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Jorge Luis Borges

(1899-1986)

O outro tigre

And the craft createth a semblance.

Morris: Sigurd the Volsung (1876)

Penso em um tigre. A penumbra exalta


A vasta Biblioteca laboriosa
E parece afastar as estantes;
Forte, inocente, ensanguentado e jovem,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na limosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Em seu mundo não há nomes, nem passado,
(Nem futuro, apenas um instante exato.)
E vencerá as bárbaras distâncias
E farejará no trançado labirinto
Dos odores o odor da aurora
E o odor deleitável do veado;
Por entre as listras do bambu decifro
Suas listras e pressinto a ossatura
Sob a pele esplêndida que vibra.
Em vão se interpõem os convexos
Mares e os desertos do planeta;
Desta casa de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das margens do Ganges.

Espalha-se a tarde em minha alma e reflito


Que o tigre vocativo de meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
E não o tigre fatal, a aziaga joia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
Ao tigre dos símbolos contrapus
O verdadeiro, o de quente sangue,
O que dizima a tribo dos búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende no prado uma pausada
Sombra, porém só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar sua circunstância
O faz ficção da arte e não criatura
Vivente das que andam pela terra.

Um terceiro tigre buscaremos. Este


Será como os outros uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas e não o tigre vertebrado
Que, para além das mitologias,
Pisa a terra. Bem o sei, mas algo
Impõe-me esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em buscar pelo tempo da tarde
O outro tigre, o que não está no verso.

De O fazedor (1960)

Trad. Marcelo Bueno

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