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Eugénio de Andrade
ISBN 978-972-37-1946-8
PREFÁCIO
José Tolentino Mendonça
EUGÉNIO DE ANDRADE:
EM VEZ DE UM RETRATO
Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.
Meu casto
e puro amor provinciano,
não percas tempo
acendendo velas
no teu oratório:
nenhum santo
nem eu
estamos na disposição
de fazer o milagre
do teu casamento.
NOCTURNO
Noite,
noite velha
nos caminhos.
A lua no alto
fingindo-se cega.
Estrelas. Algumas
caíram ao rio.
As rãs
e as águas
estremecem de frio.
ADAGIO
O outono é isto —
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.
QUASE NADA
O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
IN MEMORIAM
(F.G.L.)
Noite aberta.
A lua
tropeça nos juncos.
Que procura a lua?
A raiz do sangue?
Um rio onde durma?
A voz delirando
no olival, exangue?
Sonâmbula,
que procura a lua?
O rosto da cal
que no rio flutua?
AS MÃOS E OS FRUTOS
Let thy blood be thy direction till thy death.
Shakespeare
I
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
— Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
II
Caem os sonhos um a um
e o sangue estremece.
Caem, e ficam no chão
de quem os morde e os esquece.
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
Senhora Sant’Ana,
Tapai-me cum véu,
que eu sou pequenino,
levai-me prò Céu.
— Ó Ti Ana! Ti Ana!
Faça-me um favor!
— Empreste-me a pele
pra fazer um tambor!
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
OS AMANTES SEM DINHEIRO
Boca da terra.
Ao longe pressentida
mas discreta.
A quem te procura
entregas-te aberta.
IMPROVISO NA MADRUGADA
Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.
CANÇÃO BREVE
A lembrança do dia
é leve de se ter:
garganta de um jardim,
só aroma ao descer.
ELEGIA
Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.
A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.
Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Adeus.
AS PALAVRAS INTERDITAS
PRIMEIRAMENTE
Meu amor,
amor duma viagem nocturna
com as andorinhas,
iluminou-se o teu corpo na noite.
Iluminou-se com a palavra exacta
que muda os cavalos em rios,
os rios em aves,
as aves na tua boca.
Amanhece.
Um galo risca o silêncio
desenhando o teu rosto nos telhados.
Eu falo do jardim onde começa
um dia claro de amantes enlaçados.
VEGETAL E SÓ
Porém eu procuro-te.
Antes de a morte se aproximar, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
OS OLHOS RASOS DE ÁGUA
Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.
Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, ninguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca
atirada contra o nevoeiro.
É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos.
Eu dizia:
«Nenhuma brisa é triste»,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.
Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.
E procurava.
URGENTEMENTE
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
(e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo)
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.
RETRATO
Tigre adormecido,
coração do dia.
Rosto semeado
de melancolia.
Noite transparente,
primavera escura.
Sombra rodeada
de mar e brancura.
Tigre adormecido.
Coração do dia.
Puro e violento
incêndio de alegria.
EPITÁFIO PARA UM MARINHEIRO
MORTO QUANDO JOVEM
Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.
Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.
Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.
Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.
CORAÇÃO DO DIA
À memória de minha Mãe
INTRODUÇÃO AO CANTO
Ergue-te de mim,
substância pura do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim.
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde.
AS PALAVRAS
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te de tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
TARDE FERIDA
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
ENTRE MARÇO E ABRIL
Quando o outono
já não pode senão melancolia
é que o secreto rumor da água
inunda os lábios de oiro.
QUASE NADA
Um sopro quase,
esses lábios.
Sede de cal.
Quase lume.
Lume
quase de orvalho.
Lábios:
ocultas águas.
NÃO PERGUNTES
Agora
onde te despes
é verão:
tudo acolhe
e afaga
o que teu corpo tem
de concha
molhada.
À TUA SOMBRA
A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
OUTRO MADRIGAL
A mão
que levei à boca
interminavelmente fresca
é outra vez a casa
onde a palavra
acaba de nascer
e o verão.
ALBA
como se as nascentes
fossem só ardor,
o desejo hesita
em ser espada ou flor.
DE PERFIL
só desejo de ser
um travo de alegria?
Um fulgor? Um fluir?
Eras tu? Era o dia?
VARIAÇÕES EM TOM MENOR
É março ou abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.
É junho? É setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.
OSTINATO
Ao desejo,
à sombra aguda
do desejo,
eu me abandono.
E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei;
um corpo, um rio;
um pequeno tigre de inocência
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho,
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
De um corpo falei:
que rompam as águas.
CANÇÃO
O último pássaro
canta nos álamos.
A luz fatigada
tropeça nos ramos.
A terra é só vaga
memória de lábios.
Ah canta, canta,
rouxinol da água.
LITANIA COM O TEU ROSTO
Uma gaivota.
Alma do mar e tua,
abandona-se à luz.
Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
— e desperte o lume.
QUE DIREMOS AINDA?
1
Com palavras amo.
2
Inclina-te como a rosa
só quando o vento passe.
3
Despe-te
como o orvalho
na concha da manhã.
4
Ama
como o rio sobe os últimos degraus
ao encontro do seu leito.
5
Como podemos florir
ao peso de tanta luz?
6
Estou de passagem:
amo o efémero.
7
Onde espero morrer
será manhã ainda?
ESCRITA DA TERRA
1
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2
Só o desejo é matinal.
3
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
5
Beber-te a sede e partir
— eu sou de tão longe.
6
Da chama à espada
o caminho é solitário.
7
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
PASTORAL
A terra inocente
abre-se ao ardor
de oiro de uma flauta
— será que o pastor
ou a primavera
desperta e se exalta?
ANUNCIAÇÃO DA ALEGRIA
1
Um nó de luz ou uma lágrima:
nada mais era quando despertava.
2
Sabor de água, puro sabor
de ser matinal até doer.
3
Sabor de ser
ardor de florir,
rumor de amanhecer.
4
Ser
da neve ao fogo um só ardor.
5
Um só fluir, um só fulgor.
NOCTURNO A DUAS VOZES
— Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.
— Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento.
1
Apelo da manhã perdido em flor:
ave seria se não fosse ardor.
2
Pelo sabor da água reconheço
a ternura e os flancos do verão.
3
Um corpo brilha nu para o desejo
dançar na luz a pique das areias.
4
Nas águas rumorosas da memória
contigo acabo agora de nascer.
5
O vento inclina as hastes à luz dura:
a terra está próxima e madura.
OS FRUTOS
1
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.
2
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.
3
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.
4
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.
5
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.
QUASE HAIKU
De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.
NOCTURNO DA ÁGUA
1
No espaço de um relâmpago
os olhos reflectem os navios.
2
O silêncio brilha acariciado.
3
O silêncio é de todos os rumores
o mais próximo da nascente.
4
Só água era, e sem memória.
5
Claridade sem repouso, ó claridade,
aguda nos juncos, nas pedras rasa.
6
É no ardor dos cardos
que o vento faz a casa.
7
Da pedra ao sal, do sal à espuma,
amo a pobreza e a brancura.
ESCUTO O SILÊNCIO
Um só rumor de sangue
jovem:
dezasseis luas altas,
selvagens, inocentes e alegres,
ferozmente enternecidas;
dezasseis potros
brancos na colina sobre as águas.
Como um rio cresce, cresce um rumor;
quero eu dizer,
assim um corpo cresce, assim
as ameixieiras bravas
do jardim,
assim as mãos,
tão cheias de alegria,
tão cheias de abandono.
Um rumor de sementes,
de cabelos
ou ervas acabadas de cortar,
um irreal amanhecer de galos
cresce contigo,
na minha noite de quatro muros,
no limiar da minha boca,
onde te demoras a dizer-me adeus.
1
Ó pureza apaixonadamente minha:
terra toda nas minhas mãos acesa.
2
O que sei de ti foi só o vento
a passar nos mastros do verão.
3
Um corpo apenas, barco ou rosa,
rumoroso de abelhas ou de espuma.
4
Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia.
5
Amo como as espadas brilham
no ardor indizível do dia.
6
Seria a morte esta carícia
onde o desejo era só brisa?
CANTE JONDO
onde as cigarras
ou a cal
queimam
lentamente o coração.
EPITÁFIO
Barcos ou não
ardem na tarde.
No ardor do verão
todo o rumor é ave.
Voa coração.
Ou então arde.
ANTES DA NEVE
As grandes searas
sacudirão a crina,
a luz de setembro
tombará dos olmos,
a espuma do vinho
extinguir-se-á
como lume breve —
só então a neve…
FIM DE SETEMBRO
Ó manhã, manhã,
manhã de setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.
ESPADAS DA MELANCOLIA
Um corpo
para estender a náufragos — o teu corpo.
Um rasto de cadelas aluadas,
um charco de maçãs apodrecidas
ou longas cabeleiras apagadas.
Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.
EXÍLIO
O rosto,
o rosto do verão,
a púrpura do fogo,
a aliança, a confiança,
minha guitarra, meu cão de cego —
lembra-te.
OBSCURO DOMÍNIO
O OFÍCIO
Recomeço.
Não tenho outro ofício.
recomeço,
pedra sobre pedra,
a juntar palavras;
quero eu dizer:
ranho baba merda.
NAS PALAVRAS
Álamos.
Música
de matutina cal.
Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.
Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.
Acidulada
música de cardos.
Música do fogo
em redor dos lábios.
Desatada
à roda da cintura.
Entre as pernas,
junta.
Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.
Regaço
onde o lume breve
duma romã brilha.
Música, levai-me:
Procura a maravilha.
Ou a sombra espessa.
Na laranja aberta
à língua do vento.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
OS ANIMAIS
Agora sei
onde começa a ternura:
reconheço
o arbusto do fogo.
Conheci o deserto
da cal.
A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.
As janelas
abrem sobre as fontes.
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.
Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome.
PLENAMENTE
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
espera o ardor
do vento
para ser ave,
e cantar.
NO CIMO DA PEDRA
ardo —
arde comigo
a memória de pássaros
despertos,
desertos,
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser —
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
CORPO HABITADO
porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve,
abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho —
a glande leve.
EM LOUVOR DO FOGO
Um dia chega
de extrema doçura:
tudo arde.
Arde a luz
nos vidros da ternura.
As aves,
no branco
labirinto da cal.
As palavras ardem,
a púrpura das naves.
O vento,
O limoeiro, as colinas.
Tudo arde
na extrema e lenta
doçura da tarde.
ARTE DE NAVEGAR
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
a terra
e o seu muro de tristeza,
um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,
a respiração do trigo,
os lábios,
instrumentos da alegria,
um verão difícil
em altos leitos de areia,
a harpa inacabada
da ternura,
lhe doía:
o rio
inclinado
para as aves,
o silêncio torrencial,
a reverência dos mastros,
atrás do vento,
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
PÚRPURA SECRETA
Aglutinada
púrpura secreta
clamando
por luz violenta.
Um punhal extenuado
de ferir
lábio a lábio.
Explosão lenta.
DESDE O CHÃO
Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada.
no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Despenham-se a prumo:
vidros ou punhais.
Arrastam-te ao fundo.
E nunca mais.
O VERÃO
Afaga o ardor
da palha
antes da manhã.
Prepara a semente
do sol.
Respira devagar,
grão a grão,
o azul,
o frio,
implacável,
azul do verão.
Noite,
bosque excessivo:
acolhe
este animal ferido
de perguntas,
ajuda-me
a ser álamo contigo.
A MÃO
A mão
que no fundo da noite chama,
ou o cheiro
do feno quente ainda
da última gota de água,
a mão
esquece a árvore onde fez ninho
e vai pousar
entre o frio dos joelhos
devagar.
A TÍTULO PRECÁRIO
Agora digo:
as dóceis colinas
reclinadas
na água
violenta de abelhas,
o pólen no peito
muito jovem
ou a língua
de barro fresco,
no corpo inteiro,
um veio de sono
perdido na relva,
a carícia
do leite entornado;
agora falo
da terra dura,
falo do gume
duma navalha,
da palha escura
da minha pátria
onde passa o vento,
e
bruscamente
um rumor de sangue:
mar,
a cheirar ainda
a sol, a resina,
agora falo,
digo…
CANTO FIRME
Desatar o silêncio,
ficar a vê-lo
escorrer na vidraça,
entrar na noite,
labirinto
onde perco a mão,
deixar o sangue
iluminar meu pulso
de terra ardente,
penetrar na
água da palha,
seca, dura,
no fogo raso
à beira do inverno,
procurar a pedra
onde dormir,
o estábulo morno
da confidência,
os olhos
onde o azul persiste,
única fonte,
espelho
por onde a sombra
entra devagar,
sentir o sangue,
o silêncio
arder…
TEMPO EM QUE SE MORRE
É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.
Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.
Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.
Vai regressar
o silêncio com as harpas.
As harpas com as abelhas.
No verão morre-se
tão devagar à sombra dos ulmeiros!
Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.
Ou talvez diga:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
a sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.
DAS ÁGUAS
Reparai no lume:
vereis passar um rio
rente ao outono.
Vereis um barco
flutuar na sombra.
Ver-me-eis a mim
ou a música passar.
No interior da música
o silêncio
que regaço procura?
onde a luz
tem morada?
E há um interior,
Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e procuram
nos meus navegação segura,
Enquanto dorme
parte com os pombos bravos.
Quando regressar
virá com os álamos.
ENTRE DUAS FOLHAS
Encostado à noite
sobe de mim
a haste
que recusa a flor
e procura um pássaro
para amanhecer —
o trigo é alto,
e entre duas folhas
pode-se morrer.
DESDE A AURORA
uma palavra
onde descubra a boca
acesa,
o corpo,
onde colher
os abrunhos maduros
do silêncio,
vertente
aguda sobre o mar —
já as águas
se inclinam
para as aves
que o vento traz à tona,
já o aroma
rebenta nas axilas
onde se esconde
o trevo —
sorver o sol,
o sumo da língua,
aquecer
na minha boca
a pedra cintilante
dos teus joelhos,
sobre o teu corpo o meu corpo
lento em florir,
pressinto lábios
na música
de uma sílaba
escura,
um beijo,
ornamento de todos
todos os meus órgãos,
agora
a sombra desce
as escadas,
tropeça
na palha defunta,
uma palavra
ainda,
sentir
um tempo novo
bater na pedra
porosa do desejo,
derrubar o muro,
entrar em casa
reconciliado
com as húmidas
pálpebras do outono,
no leito matinal
declinar a beleza,
uma palavra.
SOBRE OUTROS LÁBIOS
À beira do silêncio,
eu crescia para o ardor
calcinado dos cardos
e da sede.
Morre-se agora
entre contínuas chuvas,
os lábios só lembrados
de um verão sobre outros lábios.
RUPTURA
A noite fende —
o silêncio
escorre do muro.
De quanto os dedos
lembram ainda,
só o vento respira.
Já a minúscula
língua da erva
chama pela neve.
O silêncio
é o meu domínio:
a terra é leve.
AS FRÁGEIS HASTES
De ti ficam as aves,
o rumor
de arderem altas;
ficam as águas,
à tona
a clara sombra
onde pousaram lábios;
fica o outono,
desatado beijo a beijo
sobre a palha;
ficam as nuvens,
a sede ainda
de um ramo de coral.
RENTE AO SOLO
A manhã queima.
Queima nas pedras,
queima na camisa.
A claridade é
árida,
deste lado do muro.
Respira-se mal
rente à poeira,
mortos os lábios.
Apetece o escuro
do lodo,
a gordura do barro.
A AUSÊNCIA
Eis o domínio
da língua exasperada
e sem contorno,
diadema
a que faltam as pedras
todas dos teus dentes,
abandonado
aos cães do outono,
ao leite das urtigas,
às raízes do sono.
ENVIO
A Mozart,
que escreveu o alegretto do Concerto em Sol
(K. 453) à memória de um estorninho.
A Lambros, em Delfos,
onde quero voltar para dançar ou morrer.
Nada.
Despe-te
não há outro caminho.
É UM DIZER
brancura
onda a onda quebrada
vertigem nua.
SOBRE UM CORPO
Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama.
Interminavelmente.
SOBRE A RAZÃO
As fontes regressam
de que incêndio cativas?
FRASES
à entrada da noite
como se a luz doesse
entre o desejo
e o espasmo lentíssimo relâmpago
a mão.
SOBRE AS ERVAS
Respiras
como se pela garganta
deslizasse todo o azul de Espanha
a noite
a língua do vento
outros olhos
para beber no escuro.
Deita-te
sobre o meu peito
inclina
até ao chão
as frágeis
hastes da beleza.
As palavras
onde te escondes
altas
passam
passam as águas
dóceis
do verão.
É tempo
já as amoras sangram
é tempo ainda
deixa-me entrar.
Já sobre ti
de aroma em aroma
os lábios todos
caem
As mãos
sobre a nuca
delicadas.
Sobre as ervas
o leite
espesso do silêncio.
ONDE A NOITE
morre.
COM AS AVES
Reconheço no vagaroso
andar da chuva o corpo do amor:
vem ferido: nas suas mãos
como dormir?
Como enxotar a morte: esse animal
sonâmbulo dos pátios da memória?
A doçura da erva
alta
como cantar ao crepúsculo,
sobre os ombros a
noite nua
no coração o rouxinol
da bruma,
essa música
Caminhas devagar
entre muros e muros que se repetem
na chama extenuada dos espelhos.
Ninguém te segue
só um pássaro te confunde
com a pele rugosa das águas de setembro.
O outono
por assim dizer
pois era verão
forrado de agulhas,
a cal
rumorosa
do sol dos cardos,
a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros,
os prados matinais
os pés
verdes quase,
o brilho
das magnólias
apertado nos dentes,
Isto sei,
ou como o sangue é branco sobre a erva:
mas não sei mais nada.
ENTRE AS PEDRAS
O sol
não tardará a ser água.
procura
o lugar
onde um corpo entre noutro corpo
repousa no ardor
adormece no rumor
na coroa de fogo das colinas.
As janelas
partem antes do crepúsculo
assim no ar
a cabeleira dos ulmeiros
o sol
de palha ainda há pouco fresca
o azul
a vertente sem folhas do olhar
a terra
então aquecia-nos um pouco —
na outra margem.
SOBRE OS RIOS
tão longe
e leve a luz das abelhas?
NO EXTREMO DO POSSÍVEL
A casa
privada de mastros
facilmente é
exígua e rasa.
Azul estridência
do silêncio
o céu
consome-se na pedra.
O cume é a água.
DA ÁGUA
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.
Deixa a mão
caminhar
perder o alento
Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com o nácar da língua.
A morte
não é um segredo
não é em nós jardim de areia.
De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.
repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer
nos ombros
a luz
desatada
a fulva
lucidez dos flancos.
Ou o meu o meu.
DIREI O NOME
Estou à espera
de uma tarde semelhante ao sono das maçãs.
Oh tece
tece com os cabelos uma coroa de água.
FRAGMENTOS PARA UMA ARTE POÉTICA
Os olhos —
quem foi que fez a casa
em tão frágil azul?
O ar começa a doer
quando lentíssimos de amor
os resíduos caem
na palha:
a exígua
substância da alegria
ou lisa pedra de outono
morre na flor da candeia:
a escuridão invade
o pulso e gota a gota
a loucura
acode branca:
descobrimos
nas altíssimas e lúcidas bagas de setembro
uma sabedoria próxima ainda das nascentes.
Era isto
onde uma só pedra queima os dedos.
Se queres um exemplo
pega neste mar de estanho
olha-te nele
mas não te demores a contemplar
a branca quietude das violetas.
Vamos
é noite agora é tempo
enquanto meus lábios brilham
de alguém morrer sobre o teu corpo.
HOMENAGEM A WEBERN
Um corpo
estendido
nu
na iminência de ser música
O fogo
súbita convulsão da água
sobe
pelas pernas
penetra nos lábios
vacilantes do verão
exausto
e branco
porque entardecia.
O olhar
cai
errante
cão
lambendo
a chama oscilante dos dedos
escassa língua
sobre flancos desertos.
As palavras
tão leves que nem o ar feriam
nem sequer o ar
as palavras
que se levantam para recusar
(quando aprenderão a morder?)
são a nossa herança.
E o fogo.
DETRITOS
quem se lembra de ti
estéril
escroto de palavras
e só e só e
PROSA DE CENTENÁRIO
e nua.
MONFORTINHO
Vento
vento
há tanto
há só vento no meu país
vento branco
verde vento negro
ardente
seca as lágrimas
ou ramos cegos.
JARDIM DE MARBELLA
Há uma ruptura
uma fenda no escuro
do silêncio:
ouve-se o murmúrio
da urina
dos soldados contra o muro.
JARDIM DE S. LÁZARO
É um suspiro a água —
ergue-se
como os lentíssimos lábios do amor
descem pelas espáduas.
CASTELO BRANCO
As gaivotas
as gaivotas demoram-se no Cabedelo
sabem que o sol também se demora
e só a bruma
hoje virá à tona.
VENEZA
Compacto
cego
ao ar
falta-lhe só o gume.
DUNAS DE FÃO
A cerejeira o muro
uma criança canta
contemporânea apenas
das águas lentas.
Diz-me diz-me
branca cereja branca.
FOZ DO DOURO
Há um barco,
há um homem nas areias.
Obscuramente aprende
a morrer onde as águas são mais duras.
Sei que é verão pelo hálito da loucura,
o brilho em declínio das giestas
a caminho das dunas.
O homem adormecido
e o mar eram de vidro.
BARCA DO LAGO
Agonia
dos lentos inquietos
amarelos,
solidão do vermelho
sufocado,
por fim o negro,
fundo espesso,
como no Alentejo
o branco obstinado.
BOA NOVA
A terra é magra.
Um sol de palha cobre a ilha
— e tudo é ilha à nossa roda,
espaço curto, amargo.
Para cuspir,
ou beber de um trago.
CEMITÉRIO INGLÊS
No céu de Paestum
as colunas
sobem à altura
rigorosa
da lua nova e da alma.
À música deserta
e rouca das cigarras.
Ao aroma inesperado
duma rosa.
PLANÍCIE
O plátano.
E o estrídulo
sol a prumo das cigarras.
O rio quase à mão.
E um rumor,
não de ninfas: de palavras.
O azul é branco,
duro.
Os dois homens dormem
agora
à sombra da tarde.
E da memória.
TARIFA
As crianças são
o verde dos frutos,
as abelhas todas
do rumor dos pulsos.
Os anjos procuram
impedir que cresçam,
quebram-lhes a raiz
tímida do desejo.
Trago-as comigo,
deito-as no poema,
o que em mim é riso
põe-se à janela.
TEBAS
Só a torre flutuava
sobre o rio.
Só a torre.
Nem a febre do olhar
adolescente, nem
a demência tardia.
Ou a paixão da palavra
tornada melancolia.
TURISMO EM CORFU
1949
A VICENTE ALEIXANDRE,
ENTRE SOMBRA E MÁGOA
1952
IMAGEM E LOUVOR DE AUGUSTO GOMES
1956
KAVAFIS, NOS ANOS DISTANTES DE 1903
1964
ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS
PARA CHE GUEVARA
1971
DISCURSO TARDIO
À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO
1972
A CASAIS MONTEIRO,
PODENDO SERVIR DE EPITÁFIO
Setembro, 72
REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI
14-5-76
GUIA BREVE PARA UMA EXPOSIÇÃO
DE JORGE MARTINS
Julho, 1976
AO ARMANDO ALVES,
ESCRITO NA CAL
Fevereiro, 78
F.P.
5-4-78
A JORGE DE SENA,
NO CHÃO DA CALIFÓRNIA
Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração,
fiel às palavras da tribo.
Agosto, 78
À MEMÓRIA DE RUY BELO
1978
LAMENTO DE LUÍS DE CAMÕES
NA MORTE DE ANTÓNIO, SEU ESCRAVO
27-12-79
RECADO PARA CARLOS DE OLIVEIRA
21-10-82
A VITORINO NEMÉSIO,
ALGUNS ANOS DEPOIS
1983
AO EDUARDO LOURENÇO,
NA FLOR DA SUA IDADE
21-10-83
A MÁRIO BOTAS,
COM UNS CRAVOS BRANCOS
1983
SOBRE UM VERSO
DE MARINA TSVETÁIEVA
Praga, 1983
ALGUNS VERSOS PARA ROSALÍA
Terra
que prolonga a minha,
onde a pobreza trabalha
cada leira, cada palavra.
E a melancolia
rói e remói
os ossos, a pedra.
Terra de Rosalía.
2-12-83
AO MIGUEL, NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO,
E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE
16-8-84
MULHER AO ESPELHO
(Séc. XIII)
1986
ASSIS
Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.
Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.
26-1-87
EM MEMÓRIA DE CHICO MENDES
3-1-89
RELAÇÃO DE CASAS BOAS E MÁS
PARA JUÍZO DOS ARQUITECTOS
CARLOS LOUREIRO E PÁDUA RAMOS
Há casas
cuja beleza começa no projecto;
outras, e são talvez as mais belas,
existem só na cabeça do arquitecto.
Há casas onde
habitar é o começo da morte;
há casas de pátios caiados
com varandas para o mar;
casas onde apetece estar sentado
com um gato nos joelhos
e o coração apaziguado.
18-12-91
CASA DE ÁLVARO SIZA NA BOA NOVA
11-5-92
ARQUITECTURA AÇORIANA
20-7-92
CAPRICHO
8.8.94
AO LUÍS MIGUEL NAVA,
NOUTRA ESTRELA
30.5.95
RETRATO DE RAPARIGA
(Gageiro, Alentejo, 1985)
16.7.99
ENCONTRO NO INVERNO
COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES
18.1.2000
QUASE EPITÁFIO
O outro sabia.
Tinha uma certeza.
Sou eterno, dizia.
Estende-te aqui
perto do oiro branco das cigarras
já tenho ouvido chegar o verão
a sua frágil quilha em águas quase mortas
Escuta
a frágil claridade que deixa a música
ao arder nas dunas
eu era dessa areia a luz precária
Esta noite preciso de outro verão sobre a boca crescendo nem que
seja de rastos.
Foi então que um rei morto no exílio deu à costa. Dizia-se que lhe
haviam cuidadosamente subtraído os testículos. Antes ou depois de
ter morrido, não se sabia. De qualquer modo, o caso, por desusado
entre nós, era comentadíssimo. Para que servirão tais melindres
fora do seu sítio natural? Há quem faça com eles um prato raro,
dizia-se. Um manjar de príncipes, acrescentava-se. Curioso, serem
os filhos a devorar os venerandos testículos dos pais. Esperemos
que isto não seja mais um escandaloso privilégio da burguesia.
Verão, 1974
RENTE À FALA
.
8 Hão-de passar as cabras o outono
sobre as falésias noutras dunas
entre os juncos os olhos do pastor hão-de passar
em profusão as aves quase de vidro
as próprias águas.
.
9 Não ser senão esta luz molhada a caminho de Sesimbra
inclinada como quem escuta
em ruína o verão as areias —
assim nos lábios morrem sílaba a sílaba
o branco dos muros as aves marinhas.
.
10 Há um bosque casualmente nesta mão
há um homem neste poema e envelhece.
.
11 As metáforas da boca ensinam a morrer
noutras manhãs junto das dunas ardem
os joelhos os testículos os cabelos
dizemos não dizemos foram aves
agora são em tempo de pobreza
um clarão breve antes de anoitecer.
1974 / 75
MEMÓRIA DOUTRO RIO
AO ABRIGO DE INJÚRIAS
Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas aí estão, as
cabras — negras, muito femininas nos seus saltos miúdos, de pedra
em pedra. Gosto destas desavergonhadas desde pequeno. Tive
uma que me deu meu avô, e ele próprio me ensinou a servir-me,
quando tivesse fome, daqueles odres fartos, mornos, onde as mãos
se demoravam vagarosas antes de a boca se aproximar para que o
leite se não perdesse pelo rosto, pelo pescoço, pelo peito até, o que
às vezes acontecia, quem sabe se de propósito, o pensamento na
vulvazinha cheirosa. Chamava-se Maltesa, foi o meu cavalo, e não
sei se a minha primeira mulher.
MEMÓRIA DOUTRO RIO
Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela,
obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa de
seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-
la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a
dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a
haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava,
era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação
perturbava a minha alegria — comigo, como é que faria o seu mel?
COM A MANHÃ
Seja isto dito assim, sem orgulho nem humildade, por não poder
imaginar o homem reduzido à lama complacente dos próprios
excrementos: para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me
os flancos do silêncio.
RETRATO DE MULHER
A uma voz na noite: rasteja ferida, mas não sabe ainda que vai
morrer.
podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;
O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.
Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
4
O sorriso.
O sorriso aberto
contra o muro.
Exactamente
como as ervas,
é muito antigo.
E sobre as ervas
e o muro
debruça-se no caminho.
Quem o arranca,
e levará consigo?
9
A manhã parada.
O azul.
A fundura da pupila.
O tronco nu —
a luz vacila.
11
Tocar-te a pele,
o pulso aberto
ao gume do olhar.
Rosa inflamável,
boca do ar.
13
O sol,
a poeira
lentíssima do sul,
a pedra do ar
clara e mordida,
a branca e nua
e tão antiga
poeira do sol,
vem pousar-me
nos olhos.
Ainda.
15
Tocar um corpo
e o ar
e a língua da neve.
Tocar a erva
mortal e verde
de cinco noites
e o mar.
Um corpo nu.
E as praias fustigadas
pelo sol e o olhar.
21
É preciso amá-la,
paciente e alta,
onde a chama canta.
Dormíamos nus
no interior dos frutos.
Amargos.
De onde vêm?
De que rosto, de que estrela?
Só prometido à terra.
30
Eu vi essas muralhas.
Eram espessas roucas frias.
Ruíram, quando as olhava.
32
E a sede.
37
Nesses lugares,
nesses lugares onde o ar
perde a mão,
os meus amigos começam a morrer.
Com as ervas.
A conhecer a terra.
Rente ao chão.
44
Era a perfeição.
III
Como no poema.
IV
O real é a palavra.
VI
As cegonhas.
Trazem-me o adro,
duas casas, ou três, se forem brancas,
a terra onde pousavam
em segredo
o baiozinho que então namorava.
VII
até ao fim.
X
Já não se vê o trigo,
a vagarosa ondulação dos montes.
Não se pode dizer que fossem contigo,
tu só levaste esse modo
E o pastor.
XVI
um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,
As razões do mundo
não são exactamente as tuas razões.
Viver de mãos acesas não é fácil,
viver é iluminar
E um sabor a sémen
que sempre a maresia traz consigo.
XIX
da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;
não, é só um olhar.
XXI
e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.
XXXVII
É na orla da noite
que as veredas desatam os nós,
e uma voz de criança
suplica um fio para atar o silêncio.
A toscana claridade
desta morte que foi sempre minha
irmã, que não declina noutros
a tarefa de ceifar a delícia
pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela
o rasteiro coaxar
das rãs em águas apertadas,
o uivo ralo dos cães,
a marca do fogo no avesso da pele,
de calhandra assustada.
7
calcinada, húmido
ainda de ter pousado
à sombra de um nome,
o teu,
3.2.56
FÁBULA
1946
ENTRE O PRIMEIRO
E O ÚLTIMO CREPÚSCULO
20.11.85
CASA NO SOL
31.12.85
ASSIM É A POESIA
28.11.85
VELHA MÚSICA
Janeiro, 1985
INFÂNCIA
Saio de casa para ver os estorninhos; não têm conta a esta hora
da tarde, em revoadas sucessivas sobre as árvores. Quando a noite
cai já estou de volta, o olhar atravessado por rápidos fulgores. A luz
é tudo o que trago comigo, porque também eu tenho medo do
escuro.
25.4.85
A SEREIA DO BÁLTICO
1988
INTERMINAVELMENTE
6.6.85
CONFIANÇA
6.1.86
PEDRAS
14.4.85
TERREIRO DE S. VICENTE
19.8.85
CURTA-METRAGEM
23.11.85
HISTÓRIA DO SUL
1976
MORANDI: UM EXEMPLO
21.11.84
AINDA SOBRE A PUREZA
25.11.85
DA POESIA JAPONESA
Janeiro, 1985
IN MEMORIAM
Janeiro, 1985
SOUVENIR AFRICAIN
5.6.85
O RAPAZITO DE YORK
19.5.85
ESSA FOLHA
Essa folha, aí. Tão branca que nem a neve é assim fria.
Aproximo os dedos numa espécie de carícia, tentando atenuar, diluir
tanta hostilidade, mas logo recuam tocados pelo medo. É tão difícil.
Porque essa brancura queima, arde silenciosa num fogo que
ninguém vê. Durante muito tempo só os olhos a procuram, a
contemplam. Imóveis, sem afrouxarem de intensidade. Ouvem-se
quase os latidos do pulso. De súbito, os dedos distendem-se,
saltam; no seu movimento de falcão já não acariciam, antes rasgam,
dilaceram, perseguem a presa numa luta onde não há tréguas, vão
deixando na neve sinais da sua presença, ora triunfante ora aflita,
por vezes quase morta.
3.12.85
ARIOSO
15.2.86
PORTO
1979
COM OS OLHOS
4.12.85
AS MÃES
17.8.85
CONTO DE INVERNO
30.11.85
GLOSA
15.3.86
M.
Páscoa, 1985
BORGES E OS TIGRES
2.3.56
HARMONIA DO MUNDO
9.1.86
BOULEVARD DELESSERT
29.12.85
PRAÇA DA ALEGRIA
7.1.86
A BELEZA
Chovera. Que sorte ter nos meus olhos essa melancólica praça
quase deserta, os oiros glaucos de Bellini espalhados pelas lajes
molhadas e os verdes todos, do esmeralda ao musgo, escurecidos
pela noite que se avista já de algumas mansardas. Porque a beleza,
ou é esta entrega a quem de súbito a descobre, ou se esconde,
cruel, a quem faz da sua procura uma perseguição de carniceiro.
31.12.85
OUTROS DIAS
2.2.86
OS JACARANDÁS
24.6.85
OUTRO EXEMPLO: VISCONTI
6.5.85
MELUSINA
Não erres pela sombra, tens já parte do rosto virado para a luz e
as pernas movem-se nessa direcção. Mesmo o sorriso acabou por
reaparecer. Agora vou chamar-te pelo teu nome antigo: Melusina,
Melusina, estás a ouvir-me? Aproxima-te, não regresses à treva, os
pêssegos já estão maduros, podemos apanhar uma abada e
escondermo-nos no celeiro a comê-los, ou ao fundo do pátio sobre a
palha. Não voltes a vestir-te de luto, já não temos mais ninguém
para morrer, entre abril e setembro demasiadamente se morreu
sobre a terra, é tempo de olhares as tuas mãos, vê como são
inocentes, ou essas flores a que chamavas rapazinhos, tão
abandonadas, elas também.
14.2.86
AS GAIVOTAS
28.2.86
MELANCOLIA
30.4.85
AOS INIMIGOS
20.3.86
A FLAUTA
1984
PARA ONDE?
14.1.86
SE O VENTO VIER
28.12.85
HIPÓTESE DE TRABALHO
21.11.85
APELO
1.12.85
ÚLTIMO EXEMPLO:
CARLOS DE OLIVEIRA
16.5.85
SENTADOS NO SILÊNCIO
21.11.85
A FLOR DA TESSÁLIA
Outubro, 1985
FADIGA
14.6.84
DO FUNDO DO CORPO
1984
O OUTRO NOME DA TERRA
Ao Miguel ao Gil, ao Dario
— que tornam a terra mais habitável
O OUTRO NOME DA TERRA
COM ESSA NUVEM
O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas — altas, altas.
CUMPLICIDADE DO VERÃO
Quase nada.
RENTE AO DIZER
LÍNGUA DOS VERSOS
Língua;
língua da fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, da cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.
RUMOR DO MUNDO
As palavras, vício
torpe, antigo.
As últimas? As primeiras?
Como os ouriços
abrem-se ao rumor do mundo:
o sol ainda verde dos limões,
os esquilos
de outras tardes, o latido
da chuva nas janelas,
os velhos em redor do lume
— nunca foram tão belas.
ARTE DOS VERSOS
É de Schumann, a música.
Dói, acalma, é transparência
última da rosa, a de Dante
no Paraíso;
não há outra morada,
outro cristal, outra ave;
há somente esse rio, esse gume
que fere, apazigua,
o corpo, a alma — quem sabe?
CHUVA DE MARÇO
Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.
O SILÊNCIO
A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho — é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.
O OLHAR
Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez doutro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.
AS JANELAS
As janelas
por onde entram as silvas,
a púrpura pisada,
o aroma das tílias, a luz
em declínio,
fazem deste abandono
uma beleza devastadora
e sem contorno.
PASSEIO ALEGRE
1.
Era azul e tinha os olhos de deus,
o meu pequeno persa
— agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.
2.
Chamo por ti; digo o teu nome
tropeçando sílaba
a sílaba; repito o teu nome
para que voltes com a lua
nova, o sol de março,
o pão de cada dia;
chamo por ti:
o rigor do frio, a sua teia branca,
por companhia
WASHINGTON SQUARE
Eu já falara dele num poema que levou sumiço. Dizia então que
«o meu amor por esta alminha era materno». Que um homem
assumisse poeticamente a maternidade não poderia causar
estranheza, mas que tratasse por «alminha» um gato era coisa de
que só o diabo se lembraria. De qualquer modo, com ironia ou sem
ela (cada qual lê um poema como pode), o que naqueles versos
vinha à tona era uma ternura mal disfarçada pelo pequeno persa
azul que, num dia de anos, os amigos me trouxeram por terem
surpreendido, na maneira como acariciava os gatos deles, uma
profunda nostalgia. Realmente, eu tivera uma infância povoada de
felinos, e um deles, como contei em «A Sereia do Báltico», foi a
alegria de muitos dos meus dias. Colhido de surpresa, ora olhava os
amigos, ora aquela maravilha que me cabia na mão, com terror e
fascinação ao mesmo tempo, pois a partir de então a minha
liberdade parecia ameaçada. A minúscula criatura fixava-me com
olhos de cobre esfregado de fresco, e perante aquele olhar sentia-
me à sua mercê — fomos então tratar da instalação. Os amigos
haviam previsto tudo: cama, tabuleiro, areias, pratos, alimentos,
tudo tinham trazido. Colocámos a cama e as areias no quarto de
banho, pratos e tigela foram para a cozinha. Acertámos no nome, e
como era do tamanho de uma avelã, e janeiro ia muito frio, acabei
por levá-lo para o quarto: primeiro para junto do calorífero, depois
para a cabeceira da cama, onde se habituou a dormir, às vezes a
minha mão por travesseiro. E fui-o vendo crescer, na certeza de que
ao meu lado crescia um exemplar perfeito da sua raça: cabeça
robusta, orelhas delicadas, narinas rosadas, pêlo espesso e sedoso,
mais exuberante no pescoço e na cauda — era um príncipe oriental
que dividia comigo os seus dias, sem coroa e sem mundo para
governar, mas de uma beleza que se fosse humana seria
insuportável.
A alimentação requeria cuidados, e eu era incapaz de qualquer
repressão: se não lhe agradava uma coisa dava-lhe outra; acabou
por ficar caprichoso, avezado ao frango, à pescada, a esses
enlatados que exigiam conta e medida, de outro modo apareciam
diarreias, preocupações. Informei-me na clínica como deveria
alimentá-lo; procurei livros, que não encontrei. Mandei-os vir de
Espanha, de França, e no meio dos que me chegaram, e se
repetiam até à exaustão, surgiu um de Desmond Morris, que li com
avidez. Também reli poemas do Baudelaire, do Eliot, mas os gatos
do Baudelaire não eram gatos eram as suas amantes, e os do Eliot
eram caricaturas dos seus amigos. Na Colette, no Léautaud, no
Aquilino, no Neruda, aí, sim, havia gatos, como também se
encontravam nos desenhos de Steinlen.
Passei a viajar e a sair menos; o Micky habituara-se tanto a mim
que, quando saía de casa, vinha à porta e olhava-me de tal maneira
que, por vezes, acabava por não sair. Pouco me demorava, é certo,
mas nunca deixava de me aguardar no regresso; devia conhecer-
me os passos, porque entrasse tarde ou cedo lá estava ele e os
seus olhos imensos — e tão formosos que não sei mesmo se
alguma vez vira outros assim. Eram, como já disse, os olhos de
deus. Então roçava a cabeça pelas minhas pernas, erguia as patas
dianteiras até aos meus joelhos, pedia-me uma palavra, uma festa.
Era a minha vez de responder: pegava nele, aconchegava-o nos
braços, prometia-lhe nunca mais o deixar só, passava-lhe a mão
pela cabeça, pelos flancos, com a polpa dos dedos acariciava-o
debaixo do queixo, enquanto uma espessa e rouca e monótona
cantilena ia enchendo a noite.
Quase não viajava, pois. Nesse tempo, só me lembro de ter
saído duas vezes do país. Da primeira, o Micky ficou em casa dos
amigos, mas de início os seus dias foram penosos: não comia,
passava o tempo debaixo dos móveis, e só não se lamentava
porque era estóico de natureza. Da segunda vez, como sabia do
apego que estes animais têm ao lugar onde vivem, ficou sozinho em
casa, confiado ao Miguel e à empregada. Creio que passou então
melhor, embora sempre estranhado.
Como já disse, ele dormia enroscado aos meus pés ou à
cabeceira: parecia um ouriço. Durante a noite costumava acordar
duas ou três vezes; dava então um pequeno passeio pela cama e,
invariavelmente, aproximava o focinho húmido da minha cara, via se
respirava, e só depois pulava para os pés, enroscava-se para
adormecer de novo. De manhã, por volta das oito, começava a
brincar com o meu cabelo, a mão delicada ajudada pelos dentes
agudos, até me despertar; quando eu dava sinais de já estar
acordado, saltava para o tapete, e sem impaciência aguardava que
me levantasse e lhe desse a primeira refeição. Era na verdade a
distinção em pessoa.
Os dias foram passando sem nada a distingui-los uns dos outros;
o Micky ajudava-me no trabalho, sentado ao lado da máquina
quando escrevia, ou no meu colo quando ouvia música; ou então
brincava com uma folha de papel amarfanhada atirada ao chão. Um
ano havia já decorrido desde que chegara a casa embrulhado no
xailito de lã branca, ou até passara mais, pois a primavera estava
outra vez no quintal das traseiras, e pousava na macieira,
carregando-a de flor. Uma tarde senti uma agitação nas areias do
quarto de banho maior que a habitual. Levantei-me e, com espanto,
verifiquei que apesar de muito removidas, nas areias não havia
sinais de humidade, ou outros. Voltei ao trabalho, e passados
instantes senti agitação igual. Aproximei-me, e depois de o Micky se
ter levantado vi que as areias continuavam secas. Procurei então
lembrar-me a que horas lhe limpara o tabuleiro pela última vez. Não
me recordava de o ter feito nesse dia; olhei o relógio: eram quatro
da tarde. Fui à cozinha, a comida estava toda no prato. Entretanto o
Micky voltara às areias: não conseguira, apesar do esforço, verter
mais que duas ou três gotas de urina. Contra os seus hábitos, saltou
para dentro da banheira, arrastando-se desesperado no frio do
esmalte, procurando assim aliviar-se. Como nada conseguisse,
arrastava-se agora pelos mosaicos, e foi então que os seus olhos
encolheram de medo e se meteram pelos meus, a suplicar auxílio —
pois como podia viver-se com aquele nó cego a estrangulá-lo? Corri
ao telefone, chamei um táxi. Como era conhecido na clínica, e
invocara urgência, fui imediatamente atendido. O médico procurou
acalmar-me, fez-lhe uma algaliação, colheu urina para análise, deu-
lhe um pouco de soro, e recomendou que voltasse no dia seguinte:
tratava-se de cálculos, coisa frequente na raça, muito susceptível,
dizia. Voltámos para casa, o Micky comeu um pouco, mas na manhã
seguinte não pegou na comida, e quando procurou as areias foi a
mesma exasperação: as urinas de novo retidas. Voltei à clínica; nas
três semanas que se seguiram voltaria lá muita vez: já não era só a
retenção da urina o que lá me levava, o Micky deixara de se
alimentar, e eu, por mais que quisesse, não conseguia meter-lhe na
boca fosse o que fosse. Nem sequer a água, que procurava
introduzir-lhe com uma seringa. Pedi o seu internamento, e que se
tentasse a operação. Mas estava muito debilitado, os pulmões
atingidos. Ia vê-lo todos os dias, à noite, quando o serviço da clínica
tinha acabado. E lembro-me bem da nossa despedida, o oiro dos
olhos embaciado. Eu sempre soube que a beleza era o que havia de
mais frágil sobre a terra.
OFÍCIO DE PACIÊNCIA
Menos é mais.
Mies van der Rohe
BALANÇA
A floração —
o imponderável corpo
do vento traz-nos o cheiro
da floração dos lilases
nas ruas mais íntimas de Oxford,
coroando
de alegria os jovens
fugindo de bicicleta à chuva
miúda e clara,
como se a luz corresse com eles
para um encontro nupcial
comigo ou com a vida.
DE RAMO EM RAMO
A diminuta
flor da candeia,
na mesa o pão o vinho
a rosa,
a súbita
brancura da cama aberta —
a eternidade
milimetricamente
a dividir contigo.
NUM EXEMPLAR DAS GEÓRGICAS
Uma pedra,
outra pedra — assim começa
a casa, o pátio onde o lume
dos gerânios morde a cal,
os degraus subindo ao feno
desatado, a marca
dos dentes nas maçãs e na cintura,
a porta estreita
do corpo, o nó de sombra mais secreto,
os cães correndo entre as primeiras
sílabas da noite, por fim
o inaudível rumor das tílias.
À CHEGADA DO VERÃO
Abriu a janela.
O que sucedeu então foi
noutra manhã: o galo do quintal
do vizinho anunciou a chegada
do verão. A luz hesitante talvez
nem consiga romper a névoa.
De súbito
o grito do pavão rasgou o céu
e, azul, pela janela
entrou o mar.
AS MAÇÃS
Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
— nem sequer sabemos se tens nome.
OS TRABALHOS DA MÃO
Vem o vento
e ninguém sabe se virá mais cedo
o inverno. Vem e deixa no telhado
algumas sílabas.
O trabalho da boca para não morrer
é juntá-las, fazer um diadema, coroar
a neve, o azul da neve,
na mais frágil haste.
São coisas tuas:
cintilações a que chamas ave.
FIM DE OUTONO EM MANHATTAN
Com o outono
a turbulência da luz que se desprende
dos ouriços arde na boca dos rapazes.
Não é outra a razão
por que sabem a cinza os seus lábios.
Pela noite dentro correm
com a luz ardida: no peito
uma espécie de morte por coração.
AO CREPÚSCULO
Porque
por essa porta
sobre a rugosa luz da tarde
terás ainda tempo
de pegar nos pés e meter-te a caminho,
sem raízes
a enredar-te os passos,
pois para a morte
não tens ainda palavras,
ainda não, ainda não, ainda não.
MELANCOLIA
É assim:
a gente despede-se, vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças, mágoas,
injúrias, morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca, ao calor
animal do estábulo,
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos —
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar.
COM ESTE BARRO
A luz,
a luz trazida
pelos rosados pés dos pombos
dos confins da alegria
As cigarras cantam
como no inverno
arde a lenha verde.
Um rumor pueril
e doce de abelhas
acrescenta a sede.
Abril, abril!,
quando o outono vier
que lhe diremos
da chuva que canta
e canta na pedra?
Que lhe diremos,
abril, abril,
de luz tão lúcida
que se faz rosa
antes de ser música?
MADRIGAL
O olhar
que no céu se faz ave
desce ao seio
lento da colina,
voa sobre o rio,
os amieiros,
mais adiante o rebanho,
por fim sobre o pastor
cai a prumo.
Literalmente.
FRUTOS
Pedi às vagas
altas e sucessivas
que fossem como folha
de álamo;
que fossem sobre o coração
carícia ou só
memória de lábios.
JARDIM DE PASCOAES
O que da boca
das fontes sai às golfadas
é o silêncio
— e sem o rumor da água
como pode a estrela
florir,
a pedra arder e ser ave?
OUTRA CANÇÃO
Também aqui
o verão se demorou
na luz rugosa das tílias
e ao outono abandonou
flancos e crinas.
APROXIMAÇÃO DE COLOANE
Sobre o mar
a mão escreve. Como se escrever
servisse para diminuir o erro.
Escreve
num país atravessado a prumo
pelo delírio.
País despossuído. O voo rasteiro
e curto. De muro em muro.
CANTAM NA MADRUGADA:
À beira
d’água a luz
é em mim que tem morada:
tão longe
ainda a última barca.
A JORGE PEIXINHO
chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.
Tu estavas ali,
perto da laranjeira.
(Porque havia
uma laranjeira ao lado
da casa.)
A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?
Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.
Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
a minha.
Mas só ela.
E a laranjeira.
HÁ DIAS
respiração da casa
sufocada pelo glacial
ar das ruas, os passos de abril
descendo os últimos degraus.
SEMPRE ASSIM FOI
onde só a memória
da luz vive ainda, senhor apenas
de mãos tão inseguras
que tanto ocultam como desvendam
o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,
a chuva em surdina
na folhagem do jardim
— a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.
ONDE OS LÁBIOS
Os lábios.
Distante, arrefecida chama.
Não só os lábios, também as estrelas
são distantes.
E os bosques. E as nascentes.
Também as nascentes são distantes.
As nascentes onde os lábios,
onde as estrelas bebem.
Só o deserto é próximo, só
o deserto.
SUL
quando se morre?,
ou só morre a espessura dos dias,
o peso do ar?
assim a neve.
AO FIM DA MANHÃ
de coração fatigado,
semelhantes a ramos partidos
— elas, que foram irmãs do orvalho.
CANÇÃO DO PASSEIO ALEGRE
do verão; tu conheces
a sua sede, a sua respiração.
Um pouco mais, sê
As cigarras,
a brusca rouquidão da cal,
a surda rebentação dos cardos,
tudo o que faz o verão subir a prumo
chegou ao fim.
Água, água.
Porosas águas da alegria,
do pão na mesa.
Águas de Li Bai ébrias
de ternura,
de S. João da Cruz abrasadas
de amor, ó águas
de Claudel morrendo à sede.
Água. Água.
Todas as águas, todas.
Ó antiquíssima água das estrelas,
próximas distantes águas matinais,
oculta água dada a beber
num só olhar.
HERANÇA
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo escondem
o latir lancinante dos seus cães.
O olhar
desafia as aves:
o seu vii é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
O sorriso
é para a criança
que pressentem nas fontes.
Só elas conhecem
a morte
pelo cheiro da sombra
VARIAÇÃO SOBRE UM VELHO TEMA
Se puderes ainda
ouve-me, rio de crital, ave
matutina. Ouve-me,
luminoso fio tecido pela neve,
esquivo e sempre adiado
aceno do paraíso.
Ouve-me, se puderes ainda,
devastador desejo,
fulvo animal de alegria.
Se não és alucinação
ou miragem ou quimera, ouve-me
ainda: vem agora
e não na hora da nossa morte
— dá-me a beber a própria sede.
ALGUNS DIAS DE AGOSTO
O que o leitor vai encontrar aqui são coisas escritas, na sua maior parte,
em 1990/91; mas há meia dúzia de poemas recentes. Não se ajustaram ao
trabalho que então me ocupava, contudo não os inutilizei, como acontece
quando o que faço não me satisfaz. Ficaram à espera do toque de graça ou
golpe de sorte que os salvasse, o que provavelmente nem sempre aconteceu.
Alguns destes versos têm afinidades com outros já publicados: os quatro
poemas escritos em Macau, ou mesmo essa anunciação da primavera numa
rua do Porto, poderiam incluir-se em Escrita da Terra; outros, pela arquitectura
breve e luminosidade antiga, não ficariam mal em Ostinato Rigore.
0 mais provável era continuarem no envelope em que jaziam, se soubesse
negar-me a quem, sabendo da sua existência, mos pediu para uma edição
fora do mercado, ou se tivesse escrito, depois de O Sal da Língua, alguma
coisa com corpo suficiente para um voluminho com que pudesse acudir ao
apelo do amigo. É o que há a dizer dos trinta poemas, que não serão frágeis
por serem breves, pois alguns dos melhores que escrevi — «Nocturno»,
«Despertar», «Eros», «Nocturno de Fão», «Despedida», «Amanhecer em
Estremoz», «Arte de Navegar», «O Sorriso», «Balança» — são muito breves,
dessa brevidade que pode abarcar o mundo, quando quem os assina se
chama Goethe, por exemplo.
Disse trinta, mas corrijo: são trinta e um; o último é um verso de Victor
Hugo que, por capricho ou provocacão, incorporei ao caderno, e o encerra
admiravelmente. Paul Valéry, um poeta a quem devemos no nosso século
algumas das mais extraordinárias lições de poesia, diz dele (L’ombre est noir
toujours même tombant des cygnes), que é o mais belo verso possível, e que
não há meio nem esperança de se fazer melhor. São tudo palavras suas
(Cahiers, II, págs. 1135, Plêiade. 1974). Lá que é um verso invulgar não tenho
dúvida, mas é tão francesa a opinião de Valéry! Admito que na França, país
de prosa, não haja melhor (disso sabe ele...), mas então Virgílio (que Valéry
traduziu admiravelmente) e Dante e Shakespeare e S. João da Cruz? Até em
português é capaz de haver três ou quatro versos à altura do famoso
alexandrino.
Seja como for, apeteceu-me nacionalizar um ser tão admirável. E gostei de
o ter feito desta maneira: as sílabas bem contadinhas, os acentos todos no
seu lugar, e até conservar nas palavras extremas do verso, as capitais
(sombra, cisne, não só o contraste de cores como também o seu eco.