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Charles Chaplin e André Bazin

Quero começar o texto pedindo permissão pelo atrevimento de discordar de Bazin. A


presença de teses e ideologias não enfraquecem, parasitam ou condenam a obra de Chaplin de
forma alguma, muito pelo contrário. A genialidade está justamente em conseguir equilibrar
críticas sociais sérias, seja o capitalismo, a hipocrisia da sociedade ou o racismo desmedido, e
combiná-las com o requintado bom humor de suas gags. A riqueza dessas obras, Tempos
Modernos, Monsieur Verdoux e O Grande Ditador, estão na habilidade de brincar com temas
pesados e ao mesmo tempo estapear a sociedade.
Como o próprio Bazin afirma, a obra de Chaplin evoluiu, entendendo evolução como um
processo de aprimoramento, de um cinema cômico bem elaborado para um cinema de
ideologia, o que, em minha opinião, é a melhor forma de progresso que qualquer cineasta
pode alcançar: usar sua forma de cinema preferida para compartilhar sua visão de mundo.
Ainda mais se considerarmos que a presença das teses não excluiu as gags da obra de
Chaplin. Considerar Charles Chaplin como cineasta dos filmes engraçados é diminuir e muito
toda a esplendorosidade de sua obra. Todo o trabalho cômico de seus filmes é genial, de fato,
mas Chaplin é mais que isso. Seu cinema pedia algo mais e ele como bom cineasta soube
escutar e atender ao pedido de sua obra. E é muito cruel pensar que o público e a crítica não
conseguiram reconhecer e louvar o nível de delicadeza e requinte a que sua obra chegava.
Mas como acontece com todo cineasta visionário, o contexto e público de sua época ainda é
incapaz de entender sua arte.
Concordo com Bazin em vários pontos, um deles é que a evolução das técnicas de cinema
poderia, realmente, ter acabado com o encanto da obra de Chaplin. O cineasta que resistiu ao
progresso do som, conseguiu posteriormente utilizá-lo para fazer um dos maiores discursos
da história do cinema (O Grande Ditador) e gags cantadas (Luzes da Ribalta). Contudo, se
cor tivesse chegado a seus filmes acabaria com todo ar mágico e nostálgico que permeia as
suas obras.
Irei comentar sobre dois filmes de Chaplin segundo as análises de Bazin, um dos filmes com
viés “puramente” cômico, sempre podemos sentir algum tipo de lição moral em seus filmes, e
outro quase predominantemente "teórico". São eles O Circo (1928) e Luzes da Ribalta
(1952).
O Circo (1928)

Neste filme conseguimos ver bem o que Bazin afirma sobre a personalidade de Carlitos não
ser inteiramente pura e inocente. Carlitos é corrupto e não se dá ao trabalho de ser honesto
quando "não há necessidade". O momento em que deveria ter dito que a carteira não era sua,
por exemplo, além dos pequenos momentos em que se aproveita das pequenas oportunidades
para se dar bem de alguma forma, usando seu jeitinho para disfarçar suas intenções não tão
louváveis, como quando brinca com o bebê para comer um pouco de seu lanche. Mas
podemos perdoá-lo, afinal ele estava faminto. Outro momento em que sua pureza é
questionada é quando ele descobre que é a estrela do show e age desaforadamente diante do
seu “patrão”, abusando de uma situação de poder.
Há ainda as características que fazem com que nos identifiquemos com Carlitos: quando
Carlitos ri do quase acidente de morte de seu rival na corda banda, por estar com ciúmes da
mocinha. O que faz a corrupção de Carlitos ser tão engraçada é que ela se assemelha à nossa,
criando um efeito catártico ao aliviar nossa culpa nos fazendo rir de nós mesmos.
Bazin comenta como o maior pecado de Carlitos e que rende as melhores gags é a repetição.
Ele se acomoda com uma tática que estava funcionando num primeiro momento e não se
preocupa em continuar avaliando a situação antes de continuar os movimentos. A cena em
que ele imita um daqueles bonecos automáticos ilustra bem sua comodidade em repetir uma
técnica imediata que funcionou no primeiro instante. Ele a repete até o momento em que não
é mais possível essa repetição funcionar, no caso, quando o outro fugitivo desmaia pelas
pancadas.
Olhando num nível mais técnico, a trilha chama a atenção. No início adquirindo um tom mais
cômico para anunciar a entrada de Carlitos em cena e mais adiante tornando-se mais delicada
e tímida quando a mocinha contracena com Carlitos.
O azar de Carlitos não é só na vida. Quando ele consegue ajeitar tudo e ter uma vida digna, o
amor vira-lhe as costas. E quando Carlitos não está de bem com o amor, o resto de sua vida
começa a desandar. Quando ele está de bem com o amor, após preferir a felicidade de sua
amada à sua própria, sua vida volta a dar certo, ou pelo menos lhe oferece oportunidades
antes de voltar ao estado miserável de sempre. Depois de todas as suas ações corruptas, a
escolha da felicidade dela ao invés da sua própria faz o público se conectar ainda mais com
Carlitos ao perceber sua bondade intrínseca, como a maioria de nós que escolheria colocar
uma pessoa amada em primeiro lugar. Carlitos é um personagem que fornece profunda
identificação com o público, e ele é tão querido por sua ambiguidade e complexidade, como
os próprios seres humanos em sua essência. O personagem de Carlitos não foi feito para
encontrar o amor, pelo menos não com as mulheres. Contudo, ele sempre terá todo o amor do
público.
O famoso pontapé para trás, comentado por Bazin, aparece no final quando ele dá um
pontapé na estrela, como se a vida de estrelato não fosse mais para ele. Carlitos (Chaplin)
deixou de ser uma estrela de espetáculos temporários para se tornar uma das maiores estrelas
que o cinema já viu. E os filmes que se seguiram a esse só serviram para firmar Chaplin ainda
mais no cinema clássico obrigatório para qualquer pessoa.
Luzes da Ribalta (1952)
Luzes da Ribalta é o filme mais bonito de Chaplin, pois é notoriamente uma autobiográfica
que causa profunda angústia ao pensar que o público e a crítica poderiam deixar a decadência
acontecer ao grandioso Charles Chaplin.
Logo no início do filme ainda conseguimos ver os trejeitos de Carlitos em Calvero bêbado. A
forma como se movimenta, gesticula, caminha e, até mesmo, faz caretas. O que anuncia logo
de cara a autobiografia, sem mencionar o fato de Chaplin estar atuando de cara lavada. Em
seguida na estória, a histeria psicanalítica que afeta Terry possivelmente afeta Calvero
também, já que assim como ela, ele não acredita mais em sua capacidade cômica precisando
da ajuda do álcool para trazê-la de volta. Como a histeria é puramente psicológica, no
momento em que Calvero não está tão consciente de si, seu próprio bloqueio mental é
desfeito e o seu lado cômico pode reinar. E é justamente nesse momento que conseguimos
enxergar o Vagabundo de Chaplin dentro de Calvero. Bazin fala de como esta obra é muito
ambígua e que por isso “decepcionou” o público, os personagens não são uma coisa só e não
estão separados em si, Terry e Calvero parecem ser lados opostos de uma mesma pessoa,
sendo que quando um está bem o outra está infeliz.
Momentos mais a frente, a mise-en-scene do cenário já anuncia quem Calvero era e a
semelhança da carreira e do personagem com o próprio Chaplin. O Vagabundo de Calvero e o
Vagabundo de Chaplin poderiam ser irmãos: o bigode (com o formato de trapézio trocado por
um mustache), o chapéu coco trocado por uma cartola e a bengala de bambu por um chicote,
no primeiro momento. O final desta cena de flashback é esplêndido, pois apenas com som e a
expressão do rosto de Calvero conseguimos entender perfeitamente o que aconteceu, sem
nem uma palavra.
Bazin comenta como as moças que representam o interesse romântico de Carlitos sempre tem
esse ar inocente, porém cuidador, capazes de cuidar e apoiar o Vagabundo em quaisquer
momentos que sua vida difícil poderia trazer. Em Luzes da Ribalta, a moça tem o mesmo
papel para com Calvero, exceto, porém, que ele não aceita o amor da moça, pelo menos não
de forma romântica. Ela é novamente a moça perfeita, mas Calvero reconhece que ela, e
talvez o amor, não é mais para ele. Terry também pode ter um papel mascarado como se
representasse as próprias indagações e inseguranças sobre a vida que Calvero (ou o próprio
Chaplin) tem. E ao mesmo tempo, como num monólogo, ele é capaz de encontrar as respostas
(algumas que ele talvez nem acredite) para todas essas dúvidas. Chaplin poderia estar nesse
momento de temor ao fracasso e a infelicidade, Bazin afirma que se trata de uma obra
catártica, e sabe como encontrar as respostas para se reerguer e enfrentar a vida ao colocar
Calvero passando pelas situações que ele mais teme. Seria seu medo juvenil sendo
aconselhado pela segurança da experiência? Terry e Calvero conseguem encontrar apoio um
no outro. Experiência e juventude conseguem encontrar equilíbrio interno para seguir em
frente.
Ninguém mais o vê. Ninguém mais reconhece Calvero, nem os colegas de Calvero parecem
se importar mais com ele. Calvero remove a maquiagem com tanto sofrimento, ele sabe que é
o fim do palhaço. Chaplin também aposenta Carlitos. Esse fim já chegou, há muito tempo
para ambos.
Por fim, Calvero sofre ao ver a nova geração tomando o seu lugar no estrelato. As luzes que
se apagam metaforizam ele sendo esquecido, pelo público e pela vida. Em outro nível, toda a
paixão que Terry tem por Calvero é como toda a reverência que a juventude artista presta aos
grandes ídolos do passado. Mas ao recusar todo esse amor, Calvero (representando os artistas
passados) abre espaço para que Terry (arte jovem) possa seguir seu caminho sem amarras, e
criar um novo futuro apenas com o apoio do passado. Depois disso, o lugar que Calvero
assume (e talvez Chaplin) é aquele que apenas os mais atenciosos conseguem notar. Só quem
conhece o artista, só quem conheceu Calvero que é capaz de percebê-lo. Outro detalhe,
Calvero afirma sua afinidade pela rua com a frase "deve ser o Vagabundo em mim", bem
como Carlitos, sobrevivente das ruas, era invisível para a sociedade de seus filmes, Calvero
se tornou invisível para sua sociedade.
Bazin considera todos os detalhes desta obra ambíguos, mas a parte que mais intriga (tirando
a própria personalidade de Calvero) é o final. Não conseguimos saber se o público está
fingindo toda aquela reação acalorada ou se eles realmente conseguiram reconhecer o artista
que ainda existe nele. É agoniante não saber se o decadente artista, que nos lembra tanto a
Chaplin, conseguiu ou não verdadeiramente ter um último momento de glória.

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