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1. Outubro de 2021.

Em artigo escrito para o Jornal Rascunho, o escritor angolano


João Melo comenta sobre a tendência cada vez mais frequente de se cobrar
“literatura decolonial” dos autores e autoras que escrevem na África. Na opinião de
Melo, “a exigência em causa é uma redundância, pois a referida literatura nasceu,
pode dizer-se, da necessidade histórica de confrontar o colonialismo e a dominação.
Digo-o, sem receio de errar e sem qualquer arrogância: a maioria dos escritores
africanos, que sempre escreveu contra todos os podres poderes (coloniais e
pós-coloniais), não precisa de aprender o que é “literatura decolonial”, pois
exercita-a desde sempre.”

2. Agosto de 2020. Lanço meu terceiro longa, intitulado ‘Passou’, no Festival Ecrã, a
convite do curador Pedro Tavares. Como é frequente na minha obra até aqui. O filme
é uma meditação muito pausada e delicada sobre o amor, e o fim deste, e
acompanha um trio de personagens masculinos se enredando num triângulo
amoroso noite adentro, e anos afora, num apartamento no centro do Recife. Quando
do lançamento, o colega cineasta e pesquisador André Antônio fez um comentário
que pareceu me esclarecer muitos dos incômodos que eu tinha com a recepção da
minha obra. Entre outras coisas ele dizia: “O cinema de Felipe André Silva é um
caso particular no Brasil. Assim como em "Santa Monica", os personagens para os
quais o realizador volta sua câmera aqui são jovens artistas de classe média, ou que
querem ser artistas, ou que se interessam por literatura, teatro e cinema - ou que
poderiam ser descritos pejorativamente com o termo "hipsters". Há um
estranhamento na recepção desses filmes dentro de um circuito onde é a classe
média branca hipster que, num fetiche frequente sobre "filmar o outro", só volta sua
câmera para sujeitos em situação de fragilidade social e para os temas "urgentes e
necessários". Apenas por ter invertido esse eixo exatamente em 180º, os filmes de
Felipe André criam um nó digno de interesse na teia de obviedades do cinema
brasileiro contemporâneo.”

3. Fevereiro de 2019. Chega até mim o link de um curta chamado Mamata, datado de
2017 e dirigido pelo realizador pelo baiano Marcus Curvelo, que eu não havia
assistido ainda, apesar de termos compartilhado uma sessão num festival. O filme,
assim como boa parte da obra de Marcus, é uma sátira política que remete tanto à
comicidade física de Tati ou Étaix, quanto à urgência de Petri, ou Godard em seu
período mais obviamente ativista. Na trama, o fracassado Joder (interpretado pelo
cineasta e seu alter ego constante), se vê embrenhado no pântano da produção
audiovisual para campanhas políticas ao precisar de dinheiro urgente para sair do
país. Talvez o mais significativo exemplar da bela carreira de Curvelo, Mamata é
também um corpo estranho no que diz respeito à produção do dito ‘cinema político’
brasileiro, um dos poucos que abraçam o mote que diz “se não posso debochar, não
é minha revolução.” Me encanto em especial por uma imagem do protagonista
caindo e rolando uma escadaria em Brasília. É engraçado. Por vezes é o que resta e
isso basta.

4. Outubro de 2021. Os resultados do edital local de cultura começam a ser divulgados.


Tendo sido declinado já na primeira fase, solicito a súmula do meu projeto para
tentar entender os motivos. O projeto é uma adaptação musical em média metragem
de Macário, texto teatral escrito pelo autor ultra romântico Álvares de Azevedo. No
texto original, Macário é um jovem libertino e depravado que se embrenha em
debates filosóficos com seu colega Penseroso, e com o próprio diabo. Não
surpreendente para um material tão antigo e composto por uma pessoa que pouco
experimentou a vida antes de morrer, Macário não freia nos tons misóginos de seus
personagens, mas é curiosamente encharcado de sugestão homoerótica. Levando
em consideração o panorama rigorosamente realista e ávido por correção que o
cinema brasileiro vinha tomando, achei que seria interessante propor a manutenção
de boa parte dessas características como um jogo, trazer de volta a sátira, o
escárnio com tudo aquilo que é anacrônico, e por isso manteria Macário e
Penseroso com suas visões problemáticas, mas o Diabo seria agora um cupido, e
ensinaria a eles, através de uma paixão avassaladora entre os dois, o que havia de
errado em seu julgamento. Talvez seja desnecessário explicar que a recepção da
banca avaliadora para com o material seguiu aquela mesma veia corretiva, mas é
interessante notar que, dentro da justificativa, estavam listadas questões como, “não
celebra espaços de vivência queer” e “não tem conhecimento de pajubá”. Ponderei
por alguns instantes se eu estava apenas vivendo um episódio de artista tendo seu
ego ferido ou se era o sistema, que tanto bradava seu apoio à mim, à essa figura do
cineasta preto, gay e favelado, que tinha se perdido dentro de seus próprios
preceitos. Surge daí a questão fundamental: As atualizações e recortes raciais
estabelecidos dentro das leis de fomento nos últimos 10 anos servem para fortalecer
e celebrar a presença de criadores negros, trans, mulheres, etc, dentro de sua
potência criativa, ou servem somente como folheto propagandista de um suposto
interesse nesses corpos?

5. Novembro de 2019. Lanço um brevíssimo curta-metragem de nome “cinema


contemporâneo”, sem qualquer índice claro de que esse filme se tornaria meu
trabalho mais festejado até aqui. Projeto que me acompanhava a muito tempo,
“cinema” é um experimento onde viajo por uma de minhas fotos da infância e narro
meu lugar de vítima de abuso sexual e violência de classe, tudo isso blindado por
uma breve discussão sobre o lugar da curadoria no cinema brasileiro (essa também
uma ferramenta de poder). A carreira do filme me rendeu legitimações inesperadas
que iam desde uma carreira fortuita em festivais até comentários como ‘novo nome
para se prestar atenção’. Rendeu também algumas acusações anônimas de estar
fabricando um trauma com o único propósito de monetização.

6. Agosto de 2020. Na mesma semana em que o colega André Antônio teceu o já


citado comentário sobre meu longa, vivi a experiência inédita de ter uma fortuna
crítica sendo construída sobre ele, dado o fato de que nenhum dos filmes anteriores
alcançou esse nível de exposição. Vivi também a estranha experiência de estar na
posição de ler críticas negativas que propunham malabarismos sem fundamento na
realidade, como ‘a vida burguesa do realizador’, para criticar menos a obra e mais
quem a compôs. Nessa semana duas questões se cristalizaram: É possível ser um
diretor preto e favelado e não querer falar necessariamente da cor que tinge seu
corpo nem das problemáticas inerentes ao local onde você vive, mas unicamente
das questões que povoam seu coração? Valeu a pena usar o trauma como
disparador criativo e ter ele usado como moeda de troca?
7. Setembro de 2021. Ao começar o planejamento para o que agora se mostra um
longo planejamento de texto e aí reside seu interesse, experimentei um breve
episódio de autocensura. Valeria a pena me embrenhar numa discussão tão
delicada possuindo pouco ou nenhum aparato teórico? Recebi a resposta numa
indicação de leitura. Em seu livro ‘Armadilha da Identidade”, o filósofo Asaf Haider
questiona: “Dar sentido a essa história desconcertante requer traçar uma linha de
demarcação entre os movimentos de massa emancipatórios do passado, que
lutaram contra o racismo, e as ideologias identitárias contemporâneas, ligadas à elite
multirracial. A existência desse problema é amplamente reconhecida, mas discuti-lo
construtivamente tem se mostrado bastante difícil. Críticas à política identitária são
muitas vezes verbalizadas por homens brancos que permanecem ignorantes ou
desinteressados pela experiência dos outros. Às vezes elas também são usadas à
esquerda para se descartar qualquer demanda política que não esteja alinhada com
o que é considerado um programa puramente “econômico””.

8. Outubro de 2021. Medito um pouco sobre o ato da curadoria como exercício de


proposição mas também como um gesto de “contrariedade ativa”. Presenciei uma
discussão que ponderava os perigos e as potências contidas em assinar esse
trabalho como ‘curador’ ou ‘programador’, mas acabei deambulando em direção à
atividade, pura e simples. Acaba que, seja qual for o termo escolhido, a curadoria
me parece ter a obrigação de contrariar ativamente os preceitos, formas, regras e
regimentos que estejam aí colocados, seja por uma tendência criativa ou de
mercado. E não se trata de ignorar a forma que o universo criativo toma, mas propor
recortes dentro dele, reformatá-lo, ou quiçá entendê-lo como forma viva pela
primeira vez. Óbvio que este exercício não está dissociado de sua própria e
complexa reflexão de poder, gênero, classe e raça, mas penso aqui num universo
utópico onde estou eu nessa posição e posso escolher render uma olhar mais atento
a realizadora mulher que decide filmar homens ou ao realizador preto que decide
filmar brancos. O que isso significa? Chamemos ao debate.

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