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OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE
NATAL – RN
2022
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OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE
NATAL – RN
2022
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 1
2
SUMÁRIO
Introdução..................................................………….………….........................….....06
I. Por uma desnaturalização do desejo………………………………......………...06
II. Algo insiste na vida anímica………………………………………………......…..17
III. O impulso lúdico………………………………………………………...................21
IV. Metodologia.....................................................................................................24
Primeiro capítulo: O projeto..............................................................………............29
1. Foucault e a Psicanálise………………………...………………………...……….29
2. As práticas e técnicas de si ou os exercícios espirituais......……....…………..46
3. As formas do ato filosófico......................…….…………...................................52
4. Situação do jogo......................…….…………......................…….………….....66
5. Contradição e mudança de estratégia......................…….………….................76
Segundo capítulo: Os jogos............................………………................……............79
1. O mundo dos jogos…………………………......................................................80
2. O jogo do capitalista………………………………..............................................82
3. As designações em jogo……………………………...…………………………....86
4. O lugar do jogo...................................…………..............…………...................90
5. Jogo e filosofia.................................................................................................97
6. Algumas noções de jogo……………………………………..............................104
7. Jogo no pensamento matemático…………………………......…………..........139
8. Noções de jogo em Foucault……………………………………………………..143
Terceiro capítulo: O jogo de Foucault……....…....................................................147
1. Um convite à filosofia......................................................……………........…..147
2. A fabricação do cenário do jogo..................................................….….….......172
3. O padre e o psicanalista..............................................................……….…....178
4. Uma maneira de jogar…………………………………….…………………...….188
5. Outro jogador, outras referências, outra narrativa..........................................192
Quarto capítulo: Uma ética da verdade.......................................…………............194
1. De um sonho sobre jogar com a realidade………………………………………194
2. A escolha pela vida filosófica……………...…...........................………….......197
3. A parrésia e a constituição ética do sujeito………………………………..........208
4. A parrésia e o jogo parresiástico..................…................……………………..213
5. A parrésia, a profecia, a sabedoria e o saber técnico......................................218
6. Acerca das relações entre sujeito e verdade.....................…………………....222
Considerações finais: Os jogos e a questão da salvação.........…………………228
Referências............................................................................……………...............234
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RESUMO
OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE
O interesse de Michel Foucault pela psicanálise, embora nem sempre explícito, foi
profundo e duradouro. Profundo demais, talvez, para fazer dele um simples partidário,
e duradouro o suficiente para, paulatinamente, nele engendrar diferentes perspectivas
em relação a ela. A última obra de Foucault — História da sexualidade (1976, 1984a,
1984b, 2018) —, ao fornecer subsídios filosóficos para uma crítica a conceitos
fundadores da psicanálise, assume uma perspectiva mais crítica do que as dos
trabalhos anteriores. No primeiro livro — A vontade de saber (1976) —, cuja
originalidade está em parte na possibilidade de encará-lo como um “convite à filosofia”
ou como um “jogo filosófico”, a crítica aos pressupostos psicanalíticos é explícita. Nos
livros seguintes o autor trata do surgimento do tema da “verdade do desejo” para as
discursividades e práticas ocidentais. Uma vez que o advento da psicanálise como
dispositivo de constituição ética do sujeito sustenta-se na noção moderna de “desejo”,
a prática da confissão psicanalítica persegue a questão da “verdade do desejo”.
Entretanto, ao abordar a problemática do “dizer-verdadeiro” — nos seus últimos
cursos, A hermenêutica do sujeito (1982), O governo de si e dos outros (1983) e A
coragem da verdade (1984) — e situá-lo no mesmo âmbito da constituição ética,
Foucault passa da “crítica à verdade do desejo” à “apreciação da coragem da verdade”
como constitutiva de um éthos. É a “coragem da verdade” em termos de “parrésia”
que sustenta o “jogo parresiástico” enquanto dispositivo de constituição ética do
sujeito. O “jogo parresiástico”, por manter uma relação constitutiva com a verdade,
exerceria uma influência decisiva na formação ética do sujeito que opta pelo modo de
vida filosófico ou intelectual.
4
ABSTRACT
FOUCAULT'S GAMES:
FROM THE TRUTH OF DESIRE TO THE COURAGE OF TRUTH
Michel Foucault's interest in psychoanalysis, although not always explicit, was deep
and enduring. Too deep, perhaps, to make him a simple partisan, and enduring enough
to gradually engender different perspectives on her. Foucault's last work — History of
Sexuality (1976, 1984a, 1984b, 2018) —, by providing philosophical support for a
critique of founding concepts of psychoanalysis, assumes a more critical perspective
than the previous works. In the first book — The Will to Know (1976) —, whose
originality lies in part in the possibility of seeing it as an “invitation to philosophy” or as
a “philosophical game”, the critique of psychoanalytic assumptions is explicit. In the
following books, the author deals with the emergence of the theme of the “truth of
desire” for Western discursivities and practices. Since the advent of psychoanalysis as
a device for the ethical constitution of the subject is based on the modern notion of
“desire”, the practice of psychoanalytic confession pursues the question of the “truth of
desire”. However, when approaching the issue of “truth-telling” — in his latest courses,
The hermeneutics of the subject (1982), The government of the self and others (1983)
and The courage of truth (1984) — and placing it in the In the same scope of the ethical
constitution, Foucault goes from the “critique of the truth of desire” to the “appreciation
of the courage of truth” as constitutive of an ethos. It is the “courage of the truth” in
terms of “parrhesia” that sustains the “parrhesiastic game” as a device for the ethical
constitution of the subject. The “parrhesiastic game”, by maintaining a constitutive
relationship with the truth, would exert a decisive influence on the ethical formation of
the subject who opts for the philosophical or intellectual way of life.
5
INTRODUÇÃO
DA ETERNA PROCURA
— Mario Quintana
Para não nos desviar muito dos propósitos da prática filosófica de Michel
Foucault nem perdermos de vista o que realmente está em jogo em seus diferentes
momentos, é requerido de nós certo ajustamento do espírito para sustentarmos,
acerca da história, dos procedimentos e das práticas que a constituem, uma visão
estratégica, pois, para Foucault, as estratégias estão sempre presentes, seja na
fabricação da história tradicional, seja na fabricação da história efetiva. 1
Uma vez que mudanças na perspectiva das análises de Foucault às vezes gera
dúvidas quanto aos reais posicionamentos do filósofo sobre certas questões,
perguntar que hipóteses o guiaram em determinada pesquisa, que objetivos tinha em
mente ao redigir tal escrito e que pretensões conservava em relação a esse ou àquele
trabalho não seria uma maneira de restabelecer as bases das problemáticas próprias
de seu pensamento? Além disso, assim também definimos um ponto de partida
razoável para uma jornada que comporta muitos destinos possíveis.
1 Em relação à história tradicional, oficial, isto é, à historiografia como ciência, a história efetiva é uma espécie de
contra-história. Como ela rompe com a ideia de que a história do poder, das instituições e dos heróis contêm a
história dos dominados, revela-se a outra face da história. Assim, dá-se a instauração de um duplo regime
historiográfico. A genealogia, que tem por tarefa combater os efeitos de poder de um discurso considerado
científico, é o discurso dos pequenos sujeitos da história, dos que não tem glória e se encontram silenciados. Trata-
se de “uma história que assume o seu estatuto perspectivista, que olha sob um determinado ângulo, que avalia
segundo um determinado modo de vida, que não renega do sistema da sua própria injustiça. Trata-se de um sujeito
que não só é consciente do objeto do seu saber, mas também da posição a partir da qual considera esse objeto.
Ou seja: a genealogia é um discurso que, na elaboração das suas investigações particulares, não deixa de efetuar
a sua própria genealogia” (Pellejero, 2016, p.142-143).
6
Seja simplesmente interpretando o texto de Foucault ou elaborando
concepções e fabricando discursos com base em sua filosofia, é como se
estivéssemos lidando com um quebra-cabeça cuja imagem não está dada nem a
quantidade de peças definida. Que imagens podem se formar a partir dessas peças?
Que paisagens o tornado visível pode compor? Talvez por isso o professor Giacoia
Júnior (2015) tenha dito que “Foucault” – isto é, a palavra ou, se quiser, o significante
“Foucault” — é um nome para múltiplas máscaras. 2 Ora, no fim da introdução da
Arqueologia do saber (1969)3 o próprio Foucault exclamou: “Não me pergunte quem
sou e não me diga para permanecer o mesmo”. Além disso, Foucault acredita que,
assim como ele, há outros que “escrevem para não ter mais rosto”. 4
Admitindo que, de modo geral, o propósito de sua prática filosófica seja
proporcionar uma apreciação crítica potencialmente transformadora do sujeito,
podemos dizer que do conjunto de seus trabalhos o projeto da História da sexualidade
(1976-2018)5 é aquele que mais precisamente integra essa problemática da
transformação de si. Contudo, quais hipóteses guiaram esse projeto? Quais eram
especificamente seus objetivos? Quais pretensões carregava? Além disso, o que
mudou? O que permaneceu? Que resultados, afinal, obteve?
Presumimos que ao eleger um tema amplo como o da “sexualidade” e submetê-
lo a múltiplas abordagens cuja principal consequência é a instauração de um vasto,
inédito e diversificado campo de problematizações, o projeto da História da
sexualidade tinha em vista menos o desvelamento de uma nova verdade sobre a
questão da sexualidade do que abrir caminho para novas pesquisas e maneiras de
pensá-la. Ainda assim, apesar do caráter genuinamente exploratório dessa obra, os
2 Giacoia Junior In: Foucault e a coragem da verdade originalmente publicado na Revista Cult, v. 202, n. 18, p. 43-
45. O artigo também se encontra disponível em: <Michel Foucault e a coragem da verdade, por Oswaldo Giacoia
Junior (uol.com.br)> Acessado em 18/10/2021.
3 Foucault, M. A Arqueologia do saber [1969]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.20.
4 Na verdade, Foucault (1995, p.20) diz o seguinte: “– Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto
prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse […] o labirinto onde me
aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que
resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais
que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais rosto. Não me pergunte quem sou e não
me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres
quando se trata de escrever”.
5 Essa obra é composta por quatro livros dos quais temos as seguintes edições brasileiras:
Foucault, M. História da Sexualidade I : A vontade de saber (1970-1971). Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1999.
_______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007.
_______. História da Sexualidade III: O cuidado de si. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 2007.
_______. História da sexualidade 4: as confissões da carne. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 2020.
7
pontos de vista nela apresentados geraram inquietação em alguns círculos e são até
hoje objeto de muitas controvérsias entre estudiosos da sexualidade.
Entretanto, uma coisa pelo menos é certa: do projeto à execução, do início ao
fim, essa História da sexualidade está atravessada pelo questionamento (explícito no
primeiro volume e implícito nos demais) da chamada “hipótese repressiva”.
Igualmente certo parece ser o objetivo — ao qual corresponde esse questionamento
estratégico — de promover uma desnaturalização do desejo por meio da ideia de uma
historicidade do sujeito de desejo. O alcance desse objetivo por meio da prática
filosófica alinha-se, naturalmente, ao propósito dessa própria prática, o de
proporcionar ao sujeito uma apreciação crítica sobre si mesmo que o incite a
transformar a si mesmo.
Contudo, de onde surgiu a ideia de um projeto como esse? Por que uma
História da sexualidade? Qual foi seu mote? Além do simples fato de ter-lhe passado
a ideia pela cabeça, o que motivou Foucault a levar a cabo, trabalhando nele até seus
últimos dias, um projeto tão ambicioso e em relação ao qual se sentiu tantas vezes
esgotado? Ora, em vez de procurarmos respostas nos textos de Foucault, no que
concerne a questões de cunho mais pessoal talvez seja mais produtivo consultar
aqueles que foram próximos a ele. Com efeito, na “carta” Desejo e Prazer6 que Gilles
Deleuze escreveu para Foucault em 1977, o primeiro diz que eles chegaram a
conversar pessoalmente sobre as ideias que tinham a propósito das noções de desejo
e de prazer:
Na última vez em que nos vimos, Michel, com muita gentileza e afeição, disse-
me mais ou menos o seguinte: não posso suportar a palavra desejo; mesmo
que você a empregue de outro modo, não posso impedir-me de pensar ou de
viver que desejo = falta, ou que desejo se diz reprimido. Michel acrescentou:
então, para mim, o que chamo de “prazer” talvez seja o que você denomina
“desejo”.
(Deleuze, Desejo e prazer, 1996, p. 21)
6 Carta aberta publicada em (Deleuze, G.) Le magazine littéraire, n°325, octobre 1994, e reproduzida em Deleuze,
G. Deux régimes de fous, Minuit, 2003.
7 Numa série de notas que François Ewald deveria submeter Foucault após a publicação de A vontade de saber,
Deleuze pergunta: “Será que eu poderia pensar em equivalências do tipo: o que para mim é ‘corpo sem órgãos-
desejos’ corresponde ao que, para Michel são ‘prazeres corporais’?”
8
rigor da transcrição, parece haver nessa passagem qualquer coisa que valha a pena.
Dela podemos reter, em primeiro lugar, que para Foucault o prazer tem primazia em
relação ao desejo. Somos levados a concluir que se o desejo equivale a falta e ao que
é reprimido, devemos conceder a primazia ao prazer e, por conseguinte, em vez de
nos atermos a uma hermenêutica do desejo, voltarmos nossa atenção ao uso dos
prazeres. Pois bem, será que essa ideia — a da primazia do prazer sobre o desejo —
teve alguma participação na gênese do projeto da História da sexualidade?
Em segundo lugar, o comentário de Deleuze parece assinalar certa “afetação”
de Foucault com a noção de desejo. Suas palavras “não posso suportar a palavra
desejo” não só dão o tom da discussão como indicam claramente sua posição crítica.
Com essas palavras e as seguintes ele, ainda que não explicitamente, aponta, de
forma mais clara, simples e quase direta, pois sem pompa, sem retórica, sem
teorizações, o que realmente lhe ocorria em relação ao desejo entendido como falta
ou repressão. Ao desejo assim entendido, o que pretendia Foucault senão neutralizá-
lo? Não exatamente por ser-lhe insuportável essa concepção de desejo (de modo que
mal tolerava a palavra), mas em razão do motivo pelo qual era-lhe insuportável. E por
que lhe era insuportável? Por se tratar de uma concepção naturalizada e, por
conseguinte, normatizadora do sujeito que ofusca a dimensão histórica de seu ser.
Foucault arquitetou, portanto, um plano de combate ao desejo e ao sujeito de desejo.
Nos aproximamos um pouco da gênese do projeto da História da sexualidade,
mas o que dizer da motivação envolvida? A partir do que acabamos de considerar
acerca do entendimento que tinha Foucault do desejo, podemos conceber que o
filósofo visava promover a noção de “uso dos prazeres” em detrimento da noção de
“desejo” como um dado natural, do desejo entendido como falta ou reprimido. Ora,
mas quem, precisamente, concebe o desejo como falta e como algo reprimido? A
referência não poderia ser mais clara. Aqueles que elaboraram e reelaboraram na
modernidade a antiga noção de desejo foram os psicanalistas. Eles elaboraram o
conceito de desejo como falta e como algo reprimido. Eles o concebem, o pensam e
o articulam dessa forma. Ademais, a crítica também abrange, todavia, toda aquela
corrente de pensamento chamada de freudo-marxismo (Reich, Marcuse).
Então, o interesse de Michel Foucault pela psicanálise, pelo menos em sua
vertente freudiana e lacaniana, é coisa antiga, embora nem sempre explícita. A
apreciação que dela faz o filósofo, no entanto, encontra-se em constante
9
deslocamento, de maneira que seus posicionamentos nem sempre são os mesmos.
As considerações críticas de A vontade de saber (1976), todavia, particularmente
tenazes e explícitas, representam, no diálogo com a psicanálise, um momento
decisivo de sua apreciação crítica. Nesse livro (concebido como “livro programa”) o
autor apresenta uma série de hipóteses inéditas concernentes à sexualidade e ao
desejo que vão de encontro à história tradicional da psicanálise. E ainda que
relativamente ao projeto inicial da História da sexualidade mudanças significativas
tenham ocorrido, sua principal tese, a saber, a da historicidade do desejo, permaneceu
a mesma. Em outras palavras, no fundo, é sempre e principalmente do problema da
inscrição discursiva da noção de desejo no Ocidente que essa história da sexualidade
se encarrega.
Quando publicada, A vontade de saber (1976) despertou o interesse do público
e, particularmente, dos psicanalistas. Isso fez Foucault propor um jogo a seus
contemporâneos. Essa é nossa primeira hipótese. Segundo ela: um jogo filosófico,
baseado na premissa da historicidade do desejo, foi destinado especialmente aos
psicanalistas, para quem a noção de desejo era fundamental. Mas a ideia geral é de
que A vontade de saber tanto pode ser abordada sob a perspectiva de um “convite à
filosofia” quanto sob a de um “jogo filosófico”. No primeiro caso, convém interpretá-la
como um convite não ao discurso filosófico, mas sim à prática filosófica. No segundo,
é o fato de sua origem advir de práticas que encerram características de jogo que
permite concebê-la como um jogo filosófico. Diante disso, dois são os objetivos:
contextualizar a concepção de A vontade de saber através de um levantamento da
relação de Foucault com a psicanálise e situar teoricamente o jogo filosófico de
Foucault a partir da revisão de algumas noções filosóficas de jogo.
Contudo, em que consistiu o jogo filosófico proposto por Foucault? Com efeito,
os jogos mais conhecidos são aqueles que se preservam através da repetição, isto é,
sendo recriados e atualizados na memória dos envolvidos. Mas ainda que não se
repita, um jogo pode deixar vestígios de sua existência histórica. Foucault propôs um
jogo filosófico onde cada eventual participante teria que empreender ele mesmo uma
pesquisa histórico-crítica da noção de desejo e, a partir de suas próprias descobertas,
propor uma narrativa a seu respeito. As narrativas oriundas desse jogo deveriam,
obviamente, obedecer às leis gerais da discussão filosófica para concorrerem com as
demais narrativas existentes sobre o assunto. Apostamos, portanto, na possibilidade
10
de apresentar o caráter filosófico do jogo, suas condições, as regras que o constituem,
assim como descrever a situação na qual ele foi efetivamente proposto, com que
palavras e com que intenções. Esse é o objetivo do primeiro capítulo chamado
“Projeto”.
Para a reconstituição de um “jogo filosófico” que ficou de fora da história
necessitamos de, pelo menos, alguns aportes teóricos relativos às concepções gerais
de jogo. Em vista disso, uma revisão filosófica da noção de jogo é o objetivo do
segundo capítulo, “Os jogos”. Sendo assim, seguindo um percurso cronológico, da
Grécia clássica até o fim do século XX, revisamos e mapeamos as noções de jogo.
Entre as numerosas referências sobre o tema, escolhemos duas para apoiar nossas
análises. A primeira dessas referências com a qual decidimos trabalhar mais
diretamente é a obra Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura (1938), de Johan
Huizinga.8 A segunda delas é Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem (1958),
de Roger Caillois,9 que, além de fazer uma apreciação crítica da primeira, fornece uma
categorização para os jogos.
Entretanto, alguém poderia inteligentemente observar que os autores de Homo
ludens e de Os jogos e os homens não partem dos mesmos pressupostos teóricos
que Foucault e, por conseguinte, assumem uma perspectiva totalmente diferente em
relação à história. Huizinga, por exemplo, apesar de desenvolver uma reflexão
histórico-filosófica original em torno dos jogos, não se distancia suficientemente da
tradicional concepção de história (cheia de essencialismos) que Foucault recusa. No
entanto, na falta de uma noção de jogo mais adequada, nada nos impede de tomar
de empréstimo a noção de jogo de Huizinga e aplicá-la a certos momentos da trajetória
filosófica de Foucault. Isso significa nos servir do pensamento de Huizinga como
costumamos nos servir do pensamento de Foucault, isto é, pegando de empréstimo
suas noções como se fossem “ferramentas” para pensar. Isso talvez baste para
assinalar o caráter de jogo de determinados atos filosóficos de Foucault. Portanto, não
se trata de estabelecer uma ponte entre os autores, entre o pensamento de Huizinga
e o de Foucault, mas de pegar uma categoria conceitual aqui e aplicar ali com o
propósito de tornar visível o que até então não está. Destacamos aqui o caso de
8 Huizinga, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 8.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2018.
9 Caillois, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 2001.
11
Huizinga devido à sua formação de historiador e sua proximidade com a concepção
tradicional de história, mas o caso de Caillois é semelhante. 10
Enfim, concebemos como “jogo” qualquer atividade que comporte as
características formais de jogo segundo esses autores, mesmo que essa atividade
não esteja entre aquelas que cotidianamente encaramos como jogo, tais como os
jogos eletrônicos (games), de tabuleiro (xadrez, damas, gamão), de cartas (poker,
canastra, buraco) e as brincadeiras de rua (esconde-esconde, tica-tica). Portanto,
dado que a concepção de jogo com a qual trabalhamos corresponde às características
formais de jogo, ela não é de natureza meramente aproximativa e metafórica. Todavia,
consideramos essa questão uma sutileza teórica cuja discordância a seu respeito é
incapaz de causar prejuízo real.
O terceiro capítulo, denominado “O jogo de Foucault”, se vale tanto dos
fundamentos de Homo Ludens para interpretá-lo quanto da classificação proveniente
de Os jogos e os homens para situá-lo com maior precisão entre outros tipos de jogos.
Nessa ocasião, consideramos que a última obra de Foucault, a História da sexualidade
(1976, 1984a, 1984b, 2018), assumindo uma perspectiva mais crítica, fornece
subsídios para uma filosofia crítica da psicanálise. O primeiro livro, A vontade de saber
(1976) — cuja originalidade está em parte na possibilidade de encará-lo como um
“convite à filosofia” ou como um “jogo filosófico” —, apresenta um conjunto de ensaios
críticos a conceitos fundadores da psicanálise. Os três livros seguintes, por sua vez,
embora não apresentem uma crítica explícita da psicanálise, dela retomam noções
essenciais como “sexualidade” e “desejo”. Neles o autor trata, por exemplo, do
surgimento do tema da “verdade do desejo” para as discursividades e práticas
ocidentais. Uma vez que o advento da psicanálise como dispositivo de constituição
ética do sujeito sustenta-se na noção moderna de “desejo”, a prática da confissão
psicanalítica persegue a questão da “verdade do desejo”.
Ao dar ênfase à noção de jogo, somos levados a colocar a questão: podemos
caracterizar a filosofia de Michel Foucault como jogo? Considerando seu pensamento
como um todo, a resposta é negativa. A filosofia de Foucault não é um simples jogo
filosófico. Em contrapartida, considerando exclusivamente o aspecto lúdico presente
na concepção e na elaboração de A vontade de saber, a resposta talvez seja positiva.
10Embora, como veremos adiante, as teses de Homo ludens e de Os jogos e os homens se choquem em um ponto
fundamental, Caillois retoma e incrementa a noção de jogo de Huizinga.
12
Tanto na escrita desse livro quanto em seus pronunciamentos em relação a ele, é
possível pensar num “filosofar-jogar”.
No quarto capítulo, a “Ética da verdade”, abordamos a problemática do dizer-
verdadeiro no âmbito da constituição ética do sujeito. É ao abordar a problemática do
“dizer-verdadeiro” nos seus últimos cursos — A hermenêutica do sujeito (1982), O
governo de si e dos outros (1983) e A coragem da verdade (1984) — e situá-lo no
mesmo âmbito da constituição ética, Foucault passa da “crítica à verdade do desejo”
à “apreciação da coragem da verdade” como constitutiva de um éthos. Enquanto que
a genealogia do sujeito de desejo empreendida na História da sexualidade (1976-
2018) deu lugar a uma crítica sistemática da verdade do desejo, os cursos ministrados
em 1982, 1983 e 1984 no Collège de France deram ensejo a um exame cada vez mais
tenaz da noção de “parrésia” no pensamento grego antigo. Ainda que importantes
aspectos da parrésia tenham sido abordados nos cursos anteriores, é decididamente
no último deles, distintamente denominado A coragem da verdade,11 que o jogo
parresiástico aparece com todo seu brilho, como jogo de veridicção entre dois sujeitos
e lugar privilegiado de constituição ética.
No que diz respeito a esses desenvolvimentos tardios do pensamento
foucaultiano, temos dois objetivos. Primeiro: assinalar a passagem que vai da “crítica
à verdade do desejo” à “apreciação da coragem da verdade” como constitutiva de uma
ética (éthos). Isso feito, avançamos em direção ao último dos nossos objetivos que
consiste em articular o “modo de vida filosófico” com a “prática da parrésia ética”.
Consideramos que o modo de vida filosófico e a prática da parrésia ética devem estar
acoplados um ao outro de maneira que não se dissocia facilmente, mas representam
ao mesmo tempo um modo de ser e de agir no mundo.
Neste momento, erguem-se algumas questões. Qual sujeito é visado pela
prática da parrésia? A qual sujeito se dirige preferencialmente o parresiasta? Ou
antes, quem é esse sujeito cujo éthos interessa ao parresiasta? Seria o sujeito em
geral? Ou seria um tipo particular de sujeito? Seria o ditador, o presidente, enfim, os
governantes em geral? Vistas as inúmeras formas assumidas pela parrésia ao longo
da história, não devemos admitir que a prática da parrésia é largamente adaptável e,
por conseguinte, passível de adequação ao mundo contemporâneo? Vistas as
funções historicamente desempenhadas pela parrésia, não é razoável presumir que,
11 Foucault, M. A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2014.
13
uma vez aclimatada a certos cenários atuais, essa prática deve ser reconhecida como
um dispositivo de constituição ética do sujeito? Além disto, não é provável que o jogo
parresiástico, por manter uma relação constitutiva com a verdade, exerceria uma
influência decisiva na formação ética do sujeito que opta pelo modo de vida
intelectual?
Embora não tenhamos a pretensão de responder à todas essas questões,
podemos começar dizendo que, em vez de se dirigir prioritariamente aos governantes,
a prática da parrésia deve se ater ao tratamento do filósofo, de sua alma, de seu éthos.
Primeiro porque sabemos das dificuldades envolvidas na pretensa “educação
existencial” de um governante. Os governantes são costumeiramente cercados por
conselheiros, colegas de partido ou funcionários que lhe assessoram, mas que não
estão exatamente preocupados com suas almas. Por outro lado, parece que quanto
mais alto é o cargo do governante e suas respectivas responsabilidades, mais atolado
fica com os afazeres mundanos. A justificativa é óbvia, não sobra tempo para si. Os
outros necessitam dele ou disso ele se convence.
O verdadeiro filósofo, por sua vez, é um tipo de sujeito muito específico cuja
existência está atravessada de cabo a rabo pela questão da verdade. Como não há
uma ruptura entre seu ofício e suas vivências de cunho mais pessoal, quando por
meio de sua prática filosófica — isto é, de certo modo de refletir, de falar e de ouvir —
o sujeito é atingido pela verdade, ele tem dela uma experiência que não é puramente
racional, estritamente intelectual ou mental. A experiência filosófica também é uma
experiência afetiva; logo, capaz de mexer com as emoções, reordenar os sentimentos
e afetar o corpo. Ou não é um fato que nossos corpos se movem em conformidade
com as verdades em nós inculcadas? Assim, o filósofo que ocupa-se consigo mesmo,
que se leva a sério ao ponto de trabalhar sua alma com afinco, que avança na
aquisição de virtudes por consequência de um cuidado de si, que se dispõe a repensar
não só toda sua maneira de ser, de pensar e de agir, mas também a — se necessário
— questionar e reinterpretar a existência, experimenta uma série de modificações em
si que pode eventualmente conduzi-lo a uma transformação radical de si mesmo e,
por conseguinte, a uma transvaloração da vida. Portanto, a quem, senão ao
verdadeiro filósofo, deve-se preferencialmente se dirigir a parrésia?
Pois bem, depreende-se dos últimos anos de ensino de Michel Foucault que o
filósofo em formação necessita ser ao mesmo tempo cuidado e incitado a cuidar de si
14
(epimélesthai seautoû), necessita ser inquirido a continuar avançando em direção ao
domínio de si mesmo (enkráteia). Em razão disso, é preciso que seja interpelado pela
verdade, que confesse a verdade em caso de culpa e, de modo geral, que seja capaz
de falar francamente (parrhésia). Ademais, importa também saber escutar a verdade
ou ao menos engajar-se no exercício da escuta da verdade.
Ao seguir essa e que articula a verdade (constituída por práticas, um tipo
específico de franqueza e uma maneira particular de escutar) com a constituição ética
do sujeito — perspectiva essa na qual a figura do filósofo parece ocupar um lugar
central ou um ponto de interseção —, somos levados a conceber a prática da parrésia
como “uma prática para não todos”. Bem, não esqueçamos que desde a Antiguidade
o ócio, a condição para que o sujeito possa se ocupar com ele mesmo, é uma condição
que está mais ao alcance da elite do que dos demais. Vivemos em outros tempos, é
verdade. O prestígio da figura do filósofo não é o mesmo, sua participação nas
decisões da cidade é oblíqua, parte de sua prática não passa de uma prática
discursiva que não implica o sujeito … Contudo, o filósofo da atualidade não
representa a elite no sentido tradicional do termo. Ele fez uma escolha pela filosofia.
Abriu mão de uma série de coisas por isso. Decidiu reservar um tempo para uma
prática que, de modo geral, não é um meio para algo, mas um fim em si mesma. E é
em parte por ter tomado essa decisão que lhe é concedido o privilégio de manter uma
relação desinteressada e autêntica com a verdade.
Entretanto, é claro que não só aos filósofos deve se dirigir a prática da parrésia.
Mas uma vez que a pertinência do jogo parresiástico como um todo ou da simples
prática da parrésia — que em sua simplicidade de dizer-a-verdade, francamente e de
tal e tal forma constitui o fundamento do jogo parresiástico — é medida pela relação
que determinado sujeito mantém com a verdade, a quem a parrésia deve
preferencialmente se dirigir?
De fato, as relações que mantemos com a verdade são de uma diversidade
praticamente insondável. Distribuir os sujeitos entre tipos e graus de proximidade com
a verdade soa-nos grosseiro e injusto. Todavia, sabemos de lugares em nossa
sociedade em que a verdade nem sempre é bem-vinda; de lugares em que sua
manifestação além de perigosa é infrutífera. Há também em nossa sociedade aqueles
lugares em que a verdade não pode se apresentar senão de maneira dissimulada; ou
seja, revestida por algum grau de mentira que oculta as intenções de quem a exprime
15
para que não seja rechaçada de cara. Mas há também, não obstante, muitos outros
lugares em que a verdade parece ser mais cedo ou mais tarde bem acolhida, seja ela
qual for. Alguns desses lugares são ocupados por aqueles denominados por Foucault
de “intelectuais específicos”.
Um intelectual específico tem formação num campo de estudos e seu saber é
especializado.12 Ele é, por assim dizer, efeito do nosso tempo, produto de nossa
sociedade e fruto a um só tempo dos projetos bem-sucedidos e malsucedidos da
modernidade. A figura do intelectual específico caracteriza-se principalmente pela
capacidade de perceber uma problemática da atualidade, analisá-la e, quiçá, apontar
caminhos para possíveis soluções a partir de seu respectivo campo de estudo e
especificidade de seu saber. Gostaríamos, no entanto, de ressaltar duas outras
características dessa figura. Em primeiro lugar, o intelectual específico é
comprometido com a verdade, sobretudo, com a verdade que está por vir. Em
segundo lugar, ele conduz sua prática com rigor. E tanto o compromisso com a
verdade como o rigor com o qual busca a verdade parecem decorrer de um imperativo
moral inerente à própria prática. Assim sendo, o intelectual específico, assim como o
filósofo, precisa trabalhar a si mesmo para exercer seu ofício, pois dele também é
exigida uma moralidade para pôr em prática sua expertise. Se entendemos
corretamente, é isso que permite ao intelectual específico — comparativamente a
outros — o cultivo de uma relação mais autêntica com a verdade.
Em vista disso, consideramos que a prática da parrésia pode contribuir
substancialmente para a formação do intelectual específico. Isto é, trata-se de uma
hipótese segundo a qual o dispositivo filosófico-parresiástico, por manter uma relação
constitutiva com a verdade, pode exercer uma influência positiva na formação ética do
intelectual, do sujeito que opta pelo modo de vida intelectual.
12A figura do intelectual específico é frequentemente contraposta a outras como a do gênio e a do filósofo universal
que, cada um a seu modo, percorriam vários campos de conhecimento.
16
II. Algo insiste na vida anímica
17
vontade de quê? Temos pelo menos três razões, relativamente próximas, para evitar
esse termo: Schopenhauer, Nietzsche e Foucault. 13
Aos desavisados que poderiam ver nisso de que falamos algum traço
schopenhaueriano: com efeito, tal como a Vontade em Schopenhauer, esse impulso
insiste cega e insaciavelmente. Mas a Vontade é una, é como que o próprio substrato
constituinte da existência. É uma força cuja efetuação está aquém ou além dos
sentidos. Já esse elemento impulsivo, por seu turno, é coisa mais humana, não possui
nenhuma amplitude metafísica nem se encontra além dos sentidos. Embora
frequentemente dissimulado nos objetos, esse elemento impulsivo e de teor infantil
não está de modo algum fora da dimensão sensível, mas nela imiscuído. É mesmo,
esse elemento, uma força mobilizadora tal como a Vontade e, no que se refere ao que
se pode dele presumir, também um substrato constituinte de coisas. Entretanto,
apesar de certo eco, essas noções não são equivalentes nem apresentam claro
parentesco entre elas. Ao que parece, cada filósofo tem sua ideia de força, pulsão,
vontade...
Em contrapartida — segundo exemplo para fins de comparação —, não teria
esse elemento impulsivo de teor infantil alguma relação com a Vontade de potência
nietzscheana? Não haveria algum nível de correspondência entre essas noções?
Importa lembrar que para Nietzsche a vontade não está fora do mundo, mas em toda
ordem de relação; logo, a vontade é múltipla e se mostra no real. Ou seja, a vida como
vontade de potência está presente em tudo. E o que busca? Expandir-se, superar-se,
juntar-se a outras e, tornando-se maior, também tornar-se algo diferente. Por isso,
somente um homem doente se conforma com a sobrevivência. Preservar-se e
adaptar-se não basta. Para viver efetivamente é necessário criar, atribuir sentido e
valores que correspondam às próprias condições da existência. O impulso do qual
falamos, por sua vez, não possui originalmente qualquer finalidade senão a da fruição
de si mesmo. Ele pode se articular com a vontade de potência e nela ter uma
participação (por exemplo, em sua expansão), adquirir uma função ou finalidade, mas
apenas provisória.
Conquanto poética e interessante, o fato de aparentemente nada escapar a
vontade de potência nos impede de aceitá-la em uma acepção próxima à que estamos
13 Relativamente próximas porque, numa genealogia do conceito de “vontade”, seria possível estabelecer uma
relação entre Schopenhauer e Nietzsche e, após relevantes modificações, entre Nietzsche e Foucault.
18
buscando atribuir a esse elemento para o qual ainda não encontramos um designativo
justo, mas que podemos chamar (ao menos provisoriamente) de “impulso lúdico”. Pois
bem, e o que podemos entender, nesse momento de nossa reflexão, por “impulso
lúdico”? Tratar-se-ia de entender, por “impulso”, uma pulsão, em sentido freudiano?
Por impulso lúdico, uma pulsão capaz de promover uma dinâmica lúdica? Seria o
impulso lúdico uma pulsão parcial caracterizada por traços infantis? Seja como for,
trata-se sempre de um impulso caprichoso e renitente, quando não indômito.
Ora, essa concepção segundo a qual o impulso lúdico seria uma pulsão parcial
também não estaria escusada de uma articulação com a vontade de potência, pois de
modo algum foge ao escopo desta. No entanto, relativamente à vontade de potência,
o impulso lúdico não seria mais do que uma ínfima quota de energia. Desse modo,
temos razões mais que suficientes para evitar o termo “vontade”.
Em Foucault encontramos vários empregos do termo “vontade”. O uso técnico,
todavia, aparece principalmente sob duas formas, como Vontade de verdade e como
Vontade de saber. A primeira14 dessas noções, originalmente nietzschiana e retomada
pelo autor, foi anunciada em A ordem do discurso (1971)15 como o mais importante
dos procedimentos externos de controle do discurso que rege nossa Vontade de saber
desde o século VI a.C.
Para fins de comparação da noção foucaultiana de Vontade de verdade com a
de impulso lúdico que começamos a tratar, consideremos então o seguinte trecho:
14 A noção de “Vontade de verdade” foi consideravelmente retrabalhada por Foucault em suas Lições sobre a
Vontade de saber (1970-1971).
15 Aula inaugural no Collège de France em dezembro de 1970 e publicada em 1971. Foucault, M. A Ordem do
20
III. O impulso lúdico
21
razoáveis não o são em si, mas o são em relação a outras coisas e estado de coisas,
como estar seguro de que o que temos em mais alta conta hoje continue nos servindo
amanhã, que as ideias que nos são caras hoje não se mostrem, numa escala de
séculos, nocivas? Não está tudo sujeito às vicissitudes do tempo, e não são
imponderáveis suas mais longínquas implicações?
Entretanto, embora pareça que todo enquadramento de tipo utilitarista seja
atravessado por esse problema — de definir e fundamentar o “bem-estar” em geral e
o seu contrário —, na vida real, ao considerar relações humanas, ações, eventos e
todo tipo de coisa que possa decorrer de escolhas, sequer passa pela cabeça do
humano comum fazer tal distinção, fazer cálculos, considerar variáveis
incomensuráveis e, tampouco, dar-lhe fundamentação metafísica. Em contrapartida,
mesmo assim parecemos propensos a admitir as consequências como um dos fatores
mais importantes entre aqueles colocados em jogo numa escolha, a tomá-las como
critério de avaliação e, com isso, a valorizar posturas pragmáticas.
Quanto à confecção de objetos imateriais, isto é, de ideias, dá-se o mesmo.
Qualquer que seja o estatuto reivindicado para uma ideia, do científico ao ficcional, de
saber teórico a empírico, exato a conjectural, há toda uma gradação relativa à sua
utilidade potencial no mundo partilhado. E essa utilidade, tomada no sentido amplo de
efetividade, não se opõe termo a termo ao elemento pueril ou ao impulso lúdico. A
despeito do aparente antagonismo, não há oposição radical, desse ponto de vista,
entre o pragmático e o idealista, entre o intelectual específico e o livre pensador. Todos
eles, participando de diferentes jogos do espírito, com diferentes riscos e graus de
ludicidade, fabricam o inteligível da obra imaterial do mundo.
E esse cenário no qual se inscreve a obra imaterial não é menos participativo
da experiência vital dos seres humanos do que aquele no qual se inscreve o material.
As ideias com as quais vivemos e a partir das quais nos são viabilizados certos modos
de nos relacionarmos com os outros e com nós mesmos não são menos constituintes
de nossa experiência do que as condições materiais de acesso à informação e
assistência. Até mesmo os serviços não consubstanciados em disposições materiais
específicas e processos de trabalho que não implicam um produto ou resultam numa
mercadoria, são tão constitutivos de nossa maneira de viver quanto nossos meios de
transporte ou tipo de alimentação. Isto é, o que pensamos e como pensamos é tão
efetivamente vivenciado quanto o modelo do carro que usamos para ir trabalhar ou o
22
aumento do preço do feijão nesta semana, pois, a bem da verdade, enquanto
elementos de um mesmo mundo e da vida concreta de um indivíduo, essas coisas
não estão completamente separadas.
Partindo dessa ideia de que não há distinção real, mas apenas nominal, entre
o útil e o inútil, e considerando a complexidade da condição adulta cuja constituição,
sob risco de malformação, não elide o infantil, mas acolhe-o, evocamos a realidade
do jogo como paradigma possível para se pensar o funcionamento do mundo. Ainda
que a formalização matemática apresenta dificuldades consideráveis e, quiçá,
intransponíveis, os problemas filosóficos podem ser lidos como jogos, assim como,
particularmente, a organização, a forma e a disposição de um ato filosófico podem ser
balizadas por princípios equivalentes a regras de um jogo.
23
IV. Metodologia
24
investigador parte de uma perspectiva interpretativa previamente admitida. Ou seja,
ao tentar explicar uma ideia que seja de um autor já estamos, necessariamente,
interpretando-o.
25
vez que a melhor maneira de formular um problema é fazer uma pergunta, o objetivo
principal de um ensaio filosófico é responder a uma indagação e defender essa
resposta, oferecendo argumentos condizentes e refutando as objeções.
Esse ensaio filosófico tem como principal objetivo discutir a problematização do
desejo na filosofia de Michel Foucault expondo as ideias do ponto de visto do autor
com base em pesquisa referencial. Buscamos originalidade no enfoque sem, contudo,
a pretensão de explorar o tema de forma exaustiva. Nossa tese é de que Michel
Foucault, partindo da ideia de um desejo desnaturalizado, isto é, da premissa teórica
da historicidade do desejo, propôs um jogo filosófico aos seus contemporâneos (em
especial aos psicanalistas e teóricos de orientação freudiana, freudo-marxista e
lacaniana, freudo-lacaniana etc., para quem o conceito de desejo é caro).
Enfim, como o tema da historicidade do desejo é controverso, pouco usual e
tem alto grau de relevância para a filosofia e as ciências humanas, pretendemos
explorá-lo a partir de uma revisão bibliográfica de materiais diversos, tais como livros,
cursos, conferências e entrevistas. Ademais, julgamos que um exame do material da
década de 70 e 80 fornece as evidências de que precisamos para corroborar nossa
tese.
Se entendemos por metodologia a explicação minuciosa de toda ação
desenvolvida ao longo do trabalho de pesquisa, admitimos que a natureza das
pesquisas em filosofia é qualitativa, pois há um esforço para rastrear, analisar e
contextualizar os pensamentos, valores, suposições e informações a serem obtidas
nos textos do autor e de seus comentadores.
Como o ensaio é uma forma de audição do pensamento, ele se serve do
ensaísta para existir. Fazer um ensaio é lidar com a ameaça real, inevitável, insanável,
da aporia. O ensaísta tem de saber viver com isso, e ser honesto, reconhecê-la,
quando acontece. Por isso o ensaio transfigura o ensaísta. “Escrever o ensaio não é
aplicar tecnicamente um instrumento hermenêutico a um objeto vítima de corte
epistemológico”, disse alguém. Talvez o autor possa sobreviver ao ensaio. Talvez não
possa. Decerto não pode. Se sobreviver, sobreviverá outro. “O ensaio transfigura o
ensaísta”, disse outro alguém.
26
engendrar diferentes perspectivas em relação a ela. Contudo, não nos interessa aqui
o exame de todas elas. Partirmos de um levantamento geral da relação de Foucault
com a psicanálise, mas nosso foco é a apreciação crítica que o filósofo faz da
psicanálise ou de seus pressupostos a partir de meados dos anos 70 até 1984.
Por que Foucault recusa a concepção de desejo como falta ou como algo
reprimido? Ele recusa essa concepção do desejo por se tratar de uma concepção
naturalizada e, por conseguinte, normatizadora do sujeito que ofusca a dimensão
histórica de seu ser. Foucault arquitetou, portanto, um plano de combate ao desejo e
ao sujeito de desejo.
27
empreender uma elaboração de si. Por isso Foucault convidava os outros a fazerem
eles mesmos uma genealogia de si.
Podemos então, a partir das análises de Foucault, fazer e refazer esse percurso
crítico do jogo parresiástico à psicanálise e da psicanálise ao jogo parresiástico, pois
enquanto no dispositivo da psicanálise o que está em questão é a “verdade do desejo”,
no dispositivo do jogo parresiástico o que está em questão é a “coragem da verdade”.
28
PRIMEIRO CAPÍTULO: O PROJETO
— Montaigne
1. Foucault e a psicanálise
16 Castro, E. Vocabulário Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Autêntica Editora, Belo
Horizonte, 2009.
17 Id. Introdução a Foucault. Autêntica Editora, Belo Horizonte, 2015.
18 Defert. Cronologia. In: Foucault, M. Ditos e Escritos I. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e
29
1950 – Em 17 de junho Foucault tenta suicídio. “Deixe que eu me cale… deixe
que eu me reabitue a olhar em frente, deixe-me dissipar a noite da qual tomei o hábito
de cercar-me em pleno meio-dia”, escreveu dias depois a um amigo. Hesita em
recorrer à psicanálise, mas por fim consulta-se com um psicanalista. Relatos sobre
essa época retratam Foucault como um jovem inquieto que lê muito, recita poemas
de cor e se vê tentado por “experiências-limite” à maneira de Bataille. Nesse ano ele
ainda passa por um tratamento de desintoxicação — “Retorno de um lugar um pouco
distante”, disse ao sair — e discute com seu pai sobre uma eventual hospitalização.
Nos anos seguintes, exerceu funções de psicólogo.
Foucault chega a dizer que “Freud fez habitar o mundo do imaginário pelo
Desejo, tal como a metafísica clássica fizera habitar o mundo da física pelo querer e
pelo entendimento divinos”. A psicanálise, não tendo sido capaz de reconhecer o
sonho em sua realidade de linguagem, não teria dado ao sonho outro estatuto senão
o da palavra. A análise freudiana só atinge um dos sentidos possíveis por meio da
30
adivinhação ou pelos longos caminhos da probabilidade, sendo que o ato expressivo
em si jamais é reconstituído em sua necessidade.
De acordo com esse texto, Freud seria levado a admitir que a estrutura da
imagem tem uma sintaxe e uma morfologia irredutíveis ao sentido, já que ocorre ao
sentido se ocultar nas formas expressivas da imagem. Mas não há na obra freudiana
uma gramática da modalidade imaginária e uma análise do ato expressivo em sua
necessidade. Essas faltas da teoria freudiana decorreram de uma insuficiência na
elaboração da noção de símbolo. Embora o objetivo dessa crítica foucaultiana seja
descortinar a limitação da análise freudiana ante a imagem, Foucault ainda considera
rapidamente a análise kleiniana e a lacaniana. Diz que Melanie Klein buscou ao
máximo retraçar a gênese do sentido apenas pelo movimento do fantasma, assim
como Lacan fez de tudo para mostrar na lmago o ponto em que se detém a dialética
significativa da linguagem. Mas, no caso da primeira, o sentido não passa da
mobilidade da imagem e a esteira de sua trajetória, e no caso do segundo, a lmago
não passa de palavra envolta, em um instante silenciosa. Sendo assim:
Freud compreendeu, todavia, que o sentido do sonho não era para ser buscado
no nível do conteúdo das imagens, que a fantasmagoria do sonho velava mais do que
mostrava e que o sonho consistia num compromisso habitado por contradições.
31
1957 – Foucault publica um artigo chamado A Psicologia de 1850 a 1950.19
Nele desenvolve uma interessante análise da significação no discurso freudiano.
Identifica os traços naturalistas que denunciam sua origem. Vê na teoria das pulsões
(pulsão de vida e de expansão, pulsão de morte e de repetição) o eco de um mito
biológico. Identifica também o que chama de “fantasmas evolucionistas” de que Freud
não nos poupa. No entanto, reconhece a importância histórica de Freud dizendo que
ela se deve à impureza mesma de seus conceitos, visto que:
20 Ibid. p.131.
33
Desse modo, superou as dicotomias subjetivo-objetivo, indivíduo-sociedade, e tornou
possível um estudo objetivo das significações.
[…] depois da análise de Freud, alguma coisa como a análise de Lacan foi
possível, que depois de Durkheim, alguma coisa como Levi-Strauss foi
possível, tudo isso prova, de fato, que as ciências humanas estão prestes a
instaurar com elas próprias e para elas próprias uma certa relação crítica que
21 Foucault, M. Filosofia e Psicologia. (entrevista com A. Badiou) [1965] Dossiers pédagogiques de la radio-
télévision scolaire. 27 de fevereiro de 1965.
22 Ibid. p.201.
23 Ibid. p.202-203.
34
não deixa de fazer pensar na relação que a física ou as matemáticas exercem
quanto a elas próprias.
24 Foucault, M. As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes, São Paulo, 2000.
35
No início do capítulo V. Psicanálise, etnologia, Foucault diz que a psicanálise e
a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. Não porque teriam melhor
embasamento que qualquer outra ciência humana de maneira que seriam
verdadeiramente científicas, mas porque dos confins de todos os conhecimentos
sobre o homem,
36
Em primeiro lugar, observando, escutando em atenção flutuante. Por isso a
psicanálise tem como principal tarefa incitar o discurso, fazer falar. Em segundo lugar,
refletindo sobre seu próprio discurso, sobre sua própria posição discursiva, sobre seu
próprio pensamento, suas próprias teorias, com ímpeto revisional e compromisso com
a verdade. Em relação a isso o discurso freudiano, essencialmente ensaístico, é
particularmente propício ao exercício da atividade crítica.
Na leitura que Foucault faz da psicanálise, esta, ao contrário das demais
ciências humanas, mira propositalmente o inconsciente, não como se esperasse o
aparecimento de algo, mas encarando-o como se encarasse a própria finitude.
Essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é
apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o
próprio homem — o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, esse
Desejo que perdeu seu objeto e essa linguagem pela qual, através da qual
se articula silenciosamente sua Lei.
38
região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem. A psicanálise, assim
como a etnologia, atravessa todo o campo do saber num movimento que tende a
atingir seus limites.
Foucault vê, portanto, um profundo parentesco entre a psicanálise e a
etnologia, mas adverte que ele não se dá por uma preocupação que ambas teriam em
penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana. O que se
espelha no espaço de seu discurso é, segundo ele, muito mais “o a priori histórico de
todas as ciências humanas — as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na
episteme ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber
possível”. Foucault chega a expressar o desejo de que ambas, tanto a psicanálise
quanto etnologia, fossem ciências do inconsciente. 28 “Não porque atingem no homem
o que está por sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem,
permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua
consciência”.29
[…] a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das
outras, mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua
superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em
todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações.
Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser
totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de
não depender delas de uma forma ou de outra.
28 Ibid. p.523.
29 Ibid. p.523-524.
30 Ibid. p. 525.
39
Quando situadas em relação às ciências humanas, a psicanálise e a etnologia
são consideradas por Foucault “contraciências”. Com isso, adverte o filósofo, não quer
dizer que elas sejam menos racionais ou objetivas do que as outras, mas que “elas as
assumem no contrafluxo, reconduzem-nas a seu suporte epistemológico e não
cessam de ‘desfazer’ esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua
positividade”.31 A partir desse ponto se compreende que a psicanálise e a etnologia
estejam situadas uma em face da outra numa relação fundamental 32 Foucault chega
a devanear com o prestígio e a importância de uma etnologia que em invés de se
definir pelo estudo das sociedades sem história buscasse deliberadamente seu objeto
do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura.
Se assim fosse, a etnologia colocaria em jogo a relação da historicidade. Por outro
lado, teríamos uma psicanálise que encontraria, não a dimensão de uma etnologia
pela instauração de uma psicologia cultural, nem pela explicação sociológica de
fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas sim pela descoberta de que o
inconsciente também é, ele próprio, certa estrutura formal.33
31 Ibid. p.524-525.
32 De acordo com Foucault (2000, p.526)“[…] desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria
comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação
da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas e da historicidade destas com o inconsciente dos
indivíduos abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem”.
33 Ibid. p.525-526.
34 Foucault, M. Loucura. Literatura, Sociedade. Entrevista com T. Shimizu e M. Watanabe. Bungei, nº 12. dezembro
de 1970, p.266-285.
40
1975 – Foucault faz duas conferências em Paris (Nietzsche, Freud e Marx e
outra Theatrum Philosoficum); duas em Berkeley (Discurso e repressão e A
sexualidade infantil antes de Freud35); na Universidade de São Paulo (Freud e Max ao
infinito. O trabalho político vem dos antigos quadros sindicais e intelectuais).
Nesse mesmo ano Foucault pediu à editora Gallimard um adiantamento em
dinheiro para um projeto. Quando o fizeram assinar um contrato de exclusividade por
cinco anos, Foucault decidiu que seu próximo livro — posteriormente intitulado A
vontade de saber — seria pequeno e que não haveria outro durante cinco anos.
O ano de 1975 é repleto de acontecimentos dignos de nota. Em agosto Foucault
termina de escrever A vontade de saber. Em novembro faz uma conferência na
Faculdade de Filosofia da Bahia (Crítica da concepção jurídica do poder de Marx e de
Freud, da social-democracia e do investimento do campo sexual pelo Estado). E em
dezembro publica A vontade de saber, o primeiro volume da História da sexualidade.
De acordo com Defert, este livro foi concebido por Foucault “como um manifesto com
o qual se deve marcar um encontro”. A vontade de saber vai de encontro à expectativa
do público que não esperava uma crítica à hipótese repressiva. É digno de nota o
comentário de Defert acerca das intenções do autor na época: “O livro se apresenta
como uma introdução a uma história da sexualidade em seis volumes, mas o autor
confidencia não ter a intenção de escrevê-los”.36 Por fim, A vontade de saber foi mais
bem recebida nos movimentos feministas e gays do que nos meios intelectuais.
De acordo com A vontade de saber, a narrativa histórica sobre a qual a
psicanálise freudiana se vinculou por tanto tempo é aquela segundo a qual no início
do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza relativa às práticas e às palavras
de ordem sexual. Mas esse tempo teria se fechado com a chegada da burguesia
vitoriana.
Foucault frisa que desde a Idade Média a sexualidade vem sendo muito
estudada, vem sendo interrogada e extorquida, trazida à tona em discursos e em
confissões obrigatórias. Curiosamente, muitos dos que se acreditam subversivos, por
expressarem sua sexualidade, não fazem mais do que obedecer a uma requisição
secular para tudo falar sobre seu desejo.
Foucault diz que seria muito bom que um psicanalista retratasse em termos de
história a interrogação sobre a sexualidade.
Acho que Lacan teria recusado este termo de ‘revolucionário’ e a própria ideia
de uma ‘revolução em psicanálise’. Ele queria apenas ser ‘psicanalista’. Isso
supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer
depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado
da psicologia.
39 Foucault, M. Lacan, o “Libertador” da Psicanalise entrevista com J. Nobecourt: trad. A. Ghizzardi). Corriere dela
sera. vol. 106, nº 212,11 de setembro de 1981. p.1.
40 Foucault, [1976] 1999, p.298.
43
(Foucault, 1981, p.1)
41 Ibid. p.299.
42 Foucault, M. Entrevista de Michel Foucault, entrevista com J. François e J. de Wit, 22 de maio de 1981, 1984.
44
(Foucault, [1981] 1999, p.310)
43 Foucault, M. Dits et Écrits (1954-1988), vol. I, nº 37, p.513-514. Paris: Gallimard, 1994. 4 v.
45
2. As práticas e técnicas de si ou os exercícios espirituais
44 Embora o seminário tenha sido pronunciado originalmente em francês com o título Les technique de soi, o texto
que se encontra na edição brasileira dos Ditos e escritos (volume IX) com o qual trabalhamos foi traduzido do texto
em inglês: Technologies of the self. A seminar with Michel Foucault, Amherst, The University Massachusetts Press,
1988, p.16-49.
45 Foucault, 2014, p.264.
46 Ibid. p.265.
46
Foi ao se indagar: O que se deve conhecer de si para aceitar a renúncia? —
que a pesquisa de Foucault se direcionou às hermenêuticas das técnicas de si nas
práticas pagãs e depois nas práticas cristãs dos primeiros séculos. Essas técnicas e
práticas eram pouco conhecidas e todo um trabalho de reconstituição de seu quadro
teórico se fez necessário. Isso em razão, primeiro, do cristianismo sempre ter se
interessado mais pela “história de suas crenças do que pela de suas práticas efetivas”.
Em segundo lugar: “esse tipo de hermenêutica, contrariamente à hermenêutica
textual, jamais foi organizado em um corpo de doutrinas”. Em terceiro lugar: operou-
se “uma confusão […] entre a hermenêutica de si e as teologias da alma”, de modo
que passaram muito tempo indistintas.47 A quarta razão, não obstante a mais
hipotética, merece destaque: “Uma hermenêutica de si se difundiu em toda a cultura
ocidental, infiltrando-se por inúmeros canais e integrando-se em diversos tipos de
atitudes e experiências, de forma que é difícil isolá-la e distingui-la de nossas
experiências espontâneas”. 48
No panorama de reflexão sobre as técnicas, Foucault as divide em quatro
grandes grupos: as técnicas de produção; as técnicas de sistemas de signos; as
técnicas de relação de poder; e as técnicas de si, “que permitem os indivíduos efetuar,
sozinhos ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua
alma, seus pensamentos, suas condutas, seu modo de ser”. 49 Mais do que isso,
ligadas ou não a religiões e doutrinas de salvação, elas visam tal transformação do
sujeito que alinhe seu ser a certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição
ou mesmo imortalidade. Essas técnicas quase nunca funcionam separadamente,
sempre estão associadas a algum tipo de dominação e implicam alguns modos de
educação e transformação dos indivíduos. Foucault quis descrever ao mesmo tempo
a especificidade dessas técnicas e sua interação constante.
Os discursos que sustentam as práticas e técnicas de si, tanto no período
clássico quanto no tardio da Antiguidade, são de natureza bastante diversa. Discursos
filosóficos, morais, pedagógicos, médicos… Enfim, todo um feixe discursivo de relativa
influência conforme a doutrina, a escola filosófica, o cânon médico ou vinculação
institucional e política que lhe outorgue a função meritória de direção de consciência
47 Ibid. p.265.
48 Ibid. p.265.
49 Ibid. p.265.
47
(no caso de uma relação de mestria ou afins) ou de simples manual (para certas
circunstâncias da vida).
No entanto, cabe salientar que uma parte considerável das práticas e técnicas
de si, e, principalmente, das regras de conduta, não se ancora explicitamente em
discursos teóricos. A admissão de uma regra para a vida, embora sempre facultativa,
muitas vezes dá-se tacitamente, por influência da tradição. Esse aspecto de
defasagem entre a dimensão teórica e a dimensão prática das artes da existência fica
mais claro nos cursos do que nos livros. O formato oral e expositivo das aulas permite
que se acompanhe de perto a atividade reflexiva do autor e a lenta formação, com
margem para retificações, do escopo teórico. Tomemos como exemplo A
Hermenêutica do Sujeito, curso ministrado em 1982. Vê-se desenvolver lentamente,
e reiterada de diversas maneiras, a maior parte das conclusões, provisórias e
intermediárias que sejam. Com o volume editado do curso, é como se tivéssemos em
nossas mãos, sob nossos olhos, uma ressonância do labor filosófico do autor. Quem
assistira as aulas tivera acesso a uma espécie de laboratório filosófico. Poucas
situações poderiam com essa competir o título de “laboratório filosófico”, pois tratava-
se, de fato, de uma atividade, de uma filosofia em ato.
Uma das teses mais importantes sustentadas por Foucault sobre essas práticas
e técnicas de si diz respeito aos princípios que as regem. Há, por um lado, o tradicional
princípio délfico do “conhece a ti mesmo” (gnôthi seautón) e, por outro, o princípio do
“cuidado de si” (epiméleia heautoû) tantas vezes evocado por Sócrates. Contrariando
a história tradicional da filosofia, a análise de Foucault proclama a proeminência do
“cuidado de si” em detrimento do “conhecimento de si”. Embora seja sob a égide do
princípio do “cuidado de si” que essas práticas e técnicas de si se encontram ao longo
de toda a Antiguidade, os referidos princípios não são mutuamente excludentes, mas
preceitos para a vida e imperativos que implicam a assimilação das verdades (logoi).50
49
(Hadot, 2014, p.278)
57 Ibid. p.279.
58 Ibid. p.279.
59 Ibid. p.280.
50
Foucault, por sua vez, embora faça constantes referências às pesquisas de
Pierre Hadot (particularmente àquelas voltadas aos exercícios espirituais), não se
detém às divergências existentes entre suas concepções nem se defende das críticas
feitas a ele por Hadot. Cabe observar que o diálogo entre Foucault e Hadot foi muito
breve, já que Foucault morre em 1984, apenas três anos depois da primeira edição
do livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga do Hadot. Ademais, sabe-se que dos
trabalhos de Hadot sobre os exercícios espirituais, dois se tornaram referências
importantes para Foucault: Epistrophè e metanoia nas história da filosofia (1953)60 e
Exercícios Espirituais (1975-1976)61.
62 1954, 1961a, 1961b, 1962, 1963, 1963, 1966, 1969a, 1969b, 1971 (1970), 1973, 1975, 1976, 1984a, 1984b,
1986, 1989 (1970-1982), 2017.
63 1971 (1970-1971), 1972 (1971-1972), 1973 (1972-1973), 1974 (1973-1974), 1975 (1974-1975), 1976 (1975-
1976), 1978 (1977-1978), 1978, 1979 (1978-1979), 1980 (1979-1980), 1981 (1980-1981), 1982 (1981-1982), 1983
(1982-1983), 1985 (1983).
64 1994 (1954-1988).
65 Manuscritos para consulta nos arquivos Michel Foucault da Bibliothèque nationale de France.
52
componente da própria obra, o préstimo das iniciativas para realização de uma
bibliografia da obra e de seus comentadores é indiscutível. Ainda que não exaustiva
e, no que tange aos comentadores, necessariamente incompleta, cada
empreendimento dessa natureza, quando suficientemente bem-sucedido, produz
efeitos de atualização na esfera daquela filosofia. Demarcando, na ordem dos
discursos, a situação de um campo de discursividade (que compreende, quanto aos
enunciados originais e fundadores, modalidades da função-autor, e quanto à
bibliografia secundária, relevantes posicionamentos de comentadores e críticos),
estabelece-se uma perspectiva do estado da arte dessa filosofia.
Considerando a amplitude do material, e a dificuldade adicional imposta pela
característica múltipla e, de certo modo, fragmentária do pensamento de Foucault,
não demorou muito até que a obra completa (no sentido de uma apresentação
conjunta da produção) se encontrasse, ainda que virtualmente, em condição de
acessibilidade geral. Com a publicação de As confissões da carne (2018), último
volume da História da Sexualidade, a obra parece ter recebido da parte do autor a
derradeira contribuição e remate. Pois com ela não veio à tona apenas mais um livro
ocasionalmente deixado inacabado, mas, pelo contrário, já substancialmente
terminado entre 1981 e 1982, teve sua publicação escrupulosamente postergada
justamente por consistir numa peça que, no encadeamento das publicações, coloca
os principais trabalhos anteriores em perspectiva.
Mais do que o último livro do autor, conclusão pressentida de uma longa
pesquisa sobre a sexualidade no mundo antigo, As confissões da carne tanto
desenvolve a etapa capital da genealogia do homem de desejo no Ocidente — sua
principal tese — como, sob uma perspectiva performática, pode ser tomado como um
gesto filosófico em estilo propriamente foucaultiano. Deste modo, nenhuma
apresentação de seus trabalhos poderia ser qualificada de completa sem a publicação
desse último livro.
Com efeito, é ao conceber o ato filosófico como performance que se evoca, de
forma oportuna, a realidade do jogo. Pois, assim como nos jogos, é possível indicar
no ensejo do ato filosófico o elemento pueril, o aspecto lúdico atravessando-o de ponta
a ponta e a perpétua báscula entre gratuidade e dispêndio, sem que com isso se
conteste seus efeitos no mundo.
53
Já na ocasião de lançamento de História da Sexualidade I: A vontade de saber
(1976), houve algum alvoroço acerca das teses ali levantadas. A defesa de um
dispositivo biopolítico moderno da sexualidade (séculos XVI-XIX) em detrimento de
uma hipótese repressiva de origem mais ou menos freudiana (que marcara a
passagem do século XIX ao XX) suscitou discussões em alguns domínios, em
especial entre psicanalistas franceses. Vejamos porquê.
De acordo com A vontade de saber, não parece que estamos enfim liberados
da repressão que, durante os últimos dois séculos, recaiu sobre nossa sexualidade.
Os que observam algo nesse sentido geralmente dão mérito à Freud. Porém, com
quais preocupações científicas, com que prudência médica, com que discrição e por
meio de que manobras Freud evitou que a sexualidade transbordasse e, gerando
lucro, se mantivesse dentro do consultório?66 Com efeito, Foucault denuncia o
conformismo de Freud, as funções de normalização da psicanálise e sugere que não
devemos esperar significativos efeitos de liberação de uma prática profissional ou de
um discurso teórico. Segundo considera que se esse discurso sobre a repressão
moderna do sexo se sustenta, é porque é fácil de ser dominado. Para isso, há um
princípio de explicação normalmente aceito:
[…] se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma
colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora
sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse
dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe
permitem reproduzir-se?
Em contrapartida, frisamos que uma vez que o sexo não se deixa dominar por
inteiro e, com insistência, se rebela, a política também deve se encarregar dele e
inscrevê-lo no futuro. Foucault questiona se não seria essa reiterada afirmação da
repressão que nos impediria de vincular revolução e felicidade, revolução e um outro
corpo ou mesmo revolução e prazer. “Falar contra os poderes, dizer a verdade e
prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; […]
eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em termos de
66 Foucault (1999, p.13) comenta: “somos a única civilização em que certos prepostos recebe retribuição para
escutar cada qual fazer confidência sobre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera
tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em
locação. Mais do que essa incidência econômica, o que me parece essencial é a existência, em nossa época, de
um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a
promessa de uma certa felicidade, estão ligados entre si”.
54
repressão […]”.67 Porém, dizer que o sexo não é reprimido ou que sua relação com o
poder não é de repressão, contraria toda a economia e interesses discursivos que a
sustentam.68
Enfim, composto essencialmente de ensaios críticos e formulação de
hipóteses, A vontade de saber é o livro mais distinto da série sobre a sexualidade.
Apesar da economia de referências quando comparado a outros livros de Foucault,
seus efeitos nada desprezíveis não se limitaram à esfera livresca. A título de exemplo,
tomemos a cena inicial da sabatina transcorrida, a pretexto de entrevista, com nove
psicanalistas em 1977, pouco depois da publicação do livro.
[…] estou realmente contente de estar aqui com vocês. Foi um pouco por isso
que escrevi esse livro dessa forma. Até o momento, eu tinha empacotado as
coisas, não tinha poupado nenhuma citação, nenhuma referência, e havia
proposto problemas um pouco complicados, que ficavam a maior parte do
tempo sem resposta. Donde a ideia desse livro-programa, espécie de queijo
de gruyère, com furos, para que pudéssemos nos alojar neles. Eu não quis
dizer “Eis o que penso”, porque não estou ainda muito seguro do que estou
adiantando. Mas queria ver se isso podia ser dito e até onde isso podia ser
dito, e, é claro, há o risco de isso ser muito decepcionante para vocês. O que
há de incerto no que escrevi é certamente incerto. Não há astúcia, não há
retórica. E não estou certo, também, do que vou escrever nos livros seguintes.
É a razão pela qual eu gostaria de ouvir o efeito produzido pelo discurso
hipotético de modo geral. Parece-me que é a primeira vez que encontro
pessoas que querem jogar esse jogo que eu lhes proponho em meu livro.
67 Ibid, p.12-13.
68 Ibid, p.13-14.
69 Foucault, M. O jogo de Michel Foucault [1977] in Foucault, M. Ditos & Escritos: IX Genealogia da ética,
56
Tratar-se-ia de um jogo no qual seria proposto escrever (estabelecer uma
narrativa) não sobre o que o sujeito já sabe, mas sobre algo que, embora não saiba
ou sobre o qual não esteja seguro (ou justamente por isso) mobiliza sua vontade de
saber. Tratar-se-ia, em nossa concepção, de um jogo que visaria proporcionar a maior
quantidade de participantes possíveis (ou seu equivalente em intensidade,
engajamento, etc.) uma experiência tal que os transformasse sem anulá-los. Tratar-
se-ia de propor que os participantes fizessem seus próprios “experimentos
genealógicos”: Em síntese, podemos pensar o referido jogo proposto por Foucault
como um “concurso” de narrativas históricas cuja produção envolve experiências
potencialmente transformadoras.
Entretanto, ainda que essa óptica assumida em A vontade de saber tenha sido
posta de lado pouco tempo depois, os ensaios que compõem essa obra fazem dela
algo mais que um mero “livro programa”, independentemente de suas teses terem
sido ou não testadas. Talvez seja o caso de considerá-la, inclusive, como gesto
filosófico supremo de um pensador que estava menos engajado com as hipóteses ali
propostas do que levado pela esperança lúdica de angariar rivais dispostos a travar
debates sobre elas. Afinal, se tomarmos por base essas suas palavras — “estou
70 A quarta capa de A Vontade de Saber anuncia originalmente uma sequência em 5 tomos: II. A carne e o corpo;
III. A cruzada das crianças; IV. A mulher, a mãe e a histérica; V. Os perversos; VI. População e raças. Mas nenhum
desses livros foi escrito. Contudo, segundo Frédéric Grós, o primeiro e segundo títulos são objetos de textos
contidos nos arquivos (Caixas XLIV e LI). GROS, F. In: Foucault, M., 2020.
57
realmente contente de estar aqui com vocês. Foi um pouco por isso que escrevi esse
livro dessa forma. Até o momento […] havia proposto problemas um pouco
complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta” —, seria isso ou
morrer de tédio. Não estaria Foucault em busca de qualquer cabeça pensante que,
em vez de se juntar a ele, lhe fizesse oposição e o instigasse a pensar diferentemente
do que já pensava? Se o jogo do pensamento consigo mesmo nos parece generoso,
se continua produzindo frutos, não é, em absoluto, por operar feito um monólogo
existencial. Ainda que o sujeito esteja a pensar trancado num quarto, longe de todos
que respiram, ele só concebe algo novo, só lhe advém uma nova ideia porque ele
internalizou um mundo de vozes antes de se isolar e se fechar sobre si.
Acompanhado, assediado, atormentado por um sem-número de vozes a lhe indagar,
a lhe questionar, a lhe censurar… Só assim o jogo do pensamento consigo mesmo
pode criar algo inédito, diferente do que fora até então. Sem um outro, sem a radical
alteridade, só resta a repetição inócua do mesmo.
Depois do livro de 1976 decorreu-se um relativo silêncio sobre a temática da
sexualidade na trajetória de Foucault. Sendo que nos cursos,71 por seu turno, se
empreendia uma elaboração de novos conceitos operadores de análise (1978–1979).
Para ter uma noção de conjunto, sublinhamos alguns pontos que nos interessam.
São seis os cursos correspondentes ao período ético ou, se preferirem, ao eixo
ético do pensamento de Michel Foucault. O primeiro deles, Do governo dos vivos
(1979–1980),72 se situa, justamente, no momento de transição da analítica do poder
para a genealogia da ética. Desenvolve a noção de “aleturgia” (de produção da
verdade do sujeito por ele mesmo) e de governo dos homens pela verdade. Por meio
de um primeiro exame das tecnologias do sujeito do cristianismo católico (batismo,
exomológēsis e exagóreusis), adentra, enfim, e de forma definitiva, no domínio da
ética. Em síntese, trata-se aí de uma genealogia da obediência cristã caracterizada
pela obedientia, a patientia e a humilitas.
O segundo desses cursos, Subjetividade e verdade (1980–1981),73 é
particularmente interessante para a problemática da historicidade do desejo por trazer
71 Quando mencionamos os cursos do Collège de France, geralmente indicamos o ano em que o autor inicia sua
pesquisa, seguido do ano em que ministra o curso.
72 Outra versão do conteúdo dessas análises estarão presentes nos volumes seguintes da História da Sexualidade.
73 Apesar da originalidade, boa parte das hipóteses deste curso não serão retomadas. O que permanece, todavia,
é a inflexão das análises no campo da ética. Neste sentido, debruçando-se sobre textos médicos, tratados de
casamento, interrogando o primado grego ativo/passivo nas distinções de gênero, essas aulas prenunciam O uso
dos prazeres e O cuidado de si.
58
hipóteses concernentes aos acontecimentos históricos e processos de subjetivação
envolvidos na mudança de um regime para outro da subjetividade ocidental. Através
do exame da experiência sexual ou, mais precisamente, da apreciação ética dos
prazeres sexuais na cultura antiga, delineia-se a estrutura da experiência antiga dos
aphrodisia74 (isto é, das práticas relativas ao prazer sexual). A experiência dos
aphrodisia é, a saber, seguida historicamente pela experiência cristã da carne que,
por sua vez, é seguida pela experiência da subjetividade moderna ancorada na
sexualidade.75 Foi, nos primeiros séculos de nossa era, a confiscação da experiência
sexual legítima para o interior do matrimônio e a crescente suspeita relativa aos atos
e prazeres sexuais que provocaram, por um lado, a subjetivação dos aphrodisia e, por
outro, a objetivação do desejo. Esses dois acontecimentos na subjetividade ocidental
propiciaram uma nova relação do sujeito com sua própria experiência sexual. É no
monaquismo cristão dos séculos IV e V, no entanto, a partir da intensificação da
relação do sujeito com sua própria sexualidade e a submissão desta relação às
técnicas de exame exaustivo, que emerge o sujeito de desejo. Ou seja, é do monge
sexualmente solitário e submetido às técnicas de confissão como o exame de
consciência que se começa a produzir um saber sobre o desejo. Estamos, então, nos
primórdios dessa vontade de saber sobre o desejo.
O terceiro curso, Malfazer, dizer verdadeiro: Função da confissão em juízo
(1981), apresenta uma história mais geral das tecnologias do sujeito, retomando,
inclusive, o exame de várias delas. Por exemplo, o exame de consciência pitagórico,
o exame de consciência estoico e o exame de consciência no monasticismo; a
orientação de consciência antiga e a orientação de consciência no monasticismo; a
penitência no cristianismo primitivo (exomológēsis) e a prática da veridicção nas
instituições monásticas dos séculos IV-V (exagóreusis); a exposição da alma
(expositivo animae) estoica e a publicação de si mesmo (publicatio sui) como pecador
no cristianismo primitivo; enfim, várias formas de “confissão” que vai da autoveridicção
espontânea até a confissão sob tortura como prova legal, passando pela confissão
sob tortura como prova inquisitorial. O fio condutor de todas essas análises é, no
entanto, como sugere o título, a função da confissão em juízo, a relação entre o
malfazer do sujeito e a necessidade desse mesmo sujeito de dizer a verdade sobre si
74 Não havendo em francês e, pelo menos, na maioria das línguas modernas palavras que correspondam ao termo
grego aphrodisia, Foucault geralmente o emprega sem traduzi-lo.
75 Parte desses desenvolvimentos também serão retomados nos próximos volumes da História da Sexualidade.
59
mesmo. Todas essas análises desembocam, no fim das contas, na problematização
da questão da subjetividade criminosa do século XX, da hermenêutica do sujeito
criminoso e da significação do criminoso para ele mesmo.
A hermenêutica do sujeito (1981–1982) é, sem sombra de dúvidas, o curso
mais conhecido de Foucault, tanto que foi o primeiro dos cursos remanescentes a ser
editado, tal como o primeiro a ser publicado no Brasil. Ainda na esteira da problemática
geral da subjetividade e verdade, nele fora realizada uma laboriosa investigação
acerca da noção de “Cuidado de si” (epiméleia heautoû) de modo a demonstrar sua
prevalência sobre o célebre princípio do “Conhece-te a ti mesmo” (gnōthi seauton) no
que diz respeito a organização das práticas filosóficas. Essas análises incidiram sobre
os modos de constituição do sujeito, lançando luz sobre os modos de subjetivação
antiga e, colateralmente, evidenciando a precariedade dos modos de subjetivação
modernos. Digamos, de modo geral, que foi a partir da relação entre “conhecimento
de si” e “cuidado de si”, no contexto das “técnicas e práticas de si”, e nas adjacências
do estatuto do discurso filosófico e da espiritualidade, que se recolocou a questão das
condições de acesso à verdade. Foucault desenvolveu, nesse curso de 82, a despeito
do maciço contrapeso das interpretações tradicionais, uma análise inédita e de todo
fecunda referente ao célebre aforismo délfico (gnôthi seauton). Tratava-se aí de
questionar nada menos do que sua primazia. Contudo, ao julgar pela variedade de
significações que sobrecarregavam o status dessa máxima, o ponto donde partiu a
análise, o Primeiro Alcebíades, foi a um só tempo estratégico e justificável. Ora,
sabemos que a figura de Sócrates, mais do que qualquer outra, fora largamente
associada ao conhecimento de si. Mas importa lembrar também que fora sob a forma
de injunção a esse ou àquele homem livre que, particularmente, a simples expressão
da máxima passou a remeter a Sócrates e vice-versa. Logo, para colocar em questão
a primazia do gnôthi seautón, importava restituir, em torno do personagem de
Sócrates e no uso que este lhe dá, em que consistia o “conhecimento de si” ou, pelo
menos, o “conhecimento de si” socrático-platônico.76
76 Ademais, era de se esperar que uma tarefa significativa como a de questionar a primazia do gnōthi seauton
pudesse incitar desconfianças e, no mínimo, provocar o ceticismo de alguns. Por isso parece razoável supor que
fora para situar a análise à altura de sua pretensão e abrandar as resistências iniciais à sua tese (que de outro
modo talvez sequer fosse considerada), que pareceu adequado apoiá-la no célebre diálogo de Platão — a
propósito situado por neoplatônicos no pórtico de seu pensamento — no qual Sócrates discute com Alcibíades não
só o princípio do “conhece a ti mesmo” (gnōthi seauton), como também o do “cuidado de si” (epiméleia heautoû).
No que concerne à relação ou a dinâmica entre esses dois princípios, há de se considerar as respectivas e
complexas alternâncias de acentuação ocorridas por ocasião da organização das práticas filosóficas ao longo da
Antiguidade grega e romana.
60
Em O governo de si e dos outros (1982–1983), partindo mais uma vez da
questão kantiana sobre a Aufklärung — “O que é o esclarecimento? —, aborda-se a
questão da saída do estado de menoridade e o exercício da atividade crítica como
condição para o governo de si. Em seguida, empreende-se uma genealogia da prática
da parrésia, de seu uso clássico (político) ao socrático-platônico (ético). Esse curso
dá prosseguimento, portanto, à análise do Sócrates de Platão iniciada no curso do
ano anterior, mas dessa vez em torno, sobretudo, da prática da parrésia ética. A
relação parresiástica é, então, esmiuçada, decomposta e expostos os elementos que
a constituem. Por fim, a partir de um exame das Cartas de Platão e de uma
interpretação original do discurso platônico, discorre sobre o tema da filosofia como
modo de vida e apresenta uma visão da filosofia antiga (e da filosofia moderna, no
que esta última retoma da filosofia antiga) como prática da alma.
No último curso A coragem da verdade (1983-1984), segue-se com a
genealogia da parrésia e a distinção entre esta e outras modalidades do dizer-
verdadeiro na cultura antiga. Um lugar de destaque é dado às práticas do dizer-a-
verdade sobre si mesmo e à figura do mestre de existência no horizonte do cuidado
de si, assim como à consideração do objeto do dizer-a-verdade parresiástico.
Demarca-se o surgimento de uma parrésia propriamente ética. A parrésia socrática
ou socrático-platônica é analisada de vários ângulos, assim como a parrésia cínica.
Aborda-se também o problema da vida filosófica e a consideração de seus elementos
tradicionais (a armadura de vida, o cuidado de si, os conhecimentos úteis e a vida
conforme). A responsabilidade da humanidade e o governo do mundo. A soberania
da vida cínica é baseada na felicidade e na manifestação da verdade. A atitude cínica:
conforme a verdade, conhecimento de si, vigilância dos outros. A transformação de si
e do mundo.
Nesse ínterim, no que concerne aos livros, uma vez que só oito anos depois do
primeiro volume da série sobre a sexualidade surgiram o segundo e terceiro volumes
— O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si (1984) —, e só recentemente fora
publicado o último, uma síntese dos cursos se fazia necessária para melhor situar o
complexo desenvolvimento dessa história crítica.
Em O uso dos prazeres77 foram anunciadas as modificações, a propósito,
radicais, feitas em relação ao projeto inicial. Essas alterações referentes à
62
sexualidade no Ocidente. Cada um dos ensaios possui certa independência em
relação aos demais. Essa independência permite que determinado ensaio possa ser
tomado como peça de um ato filosófico maior ou como um ato filosófico em si
mesmo.78 Lembremo-nos da comparação das noções foucaultianas com uma caixa
de ferramenta e de Foucault ter se referido ao primeiro volume da História da
Sexualidade como uma “espécie de queijo de gruyère, com furos, para que
pudéssemos nos alojar neles”. 79
Em segundo lugar, na leitura dessa história da sexualidade tanto importa
considerar seu conteúdo sem perder de vista sua forma como reparar na forma sem
afastar-se do conteúdo. Ou seja, convém manter certa sensibilidade intelectiva em
relação ao que se depreende da forma, do próprio formato ensaístico que a compõe
e dos efeitos que tem sobre a atividade reflexiva. Assim como convém, por outro lado,
cultivar um estado de espírito desimpedido que favoreça as experiências do
pensamento diante dos conteúdos (específicos de cada análise). Desnecessário dizer
que a experiência do pensamento com a forma e com o conteúdo de um ato filosófico
(em relação ao qual o típico texto é apenas um formato) nunca é completamente
distinta uma da outra, mas imbricada e complementar.
Ao que, afinal, somos mais fiéis à forma ou ao conteúdo? Uma vez que
estivermos a par do conteúdo informacional, abdicaremos da apreciação da forma? O
que importa é o que é dito ou o como é dito? Não é como se a forma tivesse, ela
mesma, algum tipo especial de conteúdo? E se, pelo contrário, o conteúdo estiver
desorganizado, rasurado, disforme, manchado, nos debruçaremos sobre ele com o
mesmo afinco? Não deveria a forma nos conduzir pela mão sobre os escombros do
conteúdo? Não deveria a forma nos fazer ver o mesmo conteúdo de outra maneira?
Nos fazer ver coisas inéditas no mesmo? Alguns consideram o ensaio um tipo de texto
híbrido, situado entre a filosofia e a literatura. Foucault, no entanto, o considera “o
corpo vivo da filosofia”. Assim o descreve numa passagem de O Uso dos Prazeres:
78 Por exemplo, O trabalho da alma (capítulo IV, seção 4) de O Cuidado de si, é um “texto ferramenta” com
significativa independência dos demais.
79 Foucault, [1977] 2014, p. 44.
63
(Foucault, [1984] 2014, p.13-14, grifo nosso)
Devemos compreender que “ascese” tem aqui — por isso as aspas — o sentido
de áskēsis, o de um exercício de si sobre si, sobretudo, no pensamento. Significa que
o labor ao mesmo tempo intelectual e afetivo que caracteriza o ensaio é refletido no
próprio ser do sujeito. O esforço empreendido no ensaio é experimentado como um
exercício espiritual, como um exercício sobre si mesmo. O ensaio subentende uma
relação com a verdade, uma dinâmica com a verdade, uma interação com a verdade,
enfim, todo um jogo constitutivo entre o sujeito e a verdade que configura uma
experiência transformadora de si.
Com efeito, a respeito da verdade que se encontra em jogo no ensaio, disse
Jorge Lorrosa em Operação ensaio (2014) que “trata-se não tanto da verdade
subjetiva, como da verdade da subjetividade”. O que é comunicável? O que vale a
pena escrever? “O que vale a pena pensar não é o real abstrato e nem o real empírico;
não é a verdade mais ou menos definitiva do que são as coisas, mas a experiência
viva de alguém, o sentido sempre aberto e móvel do que nos acontece”. 80
Por que o ensaio parece manter, comparado a outras formas de escrita, uma
relação especial com a verdade? Qual é a especificidade da relação do ensaio com a
verdade? Acontece que, no ensaio, o sujeito ocupa o lugar de fundamento da verdade.
“Dissolvidas as garantias transcendentais, o sujeito não tem outro fundamento a não
ser aquele que ele mesmo seja capaz de se dar”. 81 Por isso, observa Larrosa, o sujeito
“oscila entre sua precariedade e sua arrogância, o reconhecimento de sua
insubstancialidade e sua vontade de fazer-se a si mesmo e de fazer o mundo”.82 Por
que o ensaio pode dar ensejo a uma experiência modificadora de si?
Não se trata de medir o que há, mas de medir-se com o que há, de
experimentar seus limites, de inventar suas possibilidades. A verdade do
ensaísta não é algo exterior, mas algo que a própria vida faz. Trata-se da
verdade da subjetividade, da verdade feita subjetividade — e de uma
subjetividade que se faz verdadeira no ato mesmo de ensaiar-se. O ensaísta
sempre escreve e pensa sobre si mesmo e a partir de si mesmo. O valor de
sua escrita e de seu pensamento não se apoia em nada exterior, em nenhuma
autoridade, em nenhuma convenção. Por isso, o ensaísta arca com a
responsabilidade do que é dito, e é essa responsabilidade que o torna
verdadeiro. O ensaio tem algo da expressão de uma subjetividade, da
biografia de uma subjetividade. Mas desde que essa subjetividade expresse
um mundo, o seu mundo. E, também, desde que essa subjetividade se ponha
80 Larrosa, J. A operação ensaio. Sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação
& Realidade. 29(1):27-43 jan/jun 2004. p.38.
81 Ibid. p.36.
82 Ibid. p.36.
64
à prova, se ensaie, se invente e se transforme. Por isso, o ensaísta não só
põe em questão o que somos, o que sabemos, o que pensamos, o que
dizemos, o modo como olhamos, como sentimos, como julgamos, mas, acima
de tudo, põe em jogo a si mesmo nesse questionamento. Por isso, o ensaio
é, também, olhar a existência a partir dos possíveis, ensaiar novas
possibilidades de vida.
65
4. Situação do jogo
86 Ibid. p.34.
66
uma de um passado mais ou menos longínquo e outra de um período mais recente,
não deixa de considerar quais acontecimentos foram necessários e suficiente para
suprimir uma e constituir a outra, o que quer dizer: eis como, a partir de tais
acontecimentos historicamente assinalados, demarcados e analisados nos
constituímos enquanto tais, nos tornamos o que somos. Em suma, um dos aspectos
que está sempre em jogo é: quais discursos, práticas e normas atuam em dado
momento histórico determinando uma forma de ser e de agir do sujeito consigo mesmo
e com os outros? Tanto que em 1984, num artigo intitulado Uma estética da
existência87 (1984), o próprio Foucault dirá a respeito de seus últimos livros — O uso
dos prazeres (1984) e do O cuidado de si (1984) — que não acredita haver grande
diferença entre eles e os anteriores.
Desse modo, poderíamos afirmar que, no fundo, todos os livros de Foucault
visam algo semelhante: em primeiro lugar, fazer um retrato do sujeito, ou antes, traçar
perfis do sujeito moderno ocidental (do louco, do delinquente, do anormal…) de modo
a colocá-lo em evidência sob esse ou aquele ângulo até então não visto; em suma,
demonstrar, relativamente à subjetividade, a contingência histórica do que é. E em
segundo lugar, incitar seus contemporâneos a, diante de uma nova percepção do
sujeito, se implicarem com questões da atualidade, com questões do presente
histórico que os constituem enquanto tais e atravessam a experiência que fazem de
si mesmos. Em termos mais simples, seria como botar um espelho diante das
pessoas, um espelho que não mostrasse apenas a imagem atual de cada uma, mas
várias imagens da construção de seu jeito de ser, de agir e dos problemas que,
embora reais, são tão cotidianos que, uma vez naturalizados, se encontravam
dissimulados. E o que se pretende com isso? O que se tem em vista ao proporcionar
essa visão às pessoas? Estimulá-las a se importarem com esses problemas, é claro.
Contudo, o que realmente podemos esperar de alguém implicado com as
problemáticas de seu presente histórico? O que, de fato, uma pessoa real poderia
fazer? Por mais incitada que tenha sido, por mais encorajada que se encontre e por
maior que seja o entusiasmo com o qual respondera à exortação do filósofo, o que
realmente podemos esperar dela? Que percurso deve conduzi-la à ação?
Ora, a necessidade de que o sujeito se ocupe consigo mesmo, de que cuide
ativamente de si mesmo de maneira a aplicar-se de forma regrada e contínua numa
Mas que graça teria fazer o que quer que seja inteiramente sozinho? Em
realidade, tal empresa não é sequer concebível. E ocupar-se consigo mesmo, aplicar-
se, trabalhar-se, exercitar-se e experimentar-se de novas maneiras só faz sentido
quando têm por objetivo estabelecer uma relação tal consigo mesmo que viabilize
alcançar um determinado modo — que se almeja — de se relacionar com o outro.
Assim, o outro é, de certo modo, uma medida para o sujeito, um referencial, um
parâmetro, seu fim depois de si e fora de si. Pois assim como, para os antigos, a
salvação não era um individual, mas coletiva, Foucault nunca se conformou
completamente com a ideia de uma prática filosófica isolada, solitária, pois, para ele
a filosofia é, assim como a amizade, um modo de vida. E como modo de vida, como
questão de existência, a filosofia só encontra seu real quando, dando ensejo à verdade
no sujeito ou dando a este acesso à verdade, arranca-o de si e o transfigura.
Como disse, a amizade era algo importante para Foucault. Na entrevista Da
amizade como modo de vida88 concedida ao jornal Gai Pied e publicada em abril de
1981, ele fala sobre amizade e homossexualidade: “Tão longe quanto me recordo,
88De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada
no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, p.38-39.
68
desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso sempre foi, para mim, algo
importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de
existência”.89 E é como uma questão de existência que valoriza, sobretudo, o
compartilhamento de experiências: “compartilhar seus tempos, suas refeições, seus
quartos, seus lazeres, suas aflições, seus saberes, suas confidências”. 90 Embora essa
passagem diga respeito mais à sua vida pessoal do que a qualquer outra coisa, indica-
se aí duas coisas importantes: uma concepção de amizade como modo de vida e o
quanto Foucault valoriza o compartilhamento de experiências. Por que essas
informações são importam? Porque vemos nítidas ressonâncias disso no Foucault
filósofo que, além de apreciar o compartilhamento de experiências, o diálogo, o
debate, parecia almejar algo mais, algo como o compartilhamento de uma experiência
com a qual estava habituado, a experiência de transformação por meio da pesquisa e
da prática filosófica. Parecia querer compartilhar essa experiência não com um grande
público, como ocorria nos cursos do Collège de France, mas com um pequeno grupo,
mais próximo, mais íntimo.
Pois bem, vamos por partes. Que Foucault buscava ativamente interlocutores,
há numerosas indicações disso em entrevistas, em passagens dos cursos no Collège
de France e em declarações de pessoas próximas. Seu desejo era de aproximar, tanto
quanto possível, a forma de seu curso à de um seminário. A aula de 3 de fevereiro de
1982 do curso A hermenêutica do sujeito, por exemplo, começa, por sugestão do
próprio Foucault, com essa observação e com uma série de perguntas feitas pelos
ouvintes.
89 Ibid. p.38.
90 Ibid. p.38.
69
Não precisamos reproduzir aqui a série de questões e respostas transcorridas
nessa aula. O trecho citado parece suficiente para atestar que interessava a Foucault
que lhe colocassem questões. Essa foi, inclusive, uma das poucas ocasiões em que
ele e seus ouvintes se estenderam por mais tempo discutindo. No mais das vezes, os
cursos não proporcionavam interlocutores. Quando proporcionavam, a discussão não
se estendia: “[…] recebi agora há pouco uma objeção de um ouvinte, para precisar
uma ou duas coisas, caso não tenham ficado claras. A objeção é de fato
interessante”.91
Em todo caso, numa das sessões que poderemos realizar depois das férias,
como já fizemos, poderemos continuar a discussão. […] No fim das contas,
acredito que essa prática da questão escrita e da resposta oral é uma das
possibilidades, mais uma vez, de comunicação numa instituição que
evidentemente não é feita para o diálogo e o trabalho em comum, o que acho
uma pena.
Michel Foucault muitas vezes lamentou a distância que isso podia instalar
entre ele e seu “público”, e o pouco intercâmbio possibilitado pela forma do
curso. Ele almejava um seminário que fosse lugar de um verdadeiro trabalho
coletivo. Fez diferentes tentativas nesse sentido. Nos últimos anos, no final
da aula, dedicava um longo tempo para responder às perguntas dos ouvintes.
Pois bem, Foucault almejava então “um seminário que fosse lugar de um
verdadeiro trabalho coletivo”. Por isso gostava das objeções, por isso apreciava tanto
as perguntas e se dispunha a respondê-las com toda a atenção, fosse na aula ou
depois. Mas, verdade seja dita, nem mesmo sempre foi assim, nem sempre haviam
perguntas, nem sempre parecia haver interlocutores por trás daqueles rostos
amontoados diante do filósofo. Em 1975, como informa a mesma nota, um jornalista
descreveu da seguinte maneira o fim de uma aula: “Foucault para. Os estudantes
precipitam-se à sua mesa. Não para lhe falar, mas para desligar os gravadores. Não
há perguntas. Na confusão, Foucault está só”.93
Sobre como era para ele, enquanto filósofo, a experiência de ministrar um curso
naqueles moldes, comenta o professor do Collège de France:
Seria preciso poder discutir o que propus. Por vezes, quando a aula não foi
boa, bastaria pouca coisa, uma pergunta, para tudo reordenar. Mas essa
pergunta nunca vem. Na França, o efeito de grupo torna impossível qualquer
discussão real. E, como não há canal de retorno, o curso se teatraliza. Tenho
com as pessoas presentes uma relação de ator ou de acrobata. E, quando
termino de falar, uma sensação de total solidão…
Ah, “quando termino de falar, uma sensação de total solidão…”, não seria a
primeira nem a última vez que um pensador se sentiria só. Donde vem essa sensação
que parece perseguir os pensadores? De alguma falha de comunicação? De supor
que não o compreendem apesar de seus esforços? Seja como for, o mal-entendido e
a incompreensão não é nenhuma novidade e talvez seja o que há de mais corriqueiro
na trajetória de um pensador. Embora todo um vocabulário e forma de articulação
95 De acordo com a nota 2 da aula de 1º de fevereiro de 1984 (2011, p.19), no ano anterior Foucault já havia
sugerido a criação de um pequeno grupo de trabalho formado exclusivamente por pesquisadores cujas propostas
de trabalho dialogassem.
96 Na aula de 1º de fevereiro de 1984 Foucault (2011, p.29-30) fala uma última vez em sala de aula sobre o projeto
de um seminário fechado: “Sobre o seminário, mais uma vez, temos aqui um problema institucional e jurídico. Em
princípio, não temos o direito de fazer seminário fechado. E quando me ocorreu fazer um seminário fechado – o
que fizemos sobre Pierre Rivière, por exemplo, alguns talvez se lembrem , houve queixas. — E, de fato,
juridicamente, não temos o direito de fazer um seminário fechado. Só que, para certos tipos de trabalho, pedir por
um lado aos professores para fazer publicamente uma apresentação das suas pesquisas, impedindo-os por outro
lado de ter um seminário fechado onde passam, com estudantes, fazer pesquisas, creio que há uma contradição.
Em outras palavras, podemos pedir a um professor que faça a apresentação das suas pesquisas em ensino
público, e nada mais que isso, se ele faz pesquisas que pode realizar sozinho. E, por assim dizer, é por razões
puramente técnicas que, de fato, há anos eu dou cursos sobre a filosofia antiga, porque basta afinal de contas ter
os duzentos volumes de Budé à disposição, e pronto. Não precisamos de um trabalho de equipe. Mas se – o que
eu gostaria de fazer — quero estudar as práticas, formas, racionalidades de governo da sociedade moderna, só
posso fazer isso em equipe. Ora, vocês entendem, não é ofensa para ninguém aqui que esse auditório não poderá
constituir uma equipe. Então o que eu queria é obter o direito de dividir o ensino em dois: um público que é
estatutário; mas também um ensino, ou uma pesquisa em grupo fechado que é, creio, a condição para poder
realizar, ou ao menos renovar o ensino público que dou. […]”.
97 Ibid. p.38-39.
73
preciso fazer aparecer o inteligível sobre o fundo da vacuidade e negar uma
necessidade; e pensar que o que existe está longe de preencher todos os
espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que
se pode jogar e como inventar um jogo?
98 Dunker, C. O sujeito da psicanálise e o sujeito foucaultiano, Falando nIsso, 181. 24 de jun. de 2018.
<https://www.youtube.com/watch?v=dz829CzFdFI&t=2s>. Acessado em Abril de 2021.
99 Uma boa analogia para essa situação é a cena da minissérie The Queen’s Gambit, de Scott Frank, em que a
protagonista Beth (órfã e prodígio no xadrez) joga simultaneamente com vários enxadristas sem se perder entre
as próprias estratégias ou abandonar qualquer uma das mesas.
74
um pouco complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta.” Parece
que a partir daí havia decidido mudar seu estilo, e não por acaso, mas tendo em vista
um propósito em nível da transmissão de sua filosofia. Parece que encarou o fato de
ficar a maior parte do tempo sem respostas como um sinal de que precisava modificar
sua maneira de se comunicar. Mas como fazer isso senão modificando sua própria
maneira de pensar que, por sua vez, subentende uma transformação de si? E como
modificar a si, como se transformar em coisa diferente, como se transfigurar a não ser
por meio de atos de verdade? “[…] Não há astúcia, não há retórica” — isto é, não há
embuste; está sendo franco. “[…] Parece-me que é a primeira vez que encontro
pessoas que querem jogar esse jogo que eu lhes proponho em meu livro.” Ele disse,
explicitamente, tratar-se de um jogo. E as regras desse jogo que ele propõe são
análogas àquelas que fundamentam à lógica de representação do mundo, a dos jogos
de verdade. Tratar-se-ia, então, de um jogo do pensamento cujo propósito, o principal
propósito, seria o de desafiar os regimes de verdade estabelecidos? Nesse ínterim,
Foucault se transformou, transformou sua filosofia e seu estilo através de atos de
verdade. Ele não estava brincando ao falar de jogo. Se estava brincando, estava-o
seriamente.
75
5. Contradição e mudança de estratégia
76
alcançados ao longo de anos. E nesses casos, tanto por fatores subjetivos como
práticos e teóricos, a permanência do autor numa mesma estratégia se mostra
extremamente difícil. Se, por um lado, sob a perspectiva da exequibilidade, essa
postura se mostra vantajosa, por outro lado, sob a perspectiva da experiência do
pensamento se mostra um tanto limitada.
Com efeito, com que arte fazer entender em que consiste esse gesto de
deslocar o olhar que “torna visível o que é visível”, que “faz aparecer o que está tão
próximo, tão intimamente ligado a nós que, por isso mesmo, não vemos?”.100 Pois foi
nesses termos que Michel Foucault falou em 1978, numa conferência em Tóquio, a
respeito do papel do intelectual. Negou-lhe, amiúde, qualquer compromisso com
verdades proféticas sobre o futuro, e chamou atenção para o “pequeno gesto” a se
operar sobre o detalhe — sobre o espaço ínfimo que, embora visível, pouco se vê. É
seguindo a passos curtos, um após o outro, a trilha das análises genealógicas, e
conferindo às ideias apresentadas uma imagem, que se vê desdobrar o espaço de
inteligibilidade de coisas desconhecidas, emergir objetos e se tornar visível ao
pensamento o que até então não se via: toda uma série de modos de ser, agir e sentir;
os movimentos da história; as continuidades, rupturas e deslocamentos entre
períodos. Enfim, acompanhado a narrativa dessa história crítica, de tempos em
tempos nos deparamos com a consideração de momentos decisivos nos quais a
ocorrência de determinados fenômenos (sociais, políticos, filosóficos, etc.), ao
promover alterações nos diferentes eixos da experiência — do saber, do poder e da
relação do indivíduo para consigo mesmo —, revelam-se acontecimentos dos quais
se irrompe a diferença.
Foucault desenvolve uma narrativa histórico-crítica da inscrição discursiva da
noção de desejo e de suas implicações na subjetividade ocidental. Essas implicações
decorreram da articulação dessa noção com certas práticas de subjetivação e do
notável papel desempenhado junto a elas. Uma tese da historicidade do homem de
desejo pressupõe que haja subsídios linguísticos e filosóficos indispensáveis para a
experiência do desejo. Na perspectiva de Foucault é nas imediações da experiência
cristã da carne que se elabora a do desejo.
A proposta de uma nova história do desejo anunciada e introduzida em meados
da década de 70 consistiu no primeiro gesto de uma série de atos filosóficos cujos
78
SEGUNDO CAPÍTULO: OS JOGOS
Ao término do jogo,
o rei e o peão voltam
para a mesma caixa.
— Provérbio italiano
Comecemos, então, com Johan Huizinga que apresenta logo no início de Homo
Ludens uma definição de jogo que abrange todo tipo de jogos entre os animais, as
crianças e os adultos. Para esse autor:
79
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana.
81
2. O jogo do capitalista
Antes que todos tomem a palavra, antes que as concepções de jogo sejam
expostas, antes que os debates façam pesar o tema dos jogos, nos é permitido
algumas digressões. Levando a noção de jogo ao limite, seria possível pensar a
sociedade como um jogo? Se o impulso lúdico pode engendrar toda uma série de
mecanismos formadores da realidade compartilhada e deles elidir a justificativa
utilitarista, talvez sim. Todavia, a não ser que atribuamos um sentido excessivamente
amplo a palavra jogo, não é o caso de tomar a totalidade da sociedade como um jogo.
Com “sociedade” nos referimos aqui a certas situações sociais típicas e a certo
desenrolar das atividades cotidianas. Dessa maneira, uma vez que a sociedade assim
entendida possui elementos do jogo e por vezes esboça uma dinâmica semelhante à
de um jogo, estamos autorizados a, ao menos como metáfora, chamá-la de jogo.
Perder tempo em
aprender coisas que não interessam,
Priva-nos de descobrir
Coisas interessantes.
(A. S. Onassis)
82
De um lado, um poeta consagrado; do outro, um magnata 101 famoso em seus
dias pela atuação nos negócios. Quando postos assim, lado a lado, acontece desses
nomes parecerem, senão de igual natureza, igualmente distintos, não? Concederia o
nome Drummond, por sua aura e circunstancial proximidade, alguma graça poética ao
nome Onassis, ou conferiria este, por sua vez, algum préstimo mundano aos versos
do primeiro? Enquanto autor da primeira estrofe, o poeta fala sobre perda de tempo e
escolhas. Já a frase do empresário ressalta aquele ponto no qual o homem de negócio
perde de vista o que até então era seu pretexto e objetivo, o dinheiro, e passa a se
interessar pela atividade em si — negociar, fazer render etc. Assim vemos suceder
com o jogador a quem, a certa altura, mais importa jogar do que ganhar.
101 Aristóteles Sócrates Onassis foi quem permaneceu por mais tempo na posição de homem mais rico do mundo.
Cf. New York Times, March 16, 1975, "Headliners, Aristotle Onassis is Dead" by Gary Hoenig. Cf. Hussein,
Waris, Onassis, the richest man in the world (1988), movie for television.
102 Cf. O lobo de Wall Street (2013).
83
definem, grosso modo, as perdas e os ganhos (payoff). E se nas transações
capitalistas permeia e persiste algo que não visa necessariamente o lucro, de modo a
se estabelecer uma dinâmica lúdica em torno da atividade, qual a diferença entre essa
atividade e um jogo? É nesse ambiente que se movimenta Onassis. É lidando com
essas coisas que ele, por assim dizer, joga com a realidade.
Com efeito, no que concerne à sua relação com os outros, Onassis parece
ocupar, quase sempre ou nos momentos mais significativos, a posição de um jogador.
Ele foi reconhecido, por um lado, por sua postura sempre humilde e persistente e, por
outro, por seu gênio inventivo. Entrementes, essa combinação de características
pessoais ou performáticas, a aquisição ou o aperfeiçoamento dessas “habilidades
sociais” (como chamam alguns psicólogos) e o reconhecimento geral contribuíram
muito em todas àquelas ocasiões nas quais o empresário conseguiu angariar fundos,
investimentos, constantes empréstimos bancários etc. Seu casamento em 1946 com a
filha de Stavros Livanos (também empresário ligado à marinha mercante) e em 1968
com Jaquecline Kennedy (viúva de John F. Kennedy, ex-presidente dos Estados
Unidos) são significativos e representam, no jogo do capitalista, as alianças firmadas
por esse jogador.
“As causas principais dos nossos erros provêm, quase todas, do mau uso das
palavras”, disse Gustave Flaubert. É provável que Johan Huizinga concordasse com
isso. Sendo a palavra “jogo” e a noção que lhe corresponde oriundas, não de um
pensamento lógico ou científico, mas sim do espírito espontaneamente criativo de
uma cultura, as diferentes línguas têm palavras e ideias diferentes quando tentam
exprimir a noção de jogo. Acontece de algumas línguas terem conseguido sintetizar
melhor do que outras os aspectos do jogo em uma só palavra, o que significa que a
abstração de um conceito geral de jogo penetrou nessa cultura muito mais cedo e de
maneira mais completa do que em outra.106
105 Essa seção apoia-se no segundo capítulo de Homo Ludens: A noção de Jogo e sua Expressão da Linguagem.
106 Huizinga,[1938] 2018, p.33-34.
107 -ινδα (-inda)
108 παιδια (paidia), ἀθύρω (athyrō) e ἀγών (agōn).
109 Por exemplo: Brincar de cabo-de-guerra, ἑλκυστίνδα (helkustinda); jogo de lançamento, arremesso ou pontaria,
στρεπτινδα (streptinda); brincam de ser rei, βασιλινδα (basilinda); jogar bola, σφαιρινδα (sfairinda).
110 Sua etimologia designa aquilo que é próprio da criança, mas se diferencia de παιδιά (infantilidade).
111 Seus derivados são παίζειν (paizein), que significa brincar, παῖγμα (paῖgma) e παίγνιον (paίgnion), que
86
Uma vez indicadas as palavras gregas correspondentes à noção de jogo,
podemos esmiuçar o valor semântico daquelas notadamente mais importantes, a
saber, paidia e agōn. O termo paidia remete, numa primeira acepção, aos jogos de
diversão, ao jogo espontâneo e geralmente sem regras onde o aspecto de competição
ou disputa não existe ou é mínimo, de maneira que é destinado principalmente, ainda
que não exclusivamente, às crianças. É um passatempo. Trata-se de um vocábulo
que tem por raiz pais, paidos,114 criança, menino. O verbo é paidzo,115 brincar, divertir-
se, ser jovial, dançar. Está, do mesmo modo, relacionado à paidíon,116 primeira
infância.117 Por extensão, está associado à diversão, turbulência, improviso, fantasia,
a atividades onde goza-se de liberdade, onde sente-se alegria e conta-se com a
improvisação. O termo paízo, 118 por sua vez, remete ao entretenimento amadurecido,
ao divertimento de indivíduos formados. Por fim, a raiz comum indica também uma
relação entre a palavra paidia e a palavra paideia119 cujo significado original era o de
cuidado com as crianças e de educação ideal para as crianças até evoluir para o de
cultura e de formação completa do homem.
correspondentes às diferentes fases do desenvolvimento humano, tais como: βρεφος (brephos) — recém-nascido;
παιδιών (paidion) — lactente; παιδαριων (paidarion) — criança que pode andar e falar; παιδίσκος (paidiskos) e
παις (pais) — criança passível de ser educada; μειράκιον (meirakion) — adolescente; νεανισκος (neaniskos) e
νεανίας (neanias) — jovem adulto; dentre outros. Entre esses termos, os mais empregados para determinar os
primeiros anos de uma criança são brephos, paidion, paidarion e pais, sendo este último também utilizado para
indicar as moças antes de se casarem e os escravos. (Sousa, L. N. 2020. p.83-84).
118 παίζω (paízo).
119 παιδια (paidia) e παιδεία (paideia).
120 Para uma revisão do sânscrito e do chinês que, assim como o grego, possuem mais de uma palavra para
designar jogo, Cf. Huizinga, [1938] 2018, p.37-38. Para uma revisão do japonês que além de designar a função
lúdica com apenas uma palavra possui um antônimo que designa seriedade, Cf. Huizinga, [1938] 2018, p.39. Para
uma rápida revisão das línguas semíticas, onde o conceito de jogo tem um caráter mais vago e fluido, Cf. Huizinga,
[1938] 2018, p.41.
87
De modo geral, os gregos apreciavam os dois tipos de jogos, os sérios (agōn),
como os Jogos Olímpicos que estavam associados ao rito religioso, e os não-sérios
(paidia), como o teatro. Para agōn, tenhamos em mente o sentido de competição e
disputa regida por regras; para paidia, o sentido de jogo infantil ou jogo espontâneo,
movido pela diversão e livre de regras. Apesar do emprego dos dois termos como que
para indicar coisas distintas, o agōn na cultura grega, assim como a competição em
qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais do jogo.121
Embora, cabe ressaltar, fora o jogo sério, a competição e a disputa regida por regras,
agōn remete preferencialmente ao contexto poético, aos concursos, mas também ao
político. Até entre os filósofos, seu uso é certamente mais político do que filosófico.
Assim, o termo não participava ou mesmo cabia na estrita vida filosófica no sentido
de uma vida contemplativa (bíos theoretikós).
Diferente do grego, o latim cobre todo o domínio do jogo com apenas uma
palavra: ludus, de ludere, de onde deriva lusus. A etimologia de ludere parece residir
na esfera da não-seriedade e, mais particularmente, na da ilusão e da simulação.
Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações
litúrgicas e teatrais e os jogos de azar.122 Toda uma série de palavras, de expressões
a compostos, apontam todas na direção do irreal e do ilusório. Essa base semântica,
segundo Huizinga, está oculta em ludi que remete tanto aos grandes jogos públicos
romanos, aos quais se encontra associado o sentido de competição, quanto às
escolas, às quais se encontra associado o sentido de prática. No entanto, o termo
Ludus como equivalente aos jogos em geral deixa de existir. Ele é suplantado logo
cedo nas línguas românicas por derivados de jocus, cujo sentido específico foi
ampliado para o de jogo em geral. Por conseguinte, temos em francês jeu e jouer; em
espanhol, juego e jugar; em italiano, gioco e giocare.123 No caso do português temos
121 Além de afirmar que é totalmente impossível separar a competição, como função cultural, do complexo “jogo-
festa-ritual”, Huizinga ([1938] 2018, p.36) sustenta que a nítida distinção terminológica entre jogo e competição na
língua grega pode ser explicada pelo fato das competições sagradas e profanas terem desde muito cedo ocupado
um lugar tão importante e adquirido um valor tão excepcional na vida dos gregos que as pessoas deixaram de ter
consciência de seu caráter lúdico. O caráter habitual das competições sobrepujou, por assim dizer, o caráter lúdico
das competições.
122 Huizinga ([1938] 2018, p.41) adverte que jocus, jocari, no sentido de fazer humor, contar piada, não significa
88
jogo (do latim jocu “gracejo”), jogar (do latim jocare, por via semi-erudita) e jogatina
(do italiano giocatina).124
Pois bem, o fato de muitas línguas não designarem o contrário do jogo com um
substantivo, mas mediante um adjetivo, parece indicar que a abstração do antônimo
do jogo é conceitualmente incompleta. Com efeito, tirando por essas deficitárias
soluções linguísticas, o conceito de jogo parece ser muito mais fundamental do que
seu oposto. Não há em português, assim como na maior parte das línguas, um
conceito ao mesmo tempo amplo e apropriado para exprimir o não-jogo.127
124 Dicionário Etimológico Resumido por Antenor Nascentes. Coleção Dicionário Especializados. Instituto Nacional
do Livro. Ministério da Educação e Cultura, 1966.
125 Huizinga (2018, p.42) sugere que “logo que cada um dos ramos em que o germânico se dividiu criou uma
palavra para designar o jogo, […] o mesmo grupo de ideias, extremamente amplo e aparentemente heterogêneo,
foi concebido como ‘jogo’”. Ademais, no que tange às línguas germânicas, diz nosso autor que em todas elas
termos tipicamente lúdicos são correntemente empregados com o sentido de combate a mão armada. No interior
da esfera do pensamento primitivo o combate armado e toda espécie de competição eram incluídos com o jogo
numa ideia única e fundamental de luta com a sorte limitada por certas regras. “O jogo é um combate e o combate
é um jogo” (Ibid. p.47). Essa é mais uma razão para não estabelecer distinção entre jogo e competição.
126 Ibid. p.50.
127 “[…] analisando um pouco mais atentamente a antítese jogo-seriedade, verificamos que os dois termos não
possuem valor idêntico: jogo é positivo, seriedade é negativo. O significado de ‘seriedade’ é definido de maneira
exaustiva pela negação de ‘jogo’ — seriedade significando ausência de jogo ou brincadeira e nada mais. Por outro
lado, o significado de ‘jogo’ de modo algum se define ou se esgota se considerado simplesmente como ausência
de seriedade. O jogo é uma entidade autônoma. O conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais elevada do que
o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade”
(Huizinga, 2018, p.51).
89
4. O lugar do jogo
Colocar questões relativas à posição tradicional ocupada pelos jogos pode ser
útil para delimitar aspectos de sua função e representação social. Quando
relacionados a outras atividades como o trabalho e ao comércio, por exemplo, a
função do jogo ganha um aspecto ambíguo. A razão disso é a oposição que logo se
estabelece entre o caráter essencial dessas atividades para a vida em sociedade e o
caráter dispensável do jogo. Para que fiquemos com essa impressão muito contribui
o fato do jogo em si não gerar bens.
Seja como aplicação dos recursos humanos para alcançar um determinado fim;
seja como atividade coordenada necessária à realização de uma tarefa; seja como
uma atividade cujo fim é utilizar recursos naturais ou modificar ambientes para
satisfazer necessidades e interesses humanos, o trabalho é sempre uma atividade
básica ligada à sobrevivência e, portanto, de valor inquestionável para a conservação
da vida e da civilização.
Nietzsche, por sua vez, via no trabalho uma traição à espiritualidade alegre e
contemplativa que deveria ser própria do homem e o chamou de “vício peculiar do
Novo Mundo”. Isso nos remete a representação social do trabalho que envolve, desde
muito tempo, pelo menos, e a despeito das mudanças, a ideia de uma obrigatoriedade
90
penosa do trabalho frequentemente associada ao cansado, a fadiga, ao sofrimento, a
degradação.
qualquer. Ora, também se emprega o termo jogo no sentido de conjunto de habilidades por meio das quais se
91
e do comércio, que são meios para outras coisas, o jogo e a arte não são meios, mas
fins. Assim, tudo leva a crer que nem a arte nem o jogo são atividades essenciais para
a sobrevivência, manutenção da prole ou estrito funcionamento social.
Pois bem, consideremos agora outro tipo de jogos, os desportos. Verdade seja
dita, considerando o poder de atração e o fascínio causado pelos Jogos Olímpicos
nos participantes e em quem os assiste, de modo que são capazes de mover
multidões, logo somos persuadidos de que o espírito agonístico nunca estivera
completamente ausente de nossa civilização. Nenhum evento do mundo antigo
executa uma atividade. Não obstante, como todas as atividades citadas acima envolvem regras e técnicas (isto é,
diferentes maneiras, jeitos mais ou menos eficientes de fazer isso e aquilo) não parece absurdo falar numa “arte
de jogar em geral” ou “arte em determinado jogo”, assim como uma ou várias artes ligadas às transações
comerciais (como “arte de negociar”) e aos ofícios (por exemplo, o “sapateiro artesão”).
92
suscitou tanto o interesse geral quanto os Jogos Olímpicos realizados a cada quatro
anos no santuário de Zeus na cidade grega de Olímpia. Iniciados em 776 a.C. e
interrompidos em 393 d.C. a mando do Imperador cristão Teodósio I, os jogos da
antiguidade são considerados um dos maiores símbolos do esplendor da cultura grega
clássica132 — visto que, a despeito das perturbações causadas pela guerra do
Peloponeso, atingiram seu apogeu no século V a.C.
O complexo de Olímpia foi redescoberto por um inglês no século XIX. Mas foi
uma equipe de arqueólogos alemãs que, por volta de 1870, revelou aos seus
contemporâneos o esplendor dessa cidade. O entusiasmo gerado na Europa e nos
Estados Unidos se correlaciona com uma idealização e reinvenção ideológica do
homem grego na época. Na Inglaterra e na Alemanha viu-se estabelecer uma nova
abordagem de educação que ressaltava o valor do esporte para a formação de uma
nova elite que ofereceria uma liderança inspiradora ao país e às colônias. Os gregos,
por sua vez, também reivindicavam seu passado, visto que viviam há séculos sob o
domínio otomano. Havia uma demanda por uma restauração da cultura e das
instituições que tornaram seu povo importante aos olhos do mundo. Ora, a maneira
mais garantida de conseguir isso era, justamente, trazendo de volta os jogos
olímpicos. Como já dissemos, nenhum evento do mundo antigo gerou tamanho
fascínio e mobilizou tanta gente. Mas como na velha história sempre se apela para a
132 Há, em torno da origem dos jogos olímpicos da antiguidade, todo um discurso mítico fundacional. O templo de
Olímpia teria sido construído na Idade de Ouro, época em que Cronos era o rei dos titãs. Na ocasião em que Reia
foi a Creta e entregou o bebê Zeus aos dáctilos, os cinco irmãos de Ida, Héracles, o mais velho, derrotou os irmãos
(Paeonaeus, Epimedes, Iasius e Idas) numa corrida e foi coroado com um ramo de oliveira. Em algumas versões
do mito, Zeus teria derrotado Cronos em Olímpia, noutras teria ele celebrado lá jogos para comemorar sua vitória
sobre o titã. Entre os deuses, o campeão teria sido Apolo, que prevaleceu sobre Hermes na corrida e Ares no
pugilismo. Seja como for, muitos ainda haveriam de celebrar jogos em Olímpia depois dos deuses.
93
figura de um herói, de um sujeito visionário, pioneiro que, agindo no mundo, modifique
o curso histórico, o crédito relativo ao restabelecimento dos jogos olímpicos no mundo
moderno findou com um francês, o barão de Coubertin.
É óbvio que, mais do que atualmente, participar dos Jogos Olímpicos na época
das primeiras edições significava para uma nação o reconhecimento das demais.
Sediar uma edição então, além de uma honra, era, para qualquer nação, uma
oportunidade de mostrar ou mesmo propagar sua cultura ao mundo civilizado. Em
vista disso, da honra e do grande potencial atrativo dos jogos, o fato de não haver uma
sede fixa para a realização das olimpíadas fez desse evento um alvo de interesses
políticos de toda natureza. Nesse ínterim, o Comitê Olímpico Internacional determinou
em 1931 que os Jogos Olímpicos de Verão de 1936 seriam realizados em Berlim. A
Alemanha nazista aproveitou essa oportunidade para encantar espectadores e
jornalistas estrangeiros com a imagem de um regime político pacífico e tolerante, mas
também para uma exibição política do poder alemão. A abertura da Olimpíada de
Berlim ficou conhecida por seu caráter espetacular e mostrou ao mundo a importância
de se encenar uma grande cerimônia.
94
“profissionais”, há uma separação entre aqueles para quem o jogo já não é mais jogo
(ou se encontra gravemente empobrecido do elemento lúdico característico do espírito
do jogo) e os outros para quem o jogo permanece sendo jogo (ou permanecem
jogadores em sua essência, tomados pelo espírito do jogo, independentemente de
sua competência ou desempenho inferior numa partida). 133 No entanto, essas
disposições dos sujeitos em relação ao jogo, distintas, a princípio, findam se
interferindo mutuamente. Uma vez que o espírito do jogador profissional já não tem
um caráter lúdico, pois já não é espontâneo nem despreocupado, mas, pelo contrário,
premedita seus movimentos e preocupa-se com uma partida como se se tratasse de
uma tarefa das mais importantes, o espírito do jogador amador também é afetado e
por vezes sofre em consequência da comparação de suas competências e
desempenho com as do profissional e de avaliar as suas como inferiores. Essa
dinâmica, caso não seja eventualmente interrompida, finda levando o jogo cada vez
para mais longe da esfera lúdica.
Com efeito, o esporte não só é uma atividade entendida como jogo pelo senso
comum, como costuma ser assim classificada em muitos meios instruídos. Mas como
chamar de jogo uma atividade cujo alto grau de organização técnica e de
complexidade científica repele o ludismo e ameaça de desaparecimento os elementos
lúdicos que constituem a parte mais pura do espírito do jogo? Há outros fenômenos,
135 Até filósofos que em virtude do modo de vida austero que levavam se mantinham distantes das disputas da
cidade manifestaram alguma simpatia, senão diretamente pelos jogos, pela disciplina exemplar de alguns
indivíduos por ocasião das competições. Dessas percepções decorrem noções como a do “modelo do atleta”.
136 Huizinga, [1938] 2018, p.130.
97
dos enigmas e as origens da filosofia”.137 De acordo com Huizinga, teria sido Clearco
de Soles, um dos discípulos de Aristóteles, quem escreveu um tratado sobre os
provérbios que encerrava uma teoria dos enigmas. Isso provaria que, originariamente,
o enigma fora um assunto filosófico. “Os antigos usavam-no como prova de sua
educação (paideia)”, cita Huizinga.
[…] o filósofo, desde as épocas mais remotas até aos últimos sofistas e
retores, sempre assumiu todas as características do campeão. Desafiava
seus rivais, submetia-os à crítica mais veemente, afirmando suas próprias
opiniões como as únicas verdadeiras, com toda a autoconfiança juvenil
própria do homem arcaico. Quanto ao estilo e quanto à forma, os exemplos
mais antigos de filosofia possuem um caráter polêmico e agonístico. Falam,
invariavelmente, na primeira pessoa do singular. Quando Zenão de Eléia
ataca seus adversários, fá-lo por meio de aporias — isto é, procura
ostensivamente partir das premissas deles para chegar a duas conclusões
contraditórias e que se excluem reciprocamente. Esta forma é a mais próxima
do enigma que é possível. Zenão pergunta: “Se o espaço é alguma coisa, o
que pode existir nele? O enigma não é difícil de resolver”. Para Heráclito, o
“filósofo obscuro”, a natureza e a vida são um griphos, um enigma, e ele
próprio é um decifrador de enigmas. As afirmações de Empédocles têm
muitas vezes a ressonância da solução de enigmas místicos, e se revestem
ainda de uma forma poética. Suas quase grotescas fantasias relativas à
origem da vida animal não pareceriam deslocadas num daqueles cantos dos
brâmanes da índia antiga, onde a imaginação parece completamente
desenfreada: “Dela (a Natureza) brotaram muitas cabeças sem pescoços,
braços erravam sem ombros, e no ar flutuavam olhos separados das faces”.
Para indicar algumas formas lúdicas da filosofia, Johan Huizinga nos remete à
figura do sofista grego. Trata-se aí de uma figura cujas características de exibição de
extraordinários conhecimentos e de derrotar seus adversários nas competições
públicas exprimem os dois principais fatores do jogo social da sociedade arcaica, o
exibicionismo e a aspiração agonística.138 Sofistas como Hípias Polihistor, o homem
das mil artes, Pródico, Górgias, Protágoras, eram admirados como seres superiores,
idolatrados como os campeões do atletismo. O jogo sofístico consistia em apanhar o
adversário numa rede de argumentos ou acerta-lhe um golpe fulminante. O clímax da
disputa era atingido quando se colocavam questões às quais só era possível dar
respostas erradas. Trata-se aí, diz Huizinga, do “velho jogo da perspicácia que, tendo
começado nas culturas mais remotas, oscila entre o ritual mais solene e o divertimento
Huizinga observa que o sofisma está relacionado com o enigma e que consiste
num truque de combate. A palavra grega πρόβλημα (problema), em seu sentido
original, remetia a qualquer coisa usada para defesa pessoal ou coisa que se joga aos
pés do outro com a significação de uma aposta ou desafio. 140 Esses significados se
aplicam à arte do sofista como “arte de colocar problemas”. Todavia, essas artimanhas
do discurso não eram exclusivas dos sofistas. Os gregos em geral apreciavam esses
jogos do espírito em que se procura surpreender os outros com perguntas capiciosas.
Lembremos de Clearco, o filósofo peripatético que escreveu uma teoria do enigma.
Conta-se a história de que numa ocasião teria dito “Tu não és o que eu sou. Eu sou
um homem, portanto tu não és um homem”; ao que se diz ter Diógenes respondido:
“Se queres que isso seja verdade, é melhor começares por mim”. 141
99
preciso perguntar quem fala o que é dito, e por quê. É preciso ir além da superfície do
texto e se interrogar sobre a performance da figura do autor.
142 Assim parece proceder John Rawls em Uma teoria da justiça (1971) quando, para defender sua teoria, formula
um cenário no qual se encontram condições de igualdade equitativa de oportunidades e escolhas para uma escolha
racional. Ora, uma situação perfeita, de absoluta igualdade, é própria da realidade do jogo. O “mundo criado” por
Rawls, a situação que ele concebe, têm características em comum com o jogo. Em primeiro lugar: ele funda
voluntariamente um mundo, isto é, concebe livremente uma situação. Em segundo lugar: esse mundo é
imaginariamente separado do mundo real e deve durar o tempo necessário às escolhas a serem feitas; isto é, é
limitado no tempo e no espaço. Em terceiro lugar: trata-se de um mundo ordenado por princípios e constituído por
regras específicas. Em quarto lugar: embora a situação desse mundo possa eventualmente desembocar em
alguma utilidade, esta não lhe é inerente nem imprescindível, logo, não tem finalidade pré-definida. Em quinto
lugar: dentro desse mundo, raciocinar equivale a empregar um esforço mental em prol de uma escolha racional,
esforço esse que gera uma tensão. Em sexto lugar: ocorre nesse mundo uma experiência cujo caráter artificioso
a distancia significativamente daquela que se tem da vida cotidiana. Diante disso, podemos afirmar que Rawls
formula uma situação para fazermos escolhas racionais que não só se assemelha a um jogo como contempla
todas as características formais do jogo. Isso deve bastar para mostrar que a linguagem através da qual se faz
uma exposição filosófica acaba se revelando, fundamentalmente, uma questão de escolha.
100
intemporal e incognoscível”.143 Um jogo ligeiramente semelhante pode ser visto na
atividade filosófica de Zenão que se destaca mais pela forma do que pelo conteúdo
de seus argumentos. A riqueza da filosofia de Zenão está inclusa na forma, quer dizer,
na estratégia que assume para estabelecer paradoxos para a razão, na performance
que efetivamente empreende e por meio da qual estarrece a razão. Não esqueçamos,
todavia, que o elemento lúdico e modelos de jogo também estão presentes em
filósofos do período clássico como Sócrates e Platão, 144 Este último, por exemplo,
pretendendo demonstrar as graves deficiências lógicas e éticas dos sofistas, adotou
para seu discurso o estilo do diálogo rápido e descontraído.
[…] num passado muito remoto, ela se iniciou a partir do jogo de enigmas
sagrado, o qual era ao mesmo tempo um ritual e um divertimento festivo. Do
lado da religião deu origem à profunda filosofia e teosofia dos Upanishads e
dos pré-socráticos; do lado do jogo produziu o sofista. Não há uma distinção
absoluta entre os dois lados. Em sua busca da verdade, Platão eleva a
filosofia a um nível que só ele seria capaz de atingir, mas sempre daquela
forma leve que era e é o elemento próprio da filosofia. Ao mesmo tempo, ela
é cultivada sob as formas inferiores da habilidade sofistica e da argúcia
intelectual. Na Grécia, o fator agonístico era de tal modo forte que permitiu
à retórica desenvolver-se à custa da filosofia pura, a qual ficou oculta pela
sombra da sofisticação, que se exibia como cultura do homem comum.
Górgias é uma figura típica desta deterioração da cultura: afastou-se da
verdadeira filosofia para desperdiçar seu espírito no louvor e no abuso da
palavra brilhante e da falsa agudeza. Depois de Aristóteles caiu o nível da
filosofia, asfixiada pelo exagero da emulação e por um estreito espírito de
doutrina. No final da Idade Média, verificou-se um declínio semelhante,
quando à época da grande escolástica, que procurava compreender o
sentido íntimo das coisas, seguiu-se uma fase em que bastavam
simplesmente as palavras e as fórmulas vazias.
145Ibid. p.174.
146Com as devidas ressalvas, admitem-se no geral as traduções desses primeiros termos como viáveis. No caso
do termo ἀγών, (transl. agōn), são mais diversas e contextuais.
102
O espírito de agōn, no sentido de princípio agonístico, é um longevo
contributário da civilização grega. Decisivamente vigente durante o período
homérico,147 franqueado no arcaico (VIII-VI a.C.), era não só um dos traços
característicos da época, mas, sobretudo, um elemento constituinte da própria
realidade desse mundo. Presente na Ilíada, na Odisséia dera contexto aos Jogos
Olímpicos disputados desde o final do período homérico (776 a.C) até o helenístico
(393 d.C). Tratava-se de um evento tão importante que, nessa ocasião, até as guerras
eram interrompidas. Os atletas provinham de todas as Cidades-Estado da Grécia para
esse evento que, por sua vez, era um traço do esplendor da cultura grega na
Antiguidade.
Há para Platão, assim como para a cultura grega do período clássico, uma
relação de consequência entre jogo (paidia) e educação (paideia). O jogo comporta
uma função instrumental de ensino no que se refere às questões ético-políticas do
futuro cidadão. Platão talvez seja o primeiro filósofo de quem conservamos o
pensamento a atribuir ao jogo (paidia) a função de preparar o indivíduo para uma
atividade futura. Importa lembrar, todavia, que o termo paidia entre os gregos é
empregado para se referir aos jogos infantis e às brincadeiras espontâneas sem
regras ou cujas regras são criadas pelas próprias crianças, enquanto que o termo
paízo é empregado para se referir ao entretenimento amadurecido, ao divertimento do
homem já formado. Esse também é o emprego que Platão faz dos termos.
Platão não chega a identificar exatamente a dialética grega com o jogo, mas
nela reconhece a possibilidade de se tornar um jogo. 149 motivo pelo qual não a
recomenda aos jovens. “Deves ter percebido, penso, que os adolescentes, depois de
terem experimentado uma vez a dialética, abusam e fazem dela um jogo [paidia]”. Ora,
visto que em Platão a dialética é sinônimo de filosofia, o método mais eficaz de
aproximação entre as ideias particulares e as universais, fica claro que para ele fazer
da dialética um jogo (paidia) é abusar dela, fazer mal uso. “Utilizam-se dela para
O que afirmo é que todo homem que pretenda ser bom em qualquer atividade
precisa dedicar-se à prática dessa atividade em especial desde a infância
utilizando todos os recursos relacionados a sua atividade, seja em seu
entretenimento [paízo], seja no trabalho. Por exemplo, o homem que pretende
ser um bom construtor necessita (quando menino) entreter-se brincando de
construir casas, bem como aquele que deseja ser agricultor deverá (enquanto
menino) brincar de lavrar a terra. Cabe aos educadores dessas crianças
supri-las com ferramentas de brinquedo moldadas segundo as reais. Além
disso, dever-se-á ministrar a essas crianças instrução básica em todas as
matérias necessárias; sendo, por exemplo, ensinado ao aprendiz de
carpinteiro sob forma de brinquedo o manejo da régua e da trena, àquele que
será um soldado como montar e demais coisas pertinentes. E assim, por meio
de seus brinquedos e jogos, nos esforçaríamos por dirigir os gostos e desejos
das crianças para a direção do objeto que constitui seu objetivo principal
relativamente à idade adulta. Em primeiro lugar e acima de tudo, a educação,
nós o asseveramos, consiste na formação correta que mais intensamente
atrai a alma da criança durante a brincadeira para o amor daquela atividade
da qual, ao se tornar adulto terá que deter perfeito domínio.
105
Mais à frente, Platão afirma que “a educação é o processo de atrair e orientar
crianças rumo a esse princípio que é pronunciado como correto pela lei e corroborado
corno verdadeiramente correto pela experiência dos mais velhos e dos mais justos”. 151
É importante nesse processo que a alma da criança não se habitue a sofrimentos e
prazeres contrários à lei, mas como “as almas dos jovens são incapazes de suportar
o sério estudo, nós os chamamos de jogos [paidia] e cantos e os usamos como tais
[...]”.152 Em conformidade com as bases da educação grega (paideia), Platão
estabelece que “a formação do caráter da criança de mais de três anos e até seis
exigirá a prática de jogos [paidia]; neste período se fará uso do castigo a fim de impedi-
la de ser indolente — não, todavia, um castigo de tipo degradante”. 153 No caso das
crianças com menos de três anos, os jogos “nascem do próprio instinto natural e elas
os inventam elas mesmas sempre que estão juntas”. 154 Antes dos três anos de idade
as crianças possuíam liberdade e eram incentivadas a desenvolver capacidades
inventivas. Dos três aos seis anos, é o período durante o qual devem se submeter à
função estruturante dos jogos.
Platão declara que “há em todo Estado uma total ignorância a respeito dos
jogos infantis, de sua importância decisiva para a legislação com os fatores que atuem
para determinar se as leis promulgadas devem ser permanente ou não”; 155 e
estabelece uma estreita relação de causa e efeito entre a experiência da criança com
o jogo e a futura relação do indivíduo com as leis, ou seja, um isomorfismo
comportamental.
Esta identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão,
que não hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. “É preciso tratar
107
com seriedade aquilo que é sério”, diz ele.156 ”Só Deus é digno da suprema
seriedade, e o homem não passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor
aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida
de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando
suas inclinações atuais. Pois eles consideram a guerra uma coisa séria,
embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente
as coisas que nós consideramos mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-
se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de viver?
A vida deve ser vivida como um jogo, jogando certos jogos, fazendo
sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor
dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate.157
Huizinga observa ainda que, ao identificar o jogo com o sagrado, Platão não
desqualifica este último, mas exalta o primeiro elevando-o às mais altas regiões do
espírito. É em razão dessa identificação do jogo com o sagrado que Platão valorizará
a seriedade nos jogos, sobretudo nos jogos mais nobres, é preciso tratar com
seriedade aquilo que é sério. No entanto, por mais surpreendente e aparentemente
importante que seja a relação estabelecida na referida passagem entre o jogo e o
sagrado, a noção de jogo (paidia) permanecia sendo empregada a pretexto de explicar
uma outra coisa, de modo que só indiretamente se apreendia seu sentido. Pois bem,
feita essa observação, retomemos o ponto anterior que trata da pertinência dos jogos
para a formação integral do cidadão.
156 Cf. Platão, As Leis, VII, 803c-d apud Huizinga, [1938] 2018, p.23.
157 Cf. As Leis, VII, 796b apud Huizinga, [1938] 2018, p.23.
158 Encontramos outra tradução dessa passagem para o português e reproduzimos aqui para fins de comparação
e esclarecimento mútuo, visto que a passagem original, em grego clássico, não é uma opção para todos. Assim
procedemos com toda passagem que consideramos difícil ou incerta. “O que quero dizer é que se deve levar a
sério coisas sérias e não ninharias e que o objeto realmente digno de todo esforço sério e abençoado é por
natureza a Divindade, enquanto o ser humano foi fabricado, como dissemos antes, para ser um brinquedo da
Divindade, consistindo nisto efetivamente sua melhor parte. Partindo daí, portanto, digo que todo homem e toda
mulher devem percorrer todo o curso de sua existência desempenhando esse papel, divertindo se com os jogos
mais excelentes, mas não entendendo seus jogos como os entendem hoje (Platão, As Leis, p.295) […] Deveríamos
viver nossas vidas participando de certos jogos — sacrificando, cantando e dançando — de modo a nos
capacitarmos a conquistar o favor divino e repelir nossos inimigos e vencê-los na luta”. 803d-e.
108
natureza essencial do comensurável e do incomensurável […] que é preciso examinar
e distinguir sob pena de se cair num esforço totalmente inútil; são esses os problemas
a serem mutuamente propostos”. 159 Então, não sendo prejudiciais nem difíceis, esses
assuntos devem ser aprendidos pelos jovens através do jogo, pois, assim, não
causam nenhum dano ao Estado.
A última espécie de jogo considerado por Platão nas Leis é um jogo que se
limita a ser imitativo e que não é sério.
109
Aqueles que o praticam utilizam muitos instrumentos e muitos gestos
corporais, incluindo uma mímica nem sempre decente. Envolve habilidades
que fazem uso das palavras, todas as artes das Musas e os gêneros de
representação visual, que são responsáveis pela produção de uma
multiplicidade de figuras variadas em diversos veículos, tanto úmidos quanto
secos. Entretanto, a arte imitativa não torna ninguém sábio em quaisquer
dessas coisas, mesmo aqueles que praticam sua arte com o máximo de
circunspecção.
Platão discorreu sobre o emprego de vários tipos de jogos e sobre seu papel
decisivo para a formação ético-política do sujeito, mas em momento algum se deteve
na definição do conceito de jogo. Não obstante, o pensamento clássico não ignorou
complemente esse problema. Quanto a isso é Aristóteles quem mais uma vez
representa a exceção entre os antigos.
Aristóteles assinala que em razão do jogo não ser um fim último, não devemos
nele empregar o lazer. “Se possível, é melhor descartar o jogo entre as ocupações”.
Não sendo ele mesmo um fim, tem por finalidade outra coisa que não ele mesmo:
“quem trabalha precisa de descanso: o jogo não foi imaginado senão para isto”. Uma
vez que o trabalho puxado pede pausas, recreações pode lhe servir de remédio. Os
jogos são alternativas de recreação. Já que o movimento da alma que resulta dos
jogos “produz relaxamento, e o prazer que deles se retira facilita o descanso”, convém
fomentar os jogos, desde que ponderemos acerca do momento oportuno de sua
utilização, para gozarmos de seus benefícios quando precisarmos e para não
relaxarmos em situação inoportuna.
166 Aristóteles. Ética a Nicômaco ; Poética. (Coleção: Os pensadores) ; v. 2) Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1991.
111
Nessa passagem, ficamos com a impressão de que se trata mais propriamente,
para Aristóteles, de colocar o jogo em seu devido lugar do que de lhe dar uma
definição. Enquanto Platão tinha atribuído uma função pedagógica ao jogo
(República), identificado ao sagrado (Leis) e valorizado a seriedade na atividade,
Aristóteles indica (Política) que o jogo é uma atividade qualquer, não séria, que se
exerce por si mesma ou a propósito de um relaxamento útil para a recuperação da
energia de trabalho. Pela constante ressalva de que “quem trabalha precisa de
descanso e o jogo não foi imaginado senão para isto”, percebemos que a hesitação
de Aristóteles quanto a valorização dos jogos é inversamente proporcional ao que fora
a valorização platônica. Mesmo assim, foi a definição aristotélica que findou de algum
modo aproximando formalmente a noção de jogo das noções de felicidade
(eudaimonia) e de virtude (aretê), que também se exercem por si mesmas.
Lembremos que o trabalho demanda lazer, mas que lazer para Aristóteles é
diferente de jogo. Ou seja, só a título de alternativa para o divertimento e relaxamento
o jogo é aceito. O jogo, como uma atividade com fim em si mesma, ao proporcionar
divertimento e uma espécie de relaxamento, “serve” para desopilar e restabelecer a
disposição para o trabalho. Por mais que não seja sua finalidade natural, o jogo “serve”
para isso. Por outro lado, Aristóteles rejeita a ideia de que o jogo sirva igualmente para
a educação.
É claro que a finalidade da educação dos mais jovens não deve ser o jogo.
Ninguém joga enquanto aprende, pois a aprendizagem surge acompanhada
de dor. Também não é conveniente oferecer divertimentos intelectuais às
crianças; não deve ser dado nessas idades, pois ao que é imperfeito não se
atribui um fim. Também poderá parecer que tal finalidade se esgota nos
momentos de lazer de que desfrutarão quando se tornarem adultos.
Seja como for, fixando o jogo nessa condição de atividades com fim em si
mesma, Aristóteles estabeleceu o conceito de modo que este permaneceu
substancialmente inalterado até o século XVIII. O que não quer dizer, é claro, que o
discurso platônico tenha sido suprimido. A tensão estabelecida entre o pensamento
de Platão e de Aristóteles, longe de excluírem-se mutuamente, como que os revigorou
e impulsionou. Sem esse embate da filosofia platônica e da filosofia aristotélica em
torno da noção de jogo, talvez não tivéssemos os devidos representantes do
112
pensamento antigo nos estudos sobre os jogos. Além do mais, esse embate
possibilitou que o jogo fosse tomado por dois caminhos, como meio de ensino e como
meio para o relaxamento da alma.
Parece que o conceito assim permaneceu até que Kant atribuísse ao jogo uma
função biológica de reforçar a energia vital na competição com as energias do
mundo.167 Ele propõe que o jogo seja dividido em jogo de azar, jogo de sons e jogo
de pensamentos. O jogo de azar requer um interesse, seja da vaidade ou do egoísmo.
Por não o considerar belo, Kant o deixa de fora de suas análises. O jogo de sons
requer apenas a mudança das sensações, das quais cada uma tem certa relação com
um afeto e desperta ideias estéticas. O jogo do pensamento surge da mudança das
representações na faculdade de julgar e, sem suscitar qualquer pensamento que traga
consigo um interesse, anima a mente.
Os jogos podem ser muito prazerosos, de modo que o sujeito pode sentir
vontade de jogar sem que tenha um propósito interessado. Afetos como esperança,
medo, alegria, raiva e atitudes como a zombaria podem entrar no jogo trocando de
papel a cada momento. Esses afetos e atitudes são tão vivazes que por meio deles
toda a atividade vital do corpo parece intensificada. Prova disso é a excitação da
mente por eles gerada, mesmo que não se tenha ganho ou aprendido nada com
isso.168 Enfim, o jogo para Kant é uma ocupação agradável em si mesma e, portanto,
comparável à arte. O trabalho, por seu turno, é uma ocupação desagradável em si
mesma, penosa, atraente por seu efeito, a remuneração, e passível de ser imposta
coercitivamente.169
167 Cabe pontuar que a noção de jogo enquanto possuidora de uma função biológica de adestramento das
atividades vitais que reforçam a conservação do organismo, como expressas em Kant, já se encontra de certo
modo delineada em Platão no contexto dos processos envolvidos na formação do cidadão (visto que permitiria
observar as inclinações naturais do jogador e saber, dentre as características reveladas, às que convém ser
trabalhadas e como trabalhá-las) e a pretexto da educação das crianças (na qual, em oposição à violência sempre
nociva, o brincar tem um potencial edificante).
168 Ibid. p.79.
169 Ibid. p.79.
113
Foi numa das cartas170 para a educação estética do homem,171 escritas no ano de
1793, que Schiller definiu, depois dos dois impulsos naturais, o “impulso lúdico”.
Para Schiller, deve haver uma concordância entre os dois impulsos inatos, uma
síntese do impulso da forma e do impulso da matéria, isto é, deve haver um impulso
lúdico, pois “apenas a unidade de realidade e forma, de contingência e necessidade,
de passividade e liberdade, completa o conceito de humanidade”. 172 O impulso lúdico
não é concebido pelo filósofo como um instinto particular, mas como uma síntese do
impulso formal e do impulso sensível, como mediador e jogo desses impulsos opostos.
O impulso lúdico remete de imediato ao conceito de jogo. Podemos dizer que a noção
de jogo é o próprio impulso lúdico.
114
Mas lembremos que o conceito de impulso lúdico designa igualmente todas as
qualidades estéticas dos fenômenos, isto é, está diretamente ligado à beleza de modo
que é o próprio fundamento do impulso artístico. Ao colocar o impulso lúdico no lugar
de fundamento do impulso artístico, Schiller institui o impulso lúdico como condição
primeira da atividade artística. “Não errará jamais quem buscar o Ideal de beleza de
um homem pela mesma via em que ele satisfaz seu impulso lúdico”. 174
Ora, talvez seja isso que Huizinga queira dizer ao afirmar que a função do jogo
em suas formas mais elevadas pode ser definida por dois aspectos fundamentais:
“uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa”.178 A luta por alguma
coisa, por si só, parece bastante característica das formas convencionais de jogo. Já
a representação de alguma coisa, por si só, parece característica dos processos
envolvidos na linguagem. Mas juntas, essas funções constituem as formas mais
elevadas de jogo e “podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo
115
passe a ‘representar’ uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor
representação de alguma coisa”. 179 Quanto a isso, importa notar que não temos em
português um termo equivalente ao inglês to play, ao alemão spielen e ao francês
jouer que significam ao mesmo tempo jogar e representar, tanto no sentido de figurar
como no de apresentação ou representação teatral. 180
117
enquanto que a psicologia e a antropologia lhe atribuíram função biológica e social.
“O jogo é a manifestação de uma livre espontaneidade e a expansão de uma atividade
em expansão”, declarou Gross em 1901.
Huizinga pontua que apesar das divergências, no fundo, todas essas teorias
partilham do pressuposto de que deve haver uma espécie de finalidade biológica para
o jogo, de sorte que suas explicações relativas aos objetivos dessa atividade tendem
a se complementar.181 Huizinga se afasta de todas elas e propõe, por sua vez, que
concebamos o jogo como um fenômeno cultural e não biológico. O jogo é tomado pelo
autor como fenômeno cultural e não biológico. 182 Pois concebendo-o dessa maneira,
podemos estudá-lo como função criadora de cultura. Como há diferentes culturas ou
épocas numa cultura, diferentes são os lugares ocupados pelo jogo. Ocorre de o jogo
Por exemplo, enquanto em holandês (grap e aardigheid) e em alemão (Spass e Witz) são necessários dois termos
para exprimi-lo, em francês não há palavra que lhe corresponda exatamente. O mesmo se passa em português,
de modo que o emprego do termo divertimento é apenas uma maneira aproximada ou menos inadequada de
exprimir um conceito que também está ligado a noções como entretenimento, prazer, agrado, alegria, etc.
119
existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da
situação humana.187
A tese mais cara de Huizinga talvez seja aquela segundo a qual o jogo seria
“um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-
a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos
encontramos”.188 Com isso quer dizer que atividades arquetípicas da sociedade
humana como, por exemplo, a linguagem e o mito, estão profundamente marcadas
pelo jogo. No caso da linguagem, esse instrumento que nos permite designar as
coisas e elevá-las ao domínio do espírito, brincamos com uma maravilhosa faculdade
de designar, “é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria
e as coisas pensadas. Por trás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e
toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um
outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza”. 189
Embora o jogo não desempenhe uma função moral, Huizinga identifica nele um
certo valor ético. Esse valor ético está atrelado à tensão envolvida no jogo que põe à
prova as qualidades do jogador. O jogador quer ganhar à custa de seu próprio esforço,
mas, no jogo, sua pretensão tem de se haver inelutavelmente com a incerteza e o
acaso, logo, com a tensão. O jogo enquanto tal está além do domínio do bem e do
mal, mas “o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que
são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade
e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua lealdade”. Porque, apesar
de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo”. 190 Pois
bem, gostaríamos de pontuar como o aspecto espiritual é aqui mais uma vez evocado,
de sorte que não parece alheio ao que se passa no jogo.
120
facilmente, caso queira, dispensar a função do jogo, pois é algo supérfluo. Só se
assemelha a uma necessidade urgente quando o prazer provocado no sujeito pelo
jogo transforma-se num apelo pelo próprio jogo. O jogo jamais é imposto por uma
necessidade física ou por um dever moral, mas praticado nos momentos de ócio, no
espírito de desobrigação. Assim, a qualquer momento o jogo pode ser suspenso ou
adiado.191 A segunda característica fundamental do jogo consiste nele proporcionar
uma evasão da vida cotidiana para uma esfera temporária de atividade com orientação
própria. Embora trate-se de uma atividade desinteressada, uma espécie de intervalo
em nossa vida cotidiana, o jogo é capaz de absorver inteiramente o jogador.
Uma vez que nos interessamos pela experiência e pelo saber de experiência,
pelo potencial transformador da experiência e pela experiência significativa à qual o
jogo pode dar lugar, interessa-nos particularmente as dinâmicas de jogo em que há
uma entrega do sujeito diante e a possibilidade de uma experiência limite.
do jogo de modo a abalar o próprio mundo do jogo. “Retirando-se do jogo, [o ‘desmancha-prazeres’] denuncia o
caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros”. O jogador
desonesto é aquele que, embora burle regras do jogo, finge jogá-lo seriamente e aparenta reconhecer o círculo
mágico, de sorte que os jogadores costumam ser mais indulgentes com ele do que com o jogador desmancha-
prazeres.
198 Ibid. p.16.
122
O jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O
jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-
se “apenas” de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está
indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas
também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois pólos que
limitam o âmbito do jogo.
123
possui uma capacidade criadora de cultura, devemos sempre que possível fornecer
as condições necessárias para que o jogo coletivo se realize. Por mais intuitiva que
essa ideia nos pareça, lembremos de remetê-la à Huizinga quando, mais tarde, a
retomarmos.
Entretanto, o que está em jogo na competição? É claro que é ganhar. Mas não
é só ganhar por ganhar, mas ganhar porque o triunfo sobre o outro ou os outros
representa a superioridade do jogador ou do grupo de jogadores num determinado
jogo. Essa superioridade tende a assumir a aparência de uma superioridade geral.
Esse é, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes do jogo, o do instinto de
125
Nosso ponto de partida deve ser a concepção de um sentido lúdico de
natureza quase infantil, exprimindo-se em muitas e variadas formas de jogo,
algumas delas sérias e outras de caráter mais ligeiro, mas todas elas
profundamente enraizadas no ritual e dotadas de uma capacidade criadora
de cultura, devido ao fato de permitirem que se desenvolvessem em toda a
sua plenitude as necessidades humanas inatas de ritmo, harmonia, mudança,
alternância, contraste, clímax etc. A este sentido lúdico está
inseparavelmente ligado um espírito que aspira à honra, à dignidade, à
superioridade e à beleza. Tanto a magia como o mistério, os sonhos de
heroísmo, os primeiros passos da música, da escultura e da lógica, todos
estes elementos da cultura procuram expressão em nobres formas lúdicas.
Uma geração mais tardia virá a chamar “heroica” à época que conheceu tais
aspirações. Portanto, é desde o início que se encontram no jogo os elementos
antitéticos e agonísticos que constituem os fundamentos da civilização,
porque o jogo é mais antigo e muito mais original do que a civilização.
Notamos que essas afirmações de Caillois sobre os jogos não são exatamente
novas. A evocada oposição entre jogo e seriedade corresponde, como vimos há
pouco, à primeira antítese (jogo-seriedade) evocada por Huizinga. A segunda
oposição, desta vez entre o jogo e o trabalho, além de já ter sido indicada por
Aristóteles, assinalada por Kant e firmada por Schiller, também corresponde à
segunda antítese (jogo-trabalho) evocada por Huizinga. Também de modo similar à
Huizinga em Homo Ludens e à guisa de introdução geral ao seu estudo dos jogos,
Caillois analisa uma série de noções implícitas na ideia de jogo tal como surgem nos
diferentes empregos da palavra. 211 Num entendimento próximo ao de Huizinga,
Caillois considera que essas acepções da palavra “jogo” mostram como as
disposições psicológicas traduzidas e desenvolvidas pelo jogo podem constituir
fatores civilizacionais.
211 Caillois ([1958] 2001) observa, por exemplo, que numa de suas acepções mais comuns o termo “jogo” designa
não apenas a atividade específica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, dos símbolos ou dos
instrumentos necessários a essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo (p.10). Por isso nos
referimos ao conjunto de cartes como “jogo de cartas” e ao conjunto de peças indispensáveis ao xadrez como
“jogo de xadrez”. Reside aí a ideia de conjuntos completos e numeráveis de coisas. A falta ou a adição de
elementos nesses conjuntos, a não ser que seja anunciada antes e responda a uma intenção precisa, torna o jogo
impossível ou adulterado. Com a palavra “jogo” designa-se também o estilo, a maneira específica de um intérprete,
músico ou comediante tocar um instrumento ou representar um papel (p.10). Nesse contexto, o termo “jogo”
combina em si as ideias de limites, liberdade e invenção. Há também expressões como “ter bom jogo” que remete
à sorte, “jogar com cautela” e “jogar para ganhar” que remetem à habilidade, “mostrar seu jogo” que remete a
vantagens no início e “esconder o jogo” remete ao hábil emprego de uma estratégia. Quando associado à ideia de
risco, surgem às locuções “colocar em jogo”, “jogar alto”, “jogar a toalha”, “jogar sua carreira”, “jogar sua vida” etc.
(p.11). Para Caillois ([1958] 2001), “todo jogo é um sistema de regras que definem o que é ou o que não é do jogo,
ou seja, o permitido e o proibido” (p.11). Tratam-se de convenções arbitrárias, mas ao mesmo tempo imperativas
e inapeláveis. Quando violadas, destroem o universo criado pelo jogo. É o desejo de jogar que mantém as regras
e, por conseguinte, o universo do jogo. Aqui, o que denominamos “jogo” é um conjunto de restrições voluntárias,
aceitas pelos jogadores de modo a estabelecer uma ordem estável (p.11-12). Quando nos referimos a um “jogo
de engrenagem”, a palavra “jogo” sugere a ideia de amplitude, de facilidade de movimentos, de uma liberdade útil,
mas não excessiva. Nesse caso o jogo é, por assim dizer, o que “subsiste entre os diversos elementos que
permitem o funcionamento de um mecanismo”. Trata-se de um espaço cuidadosamente medido que impede que
a engrenagem se bloqueie ou se desregule. “Jogo significa, portanto, a liberdade que deve permanecer no seio do
próprio rigor, para que este adquira ou conserve sua eficácia” (p.12).
128
individuais.212 Caillois admite que, uma vez que se entenda o progresso da civilização
como a passagem de um universo rude a um universo administrado, assente num
sistema coerente e equilibrado, deve-se ter em conta a influência do princípio do jogo.
Assim, além de inspirar ou confirmar este equilíbrio, o jogo “proporciona
continuamente a imagem de um meio puro, autônomo, onde a regra, respeitada
voluntariamente por todos, não favorece nem lesa ninguém”. 213 O autor sustenta que
embora não constitua senão um universo de perfeição ínfima e precária, revogável e
autoextinguível, de duração fugaz e extensão rara, o jogo vale pelo menos como
modelo.214
Numa passagem que lembra certo valor ético reconhecido por Huizinga nos
jogos, diz Caillois que “o jogo supõe, certamente, a vontade de ganhar ao utilizar da
melhor forma possível esses recursos e ao recusar os golpes proibidos”,215 mas, além
disso, os jogos exigem do sujeito que joga que seja muito cortês com o adversário,
129
que confie nele por princípio e com ele combata sem animosidade. O sujeito enquanto
jogador tem de aceitar de antemão o eventual fracasso, a falta de sorte ou a fatalidade.
Enfim, o verdadeiro jogador aceita a derrota sem cólera nem desespero, pois quem
se irrita ou se lamenta se desacredita. “Com efeito, como toda nova partida aparece
como um início absoluto, nada está perdido, e o jogador, em lugar de se recriminar ou
de se desencorajar, deve redobrar seu esforço”.216
Caillois diz ainda que o jogo, e nada tanto quanto o jogo, exige atenção,
inteligência e resistência nervosa. Assevera que o jogo é capaz de levar o sujeito a
“um estado, por assim dizer, de efervescência, que, após o ápice, o desempenho, o
extremo atingido como por milagre com destreza ou perseverança, deixa-o sem
energia nem coragem”.217 Não há como não reconhecer nessa passagem uma
proximidade com o que Huizinga chama de jogo autêntico e espontâneo ao qual o
jogador entrega-se de corpo e alma e tem a alegria transformada não só em tensão
como também, por meio de uma espécie de arrebatamento, em êxtase.
131
situados dentro de determinado domínio (diante do tabuleiro, no estádio, na pista,
dentro do ringue, em cima do palco, dentro da arena, etc.).
Por fim, “as emaranhadas e confusas leis da vida diária são substituídas, nesse
espaço definido e durante esse tempo determinado, por regras precisas, arbitrárias,
irrecusáveis, que têm de se aceitar como tais e que presidem ao correto desenrolar
da partida”.221 Ou seja, o jogo subentende um contexto de regras partilhadas entre os
jogadores, embora alguns jogos dispensem regras fixas ou rígidas. Nesse ponto, cabe
observar que tanto Huizinga quanto Caillois concordam que a desonestidade do
trapaceiro é menos danosa ao jogo do que a atitude do pessimista de denunciar o
caráter absurdo ou meramente convencional das regras. Há, não obstante, exceções.
Há, no entendimento de Caillois, muitos jogos que não envolvem regras ou que, pelo
menos, não envolvem regras fixas e rígidas. São eles, no geral, os jogos que supõem
uma livre improvisação e cujo principal atrativo é o prazer de desempenhar um papel.
Aqui a ficção, o como se, substitui a regra e desempenha a mesma função. 222 Assim,
não existem jogos regulamentados e fictícios, mas ou regulamentados ou fictícios.
Ademais, é imperativo que os jogadores de qualquer tipo de jogo tenham a
possibilidade de sair do jogo quando lhes aprouver. 223
vista da forma, pode resumidamente, definir-se jogo como uma ação livre, vivida como fictícia e situada para além
da vida corrente, capaz, contudo, de absorver completamente o jogador; uma ação destituída de todo e qualquer
interesse material e de toda e qualquer utilidade; que se realiza num tempo e num espaço expressamente
circunscritos, decorrendo ordenadamente e segundo regras dadas e suscitando relações grupais que ora se
rodeiam propositadamente de mistério ora acentuam, pela simulação, a sua estranheza em relação ao mundo
habitual”.
225 Ibid. p.24.
132
configure um jogo. Em segundo lugar, salienta Caillois, na parte da definição que
apresenta o jogo como uma atividade destituída de qualquer interesse material,
Huizinga parece esquecer as apostas, os jogos de azar, os cassinos, as casas de
jogos, a loteria etc. Embora os jogos sejam essencialmente estéreis e não produzam
nada, na medida em que podem envolver deslocação de propriedade, podem
inegavelmente trazer lucro ou causar a ruína dos jogadores. “Com efeito, uma
característica do jogo é não criar nenhuma riqueza, nenhum valor. Por isso se
diferencia do trabalho ou da arte. […] O jogo é ocasião de gasto total: de tempo, de
energia, de engenho, de destreza e muitas vezes de dinheiro”. 226
1. – livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de
imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;
2. – delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e
previamente estabelecidos;
3. – incerta: já que seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado
obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa do
jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar;
133
4. – improdutiva: porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos
novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do
círculo de jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;
5. – regulamentada: sujeita a convenções que suspendem a leis normais e
que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;
6. – fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade
outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.
229 Por mais abrangente que seja, essa definição ainda não contempla ou não se adapta totalmente a certo número
de jogos e distrações como o pião, as palavras-cruzadas, a paciência, o carrossel, dentre outros.
230 Caillois, [1958] 2001, p. 33-47.
231 Ibid. p.23.
232 Ibid. p.32.
134
triunfo do vencedor. Rivaliza-se acerca de uma única qualidade (rapidez, resistência,
força, memória, etc.), dentro de limites definidos e sem auxílio exterior. Esses jogos
podem opor dois indivíduos (boxe, judô, tênis), duas equipes (vôlei, futebol, basquete)
ou um número indefinido de concorrentes (corridas, golf, tiro ao alvo). A essa categoria
também pertencem os jogos em que os antagonistas dispõem de peças de valor e
número idênticos (damas, xadrez, bilhar).233 Jogadores de diferentes níveis podem
ainda chegar a um acordo quanto à vantagem a ser oferecida ao jogador de nível mais
baixo para que a condição de rivalidade ideal se estabeleça.234 Como o principal
interesse desse tipo de jogos é o de ver reconhecida sua excelência num determinado
domínio, sua prática supõe uma atenção persistente, um treino apropriado, esforços
assíduos, vontade de vencer, enfim, disciplina e perseverança.235
135
evade-se da realidade cotidiana fazendo e adentrando outra, a realidade formalmente
perfeita do jogo.239
136
A quarta e última categoria, denominada Ilinx, remete aos jogos de vertigem,
isto é, a um tipo de jogos que se assenta na busca da vertigem e que consiste numa
“tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à
consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico”. 242 Em todos os casos, diz
Caillois, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de tontura que
desvanece a realidade com uma imensa brusquidão. O que o jogador do ilinx procura
e tem como fim é, com frequência, a própria perturbação provocada pela vertigem.
Vários são os procedimentos físicos capazes de provocar vertigem e que como tais
podem compor esses jogos: a queda, a projeção no espaço, a rotação rápida, a
derrapagem, a velocidade etc. Daí o atordoamento e a embriaguez provocados pela
velocidade extrema, tal como se sente ao girar bruscamente a manopla de uma moto
de alta cilindrada ou ao pisar fundo no acelerador de um carro de 200 cavalos. Pode-
se dizer que as máquinas potentes tornaram mais fácil atingir uma sensação cuja
intensidade fosse capaz de estontear o organismo adulto, de modo que somente com
a era industrial a busca pela vertigem pôde se tornar uma categoria de jogo ao alcance
de uma multidão ávida. Como resultado de alguns desses jogos, pode-se ver:
Mas existe também uma vertigem de ordem moral que se apodera subitamente
do indivíduo. Essa vertigem, pontua Caillois, associa-se habitualmente ao gosto,
normalmente reprimido, pela desordem e pela destruição, de modo que traduz formas
brutais de afirmação da personalidade. Um exemplo disso nos adultos é a estranha
excitação que muitos expressam ao destruir coisas fazendo um grande estardalhaço.
Enfim, é para abarcar as diversas variedades desse tipo de exaltação que consiste
138
7. Jogo no pensamento matemático243
Então, vimos nessa breve retrospectiva das definições de jogo que seu sentido
permanecera relativamente estagnado no ocidente por mais de dois milênios, e
seguira uma evolução lenta e truncada até os séculos XVIII e XIX. O que parece ter
ocorrido um tanto tardiamente foi o reconhecimento conjunto de uma função biológica,
educativa, estética, junto com a função social do jogo.
No entanto, seria um erro considerar que não houve, nos dois milênios
transcorridos de Aristóteles à Kant, um substancial trabalho do pensamento acerca
dos jogos. Em meados do século XVII, na Europa, surgiram os primeiros estudos
matemáticos dos jogos. A correspondência de Blaise Pascal com o matemático Pierre
de Fermat a propósito do “problema dos pontos”244 talvez seja o primeiro estudo sério
sobre um jogo (nesse caso, sobre um jogo de dados). A reposta de ambos — de que
há uma igualdade de chances para todos os jogadores —, que envolvia a
consideração matemática das probabilidades, tanto explicitou as regras matemáticas
243 O material exposto nessa seção se apoia largamente no livro Teoria dos Jogos e da Cooperação para Filósofos
de Rogério Antônio da Silva. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005-2016.
244 Silva (2006, p.2) contextualiza o “problema dos pontos”. Consideremos que as chances iniciais daqueles
envolvidos num jogo de dados são as mesmas. As incertezas relativas às chances crescem no transcorrer da
partida, normalmente com a variação dos pontos obtidos por cada participante em cada jogada. No que concerne
ao fim da partida, são os resultados obtidos que indicam quem ganhou. Mas se por força das circunstâncias uma
partida for interrompida sem que seja possível, em comum acordo, reiniciá-la, não há na realidade do jogo
ganhador ou perdedor. Esse é o “problema dos pontos” para o qual Pascal e Fermat propuseram, como alternativa,
a consideração das “probabilidades iguais de ganho de cada jogador, caso o jogo tivesse continuado até o final”.
139
que subjazem os chamados jogos de azar, como desenvolvera a teoria da
probabilidade.245
245 A teoria da probabilidade, originalmente formulada no século XVI por Cardano, foi retomada por Pascal e Fermat
na primeira metade do século seguinte. Mas o primeiro livro exclusivamente dedicado à referida teoria só foi
publicado mais tarde: Sobre o Raciocínio em Jogos de Azar (1657), Christian Huygens.
246 A proposta das estratégias mistas de Borel consiste em aplicar as estratégias puras a uma taxa de variação
proporcional aos ganhos. O teorema minimax resolvia a questão de qual seria a melhor estratégia num jogo com
dois participantes e cinco alternativas de estratégia.
140
Há dois tipos de jogos de estratégia, o de informação completa e o de
informação incompleta. Os denominados “jogos de estratégia de informação
completa” normalmente têm regras pré-determinadas e são formalizáveis. Damas e
xadrez são exemplos desse tipo de jogo. Já no segundo tipo de jogo estratégico,
denominados “jogos de estratégia de informação incompleta”, os competidores
normalmente desconhecem ou só conhecem parcialmente as possibilidades de
jogada de seu oponente e os fatores que o farão determiná-la. Jogos de baralho em
geral, mas também conflitos militares e conflitos econômicos são jogos desse tipo.
Neles, cada um dos oponentes elege estratégias.
Essas situações análogas aos jogos nas quais um dos lados pode obter êxito
sem que isso implique na derrota do outro já foram objetos de reflexão e
representadas de diversas formas. Cenários que filósofos como Thomas Hobbes,
David Hume e Jean-Jacques Rousseau descreveram de modo intuitivo em suas
respectivas obras, Leviatã (1651), Tratado da Natureza Humana (1739) e Discurso
sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755). Mesmo
que Hobbes concebesse o indivíduo humano como espontaneamente egoísta e
propenso a lutar contra os outros pelos meios indispensáveis por sua sobrevivência,
dada a fragilidade dos indivíduos diante da natureza, a cooperação surge como uma
solução motivada pela razão. Hume imaginou uma situação hipotética na qual dois
fazendeiros tinham suas safras ameaçadas e, visto serem naturalmente egoístas,
tinham dificuldade de convencer um ao outro a colaborar limitando suas respectivas
colheitas. Rousseau, por sua vez, imaginou uma situação em que caçadores
dependem das ações de outros para conseguir caça suficiente. Mas por fim
247 Esses cenários já haviam sido tratados de forma intuitiva por Hobbes, Hume e Rousseau.
141
considerou provável que alguns desertassem caso tivessem a oportunidade de
capturar, sozinhos, uma presa menor que os satisfizessem.
com que os barcos fossem destruídos para que, sem meios de fuga e em território hostil, até os soldados mais
descontentes se unissem a ele.
251 Silvia, 2006, p.4.
142
8. Noções de jogo em Foucault
Bem, mas o que entender, precisamente, por “regime de verdade” e por “jogos
de verdade”? Nas palavras de Foucault, por regime de verdade devemos entender,
em primeiro lugar, “os tipos de discursos que as sociedades acolhem e fazem
funcionar como verdadeiros, como discursos verdadeiros”. Por regime de verdade
devemos entender, em segundo lugar, “os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como uns e outros são
sancionados”. Por regime de verdade devemos entender, em terceiro lugar, “as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade”. Por
regime de verdade devemos entender, finalmente, “o estatuto daqueles que tem o
poder de dizer aquilo que funciona como verdadeiro”.252
252Foucault, M. Questões de Michel Foucault à revista Hérodote e respostas dos geógrafos In: Ditos e Escritos IV:
Estratégia, Poder-Saber. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2003, p.183-184.
143
informação. Essa verdade é produzida e transmitida sob o controle dominante de
alguns grandes aparelhos políticos e econômicos, tais como as universidades, a
mídia, a escrita, o exército. Por fim, essa verdade é lugar de enfrentamentos, de
debates políticos violentos sob a forma de lutas ideológicas. 253
Assim sendo, podemos agora formular uma série de questões das quais
apenas muito superficialmente nos aproximamos no primeiro capítulo. Por exemplo,
por meio de que processos de objetificação e subjetivação fomos historicamente
constituídos? Que jogos de verdade permitiram ao sujeito ocidental moderno pensar-
se e experimentar-se enquanto tal? Que jogo de verdade foi responsável pela
reconfiguração do regime de verdade das sociedades ocidentais? Qual jogo de
verdade foi mais decisivo para a constituição de nosso modo de ser? Que jogo de
verdade, forjando o pecado, fez com que o sujeito ocidental pensasse a si mesmo
como pecador e experimentar-se a si mesmo como pecador? Que jogo de verdade
manchou indelevelmente a alma desse sujeito? Que jogo de verdade fez esse sujeito
253 Revel, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. Ed. Claraluz, São Carlos, 2005, p.86-87.
254 Revel, 2005, p.87.
144
ser habitado pelo maligno por tantos séculos? Que jogo de verdade fez desse sujeito
habitado por uma libido? Que jogo de verdade forjou, inquietou e incitou uma relação
tão problemática do sujeito com sua própria sexualidade? Enfim, que jogo de verdade
deu ensejo ao sujeito de desejo? Todas essas questões gravitam em torno do
problema do sujeito desejante e podem, de forma individual ou global, servirem de
ponto de partida para uma narrativa histórico-crítica.
1. Um convite à filosofia
147
vista disso, os saberes são considerados elementos de um dispositivo de caráter
estratégico. A principal diferença entre a arqueologia e a genealogia não reside no
objeto de estudo ou no domínio de investigação, mas na delimitação, na perspectiva
e no ponto de ataque. Em razão disso, a arqueologia e a genealogia consistem em
dois conjuntos de procedimentos complementares.
A arqueologia procura cercar as formas da exclusão, da limitação e da
apropriação, mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como
se modificaram e se deslocaram, que força exerceram e até que ponto foram
contornadas. Já a genealogia põe em prática outros princípios que, por sua vez, se
formaram através, apesar ou com o apoio da arqueologia. O ponto de interseção é o
da formação efetiva dos discursos que se dá ou no interior ou no exterior dos limites
do controle, ou de ambos os lados da delimitação. Enquanto a crítica analisa os
processos de rarefação, de agrupamento e de unificação dos discursos, a genealogia
analisa a formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular dos discursos.
Entretanto, uma vez que a tarefa da arqueologia consiste, por um lado, em
descrever as formas de seleção, adequação, reagrupamento, alteração ou exclusão
que operam submetendo o discurso ao controle e, por outro lado, dá sustentação à
tarefa da genealogia que consiste em analisar a proveniência considerando tanto os
mecanismos e estratégias das relações de força quanto os limites e regras objetivados
nas regularidades discursivas, esses métodos não só se complementam como são
indissociáveis.
No entanto, Foucault considera a tarefa da genealogia particularmente
trabalhosa por consistir numa atividade investigativa que procura os indícios para a
confirmação de suas hipóteses em fatos até então desconsiderados e desvalorizados,
quando não apagados, pelos fabricantes da história tradicional. O que está em jogo
nessa atividade, o que ela requer, é a singularidade dos acontecimentos para fazer
emergir o entendimento sobre os espaços onde determinado objeto como, por
exemplo, o desejo desempenha papéis distintos ou foi excluído do discurso
verdadeiro. Por meio desse tipo de análise ativa-se os saberes locais, não legitimados
ou valorizados pelo discurso verdadeiro. E uma vez que a genealogia se propõe
demarcar os acidentes e os acasos que deram origem ao que existe, a concepção
genealógica da história não pressupõe a verdade, o ser, um segredo a desvendar ou
essência das coisas a se buscar, mas sim acasos e descontinuidades. Em vez de
148
identidades que remetem a origens, as coisas que emergem nessa história
pressupõem a existência de uma discórdia entre elas. Do ponto de vista genealógico,
a própria razão teria nascido do acaso, das paixões de certos homens, da necessidade
de suprimi-las e, enfim, de sua vontade de saber. No que concerne à constituição do
sujeito, há um ponto de articulação do corpo com a história. E se as condições para a
produção do sujeito se definem na história, ao se produzir, o sujeito reproduz a
história. Nessa história efetiva, todo saber é perspectivo, parte de determinado ângulo
e movimenta-se visando avaliar o estado de coisas.
No entanto, é preciso ter em mente que o método genealógico não tem a
pretensão de destruir o atual estado de coisas e fundar um outro a partir de uma
verdade inédita. Não se busca, por meio de uma análise do passado em nome de uma
nova verdade, a destruição, mas sim a uma consideração do que somos enquanto
atravessados pela vontade de verdade.
Estudando as formas de poder na sua multiplicidade, diferença, especificidade
e reversibilidade, a genealogia se volta para as relações de força que se entrecruzam,
que se remetem umas às outras, que convergem ou que se opõem. Notemos que do
mesmo modo que o método genealógico é o mais adequado para a análise da
discursividade local, a parte arqueológica da análise geral é aquela que se liga aos
sistemas de recobrimento do discurso. Já a parte genealógica dessa análise é aquela
que se detém à formação efetiva do discurso entendido em seu poder de constituir
domínios de objetos por meio dos quais proposições verdadeiras ou falsas se tornam
possíveis. Em síntese, trata-se de uma tática que, partindo da discursividade local,
ativa vários saberes através da crítica à sujeição que ali emerge.
Foucault entende que nenhum exercício do poder prescinde de uma certa
economia dos discursos de verdade. “Somos submetidos pelo poder à produção da
verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade”.
149
Em vista disso, a história genealogicamente dirigida não se apega as
identidades, mas obstina-se em dissipá-las; não visa demarcar o território de onde
viemos, mas lançar luz sobre as descontinuidades que nos atravessam.
Então, uma vez caracterizadas as metodologias, retomemos o ponto em que
estávamos. No primeiro capítulo, mencionamos que um jogo filosófico foi proposto por
Michel Foucault a seus contemporâneos por ocasião do lançamento de A vontade de
saber. No segundo capítulo, retrocedemos até os gregos e, com base em alguns
estudos selecionados sobre jogos, revisamos a noção filosófica de jogo. Neste
capítulo, pretendemos dar prosseguimento à descrição do jogo, reconstituir sua
história e esclarecer sua relação com o projeto da História da sexualidade.
É preciso dizer que a expressão “jogo de Foucault” tem dois sentidos, o de
“convite à filosofia” e de “jogo filosófico”. Acontece também desses sentidos se
sobreporem em alguns contextos. Essa ambiguidade se deve a Foucault ter, ao
mesmo tempo e num só gesto, proposto um jogo mental a seus contemporâneos e
feito, sob a roupagem de um jogo filosófico, um convite à filosofia. Embora, por
definição, o jogo filosófico não tenha outra finalidade que não seu próprio exercício, o
jogo filosófico proposto por Foucault desempenha um papel na estratégia geral que
norteia toda a concepção da História da sexualidade. Para apreender esse papel nos
voltemos para a gênese de A vontade de saber. Já mencionamos — no primeiro
capítulo, tendo por principal fonte a Cronologia de Foucault redigida por Daniel Defert
— algumas coisas a respeito da época, da origem, da publicação e da recepção desse
livro. Retomemos alguns fatos conhecidos.
Em 1975, Foucault pediu a um adiantamento em dinheiro a Gallimard que, por
sua vez, o fez assinar um contrato de exclusividade por cinco anos. Diante disto,
Foucault decidiu publicar um livro pequeno e mais nenhum durante cinco anos. Esse
pequeno livro seria A vontade de saber. Algo em torno desse episódio parece ter
motivado Foucault a alterar o estilo de sua escrita e a forma que costumava arquitetar
seus livros.258
258Huizinga questiona, a propósito da ideia de “estilo” em arte, se não haverá a aceitação implícita de um certo
elemento lúdico. “Não será o próprio surgimento do estilo um jogo do espírito em busca de novas formas? O estilo
depende dos mesmos elementos que o jogo, do ritmo, da harmonia, da mudança e da repetição regular, da tensão
e da cadência. O estilo e a moda estão mais aparentados do que a estética ortodoxa habitualmente admite”
(Huizinga, [1938] 2018, p.206-207).
150
Para contextualizar o interesse de Michel Foucault pelas temáticas
desenvolvidas em A vontade de saber durante o ano de 1975, mencionemos algumas
ocasiões em que o filósofo se pronunciou sobre o assunto. De abril a maio de 1975,
duas conferências em Berkeley. De outubro a novembro, conferências na
Universidade de São Paulo. Em novembro, uma conferência na Faculdade de
Filosofia da Bahia. Mas foi em agosto (entre uma ocasião e outra dessas conferências)
que Foucault terminou de escrever o referido livro. Esse livro foi o único que ele
escreveu sem saber de antemão que título daria.
É precisar dar ênfase a algumas coisas a respeito de A vontade de saber. Esse
livro concluído em agosto de 1975 — e posteriormente intitulado A vontade de saber
— é ao mesmo tempo o único livro de Foucault inteiramente dedicado à
problematização de questões concernentes à psicanálise e aquele que apresenta sua
crítica mais contundente aos pressupostos da psicanálise. Daí a pretensão do autor
de que ele fosse tomado como uma arqueologia da psicanálise. Apesar da aparente
trivialidade, há mais dois detalhes para o qual gostaríamos de chamar a atenção. O
primeiro detalhe é o fato de A vontade de saber ser o mais curto de todos os livros de
Foucault. O segundo, no fato desse pequeno livro escrito por Foucault ter sido
originalmente publicado em dezembro de 1975, porém datado de 1976. Esse fato é
particularmente curioso. O que motivou o autor a alterar a data de publicação? Parece-
nos, nesse caso, tratar-se de uma ironia. Sim, e para ser mais preciso, de uma ironia
direcionada aos psicanalistas. Um tipo de, por assim dizer, “piada interna”.
Então, acabamos de assinalar três coisas a respeito de A vontade de saber —
uma relativa a seu conteúdo e dois detalhes relativos a, digamos, aspectos materiais
do livro. Concordamos que, no fim das contas, a posição de Foucault em relação à
psicanálise nem sempre é clara. No entanto, em certa ocasião ele expressa
abertamente sua opinião a respeito da obra de Freud ao declarar que, para ele,
importante é a Traumdeutung (1900) e não os Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905). Considerando essa declaração de Foucault, verificamos a
existência de três correlações entre A vontade de saber e a Traumdeutung.
Analisemos o contexto. Enquanto a Traumdeutung (título original da
Interpretação dos sonhos) é considerada a obra que marca oficialmente a fundação
da psicanálise, A vontade de saber representa o mais explícito empreendimento crítico
de Foucault contra a psicanálise ou, pelo menos, contra importantes pressupostos da
151
psicanálise. Observa-se uma correlação entre os propósitos diametralmente opostos.
A Interpretação dos sonhos como obra fundadora de um lado e A vontade de saber
como obra crítica do outro. A primeira correlação, uma correlação inversa.
Segundo ponto: a Interpretação dos sonhos é o mais extenso livro escrito por
Freud, enquanto que A vontade de saber é o mais curto livro escrito por Foucault.
Segunda correlação inversa. Ou seja, temos o livro fundador da psicanálise e, dentre
os livros de Freud, de maior extensão versus o livro crítico da psicanálise e, dentre os
livros de Foucault, de menor extensão.
Terceiro ponto: assim como A vontade de saber foi publicada em dezembro de
1975 e datada de 1976, a Interpretação dos sonhos (destacada por Foucault como
sendo a obra mais importante de Freud), embora datada de 1900, também foi
publicada no ano anterior, precisamente em 4 de novamente de 1899. Temos aí,
portanto, três correlações entre A vontade de saber e a Interpretação dos sonhos.
Está aí, nos parece, a ironia que cerca a publicação desse livro peculiar ]de Foucault.
Entretanto, de acordo com Daniel Defert, o autor de A vontade de saber o
concebeu “como um manifesto com o qual se deve marcar um encontro. […] ele vai
na contramão da expectativa do público por sua crítica à hipótese repressiva, cara aos
movimentos de liberação”. Então, se por manifesto entendermos um texto dissertativo
utilizado para levar ao público opiniões com diferentes fins comunicativos; se o intuito
do manifesto é sensibilizar ou persuadir a opinião pública por meio da defesa
argumentativa; se o propósito do manifesto é atrair leitores para comungar das ideias
e ou críticas expostas; e se por encontro entendemos encontrar com adeptos,
simpatizantes daquelas ideias e ou críticas, com eles travar conhecimento,
eventualmente compartilhar de uma experiência, A vontade de saber é um livro
diferente dos demais não só por suas características como pelo propósito com o qual
foi concebido.
Negar certa estranheza na concepção de A vontade de saber ou chamar de
coincidências os curiosos fatos que assinalamos a seu respeito, nos parece, no
mínimo, falta de espírito investigativo; pra não dizer denegação filosófica. Defert ainda
nos revela que embora esse livro tenha sido apresentado como uma introdução a uma
história da sexualidade em seis volumes, Foucault lhe confidenciou que não tinha
intenção de escrever os demais. Ora, como interpretar o anúncio de uma História da
sexualidade que o autor não tinha intenção de concluí-la? Ou mesmo, como interpretar
152
o fato do autor ter se empenhado em escrever uma Historia da sexualidade (não em
seis, mas em quatro volumes) após ter confidenciado a alguém próximo seu
desânimo? Essa questão segundo a qual Foucault anunciou o projeto da História da
sexualidade sem, todavia, ter a pretensão de concluí-lo, nos sugere algumas
hipóteses explicativas que, embora insuficientes, sustentam algumas conjecturas a
respeito de sua atitude.
Primeiro, mesmo que A vontade de saber tenha sido concebido como um
manifesto, o autor também se referiu a ele como um “livro programa”. Assim
caracterizado, parece decorrer disso e ser legítimo afirmar que esse livro é uma
espécie de experimento, ou que foi lançado como um “livro experimento” pra ver no
que dava. Qual seria a reação do público? Sendo ao mesmo tempo tomado como
manifesto e como experimento, ficamos mais propensos a aceitar a ideia de que ele
visa menos semear ideias do que incitar o pensamento, provocar uma reflexão, enfim,
reações no público. Portanto, sob a perspectiva de um “experimento”, A vontade de
saber poderia tem sua razão de ser independentemente dos demais volumes da
História da sexualidade. Como dizia o próprio Foucault: “Não escrevo um livro para
que seja o último. Escrevo para que outros livros sejam possíveis, não
necessariamente escritos por mim”.
Outra coisa também nos ocorre. Outra coisa que, vocês vão ver, é menos uma
nova hipótese do que um complemento à primeira. Ela encontra apoio na seguinte
passagem. Roberto Machado (uma das principais referências brasileiras no
pensamento de Michel Foucault), comentou a seguinte cena transcorrida em seu
último encontro com Foucault:
153
uma hora antes e escrevi esse texto. Esse texto a que você está se referindo,
dando tanta importância, foi escrito nas coxas”.
(Machado, 2015)
Desse modo, o relato de Machado parece não só indicar uma postura, digamos,
“não-séria” de Michel Foucault sobre um texto de sua autoria, como externar um traço
lúdico de seu pensamento. Isso se nota nas últimas palavras reproduzidas: “Aí eu fui
à sala do lado uma hora antes e escrevi esse texto. Esse texto a que você está se
referindo, dando tanta importância, foi escrito nas coxas”. De modo semelhante,
algumas características de A vontade de saber, tais como o caráter quase fabuloso
de sua narrativa, seu estilo ensaístico e hipóteses sabidamente arriscadas, se não o
distanciam tanto da seriedade, aproximam-no, todavia, do aspecto menos sério e dos
traços lúdicos da esfera do pensamento.
A obra Homo Ludens (1938) de Johan Huizinga apresenta noções que, no
corpo do texto e talvez por razões de estilo, nem sempre aparecem de forma distinta.
Mas haja visto a importância de algumas dessas noções para o que estamos
trabalhando, as tomamos de empréstimo e as concatenamos logicamente. Por
exemplo, concebemos uma sequência lógica para “impulso lúdico”, “elemento lúdico”
e “espírito de jogo”.
Situamos o “impulso lúdico” no começo dessa série de noções por concebê-lo,
fundamentalmente, como princípio de tudo o que é lúdico no mundo e como o que dá
ensejo aos movimentos lúdicos da alma. Ao se organizar (seja pela intensidade,
distribuição, convergência de sua energia etc.) o “impulso lúdico” deixa de ser uma
coisa essencialmente anímica. Consolidando-se nas coisas do mundo, o que era um
impulso transforma-se num elemento. Este é o “elemento lúdico”, uma noção situada
no segundo lugar da série e que tem por característica básica ser, dos traços mais
ínfimos às partes mais notórias, dado à percepção. O “elemento lúdico” é o principal
componente constitutivo do “espírito de jogo”, o de maior relevância para sua
manutenção e, em caso de baixa, um dos motivos mais comuns de sua deterioração.
A noção de “espírito de jogo”, terceira e última da série, designa um estado subjetivo,
individual ou compartilhado com outros, relacionado ao domínio dos jogos.
Assim como o “impulso lúdico” é gerado internamente, mas sofre interferências
de fatores externos, o “espírito de jogo” é um estado de espírito que não é determinado
por um único fator. Por exemplo, o “espírito de jogo” tanto pode ser aumentado pelo
154
próprio jogo, pela participação no jogo, como pode ser reduzido por circunstâncias
alheias ao domínio do jogo. Mas, para resumir, uma das características mais
marcantes do “espírito de jogo” é uma certa sensação que envolve tensão,
divertimento, amistosidade e competição.
Então, esclarecemos o fator impulsivo, elementar e espiritual da esfera lúdica
através das noções de “impulso lúdico”, “elemento lúdico” e “espírito de jogo” que
desempenham um papel na experiência que temos dos jogos. Fizemos isso com o fim
de contextualizar a pergunta: a partir de tudo que foi exposto até o momento, podemos
inferir que essas noções de “impulso lúdico”, de “elemento lúdico” e de “espírito de
jogo”, próprias da esfera lúdica e do domínio dos jogos, se encontram presentes entre
as características de A vontade de saber e na postura assumida por seu autor? Não
parece que A vontade de saber revela uma disposição do filósofo em jogar com as
possibilidades do pensamento?
Sabemos, agora, que o início de qualquer jogo se dá a partir de um “impulso
lúdico”. Condensando-se, esse impulso compõe um “elemento lúdico”, pedra de
fundação da essência do jogo. Embora o “impulso lúdico” permeie a experiência que
temos do jogo, é originariamente anterior. O “elemento lúdico”, embora
contemporâneo ao alicerce sobre o qual as condições formais do jogo são
estabelecidas, também é anterior ao jogo propriamente dito. Mas uma vez
determinadas as condições formais do jogo, este passa a existir como uma atividade
distinta da realidade cotidiana e a manifestar o “espírito de jogo”. São três, portanto,
os momentos de constituição de um jogo a partir dos quais essas noções podem ser
respectivamente aplicadas.
Cada uma dessas noções desempenha seu papel como chave de leitura de
aspectos da esfera lúdica e do domínio do jogo. O aspecto do “elemento lúdico”, por
consistir no cerne e razão de ser do jogo, é aquele cujo enfraquecimento deteriora os
outros dois e cuja falta os extingue. Por isso, há jogos que existem e os que já não
existem, os que correspondem plenamente a concepção filosófica de jogo e os que
dela se distanciaram devido a perda de suas qualidades lúdicas.
Muitas coisas têm “traços de ludicidade”, mas nem por isso são jogos. Muitas
têm “elementos lúdicos”, sem que com isso se configurem jogos. Muitas também têm
“espírito de jogo”, mas não são reconhecidas como jogos. O livro lançado por Foucault
em 1976, A vontade de saber, possui esses três aspectos inerentes aos jogos. Mas o
155
que isso significa? De modo geral, a conservação do “elemento lúdico” é condição,
mas não garantia do “espírito de jogo”. Por exemplo, a simples aderência de outros a
ideia do jogo é um fator que fortalece o “espírito de jogo”. Enquanto o “elemento lúdico”
diz se isso tem condições de ser ou de se tornar um jogo, o “espírito de jogo” diz se
terá graça jogá-lo.
Entretanto, para continuarmos nos aproximando da gênese de A vontade de
saber, talvez convenha seguir outras vias e procurar saber, por exemplo, “quando”
surgiram as principais ideias contidas nele. Na aula de 19 de fevereiro de 1975, por
exemplo, Foucault ventilou pela primeira vez (de maneira incipiente, mas já
essencialmente formulada naquilo que trazia de original) a principal ideia do livro de
1976, a saber, a ideia de um dispositivo da sexualidade como operador de análises
mais fecundas do que aquelas amparadas na noção psicanalítica de repressão.
Podemos imaginar — eu não sei, mas podemos imaginar, pois creio que
agradaria a muita gente — que a regra de silêncio sobre a sexualidade só
começou mesmo a pesar no século XVII (digamos, na época da formação
das sociedades capitalistas), mas que antes todo o mundo podia dizer o que
bem entendesse sobre a sexualidade. Pode ser! Pode ser que fosse assim
na Idade Média, pode ser que a liberdade de enunciação da sexualidade
fosse muito maior na Idade Média do que nos séculos XVIII ou XIX.
Olhem o que acontece agora. De um lado, vocês têm, atualmente, toda urna
série de procedimentos institucionalizados de revelação da sexualidade: a
psiquiatria, a psicanálise, a sexologia. Ora, todas essas formas de revelação,
científica e economicamente codificadas, da sexualidade são correlatas do
que podemos chamar de uma relativa libertação ou liberdade no nível dos
enunciados possíveis sobre a sexualidade. A revelação não é, aí, uma
espécie de maneira de atravessar, a despeito das regras, dos hábitos ou das
morais, a regra de silêncio. A revelação e a liberdade de enunciação se
defrontam, são complementares uma da outra. Se as pessoas vão tanto ao
psiquiatra, ao psicanalista, ao sexólogo, para enunciar a questão da sua
sexualidade, revelar o que é sua sexualidade, é porque há em toda parte, na
propaganda, nos livros, nos romances, no cinema, na pornografia ambiente,
todos os mecanismos de apelo que remetem o indivíduo, desse enunciado
cotidiano da sexualidade, à revelação institucional e custosa da sua
sexualidade ao psiquiatra, ao psicanalista e ao sexólogo. Temos então aí
atualmente, uma figura na qual a ritualização da revelação tem por vis-à-vis
e por correlativo a existência de um discurso proliferante sobre a sexualidade.
157
profissional, economicamente viáveis e no interior das quais normalmente ocorre, por
parte do sujeito que as procura, a verbalização da sexualidade. Esses procedimentos
ou práticas “são correlatas do que podemos chamar de uma relativa libertação ou
liberdade no nível dos enunciados possíveis sobre a sexualidade”.
Mas, afinal de contas, por que as pessoas vão precisamente ao psiquiatra, ao
psicanalista e ao sexólogo para enunciar a questão de sua sexualidade, revelar o que
é sua sexualidade? Por que esses procedimentos ocupam, no que concerne à
revelação da sexualidade, um lugar de destaque? É porque “há em toda parte, na
propaganda, nos livros, nos romances, no cinema, na pornografia ambiente, todos os
mecanismos de apelo que remetem o indivíduo, desse enunciado cotidiano da
sexualidade, à revelação institucional e custosa da sua sexualidade ao psiquiatra, ao
psicanalista e ao sexólogo.” Há, portanto, além de um discurso proliferante sobre a
sexualidade, uma série de mecanismos que incitam o sujeito a falar de sua
sexualidade sob a forma de um ritual de revelação em tais contextos
institucionalizados.
Nesse trecho, Foucault diz que quer, esboçando uma espécie de pequena
história do discurso da sexualidade, colocar o problema não da censura, mas sim da
revelação da sexualidade. “Eu gostaria de tentar inverter um pouco o problema e fazer
a história da revelação da sexualidade”. Ora, será mesmo que Foucault notou algo
que nenhum historiador até então tinha notado? Será mesmo que Foucault notou algo
de inédito a respeito da sexualidade, ou a respeito do discurso sobre a sexualidade,
nos arquivos da história? Será mesmo possível que uma realidade histórica como
essa, a de uma exploração discursiva da sexualidade, tenha permanecido soterrada
e longe da vista de todos? Convenhamos que esse problema, formulado por Foucault
158
em termos de injunção quase generalizada à verbalização da sexualidade, parece
demasiado amplo e chamativo para que se tenha passado desapercebido por todos.
Seja como for, uma coisa é certa, meio que à maneira de Nietzsche, Foucault costuma
inverter, torcer e reformular problemas filosóficos tradicionais e largamente
conhecidos. Essa é uma das maneiras através das quais o filósofo torna visível aquilo
que, no visível, não se vê. Ou seja, Foucault tanto tem um gosto especial pela
subversão das problemáticas quanto um jeito todo seu de revelar as coisas que,
nessas problemáticas, bem debaixo do nariz de todo mundo, permanecem não vistas.
Pois bem, mas como Foucault entabula essa história da revelação da
sexualidade? Consideremos a situação na qual o problema fora apresentado ao
público como problema filosófico. Trata-se da referida aula de 19 de fevereiro de 1975
do curso Os Anormais. Imaginemos a cena. Um auditório do Collège de France lotado.
Pessoas em pé. Outra sala, anexa à principal, também lotada. Rostos conhecidos e
desconhecidos. Muitos estrangeiros. Diversos gravadores sobre a mesa do famoso
filósofo Michel Foucault, professor daquela renomada instituição. É claro que numa
ocasião como essa Foucault não ia apresentar um problema filosófico fresquinho e,
não dando nenhuma solução para ele, deixar seus ouvintes no vácuo. Com efeito, ele
dá uma palhinha sobre a história da revelação da sexualidade nessa aula. Porém,
essa é apenas a cena inicial a partir da qual toda uma série de pesquisas e análises
sobre a sexualidade começam a se arranjar em torno da questão da revelação da
sexualidade.
Entretanto, supomos que A vontade de saber não se limita a dar uma resposta
ao problema da revelação da sexualidade e a dar prosseguimento à história, iniciada
um ano antes, da revelação da sexualidade. Supomos que há mais coisas em jogo
nesse livro. Supomos que esteja em questão não um, mas vários problemas
filosóficos. Ou que, em torno do principal, se aglutinam vários outros problemas
filosóficos. Assim, sua gênese é um assunto que nos compete. Então, como surgiu A
vontade de saber? Qual foi seu mote? Por que tem a forma que tem e não outra? Por
que tomou como tema a história de revelação da sexualidade? Por que faz as
denúncias que faz? Por que apresenta as hipóteses que apresenta?
A bem da verdade, vários são os motivos para isso e não acreditamos que seja
possível percorrê-los aqui. Cada um tem uma história a esse respeito. Histórias que
às vezes se complementam e outras vezes se contradizem. Sigamos então em
159
direção às razões inexploradas para a concepção desse livro em particular e, por
extensão, para a concepção da História da sexualidade.
Lembremos que a escrita de Foucault — essencialmente ensaística, conforme
Jorge Larrosa — constituía para ele mesmo, e segundo ele mesmo, uma
“experiência”, no sentido forte do termo. E tal experiência, por sua vez, o modificava
e o impelia a deslocar seu ponto de vista. “Quando escrevemos livros, desejamos que
estes modifiquem inteiramente tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos
percebamos inteiramente diferentes do que éramos no ponto de partida”. Então, dessa
experiência do sujeito com a verdade resulta um saber de experiência que, pela
proximidade e coabitação com o ser do sujeito, o transforma. É verdade que, como
acontece com muitas experiências de transfiguração e mudança, “depois nos damos
conta de que, no fundo, pouco nos modificamos. Talvez tenhamos mudado de
perspectiva, girado em torno do problema, que é sempre o mesmo, isto é, as relações
entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência”. Ou seja, apesar de
reconhecer a constituição da experiência como fim de sua prática filosófica e prática
de escrita, havia, contudo, da parte de Foucault, certa decepção ou, no mínimo, certa
insatisfação em relação ao nível dessa experiência. Podemos supor que em algum
momento Foucault se deu conta ou vinha se dando conta que a experiência solitária
com a verdade de sua subjetividade já não lhe bastava.
Embora nos pareça que a diversidade subjetiva possa ser infinitamente maior
do que é; embora sonhemos com esse tempo talvez utópico em que cada sujeito seja
em si um espetáculo; embora nos enfademos com a homogeneização das
subjetividades e nos entediemos com o insistente “mais do mesmo”; não damos conta
sequer do que já somos, tal como somos, por mais repetitivo que sejam nossos
problemas. O que fazer ao se dar conta de nossa própria constituição e das
especificidades de nossas demandas? A princípio situações como essa, que
associamos a certa modalidade de “conhecimento de si”, nos parecem promissoras,
o ponto de partida para muitas soluções. No entanto, o sujeito por vezes se percebe
com necessidades subjetivas com as quais é difícil de se arranjar. O sujeito por vezes
se descobre constituído de tal forma que, por exemplo, nem a religião, nem a arte,
nem os prazeres mundanos lhe salvam. Enfim, o sujeito por vezes se desdobra
subjetivamente, se desvela diante de si mesmo e revela para si mesmo a única saída
que lhe resta, a única maneira de salvar-se, a única forma por meio da qual alcançar
160
a salvação. Há muitos indícios de que, no caso de Michel Foucault, a forma de
salvação mais ajustada, apropriada e compatível, ou mesmo a única saída cabível,
era a modificação, a transformação e a transfiguração de si. Por isso a valorização,
por parte desse filósofo, da experiência.
Insatisfeito com o que, para ele, já pareciam ser “experiências mirradas” —
“Depois nos damos conta de que, no fundo, pouco nos modificamos” —, e sabendo
que nenhuma alternativa lhe restava, que todos os outros caminhos estavam não só
fortuitamente obstruído, mas definitivamente bloqueados, Foucault empertigou-se
diante da questão: o que fazer para, me transformando, deixar de ser o que sou e
transcender aqui mesmo onde estou? Pois bem, era preciso, portanto, ampliar a
experiência. E já não se travava mais de ampliar a experiência atingindo uma
“experiência-limite” de inspiração batailleana. Já havia tentado isso em outros tempos.
Travava-se agora de ampliar sua experiência constituindo-a nas proximidades, nas
cercanias e em face de outras experiências. Tratava-se de, pondo a experiência de si
mesmo em contato com uma ou mais experiências, permitir que, em decorrência da
ressonância das diferenças, sua experiência se expandisse. Tratava-se, portanto, de
compartilhar uma vivência com outros, semelhantes e diferentes dele mesmo, de
consentir que a verdade de sua subjetividade entrasse em contato com a verdade de
outras subjetividades de modo que as experiências, enlaçadas umas às outras pelas
semelhanças, se alimentassem mutuamente e se expandissem continuamente em
virtude de suas inextrincáveis diferenças.
Digamos que as coisas tenham se passado assim. Digamos que a questão para
Foucault tenha sido essa. Digamos ainda que, assombrado pelo sentimento de solidão
desde muito tempo — como relevou seu companheiro Daniel Defert na Cronologia
que escreveu de sua vida — o filósofo quisesse não só “se salvar”, mas favorecer a
transformação de outros por meio de uma autêntica experiência filosófica.
Então, como viabilizar isso? Como arranjar um encontro desses? Como
oportunizar o contato com outras experiências? Não sob a forma de um livro onde os
outros, leitores, são pouco mais que sujeitos passivos diante de seu pensamento. É
preciso envolver os outros na experiência e convidá-los a fazer sua própria
experiência. “Meu problema é o de fazer eu mesmo — e de convidar os outros a
fazerem comigo, por meio de um conteúdo histórico determinado — uma experiência
161
daquilo que nós somos […]”, disse Foucault numa entrevista concedida a Duccio
Trombadori em 1978.
Enfim, mas como, efetivamente, fazer isso? Diante desse problema de como
viabilizar a constituição de uma experiência plural, potencialmente coletiva, qual
estratégia adotar? Bem, sabemos que, além dessa modalidade de prática filosófica e
de escrita defendidas por Foucault, há toda uma diversidade de práticas e técnicas às
quais se atribuem a capacidade de modificação e transformação do sujeito. O valor
dessas práticas e técnicas variam. Algumas são notoriamente mais relevantes e
tendem a se manter por mais tempo no curso da história. Cada contexto histórico
estabelece, por razões que lhe são próprias, as práticas e técnicas de si que têm maior
prestígio. Ora, visto que a psicanálise — tributária da prática da confissão e situada
no prolongamento das práticas e das técnicas de si organizadas sob a égide do
“cuidado de si” (epiméleia heautoû) — ocupa um lugar de destaque entre os
dispositivos contemporâneos que proporcionam uma experiência do sujeito com a
verdade, a abordagem das condições de possibilidade da experiência psicanalítica
(isto é, a sexualidade e o desejo) mostra-se um tema adequado para um livro que tem
em vista fazer um convite a seus leitores para que participem de uma experiência.
Essa seria uma razão para que o novo livro de Foucault (que visa fazer um convite à
experiência) se aproximasse das temáticas psicanalíticas. Outra razão para isso seria
o fato de que não só o interesse de Foucault pela psicanálise é antigo como seu
conhecimento relativo à obra freudiana o permitiria trabalhar imediatamente na
confecção de um livro.
É nessas circunstâncias, e atravessado por essas questões, que Foucault
elabora seu novo livro. E é através desse livro que o filósofo convida seus
contemporâneos a uma experiência. Mas como, efetivamente, Foucault faz esse
convite? Concebendo um jogo filosófico em torno de um problema filosoficamente
polêmico, o da historicidade do desejo e, por conseguinte, da historicidade do sujeito
de desejo. Esse é, por assim dizer, o núcleo de sua estratégia. Foucault pretende,
através de A vontade de saber, fazer um convite a seus contemporâneos, pretende
convidá-los à constituição de uma experiência do pensar face a verdade do desejo por
meio de suas respectivas participações num jogo filosófico.
Como um convite à constituição de uma experiência do pensar face a verdade
do desejo, Foucault propôs um jogo filosófico que tem por tema a história do desejo
162
ou a história do sujeito de desejo. Assim, a proposta de um “jogo do desejo” pode ser
tomada como um dos fios condutores da confecção de A vontade de saber sem que,
no entanto, seja explicitada no interior do livro. No entanto, a falta de eco nos deixa
com a impressão de que a proposta de jogo — um jogo em torno da historicidade da
noção de desejo e de suas implicações — não fora levada suficientemente a sério. O
livro em si, apesar da visível inquietação de alguns, não tivera grande acolhida entre
os intelectuais, diferente de obras como A história da loucura (1961) e Vigiar e punir
(1975). Mas a que se deve o insucesso de Foucault em envolver os outros e impregná-
los do “espírito de jogo” necessário tanto para o reconhecimento do jogo em sua ideia
geral quanto para dele participar?
Não há efetivamente uma resposta para isso, mas algumas hipóteses, Por
exemplo, como Foucault já havia empregado o termo “jogo” para designar os jogos do
verdadeiro e do falso que ficaram conhecidos pela noção de “jogos de verdade”, é
possível que essa noção tenha ofuscado a proposta de jogo filosófico feita por
Foucault a seus contemporâneos. Qual a diferença entre um jogo de verdade e uma
proposta de jogo filosófico? Para ressaltar a diferença existente entre esses dois usos
do termo “jogo” — como conceito e como atividade mental — na atividade filosófica
de Foucault, vejamos primeiro em que consiste os “jogos de verdade”.
Foucault afirmou numa entrevista de 1976 que depois de Nietzsche a questão
já não é mais “qual é o caminho mais certo da verdade?”, mas sim “qual foi o caminho
fortuito da verdade?” É como se Nietzsche torcido a velha e tradicional questão relativa
à verdade e alterado radicalmente o percurso a ser tomado pelo pensamento porvir.
E Foucault, querendo dar uma resposta à questão nietzschiana, pretendeu fazer
justamente uma história do caminho fortuitamente tomado pela verdade. “História da
verdade”, “história de verdade”, “história das políticas de verdade”, “história da
vontade de verdade” e “história dos jogos de verdade” são outras expressões
empregadas por Foucault para isso. Numa palavra, um ambicioso projeto filosófico
que consistia em, identificando os diferentes regimes de verdade das sociedades,
reconstruir a verdade produzida pela história.
Desse modo, devemos entender por verdade, como disse Foucault, “o conjunto
dos procedimentos que permitem pronunciar, a cada instante e a cada um, enunciados
que serão considerados como verdadeiros. Não há, absolutamente, uma instância
suprema”. Após estudar os jogos de verdade na ordem do saber e do poder, Foucault
163
quis então estudar os jogos de verdade na relação de si para consigo e na constituição
de si mesmo como sujeito. Para isso, considera que seu domínio de referência e
campo de investigação é a “história do homem de desejo”. É nesse ponto,
especificamente, que o emprego do termo “jogo” pode confundir as coisas.
Como podemos ver, a palavra “jogo” tem nessa passagem uma função
conceitual, pois é usada como sinônimo de “jogo de verdade”. Importa a nós não tanto
a consideração dos jogos de verdade na ordem do saber e na ordem do poder, mas
a consideração dos jogos de verdade na ordem da relação do si consigo mesmo, da
“constituição de si mesmo como sujeito, considerando como domínio de referência e
campo de investigação o que se poderia chamar de ‘história do homem de desejo’”.
Assim, nega-se a conceber o sujeito como uma substância e sugere, ao invés disso,
que ele seja pensado como uma forma, como uma determinada configuração da
subjetividade que não é idêntica a si mesma, visto que o sujeito-forma não mantém
consigo próprio o mesmo tipo de relação enquanto sujeito político e enquanto sujeito
de uma sexualidade, mas varia em conformidade com as relações estabelecidas com
os diversos jogos de verdade. Em suma, há diferentes modos pelos quais os seres
humanos tornam-se sujeitos e Foucault pretendera estabelecer sua história.
No “jogo filosófico” a palavra “jogo” tem a função de mera designação de algo
que, como qualquer jogo (no sentido corrente da palavra), pode ser jogado. No jogo
filosófico proposto por Foucault todos tem a oportunidade de constituir uma
experiência modificadora de si e, com essa experiência, entrar em contato com a
verdade de uma subjetividade radicalmente outra que não o domina, mas o liberta de
si. Enfim, a noção de “jogos de verdade” se articula com a noção de “jogo filosófico”,
certamente. Digamos que é a condição de possibilidade, uma das regras de operação
deste jogo. Por isso, a noção de “jogo de verdade” se encontra em segundo plano
enquanto a noção de “jogo filosófico” se encontra em primeiro plano. Mas o que
entender por “jogo filosófico”? Primeiramente: uma atividade que respeita todas as
condições de jogo. Para isso, deve-se escolher a definição que melhor contemple as
164
intenções de jogo dos envolvidos. Por exemplo, os já citados critérios propostos por
Huizinga: (1) atividade voluntária; (2) limitada no espaço-tempo; (3) aceite de regras,
doravante, obrigatórias; (4) auto-finalizadas; (5) jubilosa tensão; (6) experiência
distinta do cotidiano.
Primeiro ponto: na medida em que consiste num convite à prática filosófica, a
proposta de jogo filosófico tanto pode ser aceita como pode ser recusada. Assim, jogar
o jogo consiste numa atividade voluntária, numa ação livre. Apesar de ao longo de sua
trajetória filosófica Foucault ter mudado de rota muitas vezes, há alguns traços que
são, senão permanentes, comuns a vários períodos de seu pensamento, de modo que
podemos afirmar que, independentemente do período, nada nos parece mais distante
das intenções de Foucault do que a ideia de constranger alguém a fazer o que quer
que seja.
Segundo ponto: quanto à limitação do jogo no espaço-tempo, Huizinga
considera que ela tanto pode ser física quanto imaginária. No caso do jogo filosófico
de Foucault, podemos concebê-lo como um jogo que se dá num espaço imaginário
de natureza teórica e num tempo relativo mas limitável que é o da duração de um
diálogo filosófico. O diálogo de Foucault com Derrida em torno do cogito cartesiano é
um exemplo disso.
Terceiro ponto: quanto às regras do jogo, aceitas e obrigatórias, consistem na
proposição de narrativas teóricas acerca da historicidade do desejo. Cada
participante, individual ou coletivo, deve propor sua própria narrativa sobre a história
do desejo sob uma perspectiva teórica de sua escolha. Com efeito, Foucault propôs
através do quadro teórico das práticas e técnicas de si uma história-crítica da noção
de desejo denominada genealogia do homem de desejo.
Quarto ponto: o jogo filosófico de Foucault tem um fim em si mesmo na mesma
medida em que a filosofia tem um fim em si mesma. Que outras consequências
decorram do jogo ou da prática filosófica não implica que outros fins lhes devam ser
atribuídos.
Quinto ponto: uma jubilosa tensão característica dos jogos também está
presente na experiência daqueles que jogam um jogo filosófico. Essa tensão se faz
notar, por exemplo, nos momentos em que ocorre uma inspiração, uma nova
percepção, uma nova visão. Ela está presente na centelha que se acende no espírito
quando iluminado pelo pensamento que promove a compreensão de algo. Por fim, ela
165
também está presente no esforço que acompanha a elaboração e organização de
ideias e as expectativas que inadvertidamente se formam em relação às respostas por
vir.
Sexto ponto: como em outros jogos, a experiência do jogo filosófico de Foucault
consiste numa experiência distinta daquela que temos da realidade cotidiana.
Enquanto a experiência da realidade cotidiana envolve a partilha do senso comum
com os demais sujeitos e a vivência coparticipativa nos acontecimentos do dia a dia,
a experiência do jogo filosófico de Foucault remete o sujeito para uma realidade
alternativa, com outra ordem e baseada em outra noção de tempo e espaço. A
confecção e colocação em discurso dessa realidade do jogo filosófico decorrem
explicitamente de uma atividade mental de caráter teórico-imaginativo.
Um jogo filosófico deve transcorrer em condições projetadas para o exercício
do pensamento de si sobre si mesmo. Mas, como acabamos de ver, as condições
para jogar o jogo filosófico de Foucault são relativamente simples. Essa tendência a
simplicidade talvez tenha uma motivação prática. Lembremos da passagem na qual
Foucault menciona (por ocasião de explicitar suas intenções em A Vontade de saber
e a respeito de seus trabalhos anteriores) que até aquele momento “tinha empacotado
as coisas, não tinha poupado nenhuma citação, nenhuma referência, e havia proposto
problemas um pouco complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta”.
Com efeito, parece que Michel Foucault foi o primeiro a jogar com as
possibilidades interpretativas da história do homem de desejo. E dessa primeira
experiência de jogo filosófico ou de prática filosófica sob a forma de jogo, relata
Foucault:
Mas eu me dizia: no fundo, o sexo, que parece ser uma instância que tem
suas leis, suas pressões, a partir do que se definem tanto o sexo masculino
quanto o sexo feminino, não seria, pelo contrário, algo que teria sido
produzido pelo dispositivo de sexualidade? Aquilo a que se aplicou, de início,
o discurso de sexualidade não era o sexo, eram o corpo, os órgãos sexuais,
os prazeres, as relações de aliança, as relações interindividuais… […] um
conjunto heterogêneo, que, finalmente, foi recoberto pelo dispositivo de
sexualidade, o qual produziu, em um dado momento, como fecho de abóbada
de seu próprio discurso e, talvez, de seu próprio funcionamento, a ideia do
sexo. […] Vemos aparecer o sexo, parece-me, no decorrer do século XIX.
Notemos nessa passagem que, fazendo girar a mesa das possíveis linhas
interpretativas, Foucault passa a testar uma hipótese contrária à primeira: “eu me
dizia: no fundo, o sexo […] não seria, pelo contrário, algo que teria sido produzido pelo
dispositivo de sexualidade?”. Essas inversões de questões amplamente aceitas,
esses gestos pelos quais desloca-se de uma perspectiva, distancia-se de uma linha
interpretativa e se aproxima de outra, embora típicos do pensamento foucaultiano,
podem ser encarados também como uma estratégia adotada para esse jogo das
narrativas. E falando em estratégias, é o psicanalista Alain Grosrichard quem nessa
entrevista questiona Foucault a respeito da mudança de seus conceitos operadores
de análise:
Ao que responde Foucault: “Veja que talvez seja bom que elas se afastem
completamente: isso provaria que meu propósito está distante”. Tais palavras indicam
que desejava chamar a atenção da comunidade psicanalítica, se fazer entender e,
efetivamente, ter a oportunidade de discutir suas hipóteses. No entanto, as regras do
167
jogo parecem escapar por entre os dedos de seus interlocutores. É Jacques Alain
Miller quem, entre os psicanalistas presentes, mais se aproximou de captar o espírito
da coisa: “Seu livro anterior tratava da delinquência. A sexualidade é, aparentemente,
um objeto de tipo diferente. A menos que não seja mais divertido mostrar que é igual?
O que você prefere?”, ao que Foucault responde:
168
uma cisão entre o primeiro e os demais volumes da História da sexualidade, embora
tanto num caso como no outro se trate do método genealógico.
Sobre o primeiro volume da História da sexualidade I: A Vontade de saber, disse
Foucault: “Esse livro é o único que eu escrevi sem saber antes qual seria o título dele”.
Por que será? Não teria ele definido previamente a metodologia a seguir, o problema
a ser abordado e questões a serem respondidas? Independentemente disso, uma vez
concebido como um jogo filosófico esse livro não se prende a uma metodologia e
ensaia um leque de possibilidades interpretativas acerca da sexualidade, do sexo e
do desejo. O jogo envolve, portanto, possíveis mudanças de estratégia, adoções de
novas linhas interpretativas e o estabelecimento de outras formas de narrativa, de
modo que escrever uma série de livros permitiria o autor manter-se numa contínua
metamorfose de seu pensamento. Foucault afirmou que, em todos os seus trabalhos,
a imersão na experiência era tal que antes de começar ele não sabia onde chegaria
nem o que teria a dizer, mas que no fim dela sempre saia transformado.
Voltemos mais uma vez à entrevista com os psicanalistas em 1977. Sabemos
o quão importante é para Foucault não exatamente a coisa, mas a história da coisa
como questão, isto é, da coisa enquanto objeto de reflexão, enquanto problema para
o pensamento. É assim que, para ele, só somos sujeitos de uma sexualidade a partir
do século XVIII e só temos um sexo a partir do século XIX. Antes disso, segundo suas
análises, só podemos mencionar dois outros tipos de experiência na história do
Ocidente, a experiência pagã dos afrodisia e (cuja tradução aproximada seria “atos de
Afrodite”) e a experiência cristã carne (articulada originalmente por Tertuliano entre o
século II e III). “Tertuliano reuniu, no interior de um discurso teórico coerente, duas
coisas fundamentais: o essencial dos imperativos cristãos — a didakhé — e os
princípios a partir dos quais se podia escapar do dualismo dos gnósticos”.259
Acusado por J.-A. Miller de procurar justamente “quais operadores vão lhe
permitir apagar o corte que se coloca para Freud”, Foucault frisa que as continuidades
ou descontinuidades são sempre um ponto de partida relativo.
Eu direi que, para mim, a história dos cortes e dos não cortes é sempre, ao
mesmo tempo, um ponto de partida e uma coisa relativa. […] Meu problema
era saber quais eram os grupos de transformações necessários e suficientes
no interior do próprio regime dos discursos para que se pudesse empregar
aquelas palavras melhor que estas, tal tipo de análise melhor que outro, que
se pudesse olhar as coisas sob tal ângulo e não sob outro. Aqui, por razões
170
(Foucault, [1977] 2014, p.61)
Michel Foucault não se dava ao trabalho de analisar coisas que não lhe
interessasse, não colocava questões ao acaso ou formulava problemas inutilmente —
ou nisso não se demorava. Dedicou-se ao estudo dos manicômios e das prisões mais
do que ao estudo da literatura, e isso por uma razão. Assim, o interesse de Foucault
nos objetos de estudo parece permeado por certo pragmatismo. O que sustenta,
portanto, o eu interesse de Foucault pela psicanálise — particularmente a freudiana e
a lacaniana — ou pelo diálogo com a psicanálise, como testemunham As palavras e
as coisas (1956), a História da sexualidade (1976-2018) e A hermenêutica do sujeito
(1982)? Foucault problematiza e desconstrói parte dos pressupostos históricos da
psicanálise e questiona sua concepção de desejo. Mas com que propósito? Duas são
as razões elencadas por Foucault na entrevista com os psicanalistas. A primeira:
demonstrar que “o importante não são Os três ensaios sobre a sexualidade, mas é a
Traumdeutung”. Em termos lacanianos, complementa J.-A. Miller: “Não é a teoria do
desenvolvimento, mas a lógica do significante”. Foucault: “Não é a teoria do
desenvolvimento, não é o segredo sexual por trás das neuroses ou das psicoses, é
uma lógica do inconsciente…” A outra razão é a pertinência de se fazer aparecer
melhor as diferenças entre a prática da confissão por parte dos confessores e a prática
psicanalítica de Freud.
171
2. A fabricação do cenário do jogo
172
daquele ponto de ínfima significação, desdobrar todo um território prenhe de questões
até então inauditas. Não raras vezes ao longo dessa última genealogia somos
testemunhas desses acontecimentos que, não obstante emanem do texto, são da
ordem do pensamento e, desta forma, ampliam nosso mundo pensável.
Com efeito, um dos aspectos de sua estratégia global foi o desenvolvimento
desse campo de atuação próprio com territórios inexplorados e operadores de análise
inéditos que lhe permitissem não só o desenvolvimento de uma pesquisa original
como também, ou sobretudo, um trabalho sobre si mesmo, uma ascética de si.
Quanto às táticas assumidas no jogo do desejo, o que estava em questão era
confeccionar a “melhor narrativa” sobre a constituição do homem de desejo. Se a
hipótese mais interessante, desafiadora, e possivelmente incitadora de debates e
produção de narrativas fosse outra, Foucault não a teria elegido como sendo a melhor
estratégia (no sentido de linha de ações) para suas próximas jogadas? No entanto,
das alternativas que tinha a sua disposição, Foucault seguiu a estratégia que podemos
chamar: estratégia da historicidade do homem de desejo ou, ainda, da narrativa
histórico-crítica do homem de desejo.
No entanto, de um ponto de vista estratégico o projeto de uma história da
sexualidade não se restringe a apresentar um conjunto de estudos sob uma
metodologia de pesquisa específica nem a reunir uma diversidade de análises por
meio de um vago crivo temático. A História da sexualidade seria antes o título genérico
de um composto de atos filosóficos que tenciona colocar em cheque a noção de
desejo e de sujeito desejante — tema teórico aparentemente herdado, no século XIX
e XX, de uma longa tradição cristã.
Os quatro livros formariam, assim, uma espécie de bloco de armas de assédio
construídas com o propósito de abalar ou, pelo menos, desestabilizar as fortificações
teóricas do homem de desejo. Na esteira das metáforas de guerra, A vontade de saber
corresponderia a uma espécie de catapulta, tanto por sua força quanto por sua
imprecisão, enquanto O uso dos prazeres, O cuidado de si e As confissões da carne,
cada um a seu modo e em diferentes níveis, seriam responsáveis pelos golpes de
aríete. Ademais, outros textos ainda podem ser ligados à estratégia de desbastamento
da concepção de sexualidade como uma invariante. E é antes de tudo contra a
concepção de sexualidade como uma invariante que Foucault recusa a hipótese
173
repressiva — que subentende uma forma geral de interdição e diferentes formas de
atuação correlacionadas às formas historicamente singulares da sexualidade.
É verdade que do primeiro ao segundo volume há uma ruptura tão significativa
que, sob uma perspectiva temático metodológica, seria possível encarar A vontade de
saber (1976) como um livro independente, de modo que em vez de uma tetralogia
sobre a sexualidade haveria, a começar pelo O uso dos prazeres (1984), uma trilogia
sobre a ética sexual na Antiguidade ocidental. Por outro lado, num panorama dos
estudos sobre a sexualidade que não levasse em conta a heterogeneidade das
formas, vários outros trabalhos poderiam ser incorporados.
Na já mencionada introdução de O uso dos prazeres, propícia para a
compreensão do que se passou entre o primeiro e este segundo livro, encontramos a
definição de experiência como a “correlação, numa cultura, entre campos de saber,
tipos de normatividade e formas de subjetividade”. É segundo essa caracterização
geral da experiência que devemos conceber tanto a experiência da sexualidade nas
sociedades ocidentais modernas, quanto a experiência cristã da carne ao longo da
Idade Média e a experiência dos aphrodisia na Antiguidade.
Desse modo, a sexualidade é constituída, enquanto experiência histórica
singular, pela “formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que
regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se
reconhecer como sujeitos dessa sexualidade”. Porém, para analisar a formação e o
desenvolvimento da experiência da sexualidade a partir do século XVIII, de modo que
permitisse compreender como nesta se incrustara o sujeito moderno, seria necessário
fazer um recuo até a experiência cristã da carne, articulada inicialmente no século IV,
e desta empreender um trabalho histórico e crítico que permitisse expor a maneira
pela qual, através dos séculos, o homem ocidental veio a se reconhecer como sujeito
de desejo. Isto é, seria preciso fazer uma genealogia do homem de desejo.
Em síntese, de que maneira se deu a transição da experiência dos aphrodisia,
própria do homem antigo, para a experiência cristã da carne? O que se passou nos
primeiros séculos de nossa era, no bojo do cristianismo primitivo, que viabilizara a
articulação do desejo, prelúdio histórico do homem de desejo?
Entretanto, no decurso de seus últimos anos de ensino no College de France,
naquele meio-tempo de silêncio editorial entre A vontade de saber e os dois volumes
seguintes da História da Sexualidade, Foucault não fizera mistério acerca das
174
principais hipóteses que orientaram esse projeto. Em relação a como o homem
ocidental veio a se reconhecer como sujeito de desejo, por exemplo, comunicou em
várias ocasiões sua hipótese — causando, por sinal, reações controversas —
segundo a qual os indivíduos teriam sido levados a empreender uma espécie de
hermenêutica do desejo à quais preocupações com o comportamento sexual teriam
dado ensejo.
Não uma, mas um feixe de hipóteses guia a genealogia do sujeito de desejo
empreendida por Foucault. Do ponto de vista da analítica da sexualidade, a primeira
dessas hipóteses seria aquela segunda a qual a sexualidade não é um dado natural,
uma invariante natural, mas uma disposição subjetiva historicamente determinada. A
segunda, decorrente da anterior, seria, por conseguinte, aquela segundo a qual o
desejo não é uma invariante natural sujeita ao mecanismo de repressão ou recalque,
mas uma força cuja forma resulta da interiorização de um conjunto de forças atuantes
sobre o indivíduo. No entanto, e esse é um ponto que convém reter, nada está mais
distante dos propósitos desse filósofo do que fazer uma teoria da sexualidade ou do
desejo. Assim como não pretende uma teoria do sujeito, não pretende uma da
sexualidade ou do desejo. Ainda que, de modo geral, depreenda-se de suas
considerações acerca da historicidade do desejo uma concepção que o torna correlato
a uma concepção de sujeito segundo a qual este consiste numa forma que nem
sempre é idêntica a si mesma. A estrutura do desejo, por mais sistemática que se
apresente em certas teorias contemporâneas — destacadamente na psicanálise
lacaniana —, seria de natureza fantasmática. As grandes formas tomadas pelo desejo
como correlatos e constitutivos das experiências de si (afrodisia, carne, sexualidade)
estão sujeitas aos acontecimentos históricos.
Embora Foucault tenha dito que não pretendia fazer uma história das
sucessivas concepções do desejo, ele o articulou de três formas diferentes. A primeira
forma do desejo remete à noção de epithumia do período clássico grego. Tanto em
Platão quanto em Aristóteles o desejo (epithumia) aparece como um dos elementos
do sólido conjunto dos aphrodisia. Com a expressão “atos de Afrodite”, se quisermos
traduzir, nos referimos a todo um conjunto de atos, desejos e prazeres sexuais.
Entretanto, foi ao mesmo tempo elidindo o elemento do desejo (epithumia) do conjunto
dos aphrodisia e empreendendo uma hermenêutica do sujeito através de várias
técnicas de si que se formou outro desejo chamado concupiscência, fundamental para
175
a constituição da experiência da carne, distinta da antiga experiência dos aphrodisia.
O operador dessa mudança foi Tertuliano nos séculos II-III. Bem mais tarde, em
meados do século XVIII, outra grande mudança ocorreria. Um conjunto de
procedimentos e práticas eclesiásticas, com técnicas de exame exaustivo, produziu
uma série de reações sociais anômalas ou efeitos paroxísticos no corpo social antes
da Igreja ceder parte de seu poder às outras instituições, em especial, à medicina. O
amplo interesse dessas instituições pela concupiscência, pelos corpos e pelas
sensações que neles se experimentava foi o que fez aparecer, em meados do século
XVIII, o corpo de desejo e de prazer como questão.
Seria esse o ponto decisivo, o ponto de passagem da experiência cristã da
carne para a experiência da sexualidade? Foucault, na naquela entrevista com os
psicanalistas, diz não haver uma sexualidade antes do século XIX.
O que se pretende com a expressão “uso dos prazeres” (chrēsis aphrodisiōn)?
Trata-se, basicamente, de uma dinâmica, e de uma dinâmica estabelecida pela
natureza.
Essa dinâmica é definida pelo movimento que liga entre si os aphrodisia, pelo
prazer que lhes é associado e pelo desejo que suscitam. A atração exercida
pelo prazer e a força do desejo que tende para ele constituem uma unidade
sólida com o próprio ato dos aphrodisia. Será, em seguida, um dos traços
fundamentais da ética da carne e da concepção da sexualidade, a
dissociação — pelo menos parcial — desse conjunto.
Por isso Foucault diz que a ontologia a que se refere essa ética dos aphrodisia
não é, pelo menos em sua forma geral, uma ontologia da falta e do desejo, mas sim a
de uma força que liga entre si atos, prazeres e desejos. A referida dissociação desses
elementos será marcada por uma elisão do elemento “prazer”. Uma das
consequências dessa operação é a de que a busca pela volúpia como fim da prática
sexual passa a ser, portanto, objeto de censura. Mas há também uma desvalorização
teórica do prazer expressa pela extrema dificuldade em situá-lo na concepção da
sexualidade. Entretanto, enquanto o prazer está à míngua, o desejo, por seu turno,
cada vez mais investido de interesse, é hipertrofiado, mas de modo que nele “se verá
a marca originária da natureza decaída ou da estrutura própria ao ser humano”.
Ainda que não tome a mesma forma em ambos os gêneros, a experiência da
“carne” será considerada como uma experiência comum aos homens e às mulheres.
176
A experiência da “sexualidade”, por sua vez, serpa marcada pela cesura entre
sexualidade masculina e feminina.
Antes do lançamento do último volume da História da sexualidade em 2018,
num artigo que pretende mostrar de que maneira Foucault chega a afirmar que a
relação entre sujeito e verdade na experiência dos aphrodisia é da ordem da
incompatibilidade, César Candiotto propôs, a partir da leitura do curso de 1981,
Subjetividade e verdade, que a emergência do sujeito de desejo podia ser identificada
no monaquismo cristão dos séculos IV e V. Ou seja, não teria sido na pederastia, na
erótica masculina grega que surgira a figura do homem de desejo tal como a
conhecemos. Também não teria sido no matrimônio romano, na própria dinâmica
reconfigurada do casamento dos séculos I e II sob Império que ela surgira.
Para apreender o advento do desejo, o momento da formação da figura do
homem de desejo, devemos nos ater, a dois processos — primeiro: “a subjetivação
dos afrodisia, que resultou em uma relação constante do sujeito com sua experiência
sexual”; e — segundo: “a objetivação do desejo, no sentido que ele deixa de ser
somente um elemento intempestivo e incontrolável situado ao lado da natureza,
passando a ser algo problemático e objeto de conhecimento”.
Porém, com o lançamento das Confissões da carne, vemos Foucault situar o
ponto de articulação e inscrição discursiva do desejo como desejo de concupiscência
em Tertuliano. A partir dessa inscrição conceitual da concupiscência como nódoa
permanente decorrente da queda original que a questão do sujeito de desejo teria
percorrido o pensamento ocidental de Tertuliano à Freud, com uma importante
inflexão no pensamento de Agostinho que elaborara a noção de libido, correlata à
experiência da carne no domínio da experiência sexual.
Mas em que consiste, afinal, essa experiência da carne? A experiência da carne
tem algo em comum com a experiência da sexualidade. Em O uso dos prazeres
destaca-se a desconfiança:
177
3. O padre e o psicanalista
180
menos conhecida, já foi tema de muitas divergências e polêmicas entre as escolas de
psicanálise. Então, passado o período de maior tensão a esse respeito, como se dá a
formação do psicanalista hoje em dia? Como se adquire as qualidades que lhe são
necessárias? Como se constitui um saber sobre o inconsciente? Enfim, numa palavra,
como se alcança a expertise necessária para a prática da psicanálise?
A situação atual da formação do psicanalista é mais ou menos a seguinte. O
psicanalista ou aspirante a psicanalista não encontra nas instituições psicanalíticas —
por exemplo, nas associações e escolas de transmissão da psicanálise — muitas
garantias. Nisso as referidas instituições se distinguem radicalmente das escolas,
universidades e do sistema tradicional de ensino. Assim como no que tange à análise
pessoal o psicanalista não promete curar o sujeito nem estabelece estimativa de
tempo para o tratamento, isto é, para uma análise, no que tange à formação do
psicanalista as instituições responsáveis não garantem que o sujeito se tornará
psicanalista um dia ou se terá sua prática legitimada por seus pares. Ou seja, não
existe diploma oficial ou certificado reconhecido pelas principais entidades de
educação do país. Não há um documento que comprove a formação psicanalítica do
sujeito e legitime sua prática clínica.
A qualificação necessária para atuar como psicanalista e os dispositivos de
formação das escolas de psicanálise talvez sejam os temas mais controversos do
meio. No entanto, diferentes escolas de psicanálise consideram a análise pessoal
(situação análoga a de se confessar) imprescindível para a formação de um
psicanalista. Mas é entre os lacanianos que a análise pessoal é reconhecida como
principal dispositivo de formação. Para Lacan — em ordem de importância e não dos
acontecimentos — o sujeito que pretende exercer a função de analista deve, primeiro,
autorizar a si mesmo como psicanalista; e depois, ser reconhecido por seus pares.
No que concerne à lida do psicanalista com os próprios desejos e impulsos, é
crucial que o psicanalista saiba o que fazer nos momentos em que os apetites
irrompem, que ele saiba se conduzir adequadamente em situações que são ao mesmo
tempo tentadoras e impróprias, que ele já não se deteste tanto ao ponto de sabotar-
se cedendo a prazeres efêmeros e enganadores, que ele tenha alcançado autonomia
suficiente para decidir-se por si mesmo ao que convém ou não assentir, que ele, enfim,
já tenha avançado suficientemente em direção ao domínio de si de maneira a não
infringir a regra de abstinência.
181
O padre deve possuir, além do poder, o zelo, isto é, certo “amor” ou “desejo”.
[…] um “amor de benevolência”: um amor que "prende o confessor aos
interesses dos outros". […] É portanto esse amor, é portanto esse desejo, e
portanto esse zelo, que deve estar efetivamente presente, em ação, na
confissão, enfim, no sacramento da penitência.
[…] o padre deve ser santo […] “estar consolidado na prática da virtude”,
precisamente por causa de todas as “tentações” a que o ministério da
penitência vai expô-lo. O confessionário — diz Habert — é como o “quarto de
um doente”, isto é, reina ali certo ‘ar nocivo’ […] que ameaça contaminar o
próprio padre, a partir dos pecados do penitente. […] O que o penitente
mostrará do seu desejo não deve se transformar em desejo do confessor.
O analista deve ser apto, deve estar consolidado na prática de se abster, não
dar vazão a impulsos ou fantasias que possam lhe ocorrer diante da vulnerabilidade
e ou da sedução do analisante. O setting analítico é como um antro de
irracionalidades, onde se ouve neuroses, fantasias e todo tipo de coisas que,
reverberando nas próprias questões do analista, poderiam perturbá-lo. Não é uma
condição incontornável, mas, de todo modo, convém que o analista não apresente os
mesmos sintomas ou queixas, isto é, que não sofra do mesmo mal que seu analisante.
Ou que, sendo esse o caso, consiga exercer sua função mantendo o semblante.
[…] esse amor de zelo e benevolência que o confessor tem pelo penitente,
mas que é corrigido pela santidade, que anula o mal do pecado no momento
mesmo em que e comunicado, esse duplo processo não poderá funcionar se
o confessor estiver demasiado ligado a seus pecados, e mesmo a seus
pecados veniais.
182
vigilância, um zelo para com sua prática psicanalítica? Isto é, como esse sujeito de
caráter duvidoso seria capaz de zelar pelo outro e sugestiona-lo por meio de seus atos
a zelar por si se ele mesmo não zela por seu caráter? E uma vez que em psicanálise
a técnica fundamenta-se na ética e a ética tem uma eficácia técnica, como o método
psicanalítico poderia ser praticado por alguém cujas ações não parecem eticamente
implicadas? Enfim, sujeitos antiéticos ou alheios à ética são ainda menos indicados a
ocupar a função de analista do que aqueles de constituição ética deficitária, aqueles
que não aprenderam adequadamente como se conduzir em certas situações. Mas a
todos eles convém um trabalho sobre si mesmo que os leve a uma elaboração ética
de si. Sem isso, isto é, sem ética, o que sustentará sua técnica? Então, restaria ao
sujeito autorizar-se por meio da dissimulação que, não obstante, transpareceria em
seu semblante e sua influência enquanto operador de análise seria desfeita.
A figura do juiz, do médico e do guia eram empregadas como modelos de
conduta para o confessor. É exigido do confessor que seja sábio como “juiz”, como
“médico” e como “guia”, pois seu dever é “regrar a consciência de seus penitentes”.
Essas figuras também se assentam no imaginário da prática psicanalítica de tal modo
que se exige de um psicanalista, de um legítimo psicanalista pelo menos, que tenha
discernimento como um “juiz”, que saiba cuidar como um “médico” e que, por meio de
questões ou interpretações, indique o desejo que como um “guia” orientará o sujeito
em sua existência.
184
séculos, exerceu sobre o pensamento ocidental, é um forte indício de continuidade
histórica.
Mas por que “continuidades” e “descontinuidades” no suceder histórico das
coisas devem ser indicadas uma por uma e não em bloco? Porque os fenômenos que
se sucedem por afinidade não costumam se romper simultaneamente como que por
intervenção divina nem apresentarem todos eles uma ruptura igualmente profunda.
Por exemplo: ficamos sabendo através da História da sexualidade que a ideia ou
concepção de desejo com as quais estamos tão familiarizados nem sempre existiu.
Tertuliano, um apologista cristão que viveu entre os séculos II-III, foi católico
por um tempo antes de virar um montanista rigorista. Quando ainda era católico
considerava que independente da gravidade de sua falta, todo pecador tinha direito a
fazer penitência, isto é, à oportunidade de redimir seus pecados, de ser perdoado.
Embora classificasse os pecados entre corporais e espirituais, consumados ou de
desejo, estava convicto de que todos podiam ser perdoados pela Igreja.
Tertuliano foi responsável, no entanto, por um corte na história da sexualidade,
da subjetividade e da verdade no Ocidente. É improvável, contudo, que ele tivesse
consciência do que estava fazendo. Mesmo que pressentisse alguma repercussão a
seus atos, não tinha motivos para imaginá-la nessa escala. Mas como, efetivamente,
ocorreu esse corte?
Pouco se sabe da vida de Tertuliano, a não ser por suas obras. Sabe-se,
contudo, que vivia lendo e escrevendo sobre teologia, fé, filosofia, direito, regra de fé,
trindade, cristologia, mariologia, eclesiologia, penitência, eucaristia, escatologia…
Desde o momento em que classificou o desejo e o inscreveu como um tipo de pecado
(opondo-o ao “pecado consumado”), já vinha concebendo-o como algo único, isolável
e distinto das outras coisas. Ora, mas o que é o desejo? Para responder a essa
questão é preciso antes de tudo conceber o desejo como um objeto com determinadas
características. Assim, torna-se possível estudar o desejo e estabelecer um saber a
seu respeito.
Portanto, no momento que escreveu o que entendia por desejo, que o isolou
dos elementos que encobriam sua autonomia, que decidiu não mais deixá-lo oculto,
fez dele um objeto de conhecimento e escreveu isso nas páginas da história.
185
O arcabouço teórico presente nos manuais de confissão destinados aos
confessores é muito elaborado. Mas para o “governo dos vivos” por meio do governo
de suas almas, os procedimentos técnicos discursivos que permitem extrair a verdade
do sujeito revelam-se mais importantes do que suas justificativas teóricas. Esses
procedimentos de extração da verdade podem tomar a forma de indução ao ato de
autoveridicção, isto é, uma maneira de induzir o sujeito a proferir a verdade sobre si
mesmo. Enfim, esses procedimentos também podem obter a verdade do sujeito
levando-o a produzir uma verdade sobre si com base em certa interpretação. A esse
ato de produção da verdade do sujeito por ele mesmo chamamos de “aleturgia”. Por
esse viés, há como uma supremacia das práticas e técnicas de si sobre a abstração
ou sobre tudo que não leve o sujeito à sua verdade.
No fim das contas, vemos nesses manuais de confissão que há sim certa
sistematização da escuta confessional antes da psicanálise. Mas o objetivo desses
manuais é, sobretudo, de natureza prática; é de proporcionar uma orientação à prática
da escuta confessional. Não fosse sua inextricável relação com a religião cristã, a
confissão sacramental poderia ser considerada uma espécie de ciência conjectural de
seu tempo, assim como é, de modo geral, o caso da psicanálise na atualidade.
186
também parece defensável, depois de relacionar a figura do padre confessor e a do
psicanalista, o ponto de vista segundo o qual os recônditos técnicos da pastoral cristã
representam uma espécie de pré-história da psicanálise. Assim sendo, se há uma
continuidade entre as práticas confessionais e a prática psicanalítica, como de fato
parece haver, seria necessário fazer uma relativização dos cortes e, com isso, toda
uma revisão crítica da história da psicanálise.
Teria ou não ocorrido uma descontinuidade radical entre as técnicas da
confissão, as tecnologias de perscrutação da alma dos confessores católicos e a
prática de Freud, a técnica psicanalítica tal qual formalizada por ele entre 1911 e 1914
nos Artigos sobre a técnica? Para Foucault, uma descontinuidade fundamental nesse
quesito técnico ocorreu em Tertuliano. Seja como for, não parece justo reconhecer as
similaridades entre essas duas práticas e suas respectivas técnicas e não considerar
suas diferenças.
187
4. Uma maneira de jogar
Uma vez que a prática filosófica tem a função de organizar o mundo circundante
e elaborar algum sentido para a existência, não seriam os jogos filosóficos uma
espécie de jogos de sentido, de atribuição de sentido?
Lembremos que para Huizinga todas as atividades humanas, incluindo a
filosofia, podem ser vistas como resultado de um jogo. Tal como o jogo a filosofia é
uma atividade voluntária (ninguém é constrangido a filosofar). Tal como o jogo a
filosofia é uma atividade exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e
de espaço (por exemplo, na confecção de um texto filosófico há o tempo de pesquisa,
o tempo de escrita, o espaço ocupado pelo discurso, etc.). Tal como o jogo a filosofia
é uma atividade exercida de acordo com regras livremente consentidas, mas
absolutamente obrigatórias (por exemplo, o princípio de não contradição ou o princípio
da razão suficiente). Enfim, tal como o jogo, trata-se de uma atividade dotada de um
fim em si mesmo, acompanhada de um sentimento de tensão e de uma consciência
de ser diferente da vida cotidiana. Sendo a produção de culturas uma das funções do
jogo, o jogo filosófico, isto é, o jogo no qual se desdobra a atividade filosófica, tem
como umas de suas implicações a produção de sentido.
Para complementar a caracterização do jogo do FILOSÓFICO de Foucault, desse
jogo em torno da noção de desejo, recorreremos ao quadro classificatório proposto
por Roger Caillois em Os jogos e os homens. Já vimos no capítulo dedicado à noção
de jogo que o autor divide os jogos em quatro categorias: Agōn, Alea, Mimicry e Ilix.
Podemos, de partida, dispensar duas dessas categorias. A primeira delas é a Alea
que remete aos jogos de azar. A segunda delas é a Ilinx que remete à busca da
vertigem. Agora, resta saber se o jogo do desejo é um Agōn ou um Mimicry. Seria o
jogo do desejo um Agōn, uma competição, uma disputa em torno das possibilidades
interpretativas a respeito do desejo? Seria o jogo do desejo um concurso de narrativas
sobre o desejo? Ou o jogo do desejo seria um Mimicry? O fator predominante desse
jogo é o fictício, o simulacro e não a realização da ação em si? Ao narrar sua história
do desejo é permitido ao jogador assumir um personagem, fingir ser outro que não ele
mesmo? É permitido criar deliberadamente os objetos da narrativa?
188
Apesar do jogo de Foucault admitir vários estilos de narrativa e tolerar
elementos ficcionais nos discursos, uma vez que exige um aporte teórico que os
sustente, limita a criação deliberada de objetos. Assim, o jogo do desejo não seria um
Mimicry. O jogo de Foucault é um Agōn, uma disputa em torno da conceituação do
desejo. Assim, no caso do jogo do desejo, do jogo filosófico de Foucault, somos
levados a associar o espírito de competição com o impulso lúdico. Sobre isso,
comenta Huizinga:
Com uma investidura genealógica, mais do que apenas jogar esse jogo que ele
mesmo propôs, mais do que fazer uma narrativa histórica do desejo, multiplicou as
narrativas em seus cursos no Collège de France e estabeleceu ano a ano um extenso
campo de problematização onde a noção de desejo não é mais que um dos elementos
possíveis para a articulação de narrativas.
A noção de “jogos de verdade” é uma das regras básicas desse jogo do desejo.
Ela subentende uma suspensão de certos critérios de validação da verdade e a
consideração de diferentes regimes de verdade. Pressupõe a possibilidade de vários
saberes sobre o desejo com seus respectivos regimes de verdade. A multiplicação
das narrativas acerca do desejo talvez dê ensejo a diferentes verdades que a um só
tempo se complementam e se limitam. Mas que experiência é essa de se deparar com
outra verdade? Que efeitos têm sobre os sujeitos as verdades? A experiência de
ruptura com o próprio pensamento decorre do contato com uma verdade outra, vinda
do exterior ou engendrada internamente. Não decorreria desse contínuo processo de
desconstrução um flerte com o não-saber no sentido de uma ignorância aprendida?
Não se descola assim — ao menos provisoriamente — da Vontade de verdade? E
quais seriam os efeitos éticos do não-saber? Que experiência tem de si o sujeito
quando arrancado do saber e lançado na dúvida?
189
Não é porque algo se torna uma verdade que será sempre verdade. Verdades
não existem como fatos. As verdades não devem ser finais, mas como que testadas
na prática. Por que a vontade de saber tem sido guiada, mais do que por qualquer
outro procedimento, pela vontade de verdade? Ah, que serenidade habita a douta
ignorância, e que fardo carregam os donos da verdade.
O jogo filosófico implica uma forma de filosofar que busca também estabelecer
narrativas sustentáveis. Mas a filosofia não é, ao fim e ao cabo, tese. A isso por vezes
se chega, é a intenção da lógica acadêmica, assim como o lugar-comum do
pensamento. Propriamente falando, a tese é um fim artificial, um estado provisório do
pensamento que precisou aterrissar antes de mais uma vez alçar voo. Aí tomamos
fôlego para mais uma vez nos lançar. Disso a história das ideias nos dá provas. Nela
vemos que os autores não morrem com as mesmas ideias com as quais começaram
a pensar. Mas o que fazer quando uma investigação já significativamente avançada
culmina não numa tese mas numa aporia? Quando toda “fundamentação” do percurso
só nos orienta à não conclusão? Não teremos feito, desse modo, filosofia, uma “boa
filosofia”? É bem sabido que para alguns a outorga de “filósofo” parece ter chegado
bem tardiamente, justamente por certos momentos de seus discursos nos levarem
mais ao aniquilamento das certezas do que ao estabelecimento e a fundamentação
destas. Nietzsche pretendia uma “filosofia de martelo”, destruidora das certezas
dadas, e corrosiva ante as vulgatas morais. Mas antes, bem antes, das dinamites
nietzschianas, na aurora da intelectualização do Ocidente e do espírito filosófico, os
homens já haviam se deparado com a figura do Sócrates histórico, que se dizia
amante do conhecimento, mas presenteava seus ouvintes com aporias. E para o
desespero de alguns, nem sequer escreveu!
O que é pensar filosoficamente? Podemos encarar a função do filósofo como
lugar e função de crítica. Não da crítica como censura, mas como lugar princeps do
desgarramento das certezas, da estagnação intelectual e, por conseguinte, subjetiva
e afetiva; em suma, como procedimento de sangria da estagnação das possibilidades
da palavra. O filósofo tem uma função crítica que se efetiva na esfera das verdades
que se pretendem universais, dos modos de ser da verdade, dos discursos que a isso
apelam, em suma, do conhecimento, ou antes, dos saberes. Trata-se sempre de
empreender uma investigação sobre o estado da palavra em torno do qual se ordena
a vida, sobre as possibilidades da vida, dos modos de viver; e mais, um exercício das
190
possibilidades interpretativas do dito, do efetivamente dito. Isso é crítica. Não somente
por questionar e, por vezes, desmascarar, mas por ferir, criar uma fenda onde se
semeia a possibilidade de novas séries discursivas. É um tipo de investigação que
não é da ordem do princípio do prazer, não é mera vontade de verdade nem
subserviente à vontade de saber.
É uma empresa de curiosidade crítica, um agenciamento de busca, um
empreendimento ao mesmo tempo epistêmico e ético. Epistêmico por ter por
finalidade o diagnóstico de um estado de coisas enquanto estado do discurso (e/ou
estado de práticas que envolvem discursos, explícitos e implícitos), e ético por levar
até às últimas consequências, ao menos a nível da reflexão, o exercício sobre as
possibilidades do que fazer com os dados desse diagnóstico, isto é, do saber em
questão.
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero,
esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade — em todo
caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um
pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém
conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a
obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o
descaminho daquele que conhece?
191
5. Outro jogador, outras referências, outra narrativa
192
Rocha estabelece por contra própria uma narrativa histórica que demarca as
manifestações do desejo na Grécia Antiga. Sua contribuição, divergindo radicalmente
da foucaultiana, promove outros cortes e marca uma linha de alteridade que se choca
com a narrativa de Foucault. E desse choque, o que decorreria? Quando as narrativas,
os enunciados das narrativas, seguem as regras dos jogos de verdade, mas apontam
em direções distintas, o que isso quer dizer?
Seria igualmente defensável a tese foucaultiana que estabelece um primeiro
corte em Tertuliano e um segundo em Agostinho e a tese de Zeferino Rocha que faz
o desejo remontar à Grécia Arcaica?
193
QUARTO CAPÍTULO: A PARRÉSIA ÉTICA
Quando amanhece, lembramos que mais uma rodada se completou e que logo
mais será nossa vez. É um jogo de sensatos, dizem eles, os mesmos que ganham a
corrida antes mesmo da largada. Prestamos atenção às jogadas, tentamos aprender
as regras, distinguir o necessário do desnecessário, antecipar alguns riscos, enfim, o
que mais pudermos, mas nunca estamos realmente preparados. Estamos cansados.
Viver em nosso tempo é, e cada vez mais, um jogo atado aos ponteiros. Não há
garantias de coincidência entre determinada extensão do tempo e o transcurso do ser
do sujeito. Pelo contrário, não só a fruição de si na duração do tempo não é a
experiência mais comum nos devires, como é uma dificuldade decorrente de nossa
maneira de viver na atualidade. E é sob uma ameaça constante de abandono do ser
(inquietação, tédio, torpor…) que se vive. Segundo os que se dedicam a escuta do
sujeito e de seu mal-estar, esses “estados de desabitação” do ser são característicos
da experiência subjetiva contemporânea.
Mas será que o “aqui e agora” já existiu? Será que a experiência que se ancora
na fruição da presença de si no espaço de duração de um acontecimento já foi
culturalmente predominante em algum período histórico do Ocidente? Será, de fato,
característico do sujeito moderno ou contemporâneo, e não do antigo ou medieval, a
sensação subjetiva de deslocamento, de viver em descompasso com o tempo? Enfim,
será possível que a justa experiência de si na duração já tenha sido coisa assente em
algum momento do fenômeno humano na terra?
Sobre o extenso tabuleiro do mundo (do qual não vemos as extremidades)
estão nossas peças, pouco gastas, mas cada vez menos numerosas. Algumas peças
194
são sempre perdidas, instruem os jogadores mais antigos. Independente da
estratégia, ou de ter ou não uma estratégia, só avançamos na medida em que
perdemos algumas. A perda é inevitável, e alcança a todos. Portanto, sejam quais
forem, o adversário também tem suas perdas. Constantemente assediados, é
impossível nos esquecer do jogo. Fomos lançados junto com os dados de nossa
existência e precisamos escolher, segundo as regras desse jogo, como viver, que
verdades e posturas adotar, pois delas decorrem os acontecimentos que caracterizam
as perdas e os ganhos com que, por fim, lidaremos. Porém, que nenhuma oposição
seja colocada em termos de verdadeiro e falso, realidade e ilusão, mas de
interpretação possível e impossível, e relações de poder. E é sempre uma aposta no
fim das contas. Mais ou menos provável, mais ou menos incerta.
Ora, não era de se esperar que o sujeito contemporâneo fosse, após tantas
formas já assumidas, mais inventivo e autônomo quanto às formas de viver? Seja
como for, parece que as formas históricas efetivamente assumidas pelo sujeito só se
dão algumas de cada vez, de modo que sempre as encontramos apegadas, com
raríssimas exceções, às mesmas formas de prazer e de dor, as mesmas formas de
gozar e de sofrer. Francamente, é tudo bem monótono.
E o tempo? É sempre o tempo em questão. De fato, o tempo não dá trégua.
Supérfluo dizer que, numa só vida, não dá pra se dedicar a todos os gostos, fazer tudo
com profundidade ou desenvolver mais do que algumas competências. Quanto às
maneiras de viver, as formas de barganha são muitas e variadas, mas nenhum recurso
até agora se mostrou suficiente para prolongar uma vida indefinidamente. No embate
com a morte, qualquer triunfo é provisório e, em última instância, uma ilusão. Podemos
até prever que em um século e meio todo contingente humano terá se renovado. De
conluio com o tempo, a morte sempre impera. E das experiências varridas, poucas
sulcam a história. Eis, portanto, a constante por excelência: a curva comum às
trajetórias humanas que, a despeito de serem indeterminadas, convergem afinal de
contas ao mesmo ponto. Desse modo, seja em contraste com as possibilidades ou
com as intenções que se cultiva, o que se alcança com uma vida é de fato muito
limitado. Para levarmos um propósito em particular especialmente longe, quantos
outros serão abortados! “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais
na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, já dizia o poeta. Sem
que nada à revogue, a finitude nos espreita, nos persegue e nos alcança. É sempre o
195
tempo em questão. Perpetuamente insatisfeito, a tudo devora. Como escapar ao
marca-passo? A propósito, como suportamos a vida com uma única certeza, a da
morte? É uma façanha. Cabe saber como viver sem antecipar todos os dias, sob as
diferentes formas de um mal-estar fundamental, o momento da morte ou a escuridão
silenciosa da inexistência.
196
2. A escolha pela vida filosófica
Não tem para onde correr, mais cedo ou mais tarde o princípio de realidade
baterá em nossa porta intimando-nos a nos comprometer com algo. Para sermos
gente, dizem eles, precisamos investir nosso tempo e energia em alguma coisa.
Aqueles que não se comprometem com alguma atividade, seja por escolha ou por
incapacidade, pouco importa, estão à margem da sociedade. Aqueles que, por outro
lado, se comprometem com muitas atividades, como se nutrissem um verdadeiro
horror pelo ócio, correm o risco de se escravizarem gastando toda sua energia e
tempo livre. Já aqueles que, por seu turno, são mais razoáveis, mais moderados, que
mesmo se envolvendo com várias atividades conseguem dosar a dedicação e o
esforço conforme a necessidade, ainda conseguem gozar de um tempo para si. Só
resta saber se, envolvendo-se com tantas coisas, eles têm como conhecer algo a
fundo. Não seria, no caso de cada sujeito e levando em conta suas próprias
capacidades, inversamente proporcional o grau de conhecimento e intimidade que ele
pode adquirir e alcançar relativamente a uma coisa e a quantidade de coisas com as
quais se ocupa? Conhecer algo a fundo exige tempo, e os dias têm sempre a mesma
quantidade de horas.
Embora todo conhecimento a respeito das coisas com que nos ocupamos seja
válido, seu valor é relativo, pois depende da natureza dessa ocupação e do lugar que
lhe reservamos de nossa vida. Se o lugar que lhe reservamos for o de principal
ocupação de nossa vida, aí sim, tudo muda. Uma vez tendo-a escolhido, teremos de
lhe conceder, senão a maior parte de nossos dias, o interesse constante de nosso
espírito. Ninguém pode ocupar esse lugar de principal ocupação de nossa vida.
Mesmo que a ocupação escolhida envolva relacionar-se com uma ou mais pessoas,
delas cuidar (como os pais fazem com os filhos) ou a elas prestar algum tipo de serviço
(como o médico aos pacientes e o professor aos alunos), o foco do sujeito não deve
recair sobre o outro, mas sobre sua função, nesse caso relativamente ao outro.
Ora, se a ocupação em questão for algo como a prática filosófica, o
conhecimento sobre ela é fundamental. No curso de 1983, O governo de si e dos
outros, Foucault analisa a Carta VII de Platão e chega justamente a esse tema da
escolha da filosofia, da escolha pela vida filosófica. É um fato que ao chegar o
momento de escolher a principal ocupação de sua vida, muitos ficam apreensivos,
inseguros. A falta de um conhecimento seguro a respeito do futuro ofício faz com que
197
muitos vacilem no momento de tomar a decisão. Às vezes findam dando ouvido a
opinião dos outros em vez de escolher por conta própria. Desse modo, no que diz
respeito aquele que sente uma inclinação para a filosofia, é importante que receba
uma instrução prévia relativa à prática filosófica. Então, quais são suas dúvidas? Ou,
de modo geral, quais questões estão em jogo para o aspirante a filósofo no momento
de sua decisão? Fora suas dúvidas particulares, a primeira questão que ele deve
considerar é, evidentemente, a da função do filósofo. Que papéis os filósofos tiveram
em nossa história? E qual o papel do filósofo na atualidade? Em seguida, ele deve
considerar questões como a do ser da filosofia e a da finalidade da prática filosófica.
O que é a filosofia? Em que consiste seu ser, sua especificidade? O que caracteriza
o discurso filosófico? Qual a finalidade da prática filosófica? É difícil filosofar sem pôr
para si mesmo essas questões. E importa colocar desde o início, pois decidir pela
filosofia já é filosofar.
Então, o que diz Platão na referida carta sobre a escolha pela filosofia?
Primeiro, que a filosofia é como um percurso a ser seguido. Postula que o sujeito deve
seguir esse percurso sob a direção de um guia que lhe mostre o caminho e o auxilie.
Esse percurso, que tem um começo e um fim, deve servir de teste para o sujeito. Pois
para que chegue ao fim, é necessário que o sujeito se sirva de toda sua força, que se
dedique a trabalhar longa e penosamente ao longo desse percurso sem interromper
ou relaxar, que se apresse e apresse seu guia até chegar ao outro extremo do
caminho. Importa lembrar que, a não ser que tenha se fortalecido suficientemente ao
ponto de poder prescindir das instruções de um diretor para agir adequadamente nas
situações mais adversas, o candidato jamais deve abandonar a direção daquele que
o conduz. Ademais, não só o fim do percurso filosófico precisa seja alcançado, como
também é indispensável que em momento algum o sujeito deixe esmorecer seu apego
à prática da vida cotidiana. Disso devemos reter a ideia segundo a qual a escolha pela
filosofia não é incompatível com as ações cotidianas. Pelo contrário, é justamente na
vida cotidiana e no curso das ações que se tem de realizar no dia a dia que devemos
nos servir da filosofia, que devemos acionar a filosofia. Pois bem, esse é um ponto
relevante para a consideração crítica de um texto de Platão ou, mesmo que apócrifo,
de um texto platônico, pois que seja requisitado ao filósofo, ao discípulo, ao aspirante
a filósofo, enfim, ao sujeito que decide pela filosofia um apego à prática da vida
cotidiana tem um sentido inverso àquele normalmente atribuído ao platonismo e à sua
198
concepção de mundo das ideias, das realidades eternas. Na referida carta VII, esse
apego à prática da vida cotidiana revela-se importante porque, afinal, é nessa
realidade que o sujeito deverá mostrar que possui os atributos necessários para
filosofar: a capacidade de aprender (eumathés), a capacidade de lembrar (mnémon)
e a capacidade de raciocinar (logízesthai dunatòs).
Entretanto, o que esperar do sujeito que resolve se dedicar à prática filosófica?
Coisas demais e variadas, certamente, inclusive, que muitos podem ser seus
propósitos. Sejamos, portanto, mais específicos. Se num momento decisivo de sua
vida o sujeito se decide pela filosofia e, em decorrência disso, se reorienta na
existência, se volta inteiramente para a vida filosófica e para as coisas que lhe
concernem, sua conduta cotidiana não deixa de revelar um propósito relativamente à
filosofia totalmente diferente daqueles concebíveis para os que com a filosofia só
mantém algum nível de envolvimento. Noutras palavras, o sujeito que se volta
inteiramente em direção à filosofia, que a ela se dedica sem reservas, tem o propósito
e a disposição de consagrar-se à vida filosófica. É a esses que Platão se refere
quando postula, na referida carta VII, que o sujeito que decide pela filosofia deve tomar
o modo de vida filosófico de maneira radical e definitiva.
Pois bem, trata-se aqui do tema da conversão. Segundo Hadot podemos
entender por conversão, de modo geral, uma mudança significativa de ordem mental
que pode ir da simples mudança de opinião até a transformação total da personalidade
do sujeito. Para o helenista, o fenômeno da conversão em geral reflete a irredutível
ambiguidade da realidade humana pode ser caracterizado por uma ruptura total com
a maneira habitual de viver. A modificação dos hábitos e costumes do sujeito
deflagrada pela sua conversão não é, exclusivamente, de ordem moral, embora seja
a transformação total de sua vida moral o que se visa com a prática assídua de
diversos exercícios espirituais. É assim que o filósofo deve alcançar a tranquilidade
da alma e a liberdade interior. Entrementes, de acordo com Hadot “a conversão
filosófica é ao mesmo tempo a mais radical e a menos difundida forma de conversão”.
Mas como, normalmente, se inicia a conversão filosófica do sujeito? O que
caracteriza a primeira etapa dessa conversão? É preciso, primeiro, de um aceite
voluntário por parte dos ouvintes. Essa é, para Foucault, a condição de um efetivo
discurso filosófico. Ademais, a conversão é um acontecimento provocado na alma de
um ouvinte pelo discurso de um filósofo. Com efeito, depois de Platão, nas escolas
199
estóica, epicurista e neoplatônica do período helenístico, a filosofia se torna
essencialmente um ato de conversão.
Quanto aos aspectos sociológicos do fenômeno da conversão, Hadot observa
que a passagem do sujeito de uma comunidade a outra costuma ser acompanhada
de escrúpulos morais, dificuldades de adaptação e de compreensão. Em
contrapartida, o autor observa também que um potente móbil da conversão reside na
atração que a comunidade de acolhida exerce.
Para Hadot, é possível acompanhar as formas que o ato de conversão filosófica
já assumiu ao longo da história e reconhecê-lo no pensamento de filósofos como
Descartes, Espinoza e Bergson. Em todo caso, a conversão filosófica é sempre
“desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente
‘natural’ do senso comum; ela é retorno ao original e ao originário, ao autêntico, à
interioridade, ao essencial”. O autor reconhece ainda outras formas do ato de
conversão pensamento de filósofos contemporâneos como Husserl, Heidegger e
Merleau-Ponty. “Sob qualquer aspecto com que ela se apresente, a conversão
filosófica é acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência
autêntica”.
Em outras palavras, ao decidir pela filosofia o sujeito deve se envolver de tal
maneira com as práticas filosóficas que, operando sobre si uma conversão, jamais se
desvia completamente da atividade filosófica. Mas como o sujeito fará isso? A
recomendação é de que ele alimente a atividade filosófica com sua alma de maneira
a mantê-la sempre em seu espírito. A conversão filosófica, consistindo basicamente
numa conversão da decisão ao modo de vida filosófico, não tem por fim a
contemplação de si ou das realidades eternas. No platonismo (ou, pelo menos, na
carta VII de Platão) a conversão filosófica se define justamente pela opção pela
filosofia, pelo percurso e pela aplicação do sujeito que possibilita o aprendizado, a
memória e o bom raciocínio.
Por fim, o sujeito cujo espírito já opera filosoficamente antes dele se decidir pela
filosofia tende a não encará-la como mero lazer ou a escolhê-la simplesmente porque
lhe agrada, mas por reconhecer que não pode viver sem filosofar. Esse é o chamado
da filosofia. Quando ouvido, toca no íntimo do sujeito. Porém, assim como o fenômeno
da conversão não é exclusivo da filosofia, o chamado também está presente nas mais
diversas religiões, nos meios militares, nos ofícios e na política. Há quem ouça,
200
inclusive, o chamado da poesia. A propósito disso Rainer Maria Rilke disse numa carta
a um aspirante a poeta que “uma obra de arte é boa quando surge de uma
necessidade”, e aconselha-o a voltar-se para si mesmo, a mergulhar em si mesmo e
em sua solidão, a sondar as profundezas de onde vem a sua vida, pois nessa fonte
deve encontrar a resposta para a questão de saber se precisa criar. Ao encontrar a
resposta, deve aceitá-la como vier, sem interpretá-la. Ela pode revelar um chamado
para ser artista. Nesse caso, que “aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua
grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora”. Mas a
resposta também pode revelar que deve renunciar a ser poeta, pois “basta, como foi
dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-
lo”. O chamado da filosofia é análogo ao da poesia. Quando o sujeito propenso à
filosofia recebe o chamado e decide pelo modo de vida filosófico, é menos por
considerar a prática filosófica agradável e capaz de proporcionar prazer do que por
ver nela uma certa relação com a verdade, um meio de se constituir pela verdade
enquanto sujeito de verdade e capaz de manifestar a verdade.
[…] a filosofia só pode se dirigir aos que querem ouvi-la. Um discurso que não
fosse mais que protesto, contestação, grito e cólera contra o poder e a tirania,
não seria filosofia. Um discurso que fosse um discurso de violência, que
quisesse entrar como por arrombamento na cidade e que, por conseguinte,
espalhasse à sua volta a ameaça e a morte, tampouco encontraria sua
realidade filosófica. Se o filósofo não é ouvido, e é a tal ponto não ouvido que
é ameaçado de morte, ou então se o filósofo é violento, e violento a tal ponto
que seu discurso leva a morte aos outros, num caso como no outro a filosofia
não pode encontrar sua realidade, é reprovada na prova da realidade.
202
carta, por “Synousía perì tò prâgma”. Isto é, estando em conjunção com o real da
filosofia, reunindo-se com ela, vivendo e coabitando com ela. A coabitação do sujeito
com a filosofia é o que constitui a própria prática da filosofia e sua realidade. Não é,
portanto, através de fórmulas (mathémata) ensinadas, aprendidas e conhecidas que
se transmite e se adquire a filosofia. Não há como pôr os problemas filosóficos em
fórmulas (mathémata). Então, se não é por meio de fórmulas que se adquire a filosofia,
de que maneira se aprende a filosofar e a viver como filósofo? “Quando se frequentou
muito tempo esses problemas (ek pollês synousías), se conviveu com eles (syzên), é
que a verdade brota de repente na alma, assim como a luz brota da centelha e, em
seguida, cresce por si mesma”. Ou seja, assim como devemos ficar junto ao fogo até
nos aquecer, devemos permanecer no pé da filosofia até nos instruir. É como uma
centelha se acendendo na alma que se adquire a filosofia.
É claro que essa questão da aquisição da filosofia está atrelada a diferentes
concepções de conhecimento. Na concepção de Platão, o conhecimento possui cinco
graus, dos quais apenas o quinto permite apreender o próprio ser da coisa. Pois bem,
e como se adquire esse quinto e mais alto grau de conhecimento? Na leitura de
Foucault, para Platão o “conhecimento último só se obtém e se adquire por uma
prática, por uma prática contínua, por uma prática perpetuamente exercitada, por uma
prática de fricção entre os outros modos de conhecimento”. O real do conhecimento
filosófico se dá, portanto, na fricção contínua dos modos de conhecimento uns nos
outros.
Parece que, através da análise da Carta VII de Platão, trata-se para Foucault,
por um lado, de indicar o lugar e a especificidade da filosofia antiga relativamente às
demais modalidades de discurso e, por outro, assinalar que a filosofia moderna retoma
esse lugar e especificidade. Assim, de acordo com Platão e Foucault, não cabe a
203
filosofia dizer o que fazer no domínio da política, pois é “como exterioridade
relativamente a uma política que [a filosofia] constitui sua prova de realidade”.
Também não cabe a filosofia dizer o que é a verdade no domínio da ciência, mas
apresentar-se como “crítica relativamente a um domínio de ilusão que a coloca diante
do desafio de se constituir como discurso verdadeiro”. Por fim, não cabe ou não condiz
com a prática efetivamente filosófica lidar com as ideias por elas mesmas, com o puro
logos. Pelo contrário, a filosofia é áskēsis, trata da constituição do sujeito por si
mesmo. É isso, portanto, que parece constituir para Foucault “o ser moderno da
filosofia, ou talvez o que, no ser moderno da filosofia, retoma o ser da filosofia antiga”.
A filosofia não tem de dizer o que se deve fazer na política. Ela tem de estar
numa exterioridade permanente e rebelde em relação à política, e é nisso que
ela é real. Em segundo lugar, a filosofia não tem de compartilhar o verdadeiro
e o falso no domínio da ciência. Ela tem de exercer perpetuamente sua crítica
ao que é logro, engano e ilusão, e é nisso que ela joga o jogo dialético da sua
própria verdade. Enfim, em terceiro lugar, a filosofia não tem de desalienar o
sujeito. Ela tem de definir as formas nas quais a relação consigo pode
eventualmente se transformar. A filosofia como ascese, a filosofia como
crítica, a filosofia como exterioridade rebelde à política, creio que é esse o
modo de ser da filosofia moderna. Era, em todo caso, o modo de ser da
filosofia antiga.
A análise que Foucault faz da carta platônica permite-nos, portanto, extrair uma
concepção da filosofia muito diferente daquela proveniente das interpretações
tradicionalmente feitas do platonismo. As hipóteses às quais chega vão de encontro,
por exemplo, às leituras largamente aceitas de textos célebres como a República e as
Leis. A famosa crítica à escrita se baseia no fato dela dar à coisa conhecida a forma
do matema (máthema), isto é, de colocá-la em fórmulas (mathémata). As fórmulas são
de certo modo instrumentos por meio dos quais se veicula o conhecimento já adquirido
a quem deve conhecê-lo. Assim, infere Foucault: “a escrita, que é ligada portanto à
própria forma das mathémata, não pode de maneira nenhuma responder ao que é o
real do conhecimento filosófico: a fricção contínua dos modos de conhecimento uns
nos outros”. De seu princípio de que nenhum homem sério deveria tratar por escrito
de coisas da filosofia, o próprio Platão tira a conclusão, paradoxal aos olhos de
Foucault, de se a filosofia não pode ser praticada e aprendida através de fórmulas
204
(mathémata), o papel do filósofo tampouco poderá ser o de apresentar um conjunto
de leis aos cidadãos de uma cidade para que esta seja governada como convém. Isto
é, não é papel do filósofo ser um nomóteta, não é sua função legislar. Em suas
palavras: “quando vemos uma composição escrita, seja por um legislador sobre as
leis, seja por qualquer outro autor sobre qualquer tema, digamos que o autor não levou
a coisa muito a sério, se ele mesmo é sério”. Daí Foucault formula uma hipótese
segundo a qual as Leis e a República, longe de representarem as opiniões do próprio
Platão, consistem numa espécie de jogo filosófico.
[…] assim como Platão diz a propósito do mythos (do mito) que o mito não
deve ser levado ao pé da letra e que, de certo modo, ele não é sério ou que
se deve empregar toda a seriedade para interpretá-lo seriamente, será que
se pode dizer a mesma coisa a propósito dos célebres textos das Leis ou da
República, que foram frequentemente interpretados como a forma que Platão
dá idealmente à cidade que ele gostaria que fosse real?
205
poderiam ser descritas mediante um processo racional, ele se situa, junto com a
poesia, dentro da esfera lúdica. Foucault diz, no entanto, que “uma vez jogado esse
jogo da cidade ideal, há que se recordar que a seriedade da filosofia está em outra
parte”. Pelo jeito, Foucault encara o jogo de Platão de uma maneira diferente daquela
que encarou seu próprio jogo e da maneira que encarou seus projetos de pesquisa e
escrita. Já discorremos sobre o caráter de experiência dos projetos de pesquisa e
escrita de Foucault, sobre seu potencial transformador, sobre sua capacidade
transfiguradora do sujeito. Então, já falamos sobre o saber de experiência, sobre o
estilo ensaístico do pensamento foucaultiano, sobre a escrita de si. Não convém
insistirmos mais nisso. O fato é que, no entendimento de Foucault, “a seriedade da
filosofia não consiste em dar leis aos homens e lhes dizer qual é a cidade ideal na
qual devem viver”. Parece que, para Foucault, devemos guardar a República e as
Leis, uma vez que essas obras não expressariam o real da filosofia. Para ele, a
seriedade da filosofia consiste em lembrar sem cessar, àqueles que querem escutar,
que “o próprio real da filosofia está nessas práticas, essas práticas que são as práticas
exercidas de si sobre si e que são ao mesmo tempo essas práticas de conhecimento
pelas quais todos os modos de conhecimento, ao longo dos quais você sobe e desce
e fricciona uns nos outros, finalmente nos põem em presença da realidade do próprio
Ser”.
Baseando-se nos relatos das vidas dos filósofos feitos por Diógenes Laércio e
por Filostrato, Foucault discorre sobre várias maneiras através das quais a vida
filosófica se anunciou como uma manifestação da verdade na cultura antiga. Uma
delas foi, certamente, aquela que procurava mostrar a verdade por meio dos três
aspectos seguintes, a maneira como se vive (éthos), a maneira como se reage à
determinadas situações (kairós) e a doutrina que se ensina. Outra maneira de
manifestação da verdade foi a parrésia, visto que durante toda a sua história na cultura
antiga, sempre se dirigiu aos que governam. Contudo, a vida filosófica também foi
uma parrésia no sentido de interpelação constante dirigida às pessoas. Mas, tratando-
se sempre, num caso e noutro, da manifestação da verdade, Foucault chega a
considerar a filosofia antiga como uma espécie de grande elaboração de “um projeto
geral que é a parresía, a coragem de dizer a verdade aos outros para conduzi-los em
sua própria conduta”; em suma, a filosofia antiga como uma espécie de grande prática
parresiástica. Essa coragem de dizer a verdade, esse jogo do dizer-a-verdade,
206
também desempenhou um papel importante em comunidades mais fechadas como a
dos epicuristas. Se formou ali uma prática de confissão e de confidência recíproca, de
relato detalhado dos erros que alguém comete e conta. Conta-se os erros ao diretor,
certamente, mas também se conta a outros para obter conselhos.
207
3. A parrésia e a constituição ética do sujeito
Seja como preceito de vida, como princípio geral ou como práticas exercidas
por alguns sujeitos e em alguns meios mais cultivados, o “cuidado de si” (epiméleia
heautoû) sempre inclui ideias como a de que é preciso ocupar-se consigo mesmo,
voltar-se para si mesmo, retornar para si mesmo, recolher-se em si mesmo, etc. Desde
a Antiguidade e ao longo de séculos, o “cuidado de si” incita alguns a se ocuparem de
si e a trabalharem sobre si. Esse trabalho sobre si se dá por meio de certos exercícios,
práticas e técnicas de si com fins de transformar a si mesmo. É significativo que Pierre
Hadot prefira chamar de “exercícios espirituais” essas práticas originárias do
pensamento antigo. Assumindo diferentes formas no curso de nossa história e
intervindo de diferentes maneiras no curso de nossa subjetividade, perpetuam a
manufatura do ser.
Não obstante a ênfase dada pelo princípio do “cuidado de si” (epiméleia
heautoû) à injunção de ocupar-se consigo mesmo, a presença do outro é uma
constante. O “cuidado de si” subentende a existência de um personagem
constantemente apresentado como o parceiro indispensável ao qual o sujeito se
vincula. A obrigação aletúrgica, isto é, a incitação a dizer a verdade sobre si mesmo,
deve ser situada num contexto mais amplo definido pelo princípio do “cuidado de si”
(epiméleia heautoû) em relação ao qual o princípio do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi
seautón) não passa de uma implicação. É para cuidar de si, editar a si (epimelesthai
sautou) que o sujeito se submete a aleturgia. A prática do dizer-a-verdade sobre si
mesmo se apoia e apela a presença do outro, do outro que escuta, que incentiva a
falar e que fala ele próprio. Trata-se de uma atividade conjunta, eventualmente com
outros, mas, geralmente, com um outro, uma prática a dois. Mas qual o estatuto desse
outro tão necessário?
Em outras palavras. Se um sujeito é acometido por um sofrimento anímico que
não tem por base uma doença orgânica ou qualquer tipo de mal fisiológico, mas uma
“doença da alma”, que remédio tomar? Se um sujeito se vê desorientado diante da
própria existência, à deriva, como se algo essencial lhe faltasse, que solução buscará?
Se um sujeito reconhece sua constituição subjetiva como deficitária, insuficiente para
a vida que almeja, a quem recorrerá? Na cultura ocidental moderna, encontramos
figuras como o médico, o psiquiatra, o psicólogo, o psicanalista... Na cultura cristã
mais recente, o padre católico, o pastor evangélico. Na cultura cristã de outrora
208
encontramos a figura do confessor ou do diretor de consciência. Mas na cultura antiga
o estatuto desse outro, desse dizer a verdade sobre si mesmo e conhecer a si mesmo,
precisamos de um outro que devemos ir buscar em qualquer lugar, contanto que seja
um homem de idade e sério. Pode ser um professor que faz mais ou menos parte de
uma estrutura pedagógica institucionalizada, mas também pode ser um amigo ou um
amante. Pode ser um guia provisório para um rapaz que ainda não atingiu sua
maturidade, que ainda não fez as escolhas fundamentais para sua vida, que ainda
não é totalmente senhor de si mesmo. Pode ser, enfim, um conselheiro permanente
disposto a seguir alguém ao longo de sua vida.
Então, já que o estatuto desse outro é variável, sua prática não é sempre a
mesma. Ela se apoia na pedagogia, mas também é uma direção de alma. Pode, em
alguns casos, tomar a forma de um aconselhamento político, mas também a forma de
prática médica. Trata-se, de modo geral, do cuidado da alma e da determinação de
um regime de vida que, por sua vez, comporta um regime das paixões e
eventualmente um regime alimentar. É uma prática que pode envolver o modo de vida
sob todos os seus aspectos. Mas qualquer que seja os diferentes perfis e aspectos
sob os quais podemos ver aparecer esse outro tão necessário para a aleturgia do
sujeito, exige-se dele, para que possa ser eficazmente o parceiro do dizer a verdade
sobre si, uma certa qualificação. Não se trata de uma qualificação dada por uma
instituição referente a posse e ao exercício de poderes espirituais específicos, como
no caso da cultura cristã. Também não se trata de uma qualificação institucional que
garante certo saber, como no caso da cultura moderna. A qualificação necessária a
esse personagem incerto, esse outro parceiro do dizer-a-verdade sobre si, é uma certa
prática discursiva, uma certa maneira de dizer a verdade chamada “parrésia”.
Então, para melhor nos situar no corpus foucaultiano, importa lembrar que foi
no curso A hermenêutica do sujeito (1982) que Michel Foucault abordou pela primeira
vez a noção de parrésia. Uma genealogia dessa noção foi desenvolvida no curso do
ano seguinte, O governo de si e dos outros (1983), bem como aprofundada em sua
dimensão ética no último dos cursos, A coragem da verdade (1984). Trata-se de uma
noção complexa, com vários significados e empregos ao longo de sua história. Em
seu sentido mais geral, o termo grego parresía remete à franqueza, liberdade de fala
e fala-franca; em seu sentido mais técnico e preciso, remete à expressão pública e
arriscada de uma convicção própria. Entre as formas antigas de parrésia estão, por
209
exemplo, a socrática, a cínica, a estóica e a epicurista. Mais tarde haverá também
uma forma cristã, em latim parrhesĭa, redefinida como abertura transparente do
coração ao diretor de consciência. Entre os autores antigos cujos textos foram
estudados por Foucault estão Filodemo, que escreveu um texto Sobre a parrésia
(parcialmente conservado), Plutarco, que escreveu um tratado sobre Como Distinguir
um Adulador de um Amigo, e Galeno de Pérgamo, que escreveu um tratado Sobre as
paixões e os erros da alma.
A noção de parrésia, arraigada originalmente na prática política e na
problematização da democracia, e só depois derivada para a esfera da ética pessoal
e da constituição ética do sujeito, permite Foucault colocar a questão do sujeito e da
verdade sob a perspectiva do que ele chama de governo de si e dos outros. Então,
das formas de parrésia examinadas, a “parrésia ética” é aquela que se distingue pelo
papel que desempenha na constituição ética do sujeito. Sobre essa distinção, diz
Foucault: “Se entendermos por parrésia a coragem da verdade, a coragem de dizer a
verdade, e ver, devemos ver aqui uma certa forma de parrésia muito diferente, em seu
fundamento e em seu desenrolar, da parrésia política”.
De fato, o objetivo da parrésia ética é diferente da parrésia política. De modo
geral, seu objetivo é fazer com que o sujeito cuide de si mesmo, mas que cuide de si
mesmo enquanto ser razoável que mantém com a verdade uma relação fundada no
ser de sua alma. A parrésia ética é uma forma diferente de parrésia que consiste na
coragem de dizer a verdade com fins de constituir ou reconstituir eticamente o sujeito
através de modificações no seu modo de ser e de agir. Enquanto prática discursiva
que visa contribuir para a formação do sujeito enquanto sujeito moral, desde que siga
alguns princípios, pode ser exercida de diferentes maneiras e em diferentes contextos.
De modo geral, para que haja parrésia, ao dizer a verdade — isto é, ao enunciar seu
pensamento, sua opinião, sua crença — o sujeito tem de assumir certo risco que diz
respeito à própria relação com a pessoa a quem se dirige. Corre-se o risco, dizendo a
verdade, de ferir o outro, de irritá-lo, de enraivece-lo ou de lhe suscitar reações que
podem chegar à violência.
No entanto, a parrésia ética também se insere em contextos particulares e em
domínios que não são originalmente os seus. No domínio da filosofia, por exemplo, a
parrésia ética tende a imiscuir-se com a parrésia filosófica quando esta, numa relação
entre dois sujeitos, utiliza da linguagem cotidiana, sem ornamento de vocabulário e de
210
estilo. Se dá o mesmo quando, em segundo lugar: diz as coisas ao acaso, tal como
vem à mente, como que traduzindo o próprio movimento do pensamento. Assim como,
em terceiro lugar: diz exatamente aquilo que se pensa, tendo fé no que disse,
confiando na justiça do que disse. Em suma, para Foucault a atitude parresiástica em
filosofia é a que “a propósito do sujeito moral traz sem cessar a questão do discurso
verdadeiro em que esse sujeito moral se constitui e das relações de poder em que
esse sujeito se forma”.
Enfim, apesar do domínio da filosofia ter sido historicamente privilegiado pela
parrésia ética, ela também foi amplamente exercida entre não filósofos. A parrésia
ética esteve e está presente, por exemplo, na franqueza do mestre pronto para sacudir
a alma do discípulo e provocar-lhe a cólera apontando sem rodeios seus defeitos,
seus vícios e suas más paixões.
Aqui, um parêntese: no curso de 1982, Foucault identifica nessa atitude do
mestre uma atitude ética e em seu discurso um procedimento técnico; já no curso de
1984, talvez para evitar que o dizer-verdadeiro da parrésia fosse confundido com o
dizer-verdadeiro do saber técnico, da tékhne, Foucault dirá que a prática da parrésia
não consiste numa técnica. Que a parrésia seja ou não considerada uma prática
técnica não deve ser tomada como uma questão de menor importância. Para
solucionar esse impasse, podemos considerar, se quisermos, a parrésia uma prática
na qual é possível identificarmos princípios técnicos, desde que não entendamos por
isso um procedimento técnico fruto de um saber técnico, passível de ser ensinado,
rigorosamente transmitido a outro. O sujeito que possui a parrésia não
necessariamente a aprendeu. Na verdade, no mais das vezes, ou se possui ou não
se possui parrésia.
Uma vez feitas essas considerações preliminares acerca da parrésia ética,
coloquemos agora algumas questões de ordem prática: uma vez que a prática da
parrésia ética nunca visou a maioria, mas, pelo contrário, só se ocupou de alguns,
dizer que sua finalidade é a constituição ética do sujeito não é uma afirmação
excessivamente ampla? Noutras palavras, é legítimo sustentar que o fim da parrésia
ética é a constituição ética do sujeito em geral enquanto sua prática é restrita a
poucos? Visto que a prática da parrésia é para “não-todos”, no sentido de que não
cabe a todo e qualquer sujeito, mas somente a alguns, como saber a que classe de
sujeito pertencemos? Já que querer verdadeiramente se melhorar, se edificar e se
211
constituir enquanto sujeito moral é uma condição, mas não uma garantia de
participação no jogo parresiástico, importa saber que fatores efetivamente qualificam
ou desqualificam o sujeito para o exercício da parrésia ética.
Ao cometer uma falta e senti-la pesar em sua consciência, é imperativo que o
sujeito a confesse. Mas importa que a confesse a quem, de fato, possa guiá-lo e ajudá-
lo a sair do desespero, do remorso ou do sentimento que tem de sua própria falta.
Nesse caso, como denominar esse outro da relação, esse sujeito qualificado como
possuidor de um tipo específico de franqueza, que pode e deve falar francamente para
que o sujeito que lhe procurou possa, por sua vez, dizer a verdade sobre si mesmo e
se constituir efetivamente enquanto sujeito de discurso verídico sobre si? A palavra
que lhe corresponde, “parresiasta” (parresiastés), é mais tardia do que a palavra
“parrésia” (parresía). A parresía é, etimologicamente, a atividade de dizer tudo: pân
rêma. Parresiázesthai significa justamente isso, “dizer tudo”. Assim, parresiastés é
aquele que diz tudo. Importa esclarecer que a palavra parresía pode ser empregada
com dois valores. Ela é encontrada com valor pejorativo muito frequentemente na
literatura cristã, com a significação de tagarela impertinente, de sujeito que não sabe
se conter. Em seu valor positivo, significa dizer a verdade, sem dissimulação, reserva,
preocupação com estilo ou ornamento retórico. Dizer tudo sem nada esconder.
O parresiasta, portanto, é aquele que dá sua opinião, diz o que pensa se
indexando à verdade, como que autenticando a verdade. Para Foucault, “o estudo da
parrésia e do parresiasta é uma espécie de pré-história dessas práticas que se
organizaram e se desenvolveram posteriormente em torno de alguns pares célebres:
o penitente e seu confessor, o dirigido e o diretor de consciência, o doente e o
psiquiatra, o paciente e o psicanalista”.
212
4. A parrésia e o jogo parresiástico
Devem eles próprios jogá-lo e reconhecer que aquele que assume o risco de
lhes dizer a verdade deve ser escutado. E é assim que se estabelecerá o
verdadeiro jogo da parresía, a partir dessa espécie de pacto que faz que, se
o parresiasta mostra sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra
213
todos, aquele a que essa parresía é endereçada deverá mostrar sua
grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade. Essa espécie de pacto,
entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-
la, está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico.
214
(Foucault [1984] 2011, p.64)
215
benevolência, amizade (eunoia) para com o outro para ser aceito como discípulo.
Essas três características constituem os operadores da verdade do jogo parresiástico.
Mais do que traduzir, Foucault explica como devemos entender esses termos
no contexto do jogo parresiástico. A Episteme “faz que se diga o que se pensa ser
verdade” e “nunca dizer o que dizem a não ser sabendo efetivamente que é verdade”.
A Eunoia “faz que se fale somente por benevolência para com o outro”, de modo que
significa “sentimento de benevolência que provém da amizade.” A Parresía “dá a
coragem de dizer tudo o que se pensa, a despeito das regras, das leis, dos hábitos”;
“que nada que seja da ordem do medo ou da timidez ou da vergonha venha limitar a
formulação do que se pensa ser verdade. A coragem parresiástica é necessária”.
Assim funcionam esses três operadores da verdade do jogo parresiástico. São as três
condições sob as quais a identidade do discurso (homologia) num e noutro poderá
desempenhar esse papel de prova (básanos).
Mas é preciso que haja também entre as duas almas uma afinidade de
natureza. A relação entre as almas será de prova, de manifestação da autenticidade,
de demonstração da verdade da alma no que ela tiver de autêntica (étymos). Uma vez
que essas condições se encontrem presentes, a parrésia vinculará o mestre e o
discípulo, um ao outro. Mas como o mestre põe à prova a parrésia do candidato?
Questionando-o, tal como Sócrates em Górgias: “Quero que você responda às minhas
perguntas”. O candidato deve responder com franqueza, sem rodeios, exatamente o
que pensa. Deve dizê-lo como tem presente no espírito, com liberdade de fala, sem
nada dissimular, nem por interesse, nem por retórica, nem por vergonha. É através
desse jogo de verdade, jogo de prova, que se testa a parrésia do candidato e, por
conseguinte, a qualidade de sua alma. Platão fornece ainda uma descrição do pacto
parresiástico da prova de almas. Se uma falta for cometida, convém admitir que não
foi cometida voluntariamente. Quem a cometeu necessita mais uma vez e novamente
de conselhos. Mas se depois dos conselhos e esclarecida a natureza da falta a mesma
falta for cometida, a única punição do dirigido será ser abandonado pelo diretor. Enfim,
num segundo momento, deve-se verificar se há, entre o mestre e o discípulo, uma
identidade de discurso. Essa identidade de discurso num e noutro (homologia), que
prova a afinidade de natureza das duas almas, consiste essencialmente na evidência
de que “o que um diz pode ser dito pelo outro”. Essa identidade de discurso
(homologia) serve, para a relação entre o mestre e o discípulo, de critério de verdade.
216
E como, na relação parresiástica, o éthos é alterado, modificado, constituído?
É por meio de uma intervenção do dizer-verdadeiro na alma (psykhé). E essa forma
do dizer-verdadeiro é a parrésia ética que tem por correlativo privilegiado, como ponto
de aplicação primeiro, instância à qual se dirige e um domínio em que adquire seus
efeitos a alma (psykhé) do sujeito.
217
5. A parrésia, a profecia, a sabedoria e o saber técnico
219
figura do parresiasta que tem por dever, por obrigação e encargo a tarefa de falar. Ele
não pode se furtar a tarefa de falar e deve falar tão claro quanto possível. Quando ele
intervém para dizer o que é, não é para dizer o que é o ser da natureza, do mundo e
das coisas como faz o sábio, mas sim o que é na singularidade dos indivíduos, das
situações e das conjunturas. O dizer verdadeiro do parresiasta tem a característica de
ser sempre aplicável, de questionar, de apontar para indivíduos e situações a fim de
dizer o que estes são na realidade. Ao dizer aos indivíduos a verdade deles mesmos,
ao revelar a situação atual na qual se encontram, caráter que possuem, os defeitos
que apresentam, o valor de suas respectivas condutas e as eventuais consequências
das decisões que tomam, o parresiasta não revela a seus interlocutores o que é em
geral. Ele desvela ou os ajuda a reconhecer o que eles, os interlocutores, são.
Enfim, vejamos a veridicção do saber técnico, a veridicção de quem ensina. A
quem Foucault se refere quando se interroga sobre a veridicção de quem ensina?
Quem ele chama de técnico? Nesta ocasião, ele chama de técnicos uma gama de
personagens portadores de um saber caracterizado como tékhne, isto é, de um saber
que implica conhecimentos, mas conhecimentos que tomam corpo numa prática e que
implicam, para seu aprendizado, um conhecimento teórico, mas também exercícios
(áskēsis ou meléte). Ele se refere, portanto, à personagens como o médico, o músico,
o sapateiro, o marceneiro, o mestre de esgrima, o ginasta, enfim, todo um conjunto de
indivíduos que, por deterem um saber técnico, professam-no e são capazes ensiná-lo
aos outros.
O técnico, seja ela qual for, tem certo dever de palavra. Embora nada prediga
a respeito dos acontecimentos do mundo, nada exprima a respeito do ser mesmo do
mundo e das coisas e nada ou muito pouco saiba dizer a respeito da singularidade
dos sujeitos, ela também tem, de certa forma, uma obrigação de verdade, a obrigação
de dizer o saber que possui e a verdade que conhece, pois esse saber e essa verdade
estão ligados a uma tradicionalidade. O homem da tékhne já foi, evidentemente,
discípulo de outro técnico (tekhnítes) que foi seu mestre. Do mesmo modo, para que
seu saber não morra com ele, ele vai ter que transmiti-lo. E o que está em jogo nessa
transmissão do saber, nessa prática de ensino? Bem, primeiro há de se considerar
que, diferente do parresiasta, esse professor, esse homem da tékhne e do ensino, não
assume nenhum risco. Pelo contrário, comenta Foucault refletindo sobre sua própria
prática docente, “quem ensina […] às vezes deseja estabelecer entre si e aquele ou
220
aqueles que o escutam um vínculo, vínculo esse que é o do saber comum, da herança,
da tradição, vínculo que pode ser também o do reconhecimento pessoal ou da
amizade. Em todo caso, nesse dizer-a-verdade, se estabelece uma filiação na ordem
do saber”. No caso do dizer-a-verdade da técnica, o ensino assegura a sobrevivência
do saber. O dizer-a-verdade do técnico e do professor une e vincula. Sim, é verdade
que a veridicção do parresiasta também pode, no fim das contas, unir e reconciliar os
sujeitos envolvidos no jogo da parrésia, mas não sem, antes, expor o vínculo entre os
dois indivíduos à possibilidade do ódio e da dilaceração.
221
6. Acerca das elações entre sujeito e verdade
224
o princípio do gnôthi seautón como fundador do procedimento filosófico, pôde ser
aceito, desde o século XVII portanto, em certas práticas ou procedimentos filosóficos.”
Mas ao passo que o procedimento cartesiano requalificou o “conhece-te a ti mesmo”
(gnôthi seaulón), contribuiu decisivamente para a desqualificação e exclusão do
princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) do campo do pensamento filosófico
moderno.
Para demarcar a mencionada cisão entre filosofia e espiritualidade, Foucault
propõe, primeiro, que se defina a filosofia como uma modalidade do pensamento que
em vez de se questionar sobre o que é verdadeiro e o que é falso, se questiona sobre
o que faz com que haja e possa haver o verdadeiro e o falso e o sobre o que torna
possível ou não separar o verdadeiro do falso; como uma modalidade de pensamento
que visa determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade.
Notemos, então, que ao buscar definir a filosofia, o modo de ser da filosofia e a prática
da filosofia, Foucault sempre nos remete a alguma relação fundamental com a
verdade.
A seguir, propõe que se defina a espiritualidade como um conjunto de buscas,
práticas de experiências como as asceses, renúncias, conversões, etc. que
constituem para o ser do sujeito o custo para se ter acesso à verdade. A
espiritualidade ocidental postula que “a verdade jamais é dada de pleno direito ao
sujeito”; que “o sujeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de ter
acesso à verdade”; que “verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter
tal e qual estrutura de sujeito”. A espiritualidade postula, enfim, “a necessidade de que
o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, tome-se, em certa medida e até
certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito a o acesso à verdade”.
Então, o sujeito não tem direito à verdade, a verdade não é dada ao sujeito por
um simples ato de conhecimento e se faz necessário uma transformação no sujeito
para que ele tenha acesso à verdade. “A verdade só é dada ao sujeito a um preço que
põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade”.
Enfim, não pode haver verdade sem uma transformação do sujeito. Esta
transformação, porém, pode fazer-se sob diferentes formas.
A conversão pode ocorrer sob a foma de um movimento que arranca o sujeito
de sua condição atual, mas também sob a forma de um trabalho pela qual o sujeito
225
pode e deve transformar-se para ter acesso à verdade. Esta última forma de
conversão consiste num trabalho de si, elaboração de si, transformação progressiva
de si em que o sujeito é o responsável por um longo labor que é o da ascese (áskēsis).
Pois bem, a espiritualidade postula que quando se tem acesso à verdade por
meio de procedimentos espirituais, no sujeito se produz efeitos que são consequência
do procedimento espiritual realizado, mas que são também outra coisa, são efeitos da
própria verdade sobre o sujeito ou, como disse Foucault, são efeitos “de retorno” da
verdade sobre o sujeito. Lembremos que para a espiritualidade a verdade não é dada
ao sujeito a fim de recompensá-lo pelo ato de conhecimento e a fim de preencher este
ato de conhecimento. Para a espiritualidade, “a verdade é o que ilumina o sujeito; a
verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranquilidade de alma. Em
suma, na verdade e no acesso à verdade há alguma coisa que completa o próprio
sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura”. Enfim, podemos
concluir que, do ponto de vista da espiritualidade, um ato de conhecimento jamais
seria capaz de dar acesso à verdade se não fosse acompanhado e consumado por
certa transformação do próprio sujeito no seu ser de sujeito.
No pensamento antigo a questão filosófica de como ter acesso à verdade e a
prática da espiritualidade são dois temas que jamais estão separados. São temas
inseparáveis para os pitagóricos, para o platonismo, para os estoicos, os cínicos, os
epicuristas, os neoplatônicos, etc. (no que diz respeito a isso, Aristóteles é uma
exceção). O princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) designa precisamente o
conjunto das condições de espiritualidade, isto é, o conjunto de atitudes, práticas,
técnicas, procedimentos, exercícios e meditações capazes de dar ensejo às
transformações de si que constituem a condição de acesso à verdade.
A história da verdade entrou no seu período moderno quando se admitiu que o
que dá acesso à verdade é o conhecimento e tão somente o conhecimento. No tocante
ao acesso à verdade, a transformação de si tornou-se algo prescindível, não
essencial. Passou-se a considerar que aquele que busca a verdade é em si mesmo
capaz, por sua estrutura de sujeito, de ter acesso à verdade por meio de seus atos de
conhecimento. Passou-se a considerar o sujeito capaz de reconhecer a verdade e de
ter acesso à verdade contando unicamente com o conhecimento. Passou-se a
considerar outras condições para a obtenção da verdade. Há, de um lado, as
condições internas do ato de conhecimento e as regras a serem seguidas para ter
226
acesso à verdade (condições formais, condições objetivas, regras formais do método,
estrutura do objeto a conhecer). E há, por outro lado, as condições extrínsecas:
condições mentais (é preciso ser são, pois o louco é incapaz de reconhecer a verdade
e, portanto, de ter acesso a ela); condições culturais (ter realizado estudos, ter uma
formação, fazer parte de alguma instituição científica ou ter participação em trabalhos
científicos); condições morais (é preciso esforçar-se, não tentar enganar seus pares,
e que os interesses pessoais se ajustem bem às normas da pesquisa desinteressada).
Assim, Foucault considera que desde o momento em que se encarou o sujeito como
sujeito capaz de verdade sem que seu ser tenha sido posto em questão entramos
numa outra era da história das relações entre subjetividade e verdade.
Em síntese, podemos dizer que em determinado momento da história as
relações entre sujeito e verdade foram profundamente alteradas e transformaram
radicalmente a experiência que o sujeito passou a ter de si mesmo. Enquanto que
num primeiro momento, antigo, o encontro do sujeito com a verdade o iluminava, o
preenchia com um sentimento de completude e, como custo a ser pago pela
experiência, transfigurava seu ser, num segundo momento, moderno, as relações
entre sujeito e verdade se inverteram de tal modo que um simples ato de
conhecimento passou a conceder ao sujeito acesso à verdade. No entanto, em vez
de recompensa ou completude, o sujeito só encontrou uma dimensão indefinida onde
o conhecimento passou a se acumular. Antes, a verdade era capaz de salvar o sujeito;
depois, a verdade se revelou incapaz de salvar o sujeito. Se definirmos a
espiritualidade como “o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é,
não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar
e salvar o sujeito”, estamos admitindo que as relações entre sujeito e verdade no
mundo antigo é o que proporciona as condições de espiritualidade. As relações
modernas do sujeito com a verdade, por sua vez, postulam que “o sujeito, tal como
ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar
o sujeito”.
227
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS JOGOS E A QUESTÃO DA SALVAÇÃO
Que tempos são estes? Que tempos são estes em que a verdade não passa
de uma palavra conveniente, oportuna e servil? Que tempos são estes em que,
asfixiados por informações, padecemos diante de telas de luz azul? O que esperar de
nós, sujeitos da pós-verdade? Cá estamos um tanto decepcionados. A Modernidade
não foi nada daquilo que nos prometeram. E o que nos resta? Vagar nostalgicamente
sobre os escombros da humanidade? Nada mais mesquinho e covarde. Engajar-se
numa causa? Mas de acordo com quê? Quais são os critérios? Que princípios
orientariam nossa prática? Com o que devemos nos comprometer quando nos
dispomos a pensar a atualidade? Noutras palavras: o que esperar, afinal, do
intelectual contemporâneo?
Se não há uma razão universalmente válida nem possibilidade de consenso
legítimo; se toda impressão de progresso não passa de ilusão; se a ideia de paz
perpétua se revela, no fim das contas, ingênua; se a autópsia do sagrado só realçou
a desorientação e arrefeceu a esperança de um propósito comum; e se o
conhecimento que prometia nos libertar findou nos jogando no vácuo (semelhante à
abolição que, mirando na liberdade, lançou os ex-escravos mais perto da fome), o que
nos resta?
Diante disso, não parece exagero dizer que a ética do pensamento tardio de
Michel Foucault possa representar para alguns, para empregar aqui uma expressão
das Confissões da carne, uma espécie de “salvação”. Ter resgatado este termo de
sua conotação religiosa cristalizada — sem, contudo, renunciar à força de semelhante
emprego — foi, sem dúvida, um dos préstimos concedidos por esse estudo da ética
antiga.
Não obstante, falar em nome de uma ética foucaultiana ainda é algo, no
mínimo, discutível. Em parte, porque em lugar algum do pensamento público de
Foucault, isto é, do conjunto de seus livros, cursos, entrevistas e outros textos que
228
compõem os Ditos e Escritos encontramos uma formulação explícita de uma
concepção ética de autoria reivindicada, ao mesmo tempo efetivamente proposta e,
menos ainda, justificada em termos de universalidade. O aparecimento das
elaborações temáticas sob uma perspectiva ética e a necessidade da reformulação
da noção — ou, pra ser mais exato, da formulação de uma concepção própria — de
ética foi relativamente tardio. Não ocorreu com o início do projeto da história da
sexualidade por volta de 75, mas alguns anos depois. De forma mais explícita, mas
apenas como uma primeira aproximação, elaborações concernentes à ética ganham
espaço no curso Subjetividade e Verdade (1981-1982), primeiro como um aspecto de
elementos concretos de um campo de análise e depois como um ponto de vista da
ética sexual antiga (a partir da reconstituição dos princípios de apreciação sexual).
No ano sabático de 77, Foucault não ministra cursos nem publica livros. Volta-
se só para a pesquisa, em sua maior parte nova, e promove um deslocamento da
questão do biopoder à de governo. As menções à ética, de maneira geral emitidas
pelo autor nesse ano, ainda não é aquela que caracterizará seu pensamento tardio.
Alguns chamam de “guinada ética” o movimento pelo qual se fez surgir uma vasta
problematização histórica da subjetividade antiga e do cristianismo primitivo no
pensamento de Foucault. Esse movimento que inaugura aquilo que outros chamaram
de eixo ético — o terceiro eixo, antecedido por duas analíticas, do saber e do poder
— só ocorreria com a pesquisa e as aulas referentes ao curso O Governo dos Vivos
(1979-1980) no Collège de France.
A partir daí pode-se notar o surgimento de análises de temas sob um prisma
ético, elaborações que redimensionam e demarcam um novo campo de estudo,
hipóteses que, pouco a pouco, e cada vez mais, não se impõem como teses, mas
como operadoras provisórias de análises, e, enfim, exercícios de formulação de uma
noção de ética que correspondesse às expectativas das questões que vinham
surgindo a partir desses estudos. As concepções de ética herdadas da tradição não
pareciam servir. Mas também não era o caso de definir taxativamente, e de uma vez
por todas, um conceito de ética. Nenhum compromisso definitivo. Um campo rico em
possibilidades estava se abrindo, se descortinando aos poucos. Não convinha
qualquer dogmatismo. Era hora de experimentar, explorar as possibilidades, com
ousadia, pode-se dizer, pelo que veremos mais tarde, mas também com franqueza
para só admitir uma noção enquanto fosse útil para a análise e sensibilidade analítica
229
para fazer os ajustes de método necessários. Assim, não encontramos muitas
formulações explícitas de uma concepção de ética; e quando encontramos, na maior
parte das ocasiões, não se trata de uma concepção autoral no sentido forte do termo,
visto que corresponde a um problema específico passível de delimitação histórica.
Desse modo, também não é metodologicamente definitiva, mas contextual, reservada
àquele momento, conforme os ajustes mútuos do método e do objeto para o
experimento apresentado.
Assim, por mais retomada que tenha sido a problemática da ética por Foucault
a partir dos anos 1980, inclusive em entrevistas, onde se destaca A ética do cuidado
de si como prática da liberdade (1984), seria legítimo chamar de ética foucaultiana
aquilo que — conforme o próprio autor — seria a ética do cuidado de si, delineada a
partir de um longo estudo das práticas de cuidado de si em geral, e em suas
especificidades, orientadas por filósofos moralistas, diretores de consciência e
mestres de vida?
Uma vez que a experiência pagã da salvação não tem nenhuma pretensão de
universalidade, prescinde de qualquer compromisso com uma conversão geral. Ainda
que Sócrates conferisse a si mesmo a incumbência de interpelar os cidadãos
atenienses a se ocuparem consigo mesmos, cuidar de si mesmo tal como se devia
era um privilégio daqueles que (não precisando lavrar a própria terra como os hilotas)
podiam dispor de tempo para si. E mais, era mesmo uma prerrogativa daqueles que
deviam governar as cidades (pólis). Isto significa que o cuidado de si era uma prática
tão somente para alguns na medida em que tinha por finalidade, não a salvação como
predestinação comum, mas o governo de si mesmo em função de poder bem governar
os outros.
Embora o princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) tenha alcançado, nos
primeiros séculos de nossa era, no auge da “cultura de si”, o caráter de princípio geral,
no que tange à efetividade histórica dessas práticas — seja da direção de consciência
através da qual se deve recolher a palavra verdadeira (lógos), seja do regramento da
vida por meio do qual se pode dar à existência (bíos) uma forma determinada ou do
trabalho sobre si (áskēsis) capaz de reconfigurar os próprios termos da relação
consigo e, por consequência, da relação com os outros —, por mais difundidas que
tenham sido, estavam longe de constituírem uma atividade comum a todos. Não só
porque nem todos os indivíduos dispunham de tempo livre e tampouco tinham a
230
mesma pretensão de tomar partido na administração da cidade — principal indicação
dada no Alcebíabes —, mas também porque as práticas organizadas em função do
cuidado de si exigiam de seus adeptos não só um labor contínuo, mas uma conversão
global do sujeito sobre si mesmo a partir da qual esse labor cotidiano se ordenava.
Essa conversão — ou conversões — consistia numa atitude tal que,
convocando o sujeito para si, fazendo-o convergir em direção a si, e na medida em
que capturava seu olhar e retinha sua atenção, conservando-o em si, em sua meta,
alinhado seu caminho a seu propósito, estabelecia uma espécie de distância entre o
indivíduo e o mundo. Essa distância, entretanto, com exceção da vida monástica, não
consistia de modo algum numa ruptura radical com o mundo, mas sim numa mudança
de nível da percepção que, situando um intervalo entre o homem e o mundo, fazia
cessar o intercâmbio direto — não refletido — entre eles. Podemos presumir inclusive
que esse aspecto, por assim dizer, exterior da atitude de conversão (aspecto que
marca um distanciamento, de todo modo, entre esse modo de existência e a vida
humana comum) contribuíra para a caracterização desses modos de existência como
uma vida ascética, e para uma relativa equivalência durante bons séculos entre esta
e a vida filosófica.
Parece que até esse momento do pensamento greco-romano o termo sotería
só é empregado de duas formas, uma, digamos, instrumental, decorrente da
conjugação do verbo salvar e com o sentido de resgatar e conservar, e outro, por
assim dizer, de mera consequência. Assim a encontramos no curso de 1982, em meio
a uma análise de conselhos de vida e de práticas de si.
Os textos organizados sob a égide do princípio do “cuidado de si”, visavam
instrumentalizar a modificação do sujeito por ele mesmo no sentido de sua
constituição ou reconstituição moral. A esse respeito, cabe ressaltar a importância
dada por Foucault à análise histórica das modalidades de relação de si para consigo,
das diferentes maneiras pelas quais os sujeitos tomam alguma parte de si próprios
como centro de preocupação ética. Quatro são os elementos constitutivos da ética
para Foucault e em relação aos quais esses textos das artes da existência deveriam
instruir, a saber, a “substância ética”, o “modo de sujeição”, o “trabalho ético” e a
“teleologia do sujeito moral”.
Por substância ética devemos entender a parte mais relevante para o sujeito
conduzir-se moralmente que precisa ser indicada. Por exemplo, “a efetivação do ato,
231
os movimentos do desejo e a qualidade dos sentimentos constituem três partes
importantes de si mesmo”. Por modos de sujeição devemos entender a maneira
através da qual se sujeita a uma regra, “ou seja, como alguém se relaciona com ela e
sente-se na obrigação de colocá-la em prática”. Por trabalho ético devemos entender
a elaboração de um trabalho sobre si que resultará na transformação do indivíduo em
sujeito moral de sua própria conduta mediante certas práticas de si”. Por fim, a
teleologia do sujeito moral, a respeito da qual podemos dizer que se trata do “objetivo
que se pretende alcançar por meio da elaboração do trabalho de si sobre si, ou seja,
alcançar a condição de sujeito moral”.
Acontece que, segundo Foucault, os princípios morais da sociedade ocidental
foram não só profundamente transformados como rigorosamente invertidos, de modo
que “experimentamos a dificuldade em fundamentar uma moral rigorosa e princípios
austeros em um preceito que diz que devemos nos preocupar com nós mesmos mais
do que com qualquer outra coisa”. Devido termos herdado uma moral cristã que faz
da “renúncia de si” (abnegatio sui) a condição da salvação (salvatio) e do “conhecer-
se a si mesmo” (gnôthi seautón), um meio de renunciar a si, findamos herdando
também “uma tradição secular que vê na lei externa o fundamento da moral”. Trata-
se de “uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento aceitável
sobre as relações com os outros”. Assim, questiona Foucault, “como o respeito que
se tem consigo mesmo pode constituir a base da moral?”. Em síntese, se na
Antiguidade o “conhece a ti mesmo” (gnôthi seautón) decorreu do “cuidado de si” e
estava a ele subordinado, na Modernidade o conhecimento de si constitui o princípio
fundamental.
Todo o percurso que fizemos até aqui deve ter sido suficiente para demonstrar
que algo como um “impulso lúdico” não só habita o sujeito como constantemente o
impele ao divertimento e ao jogo. Poder-se-ia objetar que nem todos os sujeitos são
dados ao divertimento ou afeito a jogos, ou antes, que alguns sujeitos parecem se
abster completamente a qualquer tipo de divertimento e demonstrarem desdém ou
mesmo aversão a jogos. O autor dessa objeção obviamente não está considerando,
entre os possíveis divertimentos, aqueles que são próprios do pensamento, tais como
o devaneio, elucubrações, etc.. Que sujeito poderia alegar isenção dessa inextricável
atividade do espírito que consiste em fantasiar livremente sobre o estado de coisas
232
da realidade? Quantos não se pegam teorizando sobre o mundo e as coisas do mundo
sem nenhum fim em vista? Quanto aos jogos também poder-se-ia objetar que nem
todos os sujeitos deles participam, ou antes, que alguns sujeitos não só com eles
antipatizam como manifestam em relação aos mesmos uma verdadeira aversão.
E, com efeito, quer entendamos por jogo uma atividade permeada pelo que
chamamos “espírito do jogo” ou uma atividade que apresente as características
formais do jogo — ser uma atividade voluntária, limitada no espaço-tempo, constituída
por regras, auto-finalizada, acompanhada de jubilosa tensão e que represente uma
experiência distinta do cotidiano —, somos todos igualmente inclinados ao jogo.
Talvez o começo do caminho em direção a salvação seja algo despretensioso
como o impulso lúdico. Talvez Platão, de certo modo, tivesse alguma razão em
relacionar o jogo com a educação e o divino. Talvez Huizinga não tenha se enganado
quando disse que podemos enxergar por trás de toda a cultura elementos de jogo. Em
meio a tantas modalidades de jogo, nos perguntamos, quais seriam as consequências
de aceitarmos jogar na atualidade o jogo parresiástico resgatado da cultura antiga por
Foucault no fim de seu ensino? Como vimos, o jogo que se dá na esfera do
pensamento pode ou não se relacionar com a espiritualidade. Quanto ao jogo do
desejo, leva o sujeito a um trabalho de si? Por que desse jogo proposto por Foucault
declinam os psicanalistas? O que temem descobrir? Seu próprio inconsciente
histórico?
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