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Sophia de Mello Breyner Andresen

OBRA POE.TICA

ASSIRIO & ALVIM


Sophia de Mello Breyner Andresen fotografada por João Cutileiro
Obra Poética
Sophia de Mello Breyner Andresen

Publicado por
Assírio & Alvim
www.assirio.pt

© Herdeiros de Sophia de Mello Breyner Andresen


© Porto Editora, 2015

Na capa: xilogravura de Ilda David’, 2015


Na página 4: fotografia de João Cutileiro (a quem agradecemos a amável cedência desta imagem)

A 1.ª edição de Obra Poética foi publicada em 2010 em Lisboa, Editorial Caminho
A presente, 3.ª edição, é a primeira pela Assírio & Alvim

1.ª edição em papel: Abril de 2015

Assírio & Alvim é uma chancela da


Porto Editora

ISBN 978-972-37-1863-8
PREFÁCIO

CONTRIBUTO PARA
UMA BIOGRAFIA POÉTICA

Dedico este Prefácio aos meus irmãos

1.

Talvez pela importância desta edição, iniciarei este texto retomando algumas
informações já anteriormente fornecidas e que têm que ver com o espólio
literário deixado, com descobertas e surpresas. Tentarei também estabelecer
algumas ligações entre obra literária e diversas situações biográficas que têm que
ver com pessoas1, nomeadamente outros escritores, espaços, períodos de vida.

Havia na casa da Travessa das Mónicas uma arca de cânfora que não estava
em nenhum dos escritórios da minha mãe mas sim, mais ou menos abandonada,
numa pequena sala de passagem. Não tinha chave, a tampa encaixava mal e, no
entanto, sem que ninguém o soubesse, escondia uma parte muito importante do
seu espólio literário. Foi por mero acaso que um dia, remexendo no conteúdo da
arca, dei pela existência de uma espécie de fundo falso. Debaixo de muitas
camadas de fotografias e de vários andares de tabuleiros estavam escondidos
vários cadernos, os mais antigos cadernos de poemas seus.
Vários destes cadernos contêm escritos datados entre 1933 e 1935/6; outros
contêm poemas que vão de 1936 a 1939 ou 1941. Alguns não têm capa, os
poemas são escritos a lápis ou a tinta permanente; há passagens quase ilegíveis.
Faz parte do conjunto «os mais antigos cadernos» um subconjunto que
podemos designar por «cadernos rasgados», por assim serem referenciados na
própria obra poética da Autora. Em O Nome das Coisas (1977) há dois poemas
intitulados «Caderno I» e «Caderno II», que contam a mesma história. Que um
dia, muito antes da publicação do primeiro livro, num ataque de descrença,
rasgou em mil pedaços os cadernos de poemas, e que um amigo os colou
pacientemente2. Eis parte do poema «Caderno II»:

Quando me perco de novo neste antigo


Caderno de capa preta de oleado
Que um dia rasguei com fúria e desespero
E que um amigo recolou com amor e paciência

De novo se ergue em minha frente a clara


Parede cal do quarto matinal
Virado para o mar e onde o poente
Se afogueava denso e transparente
E a sonâmbula noite se azulava

[…]

Destes cadernos apenas havia notícia nos poemas publicados. São de facto de
capa preta de oleado e todas as folhas foram rasgadas em vários pedaços,
verticalmente e, por vezes, horizontalmente.
Podemos considerar que o primeiro destes cadernos é aquele em que a
própria autora escreveu, mais tarde, na folha de guarda, a seguinte indicação:
«Este caderno foi rasgado em 1938». Este é o mais minuciosamente rasgado.
Começa por várias folhas incompletas (nove), de que só ficou a metade
esquerda, pelo que apenas se pode ler, em cada uma, meio verso de um poema,
em que não são reconhecíveis partes de versos de qualquer um dos publicados.
São, portanto, poemas que se perderam. Alguns pedaços de folhas, não colados,
estão soltos no interior do caderno. A seguir vem um poema inédito, datado de
1936 e, datada de 4 de Outubro, provavelmente do mesmo ano, uma primeira
versão do poema «Mar Sonoro». Seguem-se vários poemas inéditos, não
datados, e várias versões de poemas éditos.
Encontram-se pois nos mais antigos cadernos os primeiros esboços de poesia
que remontam aos 12, 13 anos. Também é possível identificar as primeiras
grandes influências; e identificar várias versões de poemas futuramente
publicados, e verificar de que modo poemas ou fragmentos de poemas, ali
ensaiados, foram sendo utilizados em publicações muito posteriores, mesmo em
fases mais tardias.
Também aqui reconhecemos o modo como se vai criando uma linguagem
singular; encontramos as hesitações, as escolhas, enfim, a formação de um
vocabulário e formulação próprios. Por exemplo, o primeiro verso do poema que
inicia Dia do Mar (1947), «As ondas quebravam uma a uma», apresenta uma
diferença relativamente à versão manuscrita, na qual se lê «As ondas desabavam
uma a uma».
Se, mais tarde, a solaridade do Sul lhe vai aparecer como metáfora de uma
clareza fundacional, é porque se inscreve nesse impulso que sempre a levou a
limpar várias formas de excesso no uso das palavras. Isso se nota desde o início
e muito salientemente nas correcções que vai imprimindo aos rascunhos. Há, por
exemplo, um poema publicado em Dia do Mar sob o título «As Rosas», em que
é significativa a alteração do segundo verso da versão manuscrita para a versão
publicada: onde no caderno se lia: «todo o luar das noites vaporosas», passou a
ler-se, na versão publicada: «todo o luar das noites transparentes». O adjectivo
«vaporosas», de natureza mais simbolista, desaparecerá totalmente da sua
poesia, enquanto «transparente», menos sugestivo e brumoso, talvez mais
abstracto, ganha um lugar definitivo. Num dos cadernos rasgados, o datado de
1939, encontramos um longo poema escrito a lápis que foi deixado inédito, à
excepção de dois versos que mais tarde constituiriam o dístico publicado em O
Nome das Coisas. O poema intitula-se «Soror Mariana — Beja»:

Cortaram os trigos. Agora


A minha solidão vê-se melhor

A recuperação de apenas estes dois versos, num livro de 1977, põe em


destaque esse movimento de despojamento que vamos encontrando reforçado a
partir de 1963, a par, como se verá, de uma nova dimensão na poesia, em que há
cheiros e terra seca, há mar transparente e grutas e rochas e sobretudo uma
luminosidade solar nunca antes projectada. E esta nova dimensão é tão saliente
quanto contrasta com o fundo depressivo que atravessa a poesia inicial.
No conjunto de cadernos que tenho vindo a referir, face à exaltação perante o
esplendor das coisas, que sempre marcou o timbre desta poesia, surge, como
força antagónica, a permanente consciência da morte, claro obstáculo à plenitude
da alegria. Esta consciência está presente em apontamentos, esboços de poemas,
notas. Por exemplo, na folha de guarda de um dos cadernos, lê-se: «Porto, 6 de
Novembro de 1939» (dia em que fez 20 anos); e logo abaixo escreve: «mas sem
fim morremos destroçados».
Também num poema publicado em Poesia, iniciado «Sinto os mortos no frio
das violetas», no dístico final, o apelo da morte surge sob a forma de uma
constatação quase serena:

Que a morte será simples como ir


Do interior da casa para a rua.

Com frequência, a pesada consciência da morte carrega-se de um tom


visionário, povoado por figuras de origem ou configuração fantástica ou mítica.
É o caso de poemas inéditos, dactilografados em folhas soltas deixadas dentro de
um dos cadernos rasgados. Exemplo disto são os poemas sobre a presença do
Anjo, com a sua ressonância rilkeana, como o que se transcreve:

ANJO

Ausente e tenebroso como um lírio,


Carnal e transcendente como um nardo.
As tuas asas brancas ferem o silêncio,
O muro empalidece,
E o murmúrio das folhas é a prece
Do coração que sabe a morte e o tempo.

Pois como quem sonha nós sabemos,


Cheios de espanto e treva,
Amor
Que as mãos atraiçoadas não sustentam.

E a tua luz em nós fez-se terror


Abrindo a grande noite abandonada.

Já anteriormente salientei a importância da visualidade nesta poesia. É


também sob esse carácter visual que surgem as evocações poéticas que têm
como objecto um mundo cercado, onde parece alimentar-se este pendor
depressivo ou desesperado. No entanto, os lugares deste cerco são também
geradores dos grandes encantamentos e de uma mitologia de «jardim cercado».
Isto mesmo é confessado num belíssimo poema de um dos três cadernos
rasgados:

O meu amor vivia passo a passo


Prisioneiro dos muros sob os espaços
Onde os deuses caminhavam luminosos

Ou neste fragmento de um outro poema, de uma impressionante consciência


desse encantamento fechado sobre si mesmo:

Nada respira neste jardim perfeito,


A lua cheia, redonda de silêncio,
Pesa como um fruto de outro mundo
Sobre as águas azuis sem movimento

Vários são os poemas que combinam a confissão melancólica de um


sentimento de «cerco» com a confissão de um violento desejo de evasão:

[…]
E o jardim evadido dos seus traços
Sobe cambaleando nos espaços

Era essa a partida que eu buscava


Esse o rumor de fuga que vibrava
Nos muros da prisão que me prendia
Era esse o impulso que dormia
Na aparente quietude das imagens

Era esse o destino que me unia


À suspensão vibrante das paisagens

Mas também o mar, o mar das praias do Norte, é lugar inicial da poesia e da
formulação de um desejo de partir:

Sempre o seu tumulto


Fez em mim reflorir
Esse desejo eterno, insepulto
De partir
E me quebrar

Mas hoje mais que nunca o mar


Me chama […]

Para além das várias versões por que passaram alguns poemas ou outro tipo
de texto — com emendas, cortes, hesitações, até chegar à sua forma impressa —
encontramos, em esboço, curiosas resoluções sobre o que é publicado e o que
fica inédito. Aqui se vão desenhando as específicas características prosódicas,
assim como os motivos, os temas — noite, mar, jardim, praia, natureza, deuses,
amor, alegria, êxtase, morte —, e sobretudo o carácter intensamente visual que,
passando por várias fases, marcará sempre as recorrências temáticas e prosódicas
dominantes.
Eis um fragmento de um poema inédito de 1938, intitulado «Os Animais»,
onde a visualidade se tece de um carácter fantástico e algo surrealizante:

[…] Caminham através de grandes halos


Com olhos ponteados de oiro fitam
Num amor grave, longo, abandonado
E lentamente largam as imagens
Como quem larga folhas sobre um lago.

É importante confrontar este fundo pessimista com um manuscrito deixado


inédito e já divulgado, presumivelmente escrito no início dos anos 80, numa
confissão autobiográfica que traz alguns esclarecimentos:

Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o
fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter — nem podia desfazer-me em noite,
fundir-me na noite.
No gume da perfeição, no imenso halo de luz azul e transparente, no rouco da treva, na quasi3
palavra de murmúrio da brisa entre as folhas, no íman da lua, no insondável perfume das rosas, havia
algo de pungente, algo de alarme.
Como sempre a noite de vento leste misturava êxtasi e pânico…

Para além de referir, como lugares de onde parte o primeiro impulso poético,
o jardim, a noite, o emergir da Primavera, esta espécie de depoimento coloca-nos
face a um dos traços mais fortes desta poesia e que constitui o coração do seu
excesso: o misto de assombro e pânico em que nela se profere o
deslumbramento. Esta é a polaridade que a acompanhará sempre, entre um lado
sombrio do mundo, a presença da degradação e da morte, e a luminosidade que
acompanha as coisas, apesar, ou devido, ao seu carácter mortal. Como se a luz
de assombro, por vezes doce, por vezes de faca, se precipitasse no abismo ou o
resgatasse, rodeando-o de um halo alucinado.
Recentemente encontrei, no espólio, um texto que presumo ser da década de
70, em que uma oposição entre solaridade e noite é também abordada:

Toda a palavra poética roucamente herda sua parte de noite e de magia.


Toda a palavra herda sua parte de lua:
Discurso incoerente de Sibila, oposto ao círculo do sol e ao quadrado do dia

Num dos textos mais curiosos entre os deixados inéditos, num dos cadernos
do espólio, é descrito um violento contraste entre uma claridade e serenidade
pré-natais e a irrupção dos perfumes da terra, do ardor e da inquietação:

A coisa mais antiga de que me lembro é uma tarde de Primavera em que eu talvez ainda não tivesse
nascido. Pelo menos não me lembro de estar ali — só me lembro da claridade difusa daquele quarto em
que a Primavera entrava. Uma calma infinita poisava sobre as coisas — como se fosse o princípio do
mundo e tudo estivesse ainda intocado.
E eu vi uma mulher alta e branca atravessar o quarto e abrir a janela. Um cheiro de terra e de rosas e
de tílias subia do jardim. Com certeza tinha chovido. Contra a luz os cabelos da mulher ficaram loiros e
eram como um halo de nevoeiro doirado. Mas havia nesse doirado um tal ardor, um fogo tão intenso e
tão secreto que toda a minha paz foi subitamente destruída4.

Nesta extraordinária alucinação do primeiro dia sobressai a nitidez do


confronto entre a «calma infinita» de um mundo primordial e «intocado» e uma
violenta irrupção da vida que, a par dos poderosos perfumes do jardim, traz
consigo o amor — na figura da mãe — olhado como um fogo destruidor da paz.
Por entre a luminosidade e o assombro, e entretecida neles, está a consciência de
um desastre que acompanha sempre a vida. Está o sentido da tragédia que nunca
abandonará esta poesia5.
É também sob um timbre de maravilhamento e de melancolia que se colocam
as influências simbolistas, surrealistas, e de poetas como Teixeira de Pascoaes,
Rilke, Rimbaud, ou, mais perto de si, Ruy Cinatti.
Eis um poema de 1933, inédito, em que é clara a influência simbolista:

Ó grande noite três vezes misteriosa


Na solidão, no silêncio, na beleza
Ó grande noite sonhadora e vagarosa
Em que bate o coração da natureza

Noite das sortes, das encantações, dos mitos


Em que o terror e a sombra nos invade
Em que adormece a força e a vontade

E o sonho sobe a transbordar de gritos


[…]

Eis um outro poema em que a influência simbolista se manifesta em figuras


fantasmagóricas, como já antes se referiu:

Passavam ao luar quatro cavaleiros


Tristes e brilhantes como a noite alada
Que vinda do mar dança nos pinheiros
Passavam eternos numa eterna estrada
Erguem na luz a sua alma nua
Todos à garupa levam a má sorte
A voz que os guia é a voz da morte

A vida doce, florindo calma


Em seu redor dissolve-se e recua
(inédito)

Um dos poetas de quem é possível encontrar uma influência na poesia de


juventude, sobretudo na deixada inédita, é Teixeira de Pascoaes. Sophia era
grande amiga de uma sobrinha de Pascoaes, Maria, filha da irmã Maria da
Glória. Passava, por isso, grandes temporadas na Casa da Cerca em Amarante,
donde partia em passeios a cavalo até Pascoaes, a quinta onde vivia o poeta.
Talvez seja possível descortiná-lo no conto A Fada Oriana, no encontro entre
Oriana e o Poeta. De certo modo, foi assim que Pascoaes a conheceu. Uma
jovem surgindo por detrás de um monte, montada num cavalo. Contava a
sobrinha que ele exclamou: «É uma aparição!» E sobre esse momento escreveu
um lírico poema que está publicado no site por mim realizado para a Biblioteca
Nacional de Portugal6.
A influência de Pascoaes, que se concilia com alguns aspectos desta
visualidade inicial, em que a natureza mostra uma feição algo irreal e fantástica,
algo alucinada, é bem notória neste fragmento de um inédito datado de 1935:

Ao voltarem as tardes outonais


Em que a forma das coisas se idealiza
À luz dum pôr do sol que se eterniza
Sonharei com países irreais.

ou:

Ó grande pureza das noites invernais


Infinitamente brancas e caladas.

Mais tarde, em Ilhas (1989), publica o poema «Pascoaes»:


Aqui a bruma a noite o sete-estrelo
O sussurrar de brisas e de fonte
Aqui o tempo anterior puro horizonte
O ser um com a luz a flor o monte

A terra se desvenda verso a verso


Seu rosto é de pinhais sombras e mágoas
Aqui o puro emergir: luas e águas
E o antigo tempo irmão do universo

Outra das afinidades de juventude, e que deixa ecos na própria obra, é Ruy
Cinatti, poeta em quem Sophia reconhece aquela espécie de peregrinação
espiritual, neste caso expressamente cristã, que faz dele um grande poeta da
errância, geográfica e poética, um poeta de exaltação inquieta, no rasto de
Rimbaud. É sobretudo em Coral (1950) que, não só esta influência mais se faz
sentir, como a figura do poeta é convocada em imagens dispersas. Coral é um
dos livros mais enigmaticamente depressivos de toda a obra poética. Não penso
que tenha que ver com a actualidade biográfica, visto que muitos destes poemas
provêm de cadernos anteriores no tempo. Seja como for, domina-o, através de
vários motivos e modos, uma espécie de ansiedade de exílio relativa a um lugar
absoluto que parece sempre entrevisto na beleza das manhãs de mar, nos jardins
nocturnos, momentos fugazes e poderosos de que se alimenta um obstinado
desejo de partida e de recuperação. E é sobre esse desejo que o eco do poeta
emerge e que o carácter simbólico da figura de Ruy Cinatti, como poeta
peregrino, se desenha:

[…]
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho.
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios,


Viajámos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.
E a cidade partiu como um navio
Através da noite.

Eis, num outro poema, a invocação de um «tu», rematando com um verso


final cinattiano:

Eis que o mundo de ti cai abolido


E tu ficas sozinho e muito longe
Com dois búzios do mar sobre os ouvidos
Ouvindo, só para ti, uma canção.

Assim as flores de dentro para fora


Se queimam sob o halo dos perfumes
E voltam para nós os olhos cegos
Estrangeiras a tudo no sabor
Duma substância angélica e terrível.

E eis, num poema em forma de apelo ou oração, dirigido a um «Tu» cuja


natureza divina é indicada pela maiúscula, o pedido da plenitude transfigurante,
também com um final marcadamente cinattiano:

[…]
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a terra
Em Primavera feroz precipitado.

A importância da poesia de Ruy Cinatti em Coral é assumida por Sophia em


Ilhas (1989), por altura da morte de Cinatti, no poema cujo título é «Dedicatória
da Terceira Edição do “Coral” ao Ruy Cinatti»:

Para o Ruy Cinatti porque neste livro


De folha em folha passam gestos seus
Assim como de folha em folha em arvoredo
A brisa perde ao sussurrar seus dedos
Também sobre Ruy Cinatti, no livro Mar Novo (1958) é publicado o poema
«Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos…», manuscrito na
Dedicatória do exemplar da primeira edição que lhe ofereceu, e que Ruy Cinatti
transcreveu na terceira edição de O Livro do Nómada meu Amigo (1.ª edição,
1958, 3.ª edição, 1981). O incipit da Dedicatória é transcrito em maiúsculas:

«PARA O RUY CINATTI


AUSENTE EM TIMOR E ALGURES
APÓS CINCO ANOS SEM NOTÍCIAS»
[segue-se a transcrição do poema]

Num outro exemplar dessa primeira edição, o nome «Ruy Cinnati» (mesmo
com o erro ortográfico) aparece manuscrito, como título do poema.
Mais tarde, em Ilhas (1989), o poema «Ilha do Príncipe» traz em epígrafe
dois versos de um poema de Cinatti sobre essa mesma ilha «Suave, doce,
lânguida ilha», nomeando-o no incipit «A ilha do príncipe que o Ruy Cinatti
amou…»
Ainda sobre a relação poética com Ruy Cinatti há uma importante questão
relacionada com o poema «O Vidente», publicado em Poesia (1944). No
manuscrito, encontrado entre os primeiros cadernos e junto a vários que
constituiriam os poemas constantes de Coral, surge a indicação «A Ruy Cinatti».
Claro que esta indicação não significa necessariamente que o poema seja sobre
ele, mas estabelece um elo de ligação entre o poema e a pessoa. De resto, nesta
poesia, há muito poucas Dedicatórias explícitas, e quando existem relacionam-se
directamente com o conteúdo poético. Por outro lado, o poema foi inicialmente
publicado na revista Aventura, n.º 1, Abril de 1942, que Ruy Cinatti dirigiu. Não
é impossível, no entanto, admitir que o poema se presta a várias interpretações,
tanto mais que recentemente foi integrado numa antologia, organizada por José
Tolentino de Mendonça e Pedro Mexia7. Aí ele é entendido como um poema
sobre Deus. Embora compreendendo esta interpretação, não me inclino para ela.
Em todos os poemas de Sophia em que há um «Ele» ou um «Tu», referindo-se a
Deus, estes pronomes são grafados com maiúscula, o que não acontece aqui. Em
segundo lugar, não me parece muito provável que Sophia usasse o termo
«vidente» referindo-se a Deus, mesmo que na figura de Cristo, sendo, no
entanto, recorrente o seu uso referindo-se a poetas ou pintores, como o faz, de
modo sobejamente conhecido, sobre Maria Helena Vieira da Silva. E este modo
de designar a criação artística é consonante com a sua visão da poesia, sobretudo
nesse início dos anos quarenta, altura em que foi escrito o poema. A poesia era,
de facto, vivida por Sophia como «o Verbo», o sinal vivo de uma pátria
anunciada. O poeta seria o mensageiro, o formulador da boa nova, do «Autêntico
real Absoluto» de Kleist, e nisso havia algo de sacral. O dom visionário que
atribui aos artistas, aos criadores, pode ser identificado em passagens do poema
que se referem ao olhar da figura central de «O Vidente»:

Vimos o mundo aceso nos seus olhos,


E por os ter olhado nós ficámos
Penetrados de força e de destino.

Ele deu carne àquilo que sonhámos,


E a nossa vida abriu-se, iluminada
Pelas imagens de oiro que ele vira.

[…]
Vimo-lo voltar das multidões
Com o olhar azulado de visões
[…]
(Poesia)

Devo referir que mais de uma vez a ouvi dizer: «O Ruy Cinatti é a própria
poesia». Por isso, valerá a pena ir um pouco além, ao seu entendimento da arte
poética. Esta ideia do poeta inspirado, o «habitado» por uma voz intemporal e
que o transcende, uma voz ela mesma visionária, coincide com a força
protagonizada pela voz poética evocada em «Epidauro 62»8 (Ilhas): «Oiço a voz
subir os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por
não ser já minha». É seguindo este fio que é possível encontrar em «O Vidente»
a imagem do poeta, mesmo que a dimensão sacrificial que aí aparece o aproxime
de uma configuração crística. Aliás, quem conheceu Cinatti conheceu esse perfil
de poeta peregrino e também profundamente mendicante e profundamente
dorido. E quem conhece a força da inspiração religiosa da arte poética de Cinatti
compreende quanto «O Vidente» alude a uma figura algo messiânica, que
anuncia uma boa-nova que é simultaneamente cristã e poética. De resto, no
espólio há uma versão manuscrita de um poema inacabado sobre Cinatti,
cronologicamente coincidente com a sua morte, que começa:

Profeta foi e a doçura nos cercava


No adolescente jardim trémulo de heras
Ali ardia a luz das Primaveras…

2. Um mundo solar e frugal.


A chegada ao Sul e o esconjuro das sombras

Numa entrevista a Miguel Serras Pereira, Sophia lembra a casa na duna, em


frente do mar, na Praia da Granja, onde a família passava férias:

… é a casa que surge no poema «Casa branca em frente ao mar enorme», no conto «A Casa» e em A
Menina do Mar9.

Mas sobre essa casa na duna dirá algo de mais central para a definição do
que liga esta vida e esta poesia:

Há na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper, e, apesar do
seu halo de solidão e do seu isolamento na duna, a casa não é margem mas antes convergência,
encontro, centro.

Também o conto «A Casa do Mar», publicado em Histórias da Terra e do


Mar, tem, como centro de uma visualidade quase alucinada, essa mesma casa.
A enorme importância poética das casas que ao longo da vida foi habitando
está profusamente testemunhada não só na poesia como em contos, em
entrevistas, em inéditos de vários géneros, como o que se reproduz a seguir, uma
espécie de reflexão sobre o «pensamento da casa»:

Certamente a casa pensava, mas o seu pensamento era um pensamento branco e surpreso que só
muito lentamente se desligava da pedra, da madeira e da cal.
Algumas coisas são por natureza tão fluidas que são como o ar que não se vê, não se ouve e não se
toca. Assim o silêncio era o pensamento da casa, não um silêncio de vazio e de ausência, mas um
silêncio de atenção imóvel e de presença, afloração vagarosa. O mistério da casa.

Mas talvez que o poema «Casas» de Ilhas seja a melhor e a mais genérica
síntese desse modo poético de habitar:

CASAS
à Luísa Neto Jorge

Casas — casas roucas


Atentos muros — umbrais medidos e solenes
Quarto após quarto penumbra sequiosa
Tectos lentos
Como no espelho afloram
Lagos e magia: caminho
Submerso do possível

A paixão habita seu jogo mais secreto


Sua trágica e precisa
Perfeição

Já muito antes, em Dia do Mar (1947), publicara um poema com o qual o


anterior mantém uma relação umbilical:

AS CASAS

Há sempre um deus fantástico nas casas


Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.
As casas da infância — a das férias, na Praia da Granja, a casa da Quinta do
Campo Alegre, a casa das primas do Campo Grande em Lisboa10 —, as casas
dos Verões no Algarve, assim como a casa da Travessa das Mónicas, eis os
espaços que marcarão vida e poesia.

Voltemos, então, à evocação daquela primeira casa na duna da Granja, em


frente do mar e, sobretudo, ao «algo de rude e elementar» que aparece como a
grande marca desse lugar de maravilhamento. É que a primeira casa dos Verões
no Algarve, a da Praia da Dona Ana, com o seu chão em tijolo de burro cru, a
largar sempre um pó que nos deixava os pés encarnados, os colchões de
folhelho, o fogão de lenha, os duches de água que só podia ser fria, enfim, a
rudimentaridade de tudo e o enorme terraço sobre o mar, onde à noite olhávamos
as luzes dos barcos que andavam na pesca ao candeio, era irmã daquela primeira
casa numa praia do Norte e ambas estariam para sempre ligadas a uma sede de
frugalidade que na poesia se expressa por uma depuração cada vez mais vasta e
obstinada, como se tudo o que fosse luxo se destinasse a destruir o que de
essencial existe no esplendor do mundo, como se os excessos em poesia a
afastassem de algo de vital que nela procurava. A memória deste Sul primordial,
«rente ao chão», ecoa nesta invocação, espécie de poema inédito encontrado
entre os seus papéis:

Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal.
[…] Dai-me a claridade daquilo que é exactamente necessário. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de
todo o lixo.

Esta casa foi o lugar onde o Verão algarvio começou a invadir a sua poesia.
Sobre ela é parte do Livro Sexto e os grandes poemas em prosa «Caminho da
Manhã» e «As Grutas». E sobre esta casa escreveu o poema «Manhã», publicado
em Geografia:

Na manhã recta e branca do terraço


Em vão busquei meu pranto e minha sombra
*

O perfume do orégão habita rente ao muro


Conivente da seda e da serpente

No meio-dia da praia o sol dá-me


Pupilas de água mãos de areia pura

A luz me liga ao mar como a meu rosto


Nem a linha das águas me divide

Mergulho até meu coração de gruta


Rouco de silêncio e roxa treva

O promontório sagra a claridade


A luz deserta e limpa me reúne

Bastante transformada, a casa existe ainda na Praia da Dona Ana11.


Mas outras foram as casas do Algarve com enorme importância na sua vida.
A casa das Portas da Vila, encostada à muralha de Lagos, com um maravilhoso
jardim oitocentista, casa que a minha mãe adorou, mas onde apenas passámos
um Verão, o de 1965. Foram diferentes as razões do amor por esta casa e o que a
ligou às outras casas algarvias, como se pode ler no poema «Portas da Vila»,
publicado também em Geografia. É uma casa que convoca a memória «de um
tempo antigo» e, com ela, uma consciência de passado, de «ausência [que]
começa».
PORTAS DA VILA

A casa está na tarde


Actual mas nos espelhos
Há o brilho febril de um tempo antigo
Que se debate emerge balbucia

II

Com um barulho de papel o vento range na palmeira


O brilho das estrelas suspende nosso rosto
Com seu jardim nocturno de paixão e perfume
A casa nos invade e nos rodeia

III

A casa vê-se de longe porque é branca


Mas sombrio
É o quarto atravessado pelo rio

IV

A casa jaz com mil portas abertas


O interior dos armários é obscuro e vazio
A ausência começa poisando seus primeiros passos
No quarto onde poisei o rosto sobre a lua

Mas, sobretudo, amou a casa da Meia Praia, comprada pelo meu pai em 1980
à família Vaz Pinto, e onde a minha mãe passou os últimos catorze Verões da
sua vida. Esta foi a casa dos Verões com os netos, a quem ela pertence
actualmente. Lembro-me de como se ocupou dessa casa enorme, tentando
marcá-la com a sua própria simplicidade. Embora algumas características
iniciais não lhe agradassem — o mármore, de cor creme e baça, das casas de
banho e das salas, de uns azulejos azuis, etc. — gostava do chão dos quartos e
corredor, em tijolo cru e poeirento, e amou apaixonadamente os vários terraços
em tijolo claro, sobretudo o redondo, em forma de uma antiga eira e rodeado por
um muro caiado que o contorna semicircularmente, e a sua grande frescura
matinal. Muitas noites estive ali com ela a olhar as estrelas. E sobre essas noites
e essa contemplação escreveu um belo poema, já a dois anos de morrer, quando
a poesia se havia transformado numa exclamação, num murmúrio, numa
oração12. Neste terraço criou o seu canto, junto a um muro de hera, para onde
todas as manhãs trazia o chá porque adorava a enorme frescura que havia por ali
àquela hora.

A descoberta do Sul e do mar do Sul significou o encontro com um paraíso


inesperado e ignorado e, pode dizer-se, significou uma vitória da luz sobre a sua
tão forte vertente sombria. No entanto, há dois poemas, nos seus dois últimos
livros, em que predomina o apelo feroz da «praia atlântica». Em Musa (1994) o
apelo de um tempo primordial chega trazido pela memória dos amigos:

OS AMIGOS

Voltar ali onde


A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga —
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
(1993)

Em O Búzio de Cós (1997), deparamo-nos com uma comovente nostalgia do


«ressoar dos temporais», do tumulto e vastidão da praia atlântica, como se afinal
Cós, o coração do Mediterrâneo, não pudesse separá-la das suas raízes. O poema
é, afinal, sobre o que um búzio de Cós não pode ser:
O BÚZIO DE CÓS

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia


Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço


Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada
(Junho de 1995)

* * *

Voltemos ao encontro com o Algarve e com o Sul.


Um dos contos que a minha mãe escreveu a seguir àquele primeiro Verão de
1961 foi «A Viagem», publicado em Contos Exemplares (1962). Nunca o leio
que não me lembre da primeira viagem para o Algarve, a 31 de Julho de 1961, e
de dois grandes momentos de medo. O primeiro foi protagonizado pelo Toni, um
maravilhoso cão rafeiro que nunca tinha viajado e que se encheu de terror ao ver
as árvores a andar! Até ao anoitecer não parou de lhes ladrar furiosamente
tornando-se o centro da nossa impaciência.
O segundo momento que refiro teve que ver com a viagem nocturna. Depois
do jantar, na Pousada de Santiago do Cacém (ainda não conhecíamos os
pequenos restaurantes junto à costa), quando regressámos ao carro, era noite
cerrada. O Toni tinha-se calado e havia um silêncio expectante. O carro era
muito pequeno e velho, as estradas eram estreitas, os faróis tinham um alcance
diminuto, não havia lua e as grandes copas das árvores, que ladeavam nesse
tempo as estradas, afunilavam em direcção a uma sombra escura e insondável.
Para lá do alcance dos faróis era um negro mais extenso do que a luz que eles
davam. A isso acrescentavam-se as frequentes curvas apertadíssimas, porque era
preciso atravessar três serras, a Serra de Grândola, a Serra do Caldeirão e a Serra
de Espinhaço do Cão. Lembro-me da enorme tensão da minha mãe, de um medo
que na noite da estrada se instalou, do modo como olhávamos aquele buraco
escuro à nossa frente. Talvez para esconjurar o medo a minha mãe ia falando do
sítio para onde íamos, como se falasse de um mito.
Precisamente, no conto que refiro, há um homem e uma mulher que se
dirigem de carro para uma espécie de terra prometida:

Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, […] Ali parariam. Ali haveria
tempo para poisar os olhos nas coisas. […] Ali tudo seria demora e presença.

No entanto, os protagonistas dessa história nunca lá chegarão. Porque a todo


o momento há pequenas peripécias que os desviam do caminho e sempre que
procuram recuperá-lo ele perde-se, como se uma grande mão invisível fosse
apagando todas as referências reconhecíveis. Para tentarem retomar o caminho,
procuram reencontrar as coisas por onde haviam passado e que pareciam ser uma
referência segura, um homem a cortar lenha, um cruzeiro de atalhos, uma árvore
de frutos, mas quando julgam que se aproximam, também essas coisas
desapareceram como se nunca ali tivessem estado. Trata-se de uma alegoria do
tempo e da incompreensibilidade da perda, mas também da promessa irrealizável
que a vida contém; trata-se da própria perda da esperança. No final, a história
desemboca no terror de um abismo escuro e sem saída, não sem que a mulher se
agarre à mais absurda possibilidade de esperança:

Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
— Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.

Isto passava-se num tempo em que a vida dos meus pais não era fácil e em
que a desilusão e a perda imperavam, a par de momentos de pura alegria que
sempre, apesar de todas as dificuldades, atravessou a vida deles. Momentos
retratados neste homem e nesta mulher do conto, tão atentos à vida, apesar de
perdidos:

— Ah! — disse ela —, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e belo. Mesmo sem saber se
jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu
não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo
aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.

Mas afinal, como se tivéssemos contornado um desígnio mau, chegámos a


Lagos, e nesse lugar estava realmente aquilo que parecia a terra prometida13.
Chegámos já de madrugada e com mais algumas peripécias felizes. Não
sabíamos para onde ficava a Praia da Dona Ana. Depois de várias voltas à
cidade, à procura de um letreiro — isto era em 1961 —, o meu pai parou junto
de um homem, o único transeunte àquela hora, e propôs-lhe que entrasse no
carro e nos levasse até ao nosso destino, que depois o traria de volta a Lagos.
Assim foi e, assim, pela primeira vez, foi feito o caminho em terra batida e
ladeado por longos muros que, em clave não nocturna, mas solar, seria evocado
em «Caminho da Manhã». Esse texto está inscrito na parede do Mercado de
Lagos por iniciativa do meu irmão Miguel.
Quando chegámos, ainda foi preciso ir acordar uns vizinhos que tinham a
chave da casa. Depois de batermos demoradamente à porta, apareceu-nos um
senhor de barbas (o sr. L, a quem nós, miúdos, começámos a chamar «o
Barbas») e mal-humorado porque, conforme o combinado, esperava-nos muito
mais cedo. A última provação foi passarmos a noite a limpar a casa que tinha
anos de pó.
Por último, houve a peripécia do Toni, no dia seguinte. Depois do
maravilhamento com a praia, os meus pais partiram à procura de comida para o
resto da família que desembarcaria para jantar. Como já não era hora de
mercado, iriam procurar, em qualquer mercearia, soluções de emergência. Eu
fiquei no terraço, a ler um livro, com a trela do Toni enrolada no meu braço.
Durante um tempo senti que ele se debatia ferozmente, no desespero de ir
desbravar terrenos e cheiros novos. Depois foi o silêncio. Pensei que tinha
adormecido. Naquele tempo eu mergulhava num livro e não dava por mais nada.
Quando os meus pais chegaram, perguntaram: «O cão?» Eu respondi: «Está
aqui.» Afinal ele tinha roído a trela e, muito de mansinho, tinha fugido.
Demorámos horas a dar com ele, que ainda não aprendera o caminho de casa.
Mas depois, penso, viveu o Verão mais feliz que foi dado a um cão viver. Como
ainda não se usava castrar os cães, acostumou-se a ir todas as noites ao encontro
do seu bando de cães e cadelas vadias, regressava já de madrugada e não deixava
ninguém dormir até que lhe abrissem a porta.

A procura de uma ligação entre «pobreza» e moral, ou a definição da


simplicidade como qualidade poética essencial, teve como corolário uma certa
rejeição do que se parecesse com literatura vestida de literatura. Começa, então,
a reforçar-se a assunção de uma poesia que procura aparecer como limpa de
confessionalismos, que se quer liberta quanto possível da ostentação de um eu
carregado de discurso interior, «O meu interior é uma atenção voltada para
fora», escreverá em Geografia. Começam então a surgir as primeiras reflexões
sobre a própria poesia e a invocação modelar de uma voz «anónima e livre» que
deliberadamente se aproxime da primeira descoberta da poesia, quando ainda
não sabia ler, quando julgava «que os poemas existiam por si, ninguém os
escrevera», porque eles lhe chegavam através da voz da criada Laura que lhe
recitava o romanceiro. Esta é a voz do canto convocado em Livro Sexto: «Musa
ensina-me o canto / Venerável e antigo / O canto para todos / Por todos
entendido», o canto indestrutível que só essa espécie de Pobreza concede, o
canto rude e alado, solar e concreto. O canto de um eu cuja voz, por ser poética,
se busca numa transcendência a si mesma no poema atrás referido, «Epidauro
62».

Já atrás aludi a algumas influências iniciais. Nesta viragem solar, do meio da


vida, há uma figura que se perfila muito claramente, a de um grande poeta e
amigo, João Cabral de Melo Neto. O encontro dos dois permitiu o mútuo
reconhecimento e o reforço de alguns traços comuns. E estes traços tiveram
significativa importância em novas inflexões na poesia de Sophia. É impossível
referir o ideal de «uma voz anónima», de escassez de luxo, e de um pacto com
«as coisas exteriores», e não lembrar a poesia do grande amigo, a sua «poética
do pobre e do pouco». Também ele reivindica para si a «pobreza» de um «falar
anónimo» ou «a fala anônima / comum a todas de uma linha». Contava Sophia
que, na primeira conversa que tiveram, João Cabral lhe disse: «Gosto muito da
sua poesia, tem muito substantivo concreto.» Foi no pacto com «as coisas
exteriores» que os dois poetas se encontraram, facto que merece alguma atenção.
Sophia e João Cabral conheceram-se no fim dos anos 50 (58, 59?) em
Sevilha, através de um amigo comum, também brasileiro, José Paulo Moreira da
Fonseca. Foi com João Cabral que a minha mãe, o meu pai e alguns amigos
conheceram Sevilha e outros lugares da Andaluzia e, pela sua mão, os sítios,
meio secretos, onde melhor poderiam ver dançar e ouvir cantar o flamenco.
Ainda me lembro de a minha mãe, que por essa altura estava sempre a dançar,
substituir os passos de bailado que fazia em casa pelo taconeo e as syriguias14.
Também foi então que João Cabral lhe contou a história do Cristo Cigano, que
constituiu a matéria do livro com esse título, publicado em 1961.
Os dois livros que se seguiram ao fascinado encontro com a poesia de Cabral
— O Cristo Cigano15 e O Livro Sexto — são marcados por esse mesmo fascínio,
nomeadamente a nível prosódico. É em O Cristo Cigano que Sophia começa a
sair com mais frequência da medida e do ritmo do decassílabo e se aproxima do
verso de medida curta. Na própria prosódia e no vocabulário é evidente o poder
do contacto com João Cabral. O primeiro poema de O Cristo Cigano chama-se
«A Palavra Faca», o que é uma explícita homenagem ao uso da imagem da faca
por Cabral, e ao seu carácter simbólico, o que é notório num vocabulário que se
torna comum aos dois: justo, luz, lança, lâmina, pobre, limpo, branco, seco,
atento, cortar, etc. Também Sophia começa agora a usar a redondilha maior em
verso irregular, embora não com a sistematicidade da oficina de João Cabral,
para quem dizer o exterior a si é, com uma destreza obsessiva, criar um verso
áspero e desarmónico, um ritmo assonante, uma prosódia de aspereza. Embora
Sophia não procure a aspereza e tão-só uma aproximação cada vez mais saliente
daquilo que para ela seria dizer «o concreto», esta aspereza integra-se
singularmente numa certa «rouquidão» que existiu sempre no seu fundo lírico e
que ela defende no próprio desacerto/acerto entre línguas que deve mostrar-se na
prática da tradução. Embora não pratique o «desarmónico» «de coisa mal
acabada» que o poeta brasileiro reivindica na sua poética, fascina-a o eco de
coisidade que encontra na rima toante, na irregularidade dos versos da
redondilha maior, nas metáforas incompletas. Desse modo, em O Cristo Cigano,
encontra-se, em linguagem própria, a força desse encontro, sobretudo num certo
fazer também «incompleto», por se constituir de um diálogo em que passeia
belissimamente um eco alheio. Assim é o uso «imperfeito» da rima imperfeita, a
qual alterna com a rima perfeita. Mas onde mais se faz notar, agora, em Sophia,
alguma «inconsonância», que afronta a harmonia de anteriores poemas, é no
modo de, aqui e além, cortar o seu ímpeto de um final ascensional ou
idealizante, através do remate de poemas ou estrofes com palavras de
significação mais comum e concreta que o comum da sua lírica, num certo
contraste com o fim do verso anterior. Por exemplo:

A luz mais que pura


Sobre a terra seca;
(Livro Sexto)

… o canto
Que me corta a garganta;
(Livro Sexto)

De pedra e cal é a cidade


Com algumas figueiras;
(Geografia)

Com sua guitarra


Ou com harpas de areia
(Geografia)

Para além de um grande encontro poético, João Cabral foi um grande amigo
de toda a vida. Continuaram a encontrar-se em Lisboa, e no Porto, quando ele aí
viveu como Cônsul do Brasil. Não sei se João Cabral se encontrava no Brasil por
altura da primeira e exaltada viagem de Sophia àquele país, entre Maio e Junho
de 1966, onde também conheceu Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Scliar, Dante Milano, Walmir Ayala, Vinicius de Morais, e
reencontrou José Paulo Moreira da Fonseca, Murilo Mendes16, e tantos outros,
nomeadamente descendentes de familiares, como conta em carta à mãe, escrita
por essa altura. Uma grande amizade feita no Brasil, nessa primeira viagem, foi
Helena Lanari, que haveria de reencontrar no ano seguinte em Lisboa e com
quem manteve correspondência durante algum tempo.
Muito embora Sophia tenha admirado no amigo João Cabral a grande mestria
no fazer o ritmo áspero, a sugestão de «coisa», a procura de Sophia de uma
palavra cada vez mais colada ao visível reforçará sempre e cada vez mais a sua
visualidade alucinada, como se pode ler em «Espera», poema de Geografia:

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
[…]
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

e, neste caso, mantém-se e reforça-se um final ascensional,

É então que se vê o passar do silêncio

Navegação antiquíssima e solene17

De facto, na visualização de uma concretude máxima, perfila-se sempre um


fundo de sacralidade, «um secreto brilho». Curiosamente, no poema
«Dedicatória da Segunda Edição do “Cristo Cigano” a João Cabral de Melo
Neto», publicado em Ilhas, Sophia não só conhece e reconhece a oficina de
Cabral mas, sobretudo, reconhece também, no fixo olhar sobre as coisas, a
dimensão alucinada:

[…]
Mas a sua arte não é só
Olhar certo e oficina
E nele como em Cesário
Algo às vezes se alucina

Pois há nessa tão exacta


Fidelidade à imanência
Secretas luas ferozes
Quebrando sóis de evidência

Também João Cabral de Melo Neto não fica imune ao contacto com a força
poética de Sophia. Para além do poema «Elogio de Usina e de Sofia de Melo
Breiner Andresen», publicado em A Educação pela Pedra, há uma passagem do
livro-poema Auto do Frade em que Sophia é referida, a propósito do «sol
inabitável», numa homenagem que surge num campo de vocabulário
deliberadamente sophiano:

Sob o céu de tanta luz


que aqui é de praia ainda,
leve, clara, luminosa
por vir do Pina e de Olinda
que jogam verde e azul
sob o sol de água marinha,
sob o sol inabitável
que dirá Sofia um dia

ou:

Eu era um ponto qualquer


na planície sem medida,
em que as coisas recortadas
pareciam mais precisas,
mais lavadas, mais dispostas
segundo clara justiça.
Era tão clara a planície,
tão justas as coisas via,
que uma cidade solar
pensei que construiria.

Em ambos os poetas há uma obstinação «sem tréguas», como lhe chamará


Sophia, embora os caminhos que em cada um dos poetas toma essa obstinação e
a tensão da atenção implicada os conduzam a lugares sensivelmente diferentes.
João Cabral de Melo Neto, no longo poema «O Sim Contra o Sim», publicado
em Serial, descreve poeticamente a força dessa obstinação através de
extraordinárias imagens de um exercício de domínio no acto criador — poético
ou pictórico — a propósito do qual fala em «bisturi», «canivete», «lâmina»,
«cicatriz», «cortar», «enxerto», modos de orientar a mão: «queria-a mais
honesta» — imagens de orientação surrealista.
Em Sophia, a mesma obstinação da claridade não raro faz emergir, sob a
expressão do assombro, um timbre de fúria, que parece obedecer a uma vontade
feroz de rechaçar as forças da destruição: quer rechaçando a própria voz
melancólica, quer limpando-se do mal exterior. A obstinação que aparece nesta
espécie de exorcismo do mal é exposta numa imagem de luta que encontra no
espaço simbólico do deserto o seu lugar de expansão, em cujas imagens não
deixa de ressoar o «bisturi» do poeta amigo:

NO DESERTO

Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino


Eu te debelo com espora e rédea

Para que não te percas nas cidades mortas


Para que não te percas
Nem nos comércios de Babilónia
Nem nos ritos sangrentos de Nínive

Eu aponto o teu nariz para o deserto limpo


Para o perfume limpo do deserto
Para a sua solidão de extremo a extremo
Por isso te debelo te combato te domino
E o freio te corta a espora te fere a rédea te retém

Para poder soltar-se livre no deserto


Onde não somos nós dois mas só um mesmo
No deserto limpo com seu perfume de astros
Na grande claridade limpa do deserto
No espaço interior de cada poema
Luz e fogo perdidos mas tão perto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo
(Geografia)

Mas em João Cabral a obstinação é também um apego à aspereza do fazer


pobre, pelo que procura construir um canto continuador da poesia tradicional
peninsular (medieval ou do barroco vulgar), de tradições do Nordeste brasileiro e
dos ritmos do flamenco andaluz. Não o instiga qualquer reminiscência de raiz
romântica, qualquer busca de uma perfeição «inicial», mas uma imagem de
despojamento que procura em si a solidão do gesto insubsumível, como acontece
na arte do cante:

Se diz a palo seco


o cante sem guitarra;
o cante sem;
o cante sem mais nada
(«A Palo Seco», Quaderna, 1956-1959)

Ambos os poetas centram obsessivamente a sua poesia na luz, uma luz «de
faca», uma luz que recorta minuciosamente as coisas, como se através delas
olhassem um fundo de enigma, como João Cabral o diz em «Diálogo»:

Mas o timbre desse canto


que acende na própria alma
o cantor da Andaluzia
procura-o no puro nada,

como à procura do nada


é a luta também vazia
entre o toureiro e o touro,
vazia, embora precisa […]

e como Sophia o faz em tantas recorrências poéticas que se centram no silêncio


do mundo, sob cujo ângulo Frederico Lourenço olhou para os poemas de
Geografia; ou no silêncio de Deus.

Referi Teixeira de Pascoaes, Ruy Cinatti e João Cabral de Melo Neto como
poetas que marcaram indelevelmente esta poesia. No entanto, com outros
grandes poetas manteve sempre um diálogo poético e de amizade. Referirei
apenas aqueles cuja obra a designa expressamente ou sobre os quais ela própria
escreveu.
Em primeiro lugar está Jorge de Sena, enorme amigo e confidente que, em
poema, perguntou: «Versos e filhos como os dás ao mundo?» A
interessantíssima correspondência entre ambos está, como se sabe, publicada.
Sobre ele Sophia escreveu o poema «Carta(s) a Jorge de Sena» (Ilhas), ao tomar
conhecimento da sua morte em Junho de 1978, que assim acaba:

E agora chega a notícia que morreste


A morte vem como nenhuma carta

No site já referido da BNP estão reproduzidas as longas palavras comovidas


com que Sophia, em entrevistas, evoca o ambiente misterioso do primeiro
encontro de ambos, numa noite no São Carlos, por iniciativa de Ruy Cinatti, a
quem Sena também dedicou o poema que começa «Não passam, Poeta, os anos
sobre ti, / embora sejas mais mortal que os mais».
Em Musa, sobre um dos grandes amigos de juventude, um dos primeiros
leitores dos cadernos secretos, Sophia escreveu um pungente poema de
despedida, «Para o Ernesto Veiga de Oliveira no dia da sua morte», no qual
evoca o grande tempo das amizades iniciais e fundadoras:

[…]
Foi nesse tempo o tempo:
Longas tardes conversas demoradas
No extático fervor adolescente
Das grandes descobertas deslumbradas
Versos dança música pintura
Um mundo vivo em canto e em figura
Que a vida inteira ficará comigo
Agradecendo a graça do ter sido
[…]

Também a Murilo Mendes, uma das amizades muito queridas, Sophia


dedicou em O Nome das Coisas um belo poema de luto, «Carta de Natal a
Murilo Mendes»:

Querido Murilo: será mesmo possível


Que você este ano não chegue no verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão
[…]

Já em nota aludi à importância de Miguel Torga quer como amigo, quer


como conselheiro por altura da publicação do primeiro livro. Nos papéis do
espólio encontrei um relato de um encontro na Granja em que, ao entrar em casa
dos pais de Sophia, Torga terá tirado o chapéu num gesto vertical. Essa
descrição surge no poema «No Meu País» (O Búzio de Cós), poema em que,
curiosamente, também surge nomeada a criada Laura, a grande iniciadora na
escuta da poesia oral:

NO MEU PAÍS

As pequenas cidades intensas


Onde o tempo não é dissolvido mas dura
E cada instante ressoa nas paredes da esquina
E o rosto loiro de Laura aflora na janela desencontrada
E o apaixonado de testa obstinada como a de um toiro
Em vão a procura onde ela nunca está
— É aqui que ao passarmos a nossa garganta se aperta
Enquanto um homem alto e magro
Baixando a direito o chapéu largo e escuro
De cima a baixo se descobre
Ao transpor o limiar sagrado da casa

Mas de entre as Cartas de luto (e apenas estou a referir as que se dirigem a


outros escritores) a mais veemente e tocante talvez seja «Carta a Ruben A.» (O
Nome das Coisas), por com ela vir toda a memória dos grandes espaços da
infância que foi de ambos, evocada assim em algumas passagens:

Que tenhas morrido é ainda uma notícia


Desencontrada e longínqua e não a entendo bem

Quando — pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa


Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida

[…]
A casa enorme vermelha e desmedida
Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De redodendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias

[…]
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras
Havia o ar brilhante e perfumado
Saturado de apelos e de esperas

Desgarrada era a voz das primaveras


[…]18

Poemas a Sophia existem também nas obras de vários outros poetas — o


mais importante dos quais Alberto de Lacerda19, que escreveu vários poemas,
que foi grande amigo e que sobre esta amizade escreveu um belíssimo Diário.
Há ainda sobre ela poemas de Eugénio de Andrade20, Manuel Alegre e outros.
Não posso deixar de referir Heleno Oliveira, poeta de As Sombras de Olinda
(Caminho, 1997), livro publicado por iniciativa da minha mãe, que o organizou e
escreveu o Prefácio. Sobre Heleno Oliveira há poemas de Sophia inéditos.

3. A Grécia. O fervor e a fúria. O luto e a piedade

Um modo peculiar de viver a solaridade invade, a partir de Livro Sexto, esta


poesia, manifestando-se num renovo de paisagens, e no que se pode chamar uma
clarificação da claridade, nomeadamente através da formulação de uma teoria
poética, exposta nos diversos textos designados por «Arte Poética».
Quase concomitante à chegada ao Algarve, que se torna símbolo de um Sul
de características mediterrânicas, é a descoberta física da Grécia onde irá pela
primeira vez em 196321. O poema «Epidauro», publicado em Geografia (1967),
é uma espécie de proclamação do lugar que a Grécia ocupa, quer no «espanto da
luz», quer no «grito» com que rechaça o Minotauro:

O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde
cada coisa é:

trazida à luz
trazida à liberdade da luz
trazida ao espanto da luz

Sobretudo em Geografia (1967) e Dual (1972) a referência ao mundo grego


evidencia uma transformação radical no modo de abordar os seus motivos mais
constantes. E sobre isso é interessante confrontar os modos de referir
poeticamente os deuses gregos em dois livros bastante distanciados no tempo.
Se, em Dia do Mar (1947), o poema «Os Deuses» mostra uma inicial
aproximação ao mundo grego que se coloca em continuidade com a temática dos
jardins e do luar,

Nasceram, como um fruto, da paisagem.


A brisa dos jardins, a luz do mar,
O branco das espumas e o luar
Extasiados estão na sua imagem.

já em Dual, o poema intitulado «Os Gregos» aparece como uma espécie de


pórtico do que, a partir de então, procurará na Grécia, e que um verso sintetiza:

[…] o um-boda-e-festa do primeiro dia

No entanto, a presença a si e a consciência de ser a que chamou imanência


abrem-se agora a uma forma de atenção em que, mais acentuadamente, a
«claridade» surge entrelaçada em treva, porque a beleza é desejo e o desejo é
ameaça:

Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece
E também à treva interior por que somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho

Sobre «a treva interior» que, não designada assim, tanto encontramos na sua
poesia inicial, falam, sobretudo a partir de Dual, os vários poemas sobre o
Minotauro, esse símbolo de um poder devorador que cada vez mais convoca a
presença da «fúria»:

[…] Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável. Ele come dia após dia
os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa
alegria do mar.
(«Epidauro», Geografia)

[…]
Devastada era eu própria como a cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
[…]
(«O Minotauro», Dual)
Surgem, então, como protagonistas desta batalha, e da exaltação que lhe está
na origem, figuras terrestres ou subterrâneas que combinam solaridade e força: o
Python, o Minotauro, o touro, o cavalo. Há poemas que proclamam que o
Minotauro foi vencido ou o touro debelado, há poemas que constatam a vitória
do Python, a derrota da luz. Mas é sobretudo curiosa a referência às figuras do
touro e do cavalo, não apenas símbolos de força, mas também algo como o
«correlativo objectivo» de um erotismo poderoso ou, ainda e também, símiles de
uma obstinação quase ritualisticamente em luta «pessoal» contra o poder do
apodrecimento. Daqui se depreende que o encontro com lugares, figuras,
estátuas da Grécia é um encontro com o penedo de Eros, com essa face, com a
sua alegria e com as terríveis trevas aí vislumbradas. Mas é o Antinoos,
sobretudo o representado na estátua de Delfos, que se torna o mais poderoso
símbolo desse complexo de luz e sombra, de desejo e risco, em que se destacam
os já assinalados atributos do touro, do cavalo e também da vinha, recorrente e
antigo símbolo erótico. Eis alguns exemplos:

Noite diurna
Até à mais funda limpidez do instinto
Sob os teus cabelos em anel sombria vinha

[…]

Sobre os teus ombros poisa terrível o meio-dia


Do divino celebrado no terrestre
(«Delphica III [Antinoos]», Dual)

Tua face taurina tua testa baixa


Teus cabelos em anel que sacudias como crina
Teu torso inchado de ar como uma vela
Teu queixo redondo tua boca pesada
[…]
Num silêncio de sol obstinado
[…]
(«Delphica VI [Antinoos de Delphos]», Dual)

Estes são poemas em que, de modo especial, o sentimento de assombro se


manifesta sob uma luz que não é serena mas violenta, carregada de lucidez e
fúria, em que o deslumbramento, a fixação da beleza, surgem, como sublinhei
atrás, a par e em conluio com as faces de ameaça e da perda. Há um grande
sentimento de fragilidade nesta evocação da exposição às fúrias e no assombro
por Eros que, não esqueçamos, é astuto e mendicante, filho do Engenho e da
Pobreza. Se a solaridade grega é uma espécie de encontro com o penedo de Eros,
neste livro Eros e Thanatos caminham de mãos dadas.
No poema VII do conjunto intitulado «Homenagem a Ricardo Reis»
(Dual)22, a presença conjunta de Eros, Neera e Antinoos é convocada como uma
descrição da terrível face de medusa, vislumbrada no próprio coração da
exuberância:

Eros, Neera, sacudiu os seus


Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros-Neera-Antinoos
Irrompe no terraço.

Palmeiras nas ruínas de Palmira.


Eros poisou seu rosto no teu ombro,
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.

Outros poemas deste conjunto exibem a mesma tentativa de ecoar Ricardo


Reis e, com ele, sobretudo uma formulação distanciada e lapidar, uma forma
poética da serenidade estóica. Creio que foi isso o que a tocou no heterónimo de
Pessoa, num momento da vida em que pessimismo e melancolia se
sobrepuseram à felicidade:

[…]
Alheio o passo em tão perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência.
(«Homenagem a Ricardo Reis V», Dual)

Não creias, Lídia, que nenhum estio


Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
[…]
(«Homenagem a Ricardo Reis I», Dual)

Mas a «Homenagem a Ricardo Reis» dá conta de algo que é de natureza


biográfica e que atravessa todo o Dual. Este é um livro em que a poesia enfrenta
a co-presença de forças como a exaltação, a solidão, a morte e o luto, pois é um
livro contemporâneo à pesada experiência que foram a morte do irmão Joni (o
arquitecto João Andresen) e a morte da mãe, a primeira em Junho de 1967 e a
segunda em Novembro do mesmo ano. Sobre a morte do irmão Sophia escreveu
um belíssimo poema, publicado em Dual, «Delphica II», cujo primeiro verso,
nas edições revistas por ela, é: «Esse que humano foi como um deus grego».
Mas, na primeira edição deste livro (1972), o primeiro verso tinha a seguinte
versão, mais explícita: «O que me foi irmão como um deus grego». Depois disso
surgiu, no espólio, um belo poema, escrito por altura desta grande perda e que é
agora publicado, entre os inéditos. É o poema que se inicia:

Deus recebe em seu silêncio puro


O sonho do arquitecto

Sobre a morte da mãe escreveu os seis poemas que constituem o fragmento


de Dual intitulado «A Casa». Mas há mais poemas a acompanharem este luto.
Por exemplo: «Ítaca». É um poema contemporâneo daqueles e foi inicialmente
publicado na plaquete 11 Poemas (1971)23. Mas enquanto outros dos poemas do
luto, que também foram aí inicialmente publicados, vieram a ser integrados em
Dual (1972), «Ítaca» veio a ser integrado, como recentemente notou Frederico
Lourenço, na 2.ª edição de Geografia (1972), contemporânea, portanto, de Dual.
Não compreendo a razão desta opção, visto parecer-me que o poema fica um
pouco dissonante em Geografia.
Ainda entre os inéditos foi encontrado um belo poema sobre a morte do pai,
em ataque de coração súbito enquanto caçava numa madrugada de Dezembro de
1950 na Ria de Aveiro. Também nesta edição o poema é reproduzido. Eis o
início:

Quando morreste de repente arrastando contigo para a morte a minha infância

Em «Ítaca» Sophia transforma a sua obstinada fé na «imanência» na


promessa cristã da ressurreição, o que nos é dito na magnífica metonímia final
em que o corpo se liberta dos panos de mortalha:

[…]
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento

O sol rente ao mar te acordará no intenso azul


Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

Esta visionária ressurreição não é contraditória com aquela dicção/lição


poética em que o divino só poderia aparecer como uma emanação do terrestre, o
que se lê no poema «Delphica V (O Auriga)». Ao contrário de outros, este
poema sobre Delphos é cheio de serenidade. A descrição do Auriga é uma
idealização ética da felicidade. Também o Auriga tem «os beiços de seiva
inchados como fruto», mas neste caso o que os incha não é um desejo
desbragado como parece ser o que domina as imagens de «Antinoos», mas um
«amor da vida extasiado e grave», a «paixão tranquila». O que se confessa em
«O Auriga» é a confiança na possibilidade de um projecto. O último verso do
poema, referindo-se a «o número imanente», aparece como uma especificação
do projecto a que, com frequência, a autora se refere como «imanência». Para
Sophia, que não era descrente e também não era regularmente praticante, o
divino só lhe poderia aparecer como uma emanação do terrestre e do visível,
numa unidade essencial. Daí que os poemas sobre as divindades gregas
tripliquem em número os poemas sobre a divindade cristã. Até certa altura, a
invocação do Deus judaico-cristão aparece sobretudo a par da evocação do
silêncio de Deus:

[…]
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente
(Livro Sexto)

No entanto, penso que o poema sobre «O Auriga» formula um novo olhar


sobre a Grécia: a alegria do terrestre entendida como a imanência do mistério
nele colocando o silêncio de Deus. Daí que afirme com Antígona: «Eu sou
aquela que não aprendeu a ceder aos desastres.»
Mas, ainda a propósito deste grito de Antígona, há um outro traço muito
importante na relação de Sophia com a raiz cristã. Ela referia-se com frequência
ao Cristianismo como a religião portadora de um lugar para a piedade e a
compaixão, enfim, a religião onde existe um Deus que incarna a pobreza
humana. Por isso considerava Magnificat a mais bela oração, sobretudo as
passagens que claramente referem que o Senhor «pôs os olhos na humildade da
sua serva», que «derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes»,
que «encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias». Esta raiz é
evocada numa entrevista a Eduardo Prado Coelho, numa passagem em que
relembra as noites de trovoada e uma voz que se levantava recitando a
Magnificat:
[…] tínhamos uma governanta que nessas noites queimava alecrim, acendia uma vela e rezava. Era
um ambiente misto de religião e magia… E de certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas
coisas. Inclusivamente, uma certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da
dureza da vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os pescadores no mar, vamos
rezar para que eles cheguem a terra.» E essa sensação dos homens, nos barcos, a lutar contra uma
tempestade de que os ecos… Batiam as janelas, as portadas de madeira. Havia temporais terríveis nesse
tempo! Eu vivia no Porto, para os lados do mar, num sítio chamado Campo Alegre, e chegavam-nos os
ventos do mar […] e as portadas batiam, às vezes abria-se uma janela de par em par e tinha-se a
impressão visual, dentro de casa, de um mar completamente louco, em que os barcos… […] E ao
mesmo tempo as palavras da Magnificat criavam uma espécie de espaço de salvação e de esplendor no
meio do temporal, no meio do caos…

Sophia nunca deixou de sentir como um escândalo a terrível injustiça que


domina a distribuição das riquezas do mundo e, sobretudo, nunca deixou de
irmanar esse sentimento ao próprio dom da criação poética. Quer a fúria perante
o escândalo, quer a compaixão perante o sofrimento são da mesma natureza que
a gratidão e o fervor com que, por exemplo, no final do poema «As Grutas»
(Livro Sexto, 1962) a alegria se transforma em agradecimento:

O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de
nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.

Muitos são os poemas que dão conta da ligação entre o fervor da vida e o
sentimento de revolta que tanta vez a tomou. O mais belo talvez seja «Esta
Gente», publicado em Geografia, e sobre o qual Frederico Lourenço escreveu
uma importante reflexão. Não vou por isso agora ater-me aos poemas de
temática política e social. Limitar-me-ei a lembrar duas coisas. A primeira é que,
na última entrevista que concedeu, falando sobre o que, na vida, lamentava não
ter feito ou experimentado, ela respondeu: «Gostaria de ter visto diminuir a
distância entre os ricos e os pobres. O resto é-me indiferente.» Gosto muito deste
«indiferente».
A segunda coisa é de cariz mais biográfico e tem que ver com a vontade de
lembrar as pessoas, em primeiro lugar o meu pai24, ao lado de quem viveu dias
de luta contra a injustiça e de esperança de um mundo mais justo: Nuno
Teotónio Pereira, Maria Natália Teotónio Pereira, Maria Eugénia Varela Gomes,
Mário Soares, Maria Barroso, Salgado Zenha, Jorge de Sena, José Escada, Luís
Moita, Manuel Serra, Frei Bento Domingues, João B. da Costa, Ana Maria B. da
Costa, Maria V. da Costa, Alberto Vaz da Silva, Pedro Tamen, Ruy Belo e
tantos outros.

Há poetas mais peritos, mais cultistas, mais destros e liricamente


sofisticados, mais modernos, antimodernos e pós-modernos. Mas aqui há uma
força. Uma força muito rara. Há um excesso, não muito cauteloso, umas vezes
iluminado, outras vezes rouco («às vezes luminoso outras vezes tosco»). Mas há,
sobretudo, o poder de uma claridade difícil de enfrentar, inconfortável, não pela
dificuldade conceptual, mas porque a simplicidade é a coisa mais complexa e,
neste caso, a mais difícil, porque nem sempre oferece o flanco ao diálogo,
quando busca o «dicível» do esplendor e do terror, e só esse, sem literatura, mas
onde «as Ménades dancem». Aí está a «indicível» genialidade.
E porque tem tudo que ver com isto, irei acabar citando parte de um poema
«antiturístico» — «São Tiago de Compostela». Não é um grande poema, é um
poema frágil, feito com a própria fragilidade que o moveu. Talvez não seja tanto
um poema quanto um acto poético que formula um desejo: o de, nesse lugar de
antigas peregrinações, «Se puder», repetir os gestos simples de crença «como
um campesino». Como quem se apoia naqueles que, ao longo dos séculos, ali
trouxeram o seu quinhão de pedidos e de sofrimento. Como quem toca o umbral
de um limite luminoso e inexplicável: «tocar a pedra», mesmo sob o fundo de
silêncio e de sem-sentido.

SÃO TIAGO DE COMPOSTELA

A São Tiago não irei


Como turista. Irei
— Se puder — como peregrino
Tocarei a pedra e rezarei
Os padre-nossos da conta como um campesino
………………………………………………

Assim pudesse o poema


Ter doçura de trigo
O seu brilho polido
A mesma humildade
[…]
(Ilhas)
REFERÊNCIAS:
MARIA ANDRESEN SOUSA TAVARES (org.), Sophia de Mello Breyner Andresen: Actas do Colóquio
Internacional, Porto Editora, 2013.

Notas Finais

1. Na publicação da obra da minha mãe, tem sido seguida uma política de


pouca publicação de inéditos. Essa política mantém-se. Assim, ao longo deste
texto, quando citei inéditos, no apoio àquilo que fui escrevendo, tive a
preocupação de citar sobretudo fragmentos, alguns dos quais já tinham essa
forma. Aliás, a minha mãe usou bastante a técnica de fragmento, nomeadamente
quando transformou uma peça de teatro que nunca acabou, sobre os irmãos
Graco («Os Gracos»), em fragmentos líricos que publicou. Quanto ao conjunto
de inéditos, publicado no fim do livro, a sua selecção foi acordada com Carlos
Mendes de Sousa, responsável por esta edição.

2. Há dias, antes do Natal, arrumando livros, encontrei uma Dedicatória da


minha mãe, num livro que me ofereceu. Foi escrita e datada de 20 de Novembro
de 1997, num exemplar do último livro que publicou, O Búzio de Cós. Dizia:

Para a minha filha Maria, este livro, que já lhe li todo em numerosas consultas…

Eu já não me lembrava desta dedicatória. Nem me lembrava que as tais


«consultas» já existiam então. A minha memória colocava-as mais por volta de
1999, 2000, 2001, por altura do seu pedido de que organizasse a antologia Mar e
de que tomasse em mãos a revisão da obra. Encontrar agora esta dedicatória, a
poucos dias de acabar este Prefácio, foi como se ela me estivesse a agradecer,
pelo Natal (para o qual faltavam poucos dias), tanta coisa feita ou tentada fazer,
melhor ou pior, nos últimos 15 anos.
Tentei interpretar o acaso do reencontro com esta dedicatória. Talvez
signifique um sinal de que já chega, já posso parar as muitas tarefas que tenho
levado a cabo, até porque correm o risco de nunca mais parar.
De resto, acho que já disse tudo o que tinha a dizer sobre esta obra e a partir
de agora já só posso repetir-me. Sobre o que não é obra, mas uma relação entre
mãe e filha, nada tenho a dizer directamente, as coisas vão-se dizendo por si e no
modo como me habitam, ao longo de tudo o que vou fazendo em meu próprio
nome, nomeadamente estes textos.

3. O meu agradecimento maior, para além do agradecimento que dirijo à


minha mãe, vai para Carlos Mendes de Sousa, com quem trabalho sobre esta
obra desde 2010. Agradeço-lhe os preciosos conselhos e observações, a atenção
inteligente, minuciosa e subtil, o bom senso e o respeito com que tem entendido
esta obra e lido o seu texto, mas também, e talvez acima de tudo, a delicadeza, o
cuidado e o respeito com que se tem relacionado com este papel difícil de filha.

MARIA ANDRESEN SOUSA TAVARES


Dezembro 2014

1 Alguns poemas dedicados a pessoas ou sobre pessoas próximas foram identificados pela minha mãe
na obra publicada, ou em indicações manuscritas em exemplares dos livros ou em cadernos. Há casos de
poemas que identificou como referentes a alguém concreto e há casos em que essa identificação se torna
possível pelo conhecimento de percursos biográficos. Esclarecerei o que entender possível e pertinente. Há
poemas sobre os filhos (éditos e inéditos), sobre a mãe, sobre o pai, sobre irmãos, sobre amigos.
2 Trata-se de António Cálem, um dos grandes amigos do tempo de juventude na Granja. Outros amigos
deste tempo, os quais recordava com muita frequência, foram José Ribeira Grande, José Arrochela, os
irmãos Eduardo Oliveira e Ernesto Veiga de Oliveira. Este último viria a ser director do Museu de
Etnologia. Grande amizade foi também Miguel Torga, que teve grande influência na decisão de editar o
primeiro livro de poesia. A ele (existem cartas de conselho sobre os poemas a integrar), a Fernando Valle e
a António Calém se deve a publicação, com todas as tarefas implicadas — escolha de uma tipografia de
Coimbra, organização do livro, escolhas tipográficas, revisões.
3 A grafia terminando em i de algumas palavras é recorrente nestes manuscritos e em alguma poesia
publicada.
4 A fotografia deste manuscrito e a sua transcrição foram publicados no Catálogo da Exposição «Sophia
de Mello Breyner Andresen, Uma Vida de Poeta» (BNP e Caminho, 2011), retirado de circulação por
conter algumas incorrecções, nomeadamente na transcrição de manuscritos.
5 Sobre a combinação entre luminosidade e sombra no olhar de Sophia sobre as coisas, vd. o importante
ensaio de Manuel Gusmão em Actas do Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen, Porto
Editora, 2013 (org. Maria Andresen e Centro Nacional de Cultura).
6 «Sophia de Mello Breyner Andresen no seu Tempo, Momentos e Documentos».
7 Verbo — Deus como Interrogação na Poesia Portuguesa (Assírio & Alvim, 2014).
8 O poema «Epidauro 62» dá conta de um episódio de grande relevância no percurso biográfico-literário
da poeta. Na sua primeira viagem à Grécia, Sophia visitou o teatro de Epidauro. Aí ocorreu o momento de
exaltação revelado no poema (e retomado na «Arte Poética V», também em Ilhas). No título, Sophia
inscreveu o ano de 1962. Percebe-se que a distância temporal (Ilhas foi publicado em 1989) face ao
momento vivenciado em Epidauro tenha produzido o lapso, no recurso à memória, quando da titulação do
poema. Com efeito, esta viagem à Grécia ocorreu em Setembro de 1963, como se comprova em vários
escritos como o Diário de viagem ou a correspondência enviada por Sophia a amigos e familiares.
9 A «casa branca» é uma referência à casa nas dunas da Praia da Granja, onde a família passava os
Verões. A história contada em A Menina do Mar centra-se nessa praia e nessa casa. Também o poema
«Jardim do Mar» (Dia do Mar, p. 28) é sobre o jardim desta casa; em Histórias da Terra e do Mar, o conto
«A Casa do Mar» é uma longa e minuciosa descrição desta casa; a história de «Era uma Vez uma Praia
Atlântica», conto publicado em 1998 e depois recolhido em Quatro Contos Dispersos (2007), é, em grande
parte, constituído por memórias da infância nesta praia.
10 As duas filhas da tia direita, irmã da mãe, Teresa Mello Breyner Pinto da Cunha.
11 Pertence, actualmente, à minha prima Maria da Luz Andresen.
12 Vd. site da BNP.
13 Em homenagem a esse encontro e à promessa que ele representou, a minha mãe escreveu dois belos
poemas, publicados em O Nome das Coisas e intitulados «Lagos I» e «Lagos II».
14 Sobre a presença autobiográfica e poética da dança em Sophia, leiam-se os importantes estudos de
Carlos Mendes de Sousa «Sophia e a Dança do Ser» (in Actas do Colóquio Internacional Sophia de Mello
Breyner Andresen; org. Maria Andresen e Centro Nacional de Cultura, Porto Editora, 2013) e «Sophia:
Tudo me é Dança», conferência realizada no Teatro Camões em 25 de Janeiro de 2014, no âmbito do
Programa «Sophia e a Dança», realizado ao longo de 2014 pela Companhia Nacional de Bailado.
15 A 5.ª edição de O Cristo Cigano (Assírio & Alvim, 2014) traz um importante prefácio de Rosa Maria
Martelo.
16 Há o testemunho destes encontros no Brasil, numa espécie de caderno de viajante, gráfico e poético,
que contém dedicatórias, poemas manuscritos (alguns inéditos), e desenhos de vários artistas.
17 Sobre este poema e o lugar do silêncio e da solidão, nesta poesia, reflectiu Frederico Lourenço no
importantíssimo Prefácio que fez para a 5.ª edição de Geografia (Assírio & Alvim, Setembro de 2014). Este
texto é, na minha opinião, um dos mais lúcidos já escritos sobre um livro de Sophia.
18 Sobre referências a estes espaços autobiográficos na obra de ambos os autores, vd. Paula Morão,
«Nunca nada é inventado: Ruben A. e Sophia de Mello Breyner Andresen», in Actas do Colóquio…
19 Poemas éditos e inéditos no site da BNP.
20 Idem.
21 Em viagem com Agustina Bessa-Luís e Alberto Luís.
22 Sobre Sophia e Reis, vd. Gustavo Rubim, «O Recorte do Corpo: Sophia — Ricardo Reis — e a
forma humana», in Actas do Colóquio… pp. 232-239.
23 Entre a primeira edição de Geografia (1967) e a edição de Dual, foi publicada essa plaquete,
constituída por onze inéditos, e que, com o seu ar provisório e efémero, de «arte pobre», se coloca em peso
entre Geografia e Dual, dando a lume alguns dos poemas do luto. Geografia foi publicado na Primavera de
1967. A minha avó morreria em Novembro desse ano. Dual seria publicado em 1972. A colectânea em
causa é constituída por poemas até então inéditos, intensamente visuais e até visionários no modo de se
focarem no vazio, na ausência, na perda, ou em espaços que, sendo de arte, são descritos como povoados de
destroços («Atelier do Escultor do meu Tempo»), e de vazio e frio («Maria Helena Vieira da Silva ou o
Itinerário Inelutável»). Apenas três poemas no conjunto convocam um breve regresso à alegria. São os que
se iniciam: «Há muito que deixei aquela praia», «Ali então em pleno mundo antigo» e «Um brilho de
azulejo e de folhagem».
24 Há dois poemas explicitamente dirigidos ao meu pai, que lembram este lado da sua relação. O
primeiro destes poemas, sobejamente conhecido, musicado e cantado por Francisco Fanhais, é «Porque os
outros se mascaram mas tu não…», foi publicado em Mar Novo e encontra-se, como dedicatória
manuscrita, dirigida ao meu pai, na folha de rosto de Contos Exemplares (1962); do segundo, «Porque nos
outros há sempre qualquer nojo», há um manuscrito em folha solta, com a dedicatória referida e, por
vontade da autora, acrescentada na 3.ª edição de Mar Novo (2003).
Também constituem acervo do Espólio três textos de F.S.T. sobre a obra de Sophia. São de destacar o
primeiro — «A Poesia de Sofia de Melo Breyner Andresen» [sic] (Acção, n.º 189, 30 Nov. 1944), que é
simultaneamente a primeira recensão à obra da autora, vinda a lume quatro meses depois da publicação do
livro Poesia; e o terceiro — a última crónica que Francisco de Sousa Tavares escreveu, um mês e meio
antes de morrer — «Ideia Tumultuosa e Doce» (Diário de Notícias, 11 Abr. 1993).
NOTA DE EDIÇÃO

Quinze anos após a sua estreia literária com Poesia (1944), e depois de ter
publicado mais quatro livros, Sophia de Mello Breyner Andresen iniciou um
importante caminho de revisão da sua obra, dando conta, na «Nota da 2.ª
Edição» desse seu primeiro livro, de alterações, supressões e acrescentos de
poemas. Este tipo de indicação é em alguns casos explicitamente referido nos
próprios livros, como ocorre aqui, ou como ocorre na segunda edição conjunta
de No Tempo Dividido e Mar Novo, em 1985, outra data assinalável no plano das
revisões feitas pela autora. Mas também deparamos com importantes
intervenções na obra, sem que sejam apresentadas notas explicativas; refira-se,
neste sentido, o marco que constituiu a edição da obra poética em três volumes
na Editorial Caminho (1990-1991), momento significativo do ponto de vista de
uma revisão que implicou a exclusão de um considerável número de poemas.
Nas edições autónomas, publicadas a partir de 2003, também na Caminho,
impôs-se um forte propósito inclusivo que decorreu de um trabalho conjunto da
autora com Maria Andresen Sousa Tavares, iniciado em 1999, a pedido de
Sophia. Nesta última revisão, muitos dos poemas anteriormente excluídos foram
parcial ou integralmente reintegrados na obra.
O presente volume da reunião da Obra Poética de Sophia de Mello Breyner
Andresen adopta os critérios de fixação de texto da edição publicada em 2010,
na Caminho (com 2.ª ed. revista em 2011), que seguiu e actualizou a lição das
edições em volumes autónomos, publicadas a partir de 2003 na mesma editora,
organizadas por Maria Andresen Sousa Tavares e por Luis Manuel Gaspar.
Procedeu-se a um ajustamento relativamente à colocação e à numeração das
«Artes Poéticas» que foram publicadas nas edições autónomas, a fechar as
seguintes obras: Livro Sexto («Posfácio»); Geografia («Arte Poética I» e «Arte
Poética II»); Dual («Arte Poética IV») e Ilhas («Arte Poética V»). À semelhança
do que ocorreu com a arrumação destes textos na Antologia (1.ª edição,
Portugália, 1968), as «Artes Poéticas» figuram aqui no final do livro. Verifica-se
a existência de um hiato nestas numerações. A «Arte Poética III» apenas é
designada deste modo na referida Antologia da autora (e em todas as suas
reedições). Trata-se do texto lido por Sophia, em Julho de 1964, na entrega do
Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, e publicado
pela primeira vez como «Posfácio» à 2.ª edição de Livro Sexto, tendo recebido a
mesma denominação nas subsequentes edições autónomas deste livro. O
problema de como designar e onde colocar esta arte poética é reconhecidamente
complexo e, porventura, não se prestará nunca a uma solução definitiva. Na
edição da poesia reunida em três volumes, o texto figura como introdução, no
primeiro tomo, sem apresentar nenhum título. Existe, no espólio de Sophia de
Mello Breyner Andresen, um texto incompleto a que a autora deu justamente o
nome «Arte Poética III» e que é diferente daquele que foi divulgado em Livro
Sexto. Como não se concretizou a publicação desta «poética» inacabada, optou-
se, no presente volume, por atribuir a designação de «Arte Poética III» às
palavras de agradecimento do Grande Prémio de Poesia da Sociedade
Portuguesa de Escritores, de acordo com a decisão da autora na sua Antologia.
Tal como na edição de 2010, publica-se aqui também um conjunto de
poemas que se encontravam dispersos em revistas, em livros colectivos, em
jornais e num cartaz, desde textos que remontam à primeira fase da produção de
Sophia, dos anos 1940, até aos últimos poemas escritos em 2001, e que não
foram reunidos em livro pela autora.
Na presente edição dão-se ainda a conhecer alguns poemas inéditos que
integram o espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen (doado à Biblioteca
Nacional de Portugal, em 2010). Refira-se a importância nuclear deste acervo
para um aprofundamento da obra da autora. No prefácio a este volume, Maria
Andresen Sousa Tavares apresenta alguns textos inéditos, devidamente
enquadrados em função do percurso evolutivo da obra poética de Sophia. São
poemas diferentes daqueles que surgem editados no final deste livro.
Para além das notas de edição da autora acima referidas, importa ainda
destacar o facto de Sophia ter apresentado uma diversa sinalização explicitadora
relativa a movimentações na obra, assinaladas nas próprias secções dos livros.
Trata-se de um aspecto que tem grande relevância para a leitura dos inéditos.
Reporto-me ao reenvio para os célebres «cadernos», onde Sophia escrevia e
copiava os poemas. Encontramos nomes de partes de livros que espelham esse
trânsito de repescagem: «Poemas de um livro destruído», No Tempo Dividido (a
partir da edição de 1985); «Poemas reencontrados», primeira secção do livro
Ilhas (1989). Esses «cadernos» a que Sophia voltou com alguma regularidade
são extremamente reveladores dos procedimentos composicionais da autora. Um
dos exemplos mais eloquentes é o conhecido poema «Soror Mariana — Beja»,
publicado em O Nome das Coisas (1977). Como Maria Andresen revela no
prefácio à presente edição, este belíssimo dístico constituía o início de um
poema longo da primeira fase (datado de 1939).
Se, por um lado, a leitura dos poemas inéditos pressupõe uma perspectivação
contextualizadora que os situa numa dimensão suplementar à obra édita, por
outro lado essa leitura não deixa de cumprir uma importante função reveladora.
O ideal de harmonia perseguido na obra de Sophia sempre implicou avanços,
recuos, oscilações de diversa ordem que dão conta do próprio caminho que visa
a estabilização. A consciência da incompletude, o tacteio, a sombra precedem a
nitidez, a transparência, o equilíbrio. A busca da palavra exacta pressupõe um
vaivém que tem uma exteriorização visível nas referidas revisões da obra (com
exclusões e reintegrações de poemas). Nesse sentido, os inéditos integrantes do
espólio oferecem uma fascinante imagem dessa própria busca do ideal de
claridade, parcimónia e nudez essenciais.
Queria endereçar uma palavra de gratidão a Richard Zenith pelas
informações relativas às emendas manuscritas da autora, constantes dos seus
exemplares da Obra Poética reunida em três volumes (Caminho, 1990-1991),
que permitiram introduzir novas correcções na presente edição. A Rita Patrício
agradeço o debate sobre a edição de texto e o inestimável apoio na decifração de
algumas palavras de mais difícil leitura nos manuscritos de Sophia de Mello
Breyner Andresen. Agradeço a Frederico Lourenço as conversas continuadas
sobre a obra andreseniana e sobre os inéditos por mim seleccionados para esta
edição. A Maria Andresen Sousa Tavares agradeço o profícuo diálogo sobre a
problemática da edição da obra poética de Sophia e a sua permanente
disponibilidade para acolher as minhas propostas desde que comecei a trabalhar
neste projecto editorial.

CARLOS MENDES DE SOUSA


POESIA
I
Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
NOITE

Mais uma vez encontro a tua face,


Ó minha noite que eu julguei perdida.

Mistério das luzes e das sombras


Sobre os caminhos de areia,

Rios de palidez em que escorre


Sobre os campos a lua cheia,

Ansioso subir de cada voz,


Que na noite clara se desfaz e morre.

Secreto, extasiado murmurar


De mil gestos entre a folhagem,

Tristeza das cigarras a cantar.

Ó minha noite, em cada imagem


Reconheço e adoro a tua face,
Tão exaltadamente desejada,
Tão exaltadamente encontrada,
Que a vida há-de passar, sem que ela passe,
Do fundo dos meus olhos onde está gravada.
LUAR

O luar enche a terra de miragens


E as coisas têm hoje uma alma virgem,
O vento acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que é o perfeito acorde da minha alma.
ATLÂNTICO

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
MAR

De todos os cantos do mundo


Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II

Cheiro a terra as árvores e o vento


Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.
MEIO-DIA

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.


O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.
O JARDIM E A NOITE

Atravessei o jardim solitário e sem lua,


Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo


Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra dos canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos


Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,


Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem


A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura


E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente


E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.
EVOHÉ BAKKHOS

Evohé deus que nos deste


A vida e o vinho
E nele os homens encontraram
O sabor do sol e da resina
E uma consciência múltipla e divina.
APOLO MUSAGETA

Eras o primeiro dia inteiro e puro


Banhando os horizontes de louvor.

Eras o espírito a falar em cada linha


Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.

Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.

Eras a medida suprema, o cânon eterno


Erguido puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta


Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
Noite das coisas, terror e medo
Na aparente paz dispersa
Sobre as linhas caladas.
Efeitos de luz nas paredes caiadas,
Gestos e murmúrios de conversa
No mundo estranho do arvoredo.
CIDADE

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,


Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida


E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
Noites sem nome, do tempo desligadas,
Solidão mais pura do que o fogo e a água,
Silêncio altíssimo e brilhante.

As imagens vivem e vão cantando libertadas


E no secreto murmurar de cada instante
Colhi a absolvição de toda a mágoa.
Cidade suja, restos de vozes e ruídos,
Rua triste à luz do candeeiro
Que nem a própria noite resgatou.
Ir beber-te num navio de altos mastros
No mar alto
Ó grande noite alucinada e pura,
Brilhante e escura,
Bordada de astros.

Para ti sobe a minha inquietação e sobressalto,


O meu caos, desilusão e agonia,
Pois trazes nos teus dedos
A sombra, o silêncio e os segredos,
A perfeição, a pureza e a harmonia.
CASA BRANCA

Casa branca em frente ao mar enorme,


Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
… … … … … … … … … … … …

A ti eu voltarei após o incerto


Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu


E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.
II
Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.
PRIMAVERA

Primavera que Maio viu passar


Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.
Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal,
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.

À minha volta sinto naufragar


Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar…
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.
Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.
SENHOR

Senhor se eu me engano e minto,


Se aquilo a que chamei a vossa verdade
É apenas um novo caminho da vaidade,
Se a plenitude imensa que em mim sinto,
Se a harmonia de tudo a transbordar,
Se a sensação de força e de pureza
São a literatura alheia e o meu bem-estar,
Se me enganei na minha única certeza,
Mandai os vossos anjos rasgar
Em pedaços o meu ser
E que eu vá abandonada
Pelos caminhos a sofrer.
NOITE DE ABRIL

Hoje, noite de Abril, sem lua,


A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura


E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.


Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.

E às vezes, o silêncio estremece


Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.
Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,


E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,


O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.
Aquelas que exaltadas e secretas
À janela espreitaram inquietas
O rumor do poente nas estradas,
Julgaram vir de ti essa passagem
Contida na beleza da paisagem.
Solitárias mordendo a sua fome
Percorrem o silêncio dos jardins
E vão gritando às sombras o teu nome.
PAISAGEM

Passavam pelo ar aves repentinas,


O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,


Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,


Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,


Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,


Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.
COMO UMA FLOR VERMELHA

À sua passagem a noite é vermelha,


E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,


Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece


E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.
O JARDIM E A CASA

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.


Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
JARDIM PERDIDO

Jardim em flor, jardim da impossessão,


Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das árvores ardia,


O vermelho das rosas transbordava,
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação


De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidade e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso


Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.
JARDIM

Alguém diz:
«Aqui antigamente houve roseiras» —
Então as horas
Afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.
NO ALTO MAR

à memória do meu Pai

No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.

O Sol brilha enorme


Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula


Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços


Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abriu neles os seus braços.
FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,


Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge


A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa


Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa


Tem um monstro em si suspenso.
Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.

Nunca mais te poderás sentir


Invulnerável, real e densa —
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.


NÍOBE TRANSFORMADA EM FONTE

(adaptado de Ovídio)

Os cabelos embora o vento passe


Já não se agitam leves. O seu sangue,
Gelando, já não tinge a sua face.
Os olhos param sob a fronte aflita.
Já nada nela vive nem se agita,
Os seus pés já não podem formar passos,
Lentamente as entranhas endurecem
E até os gestos gelam nos seus braços —

Mas os olhos de pedra não esquecem.


Subindo do seu corpo arrefecido
Lágrimas lentas rolam pela face,
Lentas rolam, embora o tempo passe.
Céu, terra, eternidade das paisagens,
Indiferentes ante o rumor leve,
Que nós sempre lhes somos. Vento breve,
Heróis e deuses, trágicas passagens,
Cuja tragédia mesma nada inscreve
Na perfeição completa das imagens.

Todo o nosso tumulto é menos forte


Do que o eterno perfil de uma montanha.
Cala-se a terra ao nosso amor estranha
— Talvez um dia embale a nossa morte.
III
Lutaram corpo a corpo com o frio
Das casas onde nunca ninguém passa,
Sós, em quartos imensos de vazio,
Com um poente em chamas na vidraça.
EM TODOS OS JARDINS

Em todos os jardins hei-de florir,


Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,


A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo


Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,


A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
AS FONTES

Um dia quebrarei todas as pontes


Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora


A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,


Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.
A HORA DA PARTIDA

A hora da partida soa quando


Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando


As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos


Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Que poderei de mim mais arrancar
Pra suportar o dom da tua mão,
Anjo rubro do vento e solidão
Que me trouxeste o espaço, o deus e o mar?

No céu, a linha última das casas


É já azul, alada, imensa e leve.
Nenhum gesto, nenhum destino é breve
Porque em todos estão inquietas asas.

Depois ao pôr do sol ardem as casas,


O céu e o fogo passam pela terra,
E a noite negra vem cheia de brasas
Num crescendo sem fim que nos desterra.
Ó noite, flor acesa, quem te colhe?
Sou eu que em ti me deixo anoitecer,
Ou o gesto preciso que te escolhe
Na flor dum outro ser?
Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades acesas cujo lume


Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber


Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.
Sinto os mortos no frio das violetas
E nesse grande vago que há na lua.

A terra fatalmente é um fantasma,


Ela que toda a morte em si embala.

Sei que canto à beira de um silêncio,


Sei que bailo em redor da suspensão,
E possuo em redor da impossessão.

Sei que passo em redor dos mortos mudos


E sei que trago em mim a minha morte.

Mas perdi o meu ser em tantos seres,


Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus actos,
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.
Quando brilhou a aurora, dissolveram-se
Entre a luz as florestas encantadas.
Arvoredos azuis e sombras verdes,
Como os astros da noite embranqueceram
Através da verdade da manhã.

E encontrei um país de areia e sol,


Plano, deserto, nu e sem caminhos.
Aí, ante a manhã, quebrado o encanto,
Não fui sol nem céu nem areal,
Fui só o meu olhar e o meu desejo.
Tinha a alma a cantar e os membros leves
E ouvia no silêncio os meus passos.

Caminhei na manhã eternamente.


O sol encheu o céu, foi meio-dia,
Branco, a pique, sobre as coisas mortas.
Mais adiante encontrei a tarde líquida,
A tarde leve, cheia de distâncias,
Escorrendo de céus azuis e fundos
Onde as nuvens se vão pra outros mundos.

Um ponto apareceu no horizonte,


Verde nos areais, como um sinal.
Era um lago entre calmos arvoredos.

Não bebi a sua água nem beijei


O homem que dormia junto às margens.

E ao encontro da noite caminhei.


Senti que estava às portas do meu reino,
Entre as sombras brilhavam as paisagens
Que os meus sonhos antigos desejavam.
Mas o terror expulsou-me das imagens
Onde já os meus membros penetravam.
HOMENS À BEIRA-MAR

Nada trazem consigo. As imagens


Que encontram, vão-se delas despedindo.
Nada trazem consigo, pois partiram
Sós e nus, desde sempre, e os seus caminhos
Levam só ao espaço como o vento.

Embalados no próprio movimento,


Como se andar calasse algum tormento,
O seu olhar fixou-se para sempre
Na aparição sem fim dos horizontes.

Como o animal que sente ao longe as fontes,


Tudo neles se cala pra escutar
O coração crescente da distância,
E longínqua lhes é a própria ânsia.

É-lhes longínquo o sol quando os consome,


É-lhes longínqua a noite e a sua fome,
É-lhes longínquo o próprio corpo e o traço
Que deixam pela areia, passo a passo.

Porque o calor do sol não os consome,


Porque o frio da noite não os gela,
E nem sequer lhes dói a própria fome,
E é-lhes estranho até o próprio rasto.

Nenhum jardim, nenhum olhar os prende.


Intactos nas paisagens onde chegam

Só encontram o longe que se afasta,


O apelo do silêncio que os arrasta,
As aves estrangeiras que os trespassam,
E o seu corpo é só um nó de frio
Em busca de mais mar e mais vazio.
SINAL DE TI

Não darei o Teu nome à minha sede


De possuir os céus azuis sem fim,
Nem à vertigem súbita em que morro
Quando o vento da noite me atravessa.

Não darei o Teu nome à limpidez


De certas horas puras que perdi,
Nem às imagens de oiro que imagino
Nem a nenhuma coisa que sonhei.

Pois tudo isso é só a minha vida,


Exalação da terra, flor da terra,
Fruto pesado, leite e sabor.

Mesmo no azul extremo da distância,


Lá onde as cores todas se dissolvem,
O que me chama é só a minha vida.

II

Tu não nasceste nunca das paisagens,


Nenhuma coisa traz o Teu sinal,
É Dionysos quem passa nas estradas
E Apolo quem floresce nas manhãs.

Não estás no sabor nem na vertigem


Que as presenças bebidas nos deixaram.
Não Te tocam os olhos nem as almas,
Pois não Te vemos nem Te imaginamos.

E a verdade dos cânticos é breve


Como a dos roseirais: exalação
Do nosso ser e não sinal de Ti.

III

A presença dos céus não é a Tua,


Embora o vento venha não sei donde.

Os oceanos não dizem que os criaste,


Nem deixas o Teu rasto nos caminhos.

Só o olhar daqueles que escolheste


Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas.
O VIDENTE

Vimos o mundo aceso nos seus olhos,


E por os ter olhado nós ficámos
Penetrados de força e de destino.

Ele deu carne àquilo que sonhámos,


E a nossa vida abriu-se, iluminada
Pelas imagens de oiro que ele vira.

Veio dizer-nos qual a nossa raça,


Anunciou-nos a pátria nunca vista,
E a sua perfeição era o sinal
De que as coisas sonhadas existiam.

Vimo-lo voltar das multidões


Com o olhar azulado de visões
Como se tivesse ido sempre só.

Tinha a face orientada para a luz,


Intacto caminhava entre os horrores,
Interior à alma como um conto.

E ei-lo caído à beira do caminho,


Ele — o que partira com mais força
Ele — o que partira pra mais longe.
Porque o ergueste assim como um sinal?
Pusemos tantos sonhos em seu nome!
Como iremos além da encruzilhada
Onde os seus olhos de astro se quebraram?
Que o Teu gládio me fira mortalmente.
Eu sou de alma dispersa e vagabunda,
Tudo me destrói e cada ser me inunda
E posso assim rolar eternamente.
No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.
DIA DO MAR
I
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
JARDIM DO MAR

Vi um jardim que se desenrolava


Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.

Jardim de flores selvagens e duras


E cactos torcidos em mil dobras,
Caminhos de areia branca e estreitos
Entre as rochas escuras
E, aqui e além, os pinheiros
Magros e direitos.

Jardim do mar, do sol e do vento,


Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.

Jardim que a água chama e devora


Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.

Jardim onde o vento batalha


E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.
MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,


A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
O JARDIM

O jardim está brilhante e florido.


Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído,
Peregrino de mil romagens.

É Maio ácido e multicolor,


Devorado pelo próprio ardor,
Que nesta clara tarde de cristal
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos
Do meu bem e do meu mal.

E no seu bailado levada


Pelo jardim deliro e divago,
Ora espreitando debruçada
Os jardins do fundo do lago,
Ora perdendo o meu olhar
Na indizível verdura
Das folhas novas e tenras
Onde eu queria saciar
A minha longa sede de frescura.
ESPERA

Dei-te a solidão do dia inteiro.


Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.
Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar,
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.

Mergulhar as mãos nas ondas escuras


Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter.
É ESTA A HORA…

É esta a hora perfeita em que se cala


O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.

É esta a hora em que as rosas são as rosas


Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.
É esta a hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiram e chamaram.
É esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente.
É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.
AS ROSAS

Quando à noite desfolho e trinco as rosas


É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.
DIA DE HOJE

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras


Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma por uma, as tuas horas
Em que há por vezes súbitas demoras
Plenas como as pausas dum verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves


Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.
ABRIL

Vinhas descendo ao longo das estradas,


Mais leve do que a dança
Como seguindo o sonho que balança
Através das ramagens inspiradas.

E o jardim tremeu,
Pálido de esperança.
Jardim verde e em flor, jardim de buxo
Onde o poente interminável arde
Enquanto bailam lentas as horas da tarde.
Os narcisos ondulam e o repuxo,
Voz onde o silêncio se embala,
Canta, murmura e fala
Dos paraísos desejados,
Cuja lembrança enche de bailados
A clara solidão das tuas ruas.
PROMESSA

És tu a Primavera que eu esperava,


A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante.
II
É por ti que se enfeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera.
É por ti que a noite chama e espera.

És tu quem anuncia o poente nas estradas.


E o vento torcendo as árvores desfolhadas
Canta e grita que tu vais chegar.
ENDYMION

Por ti lutavam deuses desumanos.


E eu vi-te numa praia abandonado
À luz, e pelos ventos destroçado,
E os teus membros rolaram nos oceanos.
DIONYSOS

Entre as árvores escuras e caladas


O céu vermelho arde,
E nascido da secreta cor da tarde
Dionysos passa na poeira das estradas.

A abundância dos frutos de Setembro


Habita a sua face e cada membro
Tem essa perfeição vermelha e plena,
Essa glória ardente e serena
Que distinguia os deuses dos mortais.
OS DEUSES

Nasceram, como um fruto, da paisagem.


A brisa dos jardins, a luz do mar,
O branco das espumas e o luar
Extasiados estão na sua imagem.
ALEXANDRE DA MACEDÓNIA

A perfeição, a eternidade, a plenitude


Escorriam da sagrada juventude
Dos teus membros.

A luz bailava em roda dos teus passos


E a ardente palidez da tua divindade
Ergueu-se na pureza dos espaços.

Estreitamente os teus dedos


Para lá das vagas ânsias, incertezas e segredos
Prendiam os dedos da sorte.

E o destino que em nós é caos e luto,


Era em ti verdade e harmonia
Caminho puro e absoluto.
SOBRE UM DESENHO
DE MIGUEL ÂNGELO

Do caos humano, confuso e hostil,


Sobe milagroso o teu perfil
O mais claro ensinamento.

O olhar procura
O mais profundo fundo
O mais longínquo além.
O nariz sente e respira
Cada exalação da vida
E a boca renuncia.
O ANJO

O Anjo que em meu redor passa e me espia


E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta


Sofrer, ou que feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,


Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse.
Através de países e paisagens
Caminham ao encontro das imagens
E a terra abraçou-os no calor
Dos seus membros de carne e de folhagens.

Como a luz era a luz nos seus cabelos,


Como o vento era o vento entre os seus dedos!
O seu corpo seguia mil segredos
E tinha o baloiçar dos arvoredos.

E desligados partem novamente


Entre as fogueiras negras do sol-poente.

E eis o coração rítmico do deus


Abandonado e só em frente aos céus.
Em minha frente caminhas
Pesado do teu desejo,
Pesado da tua graça,
E as tuas mãos tocam as coisas que hão-de vir
E a sua sombra cobre a tua face.

E em tua frente estou suplicante e exausta


Pois a tua vinda apaga
Os meus frágeis gestos de alegria.
E em tua frente estou suplicante e exausta
Pois a tua vinda quebra
A minha vida.

Às vezes todo o dia o teu sorriso


Está presente em cada coisa:
No fundo dos espelhos e nos vidros,
No vermelho das rosas e nos astros.
E através dessa presença caminho em delírio
Para o grande cintilar dos teus desastres
Onde me quero destruir.
III
NAVEGAÇÃO

Distância da distância derivada


Aparição do mundo: a terra escorre
Pelos olhos que a vêem revelada.
E atrás um outro longe imenso morre.
Deus puro, Apolo Musageta,
Deus sem espinhos e sem cruz,
Ofereço-te a plenitude secreta
Em que bebi e vivi a tua luz.

Ofereço-te a minha alma transbordante


De mil exaltações,
Purificada em mil confissões
Da sua longa tristeza delirante.

Ofereço-te as horas deste dia completas


No teu sol tocando as coisas materiais,
Ofereço-te as nostalgias secretas
Que se perderam em gestos irreais.
TRISTÃO E ISOLDA

Sobre o mar de Setembro velado de bruma


O sol velado desce
Impregnando de oiro a espuma
Onde a mais vasta aventura floresce.

Tristão e Isolda que eu sempre vi passar


Num fundo de horizontes marítimos
Trespassados como o mar
Pela fatalidade fantástica dos ritmos
Caminham na agonia desta tarde
Onde uma ânsia irmã da sua arde.

Tristão e Isolda que como o Outono,


Rolando de abandono em abandono,
Traziam em si suspensa
Indizivelmente a presença
Extasiada da morte.
PAINÉIS DO INFANTE

Príncipes do silêncio ó taciturnos


Por quem chamava nos longínquos céus nocturnos
A verdade das estrelas nunca vistas.

A vossa face é a face dos elementos,


Solitária como o mar e como os montes
Vinda do fundo de tudo como as fontes
Dura e pura como os ventos.
GRUTA DE CAMÕES

Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta


Cujo silêncio ainda escuta
Os teus gestos e os teus passos.

Aí, diante do mar como tu transbordante


De confissão e segredo,
Choraste a face pura
Das brancas amadas
Mortas tão cedo.
NAVIO NAUFRAGADO

Vinha dum mundo


Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,


Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores


Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias


Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.
KASSANDRA

Homens, barcos, batalhas e poentes,


Não sei quem, não sei onde, delirava.
E o futuro vermelho transbordava
Através das pupilas transparentes.

Ó dia de oiro sobre as coisas quentes,


Os rostos tinham almas que mudavam,
E as aves estrangeiras trespassavam
As minhas mãos abertas e presentes.

Houve instantes de força e de verdade —


Era o cantar de um deus que me embalava
Enchendo o céu de sol e de saudade.

Mas não deteve a lei que me levava,


Perdida sem saber se caminhava
Entre os deuses ou entre a humanidade.
CATILINA

Eu sou o solitário e nunca minto.


Rasguei toda a vaidade tira a tira
E caminho sem medo e sem mentira
À luz crepuscular do meu instinto.

De tudo desligado, livre sinto


Cada coisa vibrar como uma lira,
Eu — coisa sem nome em que respira
Toda a inquietação dum deus extinto.

Sou a seta lançada em pleno espaço


E tenho de cumprir o meu impulso,
Sou aquele que venho e logo passo.

E o coração batendo no meu pulso


Despedaçou a forma do meu braço
Pr’além do nó de angústia mais convulso.
PARTIDA

Como uma flor incerta entre os teus dedos


Há harmonia de um bailar sem fim,
E tens o silêncio indizível dum jardim
Invadido de luar e de segredos.

II

Nas tuas mãos trazias o meu mundo.


Para mim dos teus gestos escorriam
Estrelas infinitas, mar sem fundo
E nos teus olhos os mitos principiam.

Em ti eu conheci jardins distantes


E disseste-me a vida dos rochedos
E juntos penetrámos nos segredos
Das vozes dos silêncios dos instantes.

III

Os teus olhos são lagos e são fontes,


E em todo o teu ser existe
O sonho grave, nítido e triste
De uma paisagem de pinhais e montes.

Na tua voz as palavras são nocturnas


E todas as coisas graves, grandes, taciturnas
A ti são semelhantes.
GOYESCA

Um infinito ardor
Quase triste os veste,
Semelhante ao sabor
Que tem à noite o vento leste.

Bailam na doçura amarga


Da tarde brilhante e densa
E cada gesto que se alarga
Tem a morte em si suspensa.
Estranha noite velada,
Sem estrelas e sem lua,
Em cuja bruma recua
Fantasma de si mesma cada imagem.

Jaz em ruínas a paisagem,


A dissolução habita cada linha.
Enorme, lenta e vaga
A noite ferozmente apaga
Tudo quanto eu era e quanto eu tinha.

E mais silenciosa do que um lago,


Sobre a agonia desse mundo vago,
A morte dança
E em seu redor tudo recua
Sem força e sem esperança.

Tudo o que era certo se dissolve;


O mar e a praia tudo se resolve
Na mesma solidão eterna e nua.
O PRIMEIRO HOMEM

Era como uma árvore da terra nascida


Confundindo com o ardor da terra a sua vida,
E no vasto cantar das marés cheias
Continuava o bater das suas veias.

Criados à medida dos elementos


A alma e os sentimentos
Em si não eram tormentos
Mas graves, grandes, vagos,
Lagos
Reflectindo o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão da terra nos espaços
Eram os impulsos do seu peito
Florindo num ritmo perfeito
Nos gestos dos seus braços.
IV
Sonhei com lúcidos delírios
À luz de um puro amanhecer
Numa planície onde crescem lírios
E há regatos cantantes a correr.
Quem como eu em silêncio tece
Bailados, jardins e harmonias?
Quem como eu se perde e se dispersa
Nas coisas e nos dias?
LUA

Entre a terra e os astros, flor intensa,


Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.
DANÇA DE JUNHO

Em silêncio nas coisas embaladas


Vão dançando ao sabor dos seus segredos.
Nos seus vestidos brancos e bordados
Raios de lua poisam como dedos,
E em seu redor baloiçam arvoredos
Escuros entre os céus atormentados.
UM DIA

Um dia, mortos, gastos, voltaremos


A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços


Dos gestos agitados, irreais,
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar


Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar,
E em nós germinará a sua fala.
Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.
As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?
NOITE

Noite de folha em folha murmurada,


Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptível em gestos quietos.
Divaga entre a folhagem perfumada
E adormece nas brisas embalada.

Aos lagos mostra a sua face nua,


E vai dançar nos palcos vazios da Lua.

Pálida, de reflexo em reflexo desliza,


Não se curvam sequer as ervas que ela pisa.

É ela quem baloiça os lânguidos pinheiros,


Quem enrola em luar as suas mãos
E depois as espalha brancas nos canteiros.
RECONHECI-TE

Reconheci-te logo destruída


Sem te poder olhar porque tu eras
O próprio coração da minha vida
E eu esperei-te em todas as esperas.

II

Conheci-te e vivi-te em cada deus


E do teu peso em mim é que eu fui triste
Sempre. Tu depois só me destruíste
Com os teus passos mais reais que os meus.
Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem desviou na noite os teus caminhos?
Quem derramou no chão os teus segredos?
FLORESTA

Entre o terror e a noite caminhei


Não em redor das coisas mas subindo
Através do calor das suas veias
Não em redor das coisas mas morrendo
Transfigurada em tudo quanto amei.

Entre o luar e a sombra caminhei:


Era ali a minha alma, cada flor
— Cega, secreta e doce como estrelas —
Quando a tocava nela me tornei.

E as árvores abriram os seus ramos


Os seus ramos enormes e convexos
E no estranho brilhar dos seus reflexos
Oscilavam sinais, quebrados ecos
Que no silêncio fantástico beijei.
Se alguém passa agora nos areais,
Se alguém passa agora nos pinhais,
Diz,
Em gestos plenos e naturais,
Tudo o que eu, tão em vão, perdidamente quis.
Há jardins invadidos de luar
Que vibram no silêncio como liras.
Segura o teu amor entre os teus dedos
Neste jardim de Abril em que respiras.

A vida não virá — as tuas mãos


Não podem colher noutras a doçura
Das flores baloiçando ao vento leve.

Fosse o teu corpo feito de luar,


Fosses tu o jardim cheio de lagos,
As árvores em flor, a profusão
Da sua sombra negra nos caminhos.
MEDEIA

(adaptado de Ovídio)

Três vezes roda, três vezes inunda


Na água da fonte os seus cabelos leves,
Três vezes grita, três vezes se curva
E diz: «Noite fiel aos meus segredos,
Lua e astros que após o dia claro
Iluminais a sombra silenciosa,
Tripla Hecate que sempre me socorres
Guiando atenta o fio dos meus gestos,
Deuses dos bosques, deuses infernais
Que em mim penetre a vossa força, pois
Ajudada por vós posso fazer
Que os rios entre as margens espantadas
Voltem correndo até às suas fontes.
Posso espalhar a calma sobre os mares
Ou enchê-los de espuma e fundas ondas,
Posso chamar a mim os ventos, posso
Largá-los cavalgando nos espaços.
As palavras que digo e cada gesto
Que em redor do seu som no ar disponho
Torcem longínquas árvores e os homens
Despedaçam-se e morrem no seu eco.
Posso encher de tormento os animais,
Fazer que a terra cante, que as montanhas
Tremam e que floresçam os penedos.»
AQUI

Aqui, deposta enfim a minha imagem,


Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua


E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não por aquilo que só atravessei,


Não p’lo meu rumor que só perdi,
Não p’los incertos actos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei


E em cujo amor de amor me eternizei.
V
Nostalgia sem nome da paisagem,
Secreto murmurar de cada imagem,
Que na escuridão se ergue e caminha.
Devagar no jardim a noite poisa
E o bailado dos seus passos
Liberta a minha alma dos seus laços,
Como se de novo fosse criada cada coisa.
AS CASAS

Há sempre um deus fantástico nas casas


Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.
GESTO

Eu em tudo Te vi amanhecer
Mas nenhuma presença Te cumpriu,
Só me ficou o gesto que subiu
Às mais longínquas fontes do meu ser.
HORIZONTE VAZIO

Horizonte vazio em que nada resta


Dessa fabulosa festa
Que um dia te iluminou.

As tuas linhas outrora foram fundas e vastas,


Mas hoje estão vazias e gastas
E foi o meu desejo que as gastou.

Era do pinhal verde que descia


A noite bailando em silenciosos passos,
E naquele pedaço de mar ao longe ardia
O chamamento infinito dos espaços.

Nos areais cantava a claridade,


E cada pinheiro continha
No irreprimível subir da sua linha
A explicação de toda a heroicidade.

Horizonte vazio, esqueleto do meu sonho,


Árvore morta sem fruto,
Em teu redor deponho
A solidão, o caos e o luto.
A LUZ OBLÍQUA

A luz oblíqua da tarde


Morre e arde
Nas vidraças.

Nas coisas nascem fundas taças


Para a receber,
E ali eu vou beber.

A um canto cismo
Suspensa entre as horas e um abismo.

A vibração das coisas cresce.


Cada instante
No seu secreto murmurar é semelhante
A um jardim que verdeja e que floresce.
QUANDO

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta


Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar


Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,


Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
JARDIM PERDIDO

Jardim perdido, a grande maravilha


Pela qual eternamente em mim
A tua face se ergue e brilha
Foi esse teu poder de não ter fim,
Nem tempo, nem lugar e não ter nome.

Sempre me abandonaste à beira duma fome.


As coisas nas tuas linhas oferecidas
Sempre ao meu encontro vieram já perdidas.

Em cada um dos teus gestos sonhava


Um caminho de estranhas perspectivas,
E cada flor no vento desdobrava
Um tumulto de danças fugitivas.

Os sons, os gestos, os motivos humanos


Passaram em redor sem te tocar,
E só os deuses vieram habitar
No vazio infinito dos teus planos.
VI

Vi países de pedras e de rios


Onde nuvens escuras como aranhas
Roem o perfil roxo das montanhas
Entre poentes cor-de-rosa e frios.

Transbordante passei entre as imagens


Excessivas das terras e dos céus
Mergulhando no corpo desse deus
Que se oferece, como um beijo, nas paisagens.
OS MORTOS DE HECATE

Ao nosso lado os mortos em surdina


Bebem a exalação da nossa vida.
São a sombra seguindo os nossos gestos,
Sinto-os passar quando leves vêm
Alta noite buscar os nossos restos.

Passam nos quartos onde nos deixamos,


Envolvem-se nos gestos que traçamos,
Repetem as palavras que dissemos,
E debruçados sobre o nosso sono
Bebem como um leite o nosso sonho.

Intangíveis, sem peso e sem contorno


Ressurgem no sabor vivo do sangue.
Sorriem às imagens que vivemos
E choram por nós quando não as vemos,
Porque já sabem para aonde vamos.
Pra minha imperfeição está suspenso
Em cada flor da terra um tédio imenso.

Todo o milagre, toda a maravilha


Torna mais funda a minha solidão.
E todo o esplendor pra mim é vão,
Pois não sou perfeição nem maravilha.

As flores, as manhãs, o vento, o mar


Não podem embalar a minha vida.
Imperfeita não posso comungar
Na perfeição aos deuses oferecida.
Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,


Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Porquê jardins que nós não colheremos,


Límpidos nas auroras a nascer,
Porquê o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.
Vi florestas e danças e tormentos,
Cantavam rouxinóis e uivavam ventos
Nos céus atravessados por cometas.

Vi luz a pique sobre as faces nuas,


Vi olhos que eram como fundas luas
Magnéticas suspensas sobre o mar.

Vi poentes em sangue alucinados


Onde os homens e as sombras se cruzavam
Em gestos desmedidos, mutilados.

Levada por fantásticos caminhos


Atravessei países vacilantes,
E nas encruzilhadas riam anjos
Inconscientes e puros como estrelas.
VI
Nós falamos dos deuses mas vós sois
Exactos e perfeitos como deuses.
AS CIDADES

Estavam no poente luzidias,


Acesas e magnéticas chamando
Sob o infinito céu das tardes frias.
REZA DA MANHÃ DE MAIO

Senhor, dai-me a inocência dos animais


Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã


De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
À beira dum jardim que só eu tive.
OS POETAS

Solitários pilares dos céus pesados,


Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou;
Gesto de forma em forma vagabundo
Que nunca num destino se acalmou.
EURYDICE

A noite é o seu manto que ela arrasta


Sobre a triste poeira do meu ser
Quando escuto o cantar do seu morrer
Em que o meu coração todo se gasta.

Voam no firmamento os seus cabelos


Nas suas mãos a voz do mar ecoa
Usa as estrelas como uma coroa
E atravessa sorrindo os pesadelos.

Veio com ar de alguém que não existe,


Falava-me de tudo quanto morre
E devagar no ar quebrou-se, triste
De ser aparição, água que escorre.
RIO

Rio, múltipla forma fugidia


De gestos infinitos e perdidos
E no seu próprio ritmo diluídos
Contínua aparição brilhante e fria.

Nos teus límpidos olhos de vidente


As paisagens reflectem-se mais fundas
Imóveis entre os gestos da corrente.

E o país em redor verde e silvestre


Alargou-se e abriu-se modulado
No silêncio brilhante que lhe deste.
NEVOEIRO

Quem poderá saber que estranha bruma


Brotou caladamente em minha volta
Pra que eu perdesse as horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.

Quem poderá saber que estranhos laços


E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braços —
O sangue que era sede do mar largo.

Quem poderá saber em que respostas


Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
À luz dum pôr de sol enlouquecido.
Aquelas cujos ombros se extinguiram
Contra os muros dum quarto misterioso
Onde há uma janela voltada para longe

Aquelas em cujos olhos não há cor


À força de fitarem o vazio
Que vai e vem entre o horizonte e elas

Aquelas cujo desespero cai


De todo o céu a pique sobre a terra,
Imutável e completo, igual
Ao silêncio do mar sobre os naufrágios.

Elas são aquelas que esperaram


Que todas as promessas se cumprissem
E que nos cegos deuses confiaram.
A minha esperança mora
No vento e nas sereias —
É o azul fantástico da aurora
E o lírio das areias.
Dançam as árvores puras sacudidas
Pelas chuvas verdes
O dia tem em si mãos interrompidas
Que um desejo absurdo ergue.
EXÍLIO

Espero tecendo os dias


Imagino e contemplo.

Num país sem flores onde o mar não é mar


E enigma são os navios,
Eu não entendo o sentido das velas
Tenho fome e sede de horizontes frios.
CORAL
PRIMEIRA PARTE
I
Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.
Os nossos dedos abriram mãos fechadas
Cheias de perfume
Partimos à aventura através de vozes e de gestos
Pressentimos paixões como paisagens
E cada corpo era um caminho.
Mas um se ergueu tomando tudo
E escorreram asas dos seus braços.

Florestas, pântanos e rios,


Viajámos imóveis debruçados,
Enquanto o céu brilhava nas janelas.

E a cidade partiu como um navio


Através da noite.
Eu chamei-te para ser a torre
Que viste um dia branca ao pé do mar.
Chamei-te para me perder nos teus caminhos.
Chamei-te para sonhar o que sonhaste.
Chamei-te para não ser eu:
Pedi-te que apagasses
A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei.
Mandei para o largo o barco atrás do vento
Sem saber se era eu o que partia.
Humilhei-me e exaltei-me contra o vento
Mas não houve terror nem sofrimento
Que à praia não trouxesse
Morto o vento.
Chamei por mim quando cantava o mar
Chamei por mim quando corriam fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.
As minhas mãos mantêm as estrelas,
Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
Arranco o mar do mar e ponho-o em mim
E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.
Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.

Desligo da minha alma a melodia


Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.
Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas.

Dia do mar no meu quarto — cubo


Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.

Dia do mar no ar, dia alto


Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
II
MULHERES À BEIRA-MAR

Confundindo os seus cabelos com os cabelos do vento, têm o corpo feliz de ser
tão seu e tão denso em plena liberdade.

Lançam os braços pela praia fora e a brancura dos seus pulsos penetra nas
espumas.

Passam aves de asas agudas e a curva dos seus olhos prolonga o interminável
rastro no céu branco.

Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente a virgindade de um mundo


que nasceu.

O extremo dos seus dedos toca o cimo de delícia e vertigem onde o ar acaba e
começa.

E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de ser tão verde.
Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos
meus passos.

Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um


momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e
atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas
do caminho.
Passam os carros e fazem tremer a casa
A casa em que estou só.
As coisas há muito já foram vividas:
Há no ar espaços extintos
A forma gravada em vazio
Das vozes e dos gestos que outrora aqui estavam.
E as minhas mãos não podem prender nada.

Porém eu olho para a noite


E preciso de cada folha.

Rola, gira no ar a tua vida,


Longe de mim…
Mesmo para sofrer este tormento de não ser
Preciso de estar só.

Antes a solidão de eternas partidas


De planos e perguntas,
De combates com o inextinguível
Peso de mortes e lamentações
Antes a solidão porque é completa.

Creio na nudez da minha vida.


Tudo quanto me acontece é dispensável.
Só tenho o sentimento suspenso de tudo
Com a eternidade a boiar sobre as montanhas.

Jardim, jardim perdido


Os nossos membros cercando a tua ausência…
As folhas dizem uma à outra o teu segredo,
E o meu amor é oculto como o medo.
GRÁFICO

Curva dos espaços, curva das baías,


Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?

II

Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais


Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

III

A mulher branca que a noite traz no ventre


Veio à tona das águas e morreu.

IV

Chego à praia e vejo que sou eu


O dia branco.
SALTIMBANCOS

Acenderam a luz dentro da casa


E as árvores tomaram vida humana.

Passado o muro, para além dos campos,


Ressoou o tambor dos saltimbancos.

Corpo de escamas como o de um peixe


Nas águas da noite cheias de correntes

Tem dois búzios do mar sobre os ouvidos,


Ouve, só para si, uma canção.
O VENTO

O vento sopra contra


As janelas fechadas

Na planície imensa
Na planície absorta
Na planície que está morta,

E os cabelos do ar ondulam loucos

Tão compridos que dão a volta ao mundo.


Sento-me ao lado das coisas
E bordo toda a noite a minha vida

Aqueles dias tecidos


Que tinham um ar de fantasia
Quando vieram brincar dentro de mim.

E o vento contra as janelas


Faz-me pensar que eu talvez seja um pássaro.
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,


Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Eis que o mundo de ti cai abolido
E tu ficas sozinho e muito longe
Com dois búzios do mar sobre os ouvidos
Ouvindo, só para ti, uma canção.

Assim as flores de dentro para fora


Se queimam sob o halo dos perfumes
E voltam para nós os olhos cegos
Estrangeiras a tudo no sabor
Duma substância angélica e terrível.
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Mal de te amar neste lugar de imperfeição


Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
NOCTURNO

Acordo quando os muros são o medo,


Acordo quando o tempo cai contado,
E no meu quarto entra o arvoredo,
E se desfolha ao longo dos meus membros.

Acordo quando a aurora nas paredes


Desenha nardos brancos e macios,
Acordo quando o sono vos convence
De que sois rios.
Eis que morreste. Mortalmente triste
Divaga a flor da aurora entre os teus dedos
E o teu rosto ficou entre as estátuas
Velado até que o novo dia nasça.

Se nenhum amor pode ser perdido


Tu renascerás — mas quando?
Pode ser que primeiro o tempo gaste
A frágil substância do meu sono.
III
L’ÂGE D’AIRAIN

(Rodin)

Devagar, devagar, em frente à luz,


Carregado de sombras e de peso,
Arrancando o seu corpo da raiz.

No extremo dos seus dedos nasce um voo


No vértice do vento e da manhã
Uma asa vai — perdida dos seus dedos.
SIBILAS

Sibilas no interior dos antros hirtos


Totalmente sem amor e cegas,
Alimentando o vazio como um fogo
Enquanto a sombra dissolve a noite e o dia
Na mesma luz de horror desencarnada.

Trazer para fora o monstruoso orvalho


Das noites interiores, o suor
Das forças amarradas a si mesmas
Quando as palavras batem contra os muros
Em grandes voos cegos de aves presas
E agudamente o horror de ter as asas
Soa como um relógio no vazio.
AS MORTAS

Tudo foi breve e apenas começado.


Era grande demais para vir inteiro
Nos dias apressados e medidos
E adormeceram mal adormecidas.

Quem as via não via que eram elas


E elas não sabiam que era o tempo
Esse tocar ausente e inseguro
Por onde a sua vida lhes fugia.

Atentamente como se voltassem


Para ouvir as palavras nunca ouvidas
Encostam-se ao rumor familiar
Do vento nas janelas e das chuvas.

Nas suas campas cresce mais a erva


E as roseiras dão flor antes do tempo.
A brisa que partiu inquieta volta
E as ramagens no céu pairam, alheias.
SONETO À MANEIRA DE CAMÕES

Esperança e desespero de alimento


Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?


Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês — pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,


De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:


Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.
Ouve:
Como tudo é tranquilo e dorme liso;
Claras as paredes, o chão brilha,
E pintados no vidro da janela
O céu, um campo verde, duas árvores.
Fecha os olhos e dorme no mais fundo
De tudo quanto nunca floresceu.

Não toques nada, não olhes, não te lembres


Qualquer passo
Faz estalar as mobílias aquecidas
Por tantos dias de sol inúteis e compridos

Não te lembres, nem esperes.


Não estás no interior dum fruto:
Aqui o tempo e o sol nada amadurecem.
A FONTE

Ouve a fonte translúcida da quinta


Cercada de varandas onde a ausência
De alguém eterna mora e se debruça.
Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,


Que um só dos Teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu não quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.


Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a terra
Em Primavera feroz precipitado.
SEGUNDA PARTE
I
CORAL

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.
ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI

Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Vê como as espadas nascem evidentes


Sem que ninguém as erguesse — de repente.

Vê como os gestos se esculpem


Em geometrias exactas do destino.

Vê como os homens se tornam animais


E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.

Vê como pairam longamente os olhos


Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.

E todo o quarto jaz abandonado


Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.
Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro nocturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direcções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.
Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.

Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros


Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal
Dói-me o luar — branco pano que se rasga.
INTERVALO I

Eu só quero silêncio neste porto


Do mar vermelho, do mar morto

Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias

Quero ficar sozinha neste espanto


Dum tempo que perdeu a sua forma

Quero ficar sozinha nesta tarde


Em que as árvores verdes me abandonam.
OS PÁSSAROS

Ouve que estranhos pássaros de noite


Tenho defronte da janela:
Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens
O peito cor de aurora, o bico roxo.
Falam-se de noite, trazem
Dos abismos da noite lenta e quieta
Palavras estridentes e cruéis.
Cravam no luar as suas garras
E a respiração do terror desce
Das suas asas pesadas.
Neste dia de mar e nevoeiro
É tão próximo o teu rosto.

São os longos horizontes


Os ritmos soltos dos ventos
E aquelas aves
Que desde o princípio das estações
Fizeram ninhos e emigraram
Para que num dia inverso tu as visses.

Aquelas aves que tinham


Uma memória eterna do teu rosto
E voam sempre dentro do teu sonho
Como se o teu olhar as sustentasse.
Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.
NARDO

Nardo
Pesado e denso,
Opaco e branco,
Feito
De obscura respiração
E de nocturno embalo.
Luminosos os dias abolidos
Quando o meio-dia inclinava a sombra das colunas
E o azul do céu tomava em si a terra
Apaziguada no murmúrio
Das folhagens e dos deuses.
IFIGÉNIA

Ifigénia levada em sacrifício,


Entre os agudos gritos dos que a choram,
Serenamente caminha com a luz,
E o seu rosto voltado para o vento,
Como vitória à proa de um navio,
Intacto destrói todo o desastre.
Nos últimos terraços dos espaços
Sobre os ventos imóveis e calados
Dorme.

Nem a Primavera derramada


Nem o terror e o caos que a terra gera
Nem a sombra vermelha dos corpos mutilados
Atravessam
As barreiras de silêncio que o separam.

Tem o rosto voltado ao infinito


Um rosto perfeito de traços imutáveis.
Nem frio, nem calor, nem ar, nem água
O alimentam.

Respiram unicamente o seu segredo


O seu segredo secreto para sempre

E duas fontes correm dos seus olhos fechados.


MORTA

Morta,
Como és clara,
Que frescura ficou entre os teus dedos…

És uma fonte,
Com pedras brancas no fundo,
És uma fonte que de noite canta
E silenciosamente
Vêm peixes de prata à tona de água.

Morta como és clara,


E florida…

És a brisa
Que num gesto de adeus passa nas folhas,
És a brisa que leva os perfumes e os entorna,
És os passos leves da brisa
Quando nas ruas não passa mais ninguém!

És um ramo de tília onde o silêncio floresce,


És um lago onde as imagens se inquietam,
És a secreta nostalgia duma festa
Que nos jardins murmura.
Cantando
Com as mãos deslizando pelos muros
Passas colhendo
O sangue vermelho e maduro das amoras
Vais e vens
Solitária e transparente
E a memória das coisas te acompanha.
Morta como és clara,
E perdida!

És a meia-noite da noite,
És a varanda voltada para o vento,
És uma pena solitária e lisa.

As sombras recomeçam a dançar,


O perfume das algas enche o ar
E as ramagens encostam-se às janelas:

Suaves cabelos de pena tem a brisa.


Sozinha passas no fim das avenidas.
Não mostras o teu rosto,
Passas de costas com um vestido branco.

Como tu és leve e doce como um sono!


O sopro da noite enche-se de angústia
E de mim sobem palavras solitárias:

És o perfume de infância que há nas rochas,


És o vestido de infância que há nos campos,
És a pena de infância que há na noite.
Subitamente
Agarro perco a forma do teu rosto:

Como tu és fresca!
Passas e dos teus dedos correm fontes.
Como tu és leve,
Mais leve que uma dança!

Mal chegaste, mal voltaste, mal te vi


Já no fundo dos caminhos te extinguiste:

Areia lisa e branca que nenhum passo pisa


Pena lisa
Angústia fonte fresca e brisa.
II
Longe e nítidos caminham os caminhos
Duma aventura perdida.
Próxima a brisa
Abre-se no ar.

É o azul e o verde e o fresco duma idade


Morta mas que regressa
Com os seus claros cavalos de cristal
Que se vão esbarrar no horizonte.
Dai-me o sol das águas azuis e das esferas
Quando o mundo está cheio de novas esculturas
E as ondas inclinando o colo marram
Como unicórnios brancos.
Tu dormes embalado nos rochedos
E aos meus ouvidos vem falar o vento.
Escuto, busco, chamo e não respondes,
E todo o mundo se tornou fantasma.

Estou fechada, suspensa, prisioneira


Queria voltar para fora, para o dia
Ressurgir, respirar, tornar a ver,
Mas todo o mundo se tornou fantasma.

E a voz do mar encheu o céu e a terra


Uma voz que está cheia e que se quebra
E nunca mais acaba.

Pássaros brancos cortam as janelas,


Anémonas cintilam nos rochedos:
Terror de estar sozinha e de escutar
Com este tempo morto entre os meus dedos.
INTERVALO II

Dai-me um dia branco, um mar de beladona


Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme


Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas


Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.


PRAIA

Os pinheiros gemem quando passa o vento


O sol bate no chão e as pedras ardem.

Longe caminham os deuses fantásticos do mar


Brancos de sal e brilhantes como peixes.

Pássaros selvagens de repente,


Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz


A sua fronte ornada de colunas.

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro


Baloiça nos pinheiros.
BARCOS

Dormem na praia os barcos pescadores


Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua

E a curva do seu bico


Rói a solidão.
PIRATA

Sou o único homem a bordo do meu barco.


Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros


E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,


A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
III
ESPERA-ME

Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas


Deixarei que o teu nome se perca repetido

Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.
A raiz da paisagem foi cortada.
Tudo flutua ausente e dividido,
Tudo flutua sem nome e sem ruído.
Ó Poesia — quanto te pedi!
Terra de ninguém é onde eu vivo
E não sei quem sou — eu que não morri
Quando o rei foi morto e o reino dividido.
Naquelas noites,
Enquanto o suor das árvores escorria,
A face dos anjos tornara-se evidente,
Como se a terra tivesse entrado em agonia.
Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
PENÉLOPE

Desfaço durante a noite o meu caminho.


Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.
Nós reconheceremos a mentira do sonho,
Se assim o queres, Senhor.
Nós quebraremos o vidro da miragem,
Nós quebraremos o arco-íris da aliança com as flores.
MÃOS

Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.
ÁRVORES

Árvores negras que falais ao meu ouvido,


Folhas que não dormis, cheias de febre,
Que adeus é este adeus que me despede
E este pedido sem fim que o vento perde
E esta voz que implora, implora sempre
Sem que ninguém lhe tenha respondido?…
E só então saí das minhas trevas:
Abri as minhas mãos como folhagens,
Intacta a luz brotava das paisagens,
Mas na doçura fantástica das coisas
As minhas mãos queimavam-se e morriam.

Dia perfeito, inteiro e luminoso,


Dia presente como a morte — luz
Trespassando os meus olhos de cegueira.
Cada voz, cada gesto, cada imagem
Na exaltação do sol se consumia.
IV
Que poema, de entre todos os poemas,
Página em branco?
Um gesto que se afaste e se desligue tanto
Que atinja o golpe de sol nas janelas.

Nesta página só há angústia a destruir


Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve — até que o pranto
De todas as palavras me liberte.
Tudo é nu e as estátuas ressuscitam
Silêncio na manhã sem tempo.
Extinção das vozes que se cruzam
E se perdem na agonia como o vento.

Estátuas lisas, puras, cegas,


Estátuas de gestos imprevisíveis
No ar sem movimento.
Poema de geometria e de silêncio
Ângulos agudos e lisos
Entre duas linhas vive o branco.
BARCO

Margens inertes abrem os seus braços,


Um grande barco no silêncio parte.
Altas gaivotas nos ângulos a pique,
Recém-nascida a luz, perfeita a morte.

Um grande barco parte abandonando


As colunas dum cais ausente e branco.
E o seu rosto busca-se emergindo
Do corpo sem cabeça da cidade.

Um grande barco desligado parte


Esculpindo de frente o vento norte
Perfeito o azul do mar, perfeita a morte
Formas claras e nítidas de espanto.
A praia lisa de Eurydice morta
As ondas arqueadas como cisnes
As espumas do mar escorrem sobre um vidro
Num gesto solitário passam as gaivotas.

Endymion ressurge dos destroços


Os pinheiros gemem na duna deserta
O lírio das areias desabrocha
O vento dobra os ramos da floresta.
POEMA PERDIDO

Porque eu trazia rios de frescura


E claros horizontes de pureza
Mas tudo se perdeu ante a secura
De combater em vão

E as arestas finas e vivas do meu reino


São o claro brilhar da solidão.
ROSTO

Rosto nu na luz directa.

Rosto suspenso, despido e permeável,


Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.

Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na angústia do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.

Rosto derivando lentamente,


Pressentimento que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem.

Longos raios de frio correm sobre o mar


Em silêncio ergueram-se as paisagens
E eu toco a solidão como uma pedra.

Rosto perdido
Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam.
A NINFA

Branca.
Branca era a ninfa,
Branca e prisioneira
E impaciente.
DANÇA

O quarto verde, os peixes da penumbra


Peso duplo do corpo no vazio
Gesto dilacerando os nós do frio.
Inventei a dança para me disfarçar.
Ébria de solidão eu quis viver.
E cobri de gestos a nudez da minha alma
Porque eu era semelhante às paisagens esperando
E ninguém me podia entender.
FINAL

Mas na janela o ângulo intacto duma espera


Resolve em si o dia liso.
NO TEMPO DIVIDIDO
POEMAS DE UM LIVRO
DESTRUÍDO
I

A memória longínqua de uma pátria


Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos
II
EURYDICE

Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido


Para que cercada sejas minha

Este é o canto do amor em que te falo


Para que escutando sejas minha

Este é o poema — engano do teu rosto


No qual eu busco a abolição da morte
III

As paredes são brancas e suam de terror


A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo é como eu fechado e interior
Não sei por onde o vento possa entrar

Toda esta verdura é um segredo


Um murmúrio em voz baixa para os mortos
A lamentação húmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites
IV

Na minha vida há sempre um silêncio morto


Uma parte de mim que não se pode
Nem desligar nem partir nem regressar
Aonde as coisas eram uma intimamente
Como no seio morno de uma noite
V
INVERNO

Parece que eternamente sobre a terra


Choverá desolação e frio
A mesma neve de horror desencarnada
A mesma solidão dentro das casas
VI

Por que será que não há ninguém no mundo


Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar
E todos a contarem o futuro
Como se fosse o único presente
Olhos criavam outras as imagens
Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança
VII

Não procures verdade no que sabes


Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
Onde nunca foi dito nenhum nome
VIII

Não te chamo para te conhecer


Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer


Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês


Um pouco de ti mesmo onde eu habite
IX

Como é estranha a minha liberdade


As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio pra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber
NO TEMPO DIVIDIDO
Assim os claros filhos do mar largo
Atingidos no sonho mais secreto
Caíram de um só golpe sobre a terra
E foram possuídos pela morte.
No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente.
A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.
TARDE

O que eu queria dizer-te nesta tarde


Nada tem de comum com as gaivotas.
DIA

Como um oásis branco era o meu dia


Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.
INTACTA MEMÓRIA

Intacta memória — se eu chamasse


Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.
Eu falo da primeira liberdade
Do primeiro dia que era mar e luz
Dança, brisa, ramagens e segredos
E um primeiro amor morto tão cedo
Que em tudo que era vivo se encarnava.
O ARCO DAS ESPUMAS

O mar rolou as suas ondas negras


Sobre as praias tocadas de infinito.
Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que disseres e que eu disser


Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho


Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento.
Puro espírito do êxtase e do vento
Que no silêncio da planície danças

Eu não quero tocar teu corpo de água


Nem quero possuir-te nem cantar-te
Pesa-me já demais a minha mágoa
Sem que seja preciso procurar-te.
PRAIA

As ondas desenrolam os seus braços


E brancas tombam de bruços.
AS ESTÁTUAS

Para as estátuas puras e concretas


Existe o movimento da manhã.

Tomam a luz nos dedos oferecidos


E o arco do céu saúda a sua face.

A claridade veste os seus vestidos


E nenhum gesto nelas é perdido.

As madrugadas escorrem dos seus ombros


E o vento poisa as tardes nos seus braços.
SAGA

Aos outros dei aquilo que não eram


E por isso depois me arrependi.
Um homem morto em tudo o que perdi —
E olhos que são meus e não me esperam.
PROMESSA

Na clara paisagem essencial e pobre


Viverei segundo a lei da liberdade
Segundo a lei da exacta eternidade.
POEMA DE AMOR
DE ANTÓNIO E DE CLEÓPATRA

Pelas tuas mãos medi o mundo


E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.
SONETO DE EURYDICE

Eurydice perdida que no cheiro


E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro


E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés nem na miragem


Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente


Como morta nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.
O sol e o dia brilham mas sem ti
Talvez não sejam mais o sol e o dia.
O sol e o dia agora
Estão lá onde o teu sorriso mora
E não aqui.

Como quem colhe flores tu serena


Vais colhendo sem chorar a nossa pena
Olhas por nós sem mágoa nem saudade
E o céu azul, a luz, as Primaveras
Habitam na perfeita claridade
Em que nos esperas.
NO TEMPO DIVIDIDO

E agora ó Deuses que vos direi de mim?


Tardes inertes morrem no jardim.
Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.
AS FLORES

Era preciso agradecer às flores


Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.
A ESTÁTUA

Nas suas mãos a voz do mar dormia


Nos seus cabelos o vento se esculpia

A luz rolava entre os seus braços frios


E nos seus olhos cegos e vazios
Boiava o rastro branco dos navios.
QUADRO

Indeciso ressurge do poente


Aureolado de espanto e de desastres
Em busca do seu corpo dividido

Todas as sombras se erguem das esquinas


E o seguem devagar nas ruas verdes
São como cães no rastro dos seus passos

Aberta a porta o quarto grave surge


E os espaços oscilam nas janelas.
SANTA CLARA DE ASSIS

Eis aquela que parou em frente


Das altas noites puras e suspensas.

Eis aquela que soube na paisagem


Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.
TÚMULO NOS ASTROS

Como és belo
Cercado de sete anéis como Saturno
Fechado no teu fogo mais secreto.

Como és belo
No coração do silêncio ilimitado,
Imutável e perfeito
De pura escuridão aureolado.

Já nenhum rosto mora no teu pensamento


De nenhum peso os teus gestos se alimentam
Nenhum acaso desvia
O teu olhar atento.
CAMINHO DA ÍNDIA

Ante o seu rosto pára a história


E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.

Coração atento em frente à linha lisa


Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exacto pressentimento.

II

Que no largo mar azul se perca o vento


E nossa seja a nossa própria imagem.

Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.

E os lemes quebrados dos capitães mortos


E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.
PRECE

Que nenhuma estrela queime o teu perfil


Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro


Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Eu contarei a beleza das estátuas —
Seus gestos imóveis ordenados e frios —
E falarei do rosto dos navios

Sem que ninguém desvende outros segredos


Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.
Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta


De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro


Um rosto voluntário que apesar
Do tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.
O POETA

O poeta é igual ao jardim das estátuas


Ao perfume do Verão que se perde no vento
Veio sem que os outros nunca o vissem
E as suas palavras devoraram o tempo.
MAR NOVO
I
Perfeito é não quebrar
A imaginária linha

Exacta é a recusa
E puro é o nojo.
É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro.
Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos

Foram talvez os anjos revoltados.


Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido

E em vão eu busco a tua face antiga


És sempre um deus que nunca tem um rosto

Por muito que eu te chame e te persiga.


ENCRUZILHADA

Onde é que as Parcas Fúnebres estão?


— Eu vi-as na terceira encruzilhada
Com um pássaro de morte em cada mão.
CANTE JONDO

Numa noite sem lua o meu amor morreu


Homens sem nome levaram pela rua
Um corpo nu e morto que era o meu.
MARINHEIRO SEM MAR

Longe o marinheiro tem


Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios


Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios

E ele vai baloiçando como um mastro


Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.

Nas confusas redes do seu pensamento


Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas


E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores


Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros


Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros

Porque o seu caminho foi perdido


O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais


Buscando a luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há nos cais

Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto


As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios


Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas.

E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

«Que é feito daquele


Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazio
De ondas brancas e fundas
E de verde frio?»

Ele não dormirá na areia lisa


Entre medusas, conchas e corais
Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno


E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.
DIA

Pela sua mão levou-me o dia.


Aérea e dispersa eu dançava
Enquanto a luz azul se dividia.

Escuros e longos eram


Os corredores vazios
O chão brilhava e dormia.

E pela sua mão levou-me o dia.

O mapa na parede desenhava


Verde e cor-de-rosa a geografia:
Aérea e dispersa eu vivia
No colo das viagens que inventava.

Outro rosto nascia


No interior das horas
Prisioneiro e velado
Por incertas demoras.

Das páginas dos livros escorriam


Antigas e solenes histórias
Como um rio meu coração descia
O curso das memórias.
E pela sua mão levou-me o dia.
O TEU ROSTO

Onde os outros puseram a mentira


Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte

Ficou o teu rosto que ninguém conhece


O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido.
A memória de ti calma e antiga
Habita os meus caminhos solitários
Enquanto o acaso vão me oferece os vários
Rostos da hora inimiga

Nem terror nem lágrimas nem tempo


Me separarão de ti
Que moras para além do vento.
A bela e pura palavra Poesia
Tanto pelos caminhos se arrastou
Que alta noite a encontrei perdida
Num bordel onde um morto a assassinou.
Profetas falsos vieram em teu nome
Anjos errados disseram que tu eras
Um poema frustrado
Na angústia sem razão das Primaveras

Porém eu sei que tu és a verdade


E és o caminho transparente e puro
Embora eu não te encontre e no obscuro
Mundo das sombras morra de saudade.
AS TRÊS PARCAS

As três Parcas que tecem os errados


Caminhos onde a rir atraiçoamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As três Parcas conhecem os maus fados.

Por nós elas esperam nos trocados


Caminhos onde cegos nos trocamos
Por alguém que não somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.

E nunca mais o doce vento aéreo


Nos levará ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistério

Será o nosso rosto conquistado


Nem nos darão os deuses o império
Que à nossa espera tinham inventado.
II
Assim em suas mãos nos troca a vida
E quem já nem em sonhos conhecemos
Longe se perde nos confins extremos
Da grande madrugada prometida

Assim em suas mãos nos troca a vida.


LIBERDADE

Aqui nesta praia onde


Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
AUSÊNCIA

Num deserto sem água


Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero


Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
MEDITAÇÃO DO DUQUE DE GANDIA
SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver


Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.


Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.
Ó Poesia sonhei que fosses tudo
E eis-me na orla vã abandonada
Uma por uma as ondas sem defeito
Quebram o seu colo azul de espuma
E é como se um poema fosse nada.
A ANÉMONA DOS DIAS

Aquele que profanou o mar


E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória

Disse que tinha ultrapassado a lei


Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias

Porém eu vi no chão suja e calcada


A transparente anémona dos dias.
O SOLDADO MORTO

Os infinitos céus fitam seu rosto


Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há-de beijar ninguém.

Tem as duas mãos côncavas ainda


De possessão, de impulso, de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.

E a luz, as horas, as colinas


São como pranto em torno do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.
Esquemáticos caminhos
De múltiplas esperas.
Que abandono divide
A minha alma em dois?

Dois que se combatem


Irmãos e diversos
Tão alheios que
Sem amor se conhecem.

Intacto rosto
Mas tão perdido agora
Na infinita noite
Do tempo que pára.

Esperança e demora
Entre duas luas
Caminhei suspensa.

No rosto dos barcos


Perdi os meus gestos
E o vento cortou
A minha face em dois
Rostos vãos e dispersos.
Ó náufragos azuis enrolados
Em colunas de sal e de corais
E algas verdes e mastros quebrados
Que gemem como pinhais.

Ó quanto vos vejo porque estais


Onde se vive sem memória alguma
E todo o pensamento e toda a posse
São desfeita espuma.
Não te ofenderei com poemas

Param os meus olhos quando penso em ti


Não farei do meu remorso um canto

Com árvores e céus mas sem poemas


Demasiado humano para poder ser dito
O teu mundo era simples e difícil
Quotidiano e límpido.
NÁUFRAGO

Agora morto oscilas


Ao sabor das correntes
Com medusas em vez de pupilas.

Agora reinas entre imagens puras


Em países transparentes e de vidro,
Sem coração e sem memória
Em todas as presenças diluído.

Agora liberto moras


Na pausa branca dos poemas.
Teu corpo sobe e cai em cada vaga,
Sem nome e sem destino
Na limpidez da água.
SEQUÊNCIA

A sua face transpôs os temporais


O vento azul rolou entre os seus braços

A penumbra subiu e rodeou


O seu rosto aceso as suas mãos iguais

Dos seus ombros nasceram as estátuas


E o gesto dos seus dedos
Encantou os navios

Baloiça um enforcado na baía


Mãos sem corpo levam castiçais

Uma cortina enrola-se na brisa


Uma porta bate e de repente
Um corredor fica vazio.
A APAIXONADA

Por um instante detém, ó noite, o gesto.


Suspende o cálice do seu rosto
Antes que ela o entorne
Na vida sem memória.

Mas já ela inclina o seu pescoço


Como uma onda que se vai quebrar
Sem que nenhum intervalo detivesse o tempo.
Espadas de morte bebem no seu peito.
Jaz branca fria e nua no seu leito.
Ninguém a deteve. Ficou a ressoar
Interminavelmente a sua queixa
Na desordem do ar.
Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para connosco


Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo.

Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento.

E que ninguém repita o seu nome proibido.


Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades


E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam.


III
PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não


Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados


Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem


E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos


E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
ELECTRA

Os muros da casa dos Manon escorrem sangue


E as árvores do jardim escorrem lágrimas.

O lago busca em vão o reflexo antigo duma infância


Que se tornou homens, mulheres, ódios e armas.

Numa janela aparecem duas mãos torcidas


E nos corredores ressoam as palavras

Da traição, da náusea, da mentira


E o tempo vestido de verde senta-se nas salas.

O rosto de Electra é absurdo.


Ninguém o pediu e não pertence ao jogo.
As suas mãos vingadoras destoam na conversa
Assustam a penumbra e ofendem o pecado.
MARINHEIRO REAL

Vem do mar azul o marinheiro


Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.
BIOGRAFIA

Tive amigos que morriam, amigos que partiam


Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
CORPO

Corpo serenamente construído


Para uma vida que depois se perde
Em fúria e em desencontro vivido
Contra a pureza inteira dos teus ombros.

Pudesse eu reter-te no espelho


Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes


Que desenhavam a linha dos teus flancos
Rodeados pelo ar agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa


Por sucessivas ondas construído
Em colunas assente como um templo.
POEMA INSPIRADO NOS PAINÉIS QUE
JÚLIO RESENDE DESENHOU PARA O MONUMENTO QUE DEVIA SER
CONSTRUÍDO EM SAGRES

Nenhuma ausência em ti cais da partida.


Movimento ritual, surdo rumor de búzios,
Alegria de ir ver o êxtase do mar
Com suas ondas-cães, seus cavalos,
Suas crinas de vento, seus colares de espuma,
Seus gritos, seus perigos, seus abismos de fogo.

Nenhuma ausência em ti cais da partida.


Impetuosas velas, plenitude do tempo,
Euforia desdobrando os seus gestos na hora luminosa
Do Lusíada que parte para o universo puro
Sem nenhum peso morto, sem nenhum obscuro
Prenúncio de traição sob os seus passos.

II
REGRESSO

Quem cantará vosso regresso morto


Que lágrimas, que grito, hão-de dizer
A desilusão e o peso em vosso corpo?

Portugal tão cansado de morrer


Ininterruptamente e devagar
Enquanto o vento vivo vem do mar

Quem são os vencedores desta agonia?


Quem os senhores sombrios desta noite
Onde se perde morre e se desvia
A antiga linha clara e criadora
Do nosso rosto voltado para o dia?
SEMI-RIMBAUD

Seu rosto é uma caverna


Onde frios ventos cantam

Passa rasgando o luar


E desesperando a noite

Pelas ruas oblíquas da cidade


Em madrugadas duvidosas
Constrói o mal com gestos cautelosos
E sonha a inversão total das coisas

Constrói o mal com gestos rigorosos


Lúcido de vício e de noitada
Íntegro como um poema
Completo lógico sem falha

A aurora desenha o seu rosto com os dedos


As suas órbitas iguais às das caveiras
Seu rosto voluntário e inventado
Magro de solidão verde de intensa
Vontade de negar e não ceder

De caminhar de mão dada com o nojo


De ser um espectro para terror dos vivos
E uma acusação escrita nas paredes.
CAIS

Para um nocturno mar partem navios,


Para um nocturno mar intenso e azul
Como um coração de medusa
Como um interior de anémona.
Naturalmente
Simplesmente
Sem destruição e sem poemas,
Para um nocturno mar roxo de peixes
Sem destruição e sem poemas
Assombrados por miríades de luzes
Para um nocturno mar vão os navios.
Vão.
O seu rouco grito é de quem fica
No cais dividido e mutilado
E destruído entre poemas pasma.
NOCTURNO DA GRAÇA

Há um rumor de bosque no pequeno jardim


Um rumor de bosque no canto dos cedros
Sob o íman azul da lua cheia
O rio cheio de escamas brilha.
Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.

Brilha a cidade dos anúncios luminosos


Com espiritismo bares cinemas
Com torvas janelas e seus torvos gozos
Brilha a cidade alheia.

Com seus bairros de becos e de escadas


De candeeiros tristes e nostálgicas
Mulheres lavando a loiça em frente das janelas
Ruas densas de gritos abafados
Castanholas de passos pelas esquinas
Viragens chiadas dos carros
Vultos atrás das cortinas
Cíclopes alucinados.

De igreja em igreja batem a hora os sinos


E uma paz de convento ali perdura
Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas
Com sua noite trémula de velas
Cheia de aventurança e de sossego.

Mas a cidade alheia brilha


Numa noite insone
De luzes fluorescentes
Numa noite cega surda presa
Onde soluça uma queixa cortada.

Sozinha estou contra a cidade alheia.


Comigo
Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua
Límpido e aceso
O silêncio dos astros continua.
LUAR

Toma-me ó noite em teus jardins suspensos


Em teus pátios de luar e de silêncio
Em teus adros de vento e de vazio.

Noite
Bagdad debruçada no teu rio
País dos brilhos e do esquecimento
Com teu rumor de cedros e teu lento
Círculo azul do tempo.
NOITE

Sozinha estou entre paredes brancas


Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas.
Ao Francisco

Porque nos outros há sempre qualquer nojo


Que me gela e me afasta
E em ti há sempre um pouco de mar largo
Que de olhos cegos atrás de ti me arrasta.
OS NAVEGADORES

Eles habitam entre um mastro e o vento.

Têm as mãos brancas de sal


E os ombros vermelhos de sol.

Os espantados peixes se aproximam


Com olhos de gelatina.

O mar manda florir seus roseirais de espuma.

No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
Que os astros altos indicam.
PASSAGEM

O êxtase do ar e a palavra do vento


Povoaram de ti meu pensamento.
És Tu que estás à transparência das cidades
Vê-se o Teu rosto para além dos bairros interditos.

O mal palpável próximo insistente


Parece tornar-Te evidente.

Sobe do destino uma sede de Ti.


Não somos só isto que se torce
Com as mãos cortadas aqui.
LUSITÂNIA

Os que avançam de frente para o mar


E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.
Na cidade da realidade encontrada e amada
Caminhei com a brisa pelas ruas
Havia muros brancos e janelas pintadas

As madressilvas floriam e brilhavam


Os limoeiros de folhas polidas
Caiu uma folha de nespereira sobre o tanque

E o tempo veio ao meu encontro confundindo


Os meus gestos e os teus nos seus
Eram mil e mil noites uma após outra surgindo
E o meu rosto flutuava entre a manhã e a tarde

E as esquinas ergueram as suas sombras azuis


Ao longo de um silêncio de árabe
E do Abril dos campos veio um perfume inteiro de searas
E quando abri a porta as estrelas surgiram

Na cidade da realidade encontrada e amada


O sol dá lentamente a volta às praças e aos quartos
Para varrer o chão e preparar a noite
Que é redonda azul e atenta
E a porta da cidade é feita de dois barcos

Oh quem dirá o verde o azul e o fresco


O hálito da água e o perfume do vento
Vê-se a manhã criar uma por uma cada coisa
Vê-se quebrar a onda da noite transparente.
BRISA

Que branca mão na brisa se despede?


Que palavra de amor
A noite de Maio em si recebe e perde?

Desenha-te o luar como uma estátua


Que no tempo não fica

Quem poderá deter


O instante que não pára de morrer?
NO POEMA

No poema ficou o fogo mais secreto


O intenso fogo devorador das coisas
Que esteve sempre muito longe e muito perto.
DEUS É NO DIA

Deus é no dia uma palavra calma


Um sopro de amplidão e de lisura.
O CRISTO CIGANO
A PALAVRA FACA

A palavra faca
De uso universal
A tornou tão aguda
O poeta João Cabral
Que agora ela aparece
Azul e afiada
No gume do poema
Atravessando a história
Por João Cabral contada.
I
O ESCULTOR E A TARDE

No meio da tarde
Um homem caminha:
Tudo em suas mãos
Se multiplica e brilha.

O tempo onde ele mora


É completo e denso
Semelhante ao fruto
Interiormente aceso.

No meio da tarde
O escultor caminha:
Por trás de uma porta
Que se abre sozinha
O destino espera.

E depois a porta
Se fecha gemendo
Sobre a Primavera.
II
O DESTINO

O destino eram
Os homens escuros
Que assim lhe disseram:

— Tu esculpirás Seu rosto


de morte e de agonia.
III
BUSCA

Pelos campos fora


Caminhava sempre
Como se buscasse
Uma presença ausente.

«Onde estás tu morte?


Não te posso ver:
Neste dia de Maio
Com rosas e trigo
É como se tu não
Vivesses comigo.

A ti me enviaram
És tu meu destino
Mas diante da vida
Eu não te imagino

A ti me enviaram
E sei que me esperas
Mas só oiço a verde
Voz das Primaveras

Onde a tua imagem


Onde o teu retrato
Na manhã tão limpa?

Onde a tua imagem


Onde o teu retrato
Nas tardes serenas
Nos frutos redondos
Nas crianças puras
Nas mulheres criando
Com seus gestos vida?

Onde a tua imagem


Ou o teu retrato
Nas coisas que eu amo?

Onde a tua voz


Ou a tua presença
Na voz deste dia?

Aqui onde habito


Há o sol a pique
O mar descoberto
A noite redonda
O instante infinito.

É verdade que passas


Pela cidade às vezes
Nos caixões de chumbo:

Mas viro o meu rosto


Pois não te compreendo
És um pesadelo
Uma coisa inventada
Que o vento desmente
Com suas mãos frescas
E a luz logo apaga.

Onde a tua imagem


Ou o teu retrato
Nas coisas que eu vejo?

É verdade que passas


Pela cidade às vezes
Com teu vestido roxo
Entre velas e incenso:
Mas eu te renego e o vento te nega
Com suas mãos frescas
E eu não te pertenço.
Meu corpo é do sol
Minh’alma é da terra.

Onde está teu rosto


Ou a raiz de ti
Onde procurar-te?

E como te amarei
Tanto que em meus dedos
Tua imagem floresça
E entre as minhas mãos
O teu rosto apareça?»
IV
O ENCONTRO

Redonda era a tarde


Sossegada e lisa
Na margem do rio
Alguém se despia.

Sozinho o cigano
Sozinho na tarde
Na margem do rio

Seu corpo surgia


Brilhante da água
Semelhante à lua
Que se vê de dia

Semelhante à lua
E semelhante ao brilho
De uma faca nua.

Redonda era a tarde.


V
O AMOR

Não há para mim outro amor nem tardes limpas


A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.

E noite onde sem fim me afundarei.


VI
A SOLIDÃO

A noite abre os seus ângulos de lua


E em todas as paredes te procuro

A noite ergue as suas esquinas azuis


E em todas as esquinas te procuro

A noite abre as suas praças solitárias


E em todas as solidões eu te procuro

Ao longo do rio a noite acende as suas luzes


Roxas verdes azuis.

Eu te procuro.
VII
TREVAS

O que foi antigamente manhã limpa


Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face me é oculta.
VIII
CANÇÃO DE MATAR

Do dia nada sei

O teu amor em mim


Está como o gume
De uma faca nua
Ele me atravessa
E atravessa os dias
Ele me divide

Tudo o que em mim vive


Traz dentro uma faca
O teu amor em mim
Que por dentro me corta

Com uma faca limpa


Me libertarei
Do teu sangue que põe
Na minha alma nódoas

O teu amor em mim


De tudo me separa
No gume de uma faca
O meu viver se corta
Do dia nada sei
E a própria noite azul
Me fecha a sua porta

Do dia nada sei


Com uma faca limpa
Me libertarei.
IX
MORTE DO CIGANO

Brancas as paredes viram como se mata


Viram o brilho fantástico da faca
A sua luz de relâmpago e a sua rapidez.
X
APARIÇÃO

Devagar devagar um homem morre


Escura no jardim a noite se abre
A noite com miríades de estrelas
Cintilantes límpidas sem mácula

Veloz veloz o sangue foge


Já não ouve cantar o moribundo
Sua interior exaltação antiga
Uma ferida no seu flanco o mata

Somente em sua frente vê paredes


Paredes onde o branco se retrata
Seus olhos devagar ficam de vidro
Uma ferida no seu flanco o mata

Já não tem esplendor nem tem beleza


Já não é semelhante ao sol e à lua
Seu corpo já não lembra uma coluna
É feito de suor o seu vestido
A sua face é dor e morte crua

E devagar devagar o rosto surge


O rosto onde outro rosto se retrata
O rosto desde sempre pressentido
Por aquele que ao viver o mata

Seus traços seu perfil mostra


A morte como um escultor
Os traços e o perfil
Da semelhança interior.
XI
FINAL

Assim termina a lenda


Daquele escultor:
Nem pedra nem planta
Nem jardim nem flor
Foram seu modelo.

Sevilha/Lisboa, 1959
LIVRO SEXTO
I
AS COISAS
ALGARVE

A luz mais que pura


Sobre a terra seca

Eu quero o canto o ar a anémona a medusa


O recorte das pedras sobre o mar

Um homem sobe o monte desenhando


A tarde transparente das aranhas

A luz mais que pura


Quebra a sua lança
AS CIGARRAS

Com o fogo do céu a calma cai


No muro branco as sombras são direitas
A luz persegue cada coisa até
Ao mais extremo limite do visível
Ouvem-se mais as cigarras do que o mar
PESCADOR

Irmão limpo das coisas


Sem pranto interior
Sem introversão

Este que está inteiro em sua vida


Fez do mar e do céu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo
BARCOS

Um por um para o mar passam os barcos


Passam em frente de promontórios e terraços
Cortando as águas lisas como um chão

E todos os deuses são de novo nomeados


Para além das ruínas dos seus templos
REINO

Reino de medusas e água lisa


Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa
GRUTA DO LEÃO

Para além da terra pobre e desflorida


Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca
Feita de puro interior
E povoada
De cava ressonância e sombra e brilho
A CONQUISTA DE CACELA

As praças fortes foram conquistadas


Por seu poder e foram sitiadas
As cidades do mar pela riqueza

Porém Cacela
Foi desejada só pela beleza
MUSA

Musa ensina-me o canto


Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto


O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto


Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão


De madeira lavada
E do seu perfume
Que me atravessava)
Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto

Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como


A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta


O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto


Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto


Que me corta a garganta
MANHÃ

Como um fruto que mostra


Aberto pelo meio
A frescura do centro

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro
PÁTIOS

Pelos dias quadrados corre a brisa


Que nos seus corredores nunca se engana
A VAGA

Como toiro arremete


Mas sacode a crina
Como cavalgada

Seu próprio cavalo


Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia
CAMINHO DA MANHÃ

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As
cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado
que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e
enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em
frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por
uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão
em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e
brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara
que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que
fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o
largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o
branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não
encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do
mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares
em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e
brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas
como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é
profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes
pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e
as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio
ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita
então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce
devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e
leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que
morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de
salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não
são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima
de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos,
hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e
caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes
nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às
casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol.
Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o
brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto
o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus
invisível.
AS GRUTAS

O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas


numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do
homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol
olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu
mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só
solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser
criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o
imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um
sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede
novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu
muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim.
Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas
água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a
este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou
redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do
círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola
branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o
mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza,
terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as
imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os
meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a
arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz
suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus
dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e
verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam
e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar
escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho
ver o que jamais se viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se
vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são
águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor
neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de
medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge
em suas portas.
Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e
limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória
matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de
gratidão com a cara encostada contra as pedras.
RESSURGIREMOS

Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos


E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta

Ressurgiremos ali onde as palavras


São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os contornos
Na aguda luz de Creta

Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo


São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta

Pois convém tornar claro o coração do homem


E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta
II
A ESTRELA
A ESTRELA

Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram


Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa


Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei


«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito


Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra


De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco


Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram


Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima


De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava


Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão


Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto


Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto»
NO POEMA

Transferir o quadro o muro a brisa


A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína


O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa
EIS-ME

Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente


Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não
moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente
DESPEDIDA

Na estação na tarde o fumo


O rumor o vaivém as faces
Anónimas
Criam no interior do amor um outro cais

As lágrimas
O fogo da minha alma as queima antes que brotem
MEIO DA VIDA

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado


Porque o meio-dia
Em seu despido fulgor rodeia a terra

A casa compõe uma por uma as suas sombras


A casa prepara a tarde
Frutos e canções se multiplicam
Nua e aguda
A doçura da vida
O POEMA

O poema me levará no tempo


Quando eu não for a habitação do tempo
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá


Às searas

Sua passagem se confundirá


Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes


Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará


Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas


De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
FELICIDADE

Pela flor pelo vento pelo fogo


Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia — por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta
TRADUZIDO DE KLEIST

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante


E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos
LABIRINTO

Sozinha caminhei no labirinto


Aproximei meu rosto do silêncio e da treva
Para buscar a luz dum dia limpo
TEMPO

Tempo
Tempo sem amor e sem demora
Que de mim me despe pelos caminhos fora
CAMPO

Estou só nos campos


A doce noite murmura
A lua me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima
A PURA FACE

¿Como encontrar-te depois de ter perdido


Uma por uma as tardes que encontrei
Ó ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido


Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera


No infinito silêncio a pura face
Pr’além de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce
INSCRIÇÃO

Quando eu morrer voltarei para buscar


Os instantes que não vivi junto do mar
PARA ATRAVESSAR CONTIGO
O DESERTO DO MUNDO

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo


Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro


Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste


E aprendi a viver em pleno vento
FERNANDO PESSOA

Teu canto justo que desdenha as sombras


Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo

Criaram teu poema arquitectura


E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas
CARTA AOS AMIGOS MORTOS

Eis que morrestes — agora já não bate


O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
— O olhar não atravessa esta distância —
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente


Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna
E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e de meu canto
OS ASPHODELOS

Colhe pálida sombra os asphodelos


Roxos do prado onde caminha a vida
Cujo destino foi só não ser vivida
Põe coroas de pranto em teus cabelos
PRIMAVERA

As heras de outras eras água pedra


E passa devagar memória antiga
Com brisa madressilva e Primavera
E o desejo da jovem noite nua
Música passando pelas veias
E a sombra das folhagens nas paredes
Descalço o passo sobre os musgos verdes
E a noite transparente e distraída
Com seu sabor de rosa densa e breve
Onde me lembro amor de ter morrido
— Sangue feroz do tempo possuído
DIA

Meu rosto se mistura com o dia


Nuvens telhados ramagens e Dezembro
Apaixonada estou dentro do tempo
Que me abriga com canto e com imagens

Tão abrigada estou dentro da hora


Que nem lamento já a tarde antiga
Tudo se torna presente e se demora
Será que o dia me pede que eu o diga?
A PEQUENA ESTÁTUA

Presença ritual e tutelar


Companheira da sombra desenho do silêncio
INSTANTE

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas


Fundadas no silêncio
CIDADE

As ameaças quase visíveis surgem


Nascem
Do exausto horizonte mortas luas
E estrangulada sou por grandes polvos
Na tristeza das ruas
O HOSPITAL E A PRAIA

E eu caminhei no hospital
Onde o branco é desolado e sujo
Onde o branco é a cor que fica onde não há cor
E onde a luz é cinza

E eu caminhei nas praias e nos campos


O azul do mar e o roxo da distância
Enrolei-os em redor do meu pescoço
Caminhei na praia quase livre como um deus

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor


Nem me lembrei de ti bebendo o vento
O vento era vento e a pedra pedra
E isso inteiramente me bastava

E nos espaços da manhã marinha


Quase livre como um deus eu caminhava

E todo o dia vivi como uma cega

Porém no hospital eu vi o rosto


Que não é pinheiral nem é rochedo
E vi a luz como cinza na parede
E vi a dor absurda e desmedida
III
AS GRADES
PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro


Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência


Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas


Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

— Pedra rio vento casa


Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar


E o exílio se inscreve em pleno tempo
PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO
DAS SETE PARTIDAS

(poema escrito na noite de 17-12-1961, e interrompido pela notícia da entrada dos soldados indianos em
Goa)

Nunca choraremos bastante nem com pranto


Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte
PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos


O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
EXÍLIO

Quando a pátria que temos não a temos


Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
DATA

(à maneira d’Eustache Deschamps)


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira


Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro


Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça
A VESTE DOS FARISEUS

Era um Cristo sem poder


Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos


Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado


No centro duma cidade
Insultos o perseguiam
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus


E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria
A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia
Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus
AS PESSOAS SENSÍVEIS

As pessoas sensíveis não são capazes


De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira


À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»


Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem
O SUPER-HOMEM

Onde está ele o super-homem? Onde?


— Encontrei-o na rua ia sozinho
Não via a dor nem a pedra nem o vento
Sua loucura e sua irrealidade
Lhe serviam de espelho e de alimento
CÍRCULO

Num círculo se move


Num círculo fechado

Sua morte o envolve


Como uma borboleta

Seus verdugos o cercam


Como quem cerca o toiro

Em sua volta não vê


Nenhuma porta aberta

Grandes panos de sangue


Sobre os olhos lhe estendem

A sua hora estava


— Como se diz — marcada

Pegador não houve


Nem pega de caras

E as portas estavam
Sobre o grito fechadas
BABILÓNIA

Com pátios interiores e com palmeiras


Com muros de tijolo com pequenos tanques
Com fontes com estátuas com colunas
Com deuses desenhados nas paredes de barro

Com corredores e silêncios e penumbras


Com vestidos de linho tocando a pedra pura
Com cinamomo e nardo
Com jarras donde corria azeite e vinho

Com multidões com gritos com mercados


Com esteiras claras sob os pés pintados
Com escribas com magos e adivinhos
Com prisioneiros com servos com escravos
Com lucidez feroz com amargura
Com ciência e arte
Com desprezo
Babilónia nasceu de lodo e limo
O VELHO ABUTRE

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas


A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
CANTAR

Tão longo caminho


Quanto passo andado
E todas as portas
Encontrou fechadas
Tão longo o caminho
Como vai sozinho
Sua sombra errante
Desenha as paredes
Sob o sol a pino
Sob as luas verdes
A água de exílio
É brilhante e fria
Por estradas brancas
Ou por negras ruas
Quanto passo andado
Por amor da terra
País ocupado
Onde o medo impera
Num quarto fechado
As portas se fecham
Os olhos se fecham
Fecham-se janelas
As bocas se calam
Os gestos se escondem
Quando ele pergunta
Ninguém lhe responde
Só insultos colhe
Solidão vindima
O rosto lhe viram
E não querem vê-lo
Seu longo combate
Encontra silêncio
Silêncio daqueles
Que em sombras tornados
Em monstros se tornam
Naquela cidade
Tão poucos os homens
GEOGRAFIA
I
INGRINA
INGRINA

O grito da cigarra ergue a tarde a seu cimo e o perfume do orégão invade a


felicidade. Perdi a minha memória da morte da lacuna da perca do desastre. A
omnipotência do sol rege a minha vida enquanto me recomeço em cada coisa.
Por isso trouxe comigo o lírio da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do
primeiro dia — e vi o mar reflectido no seu primeiro espelho. Ingrina.
É esse o tempo a que regresso no perfume do orégão, no grito da cigarra, na
omnipotência do sol. Os meus passos escutam o chão enquanto a alegria do
encontro me desaltera e sacia. O meu reino é meu como um vestido que me
serve. E sobre a areia sobre a cal e sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu
recomeço o mundo.
MANHÃ

Na manhã recta e branca do terraço


Em vão busquei meu pranto e minha sombra

O perfume do orégão habita rente ao muro


Conivente da seda e da serpente

No meio-dia da praia o sol dá-me


Pupilas de água mãos de areia pura

A luz me liga ao mar como a meu rosto


Nem a linha das águas me divide

Mergulho até meu coração de gruta


Rouco de silêncio e roxa treva

*
O promontório sagra a claridade
A luz deserta e limpa me reúne
DE PEDRA E CAL

De pedra e cal é a cidade


Com campanários brancos
De pedra e cal é a cidade
Com algumas figueiras

De pedra e cal são


Os labirintos brancos
E a brancura do sal
Sobe pelas escadas

De pedra e cal a cidade


Toda quadriculada
Como um xadrez jogado
Só com pedras brancas

Um xadrez só de torres
E cavalos-marinhos
Que sacodem as crinas
Sob os olhos das moiras

Caminha devagar
Porque o chão é caiado
MUNDO NOMEADO
OU DESCOBERTA DAS ILHAS

Iam de cabo em cabo nomeando


Baías promontórios enseadas:
Encostas e praias surgiam
Como sendo chamadas

E as coisas mergulhadas no sem-nome


Da sua própria ausência regressadas
Uma por uma ao seu nome respondiam
Como sendo criadas
SENHORA DA ROCHA

Tu não estás como Vitória à proa


Nem abres no extremo do promontório as tuas asas
Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados
Nem desdobras o teu manto na escultura do vento
Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura

Mas no extremo do promontório


Em tua pequena capela rouca de silêncio
Imóvel muda inclinas sobre a prece
O teu rosto feito de madeira e pintado como um barco

O reino dos antigos deuses não resgatou a morte


E buscamos um deus que vença connosco a nossa morte
É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo

Tu sabes que para nós existe sempre


O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
Os deuses de mármore afundam-se no mar
Homens e barcos pressentem o naufrágio

E por isso não caminhas cá fora com o vento


No grande espaço liso da luz branca
Nem habitas no centro da exaltação marinha
O antigo círculo dos deuses deslumbrados

Mas rodeada pela cal dos pátios e dos muros


Assaltada pelo clamor do mar e a veemência do vento
Inclinas o teu rosto

Imóvel muda atenta como antena


II
PROCELÁRIA
PROCELÁRIA

É vista quando há vento e grande vaga


Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade


Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais


Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece imagem justa


Para quem vive e canta no mau tempo
CIDADE DOS OUTROS

Uma terrível atroz imensa


Desonestidade
Cobre a cidade

Há um murmúrio de combinações
Uma telegrafia
Sem gestos sem sinais sem fios

O mal procura o mal e ambos se entendem


Compram e vendem

E com um sabor a coisa morta


A cidade dos outros
Bate à nossa porta
EU ME PERDI

Eu me perdi na sordidez de um mundo


Onde era preciso ser
Polícia agiota fariseu
Ou cocote

Eu me perdi na sordidez do mundo


Eu me salvei na limpidez da terra

Eu me busquei no vento e me encontrei no mar


E nunca
Um navio da costa se afastou
Sem me levar
ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto


Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos


Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto


De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem


O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente


Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
OS AVIÕES

Na noite de luar o avião passa como um prodígio


Rápido inofensivo e violento

Ele enche de clamor o sossego branco dos muros onde moro


Ele enche de espanto
O halo azul da noite exterior

Mas depressa passa o pássaro vibrante


De novo tomba a lua sobre as flores
E o cipreste contempla o seu próprio silêncio

Porém noutro lugar noutro silêncio


Bandos passaram em voos de terror
E a morte nasceu dos ovos que deixaram

A lua não encontrou depois as flores


Ninguém morava dentro dos muros brancos
E a noite em vão buscava o seu cipreste
VELÓRIO RICO

O morto está sinistro e amortalhado


Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados
TÚMULO DE LORCA

Em ti choramos os outros mortos todos


Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca


Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída


De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa


Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado
NÉON

Luz descerrada e crua


Que não rodeia as coisas
Mas as desventra
De fora para dentro

Espaço de uma insónia sem refúgio

Tudo é como um interior violado


Como um quarto saqueado

Luz de máquina e fantasma


III
A NOITE E A CASA
QUADRADO

Deixai-me com a sombra


Pensada na parede
Deixai-me com a luz
Medida no meu ombro
Em frente do quadrado
Nocturno da janela
ESCUTO

Escuto mas não sei


Se o que oiço é silêncio
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo


O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem


É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
BACH SEGÓVIA GUITARRA

A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho


A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar

A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada
VELA

Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada

Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada

Em redor da chama
Que a menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda

Enquanto a noite antiga


Imensa e exterior
Tece seus prodígios
E ordena seus milénios
De espaço e de silêncio
De treva e de esplendor
A LUZ E A CASA

Em redor da luz
Com sombras e brancos
A casa se procura

Minhas mãos quase tocam


O brando respirar
Da sua atenção pura
A NOITE E A CASA

A noite reúne a casa ao seu silêncio


Desde o alicerce desde o fundamento
Até à flor imóvel
Apenas se ouve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispersa se divide


Tudo está como o cipreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos


ESPERA

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa

É então que se vê o passar do silêncio

Navegação antiquíssima e solene


IV
DUAL
NOVEMBRO

A respiração de Novembro verde e fria


Incha os cedros azuis e as trepadeiras
E o vento inquieta com longínquos desastres
A folhagem cerrada das roseiras
SIGNO

Meu signo é o da morte porém trago


Uma balança interior uma aliança
Da solidão com as coisas exteriores
DE UM AMOR MORTO

De um amor morto fica


Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano

De um amor morto não fica


Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora

Pois um amor morto não deixa


Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora
DUAL

Altas marés no tumulto me ressoam


E paredes de silêncio me reflectem
O VAZIO DESENHAVA DESDE SEMPRE

O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto


Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência
ASSIM O AMOR

Assim o amor
Espantando meu olhar com teus cabelos
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilavam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos

Em vão busquei eterna luz precisa


A FLAUTA

No canto do quarto a sombra tocou sua pequena flauta


Foi então que me lembrei de cisternas e medusas
E do brilho mortal da praia nua

Estava o anel da noite solenemente posto no meu dedo


E a navegação do silêncio continuou sua viagem antiquíssima
NO DESERTO

Metade de mim cavalo de mim mesma eu te domino


Eu te debelo com espora e rédea

Para que não te percas nas cidades mortas


Para que não te percas
Nem nos comércios de Babilónia
Nem nos ritos sangrentos de Nínive

Eu aponto o teu nariz para o deserto limpo


Para o perfume limpo do deserto
Para a sua solidão de extremo a extremo

Por isso te debelo te combato te domino


E o freio te corta a espora te fere a rédea te retém

Para poder soltar-te livre no deserto


Onde não somos nós dois mas só um mesmo
No deserto limpo com seu perfume de astros
Na grande claridade limpa do deserto
No espaço interior de cada poema
Luz e fogo perdidos mas tão perto
Onde não somos nós dois mas só um mesmo
NO QUARTO

No quarto roemos o sabor da fome


A nossa imaginação divaga entre paredes brancas
Abertas como grandes páginas lisas
O nosso pensamento erra sem descanso pelos mapas
A nossa vida é como um vestido que não cresceu connosco
O FILHO PRÓDIGO

Banido da tua herança


Dispersaste as tuas forças contra os enganos da terra
Comendo o pão magro das sementeiras devastadas —
Até que viraste os teus passos para o avesso:
Filho pródigo que nenhum pai esperava em seu regresso
CAMINHO

Na marcha pelo deserto eu sabia


Que alguns morreriam

Mas pensava sob o céu redondo


— Onde
O limite do meu amor da minha força?

E eis que morro antes do próximo oásis


Com a garganta seca e o peso
Ilimitado do sol sobre os meus ombros

Eis que morro cega de brancura


Cansada de mais para avistar miragens

Eu sabia
Que alguém
Antes do próximo oásis morreria
JANELA

Janela rente ao mar e rente ao tempo


— Ó mãos poisadas sobre um Junho antigo —
De ano em ano de hora em hora
Caminho para a frente e cega me persigo

Quem me consolará do meu corpo sepultado?


CASA

A antiga casa que os ventos rodearam


Com suas noites de espanto e de prodígio
Onde os anjos vermelhos batalharam

A antiga casa de inverno em cujos vidros


Os ramos nus e negros se cruzaram
Sob o íman dum céu lunar e frio

Permanece presente como um reino


E atravessa meus sonhos como um rio
AS NEREIDES

Pudesse eu reter o teu fluir, ó quarto


Reter para sempre o teu quadrado branco
Denso de silêncio puro
E vida atenta

Reter o brilho
Da Cassiopeia em frente da janela
Reter a queda
Das ondas sobre a areia
E habitar para sempre o teu espelho

Que dos meus ombros jamais tombasse o tempo


Marinho misterioso e antigo
Assim como as nereides
Não perderão jamais seu manto de água
PORTAS DA VILA

A casa está na tarde


Actual mas nos espelhos
Há o brilho febril de um tempo antigo
Que se debate emerge balbucia

II

Com um barulho de papel o vento range na palmeira


O brilho das estrelas suspende nosso rosto
Com seu jardim nocturno de paixão e perfume
A casa nos invade e nos rodeia

III

A casa vê-se de longe porque é branca


Mas sombrio
É o quarto atravessado pelo rio

IV

A casa jaz com mil portas abertas


O interior dos armários é obscuro e vazio
A ausência começa poisando seus primeiros passos
No quarto onde poisei o rosto sobre a lua
PALMEIRAS GEOMETRIA

Palmeiras geometria
São meu alimento
Secura silêncio
São minha bebida
E a infinita ausência
É a minha vida
A funda a secreta
Com sabor a pedra
E perfume de vento
ATELIER DO ESCULTOR
DO MEU TEMPO

Uma nudez geométrica


Implanta nos espaços sucessivos
O vazio propício à aparição dos fantasmas

É aqui que as estátuas mostram


A necessidade sem discurso dos seus gestos

Exiladas da vida e da cidade


Exiladas do tempo
Elas convocam
O fragmento a mutilação os destroços

O peixe que navega sem perturbar o silêncio


OS ESPELHOS

Os espelhos acendem o seu brilho todo o dia


Nunca são baços
E mesmo sob a pálpebra da treva
Sua lisa pupila cintila e fita
Como a pupila do gato
Eles nos reflectem. Nunca nos decoram

Porém é só na penumbra da hora tardia


Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio
Que à tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo frio e vítreo
ALI, ENTÃO

Ali então em pleno mundo antigo


À sombra do cipreste e da videira
Olhando o longo tremular do mar
Num silêncio de luas e de trigo

(Como se a morte a dor o tempo e a sorte


Não nos tivessem nunca acontecido)

Em nossas mãos a pausa há-de poisar


Como o luar que poisa nas videiras
E em frente ao longo tremular do mar
Num perfume de vinho e de roseiras
A sombra da videira há-de poisar
Em nossas mãos e havemos de habitar
O silêncio das luas e do trigo
No instante ameaçado e prometido

E os poemas serão o próprio ar


— Canto do ser inteiro e reunido —
Tudo será tão próximo do mar
Como o primeiro dia conhecido
V
MEDITERRÂNEO
ACAIA

Aqui despi meu vestido de exílio


E sacudi de meus passos a poeira do desencontro
NO GOLFO DE CORINTO

No Golfo de Corinto
A respiração dos deuses é visível:
É um arco um halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas
Como um céu mais intenso e deslumbrado

E também o cheiro dos deuses invade as estradas


É um cheiro a resina a mel e a fruta
Onde se desenham grandes corpos lisos e brilhantes
Sem dor sem suor sem pranto
Sem a menor ruga de tempo

E uma luz cor de amora no poente se espalha


É o sangue dos deuses imortal e secreto
Que se une ao nosso sangue e com ele batalha
SUNION

Na nudez da luz (cujo exterior é o interior)


Na nudez do vento (que a si próprio se rodeia)
Na nudez marinha (duplicada pelo sal)

Uma a uma são ditas as colunas de Sunion


ELECTRA

a Aspassia Papathanassiou
O rumor do estio atormenta a solidão de Electra
O sol espetou a sua lança nas planícies sem água
Ela solta os seus cabelos como um pranto
E o seu grito ecoa nos pátios sucessivos
Onde em colunas verticais o calor treme
O seu grito atravessa o canto das cigarras
E perturba no céu o silêncio de bronze
Das águias que devagar cruzam seu voo
O seu grito persegue a matilha das fúrias
Que em vão tentam adormecer no fundo dos sepulcros
Ou nos cantos esquecidos do palácio

Porque o grito de Electra é a insónia das coisas


A lamentação arrancada ao interior dos sonhos dos remorsos e dos crimes
E a invocação exposta
Na claridade frontal do exterior
No duro sol dos pátios

Para que a justiça dos deuses seja convocada


EPIDAURO

O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o


país do exterior onde cada coisa é:

trazida à luz
trazida à liberdade da luz
trazida ao espanto da luz

Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o


palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é insaciável.
Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício sangrento dos
nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do mar. Pode ser que
tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos. Então dirá que é o
abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é duplo. Que pode
tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode dobrar-se que pode
desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é circular. Mas de súbito verás
que é um homem que traz em si próprio a violência do toiro.

Só poderás ser liberta aqui na manhã d’Epidauro. Onde o ar toca o teu rosto
para te reconhecer e a doçura da luz te parece imortal. A tua voz subirá sozinha
as escadas de pedra pálida. E ao teu encontro regressará a teoria ordenada das
sílabas — portadoras limpas da serenidade.
TOLON

Um mar horizontal corta os espelhos


E um sol de sal cintila sobre a mesa
Habitamos o ar livre rente ao dia
Rente ao fruto rente ao vinho rente às águas
E sob o peso leve da folhagem
ANTINOOS

Sob o peso nocturno dos cabelos


Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro


Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim


Como passamos através da sombra
VILA ADRIANA

A ânfora cria à sua roda um espaço de silêncio


Como aquela
Tarde de outono sob os pinheiros da Vila Adriana

Tempo da fina areia agudamente medido


Os séculos derrubaram estátuas e paredes
Eu destruída serei por breves anos

Mas de repente recupero a antiga


Divindade do ar entre as colunas
POMPEIA — CASA DE MENANDRO

A serenidade de um verso latino


Claro e medido
Povoa o tempo de clepsidra — ou o escorrido
Tempo de areia fina

Paira — apesar da morte e da ruína —


Uma ciência tão atenta do vivido
Que a alegria do penúltimo momento
Ergue na jovem luz a sua taça

E toco na sombra uma frescura de vinha


CREPÚSCULO DOS DEUSES

Um sorriso de espanto brotou nas ilhas do Egeu


E Homero fez florir o roxo sobre o mar
O Kouros avançou um passo exactamente
A palidez de Athena cintilou no dia

Então a claridade dos deuses venceu os monstros nos frontões de todos os


templos
E para o fundo do seu império recuaram os Persas

Celebrámos a vitória: a treva


Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos
O grito rouco do coro purificou a cidade

Como golfinhos a alegria rápida


Rodeava os navios
O nosso corpo estava nu porque encontrara
A sua medida exacta
Inventámos: as colunas de Sunion imanentes à luz
O mundo era mais nosso cada dia

Mas eis que se apagaram


Os antigos deuses sol interior das coisas
Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas
Somos alucinados pela ausência bebidos pela ausência
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:

«Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado
Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte melodiosa
A água que fala calou-se»*
* Resposta do Oráculo de Delphos a Oríbase, médico de Juliano, o Apóstata (Cedrenus, Resumo da
História).
TERMOLI

Quase lua cheia e baixa sobre o mar


Magnética e brilhante nos panos pretos da noite
Foi então que abordámos em margens de silêncio
E uma pequena cidade surgiu antiga e cor de bronze
ÍTACA

Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi


Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento

O sol rente ao mar te acordará no intenso azul


Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
UM POETA CLÁSSICO

Um poeta clássico
Fará da ausência uma parte do seu jogo:
Prumo esteio coluna
Combate esculpido nas métopas do templo

Una e múltipla
Cada encontro a recomeça:
Agudo gume quando a música ressoa
Venenosa rosa do Junho mais antigo

Um poeta clássico
Fará da ausência uma parte do seu jogo
Nem integrada nem assumida
Apenas companheira
Segunda mão poisada sobre a mesa
Mão esquerda

Companheira serena
Das coisas serenas:
Parede livro fruto
E fogosa condutora dos desastres
Que nos esperam em seus pátios lisos
VI
BRASIL OU DO OUTRO
LADO DO MAR
DESCOBRIMENTO

Um oceano de músculos verdes


Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos


Que sacudiam suas crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo


Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados
MANUEL BANDEIRA

Este poeta está


Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar

Relembrando
O antigo jovem tempo tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
«As três mulheres do sabonete Araxá»
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó


Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do «Trem de ferro»
E o «Poema do beco»

Tempo antigo lembrança demorada


Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa


Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado
BRASÍLIA

a Gelsa e Álvaro Ribeiro da Costa

Brasília
Desenhada por Lúcio Costa Niemeyer e Pitágoras
Lógica e lírica
Grega e brasileira
Ecuménica
Propondo aos homens de todas as raças
A essência universal das formas justas

Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem


Nítida como Babilónia
Esguia como um fuste de palmeira
Sobre a lisa página do planalto
A arquitectura escreveu a sua própria paisagem

O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número

No centro do reino de Ártemis


— Deusa da natureza inviolada —
No extremo da caminhada dos Candangos
No extremo da nostalgia dos Candangos
Athena ergueu sua cidade de cimento e vidro
Athena ergueu sua cidade ordenada e clara como um pensamento
E há no arranha-céus uma finura delicada de coqueiro
POEMA DE HELENA LANARI

Gosto de ouvir o português do Brasil


Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal

Quando Helena Lanari dizia o «coqueiro»


O coqueiro ficava muito mais vegetal
VII
NO POEMA
POESIA DE INVERNO

«O inverno do nosso descontentamento»


Shakespeare, Ricardo III

Poesia de inverno: poesia do tempo sem deuses


Escolha
Cuidadosa entre restos

Poesia das palavras envergonhadas


Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas


Quem ousaria dizer:

Seda nácar rosa

Árvore abstracta e desfolhada


No inverno da nossa descrença

II

Pinças assépticas
Colocam a palavra-coisa
Na linha do papel
Na prateleira das bibliotecas

III

Quem ousaria dizer:

Seda nácar rosa

Porque ninguém teceu com suas mãos a seda — em longos


dias em compridos fusos e com finos sedosos dedos

E ninguém colheu na margem da manhã a rosa — leve e


pesada faca de doçura

Pois o rio já não é sagrado e por isso nem sequer é rio

E o universo não brota das mãos de um deus do gesto e do


sopro de um deus da alegria e da veemência de um deus

E o homem pensando à margem do destino procura arranjar


licença de residência na caserna provisória dos
sobreviventes

IV

Meu coração busca as palavras do estio


Busca o estio prometido nas palavras
ESCRITA DO POEMA

A mão traça no branco das paredes


A negrura das letras
Há um silêncio grave
A mesa brilha docemente o seu polido

De certa forma
Fico alheia
DA TRANSPARÊNCIA

Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência


No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres
POEMA

A minha vida é o mar o Abril a rua


O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro


Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações


Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar


São minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade


Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente


Cada dia preparada
DUAL
I
A CASA
A CASA

A casa que eu amei foi destroçada


A morte caminha no sossego do jardim
A vida sussurrada na folhagem
Subitamente quebrou-se não é minha
A PEQUENA PRAÇA

A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça


Naquele outono em que a tua morte se organizava meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica das pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitas e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti
MORTE

Que triângulo ou círculo poderá cercar-te


Para que te detenhas demorada e minha
Para que não desças toda pela escada
EURYDICE

O teu rosto era mais antigo do que todos os navios


No gesto branco das tuas mãos de pedra
Ondas erguiam seu quebrar de pulso
Em ti eu celebrei minha união com a terra
ERAS BELA

Eras bela como a pintura de Mantegna


Onde cada coisa mostra a nítida atenção
Do olhar soletrando a eternidade
Eras bela como a pintura de Mantegna
Decifrando a escrita da ressurreição
EM NOME

Em nome da tua ausência


Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei
II
DELPHICA
I (FRISO ARCAICO)

«Eu vos saúdo, ó filhas dos corcéis de pés de tempestade.»


Simónides de Keos

Patas dos corcéis da tempestade


Tão concisas tão duras e tão finas
Puro rigor de espigas — arquitrave
Medida amor e fúria se combinam

Delphos, Maio de 1970


II

Esse que humano foi como um deus grego


Que harmonia do cosmos manifesta
Não só em sua mão e sua testa
Mas em seu pensamento e seu apego

Àquele amor inteiro e nunca cego


Que emergia da praia e da floresta
Na secreta nostalgia de uma festa
Trespassada de espanto e de segredo

Agora jaz sem fonte e sem projecto


Quebrou-se o templo actual antigo e puro
De que ele foi medida e arquitecto

Python venceu Apolo num frontão obscuro


Quebrada foi desde seu eixo recto
A construção possível do futuro
III (ANTINOOS)

Noite diurna
Até à mais funda limpidez do instinto
Sob os teus cabelos em anel sombria vinha

Corpo terrestre e solene como o azul mais aceso da montanha


O quase imóvel fogo dos teus beiços
Pesa como o fruto pleno no rumor de brisa da árvore

Porta aberta para toda a natureza


É através de ti que os meus rios caminham como veias
Novilho de testa curta no secreto silêncio do bosque

Sobre os teus ombros poisa terrível o meio-dia


Do divino celebrado no terrestre
IV

Desde a orla do mar


Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparência das águas
Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construção possível

Desde a sombra do bosque


Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla

Desde a sombra do bosque desde a orla do mar

Caminhei para Delphos


Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado

Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído


As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga
A língua torceu-se na boca de Sibila
A água que primeiro eu escutei já não se ouvia

Só Antinoos mostrou o seu corpo assombrado


Seu nocturno meio-dia

Delphos, Maio de 1970


V (O AURIGA)

A nudez dos pés que o escultor modelou com amor e minúcia


Mostra a pura nudez do teu estar na terra
A longa túnica em seu recto cair diz o austero
Aprumo de prumo da tua juventude
O pulso fino a concisa mão divina dizem
O pensamento rápido e subtil como Athena
E a vontade sensível e serena:
A ti mesmo te guias como a teus cavalos

Os beiços de seiva inchados como fruto


Dizem o teu amor da vida extasiado e grave
E sob as pestanas de bronze nos olhos de esmalte e de ónix
Fita-nos a tua paixão tranquila
O teu projecto
De em ti mesmo celebrares a ordem natural do divino
O número imanente
VI (ANTINOOS DE DELPHOS)

Tua face taurina tua testa baixa


Teus cabelos em anel que sacudias como crina
Teu torso inchado de ar como uma vela
Teu queixo redondo tua boca pesada
Tua pesada beleza
Teu meio-dia nocturno
Tua herança dos deuses que no Nilo afogaste
Tua unidade inteira com teu corpo
Num silêncio de sol obstinado
Agora são de pedra no museu de Delphos
Onde montanhas te rodeiam como incenso
Entre o austero Auriga e a arquitrave quebrada

Delphos, Maio de 1970


VII

De novo em Delphos o Python emerge


Do sono sob os séculos contido
As águias afastaram o seu voo
Só as abelhas zumbem ainda no flanco da montanha seu vozear de bronze
Sob negras nuvens e mórbidos estios o Python emerge
A ordem natural do divino é deslocada
De novo cresce o poder do monstruoso
De novo cresce o poder do «Apodrecido»
De novo o corpo de Python é reunido
Nenhum deus respira no respirar das coisas
As máquinas crescem o Python emerge
Sob o húmido interior da terra movem-se devagar os seus anéis
Ventos da Ásia em sua boca trazem
O estridente clamor da fúria tantra
Tudo vai rolar na violência do instante
Nenhuma coisa é construída em pedra
III
HOMENAGEM
A RICARDO REIS
I

Não creias, Lídia, que nenhum estio


Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez


E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.


O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.


Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.
II

Escuta, Lídia, como os dias correm


Fingidamente imóveis,
E à sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos tornou atentos.
III

Ausentes são os deuses mas presidem.


Nós habitamos nessa
Transparência ambígua.

Seu pensamento emerge quando tudo


De súbito se torna
Solenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:


Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.
IV

Falamos junto à luz. Lá fora a noite


Imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
Em mim se inscreve como se durasse.
V

Faz da tua vida em frente à luz


Um lúcido terraço exacto e branco,
Docemente cortado
Pelo rio das noites.

Alheio o passo em tão perdida estrada


Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência.
VI

Irmão do que escrevi


Distante me desejo
Como quem ante o quadro
Pra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dança
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidia cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face de toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.
VII

Eros, Neera, sacudiu os seus


Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros-Neera-Antinoos
Irrompe no terraço.

Palmeiras nas ruínas de Palmira.


Eros poisou seu rosto no teu ombro,
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.
IV
DUAL
DUAL

Dois cavalos a par eu conduzia


Não me guiava a mim mas meus cavalos

E no país de espanto e de tumulto


Em mim se desuniu o que eu unia
MANHÃ DE OUTONO
NUM PALÁCIO DE SINTRA

Um brilho de azulejo e de folhagem


Povoa o palácio que um jovem rei trocou
Pela morte frontal no descampado

Ele não quis ouvir o alaúde dos dias


Seu ombro sacudiu a frescura das salas
Sua mão rejeitou o sussurro das águas

Mas o pequeno palácio é nítido — sem nenhum fantasma —


Sua sombra é clara como a sombra de um palmar
No seu pátio canta um alvoroço de início
Em suas águas brilha a juventude do tempo
MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
OU O ITINERÁRIO INELUTÁVEL

Minúcia é o labirinto: muro por muro


Pedra contra pedra livro sobre livro
Rua após rua escada após escada
Se faz e se desfaz o labirinto
Palácio é o labirinto e nele
Se multiplicam as salas e cintilam
Os quartos de Babel roucos e vermelhos
Passado é o labirinto: seus jardins afloram
E do fundo da memória sobem as escadas
Encruzilhada é o labirinto e antro e gruta
Biblioteca rede inventário colmeia —
Itinerário é o labirinto
Como o subir dum astro inelutável —
Mas aquele que o percorre não encontra
Toiro nenhum solar nem sol nem lua
Mas só o vidro sucessivo do vazio
E um brilho de azulejos íman frio
Onde os espelhos devoram as imagens

Exauridos pelo labirinto caminhamos


Na minúcia da busca na atenção da busca
Na luz mutável: de quadrado em quadrado
Encontramos desvios redes e castelos
Torres de vidro corredores de espanto

Mas um dia emergiremos e as cidades


Da equidade mostrarão seu branco
Sua cal sua aurora seu prodígio
UM PÁLIDO INVERNO

Um pálido inverno escorria nos quartos


Brancos de silêncio como a névoa
Um frio azul brilhava no vidro das janelas
As coisas povoavam os meus dias
Secretas graves nomeadas
AS FOTOGRAFIAS

Era quase no inverno aquele dia


Tempo de grandes passeios
Confusamente agora recordados —
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava —
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre
O perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias
A FONTE

Com voz nascente a fonte nos convida


A renascermos incessantemente
Na luz do antigo sol nu e recente
E no sussurro da noite primitiva
INICIAL

O mar azul e branco e as luzidias


Pedras — O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida
ESTRADA

Passo muito depressa no país de Caeiro


Pelas rectas da estrada como se voasse
Mas cada coisa surge nomeada
Clara e nítida
Como se a mão do instante a recortasse
HÁ MUITO

Há muito que deixei aquela praia


De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vaza
FECHEI À CHAVE

Fechei à chave todos os meus cavalos


A chave perdi-a no correr de um rio
Que me levou para o mar de longas crinas
Onde o caos recomeça — incorruptível
A RAPARIGA E A PRAIA

Uma rapariga vai como uma espiga


São cor de areia suas pernas finas
Seu íris é azul verde e cinzento

Uma rapariga vai como uma espiga


Carnal e cereal intacta cerrada
Mas nela enterra sua faca o vento

E tudo espalha com suas mãos o vento


OS DIAS DE VERÃO

Os dias de verão vastos como um reino


Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa


O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível


Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo


MUSA

Aqui me sentei quieta


Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto


Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente
V
ARQUIPÉLAGO
Eis aqui o país da imanência sem mácula
O reino que te reúne
Sob o rumor de folhagem que há nos deuses
EM HYDRA, EVOCANDO
FERNANDO PESSOA

Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra


(E foi pelo som do cabo a descer que eu soube que ancorava)
Saí da cabine e debrucei-me ávida
Sobre o rosto do real — mais preciso e mais novo do que o imaginado

Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto


Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto de uma ilha grega
Murmurei o teu nome
O teu ambíguo nome

Invoquei a tua sombra transparente e solene


Como esguia mastreação de veleiro
E acreditei firmemente que tu vias a manhã
Porque a tua alma foi visual até aos ossos
Impessoal até aos ossos
Segundo a lei de máscara do teu nome

Odysseus — Persona

Pois de ilha em ilha todo te percorreste


Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa
Até às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias
O casario de Hydra vê-se nas águas
A tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco
E vem comigo pelas ruas onde procuro alguém

Imagino que viajasses neste barco


Alheio ao rumor secundário dos turistas
Atento à rápida alegria dos golfinhos
Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos
Estendido à popa sob o voo incrível
Das gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas

Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde esteve o mar
Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas
Disse-me que tinha conhecido todos os deuses
E que tinha corrido as sete partidas
O seu rosto era belo e gasto como o rosto de uma estátua roída pelo mar

Odysseus

Mesmo que me prometas a imortalidade voltarei para casa


Onde estão as coisas que plantei e fiz crescer
Onde estão as paredes que pintei de branco

Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua


Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua
Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é olhado por um deus

Aquilo que o olhar de um deus tornou impetuosamente presente —


Na manhã de Hydra
No café da praça em frente ao cais vi sobre as mesas
Uma disponibilidade transparente e nua
Que te pertence

O teu destino deveria ter passado neste porto


Onde tudo se torna impessoal e livre
Onde tudo é divino como convém ao real

Hydra, Junho de 1970


O MINOTAURO

Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar

Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro


Na antiquíssima juventude do dia

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu


Só bebi retsina tendo derramado na terra a parte que pertence aos deuses

De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua

Devastada era eu própria como a cidade em ruína


Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega

Pinturas ondas colunas e planícies


Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos
Palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar de sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e terror
Imanentes ao dia —
Caminhei no palácio dual de combate e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu


O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro

Mas cresce como flor daqueles cujo ser


Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne
E esta é a dança do ser

Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minóica
São feitos de barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga


De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas —
Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra

Outubro de 1970
O POETA TRÁGICO

No princípio era o labirinto


O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado
O TEMPLO DE ATHENA APHAIA

O templo de Athena Aphaia é claro doirado e terrestre:


Espiga de trigo
Erguida para o céu nos píncaros de Egina

O templo de Athena Aphaia é claro doirado e terrestre:


Raparigas
Erguidas como espigas nos píncaros de Egina

O templo de Athena Aphaia em sua áspera doçura cereal


É claro doirado e terrestre como raparigas de trigo
Que os deuses transformaram em colunas
Junto do mar nos píncaros de Egina

Egina, Julho de 1970


O EFEBO

Claro e esguiamente medido como a amphora


Como a amphora
Ele contém um vinho intenso e resinado
A lucidez da sua forma oculta a embriaguez
A sua claridade conduz-nos ao encontro da noite
A sua rectidão de coluna preside à imanência dos desastres
ARIANE EM NAXOS

Tu Teseu que abandonadas amadas


Junto de um mar inteiramente azul
Invocavam deixadas
No deserto fulgor de Junho e Sul

Junto de um mar azul de rochas negras


Porém Dionysos sacudiu
Seus cabelos azuis sobre os rochedos
Dionysos pantera surgiu

E pelo Deus tocado renasceu


Todo o fulgor de antigas primaveras
Onde serei ou fui por fim ser eu
Em ti que dilaceras
LAMENTAÇÃO DE ADRIANO
SOBRE A MORTE DE ANTINOOS

Não escreverei mais o meu nome em letras gregas sobre a cera das tabuinhas
Porque estás morto
E contigo morreu o meu projecto de viver a condição divina
OS GREGOS

Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante


Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga
A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo
O meandro do rio o fogo solene da montanha
E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre
Emergiam em consciência que se vê
Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia —
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas —
Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece
E também à treva interior por que somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho
VI
EM MEMÓRIA
EM MEMÓRIA

Por Goa sacrificado


Foi morto e foi esquecido

Malhas que o império tece


Mesmo depois de perdido
CAXIAS 68

Luz recortada nesta manhã fria


Muros e portões chave após chave
O meu amor por ti é fundo e grave
Confirmado nas grades deste dia

Fevereiro de 1968
A PAZ SEM VENCEDOR
E SEM VENCIDOS

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos


A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência


Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos


Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos


CAMÕES E A TENÇA

Irás ao Paço. Irás pedir que a tença


Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram


Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou seu ser inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram


Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto

Irás ao Paço irás pacientemente


Pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente


RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoço tão fino


Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente


Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
CATARINA EUFÉMIA

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça


E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente

Pois não deste homem por ti


E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo


Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

Porque eras a mulher e não somente a fêmea


Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua


MARIA NATÁLIA TEOTÓNIO PEREIRA

Aquela que tanto amou


O sol e o vento da canção
Agora jaz no silêncio terrestre
Oculta na ressurreição

Porque em seu viver nascia


Porque estando era procura
Sua imagem permanece
Não passada mas futura

Sempre que rio e confio


E passo além do meu pranto
A sua presença irrompe
Erguida em nós como canto

Aquela que agora jaz


Como semente no chão
Ergue no vento seu riso
Transpõe a destruição
O NOME DAS COISAS
I
1972-73
CÍCLADES

(evocando Fernando Pessoa)

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença


O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse

Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo

(Onde ainda no mármore das mesas


Buscamos o rastro frio das tuas mãos
— O imperceptível dedilhar das tuas mãos)

Esquartejado pelas fúrias do não-vivido


À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência —
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro

Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava
O incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém dissesses tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso

Porém obstinada eu invoco — ó dividido —


O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste

Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto


Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Que os deuses não te deram nem quiseste

Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece


Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisas
Nas praias onde há um espelho voltado para o mar

Aqui o enigma que me interroga desde sempre


É mais nu e veemente e por isso te invoco:
«Porque foram quebrados os teus gestos?
Quem te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no chão os teus segredos?»

Invoco-te como se chegasses neste barco


E poisasses os teus pés nas ilhas
E a sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti

No estio deste lugar chamo por ti


Que hibernaste a própria vida como o animal na estação adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra melhor ver recua
E quiseste a distância que sofreste

Chamo por ti — reúno os destroços as ruínas os pedaços —


Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros

Porém aqui as deusas cor de trigo


Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência

Pudesse o instante da festa romper o teu luto


Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda

Como se o teu navio te esperasse em Thasos


Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse
1972
PARA ARPAD SZENES

Assim a luz ao madrugar liberta


E una se multiplica
Para inventar o espanto o alvoroço a festa
Do reino revelado

Oásis e palmar — distância justa


Atenta invenção do que foi dado
O pintor pinta no tempo respirado
Reconhece o mundo como um rosto amado

Pinta as longas extensões as longas lisas linhas


O caminhar comprido da terra e suas crinas

Pinta o quadro dentro do qual o quadro


Se tece malha a malha como em tear a teia
O outro quadro do quadro convocador convocado
Pinta o bicho egípcio os dedos da palmeira

Assim a luz ao madrugar liberta


A ternura funda nossa aliança com as coisas
Eis o mito solar a fina mão do trigo o bicho grego

O amor que move o sol e os outros astros


— Como o Dante Alighieri disse
Move e situa o quarto o dia o quadro
CHE GUEVARA

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas


A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo


Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

Lisboa, 1972
GUERRA OU LISBOA 72

Partiu vivo jovem forte


Voltou bem grave e calado
Com morte no passaporte

Sua morte nos jornais


Surgiu em letra pequena
É preciso que o país
Tenha a consciência serena
GRÉCIA 72

De novo os Persas recuarão para os confins do seu império


Afundados em distância confundidos com o vento
De novo o dia será liso sobre a orla do mar
Nada encobrirá a pura manhã da imanência
SOROR MARIANA — BEJA

Cortaram os trigos. Agora


A minha solidão vê-se melhor
COMO O RUMOR

Como o rumor do mar dentro de um búzio


O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto
SUA BELEZA

Sua beleza é total


Tem a nítida esquadria de um Mantegna
Porém como um Picasso de repente
Desloca o visual

Seu torso lembra o respirar da vela


Seu corpo é solar e frontal
Sua beleza à força de ser bela
Promete mais do que prazer
Promete um mundo mais inteiro e mais real
Como pátria do ser
«FERNANDO PESSOA»
OU «POETA EM LISBOA»

Em sinal de sorte ou de desgraça


A tua sombra cruza o ângulo da praça
(Trémula incerta impossessiva alheia
E como escrita de lápis leve e baça)
E sob o voo das gaivotas passa
Atropelada por tudo quanto passa

Em sinal de sorte ou de desgraça

Lisboa, 1972
O PALÁCIO

Era um dos palácios do Minotauro


— O da minha infância para mim o primeiro —
Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)

Estátuas escadas veludo granito


Tílias o cercavam de música e murmúrio
Paixões e traições o inchavam de grito

Espelhos ante espelhos tudo aprofundavam


Seu pátio era interior era átrio
As suas varandas eram por dentro
Viradas para o centro
Em grandes vazios as vozes ecoavam
Era um dos palácios do Minotauro
O da minha infância — para mim o vermelho

Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro


A prata brilhava o vidro luzia
Tudo tilintava tudo estremecia
De noite e de dia

Era um dos palácios do Minotauro


— O da minha infância para mim o primeiro —
Ali o tumulto cego confundia
O escuro da noite e o brilho do dia
Ali era a fúria o clamor o não-dito
Ali o confuso onde tudo irrompia
Ali era o Kaos onde tudo nascia
TORSO

Torcendo o torso virava o volante da escavadora


Ao cair da tarde num Setembro do século XX
Na estrada que vai de Patras para Atenas

Combatia no poente sua beleza helenística


As massas musculares inchadas pelo esforço
Construíam o tumulto de clarão e sombra
Que dobra os corpos dos deuses já perdidos
Dos frisos de Pérgamo

Pois também no poente onde eu habito


Os deuses são vencidos
PARÁFRASE

«Antes ser na terra escravo de um escravo


Do que ser no outro mundo rei de todas as sombras»
Homero, Odisseia

Antes ser sob a terra abolição e cinza


Do que ser neste mundo rei de todas as sombras
II
1974-75
LAGOS I

«Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme l’autre Lagos»


Senghor

Em Lagos
Virada para o mar como a outra Lagos
Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor:
A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza
É uma arte poética e uma forma de honestidade
Acorda em mim a nostalgia de um projecto
Racional limpo e poético

Os ditadores — é sabido — não olham para os mapas


Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões
O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos
Jovens corpos mortos ao longo das extensões

Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil


Aceitar o confuso o disforme a ocultação

Na nitidez de Lagos onde o visível


Tem o recorte simples e claro de um projecto
O meu amor da geometria e do concreto
Rejeita o balofo oco da degradação

Na luz de Lagos matinal e aberta


Na praça quadrada tão concisa e grega
Na brancura da cal tão veemente e directa
O meu país se invoca e se projecta

Lagos, 20 de Abril de 1974


25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava


O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
REVOLUÇÃO

Como casa limpa


Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início


Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar


Interior de um povo

Como página em branco


Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

27 de Abril de 1974
NESTA HORA

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda


Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto


Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade


E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade


Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor


Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar


Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
— Sob o ausente olhar silente de atenção —

Para construir a festa do terrestre


Na nudez de alegria que nos veste

20 de Maio de 1974
COM FÚRIA E RAIVA

Com fúria e raiva acuso o demagogo


E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada


Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início


O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo


Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Junho de 1974
PROJECTO I

O longo muro alentejano e branco


O desejo de limpo e de lisura
Aqui na casa térrea a arquitectura
Tem a clareza nua de um projecto
REVOLUÇÃO — DESCOBRIMENTO

Revolução isto é: descobrimento


Mundo recomeçado a partir da praia pura
Como poema a partir da página em branco
— Katharsis emergir verdade exposta
Tempo terrestre a perguntar seu rosto
ENQUANTO LONGE DIVAGAS

Enquanto longe divagas


E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
— Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
— Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
— Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
— Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II
II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono


É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece tua alegria


— Tua jovem rijeza de arbusto —
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso

Junho de 1974
BREVE ENCONTRO

Este é o amor das palavras demoradas


Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida
LIBERDADE

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa


Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha

Sílaba por sílaba


O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
A CASA TÉRREA

Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre

Então construirás a tua casa na planície costeira


A meia distância entre montanha e mar
Construirás — como se diz — a casa térrea —
Construirás a partir do fundamento
RETRATO DE MULHER

Algo de cereal e de campestre


Algo de simples em sua claridade
Algo sorri em sua austeridade
ESTEIRA E CESTO

No entrançar de cestos ou de esteira


Há um saber que vive e não desterra
Como se o tecedor a si próprio se tecesse
E não entrançasse unicamente esteira e cesto

Mas seu humano casamento com a terra


O REI DE ÍTACA

A civilização em que estamos é tão errada que


Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco


E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado
A PALAVRA

Heraclito de Epheso diz:

«O pior de todos os males seria


A morte da palavra»

Diz o provérbio do Malinké:

«Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento


Mas não pode
Enganar-se na sua parte de palavra»
LAGOS II

Lagos onde reinventei o mundo num verão ido


Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente

Lagos que digo como passado agora


Como verão ido absurdamente ausente
Quase estranho a mim e nunca tido

II

Foi um país que eu encontrei de frente


Desde sempre esperado e prometido
O puro dom de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente

III
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
— Como pode meu ser ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?

IV

Ou poderemos Abril ter perdido


O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?

Será que vamos paralelamente


Relembrar e chorar como um verão ido
O país linear e transparente

E sua luz de prumo e de projecto?

1975
OS ERROS

A confusão a fraude os erros cometidos


A transparência perdida — o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos

Deverá tudo passar a ser passado


Como projecto falhado a abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

1975
CADERNO I

Quando me perco de novo neste antigo


Caderno de capa preta de oleado —
Que um dia rasguei com fúria e que um amigo
Folha a folha recolou com vagar e paciência —

Tudo me dói ainda como faca e me corta


Pois diante de mim estão como sussurro e floresta
As longas tardes as misturadas noites
Onde divago e divagam incessantemente
Os venenosos perfumes mortais da juventude

E dói-me a luz como um jardim perdido


CADERNO II

Quando me perco de novo neste antigo


Caderno de capa preta de oleado
Que um dia rasguei com fúria e desespero
E que um amigo recolou com amor e paciência

De novo se ergue em minha frente a clara


Parede cal do quarto matinal
Virado para o mar e onde o poente
Se afogueava denso e transparente
E a sonâmbula noite se azulava

Ali o tempo vivido foi tão vivo


Que sempre à própria morte sobrevive
E cada dia julgo que regressa
Seu esplendor de fruto e de promessa
SEPARADOS FOMOS

Separados fomos por cítaras e canto


E pelos longos poemas silabados
E entre nós dois deitaram-se paisagens
Que nos mantinham imóveis e distantes

Embora o fogo secreto das palavras


E a veemência do canto e das imagens
Embora a paixão das noites consteladas
E o nevoeiro tocando a nossa face

Separados fomos por cítaras e canto


Como outros por prisões ou por espadas
DIA

Mergulho no dia como em mar ou seda


Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda
O MINOTAURO

Assim o Minotauro longo tempo latente


De repente salta sobre a nossa vida
Com veemência vital de monstro insaciado
A PAIXÃO NUA

A paixão nua e cega dos estios


Atravessou a minha vida como rios
EXÍLIO

Exilámos os deuses e fomos


Exilados da nossa inteireza
OÁSIS

Penetraremos no palmar
A água será clara o leite doce
O calor será leve o linho branco e fresco
O silêncio estará nu — o canto
Da flauta será nítido no liso
Da penumbra

Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira


III
MUSEU

Aqui — como convém aos mortais —


Tudo é divino
E a pintura embriaga mais
Que o próprio vinho
PROJECTO II

Esta foi sua empresa: reencontrar o limpo


Do dia primordial. Reencontrar a inteireza
Reencontrar o acordo livre e justo
E recomeçar cada coisa a partir do princípio

Em sua empresa falharam e o relato


De sua errância erros e derrotas
De seus desencontros e desencontradas lutas
É moroso e confuso

Porém restam
Do quebrado projecto de sua empresa em ruína
Canto e pranto clamor palavras harpas
Que de geração em geração ecoam
Em contínua memória de um projecto
Que sem cessar de novo tentaremos
CARTA DE NATAL A MURILO MENDES

Querido Murilo: será mesmo possível


Que você este ano não chegue no verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão

Como eu só o via nessa quadra do ano


Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano

Descubro a sua ausência devagar


Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido

Hoje escrevo porém para a Saudade


— Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade —

E o poema vai em vez desse postal


Em que eu nesta quadra respondia
— Escrito mesmo na margem do jornal
Na Baixa — entre as compras do Natal
Para ligar o eterno e este dia

Lisboa, 22 de Dezembro de 1975


REGRESSAREI

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa


Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas
SERÁ POSSÍVEL

Será possível que nada se cumprisse?


Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
— Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta — só perdido?
«À MANEIRA DE…»

Síntese a linha clara — em seu


Horizonte a luz se desfere. Opaca (ela)
De nós se nutre como lume aceso
TRIPOLI 76

Cruzam-se muitas e diversas gentes


Vindas de muitos e diversos mundos
Vestindo muitas e diversas roupas
Falando muitas e diversas línguas
Vêm de muitos e diversos ritos
E cultos e culturas e paragens

II

O recitador entoa a palavra modulada


Rouca de deserto e sol e imensidão
Entoa a veemência nua da palavra
Fronteira de puro Deus e puro nada

III

E Leptis Magna em sua pedra cor de trigo


E em seu chão de laje pelo sol varrido
Guarda o matinal no mais antigo
CARTA A RUBEN A.

Que tenhas morrido é ainda uma notícia


Desencontrada e longínqua e não a entendo bem

Quando — pela última vez — bateste à porta da casa e te sentaste à mesa


Trazias contigo como sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos e projectos
E ninguém poderia pensar em despedida

Mas sempre trouxeste contigo o desconexo


De um viver que nos funda e nos renega
— Poderei procurar o reencontro verso a verso
E buscar — como oferta — a infância antiga

A casa enorme vermelha e desmedida


Com seus átrios de pasmo e ressonância
O mundo dos adultos nos cercava
E dos jardins subia a transbordância
De rododendros dálias e camélias
De frutos roseirais musgos e tílias

As tílias eram como catedrais


Percorridas por brisas vagabundas
As rosas eram vermelhas e profundas
E o mar quebrava ao longe entre os pinhais
Morangos e muguet e cerejeiras
Enormes ramos batendo nas janelas
Havia o vaguear tardes inteiras
E a mão roçando pelas folhas de heras

Havia o ar brilhante e perfumado


Saturado de apelos e de esperas

Desgarrada era a voz das primaveras

Buscarei como oferta a infância antiga


Que mesmo tão distante e tão perdida
Guarda em si a semente que renasce

Junho de 1976
AÇORES

Há um intenso orgulho
Na palavra Açor
E em redor das ilhas
O mar é maior

Como num convés


Respiro amplidão
No ar brilha a luz
Da navegação

Mas este convés


É de terra escura
É de lés a lés
Prado agricultura

É terra lavrada
Por navegadores
E os que no mar pescam
São agricultores

Por isso há nos homens


Aprumo de proa
E não sei que sonho
Em cada pessoa
As casas são brancas
Em luz de pintor
Quem pintou as barras
Afinou a cor

Aqui o antigo
Tem o limpo do novo —
É o mar que traz
Do largo o renovo

E como num convés


De intensa limpeza
Há no ar um brilho
De bruma e clareza

É convés lavrado
Em plena amplidão
É o mar que traz
As ilhas na mão

Buscámos no mundo
Mar e maravilhas
Deslumbradamente
Surgiram nove ilhas

E foi na Terceira
Com o mar à proa
Que nasceu a mãe
Do poeta Pessoa

Em cujo poema
Respiro amplidão
E me cerca a luz
Da navegação

Em cujo poema
Como num convés
A limpeza extrema
Luz de lés a lés

Poema onde está


A palavra pura
De um povo cindido
Por tanta aventura

Poema onde está


A palavra extrema
Que une e reconhece —
Pois só no poema

Um povo amanhece

1976
O OPACO

Recuperei a minha memória da morte da lacuna da perca e do desastre

O opaco regressou de seu abismo antigo

A sombra de Ingrina não toca nem sequer as minhas mãos


A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo


As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco


E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
NESTES ÚLTIMOS TEMPOS

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros


Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita


Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo — de seu


Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça


Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos


De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez


Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita


Degradação da vida que a direita pratica?

Julho de 1976
ESTAÇÕES DO ANO

Primeiro vem Janeiro


Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas

A praia onde o vento


Desfralda as barracas
E vira os guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarde
Como uma cantiga

O verão onde hoje moro


É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do verão adolescente

Aqui onde estou


Entre cal e sal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada
POR DELICADEZA

Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo


Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto


E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei
Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi:

«Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida»
POEMA

Cantaremos o desencontro:
O limiar e o linear perdidos

Cantaremos o desencontro:
A vida errada num país errado
Novos ratos mostram a avidez antiga
NAVEGAÇÕES
LISBOA

Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso — vinda do sul — o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas —
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
— Digo para ver

1977
AS ILHAS
I

Navegámos para Oriente —


A longa costa
Era de um verde espesso e sonolento

Um verde imóvel sob o nenhum vento


Até à branca praia cor de rosas
Tocada pelas águas transparentes

Então surgiram as ilhas luminosas


De um azul tão puro e tão violento
Que excedia o fulgor do firmamento
Navegado por garças milagrosas

E extinguiram-se em nós memória e tempo

1977
II

Navegação abstracta
Fito como um peixe o voo segue a rota
Vista de cima tornou-se a terra um mapa

Porém subitamente
Atravessámos do Oriente a grande porta
De safiras azuis no mar luzente

1977
III

À luz do aparecer a madrugada


Iluminava o côncavo de ausentes
Velas a demandar estas paragens

Aqui desceram as âncoras escuras


Daqueles que vieram procurando
O rosto real de todas as figuras
E ousaram — aventura a mais incrível —
Viver a inteireza do possível

1977
IV

«Dolce color d’oriental zaffiro»


Dante, Purgatório, Canto I, terceto 5

Aqui viu o surgir em flor das ilhas


Quem vindo pelo mar desceu ao sul
E o cabo contornou para nascente
Orientando o cortar das negras quilhas

E sob as altas nuvens brancas liras


Os olhos viram verdadeiramente
O doce azul de Oriente e de safiras

1977
V

Ali vimos a veemência do visível


O aparecer total exposto inteiro
E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar
Era o verdadeiro

1977
VI

Navegavam sem o mapa que faziam

(Atrás deixando conluios e conversas


Intrigas surdas de bordéis e paços)

Os homens sábios tinham concluído


Que só podia haver o já sabido:
Para a frente era só o inavegável
Sob o clamor de um sol inabitável

Indecifrada escrita de outros astros


No silêncio das zonas nebulosas
Trémula a bússola tacteava espaços

Depois surgiram as costas luminosas


Silêncios e palmares frescor ardente
E o brilho do visível frente a frente

1979
VII

Difícil é saber de frente a tua morte


E não te esperar nunca mais nos espelhos da bruma

1979
DERIVA
I

Deslizado silêncio sob alísios


— As velas todas brandamente inchadas —
Brilho de escamas sobre os grandes mares
E a bombordo nas costas avistadas
Sob o clamor de extáticos luares
Um imóvel silêncio de palmares

1982
II

Era a rota do oiro


Porém nos grandes mares
Ou em praias baloiçadas por coqueiros
O espanto nos guiava —
Água escorria de todas as imagens

1982
III

Nus se banharam em grandes praias lisas


Outros se perderam no repentino azul dos temporais

1982
IV

Ele porém dobrou o cabo e não achou a Índia


E o mar o devorou com o instinto de destino que há no mar

1982
V

Dos homens nus e negros contarei


E de como não havendo já connosco
Quem de seu falar algo entendesse
Juntos dançámos pra nos entendermos

1982
VI

Eu vos direi a grande praia branca


E os homens nus e negros que dançavam
Pra sustentar o céu com suas lanças

1982
VII

Outros dirão senhor as singraduras


Eu vos direi a praia onde luzia
A primitiva manhã da criação

Eu vos direi a nudez recém-criada


A esquiva doçura a leve rapidez
De homens ainda cor de barro que julgaram
Sermos seus antigos deuses tutelares
Que regressavam

1982
VIII

Vi as águas os cabos vi as ilhas


E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri


E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri

1982
IX

Cidades e ciladas
Mas também
O pasmo de tão grande arquitectura
As sedas os perfumes a doçura
Das vozes e dos gestos

Os grandes pátios da noite e sua flor


De pânico e sossego

1982
X

Sombrios deuses
Senhores do medo antigo
O sopro como estátuas suspendendo
Na movediça luz das lamparinas

1982
XI

Olhos abertos do navegador


Mudam aqui a luz a sombra a cor
E também faces e gestos se modulam
Segundo elaboradas estranhezas
Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de dragões seguem os barcos
1982
XII

Cupidez roendo o verde emergir das ilhas a barlavento


Cupidez roendo o rosto nu do encontro

1982
XIII

Canção rente ao nada


No silêncio quieto
Da noite parada

Como quem buscasse


Seu rosto e o errasse

1982
XIV

Através do teu coração passou um barco


Que não pára de seguir sem ti o seu caminho

1982
XV

Inversa navegação
Tédio já sem Tejo
Cinzento hostil dos quartos
Ruas desoladas
Verso a verso
Lisboa anti-pátria da vida

1978
XVI

Há no rei de Chipre
Um certo mistério
Não só o ser grego
Sendo tão assírio
Mas certo sossego
E certo recuo
Entre duas guerras —
Seu corpo de espiga
Coluna de tréguas
Mora em certa pausa
Que nunca encontrei
— Clareza das ilhas
Que tanto busquei

1982
XVII

Estilo manuelino:
Não a nave românica onde a regra
Da semente sobe da terra
Nem o fuste de espiga
Da coluna grega
Mas a flor dos encontros que a errância
Em sua deriva agrega

1982
NOTAS

AS ILHAS
1. Os poemas I e III são invocações da voz de Camões.
2. O poema VII é um poema sobre Dom Sebastião.

DERIVA
3. O poema IV é uma invocação de Bartolomeu Dias, o maior de todos os
navegadores.
4. O poema V é uma glosa livre da Carta de Pêro Vaz de Caminha.
5. O poema XIII é uma invocação de Pessoa, que disse pertencer ao número
daqueles portugueses que depois da descoberta da Índia ficaram sem emprego.
6. O poema XIV é uma invocação de Jorge de Sena.
7. O poema XV é um poema sobre as diversas Reboleiras de Lisboa, atro-zes e
sem Tejo.
Escrevi as Navegações exactamente porque o Conselho da Revolução, em
1977, me convidou a ir a Macau para tomar parte na celebração do Dia de
Camões. Foi o meu primeiro encontro com o Oriente.
Na longa viagem, à ida, de madrugada, quando as cortinas ainda estavam
corridas, e a cabine estava ainda na penumbra, ouvi o microfone dizer a meia
voz:
— Estamos a sobrevoar a costa do Vietname.

Corri uma cortina e vi um ar fulgurantemente azul e lá em baixo um mar


ainda mais azul. E, perto de uma longa costa verde, vi no mar três ilhas de coral
azul-escuro, cercadas por lagunas de uma transparência azulada.
Pensei naqueles que ali chegaram sem aviso prévio, sem mapas, ou relatos,
ou desenhos ou fotografias que os prevenissem do que iam ver.
Escrevi os primeiros poemas simultaneamente a partir da minha imaginação,
desse primeiro olhar, e a partir do meu próprio maravilhamento. As portas da
Ásia abriram-se naquele preciso azul de que fala Dante no Purgatório:
«Dolce color d’oriental zaffiro».
Mas estavam neste mundo.
Como já disse na revista Prelo, há nas Navegações um intrincado jogo de
invocações e ecos mais ou menos explícitos. E também através dos poemas
navega a frase em que algures Maria Velho da Costa se refere aos «visionários
do visível».
À medida que os poemas iam surgindo ia-se decidindo em mim a vontade de
os editar ao lado dos mapas da época, os mapas onde ainda é visível o espanto
do olhar inicial, o deslumbramento perante a diferença, perante a multiplicidade
do real, a veemência do real mais belo que o imaginado, o maravilhamento
perante os coqueiros, os elefantes, as ilhas, os telhados arqueados dos pagodes. E
também a revelação de um outro rosto do humano e do sagrado.
Levei algum tempo a encontrar o editor que entendesse o meu desejo.
Finalmente recorri à Imprensa Nacional, à qual estou em extremo grata por ter
feito a edição que eu sonhei e quis.
Para mim o tema das Navegações não é apenas o feito, a gesta, mas
fundamentalmente o olhar, aquilo a que os gregos chamavam aletheia, a
desocultação, o descobrimento. Aquele olhar que às vezes está pintado à proa
dos barcos.

(Discurso proferido na entrega do Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, em


1984.)
ILHAS
I
POEMAS REENCONTRADOS
EPIDAURO 62

Oiço a voz subir os últimos degraus


Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha
TRÍPTICO OU MARIA HELENA,
ARPAD E A PINTURA

Eles não pintam o quadro: estão dentro do quadro

II

Eles não pintam o quadro: julgam que estão dentro do quadro

III

Eles sabem que não estão dentro do quadro: pintam o quadro

1959
GLOSA

«Dá a surpresa de ser


É alta de um loiro escuro»
Fernando Pessoa

Dá a surpresa de ser
É alto de um loiro escuro
Faz bem só pensar em ver
Seu gesto firme e seguro

Tem qualquer coisa de mastro


Tem qualquer coisa de sol
Saber que existe sossega
Como no mar o farol

Há qualquer coisa de rude


Em sua beleza extrema
Como saber a crueza
Que há no dentro do poema

Tem qualquer coisa de limpo


Apetece como o sal
Espanta que seja real
Sua perfeição de Olimpo

Há qualquer coisa de toiro


Na largura dos seus ombros
Navegam brilhos e assombros
No obscuro do seu loiro

1968 (?)
FRAGMENTO DE «OS GRACOS»

«………………………………………………»

Os ricos nunca perdem a jogada


Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham

Tecem uma grande rede de estratagemas


Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um toiro na arena

«………………………………………………»

(Os Gracos, I Acto, II Cena, 1968)


A PRINCESA DA CIDADE EXTREMA
OU A MORTE DOS RITOS

Quando o palácio do rei do Estio foi invadido


Isô princesa da Cidade Extrema
Inclinou gravemente a cabeça pequena
E em seu sorriso de coral os dentes brilharam como grãos de arroz

Quando levaram sua colecção de jades


O seu leito de sândalo
O sorriso franziu sua narina fina
Suas pestanas acenaram como borboletas

Quando levaram suas jarras vermelhas seus livros de estampas


Ela continuou flexível e serena
Suas pestanas aplaudiram como leques pretos
Seus lábios recitaram a sentença antiga:

Aquele que é despojado fica livre

No lago viu-se
Ela mesma era
Flexível e brilhante como seda
Fresca e macia como jade
Colorida e preciosa como estampa
Serena como seda dormiu nessa noite sobre esteiras

Porém a aurora do tempo novo despontou na cidade

Quando ela acordou


O cortejo das mãos não acorreu

A mão que na jarra põe a flor


A mão que acende o incenso
A mão que desenrola o tapete
A mão que faz cantar a música das harpas
A longa subtil mão precisa que pinta o contorno dos olhos
A mão fresca e lenta que derrama os perfumes

Mão nenhuma invoca o espírito dos deuses


Protectores do tecto
Mão nenhuma dispõe o ritual antiquíssimo que introduz
O fogo linear do dia
Mão nenhuma traça o gesto que constrói
A forma celeste do dia

As vozes dizem:

Ergue-te sozinha
Não és ídolo não és divina
Nenhuma coisa é divina

Como seda no chão cai desprendida


Assim ela esvaída
Quando a si torna não torna à sua imagem
Tudo é abolido e bebido em repentina voragem
O colóquio dos bambus calou-se
Nem a rã coaxa

Como caule ao vento seu pescoço fino baloiça


Suas pestanas permanecem imóveis como as do cego que há milénios
Junto da ponte não vê o rio

Em seus vestidos tropeça como o cego

Suas mãos tacteiam o ar

Muito alto ouve ranger o céu


São os deuses rasgando suas sedosas bandeiras de vento

Para não ouvir o silvo dos gumes acerados


Mergulha no lago até ao lodo
Depois flutua muitos dias
No centro da corola que formam
Os seus largos vestidos espalhados
NÃO TE ESQUEÇAS NUNCA

Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina


O pinhal a coluna a veemência divina
O templo o teatro o rolar de uma pinha
O ar cheirava a mel e a pedra a resina
Na estátua morava tua nudez marinha
Sob o sol azul e a veemência divina

Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima


O horror o terror a suprema ignomínia
II
TEMPO DE NÃO

Exausta fujo as arenas do puro intolerável


Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado
A cidade onde habito é rica de desastres
Embora exista a praia lisa que sonhei
CANÇÃO

Clara uma canção


Rente à noite calada
Cismo sem atenção
Com a alma velada

A vida encontrei-a
Tão desencontrada
Embora a lua cheia
E a noite extasiada

A vida mostrou-se
Caminho de nada
Embora brilhasse
Lua sobre a estrada

Como se a beleza
Da lua ou do mar
Nada mais quisesse
Que o próprio brilhar

Por esta razão


Sem riso nem pranto
Neste sem sentido
Se rompe o encanto
PERSONA

Mitológica personagem — parece


Um falcão do Egipto
Sob seu lógico discurso permanece
Intacto o não dito

Mas algo de falcão nele se inscreve


Hieróglifo indecifrável
E o deus que ele foi ou nele esteve
Desarticula seu olhar instável
SENHORA DA SAÚDE

Seu rosto seria a cintilante claridade


De uma praia
E em sua humana carne brilharia
A luz sem mancha do primeiro dia
VENEZA

Dentro deste quarto um outro quarto


Como um Carpaccio nas ruas de Veneza
Segunda imagem sussurro de surpresa
E um pouco assim são as ruas de Veneza

Em fundo glauco de laguna ou vidro


E um pouco assim em nossa vida o duplo
Espelho sem perdão do não vivido
Caminho destinado a ser perdido
SÃO TIAGO DE COMPOSTELA

a D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto

A São Tiago não irei


Como turista. Irei
— Se puder — como peregrino
Tocarei a pedra e rezarei
Os padre-nossos da conta como um campesino
………………………………………………

Assim pudesse o poema


Ter doçura de trigo
O seu brilho polido
A mesma humildade

Assim pudesse o poema


Como a pedra esculpida
Do pórtico antigo
Ter em si próprio a mesma
Compacta alegria
Cereal claridade

Ante o voo de ave


Do espírito que ergue
Os pilares da nave
PASCOAES

Aqui a bruma a noite o sete-estrelo


O sussurrar de brisas e de fonte
Aqui o tempo anterior puro horizonte
O ser um com a luz a flor o monte

A terra se desvenda verso a verso


Seu rosto é de pinhais sombras e mágoas
Aqui o puro emergir: luas e águas
E o antigo tempo irmão do universo
O PRÍNCIPE BASTARDO

O príncipe bastardo António Prior do Crato


Morreu no exílio não conquistou seu reino
E aqueles que invocou não o coroaram

Entre ele e seu destino havia um outro


Perdido em batalha tão confusa
Que ninguém sabe se está vivo ou morto
BARCELONA

Luz e sol e pintura


Sobre o telhado à noite a lua cresce
Abro os olhos como um barco pelas ruas
No entanto outonece
O REI DE CHIPRE

Se não fosse o amor que tudo esconde


Sob o excessivo tumulto do seu corpo
Nem fosse a solidão que tudo esfria
Como pequena pedra que irradia

Mas antes um lugar de transparência


E o rei de Chipre tão só a companhia
E a clareza do trigo em sua face
Como quem só em ilhas habitasse
MADRUGADA

Um leve tremor precede a madrugada


Quando mar e céu na mesma cor se azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada
III
OS NAVEGADORES

O múltiplo nos inebria


O espanto nos guia
Com audácia desejo e calculado engenho
Forçámos os limites —
Porém o Deus uno
De desvios nos protege
Por isso ao longo das escalas
Cobrimos de oiro o interior sombrio das igrejas
DESCOBRIMENTO

Saudavam com alvoroço as coisas


Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manhã
NO MAIS SECRETO

No mais secreto de Junho e de folhagens


Ou interior de flor secretamente
Rosto sob o choupo à luz das luas
Rosto do meu rosto exactamente
Espelho quasi onde me vi de frente
E deslizamos pelo rio como um barco
KOUROS DO EGEU

Sorriso sem costura


Inocência de caule
Retrato nu do liso

A Niké de alegria poisava seus pés em cada ilha


HABITAÇÃO

Muito antes do chalet


Antes do prédio
Antes mesmo da antiga
Casa bela e grave
Antes de solares palácios e castelos
No princípio
A casa foi sagrada —
Isto é habitada
Não só por homens e por vivos
Mas também pelos mortos e por deuses

Isso depois foi saqueado


Tudo foi reordenado e dividido
Caminhamos no trilho
De elaboradas percas

Porém a poesia permanece


Como se a divisão não tivesse acontecido
Permanece mesmo muito depois de varrido
O sussurro de tílias junto à casa de infância
OLÍMPIA

Ele emergiu do poente como se fosse um deus


A luz brilhava de mais no obscuro loiro do seu cabelo

Era o hóspede do acaso


Reunia mal as palavras
Foram juntos a Olímpia lugar de atletas
Terra à qual pertenciam
Os seus largos ombros as ancas estreitas
A sua força esguia espessa e baloiçada
E a sua testa baixa de novilho
Jantaram ao ar livre num rumor de verão e de turistas
Uma leve brisa passava entre diversos rostos

Ela viu-o depois ficar sozinho em plena rua


Subitamente jovem de mais e como expulso e perdido

Porém na manhã seguinte


Entre as espalhadas ruínas da palestra
Ela viu como o corpo dele rimava bem com as colunas
Dóricas

De qualquer forma em Patras poeirenta


No abafado subir da noite
Tomaram barcos diferentes
De muito longe ainda se via
No cais o vulto espesso baloiçado esguio
Que entre luzes com as sombras se fundia

Sob a desprezível indiferença


Não dela mas dos deuses
DEDICATÓRIA DA TERCEIRA EDIÇÃO
DO «CORAL» AO RUY CINATTI

Para o Ruy Cinatti porque neste livro


De folha em folha passam gestos seus
Assim como de folha em folha em arvoredo
A brisa perde ao sussurrar seus dedos
CARTA(S) A JORGE DE SENA

Não és navegador mas emigrante


Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II

E agora chega a notícia que morreste


E algo se desloca em nossa vida

III

Há muito estavas longe


Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV

E agora chega a notícia que morreste


A morte vem como nenhuma carta
RETRATO

O jovem lord Byron é americano


E jornalista. Consigo traz
— Mais do que Escócias de outras eras —
Um futuro de eficácia errância e pressa

Porém seu perfil de estátua desenha a noite morna


E negro se anela na brisa o seu cabelo

Com ele vem um rumor de amor perdido


E a seu bem talhado rosto conviria
Turbante de palikare ou de fakir
E parece surgir de um filme antigo
O SOL O MURO O MAR

O olhar procura reunir um mundo que foi destroçado pelas fúrias.


Pequenas cidades: muros caiados e recaiados para manter intacto o alvoroço do
início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento azul sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência intensa como o arfar de um
toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos pátios dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e atentos: silêncio vigiando o
clamor do sol sobre as pedras da calçada.
Diz-se que para que um segredo não nos devore é preciso dizê-lo em voz alta no
sol de um terraço ou de um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para o exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte, os seus hábitos, o seu
violento azul, o espesso amarelo, a veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa — tinta que se despinta — porta aberta
para o pátio de chão verde: soleira do quotidiano onde a roupa seca e espaço de
teatro. Mas também pórtico solene aberto para a vida sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de manchas nebulosas e sonhadoras.
A porta desenha sua forma perfeita à medida do homem: as cores do cortinado
de fitas contam a nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do homem.

No promontório o muro nada fecha ou cerca.


Longo muro branco entre a sombra do rochedo e as lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto de escamas e brilhos como na
infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do lugar sagrado.
PRINCÍPIO DE VERÃO

Largos longos doces horizontes


A desdobrada luz ao fim da tarde
Um ar de praia nas ruas da cidade
Secreto sabor a rosa e nardo arde
A KORÉ

Alta e solene mais alta do que a luz


A pesada palidez sagrada do Pártenon
Reina sobre o dia

Folhagens dançam movidas pelo vento

Na mesa ao lado a Koré de nariz direito e cabelo entrançado


Serve de intérprete e erguendo a sua taça
Brinda com os comerciantes tedescos que saquearam
A Grécia e a Europa quase toda
Mas que após a derrota de seus generais
Ganharam a guerra

O café tem pó — relíquia dos turcos

Porém no vinho resinado no frescor da vinha


Na fina suave brisa nas pálidas colunas
Algo dos deuses súbito visita
A luz do instante
IV
POEMA

Cumpridos os deveres compridos deixaram


De assediar minhas horas

Doce a liberdade retoma em si minha leveza antiga


O DIA

Passa o dia contigo


Não deixes que te desviem
Um poema emerge tão jovem tão antigo
Que nem sabes desde quando em ti vivia
GUITARRA

Na voz de oiro e de sombra da guitarra


Algo de mim a si próprio renuncia
A ESCRITA

No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho


Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém passava

Escutava os rumores marinhos do silêncio


E o eco perdido de passos num corredor longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital


Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa


Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela — como em certos quadros —
Tornando tudo atento
GLOSA DE «SO, WE’LL GO NO MORE
A-ROVING» DE BYRON

Não irei mais meu erro errando errante


Pela noite fora
Embora a lua brilhe tanto como outrora
Embora como outrora
Não cesse do amor a voz uivante
Que me devora

Pois o coração gasta o peito


E a espada gasta a bainha
O tempo rói o coração desfeito
E a alma é sozinha

Embora a noite sempre peça amor


E o dia volte demasiado cedo
E o luar corte como espada nua
Não irei mais em pânico e segredo
Sob a luz da lua
O PAÍS SEM MAL

Um etnólogo diz ter encontrado


Entre selvas e rios depois de longa busca
Uma tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e campinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal —
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado
MEMÓRIA DO PADRE
MANUEL ANTUNES, S.J.

Tão nobre espírito


em tão estreita regra
Tão vasta liberdade em tão estreita
Regra
CARTA A MARIA DO CARVALHAL ALVITO

Querida Maria — subitamente o fino


Deste primeiro frio misturado
Com um sabor de lenha e de maçã
Algo recorda: tacteio na memória
Procurando o onde o quando o quem
E a tua casa reabre de repente as suas portas
E caminho nos quartos entre
Os raios da luz e o cismar das penumbras
E vens ao meu encontro e és meu abrigo
Pranto e saudade em cada gesto irrompem
Mas a irreversível alegria do ter sido
Não deixará jamais de estar comigo
E há um sabor de lenha e de maçã
E o tempo é jovem próximo e amigo
E rimos juntas nesse dia antigo
E entro na tua casa e és meu abrigo

Lisboa, Novembro de 1986


SENHOR

Senhor sempre te adiei


Embora sempre soubesse que me vias
Quis ver o mundo em si e não em ti
E embora nunca te negasse te apartei

1987
OS BIOMBOS NAMBAM

Os biombos Nambam contam


A história alegre das navegações
Pasmo de povos de repente
Frente a frente

Alvoroço de quem vê
O tão longe tão ao pé

Laca e leque
Kimono camélia
Perfeição esmero
E o sabor do tempero

Cerimónias mesuras
Nipónicas finuras
Malícia perante
Narigudas figuras
Inchados calções

Enquanto no alto
Das mastreações
Fazem pinos dão saltos
Os ágeis acrobatas
Das navegações
Dançam de alegria
Porque o mundo encontrado
É muito mais belo
Do que o imaginado

1987
ESTELAS FUNERÁRIAS

Jovens sorridentes celebrando


Em todos os museus a própria morte

Tão direito e firme amor da vida


Aqueles que os amaram consagraram
A breve eternidade do seu povo

Agora expostos numa terra alheia


De seus ossos e cinza separados
Roubados ao lugar que os viu viver
O entreaberto lírio do sorriso
As paisagens sem luz iluminando
ESTÁTUA DE BUDA

Os belos traços o inchado beiço a narina fina


O torneado corpo e sua
Beleza tão carnal de magnólia e fruto
Em tão longínqua latitude representam
O príncipe da perfeição e da renúncia

Antes do museu
Em sua frente
Oscilavam sombras e luzes enquanto deslizava
O rio das preces

1987
DEDICATÓRIA DA SEGUNDA EdIÇÃO
DO «CRISTO CIGANO»
A JOÃO CABRAL DE MELO NETO

João Cabral de Melo Neto


Essa história me contou
Venho agora recontá-la
Tentando representar
Não apenas o contado
E sua grande estranheza
Mas tentando ver melhor
A peculiar disciplina
De rente e justa agudeza
Que a arte deste poeta
Verdadeira mestra ensina

II

Pois é poeta que traz


À tona o que era latente
Poeta que desoculta
A voz do poema imanente
Nunca erra a direcção
De sua exacta insistência
Não diz senão o que quer
Não se inebria em fluência

Mas sua arte não é só


Olhar certo e oficina
E nele como em Cesário
Algo às vezes se alucina

Pois há nessa tão exacta


Fidelidade à imanência
Secretas luas ferozes
Quebrando sóis de evidência
CESÁRIO VERDE

Quis dizer o mais claro e o mais corrente


Em fala chã e em lúcida esquadria
Ser e dizer na justa luz do dia
Falar claro falar limpo falar rente

Porém nas roucas ruas da cidade


A nítida pupila se alucina
Cães se miram no vidro da retina
E ele vai naufragando como um barco

Amou vinhas e searas e campinas


Horizontes honestos e lavados
Mas bebeu a cidade a longos tragos
Deambulou por praças por esquinas

Fugiu da peste e da melancolia


Livre se quis e não servo dos fados
Diurno se quis — porém a luzidia
Noite assombrou os olhos dilatados

Reflectindo o tremor da luz nas margens


Entre ruelas vê-se ao fundo o rio
Ele o viu com seus olhos de navio
Atentos à surpresa das imagens
CASAS

à Luiza Neto Jorge

Casas — casas roucas


Atentos muros — umbrais medidos e solenes
Quarto após quarto penumbra sequiosa
Tectos lentos
Como no espelho afloram
Lagos e magia: caminho
Submerso do possível

A paixão habita seu jogo mais secreto


Sua trágica e precisa
Perfeição

1987
LANDGRAVE OU MARIA HELENA
VIEIRA DA SILVA

Lugar de convocação como um poema muito antigo.


Lugar de aparição. Diálogo do visual e da visão. Onde do visível emerge a
aparição. Assim no verso de Pascoaes vemos «O que há de aparição no seio da
aparência».
Um rebrilhar de teatro. Multiplicando a luz imaginária da noite.
A luz inventada da noite.
As paredes, o chão, o tecto avançam para o fundo. Mas no fundo outro
espaço desponta. E em cada espelho um novo espaço nasce.
É um lugar onde tudo está atento, denso de memória e de veemência. Lugar
de revelação, de espanto e cismar e descobrimento.
As cores estão acesas como as luzes de um teatro à hora da representação. O
mundo é «re-presentado», tornado mais uma vez presente. O ar está queimado
pelas luzes como o ar de um palco. Todas as cores se reflectem umas nas outras.
Há um difuso tremular luminoso como o das escamas de um peixe. Os múltiplos
espelhos formam uma rede de escamas: amarelas, cor de barro, cinzentas,
rosadas, negras, cor de nácar, cor de pedra. Um pouco atrás as musas da
penumbra tocam suas finas flautas. É o rigor da música que estrutura a ordem
das formas, as variações, o retomar dos temas, o contraponto da repetição.
Reconhecemos o tão atento olhar. Os olhos muito abertos como os olhos que
estão pintados à proa dos barcos. O olhar que busca o aparecer do mundo, o
surgir do mundo, o emergir do visível e da visão. Reconhecemos a viagem, a
longa navegação, a memória acumulada. A atenção da Sibila, da bússola, do
sismógrafo, da antena.
Fevereiro de 1988
FÚRIAS

Escorraçadas do pecado e do sagrado


Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar


Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno


Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas


Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo
VIAGEM

Naquele tempo era o Kaos


E as palavras do poema não irrompiam já como palmeiras

Por isso abandonou a cidade — o país natal


País perdendo dia a dia o seu rosto:
A pintura a cair das paredes — cães
Farejando o lixo —
Brutais os gestos — obscenas as palavras
De cada coisa a beleza destroçada

Por isso se evadiu e para Oriente


Navegou e de noite e lentamente

E um novo dia se abriu em sua frente

E era um país de tigres e palmeiras


Como em longínquo cismar adolescente
ILHA DO PRÍNCIPE

«Suave, doce, lânguida ilha


De transparências súbitas»
Ruy Cinatti

A ilha do príncipe que o Ruy Cinatti amou


Surgia devagar
E ele debruçado na amurada do navio
A viu emergir dos longes da distância
No lento aproximar
Flor que desabrocha à flor do mar
Entre alísios vidros e neblinas
Na salgada respiração da vastidão marinha
Na transparência súbita

Eu cheguei mais tarde no ronco do avião


Na bruta rapidez
Porém também eu me banhei nas longas ondas
Das praias belas como no princípio do mundo
E atravessei o verde espesso da floresta
E respirei o perfume da ocá recém-cortada
ELSINORE

No palácio dos Átridas como em Elsinore


Tudo era cavernoso — as paredes
Eram grossas o espaço excessivo e sonoro
Roucas as vozes da maldição antiga

Porém em Micenas o sangue era exposto


E corria vermelho como num grande talho
Sujando apenas as mãos dos assassinos
E a água da banheira —
Lá fora o rio a luz
Continuavam limpos e transparentes
O crime era um corpo estranho circunscrito
Não pertencia à natureza das coisas

Em Elsinore ao contrário o mal era um veneno


Subtil
Invadia o ar e a luz — penetrava
Os ouvidos as narinas o próprio pensamento —
O amor era impossível e ninguém podia
Libertar-se:
O inferno vomitava sua pestilência invadia
As veias e os rios:
No entanto o mal não se via: era apenas
Um leve sabor a podre que fazia parte
Da natureza das coisas
ESCRITA II

Escreve numa sala grande e quase


Vazia
Não precisa de livro nem de arquivos
A sua arte é filha da memória
Diz o que viu
E o sol do que olhou para sempre o aclara
MUSA
1.º ANDAMENTO
ONDAS

Onde — ondas — mais belos cavalos


Do que estas ondas que vós sois
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais longa crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia?

Dezembro de 1989
ROMA

à memória de meu irmão Thomaz

O belo rosto dos deuses impassível e quebrado


A noite-loba rondando nas ruínas
A veemência a musa
Colunas e colinas
O bronze a pedra e o contínuo
Tijolo sobre tijolo
A arte difícil e bela da pintura
A música veemente que assedia a alma
O corpo a corpo do espaço e da escultura
Os múltiplos espelhos do visível
A selvagem e misteriosa paixão de Catilina

As altas naves as enormes colunas


Os enormes palácios as pequenas ruas
A lenta sombra atenta e muito antiga
O sucessivo surgir de fontes e de praças
Vermelho cor-de-rosa muita pressa
Gesticular de gentes e de estátuas
Azáfama clamor e gasolina
Do guarda-sol castanho a penumbra fina
ORIENTE

Este lugar amou perdidamente


Quem o cabo rondou do extremo Sul
E a costa indo seguindo para Oriente
Viu as ilhas azuis do mar azul
………………………………………
Viu pérolas safiras e corais
E a grande noite parada e transparente
Viu cidades nações viu passar gente
De leve passo e gestos musicais

Perfumes e tempero descobriu


E danças moduladas por vestidos
Sedosos flutuantes e compridos
E outro nasceu de tudo quanto viu
………………………………………

1988
TÃO GRANDE DOR

«Tão grande dor para tão pequeno povo»


Palavras de um timorense à RTP

Timor fragilíssimo e distante

«Sândalo flor búfalo montanha


Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais»

Em frente ao pasmo atento das crianças


Assim contava o poeta Ruy Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagem

Timor
Dever que não foi cumprido e que por isso dói

Depois vieram notícias desgarradas


Raras e confusas
Violência mortes crueldade
E ano após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia — espanto prodígio assombro —
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha

Timor cercado por um muro de silêncio


Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre tão falado

Porque não era um muro mas um cerco


Que por segundo cerco era cercado
O cerco da surdez dos consumistas
Tão cheios de jornais e de notícias

Mas como se fosse o milagre pedido


Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens
MEMÓRIA

Mimesis. E vós Musas filhas da memória


De leve passo nos cimos do Parnaso
Suave a brisa — a fonte impetuosa
Princípio fundamento rosto-início
Espelho para sempre os olhos verdes

As longas mãos as azuladas veias


SALGUEIRO MAIA

Aquele que na hora da vitória


Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância


Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso


Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»


Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse
PARA O ERNESTO VEIGA DE OLIVEIRA
NO DIA DA SUA MORTE

Àquele que hoje morreu tendo sido


Fiel a cada hora do vivido
Trago o poema desse tempo antigo:
Irisado cintilar dos areais
Na breve eternidade desse instante
Que não pode jamais ser repetido

Foi nesse tempo o tempo:


Longas tardes conversas demoradas
No extático fervor adolescente
Das grandes descobertas deslumbradas
Versos dança música pintura
Um mundo vivo em canto e em figura
Que a vida inteira ficará comigo
Agradecendo a graça do ter sido

Assim pudesse o tempo regressar


Recomeçarmos sempre como o mar

1992
SOBRE UM DESENHO DE GRAÇA MORAIS

Nítido e leve ramo de oliveira:


Rijeza firme do tronco
As pálidas folhas como ponta de lança
E o pequeno fruto negro
Compacto e brilhante
2.º ANDAMENTO
ORPHEU

Orpheu
seu canto alto e grave
O canto de oiro o êxtase da lira

Orpheu
A palidez sagrada de seu rosto
Que de clarões e sombras se ilumina

Ante seus pés se deitam mansas feras


Vencidas pela música divina
ADAPTADO DE ÁLCMAN

A musa a sereia
Seu canto alto e puro
ORPHEU E EURYDICE

Juntos passavam no cair da tarde


Jovens luminosos muito antigos
MÉNADES

As antigas Fúrias tinham as pupilas vermelhas


Os cabelos eriçados de serpentes
As mãos pesadas a boca sequiosa
De puro sangue a cara tatuada
AS PARCAS

Atropos a terceira o fio corta

Fulvas Ménades em tigres transformadas


Já seu corpo dividem membro a membro
E o sangue bebem vinho de Setembro

Seu rosto entregaram à corrente


Que o leva para o mar de olhos azuis
EURYDICE EM ROMA

Por entre clamor e vozes oiço atenta


A voz da flauta na penumbra fina

E ao longe sob a copa dos pinheiros


Com leves pés que nem as ervas dobram
Intensa absorta — sem se virar pra trás —
E já separada — Eurydice caminha
3.º ANDAMENTO
O POETA SÁBIO

É sábio hábil arguto informado


Porém quando ele escreve
As Ménades não dançam
CHILDE HAROLD — CANTO QUARTO

Era sombrio arrogante belo e coxo


Perseguido
Pela insondável paixão do mais vedado
E amava unicamente o mais perdido

Mulheres de longos cabelos negros


Ou leves finas etéreas loiras musas
Pasmavam ensombradas
Ante a palidez lendária do seu rosto

Ele porém buscava os olhos da gazela


Ou Estrela d’Alva da manhã antiga
Ou o clarão feroz da face proibida

II

Tinha vindo para o Sul


Em perfumados jardins
Em negras luminosas noites
Perseguindo como um tigre a própria fome
Rondava o silêncio
Arrebatado convocava
O poema escrito para habitar a vida

Entre colunas lagos e suspiros


Erguia o jogo e o canto das palavras:
«Das filhas da beleza nem só uma
Trouxe magia assim
És quem desliza e canta à flor da água
Música e água é tua voz para mim

Em beleza te moves como a noite


Deste país — escura e cintilante
E em teus gestos e teus olhos se combinam
O que é mais sombrio e mais brilhante»*

III

À beira da laguna onde se espelham


Narcísicos palácios cor-de-rosa
Alta noite a si próprio se inventava

D. Juan foi em Veneza sua máscara

— Escutando o dedilhar da laguna nos degraus


De pedra
Tecia intrincadas e teatrais
Conquistas
Que as cartas contavam aos amigos longínquos
Em calculada e ingénua exibição:
Vivia até ao ponto extremo
Seu modo particular d’ironia e paixão

Queria ser quem era


Gravar para sempre
A sua imagem em todos os espelhos

IV

Sonhava-se quem era:


— Lord que foi d’Escócias de outras eras
Werther fatal e não
O sensato pai de Werther
Príncipe da Aquitânia da abolida torre
Ou pirata sem pátria e sem regresso
* As estrofes entre aspas são glosas do poema de Byron «There be none of Beauty’s daughters».
OS AMIGOS

Voltar ali onde


A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga —
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão

1993
CÂNON

Sombrios profetas do exílio abandonai vosso vestido de cinza


Pois o Filho do Homem na véspera da sua morte
Se sentou à mesa entre os homens
E abençoou o pão e o vinho e os repartiu
E aquele que pôs com ele a mão no prato o traiu
E uma noite inteira no horto agonizou sozinho
Pois os seus amigos tinham adormecido
E no tribunal esteve só como todos os acusados da terra
E muitos o renegaram
E à hora do suplício ouviu o silêncio do Pai
Porém ao terceiro dia ergueu-se do túmulo
E partilhou a sua ressurreição com todos os homens

1993
PONTE DE SPOLETO

Sob os claros arcos da ponte romana


Onde ressoa ainda o passo das legiões imperiosas
Lá em baixo o leito do rio
Selvático e penumbroso
Interior às memórias insondáveis da alma

Maio de 1994
CÁ FORA

Abre a porta e caminha


Cá fora
Na nitidez salina do real

Junho de 1994
VIEIRA DA SILVA

Atenta antena
Athena
De olhos de coruja
Na obscura noite lúcida

1994
ELEGIA

Aprende
A não esperar por ti pois não te encontrarás

No instante de dizer sim ao destino


Incerta paraste emudecida
E os oceanos depois devagar te rodearam

A isso chamaste Orpheu Eurydice —


Incessante intensa a lira vibrava ao lado
Do desfilar real dos teus dias
Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
O encontro do fracasso —
Quem se lembra do fino escorrer da areia na ampulheta
Quando se ergue o canto
Por isso a memória sequiosa quer vir à tona
Em procura da parte que não deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim à beira-rio
Em Junho

1994
TEJO

Aqui e além em Lisboa — quando vamos


Com pressa ou distraídos pelas ruas
Ao virar da esquina de súbito avistamos
Irisado o Tejo:
Então se tornam
Leve o nosso corpo e a alma alada

Julho de 1994
À MANEIRA DE HORÁCIO

Feliz aquele que disse o poema ao som da lira


À mesa do banquete entre os amigos
E coroado estava de rosas e de mirto

Seu canto nascia da solar memória dos seus dias


E da pausa mágica da noite —
Seu canto celebrava
Consciente da areia fina que escorria
Enquanto o mar as rochas desgastava

1994
MANHÃ DE JULHO

Na praça barão de Quintela


Nesta enevoada manhã de Julho
Onde cai às vezes chuva leve e fina
Entre montras sardinheiras e as esquinas
Tudo parece um desenho animado:
Pessoas passam — jovens ágeis matutinas
Movidas como por gratuito jogo
Em idílicas harmonias citadinas

Julho de 1994
FERNANDO PESSOA

Com o sobretudo abotoado até ao queixo


Embiocado afastado
No lugar mais escuro do café escrevia
O múltiplo poema o canto inumerável
Arrancado ao desejo à paixão à memória
Às lucidissímas fúrias da renúncia

Julho de 1994
O BÚZIO DE CÓS
E OUTROS POEMAS
GOA

Bela, jovem, toda branca


A vaca tinha longos finos cornos
Afastados como as hastes da cítara
E pintados
Um de azul outro de veemente cor-de-rosa
E um deus adolescente atento e grave a guiava

Passavam os dois junto aos altos coqueiros


E ante a igreja barroca também ela toda branca
E em seu passar luziam
Os múltiplos e austeros sinais da alegria
ARTE POÉTICA

A dicção não implica estar alegre ou triste


Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão

Olha fita escuta


Atenta para a caçada no quarto penumbroso
MÉTRICA

O poema clássico compõe seu contraponto olímpico


Entre o fogoso sopro e o vasto espaço da sílaba medida
Inventa a ordem sem lacuna onde nada
Pode ser deslocado ou traduzido
O BÚZIO DE CÓS

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia


Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais

Porém nele não oiço


Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada

Junho de 1995
FOI NO MAR QUE APRENDI

Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela


Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga


Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia
DEUS ESCREVE DIREITO

Deus escreve direito por linhas tortas


E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento
ERA O TEMPO

Era o tempo das amizades visionárias


Entregues à sombra à luz à penumbra
E ao rumor mais secreto das ramagens
Era o tempo extático das luas
Quando a noite se azulava fabulosa e lenta
Era o tempo do múltiplo desejo e da paixão
Os dias como harpas ressoavam
Era o tempo de oiro das praias luzidias
Quando a fome de tudo se acendia
HOMERO

Escrever o poema como um boi lavra o campo


Sem que tropece no metro o pensamento
Sem que nada seja reduzido ou exilado
Sem que nada separe o homem do vivido
HÉLADE

Colunas erguidas em nome da imanência


— Deuses cruéis como homens vitoriosos
GLOSA DE UM TEXTO DE PLUTARCO

Nada mais assustador nada mais sublime


Do que ver os lacedemónios em ordem de combate
Quando avançam para a fúria da batalha
Ao som da flauta
ODE À MANEIRA DE HORÁCIO

Feliz aquela que efabulou o romance


Depois de o ter vivido
A que lavrou a terra e construiu a casa
Mas fiel ao canto estridente das sereias
Amou a errância o caçador e a caçada
E sob o fulgor da noite constelada
À beira da tenda partilhou o vinho e a vida
A ACTIVISTA CULTURAL

O passo decidido não acerta com o cismar do palácio


O ouvido não ouve a flauta da penumbra
Nem reconhece o silêncio
O pensamento nada sabe dos labirintos do tempo
O olhar toma nota e não vê
TURISTAS NO MUSEU

Parecem acabrunhados
Estarrecidos lêem na parede o número dos séculos
O seu olhar fica baço
Com as estátuas — como por engano —
Às vezes se cruzam

(Onde o antigo cismar demorado da viagem?)

Cá fora tiram fotografias muito depressa


Como quem se desobriga daquilo tudo
Caminham em rebanho como os animais
VARANDAS

É na varanda que os poemas emergem


Quando se azula o rio e brilha
O verde-escuro do cipreste — quando
Sobre as águas se recorta a branca escultura
Quasi oriental quasi marinha
Da torre aérea e branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e divina
E sobre a página do caderno o poema se alinha

Noutra varanda assim num Setembro de outrora


Que em mil estátuas e roxo azul se prolongava
Amei a vida como coisa sagrada
E a juventude me foi eternidade
O INFANTE

Aos homens ordenou que navegassem


Sempre mais longe para ver o que havia
E sempre para o sul e que indagassem
O mar a terra o vento a calmaria
Os povos e os astros
E no desconhecido cada dia entrassem
GOESA

Tudo era atravessado por um rio de memórias


E brisas subtis e lentas se cruzavam
E enquanto lá fora baloiçavam
Os grandes leques verdes das palmeiras
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada
Atravessou o quarto leve e lenta
Num silêncio de guitarra dedilhada
HARPA

A juventude impetuosa do mar invade o quarto


A musa poisa no espaço vazio à contraluz
As cordas transparentes da harpa

E no espaço vazio dedilha as cordas ressoantes


O POEMA E A CASA

Paramos devagar entre paredes brancas


Entre mobílias escuras e as janelas verdes
Um longo instante paramos em frente
Das mil luzes e mil estátuas do poente
À LA MANIÈRE DE

No mundo da arte há muitos saltimbancos


Que voam sem rede e jogam
A virar o mundo de pernas para o ar
Também caminham
Pé ante pé no arame
Equilibrados no fio fino e leve da vara

Eles próprios são leves e finos e recaem


Aéreos sobre a terra e conhecem
As leis abstractas do equilíbrio

O jogo do que é os absorve


Porque o inventam
OLHOS

É fácil desenhar olhos que divagam


Pelo quadro todo
Mas só até ao instante em que se tornam
Os que vão à proa do barco

Olho do piloto fito


No real
Atento
À rota nunca recta
NO MEU PAÍS

As pequenas cidades intensas


Onde o tempo não é dissolvido mas dura
E cada instante ressoa nas paredes da esquina
E o rosto loiro de Laura aflora na janela desencontrada
E o apaixonado de testa obstinada como a de um toiro
Em vão a procura onde ela nunca está
— É aqui que ao passarmos a nossa garganta se aperta
Enquanto um homem alto e magro
Baixando a direito o chapéu largo e escuro
De cima a baixo se descobre
Ao transpor o limiar sagrado da casa
ALENTEJO

A pequena povoação as pedras


Da calçada
Os muros brancos — a ponta do telhado
Se revira como a mão da bailarina
Chinesa —
A loja de barros: tigelas e cestos empilhados
Cheira a palha e a barro
Aroma de hortelã cheiro a vinho entornado
Junto ao sol excessivo a penumbra fina
A HERA

A meticulosa beleza do real


Onda após onda pétala a pétala
E através do pano branco do toldo
A sombra aérea da hera
Tecedora incessante de grinaldas

Maio de 1997
BEIRA-MAR

Mitológica luz da beira-mar


A maré alta sete vezes cresce
Sete vezes decresce o seu inchar
E a métrica de um verso a determina
Crianças brincam nas ondas pequeninas
E com elas em brandíssimo espraiar
Em volutas e crinas brinca o mar

Outubro de 1997
ALCÁCER DO SAL

A sombra azul da palavra moira


O branco vivo da palavra sal
VENEZA

(Prólogo de uma peça de teatro)

Esta história aconteceu


Num país chamado Itália
Na cidade de Veneza
Que é sobre água construída
E noite e dia se mira
Sobre a água reflectida

Suas ruas são canais


Onde sempre gondoleiros
Vão guiando barcas negras
Em Veneza tudo é belo
Tudo rebrilha e cintila

Há quatro cavalos gregos


Sobre o frontão de S. Marcos
E a ponte do Rialto
Desenha aéreo o seu arco
Em Veneza tudo existe
Pois é senhora do mar

Dos quatro cantos do mundo


Os navios carregados
Desembarcam no seu cais
Sedas tapetes brocados
Pérolas rubis corais
Colares anéis e pulseiras
E perfumes orientais

Cidade é de mercadores
E também de apaixonados
Sempre perdidos de amores
E cada dia ali chegam
Persas judeus e romanos
Franceses e florentinos
Artistas e bailarinos
E ladrões e cavaleiros

Aqui só há uma sombra


As prisões da Signoria
E os esbirros do doge
Que espiam a noite e o dia
De resto em Veneza há só
Dança canções fantasia

Cada ano aqui se tecem


Histórias tão variadas
Que às vezes até parecem
Aventuras inventadas

Por isso aqui sempre digo


Que Veneza é como aquela
Cidade de Alexandria
Onde há sol à meia-noite
E há lua ao meio-dia**
** Os últimos 3 versos são da tradição popular.
ARTES POÉTICAS
ARTE POÉTICA I

Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado.
O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na
sombra. A sombra é uma fita estreita. Mergulho a mão na sombra como se a
mergulhasse na água.
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois
da taberna fresca e da oficina escura do ferreiro.
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida
de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. À direita e à esquerda o
chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e
amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro
cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais
os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos
séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho
as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste
tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste
tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser
descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe
em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode
ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.
Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já
agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo,
religação.
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce
penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente
repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um
princípio incorruptível.
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são
oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o
sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está
religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem
ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a
aliança que cada um tece.
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da
noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão.
Semelhante ao corpo de Orpheu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido.
Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa.
Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha
aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
ARTE POÉTICA II

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma
arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me
pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza
do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma
fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma
intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra,
gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como
uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma
obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com
as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as
imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida
concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos,
sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas,
respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra
de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas
artesanato.
É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma
estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o
artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma
matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da
própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz
«obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua
visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas
esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua
necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da
obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do
poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias
foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras
entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu
caminho, o meu reino, a minha vida.
ARTE POÉTICA III

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro
do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do
brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e
inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria
presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio
confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa
felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a
reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso.
Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e
artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real
fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu,
evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com
a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de
verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê
o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso
sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É
apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a
buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde
sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no
teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de
Ésquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua
riqueza, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com
aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer
integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o
Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do
homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do
mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo
nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo
própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto
testemunha a unidade da nossa consciência.
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de
nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida,
integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma
profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a
nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade
do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não
aprendeu a ceder aos desastres.» Há um desejo de rigor e de verdade que é
intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.
O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre
de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da
convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o
destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor
condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de
verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência
comum. Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem
sempre dizer-nos isto: Que não somos apenas animais acossados na luta pela
sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da
dignidade do ser.
Eis-nos aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma língua
comum. Mas acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o padre Teilhard
de Chardin chamou a nossa confiança no progresso das coisas.
E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar
os meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que
estão unidos por uma fé e por uma esperança.
(Palavras ditas em 11 de Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores
por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a Livro Sexto.)
ARTE POÉTICA IV

Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema.» A minha maneira de


escrever fundamental é muito próxima deste «acontecer». O poema aparece
feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto.
É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha
infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas.
Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas
não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que
eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E
que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.
Desse encontro inicial ficou em mim a noção de que fazer versos é estar
atento e de que o poeta é um escutador.
É difícil descrever o fazer de um poema. Há sempre uma parte que não
consigo distinguir, uma parte que se passa na zona onde eu não vejo.
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da
atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir
ouvir o «poema todo» e não apenas um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é
necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não
intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se
quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem
continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como
já feito? A esse «como, onde e quem» os antigos chamavam Musa. É possível
dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente
acumulado, enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por
qualquer estímulo, se projecta na consciência como num écran. Por mim, é-me
difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível,
distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é
feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do
poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna
sensível — como a película de um filme — ao ser e ao aparecer das coisas. E a
partir de uma obstinada paixão por esse ser e esse aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem
intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido,
ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
Assim algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, numa
sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem
em que geralmente mudo não os versos mas a sua ordem. Mas esta intervenção
não é propriamente «inter-vir» pois só toco no poema depois de ele se ter dito
até ao fim. Se toco a meio o poema nas minhas mãos desagrega-se. O poema
«Crepúsculo dos Deuses» (Geografia) é um exemplo desta maneira de escrever.
É uma montagem feita com um texto caótico que arrumei: ordenei os versos e
acrescentei no final uma citação de um texto histórico sobre Juliano, o Apóstata.
Algumas vezes surge não um poema mas um desejo de escrever, um «estado
de escrita». Há uma aguda sensação de plasticidade e um vazio, como num palco
antes de entrar a bailarina. E há uma espécie de jogo com o desconhecido, o «in-
dito», a possibilidade. O branco do papel torna-se hipnótico. Exemplo dessa
maneira de escrever, texto que diz esta maneira de escrever, é o poema de Coral:

Que poema, de entre todos os poemas,


Página em branco?

Outra ainda é a maneira que surgiu quando escrevi O Cristo Cigano: havia
uma história, um tema, anterior ao poema. Sobre esse tema escrevi vários
poemas soltos que depois organizei num só poema longo.
E por três vezes me aconteceu uma outra maneira de escrever: de textos que
eu escrevera em prosa surgiram poemas. Assim o poema «Fernando Pessoa»
apareceu repentinamente depois de eu ter acabado de escrever uma conferência
sobre Fernando Pessoa. E o poema «Maria Helena Vieira da Silva ou O
Itinerário Inelutável» emergiu de um artigo sobre a obra desta pintora. E
enquanto escrevi este texto para a Crítica apareceu um poema que cito por ser a
forma mais concreta de dar a resposta que me é pedida:

Aqui me sentei quieta


Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos

Musa ensina-me o canto


Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente

Durante vários dias disse a mim própria: «tenho de responder à Crítica».


Sabia que ia escrever e sobre que tema ia escrever. Escrevi pouco a pouco, com
muitas interrupções, metade escrito num caderno, metade num bloco, riscando e
emendando para trás e para a frente, num artesanato muito laborioso, perdida em
pausas e descontinuidades. E através das pausas o poema surgiu, passou através
da prosa, apareceu na folha direita do caderno que estava vazia.
Ninguém me tinha pedido um poema, eu própria não o tinha pedido a mim
própria e não sabia que o ia escrever. Direi que o poema falou quando eu me
calei e se escreveu quando parei de escrever. Ao tentar escrever um texto em
prosa sobre a minha maneira de escrever «invoquei» essa maneira de escrever
para a «ver» e assim a poder descrever. Mas, quando «vi», aquilo que me
apareceu foi um poema.
ARTE POÉTICA V

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo
poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de
começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a
literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por
pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a
respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em
certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o
próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles
momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais
tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a
despersonalização.
Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do
almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o
princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria
voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:

A voz sobe os últimos degraus


Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.

(Lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do encontro intitulado Les Belles
Étrangères.)
POEMAS DISPERSOS
Anjos sem asas meus anjos pesados
De boca sem voz
As fadas que disseram os maus fados
Falavam de vós

De mãos dadas em círculos dançantes


Infinita valsa
Todos brilhavam como diamantes
Madrugada falsa

E eu chorando e cantando fui levada


Pálida e morta
Até à taciturna encruzilhada
Duma estrada torta

1940

Lá num país de selvas e lianas


De mágicos tantans e de fantásticos
Animais venenosos que elásticos
Entram à noite pelas persianas

Onde há flores à flor das ondas finas


— Flores que olhá-las só é uma festa —
E rápidas gazelas nas campinas
E homens nus e pintados na floresta

Lá é que está essa vida de mil cores


A que nós todos fomos destinados
Por isso é que paramos perturbados
Ante os cais onde sonham os vapores

1940
INOCÊNCIA E POSSIBILIDADE

As imagens eram próximas


como coladas sobre os olhos
o que nos dava um rosto justo e liso;
os gestos circulavam sem choque nem ruído
as estrelas eram maduras como frutos
e os homens eram bons sem dar por isso

Granja 31 de Agosto 1943


NARCISO

Um longo barco é no silêncio agudo


Outro Narciso em busca do retrato.

29 de Novembro de 1949
És como a Terra-Mãe que nos devora
Prendendo a nossa vida no seu peso.
De ti nos veio a morte, e trazemos
A tristeza e a sombra dos teus membros
Colada ao nosso sonho e o teu amor
Rói-nos na raiz. Larga os nossos braços.
Deixa crescer os gestos que nos brotam.
Nós temos outro corpo pra formar,
Não o corpo pesado que nos deste
Mas um outro que está no horizonte.
Deixa-nos crescer, deixa-nos nascer
E que a nossa raiz de ti se arranque.
NOITE

Noite. Noite em nossa roda. Noite aberta.


E encontramos um silêncio imenso,
Um silêncio perfeito que nos esperava desde sempre.
E uma solidão que era a nossa imagem,
E uma profunda esperança,
Como se a noite tremesse
De tocar a aurora.
No ângulo das coisas visíveis
Suspende um instante a tua face:
Os ventos em flor abriram em segredo
Trazendo peixes e medusas aos teus dedos
E o mar cortado de silêncios outonais

Era preciso cantar a Terra toda


Mas mais que tudo as praias e as florestas
Onde incessantemente se renovam
Desertos desumanos e desumanas festas.

1951
A VIAGEM

Dorso do mar tão quieto nesse dia.


Infinita esmeralda desdobrada.
Como um incenso os halos da maresia.
Cristais de distância.

Um navio esticado no seu vento


Êxtase e poder
Plenitude do tempo
Um navio esticado no seu vento
Presa do espaço intenso.

Um navio de homens carregado,


De vagabundos mareantes procurando
Terras quase lendárias,
Filhos duma áspera pátria de pedras e luz clara
Filhos duma áspera pátria exacta e avara
Que vão de porto em porto derivando.
Filhos duma áspera pátria procurando
A aparição do mundo
Filhos duma áspera pátria sobre o mar errando.

No alto mar os homens parecem


Semelhantes a deuses
Participantes dum rito antiquíssimo e sagrado
De água, luz e vento
Os seus corpos se tornam
Inteiros e ritmados
À própria essência da vida relegados.
NÁUFRAGO ACORDANDO

Um homem só na areia lisa, inerte.


Tão esquecido de si, que tudo o envolve
Em halos de silêncio e nevoeiro.
Um homem de olhos fechados, procurando
Dentro de si memória do seu nome.
Um homem na memória caminhando,
De silêncio em silêncio derivando,
E a onda
Ora o abandonava, ora o cobria.

Com vagos olhos contemplava o dia.


Em seus ouvidos
Como um longínquo búzio o mar zunia.
Líquida e fria,
Uma mão sobre os seus membros escorria:
Era a onda,
Que ora o abandonava, ora o cobria.

Um homem só na areia lisa, inerte,


Na orla dançada do mar.
Nos seus cinco sentidos, devagar,
A presença das coisas principia.
O BRANCO

Foi pelo pranto que te reconheci


Foi pelo branco da praia que te reconheci
Tu sentado à tua mesa
Bebes vinho comes pão
Quem é que plantou a vinha?
Quem é que semeia o grão?

Lá no socalco da serra
Anda a cavar teu irmão
Debruçado sobre a terra
P’ra que tenhas vinho e pão

Para além daquela serra


P’ra que tenhas vinho e pão
Abrindo o corpo da terra
Dobra o corpo o teu irmão

Sua mão concha do cacho


Sua mão concha do grão
Em cada gesto que faz
Põe a vida em comunhão
BRASIL 77

«Em vosso e meu coração»


Manuel Bandeira

Brasil dos Bandeirantes


E das gentes emigradas
Em tuas terras distantes
As palavras portuguesas
Ficaram mais silabadas
Como se nelas houvesse
Desejo de ser cantadas
Brasil espaço e lonjura
Em nossa recordação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não

Brasil de Manuel Bandeira


Que ao franquismo disse não
E cujo verso se inscreve
Neste poema invocado
Em vosso e meu coração
Brasil de Jorge de Lima
Bruma sonho e mutação
Brasil de Murilo Mendes
Novo mundo mas romano
E o Brasil açoriano
De Cecília a tão secreta
Atlântida encoberta
Sob o véu dos olhos verdes
Brasil de Carlos Drummond
Brasil do pernambucano
João Cabral de Melo que
Deu à fala portuguesa
Novo corte e agudeza
Brasil da arquitectura
Com nitidez de coqueiro
Gente que fez da ternura
Nova forma de cultura
País da transformação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não

Brasil de D. Helder Câmara


Que nos mostra e nos ensina
A raiz de ser cristão
Brasil imensa aventura
Em nossa imaginação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não

1977
MAR

De novo o som o ressoar o mar


De novo o embalo do tumulto mais antigo
E a inteireza de instante primitivo

De novo o canto o murmurar o mar


Que se repete intacto e sacral
De novo o limpo e nu clamor primordial
SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Poeta do Redentor
Poeta do Criador
Procuraste
A inocência primeira que a Redenção reergue

Amaste o Criador não apenas em sua Transfiguração e Palavra


Mas também no temporal jardim das coisas criadas
Saudaste o emergir e a frescura do visível

O teu poema celebra o inaugural


Para lá da morte da lacuna da perca e do desastre
O teu poema saúda a verdade primeira de toda a criatura
A inteireza do dia inicial

E o mar se vê em seu primeiro espelho


NAVEGAÇÕES
DESCOBRIMENTO-ENCOBRIMENTO

Pecados cupidez crua violência


Inaceitáveis memórias ensombrando
O puro emergir e a flor da transparência
Oblíquo Setembro de equinócio tarde
Que se alonga e depara e vê e mira
Tarde que habita o estar do seu parado
Sol de Sul pelo sal detido

Assim o estar aqui e o haver sido


Quasi a mesma que sou no tão perdido
Morar aberto de um Setembro antigo
Com o mar desse morar em meu ouvido

Pura paixão que não conhece olvido


NAVEGADORES

Esses que desenharam os mapas da surpresa


Contornando os cabos e dando nome às ilhas
E por entre brilhos espelhos e distâncias
Por entre aéreas brumas irisadas
Em extáticas manhãs solenes e paradas
No breve instante eterno surpreenderam
O arcaico sorrir do mar recém-criado

1987
Cada manhã o alvoroço da luz
Me acorda: a luz atravessa a paisagem e a casa
— A dormir tinha esquecido não as coisas
Mas sua meticulosa beleza
Múltipla

No princípio Deus disse


Faça-se a luz
— E com a luz da manhã o mundo principia
Digo a luz e não o sol
Nos dias de nevoeiro emergem formas brancas
Aqui e além como se vogassem
Numa deriva cismadora e serena

Nos dias de sol os ciprestes enegrecem


E ao longe brilha o regozijo das vidraças

1987
CANÇÃO DO AMOR PRIMEIRO

Tão jovem o Tempo


Tudo amanhecia
O loiro do rosto
Sob o negro da noite
Desde sempre o sabia

O loiro do rosto
A dança do cabelo
Doirado sobre a testa
Sob o choupo escondidos
Como sob floresta

E o loiro do cabelo
A voar na testa
E o linho do rosto
Entre os brilhos da festa

Tão jovem o Tempo


Que tudo luzia
De espanto e surpresa
Redonda a maçã
Que parecia acesa

Era Junho e o perfume


Da rosa e seu lume
Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade das coisas como Ponge diz
Nos constrói
A CASA DE DEUS

A casa de Deus está assente no chão


Os seus alicerces mergulham na terra
A casa de Deus está na terra onde os homens estão
Sujeita como os homens à lei da gravidade
Porém como a alma dos homens trespassada
Pelo mistério e a palavra da leveza

Os homens a constroem com materiais


Que vão buscar à terra
Pedra vidro metal madeira cimento cal
Com suas mãos e pensamento a constroem
Mãos certeiras do pedreiro
Mãos hábeis do carpinteiro
Mão exacta do pintor
Cálculo do engenheiro
Desenho e cálculo do arquitecto
Com matéria e luz e espaço a constroem
Com atenção e engenho e esforço e paixão a constroem

Esta casa é feita de matéria para habitação do espírito


Como o corpo do homem é feito de matéria e manifesta o espírito

A casa é construída no tempo


Mas aqui os homens se reúnem em nome do Eterno
Em nome da promessa antiquíssima feita por Deus a Abraão
A Moisés a David e a todos os profetas
Em nome da vida que dada por nós nos é dada

É uma casa que se situa na imanência


Atenta à beleza e à diversidade da imanência
Erguida no mundo que nos foi dado
Para nossa habitação nossa invenção nosso conhecimento

Os homens a constroem na terra


Situada no tempo
Para habitação da eternidade

Aqui procuramos pensar reconhecer


Sem máscara ilusão ou disfarce
E procuramos manter nosso espírito atento
Liso como a página em branco

Aqui para além da morte da lacuna da perca e do desastre


Celebramos a Páscoa

Aqui celebramos a claridade


Porque Deus nos criou para a alegria

Páscoa de 1990
Aqui as sombras se misturam com as luzes
Cavas roucas recônditas as vozes
Do interior do tempo os rostos surgem

1 Dezembro 1991
D. ANTÓNIO FERREIRA GOMES
BISPO DO PORTO

Na cidade do Porto há muito granito


Entre névoas sombras e cintilações
A cidade parece firme e inexpugnável
E sólida — mas habitada
Por súbitos clarões de profecia
Junto ao rio em cujo verde se espelham as visões —
Assim quando eu entrava no paço do Bispo
E passava a mão sobre a pedra rugosa
O paço me parecia fortaleza
Porém a fortaleza não era
Os grossos muros de pedra caiada
Nem os lintéis de pedra nem a escada
De largos degraus rugosos de granito
Nem o peso frio que das coisas inertes emanava
Fortaleza era o homem — o Bispo —
Alto e direito firme como torre
Ao fundo da grande sala clara: fortaleza
De sabedoria e sapiência
De compaixão e justiça
De inteligência a tudo atenta
E na face austera por vezes ao de leve o sorriso
Inconsútil da antiga infância

1998
NAQUELE TEMPO

Sob o caramanchão de glicínia lilás


As abelhas e eu
Tontas de perfume

Lá no alto as abelhas
Doiradas e pequenas
Não se ocupavam de mim
Iam de flor em flor
E cá em baixo eu
Sentada no banco de azulejos
Entre penumbra e luz
Flor e perfume
Tão ávida como as abelhas

Abril de 98
ELSINORE

Cheirava a mar em Elsinore


Um leve cheiro a mar misturado
Com o aroma primaveril de ervas e arvoredo

O castelo fora por várias vezes reconstruído


E uma vez purificado pelo fogo
Tudo fora lavado e pintado
Passado a limpo exorcizado

No entanto
Numa das salas do castelo
Um quadro do século dezoito mostrava
Uma rainha bela imperiosa arrogante
E no seu rosto a sombra de outro se espelhava
E também as muralhas vermelhas de tijolo
Sobre as águas obscuras do fosso projectavam
Uma sombra muito antiga e cor de sangue

Cá fora o mar era de um azul claríssimo


Crianças brincavam na relva à luz do sol
E famílias felizes de perto as olhavam
Porém a guia disse que o passado mora do outro lado do castelo
E que o pano só sobe depois do sol descer

E que as palavras só se cruzam como facas


Quando soa a hora em que se embruxa a noite

E eu entre barco e avião cheguei desencontrada


Nada vi da profunda e visionária noite
INVERNO

Este Inverno é longo gélido


E confuso
Na varanda só o vento passa
E o vento olha-nos de esguelha quando passa

Nenhum poema aflora


Entre as linhas finas e aéreas
Da página em branco

Inverno de 1999
AVIÕES

Amanhã voltarei ao ritmo solar


No céu azul os aviões passarão
Quasi devagar
A manhã estática parada
Entre o Tejo azul e a Torre branca
Que branca e barroca sobe das águas

Manhã acesa de silêncio e louvor


Na breve primavera violenta
Assim a minha vida que era calma

De repente se tornou ânsia e saudade

Mas a brisa da varanda é doce e suave


Um pássaro canta porque alguém regou

Maio de 2000
PERCA

Ainda há luz e já o rumor da tarde


me separa da sombra do pinhal

como viver de novo a alegria una


de ter sido nova que falhei

só o tempo e bem tarde


me envelheceu
depois perdi sem saber como o andar
dos meus passos

Setembro de 2001
Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia

Setembro de 2001
PROVENIÊNCIA DOS POEMAS DISPERSOS

[Anjos sem asas meus anjos pesados], in Távola Redonda — Folhas de Poesia, 8, Novembro de 1950.
«Lá», Jornal de Letras, 16 de Fevereiro de 1982.
«Inocência e possibilidade», in Público, 23 de Junho de 2009.
«Narciso», in Távola Redonda — Folhas de Poesia, 7, Julho de 1950; publicado pela primeira vez em livro
na 5.ª ed. de Mar, antologia organizada por Maria Andresen Sousa Tavares.
[És como a Terra-Mãe que nos devora], in Távola Redonda — Folhas de Poesia, 7, Julho de 1950.
«Noite», in A Teixeira de Pascoaes — Homenagem da Academia de Coimbra pela voz de escritores
portugueses e brasileiros. Coimbra, Academia de Coimbra, 1951.
[No ângulo das coisas visíveis], in Árvore — folhas de poesia, 2, Inverno de 1951-1952; publicado pela
primeira vez em livro na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
«A viagem», in Cidade Nova, 1, série VI, 1959, com a indicação «Fragmento do poema “Naufrágio”»;
publicado pela primeira vez em livro na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
«Náufrago acordando», in Colóquio — Revista de Artes e Letras, 2, Março de 1959; publicado pela
primeira vez em livro na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
«O branco», in 11 Poemas, Lisboa, Movimento, 1971, republicado na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
[Tu sentado à tua mesa], Cartaz (Sophia de Mello Breyner Andresen / José Escada, 1975).
«Brasil 77», in Loreto 13, n.º 8, Março de 1982.
«Mar», in Poemas Escolhidos, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981.
«São Francisco de Assis», in Francisco de Assis 1182-1982, Testemunhos Contemporâneos das Letras
Portuguesas. Org. de Adelino Pereira, Lisboa, INCM, 1982.
«Navegações descobrimento-encobrimento», in Afecto às Letras. Homenagem da Literatura Portuguesa
Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, INCM, 1984.
[Oblíquo Setembro de equinócio tarde], in Portugal Socialista, n.º 182, Janeiro de 1984; republicado em
Mealibra, n.º 12, Verão de 2003; publicado pela primeira vez em livro na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
«Navegadores», in Salem, n.º 2, Revista da Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia,
Novembro de 1987 (republicado em Mealibra, n.º 12, série 3, Verão de 2003); publicado pela primeira
vez em livro na 5.ª ed. de Mar, org. MAST.
[Cada manhã o alvoroço da luz], in Mealibra, n.º 12, série 3, Verão de 2003.
«Canção do amor primeiro», in Sete Poemas para Júlio, Lisboa, 1988.
[Como esquecida voz de um amor muito antigo], in As Escadas não têm degraus, n.º 3, Março de 1990.
«A casa de Deus» in Igreja de Santa Maria — Marco de Canaveses, Álvaro Siza Vieira, fotografia de José
Manuel Rodrigues e desenho de José Manuel Soares dos Reis, Marco de Canaveses, Paróquia de Santa
Marinha de Fornos e Francisco Guedes, 1998.
[Aqui as sombras se misturam com as luzes], in Graça Morais, Lisboa, Soctip, 1992.
«D. António Ferreira Gomes Bispo do Porto», in Jornal de Letras, 16 de Junho de 1999.
«Naquele tempo», in Jornal de Letras, 16 de Junho de 1999.
«Elsinore», in Memória de Afectos — Homenagem da Cultura Portuguesa ao Prof. Giuseppe Tavani,
Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 11-12. Publicado pela primeira vez em livro na antologia Mar, 5.ª
edição, org. MAST.
«Inverno», in Relâmpago, n.º 6, Abril de 2000.
«Aviões», in Relâmpago, n.º 6, Abril de 2000.
[A manhã estática parada], in Relâmpago, n.º 6, Abril de 2000.
«Perca», in Relâmpago, n.º 9, Outubro de 2001.
[Quem me roubou o tempo que era um], in Relâmpago, n.º 9, Outubro de 2001.
INÉDITOS
Beijei a terra com os meus olhos, a minha boca e os meus dedos
Enrolei-a a mim em círculos inumeráveis
E em contemplações intermináveis
Dissolvi-me nos seus segredos
Como todo o amor humano
Eras impuro, falso e vil,
Mas eu ergui a perfeição do teu perfil
Na manhã d’hoje em frente do Oceano.
Enigmáticos, desertos e suspensos
Os espaços vermelhos do poente,
Países de completa maravilha,
Cobrem o campo morto dos destroços

Um por um morremos olhos fitos


No caminho dos deuses.
Quando morreste de repente arrastando contigo para a morte a minha infância
Morreste sozinho
Entre pinhais rios e campos
Como um homem do paleolítico no rasto da caça
Morreste em agonia
Inteiro e sereno e de bem com as coisas
Tinhas olhado com alegria a claridade da manhã de Dezembro
A terra era justa
O solo germinava
Foste velado primeiro na cabana do pescador
Depois na casa
Dormias na justiça terrestre
Na pura fidelidade à imanência
À tua maneira
Deus recebe em seu silêncio puro
O sonho do arquitecto

E dá-te a plenitude da morada


De que foste projecto

Para tudo se tornou tarde


Até para o mar e para o vento
A tua morte tudo invade
Com desalento
A CIDADE DOS OUTROS

Túnica de tortura era a cidade


Que tecida pelos outros nos vestia

Nem uma folha de tília ou de palmeira


Nos escondia

Caminhamos no chão azul das noites


E nas arenas brancas do meio dia

E a cidade como cães nos perseguia


São estes os dias do novo estio deslumbrado
Quando depomos as grades e as barreiras
Como um vestido que foi usado contra o frio
São estes os dias em que a ferocidade depõe as suas armas
Teu passo não enraizou nas areias de seda
Embora te iniciasse Ártemis
Quando atravessaste a roxa
Respiração da aurora tropical

Tomaste em tua mão o sopro


Como um fruto ou como um rosto

Nas palavras tupi procuraste o segredo


Extremo do lugar
Uma névoa velou o azul dos morros
As praias como braços se estendiam
No mar corriam todas as quadrigas
Atreladas em mão azul
Tu que esculpes no ar o vento musculado
Belo é o teu sorriso sem cabeça
A tua alegria lutadora e veemente
Que vai pesando uma por uma as proas dos navios

Belo é o teu passo impetuoso


Ó portadora sem braços nem oferenda
De ti só recebemos
O mundo onde moramos e o que somos
1

A respiração dos deuses é um silêncio nu


E uma nudez mais aguda poisada sobre as coisas

Aqui minha alma se suspende


Como tocando a substância pressentida

Eis o centro do mundo seu umbigo


A exacta proporção de presença e vazio
A minha vida está vivida
Já minha morte prepara
Seu pó de beladona
Viajarei ainda para me despedir das imagens
Antes de despir a túnica do visível

Em vão me engano
Verdadeiramente sou quem fui
Atravessando quartos forrados de espelhos ardentes
E diluída no fulgor da Primavera antiga

Se ainda busco o promontório de Sunion


É porque nele vejo a minha face despida
O mitológico mundo interior e exterior
Da minha própria unidade perseguida

Mas como despedir-me deste sal


Deste vento inventor de degraus e colunas
Como despedir-me das pedras deste mar
E deste denso amor inteiro e sem costuras
Obras de Sophia de Mello Breyner Andresen
POESIA

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I,
1975, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005,
Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª
ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.
DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1974,
Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa,
Editorial Caminho; 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.),
Lisboa, 2014, prefácio de Gastão Cruz.
CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª
ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª
ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e
Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa,
Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª
ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.
MAR NOVO, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo,
Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial
Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.),
Lisboa, 2013, prefácio de Fernando J.B. Martinho.
O CRISTO CIGANO, 1.ª ed., O Cristo Cigano ou A Lenda do Cristo Cachorro, 1961, Lisboa, Minotauro,
ilustrações de Júlio Pomar; 2.ª ed., 1978, Lisboa, Moraes Editores, ilustração de José Escada; 3.ª ed.,
revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na
Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Rosa Maria Martelo.
LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora; 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais
Editora; 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora; 4.ª ed., 1972, Lisboa, Livraria Morais Editora;
5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores; 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra; 7.ª ed., revista, 2003,
Lisboa, Editorial Caminho; 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio &
Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.
GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1990,
Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial
Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.
ANTOLOGIA, 1.ª ed., 1968, Lisboa, Portugália Editora; 2.ª ed., 1970, Lisboa, Moraes Editores; 3.ª ed.,
1975, Lisboa, Moraes Editores; 4.ª ed., 1978, Lisboa, Moraes Editores, prefácio de Eduardo Lourenço;
5.ª ed., 1985, Porto, Figueirinhas.
GRADES [Antologia de Poemas de Resistência], 1970, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
11 POEMAS, 1971, Lisboa, Movimento.
«POEMAS DE UM LIVRO DESTRUÍDO», 1972, in Fevereiro — Textos de Poesia, Lisboa. (Incluído em
No Tempo Dividido, a partir da 2.ª ed.).
DUAL, 1.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores; 2.ª ed., 1977, Lisboa, Moraes Editores; 3.ª ed., 1986, Lisboa,
Edições Salamandra; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Eduardo Lourenço.
O NOME DAS COISAS, 1.ª ed., 1977, Lisboa, Moraes Editores; 2.ª ed., 1986, Lisboa, Edições
Salamandra; 3.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial
Caminho.
Poemas Escolhidos, 1981, Lisboa, Círculo de Leitores.
Navegações, 1.ª ed., 1983, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda; 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial
Caminho; 3.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.
O SOL O MURO O MAR, 1984, Lisboa. Portfólio com seis fotografias de Eduardo Gageiro. (Incluído em
Ilhas.)
ILHAS, 1.ª ed., 1989, Lisboa, Texto Editora, ilustração de Xavier Sousa Tavares; 2.ª ed., 1990, Lisboa,
Texto Editora; 3.ª ed., 1992, Lisboa, Texto Editora; 4.ª ed., 2001, Lisboa, Texto Editora; 5.ª ed., revista,
2004, Lisboa, Editorial Caminho.
OBRA POÉTICA I, 1.ª ed., 1990, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., 1991, Lisboa, Editorial Cami-nho; 3.ª
ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 1998, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., 1999, Lisboa,
Editorial Caminho; 6.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho.
OBRA POÉTICA II, 1.ª ed., 1991, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho; 3.ª
ed., 1998, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 1999, Lisboa, Editorial Caminho.
OBRA POÉTICA III, 1.ª ed., 1991, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., 1996, Lisboa, Editorial Caminho; 3.ª
ed., 1999, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho.
SINGRADURAS, 1991, Lisboa, Galeria 111, com seis gravuras de David de Almeida. (Poema VI de «As
Ilhas», incluído em Navegações.)
OBRA POÉTICA I e OBRA POÉTICA II, 1992, Lisboa, Círculo de Leitores.
MUSA, 1.ª ed., 1994, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., 1995, Lisboa, Editorial Caminho; 3.ª ed., 1997,
Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa,
Editorial Caminho.
SIGNO (ESCOLHA DE POEMAS), 1.ª ed., 1994, Lisboa, Editorial Presença/Casa Fernando Pessoa (inclui
um CD com poemas ditos por Luis Miguel Cintra).
ILHAS — POEMAS ESCOLHIDOS/ISLANDS — SELECTED POEMS, 1995, Lisboa, Texto
Editora/Expo’98, versão inglesa de Richard Zenith, fotografias de Daniel Blaufuks.
O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS, 1.ª ed., 1997, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., 1998, Lisboa,
Editorial Caminho; 3.ª ed., 1999, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 2002, Lisboa, Editorial Caminho;
5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.
MAR [Antologia organizada por Maria Andresen de Sousa Tavares], 1.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial
Caminho; 2.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho; 3.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed.,
2002, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista e aumentada, 2004, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed.,
2006, Lisboa, Editorial Caminho; 7.ª ed., 2009, Alfragide, Editorial Caminho.
ORPHEU E EURYDICE, 2001, Lisboa, Galeria 111, ilustrações de Graça Morais.
CEM POEMAS DE SOPHIA, 1.ª ed., 2004, Lisboa, Visão/JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, selecção e
introdução de José Carlos de Vasconcelos.
OBRA POÉTICA (edição de Carlos Mendes de Sousa), 1.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho; 2.ª ed.,
2011, Alfragide, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (3.ª ed.), Lisboa, 2015, prefácio de
Maria Andresen Sousa Tavares.
OS POEMAS SOBRE PESSOA [Antologia organizada por Maria Andresen Sousa Tavares], 1.ª ed., 2012,
Alfragide, Editorial Caminho.

PROSA

CONTOS EXEMPLARES, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora; 2.ª ed., 1966, Lisboa, Portugália
Editora; 3.ª ed., 1970, Lisboa, Portugália Editora, prefácio de D. António Ferreira Gomes; 13.ª ed.,
1983, Porto, Figueirinhas; 37.ª ed., 2010, Porto, Figueirinhas. 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2013,
ilustrações de João Catarino. 1.ª edição na Assírio & Alvim (39.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de
Federico Bertolazzi.
OS TRÊS REIS DO ORIENTE, 1.ª ed., 1965, Lisboa, Estúdios Cor, ilustrações de Manuel Lapa; 2.ª ed., s/d
[1980], Lisboa, Galeria S. Mamede/Portugália Editora, ilustrações de Francisco Relógio; 3.ª ed., s/d
[2004], Porto, Figueirinhas, ilustrações de Fedra Santos. (Incluído em Contos Exemplares, a partir da 3.ª
ed.). 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2013, ilustrações de Fátima Afonso.
A CASA DO MAR, 1979, Lisboa, Galeria S. Mamede, ilustrações de Maria Helena Vieira da Silva.
(Incluído em Histórias da Terra e do Mar.)
HISTÓRIAS DA TERRA E DO MAR, 1.ª ed., 1984, Lisboa, Edições Salamandra; 2.ª ed., 1984, Lisboa,
Edições Salamandra; 3.ª ed., 1989, Lisboa, Texto Editora; 21.ª ed., 2002, Lisboa, Texto Editora. 1.ª
edição na Porto Editora, Porto, 2013, ilustrações de Jorge Nesbitt. 1.ª edição na Assírio & Alvim (23.ª
ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Gustavo Rubim.
«O CARRASCO», As Escadas não Têm Degraus, n.º 5, 1991, Lisboa, Edições Cotovia.
ERA UMA VEZ UMA PRAIA ATLÂNTICA, 1997, Lisboa, Expo’98.
«LEITURA NO COMBOIO» e «O CEGO», Colóquio/Letras, n.º 159-160, Janeiro-Junho de 2002,
ilustrações de Tiago Manuel.
O ANJO DE TIMOR, 2003, Marco de Canaveses, Cenateca, Associação Teatro e Cultura, ilustrações de
Graça Morais.
QUATRO CONTOS DISPERSOS, 2008, Porto, Figueirinhas, ilustração de Diogo Vaz. 1.ª edição na Porto
Editora, Porto, 2012, ilustrações de João Caetano.

CONTOS PARA CRIANÇAS


CONTOS PARA CRIANÇAS

A MENINA DO MAR, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Edições Ática, ilustrações de Sarah Affonso; 2.ª ed., 1961,
Lisboa, Editorial Aster, ilustrações de Fernando de Azevedo; 3.ª ed., 1972, Porto, Figueirinhas,
ilustrações de Armando Alves; 7.ª ed., 1977, Porto, Figueirinhas, ilustrações de Luís Noronha da Costa;
41.ª ed., 2002, Porto, Figueirinhas. 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2012, ilustrações de Fernanda
Fragateiro.
A FADA ORIANA, 1.ª ed., 1958, Lisboa, Edições Ática, ilustrações de Bió, capa de Quito sobre quadro de
Nuno Siqueira; 2.ª ed., 1964, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., s/d [c. 1972], Lisboa, Edições Ática,
ilustrações de Luís Noronha da Costa; 7.ª ed., 1982, Porto, Figueirinhas, ilustrações de Natividade
Corrêa; 34.ª ed., 2002, Porto, Figueirinhas. 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2012, ilustrações de
Teresa Calem.
A NOITE DE NATAL, 1.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática, ilustrações de Maria Keil; 2.ª ed., s/d [1972],
Lisboa, Edições Ática, ilustrações de José Escada; 3.ª ed., 1983, Lisboa, Edições «O Jornal», ilustrações
de José Escada; 4.ª ed., 1989, Porto, Figueirinhas, ilustrações de Júlio Resende; 1.ª edição na Porto
Editora, Porto, 2013, ilustrações de Jorge Nesbitt.
O CAVALEIRO DA DINAMARCA, 1.ª ed., 1964, Porto, Figueirinhas, ilustrações de Armando Alves; 56.ª
ed., 2001, Porto, Figueirinhas; 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2014, ilustrações de Henrique Cayatte.
O RAPAZ DE BRONZE, 1.ª ed., 1965, Lisboa, Minotauro, ilustrações de Fernando de Azevedo; 2.ª ed.,
1972, Lisboa, Moraes Editores; edição e oferta da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia
de Portugal e Camões e das Comunidades Portuguesas, 1977 (Moraes Editores), ilustrações da colecção
particular da Autora; 5.ª ed., 1978, Lisboa, Moraes Editores, ilustrações de Natividade Corrêa; 6.ª ed.,
1979, Lisboa, Moraes Editores; 7.ª ed., 1983, Lisboa, Moraes Editores, ilustração da capa de Vitorino
Martins; 9.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Júlio Resende; 19.ª ed., 1994, Lisboa,
Edições Salamandra. 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2013, ilustrações de Inês do Carmo.
A FLORESTA, 1.ª ed., 1968, Porto, Figueirinhas, ilustrações de Armando Alves; 23.ª ed., 1995, Porto,
Figueirinhas, ilustrações de Teresa Olazabal Cabral; 35.ª ed., Porto, Figueirinhas. 1.ª edição na Porto
Editora, Porto, 2013, ilustrações de Sofia Arez.
A ÁRVORE, 1.ª ed., 1985, Porto, Figueirinhas; 13.ª ed., 2002, Porto, Figueirinhas. 1.ª edição na Porto
Editora, Porto, 2013, ilustrações de Teresa Lima.
«A CEBOLA DA VELHA AVARENTA», in A Antologia Diferente — De Que São Feitos os Sonhos,
organização de Luísa Ducla Soares, 1986, Porto, Areal Editores, ilustração de Vítor Simões.
OS CIGANOS [edição especial], Sophia de Mello Breyner Andresen, Pedro Sousa Tavares, 1.ª edição,
2012, Porto, Porto Editora, ilustrações de Danuta Wojciechowska.
OS CIGANOS, Sophia de Mello Breyner Andresen, Pedro Sousa Tavares, 1.ª edição, 2012, Porto, Porto
Editora, ilustrações de Danuta Wojciechowska.

ANTOLOGIAS ORGANIZADAS PELA AUTORA

POESIA SEMPRE I (em colaboração com Alberto de Lacerda), s/d [1964], Lisboa, Livraria Sampedro
Editora.
POESIA SEMPRE II, s/d [1964] ], Lisboa, Livraria Sampedro Editora.
PRIMEIRO LIVRO DE POESIA, 1.ª ed., 1991, Lisboa, Editorial Caminho, ilustrações de Júlio Resende;
11.ª ed., 2008, Lisboa, Editorial Caminho.

TEATRO

O BOJADOR, 1.ª ed., s/d [1961], Lisboa, separata da Escola Portuguesa, Direcção-Geral do Ensino
Primário; 2.ª ed., 2000, Lisboa, Editorial Caminho, ilustrações de Henrique Cayatte; 3.ª ed., 2006,
Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., 2009, Lisboa, Editorial
Caminho; 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2014, ilustrações de João Catarino.
O COLAR, 1.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial Caminho; 2.ª ed., revista, 2002, Lisboa, Editorial Caminho; 3.ª
ed., 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., 2006, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., 2008, Lisboa,
Editorial Caminho; 6.ª ed., 2009, Lisboa, Editorial Caminho; 1.ª edição na Porto Editora, Porto, 2012,
ilustrações de Daniel Silvestre da Silva; 2.ª edição, 2013, Porto, Porto Editora, ilustrações de João
Catarino. 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Luis Miguel Cintra.

ENSAIO (selecção)

«A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES», Cidade Nova — Revista de Cultura, IV Série, n.º 6, 1956.
«POESIA E REALIDADE», Colóquio — Revista de Artes e Letras, n.º 8, 1960.
«CAMINHOS DA DIVINA COMÉDIA», Diário de Lisboa, 13 de Maio e 1 de Julho de 1965; republicado
em Ler — Livros & Leitores, n.º 58, Primavera de 2003, ilustrações de Tiago Manuel.
O NU NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA, 1.ª ed., 1975, in O Nu e a Arte, Lisboa, Estúdios Cor; 2.ª ed., s/d
[c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., 1992, Lisboa, Editorial Caminho.

TRADUÇÕES

A VIDA QUOTIDIANA NO TEMPO DE HOMERO (Émile Mireaux), 1.ª ed., s/d [c. 1957], Lisboa, Livros
do Brasil; 3.ª ed., s/d [1979], Lisboa, Livros do Brasil.
A ANUNCIAÇÃO A MARIA (Paul Claudel), s/d [1960], Lisboa, Editorial Aster.
O PURGATÓRIO (Dante), 1.ª ed., 1962, Lisboa, Minotauro; 2.ª ed., 1981, Lisboa, Círculo de Leitores.
MUITO BARULHO POR NADA (William Shakespeare), 1964 (inédito).
HAMLET (William Shakespeare) [1965]; 1.ª ed., 1987, Porto, Lello & Irmão Editores.
QUATRE POÈTES PORTUGAIS — CAMÕES, CESÁRIO VERDE, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO,
FERNANDO PESSOA, 1.ª ed., 1970, Paris, Presses Universitaires de France e Fundação Calouste
Gulbenkian — Centre Culturel Portugais; 2.ª ed., 1979, Paris, Presses Universitaires de France e
Fundação Calouste Gulbenkian — Centre Culturel Portugais.
SER FELIZ (Leif Kristiansson), 1.ª ed., 1973, Lisboa, Editorial Presença; 6.ª ed., 1997, Lisboa, Editorial
Presença.
UM AMIGO (Leif Kristiansson), 1.ª ed., 1973, Lisboa, Editorial Presença; 11.ª ed., 2001, Lisboa, Editorial
Presença.
MEDEIA (Eurípides), 1.ª ed., 2006, Lisboa, Editorial Caminho, prefácio de Frederico Lourenço.

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