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As Casas
Os Nomes
ELISA, cuja primeira «casa» está (é) «vaga», e que se move para a
ocupar, para aprender aquilo em que se deve transformar e assumir —
escritora que se procura até ficar representável numa terceira pessoa
narrativa — é a que mais evidente e exibidamente trabalha o seu nome.
Personagem de palavras, personagem em «espera explicativa», pode
ouvir o seu nome como vazio («chamarem-me pelo nada do meu nome
próprio»), e por isso o seu trabalho é aqui o das tentativas de re-
motivação do nome, o da variante procura da fundação do seu próprio
nome, de forma a reduzir-lhe o arbitrário linguístico, a
convencionalidade familiar e social. Que esse como que sinal se
motive linguisticamente pela deformação paronímica, pela invenção de
uma etimologia, pela associação com nomes comuns, pelo jogo de
palavras, são os gestos de uma procura de dizer-se, de procurar-se um
sentido, significações que sejam vivíveis. Os seus «trabalhos de casa»,
copiando textos alheios ou fazendo as suas redacções, na sua II casa,
são explicitamente referidos como «a destinação de quem copia a
dúvida da identidade própria». A procura da motivação do nome
próprio é duplamente a experiência dessa dúvida sobre a identidade e o
traçado da sua procura por aproximações sucessivas, trabalho de
individuação. Trabalho que começa logo na primeira casa, onde estão
já formas várias do nome, e algumas delas, proferidas por diferentes
personagens: Maria Elisa, Elisa, Elisinha, Zizi, Zizinha; e onde os
primeiros gestos de motivação surgem: «Elisadédala», construtora de
labirintos; «Zizieuropa», continente à espera de que a parte que
touro(?). Tais gestos repetem-se, duplos ou mesmo triplos, na II, na IV
e na V casas: «Elisa Elisão / A Lusa Alusão»; «Elisa quer dizer o quê,
a eleita ou a elidida, suprimida? A elisão evita o hiato. A eleição evita
a bruteza clara, é a evitação do argumento da força? Dilecta, a que
deleita, para que fim? Estava a pensar no meu nome quando […]»;
«Considerou ainda nessa noite a proximidade de raiz semântica do seu
nome ao de Electra, a que atrai pela pertinácia do seu clamor de
reparação e ao de elektron, em grego o âmbar amarelo, esse cálculo de
petrificada resina translúcida, seiva volvida coriácea que atrai
partículas leves se insistentemente friccionada, quente, tida em mãos
que indaguem, rara, achável na orla de mares nórdicos contendo por
vezes um pequeno insecto incorrupto, suspenso morto.»
Todos estes gestos operam uma espécie de re-semantização do
nome próprio que funciona em dois movimentos; por um lado, a
caracterização da personagem enquanto processo de individuação
singular, por outro, o processo, interiorizado naquele, da sua
determinação familiar, mítica mas também social e histórica.
A determinação familiar faz-se, também, de duas formas: por um
lado, a ligação expressa com o nome da «bisavó Elisa, a Douda», a que
se pode atribuir ecos da personagem de Maina Mendes, a Muda (do
romance com aquele nome); por outro lado, a verosimilhança que as
alusões ao drama familiar de Elisa concedem à relação estabelecida
com a personagem mítico-literária de Electra. Elisa é de facto uma
espécie de Electra, marcada pela preferência do Pai e pela grande
imprecação que pede justiça. Electra é aliás o topos que permite
também simbolizar aquilo que o romance constrói como sendo um dos
aspectos da unidade complexa do trajecto de Elisa, a unidade entre o
drama familiar e o drama sócio-histórico, o drama político. E nesse
sentido, ainda, esta é uma maneira de o romance «provar» a tese de
Elisa: «as pessoas são na vida política o que são na vida pessoal». Essa
última componente daquela unidade manifesta-se, nos próprios jogos
sobre o nome da personagem, que o tornam uma questão nacional e
uma questão histórica, de classe. Elisa é «a lusa alusão», a portuguesa
(«É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a estar doente,
donde é que você vem?»); a que toma para si, como questão sua, a
resolver, a da sua nacionalidade, a lusitanidade do bairro, da cidade
(«Mas Elisa está obcecada com a sua nacionalidade por resolver.») E:
«Isto é uma abertura insuportável e eu não me chamo marcelisa, a lisa
deste Março. Estou contaminada de verve pseudoliberalizante, espécie
de delírio de preso em cadeia com ar condicionado, lawn e lavandaria
mecânica. É Março, embora, e alguma primavera urgiria, um destes
anos.» É a referência histórica levada à minúcia da alusão à conjuntura
política. Mas é, também, pela inscrição do gesto de demarcação, que
figura a posição nessa conjuntura, e do gesto que diz o desejo de
futuro, a operação de mostrar o ético e o político como constituintes da
individuação, de tal forma acentuados, que atingem a determinação do
nome próprio.
Os Pronomes Pessoais
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.»
«Terá que decifrar que é gente e que é nação ou tribo mais que um
modo de dizer-se singular e passar anulada, que é um par mais que
lugar de acariciar-se preferentemente, a danação, terá que,»
1.
3.
Dezembro 85-Janeiro 86
Manuel Gusmão
oh deixai de edificar
tantas câmaras pintadas
mui lavradas e doiradas
que é gastar sem prestar
alabardas, alabardas
espingardas, espingardas
não queirais ser genoeses
senão muito portugueses
e morar em casas pardas
Gil Vicente, Auto da Lusitânia
I
CASA DE ELISA
VAGA
Que lindo dia, que lindo dia, margaridinhas de olho de oiro
palmeirando mínimas os canteiros na berma da rua, tráfego, gentes,
tudo vestido de roupa lavada, do bruto azul das nove, pressa limpa,
pressa boa, deixai-me em paz e ao meu passo manso, cabeça azoada de
vozes de toda a noite fechada a ver se aprendo, leixai toda a esperança
de onde vos tendes lavado e para onde ides, fugidos, correntes e
determinados, ganhá-lo, ganhá-lo — ganho, se o houver para mim,
será aqui nesta clareza do não ter cegado de saltos de retina entre as
noites cerradas,
Era já noite cerrada dizia o filho prà mãe debaixo daquela arcada
passava-se a noite bem, Canta o resto, canta, Lala, Agora, Zizinha,
deixe-me as fitas do avental, credo, que seca, olhe a sua mãezinha que
vem lá, O pai deixa,
— Ouve, são cinco da matina, esta merda sem horas não é vida para
meninas, porque é que não voltas para casa da tua irmã, a gaja é chata?
disse o Lúcio.
— O que é que tu disseste à miúda? fala mais alto, não se ouve nada
com esta jigajoga aos berros,
Que lindo dia, que azul de respirar, que dia. Que alívio. Assim vai o
mundo, escapei Eu.
que lindo dia nas totais ruas da manhã, este azul de metileno e Eu a
passar navegada por ele, com olhos de hasch natural ou se calhar no
antigamente parisíaco absinto, em suma, olhos de oco em estômago e
noite à vela, olhos de mística por desleixo ou curiosidade, nunca nada
foi previsto, esteve-me tudo feito, não sei fazer muita força,
há vazios, ausências, e então dou por mim. Mim é então o que dá por
me dar por mim? Sou maior, faço vinte e dois anos, cumpro. Que
cumpro? A experimentação ad nauseam, Sartre maça-me muito, da
pequenez da licença? desta licença? A que costumes ater-me?
que lindo, lindo, ácido, claro, enchavelhado de luz para mim, dia,
chamo-me Elisadédala, ou, tendo em conta o estoirar do dia,
Zizieuropa, a cavalgar cachação de boi de abate. Am I going mad, with
God on my side1, ó Bob de cá?
vacilo
a mulher pára e se Eu precisasse deveras já de ser enxugada caía aqui
nas pedrinhas da calçada aos pés das mãos dela, cheias como disse de
sacos plástico,
mas isto não são horas de ser a classe operária e tudo o que é humano
me vai ser muito estranho, a agonia passa se me assento, sei muito bem
não cair na rua, pode-se aqui deambular ainda sem quebra, era em
pequena que Eu vomitava e caía muito, houve tantas solicitudes, it
takes all words to make a kind,2 sai um sorriso para a senhora do
Espigueiro, quando estou nisto fico muito religiosa e falo inglês, well,
I’ll be damned,3 ce n’est pas pourtant le désespoir, os bancos da
avenida, cornadura volutuosa do parar duro, estão perto.
Dou pelo ruído dos carros, cada vez mais, numa brutidão que jorra a
cada luz verde. E agora esta gaja tão, tão bem vestida e pintada. Está
muito mais vestida que ela mesma, carrega a farpela amarelo tourada
como um halo dentro do qual é melhor não mexer muito para não
desmanchar, o olho todo sol e sombra, irisante, bonito e claro como
um ovo estrelado magro, um passo pede licença sinuosa ao outro, um
flamingo filmado em câmara lenta. Já viu que a vi e despacha-me e
volta a ver. Sei muito bem que estou com roupas intermédias e usadas
gastamente, nem chique deste nem do outro, nem antes pelo contrário,
bota velha mas jourdan e não trago mostruário de colares, olheiras
como de droga mas olhos da mais primeira comunhão, tenho uma
córnea sólida. Odeio-a, excepto pela vacilação que lhe causo e é
sempre por aí que me apanham as almas cromadas a amarelo e sapato
de verniz. Fico logo sem saber se são menos o que parecem mais, ou
mais o que menos parecem porque ninguém as chama. Passou, passou.
Virou-se uma vez mas era mesmo para as botas. Naquelas casas é
preciso só ver o que se reconhece. Porra de botas. Será que para andar
deveras ao que ando só descalça e com um funil na cabeça e badalo de
contágio? Ou com umas chinelinhas de Viana e uma maxi de folhos?
como se calça uma pessoa que vai escrever pelas ruas, que vai
principalmente isso, uma pessoa fêmea? Com os sapatos da Agustina
que devem ser o que de mais parecido se faz em calçado no Porto com
o que de mais parecido se fazia em calçado no Porto? Como os da
Irene Lisboa, saldos da secção do Grandella nos anos trinta, se a
havia? Como a Virgínia Woolf, os mais feios da melhor loja, duas
vezes ao ano, por atacado, como os da Gertrud Stein, duas fivelas de
strass sem sola? Deus dos sapatos, como isto me está tudo a ir depressa
na cabeça, ou lá onde quer que é, que é também uma fala. Vejo o
prédio da Equitativa ficar todo enevoado e sei que estou a chorar
discretamente de pura frivolidade mansa. Se Eu escrever, então terei a
certeza que a escrita é também uma coisa frívola como um sapato
pensado. Até lá tenho que me comover por não saber o que hei-de
calçar-lhes. Se Eu um dia souber que toda a arte, mesmo a séria como
um raio, participa da mesma realidade equívoca que faz que o coração
humano deseje miríades de formas de sapatos, hei-de denunciar isso
mesmo e então não haverá mais doidos ou santos necessários sobre a
terra e ainda menos artistas. Acho que era isso que Eu queria, se
escrevesse — que o que tenha que ser perguntado aos ares não o seja
na terrível solidão dum sapato velho desirmanado na profusão dos
calçados. E se um dia escrever vou ter que ter cuidado com as imagens
baratas, com tudo o que é barato e se passa ao lado. Toda a gente quer
algo que ao menos imite o,
custoso.
Sei muito bem que era preciso um acto de força para reunir isto tudo.
Ou duma tão perfeita atenção que Eu pudesse ser como um espelho
passável, as criaturas punham-se-me nos olhos e Eu deixava-as passar
através para um mundo onde tudo estava passando-se aceitando e Eu
só tinha que estar assim, sentada num banco da Avenida, desta, desta
terra, a sorver o mundo todo pelos olhos para o lado de cá do de lá.
Tenho frio. Ouço melhor o sussurro do ventinho fino nas folhas,
Levanto-me, pela cor deve ir para as dez, um frio nos sovacos uma
vagueza, sento outra vez, tontura, foi depressa de mais, tenho o ânimo
alado, sempre pronta para o lado do ar, há que aprender a manejar este
feixe de coisas dúcteis mas inesperadamente ponderáveis, o corpo, que
às vezes me leva o que em mim fala, outras o puxo como papagaio
alteado à contravento, outras o todo uma só vibração, corda de vida
viva e isso é rectilíneo e dócil como o voo, musical acho. Levanta
agora debilzinho, posto em marcha não há azar, há na canseira andante
uma autonomia das pernas. Se não passo depressa o trânsito engole-
me, que força tem o não dormir, os carros parados enquanto Eu passo
parecem o monstro agachado de muitas cabeças que deveras são, o
monstro com que se coabita nas cidades e às vezes se lhe vai no ventre,
levado à mercê do choque, da aglutinação do osso e do metal. O Lúcio
chama-lhes popós, espécie de consagração do menino tímido e
pedestre que se mantém aos quarenta, sem privilégios, caracóis pretos.
Atravesso a rua com uma grande paciência e um meio sorrir a Lúcio
em mente, forjando-lhe loas, rosa preta do donde nunca poderei vir,
debaixo da amargura tão chá e às vezes reles, a indecomposta
esperança, cândida limpeza só à espera e há-de morrer assim,
manguito brando na mão, beijo húmido no olho que luz, dizendo à
morte, É o costume, lavado Lúcio que te usei de São Jorge para o
dragão do trânsito, Eu cavalgadura do pensar-te já agora cá do outro
lado, pronta para outra arrancada mais delgada de volta à Alexandre
Herculano, as coisas que Eu fazia a esta malta dos copos se tivesse
tripas de misericórdia tónica maiores que as da cerveja. E é agora a
evocação da fala de Luigi invocando-me que me trava os ímpetos de
regeneração parva, Zizi aérea, tinta nas veias, manitas de plátano,
virginiña loba. Acho que ninguém me estima com tão desrespeitoso
gáudio, o único que mastiga palavras e o sumo lhe escorre pelos
queixos,
que agora debaixo dos meus pés, é debaixo dos meus pés que a cidade
muge um só ronco indistinto, há um cântico dela a trepar-me pelas
pernas que pus de pé, estas artérias abrem-se já para uma grande luz
que é o que está por debaixo deste chão onde avanço, já à beira
passeio, cromados, cadeiras metálicas já expostas à rua onde se sorvem
bicas e espraiam as folhas largas do oficioso da manhã, vidros de
montras, a ordenação das novas edições cintadas, das janelas e sacadas
desertas até ao alto repicam fios de sol, o som das buzinas trombeta,
clarineta, as copas das árvores mais baixas incrustadas numa aberta de
terra nem bulem por aí acima, redondas no gostoso pedaço de húmus
nu que lhes é feito aos pés, os jarros novos de pitinho amarelo ao alto
nos canteiros de rua, inodoros, que coisa me jorrou da passagem de rua
e dos amigos sentidos, que lindo dia, minha cidade minha desenhada
no ar como que sólido suspenso, esfera compacta e transparente onde
tudo se ordena vivo e amável, que finíssima agulha de alegria respiro,
os prédios chochos devolutos à batida de velhas máquinas e notários
volvidos coisa quieta e promissora, vidrada ou verdosa ou azul velho,
oiro o pardo, tão ali, tão tudo belo só por sendo, que lindo dia,
— Tááá? Ziza?
— Mary?
— Olá, minha querida, mas que péssima voz com que a menina está,
olhe telefonei-lhe porque estou com uma neura horrível e precisava
que a menina me emprestasse os seus sapatos pretos.
— Quais?
— Oh Ziza, pelo amor de Deus não se faça pateta, os com a fivela
branca que nós lhe trouxemos.
— Hum. Depende.
— Acho incrível, Ziza, essas brincadeiras, eu já estou o mais enervada
que há, estou atrasadíssima para ir lavar a cabeça, vou-lhos lá buscar
às seis. Olhe, a mãe, lembra-se que faz um ano que a mãe,
— Não, não me lembrava mas porque é que estás a chorar, Mimi?
— Não posso mais com isto tudo, logo digo-lhe, é horrível.
Dizia-te eu que a gente não deve gostar dos pobrezinhos valentes para
os deixar no mesmo sítio. Ou que as pessoas são na vida política o que
são na vida pessoal. Quem se aldraba na uma aldraba na outra. Por
isso, em meio do aquário e fossa de putas e chulos e perdidinhos de
leituras já ordeiramente malditas onde me levas para eu ver e passar o
impacto de ser vista, não difere muito do que fôramos da nossa idade
normais nas boîtes e noites de viagem onde apenas os limiares da
tolerância são ainda, apenas, mais normais e o indizível apenas, oh tão
apenas, mais corriqueiramente mal dito, mal feito. Prossigo a minha
ponte de inconformidade que desgraçadamente não me leva a ti, ó
Preferido, por cima de dois pilares esses já assentes e perfeitamente
irromânticos apesar da lancinância da nossa proximidade ou deste
aguado derramamento das minhas cartas que te têm por Pronome
certo, os dois pilares do templo de uma interdição tão perfeita que só
se lá pode entrar orando para um depois que não nos diz respeito
(excepto pelo trabalho? excepto pelo trabalho? qual trabalho?). Pilar
um: os ricos não se amam, na melhor das hipóteses comem-se vivos.
Pilar dois: o homem e a mulher não se amam, na melhor das hipóteses
não desistem de se matar um ao outro Tal Qual São. E os pobres? Na
melhor das hipóteses amparam-se secretos até ao fim. Há casais deles
que morrem calados, as caras semelhadas por uma transmigação de
traços misteriosa. Ah que desvantagem ter um fim de adolescência tão
verboso e sabido. Vou finalmente contar-te uma história de família
vigorosamente escabrosa. Quando o meu pai
— Ziza?
— Frederico?
— Olá, olhe a sua irmã falou-lhe?
— Falou, estava um bocado para o desatinado, acho que quer os bally
que vocês me trouxeram.
— Os quê?
— Quer que eu lhe empreste sapatos, que a galeria dela hoje não dá
para o luto, espere aí que vou baixar o som.
— A menina só ouve coisas mórbidas.
— Mórbido é o seu tio que não se sabe bem se não será seu pai.
— Não seja besta, Elisa. Sabe onde é que está a Mary?
— A minha irmã chama-se Maria das Dores e está no cabeleireiro.
Não arranja melhor que a sua mulher para uma emergência de tusa?
— Elisa, você está bêbeda? O seu desbragamento de língua ultrapassa,
— Não se amofine mano, são só gargarejos matinais, não me diga que
lhe atrapalha a gravata inglesa, ou é só a telefonista?
— Oiça, se a Mary for aí à tarde diga-lhe que eu afinal vou jantar.
— Que solicitude, Freddy dear, está corno?
— Vá à merda Elisa, isso nem sequer tem charme, é só canalha.
— A verdade sói ser, cá por casa.
— Qual casa?
— A donde você sacou a minha irmã para dentro da mesma.
— A menina está a ficar solteirona azeda ou tem má erva?
— Porque é que não berra de manso com uma das suas cabrinhas de
tetas de plástico, mano, eu só fumo do tabaco que faz cancro.
— Elisa, não tem graça nenhuma, isto é uma crise grave, venha cá
jantar na sexta, a sua irmã, fale à sua irmã.
— Eu não sou a mãe mais nova da minha irmã mais velha.
— Elisa.
— Hum?
— Que disco é que era?
— A Balada de Mathausen.
— Não seja pedante, que é isso?
— A paixão seguindo num campo de concentração, theodorakis,
grécia, coronéis, siemmens, lever, von krupp, quadro superior de olhos
verdes, uma gravata balmain, enarcas e eton, badegodesberg que é a
montanha mágica, marketing, mano, a informática que é o seu ramo,
quer que eu lhe diga onde é que se compra?
— Elisa, você é muito mais snob que a sua irmã e muito mais doente.
— Lá isso, é bem capaz, só tenho uma vantagem.
— Não se casou comigo.
— Boa, mano, mas trabalhosa.
— Era o que eu lhe estava a dizer, vai ter que me provar que é uma
vantagem.
— Adeus mano, você não é o meu inimigo preferido, se a Mary vier
dou-lhe o recado, sem molho.
— Elisa, a menina precisa de descansar, porque é que não vem uns
dias lá para casa?
— Prefiro a morgue, namora-se menos parvamente.
— Que coisa incrível a sua evolução, Elisa.
— mas olhe que é descontínua, atão adeus.
— Adeus Elisa.
Reconsiderando pós telefonema meu cunhado, deixemos, Amigo, as
cenas primevas que elas moem por si. Queria eu dizer que ou vem
qualquer coisa que nos arraste, ou. E nem sequer as artes, porque nos
arriscamos ao bom sucesso, nem sequer as organizações,
Tenho fome, meu querido, tenho frio e cansaço como uma monja
fustigada pela madrugada sem que nenhum propósito dê tino a esta
espécie de ascese para nada de visível excepto este alinhamento de
traços, sem outro êxtase que não fugidio ou aquele que nos denegamos
com decentíssimo, castíssimo,
— Elisa?
— Estou a escrever-te.
— Como sempre.
— Como como sempre?
— Vou desaparecer por uns tempos.
—
— Que é que disseste?
— Não disse nada.
— Baixa isso
—
— Elisa.
— Hum?
— Elisa.
— Escreve-me, mano, manda-me de lá um postal.
— Qual lá? Acho que não, ambas as coisas.
— Achas que eu tenho que morrer cedo?
— Acho que nos enterras a todos.
— Tens a mania das grandezas posta nisto.
— Não é mania, está provado.
— Disto só tens a quarta classe, ó estudante.
— Elisa, porra, estuporada competição.
— Tu ontem estavas bêbedo.
— E tu não, posso-te acusar disso. Já alguém te disse que te arriscas a
ser uma grandessíssima fraude?
— Não, agradecida.
— Ou morres, ou matas, ou ficas uma fraude de merda.
— Tu também Afonso.
—
— Como diria o meu cunhado isto é uma crise grave.
— Mas eu prefiro-te, tu,
— De modo que vais desaparecer por uns tempos.
— Elisa.
— Dizes o meu nome sem nada dentro.
— Eu não levo nada dentro.
— Levas-te a ti inchado como um balão do nosso sopro.
— Não. Tu escreves-me, tu vais escrever-me, tu vais sempre escrever,
tu,
foi monstruoso ontem, estavas ali a escrever aquilo, estavas só a
escrever aquilo.
— Não, eu nunca me resguardarei nisso, tu, tu,
— É a única coisa que sabes dizer quando,
— Como diria o meu cunhado isto é de facto uma crise grave.
— Merda para o teu cunhado.
— Prova e depois avia.
— Eu a ti era só preferir-te, Elisa.
— É a única coisa que sabes horrivelmente dizer, a única coisa
desligamento de lá.
Diálogo em seco:
Achas pouco, ó Amiga?
Acho, ó Mano, acho.
castíssimo horror.
Tu.
Está lá fora a minha irmã e um lindíssimo dia a apagar-se. Mas não sou
Eu que vou chorar, que a minha irmã se encarrega disso e Eu das
vascas celestes, à mão tosca, exuberando o apalpar de tudo, até da
ausência, cristalizando, cristalizando,
1 Referência à canção do mesmo nome, de Bob Dylan, anos 60. (N. do T.)
2 Jogo de palavras que significa São precisas todas as palavras para fazer uma espécie, Paráfrase do dito inglês: São
precisas todas as espécies para fazer um mundo. (N. do T.)
3 Rais me partam, bem. (N. do T.)
I
CASA DE ELVIRA
EPIFANIA
Tu vais por uma vinha afora, que é vinha grada por todos os lados, pela
tua frente, pelo teu detrás, pelos lados, até perder de vista. Não
entendes aquelas parras largas a secar cobertas da poalha azul do
sulfato, nada as rilhou e as uvas ainda pequenas e inteiriças mas secas,
cachos mindinhos como que de amoras verdes gigantonas mas palha,
os galhos que é uma força, o lenho escuro deles a mal distinguir-se da
negrura das folhas ressequidas, dos bagos secos como semente de
cânhamo. Por cima daquela terra sem água, bocarras pretas a abrir-se
onde o zebrado das fendas é mais profundo, regos finos como os da
palma da mão a abrir trilhos de abismo a abismo. E em cada pedaço
inteiriço da terra barrosa, vermelha, morrões secos a rilharem debaixo
dos teus pés descalços carmesins do pó dela, alevanta-se airoso e
carregado um novo pé de videira. Paras. A que te está à beira trepa, tu
vês. É um escobrejar de gavinhas, todas elas estão a deitar corpo à tua
volta, espigam nem se sabe donde, estás na vinha do Senhor que cresce
e cresce, é já um figueiral à tua beira, medonho, um pé vai-te descer
por este rego que cresce de pretura sem fundo, a terra ronca e o
estender das gavinhas silva. Um galho grande incrustado de pequenas
unhas de milhafre em cada irregularidade do lenho repuxa-te o lenço e
o cabelo, a terra abre-se-te debaixo dos pés, gritas e não te ouves, a tua
boca está aberta mas muda e queda e mais e mais e os olhos e lá fora já
clareia mas o teu homem ainda ronca de levezinho. O menino geme,
um bulir com a voz ainda miúdo. Amandas a trança para detrás das
costas já sentada na cama, os pés no tapete. A água que derramaste
ontem a lavar as partezinhas do menino não secou. Ainda esfria o
tempo pela manhã. O menino tem os olhos abertos. Olha para ti, dá
que dá aos braços ainda cepinhos, ri-se com as gengivas de fora e
esperneia, descoberto. Pões o xaile pelas costas da combinação antes
de lhe pegar, chorinca já os olhos pregados nos teus, o teu homem bufa
e entaramela-se a acordar. Através da parede ouves o velho Hermínio
virar-se, roncar de mais rijo. Pegas no menino, tão molinho e sentas-te
na borda da cama, a cabeça dele a marrar-te com a cara numa aflição
muito sisuda, boca aberta, sem choro. Tiras o peito para fora e ajeita-
lo. Ferra-te mas sem dentes ainda, pica mas por pouco. E ficas-te a
esvair-te assim num grande sossego com o teu homem que acordou e
te pôs de manso a mão no quadril e de manso a deixa ficar enquanto se
desestremunha. Está-te quedinho que tenho hoje muito que lidar, é a
tua primeira fala. Não se houve bulício mais que o da rua, do outro
lado. Vais ter tempo de dar a bucha e o café e de sair para a praça com
o casaquinho de malha em mente para comprar nas alcofas da porta
sem que ela te moa, Credo, Elvirazinha, isso é gastar sem prestar, uma
malhazinha tão reles. A tua mão está cheia de penuginha morna, a
cabeça redonda do menino, o outro braço aninha-o, a fralda ainda
quente de mijo. Aí estás, aí.
a parteira soube,
É macho e saiu de touca, menina Elvira, faça força, mulher, para sair o
resto.
A casa pode dizer-se que é grande. Tem até um quintal com três pés de
limoeiro e uma palmeirinha, pés de couve, sebinhas de sardinheira e
uma árvore da borracha que foi presente envasada à Fátima. No tempo,
nabiça, tomate, malmequeres, rosinhas de Santa Teresinha e jarros até
dos amarelos, tudo. D. Marieta e o senhor Hermínio em casaco de
pijama e o teu homem aos Domingos e tu agora, têm tudo muito bem
amanhado. D. Marieta disse, Ai, aí não remexa, menina Elvira, que
estou a guardar para umas violetazinhas. E diz, Tenha paciência,
senhor António, dê-me um jeito aqui na travanca dos periquitos que
me está a emperrar. E disse, menina Elvira, eu hoje vou pôr os lençóis
na máquina, estenda as fraldinhas mais para lá. Com as chinelinhas de
casa na borda do rebordinho de cimento. E diz, Abra, abra mais o
lençolinho, menina Elvira, não, não ponha molas de pau, olhe estas de
plástico. É Assim — tudo organizado. D. Marieta enxota, os velhos de
pedir, os gatos, as moscas, o pulgão da roseira, o encardido dos tachos,
com o que para caso é preciso. E arranca o trevo que medrica a cada
chuvada com uns botins de plástico aperreados ao grosso da barriga da
perna curta, um lencinho de nylon sobre as ondas muito certinhas, da
laca. Depois passa os botins a pano e as meias e põe a enxugar no vão
da cozinha que faz marquise. Ó Elvirazinha, já lhe expliquei que o
alguidar das fraldinhas desfeia a casa de banho, meta-o debaixo do
tanque, sim. Tudo tem o seu sítio. A cozinha é só de armários e
máquinas. D. Marieta, a cabeça redonda de rolos, disse, A menina
Elvirinha, se quiser, paga a electricidade e a água e eu ensino-lhe à
minha vista a serventia da máquina, primeiro tira a maior com o
omozinho e dá uma passagem no tanque. Olhe que também dá para o
cotim, põe-se no mais forte, quer ver. Tu vês. Mas tens medo. Aquilo
tudo embrulhado, à roda à roda. O velho Hermínio, Arranje-se senhor
Hermínio, tenha paciência, isto é uma casa decente, não o posso ver
todo o dia de casaco de pijama. O velho Hermínio diz, Quando é que
eu posso ir para o meu quarto, pago, não pago? ou, Quando é que se
come nesta casa? D. Marieta alevanta colchões, bate almofadas, as
janelas escancaradas zunem por toda a casa ao desamparo das
correntes e da luz abrupta, o teu menino berra a ser mudado para as
que se vão fechando na penumbra, para o quarto de D. Marieta e da
Fátima onde tu ficaste a ver ao pé da cama dela aquela senhora nua
que a D. Marieta limpava e ela disse, É uma pintura de arte. E o teu
homem disse que sim que era. E o menino para o quarto do velho
Hermínio que apesar cheira sempre um pouco a despejos e à naftalina
da farda no gavetão da cómoda. E o senhor Hermínio disse, É minha,
foi o que me ficou da minha falecida. E o menino para a Casa de Estar
onde quando não está o rádio está a televisão ligada, quando não estão
os dois. Tantos barulhos.
À noite, sentam-se lá à roda como para uma boca de fogo. Há ainda
alguns restos dispostos no pano de plástico com flores do tamanho de
coelhos, depois de retirada a toalha e sacudidas as migalhas que
esvoaçam na noite até ao patim de cimento do quintal. D. Marieta faz
isso. Vai depois sentar-se com um gemido de rins, onde leva as mãos,
Ai eu. Ficam a olhar para as coisas no aparelho como para
morrõezinhos de candeia na igreja, a olhar, a olhar. D. Marieta tem os
óculos a descarregar do nariz, Hoje há aquela da Rainha de Inglaterra,
o senhor Hermínio tem um braço apoiado na mesa e diante de um
prato um pouco falhado, o prato dele, com cascas de tangerina com os
fiapos brancos alevantados e alguns gomos com mais caroço cuspidos
depois de lhes moer o sumo. O outro braço deixa a mão sobre o joelho
como se lhe faltasse o cajado a que se ater a serroar diante da pedra do
lar. A Fátima já saiu, levava a saia curta de camurça verde e os sapatos
de lagarto que tu ias caindo. Até logo, Fatinha, não venhas muito tarde,
olha as chaves, filha. O teu homem está sentado do outro lado da mesa,
olha para o chão ao lado dos tacões pesados dela e volta a olhar para o
chão do livro que esteve a abrir com a faca do pão. Olhe que há uma
faquinha para livros que lhe hei-de emprestar, senhor António, com um
cabinho de Sagres no cabo na gavetinha do armário de vitrine. Não
merece a pena, D. Marieta. Ora tudo merece a pena, senão que é que
andamos cá a fazer. Estamos no intervalo. Há uma estantezinha de
madeira pintada de branco que a D. Marieta mandou segar nas pernas
na colchoaria em baixo e onde estão as crónicas femininas arrumadas
por números. Na televisão está uma senhora a deitar fumo de um caldo
Knorr e uma menina a dizer, Mãezinha. Senhor António, e então
quando é que a Elvirazinha sempre faz o exame da quarta? Tens medo.
O teu menino cansou-se e dorme-te nos braços. Depois habitua-se mal,
Elvirazinha, olhe que a minha Fatinha estava ali à beira da gente,
quando tínhamos o estabelecimento, e nem pedir. Apertas o menino à
tua camisola de lã roxa que foste comprar com ela, é as tuas posses. Já
se habituaram. O menino cansou-se, dorme, tens sono, chegas-lhe o
novelo de linha para as rosetas e vês-lhe as voltas da agulha. Eu
ensino-lhe, Elvirazinha.
Andastes por ali atrás dela ou nos teus afazeres novos, sem saberes a
que método ater-te, Olhe que o pano do vim é só este, Elvirazinha.
Casa por casa atravessada pelo temporal dos ares e dos ensinamentos,
tantos barulhos, tarefa por tarefa a que és mandada com um gesto e
muitos ditos que não havia nas casas da tua mãe, cujas socas largavam
sempre um pouco de lama ou merda da galinha ou fiocos de linha ou
palha. E todos iam e vinham, se lhes cortava o cordão e aqueciam as
águas, se embrulhavam em panos amolecidos e adourados pelos anos,
para se lhes dar o peito pela primeira vez, para se velarem, e todos
tinham cheiro e pouco a dizer. Senhor Hermínio cabeceia por cima das
cascas luminosas como cera fresca da tangerina, só está aceso o
candeeiro de cima com os pingentes de vidro, Aí é com o espanador,
Elvirazinha. Há um homem que espirra um líquido de dentro de uma
lata para debaixo dos sovacos. O teu levanta a cabeça para ver. Este é
bom? Hei-de perguntar à Fatinha, senhor António, dá-se bem co o que
eu lhe trouxe, Elvirazinha? Não cheiras. Tens sono.
MONÓLOGO DA VAQUEIRO
Credo, menina Elvira, não vá sair à rua com essas meias tão saloias,
leve estas da Fatinha que ainda estão boas, ela não se importa, Jesus,
os seus pés, olhe eu hei-de-lhe ensinar com um sabonetezinho de
pedra-pomes. À mercearia, Elvirazinha, tudo misturado? vá mas é ao
supermercado e traga-me aquele produtozinho para os azulejos, eu
escrevo-lhe num papelinho. Não vá assim ao leite, Elvirazinha, uma
senhora tem que se respeitar, agora que o senhor António vai ser
promovido, nem tem necessidade. Ceroulas, menina Elvira, credo, eu
até tinha vergonha de passajar isso, ó Fatinha mostra lá aqueles
slipezinhos de cor que o Fernando te pediu para comprares. Ai
Elvirazinha, desculpe, mas eu panos de menstruação só de deitar fora,
mostra aqueles que se seguram à cuequinha Fatinha,
que olhe, Elvirazinha, que eu não quero estar aqui a atazaná-la com
isto mas olhe que o seu paizinho não pode ficar mais que uma semana,
tenha paciência. Eu já disse ontem ao seu marido que é só para as
consultas, tenham paciência. É a casa toda um alvoroço e o quartinho
que eu lhe tenho ajudado a alindar tudo fora do sítio, a perder a graça,
que ele não há arranjo possível tão cheio e olhe que até parece mal o
seu paizinho aqui a dormir com vocês, para mais avariado e se calhar a
fazer as necessidades todas, coitadinho. Que a gente tem que ser para
os nossos, mas eu fiz muito sacrifício para ter esta casa em condições e
agora que já vou tendo com a minha filha uma vida bonita, está uma
senhora, e eu certas coisas,
Mary.
Que chato.
Mais imperativo:
Mary?
Responde:
Hummm, certo, musicado bem.
Demora-se muito?
Não, de todo. Aconteceu-lhe alguma coisa?
Não, esqueci-me da máquina e acho uma chatice usar a do Pequito,
que é péssima.
Péssimo.
Que é que a menina diz?, abra a porta, Mary.
Ah minha querida, se fosse pela sua inteligência que eu não lhe fosse
ao traseiro,
Que porco.
Por inteligência, por que é que não telefona à sua irmã?
A Ziza,
Tem a mesma graça podre do Zé Oom, com a vantagem de não ser
lésbica nem chular os amigos.
Monstro.
Asno é, Bem sei, mas foi premeditado desde criança e não chore,
Mary, senão masturbo-a ou coisa assim
Uma pequena onda de aragem entra pela janela corrida, a luz carrega-
se e os vidros batidos, foscos azulam agora todo o aquário onde ela
está com os olhos gordos e vermelhos, de boga. Perdeste para sempre a
maravilhosa unidade, o espelho voltou a embaciar porque ele passou a
ponta dos dedos por água morna, Mary agarra no punho do roupão e
abre um oval imperfeito onde se acha lívida
PERSONA
MAQUILLAGE
DOS OLHOS
Deve começar pela aplicação de sombra, ou, caso o careça, pelo stick
para encobrir as olheiras. Cobrir a pálpebra superior com aplicações
ligeiras sucessivas, insistindo na prega frontal, no côncavo do olho no
bordo exterior em direcção à arcada. A aplicação pode fazer-se com os
dedos, se o produto for em creme, ou com a pequena escova
apropriada. A arcada superciliar numa nuance mais clara ou apenas
brilhante, abre extraordinariamente o olhar. O pincel de eyeliner deve
ser em marta, como aliás todos os pincéis de maquillage. Termina-se
com a aplicação de duas camadas de máscara (ou rimmel), deixando
previamente secar bem a primeira.
MAQUILLAGE
DA BOCA
tão bonita,
porque a ignomínia cuidada fica bem a Mary, fica-lhe lindamente.
II
CASA DE ELISA
OS TRABALHOS DE CASA:
POTE PODRE
Quando a noite já estava bem caída, pelas seis da tarde, a nossa
heroína, Eu, Eu, disse o meu sobrinho Simão, sentei-me com os livros
ao colo da mesa e fui fazer esta
DE GRAVISSIMA CULPA
Gravissima culpa es la
incorrigibilidad de aquella que no
teme cometer las culpas y rehusa
sufrir la penitencia — que a la hora
del comer, sin manto, vestida de un
escapulario, sobre el qual habra
dos lenguas de pano bermejo y
blanco, delante y detrás, en modo
raro cosidas, en medio el refectorio
coma pan y agua sobre la tierra por
senal, que por el gran vicio de su
lengua en esta manera sea punida y
de ahi sea puesta en la carcel; y si
en algun tiempo fuere librada de la
carcel, no tenga voz ni lugar.1
IX
Eu estou aqui, sentada nesta casa de trevas verdes de mil folhas onde
zinem os veios negros do arbitrário e dos inesperados percalços da
modificação, ou não, porque me empurrou a rede de arrasto para a
porta da cavala que é um peixe tresmalhado, de extrema resistência e
lucidez — Arteiro.
Que aqui estou e a causa desta postura não na sei a menos que seja
levada ainda para mais longes espaços da vossa casa, isto o cais onde
me arribaste, meu pequeno Scott de biblioteca folheada, Bairro Azul e
jaquetão traçado, bota afiambrada e samarra d’Anto. Faço pois a mão
portuguesa que me ataste ao leme da carcaça, copio com verve de
cidades e azedas de serras, tua
, lembrada,
que meu Irmão, o Descoberto, pode desaparecer por uns tempos. Que
minha irmã, a Real, chora de tacanhez debaixo de um piño
irremediavelmente verde, fibroso para o mal, irresinante. Que minha
Mãe, a Estatutária Estultícia onde fui depósita, já lá não está, mas
também nunca lá esteve, que meus Manitos maninhos Muitos, os
marinheiros aventureiros, estão do outro lado da (entre)tela com que
me tapam para não ver o Desfecho à testa do Couraçado. Para eu não
ver que sou vista vendo que assim,
senão acontece mais que uma pequena queda de uma cadeira abaixo ou
de um império, assim, esta cópia está condenada a pré-
maduro
HORS D’OEUVRE
Não é que eu me rale, sempre amei
mais o Divertimento e a mais Vida
que a Vidinha. Sara dixit melior (a
scholar is a scholar is a scholar,
tenho o sétimo, céus, ano):
— Não é por nada Zizinha, mas ir
alugar casa tendo a casa dos seus
paizinhos, da sua mana, mas vem a
dar ao mesmo, é um desperdício, é
o que é, um desperdício.
O MALOGRADO
Era o Luigi, já bêbedo, que trazia com ele a Isobel a Magnífica, que
também. Traços salientes outros que halitoses: nasceu no Norte.
Estudou em Coimbra. Há ali qualquer coisa da indolência
conservadeira de Coimbra, do divagar à beira dum rio curto, estreito,
moroso. Os choupos não são uma árvore tónica, Que é que o pai sabe
de Coimbra, pai? Faz gente caseira. E Camões, Pai? Saiu. Luigi
também tem de trânsfuga prestes a fazer malas. Mas foi-se o tempo das
arcas encoiradas com as camisas de seda virgem, os gibões, os
alistamentos precipitados num rol de nau. Quando era pequeno a mãe
disse-lhe que, Tens olhos de cão. Podia ter sido para bem. Não foi. Faz
subir um soufflé de atum com restos de pimentos morrones até à
sétima arte. É grande, claro de pele, escuro de pêlo. Boa saúde de
farras, queixumes, Estou podre. Fértil de talentos dos que requerem
extrema inteligência dos sentidos, histórias: Uma vez a minha mãe
estava a dizer, Que fina que é a prima Dulce, é de facto tão fina, tem
umas maneiras tão finas, o cabelo tão fino, olha de uma maneira tão
fina. E a minha avó disse, É tão fina, tão fina que caga de retrós. Mas
ele tem de facto uns lindos olhos de cantos baixos e respira mal,
bucefalamente, quando está bebido. Faz uma obscuríssima distinção
entre a vida de família e a outra. Só se sabe que tem família. A outra
começa ao fim de tarde e acaba quando cai a manhã do dia seguinte.
Lê muito, glosa, vê bem. Só respeita a sobranceria verdadeira, o que
quer dizer que respeita pouca coisa. Gosto dele? Gosto dele. Bela
moldura arte nova, ó debutante, aposto que a cadela se chamava
Fürelise. É, e essa senhora que aí vês tocava muito bem cravo de
cabeceirinha. Quem, a Clitem — está? Hoje estava em baixo, Luigi. Já
não é garoto. Mente ou omite enormidades. Pode pois parecer
deslocar-se em cima de um tapete, com um kaftan de linho limpo, a ir-
se, a ir-se. Tem medo de morrer, ama pouco é espesso, Gostas de
moscatel verde? Já perdeu também, Luigi que vaz que vaz mas não
vaz. Mas que é ganhar?, pergunta sempre quem tiver alminha lisboeta.
Isobel a Magnífica é outra louza. Tem a pele verde, de um verde
sumptuoso, claro e glauco. Vinha quase tão grande como Luigi. Porte
para Miguel, o Angelo cum sibila. Ombros, por exemplo, para
cavalitar Afonso Henriques quando em panos. Mãe para grandes filhos
dela em suma. Tem voz de rapaz mas não mais que os baixos sonoros
da Greta. Um garbo insuperável e dois olhos amarelos com a mesma
placidez pronta de uma leoa com crias. Lisboa dá cabo dela, que é uma
cidade de gente esquiva, ao mais de uma vivacidade pungente,
graciosa. De semelhável em Lisboa a ela, Isobel, só o portal da Sé com
menos estado novo, mais pedra vera, patines, musgos: Quando eu a
conheci estava ela inteiramente nua, coisa de Campo Santo de Génova,
a fazer marmelada abstraidamente com um rapazinho esquecível —
tudo isto em dada sala onde se haviam estado trocando impressões
nada digitais sobre sexo e costumes. Nada de débauche — gente
educada, novita. Coisas da liberalização, escolares, geração decente.
Quando a viram naquilo, começaram todos a despir-se e a continuar a
falar que era para ser como se nada fosse, espécie de educação sueca
aos dislates do sexo-seculorum. Ia não sendo nada, pois, não tivesse eu
um certo senso de fraternidade histérica, cénica, o respeito da cena: de
golinha ao pescoço, comecei de chorar o mais belamente que pude as
desgraças do mundo — lágrimas e mais lágrimas sem abrir pias. Não
foi difícil — só me vinham à ideia criancinhas com tétano, rígidas, um
tubo metido na traqueia, a boca selada, os olhos no pânico, os pezinhos
para dentro.
SETE AMORES
PARA SETE UNÇÕES
Pai, vai-me buscar hoje? Vou sim, mon petit, mas não entro, todo
aquele cheiro a cera, a halitose de jejuns, a amoníaco de ceroulas por
debaixo das saias, enoja-me, Que disparate, António, as madres são
limpíssimas, Então é da alma, ma chère.
Batem-me à porta.
Tenho muito mais sorte que o Régio.
Ninguéns me deixam sozinha.
Diante de coisa nenhuma.
Mas limpa os pés, meu amor.
Continuamos:
Que pelo sonho é que vamos:
Ó Sebastião come pouco:
Canso-me muito e todos dizem que eu não faço nada. Excepto a Sara
que diz, Anda a chocá-la. O que, curiosamente, assim foi feito, de
facto — Lê isto Maria Elisa, Que achas disto, Maria Elisa, e eu ia de
Invenção de Junho para a retrete, de Luar de Agosto para a praia, de
Ulisses para debaixo dos pinhais, de Sexus para a mesa, de Mulher
Fatal para a cama.
Pai, Pai, porque me inscreveste no lenho onde tudo deve ter o Seu
nome?,
Anime-se, Maria do Carmo, a sua filha Maria Elisa não tem medo dos
homens no escuro, nem tudo se herda, Eu já desisti da educação dessa
criança, António.
oh sezões, oh Castela
qual alma é sem pustela?
Bem me pareceu:
numa condessinha
segundo se diz
muito pequenina
eu vim de Paris
foi talvez em França
onde eu aprendi
logo de criança
a dizer merci
Oh, qu’elle est mignogne, la petite, com dois anos, que amor. Maria do
Carmo, nunca mais me ponha a pequena a fazer essa figura
completamente parva diante das peruas das suas tias.
MONÓLOGO DA MOFINA
Ai Zizinha, desculpe vir a esta hora, sem avisar nem nada, mas estou
aqui numa grande aflição e ainda tenho que ver se faço hoje algum,
nem sei como que eles não me deixam entrar no Salero, Isto é um
potezinho de azeite e uma chouriça que eu fui hoje ver o meu menino e
a minha mãezinha tinha trazido assim uns primores lá da terra, deixe
que eu ponho na cozinha que ele vem a largar um bocadinho, mas não
é do pote que eu esse trouxe-o ao alto dentro do saco, Isto é uma
maravilhazinha de um azeite, não é para o gabar, bem sei que a Zizinha
pouco come em casa, mas para uma gracinha, um bacalhauzinho
assado, Pois é o seguinte, ai nem merece a pena sentar-me que inda
tenho que ir se calhar sujeitar-me ao enxovalho da Gomes Freire onde
andam aquelas galdérias que nem têm poiso certo, que noutro dia
deixaram lá uma cheiinha de sangue e com a carteira toda
esfrangalhada, Foi, foi foi depois daquela questão com o Olímpio, ah
pois foi, foi já depois da Zizinha ter saído naquele estado que eu até
disse para o Lúcio, Vocês nem a deviam trazer para um sítio destes,
uma menina nova, tão fina, Note que eu sei muito bem distinguir, tive
princípios e ainda hoje, gosto de fazer o meu trabalho bem feito, mas
lá porcarias é que não, só o natural, E então, foi por causa de umas
cervejas, que eu até pouco bebi, Levantei-me para dançar com um
rapaz que até é cliente da casa, já tinha as coisinhas encaminhadas na
mesa, Quando voltei, tinham saído à má fila, aqueles cevados, armou-
se para lá um burburinho, o Olímpio teimava que a despesa corria por
mim, inda era uma porção de garrafas, mais aquela cadela da Lucinda,
Ó Sirena, eu bem vi que foste tu que pediste prà mesa, Ó sua
grandessíssima cabra, disse-lhe eu, dadonde é que você me conhece, o
meu nome é Carminha, ouviu, Que eu à Lucinda nunca lhe dei
confiança, sabe, ora não sabe, aquela que andava com a racha na saia
até ao meio da perna que aquilo já nem se usa, sim, que se põe com
liberdades, a perna aberta por debaixo das mesas, ali à vista de todos,
que diz que ela no Cais Sodré já não fazia nada, já a tiravam pela pinta,
até queixa de carteirista, sim que eu, a Zizinha sabe, tenho lá a minha
fichazinha em ordem, mas lá cadastro, E então saltou o Idílio, aquele
da Trafaria, por mim, foram mesas, cadeiras, uma data de copos, olhe,
até polícia meteu, que eles vêm logo mal lhes cheira, a esquadra é logo
ali, Com queixa e tudo, pois, uma vergonha e agora o Olímpio cortou-
me a entrada e é por isso que eu venho cá à Zizinha, para ver se me
podia adiantar uma notazinha que vence amanhã a renda do quarto e
então é que eu estava aviada, com a má vontade com que ela já me
anda e as despesas do menino sempre a mais e se por acaso tenho que
fazer outro desmancho que eu ando com umas faltazinhas, ai Deus
Nosso Senhor lho acrescente, que eu sou crente, atenho-me muito à
virgem, trago aqui esta medalhinha, quer ver?, Ai ó Zizinha posso ir ali
dentro fazer um chichizinho, que eu venho lavadinha por baixo, tomei
inda hoje banho de banheira,
Digo eu, depois de cair o pano da porta, Tio Guilherme (The Shakes),
Como é que se pode traduzir uma coisa destas intraiçoeiramente?
Deve? Pergunta ao teu primo dado que o
TELEFONE
toca:
Desligamento,
E agora dormir. Com sorte, sonhar:
Se não tiveres medo das tuas sombras elas vêm-te comer à mão.
Comer o quê, Mestre? Dá-lhes um pouco da carne dos teus ossos,
acabam por se comer umas às outras. Não virão mais, Mestre?,
Sempre, sempre mais, de todalas tuas parte mundanais, ao fim de uns
anos são como anhos do teu aprisco. E isso mata, Mestre? a longo
prazo, tudo mata, pastora.
Não é isso mulher, também mos fechastes à minha mãe, estou mas é
aqui derreado, hoje estive três horas metido na carrinha com os
cabritos dos estudantes a berrar à volta, ele era curtas e compridas e
um até acertou no tejadilho com uma pedrada que parecia que era no
dentro dos ossos da cabeça e depois o nosso tenente inda deu ordens
para a gente avançar e chateei-me de agora a malta ir malhar num
estendal de putos todos a pirarem-se por aquela erva afora e mais os
matorrais à volta, com os cães que pareciam danados, um até
abocanhou uma cachopa na cara, uma raparigaça, o que lhe valeu foi
os cabelos senão levava-lhe metade, a empeçarem uns nos outros e os
mais afoitos a fazerem-se à gente, a açularem de longe, rais parta, que
o nosso comandante já nos tinha avisado que a manutenção da ordem
mais isto mais aquilo, porra, malfeitores e passadores da raia inda vá
que não vá, que eu não gosto de andar a meter chumbo em ninguém,
fiz muita patrulha debaixo da neve do posto aos cabeços da serra,
alembras-te?, mas parece que os gajos o que não querem é ir para a
guerra, também eu não, olha que porra, prometem uma catrefa de
coisas à gente, que a guarda isto, que a guarda aquilo, que dão escola,
que dão cantina, que a vida de posto sempre é mais certa do que andar
a semear uma para arrecadar quatro com a enxada nas unhas, que
escusa um gajo de ir malhar com os costados à França, e vai-se a ver é
uma miséria dum vencimento e agora para andar a cobrir os camaradas
a atiçar os cães às canelas dos ganapos, São assim cachopos?, Ganapos
como o teu irmão Abílio, mulher, que alguns parecem mais, aquilo
andam cabelentos e barbudos a mais não, mas lá estudos têm, prova é
que chega a Mafra vão logo de graduados, quando não amandam com
eles para Penamacor de raso, depois a gente desabafar com os
camaradas tá quieto, que a mor parte é uma cambada de bufos, sempre
a meter no cu do nosso primeiro, que ele já esteve no Ultramar, parece
que ganhou lá umas boas postas e olha que aquilo não foi só da
comissão, e diz que pretos e estudantes é tudo a mesma choldra, que é
gado para abater, só querem é mândria, mas eu não me conformo,
carago, farto-me de moer o juízo e o corpo a ver se me aceitam para o
curso de sargentos, eles rezam-me que a ordem é assim, que a ordem é
assado, nunca faltei a uma formatura, nem no dia em que tu pariste o
menino, ele é engolir febres, ele é aceitar trocas de folgas com
camaradas, tenho uma folha que se pode lamber, o nosso comandante
sempre a regougar que vou longe, nunca ninguém me apanhou verdete
num botão, nunca faltei à verdade, mas rais parta a vida que quanto
mais abro os olhos mais nojo me dá, que ele há oficiais e tudo que
dizem que isto tem que levar uma volta, ó se tem, eu moita, Uma volta,
homem? Pois rapariga, eu tenho que ver se te puxo, agora em
aprendendo a ler vais ver, que tu és acanhada mas tens boa cabeça, isto
não há-de haver sempre uns a comer e outros a ser comidos, quem não
pode arreia, carago, Eles são filhos de ricos? Quem? Os estudantes?
Muitos são, mas eu seja ceguinho se não hei-de lá pôr o nosso, nem
que eu tenha de engolir cobras ouviste, a ti que não te falte, mas eu,
nem que tenha que lamber o cuspo das calçadas se o menino não há-de
abrir os olhos e ter uma enxada de prata para fender a noz do mundo,
raios, não há nada pior que um homem não saber ao que anda, de
chapéu na mão a pedir um encosto, a carregar na família se cai de
borco, a limpar a merda dos que nem se agacham para a cagar, a abrir
os carreiros por onde malham os cabrões que a sabem toda sem trilhar
um pintelho do cu,
Jesus, homem, que nunca te ouvi esses modos desbocados, Ah
cachopa, se não fora o bem que te quero e ao menino, não te benzas
aqui que não é nenhuma igreja, Ó homem, e logo hoje que vem aí o
meu pai nesta desgraça, Olha que também há-de ser por isso, uma viga
dum homem que lidou toda a vida, que era dele agora se não fôramos a
gente, olha a tua irmã Lídia, se mexe a cornadura de um dedo para o
receber, Está lá com os patrões, António, E atão, deitar vinho em copos
finos e pintar as unhas alguma vez foi trabalho, mulher?, Cuida dos
meninos, António, Ora, a última vez que lá fui buscar-te estava a velha
a dar-lhes o comer, Estaria a abrir as camas, foi pela noitinha, Hás-de
ver a cama que ela se está a fazer, hás-de.
Vem aí o teu pai, põe o talher na mesa, Elvira, Ó Abílio, vai-me ali à
da D. Eulália buscar um pezinho de hortelã que a nossa anda
esmorecida, Ó Cidália, atiça-me o lume, alma do diabo, que as batatas
não cozem, fechaste a travança dos coelhos, Elvira?, Vem aí o vosso
pai, toca a lidar, alminhas de Deus, fizeste os trabalhos, Abílio?, Vem
aí o vosso pai,
não segura nada nelas, trémulas, o homem que o trouxe de carrego dos
degraus abaixo em meio aqueles urros e bafos da máquina e repelões
de gente, por pouco não davas com eles, diz, Poça, isto é que ele pesa,
ó compadre já tem aqui a sua gente. A Gina diz, Ai Vira, isto é que foi
um calvário, e baixa a voz, Até borradinho ele vem, que eu não no
pude lavar. As mão estão de borco no ar uma ao lado da outra, um
mexer de fim de ave degolada, saliva um pouco borbulhosamente dos
cantos da boca. Não andou ainda.
VÉSPERAS
ao universo.2
Porque elas falam. São as outras. Tu podes ouvir com muita exactidão
o que elas dizem. Mas tu não podes entender. Palavra por palavra tu
podes escutar. Tu estarás à beira delas como se atrás de uma parede. Se
escutasses a uma porta ouvirias melhor. Porque elas sabem escutar às
portas. Se tu tiveres na mão um livro, como quem atende a outra coisa,
tu podes escutar e entender. Porque elas podem ter livros na mão. Na
tua mão esquerda, qual orbe a elas intangível, tu tens uma cebola com
toda a sua espessura de capas sob capas de carne de água, seu labirinto
de veios olorosos, esfera armilar que outras e sempre mais encerra,
pequena lua axilar que adere aos dedos e semelha o cheiro do corpo
que a dispõe curvado sobre a terra e depois, avolumado o seu nutriente
enigma, a arranca puxando-lhe a verde cabeleira inútil. A cebola existe
à tua mão esquerda na indestrutível resistência da matéria orgânica à
inorgânica, mas ainda na indefectível misteriosa aliança das suas
trocas. À tua mão direita está a faca que vem do sílex lavrado por
pancadas secas, reflectidas e também da domação do fogo. Podes abrir
a cebola com a faca, cumprindo assim antiquíssimos modos de
decifração dos dentros: acharás que o interior das duas calotes
separadas numa só incisão de face a face, sob a palha da primeira capa,
a mais rica de cor, a mais capaz de reflectir a luz, mas seca,
incomestível, acharás estrias muito semelháveis às que singularmente
demarcam a insemelhança da polpa dos teus dedos com qualquer
outra. Mas é preciso aproximar a vista, vesgar. Sofrer a perplexidade
de uma indagação in extremis, próxima até doer. O juízo suspenso face
à proliferação de similitudes, camadas de sentidos, falas. Tu não falas.
Só o teu acto de cindir a cebola, esse ceptro da manipulação da faca, a
contundência laboral, diz:
AS MENINAS EXEMPLARES3
Elas falam, Fatinha não saiu hoje, Chegaram os ingleses, filha, estás
incomodadinha, estás?, Lídia não tem horas de entrada:
LÍDIA
que eu tenho aprendido muito
com ela, lá isso, já vai para três
anos que me disseram na
agência, era eu uma lorpa e
tinha sido posta fora por causa
de uma cabra reles, essa sim
que era reles, que vivia ali num
andar comprado com
empréstimo da caixa em Paço
de Arcos, eu quase nem tinha
quarto, cabia lá o divã e as
minhas roupas detrás de um
cortinado no desvão, aquilo a
dar para umas traseiras cheias
de entulho, só se viam homens
ordinários ou pretos, à hora da
comida a tirarem feijão frade e
cachucho de dentro de latas em
cima de caixotes, a pegarem na
garrafa para a janela e a
dizerem, Pscht, ó menina, é
servida?, e todo o dia aquela
cega-rega das máquinas. E
então ela, era só ela mais o
marido e os dois miúdos, mas
eu é que deitava mão a tudo,
que ela saía para o emprego,
muito mal pintada, ainda
estavam a pagar a prestação do
carro, e eu é que dava o comer,
FÁTIMA
O pequeno-almoço?
LÍDIA
Pois, que o almoço comiam na
escola, uma escola que aquilo
era um nojo, vinham-me de lá
os miúdos todos sujos, todos
escalavrados, eu é que fazia
tudo e ó Lídia as-sim, e ó Lídia
assado, a mesa aquilo era a
trouxe-mouxe, nem
guardanapos de pano, era só
papel, que ela dizia que era
para me poupar e meteu
máquina e tudo, mas era mui-
to ordinária, aquilo até metia
nojo à noite, com os rolos me-
tidos no cabelo e as meias
enroladas até ao joelho,
FÁTIMA
Usava meias?
LÍDIA
Usava meias, pois, e uma cinta
já muito deslassada que era
sempre a mesma, eu fartava-
me de ir ao sapateiro pôr meias
solas nos sapatos dele e dela e
ainda por cima sempre com
desconfianças por causa do
marido,
FÁTIMA
Mas tu andavas com ele?
LÍDIA
Não, credo, um nojo dum
homem, sem graça nenhuma,
usava mais brilcream que
cabelo.
FÁTIMA
Ai essa é óptima, tu tens uma
graça a contar as coisas,
LÍDIA
Acho que ele era primeiro
oficial num ministério ou coisa
assim. Bem, o que lá vai, lá
vai, mas foi gente que nunca
puxou por mim, nem pouco
nem muito, as revistas que ela
comprava era a crónica,
FÁTIMA
E o elle, agora há muita gente
que compra,
LÍDIA
Isso, só lá de longe em longe e
era mais o marie claire, e
depois um mau gosto para
arranjar a casa, tudo plásticos e
daqueles móveis estilo rústico,
sabe?
FÁTIMA
Ai ó filha, já te disse para me
tratares por tu, que disparate de
mania, olha, e como é que
foste parar à dela?
LÍDIA
Foi pela agência, eu logo que a
vi gostei dela, mesmo uma
senhora, percebes? Naquela
altura ela usava o cabelo
comprido, apanhado assim
num rolo fofo, sabes como é?,
sem laca nem nada, que ela diz
que estraga o cabelo, agora só
usa às vezes um bocadinho
para a noite, lembro-me tão
bem, recebeu-me na saleta,
tinha um vestido de seda azul
escuro, assim macheado, com
pintas brancas, um chemisier
que ela depois me veio a dar e
eu já nem uso, está-se a desfiar
um bocadinho na manga,
mandou-me sentar de uma
maneira que eu disse logo, Não
vale a pena, minha senhora,
parecia que já estava ensinada.
Perguntou-me se eu já tinha
estado no serviço de fora, eu
estava parva com a casa, o hall
cá de baixo com os azulejos
azuis, os amarelos todos a
luzir, a escada de alcatifa na
mesma, tudo cheio de quadros
maiores que eu, estava um
bocado à rasca,
FÁTIMA
Ó filha, estavas acanhada, é
natural, uma pessoa habitua-se,
LÍDIA
Pois, foi assim. Agora o que
me vale é ela, sempre a puxar
por mim, Não diga assim, diga
assado, Lídia, se me vê uma
unha sem aparar, que ele no
serviço só quer verniz branco,
chama-me logo a atenção, ao
fim de cinco dias já me está a
perguntar quando é que volto à
cabeleireira, não quer nem
uma malha nem um pêlo nas
pernas, pergunta-me de
namoros, diz-me sempre para
não dizer que estou a servir,
ela é que me empurrou para
me ver livre daquele rapaz que
era marçano passa a vida a
dizer que eu mereço outra
coisa,
FÁTIMA
E mereces, filha, eu estou farta
de to dizer, com um corpo
desses, que tu tens um
bocadinho tendência para
engordar,
LÍDIA
Ai, ela diz-me que não, que
isso já não se usa tanto,
FÁTIMA
Ela disse isso?
LÍDIA
Disse, disse, foi no dia dos
meus anos que ela me deu
aquela cinto de cadeiazinha
dourada e o frasquinho de dior
verdadeiro.
FÁTIMA
Ó Lili, ela não será fufa?
LÍDIA
Credo, antes fosse, não, olha,
escusava de andar naquele
estado feita em bêbeda,
desvairada com aquele borra-
botas, aquela lêndia, aquele
cheira-cus da mãezinha que
nem é homem para a arrancar
às unhas do marido, ali a
mamar o bourbon da casa, a
aparecer aos fins de tarde e a
deixar-se ficar para o jantar, o
marido a gozá-lo e a ela,
FÁTIMA
Mas ele bate-lhe?
LÍDIA
Não, mas ora a enche de tudo
ora a enxovalha, sempre foi
assim, trouxe-lhe de Paris uma
capa do balmain verdadeira,
que ela mostrou-me a caixa,
mais uma grande bola de vidro
preto, parece que é do lanvin,
com uma daquelas borlas de
vaporizar perfume à moda
antiga, parece assim um
puxador de borracha forrado
de fio de seda e com uma
grande franja, parece que há
poucos, chama-se arpège, ela
diz que havia um igual no
boudoir da avó,
FÁTIMA
No quê?
LÍDIA
até chorou, no boudoir, e sabe
o que ele lhe disse, ainda com
ela abraçada, disse-lhe assim,
Mas olhe que não é para pôr
por baixo, que arde,
FÁTIMA
E tem razão, perfumes mesmo
por baixo é que nunca, o gajo
deve ter uma certa classe, já
me falaram dele,
LÍDIA
A Fatinha usa desodorizante
por baixo?
FÁTIMA
Às vezes.
LÍDIA
Ela usa um que lhe trazem da
Suécia, diz que o de cá que faz
cancro, e então a irmã, aquele
grande coirão, disse-lhe que o
que faz cancro é o tabaco
inglês que ele usa, que é o
único vício que tem,
FÁTIMA
Quem, o marido,
LÍDIA
Não, o outro.
FÁTIMA
Olha lá, ela já saiu de lá há
muito tempo?
LÍDIA
Quem, a irmã? foi quase a
seguir à morte da mãe, aí uns
seis meses depois. Ficou
herdada e ala, que ela e o
cunhado é como o cão e o
gato, mas ele com ela encolhe-
se.
FÁTIMA
Se calhar são amantes.
LÍDIA
Credo, ela é tarada, mas era lá
capaz de fazer isso à irmã, se
visse como ela às vezes
aparece, toda mal enjorcada,
sem maquillage, sem nada, o
cabelo amarrado atrás mas sem
chique nenhum, outras vezes lá
se arreia e parece daqueles
modelos esquisitos, mas nessa
altura tem pinta, não dá é
confiança, parece que tem um
rei na barriga,
FÁTIMA
Se calhar tem tido.
LÍDIA
Agora, quem ensinou da pílula
à irmã foi ela. Até o estupor da
cozinheira se acagaça, que eu
ela a mim, tenho as costas
quentes da outra, o mal desta é
que foi sempre o ai-jesus do
pai, fazia tudo quanto queria,
parece que ele deixou um
primo pôr-se nela aos doze
anos e que foi ele quem a
levou à clínica,
FÁTIMA
Que gente, eu ao menos,
trabalho com gente educada, lá
bebem, lá fazem as suas
noitadas, mas não são gente
para porcarias dessas em casa,
vais ver, quando fores comigo,
a gente diz que tu és secretária
numa firma, até pode ser que
te arranjem uma colocação,
assim empregada numa
boutique, ou numa loja de
discos, eu já estive,
LÍDIA
Bem, eu isso gostava, mas as
despesas devem ser muitas,
uma pessoa tem que ter casa,
mesa, roupa lavada, eu ali
tenho tudo, tenho pena dela e
ela é boa para mim, ainda
ontem que eu a vi chorar e fui-
lhe buscar uma bandejinha
com chá de jasmim feito num
bule bem escaldado, como ela
gosta, ela virou-se para mim e
disse, Deus queira que sejas
feliz, Lídia, até me tratou por
tu e depois foi buscar uma
pochette de noite que ela tem,
do saint-laurent, ainda quase
por estrear e deu-me, que eu
nem sei onde é que vou usar
aquilo,
FÁTIMA
Deixa que inda a hás-de estrear
comigo, eu também não hei-de
ficar aqui muito tempo, tenho
pena de deixar a minha mãe,
mas não posso cá trazer
ninguém a casa, quero ver se
monto um atelier, até
podíamos alugar um
apartamento as duas, já me
prometeram emprestar o
capital para o investimento,
LÍDIA
A Fatinha não pensa em casar-
se? Tão chique, olhe que não é
para a gabar, mas se tivesse as
coisas dela não fazia pior
figura, ela tem um pijama de
soie sauvage amarelo que até
lhe ficava melhor a si, que é
morena.
FÁTIMA
Casar-me?, Já, que horror, que
mau gosto,
LÍDIA
Mas nunca esteve apaixonada
assim a sério? Eu o que gostei
mais foi daquele rapaz que era
empregado de escritório,
FÁTIMA
Não, eu acho que só era capaz
de me apaixonar por um assim
como o Kennedy, Ou o
Onassis assim homens que têm
tudo,
LÍDIA
Credo, mas o Kennedy
mataram-no e o Onassis é tão
feio,
FÁTIMA
Deixá-lo, são vidas cheias de
tudo.
LÍDIA
Isto já vai do destino de cada
um.
FÁTIMA
Ai filha, já estou como um
amigo meu que trabalha na
publicidade, O destino é como
a guitarra, quem tem unhas
toca, quem não tem é tocado.
LÍDIA
A cabra da irmã diz que o
homem da vida dela é o Orson
Welles,
FÁTIMA
Aquele gordo, do cinema?, a
tipa é tarada, se fosse o
Charles Bronson, ou o Steve
McQueen,
LÍDIA
Eu gosto mais do Alain Delon,
FÁTIMA
Ai esse é tão chupadinho e tem
cara de forreta, eu gosto de
homens de mãos largas,
LÍDIA
Havia de ter conhecido o pai
delas, parece que quanto vinha
quanto ia,
FÁTIMA
Mas elas são ricas,
LÍDIA
Porque a criatura deu cabo
dele a tempo,
FÁTIMA
A mãe delas morreu de
desgosto, se calhar,
LÍDIA
Ná, parece que já se consolava
com o genro há uma porrada,
há uns poucos de anos, mas
isso já são zunzuns que eu oiço
lá em baixo no monte ou do
jardineiro quando ele diz, Filha
de cabra sabe encabrar, que eu
da velha não saco nada,
FÁTIMA
Que gente com que tu estás
metida, ao menos os meus
amigos não ofendem as casas,
olha essa pulseira foi ela que ta
deu?
LÍDIA
Foi, é massa mas parece tal
qual marfim, não parece?, se
não fora o peso, e este fiozinho
de prata também, foi pelo
natal, eu comprei-lhe cerejas
cristalizadas, que ela gosta e
uns legozinhos e um ferrinho
de engomar para os meninos,
FÁTIMA
Para os miúdos?
LÍDIA
Pois para os miúdos.
DE EXPLICITACIONE
GENTILE
Estás ali sentada no escuro à beira dele. Esperas. Os olhos afeitos à luz
escassa vêem o menino bulir de manso um bracinho, o punho cerrado,
levá-lo ao queixo, o dedo à boca. Esperas. Olhas para a cara do teu pai.
Parece agora de novo alerta, a espinha eriçou-se. Vossemecê ouviu o
mocho, nhora mãe? É o apito dos barcos no rio, meu pai, acoste-se
agora. Mas a cara dele é como a dum menino desamparado, a cair, a
cair, os olhos demasiados, Que é que vossemecê tem, meu pai, deu-lhe
alguma dor? Cala-te morcega, vêm aí eles, Eles quem, meu pai?,
sossegue, pela alma da nossa mãe, Tu quem és?
Que grande silêncio. O teu pai respira e há um ralo, cada bafo de ar
que sai dele traz um ai consigo, os braços dois fardos pendidos de cada
lado do corpo, só os olhos espertos ainda, mas já sem terror. Agora é
outra coisa. Sabes que não é dor de corpo como sabes das precisões do
teu menino. Mais grande silêncio. Onde roncam as passagens mais
curtas das camionetas sobre o empedrado, vai passando a noite alta.
Ah, minha rica Elvira, diz o teu pai pela última vez, mas não vai
morrer. A cara dele é a do teu próprio antigo pai que te fita numa
desolação sem nome. Olhas-lhe para a testa. Formam-se ali pequenas
gotas que engrossam pouco, luzem, escorrem. O entendimento do teu
pai está morrendo, entendido por ele. De mansinho te levantas da
beira, abres o boqueirão do baú e puxas do fundo, achada a frescura
pelos dedos, o teu único pano de linho do bragal da tua mãe. Enxugas
aquelas bagas de manso, o teu ânimo está pronto. Não gritarás milagre,
não gritarás nada, para não acordar ninguém nesta cidade. As gotas são
de um vermelho quase negro. Lavarás. Teu pai cai de borco, dorme,
viste a nova dessa estrela cessante. Redeitas-te, dormes pouco. Os
astros amam os insomnes, sanguínea, escuramente.
Mary vai de carro a ser levada rapidamente pela faixa costeira sinuosa,
cuidada, que liga a cidade de Lisboa a essas coisas deliquescentes à
beira da baía de Cascais. Que quietude o ser levada. Tem um vestido
de veludo vermelho negro, um fourreau que só o talhe aguenta, insólita
a matéria e a cor, as mãos vão deslassadas no colo, pôs por primeira
vez os rubis da mãe, morta, afunda-se mais e mais, suspirosa, no não
fazer consentido que é o ir de carro, levada quente, quaisquer as
agonias de antes ou depois de ter ido. Como é que se sente, Mary
darling?, José Oom vai com a mão direita também em quebra lânguida
de coxim sobre o eixo curto das mudanças, guia de afagos lasso no
assento baixo, sem rangências ou verves, Mary põe aí a mão um pouco
suada, Ça va, não devia ter bebido dois whiskies antes de sair, foi um
dia péssimo, quase não almocei, mas sinto-me bem assim um bocado
grogue, com você a guiar, o Frederico é uma estupidez, sempre
depressíssima, não sei como é que não tem desastres todo o tempo, só
andava devagar quando saíamos com a mãe, O Frederico não almoçou
consigo?, Que ideia Zé, sabe lindamente que o Frederico nunca almoça
em casa, tem sempre montes de almoços de trabalho, eu acho óptimo,
os pequenos estão no colégio e a Lídia faz-me imensa companhia
enquanto almoço, é amorosa, só lhe digo que acho que nunca tive uma
criada tão espantosa, Quando é que o Frederico volta?, Deve vir
amanhã de avião, não me diga que está com remorsos de virmos jantar
os dois, Pelo amor de Deus, Mary, a menina sabe que eu a adoro, mas
sou amicíssimo do Frederico e temos vindo sempre em grupo, é um
pouco estranho tê-la assim só para mim, Pois olhe, eu disse ao
Frederico que vinha jantar consigo e ele não se ralou nada,
Acho o seu vestido de veludo um espanto Mary, está linda e esta luz de
velas, a sua pele parece mármore rosa, apetece-lhe lagostins? Ai adoro,
Por um dos tubos que entram pelo nariz afilado ao ponto de parecer
tão-só rectíssima linha, na obscuridade permanente do quarto, passam
ininterruptamente um líquido de cor sanguínea, sem espessura, e
coágulos de ar. Que profunda estranheza, aquela boca desmaiada,
lacerada de pequenas pústulas e estrias de secura, o ruído cavo naquela
garganta onde mesmo a funda marca dita colar de vénus e a pele um
pouco deslassada tão bem se casavam com o oriente das pérolas, com
as vogais baixas, arrastadas, com o cinza negro de dois anos de luto, o
preto e branco, o já violeta claro da última primavera de viúva sóbria,
cuidadíssima. O peito arfa, o ruído que emite é inverosimilmente
grosseiro, aquela aguadilha ferrosa desce do frasco de soro postado
alto até à fenda da narina que começa a cortar-se na comissura, uma
fenda como trilho de navalha entre escamas de pele. A cama articulada
range como um carro de bois ao longe, está um pouco soerguida, os
cabelos estão mortos perdidos o degradé de loiro e brancas, apesar das
fricções de álcool e colónia, do champoo seco. Os braços descarnados
terminam nas mãos para ali abandonadas na mesma lassidão das
carnes, veias altas, azuis, sarda clara, as duas alianças. Há o chio de
borracha das solas de enfermeira no chão plastificado, o cheiro a
éteres, e agora de dejecções ácidas, aquele beiço que treme só de um
lado, a mão esquerda que se vira para cima num vagar de peixe à tona
em agonia, o dentro do braço lacerado onde a veia fugidia é buscada e
buscada, a palma em concha flácida semicerrada agora numa postura
que dá susto, elegante no acto de morrer devagar, Já posso tirar a
arrastadeira, senhora dona Maria do Carmo?, a tremura do lado da cara
que significa sim, o agudizar do ralo em espécie de palavra que
significa sim, o agudizar do ralo em espécie de palavra que significa
sim, a errância pelo quarto de um só dos olhos, o outro palpebrado
baixo. E Frederico diz do lado de fora da porta entreaberta com aquela
voz apavorada que Mary nem conheceu na iminência dos partos, que
só conhece agora, nem no reconhecimento do corpo esfacelado do pai,
Posso entrar? Mary levanta-se vai até à porta, Espera um bocadinho,
deram-lhe um clister, e ele passa logo a uma irritabilidade má, puxa de
um cigarro, a cigarreira não faz ruído no mesmo chão ceroso do
interminável corredor vidrado ao fundo e vêem-se os altos ramos
amarelo rubro dos plátanos e as quedas franças das araucárias,
Algaliaram-na. A que horas vem a Maria Elisa? A Ziza disse que não
sabia se vinha hoje, A sua irmã é uma besta, parece que não sabe que a
sua mãe está a morrer.
Mary dança e não está contente. Qualquer coisa mudou, que mudou?
Mary não sabe, dança. Frederico dança melhor. Ao fim e ao cabo é
uma coisa disparatada as pessoas abraçadas a balançar-se. Mary acha-
se parva. Ou não é nada disto que queria. Quando dançava com um
vestido de taffetas changeant que tinha duas laçadas em cada ombro e
estavam os outros a dançar à volta, olhos humildes espiando de vários
lados se estaria disposta para a próxima, tudo era melhor, tudo era tão
possível, a mãe tinha-lhe emprestado a esmeralda, Parece mais velha
mas fica-lhe lindamente, parece a avó Isabel, não acha, António?
Falta-lhe tamanho ou ruindade, ainda não percebi bem, sabe que eu
associo sempre a sua mãe a uma égua carnívora, Maria do Carmo,
divirta-se Mimi, já se despediu da sua irmã? vá lá acima ao quarto, ela
pediu-lhe, Mana, que linda, parece o céu do mar. Que falta a esta Mary,
pois? Olhos que a vejam a ser vista? Mas José, mas a dança? Se ao
menos fosse um tango, por graça, toda a fineza do mundo,
Madreselvas en flor, que me vieran nacer, passa-lhe a memória dos
olhos fechados uma imagem distante dois vultos enlaçados ao longe,
longe em perfecção de uníssono combate uma agulha de prata
vivacíssima, onde?, minúsculo peixe cintilante em que funda treva?
Mary pensa que está parva. Não se aborrece, está inquieta, algo está
envenenado, José Oom parece-lhe um menino de coro com borbulhas a
carregá-la como um boneco de palha. Mas José Oom não tem
borbulhas. Dança bem, mas é que não a segura, embrulha-a. Como
guia, como faz gestos no ar ao que diz — é tudo mole, embrulhado.
Está enervada Mary?, com a alegria sorrateira do alívio, Mary não se
lhe está colando, vai ficar tudo na confidência, José Oom redobra de
solicitude, Quer sentar-se, minha querida, o vol-au-vent já está na
mesa. Não me chame querida. Mary, que é que tem, que é que eu lhe
fiz, pode passar à queixa, tudo bem, tudo na mesma, ah não ter que
mudar nada, ganhou, agora é só manter o amuo penalizado até que ela
quebre, Mary quebra sempre, ajusta-lhe a cadeira, senta-se
contristando-se e olha-a nos olhos, magoosamente, com intenção,
pergunta, sinais de dor, José Oom esse jogo ganha sempre, Que é que
tem, darling?
A sua mãe é uma santa, senhora dona Maria das Dores, a resignação
com que ela tem sofrido. Não é só resignação, senhora enfermeira, é
boa educação, repare bem que assiste pela última vez ao sofrimento de
uma verdadeira senhora, Frederico, pelo amor de Deus, acalme-se,
Cale-se Mary, você nunca há-de chegar aos calcanhares da sua mãe,
Felizmente, mano, Que é que você quer dizer com isso, Elisa?, Que a
mãe pisava tão bem, tão bem, que nem via a quem, Você é um
monstro, Elisa, a sua mãe está na agonia, Ora, estamos todos e eu
ainda não acabei o luto do meu pai, Já cá faltava, Não, nunca vos
faltou em nada, O senhor engenheiro desculpe, mas se fizessem todos
um pouco menos de barulho, Qual quê, senhora enfermeira, as pessoas
como a minha mãe devem morrer ao som de salvas de canhão, Zizi,
acalme-se, Tão boa e tão parva, minha pobre mana, Elisa, eu dou-lhe
um estalo aqui ao pé da sua mãe, Meu caro mano, quer que eu me
arrepele como se a minha mãe fosse minha amante?, nunca foi.
Zé, preciso tanto de falar consigo, você sabe que eu não tenho mais
ninguém, depois da morte da mãe, a mãe apoiava-me imenso nos meus
problemas com o Frederico, deu-me sempre óptimos conselhos, para
eu ter paciência, que o Frederico ao fim e ao cabo era um marido
óptimo, adora os pequenos, sempre com imensos presentes para mim,
Zé você sabe que eu gostar imenso de si não resolve as coisas, eu era
incapaz de enganar o Frederico, Sei, minha querida, sei,
Essa lesma, se você um dia lhe
dissesse de caras ou mesmo de
cernelha que queria ir para a cama
com ele, ia fazer chichi para
debaixo dos jupons da mãe, Que
porco, Frederico, que porco, eu não
quero,
diz coisas que eu não entendo, a seguir à morte do pai, as três de luto,
mas a Ziza não falava, deixou de falar à mãe, parecia doida, o
Frederico um dia abanou-a e ela foi buscar uma pistolinha com cabo
de madrepérola que o pai lhe tinha dado, veio pela escada abaixo, nós
tínhamos ficado na sala os três amachucadíssimos, lembro-me
lindamente, estava o Salazar muito trémulo a ler os agradecimentos da
doença e ela parou com a arma apontada para o Frederico e depois
começou a rir-se e disse, Não vale a pena, já não vale a pena, não
passas de um sinapismo de velha, uma colagem de merda, não vale a
pena. Lembro-me lindamente, eu lembro-me de coisas que não
percebo, o Frederico ficou muito pálido, a mãe tremia imenso,
levantou-se e disse, Vá para o quarto, Maria Elisa e a Ziza disse,
Madame, o meu pai ensinou-me a distinguir entre uma cortesã e uma
senhora, sente-se. E a mãe sentou-se no cadeirão de chintz e começou
a chorar e a tremer, o Frederico ainda fez menção de se levantar para
ela, mas ela levantou outra vez a armazinha e havia qualquer coisa nos
olhos dela,
Não chore aqui, Mary dear, quer que eu lhe peça mais morangos?
Quero,
LITTLE WOMEN4
a poem here
how come this is the house of undone written
words
unspoken lines of sorrow
no meaning to convey emotion meant to last
no sense no rythm
except the very harsh
of womanhood secluded from compassion
of the distorted wombs a mind would have composed
of crushed babes
undeserved barreness
of hope so shrill
a kingdom would not still it
and love so much unwanted
it can kill
no beauty then
no ripeness of the bonds
from line to line
no crawling law
melodious scheming
no poem here nothing
but a howling silence
mas o que quero dizer é que me sinto infelicíssima, no dia em que nos
casámos, a mãe, Quer café, Mary dear? Ao jantar sabe que não, durmo
pessimamente. Chá, Chá, leve, se faz favor.
A tarde cai. Através das janelas duplas de vidros de correr sobre calhas
de aço baço, um pouco embaciados pela morneza do quarto, os
pássaros piam a última chamada à acomodação, os plátanos estão
cheios de pequenos corpos, encontros, quezílias de papos anchos e
viris que reivindicam a chios o seu galho, aquela fêmea parda. O
quarto deveio ainda mais casto — as excreta são agora tubuladas,
algálias regulares, clisteres matinais, quase inodoras, a só assépia. A
introjecção de soro e oxigénio prossegue, todo o fluxo e defluxo
naquela usina inerme é artifício, mecanicidade. Que fala ainda resta,
que imprevisto? A uma pressão mais firme sobre a testa que amarela,
cada hora mais opaca a pele, apenas a pálpebra ilesa e o dedo
indicador tugiram, imperceptível espasmo que não a olhos
atentíssimos, ainda incrédulos à graduação do apagamento. Ontem
disse algo que poderia parecer, Nónio, quando Frederico lhe colocou
no anelar ainda morno de água morna a safira das grandes ocasiões.
Frederico chorou então pela primeira vez, que se visse. Mas isto
passou-se num meio dia alto. Ao fim da tarde elas começam a chegar,
CARPAS (I)
Trazem pequenos véus a segurar os cabelos ralos, o pó das feições. Há
muitas bocas estreitas, comissuras e pelancas deslassadas como sob
fervura simples, os dedos com muitas alianças, torsades de ónix e
brilhantes, algumas pérolas sob tailleurs de alfaiate, sedas negras,
bengalas de castão monogramado, uma aura de um pouco de alfazema
e caixas de caron cuja borla esfiapa e amarelece, tornozelos filiformes
sob meia cinza ou como pulsos de ligamentos rotos, inchados e ligados
sob meia rosa sépia, sapatos de atacador lustrados hoje ou verniz bem
subido, o tacão sólido, calfes envelhecidos com esmero afeitos à
deformidade do dedão, a gota, solenes peitadas descaídas sobre alto
das vísceras ou briosamente arrasadas contra as espáduas secas, bons
portes, beijam pela ponta da boca uma só face, sentam-se, sussurram
bem,
Como está a tua pobre mãe, minha querida filha, Tantos desgostos em
tão pouco tempo, Ficares com a responsabilidade da pequena, O teu
pai foi sempre uma pessoa muito especial, Deus te abençoe que foste
sempre um exemplo, Boa filha boa irmã boa mãe, E o que é que
pensam fazer agora da quinta, Tenho passado menos mal, A minha
coluna o meu bócio o meu fígado, Combinaste com a Maria Elisa as
jóias?, Tudo isto foi tão de repente, Eu hoje acho-a um pouco melhor,
Eu hoje acho-a um pouco caída, A tia Sara está muito mal, A Tita já
teve o pequeno, Não se pode contar com o pessoal, O que tu tens
sofrido, petite, E a Elisa, a Elisa a Elisa, A tua irmã é muito especial,
Frederico peça-me o carro, Tantos desgostos em tão pouco tempo,
Amanhã vai à costureira, Boa filha boa irmã boa mãe.
Mary sente-se um pouco inchada, ainda bem que tem cinta, regozija-
se. Tem sono. Tem vontade de ir para casa. Quer dançar, Mary? Alguns
pares dançam agora muito devagar, o braço escuro dos homens forma
um ângulo agudo de enlace mole, as mãos lassas em espáduas nuas ou,
sobre seda, crepe, organza já, visíveis de contorno. Na penumbra azul,
aguada, as caras são de gemido, os olhos fechados, tão pegados de
corpo e bordos da cara, os crustáceos continuam a acenar-se de hastes
sem sobressalto, um imenso búzio colado ao vidro ascende agora a sua
massa ventral, opaca, uma mão sem dedos, fria, visco, os peixes abrem
e fecham as suas chagas do lado descompassadamente ao lentíssimo
vaguear vermelho, negro, branco violáceo, das longas franjas. Mary
sente suor na sua pele da mão em mão de José Oom, da têmpora ao
maxilar húmida de outro suor, nas costas da mão espalmada contra a
fazenda escura de grão fino, fresco, não há nada entre a juntura das
suas pernas, a face do púbis, e as dele, onde os troncos se acostam,
Vamos sentar, Zé, estou cansada, vamos embora.
Sobre a conta dobrada a nota inteira, na outra mão a carteira aberta, o
retrato da Maria das Mercês de meia idade, a cabeça do galgo de felpas
sob o joelho traçado, rótula sob seda, ângulo de cabeça onde pescoço
se alise, Que bem que está a sua mãe, Zé, Mary, aquilo que a menina
contou da sua irmã, da arma, não é verdade, pois não? Não sei, às
vezes com tanta mudança já nem me lembro muito bem de quem sou,
quanto mais, Mary, darling, isso parece a conversa da Alice com a
lagarta, É, a Ziza diz que a Alice está imenso na moda,
E então o príncipe levou a dama das neves para uma ilha tão longe, tão
longe que só havia pés de tangerina, praias de leite e flores de nardo,
tigres de pêlo azul mansinhos e pavões brancos, e viveram felizes para
sempre.
CARPAS (II)
que desgosto, filha, que desgosto, uma rapariga ainda nova, boa mãe,
boa esposa, boa filha, ah, ela não aguentou a morte do teu pai, E tu,
minha querida Elisa, põe aqui os olhos, filha, não somos nada, de que
serve procurar outros mundos se todos acabamos assim, Mandaste
arranjar o jazigo, minha querida? Está linda, uma santa, vais-lhe deixar
ir o fio e a pérola?, Lembras-te, Maria Eulália, daquela cloche branca
que ela levava no dia do casamento, com uma faixa rosa sobre a anca e
do bouquet de muguet?, nunca vi noiva mais linda que a tua mãe,
Maria das Dores, tão nova ainda, E uma dona de casa, ah, foi a melhor
mesa de Lisboa, E em Sintra, filha, Bem, isso não sei, havia os,
Mesmo assim, filha, que desgosto, não chores mais minha querida, vai,
filha, vai a casa ver os pequenos, vê se tomas alguma coisa, Uma jóia
esta pequena, Reparaste já como a Maria Elisa não chora, Mas olha
que pelo pai, Esta pequena exagera sempre, Tal e qual o António,
Maria Eulália, era um pequeno impossível, A culpa foi da Elisa, sabes
bem, Quem, esta pequena? Não, a mãe do António, Eu sempre achei,
Mas,
Mary deitada abre com gestos pesados a gaveta da pequena mesa junto
ao seu lado da cama. Bebeu, picando as pedras de gelo com a ponta da
unha cor de lacre enquanto Lídia lhe escovava o cabelo. Descai pesado
sobre a incrustação de guipure em seda flexível, malha rosa-sépia. O
frasco já só tem cinco pequenas cápsulas. Mary tira duas, pega no
novo copo de bojo crescentemente lavrado, espécie de flûte gorda,
copo da noite sobre fundo de prata onde jaz evanescente licorne, dama
esquissada já sem contornos, prata usada. Um soupçon de cognac
acidula o gole. Cognac com água doutor? Você gosta, potencia,
distende,
Meu Deus, está aqui nestas mãos este sangue e está aqui nestes pés
esta terra que eu bati com eles. O que fiz está feito. Peço-te, ó Deus,
que faças que debaixo da terra e dos meus pés venham lagartas brancas
comer depressa este pássaro. E que estas lagartas comam até ao último
dos seus ossos e à última das suas tripas e às unhas das suas patas
partidas e ao sangue por onde as suas penas pegam à carne e ao mole
dos seus olhos, até ficarem bem gordas e brancas e ladinas. E que este
pássaro se torne a carne delas no que elas comerem. E que fiquem
fortes e venham até ao cimo da terra ver o sol. E que venha então o
maior gavião que sempre houve e coma delas e da carne deste nelas,
que era pequenino, e das suas patas partidas e das goelas que eu torci
com estas mãos. E que desça sobre a terra com as suas asas do
tamanho do céu e coma os olhos das pessoas que partem estes
pássaros. Ámen.
Mimi, é verdade que o caseiro me disse, que a sua irmã matou hoje um
passarinho ferido? A culpa foi minha mãe, eu deixei-a para trás, eu
deixei lá o pássaro.
António, importa-se por uma vez de interromper o que está a ler e dar
atenção à educação da sua filha Maria Elisa?, você está a criar um
monstro,
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras, tão
seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre, aves a percorrer
o seu novo deserto5,
Fim de tarde. Uma ampla cozinha iluminada muito bem a fortes focos
de luz fluorescente1. Azulejo rosa sépia, grandes placards de madeira
com portadas em persiana e fórmica azul escura. Imensas máquinas
de lavar roupa, de lavar loiça, congeladoras. Um banco. Imenso fogão
de ferro com porta transparente. Bancada corrida à boca de cena,
tendo visíveis as tubagens de lavatórios, pias, nicho de trituradora.
Em cima da bancada, bem ao centro, está um pato enorme, depenado,
tigelas, passador de carnes, mais máquinas, panos, ovos. À direita,
uma mesa de material plástico toda branca, de um só pé, cadeiras de
vidro acrílico. A cozinha é ainda decorada com grandes tachos de
cobre, estanhos, barros. A mesa está posta para as duas crianças (cor
quente). Numa das paredes há um grande poster com a fotografia de
Ernesto Guevara. A cozinha deve ser, de facto, o mais possível bonita.
O encenador é livre para, por exemplo, não manter a escala dos
objectos à dimensão das pessoas, significar toda a sumptuária cozinha
por um soalho inclinado ou móvel de aço inoxidável, pedir ao
cenógrafo que tudo se passe dentro de um forno em ignição ou no
Jardim do Príncipe Real. Tem é que ser cozinha, s.f.f.
PERSONAGENS
PATO IMPERIAL1
SARA — Arre mula que já não tenho idade para andar com estes
carregos, menina Mimi. No tempo da sua mãezinha que Deus
haja isto era serviço para a ajudanta. Tanto escaninho para tudo
nesta loja de fanqueiros e não há nem o olhinho do cu dum
parafuso onde me caibam batatas pra mais de uma semana.
ELISA — Et exultavit spiritus meus.
MARY — Sempre fazes o pato Sara?
SARA — Olhe ó Mimizinha, isto quem não vê é como quem não sabe,
atão não vê o inocente aqui em cima da bancada?, eu se fosse a
si ia mas era pôr-me decente, a cozinha hoje parece a sopa dos
pobres e olhe que ainda tem os beberetes para preparar, que a
Lídia já lhe arranjou as bandejinhas das bolachas.
ELISA — Querer é poder.
MARY — Estou tão cansada, tão cansada, não sei o que hei-de vestir.
ELISA — Vista o seu vestido branco, fica muito bem com o pato cru.
ELISA — Mary, Mary, quite contrary, where does your garden grow?2
SARA — Não é lá muito tenro. Ganso, ganso é que era outra coisa. E
via-se. Agora estes patos empurrados que nunca conheceram
água a não ser pelo monco abaixo. Ainda me lembro de ter que ir
pelo tanque adentro a agarrar o mais gordo, da gritaria,
ELISA — Ah aquela marreca madrugada que o engenho não deixa
durar pouco.
SARA — Mas não ferravam, iam à morte pela mesma mão que lhes
segava a sêmea. Vá-se arranjar, Mimizinha, olhe as horas, depois
queixe-se se o senhor engenheiro a desfeiteia. A sua mãezinha
estava sempre aprimorada do princípio ao fim, antes de todos,
nem aqui entrava, aqui não, que ela aqui,
ELISA (cortadora) — Chega, Sara, não estás a servir a minha mãe. Vá-
se arranjar mana, eu dou o jantar ao Simão e à Nena.
SARA enxuga as mãos e vem trazer a ELISA uma maçã descascada num
prato, os quartos abertos em coroa.
Entra LÍDIA com as duas crianças pela mão. É alta, bem feita, bom
porte, tem o cabelo escuro e curto, está fardada de cor, bem calçada,
bem penteada. As crianças estão de pijamas e roupões iguais. SIMÃO
vem em passo de marcha, perna aberta. MADALENA traz na mão uma
grande gaiola de grilo, doirada. ELISA recomeça a cantar em surdina,
repetidamente estas estrofes da canção de E.E. Cummings:
I RECITATIVO DE LÍDIA4
ELISA e ELVIRA (em uníssono) — Não peças a quem pediu nem sirvas a
quem serviu.
PANO
II RECITATIVO DE LÍDIA
MARY levanta-se, vacila muito, bebe novo copo até ao fundo, atira-o
para trás das costas, estilhaços, aplausos do CASAL AMIGO I.
DISCURSO DE MARY
Durante o pronunciamento desta fala, que deve ser muito flat1, poderá
ouvir-se o Rondo de Mozart em ré maior 382, ou o Abril em Portugal,
orquestração de Thilo Krassman. Numa direcção de cena deveras
audaciosa, o Adagio Cantabile da sonata para piano n.º 8 em dó
menor opus 13, de Beethoven.
BAVAROIS DE CHOCOLATE2
Desfazem-se 250 gramas de chocolate com 250 gramas
de açúcar e uma pouca de água; quando o açúcar estiver
bem derretido, tira-se do lume e juntam-se-lhe quatro
gemas e seis folhas de gelatina derretida e deixa-se
arrefecer. Estando frio, junta-se-lhe meio litro de natas
batidas e mete-se dentro de uma forma com feitios,
molhada com água. Põe-se a gelar um bocado e serve-se.
JOSÉ OOM — A Sara abriu-me a porta, ela sabe que eu adoro bavarois
de chocolate, adoro.
FREDERICO (a ELISA) — Deus os derrete, Deus os junta, Diotima.
ELISA (cansada) — Aqueles que são fecundos segundo o espírito,
Sócrates.
MARY — Quem?
HOMEM CA I — Está óptimo, Mary, parabéns.
FREDERICO (a ELISA) — Minha irmã, nossa viúva.
ELISA — Poça, distraí-me.
MULHER CA I — Lembro-me lindamente da sua mãe fazer este bavarois
com nozes, Mary.
ELISA — Tout est bien qui finit mal. Um dia hei-de escrever um livro
fêmea, todo por dentro.
JOSÉ OOM (inquieto, a boca cheia, ainda não olhou para MARY) — O
quê, o que é que acaba mal?
MULHER CA I — Ó Zé, o menino viu em Paris aquele filme do
Bergman, o Silêncio?
JOSÉ OOM (na mesma) — Ai adorei, só lhe digo.
CORTINA
1 Chata. — N. do T.
2 Isalita. Doces e cozinhados. 25.ª edição.
III ACTO
Entra LÍDIA com uma taça de doce, vazia, que poisa na bancada.
PARÁBOLA DE LÍDIA1
LÍDIA sai.
LÍDIA volta a sair com uma grande bandeja de prata para o café,
máquina de balões, chávenas, açucareiro alto. SARA suspira
profundamente.
SARA — Ai eu.
ORAÇÃO DE SAPIÊNCIA
Quando o teu coração to disser poupa as tuas vísceras à
ingestão de alimento, água ou animal morto e escuta a
preparação dos ares para grandes coisas. Eu sou a que
olho os livros apertados por milhares nas suas altas casas
e a minha cabeça verga-se até ao pó, pois eis-me diante
do espaço do sagrado que me é vedado como o suporte
da hóstia o é a estes dedos que as larvas hão-de rilhar e a
acidez das terras carcomer. Mas soergo aos céus esta
cabeça adornada de um rolo espesso que nenhuma lâmina
profanou e posso predizer do ribombar das nuvens
inchadas e obscuras, sei afastar-vos pela noite dos lugares
que lumejam azul inexplicavelmente, sei escutar no balir
da ovelha o termo da sua prenhez e o andamento da seca.
Posso pegar numa raiz podre e dar-vos aviso do que lhe
foi escasso ou sobejou, num torrão de terra e dar-vos
conto de quantas sementes serão logradas de um só grão.
Posso dizer-vos, Está aqui o tempo de ir pelas romãs, no
cheiro da várzea, da pernada da glicínia. Pelo dorso de
um cão especado posso saber-vos a quantas léguas
ciranda o lobo novo, quão ancha é a raposa, reconheço na
noite os olhos do mocho e do gineto, no divagar de um
sapo e seu destino sei predizer-vos a precipitação das
chuvas de amanhã e o sabor das uvas gradas a três luas
de distância nas bagas ainda diminutas sob a parra
sulfatada de fresco. O meu corpo, aparelho húmido de
bocas tumefactas e prontas que não esqueceu passagens
de monções e pestes e desertos e travessia dos mares
sobre torrões fumegantes saberá emitir face a eles os
perfeitos juízos e os urros mais antigos, oh quanto
afogamento, quanta sede, quanta imensidão a atravessar,
dai-me as árvores olorosas e nuas que sugam os grandes
pântanos e as chagas dentro aos bofes, dai-me a
deslocação voluntária das chuvas, a ciência da paz, as
barcas e as redes e a destinação. Eu sei cheirar, do corpo,
ao exalar o medo do que ignoro e não domino e eu e a
terra vamos abraçadas contra a morte, tão frágeis e
indómitas. Sei temer e vergar qual caule ou carne viva
onde vós estais distractos e metálicos estalando na
esventração dos nomes, simulação de pele férrea que são
as vossas letras sem escritura no chão, escamas rutilantes
contra esta pele dos caules e animais sofrentes, outro
chão, na pele do chão, suspensos por um fio da minha
fala a zumbir entre as estrelas mais que razão curta, a
consciência toda, a da dor e prazeres, imortal.
SARA — O raio da rapariga parece o porco nas vascas, ora uma destas,
agora cai-me esta enxúndia nos braços.
ELISA — Caiu, caiu a grande Babilónia.
Saem todos excepto ELISA e LÍDIA, MARY vai pelo antebraço de JOSÉ
OOM que graciosamente lho ofereceu. Agarra a ponta da saia. SARA
põe prato para LÍDIA, serve-a também. Senta-se. ELVIRA e SARA
comem. Elisa está sentada à mesma mesa na mesma postura do I ACTO.
PANO
1 Texto inédito de Luís Sousa Costa, por acaso trazido durante a feitura deste, e admiravelmente oportuno e cedido. O
acaso não existe.
IV
CASA DE ELISA
ANGELUS
Madrugo. Estão-se a passar coisas raras. Nunca alvores matinais me
arrancaram do sono, quanto mais precipitação de chuvas. Memória do
sismo não é, a cismação matinal — que trema o chão, que ruam as
ruas, não seria a primeira vez nem de má memória o fundar de artérias
citadinas, aquedutos e traça, sobre carbúnculos residuais de sécias e
peraltas. Viva a razão do lume, fendas na crosta, maremotos, como
diria Nero a apagar-se, fulva sua mãe e os leões. Ouço a chuva
clamorosa nos algerozes e telha velha, enxurrada nas ruas em declive
da minha alcandorada urbe, mais pombalina de pombas soltas que de
Pombal, colina incólume. Em batalha campal deveria o narrador ser
postado em ponto alto, donde pudera seguir a movimentação das alas e
a emissão das ordens, junto ao pavilhão dos condestáveis. O escriba
era assim alevantado e só mandado assentar muito depois. Todo o
registo escrito dá ainda sinal dessa reduzidas variâncias de postura.
Olha que há quem lá fosse ao ventre da batalha, dizem-me os coevos
do cerco, da perda de um olho por frechada ou estilhaço de obus, do
reino por um cavalo. Mas isso são modernices. Nisto — nas mais
antigas profissões do mundo — são os princípios que marcam, a argila
tablóide, papiros, peninhas demolhadas.
Olha, parou subitamente de chover. Tenho que ter mais cuidado com o
que desejo, os elementos estão tão soltos. Mas a magia não existe, e Eu
sei lá quanto tempo mais.
something old
and something new
something borrowed
something blue1:
ENUNCIAÇÃO
Havia no solo, para lá do fosso, fardos de palha meio desfeitos e
aglomerados de uma bosta grossa, escura. É uma extensão grande. Ao
parapeito do fosso, onde jaz uma pouca de água verdosa coalhada de
moedas numa margem em declive agudo eriçado de arestas de pedra
britada, pode ver-se o interior do pavilhão, a treva, a nudez, outro
imenso vulto cor de cinza deborcado. Agora este — As orelhas são as
largas do grande elefante africano, os olhos pequenos e lentamente
móveis estão encimados de pêlos espessos, idênticos ao tufo patético
que finda a cauda curta, afuselada. As grandes unhas da pata dianteira
alevantada e algo rósea no joelho, de luz rosa, no esforço de distender
a grande massa de carne rugada e profundíssimos músculos mais e
mais para a frente, as grandes unhas quase negras não ultrapassam a
abrupta delimitação da pata, como tronco pujante decepado raso,
pouco abaixo da articulação ancha. As duas grandes presas serradas
cerce, estriadas de um castanho de folha de queimada, soerguem os
beiços sem espessura, a pequena boca quase coralina, indecisa. Do
todo, está estendida até ao limite máximo a tromba, anelada de rugas,
com o seu tão comovedor terminal fendido, delicadíssimo, afeito à
sucção e à preensão de ramículos, agora trémulo de táctil, a mucosa
nua, húmida e timidamente captadora da mão que a acaricia, a mão
belíssima, enorme, de um negro de lustro de um animal marinho
surdindo de águas, azulado de gelos, os nódulos dos dedos vigorosos
mais claros na movimentação terna, a palma cerra-se branda e quase
branca, como ungida de cinzas, rosa azul-negro de corola recolhida
sobre aquela palpitação pedinte do grande membro do velho animal
acariciado pela voz que raspa afectuosamente pequenos sons guturais e
estalidos, pelas unhas claras, implantadas fundo e curtas que repetem
uma fricção compassiva sobre a bordadura daquela viva fenda em
frémito. Foi então que ouvi distintamente que ele me dizia, Nada
temas, Elisa. Encostada a três metros no mesmo parapeito, assistindo,
eu disse então, Como?, e ele respondeu virando lento a vista de pupila
de ónix sobre fundo de resplandecente branco ácido, quase azul, o
sorriso compassivo mantido. Não disse nada, minha senhora.
Acrescentou ao meu esboço de gesto quase brusco, ao recuo das
criaturas de Deus, o paquiderme restabelecia-se sobre quatro patas,
recolhia o sumptuoso instrumento e alçava-o à sineta que dobrou,
quebrada, metal fendido, três vezes — Às vezes dizemos, dizemos,
sem falar. Chamo-me Elisa, o automatismo veio-me diante dos
evidentes sinais da soberania. Era altíssimo, alongado sem demasiada
magreza, os ombros recuados e plenos em redondo compacto sob o
casaco de uma gabardina quase branca, a nonchalance da perna em
igual, o vinco de fio de agulha terminado em pé sublime, coisas para
Cardin ou mesmo Roma, os punhos e peitos da camisa em seda mole, a
mesma divagação de branco, areias e negro na gravata, mesma
cerosidade sem excesso do calçado estreito. As quase translúcidas asas
do nariz baixo, de cana porém firme, soerguiam ligeiramente junto à
junção com as comissuras do sorriso, o rosto alteava-se em dois
malares fortes, duas bossas que rolavam a fronte excessiva sob a massa
crespa e redonda de dois dedos de velo negro na cabeça, a perfeita
lomba da nuca, água nocturna. A luz brilhava em aços na ancheza dos
maxilares, descia até ao pescoço régio de graça e porte, o interior
cinza-azul do pulso na mão estendida ao ar e céus e mim tinha uma
corda nodosa de violenta cicatriz a toda a volta, o renque de
correctíssimos dentes quase translúcidos, a plenitude da boca apenas
irónica desfazendo o gesto como consentindo por caridade a menina
humilde num ritual pateta, Prazer, chamo-me Angelo. Algo mudou
porém na doação das mãos, um reconhecimento do bom. Que ele então
disse, Não tenha medo Elisa. E eu disse, murmuradíssimo, Hare
Krishna. E ele disse como se estivesse comentando o estado do tempo,
Não é bem esse o continente. Mais disse, após sopesar o que eu via
fitando-o, Não tem pupilas para o pálida que está, não quer sentar-se?
E mais logo, É portuguesa, está doente? Sou portuguesa, posso vir a
estar doente, donde é que você vem? O você era tímido, aquilo ou era
de soba ou de embaixada para cima, a realeza. Cape Town, disse ele e
sorriu maligno, mas não me era dirigido a mim, ave coxa, arribante. La
illah ila Allah5, mais disse penseroso; a rótula mansamente sobreposta,
a meia em seda fumada, o tornozelo frágil. Ai u é, acrescentei eu. Se
sabedes novas do meu Amigo, riu-se ele muito comigo e pela primeira
vez tocou-me na testa com os três dedos intermédios da mão direita
dizendo, Malinké, mia senhor fremosa, algures dos arrabais do grande
rio, importa pouca. Ilha? disse eu. Não, floresta basta, o calor húmido
irisa o umbigo dos deuses. — Falas bem português, disse eu.
E disse tu.
— Quando o Pentecostes nasce é para todos. É a língua d’alma.
— A tua mãe?
— Quando a minha mãe estava grávida foi em busca do espírito dos
antigos até à beira dum ribeiro. Na margem estava um crocodilo ainda
novo que lhe disse, Mata-me. A minha mãe pegou numa pedra larga
para o esmagar. A pedra transformou-se num grande mocho branco
que lhe disse, Pousa-me sobre o crocodilo e prosta-te na areia sobre o
ventre até deixares de ouvir o ruído da torrente. A minha mãe assim
fez. Quando tudo estava muito silencioso, abriu os olhos ainda a tempo
de ver dirigir-se à água uma pantera negra que ergueu uma pata e lhe
disse fitando-a com os seus olhos de perpétua zanga, Quando chegares
na tabanca, mata um cabrito e grita até estarem todos os homens e
mulheres grandes reunidos. Não terás dores mas vais parir hoje.
Quando a criança nascer unge-a com o sangue fresco de um cão e com
o amarelo do ovo de uma galinha. Dirás que isso te foi dito pelos
antigos que assim lhe vedaram a pele para grandes feitos. Fá-lo-ás
crescer no temor dos búfalos e dos homens de cabelos longos. Tal é o
desejo dos antigos. E dizendo isto, caminhou para dentro do leito das
águas de novo rumorosas do ribeiro. Foi assim.
— Espécie de Siegfried do mato, are you kidding?
— Quite so, Brunhildezinha, todas as amazonas da Europa adoram
mitos exóticos.
— Mas eu sou uma bajuda6 do Dahomé
— Sabes muito, gazelinha, ao que corres?
— Ce n’es pas juste, je ne t’ai posé que des questions évidentes.
— L’évidence est une qualité de surface7.
— Ah, a Aventura Ambígua, és animista ou islamizado?
— Para quem leu tanto gazela, isso é uma pergunta estúpida. Importa-
te assim tanto situar quem te comove?
— Tu não estavas a comover-me, isso já estava feito, estavas a
impressionar-me com a acumulação de saberes.
— Tens razão, tendo muito a portar-me como um negro greco-romano,
aqui. É o sindroma do escravo.
— Aqui?
— Europa.
— Foste educado aqui?
— Ainda estou a ser educado, lá.
— Eu estou-me a deseducar.
— Muito europeu, estiveste em Maio em sessenta e oito?
— Não, vou estar na terra no ano dois mil, com uma grande grande
araucária a crescer-me dos cabelos.
Aí, ele silenciou, voltou a pesar o peso do ar à nossa volta e disse:
— Desculpa, és a primeira portuguesa que desconfio que sim.
— Há muito ódio, príncipe, entre nós?
— Há muito ódio a príncipes, senhora, e é bem feito.
— Tu disfarças?, que estás aqui a fazer, que querias do elefante?
— Sirvo, procuro servir, fiz-me ponte, creio.
— Os africanos falam preferentemente por metáforas, como eu,
— Os povos primitivos, quem regressa, os,
— Diz, diz,
— Irmãos escuros.
— Tu não me és escuro.
— Ao meu povo sim, a brancos sim.
— Teu povo?
— Nasci lá.
— Lá?
— Lá, debaixo da terra onde não sossegam os restos, onde não há
destrinça exacta entre o raio e a raiva de Deus, onde o espírito mana da
infecção de um espinho, onde a humilhação fez de cada crença um
quisto ambíguo de verdade e mentira, porque os teus perderam o chão,
perderam o chão, perderam-nos o chão,
— Não tenho meus.
— Morres, gazela, morres como os antigos desfeitos em fezes líquidas,
os pés garrotados a caminho das Antilhas largado à força o pilão cheio,
um filho de mama, morres como os que voltam para as minhas terras a
desfazer num dia os feitiços, a decepar num mês as árvores de irã, a
devassar pelos trilhos de mato a traça dos antigos, em dois dias.
— É preciso estar com os rudes, Angelo?
— É preciso estar com os rudes, branca-flor. Queres ver-me ver os
répteis comigo?
— Quero, mas não sei se o que trago vestido,
— Pobre oncinha borralheira, pareces mulher grande sem mezinho e
sem cabras, a pele que se renova é o vestido que há.
Angelo disse:
— Donde vindes, madre, branca e colorida?8
— Do cu dos tempos, senhor preto, do cu dos tempos, onde só entra a
agulha de Deus.
— Tu o disseste, hermana, disse ele.
E deu-lhe uma nota inteira de cem, o que a fez sorrir-se como uma
cobra aberta, ou seria das listas rasgadas como pele seca do avental até
aos pés, do afastar donairoso, de toureira em perigosíssima lide,
terminado o lance.
— Estes nada perdem, nada criam, só transformam pela quase intacta
memória, disse eu.
— Nenhuma produção os corrompe nem avança, apenas trocam,
sujeitos à morte altiva e lenta, mas o Frederico amava-os.
— Quem?, disse eu, noutra.
— O verde que nos queria verdes.9
— Os poetas?
— Os esperançosos de todo o mundo, gazela, unidos.
A casa não era longe, no bairro que se chama Azul e o é, com as suas
varandas de pretensiosas colunas bojudas, as persianas corridas,
pequenas leitarias de vão de escada onde havia tangerinas ou estou em
querer agora que talvez não. No último andar direito, Angelo meteu
uma chave à porta para um pequeno hall interior de bandeiras de porta
muito altas, vedações em caixilho de vidro fosco para outras
dependências. Fixei os arabescos de tapetes persas sobrepostos
cobrindo todos os soalhos e folhagem de plantas em grandes potes de
barro cozido, branco, um pouco por toda a parte. Não havia móveis,
creio, mas espelhos de todas as épocas recobrindo paredes acima e
abaixo dos lambris de madeira, pelo menos onde estive, na que abria
para a marquise. Nem um retrato, nem um óleo, esperei ver máscaras,
marfins, escudos, de filigrana de ráfia, apenas espelhos, redondos,
elípticos, ligeiramente convexos ou grandes plataformas cristalinas,
emolduradas em metais pesadíssimos e preciosos, volutas,
enquadramentos de acaju, de mogno, biselados muito espessos sem
moldura, espelhos. Eram paredes temíveis, nós sombras mínimas ad
infinitum, paredes de evitar. Havia mais, pois, a grande marquise
aberta para umas traseiras desoladas, dezenas de escadas de serviço
descendo angulosas e vazias com as suas plataformas metálicas e
picotadas até pátios de cimento vagos, cordas e cabos metálicos de
onde pendiam boas roupas, húmidas. A corda de Angelo não tinha
nada. Os persas ondulavam as suas cornucópias e pétalas geométricas
a vermelho e preto, verdes sombrios, pontas e fundos de um turquesa
ensurdecido, desfibravam por manchas, franjas desfiavam. Descalcei-
me. A minha bolha luzia sob o quadriculado dos sinais de gaze, toque
de câmpanula frágil, caduca. Ele tinha dito, Espera aqui, e ouvi-o falar,
titilações de telefone. Grandes trepadeiras de folha muito larga,
espatulada, ou estreliforme quase vedavam o vidrado da marquise, o
pano de linho alastrado de grandes manchas ténues, envelhecido, que
coava a luz. Recomeçava a chover. Recostei-me em espécie de coxim,
panos, única peça. Quando ele voltou disse, Um gadget, e ligou sem
manivela uma grande grafonola de campânula. O som veio amplo,
correctíssimo, apenas a fanhosidade de relíquia recuperada
imediatamente reconhecida. E foi assim que eu fechei os olhos e os vi
claramente dançar, um mesmo objecto a que se dava corda, um fim de
tarde de ouros e castanhos, ao Norte, cadeiras de palhinha crua numa
outra marquise ampla, ladrilhada largo — o tango deles,
ajustadíssimos, belos, ela tinha um vestido de crepe pérola de manga
com fieira de botõezinhos forrados e chumacinhas nos ombros, ele
estava de fato inteiro assertoado e o cabelo uma só placa lustrada e
justa ao crânio harmónico, a nuca cava, dançavam sem se olhar, ela
numa mímica perfeita e sacudida de cabeça, os tendões do pescoço
hirtos de diva altiva, ele deixando-a tombar pela cinta e cair sobre
coxa, a mão seca, branco-azul-greco sobre os rins dela, dóceis e
crispados como cumpria ao espírito da dança, dominando todo o jogo
como bom cavaleiro o faz de toque de rótula na montada e rédea
sóbria,
madreselvas en flor
que me vieran nacer
y en la vieja pared
sorprenderan mi amor
pasados los años
y los desengaños
el primer cariño
que nunca olvidé,
que idade teria eu, dois, três anos? cheirava a tabuleiros de marmelada
recente, ferro de carvão, era tão clara a presença. Abri os olhos e disse
a Angelo.
— Acho que eles se amavam.
— Não é possível, não teria sido possível, aqui,
vieja pared
del arrabal
tu sombra fue
mi compañera
y todos los años
tus flores renacen
porque ya no muere
mi primer amor.
Então, pela primeira vez tive um grande medo e ele viu. E ajoelhado à
minha beira, com uma taça cheia de avelãs nas duas mãos, numa
reverência profunda, disse, Nada temas, Elisa.
Uma mulher de voz madura, muito aguda, cantava sobre um fundo de
Kora a louvação La illah ila Allah, Donde, donde, é isto?, Guiné,
gazela, os grandes restos do Mali, também descemos sobre a mesma
carne, tribos contra tribos, mas os antigos velam nas fibras da piteira,
sob a casaca dos répteis na orla dos grandes rios. A voz atingia a
crescente rispidez do grito e eu peguei-lhe o mais humildemente na
fímbria do pano fino como cambraia e toquei com ela a minha boca
descida, a minha testa fria, no espaço entre os dois olhos. Vi então que
não só os pulsos estavam marcados de lacerações profundas a toda a
volta, como também os dois tornozelos nus de tendões finos, ossos
altos. Prostrada ainda, perguntei-lhe, Quem te feriu? e ele recitou
assim com as pontas dos dedos no meu queixo e os olhos sérios nestes,
como quem se dói, Sublimes excoriations d’une chair fraternelle et
jusqu’aux feux rebelles de mille villages fouettés, arènes.11 Depois
perguntou-me,
— Tu que queres, menina?
E eu falei como uma rainhola em começo de carreira:
Mas, à uma da manhã de uma noite limpa, não me aflige nada o poder
estar doida. Nunca contarei a verdade de factos inverosímeis. Carece,
nestas partes do mundo, suportar a inverosimilhança calada até que
mais realidade, a exercitada silente, faça luz. Passo a pulseira ao pulso
esquerdo, a mão que firma o espaço, vago, onde inscrever. Oiço, Bach,
Posso-te pegar na cabeça?,
1 Algo velho, algo novo, algo emprestado, algo azul. Tradição a ter em conta no ataviar de noivas na cultura anglo-
saxónica.
2 Referência ao romance de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.
3 Referência óbvia.
4 Referência menos óbvia.
5 Deus é o único Deus. Guiné.
6 Rapariga em crioulo da Guiné Portuguesa.
7 Referência a L’Aventure Ambiguë, romance do Sheik Hamidou Kane. Senegal.
8 Paráfrase do Conde de Vimioso, Cancioneiro de Resende.
9 Referência a F. Garcia Lorca.
10 Birago Dio. Incantation. Senegal.
11 Aimé Césaire. Patience des Signes. Antilhas.
12 A vinda é doce, a ida dói, mas quem não parte não tem regresso. Crioulo. Cabo Verde.
13 Corsino Fortes. Pão & Fonema. Cabo Verde.
14 Partida. Crioulo. Cabo Verde.
15 Foras tu comigo e eu caminharia para a minha morte e repouso na alegria. Ah quão doce seria meu fim foras tu a
fechar-me com tuas mãos, belas, os olhos fiéis. Stolzel. Do Livro de Notas para Ana Madalena Bach (1725).
IV
CASA DE ELVIRA
STELLA
Tudo, tudo mudou, não é só o vires caminho da praça derrancada dos
braços desafeitos a um tão grande peso, tê-lo seguro com um e lavar-
lhe a cara, os peitos e os antebraços grisalhos com o outro, cortar-lhe
as unhas sarrentas assentado na pia, lavar-lhe as partes no bidé com ele
a desviar a cara, a dizer, Deixa, deixa isso, rapariga. Tem mais tino,
hoje. O teu homem disse, Pelas onze volto cá, faço-lhe a barba e ala
para a consulta, ouviu, meu pai? E ele disse, com um meio de riso por
entre os pêlos pigarços espetadiços, Seja, homem, cá estou. Pôs-se de
atalaia à rua firmado no parapeito enquanto davas de mamar ao
menino, uma fralda por cima. O menino, desacostumado, tirou-a ao
chão, uma, três vezes. Depois hesitando entre berrar e sugar, calou-se
com os olhinhos a meio fechar de gula, o punha cerrado na tua mão, o
cenho ainda a protestar mas lá foi, os dois únicos dentes debaixo a
rilhar-te o mamilo. Tudo mudou. D. Marieta pela manhã entrou na
cozinha. Tinhas a cafeteira ao lume, e alguidar para as águas aos pés.
Ela disse, Olhe menina Elvira, não tem precisão de o estar a lavar no
quarto que me derrama a água e mancha o soalho todo, incomoda-me a
Fatinha que inda está a descansar. Sirva-se da casa de banho, desde
que deixe tudo em ordem. Depois, deu um puxão aos virados do robe
acolchoado com botões de massa irisada e flores mindinhas, roxas de
olho rosa em fundo branco, gorda, gorda e começou a lidar com a
torradeira eléctrica muito sacudida, a meter a ficha baixa gemendo, Ai
hoje o meu fígado está de todo, hei-de mandar pôr uma ficha por cima
do frigorífico para a batedeira. Era a trégua seca. O teu homem já tinha
saído, repetindo com força, atarantado mas firme daquele novo peso, a
ter que ater-te do desamparo em que te vira nas vésperas, pelo meio
das noites de levante, sussurradamente alvoroçadas a amparar o velho
em vigília, Logo pelas onze e meia estou cá com a guia, já pedi
dispensa, faço-le a barba e ala, queres que to ajude a lavar? Não, ele
hoje está melhorzinho, não merece a pena atrasares-te, disseste com a
voz vibrante onde já só estava uma raspazinha de medo, da coragem
disseste, Eu posso, não viste como ele já se alevantou? D. Marieta
disse, Vamos lá a ver o que diz o médico, isto é para internamento com
certeza, a minha madrinha também lhe deu assim, mas pouco tempo
incomodou, coitadinha, para o fim já nem podia sentir os cãezinhos
que era a grande estimação dela e eram de raça, uns pekinois daqueles
de nariz chato, maus que eu sei lá, credo, o que eu passei. Mas valeu a
pena, ó D. Marieta, disse o teu homem antes de sair, Que é que o
senhor António quer dizer com isso, ora essa?, Nada, D. Marieta, nada,
Sacrifiquei-me muito, lá isso sacrifiquei, a lavá-la, a pegar-lhe a peso,
mas olhe que não foi de mais para a estimação em que ela me tinha,
coitadinha, aquilo foi uma mãe para mim e mesmo na doença sempre
tão fina, comia as bolachas araruta molhadas no chá, era só o que ela
comia e umas colherezinhas de maizena, sempre com uns modos,
nunca se lhe ouviu um desbocamento, Atão até logo, D. Marieta, Vai
levá-lo hoje ao hospital, não vai senhor António? Estou cá pelas onze,
A ver se esta desgraça se resolve. À porta ele disse, baixo,
Grandessíssimo coirão, e, tal como ele esperava, até já te riste. E ele
então apertou-te um peito de rijo e disse, Havemos de sair desta
enrascada, mulher, vais ver que o velhote arriba e ainda o havemos de
ver de sacho nas unhas. Nem tu nem ele criam que assim fosse, mas
ele desceu a escada e era a luz dos teus olhos, viga da consolação. O
menino estranhado da presença do avô ao fundo do quarto berrava,
agarrou-se-te com gana, os olhinhos postos no intruso, o velho
mostrara os cinco dentes descarnados, picados de tabaco de onça. Ele
deixara-lhe enroladas umas quantas pitas, Aqui tem meu pai, de vício
está aviado até que eu venha, lá pelas onze, faço-le a barba e ala para a
consulta, e ele tornou-lhe muito certinho, Bem hajas, mas não lhe pôs
o nome. O menino espreita-o agora mais afeito da sacada do teu
ombro, ainda beiça fincado ao teu pescoço, É o teu avô, filho, atão não
vês que é o avozinho? E o velho diz, Amanhã hei-de ir à do Hermínio
buscar-lhe uma cega-rega, olá se hei-de, Ao Hermínio não, meu pai, a
gente estamos em Lisboa, mas havemos de ir lá pela Páscoa com o
menino à Cidália, vossemecê há-de-se pôr bom, que vossemecê ainda
não o conhecia, é um lindo menino, pois não é, meu pai?, é o teu avô,
Toninho, chama-se como o pai, vossemecê não acha que le dá ares?
Toninho, Toninho, Abílio é que havia de ser, Ora, meu pai, Abílio já
vossemecê tem um, fica para a próxima. E ele diz, do assento do divã
por fazer, a arquejar na pieira da tosse, De quem é, o cachopo? É o seu
neto, meu pai, tornas-lhe tu, esmorecida, e pões-te a alinhar o quarto,
deitaste os lençóis e os cobertores abaixo na tua cama, hoje não há
manchas frescas daqueles leites do corpo que tu escondias antes de
lavar, com os nervos esqueceste-te de tomar a pílula, talvez que ainda
vá a tempo, senão amanhã estás outra vez a sangrar e inda foi há tão
pocachinhos dias. Vais disfarçada tomá-la à torneira que ela assim não
te mói como te moía ao princípio. Ó Elvirazinha, que desleixo, credo,
isso assim ainda lhe faz mal, se eu soubesse a Fatinha nem lhe tinha
dito, credo, custa alguma coisa. Mas custava, todas as noites espetar a
unha naquela pratinha de chocolate e mica estranha aos dedos, aquela
baga engoli-la todos os dias, custava. O teu homem dizia, Tomaste-a
hoje?, senão tenho que botar fora. E tu tomavas. Talvez que ainda vás a
tempo, é manhã cedo, pelas oito. Voltas, bates o colchão, melhor não
abrir a janela que está por detrás das costas do teu pai. Deixá-lo, arejas
logo. Puxas os lençóis, fazes a dobra de entalar como ela te ensinou,
Nos hospitais é assim, Elvirazinha, faz-se assim uma prega para ficar
mais liso, dura mais, foi a enfermeira da minha madrinha que me
ensinou, coitadinha. Lídia vinha e ria-se, Na casa da minha senhora
não são de engomar, Isso hão-de ser caríssimos, ó menina Lídia,
Fatinha, hás-de-me ver se há na Baixa, ai filha, só o não ter que
engomar. Os cobertores, a colcha de crochet branco que ela te ensinou
tantos meses as rosetas, de entremeio com as lãzinhas do menino, a
dobra bem entalada por debaixo da travesseira. Puxas o teu pai do divã
para a tua cama feita, ele parece acordar, diz, Que é, que é que tu
queres mostrenga?, segura-se e diz, Ai és tu, mas não diz o teu nome.
O menino está acordado, dá aos pezinhos, palra e gorjeia mirando-te o
lidar. Com um grande esforço de ranger, os dentes aperreados, fechas o
divã com a cama feita dentro e encostas ao vão da janela. Deitas o
menino ao lado do velho sentado na tua cama e dizes, Tenha mão nele,
meu pai, por dizer, e recomeças com os lençolinhos pequenos que têm
patas a cheio na bordadura da bainha. O velho canta-lhe, Lá vai uma lá
vão duas, três pombinhas avoar, uma é minha, outra é tua, outra é de
quem na apanhar, com voz roufenha mas certinha da música de
cantador antigo, o menino dobra o riso, pedala, agarra-lhe os dedos, o
velho diz, desdentado, o ralo no peito mais fundo de gosto, Ah ganapo
do diabo, ah ganapinho, queres uma codinha para rilhar, queres? E tu
rindo também voltas a pô-lo na alcofa de folho e dizes, Não mo esteja
a espertar, meu pai, que eu agora tenho de ir à praça. E mais dizes
enquanto o deitas, protestante sem muita gana, o sono a vir, Para o mês
que vem já hás-de ter uma caminha, já quase não cabe, e o velho
assevera-te, com muito tino, Atão, agora é que ele tem que medrar.
Mas não te dá nenhum sinal quando lhe dizes, Eu não me demoro, meu
pai, vou pelo almoço. Encolhida, sais e pedes-lhe que deite um olho ao
quarto, por eles. Ela responde-te, Olhe que eu não posso garantir,
menina Elvira, que hoje é dia de mulher a dias, veja se não demora,
podia ter ido ontem, O frigorífico estava muito cheio, D. Marieta,
Então vá, mas veja então se não demora, que eu tenho a minha vida. E
tu desces a escada, as ruas, com o coração à boca, esgueirando-te de
todos, saindo para fora dos passeios a passo estugado sem ir de carreira
que parece mal. Tudo, tudo mudou,
do sal, que demais não será jamais louvada em terras estas de largas
costas salineiras. Atentai ora pois de suas propriedades a todos os
outros mantimentos se acomoda, dando reforço a sua ancheza de fibras
ricas, novidade à humilde baga insípida, tremoço, pevide. Exaltando
das carnes só seu espírito, pondo nos pães sua só esperteza de travo.
Assim, até longínquas dobras arenosas e sob a ríspida corola da
tamareira, inscrevem esses cristais a sua traça marítima, sulcando o
palato dos homens e suas bestas da irisação das espumas, capilar
periculosidade das medusas, as sápidas memórias. O açúcar seda,
satisfaz, é a outra primícia. O sal das águas largas é porém matriz do
rastejar primeiro para os elementos altos — o fogo, o ar. Sobre terras,
pântanos insípidos. A seco porém e em sua só inteireza abrasiva, quem
no estima ou sequer o rigor lhe suporta? Vede que só os mais rudes
animais capazes de íngreme, migrantes, cabras, crianças secas, gente
da sede crónica. Este é o que reserva as águas no seu posto móvel e
lacera os insondáveis rins. Entre nós, salineiros por piscatórias águas e
deslocação de urbes sóbrias suspensas sobre rias — o sal está onde a
fermentação dos mostos, a preservação das carnes, dar têmpera. Ora
pois — que vícios contrapor a tais virtudes? Que malefícios prevenir a
tão indúctil bem, sacramento de sageza sobre o beiço do neófito? Os
há, porém, — o sal incha ou resserra. Mulher prenha e víscera velha
devem aprender-se de temê-lo. Assim o sal semelha a mão que salga
— se pouca é desuso triste ao paladar; o excesso, o abuso da aspersão,
mata, queima quem dele farta. Que pois devemos face à mão que o sal
empunha, ocupa, penetrada da vitral acridez até palpos de língua,
curtiduras de feições e mechas de cabelo? Que tento tenha em bem
salgar as gordas coisas a que desinchem ou cessem putridez avançada,
que não consinta sejam retidas de salmoura estática as que sustentam e
sempre foram limpas, que não abrase os verdes, a tenrez. Indes que tal
mister de salinar, modular o tónico, o adstringente, a todos nos
concerna, tão salgada nação, ousar de seu administrar a boa conta. Da
arte de salgar contra o pútrido toda a mão lusa devia ter mesura.
Porém, salvo nos grandes peixes espatuláveis e nas veras colinas desta
matéria dada — salinas — é a mulher que mede e de sua mestria nisso
sabereis destino de sua casa e gerações: É temer-se da escassa e da
mão solta. Dependendo sobre que carne e bocas modula o exercício da
aspersão dos cálculos mínimos, o unguento pisado com alho e
especiarias. Ora pois, senhora de salgar, deusa da pedra dúctil e
solúvel, não haverá de vosso assento uma tão-só palavra sobre quem o
sonega ou o abusa? Ora pois, mão mestra da alquimia dele, mentora do
gado parco que o tem por numinoso bem, onde está o cajado que de
direito fronteira teu cabreiro redil? Se o reino é doutro mundo, o sal é
deste, gema incisa, vitral soluto, sobre as línguas inermes, as calotes
gélidas, extremas. Louvemos ainda os que se habitam dos cristais
lacerantes, sapidez tónica, havendo-os consubstanciado ao ânimo
íntimo pela rareza da expulsão dele, sal, lágrimas raras,
Ó santinha, não se rale, atão ela faz mais que a sua obrigação em ter lá
o velhote? vocês não lhe pagam o quarto? Grandessíssima cabra, isso
brada aos céus, Havia de ser comigo, Ó Leocádia anda cá ouvir esta,
Nem que eu lhe partisse a loiça toda nos cornos depois que se fosse
queixar à esquadra, Olha o estupor, coitadinha da criatura, já não há
respeito pela doença, mande-ma cá que eu dou-lhe com uma chaputa
nas trombas, a fazer-se fina, o coirão, Ó santinha, não se aflija, cante-
lhe de alto, que o seu homem é farda, Olhe, tenho aqui umas
sardazinhas frescas que é um regalo e leve esta postazinha do alto que
é oferta para o velhote, grandessíssima cabra, havia de ser comigo, e as
melhoras do seu paizinho, santinha, Coitadinha, ela é mas é branda, a
outra caga-lhe em cima, um desenxovalho duma rapariga,
Tinham cevado o porco há dois dias, a tua mãe andava com os braços
cheios de carolos de unto e colorau, as unhas estavam negras do
sangue coalhado das morcelas, tinhas ido ajudar a segurar no grande
traseiro do bicho que pinchava sangue do cachaço para uma gamela.
Assim era ainda aquela carnificina todos os anos, só este te deixaram
pôr as duas mãos com força no estertorar dos quartos trementes de
onde saíam pedaços de uma merda em pastas, uma mija negra.
Fincavas as unhas nas dobras de pele clara com os pêlos rijos, cerravas
os dentes no mesmo prazer que os acometia a todos, nessa noite já
haveria torresmos, nacos de febras estrugidos sobre brasas de fumo de
azinho. Ora foras por mais sal, pontas de orelhas e pés cascudos
despontavam chamuscados da salgadeira, era o cair da noite, hora de
mandados. Numa sarça adiante luziram-te dois olhos pequenos, depois
um pincho trôpego, o bicho caiu-te de borco quase aos pés. Era um
gineto pequeno, os chifrinhos de pêlo branco estremeciam na aragem,
os olhos agora fechados, no lusco-fusco, Para que me vens tu arrenegar
com isso, rapariga, isso é bicho bravio, ora uma destas, aventa-me isso
daqui para fora, o bicho já está morto, Deixa lá a cachopinha entreter-
se, mulher, também não é boca que esbarronde a bolsa, deita-o além
cima duma pouca de cinza do lar, Vira, vai buscar a chucha moída do
teu irmão, a que ele aventou, faz-se-le um buraco, aquece aí um dedal
de leite na púcara, o bicho está vivo, dá-te graça? pois também a mim.
Criou-se a pontas de leite, a petinga, a raspas de carne salobrada, até
sopas de vinho. Ao primeiro tolhia-se no canto da casa onde pior
alumiasse, escondia-se atrás de potes e arcas, dormia-te numa rosca de
pêlo morno entre ti e o Abílio, que o judiava e a quem davas lambadas.
Bufava com uns grandes dentes finos maiores que os dos gatos e as
orelhas aguçadas recolhidas, lambia-te de unto com a língua de lixa
aos cantos da boca e as buracas do nariz. Um dia, estralhaçou um pinto
pedrês. A tua mãe disse, Rais parta o enguiço, hão-de-se me ir as
galinhas todas. E o teu pai disse, É tempo. E foste com ele pô-lo para
lá do Ervedal, num matorral ermo. O teu pai disse, Há-de-se amanhar,
e trouxe-te de carrego até ao terreiro da casa, escarranchada à cinta,
assoou-te. Foi a última vez que te deu colo. Já pesavas.
TROMBETEIRA
Ó Estela, olha a Estela, entra Estela, Ai cá dei com o andar, tás boa
Vira, tás boa, pois, tomaste corpo com o casamento, Ó Estela, tás mais
gorda, rapariga, ai que alegrão, Foi a Gina que me disse que tu agora,
Quem é, ó menina Elvira? É uma rapariga da minha criação, Dona
Marieta, é a dona da casa, ó Estela, anda ali para o quarto, vais ver o
menino e o meu pai, A Gina já me disse do teu pai, desta ralação em
que tu estás, a gente só se vê nas bodas e nas desgraças, eu hoje larguei
mais cedo, olha o tio Abílio, És tu, Cidália? Não senhora, meu pai,
atão vossemecê não vê?, é a Estela do ti Domingos, olhe aqui a Estela,
Hum, Sou eu ti Abílio, És a Cidália, bem vejo, toma aqui assento, Ele
não conhece a gente, Deixa, deixa Vira, não te apoquentes, que mais
dá um nome, ai que lindo que é o teu menino, mulher, mesmo lindo, é
a tua cara, Ná, olha que não, puxa mais ao António, Tu é que puxas a
ele rapariga, estás tal qual na mesma, Abençoada boda, Que é que
vossemecê, disse, meu pai? Abençoada boda a do rei Salomão, ó
Dália, Ó meu pai, a nossa mãe já lá está no descanso, eu sou a sua
Elvira, esta é a Estela. Abençoada boda, digo-to eu, Deixa Vira, ele lá
sabe,
pois eu vinha cá por causa de dois quartos que lá estão para alugar lá
no pátio e quando a Gina me contou do teu pai eu fiz logo tenção de
vir que tu sabes que agora já vai para meio ano que eu estou na fábrica
e a gente,
o táxi trava que uma cega é ajudada a atravessar a rua por um homem
que ainda usa chapéu e alfinete de gravata com pérola,
havia um espelho também oval onde ao fundo surdia como ponto sépia
na penumbra o pequeno retrato e a cabeça, só a cabeça dela, Mimi,
com um laço de veludo azul-negro no cabelo como halo luminoso à
cara, no escuro à contraluz,
Mas a senhora tem que comer qualquer coisa, um chá, uma fatia de
fiambre, um sumo de alperce, eu levo-lhe ao quarto, Talvez, talvez,
arranje-me um banho, Lídia, A senhora come primeiro?, Depois,
depois, um banho morno, com sais, Rochas, minha senhora?, Não, não,
qualquer coisa que cheire a nardo, forte, doce, veja você, Sim, minha
senhora, a senhora sente-se mal?, Não, não, deixe-me só, Lídia, arranje
o banho,
mas a ela, ele nunca a ouvia, nem já havia que lhe dizer, Elisa com
onze anos precoces não podia puxá-la ao pai, a mãe dizia, Isso são
coisas do seu pai e da Maria Elisa, Mimi, já arranjou as suas unhas?
Que é que vai levar a casa dos Arouca?, a sua pele está péssima esta
semana, tem posto o adstringente?,
e a pele dele tinha na cabeça, por debaixo do lenço de seda branca com
que a mãe lha cobriu sem uma lágrima, as duas alianças já na mão
esquerda e o anel de pérola barroca ainda posto, um sulco fundo que
lhe rasgava a cara até ao canto da boca, o cabelo impossível de
desgrumar de sangue seco havia sido cortado por mechas irregulares, a
mãe insistira na barba, o barbeiro tremiam-lhe as mãos, à mãe não, até
cair contra um dos bordos de talha dourada do plinto um pouco abaixo
dos sapatos de polimento dele que lhe tinham calçado custosamente
nos pés inchados e rígidos, na perna fracturada, e foi Frederico que a
agarrou e a levou para o grande quarto Império, os cabelos loiros e
lacados, inaturalmente fixos naquela cabeça pendida inerte, que
baloiçava enquanto ele no trajecto por corredores com ela atrás a
morder os dedos, lhe desviava o corpo de obstáculos e baloiçava,
baloiçando até que o mundo pare de bater neste peito solto de soutien,
num ventre lasso onde não está nada, nada, Quando os meninos
vierem, Lídia, diga que a mãe está doente, que não façam barulho, a
Sara que lhes dê o lanche, eu não estou para ninguém,
Minha senhora, está lá em baixo o senhor José Oom, Que chato, diga-
lhe que eu não estou bem, uma dor de cabeça horrível, eu depois
telefono, Minha senhora, o senhor diz que é muito urgente, Olha
manda-o à merda Lídia, traga-me outro scotch com água lisa, A
senhora não prefere um chá de jasmim leve? Traga-me o chá e o
whisky e que não me chateiem, Desculpe minha senhora mas eu não
posso ver a senhora assim, a senhora quer que eu traga o telefone para
falar ao senhor engenheiro?, O senhor engenheiro tem uma porca
entalada no cu, Lídia, deixa-o morrer de parto, Credo, eu nunca vi a
senhora assim, quer que eu chame o médico? Vai, Lídia, vai ao teu
serviço, ao teu serviço, manda-os à merda a todos,
e ele dizia para o pai, O pai desculpe-me, eu não tenho nada com isso a
não ser no que possa vir a atingir a Mary, mas não lhe parece que a
cortiça este ano, com os shares deste ano,
Oiça, meu amigo, sou bisneto de morgadio frustrado, sou neto de
liberais frustrados,
Lá está o pai —
Sou filho de republicanos frustrados, fui sidonista, verduras, li o
Pessoa e o Almada,
Está a fazer o texto para o who’s who?
Além de sogro de um genro engraxado sou administrador nominal e
principalmente frustrado,
E frustrante pelo menos no que toca à aplicação do que tem, a Bolsa,
Acomode-se, meu caro, a sua família tem bens investidos na indústria,
a minha tem as graças da decadência, pague o preço da aisance no
mundo dos seus filhos ainda que lhe saiam tarados ou acabem
maltrapilhos,
O pai desculpe, só me interessa o que possa prejudicar a Mary,
Ora, meu caro, a Mary foi prejudicada à nascença, a mãe dela parece-
se muito consigo, é de uma self-made family,
Lá porque a mãe tem mais senso comum —
Tem principalmente o senso posto em que o que tem não seja comum
aos outros, não partilha nem esbanja, most common, isto é, ordinária,
meu caro,
O pai é extremamente snob, casou-se com ela, não casou?
Nunca ouviu falar em luta de classes, meu amigo?, às vezes calha ser
corpo a corpo.
Classes?, pensei que isso fosse uma coisa organizada, senhor meu pai,
entre pobres e ricos,
Isso é no Evangelho, ah meu filho, recorde as alianças entre a realeza e
arraias miúdas para derrubar intermediários rapaces,
Ah senhor Mestre, com que logro, pois que vós haveis arrecadado os
dobrões e a canela —
Como folgo em ver-vos arrufado senhor duque recente, parece que nos
entendemos,
Meu pai, dilapidar uma fortuna e ler os clássicos não é servir ideários
marxistóides, creio.
Oh qu’il est mignon, le petit technocrate, não é servir mas também não
desajuda e desmoraliza-vos muito, ó burguesitos, no que nos imitar
quereis, quem vos odeia com pontaria senão aqueles a quem haveis
tirado a rédea e aqueles que ainda não vos apearam?
Curiosa teoria, meu pai, a isso chamam eles colaboração de classes.
Sim, sim, se os fantasmas ferozes forem classe,
Eu não temo fantasmas, meu pai,
Isso é verdade, Frederico, mas olhe que a sua gravata é pirosíssima.
Como pai?, é do leonard, comprei-a na via veneto,
Não se agarre ao no como o enforcado do tarot, meu caro genro, vê
como os fantasmas são temíveis?, temo-vos suspensos por um fio, um
nó de gravata, a basbaquice de querer ter tão boa mesa e biblioteca
quando o senhor de Malraux —
O Malraux não é de.
Essa é melhor que a da gravata, mas não se preocupe, meu caro, a
achá-lo profundamente risível na Europa já só o senhor de Gaulle, o
senhor de Kruschev e o senhor de Cohn-Bendit e não sei se terão
tempo para se rir juntos.
Mary, vamos embora, o seu pai está insuportável hoje, Elisa, não
percebo de que é que se está a rir, esta conversa não tem graça
nenhuma, o seu pai está a brincar aos anarquistas d’annunzianos, isto é
Almada de quarta, não tem graça nenhuma,
Tem, ó se tem, Freddy dear, que para Barreiro de primeira ainda é
cedo.
Num momento em que apesar de tudo se caminha para uma
liberalização, há maior preocupação de uma política social justa, este
tipo de discurso é dissolvente, Elisa, e a menina sabe que —
Eu e o pai somos um, Freddy, você só já promete ser alguém e já não
lhe passa.
Mas que é que se passa nesta casa, estão todos aos gritos, ouvia-se lá
em cima, o pessoal a ouvir, porque é que a menina está a chorar, Mary,
o que é isto?
Nada, Maria do Carmo, só o seu querido genro é que gritou por causa
da gravata, assusta-se muito com o avanço do proletariado —
Do quê?
Não faça caso, mãe, o pai e a Elisa são totalmente irresponsáveis.
E Elisa disse,
A mãe tem tão bom gosto tão bom gosto que só já tem isso.
Maria Elisa não seja impertinente —
Maria do Carmo, a sua filha pôs-lhe o dedo na ferida que você não
tem,
Agarra-se num livro que se ache que tem que ser aquele. Fecham-se os
olhos sem pensar em nada. Abre-se no sítio onde se sinta que tem
mesmo que ser. Lê-se. Dá sempre certo.
Quem é que lhe ensinou isso, Zizi?. Foi o pai, Dá certo para quê?, Para
a gente se sentir no meio do mundo, vivos, A menina faz isso muitas
vezes? Não, senão estraga-se, só quando é muito preciso é que vale,
Não acha que é pecado?, Não seja parva, Mimi, parece as madres:
Agora, pois, ouve isto, tu que és
dada a delícias,
que habitas tão segura,
que dizes no teu coração:
Eu sou, e fora de mim não há
outra;
não ficarei viúva
nem conhecerei a perda de filhos.
Mas ambas estas coisas virão sobre
ti num momento, no mesmo dia,
perda de filho e viuvez:
em toda a sua força virão sobre ti,
por causa da multidão das tuas
feitiçarias,
por causa da abundância dos teus
muitos encantamentos.
Eu não tenho sabedoria, eu não tenho ciência, eu não sou a filha dos
caldeus, é fora de mim que está tudo, não é justo, não é justo, e eles
descem dos céus a arrancar com bico recurvo grandes postas do meu
fígado, perdi para sempre a maravilhosa unidade, a mulher do baloiço
sorri-se agora mais e mais de mim na cara sem carne e os seus cabelos
estão pegados à caveira em mechas reles, mortas, compridíssimas
felpas paradas no ar sem viço, eu grito,
A senhora chamou? Olha Lídia, eu agora vou dormir que parece que
estou um bocado bêbeda, vou dormir até logo, que ninguém me
acorde, ouviste? A senhora não quer que eu chame a menina Elisa?
Não, a minha irmã tem mais que fazer que aturar velhas bêbedas,
Credo, minha senhora, a senhora, inda não tem trinta anos, a senhora
anda mas é desgostosa, Velhas bêbedas isto é uma casa de velhas
bêbedas, vai, vai Lídia, deixa-me dormir,
Que ninguém te acorde, pois, Mary, Mimi, Maria das Dores, os tempo
estão maduros para o teu grande sono. Agora levantas-te e vacilas até à
cama. O corpo ondula-te, as paredes movimentam-se como entranhas
de tonel iluminadas vivacíssimo, mas há uma grande e serena
determinação de depor o teu espírito e a proliferação das suas vozes,
não é verdade que hajas perdido para sempre o lugar onde inscreveres
a singularidade da tua passagem. Arrastaste-te de nádegas sobre a
cama, os pés no chão até lhe chegares ao topo, a cabeça vacila-te, e os
olhos vesgam-te, mas vês, mas sabes, mas ouves, Frederico, vem aí a
pequena, isto é uma monstruosidade, Eu amo-a, eu amo-a, eu morria
por si, Maria do Carmo, É uma loucura, uma loucura, eu podia ser sua
mãe, Eu amo-a, mãe, filha, contra Deus e contra o diabo, eu amo-a,
Frederico, a pequena, o desgosto da pequena, que monstruosidade, olá
minha querida, sempre comprou a carteira?, deixe ver, ah é uma
beleza, veja os forros de agneau, Frederico, Tu viste, tu vês, Mary, ele
está de joelhos e abraça-a pela cintura e tem os olhos pisados, o teu
vestido é negro e o dela, sobes, sobes ao teu quarto e não pensas em
nada, não pensas em nada, tiras os papéis de seda de dentro da carteira,
desfazes invólucros volvidos misteriosos pela multiplicidade,
desvendas e situas objectos, superfícies opacas dentro de superfícies
opacas, desde criança que há entre ti e o que te circunda uma venda,
uma fossa de grande silêncio e cegueira eriçada de objectos, de gente
desviada, e agora puseram-se todos a falar e a mover ao mesmo tempo,
nesgas de frases, feições, claríssimas, arestas residuais de gestos e
tempos onde nunca espiaste, onde desviaste a vista soterrada no susto,
aquela criadinha de quinze anos que chora escorregando pela parede
do teu quarto abaixo com a cara no avental depois de despedida, Ai
menina Mimi, diga à sua mãezinha que não foi por mal, e tu fugiste,
este pássaro estropiado que a virgem a quem rezas sem o ver vai
abandonar num ninho falso, Simão de meses os braços estendidos para
ti em pranto do colo de uma outra mulher que se afasta, todos estão
iluminados a branco como o teu próprio rosto que ora vês em fim de
anestesia sob um foco implacável, o teu braço oscila mole como um
colo de cisne velho até achar o puxador da gaveta, alguém arde em
chamas irrompendo do crânio e das dobras de uma túnica sentado
sobre o chão, vês esses olhos nos teus volvendo-se tição, a
consumpção dos sobrolhos e cabelos, abres o frasco, engoles as
primeiras, as últimas são já mastigadas numa bola ácida onde
amolecem as cápsulas gelatinosas, engoles pedaços desse magma com
goles de água e álcool, trincas gelo e pó e arestas de mica amolecente,
ouves ao longe a voz do teu filho que berra num dos seus acessos de
cólera espojado pelo chão que esmurra como novilho a fazer cascos,
terreno à investida, não é teu filho, nunca tiveste filhos nem marido,
compões as pernas, buscas o exacto centro harmónico dessa jazida,
primeiro a orla da camisa, depois as dobras do roupão, como são claros
de exauridos de sangue pela água morna os pés ungidos, fazes o
alabastro, demasiado tardia encomenda régia, fechas os olhos, a náusea
tão profunda como se rolasses em queda livre em vácuo, teu pai ainda
diz, A Mimi é cobarde, tua mãe ainda insiste, distraída, Pauvre petite, e
tu sorris com sorriso este sim teu, já pétreo, e todos os vermes da
criação não poderão descarná-lo, cruzas as mãos sobre o peito e as
dobras minuciosamente compostas pela mão que vacila, crias,
desenhas-te, ajustas ainda volutas de cabelo a que caiam bem sobre a
travesseira coberta, pele que empalideça, sobrepões deitadas as mãos
sobre o peito a que rigidifiquem doces, uma delicada poldra branca de
olhos de anémona rosa, narinas de begónia húmida, passa ao longe em
prados que a pouco e pouco te aquietam, reconheces, a crina solta e
alta de asa singular ou orla de onda em galope tão largo, lento, os que
não vão morrer te saúdam, que poderemos fazer com teu inumerável
espólio de sapatos2 agora ténues fauces longe, ululantes longe, cada
vez mais longe da carreira serena desta poldra suavíssima, unicorne?
1 Antigo Testamento. Isaías 47.
2 Homenagem a João César Monteiro.
V
CASA DE ELISA
LÍNGUA
A atitude de Elisa em relação à vida mudou muito, tendo em conta de
forma atenta toda a súmula, embora não cronológica, dos factos que
acabamos de relatar. Vamos pois despedirmo-nos dela sem que tenha
ainda conhecimento do que se passa com a sua irmã, pois não será isso
que irá atalhar a sua ulterior disposição de ânimo e os seus propósitos
de futuro. Pelo contrário, mais lhe irá parecer o que foi como
inevitável sinal propiciatório do que teria que ser. Tal é, muitas vezes,
a natureza do andamento de vida dos cometidos à arte — que carecem
de marcos pungentes e exteriores que lhes ratifiquem por reais
sofrimentos próprios ou virações de rumo que outromodo lhes
pareceriam tão vãos quanto esse extremo discernimento precário sob o
efeito do álcool, de droga, ou da excessiva exposição aos astros,
nocturna.
Ela vai por um grande descampado tão seco que a terra está branca,
torrões duríssimos esboroáveis na borda de fendas negras a que não se
vê o fundo e é assim até perder de vista. Ela caminha tranquila pouco
pensando aonde pôr os pés pois que os olhos lhe vêem mais que aquilo
que atentamente atenta ver — o quê para lá do horizonte. Assim ladeia
e transpõe de salto, naturalmente hábil, fissuras que fora do sonho
haveria que cuidadosamente evitar por abissais. Não se apressa. Por
aquele terreno afora, que a haver fendido assim denota haver sido
outrora pasto de águas abruptamente seco, ela vai como de passeio por
entre verduras, a passada quase imponderável, pulada largo, como se
levara apensas às costas dois pares de asas de nervuras transparentes,
de libélula. Leva a mão ao ombro e sente-lhes a ligeira viscosidade
vibrátil e sorri, Bem, bem, só as pontas dos dedos dos pés vão já por
sobre o chão. Não dá para voar mas é uma delicada lembrança. O
horizonte começa a curvar muito, as fendas estreitam, água borbulha-
lhes dentro. Elisa pisa agora sobre areia molhada, o cimo de uma duna
compacta, os dois dedões dos pés nus aflorando maciços de chorão
florido de rosa e amarelo. É a orla do mar, extensa praia limitada por
névoa descida em hemiciclo, mar calmo e cinza, céu ameno e cinza e
um eco de voz límpida entre o canto e o grito sem urgência, que vem
das águas, das movediças neblinas. Os músculos transparentes que
sustentam as asas de Elisa e o seu peso palpitam, as grossas cordas de
sangue roxo e vermelho inchadas, as quatro asas rufam levemente
suportanto-a aflorando o chão sem esforço, ao cimo da duna. Elisa
acorda sorrindo e dizendo, Bem, bem, a minha bolha secou, coisa que
já havia constatado na véspera, já ali está há três dias descalça ou de
sandálias, Elisa em casa acorda feliz e vê do ângulo de chão onde
adormeceu que o céu agora a escurecer tem laivos de rosa, vem aí o
tempo quente, um dia de esplendores, a irrupção talvez finalmente
tenaz da Primavera, Bem, bem, esta passagem está acabada. Não está
certa de ter reflectido muito durante estes dias, ou antes, que seja
aquele estar que se use com propriedade chamar reflectir. Não atendeu
telefones ou portas e folheou livros. Foi trespassada de imagens. Os
períodos de sono e vigília assumiram um ritmo abrupto que por
nenhuma forma contrariou. Disse à senhora Lúcia que não precisava
dela durante uma semana, não sabia se mais. A sua atenção aos
objectos, incluindo os próprios pés e as mãos em movimento, as
feições no espelho e as gravuras ou caracteres impressos, agudizou-se
muito. Por toda a casa se precisaram contornos, a orelha escassa de
sumaúma de uma almofada, a aresta de um retrato, o prego amarelo de
um puxador de porta. Os filamentos de uma lâmpada eléctrica ligada
pareceram-lhe muito surpreendentes, bem como as exactas meias luas
das unhas que só lhe existiam no polegar e indicador de cada mão.
Tudo o que leu lhe pareceu minuciosamente concertado como um
oráculo coerente, embora não haja tecido congeminações sobre que
sujeito a orava assim ou se o devia sequer distinguir de si própria.
Punha batatas a cozer com casca que depois despia por laivos largos
com muito gosto, lavava a loiça, a frigideira com as suas traças de
gordura alta que era necessário raspar com escovilhão e jacto de água e
em seguida passar de esponja, a face áspera, a face doce, entendeu que
as águas bem quentes e correntes apressavam e beneficiavam os
resultados da tarefa, congeminou por tentativa e erro processos
metodológicos e crescentemente mais correctos para arrumar pratos,
dobrar os cantos de cobertores, acomodar escovas. Isto podia passar-se
às quatro da manhã e foi numa madrugada que se lhe revelou quão
excelente preparação para o trabalho manual era aquilo a que
convencionou chamar, operacionalmente, a atenção poética, isto é, a
minuciosa visão, unidade por unidade e relacional, dos objectos em
torno. Depois pensou que o poeta devia ser expulso da cidade por isso
— porque era um escravo que também via das mãos. Mas isso já lhe
pareceu um pouco abusivo. Considerou então que agora já pouco mais
lhe faltava que a aprendizagem da normalidade e ratificou a sua
intenção de matricular-se na universidade, fazer estudos sérios e
imiscuir-se na vida de colectivos muito grandes, estando lá, Sempre é
um princípio. Percebia que estava passando por este transe afinal
muito serena porque tinha sido muito amada e tinha amado e que para
quem assim é e lhe foi feito, havendo sobrevivido à separação, tudo,
tudo pode sempre recomeçar. Não tinha porém pressa de reencontrar
nem o Amigo nem os amigos. Cristalizava algo e precisava de
ocultação, estar nos fundos, parecia-lhe. Entendia também, servindo-se
para isso da inteligente parcimónia com que polvilhava de joelhos o
mosaico da casa de banho com detergente e o passava depois com
pano absorvente nem demasiado húmido nem demasiado espremido
para dentro do balde, que toda aquela muito plena acalmia dos sentidos
em relação às pessoas, toda aquela acuidade agravada da percepção
das coisas, decorria de um imenso desgosto adiado, de uma fecunda
acumulação de lutos necessários, que iriam permear toda a sua vida,
mas não de modo excessivamente sentido como injusto, aterrador ou
insuportável. Elisa podia amar e suspender temporariamente o tino
comum e o julgamento, a confiança crescia-lhe com a capacidade de
prazer e discernimento, amadurecia para dentro daquela infância onde
afinal quase tudo lhe fora estimulado, quase tudo lhe fora permitido, os
mortos eram afinal acidentados de um percurso único, os seus mortos,
todos os mortos, ela não desistiria desses rostos resplandecentes de
sorrisos e buscá-los-ia no espelho, na rua, no maior número possível.
Sim, o número dos benditos contava. Mas isso achava Elisa que
entenderia escrevendo ou outra coisa igualmente solitária como gritar
na rua depois dos vinte anos, Sim, sim, nascemos para a alegria.
Porém, não escreveu muito, tirante algumas reflexões sobre o uso e a
diversidade das línguas, que anotou em bloco logo ali nomeado
canhenho, pensando enquanto escrevia assim, Estes estádios da
consciência buscam o arcaico na forma de dizer e a diversidade dos
nomes para o mesmo objecto — como o olho da mosca, eficazmente
poliédrico e móvel, está em tudo. Também escreveu por exemplo
assim, depois de um sono súbito, com um pano do pó na mão, que
durou do meio dia solar às três da tarde:
All is all
flower of contentment
come closer,
Porquê o inglês como segunda língua? Porque era a língua oculta que
eu ia desvendando enquanto eles todos falavam francês à volta dos
cimos da minha cabeça, Fais attention à la bonne, mon cher, Faites
attention aux petites, chère. Porque foram os ingleses que inventaram o
vinho do Porto e o Fernando Pessoa, sem querer? Até ao sétimo ano de
latim sempre pensei que, O tempora, o mores, queria dizer, Ó testas, ó
Mais. Ou talvez porque era então, mais que nenhuma outra, a outra
língua, porque a minha pátria nem será já a língua portuguesa.
Mas os tesouros, os tesouros da origem, o barulhinho de primeiro
regato (regaço?) que fazem:
lentilha escapulário
aspidista algália
benzedura caniçal
almejar melancia
roseiral alpendre
estrelícia arvéola
nafta mágoa e mácula
daquilo que se ama não se pode dizer tudo. E se se tenta isso só pela
polivalência da glote — sai fracativo.
Vou lavar duas camisas. Sempre é um princípio, lorpa. A que vai ser
escritora em português esvai-se da evidência do que ignora.
Eram as coisas assim que Elisa escrevia nesses dias. Podia sentar-se
também durante longos minutos contemplando a pele nova, ainda
rosada, que lhe nascera no calcanhar. Pensava então, Depois de todas
estas reparações, terei ainda algum dia alguma coisa a dizer por
escrito?, e duvidava muito, tal era o prazer que retirava da habilidade
gestual na execução de tarefas manuais que desconhecia, tendo
descoberto por seus próprios meios a temperatura a que um ovo se
estrela sem queimar-lhe a clara nos bordos, sem ficar-se com a gema
coagulada em visco incolor como ranho de gripe recente. Não lhe
ocorria sequer pensar que podia estar demente, tal a veemência de dor
com que a acometiam imagens e sensações do seu corpo no colo
ossudo do pai, tão longe, das lágrimas misturadas no quente das duas
faces no escuro, dela e do Amigo, ou destas duas mãos negras
circundando-lhe a nuca tão compadecidas no adeus, as polpas de
polegar no afiado do queixo, a saudade do par. Tanto quanto sabia, não
é das coisas assim que os doidos se doem, mas do desaparecimento de
tudo. Elisa exercitava-se na manipulação conservadora das coisas,
retirava das plantas as hastes e as folhas que apodreciam, humedecia-
as, espalhava aquele sargaço pelos vasos. Em três dias, as plantas
procuravam a luz sob os seus olhos, mais túrgidas e viçosas, era-lhe
quase possível escutar o imperceptível ranger das fibras respondendo a
aflorar de dedos mornos, subtis trocas energéticas. Sabendo acaso
prematuramente quase tudo da perdição terna com o outro, ela não ia
morrer, afinal. E mais lhe parecia que agora era questão de esfregão de
palha de aço, cadernos de apontamentos escolares, agenda de
encontros memorizada, cabaz de compras, ficheiro de leituras, coisas
assim simples. Do resto ela sabia algo mais que o comum, parecia que
isso teria a ver com escrevê-lo ou falar disso, mas de um outro
quotidiano mais forte. Olhando para o espelho com o cabelo húmido
frisando comprido por debaixo da toalha acrescentava ainda que era já
mulher e que sim, sim, também isso se veria depois, da diferença de
solidões, de gestos milenares. Estava carecendo de ser perfeita em
mais matérias. Que saberei das mulheres se não lavar, fritar, esfregar?
E escrevia então assim em espécie de diário de bordo, só não sabia de
que embarcação ou viagem e que por isso chamou, de
DIÁRIO DE BORCO
Vejo cada vez mais com certeza que existe entre as combinações de
objectos e seus destinos e aqueles que os possuem ou manipulam mais,
uma unidade, uma univocidade. Há criaturas que suscitam à sua volta a
ordem e a duração, outras a proliferação e a graça mórbida, outros a
abundância mas estática, outros a escassez, mas tónica. Outros
parecem rodear-se de cacos de caos, o sórdido, outros a abundância
tropicalmente ordenada, a ardorosa fecundidade. Como decifrar estas
tecituras e as suas margens de demarcação, ver pelo modo como
alguém arruma à noite a sua roupa ou descasca um nabo ou limpa o
ranho a uma criança ou enfia um prego, que mundo sairá das suas
mãos, uma desordem sulfurosa, ávida, uma ordem esterilizadora, letal,
uma desordem leve, lúdica, uma ordem de paz e esforço ameno,
humano? Etnias, costumes? Um montanhês nortenho deixa que a sua
casa se cubra de sarros que a grudem sob as neves, um alentejano
ordena os seus brancos e ama as pausas entre tarefas, coisas, afectos,
pondera no liso, um cigano consente que a pele se lhe vende e o cabelo
cobreje e os seus tachos fumegam gerações de refogo, e dança, dança
compactamente, um negro varre e ordena até a mais informe das suas
esteiras, lava infindas vezes seus meninos e trapos num oco de cabaça,
moroso mas fiel ao ritmo das conspurcações possíveis, em torno a
árabes e indianos toda a realidade fermenta, antiquissimamente
prolixa, e os japoneses estarrecem as flores e movem-se rapidamente
pelo mundo, na ponta dos dedos. Acautelar-se de quem e achegar-se a
quem? Temer-se dos que não dançam porque não sabem onde fica a
terra? Dos que não contemplam? Dos que têm mãos como pinças
incansavelmente esfregadas? Das garras infectadas? Ou de nada, de
nada, confiar na ordenação final onde haverá lugar? Quem somos, que
sou?
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.
Olhe, parece que vão hoje homens para a lua, não vai ver? já pensou o
espanto do tempo em que vivemos, apesar de tudo,
Nós não vivemos no mesmo tempo.
Adeus Elisa.
Adeus Frederico.
LÍNGUA PÁTRIA
EU KALUPTOS10
Mas algo mais está acontecendo com Elisa que lhe faz perder o sentido
da extrema complexidade das coisas humanas. Ou galgá-lo de uma
pernada, como outrora o intruso do boné que outro não haverá sido,
acaso, quem sabe destas coisas?, outro ser que não o terno visitador
nela das coisas presas que a habitam. Parece-lhe que há-de haver uma
receita próxima e simples como uma só palavra. É muito ignoto o que
procura, mas complicado não. Olha os seus livros, estende a mão no
jogo antiquíssimo do escrito do Sagrado Acaso, são suas as maiúsculas
e assim lhe sai, dando Prazer, ainda sua a maiúscula,
prova que não estava doida é que se riu sozinha voltando para dentro a
comer uma bucha e acrescentando, De Barcelos. Continuou depois
fazendo o que lhe parecia ser estudar pela noite fora, aplicadamente, o
programado,
E então, uma outra vez a pequena Elisa adormece dentro do seu corpo
de adolescência a um tempo lenta e precoce, adormece porque não está
de facto a preparar nenhum exame mas a modular a trajectória do seu
corpo que fala sobre a porção de terra que lhe coube, como um
exercício que se desejaria exemplar de maleabilidade e atenção. Tem
agora os cabelos quase pretos espalhados sobre a cara de feições
agudas e fechados os olhos sobre a íris cuja coloração é variável por
luminosidades ou humor. Dorme no chão porque este seu tempo, cuja
duração não é previsível exactamente, muito se assemelha a uma
campanha. E como dizem que os sentidos no dormir muito nos dão
sinal mais ou menos legível das nossas esperanças e lembranças, sonha
ela que é já madrugada e que vozes a estão chamando das palhas a que
vá avisar o rei, tolhido no pouco território que resta, de que as
povoações estão a dispersar de grandes coisas e que ela, que só sabe
avisar, veio em nome delas, das vozes. Repara então que vai
cavalgando por uma floresta musguenta e cheia de míscaros em cima
da lebre vagarosa mas muito macia nas pernas por debaixo do bibe e
das saias. Agarrando-se afectuosamente ao cachaço da lebre e mal
tocando com os pés no chão suspira, Este continente tem uns mitos um
bocado parvos. E a lebre responde num pincho suavíssimo,
curiosamente com a mesma voz que a da freira da portaria, Agarra-te
bem que inda agora vamos a entrar.
ROSA ROSAE
DE PROFUNDIS
A Rosa estava muito doente, minha querida, mas há-de se pôr boa e
voltar, mon petit, Coma, coma a sua papa, só mais esta pelo papá, A
menina sentiu-se muito, minha senhora, mas é natural era ela que —
mas nunca mais te lembraste, ou te lembraram, e depois.
1 Referência ao verso de William Blake, O rose thou art sick, an invisible worm. Cantos da Experiência.
V
CASA DE ELVIRA
ATRIUM
Raios de luz verde água e azul frágil irisam essa massa de ar que
avança matinal em rodopio vertiginoso das ilhas, sobre a formação de
miríades de renques de espumas baixas ditas carneirinhas, sobre
espessuras profundíssimas de água que, da variedade de algas e
temperaturas de correntes internas, oscila dum sustido verde pétreo ao
azul cobalto, do metálico ao veludíneo, espirais interpenetrando
espirais e braços de água intersectando-se na imensidão da água, o
oceano tónico e diverso, mar nosso, desigual Atlântico. À medida que
se aproxima da ponta da costa europeia esse cachão de brisas finas e
descidas, a ondulação desencontra-se, reduz-se da vaga cilíndrica e
unidamente quebrada em belíssimo glauco para uns cuspezinhos
espargidos e delicados, os velames enfunam arrítmicos com estaladiça
brandura, os céus vedam-se nesse pardo afinal róseo onde há
aglomerações mais espessas de vapor em distensão velocíssima, sem
porém dissipar-se totalmente, adiado o anil. É então que a gente
marítima e ribeirinha suspende os gestos e ergue a cara a essas
irradiações de luz vidrada e bafos de idos emanados da flora que
navega a meio corpo oceânico, respira-se profundamente a gigantesca
amenidade que a vastidão emite — é a primavera do mar. Pelas ruas
estreitas em declive, assentes em basalto esfriado ou plataformas de
argila longamente decantada ascende e espraia-se essa luminosidade
olorosa de suave carga alcalina que vem pegar-se às roupas que adejam
nas cordas com muita leveza e os pombos deixam-se cair a pique e
acasalados, acometidos dessa grande excitação de hábitos das aves
marinhas que então tendem a tomar o largo mais afoitamente. São ares
de abalada que, picando os alvéolos do peito, coincidem com o grande
hausto esse morno e sedante que irrompendo da terra faz rebentar os
galhos nos jardins escassos, perder espessura a pele dos caules e dos
sáurios, tremular de pétalas cadentes a orla dos amendoais. A
primavera costeira é, inicialmente, uma outra forma de frescura, um
chamamento que vem. As zonas portuárias do sul e nelas os
arruamentos virados à costa, às ilhas, celebram alacremente todos os
anos essas notícias do sargaço e do açor, dos idos de Março, trepidação
de traineiras ou mesmo emanação de antiquíssimos cascos
borbulhando das profundezas matérias que regressam da dissolução
dos betumes à atmosfera onde se processa a sangradura dos novos
pinhos, resíduos de calcário ósseo naufragado viajando em tenuíssima
poalha o seu eterno retorno aéreo, em bolhas mínimas o carregamento
das névoas. O trabalhador ribeirinho é então capaz de gastar o salário
de uma semana de decapagem de cascos metálicos a sugar as matérias
marinhas envaginadas na cabeça da gamba grande, na crosta aspérrima
da santola, no pedúnculo do percebe, apazigua o desejo que lhe freme
de mais e mais dessa embriaguez da saudade inscrita no que inspira
enterrando os dentes no corpo todo víscera unida do búzio, singulado
mamilo verde e suave, na baga da amêijoa macerada em cebola
amolecida e alho e ervas aromáticas onde demolha o pão acalma enfim
a possessão da sereia que dá por este tempo sinais do cio do mar. E
tudo isto é bem mais sério que o que possa parecê-lo a habitantes
menos antigamente sumptuários. O ânimo da grande foz do Tejo por
onde a Europa se vem ao Atlântico ginga agora sobre um sobrado
móvel que contamina até aquele que migrou doutras paragens, sujeito
ao renovado apelo da navegação, suas regras, seguidamente e boa
memória do trânsito dos corpos celestes, fazer-se aos contraditórios
ventos lestos e sair onde se arrufam velas e tripulações completas,
muito gárrulas no desatar de cabos e alçar-se ao berço da gávea, à
paração movente. Inspira tu agora uma quebreira fresca, marinheira.
Não é a expiração que comanda, ó suspiroso. Fique o peito, que os ares
movem-se. Respira fundo na cidade que habita na viagem. Só o
declínio sabe da exalação das grandes unidades falsamente cindidas
pela nomenclatura precária, mares, mentes, nações, dois mortais olhos
que perfaçam o antiquíssimo gesto de seguir à mão mobilmente as
combinações de gases e sinais, o transitório transe, o historial duma
grei obstinadamente visitada por aragens felizes.
O quarto que a gente teve alugado durante um ano aquase está desfeito
e suspiro atando sobre a rede de arame do chão da cama o último
pedaço do novelo de corda rala que ele me trouxe na trouxa onde estão
as roupas de cama mais rudes, os cobertores de papa e fioco, o colchão
da cesta do menino que vai ao colo e engatinha ensarilhando-me os
pés. O meu pai está sentado na cadeira à beira da janela com a boina
posta à banda, a que o meu lhe ofertou, a bengala de pau de nogueira
com a rolha de borracha em baixo onde ele descansa as duas mãos,
contente como um rendeiro de aforros. Ali está desde que o ajudei a
aprontar, tirados da cama pelas seis para começar de acabar o enfardar
do que não teve cabimento nas duas malas e baú, que também as atei
porque ficaram a abrir bocas e não fechavam no trinco apesar do meu
se lhes assentar em cima com o peso todo. Já clareava e quando a
gente escancarou a janela o meu pai disse, Cheira a merda do mar e
águas fundas, mas isto está mimoso como a Póvoa. O menino ora bate
palmas, ora guincha de rijo, atrapalhou-me o lidar, mas o meu pai às
tantas pegou-lhe, eu ainda fui a deitar a mão mas avisei-me que dali
não vinha mal, antes pelo contrário, assentado como está. Quanto mais
me deita a mão que pode ao que me vê lidar, mais parece ganhar alento
e destolher-se, ao menos do entendimento e das mãos, que o passinho
segue-lhe peado e não nos acerta com as voltas dos nomes a cada um.
Mas deixá-lo. Nunca mais se descuidou nem nas roupas nem na cama
e só é preciso ajudá-lo ao Domingo na tina, quando muda a roupa, tem
sido o meu. Ela desde que sabe que a gente está de abalada, pouco
mói, entrombada. Se me apanho lá Deus seja louvado e com um
nichozinho para um fogão de três bocas só para a gente com chaminé e
tudo, só a serventia da pia que fica para as traseiras e da tina é que é
para todos, mas a gente vai pôr um lavatório de pé nos quartos e hei-de
arranjar uma celha de plástico para o do meu pai, que tem dado sentido
a tudo e ainda ontem perguntou ao meu, Olha lá, este relógio aí num
penhorista ainda dava qualquer coisa, ó não? Só com os nomes é que
não nos atina e tudo lhe passa da ideia, tirando o que tem muita lonjura
de anos que isso parece que foi ontem, contos e cantigas e passagens
da nossa vida assim no miudinho que nem eu sei já. Chama de Abílio o
menino, a mim é conforme, o da minha mãe, o de uma irmã que ele
teve, ao meu nem sei quem ele nomeia, gente da criação dele,
falecidos. Mas que mais dá os nomes, diz a Estela e bem, A Estela. Ah
o nome de um amigo de peito até alegra o coração a gente largá-lo da
boca. Tem sido mais que uma irmã, veio-me para aqui ontem ajudar-
me a embrulhar a loiça e o talher para dentro das cestas, trouxe-me
uma molhada de jornais. Ela debandou para o quarto que eu da Fátima
já fiz ontem as despedidas. A gente pouca bulha fez que também não é
grande trem. Se a gente tiver sorte e o meu pai se manter assim na
mesma, hei-de comprar uma panelazinha de pressão como a dela e
mais duas sertãs, que o menino começa-me a querer comer, ontem
rilhou uma batata frita inteira que eu lhe dei e umas raspas de isca que
eu moí da minha boca. E hoje de noite foi um sossego, nem o meu pai
deu sinal e o meu todo animado, com espertina, Vais ver, vais ver, não
são luxos, mas é tudo boa gente. Eu sei que lhe custou, que a casa aqui
tem outros cómodos, outra apresentação, mas lá até depois a gente
pode pôr o menino no outro quarto quando for num aninho ou assim,
que diz que não é bom estar com a gente, como a porta abre, se o
havíamos de alugar mais tarde fazemo-lo agora, o meu pai a continuar
assim nem é mau de aturar e até me deita um olho no menino, vamos a
ver se a Lídia continua a dar a ajuda, que ela amansou muito depois
daquela desgraça e a Elisinha também me disse para eu lá ir, se me
visse aflita, louvado seja Deus,
Eu, Elvira, pela graça de Deus e dos homens, que não distingo, vejo
agora que a carrinha que o meu homem apalavrou chega agora lá em
baixo à rua esvaziada da aura dos artistas para me levar daqui ao pátio
que é onde vamos morar. Se aqui é mais alto, cheira finamente a mar,
lá em baixo, que é mais perto, há-de cheirar muito mais,
Chiça, menina, os pertences não são muitos, mas olhe que só este
armário dava para derrear o pai da vida. O melhor é levá-lo de borco
que ele aguenta a cama por de cima, isto é mas é pau de pedra. A gente
depois ata-lhe isto com cordas e a menina segue no carro, tem lá
alguém avisado? O marido da menina diz que se pudesse dava lá uma
saltada. Santinho, ó tiozinho. Veja lá se apanha alguma, meu pai. Ná,
espirram as cabras é sinal de bom tempo. É reinadio, o seu paizinho, ó
menina. Vamos lá embora,
se sabedes novas do meu amigo é que venho perguntar que arte levou
meu amigo há-de a noite encarcerar dentro de fel e vinagre sua boca
há-de fechar com sete chaves de prata e fechaduras de neve que arte
levou meu amigo há-de a febre devorar se sabedes novas do meu
amigo é que venho perguntar2,
Sossego dentro da tristeza da toada. Dou o peito. Agora toca os
vampiros e a Tina que está ali a ver diz que é do Zeca Afonso, mas
isso eu sei, que elas lá não gostavam muito, enchem as tulhas bebem
vinho novo dançam de roda no pinhal do rei. Na mesa de armar que a
gente comprou, aberta no quarto do meu pai onde também já está a
cama feita e a máquina de costura, deponho agora dois pratos e o
talher, o menino reina com os pés com a Tina a abanar-lhe a alcofa. A
batata ferve no meu lume dentro da panela de pressão que a dona
Mariana me emprestou com a sua voz de cantares, Que a gente temos
de ser uns para os outros. E mais me dispensou uma cabeça de alho
maior que nabo, dois pés de rábano, uma alface das dela arrebicada
com um cravo verde gigantão e um cheirinho de coentro que ela diz
que o menino já está em tempo de açorda com os temperos todos. Da
chaminé dela pendem chouriças de sangue, linguiça, paiozinhos curtos,
parece a cozinha da minha gente, mas branca, com um asseio que
levanta a vista e o coração. Louvado seja Deus que cheguei em bem e
penduro na parede o retrato de boda dos meus pais, ela em pé de
arrecadas e quatro voltas de cordão com a cabeça coberta, e ele
sentado de colete e cadeia de relógio e o bigode farto, revirado.
Cheguei. Pela tardinha hei-de regar as minhas sardinheiras à porta,
juntar para uns vasos de ervilha de cheiro pendidos do beiral, uma ou
duas frangas que não estorvam presas pela pata ou ali para os terrenos
da dona Mariana. Já chorou de o filho estar para a guerra e eu disse-lhe
que havia de vir em bem com aqueles aleijadinhos do hospital
atravessados em mente. O meu é que sabe. A mercearia é farta e a
peixaria a dois passos. Vou-me ao pão. Linda coisa é este terreiro
arredado numa cidade assim tão grande. Que ele vem logo e há-de
estar tudo num brinco. Sempre é mais tempo de eléctrico, mas deixá-
lo, farda na plataforma não paga. A rádio está quase a dar o romance.
Deixá-lo. A cachopinha lida-me com o menino assentado na coberta
no chão semeado de sal do pátio, perguntei-lhe, Atão tu não vais à
escola?, e a dona Mariana fez-me sinal que ela é lenta da cabeça. O
meu pai está a contar o caso do corte das águas ao vizinho reformado
que lhe ofereceu do três vintes nos dedos que também tremem, os
cachopos malham na bola de meia que fazem içar aos peitos, Remata
pá, ganda nabo. Saio com o saquitel do pão engelhado da trouxa mas
limpo, meu coração achou por agora lugar onde medrar, pousar em
paz, sempre hei-de fazer a vontade ao meu e seguir a cartilha aos
serões. As portadas da casa da Estela estão fechadas que ela deixa o
menino na creche e larga pelas seis. Vou-me pois ao pão. Na rádio toca
agora aquela dos Beatles que o meu diz a rir-se que é a do sargento
Pimenta, os canários aquietados trilam alto, gorjeiam delicado, É pá,
passa, pá, este gajo, tem a mania, pá,