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Poética ou política?

Impressões do Pântano, de Luis Dolhnikoff

O livro de poemas <I>Impressões do Pântano</I>, de Luis Dolhnikoff, lançado


pela editora paulista Quatro Cantos, em 2020, merece um debate. No centro do livro
está estabelecido um problema que envolve a artes, talvez, desde sempre, que é a
questão de sua relação com o mundo real e as questões urgentes da política. Nesse
campo, o que parece virtude, pode tornar-se defeito, podendo comprometer a poética do
autor, que se salva em alguns momentos. Construído nessa tensão entre bons poemas a
poemas “viscerais”, o livro está numa corda bamba. Há dois abismos para o poeta
escolher cair, no da linguagem ou no mundo real. <BR><BR>

No filme <I>Terra em transe</I>, de Glauber Rocha, há uma cena em que o ator


Jardel Filho diz algo mais ou menos assim: “Não é possível caber dentro de um mesmo
homem o poeta e o político”. Essa era uma tensão muito comum nos anos 60-70: a
necessidade de engajamento político podia surrupiar do poeta a sua necessidade de
nadar contra a corrente da realidade, de se ausentar das questões urgentes (naqueles
anos a ditadura militar) em prol da criação artística livre de responsabilidades sociais.
No quadro atual do mundo, com o retorno visível de frentes reacionárias a problemática
voltou à cena. Vamos introduzir a tese.<BR><BR>

INTRODUÇÃO DE UM VELHO DEBATE<BR><BR>

“A política é uma pedra amarrada no pescoço da literatura, e que em menos de


seis meses a submerge. A política no meio dos interesses da imaginação é como que um
tiro no meio de um concerto. É um ruído que é cruel sem ser enérgico. Não harmoniza
com o som de nenhum instrumento. Essa política irá ofender mortalmente metade dos
leitores, e aborrecer a outra, que a viu de uma forma muito mais interessante e enérgica
nos jornais da manhã.” Esta frase aparece no romance <I>O vermelho e o negro</I>,
de Stendhal, e encontra eco no livro de Sartre, <I>O que é literatura</I>, onde o filósofo
exime o poeta de engajamento, reservando o uso da linguagem explicativa para o
romancista. Questão resolvida por Maiakovski, na sua famosa frase: “Não existe arte
revolucionária sem uma forma revolucionária”.<BR><BR>

Segundo o escritor Milan Kundera, os porta-vozes do óbvio, do auto-evidente e


daquilo em que todos acreditamos são <I>falsos poetas</I>. Os estreitos horizontes da
mentalidade paroquial não serve à criação do poeta, já que o principal fato de uma obra
de arte literária não é o que ela <I>significa</I>, mas o que ela <I>faz</I> – como ela
funciona, com que eficácia ela funciona, enquanto arte.<BR><BR>

Em nome de uma percepção contemporânea de que o mundo é um amontoado de


ruínas e de que o ser humano não passa de uma besta-fera (percepção que qualquer
historiador sabe - desde sempre), os poetas têm sido por demais solicitados pelos fatos e
pelos acontecimentos. A consequência direta da adesão a essa solicitação é que a poesia
se “politizou” perdendo muitas vezes a sua preocupação primeira, que é realizar-se
enquanto fato da linguagem. <BR><BR>

A questão perigosa da poesia política é seu necessário caráter didático, que


degrada seus próprios meios para falar das coisas de uma forma imediata e segundo uma
linha de menor resistência para o espectador. Voltando a Sartre: “Ninguém é
verdadeiramente poeta por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido
dizê-las de determinado modo. E se o artista apenas narra, explica ou ensina, a poesia
torna-se prosaica; ele perdeu a partida.”<BR><BR>

Já que estamos num mundo esfacelado (pessoalmente não acredito nisso, o


mundo sempre foi assim, basta estudar história), recusar proposições fechadas deveria
ser o primeiro mandamento do poeta, tornando a forma aberta de sua linguagem, a
priori, o próprio conteúdo do poema: saber que a poesia não é um comentário, mas a
coisa em si; não uma reflexão, mas uma compreensão; não uma interpretação, mas a
coisa a ser interpretada. Como disse T. W. Adorno, a sociedade aparece de modo tão
mais manifesto na arte quão menos representada nela estiver (para bom entendedor,
uma página de Beckett basta).<BR><BR>

Portanto, a problemática de ordenar as tragédias do mundo, os desatinos


humanos e da politicagem numa sequência de versos irritados com a desumanidade
(houve algum dia humanidade?) não basta para concretizar o fato poético. Citando
Afons Hug: “Não se deve confundir reportagem com arte. É óbvio que a arte se
alimenta do mundo real, mas não o analisa com métodos científicos, como o
documental, mas cria um mundo paralelo, ou até antagônico, ao mundo real. Neste
momento utópico reside, portanto, a função política da arte”. Ou como disse Albert
Camus, no seu livro <I>O homem revoltado</I>: “Em arte, a revolta se completa e se
perpetua na verdadeira criação, não apenas na crítica ou no comentário”.<BR><BR>
A poesia não pode simplesmente servir aos desígnios da ideologia. Obras de arte
devem ser o que não gostaríamos que fossem e deveriam desmentir a cada instante o
que elas gostariam de ser: fugir da linguagem comum – e o discurso político é comum -
como o arco-íris que desaparece para aquele que caminha em sua direção.<BR><BR>

As inovações formais dentro da própria linguagem que um artista realiza no seu


trabalho acarretam novas formas de sentir e de perceber a realidade, como também a
modifica. Sujeitar o discurso poético ao ditames da “realidade político-social” é sujeitar-
se à linguagem do discurso dominante, que usa justamente a linguagem ordinária- como
a do discurso político - para manter sua dominação. A arte, dizia Maiakovski, não é um
espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo. <BR><BR>

Vale finalizar essa introdução com o argumento de Silviano Santigado: “Eu acho
que o compromisso do escritor, pelo menos do grande escritor, é com a liberdade
absoluta. É isso que torna um livro uma obra de arte. Os textos que nós escrevemos nos
últimos trinta anos são textos por demais solicitados pelos fatos e pelos acontecimentos
e isso de certa maneira que é ao mesmo tempo bom, ao mesmo tempo positivo, porque
você está respondendo, você está de certa maneira combatendo, você está tornando a
literatura útil, socialmente, politicamente, etc, por outro lado retira da literatura esta
capacidade que ela tem de transcender o seu próprio tempo”.<BR><BR>

E, como disse Affonso Ávila, ao comentar a relação entre poesia e participação,


“a contribuição do poeta para a transformação da realidade tem de basear-se no modo de
ser específico da poesia como ato criador”. <BR><BR>

Em arte, nem sempre quem cala, consente.<BR><BR>

POESIAS DO PÂNTANO<BR><BR>

Ao lado de excelentes poemas como, por exemplo, “Cortázar com insônia”, há


vários poemas de natureza crítica em <I>Impressões do pântano</I> que podem apenas
confirmar o que pensa qualquer cidadão médio bem informado sobre as mazelas
políticas do mundo, sobre as torpezas da “mentalidade” das classe-médias ou as crises
por que passa um poeta que não vê sentido na poesia no mundo atual (deveria ter um?),
mas que acredita que ainda tem que poetar, nem que seja comentando as desgraças
desse mundo. Esses poemas se enfraquecem quando apenas confirmam aos leitores os
desarranjos do mundo que ele já conhece através das notícias de jornal ou através da
convivência com seus vizinhos. Jorra intempestivos palavreados chulos (às vezes com o
mesmo palavreado que ele questiona nas classes médias “liberadas” de sua repressões),
desqualificando o comportamento das classe sociais, o que nos deixa um riso amargo na
boca, sem dúvida, mas que abre mão de procedimentos da linguagem necessários ao
fazer poético.<BR><BR>

Contra esses “poemas sociais”, o livro tem a virtude de produzir poemas como
“uma víscera”, esse sim, que trata de um drama profundo da alma humana, chegando às
suas vísceras, sem ser um poema raivoso que corre o risco de ser uma narrativa de um
<I>faits-divers</I>. Os <I>faits divers</I> contribuem como uma forma de estruturar o
mundo, pois apelam para o imaginário da sociedade, que busca um sentido maior nestes,
como se dá nos romances, em que as conexões carregam um sentido mais amplo,
gradualmente revelado na narrativa. A poesia, ao contrário, deve buscar a
desestruturação da mente “narrativa”, vivendo numa espécie de entrelugar entre o
reconhecível e o irreconhecível, sentimento produzido pela vertigem da linguagem.
<BR><BR>

O que o leitor tem que fazer em relação a <I>Impressões do pântano</I> é


aproveitar numa primeira leitura esses poemas “raivosos” e, depois, numa escolha mais
refinada, deter-se na releitura dos bons poemas, aqueles que escapam do imediatismo da
interpretação do real, aqueles que nos fazem devanear pelos incógnitos da linguagem
poética mais madura. <BR><BR>

Belos poemas não faltam, como “A gralha”, “A mesma”, “Ode áspera à


nicotina”, dentre outros. Mas gostaria de chamar a atenção para o poema “O martelo”,
que se propõe uma poética do autor. Aqui está muito de uma reflexão sobre o fazer
poético de que os poemas sociais do livro abram mão: “a secura/ pontiaguda/ da frase
quebrada/ pelo martelo/ da sintaxe dura/ imaleável (...)”, essa sintaxe é o forte no livro,
ela salva o livro. O poema de nosso mundo, como a sintaxe visual de <I>Guernica</I>,
de Picasso, que estilhaça a pintura para falar dos estilhaços de uma cidade/vidas
humanas picotadas por bombas fascistas. Não há realismo ali, há a destruição da própria
noção de representação ou da possibilidade de se representar tamanho
horror.<BR><BR>
Não fossem estes poemas que mencionei, dentre outros, há ótimos outros
poemas, sem dúvida, não sobraria “Quase nada”, título de um poema do
livro:<BR><BR>

QUASE NADA<BR><BR><BR><BR>

um vislumbre apenas<BR>

talvez<BR>

da beleza<BR><BR><BR><BR>

A mesma crítica reservada ao poeta Ferreira Gullar, no poema “a morte da morte


de ferreira Gullar”, funciona para o livro de Luis Dolhnikoff: <BR><BR>

“no fim, o que conta/ é a parte boa/ como numa fruta/ da qual se corta/ um
pedaço apodrecido// se o que resta tem matéria densa/ seja doce ou seca/ e mesmo
amarga/ o estrago do estragado é anulado// só o que resta é a matéria densa (...)”.

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