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Jardel Dias Cavalcanti

Cello
(Conto)

Galileu Edições
Jardel Dias Cavalcanti

Cello
(Conto)

Galileu Edições
Londrina, 2017
Cello
Abriu a partitura, direcionou seu olhar para o violinista e começou a
explicação: “As passagens de solo do primeiro violino são
respondidas pelo violoncelo. O tratamento especial dado por
Beethoven ao cello deve ser levado em consideração, como vocês
sabem. As frequentes notas graves sustentadas por ele nesse quarteto
e o caráter cromático de grande parte da linha melódica é que
contribuem para a característica notavelmente soturna e meditativa da
obra. Dentro dessa escuridão, o violino deve aparecer como um raio
luminoso perfurando a nuvem negra, não para clareá-la, mas acentuar
ainda mais seu peso e sua atmosfera desesperançosa.”

Terminada a frase, Klaus, considerado o maior violinista de


Viena, balança a cabeça de um lado para o outro, como se rejeitasse a
explicação.

- Algum problema com isso, Klaus?

Engolindo saliva, este que não só era um dos melhores


violinistas da cidade, mas um dos mais belos rapazes de Viena, deita
o violino no colo, levanta o peito em sinal de enfrentamento, olha
para Werner, fundador do Quarteto Beethoven e considerado o
maior especialista em Beethoven da Europa, e diz:

- Não creio que a função do violino nessa passagem seja o de


relevar ainda mais o clima soturno e melancólico da peça. Ao
contrário, Beethoven, como aliás todo gênio, vive de criar paradoxos.
E o que o violino faz é inserir um pouco de alegria nessa turbulenta
negritude de sentimentos que o violoncelo cria. Podemos, inclusive,
comparar o quarteto Opus 132 com o poema de Yeats sobre
Shakespeare, pensando que os mais trágicos trabalhos de Beethoven,
tal como as tragédias de Shakespeare, se tornam alegres num
paradoxal composto de tristeza e exaltação da vida. E quem dá o
brilho, quem apela para a alegria nesse quarteto, nesse sentido, é o
violino. Atente-se para o poema de Yeats. Vou recitá-lo para você:

Todos desempenham seu papel trágico;


Este é Hamlet, ali está Lear,
Mais além Ofélia, acolá Cordélia;
Não obstante, todos, ainda que fosse a última cena,
A grande cortina a ponto de cair,
Se são dignos de seus papéis,
Não interrompem seus papéis para chorar.
Sabem que Hamlet e Lear são alegres;
A alegria transfigurando todo aquele horror.

Aguardando a resposta de Werner, que parecia claramente


contrariado, Klaus volta a colocar o violino sobre o ombro. O
violoncelista parece mergulhado em meditação, buscando uma
resposta clara para se opor ao impetuoso violinista à sua frente. Os
outros membros do quarteto mantêm em suspensão seu desejo de
recomeçarem a tocar a peça. Esperam o desfecho desse embate, que
não é, com certeza, o primeiro na ocasião dos ensaios dos Quartetos
de Beethoven.
Enquanto não rebatia a afirmação do violinista, a mente de
Werner ficava passeando em lembranças e, em um segundo,
rememorou a paixão platônica que manteve por Klaus durante anos.
Aquele belo corpo, aquele rosto angelical, a mão branca e delicada
com unhas sempre benfeitas e seu andar aristocrático, como de um
gato, convencido da beleza de sua pele de veludo e de sua sempre
elegante vestimenta.

- Ora, Klaus, desde o primeiro movimento percebemos as


tensões irresolvíveis da peça, que nos traz uma sensação de opressão,
de um sofrimento suportado sem a possibilidade da esperança. E não
vai ser o seu violino que vai se indignar a perverter o sentido
melancólico desse quarteto, não é?

Esse embate novamente. E Klaus, repetindo o mesmo devaneio


de Werner, mergulha em lembranças. Como foi sempre tão bem
tratado pelo violoncelista, desde o primeiro convite para integrar o
Quarteto Beethoven ainda jovenzinho até os primeiros ensaios, com
elogios à capacidade de Klaus em entender perfeitamente a obra de
Beethoven, de amá-la como ninguém. O excesso de cuidados, o
carinho, a atenção, que mais tarde, supôs, revelariam uma paixão
contida do velho músico por ele, um jovem que já alucinou muitos
corações e que passou a atordoar a mente de Werner. E, com a
frustração que o desejo contido contém, essas pequenas guerras nos
ensaios começaram depois que Werner descobriu que seu pupilo
amado estava mergulhado numa paixão desenfreada pela própria
irmã, uma excelente poetisa, com quem vivia em incestuosa relação.
- Talvez, meu caro Werner, você queira colorir o meu violino
com a extrema escuridão que Beethoven reserva ao seu violoncelo.
Você sabe que nesse quarteto o violino dança livre e alegremente
sobre o universo sombrio do cello justamente para se contrapor à
expansão sempre contida de suas notas melancólicas.

- Não se trata disso, Klaus. Veja que, por mais alto que o violino
voe, como você diz, livre e alegremente, cada fragmento lírico do
violino no quarteto 132 é incapaz de se afirmar por si mesmo. É
necessário o peso do baixo, que é finalmente quem impede o violino
de livrar-se da melancolia que a peça carrega.

- Ora Werner, você sabe que não nego a existência de uma


tensão emocional que caracteriza essa peça, mas convenhamos, a
suave cadência na dominante de fá maior logo no início já demostra
uma leveza que produz, justamente, esse paradoxo da alegria no
sofrimento.

Os dois outros músicos, que já perceberam que a discussão iria


longe, e que essa “novela” já estava se tornando um padrão nos
ensaios, interrompem os dois.

- Afinal, vamos continuar até quando essa discussão? Até o fim


do horário do ensaio e por toda a eternidade? E não vamos tocar nada
hoje, pelo que percebo, dada essa infrutífera discussão de vocês.

Werner, tal como Klaus, era um adorador de Beethoven, ambos


mantinham em suas casas, inclusive, um santuário dedicado ao
mestre. Para eles não havia outra religião que a música de Beethoven.
E longe de ser apenas uma afetação, o santuário era louvado a cada
manhã por ambos num rito religioso de adoração ao seu Deus. E uma
discussão sobre a sua música era para eles tão importante quanto tocar
a sua obra. Portanto, perder três horas de ensaio discutindo uma
pequena particularidade dos Quartetos de Beethoven lhes era
absolutamente normal. Era a partir dessas discussões que se produzia
o entendimento total das peças cujo resultado se afirmava na fama do
Quarteto Beethoven dirigido por Werner como responsável pelas
melhores interpretações atuais da obra do antigo Mestre.

Werner se arrogava o maior conhecedor dos Quartetos de


Beethoven. Aliás, escrevera um longo livro dedicado a apenas um dos
quartetos, explicando minuciosamente cada pequena partícula
musical da obra, como se estivesse entrando numa floresta obscura
de onde teria que inventar a luz para clareá-la aos olhos dos fiéis. Esse
era o objetivo do seu estudo premiadíssimo sobre os Quartetos.

Mas nas discussões com Klaus não estava em jogo apenas a


questão da música de Beethoven. Tratava-se do seu desejo reprimido
e, segundo pensava, irrealizável, por aquele homem que representava
no sexo masculino aquilo que a música de Beethoven também
representava para ele: o contato com a beleza absoluta. E como
sabemos, onde está a beleza, está o desejo. E onde está o desejo, está
o caos.

- Entendam que sem o conhecimento dessas particularidades da


obra de Beethoven estaremos traindo o mestre, o que é inconcebível
para mim! É preciso mergulhar profundamente...
- Mas, Werner, meu querido, desculpe-me por interrompê-lo,
mas me parece tão óbvio que depois do opressivo primeiro
movimento, dominado pelo sombrio motivo em quatro notas, é
produzido um contraste que eu interpreto como uma evocação da
paz.

- Mas não percebes, Klaus, que o allegro sempre está tingido de


uma aspereza brutal e que sua evocação de uma possível virgiliana
Arcádia é impossível nesse quarteto? Se existe um provável menuetto
mozartiano aqui ele é pervertido por combinações às vezes
dissonantes, tanto na métrica quanto na tonalidade. Talvez seja
necessário lembrar-lhe que nenhuma outra obra de Beethoven é tão
semelhante a Brahms em seu ânimo de cinzenta escuridão nórdica.

Agora Werner parece ter dado um golpe fatal no seu amado e


inalcançável Klaus. Mostrara-lhe a sua superioridade. Enquanto
respirava buscando novo fôlego para a discussão, depois dessa fala
tensa e inquieta, o devaneio o levava novamente a lembrar-se da razão
de seu desejo de vingança, realizado de ensaio a ensaio, com
discussões que iam além da música, que buscavam pisar e repisar
sobre as convicções do violinista simplesmente para humilhá-lo. Sim,
ele se lembrava: Klaus o visitara um dia, com claro sinal de
embriaguez, disposto a contar-lhe um segredo terrível. Deitou-se no
colo de Werner, que o acolheu docemente na esperança de que sua
confissão fosse uma declaração de amor. Afinal, ele lhe havia dito
minutos atrás, aos prantos, que o amor o estava destruindo, um amor
proibido, que o tornava infame. Seria por ele, Werner, que Klaus
sempre bajulou com frases que misturavam elogios e afeto num caldo
só? Esse caldo perigoso das entrelinhas, que confunde qualquer razão.
Sim, para Klaus, seu amigo Werner era a pessoa mais importante na
sua vida, no seu entendimento de Beethoven, no desenvolvimento
profundo de sua carreira de músico. Como declarara certa vez:
“Werner você é a única pessoa que guardo nas profundezas do meu
coração”.

No entanto, não era nada disso, não sobrava nada para Werner
do amor do amigo. Klaus revelou que sua alma gêmea, que o entendia
na sua aventura artística e afetiva, era outra artista, uma poeta, a sua
própria irmã, de quem se apaixonara e pela qual era correspondido. E
que ambos cometiam já há algum tempo o pecado do incesto.
Amavam-se intelectualmente, afetivamente e carnalmente na mesma
proporção. E que contra isso nada podiam fazer. Embora lutassem
bravamente, não conseguiam dominar seus desejos. Como se livrar
da paixão obsessiva que nutriam um pelo outro? Era-lhes impossível
a liberdade. Ele era o devotado amante de Beethoven; ela, a fiel
amante da poesia de Rilke. E ambos apaixonados um pelo outro,
guiados pelo absoluto poder que a arte lhes impunha, tornando-os
servos da sua beleza como eram servos do desejo pela beleza de um
pelo outro.

A confissão atordoou Werner profundamente. Para ele era uma


traição aquele amor infame, pecaminoso e sujo, de um irmão pela
irmã. E além disso o colocava na posição de rejeitado. Sua resposta
amarga foi, depois da confissão, iniciar uma guerra contra ele, nem
que para isso tivesse que romper com suas convicções sobre a música
que ele mais amava. Embora soubesse que certas colocações de Klaus
eram certeiras em relação a Beethoven, alterava seu ponto de vista
simplesmente para espezinhar seu antigo pupilo. Seu amado e belo
sonho de amor.

Esse sentimento levou-o ao extremo de pensamentos


perigosos. Só lhe restava uma vingança final, pois o dia a dia dos
ensaios, com sua obsessão de abrir pequenas feridas em Klaus,
também o torturava.

Semanas de ensaios até a coroação de todo esse trabalho num


magnífico concerto que seria apresentado no mais belo teatro de
Viena. A crítica que acompanhou alguns dos ensaios já se manifestara
chamando a atenção para um dos mais gloriosos momentos da
interpretação de música de Beethoven, com elogios deslavados a
Klaus, considerado já há muito tempo pela crítica o mais virtuoso
intérprete da música do gênio alemão.

Na noite de gala o teatro estava totalmente tomado pelo público


mais refinado e bem vestido do mundo, fazendo brilhar suas joias que
só engrandeciam a beleza do cenário e seus perfumes que pareciam
trazer para o interior do templo da música o cheiro das mais belas e
perfumadas flores criadas pela natureza.

Os quatro membros do Quarteto Beethoven entraram sob


fortes aplausos. Quando fez-se silêncio, depois que os músicos se
sentaram no centro do palco, Werner dirigiu-se à plateia, sacou do
bolso um revólver e, antes de meter uma bala na cabeça, disse que sua
morte era a homenagem que prestava ao amor de sua vida, o seu amor
impossível, Klaus.

Assim que caiu ao chão, sua alma voou leve, viajando feliz pelo
éter, e, ao olhar para seu corpo caído, viu-se ferido, mas não se
continha de alegria por dentro ao ver Klaus deitado sobre seu peito,
chorando intempestivamente por sua morte.
Sobre o Ilustrador:

CLAUDE WEISBUCH

Nasceu em 1927, em Thionville, no Norte da França.


Estudante, depois professor de gravura, na escola de
Belas Artes de Nancy, ele expõe seu trabalho desde
1950; inicialmente suas pinturas e depois suas
gravuras. Além de pintor e desenhista é um gravurista
infatigável, que atualiza a arte ancestral da chapa de
cobre, respeitando as antigas regras, mas energizando-
as com sua própria energia pessoal.
Edição de 15 exemplares

produzida por Jardel Dias Cavalcanti

para Galileu Edições

Correções: Ronald Polito

Londrina, novembro de 2017

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