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Poesia

Eugénio de Andrade

Publicado em Portugal por:


Assírio & Alvim (www.assirio.pt)
© Herdeiros de Eugénio de Andrade
Prefácio © José Tolentino Mendonça
© Porto Editora, 2017

Na capa: pintura de Ilda David’, 2017

1.ª edição em papel: Setembro de 2017

Assírio & Alvim é uma chancela da


Porto Editora

ISBN 978-972-37-1946-8
PREFÁCIO
José Tolentino Mendonça
EUGÉNIO DE ANDRADE:
EM VEZ DE UM RETRATO

Na primeira edição canónica da sua obra, que Eugénio de


Andrade quis muito ser ele a realizar, com aquele vigilante e
obstinado rigor que a poesia sempre lhe exigira, o poeta não buscou
o prefácio de ninguém. Ainda em sua vida, escreveram-se textos
críticos de grande importância, de Óscar Lopes a Eduardo
Lourenço, de Ramos Rosa a Prado Coelho, entre tantos outros. No
congresso que a Fundação de Serralves promoveu em 1993,
Arnaldo Saraiva haveria de testemunhar que a poesia de Eugénio
de Andrade é «frequentada e prezada por poetas e críticos de
diversas tendências». O que é completamente verdade. Eugénio foi
alvo de uma fortuna crítica invulgar, pela profundidade, diversidade
e até pelo número de investigadores que lhe dedicaram, e dedicam,
uma atenção persistente. Ele sabia disso, procurava coligir o que se
publicava, era cerimonioso quando se lhe referia, experimentava um
evidente entusiasmo, mas também depressa se destacava como se
o ouvido o trouxesse preso a outra música. Talvez por isso, a abrir a
sua obra completa, não tenha colocado um texto, mas um retrato
seu, da autoria de Jorge Pinheiro. A presença do retrato foi, aliás, na
edição da sua obra, livro após livro, uma marca sua. Vários deles
produzidos por José Rodrigues, mas também por Júlio Resende,
Martins Correia, Emerenciano, Carlos Amado, Jorge Ulisses, Carlos
Marreiros… Não se tratava de uma vaidade, mas de um
posicionamento ético. O leitor deve enfrentar o rosto que lhe fala,
pois, o poema é continuação de um rosto. E a leitura é o trajecto ao
encontro de outro rosto e, desse modo, exercício de co-
responsabilização recíproca.
Penso que Eugénio de Andrade gostaria que se dissesse que,
como Morandi ou Mário Cesariny, também ele viveu no seu atelier.
As imagens impressionantes dos ateliers-cela, onde Morandi e
Cesariny viveram como príncipes, mendigos ou espectros,
despudoradamente concentrados na vertigem do ofício, numa
invasora profusão de materiais de trabalho, obras acumuladas e um
sem-número de objectos anti-ornamentais, sobre os quais velavam
para preservar deles até a poeira, fornecem a analogia para a forma
de habitar de Eugénio de Andrade. Eugénio viveu tomando a poesia
como razão de existência, renunciando a tudo o mais, assumindo
esse território (e esse destino) como a sua religião (literalmente, o
seu re-ligare), a única esperança possível. Não se pode
simplesmente dizer que ele tenha vivido para a poesia. A própria
poesia era, sim, o lugar, o atelier-cela, a cabana, o navio, o salva-
vidas, a torre, o relento, a única morada verdadeira onde Eugénio de
Andrade habitou, ele que biograficamente teve outros endereços,
entre quartos alugados, pensões e sucessivas casas. Eduardo
Lourenço viu bem quando disse: «Ele é o habitante privilegiado da
sua própria poesia», pois era aí que ele estava. Em nenhum
endereço postal Eugénio foi mais contactável do que nos seus
livros. E ninguém o encontrou nunca ignorando-os. Óscar Lopes
recorre sabiamente à figura retórica da hipálage, para insistir em
como naquela poesia — e naquela existência — tudo se liga, troca e
corresponde, e de uma maneira tão intrincada e íntima que talvez só
na música encontremos paralelo semelhante. Escreve Lopes:
«entramos em pleno discurso para-musical onde as conversões
recíprocas entre o silêncio e qualquer rumor arterial ou fluvial, entre
a água e um ardor, entre a luz e a noite, entre a terra e o vento […],
deixam de ser unívocos um por um». Essa subversão do discurso
unívoco por um discurso assumidamente multímodo e para-musical
tornou-se o seu idioma. E jamais fez concessões.
Eugénio odiava mundanidades e conversas fátuas. Era avesso
ao extenuante clima de intriga que ciclicamente auto-devora o
mundo literário. Mais do que uma vez o vi desviar-se de assuntos da
actualidade jornalística que todos comentavam, com subtileza ou
exibindo um aborrecimento. Mudava de mesa, de naipe, de humor e
de assunto. Ele escolhera viver noutro sítio. Abria um livro.
Acariciava o gato. Desaparecia. Quando aceitava participações
públicas era intransigentemente fiel ao seu mundo, aos seus gostos
e a si. Viera para ler e falar de poesia. Apenas isso. E disso era
capaz de falar fazendo o seu auditório esquecer-se do tempo, numa
espécie de estado de graça, que ele estimulava com histórias,
sabedorias recônditas, citações muito precisas e palavras que
reverberavam por muito tempo nos espaços vazios, depois de ele
partir. Ouvi-lo falar de poesia era uma iniciação à arte de ser,
completamente distante dos discursos capturados pela
especialização.
Possuía uma gentileza tímida, mas literal, que depressa se
tornava um pacto. Ou então, era brutal, como gostava de repetir,
falando de si na terceira pessoa: «o Eugénio de Andrade é uma
mistura de brutalidade e ternura». A dizer a verdade, era apenas
brusco. Sacudia asperamente os conformismos. Era cortante e
lapidar. Defendia o seu campo da invasão da banalidade que não
suportava. Era arrumado, meticuloso, obsessivo com a
transparência do espaço, e do seu espaço. Algumas vezes
acompanhei-o até casa e assombrava-me a urgência com que
arrumava o que quer que trouxesse da rua (fosse uma maçã, um
livro, uma pedra), escolhendo um lugar que se tornava indiscutível.
Eugénio conseguia ser vertiginosamente preciso até a lavar as
mãos. Tudo, no imenso mundo que o quarto ou o pequeno
apartamento da Calçada de Serrúbia confinavam, tinha sido objeto
de um pensamento e reflectia uma coerência sem tréguas.
Detestava, por exemplo, que lhe enviassem originais de poesia, a
pedir a opinião, mas não lhe era estranho amar intensamente o
trabalho dos outros. Sabia ser próximo e distante, desligado e
comprometido. Sobretudo, não consentia em distrair-se da
responsabilidade que é viver diante de coisas tão elementares como
a luz da manhã, os goivos que florescem, o branco da página, o
silente grito das vítimas ou o olhar do seu gato. Uma das coisas que
mais o comovia no espaço da Fundação Eugénio de Andrade, onde
viveu, é que a sua secretária — uma peça inteira de mármore róseo
— tivesse sido um presente dos operários de uma pedreira. Isso
bastava para tornar aquela mesa sagrada. Razões assim que outros
terão como mínimas, nessa espécie de vocação mendicante que
para ele era a poesia, Eugénio abraçava com a ferocidade e a
solidão que são a marca de um grande amor.
Um dia, começou assim uma carta para Jean Cocteau: «se eu
não escrevesse nesta língua de merda que é o português, você já
saberia que eu sou muito melhor poeta do que você». Referia-se
não à língua, mas à relativização dela, a que assistia politicamente e
que o deixava indignado, ele que falava com um orgulho
desmesurado dos cancioneiros medievais e de Camões, Cesário
Verde, Pessanha ou Pessoa, aqueles que eram para ele os poetas
maiores da nossa literatura. Mas também do brasileiro Guimarães
Rosa, que escreveu o mais belo romance em português, como
Eugénio garantia, colocando-o ao lado ou acima de Proust. Amava
ilimitadamente São João da Cruz e o chinês Li Bai. Possuía um
postal com uma frase de Nietzsche, «sem a música, a vida seria um
erro», frase que poderia servir-lhe de espelho. Tinha a casa cheia
de discos, numa escolha especiosa, que ele frequentava
diariamente e discutia com prazer, como se de facto disso a vida
dependesse. E nada o fazia mais feliz do que pensar na sua poesia
como um trilo de flauta pastoril que ficaria a ouvir-se na literatura
portuguesa.
Tinha rituais. Ia muitas vezes depositar flores no túmulo de
António Nobre ou dar de comer aos patos do parque da cidade.
Sabia tudo sobre a arte do chá: as melhores marcas, as
combinações adequadas, a coloração, o tipo de bules, a
temperatura a que se deve beber. Não poderia ser mais requintado.
Mas gostava de acompanhar o chá com um bolo de laranja
comprado na mercearia da sua rua. Foi, do princípio ao fim,
desconcertante como um adolescente insolente e límpido. Ouvi
Álvaro Siza contar uma história passada em 74, que o demonstra
bem. Andava um grupo de alunos de Belas-Artes a pintar um mural
quando viram aproximar-se Eugénio de Andrade que, nessa altura,
no Porto, era já um mito. Vencendo o obstáculo da reverência que
sentiam, dirigiram-se a ele perguntando-lhe se não queria deixar
nada escrito no mural. Esperavam, naturalmente, um verso, uma
dessas palavras que só um poeta pudesse grafar. Eugénio assentiu,
pegou no pincel e escreveu: «abaixo o fascismo».
Já passou uma década do seu desaparecimento, e o tempo
encarregar-se-á de revelá-lo, sempre mais decididamente, como um
clássico da literatura portuguesa e europeia. Há que dizê-lo com as
letras todas: Eugénio de Andrade revolucionou a nossa poesia. Até
ele a poesia portuguesa era maioritariamente uma espécie de ponto
de passagem para outra coisa, representação de uma realidade
anterior ou para lá do próprio poema. Com ele a poesia deixa de ser
veículo e torna-se substância de si. Termina o primado da ideia
sobre a palavra. Por isso, como sublinhou Prado Coelho, «em
Eugénio de Andrade, o poema é, na sua admirável transparência,
duma opacidade total: ele não permite que se veja através dele,
porque continuamente nos reafirma que tudo está nele». E Eduardo
Lourenço dirá, em registo lapidar, que «a sua poesia é a primeira
poesia da poesia da nossa Literatura». Eugénio de Andrade operou
esta viragem recorrendo a um grau de sofisticação que só a
simplicidade e a nitidez extremas podem exprimir. A sua poesia
pede para ser amada como se ama uma escultura de Miguel Ângelo
ou a beleza do mar.
PRIMEIROS POEMAS
À memória de Fernando Pessoa
CANÇÃO

Tinha um cravo no meu balcão;


veio um rapaz e pediu-mo
— mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;


veio um rapaz e pediu-mo
— mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,


só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
— mãe, dou-lho ou não?
ACORDE

Onde passou o vento


são altas as ervas,
e os olhos água
só de olhar para elas.
A UMA FONTE

Fonte pura, fonte fria…


(Onde vais, minha canção?)
Fonte pura… assim queria
que fosse meu coração:
fluir na noite e no dia
sem se desprender do chão.
CANÇÃO INFANTIL

Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.


Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.
PAISAGEM

Entre pinheiros três casas.


Uma azenha parada.
Uma torre erguida
de fraga em fraga
contra o céu de cal.
E um silêncio talhado
para o voo de um moscardo
alastra de casa em casa,
sobe à torre abandonada
e sobre a azenha parada
tomba desamparado.
PROVÍNCIA

Meu casto
e puro amor provinciano,
não percas tempo
acendendo velas
no teu oratório:
nenhum santo
nem eu
estamos na disposição
de fazer o milagre
do teu casamento.
NOCTURNO

Noite,
noite velha
nos caminhos.
A lua no alto
fingindo-se cega.
Estrelas. Algumas
caíram ao rio.
As rãs
e as águas
estremecem de frio.
ADAGIO

O outono é isto —
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.
QUASE NADA

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.
IN MEMORIAM
(F.G.L.)

Noite aberta.
A lua
tropeça nos juncos.
Que procura a lua?
A raiz do sangue?
Um rio onde durma?
A voz delirando
no olival, exangue?
Sonâmbula,
que procura a lua?
O rosto da cal
que no rio flutua?
AS MÃOS E OS FRUTOS
Let thy blood be thy direction till thy death.
Shakespeare
I

Só as tuas mãos trazem os frutos.


Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
— Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
II

Cantas. E fica a vida suspensa.


É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.
III

Quando em silêncio passas entre as folhas,


uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
IV

Somos como árvores


só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
V

Nos teus dedos nasceram horizontes


e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
VI

Não canto porque sonho.


Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.


Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.


Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.
VII. NOITE TRANSFIGURADA

Criança adormecida, ó minha noite,


noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
— chegaste,
nem eu sei de que horizontes.

Hoje vens ao meu encontro


nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
— ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.

Chegaste, noite minha,


de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
— ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
VIII

Foi para ti que criei as rosas.


Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua


e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
IX. MADRIGAL

Tu já tinhas um nome, e eu não sei


se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
X. GREEN GOD

Trazia consigo a graça


das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa


sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.


E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,


porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.
XI

Olhos postos na terra, tu virás


no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
XII

Se vens à minha procura,


eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.

Nimba-te de mim e de luar.


Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.
XIII

Fecundou-te a vida nos pinhais.


Fecundou-te de seiva e de calor.
Alargou-te o corpo pelos areais
onde o mar se espraia sem contorno e cor.

Pôs-te sonho onde havia apenas


silêncio de rosas por abrir,
e um jeito nas mãos morenas
de quem sabe que o fruto há-de surgir.

Brotou água onde tudo era secura.


Paz onde morava a solidão.
E a certeza de que a sepultura
é uma cova onde não cabe o coração.
XIV

Tenho o nome de uma flor


quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.
XV

Caem os sonhos um a um
e o sangue estremece.
Caem, e ficam no chão
de quem os morde e os esquece.

Farto de seiva, o dia amadurece.


XVI

Da cor do feno, as tuas mãos completas


erguem-se abertas e pedindo
a não sei que deus o seu destino
de cavalo indomável como um rio;
suspensas, as aves bebem o teu grito
e ficam cegas a tremer de frio.
XVII. POEMA PARA O MEU AMOR DOENTE

Hoje roubei todas as rosas dos jardins


e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
XVIII

Impetuoso, o teu corpo é como um rio


onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei,


irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.
XIX

Terra: se um dia lhe tocares


o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio,
sê leve para quem o foi contigo.

Dá-lhe o meu cabelo para sonho,


e deixa as minhas mãos para tecer
a mágoa infinita das raízes
que no seu corpo um dia hão-de beber.
XX. PEQUENA ELEGIA CHAMADA DOMINGO

O domingo era uma coisa pequena.


Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios


e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios…)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.
XXI

Se pudesse, coroava-te de rosas


neste dia —
de rosas brancas e de folhas verdes,
tão jovens como tu, minha alegria.

Terra onde os versos vão abrindo,


meu coração, não tem rosas para dar;
olhos meus, onde as águas vão subindo,
cerrai-vos, deixai de chorar.
XXII

Nenhum búzio cantou a tua imagem.


Nenhum pomar se abriu à passagem
da morte tranquila nos teus braços.
Só uma criança acordou,
mordeu o silêncio e chorou
o abandono diurno dos teus passos.
XXIII. UMA CEREJEIRA EM FLOR

Acordar, ser na manhã de abril


a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos


o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.
XXIV

Somos folhas breves onde dormem


aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.
XXV

Shelley sem anjos e sem pureza,


aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;


das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei


que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira


tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de deixar sós.
XXVI. NOCTURNO

Coaxar de rãs é toda a melodia


que a noite tem no seio
— versos dos charcos
e dos juncos podres,
casualmente, com luar no meio.
XXVII. O ANJO DE PEDRA

Tinha os olhos abertos mas não via.


O corpo todo era a saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:


no limiar das coisas por saber
— e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser.
XXVIII

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.


O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.


Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão


e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.
XXIX

Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,


inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho


meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.
XXX

Onde me levas, rio que cantei,


esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me levas?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio


de uma noite maior e mais completa,
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo


como o coração dos frutos bravos,
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo


e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra face na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.
XXXI. ESPERA

Horas, horas sem fim,


pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa


e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
XXXII

Os teus olhos férteis de promessas


vão-se, e a noite fica fechada.
Cantar de que me serve? Que palavra
abre a noite à mais pura madrugada?
XXXIII

A tua vida é uma história triste.


A minha é igual à tua.
Presas as mãos e preso o coração,
enchemos de sombra a mesma rua.

A nossa casa é onde a neve aquece.


A nossa festa, onde o luar acaba.
Cada verso em nós próprios apodrece,
cada jardim nos fecha a sua entrada.
XXXIV

Passamos pelas coisas sem as ver,


gastos como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos:
como frutos de sombra sem sabor
vamos caindo ao chão apodrecidos.
XXXV

Em cada fruto a morte amadurece,


deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
OS AMANTES SEM DINHEIRO
É todo um mundo confuso, de penetração difícil, tanto mais difícil
quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve
primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me
de duas casas — uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e
as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa
do Adro.
Minha mãe disse-me que eu nasci na casa do Adro, e só um
pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos
mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas,
térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho
viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a mãe
começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente
pequenas, mais pequenas mesmo que certas salas de brinquedos
que os meninos ricos têm na cidade.
Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que
nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo,
a roupa da cama, o milho para moer, o pão e a faca embrulhados
num pano de linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca
ao abrir — é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.
Ora um dia, quando me aproximei da arca — sabe-se lá se para
dar a entender a minha mãe que queria pão — estava lá em cima
uma coisa que eu nunca tinha visto. Em bicos de pés, deitei-lhe a
mão e puxei. Então o que sucedeu foi maravilhoso: de dentro saiu
um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que
certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse
ouvido ainda minha mãe cantar. A mãe era nesse tempo uma
mulher triste.
Da casa da Eira só me lembro do quartito que dava para a
cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota
a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse
quarto que a mãe me ensinou a rezar:

Senhora Sant’Ana,
Tapai-me cum véu,
que eu sou pequenino,
levai-me prò Céu.

Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das


orações:

— Ó Ti Ana! Ti Ana!
Faça-me um favor!

Que é? — perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:

— Empreste-me a pele
pra fazer um tambor!

Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das


brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais
voltei a chorar assim.
Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. — Ó
mãe, mãe… — Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a
porta fechada. — Ó mãe, mãe… — E a casa deserta. Pelas frinchas
largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente,
talvez de julho, talvez de agosto. Devia haver medas de palha na
eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de
água e de angústia. — Ó mãe, mãe… — E de repente, na manhã
clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes,
vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. — Ó
mãe, mãe… — O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito
abertos, vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás
das outras. — Ó mãe, mãe…
E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem
mesmo tu, mãe, pois a essas horas andavas a ganhar o pão para a
boca daquele que hoje te oferece estes versos.
CONSELHO

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava.


Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente


o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,


e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
ABRIL

Brinca a manhã feliz e descuidada,


como só a manhã pode brincar,
nas curvas longas desta estrada
onde os ciganos passam a cantar.

Abril anda à solta nos pinhais


coroado de rosas e de cio,
e num salto brusco, sem deixar sinais,
rasga o céu azul num assobio.

Surge uma criança de olhos vegetais,


carregados de espanto e de alegria,
e atira pedras às curvas mais distantes
— onde a voz dos ciganos se perdia.
CANÇÃO PARA MINHA MÃE

Uma mulher a cantar


de cabelo despenteado.

(Era o tempo das gaivotas


mas o mar tinha secado.)

Pelos seus braços caíam


frutos maduros de outono,

pelas pernas escorriam


águas mortas de abandono.

(Uma criança juntava


o cabelo destrançado.)

Gaivotas não as havia


e o mar tinha secado.
IMPROVISO PARA UMA FONTE

Boca da terra.
Ao longe pressentida
mas discreta.
A quem te procura
entregas-te aberta.
IMPROVISO NA MADRUGADA

Húmido de beijos e de lágrimas,


ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco ou de cantar.)


RETRATO

No teu rosto começa a madrugada.


Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.
CANÇÃO BREVE

Tudo me prende à terra onde me dei:


o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor


que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas


e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.
IMAGEM

A lembrança do dia
é leve de se ter:
garganta de um jardim,
só aroma ao descer.
ELEGIA

Às vezes era bom que tu viesses.


Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia
dos frutos e dos animais.

Maio trouxe cravos como outrora,


cravos morenos, como tu dizias,
mas cada hora
passa e não se demora
na tristeza das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar,


só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,


um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste o ritmo, o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude.

Não estamos sós:


setembro traz ainda
um fruto em cada mão.
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direcção.
COM AS GAIVOTAS

Contente de me dar como as gaivotas


bebo o outono e a tarde arrefecida.
Perfeito o céu, perfeito o mar, e este amor
por mais que digam é perfeito como a vida.

Tenho tristezas como toda a gente.


E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou de um céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.
POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,


eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou


o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras


que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo


são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas


que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,


talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;


esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:


Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,


e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.


Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


SONETO

Amor desta tarde que arrefeceu


as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu


a fria arquitectura desta tarde
— só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto que não há razão


para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre


de onde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.
RUMOR

Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar.


CHORO

Choras, e nem eu posso


mais do que lágrimas, coisas frias,
sobre as tuas mãos abandonadas
à janela dos dias.

Alta tristeza de cabelos de água,


é no meu rosto que se demora
— meu coração
escreve na noite como quem chora.
OUTRO POEMA
PARA O MEU AMOR DOENTE

Outono, pássaro de melancolia


num céu sem cor que não promete nada,
mar de insónia onde o teu corpo paira
ou um aroma de terra molhada.
APENAS UM RUMOR

E no teu rosto aberto sobre o mar


cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.
SURDO, SUBTERRÂNEO RIO

Surdo, subterrâneo rio de palavras


me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio


onde o amor se perde e a razão de amar
— surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
AS MÃOS

Que tristeza tão inútil essas mãos


que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
NOCTURNO DE LISBOA

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,


cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.


Dez réis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.
ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,


e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.


Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,


era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.


Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
AS PALAVRAS INTERDITAS
PRIMEIRAMENTE

Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o


teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a
madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante
nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado
ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão
aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor duma breve madrugada de bandeiras, arranco a
tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e
sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos
pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o
que aconteceu.
AS PALAVRAS INTERDITAS

Os navios existem, e existe o teu rosto


encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,


uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.


Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas


até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,


dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.


Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
ADEUS

Como se houvesse uma tempestade


escurecendo os teus cabelos,
ou se preferes, a minha boca nos teus olhos,
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega


aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve, e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite viesse e te levasse,


eu era só fome o que sentia;
digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde o teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens,


e sobre as nuvens mar perfeito,
ou se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.
LITANIA

Iluminou-se o teu corpo na noite,


o teu corpo, azul de ser tão branco,
caminhando ao meu encontro,
trazendo os teus cabelos
como a terra traz árvores consigo,
cuidadosamente, maternalmente,
como se cada folha
fosse uma criança adormecida,
os olhos povoados
duma multidão sedenta, desfolhando
a corola dos beijos que te dou.

Meu amor,
amor duma viagem nocturna
com as andorinhas,
iluminou-se o teu corpo na noite.
Iluminou-se com a palavra exacta
que muda os cavalos em rios,
os rios em aves,
as aves na tua boca.

Ó coração interior da madrugada,


ó rumor de água sem contorno,
iluminou-se o teu corpo,
o teu corpo,
corpo ou barco,
perto, distante, perdido,
pelo qual os amantes
se beijam os pés e perdem a cor.
CANÇÃO

Hoje venho dizer-te que nevou


no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou


entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.
RETRATO COM SOMBRA

Que morte é a sombra deste retrato,


onde eu assisto ao dobrar dos dias,
órfão de ti e duma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.


Tu não eras só este sossego aconchegado
nas mãos como num regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,


o teu sorriso com as ruas dentro,
o secreto rumor das tuas veias
abrindo sulcos de palavras fundas
no rosto da noite inesperada.
Falta sobretudo à roda dos teus olhos
a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus


para embalar um beijo ou uma lágrima,
lutando, de mãos cortadas, até romper o dia,
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil


com uma rosa de cinza na mão direita.
Eu andava dentro de ti
como um pequeno rio de sol
dentro da semente,
porque nós — é preciso dizê-lo —
tínhamos nascido um dentro do outro
naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;


o rosto que vou juntando ao teu retrato
como quando era pequeno:
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca
e a noite fique transbordante de água.
VIAGEM

Iremos juntos separados,


as palavras mordidas uma a uma,
taciturnas, cintilantes
— ó meu amor, constelação de bruma,
ombro dos meus braços hesitantes.
Esquecidos, lembrados, repetidos
na boca dos amantes que se beijam
no alto dos navios;
desfeitos ambos, ambos inteiros,
no rasto dos peixes luminosos,
afogados na voz dos marinheiros.
NÃO É VERDADE

Cai, como antigamente, das estrelas


um frio que se espalha na cidade.
Não é noite nem dia, é o tempo ardente
da memória das coisas sem idade.

O que sonhei cabe nas tuas mãos


gastas a tecer melancolia:
um país crescendo em liberdade,
entre medas de trigo e de alegria.

Porém a morte passeia nos quartos,


ronda as esquinas, entra nos navios,
o seu olhar é verde, o seu vestido branco,
cheiram a cinza os seus dedos frios.

Entre um céu sem cor e montes de carvão


o ardor das estações cai apodrecido;
os mastros e as casas escorrem sombra,
só o sangue brilha endurecido.

Não é verdade tanta loja de perfumes,


não é verdade tanta rosa decepada,
tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,
tanto relógio, tanta pomba assassinada.

Não quero para mim tanto veneno,


tanta madrugada varrida pelo gelo,
nem olhos pintados onde morre o dia,
nem beijos de lágrimas no meu cabelo.

Amanhece.
Um galo risca o silêncio
desenhando o teu rosto nos telhados.
Eu falo do jardim onde começa
um dia claro de amantes enlaçados.
VEGETAL E SÓ

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis


sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,


o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão


sem a febre de tantos lábios,
sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,


correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.
ELEGIA E DESTRUIÇÃO

Desse tempo em que se permanece criança


durante milhares de anos,
trouxe comigo um cheiro a resina;
trouxe também os juncos vermelhos
que ladeiam a orla do silêncio,
neste quarto, agora habitado pelo vento;
trouxe ainda um olhar húmido
onde os pássaros perpetuam o céu.

Dificilmente esqueço a rua onde encontrei


os teus olhos imensos, fascinados
pelo fulgor secreto das espadas,
a casa onde te contei, de mãos trémulas,
a parábola do pão e do vinho,
dando a cada palavra um rosto novo.

A cidade onde te amei foi decepada


e não posso abolir as sentinelas do medo.
Mas também não posso deixar de te querer
com beijos e relâmpagos,
com sonhos que tropeçam nas paredes
e se alimentam de terror e de alegria,
enquanto o tempo persiste em soluçar.

Que me quereis verdes sombras da lua


na minha cama onde adormece o frio?
Aqui estou, mais alto do que o trigo,
sangrando nas pétalas do dia,
e sem receio de que aos nossos gritos
ainda chamem brisa.
PROCURO-TE

Procuro a ternura súbita,


os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,


a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.


Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa


quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes de a morte se aproximar, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
OS OLHOS RASOS DE ÁGUA

Cansado de ser homem durante o dia inteiro


chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.

É a hora de fazer milagres:


posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso


a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,


como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.
ROSTO AFOGADO

Para sempre um luar de naufrágio


anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço


de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar duma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
pousadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?

Ninguém te conheceu,
ninguém viu romper a luz na tua cama,
ninguém sabe, ninguém,
que o teu corpo, continente selvagem,
se desvelava por uma pedra branca
atirada contra o nevoeiro.

Por isso escrevo esta elegia


como quem oferece a luz dos olhos;
por isso canto o teu rosto afogado
como quem canta um funeral de espigas.
MAR, MAR E MAR

Tu perguntas, e eu não sei,


eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos


ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama


quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca


cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.


É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,


insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.


Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.
POST SCRIPTUM

Agora regresso à tua claridade.


Reconheço o teu corpo, arquitectura
de terra ardente e lua inviolada,
flutuando sem limite na espessura
da noite cheirando a madrugada.

Acordaste na aurora, a boca rumorosa


de um desejo confuso de açucenas;
rosa aberta na brisa ou nas areias,
alta e branca, branca apenas,
e mar ao fundo, o mar das minhas veias.

Estás de pé na orla dos meus versos


ainda quente dos beijos que te dei;
tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa
— como no tempo em que tinha medo
que tropeçasses numa gota de água.
ATÉ AMANHÃ
CORAÇÃO HABITADO

Aqui estão as mãos.


São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,


respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus


— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.


Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
JUVENTUDE

Sim, eu conheço, eu amo ainda


esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.
ATÉ AMANHÃ

Sei agora como nasceu a alegria,


como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma


à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.


De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.
CONTIGO

Acordo na manhã de oiro


entre o teu rosto e o mar.

As mãos afagam a luz,


prolongam o dia breve.

Entre o teu rosto e o mar


ninguém deseja ser neve.

Ninguém deseja o veneno


da noite despovoada.

Acorda-me a tua voz,


nupcial, branca, delgada.
APENAS UM CORPO

Respira. Um corpo horizontal,


tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

Amorosamente toco o que resta dos deuses.


As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.


Aguarda um relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,


uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,


nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.
METAMORFOSES DA PALAVRA

A palavra nasceu:
nos lábios cintila.

Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos.

De ramo em ramo voa,


na luz se derrama.

A morte não existe:


tudo é canto ou chama.
SERENATA

Venho ao teu encontro a procurar


bondade, um céu de camponeses,
altas árvores onde o sol e a chuva
adormecem na mesma folha.

Não posso amar-te mais,


luz madura, espaço aberto.
Não posso dar-te mais do que te dou:
sangue, insónias, telegramas, dedos.

Aqui estou, fronte pura, rodeado


de sombra, de soluços, de perguntas.
Aceita esta ternura surda,
este jasmim aprisionado.

Nos meus lábios, melhor: no fogo,


talvez no pão, talvez na água,
para lá dos suplícios e do medo,
tu continuas: matinalmente.
QUASE MADRIGAL

Os anjos que prometes são apenas


o rosto triste dos dias desolados.
Eu não prometo nada, sou alegria.
Aceito os anjos nos beijos que me dás,
pondo rosas nos teus dedos descuidados.
AH, FALEMOS DA BRISA

Eu dizia:
«Nenhuma brisa é triste»,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.

Mas quem sabe dessa música


cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo,
mar doirado ou sombra
desolada?

Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.

Como quem se despe


para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: «Nenhuma brisa é triste,
triste», e procurava.

E procurava.
URGENTEMENTE

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,


ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,


multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz


impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
RAPARIGA DESCALÇA

Chove. Uma rapariga desce a rua.


Os seus pés descalços são formosos.
São formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.

A chuva em abril tem o sabor do sol:


cada gota recente canta na folhagem.
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.

Uma gaivota passa nos meus olhos.


E a rapariga — os seus formosos pés —
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.
FRENTE A FRENTE

Nada podeis contra o amor.


Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,


a mais vil, isso podeis
— e é tão pouco.
MATINAL

Que seja fogo e suba ao cume


das águas seminais e duras,
e cante, invada, inunde
— juventude, juventude.
NA ORLA DO MAR

Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
(e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo)
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.
RETRATO

Tigre adormecido,
coração do dia.
Rosto semeado
de melancolia.

Noite transparente,
primavera escura.
Sombra rodeada
de mar e brancura.

Tigre adormecido.
Coração do dia.
Puro e violento
incêndio de alegria.
EPITÁFIO PARA UM MARINHEIRO
MORTO QUANDO JOVEM

Perguntam por ti e ouço


a secreta voz da água.

Perguntam por ti e vejo


o perfil azul do mar.

Perguntam por ti e digo:


Acorda e veste-se de branco.
CANÇÃO DESESPERADA

Nem os olhos sabem que dizer


a esta rosa de alegria,
aberta nas minhas mãos
ou nos cabelos do dia.

O que sonhei é só água,


água só, roxa de frio.
Nenhuma rosa cabe nesta mágoa.
Dai-me a sombra de um navio.
LITANIA

O teu rosto inclinado pelo vento;


a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,


colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser


a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.


ECOS DE VERÃO

Quando todo o brilho da cidade


me escorre pelas mãos, que já não são
mais que fugidios ecos de verão,
a música dos dias sem idade
subitamente como fonte ou ave
rompe dentro de mim — e nem eu sei,
neste rumor de tudo quanto amei,
se a luz madrugou ou chegou tarde.
CANÇÃO

Tu eras neve.
Branca neve acariciada.
Lágrima e jasmim
no limiar da madrugada.

Tu eras água.
Água do mar se te beijava.
Alta torre, alma, navio,
adeus que não começa nem acaba.

Eras o fruto
nos meus dedos a tremer.
Podíamos cantar
ou voar, podíamos morrer.

Mas do nome
que maio decorou,
nem a cor
nem o gosto me ficou.
CORAÇÃO DO DIA
À memória de minha Mãe
INTRODUÇÃO AO CANTO

Ergue-te de mim,
substância pura do meu canto.
Luz terrestre, fragrância.
Ergue-te, jasmim.

Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.

Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde.
AS PALAVRAS

São como um cristal,


as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.


Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem


as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
SEM TI

E de súbito desaba o silêncio.


É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos


ouço a música das tuas.
CORAÇÃO DO DIA

Olhas-me ainda, não sei se morta:


desprendida
de inumeráveis, melancólicos muros;
só lembrada
que fomos jovens e formosos,
alados e frescos e diurnos.

De que lado adormeces?


Alma: nada te dói?
Não te dói nada, eu sei;
agora o corpo é formosura
urgente de ser rio:
ao meu encontro voa.

Nada te fere, nada te ofende.


Numa paisagem de água,
tranquilamente,
estende os teus ramos
que só a brisa afaga.
A brisa e os meus dedos
fragrantes do teu rosto.

Mãe, já nada nos separa.


Na tua mão me levas,
uma vez mais,
ao bosque onde me sento
à tua sombra.
— Como tu cresceste! —
suspiras.
Alma: como eu cresci.
E como tu és
agora
pequena, frágil, orvalhada.
LÁGRIMA

Dos olhos me cais,


redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.
UM RIO TE ESPERA

Estás só, e é de noite,


na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.

Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.

Por um momento esqueces


a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.

Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te de tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.

Olhas a água, a ponte,


os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.

Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
TARDE FERIDA

Que mar a pique


ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?
PEQUENA ELEGIA DE SETEMBRO

Não sei como vieste,


mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,


as mãos no regaço cheia de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente


que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,


dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras


ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,


ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
DA MEMÓRIA

Branco, branco e orvalhado,


o tempo das crianças e dos álamos.
LISBOA

Alguém diz com lentidão:


«Lisboa, sabes …»
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,
algumas rugas finas
a espreitar-lhe os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?


«IN SUL PASSO D’ARNO»

Debaixo passa o Arno.


Passam as mãos,
o silêncio,
as palavras,
uns olhos muito verdes,
muito azuis,
uma criança.
Passa o Arno.
Lento, magro, sujo:
passa.
Se fora limpo e claro
e rumoroso,
seria ainda o Arno:
também passava.
OS AMIGOS

Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.
ENTRE MARÇO E ABRIL

Que cheiro doce e fresco,


por entre a chuva,
me traz o sol,
me traz o rosto,
entre março e abril,
o rosto que foi meu,
o único
que foi afago e festa e primavera?

Oh cheiro puro e só da terra!


Não das mimosas,
que já tinham florido
no meio dos pinheiros;
não dos lilases,
pois era cedo ainda
para mostrarem
o coração às rosas;
mas das tímidas, dóceis flores
de cor difícil,
entre limão e vinho,
entre marfim e mel,
abertas no canteiro junto ao tanque.
Frésias,
ó pura memória
de ter cantado —
pálidas, fragrantes,
entre chuva e sol
e chuva
— que mãos vos colhem,
agora que estão mortas
as mãos que foram minhas?
CANTO ROUCO

Antes que perca a memória


das pedras do adro,
antes do corpo ser
um só e quebrado
ramo sem água,
devolvei-me o canto
rouco
e desamparado
do harmónio na noite.

Mãe!, desamparado na noite.


DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,


é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.
MAR DE SETEMBRO
Eternity was in your lips and eyes.
Shakespeare
MAR DE SETEMBRO

Tudo era claro:


céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves — só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.
RUMOR

Quando o outono
já não pode senão melancolia
é que o secreto rumor da água
inunda os lábios de oiro.
QUASE NADA

Passo e amo e ardo.


Água? Brisa? Luz?
Não sei. E tenho pressa:
levo comigo uma criança
que nunca viu o mar.
GLOSA

Que voz se desprende,


hesita, tropeça?

Que pedras tacteia,


que ramos alcança?

Que fonte pressente?


Que rio procura?

Que ritmo persegue,


que palavras ama?

Que sombras repele,


que luzes derrama?
OCULTAS ÁGUAS

Um sopro quase,
esses lábios.

Lábios? Disse lábios,


areias?
Lábios. Com sede
ainda doutros lábios.

Sede de cal.
Quase lume.
Lume
quase de orvalho.

Lábios:
ocultas águas.
NÃO PERGUNTES

De onde vem? De que fonte


ou boca
ou pedra aberta?
É para ti que canta
ou simplesmente
para ninguém?
Que juventude
te morde ainda os lábios?
Que rumor de abelhas
te sobe à garganta?
Não perguntes, escuta:
é para ti que canta.
QUE VOZ LUNAR

Que voz lunar insinua


o que não pode ter voz?

Que rosto entorna na noite


todo o azul da manhã?

Que beijo de oiro procura


uns lábios de brisa e água?

Que branca mão devagar


quebra os ramos do silêncio?
MADRIGAL

Agora
onde te despes
é verão:
tudo acolhe
e afaga
o que teu corpo tem
de concha
molhada.
À TUA SOMBRA

A terra me sabes,
à luz das manhãs
lisas de verão,
ao calor das pedras
achadas nas dunas.
Apetece cantar
nos gomos, nas luas,
nas colinas breves
do teu corpo nu;
cantar ou correr
na água, na seiva
dos ombros, dos braços,
no azul secreto
da concha das pernas.
Ó sabor eterno,
ó mortal sabor
das fontes da terra,
materno, solar
rumor de alegria:
apetece morrer,
morrer ou cantar.
OUTRO MADRIGAL

A mão
que levei à boca
interminavelmente fresca
é outra vez a casa
onde a palavra
acaba de nascer

e o verão.
ALBA

Como se não houvera


bosque mais secreto,

como se as nascentes
fossem só ardor,

como se o teu corpo


fora a vida toda,

o desejo hesita
em ser espada ou flor.
DE PERFIL

De todas essas pedras, todas,


uma só, onde passa o vento,
escolho para meu uso e alegria.
MATINALMENTE

Que ronda matinal,


que luz tão jovem
treme e se demora
nos ramos altos,
e já distante
nem lembra que pousou?
SERÃO PALAVRAS

Diremos prado bosque


primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens.

Diremos mãe amor


um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração.

Diremos terra mar


ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.
CORAÇÃO RECENTE

Eras tu? Era o dia


acabado de nascer?

Que rosa abria? Rosa


ou ardor? Não seria

só desejo de ser
um travo de alegria?

Um fulgor? Um fluir?
Eras tu? Era o dia?
VARIAÇÕES EM TOM MENOR

Para jardim te queria.


Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.

Para a boca te queria.


Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, chama pura.
CANÇÃO COM GAIVOTAS DE BERMEO

É março ou abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.

De que cor te vestiste?


De madrugada ou limão?
Que nuvens olhas, ou colinas
altas,
enquanto afastas o rosto
das palavras que escrevo
de pé, exigindo
o teu amor?
É um dia de maio?
É um dia em que tropeço
no ar
à procura do azul dos teus olhos,
em que a tua voz
dentro de mim pergunta,
insiste:
Se te fué la melancolia,
amigo mío del alma?

É junho? É setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.
OSTINATO

Ao desejo,
à sombra aguda
do desejo,
eu me abandono.

Meu ramo de coral,


meu areal,
meu barco de oiro,
eu me abandono.

Minha pedra de orvalho,


meu amor,
meu punhal,
eu me abandono.

Minha lua queimada,


violada,
colhe-me, recolhe-me:
eu me abandono.
ESPELHO

Que rompam as águas:


é de um corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,


nem outro espelho;
nunca tive outra casa.

É de um rio que falo;


desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;


as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo


mais sombrio,
mais luminoso;
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,


água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei;
um corpo, um rio;
um pequeno tigre de inocência
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou


assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho,
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

De um corpo falei:
que rompam as águas.
CANÇÃO

O último pássaro
canta nos álamos.

A luz fatigada
tropeça nos ramos.

A terra é só vaga
memória de lábios.

Ah canta, canta,
rouxinol da água.
LITANIA COM O TEU ROSTO

Ó noite, ó dia, ó música de guitarras


na rua ou no teu corpo,
primavera,
vara de nardos, estrela
de cinco pontas, morte pura;
ó barco onde as bandeiras
são todas de alegria,
água súbita, bosque próximo,
pão com sabor a sol;
ó leito onde corri,
azul azul azul,
à tua sombra;
espelho da terra,
mãe ardente,
melancolia,
secreta lua aberta,
alma, canção, ó noite, ó dia!
CANÇÃO ESCRITA NAS AREIAS DE LAGA

No teu ombro respiro.


Belos são os navios,
altos, estreitos.
Feliz, o teu rosto no meu.
Que luz sobre o teu peito!

No teu ombro respiro.


Belas são as areias
fulvas de verão.
Feliz, o meu rosto no teu.
Oh tão azul o mar na tua mão!
UM NOME

Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,


pela luz
onde me deito;
di-lo-ei pelo ódio, pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte;
pelo mar
azul, azul-cantábrico, azul-bilbau,
quando amanhece;
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente;
por uma árvore,
uma só árvore, di-lo-ei:
Guernica!
ARIMA

Uma gaivota — dizes.


Sim, uma gaivota
passa distante e arde.
O teu rosto é azul,
e contudo está cheio
do oiro da tarde.

Uma gaivota.
Alma do mar e tua,
abandona-se à luz.

E na boca nem eu sei


se me nasce o coração
ou é a lua.
LETTERA AMOROSA

Respiro o teu corpo:


sabe a lua-d’água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
sabe ao sol dos rios,
sabe a rosa-louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
EROS

Nunca o verão se demorara


assim nos lábios
e na água
— como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?
MUSICA MIRABILIS

Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo

— e desperte o lume.
QUE DIREMOS AINDA?

Vê como de súbito o céu se fecha


sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.

Que diremos ainda? Serão palavras,


isto que aflora aos lábios?
Palavras, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?

Palavras, não. Quem as sabia?


Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
OSTINATO RIGORE
SONETO MENOR À CHEGADA DO VERÃO

Eis como o verão


chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,

seus múltiplos, longos


corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,

seu dardo mais puro


cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro —

eis como o verão


entra no poema.
CRISTALIZAÇÕES

1
Com palavras amo.

2
Inclina-te como a rosa
só quando o vento passe.

3
Despe-te
como o orvalho
na concha da manhã.

4
Ama
como o rio sobe os últimos degraus
ao encontro do seu leito.

5
Como podemos florir
ao peso de tanta luz?

6
Estou de passagem:
amo o efémero.

7
Onde espero morrer
será manhã ainda?
ESCRITA DA TERRA

1
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2
Só o desejo é matinal.

3
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5
Beber-te a sede e partir
— eu sou de tão longe.

6
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
PASTORAL

A terra inocente
abre-se ao ardor
de oiro de uma flauta
— será que o pastor
ou a primavera
desperta e se exalta?
ANUNCIAÇÃO DA ALEGRIA

Devia ser verão, devia ser jovem:


ao encontro da manhã ia cantando
como quem entra na água.

Um corpo nu brilhava nas areias


— corpo ou pedra?, pedra ou flor?

Verde era a luz, e a espuma


do vento rolava pelas dunas.

Soltei os olhos sobre aquele corpo,


o coração latindo de alegria.

De repente vi o mar subir a prumo,


desabar inteiro nos meus ombros.

Sem muros era a terra, e tudo ardia.


ESTRIBILHOS DE UM DIA DE VERÃO

1
Um nó de luz ou uma lágrima:
nada mais era quando despertava.

2
Sabor de água, puro sabor
de ser matinal até doer.

3
Sabor de ser
ardor de florir,
rumor de amanhecer.

4
Ser
da neve ao fogo um só ardor.

5
Um só fluir, um só fulgor.
NOCTURNO A DUAS VOZES

— Que posso eu fazer


senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

— Repara como sou jovem,


como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
pousou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

— Não tenhas medo:


nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

— Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.

— Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento.

— Tu és a água, a terra, o vento,


a estrela da manhã és tu ainda.

— Cala-te, as palavras doem.


Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
MITOLOGIA

A noite quebra as lanças uma a uma


na brancura dos muros e da espuma.

O dia apaixonadamente branco


cai ferido por um dardo no flanco.
EROS DE PASSAGEM

1
Apelo da manhã perdido em flor:
ave seria se não fosse ardor.

2
Pelo sabor da água reconheço
a ternura e os flancos do verão.

3
Um corpo brilha nu para o desejo
dançar na luz a pique das areias.

4
Nas águas rumorosas da memória
contigo acabo agora de nascer.

5
O vento inclina as hastes à luz dura:
a terra está próxima e madura.
OS FRUTOS

Assim eu queria o poema:


fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
NATUREZA-MORTA COM FRUTOS

1
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.

2
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.

3
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.

4
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.

5
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.
QUASE HAIKU

Que terror te ergueu


pétala a pétala
para eu desfolhar,
ó manhã de oiro.
METAMORFOSES DA CASA

Ergue-se aérea pedra a pedra


a casa que só tenho no poema.

A casa dorme, sonha no vento


a delícia súbita de ser mastro.

Como estremece um torso delicado,


assim a casa, assim um barco.

Uma gaivota passa e outra e outra,


a casa não resiste: também voa.

Ah, um dia a casa será bosque,


à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.
NOCTURNO DE FÃO

De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta
o êxtase do dia.
NOCTURNO DA ÁGUA

Pergunto se não morre esta secreta


música de tanto olhar a água,
pergunto se não arde
de alegria ou mágoa
este florir do ser na noite aberta.
AS NASCENTES DA TERNURA

1
No espaço de um relâmpago
os olhos reflectem os navios.

2
O silêncio brilha acariciado.

3
O silêncio é de todos os rumores
o mais próximo da nascente.

4
Só água era, e sem memória.

5
Claridade sem repouso, ó claridade,
aguda nos juncos, nas pedras rasa.

6
É no ardor dos cardos
que o vento faz a casa.

7
Da pedra ao sal, do sal à espuma,
amo a pobreza e a brancura.
ESCUTO O SILÊNCIO

Escuto o silêncio: em abril


os dias são
frágeis, impacientes e amargos;
os passos
miúdos dos teus dezasseis anos
perdem-se nas ruas, regressam
com restos de sol e chuva
nos sapatos,
invadem o meu domínio de areias
apagadas,
e tudo começa a ser ave
ou lábios, e quer voar.

Um rumor cresce lentamente,


oh, lentamente
não cessa de crescer,
um rumor de pálpebras
ou pétalas
sobe de terraço em terraço,
descobre um dia
de cinzas com vestígios de beijos.

Um só rumor de sangue
jovem:
dezasseis luas altas,
selvagens, inocentes e alegres,
ferozmente enternecidas;
dezasseis potros
brancos na colina sobre as águas.
Como um rio cresce, cresce um rumor;
quero eu dizer,
assim um corpo cresce, assim
as ameixieiras bravas
do jardim,
assim as mãos,
tão cheias de alegria,
tão cheias de abandono.

Um rumor de sementes,
de cabelos
ou ervas acabadas de cortar,
um irreal amanhecer de galos
cresce contigo,
na minha noite de quatro muros,
no limiar da minha boca,
onde te demoras a dizer-me adeus.

Escuto um rumor: é só silêncio.


EROS THANATOS

1
Ó pureza apaixonadamente minha:
terra toda nas minhas mãos acesa.

2
O que sei de ti foi só o vento
a passar nos mastros do verão.

3
Um corpo apenas, barco ou rosa,
rumoroso de abelhas ou de espuma.

4
Entre lábios e lábios não sabia
se cantava ou nevava ou ardia.

5
Amo como as espadas brilham
no ardor indizível do dia.

6
Seria a morte esta carícia
onde o desejo era só brisa?
CANTE JONDO

A mão onde pousava


o que a noite trazia
é quase imperceptível;
memória só seria
do que nem nome tinha:
um arrepio na água?,
um ligeiro tremor
nas folhas dos álamos?,
um trémulo sorrir
em lábios que não via?
Memória só seria
de ter sonhado a mão
onde nada pousava
do que a noite trazia.
ACORDE PERFEITO

Oh, os ramos do verão —

onde as cigarras
ou a cal

queimam
lentamente o coração.
EPITÁFIO

Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.
ANTES DA NEVE

As grandes searas
sacudirão a crina,
a luz de setembro
tombará dos olmos,
a espuma do vinho
extinguir-se-á
como lume breve —

só então a neve…
FIM DE SETEMBRO

Ó manhã, manhã,
manhã de setembro,
invade-me os olhos,
inunda-me a boca,
entra pelos poros
do corpo, da alma,
até ser em ti,
sem peso e memória,
um acorde só
do vento e da água,
uma vibração
sem sombra nem mágoa.
ESPADAS DA MELANCOLIA

Um corpo
para estender a náufragos — o teu corpo.
Um rasto de cadelas aluadas,
um charco de maçãs apodrecidas
ou longas cabeleiras apagadas.

Não dizias palavras, ou só dizias


aquelas onde o rosto se escondia.

Palavras onde o sangue não abria


a corola de fogo à madrugada.

O azul não canta, a água morre


na mais secreta boca do teu corpo.

Aqui não brilha a terra, a luz é fria,


aqui o horizonte não respira.

Não havia vento: só medo e cobardia.


DESPEDIDA

Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.
EXÍLIO

Oh tempo tempo tempo,


tempo de colher
o que temos maduro:
o lume dos olhos
a luzir no escuro.
EXORCISMO

O rosto,
o rosto do verão,
a púrpura do fogo,
a aliança, a confiança,
minha guitarra, meu cão de cego —

a carícia não encontra a mão,

lembra-te.
OBSCURO DOMÍNIO
O OFÍCIO

Recomeço.
Não tenho outro ofício.

Entre o pólen subtil


e o bolor da palha,
recomeço.

Com a noite de perfil


a medir-me cada passo,

recomeço,
pedra sobre pedra,
a juntar palavras;

quero eu dizer:
ranho baba merda.
NAS PALAVRAS

Respiro a terra nas palavras,


no dorso das palavras
respiro
a pedra fresca da cal;

respiro um veio de água


que se perde
entre as espáduas
ou as nádegas;

respiro um sol recente


e raso
nas palavras,
com lentidão de animal.
A MÚSICA

Álamos.
Música
de matutina cal.

Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.

Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.

Acidulada
música de cardos.

Música do fogo
em redor dos lábios.

Desatada
à roda da cintura.

Entre as pernas,
junta.

Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.

Regaço
onde o lume breve
duma romã brilha.

Música, levai-me:

Onde estão as barcas?


Onde são as ilhas?
ESCRITO NO MURO

Procura a maravilha.

Onde a luz coalha


e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso,


nos flancos suados.

Onde um beijo sabe


a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta
à língua do vento.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.
OS ANIMAIS

Vejo ao longe os meus dóceis animais.


São altos e as suas crinas ardem.
Correm à procura duma fonte,
a púrpura farejam entre juncos quebrados.

A própria sombra bebem devagar.


De vez em quando erguem a cabeça.
Olham de perfil, quase felizes
de ser tão leve o ar.

Encostam o focinho perto dos teus flancos,


onde a erva do corpo é mais confusa,
e como quem se aquece ao sol
respiram lentamente, apaziguados.
CANTAR

O corpo arde na sombra,


procura a nascente.

Agora sei
onde começa a ternura:
reconheço
o arbusto do fogo.

Conheci o deserto
da cal.

A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.

Mas então cantava.

Como a noite sobe às fontes,


assim regresso à água.
AS JANELAS

As janelas
abrem sobre as fontes.

Abrem para o esplendor


de juncos altos e dunas,

para a extrema embriaguez


de um corpo nu nas areias.

As janelas abrem para a loucura


da sombra de um lírio entre as pernas.

Abrem para a luz extenuada


e masculina das colinas,

para as águas tresmalhadas,


para a língua em chama nas virilhas.

As janelas abrem para a doçura


da morte prometida nas espadas.
ARIADNE

Agora falarei dos olhos de Ariadne.


Falarei dos teus olhos, pois de Ariadne
só talvez haja memória
entre as pernas de Teseu.

De Ariadne ou não, os olhos são azuis.


Azuis de um azul muito frágil,
como se ao fazer a cor uma criança
tivesse calculado mal a água.
É um azul diluído, o azul dos teus olhos,
diluído em duas ou três lágrimas
— uma delas minha, pelo menos uma,
as outras tuas, as outras de Ariadne.

Falarei destes olhos. Os de Ariadne,


deles deixarei que seja Teseu a falar.
Falarei desse azul que não vi em Creta,
pois passei a infância numa terra sem mar,
falarei desse azul que não vi em Naxos,
mas vi em Delfos onde, entre colunas,
passava os dias divinamente a fornicar,
indiferente ao oráculo de Apolo.
De resto, que deus grego não me aprovaria?
Que outra coisa se pode fazer na Grécia?
Ali podeis fornicar com toda a gente
— é clássico e barato —,
até com os coronéis.

Agora falarei dos olhos gregos de Ariadne,


que não são de Ariadne nem são gregos,
desses olhos que se fossem música
seriam a música de água dos oboés,
falarei apenas dos olhos do meu amor,
desses olhos de um azul tão azul
que são mesmo o azul dos olhos de Ariadne.
DE PASSAGEM

Vinham ao fim do dia.


Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.

Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome.
PLENAMENTE

A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca


esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.
NO CIMO DA PEDRA

Toco o cimo da pedra,

ardo —

arde comigo
a memória de pássaros
despertos,

a glória dos cardos


altos,

desertos,

no branco fogo da cal.


A PALMEIRA JOVEM

Como a palmeira jovem


que Ulisses viu em Delos, assim

esbelto era o dia


em que te encontrei;

assim esbelta era a noite


em que te despi,

e como um potro na planície nua


em ti entrei.
VAGUÍSSIMO RETRATO

Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser —
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
CORPO HABITADO

Corpo num horizonte de água,


corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos,
corpo defendido
pelo fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina,
corpo amorosamente humedecido
pelo sol dócil da língua.

Corpo com gosto a erva rasa


de secreto jardim,
corpo onde entro em casa,
corpo onde me deito
para sugar o silêncio,
ouvir
o rumor das espigas,
respirar
a doçura escuríssima das silvas.

Corpo de mil bocas,


e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito
irrompa das entranhas,
e suba às torres,
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.
Corpo para beber até ao fim —
meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação,
meu vento favorável,
minha vária, sempre incerta
navegação.
OS JOELHOS

Considerai os joelhos com doçura:


vereis a noite arder mas não queimar
a boca onde beijo a beijo foi acesa.
NAS ERVAS

Escalar-te lábio a lábio,


percorrer-te: eis a cintura,
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso,
descer aos flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca


dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração


das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão,

porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve,

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho —
a glande leve.
EM LOUVOR DO FOGO

Um dia chega
de extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem,
a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa


à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde
na extrema e lenta
doçura da tarde.
ARTE DE NAVEGAR

Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.


VÉSPERA DA ÁGUA

Tudo lhe doía


de tanto que lhes queria:

a terra
e o seu muro de tristeza,

um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,

a respiração do trigo,

o fogo reunido na cintura,

um beijo aberto na sombra,

tudo lhe doía:

a frágil e doce e mansa


masculina água dos olhos,

o carmim entornado nos espelhos,

os lábios,
instrumentos da alegria,

de tanto que lhes queria:


os dulcíssimos melancólicos
magníficos animais amedrontados,

um verão difícil
em altos leitos de areia,

a haste delicada de um suspiro,

o comércio dos dedos em ruína,

a harpa inacabada
da ternura,

um pulso claramente pensativo,

lhe doía:

na véspera de ser homem,


na véspera de ser água,
o tempo ardido,
rouxinol estrangulado,

meu amor: amora branca,

o rio
inclinado
para as aves,

a nudez partilhada, os jogos matinais,


ou se preferem: nupciais,

o silêncio torrencial,
a reverência dos mastros,

no intervalo das espadas

uma criança corre


corre na colina

atrás do vento,

de tanto que lhes queria,


tudo tudo lhe doía.
RETRATO ARDENTE

Entre os teus lábios


é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos


é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos


é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
PÚRPURA SECRETA

É na treva um fogo breve.

Um fogo doce de palha,


húmido,
quase animal.

Uma concha suave-


mente trabalhada
pelas abelhas da sombra.

Insegura flor abrindo.


Quase boca, quase língua,
agressiva, transviada.

Aglutinada
púrpura secreta
clamando
por luz violenta.

Um punhal extenuado
de ferir
lábio a lábio.

Explosão lenta.
DESDE O CHÃO

A pele porosa do silêncio


agora que a noite sangra nos pulsos
traz-me o teu rumor de chuva branca.

O verão anda por aí, o cheiro


violento da beladona cega a terra.
Cega também, a boca procura
trabalhos de amor. Encontra apenas
o nó de sombra das palavras.

Palavras… Onde um só grito


bastaria, há a gordura
das palavras. Palavras…,
quando apetecem claridades súbitas,
o sumo estreme, a ponta extrema
do teu corpo, arco, flecha,
corola de água aberta
ao fogo a prumo do meu corpo.

Do chão ao cume das colinas,


eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
A terra toda em cima. Agora arde. Agora.
OBSCURO DOMÍNIO

Amar-te assim desvelado


entre barro fresco e ardor.
Sorver entre lábios fendidos
o ardor da luz orvalhada.

Deslizar pela vertente


da garganta, ser música
onde o silêncio aflui
e se concentra.

Irreprimível queimadura
ou vertigem desdobrada
beijo a beijo,
brancura dilacerada.

Penetrar na doçura da areia


ou do lume,
na luz queimada
da pupila mais azul,

no oiro anoitecido
entre pétalas cerradas,
no alto e navegável
golfo do desejo,

onde o furor habita


crispado de agulhas,
onde faça sangrar
as tuas águas nuas.
O AMOR

Estou a amar-te como o frio


corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas


a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos


o itinerário da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.


OS LÁBIOS

Na música mais tua,


meus lábios torrenciais
caem pesados, duros.
E nunca mais.

Despenham-se a prumo:
vidros ou punhais.
Arrastam-te ao fundo.
E nunca mais.
O VERÃO

Afaga o ardor
da palha
antes da manhã.

Prepara a semente
do sol.

Respira devagar,
grão a grão,

o azul,

o frio,
implacável,
azul do verão.

Arranca à terra escura


o difícil silêncio
sem pátria nem figura:

não tens outra flor,


não tens outro irmão.
ANIMAL FERIDO

Noite,
bosque excessivo:
acolhe
este animal ferido
de perguntas,
ajuda-me
a ser álamo contigo.
A MÃO

A mão
que no fundo da noite chama,

num sopro mais ligeiro


que o desejo

ou o cheiro
do feno quente ainda
da última gota de água,

a mão
esquece a árvore onde fez ninho

e vai pousar
entre o frio dos joelhos

devagar.
A TÍTULO PRECÁRIO

Agora digo:

as dóceis colinas
reclinadas
na água
violenta de abelhas,

o pólen no peito
muito jovem
ou a língua
de barro fresco,

a delícia das uvas


bago a bago
na boca,

no corpo inteiro,

um veio de sono
perdido na relva,

a carícia
do leite entornado;

agora falo
da terra dura,
falo do gume
duma navalha,
da palha escura
da minha pátria
onde passa o vento,

livre livre livre,


o riso quebrado
nos degraus da sombra,

e
bruscamente
um rumor de sangue:

mar,

barcos barcos barcos,

a cheirar ainda
a sol, a resina,

por onde vai a flor,


por onde vem o trigo;

agora falo,

digo…
CANTO FIRME

Desatar o silêncio,

ficar a vê-lo
escorrer na vidraça,

entrar na noite,

labirinto
onde perco a mão,
deixar o sangue
iluminar meu pulso
de terra ardente,

ser música ainda,

penetrar na
água da palha,

seca, dura,

no fogo raso
à beira do inverno,

procurar a pedra
onde dormir,

o estábulo morno
da confidência,

os olhos
onde o azul persiste,

única fonte,

espelho
por onde a sombra
entra devagar,

sentir o sangue,
o silêncio

arder…
TEMPO EM QUE SE MORRE

Agora é verão, eu sei.


Tempo de facas, tempo
em que perdem os anéis
as cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre
de tanto olhar os barcos.

É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.

Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.

Pousas as mãos sobre o meu rosto,


e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.
E devagar, sem te voltares,
pelos espelhos entras na noite.
DISSONÂNCIAS

Pedra a pedra
a casa vai regressar.
Já nos ombros sinto o ardor
da sua navegação.

Vai regressar
o silêncio com as harpas.
As harpas com as abelhas.

No verão morre-se
tão devagar à sombra dos ulmeiros!

Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.

Ou talvez diga:
O outono amadurece nos espelhos.
Já nos meus ombros sinto
a sua respiração.
Não há regresso: tudo é labirinto.
DAS ÁGUAS

Reparai no lume:
vereis passar um rio
rente ao outono.

Vereis um barco
flutuar na sombra.

Ver-me-eis a mim
ou a música passar.

Quem me diz o caminho?


Onde me levam
as sílabas contadas?

Talvez já seja tarde:


na boca da noite
o vento
derrama a semente.

Vereis talvez um corpo:


não direi juvenil,
de sombra clara.

Um corpo, disse eu;


mas desse corpo
nunca direi o bastante:
ele era a fonte,
a sede, razão ardente.
ESTRIBILHOS

No interior da música

o silêncio
que regaço procura?

Que interior é esse

onde a luz
tem morada?

E há um interior,

assim como o caroço


dentro do fruto?

E como entrar nele?

É como num corpo?


O SILÊNCIO

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,


inda demora,

quando azuis irrompem


os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras


desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


NOCTURNO SEM FIGURAS

À inclemência do meu amor darei


sílaba a sílaba todo o azul da neve,
às cigarras que tornam o verão mais claro
prometo as vogais duma dália de água,

ao silêncio que me espera a cada esquina


ofereço o ramo ardente dos meus olhos.
COM OS ÁLAMOS

Pouco importa o nome:


para nascer
escolhi um rio.

A criança que fui


tem agora a idade
de uma pedra de água.

Enquanto dorme
parte com os pombos bravos.
Quando regressar
virá com os álamos.
ENTRE DUAS FOLHAS

Encostado à noite
sobe de mim
a haste
que recusa a flor
e procura um pássaro
para amanhecer —

o trigo é alto,
e entre duas folhas
pode-se morrer.
DESDE A AURORA

Como um sol de polpa escura


para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,

entre os veios do sono


e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:

vai entrar o vento ou o violento


aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:

é tempo de colher: a noite


iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.

Sou eu, desde a aurora,


eu — a terra — que te procuro.
ADAGIO QUASI ANDANTE

Uma palavra ainda


para sentir a terra,

uma palavra
onde descubra a boca
acesa,
o corpo,

onde colher
os abrunhos maduros
do silêncio,

vertente
aguda sobre o mar —

já as águas
se inclinam
para as aves
que o vento traz à tona,

já o rumor das colinas


chama as vespas
de ardente e de oiro
cintura fresca,

já o aroma
rebenta nas axilas
onde se esconde
o trevo —

uma palavra ainda,

sorver o sol,
o sumo da língua,

aquecer
na minha boca
a pedra cintilante
dos teus joelhos,
sobre o teu corpo o meu corpo
lento em florir,

pressinto lábios
na música
de uma sílaba
escura,

um beijo,
ornamento de todos
todos os meus órgãos,

agora
a sombra desce
as escadas,

tropeça
na palha defunta,

uma palavra
ainda,

sentir
um tempo novo
bater na pedra
porosa do desejo,

derrubar o muro,

entrar em casa
reconciliado
com as húmidas
pálpebras do outono,
no leito matinal
declinar a beleza,

uma palavra.
SOBRE OUTROS LÁBIOS

Eu crescia para o verão.


Para a água
antiquíssima da cal
crescia violento e nu.

Podiam ver-me crescer


rente ao vento,
podiam ver-me em flor,
exasperado e puro.

À beira do silêncio,
eu crescia para o ardor
calcinado dos cardos
e da sede.

Morre-se agora
entre contínuas chuvas,
os lábios só lembrados
de um verão sobre outros lábios.
RUPTURA

A noite fende —
o silêncio
escorre do muro.

De quanto os dedos
lembram ainda,
só o vento respira.

Já a minúscula
língua da erva
chama pela neve.

O silêncio
é o meu domínio:
a terra é leve.
AS FRÁGEIS HASTES

Não voltarei à fonte dos teus flancos;


ao fogo espesso do verão
a escorrer infatigável
dos espelhos, não voltarei.

Não voltarei ao leito breve


onde quebrámos uma a uma
todas as frágeis
hastes do amor.

Eis o outono: cresce a prumo.


Anoitecidas águas
em febre em fúria em fogo
arrastam-me para o fundo.
RESÍDUOS DO CORPO

De ti ficam as aves,
o rumor
de arderem altas;

ficam as águas,
à tona
a clara sombra
onde pousaram lábios;

fica o outono,
desatado beijo a beijo
sobre a palha;

ficam as nuvens,
a sede ainda
de um ramo de coral.
RENTE AO SOLO

A manhã queima.
Queima nas pedras,
queima na camisa.

A claridade é
árida,
deste lado do muro.

As ervas são altas.


Não falei de mastros.
Disse: as ervas
são altas e tristes —
sem pássaros.

Respira-se mal
rente à poeira,
mortos os lábios.

Apetece o escuro
do lodo,
a gordura do barro.
A AUSÊNCIA

Eis o domínio
da língua exasperada
e sem contorno,

onde as palavras rompem


do coração mirrado
da palha,

eis o domínio hostil


aos cabelos
inumeráveis da água,

diadema
a que faltam as pedras
todas dos teus dentes,

abandonado
aos cães do outono,
ao leite das urtigas,

às raízes do sono.
ENVIO

À breve, azul cantilena


dos teus olhos quando anoitecem.

À criança alta e triste


que dá pelo nome de Ariadne.

A Mozart,
que escreveu o alegretto do Concerto em Sol
(K. 453) à memória de um estorninho.

A Lambros, em Delfos,
onde quero voltar para dançar ou morrer.

À cotovia das bodas de Romeu e Julieta,


que talvez seja a alouette calandrelle de Messiaen.

Aos contrabandistas de Monfortinho


(se ainda os houver),
que fornicam dos dois lados da fronteira.

A Hölderlin, que enlouqueceu a escrever versos assim:


A bem amada é muitas vezes um amigo.
VÉSPERA DA ÁGUA
SÍLABA A SÍLABA

Eis sílaba a sílaba de uma cor perversa


o tempo quase nu para levar à boca.

Como se fora minha a respiração do trevo


alcanço a linha de água.

Habito onde o ar dói

as próprias mãos acesas.


SOBRE O CAMINHO

Nada.

Nem o branco fogo do trigo


nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes


entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.
É UM DIZER

Estende um pouco mais a mão


recolhe um a um os sinais do desejo

fogo de abelhas o sexo


espera a insurreição da cal

a espessa ondulação do vento


é sobre o corpo a própria exaltação

morrer nos flancos do amor é um dizer


repara como brilham os limoeiros.
EM CADA FOLHA

Esta inocência de água


pede-te ardor

mais verde em cada folha

brancura
onda a onda quebrada

vertigem nua.
SOBRE UM CORPO

Sobre o teu corpo caio


daquele modo que o verão tem de espalhar os cabelos
na água esparsa dos dias
e faz das peónias uma chuva de oiro
ou a mais incestuosa das carícias.
SOBRE A PALAVRA

Entre a folha branca e o gume do olhar


a boca envelhece.

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama.

Assim se morre dizias tu.


Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura.
Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada.

Interminavelmente.
SOBRE A RAZÃO

Num país que não conhece


sequer o sabor da sua própria nudez

erramos na noite sobre os membros


o peso obscurecido do desejo —

tão alta é a nossa razão


que somos nós a boca mais fresca do sol.
COM OS LÓDÃOS

Havia outras noites outras folhas


um percurso de água era o meu corpo
sobre as noites havia outras colinas
ou talvez não talvez apenas dormisse
com os lódãos sobre o coração.
AS FONTES

As fontes regressam
de que incêndio cativas?
FRASES

No verão inocente dos joelhos

à entrada da noite
como se a luz doesse

entre o desejo
e o espasmo lentíssimo relâmpago

a mão.
SOBRE AS ERVAS

Respiras
como se pela garganta
deslizasse todo o azul de Espanha
a noite
a língua do vento

sem outras mãos

outros olhos
para beber no escuro.

Deita-te
sobre o meu peito
inclina
até ao chão
as frágeis
hastes da beleza.

As palavras
onde te escondes

altas
passam

passam as águas
dóceis
do verão.
É tempo
já as amoras sangram
é tempo ainda

abre-me as portas do teu corpo


ó meu amor

deixa-me entrar.

Já sobre ti
de aroma em aroma
os lábios todos
caem

nupciais ou mortais os corpos


são para penetrar
lenta
oh
lentamente.

As mãos
sobre a nuca
delicadas.

Sobre as ervas
o leite
espesso do silêncio.
ONDE A NOITE

Não é senão onde a noite


inclina os ramos
que lábios fendem
e o silêncio

morre.
COM AS AVES

Chamemos pelas aves, é outono, o vento


arde antes de escurecer.

Não virão inumeráveis com a sombra


minuciosa dos álamos,

não virão por onde o silêncio desce


ao minúsculo coração das vespas,

no marulhar de um corpo virão,


no derradeiro brilho das areias.

Antes de anoitecer o vento ardia nelas.


SOBRE A CASA

Não há senão a casa viva do olhar


à beira do crepúsculo
não há senão
a vereda quase triste das palavras.
NO LUME NO GUME

Vê como a nudez cresce.

Seria fácil pousar agora


no lume
ou no gume do silêncio
se houvesse vento:
mas quem se lembra do branco
aroma da alegria?

Reconheço no vagaroso
andar da chuva o corpo do amor:
vem ferido: nas suas mãos
como dormir?
Como enxotar a morte: esse animal
sonâmbulo dos pátios da memória?

Bago a bago podes colher


a noite: está madura:
podes levar à boca
a preguiçosa espuma
das palavras.

E crescer para a água.


HIATO

Em lábios muito jovens


a turbulência das folhas
luta ainda com a raiz da água.

Em lábios muito jovens arder é tão lento.


É UM SOPRO

É um sopro de animal ferido


entrar dentro de ti — o tempo só
de a luz atravessar
a sombra lancinante da cintura.
DESTE MODO
OU DE QUALQUER OUTRO

A doçura da erva
alta
como cantar ao crepúsculo,

deste modo ou de qualquer outro,


cego
de procurar nos flancos
os vestígios do lume,

deixa-me dizer: quando a pedra


do verão era água
na tua boca
o meu nome era um barco,

sobre os ombros a
noite nua
no coração o rouxinol
da bruma,

éramos nós meu amor éramos nós,


ninguém nos via,

essa música

onde a terra respira.


RENTE AO CHÃO

Caminhas devagar
entre muros e muros que se repetem
na chama extenuada dos espelhos.

Ninguém te segue
só um pássaro te confunde
com a pele rugosa das águas de setembro.

De perfil lembras um claro timbre de vogais


arder no vento —
rente ao chão.
LABIRINTO
OU ALGUNS LUGARES DE AMOR

O outono
por assim dizer
pois era verão
forrado de agulhas,

a cal
rumorosa
do sol dos cardos,

sem outras mãos que lentas barcas


vai-se aproximando a água,

a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros,

os prados matinais
os pés
verdes quase,

o brilho
das magnólias
apertado nos dentes,

uma espécie de tumulto


as unhas
tão fatigadas dos dedos,
o bosque abre-se beijo a beijo
e é branco.
SOBRE AS GAIVOTAS

Ao inverno chega-se pela ausência das gaivotas


nos lábios e nas dunas:
não há outra estrada.

Isto sei,
ou como o sangue é branco sobre a erva:
mas não sei mais nada.
ENTRE AS PEDRAS

Porque já não esperas regressar

entre as pedras acabarás por adormecer

na boca os pés claro regato.


SINAIS DE OUTRO VERÃO

Este rosto rente à terra


esta poeira
fresca ainda do rebanho,

este tumulto de palavras


cálido
para escrever na pele,

esta língua de argila


porosa
e cativa,

são sinais doutro verão.

Ternamente incestuoso vai chegar


o inverno
vai chegar cego pela mão do vento
vai chegar
aos tropeções
o sangue dos espelhos.

O sol
não tardará a ser água.

Entre o feno fremente e a fonte furtiva


no alto fim de setembro

procura
o lugar
onde um corpo entre noutro corpo

repousa no ardor
adormece no rumor
na coroa de fogo das colinas.

O verão é branco e liso


e sempre ficam sinais.
AD USUM DELPHINI

Não há senão a chuva quase iminente sobre o peito


o brilho próximo de um minúsculo grão de silêncio
o pequeno instrumental do amor
abandonado às vagas da memória.
NA OUTRA MARGEM

As janelas
partem antes do crepúsculo

por esta torre


sobe-se à palavra nua

assim no ar
a cabeleira dos ulmeiros

o sol
de palha ainda há pouco fresca

o azul
a vertente sem folhas do olhar

a terra
então aquecia-nos um pouco —

na outra margem.
SOBRE OS RIOS

Há rios que chegam subitamente


atraídos pelo fulgor dos dedos

ao limiar dos lábios

como certas crianças


à beira da morte sem que ninguém suspeite

que não dormem

porque a corrosiva substância dos seus olhos


é lenta ondulação e cega —

isto te queria dizer.


SÚNION

Nesse novembro nos flancos


do crepúsculo,
como falar entre o silêncio
calcinado

das colunas de Súnion


nos ramos do amor,
como falar
das falésias

tão longe
e leve a luz das abelhas?
NO EXTREMO DO POSSÍVEL

A casa
privada de mastros
facilmente é
exígua e rasa.

Azul estridência
do silêncio
o céu
consome-se na pedra.

O cume é a água.
DA ÁGUA

Não há senão um leito rente à terra


a luz vacilante de pássaros
os olhos atravessados pelos juncos
o lenço pequeno e íntimo
que levamos à boca para não esquecer
como era quente e masculino o coração da água.
TRÊS OU QUATRO SÍLABAS

Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

Que estranho ofício o meu


procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.
SOBRE A CINTURA

Deixa a mão
caminhar
perder o alento

até onde se não respira.

Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com o nácar da língua.

Só um grito desde o chão


pode fulminá-la.

A morte
não é um segredo
não é em nós jardim de areia.

De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.

Vou ensinar-te como se reconhece

repara
é ainda um rapaz
não acaba de crescer

nos ombros
a luz
desatada

a fulva
lucidez dos flancos.

A boca sobre a boca nevava.


ASSIM ÀS VEZES

A manhã às vezes fica muito longe.

Perco-me então por caminhos de água.

Na língua que te despe o sol


respira rente à relva.
DO ESQUECIMENTO

Oh circe circe de lentas folhas


faz do esquecimento o brilho furtivo das maçãs
a pequena orgia da chuva na vidraça
os dentes miúdos da carícia.
COM INDIFERENÇA

E por fim a manhã talvez comece


debaixo duma pedra
ou da noite escorra sobre as primeiras
violetas ou as últimas que sei eu.

Embora seja inverno desde há muito


a vocação das folhas é ser ave
ou música quando no vento
arde o coração da cal.

Ou o meu o meu.
DIREI O NOME

Das fontes direi o nome.


A voz é branca e onde o tempo
ignora os membros claros
abre-se a casa
aos trabalhos da sombra.

Eis o bosque próximo da ferida


a terra usada
a dança das folhas sobre o peito
a boca dos espelhos
fendida contra o muro.

Era preciso o oiro


todo e não bastava da manhã
fundido sobre os olhos
para surgir
no rasto do silêncio o unicórnio.

Talvez já seja tarde e das crianças


que no adro cantam
nenhuma é minha.
Sobre o rosto do amor
crescem as ervas os cães urinam.
SENZA COLORE

Estou à espera
de uma tarde semelhante ao sono das maçãs.

Entre excrementos e a luz deserta


dezembro cresce com os muros.

Assim no chão do teu corpo


a neve.

Oh tece
tece com os cabelos uma coroa de água.
FRAGMENTOS PARA UMA ARTE POÉTICA

Que quer ainda esse pássaro


tão atento ao silêncio
fulvo da cintura?

Os olhos —
quem foi que fez a casa
em tão frágil azul?

São assim os meus dias,


ardem lábio a lábio
com o vento nos álamos.
OS RESÍDUOS

O ar começa a doer
quando lentíssimos de amor
os resíduos caem
na palha:

a exígua
substância da alegria
ou lisa pedra de outono
morre na flor da candeia:

a escuridão invade
o pulso e gota a gota
a loucura
acode branca:

enquanto crescem dentes


à noite solitária
vem a música do sono
na água.
ESCRITO NA TERRA

Da migração dos pássaros falaremos devagar


noutra ocasião

da cal espessa entornada na boca


dos poços
onde o silêncio apodrece.

Há uma razão para não rejeitarmos


tão cruel metáfora do sémen

descobrimos
nas altíssimas e lúcidas bagas de setembro
uma sabedoria próxima ainda das nascentes.

Era isto
onde uma só pedra queima os dedos.

Se queres um exemplo
pega neste mar de estanho
olha-te nele
mas não te demores a contemplar
a branca quietude das violetas.

Vamos
é noite agora é tempo
enquanto meus lábios brilham
de alguém morrer sobre o teu corpo.
HOMENAGEM A WEBERN

É uma estranha terra com grandes árvores


inclinadas para o verão
uma cabeleira escurecida por um grito
a juventude de oiro do sexo
pensar que vai morrer às golfadas
reconheço este homem que me fita com
interminável doçura
o sangue a escoar-se pelas mãos
era a música que trazia.
OUTRO FRAGMENTO

Entre obscuras sementes a mão recolhe


a luz dos lódãos:
as suas águas são a pedra do crepúsculo.

Entre a festa e a morte


que fizeste da manhã? — pergunta
insiste o vento.

Com um rumor de neve ou de animal


moribundo fiz o anel e a casa:
assim o deserto cresce sobre o coração.
CONSTELAÇÕES DO VERÃO

Um corpo
estendido
nu
na iminência de ser música

diz o que penso.

O fogo
súbita convulsão da água
sobe
pelas pernas
penetra nos lábios

vacilantes do verão

exausto
e branco
porque entardecia.

O olhar
cai

errante

cão

lambendo
a chama oscilante dos dedos
escassa língua
sobre flancos desertos.

As palavras
tão leves que nem o ar feriam
nem sequer o ar

as palavras
que se levantam para recusar
(quando aprenderão a morder?)
são a nossa herança.

E o fogo.
DETRITOS

Penso nas ervas que não chegam a ser altas


vai chegar a neve
inadiável sobre as cordas
a pequena mão do silêncio
regressa por assim dizer dos pátios inocentes
demora-se sobre o coração
breve sépala verde pétala
um calor branco a mansidão de vaga em vaga
lenta masturbação do olhar
a noite perdeu o seu rouxinol
com a morte na boca
reparto contigo o peso da alegria.
SOBRE O TEJO

Que soldado tão triste esta chuva


sobre as sílabas escuras do outono
sobre o Tejo as últimas barcas
sobre as barcas uma luz de desterro.

Já foi lugar de amor o Tejo a boca


as mãos foram já fogo de abelhas
não era o corpo então dura e amarga
pedra do frio.

Sobre o Tejo cai a luz das fardas.


É tempo de te dizer adeus.
SOBRE SETEMBRO

No breve céu da música


nos cardos nas dunas
setembro envelhecia

com tanto ardor tanto ardor tanto

quem se lembra de ti
estéril
escroto de palavras

e só e só e
PROSA DE CENTENÁRIO

Minha é apenas (e não o direi por amor,


mas por excesso de atenção
que requer o âmbar para arder)
uma luz inclinada para as violetas;

é tudo o que me resta de um país


cuja tristeza é cada vez mais vil,
essa luz que
entre os dedos se esboroa lenta;

e vendo bem, nem essa luz é minha


apenas, mas de quem na sombra
sente a sua
respiração difícil antes de dormir.
CAVATINA

Obstruído o caminho da transparência


só me resta reunir os fragmentos do sol nos
espelhos
e com eles junto ao coração
atravessar indiferente a desordem matinal dos
mastros.

Quanto mais envelheço mais pueril é a luz


mas essa vai comigo.
SOBRE FLANCOS E BARCOS

Havia ainda outro jardim o da minha vida


exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães não sei
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor


da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
na palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar


e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do
coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar.
ESSE VERDE

Entre o verde complacente


das palavras corre o silêncio,
assim como um cabelo
cai — ou neve.

Já foi uma criança, esse verde,


inquieta de tanto olhar
a noite nos espelhos —
agora encostada ao meu ombro
dorme no outono inacabado.

É como se me fosse consentido


conciliar a flor do pessegueiro
com um coração fatigado,
essa criança que no vento
cresce simplesmente ou esquece.

Vai perder-se, não tarda,


vai perder-se na água sem memória,
assim como indiferente cai
um cabelo — ou neve.
CODA

Nenhum pensar agora: calma


e profunda corrente de silêncio
entre mim e o que de mim ainda
se aproxima: simples fulgor
antes de arder no cume
talvez a cal: ou só o seu rumor.
ESCRITA DA TERRA
I
RUA DUQUE DE PALMELA, 111

Pelo lado dos lódãos ao fim do dia


depressa se chega agora no verão
à pedra viva do silêncio
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio.
KERKIRA

Como esse cheiro a linho


que só os ombros acariciados têm
a terra é branca

e nua.
MONFORTINHO

Os cavalos de junho e as palavras —


que mansidão a sua na minha boca.
ROMA

Era no verão ao fim da tarde,


como Adriano ou Virgílio ou Marco Aurélio
entrava em Roma pela Via Ápia
e por Antínoo e todo o amor da terra
juro que vi a luz tornar-se pedra.
PENICHE

Vento
vento

há tanto
há só vento no meu país

vento branco
verde vento negro

ardente

seca as lágrimas

corta a voz na raiz.


DELFOS

Será que a noite para poder dormir


me pede a mim uma gota de água?
SALZBURGO

Essa música ou água


quando a água é álamo

essa música ou terra


quando a terra é barco

essa música ou chama


quando a chama é onda

essa música — eras tu


ou um pássaro na sombra?
TAVIRA 1944

As mulheres sentavam-se às portas da noite


as mais novas riam
os dentes eram a sua coroa
ou tremiam ao pressentir os passos dos soldados
as crianças riscavam a cal com os seus gritos
cresciam para a morte com grandes olhos claros

ou ramos cegos.
JARDIM DE MARBELLA

Com as últimas águas partem as árvores


um sorriso é então todo o jardim.
BERLIM

Há uma ruptura
uma fenda no escuro
do silêncio:

ouve-se o murmúrio
da urina
dos soldados contra o muro.
JARDIM DE S. LÁZARO

É um suspiro a água —
ergue-se
como os lentíssimos lábios do amor
descem pelas espáduas.
CASTELO BRANCO

Com o sopro da manhã e o aroma


das frésias eu sonhava longamente.
CHARING CROSS

Não tardará o crepúsculo


nos teus olhos
o verão
deve estar por um fio

sei agora o teu nome


ou um estorninho sobre o rio.
CABEDELO

As gaivotas
as gaivotas demoram-se no Cabedelo
sabem que o sol também se demora
e só a bruma
hoje virá à tona.
VENEZA

Que música serias


se não fosses água?
GUERNICA

Compacto
cego

ao ar

falta-lhe só o gume.
DUNAS DE FÃO

É sobre o esplendor das nádegas


que me reconcilio com as lágrimas.
BRINDISI

Uma coisa é habitar a pele


outra ter a noite por fragata.
VALVERDE DEL FRESNO

A cerejeira o muro
uma criança canta
contemporânea apenas
das águas lentas.

É verão onde canta


de ramo em ramo
ou pedra
em pedra essa criança?

Diz-me diz-me
branca cereja branca.
FOZ DO DOURO

É outra vez abril


— e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!
II
SUL

Pelo azul da pedra vê-se que é verão,


à beira do tanque os aloendros devem estar em flor,
as águas reflectem o silêncio.
PÓVOA DE ATALAIA

O dia cresceu tanto que não tarda


que a sombra nos dê pelos joelhos,
as mães tecem o riso das crianças,
pelo balcão entornam os cabelos.
CAMPOS DE ATALAIA

O lume quase extinto das folhas,


o inverno ancorado pelos campos,
a proliferação cega da sombra,
a lama arrastando os seus tamancos.
LISBOA

Esta névoa sobre a cidade, o rio,


as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
SESIMBRA

Primeiro a mão, ou antes, o mar,


só depois a rosa, a dança do ar.
MEDITERRÂNEO

Como no poema de Whitman um rapazito


aproximou-se e perguntou-me: O que é a erva?
Entre o seu olhar e o meu o ar doía.
À sombra doutras tardes eu falava-lhe
das abelhas e dos cardos rente à terra.
MADRIGAL MELANCÓLICO

Raramente lá vou, mas sempre


que passo na cidade, junto ao rio,
é o jardim que procuro primeiro,
onde o amigo colheu há tantos anos,
para me dar, a flor da canforeira.
Coimbra é ainda essa flor,
e na memória que bem que cheira.
A CAMINHO DAS DUNAS

Há um barco,
há um homem nas areias.
Obscuramente aprende
a morrer onde as águas são mais duras.
Sei que é verão pelo hálito da loucura,
o brilho em declínio das giestas
a caminho das dunas.
O homem adormecido
e o mar eram de vidro.
BARCA DO LAGO

Aqui durante a noite ouve-se o mar


e as palavras deixam-se despir;
como o pessegueiro mal abril começa
tenho uma brusca maneira de florir.
NEVOEIRO

Viera do rio pela mão duma criança.


A cidade é agora de porcelana branca.
ARREDORES DE BEJA

Sentadas pelas portas as mulheres falavam em segredo,


os olhos iam-se pela tarde lentos e molhados,
regressavam em chama pelos campos ceifados.
ALENTEJO

Agonia
dos lentos inquietos
amarelos,
solidão do vermelho
sufocado,
por fim o negro,
fundo espesso,
como no Alentejo
o branco obstinado.
BOA NOVA

Não é ainda o mar mas só cavalos


brancos na tarde branca de cavalos
como se as vagas fossem de cavalos.
MOLEDO DO MINHO

Num dos ramos pousou; é tão pequeno


que julguei ser uma abelha, mas não,
era um pássaro, um pássaro do meu país,
o primeiro que me envia este verão.
PÁSSAROS DE IBARRANGUELUA

Cantam para amanhecer,


os pássaros,
mesmo quando escolhem
para amigo
o ramo mais amargo.
Ou para não morrer.
AMANHECER EM ESTREMOZ

Uma a uma a noite abria


à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.
NORDESTE

Eram casas, casas onde esperavas


aves. Eram casas lentas, usadas.
Casas de coração apagado.
Eram aves. Do inverno fatigadas.
ILHA

A terra é magra.
Um sol de palha cobre a ilha
— e tudo é ilha à nossa roda,
espaço curto, amargo.
Para cuspir,
ou beber de um trago.
CEMITÉRIO INGLÊS

Aproximas-te da terra. Agora mais.


De olhos fechados contemplas uma pedra.
Pequena. Inabitável. Quase branca.
A perfeição seria se fosse água.
(Uma criança como nos sonhos canta.)
VALE DO CEIRA

O que regressa não é a casa


nem o outono, é só um choupo,
ou então o meu olhar enganou-se:
os olhos andam ardidos
de melancolia e de sol tão pouco.
CASA NA CHUVA

A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.


Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Ouço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.
III
PAESTUM COM LUA NOVA

No céu de Paestum
as colunas
sobem à altura
rigorosa
da lua nova e da alma.
À música deserta
e rouca das cigarras.
Ao aroma inesperado
duma rosa.
PLANÍCIE

As ancas nuas das éguas bravas


cheiram ao sol verde das searas.
PRAZA DA QUINTANA

O silêncio é a água destas pedras


onde a noite se estende pra morrer.
ARREDORES DE ATENAS

O plátano.
E o estrídulo
sol a prumo das cigarras.
O rio quase à mão.
E um rumor,
não de ninfas: de palavras.
O azul é branco,
duro.
Os dois homens dormem
agora
à sombra da tarde.
E da memória.
TARIFA

Sem nenhum barco — a rouca


lenta respiração do deserto.
FÃO

Dai-me duas ou três cores


para pintar o verão,
verde violeta azul,
ou branco,
o branco despido
e deserto destas ruas,
cheirando ao vento do rio.
CRIANÇAS DE S. VÍTOR

As crianças são
o verde dos frutos,
as abelhas todas
do rumor dos pulsos.
Os anjos procuram
impedir que cresçam,
quebram-lhes a raiz
tímida do desejo.
Trago-as comigo,
deito-as no poema,
o que em mim é riso
põe-se à janela.
TEBAS

Era um lugar onde só


a poesia
me podia ter levado —
lugar de morte, a luz
roída,
rala.
Até a minguada
romãzeira
era de pedra.
O vento
acrescenta-lhe a poeira.
TÜBINGEN

Só a torre flutuava
sobre o rio.
Só a torre.
Nem a febre do olhar
adolescente, nem
a demência tardia.
Ou a paixão da palavra
tornada melancolia.
TURISMO EM CORFU

Onde Ulisses avistou Nausícaa


com o verão brincando nas areias
espreita agora a nádega indecisa
e vagabunda de qualquer sereia
se não for de algum anjo sodomita.
LILIÁCEAS DE CORFU

Em Corfu os asfódelos devem estar


em flor, quando
o vento os inclina no deserto
dos lábios rompe a água.
PRAÇA DE MALÁ STRANA

Gosto destes pombos, destas crianças.


A eternidade não pode ser senão assim:
pombos e crianças a fazerem
da luz incomparável da manhã
o lugar inocente do poema.
BOSQUE DE CHAPULTEPEC

Com tanto sol na boca, tanto sol,


como podia a sombra e seus anéis
de escama em escama aproximar-se
e rápida morder-te a cintura?
OUTRO NOCTURNO MEXICANO

Com este sol, esta lâmina a prumo


entre os olhos, como dar-te a beber tanta sede?,
a lâmina cravada rasgando fundo.
NO CEMITÉRIO DA LAPA

Agora és com a terra uma só água


que ninguém bebe por ser tão fria.
NA ESTRADA DE SAN LORENZO DEL ESCORIAL

Pela estrada de São Lourenço,


a caminho de Madrid,
a tua boca tão perto da minha
que podia seguir
o minucioso trabalho do crepúsculo,
eu falava-te da pequena praça de Lagos,
dos muros brancos de Cacela,
porque sou um homem que não abdica da luz,
que não abdica, que não
abdica.
OS GIRASSÓIS DO ALVOR

Gosto de girassóis e estes do Alvor


são bonitos entre o branco e o rosa
dos aloendros. Hei-de voltar aqui
um dia só para lavar os olhos
nas águas novas desta luz antiga.
E demorar na poeira da espuma
o olhar trabalhado pelo lume.
CACELA

Está desse lado do verão


onde manhã cedo
passam barcos, cercada pela cal.

Das dunas desertas tem a perfeição,


dos pombos o rumor,
da luz a difícil transparência
e o rigor.
NO AEROPORTO DE NOVA IORQUE

Olha-me rapidamente num convite


que não aceito, a promessa de prazer
cai então em olhos menos fatigados,
mas por instantes pude surpreender
um campo matinal de trevos orvalhados.
CALCEDÓNIA

Afinal os romanos eram


como eu: amavam
os lugares onde a grandeza
e a solidão
andam de mãos dadas.
HOMENAGENS
E OUTROS EPITÁFIOS
ODE A GUILLAUME APOLLINAIRE

No meio dos anjos desembarcados em Marselha,


nas margens do Sena, ao ouvido de Marie,
os olhos ardidos de ternura,
leio os teus versos, sem piedade de ti.

Leio os teus versos neste outono breve


onde passeiam lentos com a água
Lou e Ottomar;
a esperança é ainda violenta,
mas estamos tão cansados de esperar.

Leio os teus versos no cemitério


onde as crianças indiferentes
brincam à roda da tua sepultura;
e choro, ao lado de Madeleine,
órfão de ti, órfão de aventura.

E tu passas, meu artilheiro,


apaixonadamente como um rio
ou touro de amor até aos cornos:
Orfeu cheirando a pólvora e a cio.

Passas, e seguem-te saltimbancos,


galdérias, vadios, ciganos e anões;
Annie — ou Jeanne — surge da bruma,
e de longe atira-te uma rosa,
talvez de lume, talvez de espuma.
Passas, e entras no paraíso
no meio de adolescentes tresmalhados;
Martin, Gertrude, Hans e Henri,
com ervas ainda nos cabelos,
cantam coplas de putas e soldados.

Oh Madeleine, não tenhas piedade:


os mortos somos nós, aqui sentados,
com a noite nos ombros e embalando
a angústia nos braços decepados.

1949
A VICENTE ALEIXANDRE,
ENTRE SOMBRA E MÁGOA

Sempre foste um rio, um rio vulnerado,


um rumor de sangue que canta e canta,
não entre juncos, entre sombra e mágoa,
a nudez completa que te queima a garganta.

Um rio de águas cegas, de guitarras,


de guitarras não, de tesouras ou de espadas,
de sumo de limão, de mãos que se procuram,
trémulas, ofendidas e desamparadas.

Assim te vejo: o rosto encostado à solidão


e as veias abertas gritando pelo mar,
ó clara luz de Espanha entre ruína e morte,
ó masculina flor de cal e de luar.

1952
IMAGEM E LOUVOR DE AUGUSTO GOMES

Ele pinta lentamente uma luz supliciada,


porque tudo é amor e ama-se lentamente;
aqui e ali sublinha uma pálpebra, uns lábios,
e os olhos procuram o coração dos homens.

Nas suas mãos, raparigas passam despenteadas,


passa um pescador de rosto azul,
passa outra vez setembro, uma criança ainda,
e o mar irrompe de sombra em sombra,
porque tudo é amor, amor difícil, turvo,
lutando por ser diáfano nas suas mãos.

Com alegria descobre a cor da liberdade,


dos barcos, da juventude, e logo esquece.
Volta. Recomeça. Amorosamente
encontra um corpo — um corpo? —
uma coluna de espanto, e recomeça.

Escreve agora na terra um nome inocente,


cinco sílabas brancas, todas elas maduras,
e confia melancólico um segredo
à luz de cinza que se desprende da noite.

1956
KAVAFIS, NOS ANOS DISTANTES DE 1903

Nenhum tão solitário mesmo quando


acordava com os olhos do amigo nos seus olhos
como este grego que nos versos se atrevia
a falar do que tanto se calava
ou só obliquamente referia —
nenhum tão solitário e tão atento
ao rumor do desejo e das ruas de Alexandria.

1964
ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS
PARA CHE GUEVARA

Atado ao silêncio, o coração ainda


pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;


de prado em prado procuram
um potro, a palmeira mais alta
sobre o lago, um barco talvez
ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo


aguardam na noite o sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega


húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé,


cada palavra tua faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos, contigo
no coração, em redor do fogo.

1971
DISCURSO TARDIO
À MEMÓRIA DE JOSÉ DIAS COELHO

Éramos jovens: falávamos do âmbar


ou dos minúsculos veios de sol espesso
onde começa o verão; e sabíamos
como a música sobe às torres do trigo.

Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,


desatando um a um os nós do silêncio.
Pegavas num fruto: Eis o espaço ardente
do ventre, espaço denso, redondo, maduro,

dizias: Espaço diurno onde o rumor


do sangue é um rumor de ave —
repara como voa, e pousa nos ombros
da Catarina que não cessam de matar.

Sem vocação para a morte, dizíamos. Também


ela, também ela a não tinha. Na planície
branca era uma fonte: em si trazia
um coração inclinado para a semente do fogo.

Morre-se de ter uns olhos de cristal,


morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios.

Catarina, ou José — o que é um nome?


Que nome nos impede de morrer,
quando se beija a terra devagar
ou uma criança trazida pela brisa?

1972
A CASAIS MONTEIRO,
PODENDO SERVIR DE EPITÁFIO

O que dói não é um álamo.


Não é a neve nem a raiz
da alegria apodrecendo nas colinas.
O que dói

não é sequer o brilho de um pulso


ter cessado,
e a música, que trazia
às vezes um suspiro, outras um barco.

O que dói é saber.


O que dói
é a pátria, que nos divide e mata
antes de se morrer.

Setembro, 72
REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

Eu pouco sei de ti mas este crime


torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo — amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.
Novembro, 75
O COMUM DA TERRA
(Vasco Gonçalves)

Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.


Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esse eras tu: inclinação da água. Na margem,
vento areias mastros lábios, tudo ardia.

14-5-76
GUIA BREVE PARA UMA EXPOSIÇÃO
DE JORGE MARTINS

Esta luz sobre os flancos


da pedra os seus cavalos
brancos
explosão solar dos cardos
ácida luz de areias
esta lâmina este grito
gume esperma
penetrando fendas frestas
esta luz amassada
na festa dos lábios
numa lágrima
nos espelhos
febre das lâmpadas
esta luz de rastos
lambendo a cal os pés
a cintura
esta luz à deriva
nos lençóis na espuma
exígua luz dolente
dividida
entre a música das mãos
e o silêncio do muro
esta luz tropeçando
desmaiando no escuro.

Julho, 1976
AO ARMANDO ALVES,
ESCRITO NA CAL

Este país é o teu, este ardor apagado,


este feixe de coisas tristes e lentas;
para morrer não tens outro chão, para sonhar
basta o trigo maduro e a luz inocente.

O que pensam teus olhos, o que diz a mão,


estão agora mais perto do limiar da cal;
o que fica de ti não chega a ter nome:
busca o silêncio na paixão dos cardos.

Do verde adolescente ao vermelho amargo,


toda a música é sempre arte de sombra;
este país é o teu — não chega a ser casa,
apenas refúgio de lágrimas que escondes.

Fevereiro, 78
F.P.

De rosto em rosto a ti mesmo procuras


e só encontras a noite por onde entraste
finalmente nu — a loucura acesa e fria
iluminando o nada que tanto procuraste.

5-4-78
A JORGE DE SENA,
NO CHÃO DA CALIFÓRNIA

É por orgulho que já não sobes


as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?

Não te faltou orgulho, eu sei;


orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
— mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?

Escreveste como o sangue canta:


de-ses-pe-ra-da-men-te,
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.
No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.

Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração,
fiel às palavras da tribo.

Andaste por muito lado a ver se o mundo


era maior que tu — concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.

Agosto, 78
À MEMÓRIA DE RUY BELO

Provavelmente já te encontrarás à vontade


entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudades dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de Vila do Conde.
A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela aí estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.

Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta


página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.

Consola-me ao menos a ideia de te haverem


deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, mas seja onde for será a tua.

Agrada-me que tudo assim fosse, e agora


que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol.

1978
LAMENTO DE LUÍS DE CAMÕES
NA MORTE DE ANTÓNIO, SEU ESCRAVO

… viveu em tanta pobreza, que se não tivera um jau,


chamado António, que da Índia trouxe, que de noite
pedia esmola para o ajudar a sustentar, não pudera
aturar a vida. Como se viu, tanto que o jau morreu,
não durará ele muitos meses.
PEDRO DE MARIZ

Devias estar aqui rente aos meus lábios


para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

— eu vi a terra limpa no teu rosto,


só no teu rosto e nunca em mais nenhum.

27-12-79
RECADO PARA CARLOS DE OLIVEIRA

Foram vários a partir,


a deixar hábitos
máscaras cobardias — o deserto
sem lacuna dos dias.
Lá onde estás chegaste antes de mim.
O sítio deve ser mais asseado:
guarda-me um lugar perto de ti.

21-10-82
A VITORINO NEMÉSIO,
ALGUNS ANOS DEPOIS

Ninguém te lê os versos, tão admiráveis


alguns, e a prosa não tem muitos leitores,
embora todos reconheçam, mesmo os que
nunca te leram, que é magnífica.
A moda é o Pessoa, coitado: dá para tudo;
e a culpa é dele, com aquela comovente
incapacidade para ser ele próprio.
De nada lhe serviu ter dito e redito
que a fama era para as actrizes.
Que vocação de carneiro têm as maiorias:
não há fúfia universitária ou machão
fardado que não diga que a pátria
é a língua ou a puta que os pariu.
Não, contigo isso não pegou. Durante anos
e anos arrumaram-te na prateleira:
eras o Cavaleiro das Tristes Figuras.
Conversão ao catolicismo, fretes ao estado
novo, prémios do sni não ajudavam muito
a que te lessem, além de haver outros poetas
a festejar, por sinal bem medíocres, mas «democratas
convictos», coisa que dizem que não foste.
Isto de morrer pela pátria não é para
todos e tu, decididamente, para a morte
não tinhas nenhuma inclinação. Afinal,
além dos alciões a quem davas os olhos,
só tinhas versos, e alguns bem maus,
coisa aliás de pequeníssima importância,
como exemplarmente, depois de morto, provou
Pessoa, que está, como se sabe, no paraíso.
Coitado, pensava ter tempo para pôr ordem
na arca, mas a morte veio antes da hora.
Contigo ao menos isso não aconteceu,
bebias menos, pudeste arrumar a casa.

Nada disto te importa já, e de resto


que lêem esses que lêem quando lêem?

1983
AO EDUARDO LOURENÇO,
NA FLOR DA SUA IDADE

Era bonita mas tão provinciana


a cidade. Dos seus muros pasmados
a luz fina caía preguiçosa
nas areias do rio. Mas o resto
era vulgaridade e sonolência.
Só as árvores não eram vulgares:
de tão formosas tornavam o céu
de cristal, como se o verão fora
imortal entre plátanos e choupos.
Ali nos encontrámos certo dia,
éramos jovens e mais jovem que nós
era a poesia que nos acompanhava.
Hölderlin, Keats, Pessanha e o Pessoa
eram então — e não o serão ainda? —
os nossos amigos. O mais, gente ideias
costumes, tudo tinha o mesmo cheiro
de caserna aliada a sacristia.
Dessa cidade em nós nada ficou.
De nós, que ficará nessa cidade?

21-10-83
A MÁRIO BOTAS,
COM UNS CRAVOS BRANCOS

Já estiveras na morte muita vez


e sempre regressaras. Para a conheceres
bastava-te afinal ser português,
a morte é o nosso aprendizado.
Agora lá ficaste: o outono foi duro.
Não cheguei a dizer-te como
tu e eu sobrávamos na festa.
Tu já partiste, eu não tardarei.
Aos corvos deixemos o que resta.

1983
SOBRE UM VERSO
DE MARINA TSVETÁIEVA

Todos os poetas são judeus,


todos marcados
por uma estrela negra,
quer seja rosa ou amarela.
Todos caminham para o sul
fatigados, não da luz
crua das dunas: do peso
morto dessa estrela.

Praga, 1983
ALGUNS VERSOS PARA ROSALÍA

Esta névoa flutua


como no poema de Blake
sobre a terra molhada.

Terra
que prolonga a minha,
onde a pobreza trabalha
cada leira, cada palavra.

E a melancolia
rói e remói
os ossos, a pedra.

Terra de Rosalía.

2-12-83
AO MIGUEL, NO SEU 4.º ANIVERSÁRIO,
E CONTRA O NUCLEAR, NATURALMENTE

Vais crescendo, meu filho, com a difícil


luz do mundo. Não foi um paraíso,
que não é medida humana, o que para ti
sonhei. Só quis que a terra fosse limpa,
nela pudesses respirar desperto
e aprender que todo o homem, todo,
tem direito a sê-lo inteiramente
até ao fim. Terra de sol maduro,
redonda terra de cavalos e maçãs,
terra generosa, agora atormentada
no próprio coração; terra onde teu pai
e tua mãe amaram para que fosses
o pulsar da vida, tornada inferno
vivo onde nos vão encurralando
o medo, a ambição, a estupidez,
se não for demência apenas a razão;
terra inocente, terra atraiçoada,
em que nem sequer é já possível
pousar num rio os olhos de alegria,
e partilhar o pão, ou a palavra;
terra onde o ódio a tanta e tão vil
besta fardada é tudo o que nos resta;
abutres e chacais, que do saber fizeram
comércio tão contrário à natureza
que só crimes e crimes e crimes pariam.
Que faremos nós, filho, para que a vida
seja mais que cegueira e cobardia?
11-3-84
RETRATO DE ACTRIZ
(Eunice)

É uma mulher ao espelho; prepara-se


para atravessar o deserto antes de entrar
em cena. Não sei de solidão maior,
já na infância o medo era o meu diadema,
tremia sempre antes de me atirar do muro
sobre o montão de folhas secas; afinal
eram tão maternais as mãos do ar
sobre o meu corpo tão inocente ainda;
mas ignorar é outra forma de saber.
Agora ia ser outra mulher, amar
o poder, pôr na cabeça uma coroa,
sentir o cheiro do sangue até à náusea,
cuspir a vida por não poder suportá-la.
Por fim, trémula ainda, regressará à sua
solidão, à poeira dos dias luminosos,
já sem receio de saltar sobre as folhas
secas — há tantos, tantos, tantos anos.

16-8-84
MULHER AO ESPELHO
(Séc. XIII)

A beleza não é lugar de perfeição.


Quando te vês ao espelho é a morte
que contemplas na sua chama. Até o sol,
que nos teus cabelos tanto aquecia
as mãos daqueles a quem davas o calor
mais íntimo, é agora um lugar frio.
Não digas que não és culpada: a traição
morava contigo, e sempre os homens,
sejam reis ou pastores, foram brutais
no seu desejo, como se amar uma mulher
não fosse o seu desígnio mais fundo
e só vingassem nela uma ferida oculta.
Não te escondas para chorar no escuro.
De nada te servem lágrimas agora
nem a lembrança furtiva de noites
abertas à demência, ao vigor, à raiva
de membros que ao rasgar-te a carne
te convertiam em sucessivas vagas
de luminosa sombra prolongadas.
Tu, coroada pelo amor de um rei,
já não despertas mais que piedade,
se tão cruel veneno pode ter um nome.
Estás só na casa imensa. Só e velha.
Escuta, são as pombas que regressam,
um ar fresco do sul varre o balcão,
traz sílabas leves, feitas de memória:
«Muito me tarda o meu amigo, muito…»
Fecha as portadas. Agora dorme. Dorme.
1985
EM LISBOA COM CESÁRIO VERDE

Nesta cidade, onde agora me sinto


mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também;
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.

1986
ASSIS

Também tu,
também tu suspiras
por águas que lavem
o pranto, as feridas,
e se possível o mundo.

Suspiras, e ardes,
e contigo arde o ar.
Felizes os anjos:
em vez de suspiros
ouvem-te cantar.

26-1-87
EM MEMÓRIA DE CHICO MENDES

Chegam notícias do Brasil, o Chico


Mendes foi assassinado, a morte
enrola-se agora nos primeiros frios,
nem sequer a tristeza tem sentido,
a bola continua em órbita, um dia
estoira, o universo ficará mais limpo.

3-1-89
RELAÇÃO DE CASAS BOAS E MÁS
PARA JUÍZO DOS ARQUITECTOS
CARLOS LOUREIRO E PÁDUA RAMOS

Há casas
cuja beleza começa no projecto;
outras, e são talvez as mais belas,
existem só na cabeça do arquitecto.

Há casas feitas à medida do homem,


outras há para andar de bicicleta;
há casas sobre cascatas
onde ao sortilégio da água
se junta a música de Bach.

Há casas tão ajustadas


como fato por medida
ou um verso de Cesário,
outras de tão confusas
não viram régua nem esquadro.

Há casas de papel, casas de madeira,


casas de palha e de barro;
casas que trepam pelo céu,
casas que cheiram a jasmim do Cabo;
há casas só para dormir
parecidas com um sudário.

Há casas onde
habitar é o começo da morte;
há casas de pátios caiados
com varandas para o mar;
casas onde apetece estar sentado
com um gato nos joelhos
e o coração apaziguado.

Há casas com recantos para amar,


há outras onde o amor
se faz em cinco minutos,
e às vezes já é demais;
há casas como um dedal
e geometria de abelhas,
casas de perfil atento
ao rumor de nascentes e de estrelas.

Há casas como um cristal,


casas de luz circular,
casas onde não é possível
ouvir correr o silêncio; há casas
que de casas só têm o nome;
há casas que nem para cães.

Há casas tão inteligentes


que não consentem qualquer margem
para luxos e arrebiques,
casas onde a alegria se instala
sem tempo nenhum para a mágoa.

Há casas onde o pão é triste


e a roupa mal lavada;
há casas que são um rio, há casas
que são um barco;
outras têm pomares
onde os dióspiros ardem;
há casas com terras de vinha e trigo
e muros a toda a roda.

Há casas que são um poema


para dar a um amigo.

18-12-91
CASA DE ÁLVARO SIZA NA BOA NOVA

A musical ordem do espaço,


a manifesta verdade da pedra,
a concreta beleza
do chão subindo os últimos degraus,
a luminosa contensão da cal,
o muro compacto
e certo
contra toda a ostentação,
a refreada
e contínua e serena linha
abraçando o ritmo do ar,
a branca arquitectura
nua
até aos ossos.
Por onde entrava o mar.

11-5-92
ARQUITECTURA AÇORIANA

Onde os olhos tocam a cal e a escura


pedra de basalto, é a perfeição:
a tão nobre e concreta arte do espaço
— casa, praça, palácio, rua,

convento, fortaleza, igreja,


com adros, portais, degraus,
rendas e rendas nas fachadas,
com janelas para o mar e varandas

para as aves —, arquitectura lavada,


onde a veemência da luz
concilia a terra imóvel
com a brusca paixão dos mastros.

Quando não é verde, a luz


destas ilhas é rosada.

20-7-92
CAPRICHO

Embora herdeiro de todo o romantismo


musical, via-se à légua não ser
desses que perdem a vida par délicatesse.
Sólido, bem plantado, pernas firmes
de animal feliz, como qualquer
barman de Schwabing,
tinha uma sensualidade fácil,
que resolvia também facilmente com um prato
de salsichas e cerveja, ou então
com um soprano mais que ligeiro,
desses com que tropeçava todos os dias
na Ópera — nada que o impedisse
de ser, naturalmente, bom chefe de família.

Não sendo afável, tinha


coisas estimáveis; por exemplo:
detestava tenores — os pavarottis
e os plácidos eram mulheres nas suas óperas.
Escreveu várias, algumas incomparáveis:
Salomé, O Cavaleiro da Rosa,
Ariadne, A Mulher sem Sombra, com Hofmannsthal
a mostrar-lhe como a transparência
e a leveza não eram fáceis.

Entre o apaixonado e solar Don Juan


dos seus vinte e cinco anos e as Quatro
Últimas Canções da velhice mais luminosa,
fez com a música o que quis;
metodicamente, como o castor faz a casa;
às vezes de maneira brutal, outras
com inteligência subtil, como se deus
o escolhesse, apesar de ateu,
para cúmplice da sua grandeza.

Com os nazis não soube ser arrogante,


embora a sua condescendência
de pouco lhe servisse — as botas
cardadas têm muita dificuldade
em distinguir um homem
de génio de uma ratazana.

Mas como não esquecer fraquezas assim,


e outras, ao ouvirmos a Schwarzkopf
cantar as últimas canções,
ou ao escutarmos a abertura do Capriccio,
esse sexteto escrito em estado de graça,
como se o próprio Mozart fosse
guiando a mão ao Doktor Richard Strauss?

8.8.94
AO LUÍS MIGUEL NAVA,
NOUTRA ESTRELA

Dizem que foste tu


a escolher a violência
da tua morte, num acorde perfeito
com os teus versos. Não é verdade:
tu sabias que nenhum inferno
é pessoal, por isso procuravas
um rio onde ardesses
para voltares a nascer longe da terra.
Apenas isso — o resto é merda.

30.5.95
RETRATO DE RAPARIGA
(Gageiro, Alentejo, 1985)

Ela é na sua transparência


vegetal o rosto limpo da manhã,
o terreiro varrido pela luz
verde e ondulada do trigo,
a beleza concreta rente ao chão:
a infindável extensão da cal,
a lenta aproximação de um rio.

16.7.99
ENCONTRO NO INVERNO
COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Com as aves aprende-se a morrer.


Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
— dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.

18.1.2000
QUASE EPITÁFIO

O outro sabia.
Tinha uma certeza.
Sou eterno, dizia.

Eu não tenho nada.


Amei o desejo
com o corpo todo.

Ah, tapai-me depressa.


A terra me basta.
Ou o lodo.
LIMIAR DOS PÁSSAROS
LIMIAR DOS PÁSSAROS

Ainda esta poeira sobre o coração


queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos

A corrosiva música das vogais que te devora


o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro

Acordarás com as primeiras chuvas


a floração do trevo doía
o olhar sempre negado
aos cães da morte sempre prometido

Estende-te aqui
perto do oiro branco das cigarras
já tenho ouvido chegar o verão
a sua frágil quilha em águas quase mortas

A clara desordem dos cabelos


(dos cavalos não é ainda tempo)
a fundura da pupila
os lábios por dentro finalmente acesos

Tudo o mais te direi sobre o teu peito


à superfície uma poeira fresca
como quem escuta sobre a erva
as nascentes do fogo

Sem mácula não há luz sobre os joelhos


é um corpo de amor este que temos
até ao chão
da água mais exígua

Amar a boca fatigada do corpo


ou outra ainda mais estéril
entrar
onde o silêncio desce às fontes

Morrer e não morrer sobre os teus rins


uma árvore de pássaros ardia
era verão escuta os seus cavalos
à roda da cintura

O cálido esperma das palavras


no interior do cabelo derramado
um sol de palha fresca a boca
de que rio regressa?

Desta cal de homem rompe a lua


de sol extenuada
ergue-se de gume em gume e cai
no espelho a prumo das espadas

Falar dizer de outra maneira


as labiais bebidas corpo a corpo
deambular pelas pernas pela boca
abandonar-me entre as pedras à poeira

Onde fluvial a meio da noite


cresce a pedra
branca dos álamos
as crianças dormem com os pássaros

Um corpo ao crepúsculo lido pelo vento


chama-se música
esta queda no escuro
rente ao murmúrio

Dizer como um rosto se extingue sem cessar


que farei deste nome que me sobra?
Eu tinha duas mãos que te queriam
grandes olhos de pássaro fulminado

Como dizer que vai morrendo


sobre pedras sem nome
la prima voce che passò volando
distante já da nossa idade?

Ninguém sabia de onde vinha


atravessara a noite do olhar
e o medo e o êxtase das espadas
o amor que é sempre argila branca

«Tudo isso foi há muito tempo»


De que tempo estamos a falar?
Que tempo é o dos lábios que não acabam
o nome começado a murmurar?

Escuta
a frágil claridade que deixa a música
ao arder nas dunas
eu era dessa areia a luz precária

As crianças estão deitadas no outono


o sorriso é animal e miúdo
crescem não há dúvida entre os juncos
altos e devagar

Não chegarás nunca a dizer


como brilham lentas as maçãs
os gatos se demoram nos joelhos
sem liberdade crescem as crianças

Esta noite iremos pela tarde


até às dunas
vai chover talvez a terra fique limpa
escreverei como as crianças brilham

Dessas crianças eu só queria


saber como ardiam nas suas camas
eu só queria os dentes da alegria
dos seus olhos amava o ardor

«Tudo isto é muito antigo»


Abandona a placenta o calor do estábulo
não vires a cabeça limpa os olhos
«O sangue alastra»

Ninguém saberá que estiveste só onde esteve


o incestuoso coração da água
menos real que confundido
com o pulsar de oiro de uma abelha

Cobrir-me com o lenço branco do teu rosto


demasiado jovem para a morte
o sorriso
quente ainda e tão fresco o linho
Queria ainda perguntar-te (não não pelo clamor
de justiça eu sei que não termina)
pela cor da noite nos teus olhos
o sabor da terra sílaba a sílaba

«Este mar foi já terra de trigo»


Sobre as horas tardias ninguém te escuta
a boca minuciosa fatigava
«Em Tebas» dizes ainda «o sol escurecia»

Coisas assim resíduos restos


partículas de música do silêncio destroços
fragmentos de paixão excrementos
brilham onde me perco

Choveu hoje muito sobre a minha infância


as sílabas tropeçam no escuro
assim o trigo
cresce sobre o rosto de minha mãe

Ocorre-me às vezes repartir os lábios


o inverno oh meu amigo
o fogo inseparável das colinas
vai morrer devagar e deserto

Novembro cresce intolerável


contra natura é isto um muro
arranca os olhos não deixes os cães
morrer à fome

«Há tanto morrer junto às muralhas»


Que esforço tão inútil o do homem
para ser anel de sol orvalho vivo
«Tanto morrer»
Falar falar como a criança que
na noite se masturba onde me leva?
Que palavras me conduzem pela mão
ao limiar da pedra?

Esse sangue como tu não tem nome


cresce ainda vacilante no escuro
cresce para a poeira
vê-se bem por fim que

Porto, 13.5 / 12.6.1973


VERÃO SOBRE O CORPO

Esta noite preciso de outro verão sobre a boca crescendo nem que
seja de rastos.

Assim começa este verão:


Lá para o fim ao entardecer havia certamente aquelas mulheres
muito juntas todas sentadas no largo rente ao muro riam falavam e
riam como coisa sua uma delas pensava num caralho que vira muito
teso nessa tarde não vivia de flores enorme talvez fosse de animal
riam sentadas um homem passava o riso é maior olhou de soslaio e
logo a mais nova a que pensava no animal ou no homem tanto
monta o riso crescia o caralho também.

Tinha então a idade do olhar, a loucura do corpo havia começado


junto às ruínas, com a luz das candeias longínquas prosseguia,
entre animais fulvos crescia com as primeiras chuvas no avesso da
noite.

Ela era a que parava no limiar um pouco amedrontada, de mãos


estendidas; com ela chegava a luz crua dos pátios caiados de
fresco, a alegria do pão ainda quente dos seus dedos.
Depois de me olhar como se tivesse sede dos meus olhos
começava a dançar; dançava e o corpo ia-se tornando alto de ser
tão jovem.
Onde está a mãe? — perguntava eu de repente. Não havia mãe. Ou
só havia… Não, não havia.

Só tu és a tua mãe, disseram-me mais tarde, quando eu já sabia


que só eu era o filho que me restava, todos os outros mortos no
deserto, daqui desta janela avista-se uma brancura calcinada,
devem ser os seus ossos.

Entre os amieiros escondíamos a roupa e nus os olhos caíam sobre


a tímida erecção o sexo ladeado já por uma sombra leve e crespa
diáfano labirinto dos dedos corríamos pela relva assim os cães se
perseguiam se lambem uns aos outros caíamos sobre a boca entre
as pernas um rumor de saliva uma áspera doçura pois era o tempo
dos medronhos.

Entre a poeira que o rebanho levanta, onde vais, meu ténue


rapazinho, o coração de águas estreitas, um pássaro que o costil
estrangulou ainda quente por dentro da camisa.

Como se houvesse um incêndio de giestas para atravessar, eu não


dormia.

Nesse tempo, quem seguisse o caminho dos rochedos encontrar-


me-ia. Chafurdava num charco de merda. De lágrimas, para ser
literal.
Imperecíveis.

Nunca mais voltaremos a caminhar na noite — até porque não era


na noite que tu e eu caminhávamos. Mas na manhã. Límpida. Rente
à terra nua.
Estrangeiros ainda à corrosiva ondulação da sombra.

Falo de um verão sobre o corpo, um ácido gravando na pele a


minuciosa flor do centeio.
E havia ainda outra música, porque a loucura e o sopro das estrelas
equivaliam-se.
De ti para mim germinavam as águas.
Eu começara a ganhar raízes pelas barreiras. Ia aprendendo a
conhecer os répteis pelo rumor. Quando o sol apertava, uma cobra
azul, não, verde, não, azul, aproximava-se, os olhos cor de basalto.
Ficava por ali a olhar-me, eu a olhá-la. Fascinados. Um dia não sei
que me deu, corri atrás dela, entrou num buraco de silvas, ainda lhe
acertei com a pedra, por momentos a cauda agitou-se crispada em
convulsões, depois desapareceu, talvez lhe tivesse quebrado a
espinha, nunca mais a vi. Era azul. Verde. Um braço de sol.

Nunca ninguém me chamara de tão longe. Fui seguindo os


excrementos das aves até avistar o litoral. No espaço lacerado de
uns lábios comecei a respirar devagarinho como respira a cal perto
da água. Em qualquer parte o ar fendia — assim o corpo.

Foi então que um rei morto no exílio deu à costa. Dizia-se que lhe
haviam cuidadosamente subtraído os testículos. Antes ou depois de
ter morrido, não se sabia. De qualquer modo, o caso, por desusado
entre nós, era comentadíssimo. Para que servirão tais melindres
fora do seu sítio natural? Há quem faça com eles um prato raro,
dizia-se. Um manjar de príncipes, acrescentava-se. Curioso, serem
os filhos a devorar os venerandos testículos dos pais. Esperemos
que isto não seja mais um escandaloso privilégio da burguesia.

O corpo queixa-se por instantes, agosto amarga. Já quase ao


crepúsculo procuras a casa, sempre quiseste saber se a profusão
do silêncio era habitável.
Era, mas só na extremidade.

Nada sabia de marés, com algumas partias, com outras


regressavas. Um dia, já há muito, deixei de te ver. Disseram-me que
morreste, e que foste meu pai. É capaz de ser verdade, e
ultimamente tenho imaginado como terias morrido. Espero que
tenha sido sobre os teus olhos, que foram muito belos, que a morte
haja começado com rigor o seu ofício. Era neles que incidia o meu
desejo. Quando penso em ti, vejo-te de órbitas vazias, um sangue
escuro invadindo-te a boca. Apodreces. Apodreces como toda a
gente, só um pouco mais de lado, porque a morte deve ter
prosseguido o seu trabalho sobre o coração. Que procurava ela
quando o levou à boca? Está agora sobre o centro do teu ser, aí
refocila voluptuosamente, crava os dentes até arrancar os teus mais
viris ornamentos, e cuspir-tos na cara. Foi pena que já não
pudesses ouvir as suas gargalhadas ao longo do corredor.
Onde me espera.

Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha


memória. Movem-se? Daqui as vejo imóveis, com esse peso do
verão sobre o corpo. Ninguém dirá que respiram, que não estão
mortas, talvez corrompidas, pelo menos sufocadas pelas últimas
poeiras, as mais cruéis. Contemplo--as, tão caladas na sua clausura
— estremecidas águas! E tão expectantes; não à superfície, nas
entranhas, nas suas raízes mais fundas, onde uma espécie de
murmúrio se articula, modula na sombra, umas sílabas prenhes de
silêncio se desprendem, rebentam à tona, ténues bolhas de ar,
menos que suspiros ainda. Como esquecê-las?

Retirar-te do teu litoral, louco por arder.

Vou recomeçar oh não feches os olhos deixa-os abertos para que


eu olhe talvez a sombra de um gato e eu era pequeno perseguindo
outro gato talvez as mãos entre duas folhas um gosto solar na
língua esta noite entre as pernas o ritual não será lábio a lábio nas
paredes húmidas dos flancos introduzirei uma pequena variante oh
bem pequena repara nesta agulha cravá-la-ei devagar nesses olhos
onde contemplo.

Verão, 1974
RENTE À FALA

1. Perdera-me dessa música tão perto da fala


agora todas as vezes que respiro
devagar os dedos torpes onde iriam
tão tarde já tão longe o lugar
as trémulas luzes ouço-as partir.

2. Entre a memória e a ruína do olhar


em qualquer parte esquecido o sabor
da mão sobre o ombro vendo cintilar
a pedra o tempo só de arder
o vento a memória em ruína o olhar.

3. A noite ao longe deve ser isso a noite


das pequenas lanças não dirias nada
ou só dirias «Não eram lanças eram folhas»
no chão caíam é certo folhas seriam
um riso que estala antes fora um pássaro
deve ser isso na sombra antes fora a noite.

4. Esta terra de sol esta terra ainda


é bem ela esta terra inocente
este corpo há que deixá-lo ser água
não é fácil separá-lo da luz
quase nua esta terra agora minha.

5. Nós éramos como já disse e não vou recomeçar


a bem dizer outra vez o riso das crianças.
6. Inventar a cor primeiro das laranjas
depois o sol escorrendo dos lábios
só depois o trevo só depois a neve.

7. Um dia te direi como é de vidro


a casa onde o rasto do verão
no silêncio perde o nome a cal
o mar a liberdade de vaga em vaga
há um galo que canta sem razão.

.
8 Hão-de passar as cabras o outono
sobre as falésias noutras dunas
entre os juncos os olhos do pastor hão-de passar
em profusão as aves quase de vidro
as próprias águas.

.
9 Não ser senão esta luz molhada a caminho de Sesimbra
inclinada como quem escuta
em ruína o verão as areias —
assim nos lábios morrem sílaba a sílaba
o branco dos muros as aves marinhas.

.
10 Há um bosque casualmente nesta mão
há um homem neste poema e envelhece.

.
11 As metáforas da boca ensinam a morrer
noutras manhãs junto das dunas ardem
os joelhos os testículos os cabelos
dizemos não dizemos foram aves
agora são em tempo de pobreza
um clarão breve antes de anoitecer.

12. Com as cegonhas a voarem para o sul


estava agora mais perto das nascentes
já nem dos choupos brancos me lembrava
nem das torres acesas do outono
mas sabia que me aproximava do meu nome.

13. Com as águas aprende-se a dormir —


agora no outono descem devagar
sobre a sombra a memória das colinas
os leves trilhos a luz extraviada
a relva os garotos que se despem rindo
inumeráveis no verão de outros dias
os girassóis a caminho de casa.

14. Agora que regresso à evidência da cal


dai-me um pouco de água para a festa do sol sobre os
lábios.

15. Sinais oh também elas querem deixar


nas intrincadas veredas do verão
também elas querem deixar sinais, as cabras —
exactamente como eu, sinais,
três ou quatro frases ao esterco semelhantes.

16. O trabalho húmido dos lábios


sobre as pálpebras este peso
não é ainda terra a prumo
nem aérea ondulação da água
talvez um estorninho se aproxime
nos meus olhos comece a fazer casa.

17. Amanhã saberei em que regaço


as palavras se dispõem a dormir.

18. Ver chegar o dia mesmo que fosse a noite


era bom tão cedo ver a terra limpa
os pombos bravos o peito cor de vinho
o cheiro doce dos figos o brilho duro
da cal trazido pelo vento o marinheiro.

19. Apesar dos vestígios não se avistam aves


na manhã abraçados talvez fossem altos
ambos nus sobre a terra a luz envelhecia
contam-nos histórias as mesmas que merda
antes a placenta nem calor nem frio.

20. Afastada a luz crua dos dedos dói-te


a matéria das aves
fechada a porta deixas subir o rio
quero eu dizer é tempo de partir —
enquanto cresce o trigo.

21. O trabalho do olhar é sobre o corpo


é quando o sol a prumo as ervas
altas em novelo ardem e dói o ar
é quando pelos campos corre o touro
branco azul
distante o chão do mar.

22. Na boca outras manhãs hesitam em arder.

23. E quanta tarde houver inda a figueira


ali estará desafiando a noite —
ceifado o trigo a terra aproximou-se
é mais fresca a poeira sobre os olhos.

24. Todo o esplendor a caminho da foz


é um gato ao sol ou ainda menos
não sei onde tenho as minhas mãos antigas
que se recusam não direi ao vento
no branco de uma folha irrespirável.

25. Desperto ainda ouço chegar o inverno —


onde iria com seus martelos de silêncio
seus cavalos lentos pela névoa
os dedos minúsculos sobre a pedra?

26. O mar começa onde as crianças crescem


mas tenho ainda de procurar a pedra
próxima do silêncio onde dormir.

27. Assim te despes — com o aroma do inverno


em cada sílaba no lugar da boca farei o lume.

28. Que dunas foram nossas naves altas?

29. Quisera que morressem essas vozes


esse vento lavrando os campos do olhar
que morressem
os sulcos abertos lábio a lábio.

30. As imprecações haviam-no despido


tem a cabeça inclinada sobre o rio
a sombra desatada
os lábios hábeis para o silêncio
onde o sangue onde a noite onde o frio…

1974 / 75
MEMÓRIA DOUTRO RIO
AO ABRIGO DE INJÚRIAS

Por que palavra começar, por que desordem? O vento levanta-se


rápido da rugosidade da pedra, o cavalo de fogo escouceia, relincha
no pátio, o rapazito abre-lhe o portão, galopa na poeira.
Desse dia pouco mais há a dizer — o crepúsculo foi-se
aproximando dos degraus da casa, já não se distingue o arado da
sua sombra, e ao fundo do horizonte o garoto, cúmplice do vento,
afasta-se ao abrigo de injúrias.
O PESO DA SOMBRA

A noite já devia ter caído, a pele do rio escurecera. Vozes felizes


afastavam-se luminosas, desciam as escadas de mansinho,
enquanto as lágrimas não tardariam a rebentar no escuro.
Eles não sabiam que o lobo conseguira fugir e o caçador
adormecera de cansaço debaixo da grande árvore vermelha. Sem o
menor ruído a porta começara a abrir-se, primeiro foram só uns
olhos de lume, depois o animal todo entrou no quarto.
Se tivesse de morrer seria agora, o peso da sombra sobre o
coração, empurrando-me para as águas, cada vez mais próximas e
desertas.
AS CABRAS

Por toda a parte onde a terra for pobre e alta, elas aí estão, as
cabras — negras, muito femininas nos seus saltos miúdos, de pedra
em pedra. Gosto destas desavergonhadas desde pequeno. Tive
uma que me deu meu avô, e ele próprio me ensinou a servir-me,
quando tivesse fome, daqueles odres fartos, mornos, onde as mãos
se demoravam vagarosas antes de a boca se aproximar para que o
leite se não perdesse pelo rosto, pelo pescoço, pelo peito até, o que
às vezes acontecia, quem sabe se de propósito, o pensamento na
vulvazinha cheirosa. Chamava-se Maltesa, foi o meu cavalo, e não
sei se a minha primeira mulher.
MEMÓRIA DOUTRO RIO

São muito vastas as noites de insónia, quase sempre


atravessadas por um rio. Quando não chove, confusamente dispo-
me atrás dos amieiros e abandono-me à corrente. Sigo para o sul,
que é para onde correm todos os rios, pelo menos os meus.
Um dia, numa língua de areia, avistei dois corpos que se
penetravam exasperados. Fiquei aterrado: primeiro pensei que ele a
estava a matar, a seguir, que ambos estivessem a morrer, só depois
percebi o que se passava, e o meu próprio corpo se exasperou.
Quando acabaram, a mulher chorava e o homem quase lhe mijava
em cima. Afastaram-se cada um para seu lado, sem trocarem
palavra.
Contei o que vira a um pastor que encontrei mais abaixo. Pouco
mais velho era do que eu, mas mostrou-me como o prazer não tem
forçosamente que ver com a culpa. Quem não sabe que os corpos
também podem ser conjunção de águas felizes?
QUASE DE NÁCAR

Como no centro da palavra o homem, os animais brilham na


culminação do cio. Com o cheiro inexplicável da luz chega então o
grito miúdo, sufocado, dos pavões de outrora. E os lábios húmidos
dos sexos infantis, quase de nácar.
OUTRAS TARDES

Debruço-me para escutar o canto. De onde viria, se a luz sabia a


sal? Dele falava quando disse que o outono já se estendera sobre a
palha. A terra cheira bem: no silêncio crispado as maçãs ardiam de
doçura.
Era no tempo em que as cabras subiam às falésias. Talvez
algum pastor lhes seguisse o rasto. E cantasse então.
A VISITA DO PRÍNCIPE

Nunca sei o que me trazem as palavras, elas gostam tanto de


me surpreender. Hoje ao levantar da névoa trouxeram-me a casa
sobre o rio, o terraço escassamente iluminado por um lampião que
balançava ao vento, o pequeno sapo que todas as noites, rente ao
muro, se ia aproximando, depositário de tudo o que nesse tempo em
mim se confundia com a ternura. Pequeno príncipe da vadiagem,
por ali se quedava sem outro ofício que não fosse o de receber
alguma carícia, só depois regressando por entre a humidade das
pedras aos pântanos da sombra, a noite inteira nos olhos
desmedidos.
SOBRE O VERDE DO TREVO

De alguns corpos se diz que são transbordantes, quando se


deitam é raro não deixarem sinais: pequenas manchas de sol
recente ou delicadas sementes de alegria. Da substância vertida
sobre o verde do trevo se diz também que é eloquente (eu diria
irradiante), não sei se pelo cheiro ao oiro da palha humedecida, se
pelo brilho de seda acariciada. O que sei é que fascina as formigas
e põe em cólera as éguas que nenhum vento emprenhou.
HISTÓRIA DE VERÃO

Uma abelha, dessas que dizem ser italianas, entrou pela janela,
obstinou-se em escolher-me, pousa-me no ombro, descansa de
seus trabalhos. Lisonjeado com aquela preferência, comecei a amá-
la devagar, retendo a respiração, com receio de que não tardasse a
dar pelo seu engano, que cedo viesse a descobrir que não era eu a
haste de onde se avistam as dunas. Mas o seu olhar tranquilizava,
era calma ondulação do trigo. Agora só uma interrogação
perturbava a minha alegria — comigo, como é que faria o seu mel?
COM A MANHÃ

Vem dos lados do rio, as mãos fresquíssimas, algumas gotas de


água ainda nos cabelos. Com a manhã chega o anónimo respirar do
mundo. Um cheiro a pão fresco invade o pátio todo. Vem dos lados
do rio: para levar à boca, ou ao poema.
DA ORIGEM

Nada conheço desse país a não ser a exígua faixa de terra


arável aberta à semente de outro corpo. Com a cumplicidade da
noite, ali me demorei até ao primeiro crepúsculo, interrogando-me
se a pequena mancha de lava que me escaldava a mão poderia dar-
me notícias doutra estrela. Quando a luz aproximou dos meus olhos
a boca onde dormira, tornou-se evidente que também a conjunção
do fogo se aproximara das nascentes — mas então já havia
começado a afastar-me da origem.
ALLEGRETTO SCHERZANDO

Aqui tenho árvores próximas, posso ir à varanda, a luz


crepuscular costuma demorar-se nos ramos. Mas hoje, mal abri as
persianas, um estorninho entrou na sala, deu algumas voltas
rápidas a reconhecer o terreno, depois pousou no piano, próximo do
Mozart. Cheio de curiosidade, perguntava-me o que iria acontecer.
Qual deles começaria a cantar? Mas o telefone tocou, fui atender,
queriam saber se naquele lado do mundo se avistava no céu algum
objecto brilhante, e quando voltei já o Mozart e o estorninho haviam
partido.
GIRASSÓIS

Adormecer sobre a profusão dos girassóis, pensando nos flancos


menos expostos de outro corpo. Várias foram as negligências do
olhar, bem pouco curioso para outra coisa que não fosse a nudez da
terra, às vezes muito jovem, outras, fatigada. O desejo, só o desejo
impede a perversão da alegria. E destas sílabas.
RETRATO DE RAPAZ

Vinha de terras altas, conhecera a sede e a água dos trigos de


março, os pés habituados à poeira lentíssima da eternidade.
O rigor da neve veio vindo depois.
OS NOMES

Tua mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os


trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te afluente-de-
junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava, branca-vertente-do-trigo, tudo
isto apenas numa sílaba. Só ela sabia como se arranjava para o
conseguir, meu-baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito. Assim te
queria. Eu, às vezes.
COM AS PRIMEIRAS CHUVAS

Abrir as mãos. Como se o vento fora a maravilha. Acariciar-lhe a


crina, a lentíssima garganta. Deixá-lo partir, jovem ainda. Com as
primeiras chuvas.
AS NUVENS

Hei-de aprender um ofício de que goste, há tão poucos, talvez


carpinteiro, ou pedreiro. Construiria uma casa neste chão de areia
com pedras húmidas, lisas, ou cheias de limos, frias, são tão
bonitas, com seus veios cruzando-se, ou afastando-se de costas
uns para os outros. Havia de meter-me por esses miúdos caminhos
de chibas para ver, ao fim da tarde, chegar os saltimbancos em toda
a sua glória, que me apontam as nuvens lentas, muito brancas,
afastando-se.
OUTRAS ÁGUAS

É quando o cheiro seminal da sombra anuncia o rasto das


cobras que nos aproximamos do mar. Temos um corpo inclinado
para o sol, em declínio, é certo, mas que não abandonaremos à
voracidade dos porcos, numa terra onde a própria poeira respira
com dificuldade. Não tardarão as chuvas, dizem, e poderíamos
responder que sempre as chuvas têm sido mais propícias aos olhos
amarelos das aves de rapina do que às bagas do loureiro, quase de
vidro. Mas antes teremos descido às águas.
CANÇÃO DO EPIRO

O que permanece na tarde, como na canção dos pastores do


Epiro, é uma laranja. Apagados os passos, perdido o próprio nome,
aquele lume vagaroso e limpo, era privilégio de lábios ou de
pássaros. Uma laranja. Branca. Nas mãos de uma criança.
PLAZA DEL VIENTO

Penso na pequena praça de Tarifa onde o vento chega sempre


antes de mim. Tem a minha medida: três muros de cal voltados ao
mar. Aí queria encontrar-me com Melville, e com mais ninguém. Um
dia direi porquê.
WALT WHITMAN E OS PÁSSAROS

Ao acordar lembrei-me de Peter Doyle. Deviam ser seis horas,


na austrália em frente um pássaro cantava. Não vou jurar que
cantasse em inglês, só os pássaros de Virginia Woolf têm privilégios
assim, mas o júbilo do meu pisco trouxe-me à memória a cotovia
dos prados americanos e o rosto friorento do jovem irlandês, que
naquele inverno Walt Whitman amou, sentado ao fundo da taberna,
esfregando as mãos, junto ao calor do fogão.
Abri a janela, na escassa claridade que se aproximava procurei,
em vão, a delícia sem mácula que me despertara. Mas de repente,
uma, duas, três vezes, ouviram-se uns trinadinhos molhados, a
indicar-me um sopro de penas que mal se distinguia da folhagem.
Então, invocando antiquíssimas metáforas do canto, peguei no livro
venerando que tinha à mão e, de estrofe em estrofe, fui abrindo as
represas às águas do ser, como quem se prepara para voar.
AS CRIANÇAS

Elas crescem em segredo, as crianças. Escondem-se no mais


oculto da casa para serem gato bravio, bétula branca.
Chega um dia em que estás descuidado a olhar o rebanho que
regressa com a poeira da tarde, e uma delas, a mais bonita,
aproxima-se em bicos de pés, diz-te ao ouvido que te ama, que te
espera sobre o feno.
A tremer, vais buscar a caçadeira, e passas o resto da tarde a
atirar sobre as gralhas, inumeráveis, àquela hora.
ENQUANTO ESCREVIA

Enquanto escrevia, uma árvore começou a penetrar-me


lentamente a mão direita. A noite chegava com seus antiquíssimos
mantos; a árvore ia crescendo, escolhendo para domínio as águas
mais espessas do meu corpo. Era realmente eu, este homem sem
desejos de outro corpo estendido ao lado? Já não me lembro,
passava os dias a dormir à sombra daquela árvore, era o último
verão. Às vezes sentia passar o vento, e pedia apenas uma pátria,
uma pátria pequena e limpa como a palma da mão. Isso pedia;
como se tivesse sede.
DE PASSAGEM

Os Dioscuros. Eu vi-os, numa praça de Roma, era de noite,


levavam os cavalos pela mão. O seu olhar era oblíquo à passagem
das raparigas, mas era um para o outro que sorriam.
A CASA

Pouco a pouco despeço-me de setembro, essa canção. Eis a


casa, pedra a pedra é da linhagem da tristeza, as suas luzes
brancas. Chamas-lhe casa, mas certamente não é o nome exacto —
tu, que sabes, bem podias dizer barco.
Respirando à beira do caminho.
SUL

Podia ser do feno, ou dos limoeiros, mas não: era da juventude,


aquele aroma. Atravessa o pátio, entra pela varanda. Tenho que
defender-me desta lâmina aguda. Sobre a garganta.
EXERCÍCIOS COM VOGAIS

Muito haveria a dizer do confronto da mão com o sol. Da semente


com a terra. Há contudo um lugar onde a paixão se esconde para
explodir: o olhar.

Os sulcos, que ninguém diria de aves. A mão prestes a germinar,


iluminada pela lâmpada da sombra. Obstinada na sua aliança com a
própria substância do desejo.

Chegam aos pares, húmidas, jovens, de vidro quase. Vêm doutro


verão, doutra garganta. Por onde entraram? Respiro-as, lento,
apaziguado. Essas vogais altas, estas vogais brancas.

Os cavalos. Escarvam o chão, impacientes. Procuram as águas do


sol. Nos meus olhos.

A luz fascina, chego ao fim de rastos.


À PASSAGEM DAS AVES

Foi no verão que aprendeste, com dedos afeiçoados aos


instrumentos da paciência, a entrar na noite. Medias então os dias
com rigor de lábios, declinando o mel e a sua sabedoria. Sempre
partilhaste a casa do amor, meu perdulário, na confluência das
águas e da sede. E enquanto aguardavas a violência do silêncio,
passavam aves.
EM FORMA DE ESTRELA

Vi-te levantar os braços para a culminação da noite, beber em


silêncio nas águas da demência sem poder acudir-te, sem conseguir
inclinar-te para o esplendor das areias de junho, perguntando-me
para que servem as mãos se até do jeito de partir o pão se haviam
esquecido, ou de governar o arado, ou de erguer uma criança para
a oferecer ao sol, as árvores à roda curiosamente dispostas em
forma de estrela.
ALIANÇA

Uma aliança com o fogo é ainda possível, dizias tu, ignorando


que o espaço que temos para partilhar são apenas duas mãos
apagadas e essas vogais molhadas sobre o coração, para
adormecer.
Quem não conhece esses dias de vento, os passos cegos num
interminável chão de espelhos, o pólen que as abelhas tácitas e
negras rejeitam? Então à boca suplicante da sombra recuso a água,
inexoravelmente.
SOBRE O DESEJO

Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre


que me estendia à sombra branca e miúda duma oliveira. Mas fosse
onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de
Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o
desejo.
Hoje, que a violência do estio me levou a escarvar a própria
pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais
exígua, e adormecer à sua sombra.
HOMENAGEM A RIMBAUD

Ergueram-se na manhã, tinham costumes que nos são


estrangeiros a que não faltava orgulho. Era gente de poucos
haveres mas também de poucas necessidades, e quanto a
sabedoria, nenhum valor atribuíam à quase nenhuma que tinham.
Alguém os comparou ao fogo dos cardos; quem assim falava talvez
lhes conhecesse o ardor, mas não sabia certamente da sua imensa
doçura. Tinham certas incompatibilidades, não serei eu a negá-lo, e
odiavam esse comércio da alma que sempre prosperou entre as
pernas. A mim não me são indiferentes; sobretudo por aquela sua
obstinação em multiplicar sobre o corpo os lugares de amor.
AS COLINAS NEVADAS

É a música. De algum lado virá, é impossível que não venha do


avesso da morte; com esse cheiro a resina, deve ter atravessado os
lúcidos bosques do verão, acolhido nas suas pausas o ardor das
colinas nevadas.
É a música. Procura-me. Terna, violenta, leva-me nas suas
águas. Fundas. Frescas.
RETRATO INACABADO

Nada parecia irritá-lo tanto como a transformação da linguagem


em obscuro cerimonial de confraria; parece que sempre falara muito
pouco, e quando o fazia mais parecia interrogar-se que afirmar
fosse o que fosse. Talvez apenas ao fim da tarde procurasse
misturar a lentidão das suas sílabas ao lentíssimo correr do rio, que
lhe passava debaixo da varanda. As suas pausas excessivas e
longas conduziam menos à brancura do silêncio que aos rasos
campos do sul, onde as sementes do sol explodiam nas hastes
breves dos cardos. Mas quem o escutara não pudera deixar de reter
algumas palavras, poucas e crispadas, com que presentemente lhe
gravam o perfil.
ESCRITO NO MURO

Lembro-me, eram todos muito jovens, eu já o não era tanto, mas


isso não impedia que, no branco extenuado dos mesmos muros, as
minhas palavras encontrassem nas mãos dos meus amigos o
natural contraponto, nesse desejo insensato de fazermos do olhar
um bem comum.
Naquela primavera, entre lúcida e ácida, tínhamos na noite o rio
onde mergulhávamos inteiros, e as árvores que alguns de nós, com
amorosa paciência, haviam pintado nas paredes iam-se enchendo
de pássaros.
Uma manhã ouvi-os cantar muito cedo da minha varanda,
enquanto a terra ia despertando para uma luz de vidro frágil, tão
próxima da loucura, que eu acordei os meus amigos para lhes
anunciar que a eternidade morava naquela claridade atravessada de
pássaros.
Daquele rio a meus pés estava dito que eu não conheceria
senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a
flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até à
água. Às vezes havia vento.
DURANTE O SONO

Não fora o ursinho de peluche esquecido na relva e a manhã


pareceria despovoada, mas a fila de choupos levava certamente a
algum lugar, talvez às muralhas de Cremona, ou outra cidade, eu
preferia Cremona pelo fulgor fatigado das suas sílabas, mas
qualquer sítio me serviria, desde que descobrisse alguém capaz de
me dizer o caminho, perdi-me durante o sono, foi o que foi, vou
seguir a linha de eucaliptos até à estação de Castelo Novo, depois,
ah agora me lembro, mete-se à direita pela estrada poeirenta,
quando se avistar o Cabeço da Moura estamos chegados, agora a
vinha, o pomar, o poço, vou estender-me à sombra da figueira e
esperar pelo pastor, é cedíssimo para morrer, antes hei-de aprender
a atirar uma boa pedrada.
ENQUANTO ARDEM

Chegou o momento de falar da neve, enquanto ardem


equivocados os utensílios da ternura. Temos agora para
compartilhar o espaço duma laranja verde, na tarde de março. E às
vezes o apelo furtivo das águas.
DO OUTRO LADO

Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo,


mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas
de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um
deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras
por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses
foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim,
que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direcção das
nascentes.
SOBRE A SOMBRA

Era setembro, era onde a sombra rói os ramos. Os corpos são


mais jovens nestas dunas, e só os jovens nos podem ensinar. Por
isso os procuramos, e a pergunta é sempre a mesma — como se
morre? Envelhecer não é assim tão simples, por mais que o digam.
Quantos dias de sol o declínio nos reserva? Por quanto tempo
poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender? Esta alegria
de noutros corpos sermos ainda alguma juventude, como guardá-la,
sem a degradar?
SEJA ISTO DITO ASSIM

Seja isto dito assim, sem orgulho nem humildade, por não poder
imaginar o homem reduzido à lama complacente dos próprios
excrementos: para amar queria a terra toda, para morrer bastam-me
os flancos do silêncio.
RETRATO DE MULHER

Sobre o seu rosto não fora só o tempo que passara, também as


cabras ali pisaram fundo. Era difícil, era impossível distingui-la da
própria terra: velha, seca, esboroando-se à passagem do vento.
Portuguesa, de tão pobre.
ANIMAL DE PALAVRAS

Ele procurava palavras, as mãos tacteando na noite, ávidas


ainda. A luz era débil, roubada ao sono. Chamava-as pelo nome,
mas elas não vinham, voltava a chamar. Era o que lhe doía, aquele
abandono. Com amor lhes queria, longamente sonhava com as
faces do seu corpo fino, luzindo no escuro: essas folhas de aço,
prontas a ferir. Navalhas, animais de funduras. Agora não
respondiam, mesmo que gritasse. Era uma criança espancada, sem
elas; um homem amargo, tocado pelo verde da lepra. Para não
morrer precisava desse sol a prumo, dessas águas de seda.
Estendidas. Sobre as ervas de junho.
INSÓNIA

Apaguei outra vez a lâmpada, procurei agarrar os fios do sono,


mas o que se aproximou foi um camponês muito jovem, que
atravessou a noite para saber o que é que me doía.
— O meu nome é Guérassim.
Devia responder-lhe que o conhecia bem, mas limitei-me a
perguntar-lhe porque deixara a casa de Ivan Ilich.
— Agora és tu que precisas de mim. Que é que tens?
— O meu mal é sem remédio. O que eu queria era água, água.
Água de quatro rios, sobre a garganta. Para adormecer. Com o sol
na boca.
OCUPAÇÕES DE VERÃO

Finalmente disponho de tempo, disponho mesmo do tempo todo,


posso fazer o que quiser dos meus dias, por exemplo, estender-me
ao sol e aguardar a chegada das formigas. Não podem tardar, e
quando chegarem já aqui me encontram, a mim, que sou vacilação,
ou o que restar de mim, boa-noite, umas sandálias, uns óculos,
algumas sílabas quase de vidro. Tenho de pensar no que direi a
criaturas tão susceptíveis; seria de mau gosto distraí-las das suas
ocupações, falar-lhes-ei do trigo vermelho da Hungria, às vezes
quase violeta, dos cardos de Epidauro rastejando na terra, à procura
do coração da água. Mas quando me voltei para seguir o voo de um
pássaro, apercebi-me que o tempo mudara, as formigas já não
viriam. Com efeito o sol escurecera, a chuva não tardaria, torrencial.
Quem me ajudará agora a rilhar a eternidade?
VASTOS CAMPOS

Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a


envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta.
Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como
são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim,
estou cansado, setembro foi mês de venenosas claridades, mas
esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim.
VIAGEM

Provavelmente já terá fechado os armários da biblioteca, as


janelas, subido ao sótão, aproximado da arca, tê-la-á aberto para
folhear o álbum de fotografias, reler a carta, terá parado numa linha,
tenho medo, medo que os próprios lençóis nos denunciem, depois
fechado tudo, terá passado pelo jardim, verificado com algum
espanto que o rosto das estátuas envelhecera, à entrada do pátio
demorar-se-á a olhar as bétulas que ajudara a plantar, fechará o
portão, atirando a chave para o meio das silvas. E terá partido.
SOBRE O LINHO

Desse céu de camponeses trouxe o azul, o azul limpo do linho, o


azul branco. Aqui o estendo, onde a noite é mais dura (exactamente
como outrora na ribeira mulheres antiquíssimas estendiam a roupa
pelas pedras da manhã) e nele me deito. Pudesse eu, como elas,
agora dormir tranquilo, a tarefa cumprida.
PARÁGRAFOS DA SEDE

Animal do deserto, o sexo. Expulso da alegria. Que procura


ainda, no território da sede? Outra boca, mordendo a poeira? A
língua do sol, entre a cegueira e o cio? A semente do linho?
Animal do deserto, marrando contra o muro.
SÍLABA SOBRE SÍLABA

Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É


uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de
que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as
minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda
vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o
desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes
da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do
nascer ao pôr do sol.
CIDADE

Meti-me por setembro fora, a caminho do fulgor das maçãs,


deixando para trás os bruscos golfos da tristeza e uma luz de neve
quebrada de vidraça em vidraça.
Contemplava a cidade das pontes pela última vez, envolvida por
lençóis encardidos e uma névoa que subia do rio para lhe morder o
coração de pedra.
Era um burgo pobre, sujo, reles até — mas gostaria tanto de lhe
pôr um diadema na cabeça.
ESTAS AREIAS

Aos dias de verão delapidados nas dunas.

Ao primeiro amor; um gato; desses que nunca chegam a aprender a


mijar na serradura mas conservam nos olhos o perpétuo mover das
águas.

Ao avô Guilherme, que afagava uma pedra como se fora uma


criança, e eu não tardaria a nascer.

A uma voz na noite: rasteja ferida, mas não sabe ainda que vai
morrer.

Ao pequeno Gerhard von Breuning, a quem Beethoven chamava


meu botãozinho de ceroula; ao Gil, embaixador das crianças de S.
Vítor.

A uma andorinha, a todas as andorinhas que, no dizer de


Shakespeare, fizeram ninho nas naves de Cleópatra.

Estas areias; as derradeiras; o seu frio esplendor.


MATÉRIA SOLAR
Ser não é fácil... fácil, só a merda.
VLADIMIR HOLAN, Aos Inimigos
1

Podias ensinar à mão


outra arte,
essa de atravessar o vidro;

podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;

ou então a ser água,


onde de tanto olhá-las
as estrelas caíam.
2

O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.

Há um cavalo próximo do silêncio,


uma pedra fria sobre a boca,
pedra cega de sono.

Amar-te-ia se viesses agora


ou inclinasses
o teu rosto sobre o meu tão puro
e tão perdido,
ó vida.
3

Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.

Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.

Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.

Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
4

Este sol, não sei se já o disse,


este sol é o mar todo
da minha infância.

É como se fora manhã alta,


os seus cabelos ardem,
mas eu sonho com outra boca.

Onde aprenda a ser água.


5

Claro que os desejas, esses corpos


onde o tempo não enterrou ainda
os cornos fundo — não é o desejo
o amigo mais íntimo do sol?
Que os desejas, como se cada um
deles fosse o último, último corpo
que o teu corpo tivesse para amar.
6

A tarde sacudiu as suas crinas,


as crianças demoram-se nos espelhos,
um amigo começa no verão,
no íntimo despir das suas luzes.
7

Conhecias o verão pelo cheiro,


o silêncio antiquíssimo
do muro, o furor das cigarras,
inventavas a luz acidulada
a prumo, a sombra breve
onde o rapazito adormecera,
o brilho das espáduas.
É o que te cega, o sol da pele.
8

O sorriso.
O sorriso aberto
contra o muro.

Exactamente
como as ervas,
é muito antigo.

E sobre as ervas
e o muro
debruça-se no caminho.

Quem o arranca,
e levará consigo?
9

Outra vez o pátio vidrado da manhã.


Vais surgir e dizer: eu vi um barco.
Era quando aos lábios me chegava
a porosa argila doutros lábios.
Estava então a caminho de ser ave.
10

A manhã parada.
O azul.
A fundura da pupila.

Não é ainda a sede,


a matilha,
a febre.

O tronco nu —
a luz vacila.
11

É quando a chuva cai, é quando


olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho e o dissessem
a quem passa na rua, e cantassem.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.
12

Tocar-te a pele,
o pulso aberto
ao gume do olhar.

Que seja essa


a casa, a estrela
do primeiro dia.

Rosa inflamável,
boca do ar.
13

Aqui me tens, conivente com o sol


neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.
14

O sol,
a poeira
lentíssima do sul,

a pedra do ar
clara e mordida,

a branca e nua
e tão antiga
poeira do sol,

vem pousar-me
nos olhos.

Ainda.
15

O que respira em ti são os olhos,


o azul de um sol sem rugas,
as primeiras águas da carícia.

O sabor a barco que tem a boca! —


a isto se chama juventude, às vezes,
ou estrela de sangue vivo.

De costas para a noite, a terra


enquanto arde é quase um rio.
16

Tu estás onde o olhar começa


a doer, reconheço o preguiçoso
rumor de agosto, o carmim do mar.

Fala-me das cigarras, desse estilo


de areia, os pés descalços,
o grão do ar.
17

São fáceis de encontrar, os meus amigos,


vejo-os nesses lugares marítimos,
a tardia floração dos olhos,
o difícil comércio das palavras,
o corpo do verão sobre os joelhos.
18

Eu amei esses lugares


onde o sol
secretamente se deixava acariciar.

Onde passaram lábios,


onde as mãos correram inocentes,
o silêncio queima.

Amei como quem rompe a pedra,


ou se perde
na vagarosa floração do ar.
19

A mão, a terra prometida


cada vez mais distante, só a mão
sabe ainda o caminho.

Um corpo não é casa da tristeza


e eu sempre pousei à entrada
da pedra do verão.

Ó pedra pedra — pedra de alegria.


Exasperada.
20

Tocar um corpo
e o ar
e a língua da neve.

Tocar a erva
mortal e verde
de cinco noites
e o mar.

Um corpo nu.
E as praias fustigadas
pelo sol e o olhar.
21

Agora são elas que têm o teu rosto,


as palavras; e não só o rosto:
o sexo e a trémula alegria
que foi sempre senti-lo desperto.
Sem palavras já não somos nada;
estão agora de perfil, repara
como reflectem o que de juvenil
houve sempre em ti, o mesmo sorriso
só um pouco menos fatigado
e o andar apenas menos lento.
22

Agrada-me estar aqui, falar


de árvores, dizer delas
o que disse da neve noutra ocasião.

Da janela avista-se a torre


sobre as águas, as da infância
ou da loucura, pois não há outras

assim tão inocentes, e tão próximas


do coração da terra — dizer delas
o que noutra ocasião disse da neve.
23

Este país é um corpo exasperado,


a luz da névoa rente ao peito,
a febre alta à roda da cintura.

O país de que te falo é o meu,


não tenho outro onde acender o lume
ou colher contigo o roxo das manhãs.

Não tenho outro, nem isso importa,


este chega e sobra para repartir
com os corvos — somos amigos.
24

É o que desejas, que pela porta


estreita passe o ar, a extraviada
e impossível voz do amigo,

que passem os pés miúdos


e brancos da poeira,
a bica de água, a manhã de vidro.
25

Cala-te, a luz arde entre os lábios


e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.
26

Mas como fazer durar


até ao último instante
esta boca, este sol?

É preciso amá-la,
paciente e alta,
onde a chama canta.

Amá-la. Até ao fim.


Até ser dança.
27

Vacilantes perdem-se agora os dedos,


o mar é longe, vai-se a voz quebrando,
para morrer vai sendo tarde.
Não duvides: sou essa árvore,
essa alegria só prometida às aves.
28

Dormíamos nus
no interior dos frutos.

É o que temos: sono


e a estiagem subitamente
até ao fim.

Amargos.

Pela humidade descia-se


às fontes — lembro-me.
Dos lábios.
29

De onde vêm?
De que rosto, de que estrela?

Apenas uma arde no vento.


As outras, fico a ouvi-las
escorrer da pedra.

Apenas uma em silêncio brilha.


As outras mordem
um coração de homem.

Só prometido à terra.
30

Levei as mãos aos olhos para ver


se mesmo em ruína inda existias,
mergulhei no sol os dedos todos,
vêm molhados das águas fatigadas —
o corpo perdia-se frente aos dias.
31

Eu vi essas muralhas ruírem


sobre o rio — eram calmas as águas
de setembro, e sucessivas.

Despedia-me das folhas,


também eu preparava esse abandono
da cidade e das suas almas.

Eu vi essas muralhas.
Eram espessas roucas frias.
Ruíram, quando as olhava.
32

Elas doíam-me, as estrelas,


como se tivera casa no ar.
Doíam-me, quando ao cair
ardiam às portas da água.
Como se eu fosse uma delas.
33

Moro agora nos olhos das crianças,


disponho a luz para as ver melhor,
o azul aproxima-se da pupila.

Nesta praça que me lembra outra


mais antiga, os pombos vêm
beber a solidão nas minhas mãos.

Digamos então que um brusco aroma


me traz o sol ou uma abelha
ou esses olhos onde agora moro.
34

Aqui ouço o trabalho do outono:


arte de abelha, chama verde
e breve.

Seria o meu amor se não fosse


definitiva sede,
país sem nome.

Já mal o vejo, argila branca,


o riso fácil, a luz quebrada
em dentes de água.
35

Não me espanta se vir aproximar-se


um braço do rio, ou outro, no escuro.
Coisas assim sucedem quando
nos sentamos num banco de jardim
e aves passaram a caminho do sul.

Escuto na noite a ver se descubro


um indício, um rumor
de febre que anuncie o cantar

desse que dizem ser arauto do sono.


36

Pela manhã de junho é que eu iria


pela última vez.
Iria sem saber onde a estrada leva.

E a sede.
37

Que resta dos amorosos instrumentos


do outono? Vi-te morder a tristeza,
era amarga, o ar tremia.

Onde o desejo não rebenta,


onde a chama se não medir com a chama,
como falar do sumo
ou do sol da boca e das laranjas?

Não chames pedra viva ao que nem


sequer pode com o peso do ar,
não dês o meu nome
ao último crepúsculo do olhar.
38

Era como se o tivessem exposto nu


na esperança de que o sol o esfolasse
ou a chuva lavasse aquela mancha
vinda das trevas do ventre materno,
das entranhas de todas as mães
de sua mãe, secretamente, até explodir
e ser flor aberta no seu corpo.
39

Nesses lugares,
nesses lugares onde o ar
perde a mão,
os meus amigos começam a morrer.

Falar tornou-se insuportável.


Falar dessa luz queimada.
Deserta.

Que fazer desta boca,


do olhar,
tão perto outrora de ser música?
40

Fazer do olhar o gume certo,


atravessar a água corrompida,
no avesso da sombra soletrar
o rosto ardido de sede antiga.
41

Sei duma pedra onde me sentar


à sombra de setembro quase no fim.

Havia ainda as mãos, mas tão cegas


que nenhuma encontrará o sol.

É o que têm: desejo de tocar


o barro ainda quente do silêncio.
42

Vê como se morre devagar


neste inverno
que se aproxima da cintura;

como a chuva entra pelo sono


e a sombra mais amarga
se vai juntando à terra nua;

ou a fria chama da cal


tarda.
43

O corpo aprende devagar


a conhecer a terra.
Com as ervas.

A noite perdeu os seus navios,


o homem o seu rosto,
o sol a razão.

Com as ervas.
A conhecer a terra.
Rente ao chão.
44

Setembro: que lugar


para dormir — ou nessas folhas
ardendo pelo chão da tarde.

Como partir, deixar deserta


a casa errante
e diminuta do olhar?

A que nos resta.


45

Chove, é o deserto, o lume apagado,


que fazer destas mãos, cúmplices do sol?
46

Olha, já nem sei de meus dedos


roídos de desejo, tocava-te a camisa,
desapertava um botão,
adivinhava-te o peito cor de trigo,
de pombo bravo, dizia eu,
o verão quase no fim,
o vento nos pinheiros, a chuva
pressentia-se nos flancos,
a noite, não tardaria a noite,
eu amava o amor, essa lepra.
47

Afinal eram mais de quatro,


os rios,
que sonhava sobre a garganta.

Não sei se dormem ou se esqueceram


que nome tinham —
nenhum acode.

Esse sou eu,


atormentado ramo de sol.
48

Agora sai de cena à tua maneira,


abandona esse sol magro
às cabras e aos cardos.

Sem ruído, mas também sem hesitar,


desprende-te desse desejo
que vacila frouxo sobre a palha.

Precisas mudar de mão, ou de clima;


ou de pele;
ou simplesmente de latrina.
49

Sei onde o trigo ilumina a boca.


Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.

O sono é assim, permite ao corpo


este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.

Digo que estive aqui, e vou agora


a caminho doutro sol mais branco.
50

Que fizeste das palavras?


Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes, que lhes dirás,


ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando


te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
O PESO DA SOMBRA
Trabalho com a frágil e amarga
matéria do ar
e sei uma canção para enganar a morte —
assim errando vou a caminho do mar.
Como se fossem folhas ainda
os pássaros cantam
no ar lavado das tílias:
algumas cintilações
vão caindo nestas sílabas.
Que jovem é a mão sobre o papel
ou sobre a terra.
Jovem e paciente: quando escreve
e quando ao sol
se transforma em carícia.
Fazer duma palavra um barco
é todo o meu trabalho
ou da flor do linho o espelho
onde a luz do rosto cai
excessiva.
Agora as aves voltam, são nos ramos
altos a matéria
mais próxima dos anjos
— ousarei eu tocar-lhes,
fazer delas o poema?
Como esse olhar que prolonga a mão
as coisas que fazem a nossa alegria
brilham
ao sol ainda de cintura fresca.
Com as sete cores desenhas uma criança,
o candeeiro, a luz à roda,
não há senão este olhar,
o ramo de espinheiro, um sol de seda
impaciente por ser flor,
a noite por confidente.
Os dedos brincam com a luz de março —
não há no corpo lugar para a morte
com o sol adormecido no regaço.
No chão agora claro dança o ar —
é quase só um ritmo calmo
de verão prestes a chegar às dunas,
a transparência duma folha de água,
a fragrância da relva onde os pés
mal afloram o verde das manhãs de junho.
Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.
Trago os tordos na cabeça desde os campos
d’Atalaia para pôr neste poema —
o vento deixava-nos à porta
ora uma luz rasteira ora um esfarelado
chiar de carros de feno,
dos ramos altos
a tarde caía nos cabelos,
vivíamos sem pressa rente aos lábios.
Mesmo a mais friável
das palavras
tem raízes no sol —
ou a manhã
barcos no mar.
Estou sentado nos primeiros anos da minha vida,
o verão já começou, e a porosa
sombra das oliveiras abre-se à nudez
do olhar. Lá para o fim da tarde
a poeira do rebanho não deixará
romper a lua. Quanto ao pastor,
talvez um dia suba com ele às colinas,
e se aviste o mar.
Com o sol a trepar pelas árvores
não tardará
que a manhã corra mais limpa
e se possa beber.
As crianças ardem.
E os animais
lentamente também eles
ardem no fundo dos espelhos.
Podes vê-las daqui:
mordem-se à luz dos seus cabelos.
Acordo às vezes com doze ou treze anos:
os olhos do pastor chamam por mim.
Agora tenho pena de me ter negado
ao seu olhar: órfão ainda,
vou-me aproximando da minha idade.
O livro aberto esquecido na relva,
o sol mordido das amoras bravas,
a voz húmida e lenta dos rapazes,
os degraus por onde a sombra desce.
Ouço-as como se ouvisse chegar o verão,
seus inumeráveis dedos correm pelos dias
ou pelas noites com as águas dentro;
ouço essas vozes, esse rumor de luzes
subir no escuro, tropeçar nos vidros,
com a manhã alta cair nas areias,
morder os muros, arder endoidecido.
A noite trouxera-o por aí,
teria vindo com as folhas novas,
incerta a voz, não de homem ainda,
o peito sim, apenas mais claro,
e fresca a pequena casa da língua.
Seguir ainda esses sinais,
o sulco de um riso breve,
o sol escuro dos abrunhos bravos
ou do sexo levantado,
o frémito miúdo dos dentes na pele,
e os cavalos os cavalos os cavalos.
É por dentro que a boca é luminosa.
A luz derrama-se na língua, e canta.
É quase vegetal, de um azul inocente,
ou quase animal, rastejando lenta.
Podes confiar-me sem receio
as pequenas tarefas matinais.
Deixa ficar as nuvens,
a poeira acesa nos telhados,
os martelos da tristeza sobre a mesa.
O meu país é entre junho e setembro,
antes da primeira neve chama por mim.
Inventarei o dia onde contigo
e o outono corra pelas ruas.
A luz que pisamos é tão perfeita
que não pode morrer, como não morre
o brilho do olhar que te viu despir.
Podes chamar-me cisne, ou sombra
desvelada; podes chamar-me
lençol de águas lancinantes,
chifre nupcial.
Não sou senão sobre o teu corpo
um fulgor
de sol ou sangue ou sal.
O dia limpo como um adro deserto,
o relógio parado,
os degraus por onde o sol
sobe ao olhar —
falta que um pássaro cante em qualquer lado.
Atravessara o verão para te ver
dormir, e trazia doutros lugares
um sol de trigo na pupila;
às vezes a luz demora-se
em mãos fatigadas; não sei em qual
de nós explodiu uma súbita
juventude, ou cantava:
era mais fresco o ar.
Quem canta no verão espera ver o mar.
Eu ia com a noite pelas ruas
descuidadas que levam ao teu corpo.
Não sei que vozes se cruzaram
com a manhã de junho dos meus olhos,
mas sempre vozes ou a sombra delas
cortaram os passos ao desejo.
Perdi-me em nevoeiros que de súbito
sobre a cidade caíram, ou em mim.
Deve haver um lugar onde um braço
e outro braço sejam mais que dois braços,
um ardor de folhas mordidas pela chuva,
a manhã perto nem que seja de rastos.
Quase se vê daqui, o verão:
a luz crispada sobre o muro,
a haste do trigo prestes a partir,
essas crianças cantando nuas
nas ruínas da memória,
uma abelha talvez equivocada,
era um dia que dava para o mar.
Falas de sol e lá fora chove.
A quem falas quando
iluminas de uma luz tão quente
cada palavra? A quem dás
a beber a boca, a respirar
o aroma do feno por entre a chuva?
A lâmpada acesa,
os junquilhos na jarra, o cheiro,
ou antes, o ardor da primavera
trazido pela noite, o livro aberto
na morte de Antínoo,
o catálogo de aves, o rumor
do pulso, de vozes perto.
O corpo nu, quase estranho
agora, adormecido.
Contra o muro floresce o limoeiro;
do outro lado, liso, limpo, o mar:
quase no fim.
Na púrpura da pedra, o fogo
dorme. Sem mim.
Já não sei se te escuto ou apenas
a monotonia dos ralos entra pela casa.
Um dia serei eu esse cantar,
o corpo desatado e semelhante
à música que das cordas se desprende.
O ar é o meu elemento, o ar.
Como saber de que matéria
é feito o olhar?
Acaba aqui
a luz gémea da tua boca,
mas assim
vê-se melhor a espuma do crepúsculo.
Caminha devagar:
desse lado o mar sobe ao coração.
Agora entra na casa,
repara no silêncio, é quase branco.
Há muito tempo que ninguém
se demorou a contemplar
os breves instrumentos do verão.
Pelo pátio rasteja ainda
o sol. Canta na sombra
a cal, a voz acidulada.
Era setembro
ou outro mês qualquer
propício a pequenas crueldades:
a sombra aperta os seus anéis.
Que queres tu ainda?
O sopro das dunas sobre a boca?
A luz quase despida?
Fazer do corpo todo
um lugar desviado do inverno?
De que país regressas?
De que mar ou regaço
onde o desejo respira devagar?
Fala, diz ainda a palavra
que faça do silêncio a casa
ou erga a coroa
do lume à altura do olhar.
O corpo vai-se esquecendo de ter razão:
deixa-te estar assim contra a vidraça,
pelos ombros caída
até ao chão a fatigada luz da sombra,
na mão o ínfimo azul dum lenço
de água. Ou menos ainda.
Chego à janela para olhar os cedros
pela última vez nesse verão;
tu dormes ainda; amanhece
no rumor distante das esquilas;
estão mais próximas as veredas
lentas do outono,
os lenços de névoa,
o céu turvo rente às colinas.
Reter ainda essa voz,
não sei de quem, não sei de quê,
mantê-la perto da mão,
entre o último sol e o brilho
da pantanosa doçura das maçãs.
Desprender-me do sono, ser no ar
feliz a lenta explosão da flor
do litoral, um punho ardendo,
a luz fendida pelo ardor da cal.
O corpo sabe: do chão
ao azul o seu trabalho é arder.
Corpo com sede ainda: branco
pano de sangue. No topo do silêncio.
Como se nem lábios houvera
nem ouvidos para escutá-lo.
Sei de uma pedra onde me sentar
à sombra de setembro
e vou falar dos girassóis,
essa flor quase de areia
que ombro a ombro com o sol
faz do peso da sua solidão
o ardor
e a glória dos grandes dias de verão.
Nem sempre o corpo se parece com
um bosque, nem sempre o sol
atravessa o vidro,
ou um melro canta na neve.
Há um modo de olhar vindo
do deserto,
mirrado sopro de folhas,
de lábios, digo.
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos,
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.
O amargo sabor duma laranja,
e a casa regressa. O mar entrava todo
nela, vinha do sul, cheirava bem.
A árvore já não existe, no seu lugar
a melancolia está sentada.
Tem uns olhos imensos onde corre o vento
e na mão uma laranja.
Amarga.
É um dos teus mais bonitos sorrisos
este inverno
entornado nas areias.
Entrou pela varanda
com a espuma das vozes infantis.
E com os gatos dos telhados
não tardará a partir.
As minhas árvores estão em todos os olhos,
a felicidade começa amanhã,
como nos poemas virá sentar-se
na soleira da porta,
o olhar atravessado
por essas poucas, poucas águas.
Deixo ao Miguel as coisas da manhã —
a luz (se não estiver já corrompida)
a caminho do sul,
o chão limpo das dunas desertas,
um verso onde os seixos são
de porcelana,
o ardor quase animal
duma romã aberta.
O que digo é quase só o medo
de haver perdido o caminho para o litoral.
Chove entre os lábios, chove há muito tempo
nestas pedras de sombra calcinada.
A caminho do sol a terra é nupcial.
Eu vi-as em ruína, a essas casas:
do céu branco caíam sobre as águas
presas e quase mortas do verão.
Um rumor infantil de vozes vinha
do fundo do pátio. E a sede
dos cardos rastejava pelo chão.
Agora os nomes que martelam o sono,
turvos ou roídos da poeira:
Póvoa, Castelo Novo, Alpedrinha,
Orca, Atalaia, nomes porosos
da sede, onde a semente do homem
é triste mesmo quando brilha.
Não ouças essas vozes que não param
de crescer a caminho do inverno,
os lugares onde o corpo de erro
em erro abdica de ser corpo
são mortais, não ouças essas vozes
onde o sol apodrece, nunca mais.
Espanta-me que estes olhos durem ainda,
que as suas pedras molhadas
se tenham demorado tanto a reflectir
um céu extenuado
em vez de aprenderem com a chuva
a morder o chão.
Com o tempo aproximar-se-ão os rios
e os montes, com o tempo
acabará por te vir comer à mão
e fazer ninho na tua cama
o silêncio.
Passaste os dias a pôr sílabas
sobre sílabas, dorme, estás cansado.
Não são do rio essas luzes,
dorme, já não há rios.
Nos pátios do outono a noite
já soltou os seus cães, dorme.
A poeira; vai-nos queimando
a voz; fugindo
o gosto de levar à boca
a luz despida.
O que falta aqui é um regaço
na água; um ardor na cinza.
Onde cresces para a noite vai-se ter ao rio,
a casa sonolenta à deriva,
o crepúsculo a escoar-se pelos dedos,
um pássaro atravessado na pupila.
Ouço correr a noite pelos sulcos
do rosto — dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim, que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.
Que manhã queria ainda
de areia
ou seda sobre a boca
antes de entrar em Ítaca?
BRANCO NO BRANCO
I

Faz uma chave, mesmo pequena,


entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música


dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.


Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.


Onde a beleza é mais nova.
II

É um lugar ao sul, um lugar onde


a cal
amotinada desafia o olhar.
Onde viveste. Onde às vezes no sono

vives ainda. O nome prenhe de água


escorre-te da boca.
Por caminhos de cabras descias
à praia, o mar batia

naquelas pedras, nestas sílabas.


Os olhos perdiam-se afogados
no clarão
do último ou do primeiro dia.

Era a perfeição.
III

A chuva cai na poeira como no poema


de Li Bai. No sul
os dias têm olhos grandes
e redondos; no sul o trigo ondula,

as suas crinas dançam no vento,


são a bandeira
desfraldada da minha embarcação;

no sul a terra cheira a linho branco,


a pão na mesa,
o fulvo ardor da luz invade a água,
caindo na poeira, leve, acesa.

Como no poema.
IV

Encostas a face à melancolia e nem sequer


ouves o rouxinol. Ou é a cotovia?
Suportas mal o ar, dividido
entre a fidelidade que deves

à terra de tua mãe e ao quase branco


azul onde a ave se perde.
A música, chamemos-lhe assim,
foi sempre a tua ferida, mas também

foi sobre as dunas a exaltação.


Não oiças o rouxinol. Ou a cotovia.
É dentro de ti
que toda a música é ave.
V

Um amigo é às vezes o deserto,


outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre

um corpo é o lugar da furtiva


luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;

é na escura folhagem do sono


que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.

O real é a palavra.
VI

As cegonhas.
Trazem-me o adro,
duas casas, ou três, se forem brancas,
a terra onde pousavam

lentas, eu tinha então


a idade das amoras,
o sol sufocava sobre a boca,
lembras-te?, ou o peso doutra boca,

doutra razão, já não sei,


corria à pedrada
os cães de que tinhas medo,
e fugia de ti para afagar

em segredo
o baiozinho que então namorava.
VII

Agora moro mais perto do sol, os amigos


não sabem o caminho: é bom
ser assim de ninguém
nos ramos altos, irmão

do canto isento de alguma ave


de passagem, reflexo de um reflexo,
contemporâneo
de qualquer olhar desprevenido,

somente este ir e vir com as marés,


ardor feito de esquecimento,
poeira doce à flor da espuma,
apenas isso.
VIII

O terraço da casa era o prodígio,


nele passava o vento.
Eu começara a descobrir o corpo e tinha
a luz por confidente.

O tempo pousava devagar nos muros altos,


era verão, na minha insónia
ao mar oferecia os meus cavalos:
ao tocarem a água gritava de pavor,

ou talvez de amor, já não sei bem.


Viver então
era crescer com uma flor entre os dentes,
aprender a respirar com o perigo

de a pele estalar num clarão a cada passo.


IX

Descer pela manhã até à folha


dos álamos,
ser irmão de uma estrela, ou filho,
ou talvez pai um dia doutra luz de seda,

ignorar as águas do meu nome,


as secretas bodas do olhar,
os cardos e os lábios da sede,
não saber

como se morre de tanto ser hesitação,


de tanto desejar
ser chama, arder assim de estrela
em estrela,

até ao fim.
X

Só o cavalo, só aqueles olhos grandes


de criança, aquela
profusão da seda, me fazem falta.
Não é a voz,

que tanto escutei, escura do rio,


nem a cintura fresca,
a primeira onde pousei a mão
e conheci o amor;

é esse olhar que de noite em noite vem


da lonjura por algum atalho,
e me rouba o sono,
e não me poupa o coração.

Meu coração, alentejo de orvalho.


XI

Ao acordar já por aí andavam


arrastando a manhã pelos telhados;
teriam vindo com as despidas
luzes de março:

quem estivesse desperto teria separado


o seu canto de tanta coisa miúda:
as folhas novas a mudar de cor,
o recuado

gosto da chuva, o orgulho dos cardos,


a nudez insegura dos rapazes,
a matinal e dorida
erecção sem fim dos animais.

Nem sempre as andorinhas chegam assim.


Estas foi assim que chegaram.
Foi assim.
XII

E vai chegando, vai chegando ao fim


a luz de março.
Por aí andou, íntima de cada pedra
e dos gatos, pela relva

se espojou com as crianças,


as nalguinhas frescas.
Ninguém é senhor da luz detida
num olhar, ninguém

se demora a cantar frente ao silêncio


duma rosa fechada.
Se fores à janela verás talvez ainda
morrer as últimas luzes.

Loucas, loucas de março.


XIII

Já não se vê o trigo,
a vagarosa ondulação dos montes.
Não se pode dizer que fossem contigo,
tu só levaste esse modo

infantil de saltar o muro,


de levar à boca
um punhado de cerejas pretas,
de esconder o sorriso no bolso,

certa maneira de assobiar às rolas


ou então pedir um copo de água,
e dormir em novelo,
como só os gatos dormem.

Tudo isso eras tu, sujo de amoras.


XIV

Os primeiros dias da amizade


levam sempre à gloriosa loucura do verão;
não sei de tempo mais feliz,
a não ser

vaguear ao crepúsculo pelas dunas


em certos dias de setembro;
mas a morte rasteja pelas pedras,
o coração

impaciente por descer à água.


Que pode um homem esperar quando
tão puerilmente
se expõe assim ao sol em carne viva?
XV

Agora vou dizer como setembro


se aproxima do fim.
E a névoa, da boca do rio.
Setembro foi sempre nas colinas

um rebanho de luzes inocentes,


um ramo de estorninhos,
um assobio
distante desafiando o vento.

Um resto de esplendor cantava ainda


na relva, era talvez a voz
do meu amor, um rapazito
vinha vindo devagar.

E o pastor.
XVI

Árvore, árvore. Um dia serei árvore.


Com a maternal cumplicidade do verão.
Que pombos torcazes
anunciam.

Um dia abandonarei as mãos


ao barro ainda quente do silêncio,
subirei pelo céu,
às árvores são consentidas coisas assim.

Habitarei então o olhar nu,


fatigado do corpo, esse deserto
repetido nas águas,
enquanto a bruma é sobre as folhas

que pousa as mãos molhadas.


E o lume.
XVII

Ignoro o que seja a flor da água


mas conheço o seu aroma:
depois das primeiras chuvas
sobe ao terraço,

entra nu pela varanda,


o corpo inda molhado
procura o nosso corpo e começa a tremer:
então é como se na boca

um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,

até ao fim do mundo,


até amanhecer.
XVIII

As razões do mundo
não são exactamente as tuas razões.
Viver de mãos acesas não é fácil,
viver é iluminar

de luz rasante a espessura do corpo,


a cegueira do muro.
Esse gosto a sangue
que trazia a primavera, se primavera havia,

não conduz à coroa do lume.


Os negros lençóis da água,
o excremento dos corvos marinhos
fazem parte da tua agonia.

E um sabor a sémen
que sempre a maresia traz consigo.
XIX

Pudesse o corpo e o seu desassossego


acabar antes do verão
a casa, pôr sobre a mesa
o pão, no cimo do telhado alguma flor.

Encosto o rosto ao chão,


o olhar magoado não regressa,
nenhum amigo,
nenhuma voz se levanta acesa.

Aceito estar aqui — só um rumor


rente à relva,
a chuva, os seus pés friorentos,
a chuva me fará companhia.
XX

Não, não é ainda a inquieta


luz de março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascensão do trigo,

a seda duma andorinha roçando


o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;

não, nem o cheiro acidulado e bom


do corpo, depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio

da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;

não, é só um olhar.
XXI

Concentro os olhos no mais precário


lugar do teu corpo: morre-se
em agosto com as aves:
de solidão.

Neste instante sou imortal:


tenho os teus braços em redor
do corpo todo:
as areias escaldam: é meio-dia.

Do teu peito avista-se o mar


caindo a prumo:
morre-se em agosto na tua boca:
com as aves.
XXII

O que sobrou do verão, alguns


cabelos, a luz da pele, esses gritos
anunciando a migração
das andorinhas do mar, o que sobrou

não o procures na minha boca;


nunca o deserto floriu nos lábios, nunca
o silêncio, essa flor rara, foi cristal
na madrugada;

o que sobrou do verão ilumina outro céu,


caminha e caminha
sobre águas mais limpas,
não voltará tão cedo, não voltará

a estes leitos, estas palavras.


XXIII

Tocaram a terra, o céu de nuvens claras,


demoraram-se nos ramos,
abriram-se à secura,
por momentos foram constelação.

Chegavam à noite fatigadas,


mal dormiam inquietas com a morte
das águas. O ardor
das manhãs tornava-as diáfanas.

Era seu ofício acariciar a luz,


colher no ar
a forma dum fruto, duma pedra,
levá-los em segredo para casa.

Assim eram as mãos, elas próprias


não o sabiam.
XXIV

O mar. O mar novamente à minha porta.


Vi-o pela primeira vez nos olhos
de minha mãe, onda após onda,
perfeito e calmo, depois,

contra as falésias, já sem bridas.


Com ele nos braços, quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo

seu coração de vidro bater no escuro,


até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.

Este mar, que de tão longe me chama,


que levou na ressaca, além dos meus navios?
XXV

Raivosos, atiram-se contra a sombra


dumas acácias que por ali havia,
o corpo dorido de tanto desejar.
Olharam em redor, ninguém os vira,

a terra era de areia, a sombra dura,


também a carne endurecera
e secara a boca, só os olhos
tinham ainda alguma água fresca.

Os dedos cegos foram os primeiros


a rasgar, ferir, e logo os dentes
morderam, nem sequer
ao sexo deram tempo de penetrar.

Eram muito jovens; a terra não,


a terra estava exausta,
o coração mordido pelas vespas,
só queria morrer.
XXVI

Sobre a mesa a fruta arde: peras,


laranjas, maçãs, pressentem
a íntima brancura
dos dentes, o desejo represado,

o espesso vinho de vozes antigas;


arde a melancolia ao inventar
outra cidade,
outro país, outros céus onde lançar

os olhos e o riso: deita-te comigo,


trago-te do mar
a crespa luz da espuma,
nos flancos este ardor retido.
XXVII

Regressar ao corpo, entrar nele


sem receio da insurreição da carne.
Nenhuma boca é fria,
mesmo quando atravessou

o inverno. Uma boca é imortal


sobre outra boca: diamante
aceso, estrela aberta
quando a luz irrompe, invade

ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.


Despertos, puros no seu pulsar,
aí os tens: esplendorosos,
duros.
XXVIII

Não há outra maneira de te aproximar


da boca: quantos sóis, quantos mares
ardendo para que não fosses neve:
corpo

ancorado no verão: as aves marinhas


coroam-te a cabeça
no seu voo: inacabada música
liberta dos dedos:

luz entornada pelo dorso, na cintura,


mais doce sobre as nádegas:
para levar-te à boca, quantos mares
arderam, quantas naves.
XXIX

Julguei que não voltaria a falar


desse verão onde o sol se escondia
entre a nudez
dos rapazes e a água feliz.

Imagens que já não doem


— risos, corridas, a brancura dos dentes,
ou a matutina estrela
ardendo no centro da nossa carne —

chegaram com a neve, tão rara


nestas paragens,
e como pousa a poeira,
sentaram-se ao lume vagarosas.

Aí estiveram, escutando o que traz


o vento. Até anoitecer.
XXX

Queima-te a memória da noite anterior


à fala, queima-te o sal
da boca que primeiro te mordeu
antes de te beijar.

Não tens espaço para morrer


com a manhã, não tens senão um buraco
onde esconder as lágrimas,
um ramo seco para enxotar as moscas.

O ofício da alma é desaprender.


Os animais são a maravilha,
sem memória de terem sido irmãos
da estrela matutina.

Talvez já apagada ou em ruína.


XXXI

Já não me lembro, havia os gatos,


o sol no fundo do olhar,
lá para o fim da tarde
o brilho do açafrão arrefecia.

Que voz me leva assim pela mão?


Que bosque me espera ainda?
Que brusca sombra incendeia
a alma, rio escondido?

Que sabor, que maneira


a luz tem de entrar pela janela.
E que melancolia
turva, rouca, a do melro azul.

Ou não era dele esse cantar?


XXXII

À sombra, dar à sombra


o mesmo nome que dei ao lume.
Até onde me lembro
havia a crespa, alucinada

luz caindo, as laranjas do mar.


O ar não estava ainda cheio de vozes:
falar é semelhante à baba
do prazer mais triste e solitário.

Entre animal e homem, a criança,


o minotauro.
O corpo foi traído, não voltará,
não voltará a ser igual.
XXXIII

A cor daqueles dias — ajudai-me


a procurá-la, a flor das suas águas,
a estrela fraterna ainda
errando

em busca de trémulas sílabas


fluviais,
rosadas transparências,
orvalhados carmins, amanhecer

de risos infantis e trote de cavalos,


os primeiros verdes, o azul
quase de cinza,
de cinza clara na coroa dos álamos.
XXXIV

Não, não encontro o retrato.


Estavas de perfil, a luz de cinza
caía-te dos braços,
da casa próxima o fumo

subia devagar os últimos degraus


do outono, um cachorro
saltava no terreiro, não tardaria
a escurecer.

Estavas de perfil, a mão acompanhando


no regaço a rosa que te dei.
Deixa-a ficar e ser,
a mão, rosa também.
XXXV

Às vezes entra-se em casa com o outono


preso por um fio,
dorme-se então melhor,
mesmo o silêncio acabou por se calar.

Talvez pela noite fora ouça cantar o galo,


e um rapazito suba as escadas
com um cravo
e notícias de minha mãe.

Nunca fui tão amargo, digo-lhe então,


nunca à minha sombra a luz
morreu tão jovem
e tão turva.

Parece que vai nevar.


XXXVI

Março voltou, esta


ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar

de vidro vai direito ao coração.


Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos

com o monótono silabar do vento


ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor,

e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.
XXXVII

Não só as casas. Também as palavras


mostram agora a pele mordida.
Que luz é esta, que não responde,
e só ao vento

entrega o sorriso? Se cantam,


onde é que cantam? No coração
de algum amigo será o que resta do lume.
Como esperar

que dure ainda? A mais alada


fala. Docemente
afasta a noite. Enquanto a neve,
oh a neve, a neve espera.
XXXVIII

Para a brancura das aves é já tarde,


só a morte não morre deste lado do muro,
só a morte
não põe fogo às suas naves.

Por um rasgão do céu uma luz baça


escapa-se ferida,
mal ilumina a mão vacilante,
pelo chão entorna o mel.

É na orla da noite
que as veredas desatam os nós,
e uma voz de criança
suplica um fio para atar o silêncio.

Ou a palavra — lugar de esquecimento.


XXXIX

Eles voltaram, com o rumor da chuva


aquecem as mãos.
Aos lábios de pouca idade
volta o sorriso extraviado.

A verdade é que nunca soube o nome


dessa flor que nalguns olhos
abre logo de madrugada.
Agora para saber é tarde.

O que sei é que mesmo no sono


há um rumor que não dorme,
um jeito da luz pousar, um rasto
de lágrima acesa.

É sobre o meu corpo que chove.


XL

A toscana claridade
desta morte que foi sempre minha
irmã, que não declina noutros
a tarefa de ceifar a delícia

do feno (nem sempre maduro),


enquanto a calhandra sobe e alta
canta ou arde e arrebata
o que resta do dia

— rumor do sal, sabor a sul


dos limões, o longo e fino trilo
talvez de flauta — esta morte solar,
de que festa é a nostalgia?
XLI

Sobram-me os olhos, a palavra.


Resta-me a página
limpa ainda da insuportável
cantilena dos ralos.

Entre as folhas molhadas do crepúsculo


não sei onde esqueci a mão.
Talvez com a chuva
vá correndo entre as pedras,

chapinhe na lama, tropece


na névoa.
Vai-se a mão perdendo.
Cega.
XLII

Aproxima-te, põe o ouvido na minha boca,


vou dizer-te um segredo,
está um homem com a noite deitado
nas areias, separado doutro homem

por um grito, ninguém o ouve,


o sol há tanto tempo apodrecido.
Não sei se espera a manhã
para partir ou vai ficar

com os cardos nas dunas, os olhos cheios


de ignorância e de bondade,
exposto
assim à calúnia, à ventania.

Como se fora um cão, menos ainda.


XLIII

Não sabemos até onde o vício, o fútil


jogo da arte nos conduz
a mão: é no sono
que vem à tona a transparência

e as janelas abrem para o sul.


Ninguém sabe que fazer
desse saber que tanta vez parece
amar o avesso da vida: um corpo

começa a morrer mal acaba o verão,


continua com a primeira neve.
Foi outra a voz que no deserto clamou,
outra a paixão:

entre o sono e a febre.


XLIV

Detrás dessa parede ouve-se o mar.


É novembro, é novembro, vê-se
bem o seu rasto em cada sílaba.

Um homem e um cão surgem no horizonte.


Caminham no fim do dia,
caminham para o mar.
Detrás dessa parede.

Vem de tão longe esta agonia, e sempre


o mar detrás.

Novembro está aí escrito na bruma.


O homem e o cão entram na noite,

de sombra, de sombra escura.


XLV

Não há ninguém à entrada de novembro.


Vem como se não fora nada.
A porta estava aberta,
entrou quase sem pisar o chão.

Não olhou o pão, não provou o vinho.


Não desatou o nó cego do frio.
Só na luz das violetas se demora
sorrindo à criança da casa.

Essa boca, esse olhar. Essa mão


de ninguém. Vai-se embora,
tem a sua música, o seu rigor, o seu segredo.
Antes porém acaricia a terra.

Como se fora sua mãe.


XLVI

É inverno, as mãos mal podem


com os dedos,
o nome que me traz o vento são
quatro sílabas de neve.

No deserto do muro, no branco deserto


a prumo, o rasto duma lágrima
ou qualquer coisa assim
miúda e apagada.

A mão escreve sobre a terra:


não há outro lugar para morrer,
a luz
ceifada flor a flor.
XLVII

Agora a mão; que não sabe voar;


nem sequer converter
a pedra em nascente; mão
cheia de nada.

Mão do incerto, instável, inseguro;


que sabe só do deserto, da nudez
do deserto;
da casa sem paredes nem tecto.

Que não sabe sonhar; sonhar a palavra


húmida, fraterna;
que nenhum pé conhece;
a palavra.

E não esse nada.


XLVIII

Esta noite a loucura do meu ofício


privilegia os falcões;
vou morrer; à altura da boca
o mar pode ser a casa.

A manhã expulsará o sol do olhar;


fui alto para ver a neve,
para colher a transparente e verde
fragrância do ar.

Ninguém pode suportar de olhos abertos


o peso do mundo;
com a noite foram-se os cavalos;
partem para não morrer.
XLIX

As casas entram pela água,


a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,

nas janelas apenas a cintilação


juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros

perderam norte e razão


a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.
L

Estou contente, não devo nada à vida,


e a vida deve-me apenas
dez réis de mel coado.
Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia


após dia lavrou, semeou,
também colheu, e até
alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,
agora de testículos aposentados.
Um dia destes vou-me estender
debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:


pertenço à mesma raça.
CONTRA A OBSCURIDADE
A claridade coroa-se de cinza, eu sei:
é sempre a tremer que levo o sol à boca.
1

A terra de palha rasa,


a matinal
restolhada dos pardais,
o brusco branco do muro,

a luz onde as cigarras ao arder


desafiam os cardos,
o pão duro de cada dia,
a poeira onde assomam cabras,

o rasteiro coaxar
das rãs em águas apertadas,
o uivo ralo dos cães,
a marca do fogo no avesso da pele,

o descampado, os sulcos da sede.


2

Entre as folhas negras da figueira


e os erros do ofício
passa o rio.

Que rio é esse?


Passa irmanado à luz pueril
dos cereais, à magoada
voz de quem perdeu o sono.

Leva com ele, entre o roxo


da sombra e as sílabas contadas,
um verão de abelhas,
a profusão do mel.

Sigo-lhe os passos, perco-me


com ele.
3

Deixa que seja uma criança


a inclinar a tarde.
Dizem que é verão: não acredites.
O verão tem os pés iluminados pela lua,

o verão tem os nomes todos do mar,


não é o deserto
da cama aberta ao frio,
o prazer imitando a neve.

O que se vê daqui não é a dança


da claridade com o trigo,
o rio onde os cavalos bebem
a tarde a chegar ao fim.

Deixa que seja uma criança.


4

Ensina-me, ensina-me como se faz


do barro essa canção,
essa luz que vi mudada em pedra
viva nos teus olhos.

Estou a falar de mim como se não fora


estrangeiro, o espinho
indolor da neve cravado na garganta.
Já não desço à pequena praça

onde cantam os anjos: o anel


caiu à água.
Aqui, dizem, morre-se melhor: o ar
é frio, o campo raso, roxo o orvalho.

É pouco o que desejo,


e desse pouco me despeço.
5

Também, também o pulso,


também o pulso arde, e morre
a luz na pele;

arde com rumor de amêndoa


dentro do caroço,
de criança no escuro;

será por setembro, quando a água


da neve ainda não conhece
a boca dos poços;

quando a frágil alegria do olhar


quebra na sombra
o seu azul, o seu aroma.
6

O olhar desprende-se, cai de maduro.


Não sei que fazer de um olhar
que sobeja na árvore,
que fazer desse ardor

que sobra na boca,


no chão aguarda subir à nascente.
Não sei que destino é o da luz,
mas seja qual for

é o mesmo do olhar: há nele


uma poeira fraterna,
uma dor retardada, alguma sombra
fremente ainda

de calhandra assustada.
7

Estão sentados quase lado a lado


no chão à espera que passe um barco,
a luz muito quieta
no regaço

como se fora um gato, o sorriso


antigo, a casa
à beira do crepúsculo
atenta aos passos nas areias;

era outra vez abril,


chovia no jardim, já não chovia,
um aroma, apenas um aroma,
tornava espesso o ar.

Uma criança me leva rio acima.


8

Respira devagar, respira


uma vez mais
o sopro reticente do silêncio;

não oiças a mutilada voz do chão:


não é o primeiro orvalho
que chama por ti;

não abras as portas todas à lenta


e velha e turva baba
da tristeza;

respira esse rumor: nem mar nem ave,


apenas um ardor que também morre,
devagar.
9

O azul, o azul rouco, o azul


sem cor, luz gémea da sede.
Acerca deste rigor
tenho uma palavra a dizer,

uma sílaba a salvar


desta aridez, asa
ferida, o olhar arrastado
pela pedra

calcinada, húmido
ainda de ter pousado
à sombra de um nome,
o teu,

amor do mundo, amor de nada.


10

Pela luz oblíqua devia ser inverno,


um punhado de olhos procurava
nos meus
iluminados epitáfios.

Não gosto de ser olhado assim,


não tenho piedade
nem rosas, conheço os guinchos pelo voo,
venho dos lados do mar.

São vagarosas as derradeiras


luzes, também eu não tenho pressa:
não entendo essas vozes,
se me chamam não é por mim que chamam,

que não sou daqui.


CODA

Quando o ser da luz for


o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água),
então estarei em casa.
VERTENTES DO OLHAR
SOBERANIA

Voltar, recomeçar — com que palavras? Um bando de ganapos


ri, canta na esquina da rua. Gostaria de pensar que eu e essas
vozes que chafurdam na noite se ignoram até ao osso. Mas não é
assim: a vulgaridade desses sons atravessa as paredes; são,
apesar dela, uma companhia. Habito um país sem memória —
alguém sabe de lugar mais triste? É o tempo do tordo branco
emigrar. Voltemos pois ao princípio. E o princípio são meia dúzia de
palavras e uma paixão pelas coisas limpas da terra,
inexoravelmente soberanas. Essas, onde a luz se refugia,
melindrosa. Só elas abrem as portas aos sortilégios, e os sortilégios
são diurnos, mesmo quando invocam a noite, e as águas do
silêncio, e o indelével tempo sem tempo.

3.2.56
FÁBULA

Estavam ali diante dos meus olhos: era terrível e ao mesmo


tempo fascinante.
Ao princípio pensei que ele a estava a matar, logo a seguir
percebi que não, que talvez ambos estivessem a morrer, só depois
qualquer apelo distante se fez carne em mim. Então todo eu fiquei
amarrado aos seus gestos, àquela respiração fatigada e difícil,
àquele balbucio que lhes saía ralo da boca.
Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do
carpinteiro perdia-se nos seus cabelos emaranhados, a outra
parecia ter-se enterrado na areia. O resto era aquele corpo todo de
homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força de concentrar
todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se
cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo
ofegante — os olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos
cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos, pelas pernas,
quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco
de agosto. Mas a terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu
o leito do ribeiro, morreu no alto dos amieiros. Por fim, a paz desceu
ao mundo.
Maria olhava o carpinteiro com olhos rasos de espanto, como
quem tivesse perdido tudo naquele instante. Lentamente passou-lhe
a mão pelo cabelo, numa carícia tímida, e começou a chorar. O
carpinteiro olhou-a também, mas os seus olhos eram diferentes,
eram os olhos da própria solidão.
Sem uma palavra, o homem ergueu-se e começou a mijar. A
rapariga levantou-se a seguir e, de costas, parecia limpar as pernas.
Eu escondi-me melhor atrás dos amieiros, não vi mais nada. Senti
os passos de ambos afastarem-se, cada um para seu lado, com o
coração apertado. De um salto, atirei-me à cama que os seus
corpos haviam feito na areia, respirando avidamente, como se o ar
pudesse trazer-me mais do que o cheiro morno e acidulado da
urina, e deixei de perceber os passos já distanciados, o estalar de
ramos secos aqui e ali, para só ouvir o silêncio. O doloroso,
insuportável silêncio.

1946
ENTRE O PRIMEIRO
E O ÚLTIMO CREPÚSCULO

Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da


luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não
pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último,
sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia
carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não
lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar.

20.11.85
CASA NO SOL

A casa é branca, branca de cal (que de todos os brancos é o


único que é branco), debruada de azul, por ser à beira-mar a cor da
alegria. Branca e fechada — não vá o sol que arde nos telhados
penetrar insidiosamente por alguma fresta e incendiar o silêncio
melindroso da alcova. A obscuridade quase não consente a
contemplação do rosto infantil que ali dorme até o sol ter amansado.
Só então desperta e se refugia nos braços que já o esperam.
Por esse rapazito serias capaz de correr o mundo a pé-coxinho,
se ele to pedisse, ou entrar pelo buraco da fechadura só para o
veres dormir.

31.12.85
ASSIM É A POESIA

Não sei onde acordei, a luz perde-se ao fundo do corredor,


longo, longo, com quartos dos dois lados, um deles é o teu, demoro
muito, muito a chegar lá, os meus passos são de menino, mas os
teus olhos esperam-me, com tanto amor, tanto, que corres ao meu
encontro com medo que tropece no ar — ó musicalíssima.

28.11.85
VELHA MÚSICA

Corriam pelas ruas, era frequente um grito subir no céu, parecia


então um milhafre a pairar, depois apagava-se, quase triste. Corriam
ao encontro do vento, ficavam com febre de tanto o perseguirem ou
dobrarem pela cintura. Apenas com as derradeiras luzes entram em
casa, deitam então a cabeça no regaço das mães, fulminados pelo
sono. Até a manhã entrar, não se sabe bem por onde, elas não
despregam os olhos daquelas pálpebras pesadas. Só então os
confiam à luz.

Janeiro, 1985
INFÂNCIA

Saio de casa para ver os estorninhos; não têm conta a esta hora
da tarde, em revoadas sucessivas sobre as árvores. Quando a noite
cai já estou de volta, o olhar atravessado por rápidos fulgores. A luz
é tudo o que trago comigo, porque também eu tenho medo do
escuro.

25.4.85
A SEREIA DO BÁLTICO

Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato.


Tenho nove anos e vivo no Rossio. Vou amachucando
cuidadosamente uma folha de jornal até fazer dela uma bola, passo-
lhe à roda um cordel, dou-lhe três ou quatro voltas apertadas, e
acabo por deixar uma longa ponta de quase dois metros. É com
esta arma no bolso que saio à rua, e raro é o dia em que não
regresso com um gato. Não é difícil: atiro a bola ao primeiro bicho
que descubro e vou puxando o fio. Nenhum resiste — o gato pula,
corre atrás da bola, nunca mais pára, até que chegamos a casa;
então, aos mais pequenos, é preciso ajudá-los nas escadas.
Às vezes, minha mãe dá-lhes um pouco de leite, e leva-os
depois; outras, se está mal disposta, obriga-me a ir pô-los onde os
encontrei. Não sei como o Bibi escapou. Teria a mãe sido cativada
pela sua beleza — era um pequeno tigre de grandes olhos cor de
bronze — ou pensaria que, se eu tivesse um gato, perderia aquela
mania de trazer para casa todo o maltrapilho? Não sei, a verdade é
que foi ficando, e se a relação dele com a mãe nos primeiros
tempos não foi feliz, comigo poderia falar-se em idílio: era eu que
lhe dava de comer, dormia aos meus pés, conhecia o meu toque de
campainha e, embora tivesse garras e dentes bem afiados, nunca
ninguém me viu mordido ou arranhado. Cresceu muito, e era
elegante de seu natural, a cabeça levantada, atenta, como se
escutasse qualquer rumor distante. E não sei de quem melhor
soubesse administrar o silêncio.
É preciso dizer que o bicho chegara a casa com maus hábitos. A
mãe pusera-lhe um caixote com serradura a um canto da casa de
banho para as suas necessidades, mas ele preferia fazê-las na
banheira e até no lavatório, justamente sobre o ralo. Quando ouvia a
mãe dizer: «Raios partam o gato!», já sabia o que, mais uma vez,
acontecera. Procurava-o a seguir no meu quarto (já disse, creio eu,
que o Bibi passava o tempo deitado na minha cama), e levava-o à
força com ela. Entre injúrias e palmadas, ouvia o gato bufar e miar,
até conseguir escapar-se e meter-se debaixo da cama, depois de
alguma arranhadela, pois o castigo humilhava-o: a mãe esfregava-
lhe invariavelmente o focinho na porcaria que ele depusera, talvez
como oferenda, na banheira ou no lavatório. Depois aproximava-se
de mim, fazia-me queixa: «Se não gostasses tanto dele, já teria tido
o destino dos outros». Eu olhava-lhe a mão arranhada, pegava nela,
fazia-lhe uma festa. «Ele também é louco por ti, mas é um
porcalhão», insistia. Faço-lhe outra festa, ela sorri, depois vai à sua
vida. Era a minha vez de procurar o Bibi, que se encontrava ainda
debaixo da cama: «Vem cá, meu porcalhãozito, ela já se foi embora,
já não te bate mais. Anda aqui, minha sereia do Báltico: não há
maneira de teres juízo, dá cá a pata». Demorava um pouco a sair,
mas depois lá vinha, acabando por dar uma turrinha na mão que o
procurava no escuro, consentia que o pusesse no colo, lhe fizesse
alguns mimos. Não tardava a correr atrás de mim, por aquele
corredor que nunca mais acabava, nunca mais acabava.

1988
INTERMINAVELMENTE

Entre as quatro paredes da memória acodem ao pátio os fulvos


relinchos das éguas — ó manhã manhã, interminavelmente no meu
sangue.
Poucas, muito poucas, quase nenhumas palavras são
necessárias para trazer esse aroma — os lábios incendeiam-se, era
um rapaz que se despia, agonia breve.
Depois o sol era como se nascesse ali — não voltaremos a falar
em deserto a propósito do corpo.

6.6.85
CONFIANÇA

O que do fundo de alguns olhos vem tão azul à superfície


destina-se a transformar o que em nós é apetência de morte no
mais limpo e matinal voo de cotovia.

6.1.86
PEDRAS

A pele rugosa da sua mão ainda a sinto na minha. Era pedreiro,


como eu — haverá nome mais exacto para o meu ofício? O velho
não suspeitava que seria um dia como ele: paciente, afável,
sonhador, trabalhando de sol a sol. Apenas com menos talento.
Também os materiais fazem alguma diferença — as palavras, da
pedra não guardam o peso, herdam apenas a cor. As minhas, têm
às vezes a brancura lisa dos seixos, mas outras, a noite parecia ter
nelas encontrado refúgio. São as mais secretas, com elas poderia
fazer-se uma coroa de relâmpagos. No entanto, eu prefiro aquelas
com que se disfarça a ternura, tenuemente veladas pela luz do
crepúsculo, com raros brilhos ocasionais. Exactamente o que o
velho pedia à pedra.

14.4.85
TERREIRO DE S. VICENTE

Quando cheguei ao terraço e avistei o Tejo, apeteceu-me ficar ali


até me tornar de pedra. A luz descia dos telhados para subir aos
mastros, e longamente o ar tremia ao tocar a água. Um gatarrão
espreguiçava-se na sombra rosada das tijoleiras, foi-se
aproximando, os olhos reduzidos a duas fendas. Deixa-se acariciar,
condescendente: é de uma brancura voluptuosa. De repente, os
sinos da igreja de S. Vicente — bão-bão-bão, badalão — caem-me
em cima e, assustados, os pardais levantam voo das árvores quase
encostadas ao muro do terreiro. Vede como tudo é azul: azul riscado
de pássaros.

19.8.85
CURTA-METRAGEM

Ao lume, as imagens acorrem sem esforço: trata-se de tornar


real um gato, um gato que me entrou pelo sono. É inverno, veio com
a chuva. Aproximou-se do fogo sem sequer olhar para mim, sacudiu
algumas gotas de água e enroscou-se na tijoleira quente, tendo
caído no sono como pedra no poço. Contemplava aquele novelo
desluzido e fremente com inveja — adormecera tão facilmente!
Também ele sonha, e no seu sonho há um dia de sol, e pardais na
eira, e medas de palha. Espreguiçava-se, o corpo em arco sobre as
patas todas. É preto, pintado por Manet. Devia ficar com ele, os
gatos pretos dão sorte, embora sejam ariscos. Não lhe tirava os
olhos de cima, começava a considerá-lo uma companhia. Ocasional,
leve, descomprometida. Afloração da pele mais do que enredos do
espírito. De repente, aquele pequeno companheiro de algumas
horas estremeceu, saltou sobre um pardalito que se lhe escapa de
entre as patas, corre atrás dele, não pára de correr, regressa à
chuva. E eu, ao lume.

23.11.85
HISTÓRIA DO SUL

Anoiteceu, recordo-me, era um cão pequeno e branco, numa


cidade do sul, com limoeiros ainda e o frémito da sombra ao fundo
dos pátios. Um cão, há muitos anos, via-o aproximar-se de longe,
certamente tinha um destino, magro destino de cão, já se sabe,
contudo destino. Na noite deserta, um osso na boca, ele ia à sua
vida, talvez uma cadela o esperasse num daqueles vícolos que
desaguavam nas trevas do porto, mas também ele me viu, não era
difícil, na rua deserta só eu aguardava, e quase alvoroçado
aproximou-se, parou na minha frente, deitou fora o osso, ergueu-se
nas patas traseiras e os olhos diziam que, a partir de então, osso,
cadela, destino, tudo isso era eu. Inclinei-me para uma festa, disse-
lhe também da minha ternura, daquela ferida breve acabada de
abrir, mas o meu destino era ainda mais precário, mal chegara não
tardaria a partir, só quase o tempo de respirar a cal da sombra. Dei
alguns passos, sabia que me seguia, parei, parou, voltei a caminhar,
voltou a seguir-me, de novo o acariciei, ali estavam aqueles olhos
molhados, eram por assim dizer os olhos de minha mãe, outra vez
lhe falei, lhe pedi perdão por não poder levá-lo, por não poder ficar,
viajar com amigos não era andar pelo mundo de sacola ao ombro,
devia compreender. Não, ele não compreendia, não podia mesmo
entender razões assim, a terra era o que havia de mais deserto, do
amor não ficava senão um pequeno fio de sangue, menos ainda, a
baba da lesma na relva, e de repente uma campainha retiniu,
ficámos rodeados de gente, o deserto aumentou, ele continuava na
minha frente, aqueles olhos onde subiam as águas mais fundas,
como esquecê-los? Os amigos ali estavam, deram-se logo conta, os
inteligentes, daquele enleio, deram também razões, o cãozito tinha
certamente dono, via-se bem que não era vadio embora lhe faltasse
raça, quisesse eu não faltariam cães, por toda a parte havia
milhares bem mais bonitos, e depois, as fronteiras, tanto trabalho
por um cão vulgaríssimo, como vês não entendem, nenhum deles
viu nos teus olhos a raiz do orvalho, entraram no carro, fiz-lhe ainda
uma festa, da janela de trás via-o no espaço que o automóvel
deixara, farejava o chão inquieto, depois levantou a cabeça
desorientado, não percebia como um sopro me levara, impossível
amor, meu filho, passarei o resto da vida a embalar-te, as pessoas
continuavam a dispersar, as últimas luzes do cinema apagavam-se,
a rua escureceu, não tardaria a ficar deserta.

1976
MORANDI: UM EXEMPLO

Anoitecera. Eu falava de Morandi como exemplo de uma arte


poética que, apesar da desmaterialização dos objectos e da aura de
silêncio que os imobilizava na sua pureza, não se desvincula nunca
da realidade mais comum e fremente, quando alguém me
interrompeu: — Eu conheci-o, era intratável, vivia em Bolonha com
duas irmãs, quase só saía de casa para ir às putas. — Está bem,
volvi eu, se ele precisava disso para depois pintar como Vermeer e
Chardin, abençoadas sejam todas as putas do céu e da terra. Ámen.

21.11.84
AINDA SOBRE A PUREZA

Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é


melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo de morte é o mais
perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e
incendiar a cidade.

25.11.85
DA POESIA JAPONESA

Esses caminhos que nos poetas japoneses conduzem ao


crepúsculo, em mim levam sempre às dunas. Naturalmente,
também nas dunas se pode surpreender o primeiro crepúsculo, mas
quando eu chego a manhã é já um rapaz atirando pedras aos
corvos marinhos, a não ser que sejam as nuvens o seu alvo —
andam tão baixas, hoje. Demoro-me às vezes a olhá-lo, mas ele não
me vê, está de costas e não tardará a correr para as ondas. Quando
regressa é impossível separá-lo da luz, água e sol disputam-lhe o
corpo em cintilações muito rápidas. É então que tropeça nos meus
olhos e sorri. Para este sorriso inesperado também o oriente vem
em meu auxílio com duas ou três sílabas à beira do silêncio.

Janeiro, 1985
IN MEMORIAM

O Schubert morreu a noite passada. Vai fazer-me falta, todas as


manhãs acordava com ele a cantar. Era fabuloso: cantava com o
corpo todo. Assim devia ser o poeta, pensava eu às vezes, farto de
tanto discurso onde apenas o espírito assomava. Mas entre homens
e pássaros há, pelo menos, esta diferença: um pássaro quando
canta desce vertiginosamente à raiz; o homem, esse é muito raro
que o ardor das vogais lhe queime a cintura. Eis porque me comove
tanto a sua morte. Fiquem estas linhas a recordar o mestre.

Janeiro, 1985
SOUVENIR AFRICAIN

O gato aproximou-se, escutando também ele o silêncio hirto das


palmeiras, que são no horizonte a primeira coisa verdadeira que nos
assoma aos olhos, mesmo antes de haver o que possa chamar-se
claridade. O casario afogado no escuro respira anónimo e reles, a
face encardida, a fenda estreita da boca por onde dificilmente
passará a luz, que de súbito rompeu no terraço e não tardará a
escaldar. Depois o sol acalma, e lá para o fim da tarde uma sombra
mole escorre do muro para o cimento aquecido. É então que o gato
se transforma em cadela, arrastando-se até aos nossos pés,
deitando-se de costas, o ventre carnudo ávido do prazer profundo
que lhe oferece por fim a mão.

5.6.85
O RAPAZITO DE YORK

Escuta, vou falar-te do rapazito que o Álvaro de Campos tanto


julgou amar. Era inglês, naturalmente, e tinha dezasseis ou
dezassete anos quando o encontrou em Londres, numas férias do
último ano de Glasgow. Frederik era o quinto filho de um pastor de
almas de York, estudava arte dramática, e levava uma vida que não
se poderia dizer fácil, pois a mesada do pai, quando havia
necessidade de meias-solas nos sapatos, obrigava a apertar o cinto.
Álvaro, sentindo que o rapaz estava em apuros, convidava-o
frequentemente para jantar. Mas não era apenas essa a razão.
Como dispunham de tempo, passavam algumas tardes
estendidos na relva de Hampstead, mas não iam além de algumas
carícias, com receio de serem surpreendidos. Freddie falava do feno
e dos potros de Yorkshire como se neles começasse o paraíso, e o
outro ia-lhe revelando alguns segredos dos versos de Shakespeare
e de Walt Whitman; um dia falou-lhe mesmo de uns assomos de
sensualidade que, nos sombrios corredores do liceu, havia sentido
por uma espécie de rapariga, antes de ir para Glasgow; mas amar
alguém assim era a primeira vez que lhe acontecia, acabou por
dizer numa voz escura, quase espessa, que não era a sua. Ao
despedir-se, Freddie pediu-lhe que passasse pelo seu quarto na
manhã seguinte. Apesar da casa estar deserta a essas horas, o
medo quase impedia que o amor lhe baixasse ao corpo. Foi numa
dessas manhãs, quando o rapazito começou a recitar Shall I
compare thee to a summer’s day? / Thou art more lovely and more
temperate..., que o Álvaro lhe mostrou como deveriam ler-se versos
de Shakespeare, ou de quem quer que fossem: com a naturalidade
que tem o correr da água e o ritmo da fala. Isso Frederick nunca
mais o esqueceria.
Não me perguntes como soube eu tudo isto, seria muito
indiscreto da tua parte.

19.5.85
ESSA FOLHA

Essa folha, aí. Tão branca que nem a neve é assim fria.
Aproximo os dedos numa espécie de carícia, tentando atenuar, diluir
tanta hostilidade, mas logo recuam tocados pelo medo. É tão difícil.
Porque essa brancura queima, arde silenciosa num fogo que
ninguém vê. Durante muito tempo só os olhos a procuram, a
contemplam. Imóveis, sem afrouxarem de intensidade. Ouvem-se
quase os latidos do pulso. De súbito, os dedos distendem-se,
saltam; no seu movimento de falcão já não acariciam, antes rasgam,
dilaceram, perseguem a presa numa luta onde não há tréguas, vão
deixando na neve sinais da sua presença, ora triunfante ora aflita,
por vezes quase morta.

3.12.85
ARIOSO

Apesar do céu de chumbo, não há razão para não abrir as


pálpebras, abandonar o calor uterino da palha, acender o lume e
preparar a casa para os dias de sol, que não podem tardar. O
ciclâmen há muito que está em flor, embora ninguém tenha ainda
ouvido cantar o cuco. Quando demoro os olhos naquelas pétalas,
prestes a voar, penso que mereciam ser postas num poema. Mas a
poesia é o inferno, e bem sabemos como são estreitas as suas
portas. Hoje dará abrigo a um adolescente que a chuva trouxe, de
crina fulva e esses olhos de animal de outra estrela, onde em
surdina canta o deserto. Com ele, finalmente, o sol faz a sua
aparição.

15.2.86
PORTO

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-


me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro
fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a
insurreição do olhar.
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos
velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias
no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças
de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo
metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais
da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito
que se afastem, regressam sempre à minha vida.
Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da
juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse
aqui, por ser de cal.

1979
COM OS OLHOS

Talvez um dia. Talvez um dia alcancemos essa voz, já sem o


peso da luz sobre os ombros. Os olhos chegarão então ao fim da
sua tarefa; os olhos, instrumentos felizes da realidade mais real.
Porque ver sempre foi tocar. Tocar uma a uma cada coisa com os
olhos, antes da mão se aproximar para recolher os últimos brilhos
de setembro. Vede como se afasta com fulva lentidão de tigre.

4.12.85
AS MÃES

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram


o verão todo a transformar a luz em canto — não sei de destino
mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas
mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes
tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as
veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão
em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras
ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas
são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto
ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha,
se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a
ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira
estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem
imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se
participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a
rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela
obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos
muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns
carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras
que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e
quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas
pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao
calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as
sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas
mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço,
anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os
olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas.
Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas,
quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o
primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes
ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco
ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de
garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como
encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém
que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas
rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que
plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela,
regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com
o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona
para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente,
mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é
pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e
vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos
enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas
ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas
feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no
aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as
traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito
montês — e que só ela vê, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua
ressurreição.

17.8.85
CONTO DE INVERNO

Esse olhar mozartiano sobre as coisas sempre foi o teu; até


quando te perdes em nevoeiros regressas com uma flor azul
semelhante às da nossa infância. Há em ti um segredo, ou antes,
uma harmonia: de noite és companheiro do vento, de dia o sol é no
teu peito que se faz materno.

30.11.85
GLOSA

Não sei de onde veio; há muitos anos que a tenho na minha


frente, sobre a mesa de trabalho. É uma paisagem escocesa do rio
Coe, no condado de Argyll, com montes azulados ao fundo, a água
pouca no leito pedregoso, pois é verão. A margem direita é quase
uma muralha, e entre as pedras cortantes, onde cresce a grama rija,
é aí que se encontra, de braços erguidos, uma árvore carregada de
frutos vermelhos. Talvez sejam maçãs, e aquela árvore, como minha
mãe dizia, só pode estar ali pela graça de deus, quero dizer, pela
suprema graça da poesia. Esta paisagem deserta mas não triste,
dura sem ser agressiva, grave mas não isenta de encanto, há muito
tempo que me chama. Aquele cotovelo de rio, com a macieira a
vergar de tão carregada, é um dos lugares de que tenho mais
nostalgia, como se ali tivera chegado numa tarde de agosto, e me
tivesse descalçado, e metido os pés na água, e houvesse esquecido
as horas, até que a sombra caiu sobre a relva, e de repente ouviu-
se distante um som de esquilas, sem contudo se avistar rebanho
nem pastor. E o sonho é o resto.

15.3.86
M.

Todos os dias as suas águas pequenas afloram os meus olhos. E


eles, que morriam de inanidade, ganham então súbitos brilhos,
abrindo respiradouros para a vida. A pureza, quando não é um olhar
infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis. Raramente se
alcança, e quando isso acontece já os nossos olhos estão secos —
como poderá tão melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas
águas, por mais exíguas, me são tão preciosas.

Páscoa, 1985
BORGES E OS TIGRES

Via-o avançar sem medo nenhum, sabia que a floresta de


sombra por onde caminhava ao meu encontro era a dos versos de
Blake, e os olhos calmos, onde o tigre demorava o ardor dos seus,
eram os meus, multiplicados por não sei que espelhos. Jantara com
Borges e adormecera tarde, com essa voz cava, a que a cegueira
aumentava a fundura, dentro de mim — Tiger, tiger, burning bright /
In the forests of the night... — e acordara com a cantilena do
muezim a chamar para a primeira oração. De manhã, perguntou-me:
— Ouviu o muezim? — Ouvi, mas foi pena ter-me interrompido a
contemplação do tigre. — Curioso: também eu sonhei com ele,
esperava-me às portas do deserto; desde o tigre da alquimia
chinesa e das lendas budistas ao do seu sonho, sempre ali esteve,
de olhos frios. Não respondi, sem coragem para lhe dizer que não
era o mesmo, que no mundo havia, pelo menos, dois tigres: o meu
tinha grandes olhos claros, e ardiam.

2.3.56
HARMONIA DO MUNDO

Canta no quintal do vizinho, o galo.


Tu e ele fazem parte da mesma harmonia, são irmãos nessa
fome de viver. A vida tem uma só expressão, essa onde o galo
canta, essa onde tu o escutas comovido, sabendo que a noite não o
pode conter.
É este comércio subtil de lábios e fontes, este coral de sapos e
ralos, que não pode morrer, mesmo que um dia o galo deixe de
cantar, ou tu de o ouvir, meu querido Horácio.

9.1.86
BOULEVARD DELESSERT

Quando vivia em Paris, certa manhã fui despertado por três ou


quatro pombos a bicar a vidraça da janela. Fui abrir, e um deles
mais afoito entrava para o meu quarto, enquanto eu ia à cozinha
procurar qualquer coisa para lhe dar. Enchi uma tigela de arroz, na
esperança de o encontrar, embora não tivesse fechado a janela. Lá
estava ainda, para minha alegria. Experimentei dar-lhe os grãos na
mão, aceitou, e a sua confiança tornou-me também confiante.
Quando saí, dei os bons dias à porteira com voz clara e fiz uma
festa nos cabelos a um garoto vesgo e feio, que podia ser filho do
Sartre, mas que seria neto dela, ou afilhado, já não me lembro.
Regressei a casa, depois de comprar milho, pensando no meu
visitante matinal. O meu pombo voltou, e durante uma semana
vivemos um pequeno idílio feito de trocas simples: eu dava-lhe a
mão-cheia de milho, ele deixava-me o excremento no peitoril da
janela — não era nada do outro mundo, mas a dona da casa não
gostava. Achava aquela relação anormal (talvez preferisse ser ela a
receber o milho, matinalmente), e não deixou de mo fazer sentir.
Nessa mesma noite deve ter acendido uma vela a Santo António, de
que era devota, e pedido com fervor a sua intervenção, porque na
manhã seguinte o pombo não apareceu. Nem em nenhuma outra
das que se lhe seguiram.
Não voltei a Paris, cidade que detesto.

29.12.85
PRAÇA DA ALEGRIA

Cheira bem: a café fresco, ou antes, a café misturado com o


cheiro das violetas que o pequeno vendedor pusera em cima da
minha mesa, insistindo para que lhe comprasse um ramo. A quem o
daria? Disse-lhe isto mesmo: que vivia no Porto como quem vive na
ilha do Corvo, não tinha ninguém a quem dar uma flor. O rapazito,
com olhos escuros de potro manso, percebendo que a minha recusa
era débil, não arredava pé. Acabei por comprar-lhe as violetas e
oferecê-las à lua, acabada de surgir no canto da praça, branca,
redonda, carnuda, que, apesar de puta velha, ao aceitá-las, se pôs
da cor das cerejas.

7.1.86
A BELEZA

Chovera. Que sorte ter nos meus olhos essa melancólica praça
quase deserta, os oiros glaucos de Bellini espalhados pelas lajes
molhadas e os verdes todos, do esmeralda ao musgo, escurecidos
pela noite que se avista já de algumas mansardas. Porque a beleza,
ou é esta entrega a quem de súbito a descobre, ou se esconde,
cruel, a quem faz da sua procura uma perseguição de carniceiro.

31.12.85
OUTROS DIAS

No inverno a casa metia água, era de madeira sobre a duna —


não admira que de noite tivesse frio, e que as sonatas de Scriabine
não chegassem a aquecê-lo. Começou a beber, mas depressa
descobriu que nada aquecia melhor um corpo do que outro corpo.
Como era jovem, e senhor de um espírito solar, não teve dificuldade
em arranjar quem lhe frequentasse a cama: os pescadores nesse
aspecto são de poucos escrúpulos, devem ter herdado das vagas a
ondulação, deitam-se seja com quem for, mulher ou homem, tanto
monta. Se Virgílio tivesse falado dele teria dito: O frio abandonou-lhe
então os ossos. Para sempre.

2.2.86
OS JACARANDÁS

Em meados de junho os jacarandás de Lisboa estão em flor, a


sua luz fende a pupila, acaricia o dorso da sombra. É então que —
sei lá se pela última vez — a inocência volta a entrar na minha vida.
Olhos, mãos, alma, tudo é novo — recomeço a prodigalizar alegria,
uma alegria que não procura palavras porque o seu reino não é o da
expressão. Digamos que esta nova experiência, a que não quero
dar nome, não se preocupa em interrogar, talvez por já não ser
tempo de dúvidas, ou então por não lhe dizerem respeito essas
verdades últimas, cegas como facas.

Não é um poema de obediência o que me proponho nestas


linhas; trata-se doutra coisa: levar à boca fresca do ar o ardor das
areias queimadas. Mas sem palavras, sem palavras.

24.6.85
OUTRO EXEMPLO: VISCONTI

Trabalhava como um doido, ocultando o seu sofrimento. A


doença humilha, agora era duma cadeira de rodas que dirigia os
actores, alterava a decoração, discutia as luzes. Trabalha para não
morrer, dizem os amigos. Horas e horas para escolher o tom de um
cortinado, a maneira de erguer um véu à altura da boca, a cor das
maçãs no linho baço da toalha, com esse amor à realidade que só
conhece quem a sabe tão fugidia. Abandonada a câmara, era ainda
no trabalho que pensava ao ler duas ou três páginas de Proust, de
Stendhal. Apagara a luz, depois de ter ordenado que retirassem as
flores do quarto, o aroma das gardénias começava a enjoá-lo. Mas o
sono demorava. Tinha a cabeça cheia de imagens, sobretudo de
sua mãe, surgindo no meio de uns versos de Auden, que fizera seus
nos últimos tempos: When you see a fair form chase it / And if
possible embrace it / Be it a girl or a boy... Adormecia tarde e era o
primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem.
Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto
de Tullio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos
francamente iluminadas. Porque é nas mãos... Não, não, as mãos
são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo o amor;
mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo
que principiava. Ali estava ela, tomando conta de si. Via-a crescer a
cada instante, essa cadela. De súbito tornara-se real, os dentes
afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano.

6.5.85
MELUSINA

Não erres pela sombra, tens já parte do rosto virado para a luz e
as pernas movem-se nessa direcção. Mesmo o sorriso acabou por
reaparecer. Agora vou chamar-te pelo teu nome antigo: Melusina,
Melusina, estás a ouvir-me? Aproxima-te, não regresses à treva, os
pêssegos já estão maduros, podemos apanhar uma abada e
escondermo-nos no celeiro a comê-los, ou ao fundo do pátio sobre a
palha. Não voltes a vestir-te de luto, já não temos mais ninguém
para morrer, entre abril e setembro demasiadamente se morreu
sobre a terra, é tempo de olhares as tuas mãos, vê como são
inocentes, ou essas flores a que chamavas rapazinhos, tão
abandonadas, elas também.

14.2.86
AS GAIVOTAS

Nenhuma palavra acorre hoje para me ajudar a carregar com o


dia. Contemplo longamente (ver é agora a minha única paixão) a
ave que desenhaste no meu caderno, ferida em pleno voo — quem
terá forças para impedi-la de morrer? Outras gaivotas passam
quase rente à janela, vai chover. Troco este céu impassível pelas
dunas de Fão, agora só na memória. Também aí as gaivotas
anunciavam que a luz mudara de direcção, e algumas
aproximavam-se tanto do meu rosto que eu chegava a recear que
me bicassem os olhos. Elas vêm e vão, o céu está agora mais claro,
já não as vejo. Talvez não caia mais que um dedalzinho de água, ou
nem isso sequer.

28.2.86
MELANCOLIA

Era um verão vagaroso, só lá para o fim algumas folhas caíram


nos canteiros. Eram escarlates, sobre o muro.
Não vou falar dos íbis brancos, que não são destes lugares.
Quando os avistei pela primeira vez, a caminho de Meknés,
compreendi por que eram sagrados. Agora lembro-me deles por
analogia: ao longe um pequeno bando de garotos nus corre para o
mar. Mas há quem não corra por nunca ter sido jovem, há quem
tenha vergonha de ter um corpo e se não dispa à sombra dos
tamarindos, como outros se envergonham da mais leve hemorragia
da alma.
Era um jardim deserto, desses de areia. Havia aquelas folhas.
Escarlates, como já disse. Talvez de vinha-virgem.

30.4.85
AOS INIMIGOS

Falta ainda trazer a estas páginas, nem que seja obliquamente,


esses que engordam com o ódio. Vêm ao anoitecer, no rasto lento
da melancolia, a enxúndia a reluzir de satisfação. Alguns amaram-
me tanto quando eram jovens que seria mesquinho negar-lhes
agora um copo de vinho ou um lugar ao lume para aquecerem as
mãos. Novembro já chegou, e o frio desculpa de certo modo a
promiscuidade.

20.3.86
A FLAUTA

Era uma cidade ao sul. O que primeiro surpreendia era o seu


cheiro a cavalos. Um cheiro bom, que não tardava a misturar-se
com outros mais leves a barro, a sol, a hortelã. As ruas
desembocavam todas na praça, uma praça do tamanho do mundo.
A vida ali fervia, sobretudo quando a tarde começava a minguar.
Feira, mercado, bazar, a praça era tudo isso. Aqui vendia-se tudo,
desde o pão doirado aos deliciosos cachimbos de haxixe; e romãs,
pulseiras, caixas esmaltadas, peles curtidas, cintos entrançados,
aves, túnicas, sorrisos, ervas medicinais, colares de âmbar,
tâmaras, corpos tisnados, tudo aqui se vendia, sem pudor nem
impudor, com aquela naturalidade que só os pobres muito pobres
têm. Mas para quem chegava doutras terras, os olhos eram mais
atraídos para o circo que a praça também era: encantadores de
serpentes, contadores de histórias, prestidigitadores, equilibristas,
macacos amestrados; ou então para o olhar dos rapazes, que nos
fixavam sem tréguas, tentando surpreender o dealbar do desejo. Por
tudo isto, aquela cidade às portas do deserto, onde a luz explodia
mais intensa na magreza dos corpos, tinha naquele lugar a sua
alma. — Monsieur, mon ami, si vous êtes pressé vous êtes déjà
mort, diziam os moços quase ao nosso ouvido. — Cinco dirhams,
por cinco dirhams estou ao seu dispor. Era difícil fugir-lhes, tal a
persistência, e mal um desistia, logo outro se aproximava: — Mon
ami, apenas cinco... Não, não, dizia eu, não queria ver o mercado
berbere, não queria ver o kasbah, só queria mergulhar inteiro
naquela ondulação de gestos e de vozes, perder-me naquele ardor
que não sabia bem se subia da terra seca e rasa e poeirenta ou
descia de um céu implacavelmente sem nuvens. E inclinava-me
para um cesto de pequenas flautas. Pego numa de bambu,
experimento de maneira torpe levantar algumas notas. Com
delicadeza, o jovem vendedor pega-me na mão, tira-me a flauta,
leva-a à boca fitando-me nos olhos à semelhança dos encantadores
de serpentes, e toda a água negra das suas pupilas se derramava
nas minhas enquanto ia tocando. — Como te chamas? — Ben Azzi
Mohamed. — Quanto custa a flauta? — Dez dirhams, mas para ti
são só cinco. — Obrigado, dou-te dez. — Não queres vir tomar chá
a minha casa? — Não, obrigado, só quero a flauta.
Era uma cidade ao sul, de palmeiras altas e muros ocres quase
rosados. Dela resta apenas uma pequena flauta. Está agora ao lado
dos livros, na mesa baixa da sala. E há um enorme silêncio à sua
roda.

1984
PARA ONDE?

Apesar da luz ter já começado a roer-me os olhos, não é ainda


tempo para me entregar a coleccionar caixinhas de rapé ou luzes
crepusculares, nem para fazer coro com essa gente do norte que
recebe o nevoeiro em casa e o convida, pelo menos uma vez por
semana, para jantar.
Desde a vulva inicial, o homem é só caminho. Para onde? Eis o
que não sabemos. Mas será caso para perguntar?

14.1.86
SE O VENTO VIER

De repente, sem saber por onde entrara, eu tinha a lua comigo.


Não era a primeira vez, não, não era. A primeira vez havia sido há
muitos anos: adormecera na eira sobre o feno, e quando acordei a
lua estava a meu lado e fizera da noite um interminável e azul lago
de prata. Eu flutuava no luar espesso, pesava menos que uma folha
de papel. Todo o esforço que fazia era para não me desprender do
solo, como se a acção da gravidade não me dissesse respeito, e
flutuar no espaço fosse a minha vocação. Se o vento vier, não tenho
mais remédio que abandonar-me e ver até onde me levam os seus
espíritos.

28.12.85
HIPÓTESE DE TRABALHO

No largo da igreja as pombas procuram com afinco, entre as


lajes, os olhos de deus. Creio que isso é ainda mais difícil de
encontrar do que a baleia branca — ao fim e ao cabo, o capitão
Ahab sempre acabou por medir-se com Moby Dick; quanto às
pombas, como deus não passa de uma hipótese de trabalho, o mais
certo é que tenham de contentar-se com a trampa de algum verme.
— Está enganado, dizem-me imediatamente sobre o ombro, até
mesmo no mais ínfimo grão de poeira se encontrará a presença de
deus. Se assim for, não há saída: as pobres, por mais que biquem
entre as pedras, estão condenadas ao infindável vazio do seu olhar.

21.11.85
APELO

De vez em quando paramos de crescer. É da chuva, do frio,


desta humidade a que estão sujeitos no norte ossos e barcos,
árvores e pedras. É então grande a tentação da pocilga. Como se o
fecundo calor do porco fosse uma promessa, um apelo, às nossas
trevas, do sol escondido na palha apodrecida.

1.12.85
ÚLTIMO EXEMPLO:
CARLOS DE OLIVEIRA

Os rumores vinham de costas, a rua entrava pela casa, apesar


de tão alta. Desviava então a vista fatigada do papel, a palavra
exacta era lenta a chegar, quando chegava. O trabalho de horas
acabara por reduzir-se a três ou quatro linhas, ainda por cima
Cesário insinuara-se no seu apuro. Aproximou-se da janela, a luz
era ainda amarga naquele fim de março. O rio lá ao fundo ia frio,
apesar disso as águas chamavam-no. É a música inominável da
poesia, pensou, um dia terei de responder àquele apelo. Voltou ao
papel, não podia perder o resto da manhã. O que se expõe na
palavra é um corpo mortal, mas são essas interrogações que
resistem à morte. Amarfanhou a folha, atirou-a fora, exasperado.
Pegou na bengala, desceu à rua. Março ia frio, não há dúvida.

16.5.85
SENTADOS NO SILÊNCIO

Com os mortos só poderemos ter delicadeza, mas o caminho por


onde seguem é-nos hostil desde o primeiro passo; não nos resta
outra coisa senão esperá-los aqui, sentados no silêncio, o coração
em desordem. Talvez um verão ardente os traga até à nossa porta,
dois golfinhos de prata no anel e o cheiro das ilhas no cabelo, para
que o inverno seja suportável.

21.11.85
A FLOR DA TESSÁLIA

Foi longa e fastidienta a viagem, mas chegámos a tempo de


ouvir ainda, no coração quente do outono, as cigarras cantar no
cimo das oliveiras e ver na encosta dos montes os asfódelos em flor.
Estávamos na Grécia, não havia dúvida. Apesar de o turismo ter
transformado a mais sagrada das terras numa feira perpétua e reles,
uma ou outra coisa resistia à peste: os cardos de Epidauro, as
cigarras da Arcádia, os asfódelos de Egina. Alguma coisa mais: a
luz sem peso das colunas, o azul espesso do golfo de Corinto. E
Akratos, o pastor de Meteora. Entre os rochedos a prumo,
assobiava às cabras, guiando-as com olhar sábio para os tufos de
ervas que iam, sabe-se lá como, rompendo da rocha. Era um
homem de cinquenta anos, ainda bonito, olhos negros, peitaça de
pardal alimentado na eira, por onde entravam o vento e o luar. Onde
aprendera ele o inglês com que nos interpelava? Descera do
Parnaso, e fora lavar pratos em restaurantes de Londres? Ou
passara anos e anos a carregar com malas e sacos no Hotel Divani,
ali à mão? Com que turistas trocara carícias, saliva, camisolas,
esperma? Que portas, deixadas entreabertas, se fecharam já noite
alta atrás de si, murmurando enquanto se despia: — Do you like
me? Claro que gostamos, Akratos. Gostamos todos muito de ti,
porque ao morder-te a cintura, na noite de sete fontes, amamos em
ti Ulisses e Nausícaa, Aquiles e Heitor, as águas transparentes de
Paleokastritsa e as cadências da Ode a Afrodite. Todos gostamos
de ti, todos: eu, o papa, o Billy Budd, a sr.ª Thatcher, o Plácido
Domingo; todos nos desprendemos a custo de ti, para ir morrer,
sabe-se lá onde, longe das tuas cabras, e dessa flor da Tessália,
que levavas contigo quando a noite ia já alta.

Outubro, 1985
FADIGA

Falar é fatigante. De todas as estrelas, a mais rouca e ácida é


também a mais próxima. O inverno convida à promiscuidade, os
olhos acabam por cair no curral — quem não amou um porco?
Nenhum lugar de amor é triste, mesmo uma estrebaria pode ser
o paraíso.

14.6.84
DO FUNDO DO CORPO

Não dormia, passava horas e horas à escuta acabando por


distinguir no emaranhado de sons os rumores mais ínfimos, a
aranha a tecer a teia ou, ainda menos audível, a luz abrindo
caminho a pulso entre a espessura dos reposteiros. O silêncio
chegava tarde, perdido na rua o eco dos passos derradeiros. Só
então ganhavam relevo aquelas pancadas vindas do centro do seu
corpo. Sempre ali estiveram, mas só nessas alturas surgiam limpas
de outros ruídos, cada uma delas com perfil de espada. Até quando
iriam durar? Porque chegaria um momento, disso não tinha a menor
dúvida, em que o deserto da noite e o silêncio do corpo formariam
uma substância única, para sempre inseparável do ardor do orvalho,
subindo matinal os últimos degraus.

1984
O OUTRO NOME DA TERRA
Ao Miguel ao Gil, ao Dario
— que tornam a terra mais habitável
O OUTRO NOME DA TERRA
COM ESSA NUVEM

Para que estrela estás crescendo,


filho, para que estrela matutina?
Diz-me, diz-me ao ouvido,
se é tempo ainda,
eu e essa nuvem, essa nuvem alta,
de irmos contigo.
NUMA FOTOGRAFIA

Não sejas como a névoa, nem quimera.


Demora-te, demora-te assim:
faz do olhar
tempo sem tempo, espaço
limpo — do deserto ou do mar.
O NOME DA TERRA

Já sobre o meu peito não demoras


os pés miúdos, já a breve
dança dos dedos troca de cabelo,
porque tu cresces, cresces inclinado
para a difícil flor da nossa idade.
És agora o outro nome da terra,
ou simplesmente da eternidade.
COM AS MAÇÃS

As crianças chegam com as maçãs.


Vêm do sul,
os choupos brancos sabem o seu nome.
Também as gaivotas as conhecem:
aposto que foram elas,
estas ciganas das areias,
quem lhes mostrou o caminho.
Chegam com as maçãs:
as crianças, as abelhas.
CIDADE

O filho pela mão, vamos por estas ruas


esconjurando sombras, convocando
dunas, potros, o sol ainda fresco,
os cachorros latindo de alegria.
Meus olhos vão à frente farejando,
enquanto a mão dele ilumina a minha.
COM OS JUNCOS

Elas crescem, as crianças.


Crescem com os juncos,
com os mastros.
Crescem no meu coração esburacado.
Só as crianças não morrem.
E os gatos.
MATINALMENTE

Com a luz, com a cal


do verão entornada pela casa,
com essa música
tão amada e bárbara,
com a púrpura correndo
de colina em colina,
fazer uma coroa —
e de lágrimas cheia a taça
sagrar-te príncipe da vida.
CUMPLICIDADES DO VERÃO
DO LADO DO VERÃO

Vinha do sul ou de um verso de Homero.


Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
A CASA

No meu corpo uma casa se levanta,


sem portas, sem paredes, sem telhado:
entrasse o mar por ela ouviria as sereias,
fosse outra vez verão seria só orvalho.
PERTO DO MAR

O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas — altas, altas.
CUMPLICIDADE DO VERÃO

Mal nos conhecíamos, mas a infância


é cúmplice do verão:
vinhas do rio, das manhãs
onde nadámos juntos e subimos
aos freixos altos: via-te
balouçar num ramo frágil rindo,
ou saltar atrás das rãs — o corpo nu
cravado nos meus olhos como um espinho.
A LUZ DO CHÃO

Sem nenhuma razão a voz rompia,


a rasteirinha voz tão rente à vida
que se confunde com a luz do chão,
a luz de março rastejando ainda.
MORADA

A primeira casa não era ainda a casa:


não chega a ser morada.
Na outra, mais pequena, onde ninguém
perguntava que idade tinha
ou se o verão já passara
ou o cão mordia,
a manhã estava à janela.
Essa era a casa, o sol onde ardia.
O SORRISO

Creio que foi o sorriso,


o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
OS PÊSSEGOS

Lembram adolescentes nus:


a doirada pele das nádegas
com marcas de carmim, a penugem
leve, mais encrespada e fulva
em torno do sexo distendido
e fácil, vulnerável aos desejos
de quem só o contempla e não ousa
aproximar dos flancos matinais
a crepuscular lentidão dos dedos.
CORPO

O mar — sempre que toco


um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.
A LUZ DO PÁTIO

Deixas a luz do pátio acesa,


a porta aberta — que esperas ainda?
Amas agora com amor dobrado
a vida, o suor misturado ao sal
da saliva, o rumor
das águas no sol das sementes,
a treva do cabelo incendiada
nas mãos outra vez adolescentes.
AO LUME

Nem sempre o homem é um lugar triste.


Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve:
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres.
OUTRA VEZ

Outra vez as mãos, meu deus, as mãos,


a porosa morada do verão,
o copo de água fresca como folha
de álamo,
o golpe de martelo
quebrando as hastes do silêncio.
SOBRE A TERRA

Sei que estou vivo e cresço sobre a terra.


Não porque tenha mais poder,
nem mais saber, nem mais haver.
Como lábio que suplica outro lábio,
como pequena e branca chama
de silêncio,
como sopro obscuro do primeiro crepúsculo,
sei que estou vivo, vivo
sobre o teu peito, sobre os teus flancos,
e cresço para ti.
SULCOS DO VERÃO

Correm pelos sulcos do verão.


São escuros, e correm para mim.
Há quem tenha casa em Corfu
e jardins em Granada;
ou até barcos no mar.
Há quem tenha aqueles olhos,
a água funda desses olhos.
Como eu.
Para beber até ao fim.
OS GIRASSÓIS

Assim fremente e nua,


a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por esta flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.
CONTIGO

Sou eu, sou eu que não durmo,


contigo nos sentidos.
Sinto-te caminhar sobre as águas
do meu corpo — não sejas queimadura
nem boca do deserto.
Nenhum amor é estéril, um filho
pode ser uma estrela ou ser um verso.
AS AMORAS

O meu país sabe às amoras bravas


no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
A PUPILA NUA

A luz é sempre a mesma, sempre:


furtiva no flanco das cabras,
crua na coroa dos cardos,
fremente na rasteirinha
relva do teu corpo e nas dunas,
sempre a mesma, a pupila nua.
CARDOS

Este é o lugar onde só o lume


não demora a florir,
onde o verão abdica
de ser metáfora para arder
até ao fim.
PEQUENA RAZÃO

Pequena razão, pequena


claridade:
fraterna voz que não esconde
a rouquidão,
a brusca
sombra da garganta:
fechada flor da tarde,
também ela rouca.
A FIGUEIRA

Não tenho mãos para o azul.


Sonho com o mar
que não está longe mas não vejo
arder.
Só a sombra parece estar em casa
debaixo dos meus ramos:
canta baixinho enquanto se descalça.
EXEMPLOS

Havia ali um cursinho de água,


muros caídos sílaba a sílaba,
um olhar que na fuga se faz ave,
o apagado coração do lume —
são exemplos, só exemplos da língua.
RESSACA

A violência fresca do vinho;


os sulcos da ressaca; o silvo matinal
do pastor, mais propício à arte
que toda a música das esferas;
este orgulho de ter no coração
o leite entornado das estrelas.
O FALCÃO

Despeço-me do verão junto às águas


frias do norte — sobre os rios
já outros
disseram o que havia a dizer;
os de Sião não são os meus,
os de Babilónia também não;
eu sou o falcão mais jovem,
sou doutros ares, doutro céu,
deixai-me arder.
LUGARES DO OUTONO

Outono, labirinto de silvas,


de sílabas, digo: pupila lenta,
rio de inumeráveis águas
e de amieiros onde canta
a derradeira luz das cigarras,
de vidro ainda, e leve, e branca.
MESMO EM RUÍNA

É tão antiga a chuva na vidraça.


Vem do pequeno bosque onde o verão
mordia os flancos da água.
O que no coração tarda
a morrer é a luz mesmo em ruína.
A sumptuosa seda do outono.
A doçura, o sal da língua.
CASA VELHA

Não é a primeira vez que me queixo,


ninguém me escuta.
Esta noite a chuva entrou-me pelos ossos
e não há quem acenda o lume.
Quem partiu levou consigo
o rapazito com olhos de coral,
deixando atrás de si a porta aberta.
OUTONO

O outono vem vindo, chegam melancolias,


cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas, as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.
DESPEDIDA

Junho chegara ao fim, a magoada


luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.
SEM TI

É um fardo aos ombros


o corpo, sem ti.
Até o amarelo
dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
na arte de olhar
a luz é cúmplice da pele.
O DESEJO

O desejo, o aéreo e luminoso


e magoado desejo latia ainda;
não sei bem em que lugar
do corpo em declínio mas latia;
bastava abrir os olhos para ouvir
o nasalado ardor da sua voz:
era a manhã trepando às dunas,
era o céu de cal onde o sul começa,
era por fim o mar à porta — o mar,
o mar, pois só o mar cantava assim.
O QUE NÃO PODE MORRER

Diz, diz uma vez mais o que não pode


morrer:
a luz, que no sul é inocente
e trepa aos pinheiros;
o trote miúdo das manhãs de junho;
o azul a pique do falcão;
as dunas, com sinais ainda
doutro verão para levar à boca.
QUANDO JUNHO VOLTAR

A quem deste a mão, confiaste


a sua seda? O ardor
do verão caiu ao rio,
a tão amada voz perdeu
o seu rebanho.
Quando junho voltar,
quem sabe onde fará a casa?
AINDA ESPERO

Seja como for, ainda espero


dos altos muros ver a dança
das nuvens sobre o rio,
as gloriosas flores desfraldar
a louca cabeleira.
Eram a casa do verão, os girassóis.
A derradeira.
CASUALMENTE

Vinha do mar, a sua boca ardia;


só casualmente passou por aqui;
como o tordo branco, ou a cotovia.
ROSA DO MUNDO
A PAIXÃO

Levanto a custo os olhos da página;


ardem;
ardem cegos de tanta neve.
Faz dó esta paixão pelo silêncio,
pelo sussurro do silêncio,
pelo ardor
do silêncio que só os dedos adivinham.
Cegos, também.
SUL

Era verão, havia o muro.


Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente
o silêncio sacudiu as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
Assim: arder no ar.
TODA A MÚSICA

Sem ser inverno ainda


o cheiro tímido é já da chuva.
Sentia o mar subir, tinha as mãos
prontas para o levar à boca:
toda a música
era só aquela rebentação.
EPITÁFIO

Janeiro não é mês para morrer,


nem o mar nem a luz são
propícios — parece que vai nevar.
Mesmo assim, tu decidiste
que seria a última, esta tarde:
vias uma criança escalar o muro
do verão, e sorrias — há muito tempo.
A VISITA

Atravessou a rua, empurrou a porta,


os seus passos crepitam na luz frouxa:
era como na infância a morte,
assim alta, assim branca, assim rouca.
SEM MEMÓRIA

Haverá para os dias sem memória


outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?
ROSA DO MUNDO

Rosa. Rosa do mundo.


Queimada.
Suja de tanta palavra.

Primeiro orvalho sobre o rosto.


Que foi pétala
a pétala lenço de soluços.

Obscena rosa. Repartida.


Amada.
Boca ferida, sopro de ninguém.

Quase nada.
RENTE AO DIZER
LÍNGUA DOS VERSOS

Língua;
língua da fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, da cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.
RUMOR DO MUNDO

As palavras, vício
torpe, antigo.
As últimas? As primeiras?
Como os ouriços
abrem-se ao rumor do mundo:
o sol ainda verde dos limões,
os esquilos
de outras tardes, o latido
da chuva nas janelas,
os velhos em redor do lume
— nunca foram tão belas.
ARTE DOS VERSOS

Toda a ciência está aqui,


na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.
A OUTRA MORADA

É de Schumann, a música.
Dói, acalma, é transparência
última da rosa, a de Dante
no Paraíso;
não há outra morada,
outro cristal, outra ave;
há somente esse rio, esse gume
que fere, apazigua,
o corpo, a alma — quem sabe?
CHUVA DE MARÇO

A chuva detrás dos vidros,


a chuva de março,
acesa até aos lábios, dança.
Mas a maravilha
não é a primavera chegar assim
como se não fora nada,
a maravilha são os versos
de Williams
sobre a rasteira e amarela
flor da mostarda.
SOBRE AS AREIAS

É outra vez a música,


é outra vez
a música que me chama,
outra vez esse esplendor
quase animal
que me procura
e comigo se faz alma
ou primeira manhã sobre as areias.
AS CRIANÇAS DE BLAKE

As crianças que sobre a relva cantam


na canção de Blake
não as ouço daqui, ou então
é só na memória
que as vozes inocentes
se juntam à respiração do sol:
é sobre o feno em flor e não
sobre a relva que as crianças
cantam nesta canção.
AS PRIMEIRAS CHUVAS

As primeiras chuvas estavam tão perto


de ser música
que esquecemos que o verão acabara:
uma súbita alegria,
súbita e bárbara, subia e coroava
a terra de água,
e deus, que tanto demorara,
ardia no coração da palavra.
HOMENAGEM A
HANS CHRISTIAN ANDERSEN

Vêm morrer à praia e são jovens


as sereias;
jovens como andar à chuva,
a brusca melancolia,
o lume aceso da cal;
jovens como as baladas escocesas
ou as molhadas sílabas de junho;
e com a lua nova
vêm morrer no areal.
O DESERTO

É o deserto — tenho quinze anos


e muito tempo para morrer.
Sentado na inclinação do sol
conto os meus dias
ou as pequenas hastes
do vento onde nenhuma ave
aproximava o céu.
Não há erro possível: oásis
ou mar das ilhas
só a palavra.
CHEIRO DO VERÃO

Quem me traz morangos não sabe


que também me traz
um punhado
desses tão delicados e carnais
frutos silvestres
que os garotos de Roma vendem
pelas ruas, sorrindo, ao fim da tarde.
Só eles me trazem juntos a sombra
dos bosques do verão
e o canto do rouxinol
na frescura da sua pele.
A MÃO NO OMBRO

Como se tu alumiasses
ainda
cada degrau, cada palavra,
e a noite não fosse
a única porta estranhamente
branca,
eu subia sem conhecer o ombro
onde apoiava a mão.
O SILÊNCIO

Dai-me outro verão nem que seja


de rastos, um verão
onde sinta o rastejar
do silêncio,
a secura do silêncio,
a lâmina acerada do silêncio.
Dai-me outro verão nem que fique
à mercê da sede.
Para mais uma canção.
EM ABRIL CANTAM

Em abril as crianças cantam


com a chuva.
Trepam aos ramos matinais
das cerejeiras
e cantam à espera do sol.
Quando o sol demora
entram a cantar pelos olhos de deus.
À noite cintilam.
DUNAS

É o mar do deserto, ondulação


sem fim das dunas,
onde dormir, onde estender o corpo
sobre outro corpo, o peito vasto,
as pernas finas, longas,
as nádegas rijas, colinas
sucessivas onde o vento
demora os dedos, e as cabras
passam, e o pastor
sonha oásis perto,
e o verde das palmeiras se levanta
até à nossa boca, até à nossa alma
com sede de outras dunas,
onde o corpo do amor
seja por fim um gole de água.
A UM LÓDÃO DA MINHA RUA

Ninguém tem corpo mais fino,


nem braços tão delicados
como este lódão
crescendo com vigor à minha porta.
Tenho com ele desvelos de namorado,
limpo-o de ervas daninhas,
rego-lhe a terra ao calor de agosto,
alegro-me a cada rebento novo,
cada folha recente. Cresce e cresce
em esplendor, certo de ser amado.
SOBRE AS SÍLABAS

O assédio do verão, as rolas


dos pinheiros, a risca de sal
das areias; às vezes
chovia — então um barco
de borco era o abrigo,
era o amigo; a chuva abria
o aroma dos fenos, não tardava
o sol em cada sílaba.
AS CABRAS

Elas passam, ralas, magras,


as cabras,
pelo gume das dunas.
Os cornos são o seu diadema.
Nos seus olhos, o relâmpago
sucede ao glacial
tremor das estrelas.
Movem-se lentas — irmãs
dos cardos e da cal.
AS GAIVOTAS

As gaivotas. Vão e vêm. Entram


pela pupila.
Devagar, também os barcos entram.
Por fim o mar.
Não tardará a fadiga da alma.
De tanto olhar, tanto
olhar.
DA IGNORÂNCIA

A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais do verão
já não sabe o caminho — é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.
O OLHAR

Eu sentia os seus olhos beber os meus;


longamente bebiam, bebiam;
bebiam
até não me restar nas órbitas nenhuma
luz, nenhuma água,
nem sequer o sinal de neles ter chovido
naquele inverno.
FRÉSIAS

Uma pátria tem algum sentido


quando é a boca
que nos beija a falar dela,
a trazer nas suas sílabas
o trigo, as cigarras,
a vibração
da alma ou do corpo ou do ar,
ou a luz que irrompe pela casa
com as frésias
e torna, amigo, o coração tão leve.
O SORRISO, OUTRA VEZ

Tu partiste nos quatro versos


que antecederam estas linhas;
ou partiu o teu sorriso, porque tu
sempre moraste no teu sorriso,
chuva breve nas folhas, o teu sorriso,
bater de asas no pulso, o teu sorriso,
e o sabor, esse ardor da luz
sobre os lábios, quando os lábios são
rumor de sol nas ruas, o teu sorriso.
O RIGOR

O rigor do verão quase


extinguiu os pequenos
oásis do coração:
nenhum
de nós conseguiu dobrar
o lume, acariciar
o tigre, desviar a sombra
dos lábios — arder
era afinal a nossa vocação.
CARNE DE AMOR

Carne. Carne de amor. Love-flesh,


como lhe chamou Whitman.
Amada carne até aos bordos cheia
de ardor, fremente de seiva.
Carne endurecida
até à alma. Erecta carne
profunda. Vertical esplendor
subindo às estrelas. Ou mais
alto ainda. Talvez
à eternidade.
Ámen.
VARIAÇÃO SOBRE UM TEMA ANTIGO

Vem de tão longe que tenho piedade


dos seus cães: abro a porta, aceito
a festa dos animais.
Aproximou as mãos do fogo
e encontrou a flauta, levou-a
à boca: então o silêncio brilhou
acariciado.
ROSA DE AREIA

Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez doutro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.
AS JANELAS

As janelas
por onde entram as silvas,
a púrpura pisada,
o aroma das tílias, a luz
em declínio,
fazem deste abandono
uma beleza devastadora
e sem contorno.
PASSEIO ALEGRE

Chegaram tarde à minha vida


as palmeiras. Em Marraquexe vi uma
que Ulisses teria comparado
a Nausícaa, mas só
no jardim do Passeio Alegre
comecei a amá-las. São altas
como os marinheiros de Homero.
Diante do mar desafiam os ventos
vindos do norte e do sul,
do leste e do oeste,
para as dobrar pela cintura.
Invulneráveis — assim nuas.
RENTE AO CHÃO

1.
Era azul e tinha os olhos de deus,
o meu pequeno persa
— agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.

2.
Chamo por ti; digo o teu nome
tropeçando sílaba
a sílaba; repito o teu nome
para que voltes com a lua
nova, o sol de março,
o pão de cada dia;
chamo por ti:
o rigor do frio, a sua teia branca,
por companhia
WASHINGTON SQUARE

Por toda a parte, desde Washington


Square que os esquilos
me perseguem. Mesmo em Camden,
junto ao túmulo de Whitman,
vinham com o outono
comer à mão. Mas é de noite
que mais me procuram: os olhos negros,
continhas acesas.
Agora vou deitar-me à sombra do rio
até um deles entrar neste poema
e fazer a casa.
A ORELHA DE VINCENT

Nem as cigarras, nem os flancos


acesos das searas,
nem a pensativa cor dos lírios
ou mesmo a bárbara
luz do sul têm agora
morada no seu coração;
como falcão ferido
a orelha não pára de sangrar;
sangra de amor, do negro e tresloucado
e transbordante amor do mundo,
e desprevenido e magoado.
AS NUVENS

Por momentos dançam nas colinas


ou nos olhos das rolas:
vão para o sul, procuram
a luz molhada das ilhas,
os minúsculos pés da chuva,
a crepitação do mar,
o cheiro juvenil da lenha
verde ainda e com resina,
a alma das pequenas praças,
os pardais, o sussurro das matinas.
A TORRE

Ele queria uma torre


alta
para a sua alma.
Eu, se quisesse
alguma coisa seria um rio;
um rio onde dormir
com a luz destas pedras por navio.
NOTAS DE VIAGEM

Os amieiros, a casa em ruína,


o olhar
espalmado entre as folhas
do livro, as nasaladas
vozes das crianças sobre a água,
a boca da sombra onde as maçãs
ardem com brilhos de metal,
a repentina
aparição do silêncio
ao fundo das escadas,
a porta aberta
sobre a descarnada luz da cal.
PELO SONO

Tinha nome de homem, o rio.


Carlos, João,
Joaquim —já não me lembro.
Homem
que leva a mágoa pela mão.
Ao entrar pela cidade
naquele outono,
era mais cão do que rio,
era mais chão do que água.
Apesar de ser banal a rima,
um rio corria pelo sono.
HIDRA

Se nunca foste a Hidra no outono


então não sabes
como é branco o branco e azul o azul.
Se nunca ali chegaste com o sol
correndo nas colinas entre as hastes
da flor encontrada por Ulisses
no próprio inferno — então não sabes
como a terra é o lugar certo
para morrer.
OUTUBRO: O VINHO

Poucas vezes o outono se demorou


tanto nestas águas
sem as cobrir de névoa.
Dos montes desce
o vinho — não tardará nas ruas:
só ele é novo ainda, só
ele dança. Tu e eu
vamos com as folhas, as últimas
aves: tão leve
o que deixamos por herança.
BREAKFAST EM MASPALOMAS

Das coisas que menos esperava


num hotel de cinco estrelas
era encontrar um gato
no meu prato de torradas.
Como num dos poemas últimos de Montale,
enquanto o chá arrefecia,
foi-se afastando pelo muro do terraço
em leves e femininos passos de dança,
como faria Nureiev se tivesse
tomado comigo o pequeno-almoço.
MULHERES DE PRETO

Há muito que são velhas, vestidas


de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.
O RIO

O rio. Ferido nos flancos,


não corre: balbucia.
De tanto hesitar, nem chega
a ser rio. Riacho. Corguinho
apenas. Talvez não dê
para lavar as mãos.
Nem sequer para espelho.
Só amorosamente
contemplação de velho.
CERCO

O corpo começa a consentir,


ceder, abrir fendas
com as chuvas altas,
a mostrar, quase exibir
velhas raízes, rugas, mágoas,
a secura próxima dos galhos;
o corpo, sim, ele que foi afável
e crédulo e solar — tão
indiferente agora às matinais
e despenteadas vozes:
distante e tão cercado
de apagadas águas.
MASPALOMAS, SEM NOSTALGIA

De longe, vim de longe só para ver


estas dunas com sabor a deserto.
Devia ter vindo
antes de haver chucrute
e salsichas e Wagner e Bismarck
e estes duzentos mil alemães
que bebem comem cagam nestas areias
com obstinado afã:
putas e chulos são agora
a limpidez
perfeita e a frescura da manhã.
PROSA DE ANIVERSÁRIO

Porque desde sempre estão aí, e não


se vão embora; e brilham
e resplandecem; como pedra
sobre pedra, ou mar inteiro:
um verso incertamente de
Adriano: Animula vagula blandula;
oito compassos menos incertos,
os primeiros da Lacrimosa;
uma linha quase adolescente:
Seu cordeirinho, Manuel;
a brancura irrepetível de uma rosa.
O AMIGO

Não voltará — o que dele me ficou


é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.
PRATO DE FIGOS

Também a poesia é filha


da necessidade —
esta que me chega um pouco já
fora do tempo,
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que no inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.
FIM DE TARDE EM S. LÁZARO

Estou sozinho. Nas estantes, restos


da minha vida. É quase
noite sobre os telhados.
No livro abandonado nas mãos
corre um rio: à deriva,
duas ou três coisas que foram
minhas: um punhado de amoras,
a porosa delícia do barro,
essas nuvens, essas
aves num céu branco de trigo,
um sorriso
que também era um copo de água.
VERSOS DE INVERNO

Outra vez o abutre, o abutre


da tristeza, cai-nos em cima,
crava as garras, rasga,
retalha: — oh irmão
do deserto, breve
oásis de sol
neste inverno: não há terra
de promissão
fora do corpo; ou da palavra.
À BOCA DO POÇO

Às vezes, até a morte pode ser


condescendente: à boca do poço
pára o cavalo, não chega a desmontar,
mas consente que te demores
a contemplar as águas negras,
o rebanho de chocalhos distantes,
as macieiras perto,
os seus frutos estranhamente acesos.
ÚLTIMO POEMA

É Natal, nunca estive tão só.


Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.
CÂNTICO

Eu já falara dele num poema que levou sumiço. Dizia então que
«o meu amor por esta alminha era materno». Que um homem
assumisse poeticamente a maternidade não poderia causar
estranheza, mas que tratasse por «alminha» um gato era coisa de
que só o diabo se lembraria. De qualquer modo, com ironia ou sem
ela (cada qual lê um poema como pode), o que naqueles versos
vinha à tona era uma ternura mal disfarçada pelo pequeno persa
azul que, num dia de anos, os amigos me trouxeram por terem
surpreendido, na maneira como acariciava os gatos deles, uma
profunda nostalgia. Realmente, eu tivera uma infância povoada de
felinos, e um deles, como contei em «A Sereia do Báltico», foi a
alegria de muitos dos meus dias. Colhido de surpresa, ora olhava os
amigos, ora aquela maravilha que me cabia na mão, com terror e
fascinação ao mesmo tempo, pois a partir de então a minha
liberdade parecia ameaçada. A minúscula criatura fixava-me com
olhos de cobre esfregado de fresco, e perante aquele olhar sentia-
me à sua mercê — fomos então tratar da instalação. Os amigos
haviam previsto tudo: cama, tabuleiro, areias, pratos, alimentos,
tudo tinham trazido. Colocámos a cama e as areias no quarto de
banho, pratos e tigela foram para a cozinha. Acertámos no nome, e
como era do tamanho de uma avelã, e janeiro ia muito frio, acabei
por levá-lo para o quarto: primeiro para junto do calorífero, depois
para a cabeceira da cama, onde se habituou a dormir, às vezes a
minha mão por travesseiro. E fui-o vendo crescer, na certeza de que
ao meu lado crescia um exemplar perfeito da sua raça: cabeça
robusta, orelhas delicadas, narinas rosadas, pêlo espesso e sedoso,
mais exuberante no pescoço e na cauda — era um príncipe oriental
que dividia comigo os seus dias, sem coroa e sem mundo para
governar, mas de uma beleza que se fosse humana seria
insuportável.
A alimentação requeria cuidados, e eu era incapaz de qualquer
repressão: se não lhe agradava uma coisa dava-lhe outra; acabou
por ficar caprichoso, avezado ao frango, à pescada, a esses
enlatados que exigiam conta e medida, de outro modo apareciam
diarreias, preocupações. Informei-me na clínica como deveria
alimentá-lo; procurei livros, que não encontrei. Mandei-os vir de
Espanha, de França, e no meio dos que me chegaram, e se
repetiam até à exaustão, surgiu um de Desmond Morris, que li com
avidez. Também reli poemas do Baudelaire, do Eliot, mas os gatos
do Baudelaire não eram gatos eram as suas amantes, e os do Eliot
eram caricaturas dos seus amigos. Na Colette, no Léautaud, no
Aquilino, no Neruda, aí, sim, havia gatos, como também se
encontravam nos desenhos de Steinlen.
Passei a viajar e a sair menos; o Micky habituara-se tanto a mim
que, quando saía de casa, vinha à porta e olhava-me de tal maneira
que, por vezes, acabava por não sair. Pouco me demorava, é certo,
mas nunca deixava de me aguardar no regresso; devia conhecer-
me os passos, porque entrasse tarde ou cedo lá estava ele e os
seus olhos imensos — e tão formosos que não sei mesmo se
alguma vez vira outros assim. Eram, como já disse, os olhos de
deus. Então roçava a cabeça pelas minhas pernas, erguia as patas
dianteiras até aos meus joelhos, pedia-me uma palavra, uma festa.
Era a minha vez de responder: pegava nele, aconchegava-o nos
braços, prometia-lhe nunca mais o deixar só, passava-lhe a mão
pela cabeça, pelos flancos, com a polpa dos dedos acariciava-o
debaixo do queixo, enquanto uma espessa e rouca e monótona
cantilena ia enchendo a noite.
Quase não viajava, pois. Nesse tempo, só me lembro de ter
saído duas vezes do país. Da primeira, o Micky ficou em casa dos
amigos, mas de início os seus dias foram penosos: não comia,
passava o tempo debaixo dos móveis, e só não se lamentava
porque era estóico de natureza. Da segunda vez, como sabia do
apego que estes animais têm ao lugar onde vivem, ficou sozinho em
casa, confiado ao Miguel e à empregada. Creio que passou então
melhor, embora sempre estranhado.
Como já disse, ele dormia enroscado aos meus pés ou à
cabeceira: parecia um ouriço. Durante a noite costumava acordar
duas ou três vezes; dava então um pequeno passeio pela cama e,
invariavelmente, aproximava o focinho húmido da minha cara, via se
respirava, e só depois pulava para os pés, enroscava-se para
adormecer de novo. De manhã, por volta das oito, começava a
brincar com o meu cabelo, a mão delicada ajudada pelos dentes
agudos, até me despertar; quando eu dava sinais de já estar
acordado, saltava para o tapete, e sem impaciência aguardava que
me levantasse e lhe desse a primeira refeição. Era na verdade a
distinção em pessoa.
Os dias foram passando sem nada a distingui-los uns dos outros;
o Micky ajudava-me no trabalho, sentado ao lado da máquina
quando escrevia, ou no meu colo quando ouvia música; ou então
brincava com uma folha de papel amarfanhada atirada ao chão. Um
ano havia já decorrido desde que chegara a casa embrulhado no
xailito de lã branca, ou até passara mais, pois a primavera estava
outra vez no quintal das traseiras, e pousava na macieira,
carregando-a de flor. Uma tarde senti uma agitação nas areias do
quarto de banho maior que a habitual. Levantei-me e, com espanto,
verifiquei que apesar de muito removidas, nas areias não havia
sinais de humidade, ou outros. Voltei ao trabalho, e passados
instantes senti agitação igual. Aproximei-me, e depois de o Micky se
ter levantado vi que as areias continuavam secas. Procurei então
lembrar-me a que horas lhe limpara o tabuleiro pela última vez. Não
me recordava de o ter feito nesse dia; olhei o relógio: eram quatro
da tarde. Fui à cozinha, a comida estava toda no prato. Entretanto o
Micky voltara às areias: não conseguira, apesar do esforço, verter
mais que duas ou três gotas de urina. Contra os seus hábitos, saltou
para dentro da banheira, arrastando-se desesperado no frio do
esmalte, procurando assim aliviar-se. Como nada conseguisse,
arrastava-se agora pelos mosaicos, e foi então que os seus olhos
encolheram de medo e se meteram pelos meus, a suplicar auxílio —
pois como podia viver-se com aquele nó cego a estrangulá-lo? Corri
ao telefone, chamei um táxi. Como era conhecido na clínica, e
invocara urgência, fui imediatamente atendido. O médico procurou
acalmar-me, fez-lhe uma algaliação, colheu urina para análise, deu-
lhe um pouco de soro, e recomendou que voltasse no dia seguinte:
tratava-se de cálculos, coisa frequente na raça, muito susceptível,
dizia. Voltámos para casa, o Micky comeu um pouco, mas na manhã
seguinte não pegou na comida, e quando procurou as areias foi a
mesma exasperação: as urinas de novo retidas. Voltei à clínica; nas
três semanas que se seguiram voltaria lá muita vez: já não era só a
retenção da urina o que lá me levava, o Micky deixara de se
alimentar, e eu, por mais que quisesse, não conseguia meter-lhe na
boca fosse o que fosse. Nem sequer a água, que procurava
introduzir-lhe com uma seringa. Pedi o seu internamento, e que se
tentasse a operação. Mas estava muito debilitado, os pulmões
atingidos. Ia vê-lo todos os dias, à noite, quando o serviço da clínica
tinha acabado. E lembro-me bem da nossa despedida, o oiro dos
olhos embaciado. Eu sempre soube que a beleza era o que havia de
mais frágil sobre a terra.
OFÍCIO DE PACIÊNCIA
Menos é mais.
Mies van der Rohe
BALANÇA

No prato da balança um verso basta


para pesar no outro a minha vida.
ELOGIO DA NEVE

As primeiras palavras trazem ao espaço


da página a neve e o melro:
o melro azul
canta nos ramos da neve.
Talvez o tenha ouvido cantar
em sonhos, ou num poema qualquer,
mas ia jurar
que foi no castanheiro do quintal.
Não faz nenhum sentido,
mas às vezes o absurdo entra-nos
pela porta. O melro
cantava na neve — era verão.
CANÇÃO

Vem da canção de Verlaine


a chuva
e ninguém,
nem mesmo o sol,
tem pés tão formosos.
Na boca
o verão, na colina
o navio.
O ar,
em cada rua o ar,
dança comigo.
ASSIM SEJA

A terra é boa, e o corpo


apesar de bastardo
traz consigo pátios
e cavalos. A multiplicação
da luz torna mais limpo o ar,
até mesmo a lebre
salta dos fenos.
Contenta-te com ser, hoje
amanhã
outro dia, esta luz breve.
SÍLABAS ANTIGAS

No modo como a luz se inclina


adivinha-se o vento,
a água limpa da camisa.
A proliferação da sombra
não conseguia afogar
a transparência do mundo — dizia
a canção. Eram sílabas
antigas. Entre
a voz a prumo e o ar
ondulavam as espigas.
PRIMAVERA EM OXFORD

A floração —
o imponderável corpo
do vento traz-nos o cheiro
da floração dos lilases
nas ruas mais íntimas de Oxford,
coroando
de alegria os jovens
fugindo de bicicleta à chuva
miúda e clara,
como se a luz corresse com eles
para um encontro nupcial
comigo ou com a vida.
DE RAMO EM RAMO

Não queiras transformar


em nostalgia
o que foi exaltação,
em lixo o que foi cristal.
A velhice,
o primeiro sinal
de doença da alma,
às vezes contamina o corpo.
Nenhum pássaro
permite à morte dominar
o azul do seu canto.
Faz como eles: dança de ramo
em ramo.
COISAS MUDÁVEIS

De tão luminosa, essa ferida


já nem dói — ó tão mudáveis
coisas vindas
na palavra, sucessiva
ondulação do mundo
latindo contra o coração,
vagas de sombra ou só de pedra,
canção despedaçada
contra os vidros, fulva
vagabundagem de abelhas,
manhã de junho
tão cedo prometida às areias.
A ILHA

Tanta palavra para chegar a ti,


tanta palavra,
sem nenhuma alcançar
entre as ruínas
do delírio a ilha,
sempre mudando
de forma, de lugar, estremecida
chama, preguiçosa
vaga fugidia
do mar de Ulisses cor de vinho.
CASA DO MUNDO

A diminuta
flor da candeia,
na mesa o pão o vinho
a rosa,
a súbita
brancura da cama aberta —
a eternidade
milimetricamente
a dividir contigo.
NUM EXEMPLAR DAS GEÓRGICAS

Os livros. A sua cálida,


terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
NARRAÇÃO INEXACTA DA CASA

A mais antiga e demorada


frase fala do mar logo de início,
no desejo de habitar
os flancos lentos da sua ondulação.
A narrativa torna-se depois
confusa: entre mastros e muros,
além do vento, corria o medo.
Que estranho amor levou
a fazer da casa um barco?
A cal e a pedra guardam o segredo.
ACORDES

Até o indolente aroma dos fenos


pode alterar o mundo:
tivesse o mar a glória das cigarras,
então o corpo,
mesmo exposto ao sol
anos e anos, teria
em vez de um esfregão retorcido
no lugar do coração
a frescura de quem acaba
de sair da água,
e vem sentar-se ao nosso lado.
LUGAR DO SOL

Há um lugar na mesa onde a luz


abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar — agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.
ANTES DE SABER

Até onde os dedos tocam o quente


do barro a mão sabe
antes de saber.
É um saber mais vivo, um saber
de ave: águia cegonha falcão,
animais quase no fim
como o lume destes dias.
Testemunhar a favor do lince
é nossa obrigação.
Por ser azul.
TEORIA DO VERSO

De rojo não há poesia;


não há verso
por mais rasteiro
que não aspire ao alto: estrela
ou farol iluminando o ser
da palavra.
Assim o sapo:
no vagaroso e inocente
e desmedido olhar do sapo
as águas são de vidro.
VOZES

Às vezes rompe pela casa,


pousa no silêncio,
no pulsar do silêncio.
Que faz ainda
por aqui? Coração de lume
velho — é um dizer.
Por fim corre
para o pátio de outros dias,
junta-se às vozes infantis.
E cantam, cantam,
matutinas.
AS SÍLABAS DA CASA

Uma pedra,
outra pedra — assim começa
a casa, o pátio onde o lume
dos gerânios morde a cal,
os degraus subindo ao feno
desatado, a marca
dos dentes nas maçãs e na cintura,
a porta estreita
do corpo, o nó de sombra mais secreto,
os cães correndo entre as primeiras
sílabas da noite, por fim
o inaudível rumor das tílias.
À CHEGADA DO VERÃO

Abriu a janela.
O que sucedeu então foi
noutra manhã: o galo do quintal
do vizinho anunciou a chegada
do verão. A luz hesitante talvez
nem consiga romper a névoa.
De súbito
o grito do pavão rasgou o céu
e, azul, pela janela
entrou o mar.
AS MAÇÃS

Da alma só sei o que sabe o corpo:


onde a esperança e a graça
aspiram ao ardor
da chama é a morada do homem.
Vê como ardem as maçãs
na frágil luz de inverno.
Uma casa devia ser
assim: brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim: limpa, madura.
O LUGAR MAIS PERTO

O corpo nunca é triste;


o corpo é o lugar
mais perto onde o lume canta.
É na alma que a morte faz a casa.
AS PALMEIRAS

Também o deserto vem


do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.
ADAGIO SOSTENUTO

A música outra vez, de vaga


em vaga, colina
em colina;
concertada voz de sete
estrelas, primeira respiração
do mundo, alta
e prometida harmonia;
dói, fere
fundo; também apazigua,
acaricia, ilumina
a terra, tornada
próxima; de colina em colina,
vaga em vaga — a música,
nua, bárbara.
O INOMINÁVEL

Nunca
dos nossos lábios aproximaste
o ouvido; nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
nas próprias mãos
e nada nos une
— nem sequer sabemos se tens nome.
OS TRABALHOS DA MÃO

Começo a dar-me conta: a mão


que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.
COM UM VERSO DA CEIFEIRA

Escrevo para fazer da luz


velha dos corvos
o limiar doutro verão.
Nenhuma sombra por mais nefasta
perturba o meu olhar:
tenho quinze anos, ao espaço
quadrado do pátio
regressa o canto das cigarras.
Com o sol à roda da cintura
o corpo deixa de ser hesitação,
corre ao encontro da água
ou doutro corpo, e canta,
canta sem razão.
DESPEDIDA

Volto-me e são brancos


os cavalos.
O trigo novo, a música
dos nomes, o tempo da flor,
tudo isso passou.
Mas a terra brilha
como quem não conhece a morte.
Volto-me, os pombos regressam.
Tu já não estavas
e só eu
os vi chegar.
SOBRE O CORAÇÃO

Eras a casa, o lugar


onde o sol
ardia sobre a pedra,
a pedra sobre o mundo,
o mundo sobre o coração.
Como podias, uma
a uma, suportar as lágrimas
do mundo, ninguém sabia:
o lugar do sol
era a casa — e ardia.
NARRATIVA DA NEVE

Vem o vento
e ninguém sabe se virá mais cedo
o inverno. Vem e deixa no telhado
algumas sílabas.
O trabalho da boca para não morrer
é juntá-las, fazer um diadema, coroar
a neve, o azul da neve,
na mais frágil haste.
São coisas tuas:
cintilações a que chamas ave.
FIM DE OUTONO EM MANHATTAN

Começo este poema em Manhattan


mas é das oliveiras de Virgílio
e de Póvoa d’Atalaia que vou falar.
É à sombra das suas folhas
que os meus dias
cantam ainda ao sol.
A sua canção vem do mar,
mas é com as cigarras e o trigo
maduro que aprendem a morrer.
O ar debaixo dos seus ramos dança,
alheio à luz suja de Manhattan.
COM O MAR

Trago o mar todo na cabeça


daquele modo
que as mulheres novas
dão de mamar aos filhos;
o que não me deixa dormir
não é o marulho das suas vagas,
são essas vozes
que da rua se levantam a sangrar
para voltarem a cair,
e rastejando
vêm morrer à minha porta.
OS PERIGOS DO VERÃO

Era o verão, o seu desassossego.


Era o desejo,
o desejo rompendo da sombra
sem caminho, e doía.
Era o ardor, o mais diáfano
irmão da melancolia.
Era o amor, o espanto
do amor, desarmado,
sem abrigo.
Era o deserto, o deserto à porta;
e fervia.
ALGUMAS IMAGENS DO INVERNO

Chega mais cedo;


conheço-lhe os passos:
já muita vez aqueceu as mãos
ao lume das minhas.
Vai demorar-se;
sacudir a lama, remendar
os sapatos, tirar o sal
que se juntou em redor dos lábios.
Entre o silêncio e o falar
não há senão
espaço para anoitecer.
Tão pesadas, as folhas do ar.
A SÍLABA

Toda a manhã procurei uma sílaba.


É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz.
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.
HARMÓNIO

Como ladrão ou mulher


pública: vens de noite.
Trazes o harmónio,
a masculina
música roubada às fontes.
Não te esperava; só uma vez
te esperei tremendo de amor:
eu era tão pequeno
que não me viste.
Nem uma palavra ousas;
só os olhos suplicam que te roube
à morte, que devolva ao sol
a modesta desordem dos teus dias.
Que escute ao menos a pobre
e rouca e desamparada
música do teu pequeno harmónio.
LUGAR DO LUME

Depois de romper a água.


Depois.
Quando o aroma da estrela
da tarde anunciar
a ressurreição do trigo.
Depois da última casa, lugar
do lume. Onde o bastardo
coração recomeça
a cantar com o verão.
Depois de o silêncio ter subido
aos mastros, e o olho da cal
se ter afogado.
Depois. Depois.
NO CÉU DO SUL

Apesar de o sol de agosto entrar


pela vidraça, chove.
No céu do sul, em qualquer lugar,
chove sobre os teus olhos,
não pára de chover.
Chove há tantos anos dentro de tudo
que dificilmente os teus olhos
serão olhos ainda.
Chove. Chove
sobre o mundo. Mesmo no verão.
ÀS PORTAS DO SOL

A casa é térrea, prolonga a eira,


o olival. Desde cedo
conheceste o sal
dos olhos às portas do sol.
Rastejar, em menino,
pela terra apura o ouvido:
nenhum rumor de ave
ou pulsação de sapo se perdia.
Também ouvias
de vaga em vaga o silêncio,
cada sílaba crescer para o trigo.
A PERGUNTA DE STEVENS

Tragam-me o rio até à porta.


Deixem-no comigo este verão.
Vem de terras tristes. Terras
onde dificilmente o girassol
voltará a florir, o tordo a acasalar.
Apesar de fatigado, sonha
com a ressurreição das cigarras.
Poucas coisas houve no mundo
tão formosas como um rio. Agora
já nem reflecte a sombra das garças.
Em vez de morte, que teremos no paraíso?
COROA DE LUME

Ouço-o partir, o sol da mão.


O prazer do ofício,
a paciência de areia
abrindo para os caminhos do verão,
também eles a chegar
ao fim. Foi assim que partilhei
o pão, o tão amado
sopro vindo do sul.
Não tardará o sono: já
começou na fala.
É tempo de atirar aos cães
a coroa de lume.
OUÇO SOBRE AS PALAVRAS

Ouço sobre as palavras cair a chuva.


Grossa como sementes de cal.
A terra abre-lhe o ventre
triste, quase deserto.
Cai sobre as minúsculas sílabas
acesas nas clareiras
do sono.
Sobre as palavras que nas mãos aqueci
a chuva cai, a chuva, a chuva inteira.
OS DIFÍCEIS AMIGOS

Esses mortos difíceis


que não acabam de morrer
dentro de nós; o sorriso
de fotografia,
a carícia suspensa, as folhas
dos estios persistindo
na poeira; difíceis;
o suor dos cavalos, o sorriso,
como já disse, nos lábios,
nas folhas dos livros;
não acabam de morrer;
tão difíceis, os amigos.
DE MADRUGADA

Com o outono
a turbulência da luz que se desprende
dos ouriços arde na boca dos rapazes.
Não é outra a razão
por que sabem a cinza os seus lábios.
Pela noite dentro correm
com a luz ardida: no peito
uma espécie de morte por coração.
AO CREPÚSCULO

Separada do corpo a luz


rasteja,
confunde-se com a chuva.
Arrefeceu, as gaivotas
juntam-se nos rochedos.
O gato enrola-se no sono.
Pego num livro, de repente
uma criança tomba dos versos.
Uma criança morta.
COISAS DO VERÃO

Antes de arder e ser cinza


o desejo amarga na boca, sangra
no branco da camisa.
O verão voltou, arrasta as suas luzes
por aí, ombro
a ombro com o brilho da mão,
a tão discreta e difícil
mão tacteando o caminho
de águas estreitas,
onde os pés se tornavam de vidro.
MATÉRIA NOBRE

Pode ouvir-se ainda o seu


bater contra o peito.
Há tantos, tantos anos exposto
à violência da luz do meio
dia. Quase amargo, quase
doce. Só a paixão o rouba
à morte, o impede de ser
panela esburacada
onde o vento assobia.
Ou pior: coisa viscosa, mole,
inerme. Coração,
matéria nobre.
EM LOUVOR DAS GAIVOTAS

Enquanto leio sonolento um romance


de Camilo, um vento
desabrido e alegre varre as dunas.
Leva consigo toldos, roupas, crianças.
Quando mais tarde a luz,
esta tão leve luz meridional
regressa, já as gaivotas
são senhoras das areias
e, minuciosas, de maneira exemplar,
destroem tudo quanto é ainda
a mal cheirosa memória humana
numa espécie de paixão —
digo-vos.
A PORTA

Porque
por essa porta
sobre a rugosa luz da tarde
terás ainda tempo
de pegar nos pés e meter-te a caminho,
sem raízes
a enredar-te os passos,
pois para a morte
não tens ainda palavras,
ainda não, ainda não, ainda não.
MELANCOLIA

O sol mal entra em casa — escrevo


sobre a fugidia
luz de areia,
luz que não encontra morada.
Tudo me dói neste dia
em que os mortos deixam à porta
dos vivos
a corrosiva melancolia.
TEATRO DOS DIAS

Ninguém cheira melhor


nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.
O SAL DA LÍNGUA
APROXIMA A BOCA

Aproxima a boca da nascente:


não te importes
se for silêncio só
o que te chega aos ouvidos:
é música
ainda. Tenta uma vez mais
levantar a mão até ao bafo
da primeira estrela,
a pupila atenta
ao rumor de cada sílaba:
não tens outro país, não tens
outro céu.
Com a boca, com os olhos,
com os dedos
procura tocar a terra cheia
do teu coração.
Outra vez.
O LUGAR DA CASA

Uma casa que fosse um areal


deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
ESTOU AQUI

Estou aqui sentado — ali o mar,


as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?
CADA COISA

Cada coisa tem o seu fulgor,


a sua música.
Na laranja madura canta o sol,
na neve o melro azul.
Não só as coisas,
os próprios animais
brilham de uma luz acariciada;
quando o inverno
se aproxima dos seus olhos
a transparência das estrelas
torna-se fonte da sua respiração.
Só isso faz
com que durem ainda.
Assim o coração.
OUÇO FALAR

Ouço falar da minha vocação


mendicante, e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
SEMPRE A ÁGUA

Sempre a água me cantou nas telhas.


Habito onde as suas bicas,
as suas bocas jorram.
As palavras que no cântaro
a noite recolhe e bebe
com agrado
sabem a terra por serem minhas.
Não sou daqui e não vos devo
nada, ninguém
poderá negar a evidência
de ser chama ou água,
fluir em lugar de ser pedra.
Perdoai-me a transparência.
COMO SE A PEDRA

Escuto como se a pedra


cantasse. Como
se cantasse nas mãos do homem.
Um rumor de sangue ou ave
sobe no ar, canta com a pedra.
A pedra nas suas mãos
obscuras. Aquecida
com o seu calor de homem,
o seu ardor
de homem. Escuto
como se fora a minúscula
luz mortal que das entranhas
lhe subisse à garganta.
A sua mortalidade
de homem. Canta com a pedra.
VÊM DA INFÂNCIA

Vêm da infância, essas mulheres.


Caladas, discretas, sem pressa
de existir. Esplêndidas mulheres essas,
penteadas com a risca ao meio,
as orelhas descobertas pelo cabelo
de sombra clara.
No seu coração o mundo
não era tão pequeno e o que faziam
não lhes parecia humilhação.
Sabiam envelhecer com a vagarosa
luz das crianças
e dos animais da casa.
A par da rosa.
SÃO COISAS ASSIM

São coisas assim que tornam o coração


vulnerável: o regresso
das cegonhas brancas,
o comboiinho do ramal do Ceira
que parece de corda, as oito linhas
da Canção Nocturna do Viandante
que Schubert musicou.
Quem dividiu comigo a alegria
merecia ao menos
que o trouxesse à orvalhada
e limpa terra do poema. Mas também
o poeta escreve direito por linhas
tortas: a poesia é a ficção
da verdade. Não será
a curva apetecida do teu peito
mas os lémures de Madagáscar,
que só vi num filme francês,
o que verdadeiramente queria
hoje trazer ao poema.
A PULSAÇÃO DAS SÍLABAS

Ele amava a pulsação das sílabas,


alguns acentos: quarta, oitava, décima.
Procurava nela o que nem sabia,
o que nunca soube, ou suspeitara:
um sentido, o sinal da graça, o frágil
fio que conduzisse à vida,
tão aquém do desejo de vivê-la.
Quanta obstinação, quanta incerteza
foi sempre a sua no que fazia,
lá onde o corpo se faz alma
ou a alma se faz corpo — como sabê-lo?
O tempo quase nada lhe ensinara,
mas prosseguia, insatisfeito
ou inseguro, que nem isso sabia.
Entre impulsos, crispações, reticências,
perseguia o ritmo da música mais sua
com empenho igual ao que fora antes
pura delícia, carícia breve. Só a mão
não mudara — sempre tão leve.
TALVEZ

Talvez nem tenha nome.


Anunciado só pelo frémito
da folhagem.
O riso invisível, o grito
de um pássaro, o escuro
da voz. Certa doçura,
certa violência.
O espesso, volúvel
tecido da noite agora a roçar
o corpo da água. E por fim
a muito lenta paixão
do fogo, sufocada.
Era o verão.
CAEM COMO PEDRAS

Caem como pedras felizes na água.


São três ou quatro garotos
fugindo à dureza do ar
seco — são
eles com o seu riso
que tornam o rio navegável.
Provavelmente não têm mais
que o esplendor do corpo nu,
o seu olor a fruta verde,
a alegria
que na água vai correndo
partilhada com a luz
de agosto e os olhos
de quem lentamente aprende
também a despir-se,
sem sequer saber se chega
a tempo de haver ainda rio.
RECOMECEMOS ENTÃO

Recomecemos então, as mãos


palma com palma.
Diz, não digas, a palavra.
As palavras terão sentido ainda?
Haverá outro verão, outro mar
para as palavras?
Vão de vaga em vaga,
de vaga em vaga vão apagadas.
Seremos nós, tu e eu, as palavras?
Onde nos levam, neste crepúsculo,
assim palma com palma,
de mãos dadas?
O ESPÍRITO DO OUTONO

Terei de falar do espírito do outono


agora que setembro
chegou ao fim. (Espírito
é palavra suspeita: não há
hipócrita que não se abrigue
à sua sombra.) Será
a embriaguez? O vento matinal
arrastando folhas
raparigas canções?
O sopro frio das estrelas?
Será a beleza,
o espírito do outono? Há um limite
para o homem, um limite
para suportar o peso do mundo.
Da beleza, da bárbara
orgulhosa beleza, quem sabe defender-se
sem medo do coração lhe rebentar?
SE DESTE OUTONO

Se deste outono uma folha,


apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
OCORRE-ME TROPEÇAR

Ocorre-me tropeçar em ti numa linha


que escrevi noutra idade — tão discreta
é a tua presença que ninguém
a não ser eu te poderá descobrir.
E sinto-me grato, como também o estou
ao gato do quintal ou às gaivotas
que esgravatam em tantos versos meus
à procura de sol fresco para alimento.
«É o seu peito, a sua boca», digo então,
e na penumbra do quarto por instantes
brilha de novo o corpo do desejo.
BARCOS OU AVES

De noite eram barcos, de manhã são aves:


entram cantando pela casa.
Juntos vão pelos dias como irmãos
gémeos, dependentes
uns dos outros como estrelas
da mesma constelação.
Cada viagem já foi a voluptuosa
descoberta de emoções
de porto em porto; agora
é só o gosto inteligente
de regressar à pequena praça
de muros caiados, à casa
onde o corpo se reconheceu noutro corpo,
fiéis a esta luz, este mar.
VÊM DE UM CÉU

Vêm de um céu antigo, um céu


talvez de ficção. Vejo-as chegar,
vejo-as partir. São aves
de passagem, não lhes sei o nome.
Têm como eu pouca realidade.
Seguem a direcção do vento,
rumo a sul, chamadas
pela cal ardendo sobre o mar.
É difícil, a nostalgia;
naturalmente mais difícil quando
o tempo fere o nosso olhar
e o priva do que fora mais seu:
a nudez musical da luz primeira.
Mas de que falo eu, se não forem aves?
NO FIM DO VERÃO

No fim do verão as crianças voltam,


correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem.
Elas, frutos solares:
laranjas romãs
dióspiros. Sumarentas
no outono. A que vive dentro de mim
também voltou; continua a correr
nos meus dias. Sinto os seus olhos
rirem; seus olhos
pequenos brilhar como pregos
cromados. Sinto os seus dedos
cantar com a chuva.
A criança voltou. Corre no vento.
VERDADE POÉTICA

Há quantos anos estás aí, na eira


ou no telhado, esgadanhando
o pão difícil sol a sol,
aceitando as migalhas do nosso coração,
compartilhando entre a poeira
a cama da nossa obscura condição;
irmão do libidinoso e romano
pássaro de Catulo; sempre
à nossa roda, mais verdade poética
que criatura natural, como um poeta
americano disse do pardal.
Hoje é um português nada orgulhoso
de o ser que te abre as portas
do poema e te convida a entrar,
pois não fizeste do teu canto um luxo
nem traficaste com o bem comum —
por isso como os garotos da rua
descobres o gosto da vida
até num charco de água turva.
NO RITMO SURDO

No ritmo surdo sem forma ainda


de um verso
surge um corpo aberto ao sol
da minha mão.
Pertenço já tão pouco ao meu
corpo que nem sequer
beijei quem me entregava a boca.
Que luz recusava assim
por recear
que de tão verde fora amarga?
Como cheguei a isto, despido
de quanto amei? Terias sido tu,
que de tão jovem me envelheceste?
Diz, não digas. A ternura
dirá o que não sabe o desejo.
DEMORASTE MUITO

Demoraste muito, desta vez.


Cheguei a pensar que te perderas
na crispada brancura da neve.
Uma luz anónima,
de fotografia antiga, é agora
a tua. Já não terás outra.
Nem outro silêncio por vestido
a defender-te do frio.
Há no entanto no teu olhar
certo orgulho velado,
como se a claridade
fosse a tua casa, a tua
idade. E a rosa
que sempre vi na tua mão
ainda lá está, embora apagada.
Nada pergunto, nada me dizes,
mas um sorriso breve brilha na sombra.
Anónima, não tarda
que a luz te proteja e leve.
NÃO O PROCURES

Não o procures perto do mar,


não o procures nas colinas.
Se o não descobres nos fenos,
se o não pressentes nas fontes,
procura-o nesta canção.
O seu canto vem de outro rio,
a fêmea de outro lugar.
Só quem ama assim as aves
traz o sol todo na mão.
O pão alvo está na mesa,
as azeitonas, o vinho,
ao lado a rosa, também ela
trazida de outra canção.
Não tardará que o melro branco
venha comer contigo
e com a luz fina de abril.

Assim há-de cantar um dia


a terra,
o seu coração pueril.
A POESIA NÃO VAI

A poesia não vai à missa,


não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do verão.
AGORA AS PALAVRAS

Obedecem-me agora muito menos,


as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão ariscas, escapam-se por entre
as mãos, arreganham os dentes
se tento retê-las. Ou será que
já só procuro as mais encabritadas?
ACARICIO UMA VEZ MAIS

Acaricio uma vez mais a doçura


da madeira: tábua,
tábua do meu ofício,
companhia
de horas e horas sobre os joelhos,
onde no espanto do papel
tropeço, balbucio,
enquanto a manta trazida
das ilhas do norte me resguarda
do frio, em horas a que a névoa
faz do Douro um muro;
tábua que me tem seguido
de casa em casa, rio
em rio, aplainada, polida,
por mãos que se perderam
no avesso dos dias.
EM NEW BEDFORD

Era em New Bedford: um barco


partia para Nantucket.
Tremo fascinado pelo deserto
branco desse nome.
Melville, Moby Dick, o mar — de súbito
tudo rompia daquelas sílabas;
um mar feliz de cachalotes coroados
por jorros de espuma,
as núpcias do touro branco
com a baleia azul
no manso prado das águas,
a misteriosa fonte da alegria,
os saltos para o sol, o canto
fundo, a valentia, o ardor
entre homens e baleias. Era também
a morte. A morte nunca é limpa.
A morte cresce no escuro,
propaga-se no ar, entra pelas narinas.
Só o deserto é branco;
a morte não; só o mar.
DOS LADOS DO MAR

Como Pelléas, também o vento de março


vem dos lados do mar.
Há nele uma aspereza de que sempre
gostei: a da fala
dos homens que estendem as redes
no sol dos varais, a dos frescos
de Siena onde também
passou um vento frio ao anoitecer
— o das escarpas de Alpedrinha,
que sempre, sempre, me escapava
entre os dedos e deixava nos cabelos
um cheiro à matinal luz da resina.
O que entrou pela janela
esta manhã e me bate na cara
traz o aroma das dunas,
cheira a barcos, ferrugem, alcatrão.
É o vento da Cantareira.
NADA

Nada, nem sequer o verão


está completo. Menos ainda o colar
de sílabas que, desvelado,
te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca
te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
ao sol que declina, à estrela
do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
silêncio musical que do teu olhar
cai nos meus olhos
e regressa a ti acrescentado
pela luz da manhã varrendo o mar.
É ASSIM

É assim:
a gente despede-se, vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças, mágoas,
injúrias, morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca, ao calor
animal do estábulo,
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos —
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar.
COM ESTE BARRO

Com este barro, tão pobre


tão magro tão escuro,
com este barro onde a luz,
até a mais dura, dificilmente
penetra;
onde a água, também ela
crua, não se demora,
e se escapa; com este barro
onde só a solidão,
essa sim, funda e tão nossa,
se sente em casa;
com este barro
— que pão, que roupa, que morada
hão-de fazer mãos assim
tão cegas e tão ávidas?
NO MEU DESEJO

Tem dó de quem não dorme,


de quem passa a noite à espera
que desperte o silêncio.
O vento devia cantar nos plátanos
com a lua nova, ser mais uma folha
feliz nos ombros do outono.
Mas o vento parecia ter endoidecido:
de leste a oeste varria
a rua, varria a noite: o vento
alegremente
varria o mundo — em turbilhão
arrastava o lixo mil vezes imundo.
E o sono chegava.
COMO PÓLEN

Como pólen ou semente minúscula


e alada dessa herbácea,
tão vulgar à beira dos caminhos,
a que chamam dente-de-leão,
que um suspiro ou a passagem
de um insecto desprende,
leva consigo; como ela,
assim leve, fosses na aragem,
ó subtil emanação
da terra: vai, vai e não regresses
senão quando o ar for limpo,
limpo como a palma
da mão, confundida
com a poalha
de oiro de um olhar.
ACERCA DE GATOS

Em abril chegam os gatos: à frente


o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mas foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra, uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não lhe tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
depois entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do Público ao domingo.
ARCO-DA-ALIANÇA

O verde da luz tímida


das tílias,
o amarelo solar
do matinal cantar dos galos,
o azul feliz das uvas de Corinto,
o roxo friorento das primeiras
violetas, o vermelho
glorioso do grito dos falcões:
de norte a sul
era o arco-íris que rompia
na manhã molhada,
era o inverno que se ia embora,
o velho e sonolento
inverno que partia:
da janela
avistam-se as últimas barcas —
COM ULISSES

Com Ulisses à proa, quem não gostaria


de correr os mares? Da última vez
que estive na ilha ainda
a sua sombra me guiava.
Na colina do templo
não deparei senão com colunas
caídas, cardos, silvas à roda
ocultando algum ninho de cobras.
Enquanto pensava nesses homens
que se batiam como quem encontra
voluptuosa a própria morte, reparei
por acaso na haste branca
de um espinheiro, e como dela
escorria um fio de sangue negro
e na terra nua se perdia.
À SOMBRA DE HOMERO

É mortal este agosto — o seu ardor


sobe os degraus todos da noite,
não me deixa dormir.
Abro o livro sempre à mão na súplica
de Príamo — mas quando
o impetuoso Aquiles ordena ao velho
rei que não lhe atormente mais
o coração, paro de ler.
A manhã tardava. Como dormir
à sombra atormentada
de um velho no limiar da morte?,
ou com as lágrimas de Aquiles,
na alma, pelo amigo
a quem dera há pouco sepultura?
Como dormir às portas da velhice
com esse peso sobre o coração?
PARA DAR

Para dar tenho ainda quatro pedras


de cal, quatro punhados
de neve, quatro rosas
roubadas à espuma das vogais.
Tive noutro tempo um lódão
à porta, nele cantavam
as estações e as aves.
Cantavam afectos, melancolias,
coisas pequenas, leves:
a delícia dos dias.
Cantavam quando a luz rompia,
e quando a luz se esfarelava
ainda se ouviam cantar.
Seriam elas?, seria eu?
Ofício triste, o do mar.
HÁ JÁ DOIS DIAS

Há já dois dias que chove: céu


árvores e até o mar, tudo tem
a mesma cor da lama.
A chuva trouxe também a derrota
dos democratas americanos
nas duas câmaras do Congresso.
Poro a poro o frio
negro da melancolia vai
penetrando fundo. Procuro
na Missa em Si Menor
qualquer coisa parecida com a luz
mesmo ferida
que a corrente leva consigo.
Música assim, feita com um saber
que é paixão seja pelo que for, deuses
ou homens, já não é possível.
Por não haver deuses? Por
não haver homens?
NÃO SE APRENDE

Não se aprende grande coisa com a idade.


Talvez a ser mais simples,
a escrever com menos adjectivos.
Demoro-me a escutar um rumor.
Pode ser o prelúdio tímido ainda
do cantar de um pássaro, uma gota
de água na torneira mal fechada,
a anunciação do tão amado
aroma dos primeiros lilases.
Seja o que for, é o que me retém
aqui, me sustenta, impede de ser
uma qualquer vibração da cal,
simples acorde solar, um nó
de luz negra prestes a explodir.
A CUSTO

Embora a custo, desprende-se,


abandona-me,
o verão — ganhara raízes
fundas no que fora
terra aberta ao seu fulgor.
Deixou marcas, o cabrão:
dói-me a cara toda, o cabelo,
os lábios, sobretudo
as pálpebras porosas.
Vai sendo tempo de
considerar as minúsculas veredas
que por todo o corpo correm
não sei para que estrela,
escutar com atenção
a narrativa do silêncio.
Por mais solar
que seja o coração chega-se sempre
a isto — e isto
tem a forma de elegia
onde um rio e outro rio vão morrendo.
NÃO SABEMOS

Não sabemos nada, e o que temos


é pouco: um nome,
um nome em prosa correntia;
tão pequeno que nem sequer
alcança o ramo
em flor da tília; menos ainda
a estrela do pastor;
um nome comum, Joaquim
António João,
bom para dizer quando o frio
é mais duro;
nome que bebe o orvalho
nos olhos de amigos mortos
tão cedo; ou perdidos.
AINDA O POÇO

O que me traz o verão não é


o desabrido
e ácido canto das cigarras
que o sol
ajudou a subir à coroa
dos pinheiros;
não é o mar, o mar entrando
pelas janelas,
o mar repetido de boca
em boca; nem as aves
que nascem da sua ondulação
e tanta vez fazem ninho
nos meus versos;
hoje o que me traz o verão
é o grito
negro das águas — ouço-o
raspar, trepar pelas paredes,
morrer à boca do poço.
NÃO CHOVE

Não chove ainda mas a terra


na sua amarelenta e fria cor
já cheira a chuva.
Não poderia viver onde a luz
fosse estrangeira. Teria medo
de morrer sem partilhar
com o sol do meio-dia
a pulsação do próprio olhar.
Não se pode mudar de luz
como quem muda de camisa:
o meu país
é onde a pedra acesa do mar
ilumina as veredas
do coração. E a cal
escorre dos muros e do tronco
das oliveiras. Até ao chão.
EM ESTILO AMÁVEL

Chega ao fim o verão, resta-me agora


a poesia a caminho da prosa.
Pelo lado matinal
um gato pé ante pé aproxima-se
de um pardal saltitando
entre as folhas amarelas. «É o meu coração,
a luz é o meu coração», diz ele, e salta,
voa na tarde. O mar
recua, uma criança vem vindo pelo molhe,
canta canta por cantar.
Um velho traz o céu
azul pela mão, olha de soslaio
os rapazes ao passar. Afável,
distraído, simples de espírito.
Como deus. E como eu.
O RAPAZ DE PASOLINI

Tem o braço levantado para o sol


que rompe muito distante ainda
do seu sonho; é um rapaz
desses do Pasolini esplendidamente
nu, plantado na terra;
o braço direito,
como já disse, levantado; o outro
cai-lhe sem abandono ao longo
do corpo; o sorriso
começa nos olhos de sua mãe
e nele a mágoa
de ser traído não se anuncia
ainda; o futuro
talvez venha a ter gente assim
feita da substância
da luz; o vagaroso futuro;
o presente não, não tem.
NÃO SEI

Não sei porque diabo escolheste


janeiro para morrer: a terra
está tão fria.
É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das folhas:
cobre o chão de esquecimento.
Eu sei: tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal. Paciência,
querido, também Mozart morreu.
Só a morte é imortal.
À MINHA PORTA

À minha porta senta-se outra vez


o inverno. Traz consigo
o mar. Está velho
e magro o mar, negro de crude.
Também traz árvores; cegas
e sem nenhum pássaro:
mesmo sem vento cambaleiam.
Tenho dó das suas folhas
de borco na rua,
a respiração difícil.
Quem virá, injuriando o tempo,
sacudindo as grossas
gotas de frio?
Só um sorriso aceso
lhe aqueceria as mãos; do coração
não falo: não há lume
que o torne enxuto e novo.
O SAL DA LÍNGUA

Escuta, escuta: tenho ainda


uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém — mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
CODA

A luz,
a luz trazida
pelos rosados pés dos pombos
dos confins da alegria

— quem pudera levá-la


à boca e dormir apaziguado.
PEQUENO FORMATO
RUMORES DO VERÃO

As cigarras cantam
como no inverno
arde a lenha verde.

Um rumor pueril
e doce de abelhas
acrescenta a sede.

Quando o sol avista


os flancos do mar
despe-se a correr,

e dança dança dança.


QUE TRABALHO

Que trabalho exasperado, o da língua,


essa em que dizes com mão insegura
desvios, desacertos, desalinhos.
A PEQUENA VAGA

Mar de pequena vaga e céu azul:


a irrupção das frésias na manhã
faz destas ruas um jardim do sul.
CANÇÃOZINHA PARA A MARIA HELENA,
EM OXFORD

Abril, abril!,
quando o outono vier
que lhe diremos
da chuva que canta
e canta na pedra?
Que lhe diremos,
abril, abril,
de luz tão lúcida
que se faz rosa
antes de ser música?
MADRIGAL

Abro as Folhas de Erva e saltam


de lá dois esquilos.
Vêm de um jardim de Long
Island — o olho
de lume negro muito vivo.
Adoro estes cachorrinhos
cor de baunilha: com eles
quero entrar no Paraíso.
DO SUL

O branco branquíssimo do muro:


a beleza concreta, acidulada,
do rigoroso espírito do sul.
VERÃO

Era verão, pela varanda entrava


a madura ondulação do trigo,
o grito lancinante dos pavões,
o cavalo na sombra ardendo em cio.
DESENHO ANTIGO

Às vezes ia pela tarde


até ao rio.
Os álamos
mesmo em agosto
quase de bruma.
Por caminhos
de cabras, nem pastor
nem gado.
Só o riso dos rapazes
despindo-se
perto da água
— o sexo exasperado.
DANÇA

Eram a delicadeza, a graça.


Mas também a fúria
da gataria ardendo nos telhados.

São jovens e dançam — formosos


como as dunas, os trigos, os cavalos.
A PRUMO

O olhar
que no céu se faz ave
desce ao seio
lento da colina,
voa sobre o rio,
os amieiros,
mais adiante o rebanho,
por fim sobre o pastor
cai a prumo.
Literalmente.
FRUTOS

Pêssegos, peras, laranjas,


morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.
AO FIM DA TARDE

Ninguém esperava ver o mar naquele dia


mas era o mar
que estava ali à porta naqueles olhos.
CANÇÃO

Pedi às vagas
altas e sucessivas
que fossem como folha
de álamo;
que fossem sobre o coração
carícia ou só
memória de lábios.
JARDIM DE PASCOAES

O que da boca
das fontes sai às golfadas
é o silêncio
— e sem o rumor da água
como pode a estrela
florir,
a pedra arder e ser ave?
OUTRA CANÇÃO

Com as quatro folhas


dos trevos do verão
farei uma casa
sem portas sem janelas
para te esconder,
farei um rio
de sombra onde dormir
contigo nos olhos
para não morrer.
COMO NO INÍCIO

É a noite por fim, podes tocá-la.


Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.
AS SETE BICAS

O silêncio com as suas sete bicas


ou o lume anunciando a neve
sabem da cumplicidade
do sol e da cal, da boca e da sede.
JANELA

Também aqui
o verão se demorou
na luz rugosa das tílias
e ao outono abandonou
flancos e crinas.
APROXIMAÇÃO DE COLOANE

O primeiro pregão da luz insegura,


a sitiada voz do azul das ilhas,
a marítima sombra das palmeiras
ardendo entre as águas e a bruma.
TEMPLO DA BARRA

O verde dos bambus mais altos é azul


ou então é o céu que pousa nos seus ramos.
JARDIM DE LOU LIM LEOC

Deste jardim o que levo comigo


é um ramo de bambu para servir
de espelho ao resto dos meus dias.
A PEDRA

A pedra. Sou-lhe fiel pelo aroma.


Vim de longe para tocar o fogo
da sua geometria sem fronteiras.
Pedra viva. Ou melhor: acariciada.
Pedra profunda, chamada pelo sol,
num voo sem fim, sempre parada.
PAISAGEM

A névoa que desde manhã fechava


as portas todas ao rio foi-se embora.
A luz é fria: esta é agora
a minha terra, o outono.
Todas as terras são afinal as mesmas
folhas cobrindo a relva, às vezes
cintilando quando o sol rasga a névoa.
IMPROVISO

Uma rosa depois da neve.


Não sei que fazer
de uma rosa no inverno.
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?
SOBRE O MAR

Sobre o mar
a mão escreve. Como se escrever
servisse para diminuir o erro.
Escreve
num país atravessado a prumo
pelo delírio.
País despossuído. O voo rasteiro
e curto. De muro em muro.
CANTAM NA MADRUGADA:

À beira
d’água a luz
é em mim que tem morada:
tão longe
ainda a última barca.
A JORGE PEIXINHO

Faltava-te essa música ainda,


a do silêncio, fria de tão nua,
agora para sempre e sempre tua.
ÚLTIMA VARIAÇÃO

Deixei de ouvir o mar,


depois os frágeis dedos do frio,
depois a luz rasteira do linho.
O AZUL

O azul, o azul para cobrir o corpo,


é a minha herança, o azul da cal.
À SOMBRA DE VICTOR HUGO

A sombra é sempre escura até mesmo a dos cisnes.


OS LUGARES DO LUME
Ao João Miguel Fernandes Jorge,
ao Joaquim Manuel Magalhães
DAI-ME UM NOME

Dai-me um nome, um só nome


para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.

Um só nome, para o desejo


ser na manhã corola
de cal, cotovia,

chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.

Um só nome para que tudo,


rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.
APRENDIZAGEM DA POESIA

Durou muitos anos, aquele verão.


Crescíamos sem pressa com o trigo
e as abelhas. Com o sol
corríamos para a água, à noite
num verso de Shakespeare ou
na nossa boca uma estrela dançava.
Aprendíamos a amar, aprendíamos
a morrer. A todos os sentidos
pedíamos para escutar o rumor,
não do mundo, que ninguém abarca,
apenas da brancura de uma folha
e outra folha ainda de papel.
ANUNCIAÇÃO DA PRIMAVERA

São as primeiras frésias do ano:


vieram da Holanda
para que a primavera entrasse
em janeiro pela casa dentro.
Com seu aroma e o vento solar
farei o lume,
farei o lume onde aquecer as mãos
e de chama em chama regressar
às oliveiras do sul lentas e claras,
ao azul estendido nas pedras nuas
da Cantareira,
aos pardais ardendo nos ramos
do crepúsculo com a luz derradeira.
A FIGUEIRA

Este poema começa no verão,


os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de agosto
apenas me roçava, e partia.
DE RAMO EM RAMO

O branco do linho ou dos muros


do sul,
o carmim matutino,

o claro azul mediterrâneo, o limão


húmido ainda,
o laranja, o verde das oliveiras

prateado, o amarelo exausto


de glória, o violeta adormecido
da flor que lhe dá nome,

o ocre do trigo ceifado,


o negro quase
materno da terra lavrada,

é nos olhos que são ave


de ramo em ramo concertada.
À ENTRADA DA NOITE

Fogem agora, os olhos; fogem


da luz latindo.
Estão doentes, ou velhos, coitados,
defendem-se do que mais amam.
Tenho tanto que lhes agradecer:
as nuvens, as areias, as gaivotas,
a cor pueril dos pêssegos,
o peito espreitando entre o linho
da camisa, a friorenta
claridade de abril, o silêncio
branco sem costura, as pequenas
maçãs verdes de Cézanne, o mar.
Olhos onde a luz tinha morada,
agora inseguros, tropeçando
no próprio ar.
CANTUS FIRMUS

O vento sacode as palmeiras.


Não tardará a chuva.
Tem chovido tanto nos meus versos
que a chuva se tornou insuportável.

Apesar disso, os pássaros cantam.


São os melros de Messiaen.
Mesmo envelhecido
também o coração canta.

Acode-me aos lábios um nome.


É de noite: quando
a música cessa, o silêncio
como estrela brilha na boca.

Tenho pena das palmeiras


à chuva noite e dia, ao vento, ao sol.
Frente ao peso do mundo
são orgulhosamente lugar de amor.
A PEQUENA PÁTRIA

A pequena pátria; a do pão;


a da água;
a da ternura, tanta vez
envergonhada;
a de nenhum orgulho nem humildade;
a que não cercava de muros
o jardim nem roubava
aos olhos o desajeitado voo
das cegonhas; a do cheiro quente
e acidulado da urina
dos cavalos; a dos amieiros
à sombra onde aprendi
que o sexo se compartilhava;
a pequena pátria da alma e do estrume
suculento morno mole;
a da flor múltipla e tão amada
do girassol.
É ASSIM A MÚSICA

A música é assim: pergunta,


insiste na demorada interrogação
— sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração — por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.
ANUNCIAÇÃO DA PRIMAVERA — 2

Não sei de onde vem esta bruma,


se dos meus olhos, se
do rio. Um sol frouxo, próprio

das manhãs de domingo, escurecia


o vermelho, o amarelo das casas.
Dentro de mim, a musical

floração das cerejeiras havia começado.


Noutro lugar, noutro dia.
De repente, um pássaro inesperado

começou a cantar num ramo


que não havia, sobe a prumo no céu
onde a manhã total principia.
OS SULCOS DA MEMÓRIA

O rumor do pulso, a lentidão


do mar
na dobra do lençol,
as inumeráveis
vozes do verão em ruína

— a carícia hesita entre os olhos


e a mão.
ATRÁS DA PORTA

Iluminados pela cor do trigo


os animais caminham para a única
estrela ao seu alcance:

a música do pastor, arte ou festa


da sua juventude: estrela
taciturna, talvez morta,

ou pão da nossa idade: cama


a dividir com o frio,
canção do vento atrás da porta.
ARDENDO NA SOMBRA

Tu estavas ali,
perto da laranjeira.

(Porque havia
uma laranjeira ao lado
da casa.)

Estavas ali, as mãos


iluminadas.
A luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.

A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?

Ao longe erguia-se a poeira


quando o rebanho
ao fim da tarde
passava — era verão.

Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.

No tanque, um fio débil


de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.

Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
a minha.

Mas só ela.
E a laranjeira.
HÁ DIAS

Há dias em que julgamos


que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.
ÀS VEZES

Às vezes oiço morrer o silêncio —


é o mar que se afasta,
um ramo que partiu com
o insuportável peso

do mundo sobre o verde das suas


folhas, o silvo da lua
nova rasgando o chão das águas
estremunhadas, a rouca

respiração da casa
sufocada pelo glacial
ar das ruas, os passos de abril
descendo os últimos degraus.
SEMPRE ASSIM FOI

Sempre assim foi: entras na noite


completamente desarmado,
conduzido pelo ardor
dos decassílabos cambados

onde só a memória
da luz vive ainda, senhor apenas
de mãos tão inseguras
que tanto ocultam como desvendam

o minúsculo motor da vida —


mãos propícias aos trabalhos do barro,
mortais, dizia eu, e tão comuns,
tão desiguais.
O SACRIFÍCIO

Não gostaria de falar desse primeiro


encontro com as dificuldades do corpo.
Ou não seriam do corpo? Fora
do corpo haverá alguma coisa?
Foi há tantos anos, que espanta
que dure ainda na memória.
A extrema juventude guarda melhor
o tempo. Idade da flor, assim
lhe chamam. Idade de ser homem,
dizem também. O que é então
ser homem? Ou ser mulher?, se poderá
perguntar. Aqui, era ser homem: idade
de ir às putas. Entrava-se na sala
envergonhado, depois de se bater
à porta. Elas lá estavam; num salto
uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,
exclamou, olhando o cordeiro
do sacrifício. Ao fim, com dez escudos
pagavas o seres homem.
Não era caro, provares a ti mesmo
que pertencias ao rebanho
CORAL

É um dos corais de Leipzig,


o quarto. Sem sabermos como, desceu
ao chão da alma. A música
é este abismo, esta queda
no escuro. Com o nosso corpo
tece a sua alegria,
faz a claridade
dos bosques com a nossa tristeza.
Pela sua mão conhecemos a sede,
o abandono, a morte. Mas também
o êxtase de estrela em estrela.
E a ressurreição.
CANÇÃO DA MÃE DE UM SOLDADO
DE PARTIDA PARA A BÓSNIA

É muito jovem, sem tempo ainda


de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,


a cabeleira solta é a sua bandeira;
os pés brancos, irmãos
da chuva do verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã


que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.
A CASA

Nem sempre a luz vem assim:


salta como um rapaz muro após muro,
entra pela janela.

O brilho dos medronhos chega ao fim:


extrema ponta dos dias,
aproximação da água.

Dia feito para a música, dizias,


ou para a dança, acrescentavas,
ritmo puro, sustido.

De muro em muro, sem nenhum peso,


entra pela casa.
Agora é ela que dorme comigo.
ALGUÉM COM NOME

Agora vou falar da preguiçosa e fina


névoa entre os olhos e o rio.
Às vezes passava um barco.
Era como um arado lavrando
no meu coração a terra morta.
À proa o vento salgado dos pinhais.
Não sei para onde ia.
Devia haver em qualquer parte
um porto para o seu desassossego,
alguém de olhar molhado no cais
à sua espera. Numa cidade
pequena do Norte. Alguém
com nome, talvez Kai, os lábios
mordidos pelo vento, Kai
Haagen, no porto de Göteborg,
na costa da Suécia. Adeus, adeus.
O UNICÓRNIO

É o mais solitário, o mais esquivo,


o mais sonhador dos animais,
o unicórnio — a cadência dos versos
guiando-lhe os passos. Alguns
dizem tê-lo avistado ao crepúsculo
da noite, aproximando-se apenas
de raparigas e rapazes virgens
ainda. Não sei de quem o tenha
acariciado. Há os que pensam ser,
graças ao corno desmesurado
e afrontoso da sua virilidade,
encarnação do demónio. Talvez por isso,
os homens mal lhe pressentem o cheiro
atiçam-lhe raivosos os seus cães.
A PRIMEIRA NEVE

E depois, tão antiga a neve.


Só o lume a podia trazer
da fundura dos dias

a esta casa. Brancura estendida


em páginas lidas
a outra luz, dentro do sono.

Quase sem peso, sem nenhum


ruído — vinda de outros céus,
outros caminhos.

A primeira neve. E tão antiga.


OS PEQUENOS PRAZERES

O copo de água fresca


sobre a mesa,
a réstia de luz incendiando
ainda a mão,

as palavras que dão sentido à arte


dos dias a caminho do fim,
«a beleza
é o esplendor da verdade»,

o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,

a chuva em surdina
na folhagem do jardim
— a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.
ONDE OS LÁBIOS

Os lábios.
Distante, arrefecida chama.
Não só os lábios, também as estrelas
são distantes.
E os bosques. E as nascentes.
Também as nascentes são distantes.
As nascentes onde os lábios,
onde as estrelas bebem.
Só o deserto é próximo, só
o deserto.
SUL

Era por agosto, há muitos anos.


O cheiro da sombra
das oliveiras subia ao ar. Vista de baixo
aquela folhagem parecia um mar,
um mar de vidro,
quando o sol oblíquo lhe caía em cima.
Eram dois cães raivosos, eram duas
cobras enroscadas, eram dois rapazes
rolando pelo chão; lutavam,
mordiam-se, abraçavam-se.
Deviam amar-se muito, para se baterem
com tal ardor. Um sol verde
lambia agora a terra.
Eram muito novos, há muitos anos,
no pino do verão, debaixo duma oliveira,
onde só as cigarras monotonamente
consentiam.
FIM DE VERÃO

Talvez nem seja um tordo. Um pássaro


cantava. Seria o último
desse verão. A própria luz

não ajudava: não era barco


de manhã nem brisa ao fim da tarde.
Talvez o anjo do poema

pudesse em seu lugar subir aos ramos


e cantar. Mas os anjos
são tão distraídos! Deles não há

nada a esperar, a não ser fogo


de palha. Talvez nem seja um tordo.
O seu canto, só vibração do ar.
QUASE ELEGIA

Ainda terás nome?


Esse que te dei, chama
ou asa, ainda te pertence?

Se tens ainda nome


por que não respondes?, por que não
te aproximas para respirar

comigo o mesmo sol, o mesmo riso?


Também a transparência,
claro rumor de tílias, morre

quando se morre?,
ou só morre a espessura dos dias,
o peso do ar?

Com as mãos, com os olhos, seja


com o que for, dentes ou sílabas,
escavarei o chão até romper

a água — para sempre acesa.


ASSIM DESPIDO

Rosto despido, magra fonte


dos dias — assim começa a breve
fala que escuto

vinda de longe, assim o nome


desse cristal,
o tão amado e perdido

olhar; assim do prado branco


as águas de junho
ou de setembro descem ao mar;

assim as dunas onde as aves


pousam leve ou nos lábios
o canto arde;

assim a neve.
AO FIM DA MANHÃ

Era ao fim da manhã; talvez


o vento com seu manto de piedade
o tivesse ajudado: um pardal
surgiu no parapeito da janela.
Alguma coisa, pedra ou montanha,
lhe caíra em cima: no corpo todo
em sangue, só os olhos
baços imploram ainda.
Não era apenas o pequeno ser
que noutro olhar suspenso
sofria: a própria vida
lutava para negar a morte.
Não conseguiu — e tanto
o desejara quem os olhos suspendera
da frágil imagem do mundo
em agonia. Longe da luz onde nascera.
LUZ RECENTE

Respiras com cautela a luz


recente.
Deve ter acordado: canta.
Anos e anos adormecida
no fundo da pupila.
Já nem te lembravas
que fora assim tão jovem
e tinha
o nome da alegria.
Agora canta. Canta
em surdina.
CANÇÃO DE LAGA

Era em Laga, setembro e as suas águas


ardiam nos nossos lábios. Passou
tanto tempo que para morrer
só me falta voltar àquelas areias.
Tu tinhas vinte anos, roías
as unhas, sujavas a camisa
com o molho das amêijoas, eu pouco
mais tinha, nenhum de nós sabia
como é monstruoso amar assim
com os dias contados pelos dedos.
Hoje o verão entrou de rompante
pela casa dentro, vinha do mar,
trazia a luz molhada do teu corpo,
o difícil amor que dói ainda.
DESPEDIDA DO OUTONO

Eu já ouvira o apelo do tordo


junto às águas velhas
do rio, ou na luz vidrada

das lentas oliveiras do sul.


Pensava então que não podia morrer
quem tanto amou

o claro timbre das vogais


trazidas pelo mar — o outono,
esse morria nas chamas

altas dos castanheiros,


na sonâmbula ondulação
dos rebanhos, nos olhos das mulheres

de coração fatigado,
semelhantes a ramos partidos
— elas, que foram irmãs do orvalho.
CANÇÃO DO PASSEIO ALEGRE

No inverno o vento está como deus


em toda a parte: na cabeleira
verde dos cometas, no extenso
e turbulento sono dos rapazes,
nos cegos fundamentos da alegria.
Peço-lhe que tenha piedade,
que seja amável com os que não dormem
debaixo de telha, que sorria a quem
regressa a casa a desoras — a boca
amarga do fermento da tristeza.
À semelhança de deus, o vento
dança indiferente nas areias.
AO OUVIDO

Fica um pouco mais, fala


da terra iluminada
abrindo à última chama

do verão; tu conheces
a sua sede, a sua respiração.
Um pouco mais, sê

como sopro da tarde, acaricia


com mão pequena embora
o que no fundo da noite

resta da manhã; fala da leve


embarcação do vento, levando
consigo a poeira, o sarro

do tempo entornado no chão.


A terra é boa; ao meu ouvido
volta a dizê-lo.
A TEIA

As cigarras,
a brusca rouquidão da cal,
a surda rebentação dos cardos,
tudo o que faz o verão subir a prumo
chegou ao fim.

O frio, a sua teia branca,


lembra-te, não tardará.
OS SULCOS DA SEDE
Morro perto da fonte à míngua de água
Villon
VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até


a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
À BOCA DO CÂNTARO

Caminha sílaba a sílaba


como a fonte
que só pára à boca do cântaro.
Aí consente partilhar a água.
À audácia dos jovens, à timidez
dos que já o não são, mata a sede.
Aos que tropeçam na falta
de amor, aos que mordem as lágrimas
em segredo, dá a beber.
Leva aos lábios febris
a frescura da pedra. Não deixes
o medo multiplicar as garras.
Sílaba a sílaba
caminha até ao cântaro
vazio. — Tão cheio agora!
AOS JACARANDÁS DE LISBOA

São eles que anunciam o verão.


Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas — irmão dos pássaros —,
perder-me no ar.
A CABRA

Uma cabra vinda de muito longe;


o focinho orvalhado, nos galhos
a primavera suspensa.
Uma cabra vem vindo devagar
do crepúsculo matinal dos dias
tecidos de amor:
amor de mulheres fechadas no quente
da sua respiração,
amor de homens que se torcem
e retorcem ao sol a prumo do desejo.
Uma cabra. Pisando a relva
ou a neve.
Como quem não quer separar-se
de tão amarga substância do tempo.
SCHUMANN POR HOROWITZ

São herança camponesa, as mãos.


Estas pequenas mãos, de geração
em geração, vêm de muito longe:
amassaram a cal, abriram sulcos
frementes na terra negra, semearam
e colheram, ordenharam cabras,
pegaram em forquilhas para limpar
currais: de sol a sol nenhum
trabalho lhes foi alheio.
Agora são assim: fragéis, delicadas,
nascidas para dar corpo a sons
que, noutras épocas, outras mãos
se obstinaram em escrever como
se escrevessem a própria vida.
Ao vê-las, ninguém diria que
a terra corria no seu sangue.
São mãos envelhecidas, mas no teclado
são capazes do inacreditável: juntar
nos mesmos compassos o rumor
dos bosques em setembro e os risos
infantis a caminho do mar.
MEMÓRIA DOS DIAS

Vais e vens na memória dos dias


onde o amor
cercou a casa de luz matutina.
às vezes sabíamos de ti pelo aroma
das glicínias escorrendo no muro,
outras pelo rumor do verão rente
ao oiro velho dos plátanos.
Vais e vens. E quando regressas
é o teu cão o primeiro a sabê-lo.
Ao ouvi-lo latir, sabíamos que contigo
também o amor chegara a casa.
HAVIA VENTO

Era um mês incerto, havia vento,


eu não teria nascido ainda,
ou já teria morrido.
A fronteira entre luz e sombra
era muito difusa. Então
estranhamente o sol pousou
naquele corpo. Corpo que nunca
vira despido, que cheirava
a maçãs maduras,
com brilhos que desciam
às negras sementes da vida.
Estranhamente o sol demorou-se
nos seus ombros. Um último
brilho, ou suspiro, desprendeu-se.
O ar tremia — apesar disso eu era feliz,
tinha dez ou mil anos, já não sei.
OUTRA VEZ O TEJO

Um barco atravessa o Tejo.


Vem da infância, não sei para onde vai.
É branco, dessa brancura só dada
às aves. O rio,
que não via há tanto tempo,
entra agora pelas ruas de Lisboa
ao encontro da tão amada
luz dos jacarandás.
Volto a ter oito anos neste jardim,
vou perder-me nestas ruas,
nestas calçadas, onde o grito
das gaivotas sobe a prumo,
vou correr com o vento de esquina
em esquina, subir
com as árvores, ser
com elas poeira fina.
POEMA DE INVERNO

Veio de longe, e mal chegou


partiu para mais longe ainda:
só o tempo justo para fazer
das águas dormentes do meu trôpego
coração
um rumor de sílabas matinais.

Como toda a gente que partilha


com a luz a sua vida
era muito inocente, trazia do local
onde nascera
o ardor das coisas do mar.

Não sei de alegria tão pura


como a que morava nas molhadas
pedras dos seus olhos,
e baila ainda nas chamas
em qualquer lugar da casa.
Ao fim da tarde, o canto
do pequeno pássaro e o vento diziam
a mesma coisa: não deixes o incêndio
do deserto invadir-te o coração.
Sem que tu o suspeites, sequer.
NEVE

Oiço-te na extensão do sono


com dificuldade. O inverno, a neve
que nele havia, arde.
Era tão branco tudo: astros,
árvores, até as aves
que se abrigavam não sei
em que alpendres. E chamavam,
chamavam da brancura da neve.
Nenhum muro, nenhuma porta,
só a voz que chamava, doce
e pequena voz, a querer
partilhar comigo
o inverno, a neve, o mundo
amanhecendo, anoitecendo, branco.
O PEQUENO SISMO

Há um pequeno sismo em qualquer parte


ao dizeres o meu nome.
Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!
DA MANEIRA MAIS SIMPLES

É apenas o começo. Só depois dói,


e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.
OUTROS RITMOS, OUTROS MODOS

Não é o mar, não é o vento, é o sol


que me dói da cintura aos sapatos.
Sol de fins de julho,
ou de agosto a prumo: finas
agulhas de aço.
É o sol destes dias, aceso
na folhagem.
Bebendo a minha água.
Colado à minha pele.
É doutro território, doutro areal.
Tem outros ritmos, outros modos,
outros vagares para roer
a cal, morder-me os olhos.
Até quando cega canta ao arder.
OS NOMES

Há um tempo em que damos estranhos


nomes às coisas.
Por exemplo, fulgor; por exemplo,
mundo; por exemplo, desejo.
Nomes novos, como na infância
a neve.
Um dia acordas, tens treze,
catorze anos, descobres que estás nu
e tens ao lado outro corpo
também despido e menos inocente.
Ao teu ouvido, conivente com a luz
matinal das laranjeiras,
chega um rumor de sílabas roucas
húmidas de desejo.
Como noutros dias, de ramo em ramo,
a neve.
EM FLORENÇA, COM A FIAMA (1986)

Era em Florença, num verão sem usura.


A cidade, que nós víamos de San Miniato,
desfazia-se em luz.
Nos labirintos do Jardim Boboli,
tu e um melro rente à relva
cantava, um para o outro.
Não sei qual das vozes era mais pura,
se a do fio de água que subia
no canto do melro ou, mais frágil
e rente ao chão, a tua.
TODAS AS ÁGUAS

Água, água.
Porosas águas da alegria,
do pão na mesa.
Águas de Li Bai ébrias
de ternura,
de S. João da Cruz abrasadas
de amor, ó águas
de Claudel morrendo à sede.
Água. Água.
Todas as águas, todas.
Ó antiquíssima água das estrelas,
próximas distantes águas matinais,
oculta água dada a beber
num só olhar.
HERANÇA

É a minha herança: o sorriso,


o azul de uma pedra branca.
Posso juntar-lhe, ao acaso da memória,
um ramo de madressilva inclinado
para as abelhas que metodicamente fazem
do outono o lugar preferido do verão,
um melro que deixou o jardim público
para fazer ninho num poema meu,
um barco chamado Cavalinho na Chuva
à espera de reparação no molhe da Foz.
Deve haver mais alguma coisa,
não serei tão pobre, cometemos sempre
a injustiça de não referir, por pudor,
coisas mais íntimas: um verso de Safo
traduzido por Quasimodo, a mão
que por instantes nos pousou no joelho
e logo voou para muito longe,
as cadências do coração
teimoso em repetir que não envelheceu.
NOITE DE VERÃO

Passaram muito dias já, e se me lembro


dessa noite de verão
escurecendo de vaga em vaga
foi porque mesmo no escuro cantavam
as cigarras. Estendido
a meu lado respirava outro corpo.
Um rasto de juventude
habitava-me ainda. Há corpos
onde não termina.
Um vento leve, a que chamam brisa,
passava entre as miúdas folhas
da oliveira. De repente um cão
ladrou. Estremecemos ambos.
E soubemos então que, mesmo o amor,
teria um fim. Talvez naquela noite.
Talvez daí a mil anos.
DA POESIA ORIENTAL

Estou aqui com o verde distante


dos montes, o céu fosco
de chuva, um poeta chinês:
um desses homens que atravessaram
séculos e séculos como se não
pisassem o chão. A leveza
é a sua flor de oiro.
O poema fala de dois amigos
que se despedem: as palavras perdem-se,
ouve-se apenas o relincho dos cavalos.
Também Aquiles viu
os seus cavalos chorar a morte
de Pátroclo.
Chorar é a nobreza destes animais,
não dos homens.
A tarde não consente senão
lágrimas. E o trilo
de uma flauta, muito depois.
ÁRVORES

Sem fadiga, as árvores regressam


ao poema. Primeiro as laranjeiras,
a seguir entram as tílias.
Sempre estiveram perto, incapazes
de se afastarem dos pequenos
olhos imensos.
À sombra dos cavalos
podia vê-las chegar carregadas
do seu aroma, dos seus frutos frios.
A tarde chegava ao fim
mas tive tempo ainda
de as sentir, com um sorriso, aproximar.
NAS ÁGUAS DA SOMBRA

Elas são as mães:


rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.

Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.

Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.

Em segredo escondem
o latir lancinante dos seus cães.

Nos olhos, o relâmpago


negro do frio.
Longamente bebem
o silêncio
nas próprias mãos.

O olhar
desafia as aves:
o seu vii é mais fundo.

Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.

É quando dançam que todos os caminhos


levam ao mar.

São elas que fabricam o mel,


o aroma do luar
o branco da rosa.

Quando o galo canta,


desprendem-se
para serem orvalho.

O sorriso
é para a criança
que pressentem nas fontes.

Só elas conhecem
a morte
pelo cheiro da sombra
VARIAÇÃO SOBRE UM VELHO TEMA

Dai-me ainda outro verão,


um verão do sul,
um verão
de rolas frementes de cio,
de porosa alegria, de luz varrida
pela cal; dai-me
mais um verão rente à sombra
do pátio onde o rumor
do poço sobe aos ramos;
um verão limpo como o céu
da boca;
mais dentro, mais fundo.
Ou por fim o silêncio.
Caindo a prumo.
CHUVA

Todo o dia a chuva ocultou


o teu rosto.
Fechava os olhos para te ver.
À minha frente um céu de abril
trazido pelo teu riso
miúdo ou pelo trigo grão a grão.
Só de olhos fechados vejo
a cidade
onde te perco com eles abertos.
Assim adormeço — a chuva
acesa em lugar do teu rosto.
VINDAS DO MAR

São coisas vindas do mar.


Ou doutra estrela.
Seixos, ouriços, astros
pequenos e vagabundos, sem bússola,
sem norte, os passos incertos. Pouco
se demoram. Como a felicidade.
Seguem outra canção, outra bandeira.
Tudo isso os olhos traziam.
Do mar. Ou doutra idade.
UM SIMPLES PENSAMENTO

É a música, este romper do escuro.


Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica contigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
ESCREVO

Escrevo já com a noite


em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.
RILKEANA

De ti e desta nuvem; desta nuvem


branca como voo de pássaro
em manhã de abril; de ti
e da íntima chama de um fogo
que não consente extinção;
de ti e de mim fazer um só acorde,
um acorde só; para não te perder.
O SAL DA TERRA

Eram o sal da terra, as abelhas,


no ar leve
e verde das tílias.
Iam e vinham ligeiras como se a fadiga
lhes fosse alheia: algumas
regressavam à colina
onde tecem a seda da sombra;
outras caem a prumo,
embriagadas com a violenta
fragrância das tímidas flores
quase apagadas.
Basta estar atento
à luz oblíqua para descobrir
como a perfeição é completa deste lado
do mundo. Mas só eu agora
de olhos fechados sigo o seu rumor.
AS POUCAS PALAVRAS

Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.


Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
ditas como por acaso.

Eram contudo palavras de amor.


Não propriamente ditas,
antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.
Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras
brilharam. Não que fossem ditas,
mas eram de amor, ambora só adivinhadas.
Por isso brilhavam. Como folhas
molhadas.
MANHÃ DE JUNHO

Talvez, talvez sejam os últimos


dias. Se for assim, são um esplendor.
Apesar dos aviões da Nato despejarem
bombas e bombas no Kosovo, a perfeição
mora neste muro branco
onde o escarlate
da flor da buganvília sobe ao encontro
da luz fresca da manhã de junho.
A beleza (não há outra palavra
para dizê-lo), a beleza desta manhã
é terrível: persiste, domina —
apesar dos aviões, mesmo com
bombas a cair e crianças a morrer.
ARREPIO NA TARDE

Não sei quem, nem em que lugar,


mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.
CONTRAPONTO

Oiço-a ainda longe, a neve.


Vai chegar um dia como a luz de novembro,
antes passará pelos teus lábios.
E serás condescendente,
a ponto de lhe indicares o caminho
mais longo,
o que leva ao bosque onde
te peguei na mão
sem coragem para a levar à boca.
A neve tem esse lado acolhedor
de farol no escuro.
Antes de nos soterrar o coração.
ÚLTIMA CANÇÃO

Se puderes ainda
ouve-me, rio de crital, ave
matutina. Ouve-me,
luminoso fio tecido pela neve,
esquivo e sempre adiado
aceno do paraíso.
Ouve-me, se puderes ainda,
devastador desejo,
fulvo animal de alegria.
Se não és alucinação
ou miragem ou quimera, ouve-me
ainda: vem agora
e não na hora da nossa morte
— dá-me a beber a própria sede.
ALGUNS DIAS DE AGOSTO

Não tardará a chegar ao fim


este agosto que te viu passar com a luz
a teus pés. Somos eternos, dizias.
Eu pensava antes na danação
da alma ao faltar-lhe o alimento
que lhe trazias. Agora a cidade vive
do peso incomensuravelmente morto
dos dias sem a tua presença. Deixo
a mão correr sobre o papel tentando
captar o eco de uma palavra,
um sinal de quem em qualquer parte
cintila, e confia ao vento o segredo
da nossa tão precária eternidade.
SULCOS

De que lado viste chegar


o outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.
À BEIRA DE ÁGUA

Estive sempre sentado nesta pedra


escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.
HOMENAGEM A MARK ROTHKO

Amarelo, laranja, limão,


depois o carmim: tudo arde
nas areias
entre as palmeiras e o mar — era verão.
Mas no lugar do teu nome
a terra tem a cor do verde
pensativo, que só a noite
pastoreia leve.
LUME DE INVERNO

O lume. O lume rasteiro. O lume


ainda. Vem de tão longe. Da casa
térrea sobre a eira,
casa onde qualquer coisa pequena
pulsava: um coração,
a água no cântaro,
o trigo a crescer.
Era tão pequeno que nem sabia
como pedir uma laranja,
um pouco de pão.
Menos ainda, um beijo.
Parecia só saber
estender as mãos para aquele sol
rasteiro e para o olhar
que dos sortilégios do lume
o defendia.
SOBRE OS CISNES SELVAGENS DE YEATS

Agora anoitece tão cedo — tenho


medo de te perder no escuro.
Lembro-me dos cisnes selvagens
que do lago se erguiam soberanos
iluminando as águas e o céu
do outono ao fim da tarde.
Também eles se perdem
agora na inclinação da sombra.
Que país será o meu? Este,
onde vivo e sou estrangeiro?
O da luz atravessada
pelos cisnes? Sem ti, como saber?
RELATO BREVE

Deixarás a casa por acabar.


Ficarão nos muros janelas por abrir
para o primeiro,
o último crepúsculo.
No ar ainda doce, encostado
à parede, o limoeiro
voltará a florir para nenhum olhar.
No jardim uma ou outra flor resiste.
Talvez alguém passe e diga para si mesmo:
Como os goivos cheiram bem!
NA LUZ A PRUMO

Se as mãos pudessem (as tuas,


as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(a ave, as mãos, a voz.)
E fosse chama. Quase.
NOTAS
HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS (pp. 251-283)

Já me têm perguntado qual é, de entre os meus livros, o que prefiro. Não


soube nunca responder, mas não tenho qualquer perplexidade em referir
aquele de que gosto menos. Trata-se de As Palavras Interditas. Com
excepção de meia dúzia de poemas, entre eles o que dá título ao volume, a
maioria daqueles versos tornaram-se-me estranhos, não consigo reconhecer-
me neles. Por razões muitíssimo diferentes, posso dizer que também ponho
algumas reservas a estes Epitáfios. Mas aqui é mais fácil dizer porquê.
Eu não sei se na verdade poderá chamar-se livro a uma colectânea de
versos sem unidade, reflectindo variações de tom, flutuações de escrita e
outras marcas do tempo, a que a poesia não escapa, como coisa viva que
também é, e tudo isto por se terem juntado, em tão escassas páginas, textos
que chegam a distar mais de quarenta anos entre si. Que razão os foi
aproximando no meu espírito?
Na sua maioria, estes escritos foram-me solicitados por amigos, e num ou
noutro caso a insistência foi muita para que a tarefa fosse levada a cabo. Se
há poesia de circunstância (e eu creio que sim, que a maior parte não é senão
isso), nenhuma outra minha o é tanto como esta: desde versos ocasionais
para catálogos de artistas que estimo até à comovida lamentação por amigos
mortos, todas estas linhas não falam senão de amor por uma realidade fruste
que as mãos tocaram ou os olhos acariciaram, quantas vezes toldados pelo
pudor dos sentimentos. Também nenhum outro livro meu é tão veemente em
denunciar a miséria da intolerância, a estupidez da crueldade, o nojo da
hipocrisia; como nunca fui tão indiscreto na manifestação do calor da amizade
intelectual — Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira e Ruy Belo
foram criaturas da minha afeição, para lá de terem sido, como pouquíssimos
mais no nosso tempo, grandes poetas, e sobre eles tinha obrigação de ter
escrito melhor, porque o mereciam.
Sou um homem da margem, na grande tradição da poesia portuguesa, e a
criação poética não é para mim coisa amável — a poesia é uma prática de
desassossego. O acto da escrita não tem que justificar-se. Pelo menos eu
nunca o fiz, e não o faria agora se não fosse, ao preparar esta edição, o
desagrado que me causou alguma facilidade prosódica, o tom ejaculatório
que toca ou contorna alguns destes poemas, que foram, talvez por essa
razão, dos mais celebrados e, tenho que admiti-lo, também dos mais odiados
de quantos escrevi. A poesia é a fala de uma pessoa com outra, foi Eliot que o
disse, e ninguém o diria melhor. É claro que não são os poemas a Pasolini, a
Guevara, ao Dias Coelho ou «Contra o Nuclear», os que prefiro. Não pelas
suas implicações políticas, naturalmente, mas por se desviarem do que julgo
ser o carácter da minha escrita. As minhas preferências vão para
arquitecturas mais rigorosas, onde um punhado de substantivos e alguns
verbos, fascinados pela transparência, se equilibram em tensão constante, e a
voz contida não impeça cada sílaba de subir a prumo.

BRANCO NO BRANCO (pp. 371-405)

Branco no Branco é uma citação de Bashô, na tradução de Octávio Paz


(Narciso y biombo / uno al otro ilumina / blanco en lo blanco). Haverá ao longo
do livro citações mais subtis; deixo ao leitor o prazer de as descobrir.

O OUTRO NOME DA TERRA (pp. 451-479)

A primeira frase de Exemplos devo-a a um amigo; ao iniciar o poema com


as suas palavras dava-me a ilusão de que teriam sorte diferente daquele fio
de água que se perdera num emaranhado de silvas, de que me dava notícia.
É na referência à morte, ou à ausência nela da lembrança de quem
amamos, que um dos versos de «Sem Memória» se religa no meu espírito
aos Salmos — o versículo em questão anda sublinhado num voluminho de
capa preta que na minha adolescência me acompanhava muito, convencido
então de que existiam palavras sagradas. Não há tal coisa.
Não sei se existem neste livro outras dívidas, excluídas naturalmente as
que respeitam à incorrigível paixão de viver, de que não abdiquei ainda —
mas essas não têm aqui cabimento.

RENTE AO DIZER (pp. 481-507)

Duas ou três viagens marcam especialmente alguma poesia deste livro:


aos Estados Unidos, ao Norte de África (e Canárias), ao Oriente. Mas não é
só o génio desses lugares que se insinua nestes versos, também o espírito de
alguns poetas, ou pintores, ou músicos, ou filósofos, normalmente citados,
paira por aqui: Homero, Platão, Blake, Whitman, Williams, Sena, não me
lembro se outros ainda. Há contudo referências enganadoras: não sei bem o
que faz Montale em Maspalomas; quem lá devia estar era Li Bai ou Du Fu,
poetas que amo. Quanto aos lugares: espero que se reconheça a paisagem
da Beira Interior, por onde também passei — são de lá as águas negras, as
mulheres de preto, o brilho dos fenos, as sílabas do verão; mas o sorriso, os
gatos e os lódãos são da cidade que lentamente se vai tornando minha. E não
quero ocultar que, mais do que nunca, a preocupação maior destes versos foi
a de um fazer rente ao dizer.

O SAL DA LÍNGUA (pp. 539-573)

Homero, Melville, Kavafis, Pessanha, Williams são aqui citados, subtil ou


ostensivamente, a dar conta de uma paixão por essa «realidade rugosa» tão
rica de contradições que nos permite pôr Camilo Pessanha ao lado de William
Carlos Williams. São alguns companheiros de alma, seja dito com uma ponta
de presunção, marcas a delimitar um quintal, pequeno mas enobrecido pela
sua presença.

PEQUENO FORMATO (pp. 575-587)

O que o leitor vai encontrar aqui são coisas escritas, na sua maior parte,
em 1990/91; mas há meia dúzia de poemas recentes. Não se ajustaram ao
trabalho que então me ocupava, contudo não os inutilizei, como acontece
quando o que faço não me satisfaz. Ficaram à espera do toque de graça ou
golpe de sorte que os salvasse, o que provavelmente nem sempre aconteceu.
Alguns destes versos têm afinidades com outros já publicados: os quatro
poemas escritos em Macau, ou mesmo essa anunciação da primavera numa
rua do Porto, poderiam incluir-se em Escrita da Terra; outros, pela arquitectura
breve e luminosidade antiga, não ficariam mal em Ostinato Rigore.
0 mais provável era continuarem no envelope em que jaziam, se soubesse
negar-me a quem, sabendo da sua existência, mos pediu para uma edição
fora do mercado, ou se tivesse escrito, depois de O Sal da Língua, alguma
coisa com corpo suficiente para um voluminho com que pudesse acudir ao
apelo do amigo. É o que há a dizer dos trinta poemas, que não serão frágeis
por serem breves, pois alguns dos melhores que escrevi — «Nocturno»,
«Despertar», «Eros», «Nocturno de Fão», «Despedida», «Amanhecer em
Estremoz», «Arte de Navegar», «O Sorriso», «Balança» — são muito breves,
dessa brevidade que pode abarcar o mundo, quando quem os assina se
chama Goethe, por exemplo.
Disse trinta, mas corrijo: são trinta e um; o último é um verso de Victor
Hugo que, por capricho ou provocacão, incorporei ao caderno, e o encerra
admiravelmente. Paul Valéry, um poeta a quem devemos no nosso século
algumas das mais extraordinárias lições de poesia, diz dele (L’ombre est noir
toujours même tombant des cygnes), que é o mais belo verso possível, e que
não há meio nem esperança de se fazer melhor. São tudo palavras suas
(Cahiers, II, págs. 1135, Plêiade. 1974). Lá que é um verso invulgar não tenho
dúvida, mas é tão francesa a opinião de Valéry! Admito que na França, país
de prosa, não haja melhor (disso sabe ele...), mas então Virgílio (que Valéry
traduziu admiravelmente) e Dante e Shakespeare e S. João da Cruz? Até em
português é capaz de haver três ou quatro versos à altura do famoso
alexandrino.
Seja como for, apeteceu-me nacionalizar um ser tão admirável. E gostei de
o ter feito desta maneira: as sílabas bem contadinhas, os acentos todos no
seu lugar, e até conservar nas palavras extremas do verso, as capitais
(sombra, cisne, não só o contraste de cores como também o seu eco.

OS SULCOS DA SEDE (PP. 615-640)

«Todas as águas» foi publicado em Macau, em 1998, num álbum de


desenhos do arquitecto Carlos Marreiros. A versão era, naturalmente, muito
diferente.
«Nas águas da sombra» foi escrito para acompanhar litografias de Colette
Deblé. Bernard Noël fez a tradução francesa, tendo o poema e as litografias
sido publicadas pelas Éditions Écarts, Paris, em três tiragens limitadas, com
destino a bibliófilos.

POESIA (pp. 13-640)

O que se reúne neste volume (com excepção de uma vintena de poemas


destinados a próximo livro) é toda a poesia do autor. Livros e textos ficam
assim definitivamente — esperemos! — arrumados e fixados. Vale.

Foz do Douro, Junho de 2000

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