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07/10/2018 Vazante, uma abjeção atualizada – Urso de Lata

Urso de Lata

Crítica de cinema, comentários sobre filmes. Por Heitor Augusto

Vazante, uma abjeção atualizada

Heitor Augusto / 14 de novembro de 201714 de novembro de 2017 / Crítica, Filmes de hoje

Há uma imensa cratera, um buraco do tamanho da “cova funda” de Corra!


(h ps://ursodelata.com/2017/06/08/corra-jordan-peele-esse-sabotador/), entre as intenções e desejos
que estariam contidos na feitura de Vazante e o olhar impresso no filme, o que ele emana. O que está
na tela, no quadro, e como lá está. Mirando, pois, o que de fato se tornou matéria fílmica, o
diagnóstico é incontornável: Vazante é um filme doente cuja enfermidade é daquelas que, quando em
contato com corpos que historicamente tem as chagas abertas, esgarçadas sem nenhum tipo de
cuidado, torna-se mortífera.

Primeiro, a questão do rigor. Vazante parece buscar uma sintonia afinada entre tom, dramaturgia e
fotografia, entre ritmo, enquadramento e atmosfera sonora. Realiza-se como uma obra que parece
carregar os elementos que a tornariam legítimos para ser “filme de arte” – isso sendo tomado como
sinônimo de crítico, aprofundado, anti-mercadoria, à esquerda. Contudo, a contradição: esse rigor
técnico e formal, a obsessão pela reconstituição visual é muito maior do que o rigor com o humano
negro retratado no filme. O rigor em emular temas visuais de Debret não se estende para o rigor e
preocupação com a existência de certas imagens em sociedade ou a (falta de) construção de

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personagens negros (e também brancos). Para Vazante, parece valer mais os diversos tons de preto de
uma paisagem poeticamente enquadrada do que a preocupação em não repetir, reiterar remodular
formas de violência contra corpos e mentes negras.

Por exemplo, o personagem Jeremias (Fabrício Boliveira), apresentado em tela sem espessura alguma.
Por que é retirado do filme de forma tão abrupta, ainda mais por ocupar o lugar de antagonista dos
escravizados? A propósito, por que é ele o antagonista que emprega a violência física, enquanto o
senhor da casa só o fará no desfecho? Tudo é uma questão de olhar e como ele está impresso na
matéria do filme. Que Jeremias existe historicamente e sua presença é indispensável para entender o
colorismo no Brasil assume-se. Observa-se, contudo: a quem interessa não desenvolvê-lo? A que
interessa apresentá-lo de maneira unidimensional? Para repetir o lugar comum “mas os negros
também tem preconceito?”.

Se dramaturgicamente verifica-se a pobreza da construção de Jeremias, racialmente, sua presença ali é


irresponsável e, ao lado de outras escolhas do filme, aponta para um olhar adoecido. Um olhar que
parece anunciar uma cegueira: aquela que passa por cima sem sequer perceber, pois, afinal, como
posso eu passar por cima se eu tenho conhecimento, estudo, ideologia, se estou do lado certo da
história? Os erros e violências assinadas por Vazante nos lembram de uma coisa deveras simples:
enquanto o autor branco não investigar a fundo seus pontos cegos – e quase nunca isso se dará com
paz e amor – continuaremos presenciando e sendo atingidos por pedras que se dizem plumas.

Melancólica contradição de um filme que anuncia como uma de suas intenções desenvolver uma
retórica crítica ao processo violento de miscigenação no Brasil, à construção de um paradigma
distante de Casa Grande & Senzala. No caminho, contudo, arrasta, como tempestade que leva consigo
os barracos das famílias que se amontoam em barrancos, justamente aqueles que diz querer estar ao
lado: pessoas negras. Essa é a grande contradição do filme – ou perversão, caso queiramos ser menos
educados com um filme que não é nada polido com as nossas vivências pretas. Um filme que se quer
uma versão histórica do que se fez no Brasil com corpos negros, ao mesmo tempo que no presente –
ou seja, um filme visto em uma sociedade – nega qualquer tipo de agência e autonomia a personagens
negros e, pior, a um espectador negro.

Sendo eu um espectador resistente [1], onde caibo em Vazante e onde ele cabe em mim? Tentando
responder: o vilão (patriarca) é branco, aquela que dá tilt na máquina patriarcal (a menina
transformada violentamente em esposa) é branca; a catarse é do branco; a ação é do branco, a reação
também é do branco; o branco mata, o branco enlouquece; a discussão começa no branco e termina no
branco. Isso num filme sobre a violência do processo de miscigenação no Brasil e um recorte nas
relações escravocratas do Brasil. Qual é o nome disso senão perversidade? Ou se toma como normal
que o sujeito-alvo desse filme seja branco?

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La toile e de l’Odalisque (entre 1821 e 1897), de Léopold de Moulignon [2]

Da abjeção

Em junho de 1961, na edição 120 da Cahiers du Cinèma, o crítico e realizador Jacques Rive e
estabeleceu um paradigma analítico para observar os gestos formais contidos em obras atravessadas
por questões éticas. No caso do artigo estava em jogo Kapò – Uma História do Holocausto (1960), de
Gillo Pontecorvo. Rive e começa estabelecendo um ponto de partida que deveria ser inevitável, ao
apontar que:

O mínimo que se pode dizer é que é difícil, quando se realiza um filme sobre um tema semelhante (os campos
de concentração), não se fazer certas questões prévias; mas tudo se passa como se, por incoerência, tolice ou
preguiça, Pontecorvo tivesse negligenciado resolutamente de se interrogar.

Em seguida, Rive e avança em questões do realismo possível para o filme de Pontecorvo, traça uma
comparação entre o que traz Noite e Neblina e o que deixa de trazer Kapò para, finalmente, chegar ao
trecho que, apesar de citado à exaustão, não se esgota:

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Outra coisa: andam citando bastante à torto e a direito, e muitas vezes de forma bastante tola, uma expressão
de Moullet: a moral é questão de travellings (ou a versão de Godard: os travellings são uma questão de
moral); quis-se ver aí o cúmulo do formalismo, quando antes se poderia criticar o excesso “terrrorista”, para
retomar a terminologia paulhaniana. Basta ver, entretanto, em Kapò, o plano em que [a atriz Emmanuelle]
Riva se suicida, jogando-se sobre o arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um
travelling para a frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever
exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais
profundo desprezo. Nos incomodam há alguns meses com os falsos problemas da forma e do conteúdo, do
realismo e do feérico, do roteiro e da “mizancêne”, do ator livre ou dominado e outras pilhérias; digamos que
todos os temas nascem livres e iguais em direito; o que conta, é o tom, ou a inclinação, ou a nuança, como se
quiser chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que toma esse
homem em relação àquilo que ele filma, e assim em relação ao mundo e a todas as coisas: o que pode se
exprimir pela escolha das situações, a construção da intriga, os diálogos, o trabalho dos atores, ou a pura e
simples técnica,“mesmo indiferentemente”.

Corta para Vazante. A câmera que olha, e da maneira que olha, o corpo do africano escravizado
(Toumani Kouyaté) que se mata. A câmera que ressalta os olhares de julgamento da negra
escravizada da cozinha contra a negra estuprada pelo senhor branco. A câmera que mostra a menina
branca na relva. Os incontáveis planos em que, tomados pelo afã da reconstituição, o preto é pano de
fundo, igualado na dramaturgia a uma tapeçaria na parede. O olhar que nos convoca à empatia com a
menina branca estuprada, ao mesmo tempo que não faz o mesmo com a mulher negra. O olhar que
filma as correntes despreocupado de que para um negro elas são tão massacrantes quanto uma
Máscara de Flandres.

Ou seja, abjeto.

Exercício de imaginação: se Vazante estivesse focado no Holocausto, trataria os corpos dos judeus
como paisagens sem agência tal como trata seus negros?

Disse parágrafos acima que o filme continha em si uma perversão. Aprofundando-a: o fato de que
artistas brancos parecem não ter interesse em investigar o que já foi feito de errado no passado por
outras pessoas brancas que tentaram, por meio do cinema, falar de vivências negras. Por exemplo,
sinto que muitas dos senões que circundam Vazante já flutuaram há mais de trinta anos, quando
Steven Spielberg lançou A Cor Púrpura (1986). Lá como cá filmes de diretores brancos legitimados
pelo seu campo, cada um a seu modo; ambos reconstituindo um momento histórico; ambos com
possibilidades tamanhas de acesso e trânsito a ponto de pautarem o debate: nos EUA temos mais
ciência e acúmulo de debate público sobre A Cor Púrpura do que um As Filhas do Pó (The Daughters of
Dust, 1991); no Brasil, mais Vazante do que Café com Canela (2017).

Muito do que foi dito à época da chegada de A Cor Púrpura nas salas norte-americanas levam a uma
linha direta às violências de Vazante. E mesmo assim, não se aprende nem apreende nada? Um
exemplo: o frutífero debate realizado pela Black Film Review na edição publicada no Verão de 1986
(Vol 2, nº 2). Sob a manchete de capa “Quatro críticas sobre A Cor Púrpura” e com o senso de humor
para ironizar como o filme pautou a redação (“[Essas quatro críticas] São as últimas, prometemos –
por enquanto”), a revista, que no período de pré-produção nutria uma expectativa positiva em
relação ao filme, oferece diversos olhares críticos ao olhar impresso por Spielberg.

Destaco um trecho do texto de Earl Walter Jr., intitulado “One Man’s View” (“A visão de um
homem”). “A Cor Púrpura expõe, de forma sensacionalista, divisões profundas nas vidas de famílias
negras, trocando imagens negativas no atacado em sua busca por estatuetas do Oscar. É o único filme
sobre uma família negra a alcançar o circuito comercial em pelo menos oito anos. Para onde mais
podemos olhar de forma a equilibrar as imagens devastadores desse filme?” [3].

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No Brasil de 2017 a pergunta é a mesma: para onde olhar? O longa-metragem, em especial aqueles
que chegam aos cinemas, continua segregado. O curta, contudo, está aí como resposta possível de
outras imagens de pessoas negras no cinema – imagens que partem e mergulham na dor, mas que
não se contentam em diagnosticá-la; almejam ir além: é preciso ir além, oferecer porções extras de
oxigênio.

“Para onde olhar?”. De uma coisa não tenho dúvidas: para um filme com o olhar de Vazante eu já não
quero mais olhar.

[1] A ideia de espectador resistente é desenvolvida pelo pesquisador Manthia Diawara no texto O
Espectador Negro – Questões Acerca da Identificação e Resistência, traduzido por mim nesse link
(h ps://ursodelata.com/2016/12/13/traducao-o-espectador-negro-problemas-acerca-da-identificacao-e-
resistencia-manthia-diawara/). A pesquisadora bell hooks avançou nessa mesma linha, mas provendo
um recorte adicional da mulher negra, no texto Olhar opositivo: Espectadoras Negras, traduzido por
Maria Carolina Morais aqui (h ps://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-
negra-por-bell-hooks/).

[2] Descobri essa imagem em 2016 no curso “O negro na história da arte”, ministrado pela
pesquisadora Renata Bi encourt, no Centro Universitário Maria Antônia. A pintura de Moulignon
está catalogada em: h p://www.musee-orsay.fr/fr/collections/catalogue-des-oeuvres/notice.html?
nnumid=21131 (h p://www.musee-orsay.fr/fr/collections/catalogue-des-oeuvres/notice.html?
nnumid=21131)

[3] A edição completa, assim como todos os arquivos da Black Film Review, está disponível em:
h p://lrdudc.wrlc.org/BlackFilmReview/index.php
(h p://lrdudc.wrlc.org/BlackFilmReview/index.php)

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07/10/2018 Vazante, uma abjeção atualizada – Urso de Lata
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#cinema brasileiro, #escravidão, #racismo, #vazante

Publicado por Heitor Augusto

Crítico de cinema, pesquisador, professor e jornalista. Saiba mais em www.ursodelata.com/sobre Ver


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1 comentário

1. Tom Eveney disse:21 de novembro de 2017 às 15:04


Heitor boa tarde,

me identifiquei bastante com o texto e achei-o escrito com bastante perspicácia, trazendo muitas
questões que eu, estudante de cinema negro e periférico, envolto pelas realidades elitistas da área
na academia, vinha pensando com perturbação. Agradeço por se comunicar comigo através desse
texto. Comigo e com muita gente que vem pensando a respeito mas não escreve. É um texto que
me motiva a também iniciar algum estudo nesse sentido.

https://ursodelata.com/2017/11/14/vazante-uma-abjecao-atualizada/ 6/7
07/10/2018 Vazante, uma abjeção atualizada – Urso de Lata

Queria te perguntar sobre como encontrar a referência citada no texto, que sublinho abaixo:
“edição 120 da Cahiers du Cinèma, o crítico e realizador Jacques Rive e estabeleceu um
paradigma analítico para observar os gestos formais contidos em obras atravessadas por questões
éticas” — onde encontro o texto completo?

Responder

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