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EDIÇÃO 426
ISBN 972-37-0405-6
DEPÓSITO LEGAL 104917/96
ESTE LIVRO FOI COMPOSTO POR
MARIA DA GRAÇA MANTA
E IMPRESSO EM
LISBOA
NA GUIDE ARTES GRÁFICAS, LDA.
Para a Susana
1.
Quando uma coisa não tem por onde se pegue, e mesmo assim se quer
pegar nela, não há altura certa, mas também não há outra que não seja esta:
já. Esta já. Vai já esta. E é agora.
E, já agora, pega-se nela, com uma única intenção: a de não a largar.
Assim peguei na minha vida, mesmo com medo que estivesse pronta.
Arrisquei. Podia ser que contivesse ainda alguma coisa por descobrir ou
acabar.
Que idade tinha eu na altura? Vinte e cinco ou seis anos. Talvez fosse
tarde de mais. Mas só pegando na minha vida, naquele preciso momento,
com toda a força que tinha, é que poderia saber se isso era ou não era
verdade. E, enquanto não soubesse, tinha muito com que me entreter.
Muito, quer dizer. Se calhar, muito pouco. Mas era a única coisa que tinha.
Se era muito ou pouco, não sei, mas era toda a minha vida.
E que é assim:
3.
Todas as manhãs lá vinha ela com outra estúpida história para me contar.
Não havia dia em que não me acordasse, com os dedos e o corpo, doce e
desastrado, cobrindo-me dos pés à cabeça, sempre pela mesma ordem,
como se fosse a única maneira, como se cada gesto estivesse há muito
estabelecido, por algum plano anterior ao nosso primeiro encontro, tornado
entretanto impossível de alterar. Nem sequer as histórias mudavam. As
histórias estúpidas que, mal o amor acabasse de se fazer, ela começava,
inevitavelmente, a contar.
Isto durante meses a tio, ao ponto de não me lembrar do tempo em que
ela não vinha. E para quê? Se havia coisa que não me cansava de perguntar,
era essa. De nada me servia. Mas eu perguntava à mesma. Queria lá saber.
Tanto mais que, às vezes, era ela a perguntar.
«Precisas assim tanto de mim?»
«Muito pouco», respondia eu.
«Então deixa-me. Deixa-me em paz.»
«Cala-te. Tens toda a tarde e toda a noite para descansar. Fazes tudo o
que te apetece, não fazes?»
«E tu estás-te nas tintas.»
«E que mal é que isso tem?»
«Nenhum. Sei lá.»
«Então cala-te. Cala-te e deixa-te estar.»
Era o que eu fazia. O que ela queria. Não era muito. Não era como se
houvesse outra coisa qualquer para fazer.
«Assim não vamos a lado nenhum», disse eu uma vez.
«Pois não. Assim é que é bom.»
«Ai é?»
«Porquê? Querias que fôssemos a algum lado?»
«Não...»
«Então cala-te.»
E adeus.
Fartei-me. Nem mais uma manhã. Ela que fizesse de conta que eu tinha
morrido. Apaguem as luzes da cidade dêem-mc só mais um minuto.
Apanharam-me desprevenido.
Só trabalho à noite. Não tenho filhos. Não tenho mulher. Vêm uns
amigos da escola. Aparece uma namorada. Mas é como se não estivesse
aqui. Não lhes abro a porta. Não está em mim.
Não mais uma manhã. Repitam a noite anterior. Passem outra vez a noite
que agora acabou. Preciso dela. Preciso da escuridão para me recompor.
Apanharam-me desprevenido, Tenho a casa desarrumada de mim. Não
pertenço aqui. Se entrarem, tenham ao menos a galhardia de me deixar sair
primeiro.
O que vale é a cidade ser bonita e o gato precisar de mim e a música não
me poder ouvir.
Lá vou fazendo o que posso e me prometi cada vez menos falta.
Começou pelo céu e estendeu-se a quem me quer tudo o que não depende
de mim torna-me um bocadinho mais livre.
Como é estúpido este desejo! E fácil culpá-lo de tudo quanto perdi...
Mas que se há-de fazer é o que tenho de mais meu. Se calhar, imagino
que me perseguem. Mas, de tanto tugir, era inevitável que um dia me
sentisse, pelo bater na porta, pelas mãos no ombro, pelas palavras dos
pedidos, verdadeiramente perseguido.
É sem vaidade que o sinto. Só sei quanto me esforcei para criar nos
outros vontades, por vezes tão retorcidas e inverosímeis que me custa
acreditar que tenham pegado, ou tão aflitas que me dei conta da medida
larga com que me excedi. Abri os buracos com as unhas dos dedos e engoli
cada grão da terra que os outros pensam que guardo num armazém enorme
dentro de mim.
Pelo menos não mudam as letras dos livros. São as coisas certas que me
mantêm vivo: a estabilidade do álcool, a circulação das raparigas, o ar dos
meus amigos, a segurança no vaivém, que por muito que demore, volta
sempre, da saudade e do riso.
A solidão, bem entendida, como sendo única como sendo sozinha, graças
a Deus não existe. O que resta da companhia e do barulho do mundo, seja
qual for o grau que atinja uma alma no sentido de ser desprovida, é sempre
bastante. Abençoada seja a nossa fraqueza por isso.
Se um dia der comigo próprio demasiado livre, e se virar a minha tristeza
contra mim, hei-de sair e prender-me outra vez a tudo o que ainda possa
aceitar-me ou pensar que precise do que dou. Por muito que me entregue e
envelheça, ora entregando-me, ora tugindo, não me há-de faltar causa para
me querer ver livre, nem força para me afastar dela. Isso não sei. Mas — é
forçoso que assim seja — acredito.
Se são estranhas as coisas que quero — cansar-me, ter sono, frio, fome,
medo, juízo — só o saberei quando as tiver. Enquanto não puder contar com
essas e outras submissões, de modo a poder pôr-me à prova e ver se consigo
resistir-lhes, é natural que me entretenha com tentações imaginárias, criadas
à minha volta para que regressem a mim, como vontades que me perseguem
e não consigo retribuir ou satisfazer, fingindo que só não o faço, não porque
não seja capaz, que é verdade, mas porque não quero.
O que vale são as horas, haver sempre noite. E sítios onde poderia estar,
que não saem do lugar, mesmo que eu nunca tenha lá ido. Isso e o facto que
ou se está morto ou se vive. Cada coisa tem uma duração e só lhe fica bem
o medo ou esperança que seja, antes do que seria a probabilidade maior,
repentina ou lentamente interrompida. Existe!, por exemplo, esta pequena
felicidade, em que penso ao ponto de ficar, pelo menos, um bocadinho feliz
só de pensar nela, que seria eu morrer antes do meu gatinho.
Até hoje nunca consegui ser preso, a não ser por coisa ou pessoa em que
trabalhei e que, por conseguinte, quis. Daí esta liberdade incompleta, esta
solidão apinhada, o contentamento com tão pouco o sonho de chegar um dia
em que não tenha de fazer nada, me sinta obrigado ao que não preparei nem
quis. E a confiança infantil, com certeza infundada, que, quando me
alcançar esse momento, serei capaz de fugir e de ser verdadeiramente livre.
O que é o mesmo que dizer começar a pensar nas coisas e pessoas que
valem a pena e a vida — e deixar de pensar nisso.
4.
A vida marca muito as pessoas. 24 horas por dia, dia após dia, não se faz
outra coisa senão viver. Tudo tem uma consequência, à falta de melhor.
Tudo tem um efeito, à falta de intenção. «Pensa nos teus netos», dizia ele,
despindo a T-shirt. «Pensa nas tuas filhas.»
As mulheres têm o vício de despedir-se. Dá-lhes alegria pensar que todas
as vezes são as últimas, que todos os beijos são os primeiros. São puras. Os
homens é que sofrem por causa disso. Eles é que são as putas deste mundo.
João começou pela namorada de quem gostou mais. E di-lo. Ela mastigou
o rosbife,
«Tenho seis filhos. Peso 92 quilos. Estás parvo ou quê?»
«Vem para a cama comigo», disse ele.
Jantaram sem falar. Não comeram sobremesa. João chegou a perguntar:
«Querei sobremesa?» Ela respondeu:
«Acho que sobremesa é a palavra mais foleira que há.»
Ele foi levá-la a casa. Morava longe. Tinha muitos filhos.
«Obrigada», disse ela.
«Desculpa não ter colaborado mais...»
«Deixa lá», disse ele, abrindo-lhe a porta, ansioso por vê-la partir. «Não
te sintas culpada por isso.»
João voltou para Lisboa. «Que grande coisa é esta», perguntou no táxi
que apanhou em Santa Apolónia, «que se chama solteiridão ou solteirismo,
da qual um gajo, por mais que se esforce, não consegue despedir-se?»
«Assim farei», disse ele, de cabeça pendurada. Mas não foi assim que
fez. Entregou-se ao pai, à mãe e à família. Esqueceu-se de escrever, de falar,
de tomar banho. Ter-se-ia entregado a Cristo, se Cristo o aceitasse. Mas
pouca diferença fazia. Urrr lugar é um lugar. Uma família é uma família.
Mas poder-se-á fazer parte duma família toda a vida?
Foi com isto em mente que João, que ainda era novo, foi à procura de
outra noiva e em Dezembro daquele mesmo ano, mais feliz que nunca,
duma vez por todas, desistiu.
Era disto que a casa gastava. Com variantes. Até preferia assim, para ser
sincero. Nada de complicações. Nada de passeios. Nada de projectos. Nada
de amores. Poupem-me. O que é bom é tudo aquilo que resta depois de se
retirarem as coisas más. São imensas. O bom, por conseguinte, é pouca
coisa. Mas é o que há.
Será pouco. Mas é típico. É raro haver muito que me aconteça. Escuso de
estar a inventar. E assim, como vos digo. Não se pode pedir mais. Pelo
menos a mim. Seria pedir muito. Admito. Não escondo. É ridículo. Mas eu
próprio sou o primeiro a fazer pouco da minha vida.
Ela diz que vem só para falar. Só? Falar já é muito. Porque é que as
raparigas fazem pouco desta actividade?
«Desliga as luzes», acaba por dizer.
Desligo. De que me vale o meu ódio à escuridão?
«Vem para a cama.»
Vou. Isto assim nem é falar.
«Não quero fazer nada», diz ela, deitando-se de costas, como se não
virar-se para mim fosse a prova que é verdade.
E faz de conta que adormece. Ou adormece mesmo. Eu sei lá.
«Não adormeças», digo eu baixinho.
«Tenho de descansar», diz ela.
«Eu vou-me levantar.»
«Abraça-me. Dá-me só um abraço.»
Dou-lho. Tenho vontade de destroçá-la.
«Tem calma, meu menino», diz ela.
«Tu destroças-me já...»
Batem à porta. Ela salta para dentro do guarda-roupa. As raparigas
clandestinas são muito desconfiadas. Muito sensíveis ao ruído.
Envergonham-se facilmente. Coram no escuro.
Levanto-me e vou lá. É outra delinquente, saída da noite, foragida do
sossego e da paz. Começa a despir-se no corredor. Está com os copos. Mais
magra. Mais bonita. Mais a cagar-se.
«Posso dormir cá?»
Deita-se na cama e suspira.
«Há horas que sonho com este momento», diz ela. Poderia ter sido eu,
devo confessar.
«Por onde é que tens andado?», pergunta ela.
«Tenho estado aqui. E tu?»
«Estive no Frágil, nos Pastorinhos...»
«Não. Ultimamente.»
«Sei lá.»
«Sabes há quanto tempo não te vejo?»
«E tu — sabes?»
«Há meses.»
«Porque é que estás aí especado? Vem-te deitar.»
A rapariga que ficou sem nome, por ordem dela e com o meu
consentimento, acabou por ficar com o meu, como seria de esperar.
O amor não tem pormenores. E grande de mais. Só tem generalidades.
Faz esquecer o que se fez. O amor que se teve ocupa toda a memória
disponível e, mesmo assim alastra-se e começa a sangrar.
Se calhar não fizemos nada. Tanto faz. Não são essas coisas que fazem
falta. Não se concebe a vontade de repeti-las. Não existe um único traço do
instinto de matar. Ou de voltar. Só a esperança estúpida que o amor, depois
de acabado, possa, apesar de isso, de alguma forma continuar.
Árvores e janelas, colchas, carros, jardins e outros lugares qualquer coisa
em que se queira pensar tudo dá. liido existiu, ou não, mas nada pode servir
ou ficar.
Basta saber que não fui eu, não foi, nunca mais será assim, para poder
continuar a viver, como se nada se tivesse passado.
A quem o amor tocou, o passado torna-se já.
Agora.
Ainda agora.
Há bocadinho.
Só um bocadinho de amor, já.
Insuficiente para nos deter. Mas o suficiente para continuar.
Não tenho vergonha de dizer que sou puta. E pena não haver outra
palavra, um sinónimo masculino que servisse, mas lá está. Vivemos num
mundo machista e é escusado tentar alterá-lo. «Mulherengo» e «engatatao»
são expressões mulherengas e engatatonas que os homens inventaram para
se sentirem superiores às putas.
A verdade é que as mulheres, a começar pelas putas, são muito menos
putas do que os homens. Não há aqui motivo de orgulho. Porque não é
difícil. E porque há coisas bem piores do que ser puta. Como, para não ir
mais longe, ser má pessoa.
Sou puta porque vou para a cama com qualquer rapariga que esteja para
isso. E vou alegremente. E gosto. E não me arrependo nunca. Mesmo
quando é assim-assim, é muito bom. Independentemente de ela gostar ou
não. É horrível, mas é verdade.
Se fosse só uma questão sexual, teria desculpa. Mas não é. Gosto das
raparigas. Mesmo quando estão a fazer um frete, enterneço-me. Antes,
durante e depois. E quando digo «depois», retiro-me a nada menos do que
ao resto da minha vida. É patético. Adoro.
Sou tão puta que nem sequer preciso de ir para a cama com elas. Entrego-
me mentalmente. Agradeço a mais pequena atenção. Contento-me com
pouco. Há putas que se portam de maneiras diferentes, conforme a pessoa
com quem estão. Respeitam o amor. Têm noção do que fazem. Eu não. Dou
tudo a toda a gente. Não faço distinções. Não sou capaz de dosear o meu
carinho. Dispenso-o, por inteiro, indiscriminadamente. Não tenho mão em
mim. Nem vergonha de ser assim.
Sou tão puta que não sei foder sem fazer amor. À bruta, com o coração
aberto. Ame ou não ame. Seja ou não amado.
O resultado é o mesmo. Lamento dizer. Há qualquer coisa em qualquer
rapariga, seja qual for a situação, que me comove. E que, por mais que
tente, não consigo distinguir da tesão. Se é o amor que me dá tesão ou se é a
tesão que me faz amar, sinceramente não sei dizer, por não compreender, na
altura, a diferença entre as duas coisas.
Não compreendo a diferença entre raparigas bonitas e raparigas «boas».
Todas as bonitas são «boas». Quase todas as «boas» são bonitas. E todas as
raparigas feias são, antes de mais, raparigas. E, diga-se de passagem, não
menos difíceis de convencer. A grande diferença está em cada rapariga.
Cada uma é um novo mundo. É por isso que é tão difícil não gostar de todas
individualmente. E uma espécie de bênção, tendo em conta que vamos
todos morrer.
Falamos pouco. Menos do que pecamos. Falar não nos diverte tanto.
Falamos do que fazemos e pouco mais. Fora as histórias estúpidas que me
conta, que me abstenho de repetir. Pede-me para não as contar a ninguém.
Mal ela sabe que eu nem sequer consigo ouvi-las.
Ambos vivemos pela negativa. Somos o que resta do que dizemos não
ser. Gostamos do que fica depois de não fazermos todas as coisas de que
não gostamos. Pode haver outras maneiras de viver. Mas nenhuma delas é a
nossa e não estamos interessados em saber quais são.
Não sermos infelizes é o nosso único objectivo. Não é fácil. Ocupamos o
tempo que temos a atingi-lo. Se um de nós tem um problema, não caímos
na asneira de pensar que o outro o possa resolver. Nem acreditamos tão-
pouco que o acto de desabafar provoca, só por si, uma medida de alívio. Se
alguém se sente melhor depois de confessar uma coisa, é porque não dá a
devida importância ao que fez. Género:
«Escondi os comprimidos de nitroglicerina do meu avô e uma semana
depois ele morreu.»
«Porque é que me estás a contar isso?»
«Para me sentir melhor.»
«Porque? Sentes-te menos culpada?»
«Não. Mas sinto-me menos cobarde.»
O que uma pessoa gostaria de ser, isto é, aquilo que gostaria que os
outros acreditassem, é mais interessante e menos arriscado do que saber
como é, «lá no fundo», mesmo supondo que seja possível. Coisa que, de
resto, só com muita estupidez e boa vontade se compreende supor. Eu não
consigo, nem me importo com isso.
As raparigas, por exemplo, são naturalmente desconfiadas. É inútil lutar
contra isto. Pelo contrário, faz com que seja menos condenável e mais fácil
mentir. Se elas tendem a não acreditar, e nos não insistirmos em tentar
convencê-las, recorrendo a mentiras ainda maiores (as verosímeis são as
mais imorais), as mentiras são apenas coisas que levemente se dizem, sem
grandes expectativas, com a vaga intenção de facilitar a vida.
E quanto às mentiras delas, devem ser aceites com o mesmo respeito.
Sem distinguir entre as que dizem para não nos magoar e as que dizem para
nos magoar. Há uma tendência para acreditar mais nas segundas,
provavelmente porque são apresentadas como a súbita revelação duma
verdade. Para não falar na inexplicável preferência humana pelas verdades
que supostamente custam mais a dizer e a aceitar. Como se a fealdade e a
inconveniência fossem características da verdadeira verdade. Se alguém diz
«Ele fez tudo para evitar o atropelamento do ladrão», a dúvida é sempre
maior do que se dissesse
«Ele confessou-me que o atropelou de propósito.» Vá lá saber-se porquê.
Se a verdade é assim tão desagradável, porque é que se lhe dá tanto valor?
Com passo triste cheguei a casa, vindo já não me lembrava de onde, tal
era o estado em que há anos me encontrava, perdido, à falta de outra
palavra, ou por me ter afeiçoado a esta palavra, perdido, ao ponto de não
encontrar outra, senão esta, perdido, do mundo, da gente, de amores,
obstinadamente, apesar dos esforços dos meus amigos, como se desta
continuação, deste estado, eu dependesse mais do que a vida, que, desde o
início, mesmo na meninice, nunca me interessou, a não ser por aí além. Mas
do além, por muito que me predispusesse, nunca recebi notícias.
O importante é escrever.
Chego de uma longa linha de mulheres, amado por todos os meus cantos,
de namoros e casamentos, qual deles o mais catastrófico, sem vontade de
impedir que elas se apaixonassem, ou jeito para as interromper e a tudo isto
acrescentei um único amor, vindo da minha parte, feito no meu próprio
coraçao, e que de nada me serviu, senão para andar por aí, fugido do que já
nem sequer me perseguia, tal a taxa de desistendas, à falta de um gesto meu,
como e que se costuma dizer?, de um contraponto que fosse.
O que me anima é esperar.
«Um dia» e tudo isso.
E não é um dia que está por vir, mas um que já veio, e que já se foi
embora, sem eu dar por isso, era um dia de calor, estávamos sempre nus, e
uma palavra escapou-nos, no momento mais sossegado, que era, salvo erro,
amor.
Que era, salvo erro.
Que eu já não salvo nada.
Que era, salvo erro, amor.
O rosto dela vai e vem, salta, rebenta e amansa, estende-se pelos meus
olhos, suja-me, deixa-me marcas e depois foge, voltando a esconder-se
onde há-de aparecer outra vez — quem me dera que fosse só como a maré.
Mas não é. Tão simples.
O corpo é mais fixo; agarro-me a ele, ou ele a mim é causa de mútua
tristeza vir dar ao mesmo. Não haver ninguém a quem agradecer. Quem se
possa culpar. Ou dizer que foi o primeiro. Daria jeito essa história humana
de
«Fui eu»,
«Não foste nada»,
«Foste tu que começaste»,
«Ai isso é que não foi»,
«Então está bem, pronto»,
«Mas quem és tu para te dares ao luxo de condescender?»
Chora o rosto dela, frequentemente. Sinal, segundo diz, de uma alma
qualquer. Que não a minha, claro. Eu não choro. Sofro,.só. Mas tenho de
informá-la que estou a sofrer. Não está certo. Ela nunca acredita mas
aprecia a confissão, à parte a falsidade. Consegue separar. Como se de um
carinho se tratasse, inútil mas bem recebido é assim que pensa e eu, que
remédio, tenho de viver conforme. Se quiser.
O corpo parece menos complexo, mas não é. Valha-me ao menos não
poder descobrir ou confirmar que é assim, quanto mais saber quanto ou
porquê. As vezes é verdade que sinto o corpo dela a mudar, recuando pela
pele, isolando-se da minha, mas esse não é um caminho, sob pena de partir
ainda mais o coração, que me convenha seguir. E, dadas as circunstancias,
de um amor inventado pela consabida ausência dele, grande parte da minha
atenção é prestada ao que me convém.
«Quais são os teus sítios?»
«Quero lá saber!»
«E os meus?»
«Muito menos.»
Muito menos do que quê? O amor, quando não se sente, é uma coisa que
se faz bem. Mais ela do que eu. Abençoado seja o arroubo que arrasa a
consciência e provoca o prazer imerecido do esquecimento e uma pausa,
vinda do caos, na indiferença, com toda a teimosia que tem.
Entre nós, menos há do que a soma de mim e dela. Que maiores
distracções que estes afazeres desobedientes que nos comprometem sem
respeito pelo que queremos, ou pressa? Enquanto esperamos.
Demasiado cobardes para reter a mais pequena ideia do mais simples
destino. Fica-nos bem sermos fracos e deixarmo-nos enfraquecer um pelo
outro.
Basta aproximar-me tanto dela que não consiga ver-lhe o rosto. Se eu
pudesse, ao menos uma vez, vê-lo não seria capaz. Aconteça o que
acontecer, uma coisa é certa perder-me-ei no momento em que souber o
que, durante o fio de noites e dias, até hoje não soube o que perdi.
Não gosta de estar triste, mas gosta de ter pessoas tristes ao pé dela. É
uma maneira de ficar feliz. Sente que não é a única a sofrer e faz tudo para
as consolar. E uma bondade que tem, por muito mal que ela esteja. O
coração é o mesmo grande coração de sempre, mas vira-se para fora e dá-
se, como se tivesse deixado de lhe pertencer. Não é alívio nem distracção. O
sorriso dela, vindo de uma tristeza permanente, chega a ser mais bonito do
que ela, por muito difícil que isso seja. Só quem viu.
Eu vi muitas vezes. Senão me viciei, foi por pouco, por não ser
completamente egoísta, coisa que eu julgava ser, completamente, antes de a
conhecer mas, graças a ela e aos sorrisos dela, descobri que não era. Já ela,
estando triste, era impossível de consolar. As minhas tentativas punham-na
furiosa e a fúria não desviava a tristeza aumentava-a. Dizia que faziam
pouco dela, como se simples acções e palavras fossem capazes de mudar o
mundo que lhe doía. Quando me esforçava mesmo, indo contra mim, e
aguentando a fúria dela, os gritos, as ofensas, as injustiças, o mais que ela
fazia era desistir e, deixando de me acusar, abraçar-me e dizer que eu não
tinha culpa. O que já era bom.
A tristeza dela fazia-me mal porque tinha razão. Entristecia-me, ao ponto
de confundir a dela com a minha e já não saber se o que fazia para atenuá-la
era mais para meti bem do que para o dela, como se estivesse a falar
comigo mesmo, o que é terrível.
A morte é fácil de fingir, desde que esteja vivo, e ausente, e triste. B
preciso aproveitá-la. Quando me ponho a passear no meu cemitério de
raparigas, o que me faz saudades e feliz é o facto de estarem todas vivas,
mas longe, podendo eu estar com elas, caso quisesse, sobretudo quando há
outra rapariga, com a qual não quero estar, ao pé de mim.
A memória mais forte só surge quando se foge, sem razão, de quem nos
quer prender. Ou fingimos querer. Chego a lembrar-me da rapariga da qual
quero fugir, como se fosse outra, que nunca conheci: o contrário daquela
com quem estou, ou, melhor, semelhante. Quantas vezes fecho os olhos e
mergulho na água fria até chegar ao calor que sinto, vindo da mulher que se
deitou comigo, calor que eu aproveito e redistribuo, sem dificuldades, como
se me tivesse transportado para outro corpo e outro sítio.
Penso pouco mais do que sinto — mas é suficiente para me enganar. Elas
nem sequer dão por isso, infelizmente.
«Estás triste?», pergunta a que calha estar aqui.
«Sim», digo eu, não a ela, claro, mas a todas aquelas que não estão, e que
cu visito enquanto falo, de uma maneira adoecida, com a alma atirada, num
sossego distante, ao caminho há tanto tempo escolhido por mim.
Deitado enquanto passeio, os meus lábios abrem-se para dizer os nomes
das raparigas, para dentro da boca que estou a beijar. Sim. Isso sim.
8.
Quando casaram, era ao contrário. Era tudo tão bom que nem um nem
outro se importavam com o facto de serem um desastre na cama. Antes de
se separarem, passavam as noites a tentar perceber porque é que o
casamento tinha chegado ao fim. O que é que tinha mudado? Ele? Ela? A
situação? Também não. Nada tinha mudado. Concluíram que foi por isso
que o casamento acabou.
Ela era violenta. Ele era manso. Ela gostava de discutir. Ele não. Para
mais, ela gostava dele como era. E ele dela. E ela odiava ser como era. E ele
também. Admiravam-se mutuamente. Ela gritava e ele sorria. Ela
enternecia-se e deixava de gritar. Ele ficava com pena que ela não
continuasse. Ou então, ela queria discutir e ele, como gostava de vê-la
discutir e pensava erradamente que ela precisava, dava-lhe troco. Só que
não tinha jeito. Não a convencia. E ela ficava desiludida.
Ela deixou-o nesse dia. Ele saiu de casa na manhã seguinte, porque ela
não tinha outro sítio para onde ir. Passada uma hora, ela voltou. Certificou-
se que lhe tinha onde ficar. E gostou de ter a casa só para ela.
A rapariga sem rosto e sem nome que eu adorava tanto que nem dava por
isso, tão atento que me sentia distraído, ocupado com alguma tarefa trivial,
mil vezes desempenhada, como se estivesse apenas a viver, a deixar passar
o tempo, sem noção que estava prostrado, rendido, preso pela adoração do
que via, num olhar sem desvios, começado não sei quando e impedido à
nascença de alguma vez acabar.
Até que, um dia, ela não apareceu. Não liguei. Ou, pelo menos, acho que
não liguei. Habituei-me a não me habituar a nada. Os únicos hábitos que
tenho são os que dependem de mim. Todos os meus vícios são fáceis de
satisfazer. Não me importo de ser dependente de coisas que existem em
abundância, que podem comprar-se a qualquer hora do dia. 1 ábaco,
música, álcool, amêndoas, benzodiazepinas, jornais, aspirinas, livros,
antidepressivos, café e outras coisas do género que não necessitem de
contactos especiais e cuja disponibilidade não é variável.
Como é o caso da cocaína ou do sexo, infelizmente. Mas a vida é como é
e é preciso aceitá-la assim.
Para ser sincero, não me era indiferente se ela viesse ou não viesse. Mas
tinha de criar essa impressão. Mesmo que ela se ressentisse. Antes ela que
eu.
À falta disto, faço como se só isto existisse e nunca hei-de amar-te menos
por não ser assim, ou por não ser feliz, por te conhecer e por sentir-me
conhecido por ti.
Uma coisa é certa. Não estou apaixonado. Não estou a sofrer. Estou
simplesmente como é que hei-de dizer? — abalado. É muito desconfortável.
Mas será grave? Espero que não. E pena não haver livros sobre o
abalamento. Nem sequer se pode falar acerca disso com o melhor amigo. O
que é que se diz?
«Sabes uma coisa? Tenho andado uni pouco abalado...» E ele, o que pode
responder:
«Então porquê, pá?» E pensará, com toda a certeza, que o caso é muito
mais grave, que estou deprimido, que anda para aí rapariga na costa, que me
está a pôr os cornos, como se eu não estivesse habituado a isso.
Nem sempre foi assim. Mas só assim posso falar por falar. Sem querer
dizer mais do que digo. Podendo dizer menos e nao ficar com contas por
prestar. Só sabendo que nem sempre foi assim, que posso esquecer como
era antes — pelo menos o suficiente para estar aqui sem estar calado.
10.
O meu pai nem sequer chegou a conhecer a minha mãe. Tanto um como
o outro diz que foi o outro que fugiu, Eu acredito na minha mãe. Não
suporto a ideia de o meu pai ter sido abandonado.
As crianças muito amadas ficam despachadas quando ainda são
pequeninas. As que não são passam a vida à procura do grande amor. Dão
óptimas namoradas. E mais segundas oportunidades.
Desde que a Margarida começou a faltar é preciso coragem para usar este
verbo sinto que a conheço. E se eu não estiver enganado?
Se ficasse por aí, não seria grave. Mas o interesse por uma rapariga
provoca em todas as outras uma reacção em cadeia. Uma a uma, começam,
elas também, a surpreender-nos. Como se se tivesse gerado uma situação de
concorrência. A namorada com que vou viver expulsa-me de casa. A outra,
que costuma telefonar, deixa de telefonar só por eu lhe ter telefonado duas
vezes seguidas. Ao dar-me conta do processo em curso, decido ficar quieto,
à espera que a normalidade seja restabelecida. Ao menos ela. Como ficar
quieto é a minha especialidade, deveria ser fácil. Mas não é. Custa mais do
que entrar em acção. Como é que pode ser?
É uma má fase. Bem sei que este pensamento é a primeira página do livro
de instrução primária onde se dão os primeiros passos no caminho
acelerado para a depressão. Mas tenho esperança que a per feita consciência
deste facto me impeça de apanhar o vício de virar as páginas seguintes.
Também sei que não devo tentar animar-me. Deus me livre de ficar a vida
inteira com essa responsabilidade.
Talvez uma rapariga antiga me faça bem. Uma que não esteja
atravessada. Uma que se tenha esquecido completamente de mim.
Felizmente não faltam candidatas. Percorro a secção caligraficamente
correcta da minha agenda os primeiros nomes que inscrevi, em tinta da
índia, no dia em que comprei a agenda. Escolho uma rapariga da qual ainda
guardo um número aceitável de lembranças, certificando-me que todas são
irreconvertíveis em saudades.
Há dias em que me dá para a inteligência e a minha, para que não me doa
e não a sinta, é arrancada a ferros e juramento verdadeiro.
A vida passou ao lado de mim, como um dia há-de passar a tua. Foge
dela sempre que puderes. Mas não faças como eu. Não te canses de fugir. E
nunca dês o coração a quem não o quer.
Eu passei ao lado da vida porque quis, ou não fui capaz. Não tive família,
não guardei amigos, não poupei, não percebi, não ajudei, não apareci. Tive
um amor, mas só porque não o pude evitar. Nem cuidá-lo, eu cuidei. Hoje
guardo-o como a única lembrança que tenho de ser vivo.
Evitei a vida como um pássaro que voa não se sabe como nem para onde,
procurando apenas não pousar. Não passei pelas coisas, não compareci,
inventei, fechei os olhos, menti, olhei de lado, disfarcei, sempre que pude,
fugi. Hoje trago a alma branca, magoada de tanto protegê-la. Mas não a
vendi. As minhas intenções eram boas. Eu é que não as percebi.
Hoje faço 35 anos. Não dormi, acordei cedo, bebi uma caipirinha ao
meio-dia. Estou triste. Como deixei o coração cansar-se assim de mim?
Como consegui chegar aqui?
É a única maneira que tenho de passar o dia. A vida não me cabe no
coração. É como a morte, que não desejo ainda mas que já aceitaria.
Com o meu coração casado, cansado de gostar e de deixar de gostar.
Cansado de lembrar e ver, de ver a lembrança à minha frente, e a felicidade
atrás de mim, cansado do presente, de ver e de comparar uma com a outra.
Cansado de discutir, de não explicar, não perceber, não ser percebido, de
perdoar e não ser perdoado.
Cansado de sorrir do meu sorriso, da maneira que a lágrima tem de cair e
secar, das portas, das janelas, do ar dentro das casas. Cansado de me animar,
de me apanhar do meio do chão, de me meter no carro, de me servir, de me
levantar.
Com o meu coração cansado de não saber o que sente, e de descobrir
sempre de repente o que não sabe. Com o coração cansado de saber.
Cansado de mentir. Cansado de esquecer. Mas coração, mesmo assim.
Um dia vou no vaivém dos barcos que vejo da minha janela e atravesso o
rio com eles. Um dia ponho os meus olhos num ponto do céu de onde nunca
mais possam fugir, tão azul e tão longínquo, que eu nunca mais os possa
reaver. Estou cansado de ver o mundo. Estou cansado de viver em casa.
Tenho uma vontade muito pequena de morrer.
Um dia vou para as casas altas onde as coisas não se vêem. Ser como
poeira num parapeito num mês sem vento. Estou cansado do que trago.
Andorinhas aos ombros, os trabalhos que nunca hei-de acabar, a solidão e o
azar das minhas certezas, um amor sem solução e sem fim.
Um dia atiro a alma ao ar e serei friamente feliz.
Ninguém viu o meu coração. Eu não vi o coração de ninguém. Não me
lembro do que aconteceu e do que eu inventei. Mas um dia a minha alma
foi contra a tua. Passámos dias inteiros agarrados. Não havia saída, nem dia,
nem noite, nem eu, nem tu, nem vida lá fora. Era mais do que amor. O amor
não é nada.
O amor desdiz-se. Desmente-se. Só não se desfaz porque não pode. O
amor fica. Mas a vontade de amar azeda e a pressa de ser amado vai
passando. O amor fica, para nos lembrar da nossa fraqueza, da nossa
doçura, da nossa humanidade. Para nos fazer mais pequenos do que
pensámos. Para nos proteger da esperança.
O amor não é nada e não passa porque não pode. Nada disso se passou
connosco. Era mais do que amor. Numa hora de amor envelhecemos vinte
anos. Era mais perigoso, mais bonito, mais triste que o amor. Era a nossa
vida a passar.
A vida é a única coisa que temos. Nada temos para a acompanhar.
O preço de estar contente foi sempre tão alto e eu paguei-o sempre com
esta dívida para comigo mesmo que se foi acumulando em mim até
rebentar. Desde o dia pequenino em que escolhi o meu primeiro sorriso, em
que diverti o curso da minha primeira lágrima. Era só água na minha cara,
mas eu aprendi a torná-la em ácido no meu coração.
No meu coração cansado, que eu queria desperdiçar contigo.
O meu coração dá-te como morta, mas tenho a tua imagem, o teu rosto
deitado sobre o meu como se dormisses sobre mim. Guardo-a contra o
tempo e contigo, para levar no momento em que eu deixe de viver. Nós
somos tão brancos. Com a tua escuridão e a minha cegueira, nós somos tão
brancos e tão parecidos que me custa abrir os olhos e não te ver.
Morre a vontade, o dia, o curso da vida, o sopro, a melodia repetitiva que
sustém, sem razão aparente, a sorte e a solidão de não estar morto.
Morre a alma, morrem as mãos. Morre tudo, menos o amor, que ainda
nem sequer nasceu.
Chamava-se Joana. É o que diz aqui. Bem sei que continua a chamar-se
Joana, mas o pretérito imperfeito é apenas uma medida de segurança e não
uma expressão lírica, como aquelas que dão início a uma história
sentimental que nunca mais acaba.
Arranjo uma boa desculpa. Se possível remunerada. Decido convidá-la
para colaborar no meu livro de grandes crimes. Deixo-me iludir que preciso
duma perspectiva feminina. Não. Feminina não. Isso é muito machista.
Duma outra perspectiva. Outra também não. Dá a ideia que qualquer uma
serve. Da perspectiva dela. É isso. Apesar de tudo, ainda é a melhorzinha.
Embora o principal problema continue a ser «perspectiva», gratuito,
pretensioso e pouco apelativo.
Escrevo-lhe uma carta em papel timbrado, claramente afectuosa. Depois
experimento com papel normal, reduzindo proporcionalmente a
afectuosidade. Antes seco e individualizado do que terno e empresarial.
Ela telefona. Uma rapariga a telefonar. É verdade. É refrescante. Uma
rapariga que não sabe de nada!
«Joana!»
«Fernando! Como é que tu estás?»
«O que é que isso interessa? O que interessa és tu. Conta-me tudo. Como
é que tu estás?»
«Olha, para começar, estou desempregada...»
«Então podes vir trabalhar.»
«Ainda não percebi o que é que tenho de fazer...»
«E fácil...»
«Mesmo que seja difícil... não sou assim tão estúpida.»
Eu sei lá. Não estava à espera duma resposta tão rápida. Supus que
dispusesse dalgum tempo para pensar...
Toma. Embrulha. Que é para não estares armada em boa. Policiais! Que
grande lata. Depois deste tempo todo. Seria de esperar um mínimo de
respeito ou de comedimento. De qualquer forma, estou lixado. Tenho de ir à
biblioteca levantar uns livros com bom aspecto, inacessíveis, impenetráveis,
policopiados.
«Nem tens de perceber... Preciso mesmo da tua ajuda, Joana. Senão não
te estava a telefonar.»
«E não estás... fui eu que te telefonei, lembras-te?»
«E ainda bem que telefonaste. Foi por isso que te escrevi.»
«Cala-te. Pediste-me para te escrever. Só que já sabes que não tenho
paciência... Desculpa telefonar-te assim sem mais nem menos...Se calhar
estou-te a incomodar...»
Péssimo.
Táctica vetusta: ela cria a expectativa falsa de estar um caco, para depois
surpreendê-lo com a eterna juventude dela.
«Então toca seis vezes à campainha, deixa passar uns segundos e toca
mais duas vezes a seguir...»
«Ha! Ha! Ha!»
Riso insincero. O melhor que há.
Não tenho mais nada para fazer. Senão frases. Que não fazem mal, nem
diferença, nem sentido.
Têm desculpa. E direito a serem ditos. Porque nem sempre foi assim.
Nem sempre tive este tempo que tenho. Tive um tempo em que nada
disto teria acontecido. Em que tinha mais do que fazer do que falar. A partir
do dia em que uma rapariga tez o mesmo. Parou diante de mim. E, a partir
daí, nunca mais parou. E parecia que nunca mais havíamos de parar.
Ah, pois houve. Houve um tempo assim. Quanto a isto, não haja dúvidas.
Guardem-se todas aquelas que houver para tudo o que se passou a seguir,
porque nem de longe hão-de chegar, gastando-se a última muito antes de se
chegar ao fim.
Que nunca mais chega. Não fosse a vida mesmo assim. Se calha aos
outros, porque não há-de calhar a mim? E que outra maneira há de a evitar,
senão fugir dela e vir para aqui, contá-la o mais devagar que eu conseguir?
Estás tão gira! Que mau gosto que ela tinha, graças a Deus! Os homens
costumam dizer, quando revêem uma ex-namorada:
«Eu sempre tive muito bom gosto...» Como se fossem eles a escolher. O
mau gosto das mulheres é a grande sorte dos homens. E a cegueira. E a
teimosia, diante os avisos das amigas. E a coragem. E a irresponsabilidade.
Não têm fim as qualidades e os defeitos das mulheres que nos favorecem,
num contexto já de si favorável, dado o domínio, infame mas inegável, do
sexo masculino. Cá por mim, comporto-me com o limite máximo de
hipocrisia: sou contra o estado das coisas mas vou aproveitando,
desesperadamente, fingindo que vai terminar no dia seguinte.
«Desculpa a desarrumação...»
Acabo por lhe propor uma fortuna. A brincadeira vai-me sair cara. E o
trabalho que me vai dar arranjar qualquer coisa para ela fazer? É bem feito.
E tem a vantagem de me distrair. Há quanto tempo não me distraio?
A única coisa que tenho feito ultimamente é divertir-me, divertir-me,
divertir-me. Pois é.
«Não me digas que estás a escrever um livro sobre serial killers. É
doentio. E, ainda por cima, já não há pachorra.»
«Se são serial ou não, não me interessa. O meu livro e sobre killers em
si. É muito mais clássico do que pensas.»
«E tu que ias dedicar-te só ao teatro...»
«E dedico-me...»
«Há anos que não se vê uma peça tua!»
«E o tempo que tem demorado esta que estou a escrever agora...»
«Mostra.»
«Não está pronta.»
«E sobre quê?»
«O que é que achas?»
«É sobre serial killers...»
«Claro!»
«Ó Fernando — quando é que vais deixar de te iludir?»
Que mamas. Que cara linda. Porque é que, quando as mulheres começam
a meter-se na nossa vida, tomamos sempre consciência dos atributos físicos
delas? Será por estarem distraídas? Somos cobardes para isso. Ou será que,
quanto mais sérias ficam, mais giras se tornam? As mulheres odeiam que se
lhes diga
«Adoro-te quando estás zangada!», mas tem um fundo de verdade.
Faltam é homens com a coragem suficiente para informá-las. Zangadas
ficam interessantes, atraentes, sem dúvida, mas menos giras que em estado
de repouso. Não. O que faz ressaltar a beleza é a seriedade. Por isso é que,
quando as mulheres não estão a ser sérias e apenas fingem estar zangadas,
ficam na mesma. Por isso, e não por quaisquer considerações puritanas, é
que existe em Portugal o culto da rapariga séria.
Margarida...
Rezo para que seja ela por quem espero. E não alguém que não possa
voltar, por quem não posso correr o risco de, no meu segredo, esperar.
Não tem de ser a Margarida. Mas tem de ser uma rapariga apresentável,
que possa estar presente, que não esteja no passado aonde eu não chego,
que possa aparecer já.
Se me deixassem em paz, não digo comigo próprio, claro, mas sem mais
ninguém, escusava de lutar — seria uma guerra só minha, uma guerra bem
melhor, o cessar-fogo mais violento e comprido que eu já vi, se mais
ninguém pudesse ver — e muito menos intervir.
Todas as tristezas do futuro seriam então muito alegres, não só por não as
poder conhecer, e resistir com facilidade a adivinhá-las, mas também
porque talvez nunca acontecessem. Que sossego ter um futuro branco,
como um mapa do mundo onde só constassem os sítios em que já estive.
Melhor: aqueles onde tenho a certeza de ter ido, mas, de resto,
misericordiosamente, por laxismo ou inteligência, esqueci. E, quanto às
cidades prometidas, onde nunca irei, nem sozinho sequer — por que hão-de
ser bonitas? Eu sei que não são.
Tratam-me por «meu amor» mais as que fazem o favor de não me amar,
do que aquelas que me amam contra vontade, contra ambas as vontades,
para grande desgosto delas. Menos delas do que meu — mas enfim... há um
certo cavalheirismo que persiste. Mal começam a amar-me, perdem a razão
e, ao perdê-la, despedem a minha. Passa a vontade de amá-las, que à falta
de amor, ainda é a consolação mais bonita que se pode ter. ]á não é nada
mau pensar em amar, ou que se ama; ter pena de se ser como é e a
esperança de um dia lembrarmo-nos como se tivesse acontecido quando já
for suficientemente tarde. É isto que elas destroem com o maior prazer,
cheias de todos os direitos que julgam ter adquirido só por amar e que
anulam os nossos de um dia para o outro, proibindo-nos até de reclamar,
dada alguma obscura equivalência entre a queixa e a ingratidão. São como
aquelas casas pobres que há séculos não têm amo e das quais não apetece
ser hóspede, quanto mais senhor.
Certa noite, sentindo-me farto, perguntei a uma rapariga isenta de
sentimentos por mim por que me chamava «meu amor». Ela respondeu que
era só por hábito. Que não queria dizer nada. Fiquei na mesma.
Conhecíamo-nos há dois dias. Ela esclareceu-me logo que era só porque
fodiamos. Que o hábito era dela e não tinha nada a ver comigo. Acrescentou
que «meu amor» correspondia ao darling nos bastidores teatrais da
Inglaterra. Riu-se e disse: «Não te preocupes.» Era mesmo isso que eu
queria — que quero sempre — ouvir, mas é rara a pessoa que mo diga.
Quantas? Durante quanto tempo? Gostam de perguntar estas coisas.
Como se alguém fizesse contas, ou tivesse tempo ou vaidade para isso. Fico
sempre zangado. Os números têm de ser verdadeiros. Desconhecê-los não é
desrespeitá-los. Não se pode é mentir.
Preciso de um dia de intervalo. O problema é: entre quê? As raparigas
ficam sempre nas margens da minha vida. Nunca ao centro. Perseguem-me,
de perto, enquanto eu tenho de prosseguir. Eu sou um filme que passa sem
nada se passar — elas são os furos da película.
A noite é muito mais comprida quando se tem de ouvir outra pessoa a
falar, ou senti-la a mexer-se, ou a envolver-nos em qualquer outra espécie
de ocupação. Quando não diz nada, a noite tem o tamanho que tem ou, se
calhar, segundo a ética popular, deveria ter. E quando nem sequer cá está, é
só ligeiramente mais curta, muito menos do que se esperaria. É preciso estar
muito atento para reparar. Em contrapartida, o tempo passa muito depressa
quando se está à espera que não venha alguém que não se queira ver.
«O amor pode ser tudo o que em toda a vida não há.» Desta também me
lembro. De nada serve perguntar «Como?» As raparigas tendem a associar a
verdade àquilo que não se pode explicar — ou, na maioria dos casos, sequer
dizer. Lembro-me muito bem. Ela estava a lavar os cabelos, em plena
batalha contra eles, espremendo-os como se quisesse matá-los e, cada vez
que penso no que me disse, preciso de abraçá-la já.
Sou um comprimido. As pessoas tomam-me sem reflectir. Nem sequer
tenho a honra de poder dizer que fui eu próprio que me comprimi. Sou
aquilo em que as pessoas me tornaram, para ser pequeno, portátil e fácil de
engolir. O efeito é geralmente apreciado mas nunca agradecido. Para elas,
não só não sou o autor de mim, como nem sequer colaborei na equipa
anónima que me descobriu por acaso, no dia em que alguém se esqueceu de
lavar os tubos de ensaio.
Quanto mais tento falar ou ouvir o que me dizem, maior se torna a minha
fé na linguagem gestual. Não há conversa, por mais sincera e bem-
intencionada, longa e esclarecedora, que valha um péssimo e breve abraço.
Tem a alma um tempo certo para se dar a ver, outro para se entregar, e outro
ainda para se reaver, uma vez entregue e arrependida de nunca mais se
poder entregar, ao descobrir que pode tingir entregar-se, com o mesmo
resultado, sem se perder. Por outras palavras: diga-se o que se disser, por
perfeita que seja a expressão, qualquer abraço explica mais e mais
facilmente se compreende, recolhendo as palavras como uma esponja a
apanhar água suja, repondo a incerteza verdadeira e a limpeza. Há abraços
que nos atiram pelo tempo adentro, para onde já estávamos antes de dizer a
primeira palavra, bem, ou, pelo menos menos mal, mas sem saber.
São estas ideias antigas que agora mandam em mim. Já namorei muitas
raparigas e, verdade se diga, não são muito diferentes no que dizem, senão
no que pensam e pensam fazer. Resumindo: abraço-me a elas e seja o que
Deus quiser.
12.
Margarida.
Só isso? Nem mais uma vírgula. E como vos digo. Acontece. Regista-se.
Intervalo. Espera-se. Mais um bocadinho. Até acontecer outra coisa.
Acontece. Regista-se. Não sai disto. Bem sei que podia expor-me mais.
Andar por aí. Espicaçar as ocasiões. Espremer as pessoas por quem passo,
para ver o que é que dão. Mas não é assim que sou. É escusado fingir que
não. Nem o contrato que tenho comigo 1no permitia. Nisso é muito claro.
Está a acontecer? Deixa acontecer. Aconteceu? Regista. E se não acontece
nada? Nessa matéria é muito específico: Aguenta-te. Espera. Por amor de
Deus, não pegues na caneta. Tudo menos entrares em delírio. E está certo.
Nada a apontar. Quem sou eu para reclamar? Está estipulado. Faz muito
bem. Faz sentido.
Todos os dias acordo mais perto do sítio onde adormeci — até no tempo
dou comigo à mesma hora, sem resposta do relógio, como se não tivesse
dormido, passado a noite num momento, enquanto olho para os ponteiros,
que não há maneira de se mexerem, mesmo dormindo.
Mais do que a morte, que faria sentido, não consigo esquecer-me da mais
pequena parte da vida, embora feche os olhos, e espere, quanto posso, que o
tempo passe mas o tempo não me perdoa e, todas as noites, se calhar é
bonito, pára e espera comigo.
A manhã não sobe, a tarde não se distingue. A cama nunca está fresca
nem morna — permanece ou muito quente ou muito fria. Quanto mais me
deito mais me sinto levantado, de olhos abertos, encostado ao meu lado da
porta, como uma camada de tinta, com uma premonição de sinos. A
verdade é que não descanso enquanto não acontecer uma coisa que não
quero mas que em vão adivinho.
O silêncio não me pertence. É o ruído do que tu não fazes, de não vires,
de não estares, como se não desses sequer por faltar, e a culpa fosse sempre
minha.
Tivesse eu um dia por que esperar, ou uma pessoa qualquer, mesmo não
sendo tu, descansaria um bocadinho.
Contra ti.
14.
Mesmo que a Margarida fosse para a cama com três homens nunca
pensaria «tenho de admitir que sou uma rapariga com sorte.» Muito menos
com três homens por dia. O sexo é muito bom, grande novidade, mas não é
um bem precioso. Não era culpa dela que as pessoas não aproveitassem
todas as oportunidades que tinham, nem tão-pouco que não criassem
aquelas que não eram capazes de surgir sem uma ajudinha. Porque é que
havia de se sentir «privilegiada»? Eufemismo de merda. O que eles queriam
era que ela se sentisse culpada. «tenho todos os defeitos que existem,
excepto a culpa.» Era essa a posição oficial dela desde os treze anos.
Acontecesse o que acontecesse, nunca tinha culpa, leve só uma vez e odiou.
Para mais, obrigaram-na a reconhecer que tinha, jurou que nunca mais. Mas
não era injusta. Também se recusava a atribuir culpa a quem quer que fosse,
natural ou sobrenatural, concreto ou abstracto. Para ela, ninguém tinha
culpa de ter nascido. Nem de ser como era. Todos estão constrangidos.
Todos .são livres. E pronto.
Os homens eram irritantes. Quanto mais inseguros, mais convencidos.
Recusavam-se a aceitar que faziam parte de uma sequência irrelevante.
Achavam sempre que eram um princípio ou um fim. No mínimo, um
intervalo. Uma pausa que marcava a diferença. Não lhes bastava ser
diferentes. Queriam mais. Queriam ser importantes.
E sempre que visitava a Margarida, lá vinha ele, bem disposto e mal
vestido, falar um bocadinho comigo. Dizia frequentemente que não estava
ali como marido, não fosse eu esquecer-me momentaneamente. Que faria
ele se estivesse? A mesma coisa. Nada. A especialidade dele.
Se fosse capaz de concebê-lo como vítima, não seria difícil engraçar com
ele. Mas há qualquer coisa num homem recém-vindo, de testículos vazios,
que me irrita. Um ar superior, de quem já está despachado, uma
inexplicável alegria, sempre mais acentuada nas criaturas miseráveis por
força do hábito, para quem uma fodinha constitui um triunfo do indivíduo
solitário sobre a sociedade inteira.
No caso dele, havia a agravante de ter dormido com a mesma mulher que
eu, criando-se uma solidariedade indesejável, tacitamente estabelecida, que
não era mais que uma coincidência genital. Tal como os vizinhos nas casas
geminadas. Que culpa tinha eu que tivéssemos sido convaginados?
Tive sempre o cuidado de tratá-lo com o devido desrespeito, para que não
estivesse à vontade, mas ele era insensível. Portava-se como se eu não
existisse.
Eu como se só ele existisse. Uma injustiça. Uma desigualdade inaceitável
em democracia. Repetida.
Ate certa altura, convenci-me que aquela presença era o «preço» d algum
a coisa que eu teria feito. Tentei entrar no espírito do povo, a ver se
conseguia compenetrar-me que lhe tinha «comido a mulher» ou lá o que é.
Mas «comida» como? Faltava alguma fatia à Margarida? Não estava ela
sempre acabada de sair do banho ou do forno sempre pronta a comer? As
mulheres não são comestíveis. Quando muito, ficam uns minutos com ar de
terem comido, que os homens confundem, não sei porquê, com o ar de
quem foi comida.
E porque é que me havia de sentir culpado? Fiz alguma coisa que ele não
tenha feito? Era sempre ela que vinha a minha casa. Nunca a incitei. Bem
gostaria, mas ela não deixava.
Enfim, decidi que não devia nada ao marido dela. E um dia pedi-lhe para
nunca mais voltar a minha casa. Ele ficou contentíssimo. Como se eu
tivesse confessado que tinha inveja dele. Com a tendência triunfalista que
ele tinha, foi com satisfação que se despediu de mim, como quem
cumprimenta um adversário derrotado, só lhe faltando dizer
«Deixe lá, que para a próxima vai ser melhor...»
Mal por mal, preferia que não se tivesse ido embora. Nunca me senti tão
humilhado não digo na minha vida, nem tão-pouco em minha própria casa,
mas, vá lá — na minha opinião.
Menti.
Se estas coisas acontecerem? Receio bem que sim. Tenho medo que
tenham acontecido. E que as tenha descrito tal qual as vivi. Como se não
tivesse mais nada para fazer. Não terei tido? Receio que não. Estou a
mentir. Eu sei que não tinha. Por isso é que isto é assim, como vos digo.
Numa maré baixa, veio ter comigo alguém do meu sangue. Deixava que
não olhasse para ele. Deixou que o tratasse mal. E, em troca, agarrei-me a
ele e dei-lhe o meu amor. Era uma mulher do meu sangue. De um sangue
futuro. Fizesse o que fizesse, sabia que tinha pena de mim e que podia
confiar nela. Tinha chegado uma mãe, sem ser a minha. E eu era a escolha
estranha.
Há raparigas tão aterrorizadas pela tristeza que são felizes o ano inteiro,
por força de se fecharem tanto, tal a vontade vem ao de cima, como um
nenúfar que se desprendeu do fundo de tamanha teimosia. Assim flutuam
pela vida fora, recolhendo a chuva como quem recebe uma visita.
Caso da Catarina, para não ir mais longe, não porque não quisesse, mas
porque não podia.
Também por ela se aproxima. E vem sozinha. Com aqueles olhos que não
tinha mais ninguém, invadidos por erva daninha. Sem remédio e sem
socorro, tão verdes que se poderiam considerar resolvidos. Caída no meu
peito, a despir os braços que vêm pousar, vazios, em cima de mim.
Num Deus-te-guarde de cansaço e fantasia. Alheada e inteirinha. De toda
a vida, minha e dela, protegida. No meu cuidado manso. Sem um aviso,
sem um pedido. Rendida à segurança da minha pele, que só ela tornava no
tamanho certo para recolhê-la, lenta, comprida e macia.
Sempre tentei corresponder, e nunca escondi o espanto nem a devoção ao
amor que eu não largara. A Catarina esteve cá mais de dois anos cheios de
dias. Manhãs de lume, à luz das noites que paravam e corriam, nem
reparávamos a que mundo e a que casa pertencíamos.
Fosse esse o meu amor e eu compreenderia. Nunca um desacerto, nunca
um erro, nunca uma palavra desentendida ou dita em cima doutra, ou
desperdiçada, ou não querida. Catarina; seja minha a tua paz.
Não havendo marinha para navegar as lágrimas nem praias onde chegar,
de nada me serve fazer o esforço de chorar. Levanta-se uma ventania inútil
da lembrança e só me resta virar-lhe as costas e deixar-me levar e ir embora,
a fingir que se torna tarde.
Nunca fui sentimental até ao fim do que poderia ter sentido. Serviam-me
os sentimentos dos outros para fazer de conta que estava a participar.
Apanharam-me desprevenido. Daí estes improvisos, de principiante sem
mestre nem tempo para aprender. A repetir a mesma simulação falhada, esta
fraude encoberta que jamais se descobrirá, que não causará prejuízos a
ninguém, nem benefícios, a não ser a quem a vai perpetrando, incapaz de as
contabilizar.
A minha Ana. Só tendo saído da minha vida é que digo assim os nomes
das raparigas. Com reticências. E um sopro no coração. A sensação de
posse ocupa-me de tal maneira que só depois de desaparecer posso dar-me
ao luxo de passar aos pensamentos de propriedade. São como terras da
minha infância, há pouco perdidas, que me ponho a reconstruir, mais
bonitas do que eram, com a mesma força com que me recuso a visitá-las
desde que passaram para outras mãos. Mãos em que nunca penso, todas elas
anónimas, indiferentes e iguais.
Como um cão eu vivi com cada uma das minhas raparigas. «Senta!», «Dá
a pata!», «Morre!» Fui muito bem treinado. A obediência era a minha única
maneira de exprimir o amor que, por falha humana, não sentia por elas. Mas
não era por isso que deixaria de lhas dar a melhor reprodução que um
coração podia comprar. Não que convencesse alguém. Mas chegou a haver
quem se dispusesse a duvidar.
Não há nadei que se pense de que ela não fosse capaz, a rapariga sem
nome que há muito não corre ao lado de mim.
São as pessoas que nem sempre foram assim. Nem que tivesse sido ao
longo de pouco mais do que um instante, já é muito. Já chega para que não
possam ficar na mesma. Nunca mais as mesmas. Nunca por enquanto.
Sempre para sempre.
E uma pessoa deixa-se sempre aquela que mais merecia. Não por ser a
melhor a receber-nos. Podemos até ser todos mal recebidos. Desperdiçados,
deitados fora, destruídos. Mas sempre por quem mais merecia. A única a
quem quisemos dar tudo o que tínhamos. Não é preciso mais para que
mereça. Que nos resta para podermos pôr-nos a imaginar que escolhemos,
se já muito antes estava tudo decidido?
A rapariga sem nome era capaz de tudo. Até de ter ficado comigo.
E possível.
Vem a vizinha. Ioda a gente bate à minha porta menos ela. Eu fujo das
raparigas como da polícia, porque vêm para entrar e, quando entram, ficam
ou, pior ainda, levam-me para outro sítio. Mas a minha vizinha é querida,
no sentido de desejada, porque é desconhecida e imagino o melhor.
Traz o mundo na cabeça é um mundo fresquinho, atrás de terra, olhos
castanhos de quem obrigou o céu a estender-se aos pés dela; um perigo
devidamente sinalizado. Apetece juntar-lhes água, puxá-los para mim e
deitar-me a brincar na lama com eles. Uns ombros de melhor amiga, lábios
colados à boca, que dizem tudo sem se abrirem, e pernas muito altas que,
por muito que se espere, nunca mais chegam à barriga.
No código do que não diz, que não tenho e que estupidamente procuro
aprender nas poucas palavras que ouço, sinto a distancia de corações mais
partidos que apartados, recolhidos na carne do peito como um sinal antigo,
daqueles que se trazem desde bebé, entre as maminhas.
Peço-lhe, é esse o verbo, que entre e me faça o equivalente a festinhas ou
amor companhia. Senta-se à minha frente e, como me apetece assaltá-la,
rasgar-lhe a camisola da pele, vou lazer-lhe uma bebida, enorme, que ela
segura como uma tocha na noite de um castelo da primeira dinastia,
deitando fogo ao que resta da minha vergonha.
Conta-me o mar e o mundo, em sílabas que são menos que os meus
dedos. Brilha uma inteligência do tamanho da minha vontade de tê-la sem
piscar, com uma luz que lhe sossega a beleza e me põe maluco.
Ajoelho-me diante dela, segurando-lhe as ancas, com medo que se vá
embora, entregue a uma violência descoberta que há-de persegui-la ou
violá-la durante o resto da minha vida.
Na força das minhas mãos, a minha vontade atira-se. Para o medo dela,
do qual, em rigor, não preciso mas não dispenso, feitas em algemas maiores
do que ela, prendendo-a na cela do meu corpo. Ela enfiai os dedos no meu
cabelo. Quem me dera que o arrancasse, para ficarmos quites. Mas não.
Puxa-me para o colo, como se tivesse pena — e essa pena fosse a resposta
exacta ao meu tesão. Afundo-me e, ao perder-me, ataco o que me prostrou,
vingando a minha vergonha na ganga quente, onde imagino tanto quanto
posso que ela começa e termina.
Deito-me na minha jaula, ao pé de onde ela caiu, como um tigre a tapar
um flamingo perdido, com todo o meu peso, sobre tanta velocidade e vida,
para poder pará-la e impedi-la de voar, de existir sem ser comigo. Os meus
braços apertam-na mais do que deveriam e magoo-a. Na força com que lhe
faço mal encontro a razão resolvida da minha alegria.
«Vem para a cama. Eu aqui não consigo abraçar-te.»
Ela levanta-se, bem intencionada e mal convencida. Quando a apanho de
pé, alta até à minha boca, abraço-a como se quisesse esconder, proteger das
ameaças que só eu personifico, como se se tratasse de outra pessoa e eu
fosse o único amigo que ela tem. Imagino. As minhas mãos sobem, de
nódoa negra em nódoa negra, pelo corpo dela acima, até chegarem enfim ao
rosto que tenho de imobilizar e só imobilizando consigo beijar, nos olhos
mais do que na boca, arrastando os lábios como se pesassem toneladas e
não os conseguisse mover, não tosse ela, sem dizer nada, a deixar-se tomar,
como se estivesse a pedir, imagino.
Aperto-lhe a cintura. São mãos a menos. Abro os meus dedos como
compassos que procuram traçar perfeitamente o rabo dela, debaixo das
calças, com a ganga a parecer-me pele nua, tal é o desasossego da minha
felicidade.
Ela faz de conta que se rende, que consente. Mas quem faz o que ela quer
não é ela — sou eu.
Não é preciso despirmo-nos. Pelo menos no princípio. Antes de
fodermos, já fodemos. Quando puxamos as calças, abrimos apenas o
caminho que é preciso e Iodemos como doidos há que séculos conhecidos,
na cama por desfazer, ela a virar-se de costas, eu a molhá-la com as mãos,
num momento de fogo escuro, ligados como siameses, a assassinar uma
saúde que parece ter começado a crescer no dia em que nascemos, como se
nos tivessem separado.
Só depois de fodermos conseguimos fazer amor.
Não gostámos nada.
Voltamos atrás. Fizemos tudo para não nos conhecermos. Ela vinha quase
todos os dias. Quando não vinha, ia eu a casa dela.
Ficávamos sempre surpreendidos. Eu tinha muita sorte. Falávamos na
cama como se nos tivéssemos encontrado num comboio. Ate que fomos
mesmo, para a Escócia. Foi muito bom, mas esquecemo-nos que tínhamos
de voltar. Foi muito comprida a viagem. Ficámos amigos. E tristes. Nunca
mais nos vimos. 1 sempre um erro querer mais do que muito. Mais do que
muito é menos do que nada. Só perto do amor e que uma pessoa se distrai e
se perde. Perdemo-nos, a minha vizinha e eu. Pensávamos que seria por
pouco tempo. Se é que chegámos a pensar. Se alguém continua nos meus
braços e me impede de dormir ou de estar sozinho é ela. Eu não sou.
Imagine-se.
«Estraga-te», disse-me.
«Despacha-te», disse-me. Bebe. Fuma. Droga-te. Morre. Deixa-me viver
sem ti, ao menos uma vez na vida.
Está bem. Estamos apaixonados. E Verão. Somos novos. Estamos presos.
Pela boca. Pela cintura. Por incapacidade. Por amor. Estamos fartos.
A minha irmã diz:
«Estás a dar cabo de ti.» Mas eu sou um boi. Por muito que tente, não
consigo magoar-me. Bebo. Fumo. Drogo-me. Mas não consigo matar-me.
Sou lento.
«Dá-me uma oportunidade», diz ela. E eu gostaria de dar. Mas a vida tem
apego por mim. As estrelas devem velar, os anjos proteger, o corpo
contrariar, de maneira que não tenho mão em mim. Por muito que eu tente,
por muito que me entregue, não consigo lá chegar.
As pessoas andam atrás de mim e não me deixam. Eu queria ficar
sozinho e morrer em paz. Mas não tenho lugar. Gosto tanto delas que não
consigo afastar-me. As noites prolongam-se até serem elas que se vão
embora. E uma rapariga diz
«Fica comigo» e eu sei que faço asneira, mas fico, porque não sou capaz
de não ficar.
«Achava melhor que não nos víssemos durante uns tempos...», disse ela.
«Também acho», respondi.
«O que lá vai, lá vai...»
«Não é por nada...»
«Claro que não. Mas já basta.»
«Podemos vermo-nos de vez em quando...»
«Até ao lavar tios cestos é vindima. Lá isso é.»
«Ou achas má ideia?»
«Foi chão que já deu uvas, se calhar.»
«Pois é. Assim não vale a pena continuar.»
«Tu é que sabes, Margarida.»
«Não ficas chateado? Eu já não aguentava mais.»
«Bem me pareceu», disse ela antes de sair.
Eu não sou para aqui chamado, nem daqui expelido, porque não está cá
mais ninguém.
Eu.
Mais ninguém. Quer dizer, só fico eu. A interromper-me. Por não poder
continuar como sou sem me lembrar que nem sempre fui assim.
Já fui como os outros, quando eram o que já não são, ou que ainda não
são o que acabarão por ser.
Sou mais que uma testemunha inocente da minha vida, apanhada a fugir
do local desse crime e obrigada a depor e sujeitar-me ao julgamento dos
outros.
Também eu já fui autor. Actor. Fiz a minha vida. E entrei nela. Durante
uns tempos.
Já tive vontade. Já tive importância. Já vivi fora do mundo. Já aqui estive
sem ser à espera. Já fui eu quem aparecia, quem obrigava as coisas a
acontecer, quem me opunha, quem me convencia, quem lutava pelas coisas
em que acreditava, quem não descansava enquanto não tivesse o que queria.
Antes de ser uma pessoa, fui homem. E era ser homem o que na altura
me apetecia.
O meu amor existiu. Só o meu amor, por quem o tinha, pode dizer que já
o tive. Se já cá não está para o dizer, lá terei de ser eu. Existia. Eu que o
diga. Foi meu. Mesmo que ela nunca tenha sido minha. Não foi preciso. Ela
existia. Era tudo quanto eu precisava e queria.
A primeira a marchar foi a Joana. É verdade. Quem diria? Foi tudo muito
inesperado e bem-vindo.
«Sabes que não me lembro de ter ido contigo para a cama?», disse ela, no
meio duma discussão acerca de grafismos.
«Faz um esforço.»
«Juro-te. Nem sequer me lembro se foi bom.»
«Se fosse mau, lembravas-te.»
«Isso é verdade...»
«Podemos continuar?», perguntei.
«Claro. Acho muito má ideia juntar as fotografias todas no meio do
livro.»
«Eu lembro-me...»
«De quê? De que é que estás a falar?»
«De como nós éramos na cama.»
«Outra vez?»
«Tu é que puxaste a conversa. Agora já não consigo concentrar-me.»
«Diz lá, então. Era bom?»
«Tu sabes que era bom...»
«Pronto. Agora fiquei com vontade de ir para a cama contigo! Que
chatice! Já sabes como e que cu sou...»
« Como é que és, como?»
« Como se nunca te tivesse aproveitado...»
«Não me lembro, juro!»
«Bem, isto assim não dá. Tenho de te fazer esta pergunta... És capaz de
vir comigo para a cama, se fazes favor? Se não fores, diz. Não te
preocupes.»
«Deves estar a brincar comigo... adorava!»
«Então embora lá.»
«Assim sem mais nem menos?»
«Querias violinos, não?»
«Eu não. Tu é que podias querer...»
Não estou nada feliz. E recuso-me a ficar triste. Em que é que ficamos?
Pois é. Nisto.
Seja com quem for que se está. Por muito que se goste de estar com ela.
E, quando se está sozinho, ainda é melhor.
Ter alguém em quem pensar, durante a vida inteira, é o mais que se pode
esperar.
Alguém que se amou, ou se ama ainda, que se deixa amar. Por muito
longe ou perto que esteja.
Não pode deixar que se tenha a certeza que não nos ame ainda, ou que
tenha amado outros, tanto ou mais como nos amou, ou ama ainda. Não é
fácil.
Alguém que foi, ou poderia ter sido, ou poderia ser ainda nossa. Se.
Não nos pode deixar esse Se só a nós. Não é fácil para ela contribuir, e
continuar contribuindo, durante a vida inteira. Como se ela tivesse sido o
princípio e já não interessasse o como e o quando do fim.
Ter alguém em quem pensar, que nunca se vá embora, por muito que a
tentemos esquecer, que seja invulnerável à nossa vontade. Esta é uma sorte.
A maior que se pode esperar.
Eu esperei ter essa sorte. E nem foi preciso esperar muito. Foi há muito
tempo, muito tempo. Desde o dia em que nos despedimos, e nos anos todos
que se seguiram, constantemente, sem desgaste, sem transformação, eu
tenho tido essa sorte. A de ter alguém em quem pensar. E logo ela. Podia ter
sido outra. Não gostaria nada que fosse outra. Mas, mesmo se fosse outra,
era à mesma uma sorte que eu já mais poderia negar, durante a minha vida
inteira. Mas não foi outra. Foi ela. A rapariga dos olhos verdes. Que nem
verdes eram, mas que digo serem, para não a denunciar. A rapariga sem
nome. Com os olhos que nem sequer verdes eram, só para que se veja, a
gratidão que lhe guardo, se nem sequer falo dela, nem do que fizemos, nem
de como ela era, a não ser dos olhos, que nem sequer verdes eram, nem
podiam alguma vez ser.
Quem a viu e quem a vê. Como mais ninguém a poderia ver. Senão eu.
E os outros poderão amá-la, e serem amados por ela, e terem estado mais
tempo, ou estarem neste momento com ela. E outros poderão ter a mesma
sorte do que eu e poderem pensar nela, com a mesma ajuda que ela me deu,
mas mais ninguém no mundo, durante a vida inteira, pensará jamais nela
como eu.
Certamente.
«E o teu marido?»
«Nunca mais o vi.»
«É uma situação chata... ele gosta tanto de ti...»
«Quero que ele se lixe. Eu só gosto de ti. Ainda não percebeste, meu
tontinho?»
«Não — e chato para mim...»
«Não me digas que ele tem cá vindo! Eu proibi-o! Ouviste?»
«Não, não é isso...»
«Então não sejas mariquinhas. O que é que tens a ver com o meu
marido?»
Damo-nos cada vez pior na cama. Ela não fica feliz. Eu fico furioso. Ela
diz que é sinal de que já ultrapassámos «isso». Uma vez, num acesso de
coragem, disse-lhe:
«Isso, como tu lhe chamas, é só a coisa mais importante da minha vida!»
«Eu sei, eu sei... mas a culpa não é minha...»
Não. E minha. O tesão, segundo creio, é uma coisa que se dá. Antes de se
ter, é preciso haver alguém ou algo que a dê. E se há coisa que a Margarida
não me dá é isso. Eu bem lhe peço. Ela bem se esforça, coitadinha. Mas,
pronto, que se há-de fazer?, não dá. Ó minha. Ó chavalinha. Ó pá, desculpa
lá, mas não dá.
A atitude dela é aquela de quem diz, quando alguém lhe pede esmola:
«Já dei...» Como se o tesão fosse diferente da tuberculose. Cada vez é
mais. E é preciso contribuir regularmente. O que já se deu já se gastou. Já
não conta. Já foi.
Apetecia-me confrontá-la.
«Ouve lá, eu não te dou tesão?»
«Claro que dás... não estejas com paranóias...»
«Dou-te ou não te dou?»
«ó querido, qualquer homem me dá... mas eu só deixo que sejas tu a dar-
me...»
«E tu — dás tesão a qualquer homem?»
«Sei lá — acho que sim...»
«Então, explica-me lá uma coisa...»
«Diz, querido...»
«Porque é que não me dás também a mim?!»
Insisto na questão, dada a sua relativa novidade entre nós. Das raparigas
que conheci, algumas deram-me mais, outras menos, umas davam conforme
podiam, outras mesmo quando não queriam, mas nunca houve uma que não
me desse nenhum. Só a Margarida. E se fosse só não dar... Às vezes,
quando o consigo ter pelos meus próprios meios, tira-mo.
A Margarida não faz ideia que, quanto menos ela me der nessa área, mais
fica para as outras poderem dar. Ela e a Joana estão em perfeita inversão
proporcional. Chega a ser de mais. A Joana já começou a queixar-se. Por
muito que tente tirar-ma, só para aparar as pontas, dá-me sempre excessiva
e embaraçosamente. E o trabalho começa a ressentir-se, ainda por cima.
Começa a ser impossível trabalhar com ela. Cada vez mais tenho
consciência do desperdício criminoso que representa, em termos de talento,
rendimento, tempo e energia.
Quanto menos amor faço, mais grosseiro fico. Mas quem é que quer
armar-se em tino numa altura destas? Muito se fala do que não se faz! Do
que já se fez, do que se quer fazer, do que se quer voltar a fazer outra vez...
Mas alguma vez tinha de ser. Foi assim que dei comigo, certa noite,
numa suite cheia de plantas de borracha e de panfletos ilustrados, a desfazer
a cama com uma rapariga que tinha acabado de conhecer. Não posso dizer
que não tenha sido óptimo. Mas, quando já tínhamos feito tudo o que
tínhamos para fazer, desceu em mim unia tal depressão pós-Natal, de ter
desembrulhado todos os presentes e ficar apenas com a obrigação de
enfrentar o sem-fim dos meus parentes, que jurei para nunca mais. Até a
rapariga se comoveu. Começou a chorar, tal era a solidariedade. E a
perguntar, maníaca, repetidas vezes: «O que é que eu fiz?! O que é que eu
fiz?!» E assim sucessivamente. Limitei-me a responder que coisa boa, com
certeza, não tinha sido.
Mas uma pessoa habitua-se a tudo, excepto à mulher. Porque não foi a
coisa em que se tornou a Margarida. E de mulher foi fazendo a rápida
transição para esposa. E, sem ser tido nem achado, imobilizado pelo
clorofórmio dos Kleenex e Chiclets conjugais, fui forçado a fazer parte dum
casal. Devidamente amputado na véspera, para poder caber dentro dele. Isto
é, reduzido a metade.
Fiquei sem outra hipótese senão tentar ter, nesta fase adiantada da minha
existência, sem quaisquer preparações ou precedentes aos quais recorrer,
uma vida interior.
Foi fácil. Logo no primeiro dia, já estava habitável. A minha vida interior
atraiu-me desde o início. Era forçosamente mais interessante, mais rica,
mais compensadora e mais controlável do que a de fora. Numa palavra: era
barata, era alegre, era irresistível.
A Margarida, longe de a limitar, expandia-a. A vida interior vive-se mais
facilmente quando se está mal acompanhado do que quando se está bem
sozinho. Quem diria? Foi de ânimo leve, livre como um passarinho, que
regressei ao meu velho cemitério de raparigas.
O tempo nada tinha cobrado à beleza daquele imenso jardim. As duas
árvores tinham crescido. As campas estavam cheias. Brilhavam até durante
o dia. Caras novas, caras reaparecidas. .. e as antigas, em peso, como se não
me tivessem esquecido. Não dei pela falta de nenhuma. E registei, com
agrado, uma cova aberta, de terra fresca, certamente destinada à minha
quase falecida Margarida...
Pode não haver amor como o primeiro mas, felizmente, há muitos outros
como o trigésimo quinto. E nenhum mais apetecível que o seguinte ou mais
escusado que o anterior.
É bom que o diga. Faz-me bem dizê-lo. Não vá eu pensar que sempre o
disse. Porque houve uma altura em que não dizia que nem sempre tinha
sido assim, porque não me ocorria.
Foi a altura em que dizia «Deus queira que seja sempre assim, até ao fim
da minha vida.» E, mesmo assim, só uma vez por outra, tal o meu
envolvimento em tudo quanto vivia.
Um mundo só. Para mim. Ninguém com quem partilhar nada. Sem uma
mão estendida, sem um direito a ser reclamado, sem um pedido. Um mundo
à minha medida. Onde eu podia fazer o que quisesse. Feito à medida de
quem não quisesse nada. Mas preparado para o caso de vir a querer.
E fujo, indiferente ao facto de ele me deixar fugir. Quero mais. O que não
é meu. O mundo dos outros.
Chama-se Mónica. Vive numa casa grande onde tenho vivido estas
últimas semanas, escondido da Margarida, sem trabalhar, vestindo só roupa
nova, longe de tudo o que era meu nesta vida.
«Não tens casa?»
«Não tens trabalho?»
«Não tens amigos ou família?»
«Não tens ninguém para convidar?»
«Não tens vergonha de viver à minha custa?»
Como castigo, dei-me conta que ela estava muito mais aliviada do que
eu. Bastou-me sugerir que talvez não fosse má ideia jantarmos sozinhos,
cada um no seu restaurante, para ela dar um salto de trampolim e dizer:
«Ainda bem que falas nisso...»
«Ali sim?»
«Sim. Acho que de lacto há um limite para esta merda da coabitação.»
Depois de muitas noites se terem passado, depois de ele ter casado e de
ter tido filhos, voltou a telefonar a rapariga antiga de quem eu me tinha
esquecido.
Eu é que te amo — disse ela — eu é que sou a estúpida.
É provável que, em matéria de provas, o grande amor não passa disto.
Mas eu, pela parte que me toca, fico muito ofendido.
Ao ponto de aconselhá-la a dedicar-se à família.
Por ser tudo muito triste, não pude continuar.
Quem sou seu sem o meu amor? Pela única pessoa que amei nesta vida.
Mesmo que nunca me tenha amado. Mesmo que tenha sido a única, ou
uma das muitas, que me amou.
Sem ela, que teria sido do meu amor?
Eu não o tinha.
O meu amor não era ela. Era eu. O meu amor nem sequer é dela. Eu bem
lho dei. Mas não lhe podia dar o que era só meu.
O meu amor por ela, que só eu podia ter. Que foi feito para mim. Que me
fez perfeito para ele. Que só no meu coração tinha casa.
Não quero outro amor. Por maior que possa ser, não o quero por mais
ninguém. De resto, qualquer outra pessoa me serve.
Prefiro viver sem quem amei, e amo ainda, a viver sem o meu amor.
Ela foi o meu único amor, o meu bem, a prova viva que tive, uma vez,
um coração. A licença provisória para que possa continuar a bater.
Não vivo sem ele. O meu amor. Por ela, a quem tenho de chamar também
o meu amor, por não poder chamá-la minha amada, por não saber ao certo,
se a amo ainda. Nem amada por ter sido amada. Nem amada por ser ainda.
Ela não é como o meu amor. Mas é o meu amor ainda. Durante toda a
minha vida. Como não podia deixar de ser. Porque, mesmo que ela deixasse
de ser, eu não deixaria. E aqui, no meu amor, quem manda sou eu, não
havendo vontade dela de saber, quanto menos dirigir, seja o que for.
Nem podia ser doutra maneira. Se fosse ela a mandar, já não existiria.
Assim como ela foi o princípio, ninguém foi o meio e a mim coube-me ter o
fim.
Vem aos meus olhos a tua pessoa. Estás a descer as escadas. És tão nova.
O dia desce à nossa volta. Os navios entram e saem. Eu não te vejo. Estou
de costas a beber café. E tu abraças-me com a tua camisola branca, com o
teu coração sujo de tanto chorar e dizes
«Estás atrasado.» Foi a primeira vez que me viste e ralhaste comigo por
não ter aparecido em tua casa já previamente apaixonado. Já contei isto
muitas vezes, com mais mentira, menos mentira, mas não há maneira de me
fartar. No estado de amor puro talvez não haja saudade nem esperança, nem
verdade ou ilusão — só repetição, repetição, repetição, dos dias que o
passado é incapaz de aguentar e se vivem eternamente como um presente
sem futuro, nem interesse, nem fim.
Voltei para casa, não sem uma certa relutância, diga-se. Acordei no dia
seguinte com a Margarida a bater-me à porta.
«Tarde de mais, minha cara amiga», pensei enquanto me ia aproximando
da porta.
«Que alívio!», disse ela.
«Pensava que tinhas morrido!» Expliquei-lhe que era mais grave do que
isso. Que me tinha apaixonado. Por uma mulher formidável. Que me tinha
mostrado que não era nada fora deste mundo ser feliz. Que tinha casado
com ela. Que já não era o mesmo. Que já não queria outra coisa. Que estas
coisas aconteciam. Que não estava certo deixá-la entrar em minha casa
depois do que tinha acontecido. Que tinha a certeza que ela compreenderia.
Ela perguntou-me o que é que eu estava ali a fizer, sozinho, com aspecto
de desgraçado, naquela casa abandonada, se tudo aquilo que lhe tinha dito
era verdade. Pedi-lhe para baixar a voz, porque «ela» estava a dormir,
tínhamo-nos deitado tarde, sem fizer nada para impedi-la de imaginar que o
sono era consequência natural da exaustão que se segue a uma qualquer
imaginada, intensa orgia.
Ela entrou pela minha casa adentro e descobriu que não estava lá mulher
nenhuma quanto mais a minha. Zanguei-me. Disse que decerto se escondera
no armário. E porque é que ela faria uma coisa dessas? Por vergonha.
Vergonha! Então se estava casada comigo... Por medo. Por cobardia. Por
uma razão qualquer com a qual ela, Margarida, nada tinha a ver. Antes que
ela abrisse o armário, arrastei-a para a porta e, com grande dificuldade,
expeli-a.
«A mim não me enganas!», gritou. Como se eu não soubesse.
Obrigadinho.
E o que dá, casar depressa. Nem tive tempo para estar casado o tempo
suficiente para me separar. Um casamento tão curto, longe de afastar a
Margarida, é praticamente uma declaração de amor.
E que mal fiz eu para merecer este repúdio? Gostava da Mónica, cada
vez mais. E ainda gosto; cada vez menos é verdade. Teria preferido chegar
calmamente, com o meu próprio ritmo, ao ponto de não a poder ver mais à
frente. Ela antecipou-se. Claro. Também vinha com menos balanço. Não lhe
posso atribuir grandes responsabilidades.
Ela nunca me disse que gostava de mim. Fui eu, todo gabarolas, que
supus ser impossível ela não gostar, pelo menos um bocadinho, de mim.
Diga-se em abono da minha mulher a mim nunca me enganou. Eu é que
tentei enganá-la. Eu é que me deixei enganar.
Vou lá dar-lhe um abraço.
É melhor não. Não seria bem recebido. Nem interpretado. Nem sincero.
Nem merecido. Nem bem dado. Se eu não fosse tão sacana, dava-lhe mas
era um sopapo. Nunca bati numa mulher. Mas sempre me deram a entender
que uma coisa era bater «numa» mulher e outra «na» mulher. Dava-me jeito
poder dizer que, sim, que uma vez perdi a cabeça e, que Deus me perdoe,
sim, houve um dia em que dei uma chapada, sim, numa mulher. Seria mais
convincente do que o que costumo dizer: a verdade, que nunca bati numa
mulher. Ninguém acredita ou, quando acreditam, não querem saber.
Ainda posso tirar o bilhete de identidade. «Casado.» Estás a ver? Porque
é que persistes nessa tua tão deletéria ilusão?
«E que é dela? Adonde está?»
Este «adonde» é muito zombeiro.
«Queres ver a certidão de casamento? Está aqui. "Mónica Simpson de
Almeida". Está ou não está?»
É escusado. Não dá. E dizer que ela me tinha deixado, mas que eu
continuava a amá-la e tinha a esperança de um dia resolvermos as nossas
diferenças? Pior. Picava com pena de mim. Nunca mais me largava.
«Essa puta» seria o cimento que nunca mais nos deixaria separarmo-nos.
O inimigo comum: o mais forte incentivo de aliança que há.
Faço uma visita à Joana. Está com cara de chateada. Está casada. Ainda
tento convencê-la que isso não é razão, que eu também estou casado, mas
ela fecha-me a porta na cara, sem a menor compaixão ou curiosidade. Volto
para casa. Consigo penetrar o cordão de segurança com um fugaz
«Desculpa lá, Margarida, mas não dá...» Transfiro os sacos de plástico um a
um. Com êxito. Só a perda dalgumas asas a registar.
Ela telefona-me.
«Era só para te dizer que desisti. Fiz tudo o que podia fazer. Por saber
que me amavas. Até tentei convencer-me que também gostava de ti. Estou
farta. Nunca mais me peças nada. Não tenho culpa que tu não saibas o que
queres. A minha consciência está tranquila. Agora, meu querido, vais ter de
safar-te sozinho...»
É jogo. Mas será? O que é que eu preferia? Que não fosse. E não é.
Bonito serviço, porém. Se até a Margarida andou, este tempo todo, a
enganar-me. A mim, que tanto sofri por causa dela. Nunca pensei que ela
fosse capaz de não sofrer também um bocadinho. Por sua vez. Isto é, dela.
Mas essa é que é essa. Mais uma vez a sós. Eu e a triste verdade. Como
sempre quis, aliás.
Pelo sim, pelo não, telefono à Margarida. Para confirmar. Ela chora. Jura
que já não pode fazer mais nada por mim. Lamenta muito. A lata da bicha.
De qualquer forma, pronto, assunto arrumado. Do que eu preciso é dum
pouco mais de inteligência e de humildade. Para não falar num whisky,
porque disso, graças a Deus, nem se fala. É só desenroscar a tampa, encher
um copo e ir todo contente para a sala, ligar o televisor, para poder desligá-
lo e, antes de me sentar, ler um livro suficientemente bom para me
estupidificar mais depressa.
Os acontecimentos das últimas semanas passam-me pela cabeça, por
ordem. A começar pelos mais entediantes. Também são tão poucos.
Adormeço antes de chegar às partes boas.
Eu cá estou. É como vês. Lá vou andando. Que outra coisa podia fazer?
Já me conheces. Pois, tu é que dizes que nunca me conheceste. Esquecer-
me disso. Esquece. Vamos mas é ao que interessa. Só tu é que me
interessas. Tudo o que dizes e fazes é interessante. Não conheço mais
ninguém que seja assim.
Nunca vieste.
É melhor assim. Sem razão para me despedir de ti. Sem recordação de
como foi quando cá estiveste.
Entra, entra...
Nessa não vou eu. Dai a só estar disponível em situações de crise. Não
faço nada para as coisas acontecerem. Não saio. Não arrisco, Tenho sempre
o cuidado de manter o meu espírito bem fechado. Se, mesmo assim, as
coisas acontecem, pois bem, aceito-as de bom grado, mas livremente, isento
de qualquer tipo de responsabilidade.
Se nem na minha vida meto o nariz, como posso negar que outros, mais
esperançados e curiosos, metam-no em vez de mim? Força. Boa sorte. É o
que lhes desejo. Bom apetite e bom proveito.
Quanto mais nos afeiçoamos ávida, mais nos custará depois morrer.
Quando eu morrer, há-de ser um dia como qualquer outro, um
acontecimento com o mesmo valor que os anteriores, chato, sem nada de
excepcional. Não será na melhor altura, como tudo nesta vida. E só com
muito azar será na pior. Isso é que não. Mas qual é a probabilidade? Pouco
mais que zero.
Pela minha parte, tento separar a minha vida o menos possível da vida
em geral. Tanto podia ser eu como outro qualquer. Não há momento em que
não tenha isto presente. Se não for eu a defender-me, mais ninguém será
capaz de me atacar?
Tenho pensado muito ultimamente. Não sei o que se passa comigo. Bem
me coíbo mas, pronto, de vez em quando, lá me foge o pé para o chinelo e,
antes de me dar conta do que estou a fazer, já é tarde, já estraguei tudo, fico
triste, já estão os pensamentos registados.
Isto aqui é como no notário. Está previsto e enunciado claramente no
contrato. Nada de rasuras. Nada de voltar atrás. Aconteceu, aconteceu.
Paciência. É mesmo assim.
15.
Esteve cá. Dei-lhe tempo. Ela queria deitar-se, mas expliquei-lhe que era
mau investimento. Para ela. E, por pura coincidência, para mim. Deixei-a
sozinha na sala. Tomou banho. Tirou livros das prateleiras. Serviu-se de
medicamentos. Pôs discos a tocar. Familiarizou-se com a minha casa. Com
a rapidez que só é possível quando uma pessoa se sente mal. Saiu
arrependida, pensando que eu estava a dormir, eu que estava num estado de
alerta que se diria que estavam a bombardear Portugal. Sentado à beira da
cama, a interpretar os ruídos que ela fazia, pronto para entrar em acção.
Estava apaixonado. Livre dos perigos do amor. Tinha encontrado, mais
uma vez, uma rapariga que eu podia respeitar e desejar ao mesmo tempo.
Só entrava na sala quando ela tinha adormecido, acordando-a como se fosse
por acaso, pedindo desculpa, indo buscar livros e charutos, sem me deter ao
pé dela, para não me armar em protector, o que teria ficado mal.
Era muito mais nova que eu. A idade ideal. Dezanove anos. Por muito
que envelheçamos, não é justo que arrastemos connosco as raparigas.
Mesmo quando morrer, dezanove anos será sempre (para mim e para as
mulheres) a idade ideal. O facto de não os ter não me impede de dar o justo
valor a quem os tenha.
Nunca menti a esse respeito. As mulheres mais velhas que me diziam que
estavam velhas sempre contaram com a minha sinceridade. Eu dizia: «Tu
não estás velha» (a não ser que estivessem), «tu está é longe de ter a idade
ideal.» Sempre disse, custasse o que custasse. Era raro reagirem mal. As
mulheres sabem. É escusado tentar enganá-las, só para passarmos por
parvos e elas se consolarem com a ideia que nos tornámos inconscientes.
Fica claro que estamos a transigir. Se elas tivessem dezanove anos, seria
melhor. Mas, se não têm, a culpa não é delas — e quem somos nós (a não
ser com dezanove anos) para lhes dar confiança?
As raparigas com dezanove anos sabem que têm dezanove anos e gostam
de ter. Já começaram a envelhecer o suficiente para se darem conta que
ainda são novas. E, se estão connosco, sejamos francos, é um favor que nos
fazem. Ainda têm idade para o fazer.
Clara. Clara. São as duas únicas palavras que tenho para dizer.
Não me faço difícil. Não a acho difícil. Considerar mais do que isto e só
ficaria a perder. O prémio aqui não sou eu. Mas ela também não pode ser.
Assim como as amigas são um atalho, as mães são o longo caminho «por
dentro», entrando e saindo da segunda circular, para chegar a uma rapariga.
Mais tarde ou mais cedo, num raro lapso de intimidade, elas contam às
filhas, numa vã esperança de as prevenir. Elas oscilam entre achar nojento e
corajoso da nossa parte. Mas a oscilação, só por si, é eficiente.
No meio dos campos, que nem de longe foram feitos para essas coisas,
tal a impressão de espigas e plantas que deixaram nos nossos rabos, bastava
fotografá-los e tínhamos logotipo para uma loja de produtos naturais, e os
campos todos iguais, ainda por cima, por muito que caminhássemos,
sempre o mesmo desconforto, a mesma recepção inóspita, género estalagem
miserável mas chcia, com as libelinhas a zunir
«Mas que merda é que estão aqui a fazer?», e o vento frio, a fazer
questão de se fazer sentir, onde o calor era mais preciso, vá lá alguém saber
porquê, por alguma razão os pais ficam mais descansados quando estão em
casa, a ocupar os aposentos, não fossem os filhos insensíveis ao pastoral,
como costumam ser.
E a tua carucha mais querida ficava tão crua, parecias uma mulher que
estivesse a assassinar alguém, eu nem te conhecia, se não me tivessem dito,
e depois rosadinha, vai-à-fonte, se eu estivesse em paz. Era lá capaz de uma
coisa dessas, mas tu eras, graças a Deus, sucessivas vezes, todo-o-terreno
redondinho com mais buzinas que botões, que mau gosto, mas não posso
mentir, não consigo parar, nem dizer de outra maneira, deixa lá que vem aí
outra já a seguir...
Fica na tua que eu fico na minha, o que vem dar ao mesmo, porque só a
tua poderia ser minha. Como se não soubesses.
«Quem era?», perguntou a Clara, «não me digas que tens para aí uma ex-
mulher muito chata...»
Calei-me.
«Já foste casado?»
«Não, não tenho uma ex-mulher e não, não fui casado. Sou casado. Mas
ela não quer divorciar-se. E eu concordo.»
«Tu és um homem casado?»
«Não. Casei-me, mas pouco... não deu para ficar casado...»
«Já não gosto mais de ti.»
«Clara...»
«Vou-me embora. Vou contar tudo à minha mãe. Vais ver!»
A Mónica não se divorciava por que lhe dava jeito estar casada. Afastava
os pretendentes. E emocionava-os. Anda para aí a dizer que foi abandonada,
que nunca mais quer ver outro homem à frente. Os amantes sentem-se uns
felizardos, julgam que se estão a aproveitar dela. E daí serem pouco
exigentes.
Volta a Clara.
«Quanto tempo é que estiveste com ela?»
«Cinco semanas.»
«E há quanto tempo não a vês?»
«Há quase um ano.»
«Há quase um ano? Nós já andamos há mais de um ano!»
«Então há mais de um ano que não a vejo.»
«Antes de começares a andar comigo, há quanto tempo é que não a
vias?»
«Sei lá. Há meses. Eu só a vi quando casei com ela. E depois, nunca
mais.»
«Gostavas dela?»
«Porquê? Nunca gostaste de ninguém?»
«Então não!»
«Viste? Viste? Eu, ao menos, nunca gostei dela.»
«Então porque é que te casaste?»
«Porque era a única rapariga que não gostava de mim.»
«E tu não gostavas dela?»
«Não, claro. Era um luxo. Gostava pouco, mas ela detestava.»
«A ganância de quem quer amar!»
«Que mal é que tem? Eu também quero!»
«Quer dizer: mesmo que quisesses, não poderias casar comigo...»
«Eu não quero casar contigo!»
«Mas não podes.»
«Por enquanto, não.»
«Eu não casaria contigo, mesmo que pudesses.»
«Estás a ver?»
«E muito menos, se nem sequer podes!»
«Então pronto.»
«Irrita-me é não poder não querer casar contigo e tu não poderes.»
«É a vida.»
«Estúpido! Não percebes nada!»
«Tem paciência. Tenta explicar-me», respondi.
«Agora, só por causa das merdas, quero que tu cases comigo!»
«Não queres nada casar comigo...»
«Pois não. Casar contigo nunca! Quero é que sejas tu a casar comigo.»
«Se quiseres...»
«Não — tu é que tens de querer casar comigo. Para eu poder dizer que
não.»
«Ó Clara, tens tanto tempo...»
«Estás a ficar velho. Ou estás à espera que eu case contigo quando já
fores ainda mais velho?»
«Eu já sou demasiado velho...»
«Com vinte e oito anos? Não me faças rir. És praticamente um homem
novo!»
«Decide-te.»
«Não é a tua idade que me assusta. É o facto de estares casado. Não vês
que não és velho de mais para cisar? És é demasiado novo para já estares
casado!»
«Mas estou na idade ideal para me divorciar.»
«Isso é verdade. Divorcia-te antes que seja tarde.»
«Ela não quer. Não percebes? Duas pessoas podem casar-se sem querer.
Mas para divorciarem-se é preciso que queiram os dois.»
«Mentira. Há o divórcio litigioso.»
«Ainda leva mais tempo do que o outro.»
«Es um preguiçoso.»
«Tens razão. Amanha vou falar com um advogado.»
«Quanto tempo é que demora?»
«Sei lá. E a primeira vez...»
«Pois acho bem que saibas, porque enquanto não te divorciares não ando
mais contigo!»
«Já viste, Clara? Não achas foleiro andares com um homem divorciado?
E julgas que eu me sinto bem, como homem já divorciado, a andar com
uma rapariga da tua idade?»
«Não tenhas medo, que eu continuo a gostar de ti. Mas tens razão. I
divorciado ainda é pior que casado. Era o que tu merecias ...»
«Não quero ser um divorciado.»
«Não queres é divorciar-te!»
«Já que falas nisso, por acaso até queria!»
Tem calma. Eu vou salvar-te. Eu deixo-te casar comigo. Assim já podes
voltar a ser aquilo que, no fundo, mais gostas — ser um homem casado.»
«Preferes que eu seja um homem casado contigo? Não achas melhor estar
casado com alguém de quem não gosto? Eu gosto tanto de ti! Custa-me
casar contigo. Acho que não era capaz de te fazer uma coisa dessas.»
«Deixa-te de lerias. Divorcia-te, despacha-te e depois vem ter comigo.»
«Depois já não queres saber de mim...»
«Eu caso-me à mesma. Não foi assim que tu casaste? És mais do que eu,
não?!»
«Não te vás embora...»
«Se quiseres, eu trato do advogado.»
«Trata, trata...»
«Tens sorte. A minha mãe é advogada.»
«Mas ela não pode saber que eu sou casado!»
«Deixa lá, que eu só lhe conto quando o julgamento tiver acabado...»
E a lembrança começa.
Vai Deus estudar a estrela-mãe, numa voz maior, que não nos pertence.
O que as coisas dizem antes de se contarem, não se ouve. Mas ditas
ficam; de uma maneira que não é a nossa e que, por infortúnio, percebemos
sem querer.
Se, ao menos, fosse ao nosso lado que as coisas se passassem. Ter uma
vida que se visse, da qual se pudesse dizer que passou ao nosso lado, mas
que tivemos consciência disso seria muito bom. Ou, também ao menos,
vermo-nos livres desta estupidez, perder a sensação que talvez se tenha
perdido alguma coisa, que não se pode saber qual é isso seria um alívio
bem-vindo, que ninguém duvide. Nem que tossem outros a vivê-la, essa
vida, e a gente pudesse ver, se quisesse, bastando sair dos nossos buracos, e
mais nada. Até poderia ser caro, ou difícil. Eu pagaria, faria esforço, daria
graças a —
Um homem bondoso, um perigo, em que ninguém confia, no qual a única
vontade, insatisfazível, por falta de quem o ouça, é de mentira, aproxima-se
de mim, pequenino. Mas nunca o suficiente para apanhá-lo, ou dar mais de
um segundo por ele, tal é a distância, se assim se pode dizer, em que vivo,
sem saber de, ou entre, quê nesse asilo, num lugarejo, algures nos confins
de outros que nunca vi, olhando sem me dizerem que olham, ou para quê,
deixando-me como estava antes de olharem, por não poder dar por eles,
mas capaz de pensar no pior — que tudo isso já terá passado e é depois,
aqui, depois, onde estou, embevecido por estar aterrorizado ao menos isso.
Quem vai estudar a estrela-mãe?
Deus.
Como é que se pronuncia?
Numa voz maior.
Que podemos dizer acerca dela?
Que não nos pertence.
E depois?
Nada, não sei, é só isso.
E daí?
Entrou a Clara.
«Já lhe disseste?»
«Já...»
«Pediste-lhe?»
«Pedi...»
«E ela?»
«Reagiu como era de esperar que reagisse.»
«Coitadinho!»
«Eu compreendo...»
«Deixa estar. É só uma questão de tempo. Vais ver como ela se habitua.»
Por acaso ia dizer a Clara. Mas enquanto fazia que não com a cabeça,
ocorreu-me uma substifuição brilhante.
«Não, não é a Clara. É a minha mãe.» Ela teve de encaixar. Nem sei se
comovida.
«E que eu também sou filho...», disse eu. Que importava que a minha
mãe tivesse há muito morrido?
«Se fosse pai é que percebia.»
«E hei-de ser. Um dia.»
«Desde que não seja através da Clara...»
«Através!» Mas o que é que as mulheres querem?
A Clara voltou na altura certa. Estava muito bem vestida. Muito menos
gira.
«Olha a minha filha!», disse a mãe, com todo o seu sentido de humor a
vir ao de cima.
«Pareço uma perua, mãe!»
E parecia.
«Mãe — quanto tempo é que achas que vai levar o nosso casamento?»
«Depois falamos disso.»
Como quem diz «Depois de o teu futuro marido se ter ido embora.»
Como quem diz: com um rapaz da tua idade. O que seria impossível.
«Ele agora é um homem livre, Mãe...»
«Não, não é. É um divorciado. Um recém-divorciado.»
«Novinho em folha », disse eu.
«Ah sim? Fique sabendo que a Lei esta precavida contra as pessoas como
ele. Que confiança merece à justiça um homem casado acabado de se
divorciar?»
«Alguma, com certeza», respondi.
«Pouca. Muito pouca. E por isso que é ilegal — ilegal ouviu? — o senhor
casar-se imediatamente outra vez. Com o cadastro que já tem...».
«Quanto tempo é que é preciso esperar?», perguntou a Clara.
«Infelizmente é pouco. Nesse aspecto, a Lei colabora acintosamente com
a degradação moral que se instalou neste país...»
«Ai ainda bem...», disse a Clara.
«Para mais, a degradação moral de que a senhora fala deve-se mais às
pessoas que vivem à margem da instituição matrimonial...», disse eu, numa
tónica fascista que considero inaceitável e repugnante, vindo-me à cabeça a
imagem indesejada de uma multidão de mães solteiras, grandes amores
clandestinos, e homens e mulheres de impugnável decência, como eu e as
raparigas que conheci.
«Antes a honestidade que a hipocrisia», disse a mãe.
«Nisso estamos todos de acordo.»
«Fala por ti», disse a Clara.
«Pois», disse a mãe, «fale por si!»
Já chegava. Há um limite para o enxovalho, mesmo para mim.
«Clara — a tua mãe acha bem que passes uma semana comigo...»
«Só uma semana?»
«Em minha casa...»
«Eu, sozinha contigo, em tua casa? Deves estar mas é maluco! Ainda não
estou casada contigo, que eu saiba...»
A mãe olhou para ela. Lembrou-se da vida que a Clara vinha levando. E
encheu-se de coragem.
«Clara, é só uma semana... Não é como se ficasses comprometida... Faz
lá isso por mim, para eu ficar mais descansada. ..»
«Agora estás do lado dele?! Grande mãe que me saíste!», gritou a Clara,
subitamente filha.
Saiu da sala. A mãe adorou.
«Sai à mãe...», comentou.
«E à noite...», acrescentei.
«Duvido. Dantes tinha as minhas dúvidas, para ser sincera. Agora estou
convencida que lhe fez muito bem a conversa que teve consigo. E, se não se
importa...»
Fui despedir-me da Clara. Piscou-me o olho.
«Como é que conseguiste convencê-la?»
«Achas que convenci?»
«Já viste? Uma semana inteira! Só nós os dois!»
Agarrou-se a mim.
«Mas...»
«A minha mãe é que não pode saber de nada, ouviste?»
«Como é que vais fazer?»
«Como tenho feito até aqui. Nos últimos tempos devo ter cá dormido
umas quatro vezes, se calhar nem isso...»
«Ó Clara...»
«Estou tão feliz!»
«O que é que a tua mãe vai ficar a pensar de mim?»
«Nada. Já te disse. Não vai saber que estou contigo.»
A Clara faz-me lembrar a rapariga que eu amei mas só por ser rapariga.
Não a posso trair. Tenho de descobrir todas as diferenças, até não restar
semelhança nenhuma. A Clara que se lixe.
O que sinto pela Clara faz-me lembrar o meu amor. O estado a que eu
cheguei, Santo Deus. Cada coisa no seu lugar. Quanto mais simpatia ganhar
pela Clara, maior é o risco de perder o meu amor.
Finalmente tinha-me acontecido uma coisa que não poderia ser melhor
do que se eu próprio a tivesse feito acontecer. A minha política de não-
ingerência nos meus assuntos internos revelava-se sábia e frutífera na cena
internacional, depois de tantos anos de escárnio e de ostracismo.
Passámos a lua-de-mel mortos por feder tanto e para voltar para casa. O
quarto de hotel cada vez se aproximava mais desse objectivo. Era a nossa
«casinha». As empregadas desistiram de tentar arrumá-la ao fim de quatro
dias. Saímos só uma vez, para comprar azeitonas, alcaparras, todos os
condimentos e molhos do mercado, para dar outra graça aos pratos que a
ementa do room service oferecia. Dos quais nos fartámos depressa, ao
ponto de escolher ao calhas. Qual deles mais incapaz de nos enganar. Nem
mesmo o caril de lagostins, autêntica bomba lacrimogénea, tão má e
indigesta que conseguiu interromper a nossa ocupação.
«Só não gosto de estar sem ti... tenho medo que penses que me estou a
divertir mais do que me divirto... não é nenhuma coisa do outro mundo,
ouviste?... nem de longe me divirto tanto como quando estou contigo...»,
disse ela.
«Eu não penso em nada», disse.
«E... tenho medo que penses em nós as duas, sabes?, nuas e tudo isso, e
fiques cheio de tesão... quer dizer, mais do que ficarias se visses o que, na
realidade, se passa ali... não gosto da ideia de tu estares a imaginar uma
amiga minha nua! De certeza que a imaginas muito melhor do que é... Era
injusto... Favorecias...»
«Eu não vou imaginar nada.»
«Podes estar a ser sincero, mas eu não acredito... uma coisa é nós
estarmos a falar, outra é eu estar na cama com outra rapariga e tu, na sala,
armado em cool, mas, mal te chega alguma coisa aos ouvidos, ficas de
língua de fora, feito porco, a arfar!»
Bate-me.
«Isto e um falso problema, Clara. Não achas que devias guardar esses
pensamentos para ti? Ou queres que eu também fique a pensar nisso?»
Uma coisa é certa: não imaginou o quanto me tinha custado ficar assim.
As imagens de podridão e de massacres a que tive de recorrer enquanto ela
falava, a abstracção taoísta que atingi, a traição hormonal que tive de
cometer, a dor aguda, do asfixiamento dos corpos cavernosos da estrutura
peniana, entalada entre as minhas pernas, que suportei... Foi fácil. Um
sacrifício feito a pensar no futuro, enfim.
Fufurrinha.
E daí? Sim e daí? Não sou o único homem feliz do mundo. Se há coisa
que não falta para ai são pessoas felizes. Basta abrir a janela. Ou ver
televisão. E que ganham elas com isso? A felicidade e nada mais.
A Clara acha que dá ponta pensar que me vai perder no dia seguinte. Que
cada momento tem de ser saboreado como se fosse o último. Por minha
saúde. É isto que ela diz. Muitas repercussões teve no mundo o
«Besame Mucho» quando atingiremos finalmente o limite? Eu bem lhe
pergunto:
«Ó Clara, mas não te cansa viver o último dia, dia após dia, sempre o
mesmo, sempre o último, nunca um avulso, do meio ou do princípio ou do
fim?»
E ela bem me responde:
«Não, não me cansa. Cansa-me tu. Anda lá. Não fazes mais do que o teu
dever.»
«Clara....»
«Diz-me lá, então, qual foi o teu primeiro amor!»
Em caso de histeria, sê firme. Se o meu pai não me tivesse ensinado isto,
desde miúdo, apesar de ter desistido muito cedo de me educar, bem lhe
poderia ter dito. Que era ela, se calhar.
«Não julgues que tens o direito de me interrogar», murmurei.
«Não. Mas tenho o direito de sair porta fora e nunca mais cá voltar.»
«Isso é chantagem barata.»
«Barata? Não te admito!»
«Eu não tive um primeiro amor», repeti.
«Mentira. Eu tive. Toda a gente teve.»
«Então porquê tanto sobressalto, tanta animação, tanta rigidez na
postura?»
«Porque me enganaste.»
«Alguma vez te disse que eras a única rapariga de que tinha gostado?»
«Uma vez não. Milhares. Aliás, não me dizias outra coisa.
Começava-me a chatear.»
«Então, estás a ver. É por ser verdade.»
« Ioda a gente tem um primeiro amor!»
«Que façam bom proveito. Eu não tive. O que é que queres? Fui
roubado.»
«Mentiroso.»
«Pronto, está bem, "amor" em que sentido?»
«Cabrão! Eu pensava que eras diferente! Se eu soubesse que não eras...
cu sei lá!»
«Fazia-te muita diferença eu não ser diferente?»
«Se queres que te diga, era a tua principal qualidade. Querida.
Enternecedora. Como se não soubesses! Muito querida. E rara num homem
da tua idade!»
«Poupa-me, Clara...»
«Não prometo nada.»
«Não percebo...»
«Vá lá. Despacha-te. Desembucha. Se és homem. Quero saber tudo. Sou
tua mulher, Tenho o direito de saber em que caçarola de hortaliça é que eu
caí!»
«Eu alguma vez te fiz perguntas acerca do teu passado?»
«O problema é teu. Vá.»
«Está bem. Pronto. Eu invento-te um amor qualquer...»
«Inventa, inventa — faz lá isso por mim.»
«Bem... a única mulher de que gostei, antes de ti, mas sem amar, porque
o amor não era para ali chamado...»
«Foi aquela puta do casamento: a Margarida Fernandes da Silva, Júnior!»
«Estás a ver como te enganaste? É que..»
«Chega. Já não precisas de dizer mais. Já sei o que queria saber.»
«Foi uma Joana, Clara, uma Joana. Não uma Margarida. Não, Clara.
Uma Joana...»
«Cada vez te enterras mais...»
«Já não digo mais nada. Se pensas que já sabes tudo, quem sou cu para te
estragar a festa?»
«Estás a referir-te àquela pirosa de saia grená?»
«Não sei de quem estás a falar...»
«Eu não acredito! A Maria Joana Carvalho Rodrigues! Que horror!»
Se não eram verdes os olhos dela, quem é que descobria? Quem é que
queria saber? Quem é que ganhava com isso?
Vem, vem-te embora, meu amor.
Deixa falar os crescidos.
Já nos aturaram. Já os aturámos.
Precisam de falar de coisas importantes.
E nós também.
A fingir.
Despacha-te lá.
Para já, o mais importante era a reacção da Clara. Tanto numa área como
noutra. Dalguma forma, dentro da cabeça dela, obrigatoriamente
relacionadas. A atitude geral dela, apesar dos vários contratempos e
choques que não foi possível evitar, era a seguinte:
«Quanto mais sei de ti, mais me convenço que nunca hei-de deixar de te
amar.»
«Não deve haver muitas raparigas da minha idade que conheçam tão bem
como eu o homem com que casaram», dizia.
«Que conheçam os homens com que casaram tão bem como cu conheço
aquele com que me casei... não... que conheçam os maridos delas tão bem
como eu conheço o meu...», respondia cu.
Não lhe podia dizer que não era cu que ela conhecia. Eu era, apenas, o
homem que ela queria e julgava conhecer. Não. É mais complicado. Mas
que se lixe.
Se a vida nos ensina qualquer coisa, ficaria muito admirado. Mas, no que
nos diz respeito, sejamos nós ou os outros, a complicação é tanta em tudo o
que seja conhecimento que mais vale achar que sim.
Traí-a.
Ando perdido.
Vou perdê-la.
Vou morrer.
Matei-a.
Para ela. É fácil para ela. Assim também eu. Mas de que me adianta o
perdão dela?
Disfarcei. Falei dela com afecto, como se fala de quem se namorou por
engano.
«Gostaste muito dela?»
«Sabes que acho que sim?»
Foi o que eu respondi.
Mas não sei disfarçar. Sei mentir. Sei esconder. Mas não sei falar.
Catarina.
Fugiu do verde dos olhos. Fui eu que deixei. Partilhei-te. Emprestei-te.
Não fazes ideia do que eu fiz.
Como te vou segurar agora, que os meus braços perderam a honra, que a
minha alma ficou aberta como vou eu guardar-te?
Agora quando eu mais preciso de ti.
E sempre assim.
É tarde de mais.
E agora vai sempre assim.
A Clara acredita no que lhe digo. É estranho. Acredita mesmo que tive
outras namoradas antes dela. Que amei e fui amado. Não gosto nada. Há
raparigas no meu cemitério que nem sequer conheci. Tento falar e pensar,
mas não consigo. Escrever é a única maneira de não mentir nem dizer a
verdade. Aparecem as palavras e as palavras fazem sempre acontecer
alguma coisa que doutro modo não aconteceria — e mesmo assim não tem
importância. Que mais se pode pedir?
A mãe dela fazia tudo para entrar em nossa casa. Arranjava desculpas
cada vez mais desabridas. A Clara, honra lhe seja feita, só não a mandava
embora quando não podia.
«Não tenho luz em casa...», dizia a mãe.
«Ó mãe — é geral!»
«Mas vocês têm luz...»
«Já telefonámos para a companhia...»
Fui desligar o quadro.
«Estás a ver? E um andar de cada vez...»
«Não têm luz? Vão Ficar assim às escuras?»
«Iamo-nos deitar...»
«Não querem vir lá acima comigo? Pode ser que já tenha voltado na
minha...»
«Se não tiver, diz qualquer coisa...»
«Ó filha! Tu és mesmo...»
E lá se ia embora a velha, furibunda.
Momento.
Toda a noite.
E durante o que ainda restava da minha vida.
Todos os dias.
Só eu a ouvia.
A chuva.
Em vez da Catarina.
A mim.
O nosso filho, como ela chamava ao livro, deixaria de ser único. E nós,
por algum motivo nunca esclarecido, passaríamos a ser «especiais»...
Nem sempre foi assim. Não foi por acaso que fiquei com um cemitério
de raparigas só para mim.
Alguém teve de me dar o terreno, abrir a primeira cova e deitar-se dentro
dela, para eu poder lá ir.
Terá sido esta a rapariga que me mostrou que, a partir dela, as coisas só
podiam piorar? E que era natural que assim tosse? Melhor não poderiam
ser. Assunto despachado. Gosto de acreditar que não.
Tanto mais que assim aconteceu. Até hoje. E tudo isto só por não terem
sido sempre assim.
Como é que a Clara consegue viver com um homem como eu, que tão
facilmente consegue viver com ela, depois de tudo o que fez?
E se ela descobriu que o efeito mais indesmentível destes acontecimentos
foi ressuscitar em mim, com um carinho a toda à força avante, a Margarida,
a Joana, a Patrícia e a Catarina? (A Mónica, felizmente, não se salvou).
Eu, que pensava ter ultrapassado para sempre essa minha fixação doentia
pelas pessoas e coisas que deixaram de ser minhas e que não têm solução...
Podia ter-me passado pela cabeça matar a Clara. Seria uma forma de
participação, um sinal de humanidade. Mas não. Impensável matar. Nem
sequer o nosso futuro filho me ocorreu.
Devo confessar.
E sabes, Catarina?
Lembras-te de quando te traí? De quando já não tinha esperança? Quando
perdi toda a tua força em mim?
Voltei. E esperei. E voltaste.
Consegui.
Está tudo como estava. Intacto. Tu. As duas árvores. O mundo inteiro
preso a ti. Ninguém entrou. Ninguém mexeu em nada. Ficou tudo para
mim.
Esquece.
Descansa.
Eu não te esqueço.
Eu amo-te.
Mais ainda.
Agora que és um bocadinho minha, mais uma vez. Nunca pensei que te
pudesse amar mais do que amava. Mas amo-te.
No caso de me estares a ouvir.
Era quem mais falta fazia no cemitério de raparigas, que entretanto tinha
voltado a frequentar, sem vontade, sem a mais passageira alegria, tal era a
desolação que se criara naquele sítio, por força das saudades verdadeiras
que eu sentia. Se ao menos ela existisse...
Pela primeira vez na vida se era ou não, tanto faz, o que interessa é que
era como a primeira vez que o meu coração a tratava senti-me sozinho.
Sozinho com. Sozinho sem Sozinho porque. Sozinho só. Todas as
variedades possíveis de sozinho. Sem alternância. Em acumulação.
A Clara perdeu a graça e o sentido. Desistiu de mandar na minha vida.
Pedia-me que passasse a ser eu a mandar nela — nela, como quem diz: na
minha vida. Como se eu tivesse alguma experiência. Eu bem tentava, mas
sempre em vão. Se calhar não eram sinceras as tentativas que fiz. A verdade
é que, como de costume, não só não fazia a mínima ideia do que queria,
como não me entrava na cabeça que coisa era essa, de querer.
Eu voltei ao que era. A Clara não. Amava-me, claro, mas agora já amava
como se não tivesse mais nada para fazer. Se calhar, apaixonou-se mesmo.
Mas nunca chegou a esse ponto. Ela podia sofrer muito. Mas a culpa,
coitada, seria sempre minha.
Nem anestesia quis, quando nasceu o nosso filho. Mal chegámos com o
bebe a casa, foi coerente, declarando que nem sequer o podia ver. Não que
não quisesse. Mas não conseguia.
Nem sequer pai pude ser. Fui despromovido a mãe. Até simpatizava com
o gorducho. Naquela casa sombria, com a Clara deitada e a avó catatónica,
num claro contexto de ausência de ascendentes femininos, o redondinho era
o único elemento da equipa que se mexia. Passei rapidamente do «A tua
mãe já vem...» para «A tua mãe já foi...». E daí para «O pai já contratou
uma ama...» E, enquanto ela não vinha, dediquei-me àquela criança como
se fosse minha.
A minha Clara.
Não me constrangia o facto de ser agora efectivamente minha. Era coisa
passageira. Não me custava nada esperar que passasse. Eu até compreendia.
Quando a Clara descobriu que ser mãe é uma técnica e que tudo o mais
era valor acrescido, passou a desempenhar tão friamente as suas funções
que depressa atingiu um nível elevado de excelência e uma taxa de
ocupação baixíssima, deixando-lhe tempo e vagar suficientes para outros
passatempos — inclusivamente afeiçoar-se ao próprio filho.
O miúdo passou a fazer parte da mobília, tão ou mais integrado que a
avó. E a Clara, quanto maior fosse o perigo duma intervenção vinda do
interior da casa, mais se divertia a fechar portas, a dizer baixinho as maiores
barbaridades, culpando a mãe e o filho de serem afrodisíacos.
Nem sequer houve fogo manso, que arde sozinho, sem nada queimar.
Lume cego, que não vê que não dá luz que se possa ver.
E cheiro de cinzas.
E nem assim consegui (ou quis) impedir de acabar o que nunca tinha
começado o amor. À falta de outra palavra.
Naquela altura, já nada nos podia separar. Nem sequer a falta de amor. Eu
já não podia amá-la. Ela já podia não me amar. O caminho estava
novamente livre para gostarmos mais um do outro do que da própria vida o
que não é muito, mas mais não se pode pedir. Com franqueza.
A Clara fez vinte anos e nem dei pela diferença. Só para ver como
paravam as modas, comprámos um bolo.
Nem sempre foi assim. Não é como vos digo. Nem sempre foi como vos
digo. Pelo menos é isto que não me canso de me repetir, quando sei que
mais ninguém me pode ouvir.
Não consigo convencer-me, o que não é razão para não acreditarem em
mim. Se calhar, sei o que digo. De resto, não sei nada acerca de mais nada,
seja acerca de outros ou de mim.
Alguém organiza a vida? Alguém a mantém? Se as vidas fossem barcos...
Mesmo assim, não me convenceriam. E, quanto ao mar, foi para os tolos
que se fez. Que façam dele bom proveito.
Quando a Catarina era viva, se dalguma forma se pode falar assim, posso
dizer que também eu vivia.
Era tanta a Catarina que dava para todas as outras raparigas que conheci.
Nenhuma houve em que se não notasse a mão dela. Por alguma razão as
amei. Como tim arqueólogo se dá por satisfeito com uns fragmentos do que
já foi uma cidade inteira. Uns fragmentos que são mais do que esperava
encontrar. A partir dos quais imagina o resto. A maior parte. A mais
importante. Aquela de que mais se duvida.
Levei anos a convencer-me disto: o que eu era, foi ela que 1no deu. Não
podia levar o que não era meu. O que foi meu foi só para ela. O que me
faltava ficou com ela. Guardo segredo disso. Foi a minha única grande
invenção. Só eu sei a falta que essa pessoa que eu era me faz.
Atirei-me ao que havia. Nem foi preciso mexer-me. As coisas viriam ter
comigo. Era só uma questão de estar lá para as receber.
Cuidado comigo.
As coisas não duram para sempre. E as pessoas muito menos. E eu menos
ainda. Tudo o que não puder impedir de acontecer, acontecerá.
Isto continua.
Não há sítio de onde não se tire uma lição qualquer, por ser da natureza
dos acontecimentos que se dão neles, excepto daqui. Tanto foi o medo de
ser fodido que, algures no percurso da minha vida, as pessoas desistiram de
me querer foder e eu, sem dar por isso, fui andando, cabisbaixo, seguro e
sozinho, impreparado para o único desfecho possível: não havendo quem
me pudesse foder, não havia mais ninguém que o pudesse fazer. Só eu. E
pronto. Fodi-me.
Nunca pensei que pudesse fazer tal coisa a mim próprio. Mas fiz. Bastou
distrair-me e truca. Estava feito. O meu estranho fascínio pelos caracóis
deveria ter-me avisado. Estudei-os muito. Mas nada aprendi. E agora já é
tarde ao menos isso, ser qualquer coisa, mesmo que seja apenas tarde.
A partir daqui eu próprio me desinteresso pelo que possa não vir,
repetidamente, a acontecer-me.
Em minha defesa devo dizer que, não obstante os meus esforços no
sentido de registar os nadas e os vazios da minha vida, numa série de
variações egoístas da trase
«Não se passa nada», sempre desconfiei que existissem coisas tão pouco
coisas, a não ser na capacidade própria do que é invisível, de se esconderem
de mim, que nem sequer se pudessem contar.
Mesmo assim foi um choque. Essas coisas, afinal, existem. Por muito que
tivesse desconfiado, confesso que sempre pensei que era só eu.
Se por «minha vida» se entender, por crueldade ou amor aos chamados
factos, o que me aconteceu, fora de mim, sem pensamento da minha parte, é
óbvio que nunca vivi de verdade, nem tive amigos, nem tive namoradas,
nem tive nada que não fosse só meu, e muito menos alguém que me
quisesse.
A não ser a Clara. Talvez ela tenha gostado de mim. Não só existiu, como
existiu ao lado de mim. Mas não é por isso que lhe dou mais valor.
Obrigou-me a mentir, ou seja, dizer em voz alta as mentiras que eram as
minhas, e, por nunca terem sido ditas, eram um bocadinho verdadeiras para
mim. Pô-las cá fora, em palavras que se pudessem ouvir e às quais era
possível responder, era matá-las. Na minha inocência, dei-as mas dei-as a
quem não as queria. E assim perdi-as para sempre.
Não conheci ninguém. Mas diverti-me. Aprendi que há coisas que se
podem fazer sozinho. E mais: são bastantes para ocupar dignamente uma
vida.
Amei mas só eu sei, soube pelo menos uma vez, como e quem. O amor é
uma definição como qualquer outra deve haver mais amores do que
corações. Para mim a vida é vulgar de mais para se misturar com o amor
torna vulgar o amor, e a vida, à custa dele, engrandece estupidamente.
Quantas pessoas amam outras só para se despacharem do que têm de mais
bonito e doloroso e poderem voltar, descansadas e desiludidas, à vidinha
delas, cheias de si próprias, e egoístas, dizendo
«Como é que cu fui naquela conversa?... Eu tenho é de pensar em mim!»
Nesses termos nunca amei, nunca fui amado mas ao menos a Clara,
durante uns dias, pensou que sim. Agora sabe a dita verdade, pela qual tanto
ansiou — e é bem feito. Um dia deixar-me-á, sem razão nenhuma. Espero
bem que sim. Daqui a uns oito ou nove anos, talvez. Ela já não acredita em
nada do que digo — por muito pouco que seja — e mais nada há que eu
possa contar. Em princípio, é prometedor.
Uma coisa é certa: mal me cheire que a partida dela esteja para breve,
vou roubar o pequenucho e levá-lo para muito longe, e deixá-lo fazer tudo o
que quiser e dizer-lhe que eu sou só dele e, enquanto ele estiver a dormir,
guardá-lo e pensar para mim que também ele, noutra vida que não esta, é só
meu.
A única certeza que tenho chega-me para continuar: a certeza que uma
única coisa jamais me há-de acontecer. É a coisa que guardo, a coisa que
me mantém. Por muito que seja, e cada vez mais, o tempo a que tenha
acontecido.
Ao que se viveu uma só vez nunca se volta. Nem que seja por uma
questão de respeito ou de sobrevivência própria.
Como é que uma coisa tão bonita pode ser tão útil? Não é pergunta que
se faça. Basta olhar à nossa volta. Que coisa tem uma a ver com a outra? Se
há céu, sempre que sinto escurecer dentro de mim, porque não hei-de olhar
para ele? Ou lavar-me na água linda. Ou partir a perfeição dos ovos. Ou
usar a poesia que outros escreveram como arte marcial.
Agora as coisas acontecem-me mesmo e eu já não sou capaz de resistir.
Nada mais tenho para contar. A ninguém. Nem a mim. Sinto falta, mas não
muita. Talvez um dia, estando eu novamente sozinho, depois de o meu filho
ter crescido e ido embora, a falta se torne tão grande que eu consiga voltar a
pensar, à verdade da minha alma, e a ti, sejas lá quem tu fores. Nem é
preciso esperares. Pode levar muito tempo e, de qualquer maneira, como
sempre foi, não há ninguém, senão eu, que saiba e possa esperar por mim.
Tu não me lixes...
Nunca mais me apareças à frente.