em 1994 O Bando publicou um livro comemorativo dos 20
anos de existência, O Bando: monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário,
abrigando artigos de intelectuais, acadêmicos, artistas, críticos e pensadores sobre o trabalho do
grupo em diversos campos (dramaturgia, encenação, cenografia, atuação, sociedade, pedagogia,
etnografia e antropologia). Outra publicação, O Bando – Máquinas de cena dirigiu-se à
documentação e ao pensamento sobre esses singulares dispositivos cenográficos que acabaram
por se tornar uma das principais assinaturas d’O Bando. Em celebração aos 30 anos, alguns
anos mais tarde, propôs a realização de jornadas de reflexão durante quatro dias intensos em
sua sede e de cujos encontros foram extraídos textos, artigos e notas, revertidos em um novo
livro: Teatro O Bando: afectos e reflexos de um trajeto. De alguma forma, o grupo passou a
abrigar outra coletividade, mista de integrantes e pessoas externas, para o prosseguimento na
elaboração de reflexões sobre sua prática, estando aberto a um possível confronto com suas
próprias convicções e incertezas.

Entretanto, das crenças que o grupo persegue ao longo de sua existência, destaca-se a
condenação do individualismo e do vedetismo de seus integrantes, pois não há distinção
(hierárquica, de prestígio) entre o artista e o público, exatamente pela proposta de estar em
comunidade a partir da perspectiva do teatro como espaço de convívio de gerações. O encontro
com o público acompanha desde o início o sentimento do coletivo: ele é convidado, estimulado
à participação, seja pelo exercício do seu imaginário, da sua capacidade de abstração ou até da
sua presença concreta em cena. Em Vassilissa ou a boneca no bolso (1998), texto de Bruno
Stori e encenação de Letícia Quintavalla49, uma atriz conta uma história a crianças de 3 a 6
anos, introduz alguns gestos e depois convida uma menina entre o público presente na sessão

49
O caráter de coletividade n’O Bando estende-se a outros artistas que encenam trabalhos no grupo.
176

para interpretar a personagem protagonista, encenando consigo o que anteriormente fora


contado. Sobre isso, lemos no Manifesto 1: “Ao mudar o rumo dos acontecimentos durante o
espetáculo, o público entende que pode mudar o seu quotidiano. Quanto mais o teatro se afasta
da vida, menos teatro é.”, (TEATRO O BANDO, 1980: 14).

Pode-se pensar nesse teatro abraçando algumas influências, como a de Brecht, pela
capacidade de mobilizar socialmente o indivíduo espectador e ativar sua capacidade de
transformar o mundo a partir de ações concretas no seu dia-a-dia; e também de Augusto Boal e
o Teatro do Oprimido, contemporâneo brasileiro d’O Bando, cujas práticas e reflexões também
se encaminhavam nessas direções. A boneca, primeira criação do grupo, inspirou-se em O
círculo de giz caucasiano e em procedimentos épicos do dramaturgo-encenador alemão: três
atores interpretavam dez personagens, incluindo a utilização de bonecos em tamanho real de
madeira (com o lugar da face vazada) para que os atores circulassem entre a mãe, o pai, o
menino, a criada, a avó etc. Tanto os atores quanto as crianças podiam integrar o jogo cênico,
vertendo o teatro aos moldes da animação. A representação, nesse caso, desvinculava
explicitamente o ator do personagem (distanciamento) enquanto a fábula era valorizada
enquanto matéria-prima textual suscetível de transformações para dialogar com a realidade. O
grupo também se reconhece no instante, no tempo presente, em que o processo é mais
importante que a obra acabada, pois a cada encontro com o público o resultado pode ser
alterado. Assim, toda sessão dos espetáculos reforça o caráter de efemeridade e irrepetição
também para os atores, cujos princípios orientadores de trabalho prezam por essas mesmas
exigências. O Manifesto 1 explicita devidamente a função do teatro para O Bando, nessa relação
com seu público que se caracteriza pelo ato de comunicar, e cujo sentido implica duas direções
opostas (ator/público e público/ator):

3/3 Quando se escolhe ir ao teatro com o mesmo interesse, apetite, como quando se
combina uma patuscada com os amigos, o teatro está a cumprir a sua função vital.

Quando o espetáculo a que se assiste […] nos faz salivar, saborear cada naco da festa
com prazer (físico e mental) e que no fim há aquele bem estar reconfortante da barriga
cheia e da força física e mental capaz de transformar o mundo; quando o espetáculo
nos faz partilhar a emoção, o riso, a reflexão para além de nós mesmos, fazendo-nos
ganhar confiança de existir também na nossa dimensão social, podemos estar certos
de que é teatro necessário a esta vida, que é este o teatro que queremos. (TEATRO O
BANDO, 1980: 11)
177

Ao ativismo do grupo nas suas tomadas de posição e capacidade de organização, Idalina


Conde acrescenta “a imagem do Bando como encarnação de um contra-poder exercido nessa
condição perdurável de uma marginalidade carismática.” (CONDE, 1994: 39). Segundo o
Manifesto 1, “Para nós, trabalhar em colectivo é uma opção política. Numa sociedade cujo
interesse da ideologia dominante é o de individualizar para dividir, […] o agrupamento de
pessoas é um acto subversivo quando não pode diretamente ser policiado”. Adiante,
acrescentam mais um sentido ao fazer coletivo como opção estética, visto que “é um meio
pertinente de encontrar o processo de intervenção actual, reunir, desenvolver e tornar
conseqüentes as capacidades individuais e transformá-las numa força comum” (TEATRO O
BANDO, 1980: 3-4).

Quanto à dramaturgia, os primeiros trabalhos d’O Bando, num período que vai de 1974
a 1984, caracterizavam-se de maneira geral pela criação coletiva, em que os textos eram escritos
em grupo com ou sem uma coordenação ou por uma autoria interna, construindo peças a partir
de temáticas sociais, do gosto pela descentralização e itinerância e a integração da festa popular
na ação como um dos recursos de participação do público. Aqui podem ser mencionados os
trabalhos A Boneca (1974), O pastor (1974), A Máquina (1976), Cristóvão, o Homem do Saco
e a Vaca de Vilar de Vacas (1977) e Feijões são sempre feijões (1979).

A partir dos anos 1980, outra vertente é aberta, relacionada ao questionamento da


História e de seus personagens, por meio de uma dramaturgia que recorre a uma figura histórica
e à colagem explícita de materiais diversos, tanto literários quanto etnográficos: Cenas da vida
de El-Ramiro (1980), Viviriato (1991) e D. Sebastião, Paris-Dakar (1992). Em Afonso
Henriques (1982), desmistificam a posição de herói atribuída ao rei e o apresenta a partir de
suas glórias e vicissitudes, de conquistas e derrotas, numa perspectiva não maniqueísta. O
discurso da História, por conseguinte, é tido como o ponto de partida para O Bando falar do
tempo presente, numa dramaturgia que busca o prazer da narrativa em procedimentos diversos
como o texto narrado pelo ator, jograis, coro e comunicação direta entre intérprete e público.
Recolhem-se do Manifesto 2 as premissas que apresentam os materiais dramatúrgicos do grupo
antes e depois de 1984:

49. Também o texto, ainda que inserido nestas premissas, tem vindo a sofrer uma
evolução: começámos por textos de autoria do colectivo e chegamos a textos que são
adaptações ou colagens elaboradas por elementos do grupo, tendo passado entretanto
por textos coordenados ou de autoria individual de elementos do colectivo.
178

E, a partir de 1984, experimentámos, esporadicamente, a utilização de textos de


autores exteriores ao grupo.

50. Preferimos os textos não escritos para teatro. Também aqui gostamos de elaborar
e de reelaborar. (TEATRO O BANDO, 1988: 23-24)

Nesses excertos já se percebe que, durante quatro anos, período que compreende o início
desse novo paradigma e a escrita do novo Manifesto, o grupo experimenta trabalhar com textos
de outros autores, estabelecendo um diálogo com literatura em língua portuguesa, em que
prevalece a lusitana. Esse paradigma, entretanto, acabará por se configurar como uma
importante definição poética dO Bando, que passa a ser reconhecido como um grupo que
trabalha textos não escritos para o teatro, objeto desta investigação. Portanto, de uma proposta
inicial de textualidade coletiva, o grupo encaminha-se para uma elaboração dramatúrgica mais
complexa, que envolve a escrita a partir de uma escrita fixada previamente em contos, crônicas,
documentos históricos, romances e poemas. A transição para textos exteriores ao grupo faz
emergir a figura de João Brites como dramaturgo-encenador, funções que passam a caminhar
para ele a par e passo. Portanto, passo a assinalar as singularidades do pensamento, da prática
e do fazer artístico desse multiartista português.

João Brites: a encenação como escrita e pintura tridimensional

A trajetória artística de Brites n’O Bando deu-se de forma não ortodoxa: inicialmente
ocupava-se da cenografia, em decorrência da sua formação, atuou em alguns trabalhos e
animações e, aos poucos, se encaminhou para a dramaturgia e encenação. Nos últimos anos
tem-se distinguido ainda como diretor de atores, a partir do desenvolvimento de um sistema de
trabalho de interpretação apoiado principalmente pela investigação da consciência do ator em
cena, cujos princípios serão explicitados e analisados mais adiante neste capítulo. Importa neste
momento perceber que os primeiros trabalhos artísticos desenvolvidos por João Brites, ainda
na Bélgica, assinalaram a ideia de um fazer teatral que se constrói pela prática de seus agentes
e não de uma apropriação de propostas e estéticas de encenadores e artistas seus
contemporâneos:
179

Como eu vinha das Artes Plásticas tinha talvez uma maior apetência para percepcionar
e circunscrever o estilo de representação. Logo no princípio intui que o nosso estilo,
a nossa maneira de fazer teatro, teria de resultar da nossa prática específica. Não nos
podíamos reunir e dizer que estaríamos nesta ou naquela “corrente artística”. Claro
que tínhamos algumas linhas-mestras, algumas opções e referências, mas não eram
essas referências que poderiam enquadrar uma maneira especial de estar no teatro e
fazer teatro. […] Na altura, há 30 e tal anos, defendíamos, e eu defendia
convictamente, que teria de ser a prática a definir essa maneira de representar.
Tínhamos de conhecer as nossas gentes e de ir para as aldeias. Tínhamos de
experimentar os textos de tradição oral e estar dispostos a percorrer o nosso caminho
como artistas sem saber a que ponto chegaríamos. Não queríamos chegar a este país,
que em grande parte desconhecíamos, com uma espécie de modelo que quiséssemos
aplicar. (BRITES, 2011)

Para Antonino Solmer, João Brites foi construindo ao lado de seu grupo o que ele
denomina como “pintura ao vivo no palco”, numa tentativa de “obra de arte total”, recobrando
os pressupostos wagnerianos, pois “Sabemos como os artistas plásticos são responsáveis
pioneiros por grande parte das experiências nas artes, que por sua vez originaram alguma
liderança no campo da reflexão teórica.” (SOLMER, 1994: 162). Sua formação encaminhou-o
para a fuga ao realismo e às tentativas de imitação da realidade, porque Brites acredita na
linguagem da metáfora e do símbolo como condição sine qua non para pensar a representação,
lugar de excelência do espetáculo teatral. Para ele, a maior vitória da humanidade foi quando
um pastor junto ao seu rebanho decidiu contar as ovelhas e, no lugar de desenhá-las, foi
marcando-as cada uma com um traço em seu cajado. Assim, Brites atribui aos deuses a
capacidade de abstração do ser humano e de criar metáforas. Portanto, corrobora com os
princípios norteadores do trabalho d’O Bando, que ajudou a fundamentar, em que há um repúdia
a um teatro de ilustração, pois se percebe nele uma individualização dos sentimentos humanos
ao isolá-los de sua sociabilidade. Ainda, inferem que a “ilustração e a decoração reduzem
sempre o público a espectadores, têm pois mais a ver com a informação do que com a
comunicação.” (TEATRO O BANDO, 1980: 7).

Brites e O Bando afirmam seu gosto mais pela representação do que por espetáculos
(aqui, no sentido de espetacular e não como sinônimo de peça), procuram surpreender o
espectador, envolvê-lo, fasciná-lo. Desejam que ele possa se emocionar e também pensar, se
inquietar. Perseguem uma não-literalidade dramatúrgica, pois confiam na capacidade do
público de se envolver com a peça e lidar com os enigmas propostos. Acreditam num teatro que
se fixa na memória dos espectadores e sedimenta-se quanto mais se distancia do acontecimento
cênico, pois para eles isso não diz respeito a uma espetacularidade de efeitos, mas “com a tensão
180

dos mistérios quando se tem a sensação que foi levantada mais uma ponta do véu.” (TEATRO
O BANDO: 1988: 14).

Entretanto, percebe-se que muitos trabalhos do grupo atingem níveis expressivos de


espetacularidade, como o próprio Ensaio sobre a cegueira, a ser analisado neste trabalho, que
apresentava uma cenografia monumental e um elenco de 22 atores; ou a já refenciada Saga
(ópera extravagante), que se aproximava de um megaevento cultural a céu aberto, envolvendo
60 artistas. Para além das grandes proporções com que alguns trabalhos se oferecem ao público,
inlcui-se também a utilização das máquinas de cena e dos espaços não convencionais (como
castelos, autocarros, comboios), o que tornam esses trabalhos memoráveis principalmente pela
visualidade e pela concepção cênica.

Dessa forma, o pensar a linguagem do teatro e da encenação para João Brites está
diretamente associado a um pensar pictórico, como ele mesmo define em Textos e pretextos:
“Como actuámos? Talvez como o pintor que em vez de linhas, formas e cores, usa palavras e
imagens tridimensionais”. Ainda que não se considere um escritor, porque a princípio utiliza-
se sempre das palavras dos autores para compor a dramaturgia das peças que dirige, reconhece
seu ofício como dramaturgo que “se serve mais da tesoura e da cola que da caneta, não só para
colar quase sempre textos alheios, mas para fundir, associar, sobrepor outros fragmentos de
outras linguagens.” (BRITES, 1990). Nota-se seu gesto de escrita equivalente ao do
dramaturgo-rapsodo sarrazaquiano, em que a edição é o principal procedimento.

Para ele, a teatralidade relaciona-se com a capacidade de exprimir em teatro o que não
se consegue expressar de outra maneira, conceito que envolve uma gama enorme de hipóteses,
sobre as quais têm se debruçado vários intelectuais e pensadores do teatro. O que se quer dizer
com “exprimir em teatro”, pois a constituição de sua linguagem, dada à reunião de múltiplos
elementos artísticos têm alargado as fronteiras entre as artes contemporâneas? A princípio,
parece se referir ao encontro ao vivo entre atores e espectadores, ao estabelecimento de um
conflito, à ideia de ação como condutora do espetáculo e ao status da representação por meio
da metáfora.

A poética da cena britiana: artifícios, constrangimentos e o conflito na atualização do tempo


presente
181

O teatro para João Brites é prioritariamente artifício, diferente de artificial, visto que o
primeiro é um meio, um veículo ou um mecanismo, enquanto o segundo diz respeito ao
resultado final, à obra acabada. Em Os Anjos, os personagens são mostrados ao espectador
quase como fantoches ou bonecos, pois os atores usam pés falsos (o público tem a impressão
de que estão flutuando sobre a passadeira) e mãos agigantadas. A ausência de adereços e objetos
encaminhou a interpretação para a construção de gestos (não miméticos) que pudessem
representar algumas ações: o artifício para o personagem tomar a sopa, por exemplo, se revelava
no andar com mãos sobre o peito, parar, engolir uma bola de ar (acompanhado de um ruído
vocal). A plateia no início não decodificava esse e outros movimentos, mas durante o
espetáculo, com a repetição, o artifício se revelava: “Isso conferia ao público uma apreensão
lúdica do espetáculo” (BRITES, 2009a: 278).

Tanto do ponto de vista econômico quanto poético, acredita que o teatro se sobressai ao
cinema pela sua capacidade de realizar viagens no tempo e no espaço com tão poucos recursos
que podem se limitar ao ator e por estabelecer uma ponte de comunicação com o espectador. A
narrativa, linguagem dramatúrgica preferencial utilizada por Brites, também se apresenta como
um desses mecanismos que promovem saltos no tempo e no espaço. Ele entende o teatro como
algo inominável, que não se explica totalmente, pois não se restringe às ideias, mas também às
emoções e aos afetos que nem sempre podem ser explicados por meio de palavras e
pensamentos. A verossimilhança para ele é substituida pela credibilidade, porque a
representação, a metáfora e o símbolo extrapolam os sentidos do que pode ser verossímil,
bastando ser credível para aquele que assiste: suas obras não se ligam à representação da
realidade porque deve haver constrangimento em arte.

O conflito está no centro de sua poética teatral: não apenas o dramatúrgico que coloca
em relação dois ou mais personagens, mas o que confronta também o ator e o espectador, o ator
e os demais componentes do espetáculo, porque tudo deve estar integrado de forma
interdependente. Nesse sentido, a noção de constrangimento aplica-se ao estabelecimento de
alguns conflitos cênicos, cujo conceito refere-se à apropriação, imposição e aceitação de
obstáculos que criam uma desestabilização de alguns elementos do espetáculo e que obrigam,
por exemplo, o ator a manter-se atualizado no tempo presente da representação, sem incorrer
em mecanizações. São desafios que mantêm os criadores envolvidos com o projeto e que
estimulam o elenco a dominar a espacialidade proposta que, muitas vezes, exige dele respostas
concretas e imediatas a situações novas. “Por isso, cada representação é um risco, um desafio,
uma aposta – individuais e colectivos.” (TEATRO O BANDO, 1988: 26). Os principais
182

constrangimentos na encenação de João Brites relacionam-se ao espaço cênico dos espetáculos


e a algumas máquinas de cena.

As máquinas de cena são dispositivos cenográficos polivalentes, porque podem ser


também adereços e instrumentos musicais, integrados à cenografia/ espaço cênico. Idealizadas
(e criadas muitas vezes) por João Brites, são concebidas e confeccionadas artesanalmente para
responder às exigências concretas de cada espetáculo, transformadas aos olhos do público,
provando sua realidade concreta: “A máquina de cena transforma-se e prova, à nossa razão e
aos nossos sentidos, no concreto, que a transformação é real. Não há presdigitação nem
ilusionismo: há uma demonstração prática, física, tanto mais desconcertante quanto não passa
de mecânica.” (MARTINS, 2005: 11).

Em Os anjos (2003), a máquina de cena é uma passadeira de madeira a 1 metro do solo


(o espetáculo era realizado ao ar livre), tendo 40 metros de comprimento por 90 centímetros de
largura (muito estreita) e sustentada por cruzetas. A área de encenação praticamente concentra-
se nessa ponte, impondo constrangimentos para os atores que realizavam incessantes idas e
vindas de uma extremidade a outra, num percurso de casa-rua, e, portanto, atualizando sua
performance no presente, já que o público percebe o risco (não o perigo) nesse trânsito. O
cenógrafo Rui Francisco, investe numa definição desses dispositivos:

Sendo a Máquina, por definição, um conjunto de mecanismos combinados para


receber uma forma definida de energia, transformá-la e restituí-la sob forma mais
apropriada, as máquinas de cena do bando são claramente organizações materiais com
vista à transformação em qualidades e relações espaciais ou, ao invés, organizações
de espaço que só pela voz dum mecanismo se tornam perceptíveis. (FRANCISCO,
2005: 22)

As máquinas de cena, ainda que sua criação esteja diretamente vinculada às propostas
dramatúrgicas e cênicas, podem ser isoladas como obras de arte independentes, pois ganharam
exposições, incluindo a atual permanente na quinta do grupo. São polvos de múltiplos braços
que se metamorfoseiam em cena e propõem uma fusão entre a beleza e a arte. Em As horas do
diabo, três parelelepípedos iguais, mas apoiados em faces distintas (100 x 50 cm; 70 x 50cm;
100 x 70cm), o que dá a impressão para o público de serem diferentes, são utilizados como
casas para três personagens. A proposta, que tem dramaturgia a partir de Alberto Caeiro, Álvaro
de Campos e Fernando Pessoa (ele mesmo), discute o sentido da religião, pois um judeu, uma
183

mulçumana e uma católica dizem o mesmo texto, cada um em sua língua de origem e por isso
não se entendem. A metáfora aborda a diversidade religiosa, já que no fundo todas têm o mesmo
sentido do sagrado, o que não justificaria os conflitos e guerras que têm provocado em várias
partes do mundo. Pelas caixas-casas, os personagens entram (totalmente), ajustando seu corpo
ao paralepípedo e saem, criando belas imagens poéticas de isolamento, enquadramento e
solidão. Outra máquina curiosa é a de Afonso Henriques, um objeto móvel articulável que
guarda adereços de cena. Sua configuração inicial (trono) assume outras variações, conforme
desdobramentos e manipulações dos atores: berço, castelo, igreja, carreta.

Para João Brites, as máquinas de cena e os espaços não convencionais são um convite
do grupo ao público para uma viagem ao desconhecido, que não se repete e que modifica para
ambos a percepção do espaço que por hora ocupam. Entretanto, a máquina mais instigante é a
de Alma grande, uma estrutura metálica convexa, composta por dois arcos de circunferência
cruzados, a dez metros do chão e raio do arco de 8 metros. Móveis e atores eram supensos pela
estrutura e o público assistia recostado em cadeiras de praia, o que lhes permitia uma visão de
baixo para cima. Entretanto, a grandiosidade da máquina cênica apresentou problemas à peça,
pois seu impacto foi excessivamente espetacular, o que encobria o trabalho dos atores, do texto
e da música. A opção de João Brites foi simplificar, abrir mão da estrutura e dos figurinos
originais e levar a encenação para um palco convencional, tornando-o despojado e simples, mas
teatralmente mais eficiente.

Por sua vez, a ideia de conflito impulsiona a constituição da ação, substantivo que
fundamenta a gênese do teatro e que está etimologicamente ligado ao vocábulo drama, mas que
em sua poética expande-se para a ideia de ação vocal, ação física, ação visual. Eugénia Vasques,
professora e crítica teatral, aponta que João Brites e o Teatro O Bando “estabeleceram […] as
bases de uma filosofia que elege a acção (o acto, o que se vê) como princípio-motor do
acontecimento teatral.” (VASQUES, 2009: 124).

Perseguindo a composição de suas obras, João Brites sentencia que a dramaturgia, o


conceito da encenação e a cenografia, a representação, a música e a iluminação compõem uma
totalidade indivisível que deve ser assumida por cada envolvido no espetáculo. A dramaturgia,
ponto fulcral do processo criativo desse encenador, orienta as demais disciplinas envolvidas,
pois a encenação globaliza. Defende a independência criativa, a especificidade artística de cada
elemento e sua interdependência:
184

Cada componente do espetáculo deve ter a sua dimensão artística, independentemente


de estar ou não directamente relacionada com o espetáculo. Quer dizer, que o ideal
seria que o texto tivesse intrínseca qualidade literária, que o cenário pudesse
constituir-se enquanto obra de uma exposição de Artes Plásticas ou instalação de Artes
Visuais, que o ator despido do figurino e liberto dos adereços e do cenário pudesse
ainda representar teatralmente com qualidade, enquanto ator em si, sem ficar
submerso numa ostentação de efeitos. (BRITES, 2011)

Ele acredita que o resultado teatral de um processo determina-se pela dramaturgia e pela
concepção global do espetáculo e não por uma somatória de palavras, efeitos visuais, sons e
marcações limpas e organizadas. Essa resultante constrói-se pela fusão dos elementos, como se
acontecesse quase por acaso, capaz de arrebatar tanto atores como espectadores a ponto de
surpreender a ambos. Contudo, a poética cênica de Brites afirma-se pela visualidade, como se
o encenador conseguisse pintar tridimensionalmente por meio de corpos, dispositivos
cenográficos, espaços cênicos, iluminação e indumentária. O texto, princípio organizador do
pensamento desse encenador, também se oferece à construção de imagens mentais e sonoras,
por meio de sua vocalização, aliado à música. Os elementos, portanto, compõem uma totalidade
visual marcante para o espectador: Pode-se “visualizar este encenador a trabalhar como o fará
no atelier, colando, organizando, apagando, riscando, colando de novo, ideias antigas, recém-
cehgadas, formas com sons, movimentos e, claro, sentidos também” (SOLMER, 1994: 169),
claros estãos seus modos de escrever a encenação.

Procedimentos de criação: estágios, textos de trabalho, a tríade dramaturgia-cenografia-


encenação e a consciência do ator em cena

“Criar é escolher entre uma infinidade de hipóteses”, João Brites afirma inúmeras vezes
em textos e também nas suas aulas na ESTC. Seu processo criativo tem início com a escolha
do texto, que sempre passa pela aprovação do grupo ou, mais recentemente, da Direção
Artística. Sara de Castro ressalta a capacidade do encenador de lançar ideias e linhas de ação
para os espetáculos, indicando os constragimentos que são postos desde o princípio, mas tendo
alargada a abertura para outras tantas hipóteses, que podem surgir do elenco ou de outros
integrantes da equipe. Ele corrobora:
185

Quer dizer que é perfeitamente admissível que nos primeiros ensaios ou nas primeiras
reuniões existam contributos que pareçam não ter sentido nenhum. À partida não se
trata de construir uma lógica demasiado coerente e em total sintonia com os princípios
dramatúrgicos estabelecidos. O contraste insólito, a inesperada complementaridade e
até a aparente aberração disparatada podem aumentar o número de hipóteses e serem
determinantes para um mais multifacetado esclarecimento dramatúrgico. (BRITES,
2011)

Os processos criativos têm início com os estágios, sistema laboratorial que o grupo vem
perseguindo ao longo dos tempos e que atua como uma preparação para os ensaios propriamente
ditos. Normalmente, a direção artística e o elenco isolam-se fora da sede de trabalho em
períodos que variam de dias a semanas, conforme disponibilidade e/ou necessidade. Algumas
vezes os estágios ocorrem até um ano antes da montagem se concretizar, como no caso de
Ensaio sobre a cegueira. Todos os integrantes envolvem-se em conversas, discussões a respeito
do assunto tratato pelo texto escolhido, realizam workshops, experimentações, construindo
coletivamente uma partilha do universo a ser encenado. Às diretrizes pré-formuladas que
orientam o encenador (seu projeto de encenação que ele denomina como “mapa de
desenvolvimento”) vão se somando contribuições de todos os artistas, colocando em causa
algumas proposições, reafirmando outras e agregando novas. Os estágios parecem funcionar
como uma espécie de incubadora de criação, em que ideias, conceitos e perspectivas têm a
oportunidade de serem testadas, discutidas e amadurecidas. A primeira versão da dramaturgia
é escrita pelo encenador na tentativa de materializar e visualizar o conceito e a proposta da
montagem, mas que será reescrita ao longo do processo, principalmente no encontro com o
elenco. Para João Brites, o tempo disponível para os estágios é fundamental para

deixar assentar pressupostos e sugestões para que naturalmente venha ao de cima o


que não ficou esquecido. A leitura actualizada do que parece essencial baseia-se numa
seleção das coisas que queremos repetir e queremos ver esclarecidas sem sermos
capazes de compreender totalmente. Interessa-nos o que fica ainda interrogado e o
que alimenta o enigma, ou os enigmas que iluminam os conteúdos sem os reduzirem.
(BRITES, 2011)

Seu primeiro procedimento dramatúrgico é o confronto do mapa de desenvolvimento


com o texto original visando à construção de um apêndice textual. Em seguida, parte para outra
seleção, dividindo o que será colocado em discurso direto e o que ficará nas didascálias, em
segundo plano, como sugestão de subtexto para a cena e os atores. O critério orientador dessa
186

divisão é determinar o que pode ser mostrado pela cena e aquilo que pode ser dito pelos
personagens, buscando não incorrer numa ilustração do texto falado. “Não vou dizer e
demonstrar. Vou fazer uma seleção que abra no discurso verbal algo que o discurso visual não
contém. Quando eu não resolvo o discurso visual tenho tendência a estabelecer uma
complementaridade no discurso verbal.” (BRITES, 2011).

O processo estrutura-se a partir de um eixo que determina os conflitos principais e


secundários e como se desenvolvem, verificando onde estão os momentos de articulação entre
eles, quando muda a tensão, como se cria uma dinâmica narrativa e de que forma pode-se
investir numa imprevisibilidade para o espectador. “Há a necessidade de uma estrutura de
desenvolvimento, mas também há um jogo constante com o acaso e a intuição. Não me submeto
totalmente às regras que estabeleço.” (BRITES, 2011). A abertura e o compartilhamento das
ideias, principalmente com os atores, é o diferencial desse modo de condução processual. Sara
de Castro observa o status de criador que o ator tem no grupo:

Os atores aqui são criadores, absolutamente. Não no sentido de serem co-criadores e


assinarem uma criação coletiva. A autoria é do João, isso é inequívoco. Mas começa-
se muitas vezes os processos a perguntar aos atores “que sentido tem isto para vocês?”
ou “como é que vocês se posicionam face ao que vamos fazer?”. Portanto o ator é
sempre convocado a uma implicação pessoal, a uma contribuição, não só a um
posicionamento em relação ao seu trajeto artístico, mas, sobretudo, a um compromisso
com as suas próprias convicções pessoais, políticas, etc, amores, desamores, tudo.
Tudo é matéria para o processo criativo e o João aproveita-se, entre aspas, dessas
contribuições para a construção do espetáculo. (CASTRO, 2011)

A dramaturgia é a coluna vertebral da criação de João Brites, que não a dissocia da


cenografia e da encenação. Trata-se de uma escrita algutinadora, que elabora a proposta de
criação de maneira artística, analítica e teórica, realizada por meio dos textos de trabalho. Esses
são a tradução em escrita da concepção geral do espetáculo, que determina ainda as opções
estéticas, culturais e políticas e os modos de relação com o espectador. Está ligado diretamente
ao conceito de dramatografia, termo cunhado por João Brites para pensar numa escrita que
envolve a concepção espacial e que remete à etimologia de cenografia (escrever a cena), o que
“evidencia uma prática baseada na mão, no traço, num pensar pictórico, que conduz a mente ao
espaço e à ocupação desses espaços, por conseguinte, ao gesto no interior desse espaço.”
(TEATRO O BANDO, 1980: 20). A dramaturgia, por conseguinte, não se restringe ao texto
187

falado dos personagens e nem às indicações para a encenação: é uma escrita que busca
determinar os aspectos globais do espetáculo.

O texto de trabalho divide-se em quatro colunas: a primeira apresenta o texto a ser falado
pelos personagens e os diálogos; a segunda inclui a descrição da ação, títulos das cenas/quadros,
rubricas e partitura gestual; a terceira busca apontar os efeitos pretendidos na cena (música, luz,
projeções) e a última a cronologia temporal do espetáculo. Esse material dramatúrgico permite
dois tipos de leitura: por um lado há a verticalizada, em que se pode perceber a sequência de
cenas e acontecimentos, enquanto a horizontalizada oferece a perspectiva da simultaneidade,
ou seja, indica qual o subtexto do ator/ cena no momento em que se fala um determinado texto
e quais os efeitos cênicos, como se pode observar abaixo numa reprodução da dramaturgia de
Gente feliz com lágrimas (2002: 4):

TEXTO DE TRABALHO

1 2 3 4

RECORDAÇÕES DA CASA........3 3........................... N (90) / M (00-01) LUM B 02: Solar 02/19 05:00
Desiste de procurar. Pousa as malas e 05:02
é como se chegasse a sua casa. Imita 05:04
os barulhos das coisas. Olha para a Voz Marta: bébé 05:06
porta que acaba de transpôr e Nuno: ar agudo 05:08
NUNO 90 surpreende-se de a ver aberta. Motor Marta: pulsos 05:10
A porta range sob o impulso do Nuno: coluna su 05:12
joelho. O seu vidro fosco tilinta nas 05:14
calhas. (460) 05:16
ILUM A 05: Pernas 05:18
MARTA 3 MESES Repara na imagem de um bébé que se 05:20
Uáhh!... encolhe como um novelo de lã. 05:22
Compreende a intençao: 05:24
05:26
NUNO 90 Tenho a perfeita consciência de não 05:28
É o pior momento da minha vida. Não estar sonhando. E... 05:30
estou vivo nem morto. Apenas entre o 05:32
tudo e o nada de uma coisa que não 05:34
existe. (454) 05:36
Nuno continua o jogo de melhor se 05:38
relacionar com ela através da viagem 05:40
MARTA 6 MESES no tempo. Aproxima-se do bébé para 05:42
Uáhh! Uáhh!... se proteger do mundo. 05:44

Examinando a primeira coluna (da esquerda para a direita) tem-se o título da cena
“Recordações da casa”, acompanhado na segunda por indicações da idade que os personagens
têm: N [Nuno] (90) [anos] e M [Marta] 00-01 [do nascimento a 1 ano]. A composição mostra
na terceira coluna referências à iluminação “solar” da cena. Os diálogos são acompanhados pela
188

rubrica que anuncia a idade dos personagens, “NUNO 90”, “MARTA 3 MESES” e insere as
páginas do romance em que foram extraídos os respectivos textos, “460”, “454”, o que já
explicitar o cortar e colar sarrazaquiano, pois não obedece à sequência do original.
Paralelamente há as rubricas da encenação e orientações à interpretação: “Desiste de procurar.
Pousa as malas e é como se chegasse a sua casa. Imita os barulhos das coisas. Olha para a porta
que acaba de transpor e surpreende-se de a ver aberta.” O dramaturgo-encenador incorpora às
rubricas fragmentos do romance, que na dramaturgia se convertem em subtexto para o ator,
como pode-se encontrar destacado por cor diferente no texto de trabalho: “Tenho a perfeita
consciência de não estar sonhando. E...”.

A dramaturgia de João Brites realiza uma nova escrita a partir do texto original. Destaca-
se um fragmento de Jerusalém para demonstrar algumas operações dramatúrgicas, como a
passagem do discurso indireto (narrador do romance) para o direto (personagem da
dramaturgia): os trechos em negrito referem-se aos que foram suprimidos, enquanto os
sublinhados são aqueles que passaram para o texto falado do personagem, restando os demais
à rubrica (segunda coluna):

ROMANCE TEXTO DE TRABALHO (COLUNAS 1 e 2)

3
A única mulher que
A única mulher que frequentava a casa de Hinnerk
frequentava a casa de Hinnerk era era Hanna. Ela era como que a
Hanna. Ela, dada as sua noiva. Parte do dinheiro
circunstâncias, era como que a sua que Hanna ganhava deixava-o
noiva. na casa do seu noivo, mas não
Parte do dinheiro que Hanna havia aquilo a que se pudesse
ganhava deixava-o na casa do seu chamar de contrato, nem
noivo, mas não havia aquilo a que se sequer invisível. Tirava o
pudesse chamar de contrato, nem dinheiro da sua carteira e
sequer invisível; não se estabelecer pousava-o na mesa da sala com
qualquer proporção exata entre o a mesma tranquilidade com
que Hanna ganhava na que deitava as cinzas do
prostituição e o que deixava em cigarro no cinzeiro.
cima da mesa, quase sempre sem
qualquer comentário, como se
fizesse afinal parte de um hábito,
de um movimento de mulher.
Tirava o dinheiro da sua carteira e
pousava-o na mesa da sala de
Hinnerk com a mesma
tranquilidade com que deitava as
cinzas do cigarro no cinzeiro. Como HANNA 41 FALA De facto o
se de facto o dinheiro deixado não dinheiro que te deixo não é algo
fosse algo de significativo, de de significativo, de importante
importe para a existência, mas sim, para a existência, mas sim, como
189

como as cinzas do cigarro, um resto, as cinzas do cigarro, um resto, o


o desperdício reles da noite anterior. desperdício reles da noite
A expressão isto é o que sobrou da anterior. (.) O dinheiro é
noite anterior tomava assim um assumido como algo secundário,
duplo sentido: aquele dinheiro era
uma sobra, não era o importante, o Isto é o que sobrou da noite
importante fora sucedido de noite, anterior.
com ela. O dinheiro era assumido
como algo secundário, parecendo tomava assim um duplo
ser o prazer de Hanna com os sentido: aquele dinheiro era
homens a parte principal. Eu uma sobra, não era o
divirto-me de noite e no fim sobra importante, o importante fora o
isto: o dinheiro; era este o sucedido de noite, com ela. Era
sentimento do subtil daquele gesto este o sentido subtil daquele
despreocupado, o de deixar as notas gesto despreocupado, o de
sobre o tampo da mesa. deixar as notas sobre a mesa.
Porém, aquele era o único HINNERK 31 FALA É o teu
dinheiro de Hinnerk. Não o prazer com os homens a parte Hinnerk agarrava com a mão
agradecera uma única vez a Hanna, principal… direita o dinheiro, antes de sair
nem sequer se tornara consciente para a rua, amachucando-o
deste facto: aquilo – o dinheiro HINNERK 31 EXPLICA como se fosse papel, e
deixado sobre a mesa – era já um Divirte-se de noite e no fim colocava-o no bolso das calças,
facto, um dado adquirido, de certa sobra isto: o dinheiro; mas era como se nada
maneira uma circunstância exterior sucedesse. Não tinha
que, com a repetição ao longo dos HANNA 41 FALA O único consciência deste gesto, aquele
anos, adquirira certas características dinheiro de Hinnerk. Não é? dinheiro não era apenas dele,
orgânicas, tornara-se anatomia, era ele.
pertencia-lhe, tal como o seu medo. HINNERK 31 FALA Não o
Agarrava com a mão direita o agradeci uma única vez, nem sequer eu próprio tomei
dinheiro, antes de sair para a rua, consciência deste facto:
amachucando-o como se fosse HANNA 41 EXPLICA O
papel, e colocava-o no bolso das dinheiro (.) adquiriu
calças, mas era como se nada características orgânicas,
sucedesse. Não tinha consciência tornou-se anatomia, pertence-
desse pequeno gesto, aquele lhe, tal como o seu medo.
dinheiro não era apenas dele, era
ele.

(TAVARES, 2007: 70-1) (JERUSALÉM, 2008: 13)

Com essa divisão e alguns rearranjos, o encenador-dramaturgo revela suas escolhas


entre o que será falado pelo personagem e aquilo que somente o ator deve ter conhecimento
para sua composição. Ele prefere dosar a utilização de textos narrativos-descritivos, dando mais
espaço àqueles que servem melhor para a construção de diálogos, dramatúrgicos e cênicos, por
sua enunciação direta. A voz do narrador, por sua vez, neste excerto é transferida para o
personagem em algumas situações de explicação ou pensamento: “HANNA 41 EXPLICA O
dinheiro (.) adquiriu características orgânicas, tornou-se anatomia, pertence-lhe, tal como o seu
medo.”.
190

No Ensaio sobre a cegueira, a profusão de diálogos e falas no romance de Saramago


corroborou prontamente para sua transferência ao texto dramatúrgico. João Brites reconhece
que, por isso, foi o texto mais fácil que já adaptou. Vejamos no quadro abaixo, em que foram
destacados em negrito os textos utilizados em discurso direto, enquanto os sublinhados são os
textos descartados que não foram aproveitados nas rubricas:

ROMANCE TEXTO DE TRABALHO (COLUNAS 1 e 2)

O médico disse, Sentem-se, por MÉDICO: Sente-se, por favor, O Médico vai ajudar o paciente a
favor, ele próprio foi ajudar o Conte-me lá então o que se passa acomodar-se. Tocando-lhe na
paciente a acomodar-se, e depois, consigo. mão, falou directamente para ele.
tocando-lhe na mão, falou
directamente para ele, Conte-me CEGUINHO: Vejo tudo branco, O cego explica que ficou
lá então o que se passa consigo. senhor doutor. subitamente sem ver, e que um
O cego explicou que estando homem o acompanhou a casa
dentro do carro, à espera de que o porque ele sozinho não podia
sinal vermelho mudasse, tinha valer-se.
ficado subitamente sem ver, que MÉDICO: Nunca lhe tinha
umas pessoas acudiram a ajudá- acontecido antes,
lo, que uma mulher de idade, pela
voz devia ser, dissera que aquilo CEGUINHO: Nunca, senhor
se calhar eram nervos, e que doutor, eu nem sequer uso
depois um homem o acompanhara óculos,
a casa porque ele sozinho não
podia valer-se, Vejo tudo branco, MÉDICO: E diz-me que foi de
senhor doutor. Não falou do repente,
roubo do automóvel.
O médico perguntou-lhe, CEGUINHO: Sim, senhor
Nunca tinha acontecido antes, doutor,
quero dizer, o mesmo de agora, ou
parecido, Nunca, senhor doutor, MÉDICO: Como uma luz que se
eu nem sequer uso óculos, E diz- apaga,
me que foi de repente, Sim,
senhor doutor, Como uma luz CEGUINHO: Mais como uma O cego abre-os muito, como para
que se apaga, Mais como uma luz que se acende, facilitar o exame mas o médico vai
luz que se acende, Nestes últimos instalá-lo por trás de um aparelho.
dias tinha sentido alguma MÉDICO: Bom, vamos lá então Como um confessor a olhar
diferença na vista, Não, senhor observar esses olhos. Apoie aqui directamente para dentro da alma
doutor, Há, ou houve, algum caso o queixo, mantenha os olhos do pecador.
de cegueira na sua família, Nos abertos, não se mexa.
parentes que conheci ou de quem
ouvi falar, nenhum, Sofre de CEGUINHA: Verás como tudo Aproxima-se dele, pondo-lhe a
diabetes, Não, senhor doutor, De se irá resolver. mão no ombro. O médico sobre e
sífilis, Não, senhor doutor, De baixa o sistema binocular.
hipertensão arterial ou MÉDICO: Não lhe encontro Principia o exame. Não encontra
intracraniana, Da intracraniana qualquer lesão, os seus olhos nada. Afasta-se do aparelho,
não sei, do mais sei que não sofro, estão perfeitos. esfrega os olhos, Recomeça o
lá na empresa fazem-nos exame desde o princípio, sem
falar, e quando termina tem na
inspecções, Deu alguma pancada cara uma expressão perplexa.
violenta na cabeça, hoje ou ontem,
Não, senhor doutor, Quantos anos
tem, Trinta e oito, Bom, vamos lá
então observar esses olhos. O
191

cego abriu-os muito, como para


facilitar o exame, mas o médico
tomou-o por um braço e foi
instalá-lo por trás de um aparelho
que alguém com imaginação
poderia ver como um novo
modelo de confessionário, em que
os olhos tivessem substituído as
palavras, como o confessor a olhar
directamente para dentro da alma
do pecador, Apoie aqui o queixo,
recomendou, mantenha os olhos
abertos, não se mexa. A mulher
aproximou-se do marido, pôs-lhe
a mão no ombro, disse, Verás
como tudo se irá resolver. O
médico subiu e baixou o sistema
binocular do seu lado, fez girar
parafusos de passo finíssimo, e
principiou o exame. Não
encontrou nada na córnea, nada na
esclerótica, nada na íris, nada na
retina, nada no cristalino, nada na
mácula lútea, nada no nervo
óptico, nada em parte alguma.
Afastou-se do aparelho, esfregou
os olhos, depois recomeçou o
exame desde o princípio, sem
falar, e quando outra vez terminou
tinha na cara uma expressão
perplexa, Não lhe encontro
qualquer lesão, os seus olhos
estão perfeitos.

(SARAMAGO, 1995: 27-8)


(ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA, 2004: 7)

O procedimento da edição (ou subtração) e o deslocamento são caros ao exercício de


escrita de João Brites, que permitem promover uma profunda cirurgia no texto original,
destacando e separando aquilo que lhe interessa. É curioso perceber que a mulher do primeiro
cego, que o acompanha na visita ao médico, é assinalada na dramaturgia como “Ceguinha”,
mas trata-se de um engano, pois apenas o paciente naquele momento sofria do mal da cegueira
branca. Os textos em discurso direto no romance se prestam diretamente à sua passagem para
o texto do espetáculo, em que a escrita de José Saramago é preservada.

Pela edição, o exercício da liberdade defendido pelo encenador-autor consente que ele
promova saltos na ordem do romance, servindo-se do gesto de recortar e colar e por isso
remontar o texto original. Trata-se de reunir na mesma cena trechos recolhidos em páginas e
capítulos distintos (assinalados na primeira coluna entre parênteses, 182/ 304/ 182/ 225),
192

realizando elipses narrativas com vistas a manter concentrado aquele conflito cênico, como em
Gente feliz com lágrimas (2002: 16), cujo fragmento do texto de trabalho inclui ainda mapa da
cenografia, apontando a posição em que os personagens devem estar naquele momento (o
círculo e o quadrado em negrito):

TEXTO DE TRABALHO (COLUNAS 1, 2 e 3)

NUNO 21 Muito perturbado, Nuno, dá finalmente


Em breve serei chamado a cumprir o serviço pela presença de Marta e fala com ela.
militar. (182)
Manda vir um chá quente para os dois,
espia no rosto do marido uma expressão
MARTA 25 de perplexidade.
Procuremos um lugar para nos sentarmos.
(304)
Sentam-se na mala.
NUNO 21
É o destino da minha geração.

MARTA 25 Nem o próprio Nuno acreditava em


Com um pouco de sorte ou o empenho de semelhante possibilidade. Ou algum
importantíssimo empenho. (182)
alguém ligado ao regime, poderás não ser
mobilizado para a guerra. (182)

NUNO 21 Subir as escadas dum navio. E depois


Só um milagre me pode salvar de dizer passar dois anos a enviar-vos aerogramas
adeus até ao meu regresso, como os com mentiras sobre a desgraça das noites
outros dizem. africanas.

MARTA 25
Ele abraça-a, distraído, como se se
No dia da tua ida para Mafra, vou despedir- despedisse.
me de ti à estação do Rossio, choro
perdidamente no teu ombro e tenho pena da Marta ao tentar acalmá-lo vai se
tua cabeça rapada de recruta. lembrando de
alguns bons momentos que viveram
juntos.
NUNO 21
Estou a pensar em fugir para França. (225)
Queres vir até Paris ou Estocolmo? ILUM A 12: Recruta

A cenografia, sendo a visualização da dramaturgia, adquire no trabalho de Brites o status


de ação visual, como referido no primeiro Manifesto do grupo, pois deve acompanhar o
desenvolvimento da ação cênica, a evolução dos conflitos e a intensidade dramática das
situações. Por não se resumir ao pano de fundo da ação, a cenografia independe de dispositivos
materiais, podendo se restringir a um palco nu onde o corpo e o gesto do ator são os elementos
cenográficos que estabelecem relações com aquilo que o rodeia, orientação que recobra os
princípios do teatro de Jerzy Grotowski.

Compete ainda à cenografia as relações que serão demarcadas entre o ator e o público,
a localização da plateia e o campo de visão que oferece a cada um dos espectadores. A potência
193

visual da cenografia deve atentar-se para a conjugação de elementos binários como perto-longe,
claro-escuro, à frente-atrás, que se convertem em aspectos de tridimensionalidade. Para o
dramaturgo-encenador-cenógrafo João Brites a cena versa como uma escultura em que a ação
visual determina os volumes, sombras, movimentos, alternando-se entre o que dá a ver e o que
esconde.

Como artistas, estamos empenhados em tornar visível, mas não no sentido de uma
revelação. O jogo de ocultação, sendo fundamental para quem quer criar
ambiguidades e despertar consciências, manifesta assim a vontade de partilhar
cumplicidades, de indiciar, sugerir e insinuar caminhos num movimento contínuo de
interrogação e inquietação.50

A dicotomia entre o visível e o não-visível estende-se às reflexões de Didi-Huberman,


para quem a obra de arte é fundamentalmente polissêmica, ambígua, plural, permitindo diversos
modos de ver (e ler) as imagens. O sentido da visão, cada vez mais caro à sociedade
contemporânea, conforma em seu pensamento uma dialética do visível: aquilo que a princípio
pode ser visto inelutavelmente oculta outras visibilidades, para utilizar termos do próprio autor.
Isso porque a relação entre o sujeito e o objeto passa a ser de reciprocidade: há algo no objeto
que faz com que o olhar seja devolvido a quem olha. O retorno do olhar imprime inquietação
sobre o sujeito a partir do duplo movimento reconhecimento/ estranhamento, pois ao ver, algo
escapa da visão. “Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre
uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele
que olha e aquilo que é olhado” (DIDI-HUBERMAN, 1998: 77).

Se para Didi-Huberman todo objeto artístico reside na visualidade, o ato de ver liga-se
diretamente ao corpo, pois a obra toca o sujeito que a vê. Dessa forma, impõem-se duas atitudes
diante de uma obra de arte: na primeira, o olhante quer ver além do que é visto (crença) enquanto
na outra se vê apenas o que é visto (tautologia): ambas requerem um olhar puro, um olhar sem
sujeito, pois recusam à imagem a possibilidade de abertura para que ela nos olhe. Para desfazer
o impasse entre as duas atitudes, o filósofo aponta o conceito de “imagem crítica”, em que a
imagem se desdobra em pensamento e memória e reconhece-se sua dimensão temporal. Essa
imagem interroga o olhante e exige resposta, mas uma resposta que vai modificar o sujeito que

50
Texto escrito por João Brites para sua participação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado Do outro lado:
o que fazemos transcende o que pensamos.
194

responde a ela. A imagem crítica produz deformações e por isso suscita outras imagens: ao
inquietar o olhante, obriga-o a olhá-las de um modo verdadeiro.

Os espetáculos encenados por João Brites, por seu caráter eminentemente plástico,
oferecem ao espectador imagens ambíguas, plurais, que justapõem elementos distintos (corpos,
projeções, dispositivos, máquinas de cena, texturas, cores, tons, volumes) que inquietam quem
olha, principalmente por corroborarem a construção da ação visual que as coloca em movimento
e em estado de transformação. São imagens intrigantes porque investem na abstração, e o
princípio teatral da transformação promove nelas deslocamentos de sentido, altera a percepção
de quem olha, desestabilizando noções como permanência e estabilidade. A composição dos
quadros cênico-visuais desse encenador joga com a apreensão e a fruição do público, exigindo
um olhar atento, crítico, em busca de respostas. Ao contrário de outros objetos artísticos, como
pinturas e esculturas, que permitem um olhar mais demorado pela sua constituição estável, o
teatro, dinâmico, ainda conjuga suas imagens com outros elementos verbais e sonoros,
construindo uma intrigante rede de sentidos.

A encenação, terceiro elemento da tríade que estrutura o pensamento artístico de Brites


(e d’O Bando), é “a concretização visual, auditiva e sensitiva que valoriza e clarifica os
conflitos, eliminando o supérfluo, tornando-os perceptíveis para o público. À encenação cabe a
definição do espaço, do tempo e do ritmo. […] A encenação é a memória colectiva.”
(TEATRO O BANDO, 1980: 16, grifos como no original). Partindo de uma análise da base
dramatúrgica, a encenação deve colocar em evidência e esclarecer as linhas de força do
espetáculo, combinando os elementos, estabelecendo prioridades e atuando como “o olho
exterior”. Assim, tem-se a encenação como a atitude que faz a intermediação entre a
dramaturgia e o espectador e determina o que será visto/ ouvido.

A linguagem da representação teatral, para João Brites, está diretamente relacionada à


abstração que se torna um recurso decisivo para instaurar o espaço da ficção. Seu gosto de
encenar textos não escritos para o palco, para além da liberdade de criação que permitem, está
ligado à convicção de que o teatro não se restringe a uma exposição (verbal) de ideias ou
conversas, mas à revelação de conteúdos que pode ser dada “através da relação com o espaço,
com a corporalidade dos atores, das situações e tensões imagéticas implícitas ou explícitas e de
muitas outras formas que ultrapassam o simples conteúdo das palavras que são ditas” (BRITES,
2009a: 271).
195

A dialética do visível nos espetáculos britianos assume distintas configurações e


relaciona-se em diversos níveis com os espectadores. Em Caras ou coroas (1981), a cenografia
separava o público em dois grupos, em que cada um via o espetáculo de um lado e no intervalo
trocavam de lugar. Ao apresentar duas versões ao público, a peça colocava em causa a relação
que tinha estabelecido com os personagens que, na realidade, não eram aquilo que pareciam
ser. De outro lado, na ocupação de espaços não convencionais a demarcação entre o espaço do
público e da representação pode estar diluída, permitindo que pessoas tenham pontos-de-vista
distintos, pois assistem de lugares diferentes, o que modifica a percepção pelo olhar. João Brites
rememora Auto dos altos e dos baixos (1979), encenado ao ar livre no Jardim Constantino em
Lisboa, onde um espectador insistia em assistir por trás do cenário: seu interesse estava em ver
os bastidores, desvendar a teia de construção da encenação. A dúvida reside em saber se o
espetáculo oferecia dois pontos-de-vista ou dois espetáculos distintos? Ao dar a ver o invisível
o espetáculo modifica o olhar do público sobre esses lugares não-teatrais ou teatralizados.

Gente singular (1993) colocava os espectadores num comboio (trem) a viajar por
paisagens urbanas, algumas modificadas pela ocupação de personagens, o que oferecia outros
modos de ver a cidade. Em outros casos, a proposta de itinerância da plateia, que assiste em
movimento, abre múltiplas possibilidades de ver: em Montedemo (1987), cada espectador
recebia uma lanterna para iluminar a cena, atribuindo-lhe o poder de escolher o que quer ver e
se quer ver. “A capacidade de ver, de um outro ponto de vista, é um exercício inesgotável de
imprevisível criatividade”, escreve João Brites em outro texto apresentado na Quadrienal de
Praga em 2010. Assim, o encenador e seu grupo ampliam para o espectador o sentido da visão,
principalmente nesses casos em que a localização da plateia está em aberto, pois permite que
todo o seu corpo olhe e, na percepção de Didi-Huberman, seja olhado.

A consciência do ator, sua presença e planos de expressão: corporalidade, oralidade e


interioridade

Pode-se perceber que a tríade dramaturgia-cenografia-encenação desenvolve-se em


larga medida pelas mãos de João Brites, salvo os casos em que divide algumas dessas tarefas
com outros artistas, como o cenógrafo Rui Francisco. Entretanto nas duas últimas décadas
passou a dedicar-se mais ao trabalho do ator, o qual vem investigando e propondo uma
196

metodologia estruturada51 a partir da ideia de ator consciente, inspirada nas proposições do


médico, neurocientista (e compatriota) António Damásio. Se o tempo do ator em cena é o tempo
presente, o teatro exige que sua performance mantenha-se em estado de atualização constante,
em que a consciência é a ferramenta decisiva para esse processo. Não se trata de entregar-se à
encenação e mergulhar nela, mas de estar consciente de si, de suas ações, gestos, movimentos
e também de tudo aquilo que o cerca. Tomo o conceito de Damásio para pensar a proposição
de João Brites sobre o trabalho do ator:

[A] consciência é um estado mental em que temos conhecimento de nossa própria


existência e da existência daquilo que nos rodeia. A consciência é um estado mental –
se não houver mente, não há consciência; a consciência é um estado mental particular,
enriquecido por uma sensação do organismo específico onde a mente está a funcionar;
e o estado mental inclui o conhecimento de que a dita existência ocupa uma certa
situação, de que existem objectos e acontecimentos que a cercam. A consciência é um
estado mental a que foi acrescentado o processo do ser. (DAMÁSIO, 2010: 199)

A novidade dessa investigação é perceber que corpo e cérebro não estão dissociados,
muito ao contrário: “o corpo é o alicerce da consciência”, destaca o neurocientista, pois tudo o
que se passa na mente do sujeito estende-se à cabeça e ao corpo. Entretanto, não se trata de uma
percepção mental, porque a consciência advém de sensações concretas. As emoções passam
pelo corpo a partir de alguns estudos que revelam as interações entre o corpo e mente. Para
Manuela Correia, médica psiquiatra, o corpo é uma entidade viva e, no caso do ator ou daqueles
que se envolvem em atividades criativas, converte-se num circuito emocional que envia
estímulos ao cérebro: “Tem-se chegado a conclusões que consideram, simplificadamente, o
corpo como consciência, ou seja, as emoções tanto vão para o corpo como para o cérebro e
interagem umas com as outras.” (CORREIA, 2009: 107).

A consciência do ator refere-se à percepção do que ele faz e de como faz e inclui o
espectador, não apenas no sentido do público que assiste, mas como um espectador de si
mesmo, por conseguinte um “ator emancipado”: ao aplicar ao intérprete o conceito de
“espectador emancipado” proposto por Jacques Rancière, Brites pretende que o ator assuma sua

51
Essa metodologia vem sendo desenvolvida e aprimorada por João Brites no Teatro O Bando e na Escola Superior
de Teatro e Cinema (ESTC) em que leciona uma disciplina de direção de atores para os alunos do último ano da
graduação em interpretação.
197

autonomia enquanto artista, que esteja em ação consciente e (re)conheça suas características,
maneirismos e recorrências.

É precisamente conhecendo as suas particularidades, os seus vícios, as suas tendências


e inquietações, que o actor pode descobrir novos caminhos e efectuar escolhas mais
acutilantes. […] A consciência do actor em cena defende assim um actor que se
assume enquanto primeiro espectador de si próprio. Acreditamos que este “actor
emancipado” pode ser o sujeito de um jogo de cumplicidades onde a distância serve
de confronto com a realidade para sublimar uma outra forma de expressão. 52

Um de seus procedimentos para o exercício da consciência do ator é a personagem


intermédia, que trata de um estado específico em cena e o reconhecimento das recorrências na
sua maneira ou estilo de interpretação, enquanto artista e pessoa. É uma personagem porque
não incide num estado cotidiano e distingue-se da pessoa física do ator e é intermédia porque
ocupa uma zona diferente do ser ficcional que está encarregado de representar. A personagem
intermédia pode ser tomada, nesse sentido, como uma projeção crítica do ator, a partir da
construção de uma figura, de prefência ambígua, que antecede a personagem ficcional
propriamente dita.

O exercício proposto por Brites para seu desenvolvimento consiste em dois momentos.
Inicialmente cada aluno-ator deve representar em cena a personagem intermédia de um colega,
chamado de “ator visado”, e tomando como referência suas recorrências como intérprete e como
pessoa, ou seja, sua “personalidade cênica”, sem incorrer em ilustração ou imitação. O aluno-
ator deve se apropriar das recorrências do ator visado para desenrolar junto aos demais uma
cena completa, improvisada, com textos na primeira pessoa. A partir do momento que o ator-
visado se reconhece em cena, ele é impedido de participar, colocando-se na condição de
observador de si mesmo na interpretação dos demais.

No segundo momento, ele improvisa sozinho uma cena sobre sua própria personagem
intermédia, utilizando-se de textos na terceira pessoa, como uma “resposta em cena” do que viu
e ouviu. É interessante observar que o exercício prescinde do procedimento de multiplicar
cenicamente um mesmo personagem e colocá-lo em interação consigo mesmo, além de oferecer
ao ator visado a dicotomia identificação/ estranhamento. O enigma sobre a identidade da

Texto escrito por João Brites e Miguel Jesus para a apresentação na Quadrienal de Praga, em 2011, intitulado
52

Do outro lado das sombras.


198

personagem intermédia e seu deciframento se dá em cena, em ação, pois não há combinação


prévia sobre quem será o aluno-ator escolhido. Os resultados artísticos desse procedimento
artístico-pedagógico refletem-se ainda nas transições que um ator precisa fazer de um
personagem a outro, sem perder a qualidade de sua presença:

Esse deslocamento visa a uma consciência de cada actor de sua presença em cena e,
sobretudo, das suas recorrências estilísticas, a partir da sua personalidade, do seu
imaginário particular, do seu corpo. A consciência através de um olhar exterior serve
um propósito pedagógico, mas envolve-se ainda de importantes questões estéticas. De
facto, trata-se de identificar aquele preciso momento de desvio, a subtileza do primeiro
instante de devir, em que um se torna outro. (MANUEL, 2009: 119-20)

Não basta ao ator nesse campo apenas reconhecer e desenvolver seu próprio personagem
nos aspectos físicos e vocais, visto que seu imaginário e discurso também integram a
composição da personagem intermédia. João Brites tem conceituado o ator de sua preferência
como um “ator-artista”, porque atuar significa expressar-se através do corpo e da voz, ter uma
interioridade singular, criar rupturas no estilo de interpretação (do mais realista ao mais
grotesco), não incorrer em registros muito formais (porque o teatro é, sobretudo, a relação com
as emoções) e ter a consciência de sua função dentro da sociedade. Espera-se do ator-artista
mais do que uma performance potente em cena, mas de sua posição artística, ética e política no
contexto social em que se insere:

O ator é um duplo manipulador: manipula as próprias emoções – claro que ele nunca
está fora de si e, portanto, implica-se e gasta-se nessa atitude de manipulação interna
– e manipula a emoção do público quando, como artista, o consegue fazer bem. É por
isso mesmo que a sua responsabilidade cívica e ética é tão elevada. (BRITES, 2009b:
25)

A metodologia para o trabalho do ator de João Brites parte do princípio de que tudo que
é feito em cena deve ser observável do ponto-de-vista do espectador, para isso sua presença
deve ser dilatada. Os exercícios iniciais visam desenvolver no ator a direção do olhar, o ponto
de fuga (perspectiva), o corpo no espaço, interdependência entre os elementos, mobilidade
(dinâmico versus estático), dilatação do tempo-presença. Recobrando o “estado de alerta” de
Eugenio Barba, insiste que o estar em cena requer do ator outra qualidade de expressão, para a
qual a personagem intermédia é o principal mecanismo.
199

A presença refere-se a um movimento que se processa no interior do ator, visível e


observável porque relacionado a uma ocupação real, cuja sensação concreta ativa sua
consciência e permite-o estar no tempo presente. “O exercício da Presença visa exercitar a
dimensão sensível da presença do actor em cena através do controlo do olhar, de subtis
passagens expressivas ou da postura do corpo, em silêncio” (MANUEL, 2009: 120). Entretanto,
sua presença deve instituir um enigma, um mistério, compondo uma “harmonia desarrumada”
por meio de dissociações entre os três planos de expressão do ator: corporalidade, oralidade e
interioridade, que por sua vez levam à tensão e ao conflito cênicos. Esses planos são conceitos/
práticas colocados por Brites e pel’O Bando para definir as camadas de trabalho do ator e estão
vinculados à dramaturgia, ao que se vai contar, ao significante/ significado.

A oralidade53, que no grupo tem sido desenvolvida e pesquisada por Teresa Lima,
refere-se a tudo o que pode ser produzido pela cavidade bucal do ator como textos, palavras,
sons, respirações, ruídos etc. Um tanto influenciada por Artaud, a oralidade revela que o
“interesse pela palavra como matéria sonora e como efeito inesperado vai abrindo à admissão
da sua ambiguidade e polissemia e favorecendo a atualização visual e espetacular de suas
potencialidades significativas” (SERÔDIO, 1994: 148). Para Teresa Lima, a oralidade envolve
tanto os materiais vocais (sonoridades) e verbais (lexicais e gramaticais) quanto se relaciona
com os demais elementos do espetáculo. O trabalho nesse campo prescinde da desconstrução
das recorrências mimético-realistas do cotidiano, investindo numa prática em que se trabalha a
partir do que pode ser perceptível para o espectador.

A oralidade ultrapassa os componentes semântico-sonoros e permite que o ator se afaste


do seu padrão para criar “novas e inesperadas construções vocais. A exploração assumida dos
significantes, a revelação da materialidade da palavra, a manipulação de todos os elementos da
cadeia sonora (timbres, ritmos etc.) abre possibilidades de significação não alcançáveis” (LIMA
in O BANDO, 2009: 111). Os sentidos, por sua vez, serão construídos na relação com a
dramaturgia e com os outros planos de expressão. O automatismo e a superficialidade com que
o trabalho sobre o texto e os recursos vocais conformou, de maneira geral no teatro
contemporâneo, têm levado muitos atores a incorrer em vocalizações monocórdicas, que

53
Coloca-se em causa o termo oralidade, largamente defendido pelo grupo, mas que nesta investigação assume
outras conotações, pois, a partir de Paul Zumthor (2007) refere-se a uma qualidade da língua oral, aquela formulada
em condições de performance, em ação, e que não tem uma escrita que a anteceda. Portanto, prefere-se o termo
vocalidade para se referir ao trabalho da voz sobre um texto escrito, de acordo com o método proposto por Teresa
Lima e pel’O Bando.
200

embalam ou entediam o espectador, muitas vezes por falta de compreensão daquilo que se fala,
e, portanto, afasta-o do compromisso com o espetáculo. Teresa Lima expõe sua crítica às peças
que menosprezam ou desconhecem a potencialidade vocal: “Admito que a reprodução
monotonal de um texto possa ser uma opção estética, mas arrisco que, muitas vezes, é apenas
o reflexo da pouca importância que é dada ao trabalho técnico e artístico sobre a comunicação
desse mesmo texto.” (LIMA in O BANDO, 2009: 151). Em Horas do diabo, o mesmo texto de
Fernando Pessoa dito em três línguas distintas imprimia ações sobre a construção vocal que
colocavam em conflito os personagens, remetendo à contradição das religiões que discordam
dizendo os mesmos princípios.

A corporalidade, que durante muito tempo esteve a cargo de Luca Aprea, consiste na
utilização dos recursos corporais do ator, ainda que a cena peça um rigoroso estatismo, como
movimentos, gestos, partituras físicas etc. Esse trabalho investe em uma especificidade corporal
para cada espetáculo por meio da concepção e da proposta cênico-dramatúrgica, conectando-se
também aos demais planos expressivos e aos elementos da cena. Numa primeira etapa, o ator
desenvolve-se em tarefas-exercícios que propõem obstáculos reais, cujo objetivo é estimular
sua subjetividade a partir de um trabalho concreto, objetivo. “São exercícios que interrogam a
relação com a acção na base da percepção. Confrontado com tarefas reais o actor responde com
acções reais”.

Em uma segunda etapa, o ator passa a reunir fragmentos, formar partituras físicas e
encadear sequências de movimentos sem significado aparente, “embora ligados por algo
invisível que não se interrompe, como o élan de uma subjetividade que vai tomando corpo”
(APREA in O BANDO, 2009: 114). Ao integrar o trabalho da corporalidade aos outros planos
de expressão, as sequências criadas anteriormente passam a compor a escrita cênica por meio
de um vocabulário sensível que permeia todo o espetáculo. Para Luca Aprea, essa última fase
é a mais delicada e variável, pois se trata de um confronto-integração com a cena.

A interioridade, por sua vez, relaciona-se ao universo interior do ator, seu imaginário,
convicções, sentimentos, intenções e emoções, aspectos do mundo não-visível que devem ser
trazidos à tona principalmente pelo olhar e pela máscara facial, onde se revelam “a convicção,
o enigma, a sedução e o compromisso dos actores”54. Aqui, tem-se uma noção radical de

54
Extraído de texto escrito por Eugénia Vasques para apresentação d’O Bando na Quadrienal de Praga, em 2011,
intitulado O “Oikos” de O Bando: da comunidade ao ambiente.
201

subtexto, cuja forma pode simultaneamente corroborar e subverter os sentidos do texto. Ao


relacionar-se com a corporalidade, a interioridade assume um diálogo entre o que é visível e o
invisível e que o espectador pode perceber pela interpretação do ator.

João Brites interroga-se se é possível construir teatro sem que o ator não esteja a fazer
nada, nem falar. Para ele, pode-se desenvolver a presença cênica partindo-se apenas das
emoções, basta que advenham de um pormenor concreto que ofereça ao ator uma sensação. A
escolha desse pormenor oferece soluções inesperadas, além de revelar novos conteúdos,
conjugando a realidade concreta e a ficção. A explicitação e o prolongamento do efeito visível
provocado pela sensação busca criar o interesse no público. Entretanto, não se deve explicitar
tudo porque dessa forma desfaz o enigma que o mantém ligado ao espectador.

As convergências e/ou dissonâncias entre os planos de expressão do ator resultam em


cinco combinações-hipóteses distintas, em que a mais radical é a que exige uma verdadeira
dislexia do elenco: dizer uma coisa, fazer outra e pensar (ou sentir) outra. Um dos exercícios de
Brites praticados com os alunos-atores da ESTC pedia uma corporalidade de oprimido,
enquanto nos planos da interioridade e da oralidade devia-se explorar o opressor (e vice-versa),
construindo intrigantes ambiguidades. As distintas possibilidades de combinação entre os
planos desestabilizam o ator, exigem dele presteza e consciência em cena, cujo objetivo é tornar
o personagem credível e visível aos olhos da plateia. Sobre a metodologia que vem praticando,
João Brites assinala algumas importantes reflexões sobre a capacidade que tem de se expandir
e não reduzir sua aplicabilidade a cada distinto espetáculo:

O que é extraordinário é que o fato de usarmos esta terminologia e de exercitarmos


uma metodologia que se vai tornando cada vez mais coerente e não condiciona o
resultado estilístico da representação. Sabiamente contido, o ator também pode ter
uma interpretação mais realista que se adeque melhor a uma intervenção no cinema.
O ator mais consciente cenicamente consegue, como um bom condutor de automóvel,
estar atento a uma grande multiplicidade de informações, hierarquizá-las e reagir em
conformidade. (BRITES, 2009: 25)

Ainda que o ator não seja o eixo estruturante dos espetáculos de Brites, o personagem é
o elemento que ocupa o espaço cênico e o legitima, além de contribuir na constituição visual
dos trabalhos, principalmente porque a opção pelo grotesco em detrimento de uma exibição
mais realista é a tônica da interpretação. Dessa forma a representação não-realista demanda do
ator a investigação de outras hipóteses e soluções para sua criação que ultrapassem os vícios e
202

as recorrências, muitas vezes automatizados, em que a mimese e o realismo costumam incorrer.


O artifício, o bizarro, a marioneta, o absurdo são os pilares do ator d’O Bando, como os
personagens-marionetes de Os anjos em que os pés falsos e as mãos agigantadas imprimiam
gestos não-miméticos e construíam fortes efeitos corpóreo-visuais, como observou Maria
Helena Werneck.

A metodologia de interpretação do ator desenvolvida por Brites prevê que ele deva
exercitar em cena gradações entre personagem mais realista (grau menor, próximo da
personagem intermédia) e não-realista (grau maior, caricato, grotesco), não exatamente de
forma linear (crescente ou descrescente), mas impondo rupturas e passagens para graus distintos
e não sequenciais. A isso somam-se os três planos de expressão do ator que podem variar em
combinações, de acordo com o foco e a gradação de cada um deles, criando assimetrias e
dissonâncias na disposição do personagem-figura.

O grotesco, cuja composição visualmente é mais formal, desenhada, artificial, é ainda


um recurso de projeção do ator em cena, por sua presença mais dilatada, visível, o que se presta
tanto à encenação dos espetáculos em espaços não-convencionais, em que há maior distância
entre ator e público, como um artifício para combater o realismo. A prática mais usual do
encenador é dirigir o ator à construção do personagem do exterior para o interior, “como se a
forma fosse a única maneira de esclarecer os conteúdos.” (BRITES, 2009b: 22). Por
conseguinte, não se dirige à verossimilhança, mas está a serviço da teatralidade, que se
convenciona pela credibilidade nas relações entre palco e plateia.

Uma característica mais geral do grotesco é a sua miscibilidade, ou seja, sua capacidade
de combinar de forma tensa elementos atrativos e repulsivos, cômicos e trágicos, absurdos e
horripilantes. O grotesco é uma figura ambígua que se encontra na interseção de várias esferas,
“aproveitando-se do cómico, do trágico, do burlesco, do fantasmático, do bizarro, do ridículo e
do satírico” (SOURIAU apud SIMÕES, 2005: 43). A pesquisadora Maria João Simões mapeou
alguns procedimentos para a construção do grotesco: inflação refere-se ao avolumamento
desmedido visando causar estranheza e repulsa, como a obesidade; contrastando, tem-se o
encolhimento por meio da magreza, do definhamento ou da secura; a convulsão dá-se pelo
esgarçamento e contorcionismo do corpo, que conquista uma rigidez e mecanicidade inusitadas;
e o animalesco conjuga características e/ ou detalhes de corpos de animais para compor a
caricatura de um personagem.
203

Em Os bichos, adaptação d’O Bando de contos de Miguel Torga, os corpos dos atores
“besuntados de muitas camadas de argila, a que se soma algum detalhe do corpo animal (uma
orelha, uma cauda) aparecem e desaparecem, flutuando entre a escuridão e a luz.” (WERNECK,
2009: 12). O procedimento de inflação para a construção de personagens caricaturais deu-se na
montagem de Montedemo, onde cada ator criou o corpo, o pensamento e a voz de seu
personagem a partir de um nariz exagerado.

O trabalho de criação do elenco sustenta-se na improvisação motivada pelas linhas


condutoras do projeto dramatúrgico e pelo universo proposto pela encenação. Nega-se a ideia
de interpretação em prol de um work in progress criativo, em que tanto os atores quanto os
demais criadores conjugam seus esforços na partilha da construção em coletivo. Isso requer do
encenador mãos firmes na sua condução e do elenco humildade, concentração, rigor e
disponibilidade para aceitar e contribuir para a solução dos desafios. Os constrangimentos
colocados ao elenco pelo encenador, muitas vezes aceitando o risco e a adrenalina como forças
potentes de trabalho, conduzem a atuação ao estado de performance pela atualização de sua
presença e pela consciência. Assim, “O encenador e os atores, como artistas que são, tecem os
constrangimentos apropriados a cada criação como um desafio que a todos condiciona, mas que
amplia a possibilidade de respostas improváveis.” (BRITES, 2009b: 23).

A filiação de Brites à poética de Brecht constitui-se na relação mais direta entre o ator
e o público em situação de comunicação, pois para ele o ator é, sobretudo, um artista e não
simplesmente um intérprete: portanto devem se assumir e se reconhecer como integrantes de
um mesmo acontecimento (teatral). Consequentemente, ator e personagem divorciam-se, ainda
que haja identificação do primeiro com o segundo, mas principalmente deve estar claro para o
ator que ele finge ser o personagem. Ao aceitar o risco do confronto entre o personagem e o
espectador, exige-se do ator uma maior consciência em cena, além de firmeza, maleabilidade e
prontidão para responder às reações da plateia.

Ainda que a dramaturgia de João Brites privilegie a escolha de textos em discurso direto,
é nos momentos de maior narratividade (discurso indireto) que o ator deve encontrar seu
ouvinte, o espectador, e dirigir-se a ele. Em Jerusalém, há um único momento em que os
personagens narram sobre si mesmos na terceira pessoa (autonarração em discurso indireto ou
o personagem referente), no reencontro de Mylia e Ernst: “MYLIA 39 EXPLICA Mylia sorri;
a voz transformara-se num corpo,/ ERNST 40 EXPLICA Ernst encontrou-a porque veio por
um caminho não material./ MYLIA 39 EXPLICA Mylia pensa: reconheci a tua mão calma.”
204

(JERUSALÉM, 2008: 33). Em outra cena, Mylia e Theodor dirigem-se ao proscênio para
justificar ao público a crise do seu relacionamento conjugal. Utilizando-se da alternância entre
“falar” (diálgo intersubjetivo) e “explicar” (para o público), a cena porta-se como uma janela
que se abre e se fecha ao espectador, transitando entre o dramático e narrativo:

TEXTO DE TRABALHO (COLUNAS 1 e 2)

THEODOR 58 EXPLICA Onde ela não é normal é


na cabeça, nas vontades.

MYLIA 28 EXPLICA É eu sou ‘doente da cabeça’, Adivinhando o discurso interior dele


como os miúdos das redondezas dizem, por vezes
alto, cruelmente, para eu ouvir.
As dificuldades em lidar com Mylia não foram, claro, uma
surpresa para Theodor Busbeck. Ele percebia aquela cabeça,
de certo modo já a normalizara; era capaz de prever com
pouco erro as suas reacções, os arrebatamentos violentos, a
escalada de insultos, os comportamentos ilógicos, opostos
muitas vezes à utilidade imediata. (4) As
técnicas médicas e o quase instinto de Theodor haviam

THEODOR 58 FALA Tenho colocado a relação do acção do sistema de defesa ou por qualquer aproximação a
casal de igual para igual, de personalidade para estranheza que é universal –
personalidade. Não é, por (.) não suportar mais a tua
estranheza, mas sim porque tu Mylia começas a ser
perigosa para ti própria.

THEODOR 58 EXPLICA Depois de vários


episódios violentos, decidi, internar a minha esposa,
no piso dois do Hospício Georg Rosenberg, o mais
conceituado da cidade.

MYLIA 28 EXPLICA Precisamente no dia 31 de


Dezembro, no oitavo ano de vida conjunta.

(JERUSALÉM, 2008: 13)

Ainda relacionado à performance do ator no teatro de João Brites, tem-se a distinção


entre escuta e dependência: a primeira pressupõe um aceite/ um esforço da parte de quem ouve
ou se dispõe a ouvir, enquanto a segunda implica numa inter-relação em que um necessita do
outro porque quer lhe extrair coisas. O ator deve procurar a interdependência com os demais
atores e elementos do espetáculo e para isso deve investir na consciência em cena, jogando no
tempo presente e, dessa maneira, atualizando-se a cada instante para que o espectador reconheça
que todos participam do mesmo acontecimento.
205

Essa metodologia de trabalho do ator e também seu pensamento como dramaturgo,


encenador e cenógrafo, cujos traços principais foram apontados, tem merecido de João Brites a
sua inscrição textual em artigos, comunicações, entrevistas, como forma de registrar os
conceitos, práticas, exercícios e reflexões. Ainda que não tenha efetivado a sistematização do
trabalho visando à publicação, ele confessa as dificuldades do projeto pela ambiguidade que o
envolve: a escrita fixa a ideia e o teatro na prática é e está em movimento; no que pensa hoje
pode não se reconhecer amanhã: “Porque os conceitos e as práticas são tão falíveis e complexas,
que tudo parece redutor quando tentamos imobilizá-las no que fica escrito. Tudo parece
fechado, pretensioso e… dogmático.” (BRITES, 2011). Enquanto isso, tem contado com a
escrita de outros pensadores, intelectuais, críticos, o que certamente implica numa dissonância,
já que costuma não se identificar tanto, ainda que demonstre interesse pelo olhar exterior sobre
sua prática, comportamento que para mim ficou claro no contato durante os meses em que
estivemos juntos para acompanhar seu trabalho. Como leitor e escritor, Brites assume a
responsabilidade de deixar um legado para as gerações vindouras d’O Bando, em que possa
explicitar o seu olhar e a sua coerência.

A literatura como fuga dos lugares-comuns: os romances encenados

Ao privilegiar como fonte textual a literatura de língua portuguesa, João Brites e O


Bando permitem-se arriscar no desafio da escolha de textos declaradamente não escritos para o
palco, construindo uma fuga dos lugares-comuns da dramaturgia convencional e a possibilidade
de elaborar e reelaborar os espetáculos, como em S. Cristóvão (1985, adaptação do conto de
Eça de Queirós), Os Cágados (1985, conto de Almada Negreiros), Viagem (1987, conto de
Sophia de Mello Breyner), Montedemo (1987, novela de Hélia Correia), A terceira margem do
rio (1990, conto de João Guimarães Rosa), Bichos (1990, contos de Miguel Torga), Gente
singular (1993, conto de Teixeira Gomes), Março grita maio (2011, poemas de Manuel António
Pina), Ainda não é o fim (2012, poemas e crônicas de Manuel António Pina), Auto da
purificação (2012, contos de Vergílio Ferreira), Al-rabita (2013, poemas de Sebastião da Gama
e diversos outros autores), Senhor imaginário (2013, contos de Vergílio Ferreira) e Casaverde
(do conto O alienista de Machado de Assis). A liberdade do exercício de escrita cênica a partir
dos textos não-teatrais é que o que interessa a Brites:
206

É verdade que me sinto mais livre ao trabalhar com textos literários, não escritos para
teatro. O teatro não é uma exposição de ideias ou de conversas. [...] Nas adaptações
que faço de um texto, as didascálias e as descrições das ações ou das atmosferas são
tão importantes como os textos em diálogo. De qualquer modo, tenho sempre
assumido que nunca tive a pretensão de reverter para a cena o texto do escritor e
recuperar o imaginário que ele terá tido ao escrevê-lo. (BRITES, 2009a: 271)

Ao escrever a partir de outra escrita, acrescentando ao texto os elementos da cena, o


encenador assume-se autor do espetáculo. Em sua dramaturgia acentua-se o processo de
colagem de textos (de mesmo autor ou de autores distintos), experimentando formas de
fragmentação e contaminação de materiais e de sentido no próprio decurso do espetáculo,
praticando o gesto de cortar e colar, coser e descoser o texto.

Questionado sobre a relação entre hábito de leitura e encenação desses textos, João
Brites revelou: “Isso agora é um problema pra mim. […] Já não consigo ter uma leitura
despreocupada. Cada vez leio mais o que me parece ter à partida relação com o que estou a
investigar e que é passível de me interessar sob o ponto de vista do teatro.” (BRITES, 2011).
De outro lado, ele se mostra um leitor voraz, apaixonado pela literatura em todas as suas
dimensões: poéticas, romanescas, ficcionais, que há tantos anos tem levado a’O Bando uma
parte de sua biblioteca e autores, criando com eles um espaço de leitura.

Assim sendo, destaca-se por hora a adaptação de romances, objeto de investigação deste
trabalho e que no momento de escrita somavam-se quatro criações, das quais apenas uma55 não
entrou no corpus de análise56, que por sua vez se concentrará em Gente feliz com lágrimas
(2002), premiado romance de João de Melo; Ensaio sobre a cegueira (2004), romance do
Prêmio Nobel José Saramago e Jerusalém (2007), romance que projetou Gonçalo M. Tavares.
Observa-se que os romances escolhidos e, consequentemente, seus autores, receberam prêmios

55
O espetáculo Salário de poetas (do romance do brasileiro Ricardo Guilherme Dick) foi realizado em parceira
com a Cia. D’Artes do Brasil, em 2005. Cada grupo montou sua versão do mesmo romance e seus encenadores,
João Brites e Amauri Tangará, realizaram uma parceria colaborativa, o que merece um estudo particular, ficando
de fora do nosso corpus de análise.
56
Um ano depois de concluída esta pesquisa, João Brites retornou ao romance para encenar, finalmente, sua versão
de Jangada de Pedra, de José Saramago. O espetáculo estreou em 2013 no Teatro São Luiz em Lisboa, com
Dramaturgia e Dramatografia de João Brites, Encenação e Cenografia de João Brites e Rui Francisco e Música de
Jorge Salgueiro. Em 2015, o grupo encenou Em nome da terra, romance de Vergílio Ferreira, tendo dramaturgia e
encenação de Miguel Jesus.
207

e distinções, tornando-os muito difundidos junto ao público, o que poderia inibir ou mesmo
suscitar controvérsias quanto à adaptação.

Entretanto, os espetáculos desenvolvem uma linguagem própria, autônoma, sem


impedir o espectador de preservar seu imaginário na leitura: “A adaptação de um texto constitui-
se apenas como uma versão cênica do que se encontra escrito. A partir do momento em que há
uma releitura, eu considero a obra como se fosse minha – por intuição, por paixão, por
reformulação, por afeto.” (BRITES, 2009a: 271), afirma Brites, reconhecendo-se como
encenador-autor das montagens. N’O Bando os romances ao serem fundidos com a linguagem
do grupo conquistam a independência de serem apenas uma leitura.

Por outro lado, o mais curioso é perceber que essa trilogia foge de alguns lugares-
comuns do próprio grupo57, acostumado a explorar e ressignificar espaços ao ar livre, espaços
não-teatrais como castelos, pontes, lagos: nesses romances encenados o grupo dirige-se a
espaços fechados (palcos à italiana ou alternativos), como outro tipo de constrangimento. João
Brites não se furta em assumir suas dificuldades para trabalhar nesses lugares, mas define que
sua ação mais imediata é verificar as maneiras e possibilidades de desconstruir a caixa preta
dos teatros. Reconhece que não se sente bem nos palcos convencionais, é como se a estrutura
do palco à italiana atribuísse amarras à sua criação e impedisse uma liberdade na concepção.

Todavia, há algumas vantagens, como a comodidade, a ambiência mais propícia à


concentração do espectador, além da estrutura de equipamentos (som, luz, maquinarias) que já
está montada para ser utilizada; por último, refere-se às questões de produção: “é evidente que
qualquer espetáculo realizado fora dos sítios ditos convencionais […] é extremamente difícil
de vender e de distribuir. As equipas de montagem têm de ser mais numerosas e especializadas,
leva mais tempo para montar o cenário, é quase como construir de raiz uma casa ou um abrigo
com cadeiras onde os espectadores se possam sentar.” (BRITES, 2011). Dessa forma, é na
concepção do espaço cênico, na criação de dispositivos cenográficos e da subversão da caixa
cênica que Brites busca desconstruir esse espaço formatado, emprestando-lhe o que realiza
noutros sítios: configurar uma espacialidade singular onde o público não possa mais voltar
depois de encerrada a apresentação.

57
A utilização do palco convencional e/ ou espaços fechados não se restringe a esses espetáculos, estendendo-se a
outros como Grão de bico, A caça, Quixote, apesar do gosto e da maior preferência pelos espaços não-teatrais e
ao ar livre.
208

Antes de adentrar a análise dos espetáculos propriamente ditos, ressaltam-se as


condições operatórias deste exercício. Vistos apenas em vídeos, a percepção dos espetáculos
apresenta grandes perdas para sua melhor absorção. Tanto em Gente feliz com lágrimas quanto
no Ensaio sobre a cegueira, a câmera fixa localizada atrás do público não possibilita a imersão
total na performance dos atores. Se de um lado é possível perceber toda a encenação, com suas
alternâncias e movimentos, de outro há um esfriamento quanto ao envolvimento com a
interpretação, revelada de forma distanciada. Em contraposição, o vídeo promocional de Gente
feliz… e os documentários sobre Ensaio sobre a cegueira ofereceram mais recursos para
perceber melhor os meandros da atuação, ainda que os espetáculos apresentem-se de forma
fragmentada como um demonstrativo para promover o trabalho junto a programadores e
festivais. Destaca-se a filmagem de Jerusalém com mais de uma câmera, cuja edição ora revela
o conjunto da cena ora aproxima-se dos atores, explicitando melhor sua performance.

“Gente feliz com lágrimas” (2002): o tempo-ilha e a circularidade narrativa

O espetáculo teve lugar na própria sede do grupo, em Palmela, estreando em 13 de


dezembro de 2002, com Sara de Castro e Nelson Monforte no elenco, direção, dramaturgia e
espaço cênico de João Brites, cenografia de Joana Simões, adereços e figurinos de Clara Bento,
oralidade de Teresa Lima, corporalidade Luca Aprea, desenho de Luz de Brites e Luís
Fernandes. A mais celebrada obra de João de Melo recebeu o Grande Prémio do Romance e
Novela da Associação Portuguesa de Escritores, a maior distinção da categoria em seu país,
Prémio Eça de Queiroz da Cidade de Lisboa, Prémio Cristóbal Cólon das Cidades Capitais
Ibero-Americanas, Prémio Fernando Namora e Prémio Antena 1 de Literatura. Publicado em
1988, já foi traduzido em Espanha, França, Holanda, Itália, Roménia e Bulgária e ganhou
adaptações para o teatro, cinema e televisão.

O autor escreve também contos, crônicas, poesia, crítica literária e ensaios, tendo
iniciado sua carreira em 1975 com o livro Histórias da resistência. Romance autorreferente,
pois se trata da sua própria escrita, Gente feliz com lágrimas constitui-se de uma tríplice
entidade autoral: João de Melo, Nuno e Rui Zino, que de alguma forma parecem contar uma só
história, a própria biografia. O primeiro, o escritor real cujo nome consta na capa do livro (João
de Melo); o segundo, o personagem-escritor (Nuno) e narrador multifacetado do romance que,
209

por sua vez, comporta a terceira entidade, seu pseudônimo (Rui Zinho). Esse, inclusive, admite
que recorrerá a um pseudônimo para gravar na capa do livro, que é João de Melo. Trata-se de
um encadeamento de máscaras e disfarces utilizados por João de Melo para confundir,
distanciar e aproximar o que pode ser quase uma autobiografia romanceada e ficcionalizada.
As narrativas de João de Melo, Rui Zinho e Nuno se confundem, colam-se ao mesmo tempo
em que se despregam pelo vigor poético da narrativa. Há outros narradores, que emergem pela
escrita de Nuno-Rui Zinho e que são alguns de seus irmãos: pelo recurso da primeira pessoa,
fazem ressaltar essas vozes para contar episódios de suas histórias particulares: Luíz Miguel e
Maria Amélia.

Dessa forma, constrói-se para o leitor um painel diversificado pelos olhares dos vários
narradores que acabam por oferecer um mosaico de uma gente que buscou superar, cada uma a
seu modo, o sofrimento em busca de uma talvez utópica felicidade. Não se pode atribuir uma
unidade à linguagem desse romance, pois ela não se encerra em si mesma e nem se completa:
“Ela consolida-se num misto de vozes variadas e opostas que se desenvolvem e se iluminam,
se renovam e se anulam mutuamente.” (BATISTA, 1990: 48). Criando máscaras de si mesmo,
o escritor macula o “nome de autor” foucaultiano, ao mesmo tempo em que insiste em sua
nomeação, no caso potencializada pela sua multiplicidade. Contudo, o título da obra, assim
como o primeiro capítulo do Livro Primeiro, Um qualquer de nós, reúne todos esses narradores
na ideia de uma “gente feliz com lágrimas”, visto que essas biografias se reunem pelo
sofrimento, pelo passado sombrio, pobre e doloroso na ilha de São Miguel nos Açores.

João de Melo parece revelar alguns aspectos de sua vida por meio da biografia desses
personagens, filhos de um pai autoritário e repressor e uma mãe distante e omissa. A essa
família empresta sua naturalidade açoriana, o mesmo tempo histórico e a leitura desse cotidiano
cruel que se desvenda com tanta riqueza de imagens e sentimentos. A ida para o continente
português aos dez anos de idade para prosseguir estudos num internato, o despertar para a arte
e a política e a luta contra o regime ditatorial, a residência em Lisboa e a carreira de escritor e
professor universitário ligam-no ao personagem Nuno. A Luís Miguel e Maria Amélia, João de
Melo oferece sua experiência na Guerra Colonial em Angola e seus conhecimentos como
enfermeiro, quando lá esteve nesse período turbulento. O contraponto à versão do autor Nuno-
Rui Zinho encontra-se no Livro Quarto, narrado em primeira pessoa por Marta, sua esposa, com
quem teve um relacionamento intenso, mas que não sobreviveu às diferenças individuais. O
autor oferece ao leitor um diálogo, feito de textos mais longos, quase monólogos, entre Nuno e
Marta, que apontam possibilidades de dramaturgia, quando fazem o último acerto de contas
210

antes do divórcio. É a partir desse duo que João Brites estruturará sua versão teatral, ao eleger
como personagens centrais Nuno e Marta.

Gente feliz com lágrimas compõe-se de seis partes ou livros, do primeiro ao zero e
distribuídos ao longo de 480 páginas, estruturando-se numa narrativa à qual não interessa a
cronologia dos acontecimentos, mas uma representação do tempo por meio da memória que se
alterna entre o presente e os vários tempos passados de seus personagens. As pessoas da
narração também se alternam, não apenas nos personagens narradores, mas nos modos de
enunciação entre primeira e terceira pessoa. Esses Livros que dividem a obra acabam por
configurar um todo estilhaçado em que múltiplos discursos e pontos de vista objetivam apurar
um painel da família de Nuno, com destaque para sua biografia, além de revelar aspectos do
contexto histórico e político de Portugal, atravessado pelo regime salazariano, passando pelo
25 de Abril e buscando ainda revelar o país pós-revolução no fim da década de 1980.

No romance o tempo é circular: inicia-se com a narração da partida de Nuno para Lisboa
na infância e encerra-se algumas décadas depois, na velhice, com o seu retorno à casa desabitada
da família. A memória concentra-se na casa, espécie de ventre materno, depósito da infância e
espaço capaz de reunir o presente e o passado, onde se fixaram os episódios marcantes da vida
de Nuno Miguel, reunidos nesse tempo sem tempo circular. A ilha e o continente remetem à
ambiguidade dos sentimentos do narrador-escritor protagonista: ao mesmo tempo em que o
estar fora dela o desestabiliza e oferece medo, por desconhecimento e pela novidade que o
aguarda, também se apresenta como libertação dos punhos duros do pai e da miséria da vida
familiar. A casa-ilha representa, assim, a temporalidade fragmentária do romance, que promove
idas e vindas no enredo e nas biografias de seus personagens, dando relevo às suas
expressividades, às raízes e à família. A infância é tomada como o tempo mais marcante do ser
humano, espaço em que cada um constrói suas referências e firma sua visão de mundo. Quando
Nuno retorna a casa no último livro o círculo temporal se encerra, levando a personagem a
reconciliar-se com sua própria história e compreender a completude do ciclo.

João Brites reconhece-se em pontos da biografia de Nuno e como encenador parece


assumir sua voz, ainda que não em totalidade. A infância humilde, a ideologia socialista, o Maio
de 1968 e a paixão pela arte e pela literatura irmanam João Brites e João de Melo. Dois Joãos
que praticam, cada um a seu modo, uma maneira de dar vida a personagens que falem por si,
cuja interseção nesse caso dá-se por Nuno Miguel. A paixão de Brites pela palavra literária
converte-o no escritor que escreve sobre outras escritas, criando sobreposições entre a
211

dramaturgia e o romance, cuja transposição é a mais radical entre as três analisadas neste
capítulo: “Pelo fato de ser um romance com mais de quatrocentas páginas, é sempre mais
complicado escolher as partes que constituirão as palavras ditas e as didascálias.” (BRITES,
2009a: 280).

A proposta inicial do espetáculo partiu do contato de Brites com os dois atores, Sara de
Castro e Nelson Monforte, na época seus alunos na ESTC. O interesse do encenador por eles
residia nas personalidades e biografias distintas: Sara é natural de Lisboa, enquanto Nelson
Monforte é dos Açores, ilha onde se passa o romance de João de Melo, cujas distinções
coincidiam com as dos personagens. Portanto, propôs ao grupo a montagem de Gente feliz…,
cuja dramaturgia concentrar-se-ia em Nuno e seu relacionamento amoroso com Marta, que ele
conhece ao se mudar para Lisboa. O espelhamento entre ficção e realidade, entre Nuno/Nelson
e Marta/Sara, torna-se proposital para representar um casal que se amou, mas não conseguiu
superar e vencer as diferenças entre eles:

São duas pessoas muito contrastantes [Nelson e Sara], com imaginários muito
distantes, e até estilos de representação muito diferentes. Pensei que nunca poderiam
se amar na vida, e que não seria fácil reuni-los num palco. Com o conhecimento deles
tentei aproveitar essas diferenças tão dinâmicas e a sua comum entrega e
generosidade. (BRITES, 2009a: 280)

Como já explicitado anteriormente e reforçado pela citação acima, Brites promove uma
adaptação radical do romance ao reduzir o núcleo de personagens a dois. Nuno, por sua vez,
traz outros caracteres à cena, por meio do procedimento da evocação, que compõe uma
polifonia: é o personagem e não o ator que evoca, porque o personagem evocado está ligado à
biografia daquele que o faz surgir, sendo a dramaturgia a responsável por assinalar essa
transferência: “NUNO FAZ DE PAI MORIBUNDO”, “NUNO FAZ DE MÃE PIEDOSA”,
“NUNO FAZ DE IRMÃ MAIS NOVA”, “NUNO FAZ DE PADRE PROVINCIAL”.
Observando-se o espetáculo, apenas Nuno incide na evocação, visto que o romance concentra-
se na sua biografia, estando a de Marta ligada à dele e, portanto, recortada, incompleta. A
inscrição dos nomes dos personagens também recebe qualidades (ou estados emocionais) que
se dirigem à composição por parte dos atores, em que pode se observar diferentes tons ao longo
do espetáculo: “Pai moribundo”, “Pai vigoroso”, “Pai desesperado”, “Pai desvairado”, “Pai
abrutalhado”; “Mãe piedosa”, “Mãe exasperada”, “Mãe divertida”, “Mãe compadecida” e “Mãe
212

remediada”. A escrita dos títulos das cenas-quadros na dramaturgia de Gente feliz com lágrimas
confere à encenação tons líricos e poéticos por meio da escrita de Brites, como “22 horas do
último dia”, “Solidão de velho”, “Recordações da casa”, “Eterno emigrante”, “Felicidade de
apaixonados”, “Perplexidade de namorado”.

O recurso do distanciamento também é convocado ao trabalho do ator, por meio de um


espelho acoplado à cenografia, espaço a que os personagens recorrem para se isolarem, para
comentarem sua situação e refletir a própria vida: “NUNO 80 DIANTE DO ESPELHO Só
agora admito estar a viver as histórias que eu próprio inventei […] Escrever, inventar histórias,
e viver na primeira pessoa é como morrer sobre um tempo, e não saber nada sobre o tempo
seguinte” (GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS, 2002: 5). Aqui o espetáculo assume-se também
autorreferente e metalinguístico ao responder sobre a narratividade de sua dramaturgia, em que
o tempo e sua passagem é o princípio organizador. Na percepção do romancista, Gente feliz
com lágrimas resiste à transposição para outras linguagens, pois sua lógica literária é a da
leitura e não a da representação. Entretanto, João de Melo atribuiu méritos ao grupo, como
explicitou no programa do espetáculo:

Enquanto romance, pressupõe da parte de quem o adapta um cuidado em duplo:


construir um texto autónomo e “representável” e manter a inteireza e a essência da
obra original, esse o primeiro mérito do trabalho cênico e dramatúrgico de João Brites.
Tomando como ponto de partida o momento de ruptura na ação romanesca (o divórcio
e as recriminações de Marta e Nuno), alarga o círculo da narrativa dramática até
encontrar a relação da causa e consequência e o princípio do fim de toda a intriga.

A radicalidade da versão dramatúrgica sustenta-se no gesto explícito de recortar e colar


sarrazaquiano, reescrevendo o romance de João de Melo. Passagens distintas de capítulos
diferentes são reorganizadas pelo discurso britiano para assegurar ao espetáculo a circularidade
narrativa. A ação cênica da peça concentra-se no dia em que o casal se separou e de onde nasce
o jogo com o tempo: ao despedir-se da (ex-)mulher, Nuno retorna para representar sua velhice
e Marta aceita a proposta e se converte num bebê. Trata-se de um jogo cênico, que investe na
possibilidade de brincar com o tempo, com as idas e vindas ao passado.

Para revelar o desencontro entre os personagens, Brites propõe que o jogo se estabeleça
em direções contrárias: Nuno, muito velho, vai rejuvenescendo enquanto Marta, recém-nascida,
vai crescendo, amadurecendo e envelhecendo. O cruzamento entre Nuno e Marta é operado
213

pelas mãos da dramaturgia que explicita em cada quadro a idade que os personagens têm: Nuno
90 e Marta 3 meses/ Nuno 80 e Marta 2 anos/ Nuno 70 e Marta 8/ Nuno 40 e Marta 16 e assim
sucessivamente. Como o procedimento utilizado pelo escritor norte-americano Scott Fitzgerald
em O curioso caso de Benjamin Button, o espetáculo d’O Bando joga com a passagem do
tempo, cuja interseção se dá no período da juventude (por volta dos 20 anos cada um), quando
se dá o encontro amoroso.

O amor então é o cerne da dramaturgia e do espetáculo; as arestas, as bordas, o que está


em volta é a desilusão, a tristeza, a amargura, o abandono e a solidão. A busca pelo sentido da
existência acompanha as personagens, cujas vozes vão se cruzando no espaço cênico em
direções opostas. Dessa maneira, Gente feliz com lágrimas refaz para o espectador o ciclo da
vida: ao interpelar Nuno e Marta, a dramaturgia circular de João Brites inicia-se no encontro do
velho com o novo. Para realizar sua proposta, a escrita se valeu de textos próprios ao promover
o encontro entre esses tempos distintos, mesclando-os aos fragmentos extraídos do romance.
Aqui, percebe-se que a escrita de Brites procura se misturar à de João de Melo, numa fusão de
autorias.

Foi nesse espetáculo que João Brites levou o trabalho que desenvolvia na ESTC sobre
a consciência do ator em cena, naquela altura ainda em nível muito experimental, para o
trabalho artístico d’O Bando. Culminou na investigação e, consequentemente, na concepção
dos três planos de expressão do ator: corporalidade, oralidade e interioridade. Sara de Castro
recorda o processo em que percebia o deslumbramento do trio João Brites, Luca Aprea e Teresa
Lima na construção dessa metodologia, sustentada na busca das sensações concretas, do
exterior para o interior. Os dois atores, como eram egressos recentes da ESTC, tinham
experenciado com o encenador aquelas propostas e conceitos, o que de alguma maneira facilitou
o trabalho de criação. Entretanto, o projeto inaugural desse método dentro do grupo propiciou
um processo rico de descobertas, mas também de muitas dúvidas e angústias.

A corporalidade e a oralidade em Gente feliz foram construídas a partir de sensações


concretas. Luca Aprea propôs que os atores, de olhos vendados, recebessem nas mãos diversos
materiais e a sensação provocada deveria ser explicitada pelo corpo e pela voz. Assim, a voz de
Marta bebê foi descoberta no contato com o gelo, por exemplo, enquanto a voz da personagem
aos 20 anos de idade deveria ser remetida àquela propiciada pelo contato sensorial com um tipo
de tecido. Para cada idade dos personagens havia uma matéria específica, determinada após os
experimentos, e que os atores poderiam recorrer sem investir em nenhum tipo de psicologismo.
214

A novidade do processo, portanto, foi permitir que os atores apontassem e nomeassem


os recursos descobertos para a composição das distintas idades dos personagens nos três planos
de expressão. As definições foram registradas num gráfico que cruza as idades dos personagens
com a progressão da ação cênica. Para cada etapa corresponde o foco em uma parte do corpo
do ator ou um objeto que utiliza em cena: Nuno (100 anos) – ar/ coluna + mãos; Marta (0 anos)
– pulsos; Nuno (80) – coluna superior/ ar + agudos; Marta (70) – ombros/ rama verde; Nuno
(50) – ombros/ aguardente. Percebe-se a complexidade na construção dessas partituras que no
espetáculo se dão de forma sutil, sem passagens bruscas de uma idade a outra, mas que vão se
revelando pela encenação.

Quanto à espacialidade, João Brites concebeu para o espaço uma máquina de cena
denominada Relógio, descrito como um “mecanismo desmontável com ponteiros motorizados
que se movimentam em sentidos contrários. O ponteiro mais comprido dá meia volta durante
os 95 minutos que dura a representação / O outro ponteiro mais curto dá uma volta e meia no
mesmo tempo” (O BANDO: 2005: 100). Nesse espaço limitado convivem os dois personagens,
Nuno e Marta, em suas diferentes representações etárias, sustentados por esse mecanismo que
faz transcorrer em tempo real a representação do tempo. A plateia não percebe de imediato a
engrenagem criada para contar aquela história e o movimento quase imperceptível dos estrados.
“Nos primeiros vinte, trinta minutos existe alguma perplexidade, porque é como se as coisas
acontecessem e as pessoas não percebessem o sentido.” (BRITES, 2009a: 281). E é exatamente
nessa altura do espetáculo que a progressão etária dos personagens vai se estabelecendo e o
público começa a adquirir as chaves para a decodificação da encenação, o que lhe confere mais
prazer e interesse em acompanhar a evolução contrária do binômio rejuvenescimento/
envelhecimento. O grande relógio cenográfico aponta ainda para a imagem algutinadora da ilha,
não só aquela de São Miguel onde nasceu Nuno, mas à ilha metafórica do casamento, de uma
relação que pode tanto confortar quanto aprisionar seus amantes.

O estágio inaugural do processo de montagem contou com a participação da equipe de


criação, com a qual foram trocadas impressões da leitura do romance, João Brites explicou a
proposta da dramaturgia e da encenação e justificou a escolha dos atores para aquele trabalho.
O primeiro exercício dirigia-se à representação simultânea de um velho (Nelson Monforte) e
um bebê (Sara de Castro), em que o primeiro deveria buscar abrigo e proteção no segundo,
inversão que apresentou certa dificuldade para os atores.
215

Em seguida, pediu-se que o ator passasse de velho a bebê, num percurso de vida ao
contrário, representando diversas fases da vida. A atriz, por sua vez, deveria tomar o caminho
oposto, ou seja, de bebê à velha. Ainda não se tratava de recorrer ao romance, mas de uma
improvisação orientada pela dramaturgia. O obstáculo apontado pelo relatório do estágio
referia-se ao desencontro temporal entre os dois personagens quando tivessem a mesma idade.
Disso, infere-se que o tempo particular de cada ator no seu percurso biográfico variava
individualmente, o que parece ter apontado a necessidade da dramaturgia demarcar e fixar as
alterações etárias.

No dia seguinte, foi pedido a Nelson Monforte que interpretasse como Nuno contaria
sua biografia, representando cenicamente as diferentes fases, de bebê a velho, num exercício
que deveria durar 15 minutos. O ator demonstrou insegurança quanto à história do personagem,
levando o grupo de trabalho a distinguir previamente essas etapas: infância nos Açores,
seminário em Lisboa, faculdade e encontro com Marta, vida de casado, velhice. O mesmo
exercício foi proposto a Sara de Castro, contando a história de vida de Marta, que apontou a
escassez no romance de informações sobre a biografia da personagem.

Outra proposição colocava um novo elemento em cena, um espelho, que deveria ser o
espaço confessional dos personagens, vendo sua imagem refletida. O relatório do estágio
assinala os aspectos mais marcantes dos experimentos como a possibilidade do espetáculo
passar-se em tempo real, a imagem do bebê refugiado nos braços da mulher velha (que se tornou
a imagem final do espetáculo), a expressiva utilização das costas quando Nelson representava
o Nuno velho etc. É interessante verificar a processualidade da criação, que parte de um
princípio organizador da dramaturgia, mas está aberta a inúmeras hipóteses. Entretanto, assim
como no trabalho de Freire-Filho, é na sala de ensaio, na realização efetiva, que as questões de
Brites são respondidas, reafirmadas ou desconsideradas.

“Ensaio sobre a cegueira” (2004): o visível e o invisível na fábula de Saramago

Em 6 de maio de 2004 estreava no Teatro Nacional São João, na cidade de Porto, a


adaptação teatral do romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, com dramaturgia e
direção de João Brites, comemorando 20 anos de atividades do grupo. Com música original de
Jorge Salgueiro, espaço cênico de Rui Francisco, figurinos de Maria Matteuci e desenho de luz
216

de Cristina Piedade, apresentava em um numeroso elenco os atores Adelaide João, Ana


Brandão, Antónia Terrinha, Gonçalo Amorim, Horácio Manuel, João Ricardo, Luís Godinho,
Maria João Pereira, Martinho Silva, Miguel Moreira, Mónica Garnel, Nicolas Brites, Paula Só,
Pedro Gil, Raul Atalaia, Rita Calçada, Romeu Costa, Sabri Lucas, Sara Belo, Sílvia Filipe,
Dulce Silva, Rafael Freire. O espetáculo durava cerva de 3h20min (com um intervalo) teve uma
carreira de êxito junto a público e crítica e conseguiu, pela grande estrutura, fazer 25
apresentações, incluindo a temporada no Teatro da Trindade em Lisboa.

O projeto inicial era encenar Jangada de pedra, mas o coletivo d’O Bando contrapôs a
proposta com o Ensaio sobre a cegueira, que apresentava alguns desafios, tanto quanto às
resoluções cênicas (multiplicidade de espaços e personagens) como também nos custos mais
abastados para a produção. Entretanto, como o grupo reconhece-se nesse escritor, decidiu por
encená-lo como forma de intervir na sociedade. A escolha de Saramago pelo Teatro O Bando
pode soar polêmica, pelo fato de o escritor não ser bem quisto em seu país, salvo exceções.
Ateu convicto e conhecido por inúmeras controvérsias, entre as quais a de que Portugal deveria
se assumir como uma província espanhola na constituição da península ibérica, o autor ainda é
muito criticado em terras lusas, dividindo opiniões e preferências do público, para o qual
António Lobo Antunes tem melhor aceitação.

Para João Brites, essa hostilidade não passa de “dor-de-cotovelo”, porque alguns
“lobbistas”58 das Letras achavam que outros escritores mereciam o Prêmio Nobel e atacavam
como menor a literatura de Saramago, à medida que a forma se sobrepunha ao conteúdo. Por
isso, o escritor decidiu viver na Espanha ao lado da sua esposa Pilar del Río, em oficial protesto
contra o cerceamento, o desprezo e a censura59 sofridos em Portugal. Saramago encontrou em
Lanzarote um lugar para fincar suas raízes até sua morte, em 2010, na geografia inóspita de
uma ilha vulcânica com pouca vegetação e nenhuma fonte de água potável.

O diretor d’O Bando reflete que o autor não se refugiou numa estética, ao contrário: seu
olhar crítico levou-o à universalização de sua obra, remetendo-a a tensões metafóricas. “Ele
nunca deixou de ter os pés na terra em relação à função que ele teria também como cidadão,
como homem político. É também isso que me agrada nele” (BRITES, 2011). Nesse sentido, a
aversão dos portugueses parece residir, no fundo, à sua ligação explícita com o Partido

58
Trocadilho para se referir aos defensores/ fãs de Lobo Antunes.
59
Sua obra O evangelho segundo Jesus Cristo chegou a ser proibida no país.
217

Comunista e sua identidade ateia, características bastante controversas para um país católico e
conservador. Sem medo de expor suas convicções, de reivindicar uma sociedade mais justa e
de lutar contra o império do capitalismo, o espírito contestador e transgressor de Saramago
encontrou resistência entre os pares. Brites conclui: “Aqueles que saem fora do carreiro acabam
por atrair o olhar desconfiado de quase toda a gente.” (BRITES, 2011).

Neste romance, que depois foi adaptado ao cinema pelo brasileiro Fernando Meirelles e
tem no elenco Juliane Moore, Gael García Bernal e Danny Glover, o Prêmio Nobel narra o
surto de uma epidemia de cegueira branca que acomete os habitantes de uma metrópole,
aprisionados em quarentena pelo Governo com o intuito de conter a peste. Na obra o escritor
faz uma intensa crítica à sociabilidade humana e aos valores que cultiva; persegue a hipótese
do que pode nos acontecer quando nos falta em coletivo um de nossos sentidos primordiais, a
visão. Os personagens não têm nome próprio e são designados pelo narrador pelas suas
características, função social ou particularidades, como o médico, a mulher do médico, a
rapariga dos óculos escuros.

Não há marcas que evidenciem tempo e espaço do enredo, o que torna a obra ainda mais
universal, pois sua fábula poderia ter ocorrido em qualquer cidade de qualquer país. Saramago
propõe ir a fundo no exame das relações sociais: seus personagens, despidos de uma identidade
não nomeada, tornam-se somente humanos. Nas camaratas onde são aprisionados, as máscaras
sociais dos cegos se fazem desnecessárias: nessa babel onde passam a conviver homens,
mulheres, adultos, jovens e velhos, ricos, remediados e pobres, honestos e mau-caráteres, o
instinto de sobrevivência se sobressai. É onde se instauram os conflitos entre os contaminados
pela cegueira branca, divididos entre a preservação da individualidade e a solidariedade de um
coletivo. Aponta a pesquisadora Lívia Lemos Duarte que, “ao utilizar a cegueira como uma
alegoria, o autor configura o estado de crise por que passam as sociedades capitalistas do século
XX, nas quais, freqüentemente, os limites entre civilização e barbárie são rompidos.”
(DUARTE, 2012: 1).

Saramago discute as distinções, ainda que sutis, entre o olhar e o ver: o primeiro trata-
se de uma característica fisiológica, objetiva, ligada ao aparelho humano ocular da visão,
enquanto o outro, de natureza subjetiva, tem a ver com a faculdade da observação, da percepção,
da interpretação da realidade que os olhos captam. A epígrafe do romance (Se podes olhar vê,
se podes ver repara) assinala que o sentido da visão transcende a fisiologia ocular porque sua
ausência permite a expansão do ver para outros sentidos: as aparências do mundo organizado,
218

correto, desfazem-se quando se pode ver além delas. Basta lembrar um dos personagens mais
emblemáticos sobre a cegueira da história do teatro ocidental: Tirésias, o cego adivinho de Rei
Édipo, é capaz de ver sem ver, pois está isento das máscaras e dos artifícios de encobrimento
da realidade. Édipo, por sua vez, fura os próprios olhos ao descobrir seu infortúnio, pois quando
os tinha não foi capaz de ver sua tragédia.

O mito grego transformou a cegueira em possibilidade de sabedoria e parece ser essa


transferência que Saramago buscou ao colocar toda uma sociedade impossibilitada de olhar
para tentar alcançar alguma sapiência com o ver metafórico. Ao invés de encerrar os
personagens nas trevas, imagem recorrente à cegueira, o Prêmio Nobel optou pelo branco, pela
luz capaz de iluminar a escuridão da ambição, da ganância e do egoísmo da vida social, cujo
maior expoente de sabedoria encontra-se no personagem velho da venda preta, o Tirésias
desmitologizado de Saramago.

A personagem-destaque no romance é a mulher do médico, a única entre os confinados


que não perdeu a visão, mas finge não ver para acompanhar o marido no isolamento. Tentando
se misturar e se confundir com os demais, essa mulher passa a ser o guia dos contaminados e
alicerce para a regulação do bem-estar quando a degradação humana e a barbárie definem o
contexto social do confinamento. A boa samaritana é o contraponto do autor à desumanização,
ao caos: ao fim do romance, quando todos voltam a enxergar, ela é acometida pela cegueira
branca. Depois de tudo ver e reparar, não há mais necessidade de olhar? Ou teria a mulher do
médico alcançado alguma sabedoria?

José Saramago constrói um narrador que transita entre a onisciência e a onipresença,


que ora narra com distanciamento os fatos, ora parece se misturar e integrar os cegos
aprisionados nas camaratas. De qualquer maneira, trata-se de um narrador que busca
aproximação com o leitor, quase como uma conversa ao pé do ouvido, ainda que o ritmo
narrativo seja intenso pela singularidade da escrita de Saramago, que investe nas vírgulas como
forma de construir um pensamento em fluxo e serve como recurso para destacar a narrativa da
fala dos personagens. A linguagem muitas vezes soa como crua, áspera, e o próprio narrador
justifica, afirmando que ele narra como aconteceu. Certamente, por mais que o narrador se
ponha isento e busque uma objetividade no seu relato, não se pode ignorar que a subjetividade
é inerente nesse processo. Dessa forma, pode-se encontrar a voz de Saramago mesclada à voz
no narrador, por onde faz ecoar suas posições político-ideológicas e suas críticas à sociedade
do consumo.
219

A dramaturgia de João Brites, entretanto, privilegia os discursos diretos (diálogos)


extraídos do romance, abandonando a posição mais narrativo-reflexiva do autor. Trata-se
certamente de uma opção dramatúrgica, cujo procedimento aproxima-a do texto dramático e,
portanto, de uma adaptação mais tradicional. O gosto d’O Bando pela narrativa foi substituído
pela investida no drama que, na opinião do crítico João Carneiro, trouxe prejuízos para o texto
de Saramago: “O texto, que é utilizado como fio condutor do espetáculo, peca, assim, por uma
pobreza característica de todos os resumos, guardando destes o caráter essencialmente
informativo e acessoriamente descritivo” (CARNEIRO, 2004: 30). Percebe-se que a
consagração da obra escolhida para encenar não isentará João Brites de discordâncias ou de
críticas severas, por vezes duras, pois a obra pertence também ao público leitor, que pode
reivindicar a sua leitura e apetências com o original. Todavia, ao recordar a liberdade que João
Brites se permite nas suas versões cênicas, pode-se pensar que sua vigorosa encenação é capaz
de contagiar outros espectadores e ainda estimular novas leituras (e leitores) para o romance. A
crítica de Fernando Midões do jornal Notícias de Amadora tem posição contrária à primeira:
João Brites “oferece-nos um espetáculo vibrante, anti-naturalista e anti-realista, pleno de
dinamismo, de ritmo rápido e de inventiva, bem como ultra exigente, até dizer chega, no que
tange à entrega psico-corpórea dos comediantes” (MIDÕES, 2005: s/p).

Perseguindo a proposta de colocar em causa a vida em sociedade e dialogar com ela por
meio do público, o Teatro O Bando encontrou na metáfora da cegueira a discussão sobre a perda
das emoções, da frieza e da insensbilidade das relações humanas no contemporâneo. Na
metrópole criada por João Brites as personagens não sentem, são vazias interiormente, apesar
das belas e coloridas vestimentas, dos carros, das posses. A sociedade de massa na qual os
comportamentos estão automatizados e as pessoas não se relacionam profundamente é o leit
motiv da concepção cênico-dramatúrgica. A partir de Saramago, João Brites interroga sobre a
necessidade dessas experiências-limite para o humano novamente se humanizar. Se uma
sociedade incentiva e privilegia a individualidade de forma tão selvagem, estaria a solidariedade
relegada a um recurso ou uma estratégia de sobrevivência? Entretanto, é esse constrangimento
que permite aos personagens voltarem a exercitar suas emoções, a readquirir o sentido da vida
e da existência.

Para operar essa transformação, o encenador concebeu que a interioridade inicial quase
nula dos atores vai migrando num processo de paulatina humanização dos personagens a partir
dos eventos trágicos que os vão acomentendo. De bonecos, sem expressão, com a corporalidade
no registro de movimentos e gestos precisos e formatados, cujos figurinos bem modelados e
220

coloridos representam externamente o mundo das aparências, os personagens vão se


desnudando para o espectador, revelando a grandeza e as mazelas do convívio humano. Dos
fatos de moda bem cortados e coloridos os personagens vão assumindo a pele do próprio corpo,
explicitando a aridez da degradação. Destaca-se o vigor do numeroso elenco que se entrega a
essa longa e pesada jornada de dar vida ao inferno concebido por José Saramago, não apenas
quanto aos personagens mas também às duras exigências performativas propostas pelos
constrangimentos cenográficos.

Para representar a sociedade de massa, Brites constrói um coro de pessoas reunidas


vestidas com as mesmas roupas e que se movimentam em conjunto e de maneira automatizada
e uniforme. Em uma das cenas inaugurais do espetáculo, há um deslocamento do primeiro cego
e sua mulher para o consultório médico, que se realiza pelo recurso da transformação pela
encenação. O coro de peões, que formam ora carros em trânsito, ora aglomerados de passantes
na rua, dirigem-se até os personagens, envolvem-nos como um organismo, e depois se dividem
em dois grupos: um mantém-se congelado na rua enquanto o outro se desfaz para compor os
pacientes na sala de espera do médico.

Assim, por meio do procedimento da coralidade o espetáculo revela sua feitura, pelo
movimento de alternar-se entre a montagem e a desmontagem de agrupamentos, aos quais vão
se somando novos personagens a cada entrada de cegos no hospício. “Este procedimento
cênico-dramatúrgico não só recupera a narratividade da obra, mas abre a cena para que se
produzam efeitos imagéticos surpreendentes, intensificando o princípio fabular da narrativa
original, de modo a se operar um deliberado desvio do realismo” (WERNECK, 2009: 15).
Encontra-se também a recorrência à simultaneidade, por exemplo, na cena em que há carros-
peões parados no sinal enquanto o ladrão conduz o primeiro cego à casa com o intuito de assaltá-
lo. Dessa maneira, João Brites conduz o espectador por paisagens mentais, recriadas pelo
espectador a partir da linguagem cênica, principalmente nas partes iniciais e finais (quando os
cegos fogem do manicômio e percorrem a cidade), já que a ocupação mais total da cenografia,
que recria o espaço de confinamento, dá-se durante a maior parte do espetáculo.

O esfacelamento exterior dos personagens entra em dissonância com o processo de


humanização de sua interioridade. O processo de trabalho junto aos atores encontrou
importante apoio na leitura de António Damásio sobre a consciência: o que é a princípio uma
metodologia de criação atinge o espetáculo como recurso para representar a tomada de
consciência das emoções e sentimentos por parte dos personagens. No princípio, são capazes
221

de matar, de amar, mas tais ações aparecem em forma de pulsão primitiva, quase instintiva: “Os
atores têm de ser capazes de representar personagens que se emocionam, mas que não
compreendem a sua emoção, não são capazes de elaborar sentimento. Neste aspecto a leitura
do António Damasio tem sido fundamental na procura e na sustentação de um discurso mais
substantivo quanto ao trabalho dos atores”. (BRITES, 2011). A cena do estupro das mulheres,
por exemplo, constrói um potente clímax dramático, principalmente pelo forte impacto de sua
conformação em coral. A luz oferece contrastes com zonas de sombra que jogam com o mostrar
e o ocultar os corpos semi-desnudos sendo violados, cujos gemidos e gritos de dor perfuram a
grave, tensa e agressiva música.

Brites localizou a representação visual da cegueira em um nevoeiro que aos poucos vai
envolvendo o palco e a plateia durante o espetáculo, criado a partir de jatos de pequenas
partículas d’água que emanavam do urdimento do teatro (o público das primeiras filas recebia
capas para se protegerem). A metáfora escolhida por João Brites para representar cenicamente
a cegueira remete diretamente a Lisboa e a D. Sebastião I, desaparecido numa batalha no século
XVI, cuja lenda prevê que ele regressará num nevoeiro. Todavia no espetáculo de Brites não é
o retorno de um rei que se espera, mas da volta aos valores humanitários. O jogo com o visível
e o invisível da encenação atinge a relação com o público, que vai lentamente cegando-se pelo
“nevoeiro”, num tempo defasado em relação ao dos personagens. Quando no final os
personagens voltam a ver o teatro está encoberto pelo nevoeiro, fazendo a plateia ocupar o lugar
da mulher do médico que no último instante passa a ver tudo branco. Resta ao público senão a
visão de vestígios, sombras, corpos de personagens que flutuam pelo espaço cênico, fantasmas
de si mesmos depois da experiência do purgatório a que foram submetidos.

Essa cenografia é uma máquina de cena nomeada Cegueira, criada por Rui Francisco:
apresenta uma estrutura metálica que se inicia na plateia, por meio de uma passarela que leva
à cloaca no proscênio do palco, um grande buraco de onde emanam cheiros de dejetos, de
excrescência humana e espaço onde são enterrados alguns personagens. Logo depois da cloaca,
ergue-se verticalmente uma rampa curva até o alto da rotunda, onde um corredor cercado por
grades constrói outro espaço de representação. O conjunto passarela-cloaca-rampa-corredor,
acrescido de painéis que simulam cabeceiras das camas das camaratas, configura o espaço
cênico onde os cegos são levados em estado de quarentena e observação.

No início do espetáculo, entretanto, uma rotunda preta esconde a rampa para deixar o
espaço mais limpo e livre para a representação de outros espaços do enredo, como a rua, a casa
222

do médico, o apartamento do primeiro cego, o consultório. A rampa, por sua vez, impõe
diversos constrangimentos aos atores, provocados pelo encenador e pelo cenógrafo a
desenvolver sua atuação em constante estado de desequilíbrio e tensão. Destaca-se ainda uma
ponte elevadiça erguida na segunda parte do espetáculo, “um baloiço central equilibrado em
eixo horizontal” que se move em quatro posições representando espaços distintos como
manicômio, casa da velha, casa do médico, casa do escritor e cena final. A cenografia e a
iluminação investem na sinestesia, por meio do nevoeiro, dos cheiros, da construção de
sensações visuais, e a verticalização do palco do teatro propõe uma relação hierárquica em
decomposição, desestabilizando noções reguladas de alto/baixo, rico/pobre, regra/exceção,
incluído/ excluído. O objeto cenográfico, pelas suas grandes proporções e volume, parecia
“entalado no palco”, nas palavras de João Brites, e por isso chegava a enganar o espectador
quanto ao tamanho da sala, naquele contexto ilusioriamente diminuída. Assim, “O Rui
Francisco, autor do cenário, conseguiu materializar e ideia de perigo eminente e de
claustrofobia”. (BRITES, 2009a: 281).

A música, lançada posteriormente em CD, foi composta e gravada antes da versão


dramatúrgica estar pronta e nos ensaios passou a acompanhar a encenação, num processo de
influência mútua para a construção da dramaticidade do enredo de Saramago. O processo de
degradação humana que vai se descortinando paulatinamente para o espectador é potencializado
pela força épica da composição de Jorge Salgueiro. As faixas, interpretadas pela Orquetra
Nacional do Porto, Coros infantil e misto do Círculo Portuense de Ópera e as cantoras Sara
Belo e Sílvia Felipe, constroem uma ambiência sonora que Salgueiro intitulou como Um
réquiem para a humanidade. Inspirado pela metáfora do “mar de leite” saramaguiana, o
compositor pensou a música compondo um espaço sem ritmo, sem quebras, sem contornos. Às
imagens da encenação somam-se as imagens sonoras que imprimem fortes estados emocionais
ao espetáculo.

Salgueiro escreveu no programa: “A visão negra sobre a natureza humana marca o


ambiente sonoro que sempre associei ao romance. Uma sonoridade trágica e violenta”. Trata-
se de sons densos, por vezes místicos, que transitam entre sensações de claro e escuro, entre a
vida e a morte, entre o humano e o divino, recriando por meio da música o conflito central do
enredo. A faixa Semáforo, executada no ínicio do espetáculo quando a ambientação sonora é
mais linear, é sobressaltada por remissões a buzinas de carro, sons de trânsito. Entretanto, para
contrapor e revelar sua visão da obra de Saramago, Jorge Salgueiro tomou como tema musical
central o amor, por meio de variadas composições ao longo da peça. A grandiosidade e a
223

grandiloquência da banda sonora de Ensaio sobre a cegueira, contudo, foi um desafio para a
encenação, que a aceitou pela possibilidade de ter nela outro constrangimento. Perguntava-se
“Será que este lado mais épico da música não vai abafar a sutileza de outros registos cênicos?”
(BRITES, 2009a: 283). Influenciando a encenação, a música conseguiu equilibrar-se e ser
dosada na construção da sintaxe cênica.

A montagem de Ensaio sobre a cegueira levou quase três anos para se concretizar.
Desde 2001, quando o grupo optou por esse romance em detrimento de Jangada de pedra, o
grupo passou a trabalhar na viabilidade do espetáculo. Em janeiro de 2003, quando a direção
artística se reuniu oficialmente para inicar o processo, já tinham acordado a coprodução com o
Teatro Nacional do Porto na pessoa de Ricardo Pais e encontrado e obtido a autorização de José
Saramago que fez questão de comparecer à estreia. Até a finalização, em 2004, diversas seções
de estágio foram realizadas, espaçadas ao longo do tempo, quando a equipe esteve envolvida
em oficinas e workshops, tanto com artistas do grupo quando externos a ele. Entretanto, o
estágio em Viseu foi crucial e decisivo para toda a equipe.

Num primeiro momento, houve o encontro do grupo com o coro e os músicos do


Conservatório Regional de Música, a Banda Filarmónica da Confraria de Santo Antônio e a
Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal. Para a ocasião, Jorge Salgueiro compôs duas
músicas que mais tarde dariam o tom da trilha sonora e seriam incorporadas à peça. Depois,
realizaram um estágio no abandonado Hospital Distrital de Viseu, onde os atores, sem saber
onde se encontravam, deveriam explorar sensorialmente suas dependências de olhos vendados.
Partindo, portanto, das sensações concretas, o exercício proposto por João Brites acionou e
provocou todo o elenco, ainda que de forma diferenciada para cada um dos atores, levando-os
ampliar os demais sentidos do corpo e a se colocar no lugar de quem tem a falta de visão como
orientação.

Todo o processo de estágios, experimentos, ensaios e montagem foi registrado pelo


cineasta Rui Simões, que depois converteu o material em dois documentários: Se podes olhar
vê, se podes ver repara, especificamente sobre o trabalho na cidade de Viseu, e Ensaio sobre
teatro, que revela para o espectador cenas de variadas etapas da criação, incluindo os momentos
de dúvida, desgaste nas relações entre a equipe e é encerrada com a estrondosa estreia, com
presença do autor, no Porto. Para atingir a potencialidade exigida pelo romance de Saramago,
o elenco vivenciou um marcante processo de autoconhecimento e desconstrução, em que a
sensibilidade e a conjunção de emoções díspares deixavam por vezes o ambiente de criação
224

mais sensível. Entretanto, a presença de uma câmera não isentava o cineasta de algum
constrangimento pela vulnerabilidade dos atores diante dos desafios propostos pelo processo.
“Mostrar o trabalho dos actores, que é muito complexo, exige muita generosidade e implica
grande dificuldade” (SIMÕES in FRANÇA, 2006: 36). Pelos vídeos pode-se acompanhar,
ainda que de forma fragmentada, os distintos aspectos da complexa estrutura de encenação de
Ensaio sobre a cegueira, ainda que o vídeo atinja uma dimensão mais ampla ao se propor a um
ensaio-filme sobre a arte de se fazer teatro.

“Jerusalém” (2008): a palavra que ilumina sobre os escombros

Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita.


Salmo 137

Jerusalém, versão teatral para o romance homônimo do escritor-revelação Gonçalo M.


Tavares, estreou no palco do Centro Cultural Belém em 23 de outubro de 2008. Seu elenco
reuniu os atores Cristiana Castro, Horácio Manuel, João Barbosa, Nicolas Brites, Raul Atalaia,
Rosinda Costa e Suzana Branco, figurinos e adereços de Clara Bento, desenho de luz de João
Cachulo, corporalidade de Luca Aprea e oralidade de Teresa Lima. João Brites, responsável
pela dramaturgia, espaço cênico e encenação60, afirmou que a escolha por essa obra deveu-se à
atualidade e à sua dimensão étnico-política: “O texto do Gonçalo M. Tavares aborda a questão
de um terror a que ninguém está imune e que parece já nem ter justificação política. Parece mais
um espasmo cíclico e coletivo de violência gratuita e primitiva que já nem precisa de apelar à
conquista do poder e de domínio dos territórios para se exercitar.” (BRITES, 2011).

O livro, vencedor do Prêmio José Saramago, consiste numa sombria fábula sobre a
morte ou sobre a vida encenada como escudo da morte. Sete personagens têm suas tramas,
pensamentos e lembranças cruzados em uma única noite pelas mãos do narrador: Theodor
Busbeck, médico e pesquisador da relação entre o Horror e a História; Mylia, sua mulher
esquizofrênica que consegue ver a alma e que ele internou num hospício cujo diretor é o

60
Trata-se da terceira incursão de Brites pela obra de Gonçalo M. Tavares: em 2005 montou Os Henriques
(adaptação de O senhor Henri) com o Grupo de Teatro As Avozinhas, de Palmela; seguiu-se a montagem do
romance Um homem: Klaus Klump com os alunos da ESTC.
225

antiético Dr. Gomperz; Kaas, filho de Mylia e de Ernst Spengler, outro doente mental da mesma
instituição; Hinnerk, um ex-combatente de guerra e sua noiva, Hanna, uma prostituta que o
sustenta financeiramente. Trata-se do terceiro volume da tetralogia O Reino, os livros pretos
que Gonçalo M. Tavares escreveu sobre o mal, dos quais fazem parte Um Homem: Klaus
Klump, A Máquina de Joseph Walser e Aprender a Rezar na Era da Técnica: todos os romances
não explicitam a ambientação e nem a época em que se passam, mas os nomes de origem
germânica (e a referência à guerra) parecem relacionar essas obras a uma Alemanha
holocáustica.

Jerusalém confronta e justapõe dois temas caros à existência do mundo civilizado, a


violência e a loucura. O discurso utiliza-se de uma linguagem sóbria, “de denúncia, de
desencanto diante da falácia dos princípios humanos, da elementar distinção entre o Bem e o
Mal, [em que] Gonçalo M. Tavares procede ao balanço passado-presente-futuro enquanto
épocas de confronto do homem com a injustiça, o caos e a violência” (SOUSA, 2010: 158). O
caos de uma sociedade em ruínas (interior e exterior) suscita no romance o abandono do humano
pelo próprio humano, no mundo onde se reclama a ausência de Deus, não o bíblico, mas o ser
metafísico, existencial, que pudesse explicar as mazelas dos personagens. A medicina (ou a
ciência), representada pelos personagens Doutor Busbeck e Gomperz, contrapõe-se à sociedade
civil, forçando-lhe métodos de readequação e normalização de conduta.

O título remete a uma Jerusalém metafórica porque não há referências explícitas de


ambientação do enredo nessa cidade: trata-se, ao que parece de uma referência sobre a
dificuldade de convivência humana, de um constante estado de guerra. Fundada há três mil anos
pelo Rei David, a etimologia de seu nome, Ierushalem, guarda o projeto inicial de uma cidade
da plenitude ou cidade da paz. Os inúmeros e incessantes conflitos entre israelenses e palestinos
dialogam com o estado de guerra onde vivem os personagens de Jerusalém. Dessa forma, o
sombrio livro do angolano radicado em Lisboa impõe desafios à compreensão dos conflitos
humanos, do isolamento e da solidão, da violência, da dor e da loucura como recursos de
sobrevivência, de uma sensação desolada de se perceber vivo. A singularidade da escrita de
Gonçalo M. Tavares reside na construção de um romance que se cruza com a escrita ensaística,
de onde emergem reflexões filosóficas (o autor é filósofo) para aprofundar a discussão e a
reflexão do leitor sobre o destino, o acaso e o absurdo. Ele discorreu numa entrevista a respeito
da aparente dicotomia entre ideia e narrativa:
226

A boa narrativa pensa, é evidente, e o bom pensamento conta histórias. Pensar não é
mais do que contar uma história que é a história de uma ideia. Uma das coisas que
gostava de desenvolver é esta: porque é que a ideia de narrativa se associa à ideia de
personagem? O pensamento é a história de uma ideia. Alguém que pensa está a ter
uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse
uma personagem que vai se transformando. […] Pensar é uma narrativa. (TAVARES
in MARQUES, 2010: 38)

No romance o escritor raramente utiliza o discurso direto para fazer emergir diálogos
entre os personagens, muitas vezes restritos a seus pensamentos e subtextos. Os capítulos
numerados ganham nos títulos os nomes dos caracteres a que se referem, como se se tratasse
de uma rubrica dramatúrgica para inscrever quem fala ou, no caso do livro, de quem se fala. De
outro lado, os capítulos muitas vezes curtos oferecem-se como peças de um mosaico que
embaralham o passado, o presente e o futuro, até avançar derradeiramente para o desfecho final.
No espetáculo d’O Bando, a representação se dá muitas vezes de forma concomitante, por meio
da dramaturgia que entrecruza temporalidades distintas. De outro lado, alguns lugares referidos
pelo texto do romance são explicitados pelo texto dos personagens ou pelo contexto da cena
que se apresenta: “ERNST 40 EXPLICA Estou sozinho no sótão, já com a janela aberta. Estou
preparado. A janela tem espaço suficiente para um corpo, e o meu corpo quer agir.”.
Simultaneamente, tem-se Mylia em seu apartamento: “MYLIA 39 EXPLICA [depois de um
grito de dor] Não posso fechar os olhos. Tenho medo de morrer.” (JERUSALÉM, 2008: 1, grifo
meu). Os dois, iluminados ao mesmo tempo, mas separadamente pelas letras vazadas, enunciam
para a plateia (e não como num diálogo intersubjetivo) e confirmam a dupla configuração
espacial. Irmanam-se pelo sentimento da morte: um está prestes a suicidar-se (“o meu corpo
quer agir”) enquanto a outra sente muitas dores, mas tem “medo de morrer”. Observa-se que
nessa primeira cena a dicotomia vida e morte, bem e mal, já se anuncia ao espectador.

As indicações espaciais na dramaturgia são inscritas na titulação de cenas e quadros


como “cave do ex-combatente”, “caminho da igreja”, “cama do deficiente”, “cama do bordel”,
“gabinete do director”. Os títulos também anunciam situações envolvendo os personagens,
como “pedido de socorro”, “Gomperz regulamenta internados”, “Mylia telefona ao amigo”,
“Kaas tomba sacrificado” e “Mylia fica estéril”, enquanto outros incorrem em maior
subjetividade, como “vozes na cabeça” e “rua de nenhures”. As rubricas carregam consigo as
indicações temporais por meio da idade dos personagens: “ERNST 40 EXPLICA”, “HANNA
46 FALA”, “THEODOR 69 PENSA”.
227

Ao escrever a versão teatral do romance, o encenador-autor assinala para a equipe de


criação as principais informações úteis na construção do espetáculo, para a compreensão dos
espaços em que cada cena/ quadro se realiza, pelas idas e vindas no tempo e ainda sugere, em
alguns casos, as atmosferas que deverão ser criadas cenicamente. Em outro aspecto, a
dramaturgia vai aos poucos, como no livro, introduzindo e apresentando as personagens, o que
mantém o espectador em estado de decifração, pois deve estar atento e acompanhar o
desenvolvimento da ação para não se perder. O enigma do enredo fragmentado e fraturado
cronologicamente às vezes ganha pistas da dramaturgia, quando um personagem aparece pela
primeira vez: “KAAS 12 EXPLICA Eu sou uma criança” (JERUSALÉM, 2008: 16).

Recorre-se também à fusão como recurso para garantir a unidade ator-personagem: no


romance, há um vagabundo com quem Mylia encontra à porta da Igreja que no espetáculo é
fundido com Hinnerk, antecipando inclusive sua entrada no enredo cênico, ainda que ele
apareça ao fundo do palco. Em outro momento, o corpo de Hinnerk se funde à cenografia:
atirado de pé sobre a montanha de engaço, com a cabeça enterrada nos escombros, a imagem
faz lembrar os corpos mortos da guerra. Ao descolar-se do engaço para sua performance, cujo
texto é uma remissão aos tempos de combate, Hinnerk parece um cadáver vivo, assombrado
pelo horror da guerra e pela constante sensação da morte dentro de si. Não apenas ele: em
Jerusalém os personagens vivem no limite entre a dor e a paixão, a vida e a morte, mais
próximos da escuridão do que da claridade, contraste ressaltado em desequilíbrio pelo tom mais
sombrio e dark dos quadros cênicos e da iluminação.

A peça retém no espaço a retratação do sombrio mundo de Gonçalo M. Tavares, em que


montanhas de engaço parecem reconstruir as ruínas e os escombros da guerra. O engaço, sobra
da videira depois da uva ser pisada no processo de produção de vinho, é a matéria orgânica
principal utilizada na cenografia, cujo cheiro forte oferece o constrangimento metafórico da
degradação humana tanto ao elenco quanto ao público, que entram na sala do teatro pela mesma
porta. O engaço transcende a cenografia e incorpora-se ao figurino, nos cabelos de Mylia e no
chapéu de Theodor Busbeck; também se transforma em objetos, como o dinheiro que Hanna
atira sobre Hinnerk, seu noivo cafetão. Ao fundo do palco, tem-se uma grande parede de tijolos
à vista formando uma rotunda e logo à sua frente dois praticáveis criam outro nível espacial,
que abrigam e deixam à mostra uma segunda plateia, em que há atores em estado de espera para
entrar em cena e figurantes, ambos sentados de costas para o público e, portanto, de frente ao
muro. Partindo da ideia de que “estar no presente é ter consciência que vivemos numa cidade
228

ocupada”61, muitas vezes sem saída, os montes de engaço são distribuídos de forma que
permitam a abertura de “ruas” ou espaços de trânsito e passagem dos personagens de um canto
a outro do palco. Dessa forma, João Brites desenha uma espacialidade cuja unidade metafórica
remete à cidade, não correspondendo exatamente a nenhum espaço físico concreto, mas ao
espaço interior ocupado por esses personagens. O espaço cênico, dessa maneira, oferece à
encenação uma apropriação integral e simultânea, em que atores, personagens e espectadores
habitam o mesmo mundo.

Na composição visual do espetáculo prevalecem tons escuros, pretos e castanhos, cuja


ausência de vida também remete ao luto e à tristeza, à terra que está por baixo do asfalto das
cidades e onde se pode encontrar algum resquício de vida, como um cacho de uvas verdes que
surge dos engaços nas mãos de Mylia. À obscuridade visual contrapõe-se a iluminação que se
marca inicialmente por projeções via slide sobre toda a cenografia, compondo uma grade de
inúmeros quadrados de onde se salpicam números. Ao iniciar a peça esse slide é substituído
pela projeção de letras agigantadas que vão sendo diminuídas paulatinamente, revelando que
são palavras, frases, parágrafos. O movimento de se escrever sobre a cenografia vai da maior
imagem para a menor até que, ao fim da representação, as frases formam linhas, praticamente
ilegíveis, como uma grande persiana (ou código de barras, como se refere o encenador)
projetada sobre o espaço cênico.

Assim como Mallarmé (entre outros poetas e artistas plásticos), que investe na tipografia
como recurso significante, visual e espacial, tomando a escrita em sua dimensão corpórea e
concreta, Brites escreve em perspectiva a partir dessa progressão. Sente-se a mão do escritor,
do pintor e do escultor em prol de uma visualidade poético-verbal. Aqui, a máquina de cena,
recorrente nos trabalhos do grupo e naqueles anteriormente analisados, é substituída por uma
máquina-texto, em que a materialidade das palavras, da escrita, sobrepõe à oralidade. Tem-se
tempo e espaço conjugados pela palavra, que é física em seus aspectos sonoros e gráficos. Diz
Maurice Blanchot sobre Marllamé que há “o desejo de substituir a leitura ordinária, na qual se
deve ir de parte em parte, pelo espetáculo de uma fala simultânea em que tudo seria dito ao
mesmo tempo, sem confusão, num brilho total, pacífico, íntimo e enfim uniforme.”
(BLANCHOT, 2005: 85-86).

61
Programa do espetáculo Jerusalém.
229

Brites compõe fortes e enigmáticas imagens ao jogar o conteúdo dos textos com o
contraste de luz e sombra da encenação. A luz pontua mudanças de quadro ou cena, o que
colabora para realizar o discurso cênico promovendo alternâncias de tempo e espaço. “Longe
de estar apenas na origem de efeitos pontuais e limitados, a luz se torna um modo de escrever
os acontecimentos em cena, de conduzir uma narração plástica.” (PICON-VALLIN, 2006: 96).
A grafia de João Brites é a fonte primária de iluminação do espetáculo, sob a qual os
personagens movem-se e se dão a ver ao público pelas frestas das letras iluminadas. À medida
que as palavras e frases projetadas vão diminuindo de tamanho e, portanto, compondo um painel
de escrita, essa fonte de luz também se torna escassa, configurando uma textura visual. O
iluminador João Cachulo acompanha essa evolução do apagar da escrita complementando o
espaço cênico com outras fontes de luz, em sua maioria de tons incandescentes (o que lembra
a iluminação de rua) e em momentos tinge a composição visual mais fechada com cores: verde-
água sobre a área do engaço e vermelho e azul sobre a rotunda de tijolos. Entre sombras e
projeções, portanto, as palavras vazadas escrevem sobre a cenografia e os corpos dos atores,
ampliando a dimensão da escrita para a visualidade. Metaforicamente, a palavra é tomada pela
sua condição de iluminar, de explicar e compartilhar as questões humanas existenciais. Picon-
Vallin lembra também que “Essa estratégia de visibilidade e enquadramento de palavras tem
um função ao mesmo tempo dramatúrgica e estética, visto que é possível utilizar todo tipo de
grafias e tipografias.” (PICON-VALLIN, 2006: 104).

A poesia da encenação está em conjugar os quadros visuais intrigantes com uma


encenação mais densa, em que o texto falado e a comunicação ator-espectador conquista grande
realce, projetando o texto do autor e as escolhas do dramaturgo. João Brites parece desejar mais
nesse trabalho o espaço da escuta: há poucas interferências sonoras, o que dá relevo ao trabalho
da oralidade e da exploração material e sígnica das palavras. Rui Pina Coelho, que colaborou
na dramaturgia do espetáculo, observa em artigo que “Jerusalém de O bando assentava a sua
arquitetura narrativa na cosmovisão do autor, mas atravessava-a com um discurso cénico sobre
a espontaneidade da representação e sobre o alcance da palavra escrita por confronto com a
palavra dita em cena.” (COELHO, 2009b: 34).

Na montagem, o texto falado divide-se em quatro enunciações discursivas (falar,


explicar, pensar e evocar), em que se buscou uma modulação vocal distinta para cada. O
contraste imagético acompanha esses pressupostos dramatúrgicos: ao “explicar” (sempre para
o público, como um recurso de distanciamento), o personagem busca as frestas de luz que
emanam das letras projetadas, enquanto ao “pensar” (para si mesmo) recua para as zonas de
230

penumbra. Nessas, os pensamentos ressaltam pela potência vocal, pois o rosto dos atores está
obscurecido pela sombra, como se o encenador criasse uma voz em off ao vivo e em cena.
Quando pensam, os personagens recuam, afastam-se, isolam-se: a corporalidade do ator se
fecha e a intenção mais circunspecta sobre o texto falado promove o distanciamento. As outras
prerrogativas não se inserem nessa composição visual contrastada: quando o dramaturgo indica
“falar” ele se refere ao diálogo entre personagens; “evocar” significa trazer à tona outro
personagem.

É interessante observar aqui a recorrência do procedimento de evocação, utilizado em


Gente feliz com lágrimas: “MYLIA 18 EVOCA A MÃE”, “KAAS 12 EVOCA PAI” ou
“ERNST 26 EVOCA GADA” (JERUSALÉM, 2008: 5, 16-7). Os momentos de evocação
provocam um misto de estranhamento e riso, principalmente na cena em que Mylia e Ernst se
conhecem no hospício e os demais pacientes são evocados por ele como Joana, Gadda. A
sobreposição dos personagens, de alguma forma, tem no corpo do ator o seu espaço de
circulação: as transições são feitas de maneira sutil sem realçar a figura do ator como condutor
do processo. Assim, percebe-se que nesses espetáculos encenados por João Brites não há espaço
para a exibição do ator por trás do personagem, visto que a cena é ocupada somente pelos seres
de ficção.

Os procedimentos de quebra da ilusão dão-se primeiramente pela enunciação, muitas


vezes confessional-narrativa, que se dirige ao público em diversos momentos, incluindo-o como
confidente no acontecimento teatral. De outro lado, a fragmentação da dramaturgia (que se
divide em partes, cenas e quadros) recorre a alternâncias, interseções, deslocamentos e
simultaneidades espaço-temporais entre o presente, o passado e o futuro. A escrita cênica de
Brites determina seu presente ficcional na noite em que todos os personagens se encontram,
como no romance. Entretanto, esse presente constantemente evoca o passado e a cena regressa
para explicar e esclarecer ao espectador não somente traços biográficos dos personagens, mas
as ligações entre eles. As transições ao(s) passado(s) onde as personagens aparecem em vários
contextos com idades diferentes muitas vezes são cenicamente anunciadas por movimentos e
gestos que as transportam de volta. Mylia, no início do espetáculo, está na rua (presente) à
procura de uma igreja aberta e sente muita dor. Tenta pedir ajuda a Ernst, seu ex-amante e
colega de hospício que não vê há muito tempo. Entretanto, quando telefona, sente-se muito mal
e cai. Todas as vezes que a personagem abandona a reconstrução do passado para retomar o
presente, a ação de cair é a chave para situá-la no tempo cronológico inicial.
231

Assim como nas primeiras, nas últimas cenas do espetáculo que se situam no presente
ficcional, a encenação conjuga todos os personagens distribuídos pelo espaço cênico, mas
concentrados em núcleos (Theodor e Hanna, Hinnerk e Kaas, Mylia e Ernst), explicitando que
estão em lugares diferentes da cidade: o espectador, portanto, é capaz de perceber
simultaneamente onde cada um se encontrava no mesmo momento. Se no início o público
desconhece a relação entre eles, ao final está de posse desse conhecimento, o que amplia sua
compreensão do desfecho. Há ainda na escrita dramatúrgica o procedimento de antecipação da
cena em relação ao texto falado. No primeiro quadro da cena 2 (segunda parte), Theodor
Busbeck leva Mylia ao hospício Georg Rosenberg aos cuidados do doutor Gomperz. Enquanto
os médicos conversam, numa cena paralela Mylia se apresenta a Ernst e o seduz, atracando-o
pelas pernas, o que já anuncia o contato íntimo entre os personagens. No terceiro quadro, que
representa um ano depois, Gomperz chama Busbeck em seu consultório para informar-lhe que
Mylia e Ernst haviam feito sexo na frente de todos do hospício. As cenas interpenetram-se:
basta entrar um elemento novo para o quadro se desfazer e originar um novo. Nesses momentos
torna-se mais visível a qualidade de personagem intermédia na performance dos atores que, eles
mesmos, montam e desmontam as cenas, onde tudo é teatro e representação.

Outro procedimento cria interseções entre distintos fragmentos espaço-temporais a


partir de personagens-nucleares que compõem os dois conjuntos: o adolescente Kaas está na
rua procurando por seu pai Theodor e encontra Hinnerk, que se propõe a ajudá-lo. Quando estão
saindo, Theodor surge e leva o menino para outro espaço, recolocando ambos no passado para
visitarem o avô doente numa cama de hospital. Kaas, dessa maneira, torna-se a interseção entre
dois tempos e lugares. Quase ao fim do espetáculo, estão no presente Mylia, Ernst e Hinnerk:
os amantes brincam com a arma do ex-combatente quando Mylia, empunhando-a na direção
dos dois homens, questiona se está carregada. Congela-se a cena e ela, dirigindo-se à plateia,
narra: “Tenho 48 anos e estou fechada na cela de um hospital-prisão. Fui condenada por
assassínio de um indivíduo adulto de nome Hinnerk Obst, com uma bala na cabeça, na noite de
29 de maio” (JERUSALÉM, 2008: 37). Retoma-se a cena anterior, em que se vai revelar a não
culpabilidade de Mylia, pois quem atirou no ex-soldado foi Ernst, acidentalmente. Assim, nesse
vai e vem, Brites demanda a atenção do espectador, retira-o de sua passividade e joga com ele
por meio da tessitura de uma intricada rede cênica que conduz os personagens pelo labirinto de
Gonçalo M. Tavares.

João Brites serve-se de dois recursos para instalar o presente cênico, performatizando
sua encenação: um personagem cuja função é atravessar o espaço empurrando um carrinho onde
232

transporta engaço e um cachorro (real) que passeia pelas montanhas de engaço e serve muitas
vezes de interlocutor para a confissão ou pensamento de alguns personagens. Além de atualizar
os atores e o público quanto ao presente do acontecimento teatral, o cão está associado à morte,
aos infernos e ao mundo subterrâneo em várias mitologias. Segundo o Dicionário de símbolos
o cão é “guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida” 62.
Assim, o cão acompanha esses personagens arruinados, cuja morte os espreita num ambiente
de guerra e destruição humana, desaguado no adolescente Kaas, morto por Hinnerk, que por
sua vez depois será assassinado acidentalmente por Ernst.

A poesia da teatralidade de Jerusalém convoca Mylia a desenhar uma porta com giz
branco sobre a parede de tijolos na tentativa de conseguir abrir a igreja logo no início do
espetáculo. Na última cena, após o assassinato de Hinnerk, ela retorna à igreja procurando
proteger-se, refugiar-se (e até mesmo confessar-se, pois assume o crime em lugar do amante):
a iluminação projeta uma luz recortada sobre o desenho inicial de giz, sugerindo que a igreja
foi aberta. A circularidade da dramaturgia, acompanhando a estrutura do romance, conclui-se
na última cena, cuja imagem retoma a projeção inicial da grade de letras e números. Entretanto,
para encerrar o espetáculo, Brites cria uma imagem coletiva em que participam todos os
personagens, de pé, distribuídos pela cenografia e tenho as cabeças cobertas por sacos,
remetendo ao anonimato, à morte e ao desfalecimento. A abertura da luz sobre o palco
acompanha o descobrir as faces para os agradecimentos ao público. Depois, os personagens
recuperam a primeira posição, vestem os capuzes e a luz da plateia se acende: o espetáculo
terminou, mas o público ainda leva um tempo para perceber que os atores não sairão de cena.

A crítica da revista portuguesa Time Out, assinada por Rui Monteiro, atribuiu quatro
estrelas ao espetáculo e destacou o trabalho dos atores, por responderem às exigências da
montagem, “desenvolvendo os seus papéis e arrastando com desenvoltura as personagens até a
beira do abismo, corporizando o medo como quem tenta exorcizar o terror, legitimando a
cobardia com a vontade de viver apesar de todas as contrariedades”. E sobre a investida e a
postura do grupo assinalou que o encenador e o grupo “criam, em Jerusalém, obra nova com a
determinação experimentalista característica dos seus melhores trabalhos. Não fazem do teatro

62
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. 20 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 176.
233

uma arma: antes não desistem de lhe acrescentar consciência e responsabilidade social.”
(MONTEIRO, 2008: 52).

“Queremos um teatro que contribua para acordar as consciências, que provoque


reacções e que essas reacções possam ter efeitos na cidade e nos habitantes da cidade. Uma
cidade que foi usurpada e sorrateiramente ocupada por uma antiética que nem resíduos de culpa
deixa”, escreveu João Brites no programa do espetáculo. A essa ocupação reúnem-se a violência
e a loucura que transformaram os espaços habitados em não-lugares, em extensão do mal que
habitam corações e mentes de alguns seres humanos. Jerusalém, dele, d’O Bando e de Gonçalo
M. Tavares, convoca o espectador a um despertar para a realidade exterior, onde o perigo reside
ao lado e a alegria, a vontade de viver e o amor estão soterrados sobre os escombros do
individualismo e da desumanidade: somente o poder da palavra pode ser capaz de iluminar os
caminhos da existência.

De modo mais amplo, a principal questão cênico-dramatúrgica para João Brites, ao que
parece, é a representação do tempo e é sobre o tempo que encontra nos textos narrativos um
importante elemento para a realização de seu pensamento artístico. Se de um lado aproxima-o
de Sherazade, para quem o narrativo é o adiamento da morte, de outro requer a consciência do
presente a partir da conjugação com os tempos passado e futuro na construção de uma percepção
prismática das questões humanas. A narratividade também é um recurso decisivo para o
encontro com o espectador, prática e ética que acompanham seu trabalho e o do grupo, pois
admite a presença do público, demanda sua escuta e ativa seu imaginário. Dessa feita,
cenógrafo, criador das máquinas de cena, dramaturgo, encenador e diretor de atores, pensador
e ativista político, João Brites é um dos artistas de sua geração mais celebrados em seu país e
fora dele. Apesar de praticamente desconhecido no Brasil, o que é um pesar e espero que este
trabalho pode contribuir para sua difusão, foi um dos responsáveis pela renovação do teatro
português e tem se mostrado inquieto e atento às transformações pelas quais passa a cena, a
sociedade e o mundo no percurso de sua carreira.
234

EPÍLOGO

Julho de 2015. Enquanto realizo a revisão final deste texto para publicação, estou no
Rio de Janeiro para estrear um novo espetáculo, EuCaio, solo de Matheus Soriedem com
dramaturgia e encenação minhas, a ser apresentado no projeto Teatro de Cama que leva peças
de pequena estrutura para serem apresentadas dentro de um quarto num apartamento no Morro
do Vidigal para até quinze espectadores por sessão. O solo, um retrato da Ditadura Militar a
partir da vida e obra do escritor Caio Fernando Abreu, tem sido desenvolvido work in progress
desde julho de 2014, inicialmente como uma cena curta, depois uma versão estendida e agora
posso afirmar que estamos próximos à ultima versão, guardadas as devidas atualizações
propostas pela dramaturgia. A criação partiu de uma pesquisa da repressão ao corpo por meio
do medo e da violência, em diálogo com fatos e documentos históricos, músicas, cartas e
fragmentos do primeiro e premiado livro de contos do jovem escritor, O inventário do ir-
remediável de 1970, onde se manifestou em vários textos sobre o terrível momento político que
assolava o país. Os materiais dessa construção cênico-dramatúrgica apontam para os gestos
estruturais de escrever, recortar, colar, costurar e organizar.

Peço licença para escrever no presente, pois esse é o tempo em que residem o teatro e a
escrita, que por sua vez conformam gestos performativos. Se no Prólogo desenvolvi um
memorial do percurso, esse Epílogo dialoga com o agora, em direção a perspectivas de futuro,
caminho de continuidade que se espera de toda pesquisa. Em EuCaio, as questões aqui
examinadas ganham relevo e continuidade na investigação de uma dramaturgia rapsódica e de
um teatro narrativo-performativo, síntese deste trabalho. Tenho apreço pela circularidade
espiralada dos processos, pois não por acaso a revisão final deste livro coincide com a estreia
na cidade do Rio de Janeiro onde desenvolvi o Doutorado e me abriu tantas portas e janelas, o
que me orienta a investir mais na reflexão por meio da escrita como registro e legado para
futuros pesquisadores.

A pesquisa de Narrativas em cena tem como princípio uma investigação sobre a escrita
(cênica e dramatúrgica) e um exercício de escrita (acadêmica e inteletual) que me possibilitou
compreender os seus diversos mecanismos e o reconhecimento dos modos de escrever que
tenho desenvolvido ao longo desse percurso e que agora parecem ter encontrado um sentido,
uma afirmação. O principal desafio deste trabalho foi tentar ampliar o gesto de escrever como
dramaturgo, essa práxis preferencial de reunir textos, fragmentos e colocar em diálogo sobre
235

um mesmo registro. Percepciono agora o quanto a escrita acadêmica e intelectual foi em larga
medida aproximada da escrita dramatúrgica, que venho praticando em diversos espetáculos,
incluindo os que atuo também como encenador: escrever a partir de uma escrita alheia,
referenciada, e que o conjunto organizado, costurado, revelasse qualidades dessa autoria. Ou
melhor, esse processo permitiu um aprendizado ao estudar profundamente o trabalho de
Aderbal Freire-Filho e João Brites e uma tomada de consciência do meu modo de escrever, em
que a autoria costuma localizar-se nas tramas da colcha de retalhos textual: é preciso virá-la do
avesso para encontrar mais precisamente seu autor.

O que isso revela sobre esta autoria? No âmbito aqui examinado, trata-se do sujeito que
exerce a criação, que desenvolve a expressão de seu pensamento, que lê, elabora, escreve e
reescreve, seja a partir de uma escrita própria ou oriunda de escritas externas, mas cujo gesto
determina sua singularidade. Neste caso, revela escolhas e preferências, promove diálogos e
interseções, constrói-se no movimento de coser e descoser; privilegia muitas vezes a abordagem
narrativa-descritiva enquanto persegue os aspectos analíticos que podem ser extraídos,
oscilando entre o reconhecimento/ identificação e o estranhamento necessários para o melhor
desenvolvimento do trabalho. Disso resultou um intenso exercício para permitir que a autoria,
o espaço de fala, não seja apenas concedida a outrem, mas que faça emergir um pensamento
autônomo, uma observação sobre o próprio trabalho e sobre o ofício dos encenadores Aderbal
Freire-Filho e João Brites.

Reflexões sobre pontos de chegada

No balanço geral, tem-se aqui uma pesquisa, um campo de estudos, duas áreas de
conhecimento, dois encenadores-autores e seus coletivos de criação, duas poéticas, seis
romances e respectivas dramaturgias e espetáculos, dois países, uma língua e duas sonoridades
e um pesquisador-artista que simultaneamente busca o confronto entre autorias e é confrontado
por elas. Não posso me eximir dessa qualidade dupla e ambígua, por isso busco no resultado
desse percurso (até o presente) algumas pistas para a compreensão desse processo investigativo.
Começa-se pelo gosto pela leitura, pela narrativa e pela faculdade da imaginação: não se trata
apenas de uma contraposição ao texto dramático tradicional, nem mesmo de buscar soluções a
possíveis crises da escrita teatral: está-se falando, sobretudo, de um espaço de comunicação
236

entre palco e plateia, da diluição de fronteiras entre o ator e o espectador que conquistam no
acontecimento teatral uma prática milenar de oralização/ vocalização/ performatização de
textos narrativos. Estão ligados profundamente de um lado aos rapsodos gregos e de outro aos
contadores de história, dos quais Sherazade aparece como emblema fundador de uma prática
tanto ocidental quanto oriental, que tem atravessado muitas gerações e, ao que parece, não tende
a desaparecer, mas, ao contrário, se fortalecer dado ao crescente número de espetáculos que têm
tomado como objeto cênico-dramatúrgico textos não-teatrais.

Tais textualidades têm provocado a linguagem teatral a restaurar a sua teatralidade: ao


levar para o palco textos literários, romanescos neste caso, esses materiais inevitavelmente
colocarão impasses, questões e equações para a cena que, por sua vez, deve recorrer aos seus
próprios recursos para construir com eles espetáculos de teatro. As narrativas em cena operam-
se por meio de uma escrita cênica, desenvolvidas no palco em larga medida por seus
encenadores-autores, que contempla dois discursos em paralelo, como numa partitura musical:
o texto falado e o texto encenado. O primeiro forma-se pela inclusão literal do texto narrativo,
como em Freire-Filho, ou por recorrência a trechos, capítulos, fragmentos do original, como na
prática de João Brites; entretanto, ambos utilizam-se do procedimento de edição para dividir,
multiplicar, subtrair e adicionar gestos próprios de escrita na composição da dramaturgia. A
segunda textualidade comporta as imagens, movimentos e ações cênicas, compostas e
originadas pelos atores e pelas orientações do encenador junto aos demais criadores.

O encenador português serve-se do romance como matéria-prima para a criação de


imagens tridimensionais e poéticas, não importa em que nível (se econômico ou abreviado,
como em Gente feliz com lágrimas, ou mais próximo à obra original, como Ensaio sobre a
cegueira e Jerusalém) ao separar o que do romance vai para o discurso direto (falado por meio
do elenco) e o que vai para discurso indireto e/ ou visual; de outro lado, o brasileiro deseja o
corpus do romance para sobre ele escrever a encenação, a ponto de enganar alguns espectadores
quanto à origem literária do texto.

Sobre os romances escolhidos, Freire-Filho concentra-se em obras picarescas, de humor,


cujos autores mais jogam com a escrita do que contam histórias, e fazem ressaltar o trabalho
dos atores que, freneticamente, passam de uma personagem a outra, brindam o espectador com
performances potentes em que se exploram os recursos do corpo, da voz e do gesto. Brites
prefere uma literatura mais poética, abismal, em direção a problemas existenciais profundos:
dirigem-se à escrita e pintura tridimensionais, à constituição de imagens inspiradas e
237

memoráveis, que inundam o olhar do espectador. Procurando a crítica e a reflexão, ambos


refletem com esses espetáculos sentimentos mais gerais de seus países: de um lado o carnaval,
a troça e o deboche enfrentam de outro a circunspecção, a sisudez e a austeridade, ainda que os
romances encenados pelo português resvalem em alguma ironia e humor.

Aderbal investe na encenação de uma literatura praticamente desconhecida para, por


meio do teatro, apresentá-la, partilhá-la com o público, dando a conhecer obras que, por diversas
razões, estavam depositadas em bibliotecas ou sebos (vale recordar que A mulher carioca aos
22 anos e O que diz Molero ganharam novas edições após os espetáculos). O ineditismo dessas
montagens protege-o melhor de comparações com os originais e pode estimular espectadores a
buscar pelos romances e conhecer seus autores. João Brites, ao contrário, encena obras
consagradas, de grande circulação e conhecimento do público, mas sua construção poética
impele-o a novos olhares para esses textos (re)conhecidos. Aqui, percebe-se que a exploração
mais visual e menos textual dos espetáculos d’O Bando pode estar relacionada ao conhecimento
prévio que o público tem dos romances. Optando nestes casos por escritores portugueses, Brites
acentua seu gesto de partilhar a cultura, a memória e a linguagem de seu país, rumo ao
questionamento das práticas e valores de sua sociedade. Todavia, o gesto de retirar o romance
de sua materialidade de livro e oferecê-lo à encenação produz obras autônomas, singulares, o
que configura a autoria desses encenadores.

Freire-Filho e Brites desenvolvem seus espetáculos de forma processual, em que a sala


de ensaio é o espaço laboratorial para a experimentação e a investigação de toda ordem. O
brasileiro inicia seu trabalho pelos ensaios de compreensão por meio de leituras afetivas e
contato com diversos materiais correlatos (máscaras, jornais, pinturas etc), buscando uma
compreensão plural do elenco sobre a obra, etapa que parece corresponder aos estágios
promovidos por João Brites; em seguida, Aderbal encaminha-se para os ensaios de exposição,
ou resposta-em-cena, em que o encenador é o sujeito dominante da gramática cênica e condutor
do trabalho criativo do elenco, sem preparação prévia. Nesse sentido, João Brites somente chega
à criação cênica depois de escrever a dramaturgia, que contempla a concepção global do
espetáculo, seus aspectos éticos, estéticos e políticos, e as diretrizes para a cenografia e a
encenação. Depois, a dramaturgia é testada, realizada e reformulada nos ensaios junto aos
demais criadores. Portanto, ambos são escritores de cena, ou escritores de palco, pois
reconhecem que a cena é quem apresenta as respostas paras as questões propostas pela
dramaturgia/ direção.
238

Se Freire-Filho não deixa marcas de suas operações dramatúrgicas no romance-em-cena


(pois trabalha sobre o próprio livro), Brites de antemão já prepara sua versão em escrita,
contemplando não apenas os textos falados pelos atores, como também as rubricas, indicações,
subtexto e sugestões para a música, iluminação e cenografia. Um e outro necessitam de um
arranjo mínimo estrutural quanto à espacialidade para que possam nela desenrolar suas
concepções de cena. Contudo, as questões da visualidade provocam com mais intensidade o
encenador de Ensaio sobre a cegueira, por seu inevitável olhar plástico, visual, ainda que as
questões relacionadas ao ator tenham passado a merecer um lugar cada vez mais destacado em
sua poética. Já para Aderbal, o centro da poética do romance-em-cena está na vibrante
performance de seu elenco e as questões mais visuais ficam restritas no geral à utilização de
alguns objetos e dispositivos que vão sendo ressignificados pela sintaxe cênica e manipulação
do elenco.

No romance-em-cena, a recorrência a atores nas três montagens, alguns remanscentes


do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, formam um coletivo de afinidades, que
realiza para Aderbal, de certa forma, seu desejo de viver e criar em grupo. Para além-mar, o
Teatro O Bando é uma coletividade relativamente estável, organizada em cooperativa, que
atualmente se estrutura em torno de uma direção artística, compondo um núcleo de criação que
tem privilegiado o singularismo (para salvaguardar as singularidades de cada integrante) em
detrimento do antigo coletivismo. De ambos os lados, percebe-se que a realização de um teatro
que se origina de pesquisa, investigação e experimentação requer uma regularidade dos
envolvidos, numa prática que não se encerra a cada espetáculo, mas que prossegue em contínuo
desenvolvimento e aprimoramento, o que aproxima essas experiências de um work in progress.
Para isso, é necessário investimento para reter a equipe de criação em sala de ensaio, pois esses
processos costumam exigir tempo de elaboração e averiguação, não resistindo às pressões mais
imediatas de uma produção comercial.

A correspondência de ambos os encenadores com Brecht revela seus princípios de


teatralidade, a partir dos quais tudo é feito e fabricado diante dos olhos do espectador, além de
evidenciar o gosto pela capacidade da narrativa de promover o rompimento da quarta parede
para incluí-lo no acontecimento teatral. A fragmentação, a utilização de quadros cênico-visuais,
a descontinuidade da ação, os personagens mais ficcionados (exagerados, grotescos,
estereotipados, histriônicos) colocam-nos contemporâneos e, de certa forma, atualizadores da
poética do dramaturgo e encenador alemão, que investe na exposição dos recursos do teatro e
no desvendamento dos mecanismos de construção do espaço ficcional para o público. A
239

teatralidade avizinha-se da performatividade nesses trabalhos pela presentificação dessa


construção, muitas vezes sem bastidores, que joga com o olhar e com os sentidos da plateia, em
que o ator é o elemento vivo no estabelecimento de uma comunicação entre o palco e os
espectadores.

É admirável a postura Freire-Filho e Brites nessa escolha de romances como objeto de


encenação pelo risco da investida, pelas dificuldades de produção, pela inquietude da
experimentação, o que os tornam singulares em seus respectivos cenários de atuação na
construção de linguagens autorais. Desse modo, instigam o gosto pela literatura e colocam em
causa o teatro ao oferecer-lhe equações que somente a cena é capaz de resolver. A beleza da
poética do romance-em-cena de Aderbal reside na performatividade narrativa de seus atores,
que incansavelmente transitam entre inúmeros personagens, montam e desmontam cenas,
oferecendo à plateia uma potente teatralidade. Em João Brites, fascina a composição espaço-
visual de seus trabalhos, em que o artifício cenográfico (e as máquinas de cena) produz
impactantes e memoráveis imagens tridimensionais e em movimento, juntamente à
interpretação dos atores que a elas dão sentido.

Entretanto, para o encenador brasileiro, aliar espetáculos de longa duração na


perspectiva frenética dessa linguagem a romances mais experimentais e desconhecidos incide
numa baixa retenção do texto pelo público, o que pode ser a razão pelas dificuldades de melhor
aceitação do romance-em-cena, ainda que a excelente performance do elenco seja capaz de
prender e seduzir a plateia. Para o encenador de Jerusalém, seu olhar profundamente visual e
plástico leva sua dramaturgia para um campo muitas vezes fragmentado e lacunar, em que a
narratividade se constrói muitas vezes pelo não-dito, aquilo que somente pode ser mostrado e
não apenas falado.

Nesse sentido, ressalta-se a dimensão da literatura no Brasil e em Portugal. Em terras


lusitanas tudo parece emergir da palavra, berço que é da língua portuguesa, como o teatro,
cinema, dança, artes plásticas e sua intensa atividade cultural. Nas ruas, pode-se ler frases de
autores renomados grafadas em fachadas de edifícios, acompanhando o percurso do cidadão,
em que a língua é alçada ao estatuto de patrimônio. No Brasil, ao contrário, os altos índices de
analfabetismo, os baixos indicadores de leitura do cidadão médio explicitam a pouca
convivência com a literatura e, dessa forma, o romance-em-cena de Freire Filho destoa no
contexto cultural como exceção, enquanto a prática de encenar textos não escritos para o teatro
de Brites e d’O Bando assume-se como uma práxis cotidiana, também realizada por outros
240

artistas conterrâneos. Se em Portugal o intenso hábito de leitura permite que os espetáculos


descolem-se mais das palavras, no Brasil o teatro narrativo, de alguma forma, cumpre um papel
de disseminador da literatura e instigador do hábito de ler para tentar suprir em algum nível
essa deficiência cultural.

Recordo a descoberta de Portugal e da nossa língua-pátria, que conjuga no Brasil sob


seu manto europeus, orientais, afrodescendentes, indígenas. Recupero o encontro com os
portugueses, cujo sotaque é também fonte de incompreensões. Mas trata-se, ao que parece, de
tempo de fruição e escuta, já que a língua oficialmente é a mesma e sofre os imperativos da
mesma gramática (o acordo ortográfico recente diminuiu mais ainda as fronteiras quanto à
escrita e grafia, ainda que encontre resistência dos nossos irmãos lusos). Lidando com dois
encenadores de dicção portuguesa, ressaltam-se as aproximações quanto à escrita e as distâncias
quanto à oralidade/ vocalidade. O estranhamento inicial quanto à fala em Portugal
simultaneamente fascinava e presentificava as distinções com o Brasil, percebendo naquele que
foi colonizador uma unidade conformada no tempo, enquanto no colonizado uma
multiplicidade de acentos que percorrem toda a nossa extensão territorial.

Ter vivido em Lisboa durante seis meses não apenas proporcionou a aproximação com
uma de nossas matrizes culturais e tantos encontros, trocas e interlocuções, mas principalmente
o contato mais estreito com João Brites e o Teatro O Bando: pela primeira vez estava
acompanhando o trabalho de um encenador, na condição de pesquisador e também de aprendiz,
tendo oportunidade de confrontar minhas experiências com a sua prática e o seu pensamento.
Identifico-me com os modos de encontro com o público, que não é apenas objeto-alvo da
representação, mas um integrante ativo e decisivo nesse processo. Estando com eles, assalta o
desejo de uma vivência mais integral do trabalho artístico, que a condição de estar em grupo (e
dedicar-se a ele) pode proporcionar. Seja nos almoços-convívio ou nos ensaios abertos na sede
do grupo, o espírito de comunidade contagia os participantes, que têm a oportunidade de
conversar sobre os trabalhos, celebrar o encontro com a arte e seus princípios humanistas e
sociais. Reconheço-me nesse desejo de encontro e convivência com os espectadores, e espero
que eles possam sair dessa condição anônima e coletivizada para uma abordagem mais pessoal,
pois as fronteiras entre vida e arte podem ser diluídas, fundidas.

Como João Brites não estava dirigindo nenhum espetáculo no período em que estive em
terras lusas, o estágio docente e artístico na ESTC possibilitou-me observar seu trabalho de
direção de atores, que tem conceitos e determinações desenvolvidos ao longo de sua trajetória
241

artística, e que parte da consciência do ator em cena. Interessa-me esse ator-artista que ele
procura, já que cada vez mais busco conjugar nas minhas encenações o ator e o personagem e
as ambiguidades que de suas combinações podem resultar. Seu trabalho a partir de uma
materialidade concreta, que se explicita para o espectador, provoca meu pensamento e me
propõe descobertas no campo da atuação. Percebia durante as aulas a dificuldade dos jovens
alunos-atores, acostumados a um tipo de interpretação mais realista, que parte da interioridade,
das emoções, para a exterioridade.

Constato que a metodologia de Brites garante ao ator a fixação de suas partituras


corporais e vocais, pois tudo o que ele cria está ancorado numa realidade concreta: numa tensão
muscular, numa certa articulação da cavidade bucal, oferecendo-lhe recursos de retorno,
enquanto o inverso está mais suscetível ao apagmento/ esquecimento, o que dificulta para ele a
sua recuperação/ rememoração. Os três planos de expressão do ator (corporalidade, oralidade e
interioridade) mapeiam o campo desse trabalho e suas variações quanto à gradação e
explicitação (do mais grotesco ao mais realista), oferecem um intricado quadro de
possibilidades, além de investir nas qualidades performativas do ator, que deve atualizar sua
presença a partir dos aspectos concretos. A personagem-intermédia se refere à pura presença
do ator em cena e corresponde, em certa medida, à figura do ator-narrador nos trabalhos que
desenvolvo, pois ambas distinguem o ator (pessoa física) de um ator-personagem de si mesmo:
o palco é lugar de representação, mesmo quando o intérprete, por si e sem caractere evidente,
comunica-se com a plateia.

De outro lado, seu gesto de encenador-autor se evidencia ao construir o trabalho final a


partir dos materiais originados nas tantas improvisações e exercícios desenvolvidos no percurso
de seis semanas intensas. A partir de uma imagem aglutinadora, um quadro da pintora Paula
Rêgo, Brites estruturou uma dramaturgia (em colaboração com o dramaturgo e Prof. Rui Pina
Coelho) contendo cenas inspiradas a partir daquela imagem com aspectos biográficos
explicitados pelo desempenho da personagem-intermédia e ainda cenas criadas coletivamente.
Por não se tratar de um espetáculo, mas de um Exercício Comentado, Brites permite-se junto
aos alunos-atores a arriscar hipóteses na construção de uma sintaxe cênica em que se ressalta o
estado cênico de limbo, já que nenhum dos atores abandona o palco durante sua realização,
colocando à prova a qualidade de sua presença em cena, capaz de atrair o olhar do espectador
e dos enigmas que possa conter. É importante destacar a generosidade de Brites na abertura de
seu processo criativo e no interesse explícito pelas contribuições e olhares que pudessem
oferecer a seu trabalho uma atitude que convergisse com as posições de seu grupo, sempre
242

atentos à percepção externa e ao diálogo com outros artistas e pensadores, o que dessacralizou
para mim a imagem de um encenador-autor que detém conhecimentos não-partilháveis. O
hábito de sempre colocar em causa suas próprias convicções simultaneamente humaniza sua
figura e manifesta sua grandeza.

No Brasil, o contato com Aderbal Freire-Filho deu-se de modo distinto, quase impessoal
e formal, o que também é eficaz para uma pesquisa. Além da troca de alguns e-mails, estivemos
juntos em dois encontros: o primeiro, em fins de 2009, para buscar os DVDs dos espetáculos,
quando gentilmente me apresentou as instalações do Teatro Poeira e mencionou o espetáculo
Moby Dick cuja feitura o estava ocupando demasiadamente naqueles tempos. O segundo
encontro, que resistiu às dificuldades de sua agenda atribulada de compromissos, realizou-se
em seu apartamento para a entrevista de conclusão da pesquisa sobre o romance-em-cena.

Durante três horas, pude perceber por trás de sua figura amplamente reconhecida e
requisitada um homem simples, de abastada biblioteca de leitura, devotamente apaixonado por
seu ofício, que se formou sobre o piso do palco, como ator, dramaturgo e encenador. As
questões dirigidas a ele não apenas cumpriam um protocolo de pesquisa, mas foram
transformadas em importantes interlocuções, a partir do confronto de ideias e pensamentos.
Apesar do cansaço explícito que se encontrava depois de um dia intenso de trabalho e
preparação para mudança de residência, Aderbal revelou-se gentil e interessado na pesquisa
que nos tinha aproximado. Desse contato, revelou-se o homem por trás do artista; ampliou
minha percepção do palco como lugar sagrado, de magia e encantamento, espaço em que todos
os mundos são possíveis e a vida pode ser recriada, repensada, questionada, atualizada.

Interlocuções na prospecção de um futuro

As questões investigadas neste livro relacionam-se com procedimentos de construção


de espetáculos. Ao retornar a campo, como dramaturgo e encenador, confirmam-se novas
interlocuções entre a teoria e a prática no meu trabalho artístico e intelectual. Até o momento
de publicação, este trabalho foi contaminado e contaminou criações diversas como a
colaboração dramatúrgica de Solamente Frida, produção Brasil-Bolívia em parceria com os
coletivos Garotas Marotas e Teatro de Los Andes; dramaturgia, encenação e formação de jovens
atores (em parceria com Léo Quintão) através do espetáculo #tudodenós com o grupo Pierrot
243

Teen e produção da Cia. Pierrot Lunar; dramaturgia e encenação do teatro-documentário


Marilyn Monroe.doc, produção da Vinco Projetos Gráficos e Culturais; a dramaturgia inédia
Rita Lee vem jantar, dirigida por Marina Viana e Marina Arthuzzi em leitura encenada no
Projeto Janela da Dramaturgia; a dramaturgia e direção da Cena I do solo de Laís Rivera,
Valsas... experimentos rodrigueanos, criação assinada em parceria com Arnaldo Alvarenga e
Gabriela Christófaro) e EuCaio, o mais recente, com Matheus Soriedem.

Os trabalhos são frutos de um pensamento em movimento, em que as questões oriundas


da pesquisa teória e analítica estiveram a serviço dessas criações e essas elucidavam aspectos
investigados no âmbito acadêmico, numa contaminação mútua e profícua. O ciclo se realiza em
espirais e percepciono o quanto esses gestos performativos de escrever (cênicos, dramatúrgicos,
intelectuais) estão embaralhados e definem aspectos da minha autoria. Nesse sentido,
percepciono que para mim é muito difícil escrever teatro sem encenar, ainda que tenha tido
boas experiências. No meu trabalho, as duas funções são complementares e não parece
circunstancial o fato de tantos encenadores acumularem essas funções, pois estamos no teatro
contemporâneo, em que texto e cena estão profundamente ligados, como nas práticas de
Aderbal Freire-Filho e João Brites.

A escrita cênica não é apenas uma organização dos materiais de cena e de texto, mas se
dirige à proposição de um sentido para o espetáculo como um todo. Escrever é criar, é
comunicar uma ideia (sobre a vida, o mundo, o humano) por meio de uma linguagem concreta
e oferecê-la ao seu receptor, destinatário da produção de toda obra artística. Penso que a
dramaturgia, ou escrita cênica, independentemente de sua origem ou situação de escrita, é o
guia que conduz o cego (o público). Aliada à encenação, como a mão direita e a esquerda, não
se refere exclusivamente ao que é falado pelos atores, ao contrário: o espectador quando chega
para um espetáculo é como um cego a entrar num ambiente de escuridão profunda. Ele não sabe
o que o aguarda e, portanto, é a escrita cênico-dramatúrgica que o guiará durante o tempo em
que reside (ou resiste?) no espaço da representação.

Tomo a escrita cênica como o guia que conduz através de imagens, sensações, palavras
e gestos que se oferecem à construção do sentido do público. Por vezes, a dramaturgia pode
abandonar o cego, deixar que ele experencie por si alguns momentos, mas depois deve retomar
a condução, pois são elementos interdependentes no acontecimento teatral. Não há nada mais
frustrante para a plateia que um espetáculo que se desenvolve à parte no palco e mantém-na
244

excluída do acontecimento, situação infelizmente muito recorrente quando se observa a


produção teatral contemporânea.

As categorias da Comunicação, que estão no cerne da minha formação acadêmica e


profissional e muitas vezes ignoradas pela classe teatral, são imprescindíveis para pensar a
relação texto-leitor ou cena-espectador, num contexto em que a literatura narrativa, sobretudo
de romances, é uma importante ferramenta para compreender as idiosincrasias do gesto de
escrever, seja a própria literatura ou espetáculos de teatro. O escritor só dispõe de palavras para
estabelecer sua comunicação com o leitor e por isso seu ofício exige tanta precisão e esforço:
independente se sua linguagem investe em experimentalismos, o que por um lado define o tipo
de leitor a que se dirige, sua questão primordial é encontrar mecanismos de enunciação de suas
ideias e visões de mundo.

Ao pensar na figura do escritor de cena, percebe-se o quanto a leitura de romances


influencia e define os modos de criação e escrita de encenadores-autores, que dispõem de outras
ferramentas para realizar sua escrita, as da linguagem teatral. Escrevendo ou falando, incidimos
no gesto performativo da escrita cênica que se realiza mesmo na sala de ensaio, espaço de
criação e reflexão. Para isso, é preciso conhecer e dominar a linguagem sobre a qual se escreve
para comunicá-la a seu destinatário.

É hora de colocar o ponto final, ainda que doa a sensação invitável de inacabamento, de
incompletude de toda pesquisa. Entretanto, não posso encerrar sem destacar a profunda
cooperação e parceria de artistas e grupos nessa trajetória, os meus “coletivos de afinidade”
com quem pude trabalhar até o momento, Grupo Teatral Pannus Finis, Cia. de Outros Atores,
Cia. Pierrot Lunar e mais recentemente Mutanti, pelo privilégio de podermos testar e
experimentar aspectos da investigação em montagens, possibilitando o cruzamento das
descobertas nos dois níveis, teórico e prático. Assim, antevejo o futuro: o percurso avança,
agora renovado e estimulado pelos conhecimentos e reflexões adquiridos, em direção a novas
criações e desafios.

Esta publicação culmina num ritual de passagem: a vida está chamando, é preciso seguir.
Penso no gosto pela narrativa e na milenaridade de se contar histórias, que levou o diretor
Robert Le Page a declarar que o teatro deve reestabelecer o contato com o público, no sentido
de comunhão e compartilhamento, pois as pessoas ainda vão ao teatro para se sentar ao redor
do fogo e ouvir histórias. Assim, este ponto final não é uma conclusão, porque essa relação
entre teoria e prática não se desfaz, está em curso, em desenvolvimento, work in progress na
245

reflexão e na sala de ensaio. Fecho o notebook para entrar em mais um palco vazio, espaço onde
a beleza do teatro se manifesta e se renova.
246

BIBLIOGRAFIA

ABIRACHED, Robert. La scène en autarcie. In: La crise du personnage dans le théâtre


moderne. Paris: Gallimard, 1994, p. 352-361.

ABREU, Luis Alberto de. A restauração da narrativa. In: O PERCEVEJO – Revista de teatro,
crítica e estética. Ano 8. No 9. 2000, p. 115-125.

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Trad. Modesto Carone.


In: BENJAMIN, Walter (et al). Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980, p. 269-73.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: O que é o contemporâneo e outros


ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 55-73.

ANTUNES, David. Estar em cena no bando. In: O BANDO. Afectos e reflexos de um trajecto.
Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 109-117.

ARTAUD, Antonin. El teatro y su doble. Trad. Enrique Alonso y Francisco Abelenda.


Barcelona: Edhasa, 1978.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A Teoria do Romance). Trad. Aurora


Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP; Ed. Hucitec, 1988.

O BANDO. Afectos e reflexos de um trajecto. Palmela: Teatro O Bando, 2009.

O BANDO. Máquinas de cena/ Scene Machines. Porto: Campo das Letras, 2005.

O BANDO. Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário. Lisboa: Grupo de


Teatro O Bando, 1994.

BARTHES, Roland. A escuta. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 217-229.
247

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Isabel Gonçalves. Lisboa:


Edições 70, s/d.

BARTHES, Roland. O prazer do texto precedido de Variações sobre a escrita. Lisboa: Edições
70, 2009.

BATISTA, Adelaide Monteiro. O universo migratório em “Gente feliz com lágrimas”.


Comunicação proferida no Congresso de Literaturas Insulares de Expressão Portuguesa.
Lisboa: Biblioteca Nacional, 1990, p. 39-54.

BERGSON, Henri. Ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski (et al). São
Paulo: Perspectiva, 2001.

BLANCHOT, Maurice. Trad. Álvaro Cabral. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2005.

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: 2005.

BRILHANTE, Maria João. Laços e desenlaces entre criação e reflexão crítica no teatro
português contemporâneo. In: SALA PRETA – Revista de Artes Cênicas. N. 9. São Paulo:
ECA/USP, 2009, p. 121-132.

BRILHANTE, Maria João. Um teatro que sabe o que significa narrar. In: SEMEAR. Revista da
Cátedra Pe. António Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: Departamento de Letras da
PUC-Rio, 2002, s/p.
248

BRITES, João. Cenas de leitura e desleitura no teatro d’O Bando – Entrevista com João Brites.
In: WERNECK, Maria Helena, BRILHANTE, Maria João (Org). Texto e imagem: estudos de
teatro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009a, p. 265-287.

BRITES, João. Entrevista. Palmela: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (2h02min). Entrevista
concedida a Juarez Guimarães Dias.

BRITES, João. Iluminar a noite. Comunicação apresentada no Simpósio de Neurose Infantil


organizado pela Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Lisboa: julho, 2002, inédito.

BRITES, João. Ir ao teatro como quem parte em viagem. In: O BANDO. Máquinas de cena/
Scene Machines. Porto: Campo das Letras, 2005.

BRITES, João. O que fazer para conhecer melhor quem escreve na água. In: SALA PRETA –
Revista de Artes Cênicas. N. 9. São Paulo: ECA/USP, 2009b, p. 21-26.

BRITES, João. Textos e pretextos. Lisboa, 1990 (inédito).

BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Trad. Oscar Araripe e Tessy Calado. Petrópolis (RJ):
Ed. Vozes, 1970.

CAETANO, Maria João. João Brites recebeu o Prémio da Crítica. DN Artes, Lisboa, 23 mar.
2009. Disponível em http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=
1178854&seccao=Teatro Acesso em 25 jul. 2011.

CALVINO, Ítalo. Multiplicidade. In: Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 117-38.

CARNEIRO, João. A visão dos cegos. Expresso, Lisboa, 26 jun, 2004, p. 30.

CARRETAS, José. Apontamentos sobre a permanência d’O Bando em Vila Real. In: O
BANDO. Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário. Lisboa: Grupo de
Teatro O Bando, 1994, p. 203-209.

CARVALHO, Campos de. Obra reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
249

CASTILLO, Rubén. Aderbal Júnior: conversas com diretores de teatro. Rio de Janeiro:
INACEN, 1987, 105p.

CASTRO, Sara de. Entrevista. Palmela: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (62min). Entrevista
concedida a Juarez Guimarães Dias.

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna
(séculos XVI-XVIII). Trad. Bruno Feitler. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

COELHO, Rui Pina. Casa da Comédia (1946-1975) – um palco para uma ideia de teatro.
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009a.

COELHO, Rui Pina. O estranho caso do romancista e dos livros pretos que ele escreveu. A
propósito da obra de Gonçalo M. Tavares e dos espetáculos Sobreviver e Jerusalém. In: SALA
PRETA – Revista de Artes Cênicas. N. 9. São Paulo: ECA/USP, 2009b, p. 27-35.

COELHO, Rui Pina. Projetos experimentais em Portugal no século XX. Rio de Janeiro: Unirio,
2009 c, 1 p. Anotações sobre aula de teatro português no século XX. Notas de aula.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1995.

CONDE, Idalina. O Bando na(s) crítica(s): singularidade e percurso. In: O BANDO.


Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário. Lisboa: Grupo de Teatro O
Bando, 1994, p. 35-86.

CORREIA, Manuela. O tempo do actor em cena é o tempo do presente. In: O BANDO. Afectos
e reflexos de um trajecto. Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 103-108

COSTA FILHO, José da. Teatro contemporâneo no Brasil: criações partilhadas e presença
diferida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

COUTINHO, Gillray. Entrevista. Rio de Janeiro: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (48min).
Entrevista concedida a Juarez Guimarães Dias.

CRUZ, Duarte Ivo. Introdução à História do Teatro Português. Lisboa: Guimarães & Cia.
Editores, 1983.
250

DAMÁSIO, António. O livro da consciência: a construção do cérebro consciente. Trad. Luís


Oliveira Santos. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010.

DAMM, Cândido. Entrevista. Rio de Janeiro: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (1h32min).
Entrevista concedida a Juarez Guimarães Dias.

DAVINI, Silvia Adriana. Cartografias de la voz em el teatro contemporáneo: el caso de Buenos


Aires a fines del siglo XX. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2007.

DELGADO, Maria M., HERITAGE, Paul (Ed.). Diálogos no palco: 26 diretores falam sobre
teatro. Trad. Sérgio Viotti, Louise Leal, Marisa Murray, Antônio L. Drummond. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1999.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

DIAZ, Chico. Entrevista. Araxá (MG): 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (1h08min). Entrevista
concedida a Juarez Guimarães Dias.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Ed
34, 1998.

DIONÍSIO, Eduarda. Um projecto de mil espaços. In: O BANDO. Monografia de um grupo de


teatro no seu vigésimo aniversário. Lisboa: Grupo de Teatro O Bando, 1994, p. 89-133.

DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Perspectiva,
1977.

DUARTE, Lívia Lemos. Barbárie e humanização no Ensaio sobre a cegueira, de José


Saramago. Disponível em <www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa3/16-livia.doc> Acesso em 10
jan 2012.

ECO, Umberto. Informação demais faz mal. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2 jan 2012. Entrevista
concedida a Luís Antônio Giron.

ENCICLOPEDIA ITAÚ CULTURAL – TEATRO. Disponível em <


http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm>.
251

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Texto de trabalho. Dramaturgia de João Brites. Palmela:


Teatro O Bando, 22 de novembro de 2004.

FÉRAL, Josette. Introduction: Towards a Genetic Study of Performance – Take 2. In: Theatre
Research International. Vol. 33, nº 3. Cambridge (UK): Cambridge University Press and
International Federation for Theatre Research, 2008, p. 223-233.

FÉRAL, Josette. Performance e performatividade: o que são os Performance Studies? Trad.


Edélico Mostaço e Cláudia Sachs. In: MOSTAÇO, Edélcio, OROFINO, Isabel,
BAUMGÄRTEL, Stephan, COLLAÇO, Vera (Orgs). Sobre performatividade. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2009, p. 49-86.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Trad. Lígia
Borges. In: SALA PRETA – Revista de Artes Cênicas. N. 8. São Paulo: ECA/USP, 2008,p.
197-210.

FERNANDES, Sílvia. Grupos teatrais – anos 70. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 2000.

FERNANDES, Silvia. Notas sobre dramaturgia contemporânea. In: O PERCEVEJO – Revista


de teatro, crítica e estética. Ano 8. No 9. 2000, p. 25-38.

FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.

FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo: Annablume, 2000.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 7 ed. Trad. António Fernando Cascais e Eduardo
Cordeiro. Lisboa: Ed. Vega, 2009. Coleção Passagens.

FRANÇA, Elisabete. ‘Ensaio sobre Teatro’ na Cinemateca. Diário de Notícias. Lisboa, 13 nov.
2006, p. 36.

FRANCISCO, Rui. Máquinas de cena/ Espaços cénicos. Estruturas materiais e estruturas


espaciais. In: O BANDO. Máquinas de cena/ Scene Machines. Porto: Campo das Letras, 2005,
p. 21-23.
252

FREIRE-FILHO, Aderbal. Aderbal Freire-Filho, o coreógrafo da palavra. In: FOLHETIM. Rio


de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, n. 12, 2002, p. 88-118. Entrevista concedida a Fátima
Saadi, Antonio Guedes e Walter Lima Torres, com participação de Dudu Sandroni.

FREIRE-FILHO, Aderbal. Entrevista. Rio de Janeiro: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3


(2h48min). Entrevista concedida a Juarez Guimarães Dias.

FREIRE-FILHO, Aderbal. Metamorfose, mortemesafo. In: BRECHT, Bertolt. Estudos sobre


teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 7-18.

GASSNER, John. Mestres do teatro I. Trad. Alberto Guzik e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2005.

GASSNER, John. Mestres do teatro II. Trad. Alberto Guzik e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2003.

GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS. Texto de trabalho. Dramaturgia de João Brites. Palmela:
Teatro O Bando, 8 de outubro de 2002.

GODOY, Jack. Da oralidade à escrita – Reflexões antropológicas sobre o ato de narrar. In:
MORETTI, Franco (Org.). A cultura do romance. Vol. 1. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
Cosac Naify, 2009, p. 35-67.

GUÉNOUN, Denis. O teatro é necessário? Trad. Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004.

GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto, LIMA, Mariangela Alves de (Org.). Dicionário do
teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo, 2006.

GUINSBURG, J. e FERNANDES, Silvia. (Orgs.). O pós dramático: um conceito operativo?


São Paulo: Perspectiva, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e G. L.
Louro. Rio de Janeiro: DP&A Ed., 2000.

HELIODORA, Bárbara. Um sopro de alegria no palco. O Globo, Rio de Janeiro, 15 nov, 1990.
Segundo Caderno, s/p.
253

HILDEBRANDO, Antonio; NASCIMENTO, Lisley; ROJO, Sarah (Org.). O corpo em


performance: imagem, texto, palavra. Belo Horizonte: NELAP, 2003.

HILDEBRANDO, Antonio. Dramaturgia Ctrl C/ Ctrl V: abrindo alguns arquivos quase


secretos. In: HILDEBRANDO, Antonio (et al). Teatro e sociedade. Belo Horizonte: Emcomum
Estúdio Livre, 2011, p. 32-38.

HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Ed. Globo, 2003.

HIRSCH, Linei. Transcriação teatral: da narrativa literária ao palco. In: O PERCEVEJO –


Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8. No 9. 2000, p. 150-154.

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 1, São Paulo: Ed.34,
1996.

JERUSALÉM. Texto de trabalho. Dramaturgia de João Brites. Palmela: Teatro O Bando, 4 de


outubro de 2008.

JESUS, Miguel. Entrevista. Palmela: 2011. 1 arquivo de áudio em MP3 (34min). Entrevista
concedida a Juarez Guimarães Dias.

KEISERMANN, Nara. Caminho para a formação pedagógica do ator narrador. 2004. 3 v. 480
f. Tese (Doutorado em Teatro) – Centro de Letras e Artes, Universidade do Rio de Janeiro,
2004.

KOSOVSKI, Lídia. Comunicação e espaço cênico: do cubo teatral à cidade escavada. Volume
1. 2001. 226 f. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2001.

LEHMANN, Hans-Thies. Just a word on a page and there is drama – Apontamentos sobre o
texto no teatro pós-dramático. Trad. Stephan Baumgärtel. In: MOSTAÇO, Edélcio, OROFINO,
Isabel, BAUMGÄRTEL, Stephan e COLLAÇO, Vera (Orgs). Sobre performatividade.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009, p. 87-100.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac &
Naify, 2007.
254

LEITE NETO, Alcino. O teatro ilimitado. Disponível em


<http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2440,1.shl> Acesso em 27 jan 2012.

LLOSA, Mario Vargas. É possível pensar o mundo moderno sem o romance? In: MORETTI,
Franco (Org.). A cultura do romance. Vol. 1. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify,
2009, p.17-32.

LOPES, Jonas. A vida como encenação. Digestivo cultural, 16 nov, 2006. Disponível em
<http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2102&titulo=A_vida_como
_encenacao>.

LUIZ, Macksen. Mulher de muitas palavras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 nov. 1990.
Caderno B, s/p.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da


grande épica. Tradução, posfácio e notas de José Marclos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000. Coleção Espírito Crítico.

MACHADO, Dinis. O que diz Molero. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

A MÁQUINA DE PENSAR. Boletim do centro de estudos e de criação teatral que se instala


no Teatro Glaucio Gill, Copacabana, Brasil. Edição 1. Rio de Janeiro, 1990.

A MÁQUINA DE PENSAR. Boletim do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo.


Edição Extra. Rio de Janeiro, 1990.

MANUEL, Pedro. Um outro o mesmo. In: O BANDO. Afectos e reflexos de um trajecto.


Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 118-123.

MARINO, Massimo. Uma caravela no oceano? In: O BANDO: Afectos e reflexos de um


trajecto. Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 62-65.

MARQUES, Carlos Vaz. Entrevista Gonçalo M. Tavares. Revista Ler, nº 97. Lisboa, dez. 2010,
p. 30-38.

MARTINS, João Nuno. Prefácio. In: O BANDO. Máquinas de cena/ Scene Machines. Porto:
Campo das Letras, 2005, p. 9-11.
255

MATOS, Gislayne Avelar, SORSY, Inno. O ofício do contador de histórias. 3ª ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009.

MELO, João de. Gente feliz com lágrimas. Lisboa: Planeta, 1999.

MENEZES, Adélia Bezerra de. Scherazade ou do poder da palavra. In: Do poder da palavra:
ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

MICHALSKI, Yan. Reflexões sobre o teatro brasileiro no século XX. Org. Fernando Peixoto.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 2004, 422p.

MIDÕES, Fernando. Maré Cheia. Notícias da Amadora. Amadora, 22 set. 2005, s/p.

MINAS, João de. A mulher carioca aos 22 anos. Rio de Janeiro: Dantes, 1999.

MONTEIRO, Rui. Jerusalém. Time Out, Lisboa, 29 out, 2010, Lazer, p. 52.

MOREIRA, Eduardo. Grupo Galpão: uma história de encontros. Belo Horizonte: DUO
Editorial, 2010.

NUNES, Luiz Arthur. Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e o
teatral. In: O PERCEVEJO – Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8. No 9. 2000, p. 39-51.

OLIVEIRA, Mickael. Para uma Cartografia da Criação Dramática Portuguesa


Contemporânea (1974-2004) – Os Autores Portugueses do Teatro Independente: Repertórios e
Cânones. 2010. 215 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
Coimbra, 2010.

OLIVEIRA, Roberta. Quando o tempo pára no relógio do espectador. O Globo, Rio de Janeiro,
12 dez, 2003, Segundo Caderno, s/p.

O QUE DIZ MOLERO. In INFOPÉDIA. Porto: Porto Editora, 2003-2012. Disponível em


<http://www.infopedia.pt/$o-que-diz-molero> Acesso em 2 fev 2012.
256

PAIS, Ana. O discurso da cumplicidade – dramaturgias contemporâneas. Lisboa: Ed. Colibri,


2004a.

PAIS, Ana. Imagens que fizeram memória nos 30 anos d’O Bando. Sinais de cena, Lisboa, nº
2, p. 30-40, dez. 2004b.

PAIS, Ana. Uma selecção crítica de textos de João Brites. In: O BANDO. Afectos e reflexos de
um trajecto. Palmela (Portugal): Cooperação de Produção Artística Teatro de Animação o
bando, 2009, p. 21-43.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira (Coord.). São
Paulo: Perspectiva, 1999.

PAVIS, Patrice. Do texto ao palco: um parto difícil. In: PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento
de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 21-42.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. 3 ed. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva,
1996.

PERES, Cristina. Movimentos Presentes – Aspectos da Dança Independente em Portugal.


Lisboa: Danças na Cidade; Livros Cotovia, 1997.

PIACENTINI, Ébano. Entenda o Maio de 68 francês. Folha.com, São Paulo, 30 abr. 2008.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ ult94u396741.shtml>. Acesso em
25 jul. 2011.

PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda – Meyerhold e a cena


contemporânea. Org. Fátima Saadi. Trad. Cláudia Fares, Denise Vaudois e Fátima Saadi. Rio
de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e imagem, 2006.

PROPP, Vladmir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardi e Homero Freitas de
Andrade. São Paulo: Ática, 1992.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Trad. e pref. José Augusto Mourão. 3 ed. Lisboa: Nova Veja,
2009.
257

PUPO, Maria Lúcia de Barros. Entre o Mediterrâneo e o Atlântico – uma aventura teatral. São
Paulo: Perspectiva: Capes-SP: Fapesp-SP, 2005.

RAMOS, Jorge Leitão. A consciência da transitoriedade. In: O BANDO. Afectos e reflexos de


um trajecto. Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 138-141.

RAMOS, Luiz Fernando. Por uma teoria contemporânea do espetáculo: mimesis e desempenho
espetacular. In: WERNECK, Maria Helena, BRILHANTE, Maria João (Org). Texto e imagem:
estudos de teatro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, p. 89-103.

RANCIÈRE, Jacques. A democracia literária. Entrevista concedida a Leneide Duarte-Plon.


Disponível em <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2943,1.shl> Acesso em 20 jan
2012.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível – Estética e política. São Paulo: EXO experimental
org.: Ed. 34, 2009, 72 p.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu
Negro, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo: Ed. 34, 1995.

REIS, Carlos, LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7 ed. Coimbra, Portugal:
Almedina, 2007.

REVISTA OBSCENA. Claude Régy. Disponível em <


http://revistaobscena.com/index.php/pt/%5C%22images/stories/ministracultura/%5C%22inde
x.php?option=com_content&view=article&id=419:claude-
regy&catid=17&Itemid=144%5C%22> Acesso em 25 jan 2012.

REVISTA DE TEATRO SBAT. Seminário revela segredos da criação de Eugenio Barba e


Aderbal Freire-Filho. Nº 524, Mar/ Abr 2011.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2011.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas
(SP): Ed. Papirus, 1994.
258

RICOEUR, Paul. O si mesmo como um outro. Trad. Luci Moreira Cesar. Campinas (SP): Ed.
Papirus, 1991.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

RUA DE BAIXO.COM. Dança contemporânea portuguesa. Ed. 9, jul, 2004. Disponível em


http://www.ruadebaixo.com/danca-contemporanea-portuguesa.html. Acesso em 30 jun. 2011.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.

SAITO, Bruno Yutaka. Em “Na Selva das Cidades”, Aderbal Freire-Filho retoma obra de
Brecht. Valor econômico, São Paulo, 10 ago 2011, Magazine. Disponível em
<http://www.valor.com.br/cultura/975380/em-na-selva-das-cidades-aderbal-freire-filho-
retoma-obra-de-brecht> Acesso em 30 nov 2011.

SANTOS, Gabriela Azeredo dos. Búlgária às avessas: a contralógica em O púcaro búlgaro, de


Campos de Carvalho. In: FRAGMENTOS DE CULTURA. v. 19, n. 7/8, jul./ago. Goiânia:
Instituto de Filosofia e Teologia, Sociedade Goiana de Cultura e Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, 2009, p. 519-539.

SANTOS, Graça dos. “Política do espírito”: o bom gosto obrigatório para embelezar a
realidade. In: MEDIA & JORNALISMO. Vol. 12, n. 12. Lisboa: Centro de Investigação Media
e Jornalismo, 2008, p. 59-72.

SANTOS, Valmir. Jerusalém vai à escuridão e não abre janelas. Disponível em


<http://teatrojornal.com.br/blog/2010/09/jerusalem-vai-a-escuridao-e-nao-abre-janelas/>
Acesso em 28 set 2010.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.


259

SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Trad. Alexandra Moreira da Silva.


Porto: Deriva, 2009.

SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama: escritas cênicas contemporâneas. Trad.


Alexandra Moreira da Silva. Lisboa: Campo das Letras, 2002.

SERÔDIO, Maria Helena. À flor das palavras: uma retórica teatral da paixão nos trabalhos d’O
Bando. In: O BANDO. Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário. Lisboa:
Grupo de Teatro O Bando, 1994, p. 141-152.

SIMÕES, Maria João. Ligações perigosas: realismo e grotesco. In: O GROTESCO. Coimbra,
Centro de Literatura Portuguesa/ Faculdade de Letras, 2005, p. 39-53.

SOLMER, Antonino. O actor. Relatório sobre o trabalho dos atores no grupo O Bando
(excertos). In: O BANDO. Monografia de um grupo de teatro no seu vigésimo aniversário.
Lisboa: Grupo de Teatro O Bando, 1994, p. 153-184.

SOUSA, Pedro Quintino de. O Reino Desencantado: Literatura e Filosofia nos romances de
Gonçalo M. Tavares. Lisboa: Edições Colibri/ Centro de Estudos Linguísticos e Literários da
Universidade do Algarve, 2010.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1850-1950). Trad. Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo:
Cosac & Naif, 2003.

TACKELS, Bruno. Pippo Delbono – Écrivains de plateau V. Besançon: Les Solitaires


Intempestifs, 2009.

TAVARES, Gonçalo M. Jerusalém. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

TEATRO O BANDO. Manifesto 1. Lisboa, 1980. 28 p.

TEATRO O BANDO. Manifesto 2. Lisboa, 1988. 34 p.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2003.


260

TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo:
Martins Fontes, 1980.

TROTTA, Rosyane. Autoralidade, grupo e encenação. In: SALA PRETA – Revista de Artes
Cênicas. N. 6. São Paulo: ECA/USP, 2006, p. 155-164.

UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2005.

VASQUES, Eugénia. Um caso de teatro político: o “teatro de ambiente” de o bando. In: O


BANDO. Afectos e reflexos de um trajecto. Palmela: Teatro O Bando, 2009, p. 124-137.

WERNECK, Maria Helena. O Bando: um teatro de formas no ar. In: SALA PRETA – Revista
de Artes Cênicas. N. 9. São Paulo: ECA/USP, 2009, p. 9-19.

WERNECK, Maria Helena, BRILHANTE, Maria João (Org). Texto e imagem: estudos de
teatro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
261

VIDEOGRAFIA

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Direção João Brites. Elenco: Adelaide João, Ana Brandão,
Antónia Terrinha (et al). Porto: Acervo Teatro O Bando, 2004. 2 DVD (194 min.), som direto,
cor.

ESTÁGIO ORALIDADE JERUSALÉM. Com Teresa Lima. Elenco: Nicolas Brites, Horácio
Manoel, Rosinda Costa (et al). Cinegrafia: Miguel Jesus. Palmela: Acervo Teatro O Bando, s/d.
1 DVD (62 min), som direto, cor.

GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS. Direção: João Brites. Elenco: Sara de Castro e Nelson
Monforte. Palmela, 2002. 1 DVD (96 min), som estéreo, cor.

GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS (Vídeo promocional). Direção: João Brites. Elenco: Sara
de Castro e Nelson Monforte. Palmela, 2002. 1 DVD (6 min), som estéreo, cor.

JERUSALÉM. Direção: João Brites. Elenco: Nicolas Brites, Horácio Manoel, Rosinda Costa
(et al) Lisboa: Acervo Teatro O Bando, 2008. 1 DVD (91 min), som digital, cor.

A MULHER CARIOCA AOS 22 ANOS. Direção: Aderbal Freire-Filho. Elenco: Cândido


Damm, Orã Figueiredo, Gillray Coutinho, Duda Mamberti, Thiago Justino, Malu Valle, Suzana
Saldanha e Marcelo Escorel. Rio de Janeiro, 1990. 2 DVD (240 min), som estéreo, cor.

O PÚCARO BÚLGARO. Direção: Aderbal Freire-Filho. Elenco: Cândido Damm, Augusto


Madeira, Ísio Ghelman, Raquel Iantas e Gillray Coutinho. Rio de Janeiro: Tv Zero, 2006. 1
DVD (117 min.), som digital, cor.

O QUE DIZ MOLERO. Edição: Daniela Ramalho. Direção: Aderbal Freire-Filho. Elenco:
Chico Diaz, Claudio Mendes, Orã Figueiredo, Augusto Madeira, Raquel Iantas, Gillray
Coutinho. Rio de Janeiro: TV Zero, 2003. 1 DVD (29 min), som digital, cor, legendado.

SE PODES OLHAR VÊ. SE PODES VER REPARA. Direção: Rui Simões. Elenco: Adelaide
João, Ana Brandão, Antónia Terrinha (et al). Lisboa: Real Ficção, 2006. 1 DVD (90 min), som
digital, cor, legendado.
262

FICHA TÉCNICA DOS ESPETÁCULOS

A mulher carioca aos 22 anos


Romance de João de Minas
Dramaturgia e encenação: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Cândido Damm, Duda Mamberti, Gillray Coutinho, Malu Valle, Marcelo Escorel, Orã
Figueiredo, Suzana Saldanha e Thiago Justino.
Cenografia: José Dias
Figurinos: Biza Viana
Preparação corporal: Rossela Terranova
Direção de produção: José Carlos Simões
Direção de pesquisa: Maurício Lissovski
Assistente de Direção: Marcos Vogel
Direção musical: Ubirajara Cabral
Estreia: 10 de novembro de 1990, Teatro Gláucio Gil, Rio de Janeiro (RJ)

O que diz Molero


Romance de Dinis Machado
Dramaturgia e encenação: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Augusto Madeira, Chico Diaz, Claudio Mendes, Gillray Coutinho, Orã Figueiredo e
Raquel Iantas.
Assistente de Direção: Dudu Sandroni
Cenografia: José Manuel Castanheira
Figurino: Biza Vianna
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha sonora: Dudu Sandroni
Estreia: 17 de outubro de 2003, Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro (RJ)
263

O púcaro búlgaro
Romance de Campos de Carvalho
Dramaturgia e encenação: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Augusto Madeira, Cândido Damm, Gillray Coutinho, Ísio Ghelman e Raquel Iantas.
Cenografia: Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque
Figurinos: Biza Vianna
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Tato Taborda
Adereços: José Maçaira e Luiz Amadi
Preparação corporal: Duda Maia
Realização: Teatro Poeira – Marieta Severo & Andréa Beltrão
Estreia: 1º de junho de 2006, Teatro Poeira, Rio de Janeiro (RJ)

Gente feliz com lágrimas


Romance de João de Melo
Direcção, dramaturgia e encenação: João Brites
Oralidade: Teresa Lima
Corporalidade: Luca Aprea
Elenco: Nelson Monforte e Sara de Castro
Concepção do Espaço cênico: João Brites
Cenografia: Joana Simões
Adereços e figurinos: Clara Bento
Consultoria: Rui Francisco e Eng. Lima Ramos
Desenho de luzes: João Brites e Luís Fernandes
Estreia: 13 de dezembro de 2002, Teatro O Bando, Palmela.

Ensaio sobre a cegueira


Romance de José Saramago
Dramaturgia e encenação: João Brites
264

Elenco: Adelaide João, Ana Brandão, Antónia Terrinha, Gonçalo Amorim, Horácio Manuel,
João Ricardo, Luís Godinho, Maria João Pereira, Martinho Silva, Miguel Moreira, Mónica
Garnel, Nicolas Brites, Paula Só, Pedro Gil, Raul Atalaia, Rita Calçada, Romeu Costa, Sabri
Lucas, Sara Belo, Sílvia Filipe, Dulce Silva e Rafael Freire
Composição Musical: Jorge Salgueiro
Espaço cênico: Rui Francisco
Oralidade: Teresa Lima
Corporalidade: Luca Aprea
Assistência de encenação: Miguel Moreira
Figurinos: Maria Matteucci
Adereços: Clara Bento
Fotografia em adereços: Lia Costa Carvalho
Desenho de luz: Cristina Piedade
Sonoplastia: Sérgio Milhano
Estreia: 6 de maio de 2004, Teatro Nacional São João, Porto.

Jerusalém
Romance de Gonçalo M. Tavares
Dramaturgia, Encenação e Espaço cênico: João Brites
Corporalidade: Luca Aprea
Oralidade: Teresa Lima
Análise literária e dramatúrgica: Rui Pina Coelho
Figurinos e adereços: Clara Bento
Desenho de luz: João Cachulo
Elenco: Cristiana Castro, Horácio Manuel, João Barbosa, Nicolas Brites, Raul Atalaia, Rosinda
Costa e Suzana Branco
Assistência à direcção: Sara de Castro
Estreia: 23 de outubro de 2008, Centro Cultural Belém, Lisboa.

Você também pode gostar