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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA – PPGFil


CURSO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE

RÓBSON HENRIQUE DE ALMEIDA BATISTA

NATAL – RN
2022

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OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE

RÓBSON HENRIQUE DE ALMEIDA BATISTA

Tese apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em
Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa


Filho

NATAL – RN
2022

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e
Batista, Robson Henrique de Almeida.
Artes - CCHLA
Os jogos de Foucault: da verdade do desejo à coragem da verdade
/ Robson Henrique de Almeida Batista. - 2022.
246f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,


Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2022.
Orientador: Prof. Dr. Alípio de Souza Filho.

1. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Jogo. 3. Desejo. 4.


Psicanálise. 5. Verdade. 6. Parrésia. I. Souza Filho, Alípio de.
II. Título.
Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748

RN/UF/BS-CCHLA CDU 1

2
SUMÁRIO

Introdução..................................................………….………….........................….....06
I. Por uma desnaturalização do desejo………………………………......………...06
II. Algo insiste na vida anímica………………………………………………......…..17
III. O impulso lúdico………………………………………………………...................21
IV. Metodologia.....................................................................................................24
Primeiro capítulo: O projeto..............................................................………............29
1. Foucault e a Psicanálise………………………...………………………...……….29
2. As práticas e técnicas de si ou os exercícios espirituais......……....…………..46
3. As formas do ato filosófico......................…….…………...................................52
4. Situação do jogo......................…….…………......................…….………….....66
5. Contradição e mudança de estratégia......................…….………….................76
Segundo capítulo: Os jogos............................………………................……............79
1. O mundo dos jogos…………………………......................................................80
2. O jogo do capitalista………………………………..............................................82
3. As designações em jogo……………………………...…………………………....86
4. O lugar do jogo...................................…………..............…………...................90
5. Jogo e filosofia.................................................................................................97
6. Algumas noções de jogo……………………………………..............................104
7. Jogo no pensamento matemático…………………………......…………..........139
8. Noções de jogo em Foucault……………………………………………………..143
Terceiro capítulo: O jogo de Foucault……....…....................................................147
1. Um convite à filosofia......................................................……………........…..147
2. A fabricação do cenário do jogo..................................................….….….......172
3. O padre e o psicanalista..............................................................……….…....178
4. Uma maneira de jogar…………………………………….…………………...….188
5. Outro jogador, outras referências, outra narrativa..........................................192
Quarto capítulo: Uma ética da verdade.......................................…………............194
1. De um sonho sobre jogar com a realidade………………………………………194
2. A escolha pela vida filosófica……………...…...........................………….......197
3. A parrésia e a constituição ética do sujeito………………………………..........208
4. A parrésia e o jogo parresiástico..................…................……………………..213
5. A parrésia, a profecia, a sabedoria e o saber técnico......................................218
6. Acerca das relações entre sujeito e verdade.....................…………………....222
Considerações finais: Os jogos e a questão da salvação.........…………………228
Referências............................................................................……………...............234

3
RESUMO

OS JOGOS DE FOUCAULT:
DA VERDADE DO DESEJO À CORAGEM DA VERDADE

Autor: Róbson Henrique de Almeida Batista


Orientador: Prof. Dr. Alípio De Sousa Filho

O interesse de Michel Foucault pela psicanálise, embora nem sempre explícito, foi
profundo e duradouro. Profundo demais, talvez, para fazer dele um simples partidário,
e duradouro o suficiente para, paulatinamente, nele engendrar diferentes perspectivas
em relação a ela. A última obra de Foucault — História da sexualidade (1976, 1984a,
1984b, 2018) —, ao fornecer subsídios filosóficos para uma crítica a conceitos
fundadores da psicanálise, assume uma perspectiva mais crítica do que as dos
trabalhos anteriores. No primeiro livro — A vontade de saber (1976) —, cuja
originalidade está em parte na possibilidade de encará-lo como um “convite à filosofia”
ou como um “jogo filosófico”, a crítica aos pressupostos psicanalíticos é explícita. Nos
livros seguintes o autor trata do surgimento do tema da “verdade do desejo” para as
discursividades e práticas ocidentais. Uma vez que o advento da psicanálise como
dispositivo de constituição ética do sujeito sustenta-se na noção moderna de “desejo”,
a prática da confissão psicanalítica persegue a questão da “verdade do desejo”.
Entretanto, ao abordar a problemática do “dizer-verdadeiro” — nos seus últimos
cursos, A hermenêutica do sujeito (1982), O governo de si e dos outros (1983) e A
coragem da verdade (1984) — e situá-lo no mesmo âmbito da constituição ética,
Foucault passa da “crítica à verdade do desejo” à “apreciação da coragem da verdade”
como constitutiva de um éthos. É a “coragem da verdade” em termos de “parrésia”
que sustenta o “jogo parresiástico” enquanto dispositivo de constituição ética do
sujeito. O “jogo parresiástico”, por manter uma relação constitutiva com a verdade,
exerceria uma influência decisiva na formação ética do sujeito que opta pelo modo de
vida filosófico ou intelectual.

Palavras-chave: Foucault; jogo; desejo; psicanálise; verdade; parrésia.

4
ABSTRACT

FOUCAULT'S GAMES:
FROM THE TRUTH OF DESIRE TO THE COURAGE OF TRUTH

Author: Róbson Henrique de Almeida Batista


Advisor: Prof. Dr. Alipio De Sousa Filho

Michel Foucault's interest in psychoanalysis, although not always explicit, was deep
and enduring. Too deep, perhaps, to make him a simple partisan, and enduring enough
to gradually engender different perspectives on her. Foucault's last work — History of
Sexuality (1976, 1984a, 1984b, 2018) —, by providing philosophical support for a
critique of founding concepts of psychoanalysis, assumes a more critical perspective
than the previous works. In the first book — The Will to Know (1976) —, whose
originality lies in part in the possibility of seeing it as an “invitation to philosophy” or as
a “philosophical game”, the critique of psychoanalytic assumptions is explicit. In the
following books, the author deals with the emergence of the theme of the “truth of
desire” for Western discursivities and practices. Since the advent of psychoanalysis as
a device for the ethical constitution of the subject is based on the modern notion of
“desire”, the practice of psychoanalytic confession pursues the question of the “truth of
desire”. However, when approaching the issue of “truth-telling” — in his latest courses,
The hermeneutics of the subject (1982), The government of the self and others (1983)
and The courage of truth (1984) — and placing it in the In the same scope of the ethical
constitution, Foucault goes from the “critique of the truth of desire” to the “appreciation
of the courage of truth” as constitutive of an ethos. It is the “courage of the truth” in
terms of “parrhesia” that sustains the “parrhesiastic game” as a device for the ethical
constitution of the subject. The “parrhesiastic game”, by maintaining a constitutive
relationship with the truth, would exert a decisive influence on the ethical formation of
the subject who opts for the philosophical or intellectual way of life.

Keywords: Foucault; match; desire; psychoanalysis; truth; parrhesia.

5
INTRODUÇÃO

DA ETERNA PROCURA

Só o desejo inquieto, que não passa,


Faz o encanto da coisa desejada…
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

— Mario Quintana

I. Por uma desnaturalização do desejo

Para não nos desviar muito dos propósitos da prática filosófica de Michel
Foucault nem perdermos de vista o que realmente está em jogo em seus diferentes
momentos, é requerido de nós certo ajustamento do espírito para sustentarmos,
acerca da história, dos procedimentos e das práticas que a constituem, uma visão
estratégica, pois, para Foucault, as estratégias estão sempre presentes, seja na
fabricação da história tradicional, seja na fabricação da história efetiva. 1
Uma vez que mudanças na perspectiva das análises de Foucault às vezes gera
dúvidas quanto aos reais posicionamentos do filósofo sobre certas questões,
perguntar que hipóteses o guiaram em determinada pesquisa, que objetivos tinha em
mente ao redigir tal escrito e que pretensões conservava em relação a esse ou àquele
trabalho não seria uma maneira de restabelecer as bases das problemáticas próprias
de seu pensamento? Além disso, assim também definimos um ponto de partida
razoável para uma jornada que comporta muitos destinos possíveis.

1 Em relação à história tradicional, oficial, isto é, à historiografia como ciência, a história efetiva é uma espécie de
contra-história. Como ela rompe com a ideia de que a história do poder, das instituições e dos heróis contêm a
história dos dominados, revela-se a outra face da história. Assim, dá-se a instauração de um duplo regime
historiográfico. A genealogia, que tem por tarefa combater os efeitos de poder de um discurso considerado
científico, é o discurso dos pequenos sujeitos da história, dos que não tem glória e se encontram silenciados. Trata-
se de “uma história que assume o seu estatuto perspectivista, que olha sob um determinado ângulo, que avalia
segundo um determinado modo de vida, que não renega do sistema da sua própria injustiça. Trata-se de um sujeito
que não só é consciente do objeto do seu saber, mas também da posição a partir da qual considera esse objeto.
Ou seja: a genealogia é um discurso que, na elaboração das suas investigações particulares, não deixa de efetuar
a sua própria genealogia” (Pellejero, 2016, p.142-143).
6
Seja simplesmente interpretando o texto de Foucault ou elaborando
concepções e fabricando discursos com base em sua filosofia, é como se
estivéssemos lidando com um quebra-cabeça cuja imagem não está dada nem a
quantidade de peças definida. Que imagens podem se formar a partir dessas peças?
Que paisagens o tornado visível pode compor? Talvez por isso o professor Giacoia
Júnior (2015) tenha dito que “Foucault” – isto é, a palavra ou, se quiser, o significante
“Foucault” — é um nome para múltiplas máscaras. 2 Ora, no fim da introdução da
Arqueologia do saber (1969)3 o próprio Foucault exclamou: “Não me pergunte quem
sou e não me diga para permanecer o mesmo”. Além disso, Foucault acredita que,
assim como ele, há outros que “escrevem para não ter mais rosto”. 4
Admitindo que, de modo geral, o propósito de sua prática filosófica seja
proporcionar uma apreciação crítica potencialmente transformadora do sujeito,
podemos dizer que do conjunto de seus trabalhos o projeto da História da sexualidade
(1976-2018)5 é aquele que mais precisamente integra essa problemática da
transformação de si. Contudo, quais hipóteses guiaram esse projeto? Quais eram
especificamente seus objetivos? Quais pretensões carregava? Além disso, o que
mudou? O que permaneceu? Que resultados, afinal, obteve?
Presumimos que ao eleger um tema amplo como o da “sexualidade” e submetê-
lo a múltiplas abordagens cuja principal consequência é a instauração de um vasto,
inédito e diversificado campo de problematizações, o projeto da História da
sexualidade tinha em vista menos o desvelamento de uma nova verdade sobre a
questão da sexualidade do que abrir caminho para novas pesquisas e maneiras de
pensá-la. Ainda assim, apesar do caráter genuinamente exploratório dessa obra, os

2 Giacoia Junior In: Foucault e a coragem da verdade originalmente publicado na Revista Cult, v. 202, n. 18, p. 43-
45. O artigo também se encontra disponível em: <Michel Foucault e a coragem da verdade, por Oswaldo Giacoia
Junior (uol.com.br)> Acessado em 18/10/2021.
3 Foucault, M. A Arqueologia do saber [1969]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.20.
4 Na verdade, Foucault (1995, p.20) diz o seguinte: “– Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto

prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse […] o labirinto onde me
aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que
resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos que eu não terei mais
que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais rosto. Não me pergunte quem sou e não
me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres
quando se trata de escrever”.
5 Essa obra é composta por quatro livros dos quais temos as seguintes edições brasileiras:

Foucault, M. História da Sexualidade I : A vontade de saber (1970-1971). Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1999.
_______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007.
_______. História da Sexualidade III: O cuidado de si. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 2007.
_______. História da sexualidade 4: as confissões da carne. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 2020.

7
pontos de vista nela apresentados geraram inquietação em alguns círculos e são até
hoje objeto de muitas controvérsias entre estudiosos da sexualidade.
Entretanto, uma coisa pelo menos é certa: do projeto à execução, do início ao
fim, essa História da sexualidade está atravessada pelo questionamento (explícito no
primeiro volume e implícito nos demais) da chamada “hipótese repressiva”.
Igualmente certo parece ser o objetivo — ao qual corresponde esse questionamento
estratégico — de promover uma desnaturalização do desejo por meio da ideia de uma
historicidade do sujeito de desejo. O alcance desse objetivo por meio da prática
filosófica alinha-se, naturalmente, ao propósito dessa própria prática, o de
proporcionar ao sujeito uma apreciação crítica sobre si mesmo que o incite a
transformar a si mesmo.
Contudo, de onde surgiu a ideia de um projeto como esse? Por que uma
História da sexualidade? Qual foi seu mote? Além do simples fato de ter-lhe passado
a ideia pela cabeça, o que motivou Foucault a levar a cabo, trabalhando nele até seus
últimos dias, um projeto tão ambicioso e em relação ao qual se sentiu tantas vezes
esgotado? Ora, em vez de procurarmos respostas nos textos de Foucault, no que
concerne a questões de cunho mais pessoal talvez seja mais produtivo consultar
aqueles que foram próximos a ele. Com efeito, na “carta” Desejo e Prazer6 que Gilles
Deleuze escreveu para Foucault em 1977, o primeiro diz que eles chegaram a
conversar pessoalmente sobre as ideias que tinham a propósito das noções de desejo
e de prazer:

Na última vez em que nos vimos, Michel, com muita gentileza e afeição, disse-
me mais ou menos o seguinte: não posso suportar a palavra desejo; mesmo
que você a empregue de outro modo, não posso impedir-me de pensar ou de
viver que desejo = falta, ou que desejo se diz reprimido. Michel acrescentou:
então, para mim, o que chamo de “prazer” talvez seja o que você denomina
“desejo”.
(Deleuze, Desejo e prazer, 1996, p. 21)

O que para nós está em questão não é se o “prazer” de Foucault e o “desejo”


de Deleuze são homônimos,7 mas sim se esse comentário de Deleuze nos fornece ou
não alguma pista sobre a gênese do projeto da História da sexualidade. Ao crer no

6 Carta aberta publicada em (Deleuze, G.) Le magazine littéraire, n°325, octobre 1994, e reproduzida em Deleuze,
G. Deux régimes de fous, Minuit, 2003.
7 Numa série de notas que François Ewald deveria submeter Foucault após a publicação de A vontade de saber,

Deleuze pergunta: “Será que eu poderia pensar em equivalências do tipo: o que para mim é ‘corpo sem órgãos-
desejos’ corresponde ao que, para Michel são ‘prazeres corporais’?”
8
rigor da transcrição, parece haver nessa passagem qualquer coisa que valha a pena.
Dela podemos reter, em primeiro lugar, que para Foucault o prazer tem primazia em
relação ao desejo. Somos levados a concluir que se o desejo equivale a falta e ao que
é reprimido, devemos conceder a primazia ao prazer e, por conseguinte, em vez de
nos atermos a uma hermenêutica do desejo, voltarmos nossa atenção ao uso dos
prazeres. Pois bem, será que essa ideia — a da primazia do prazer sobre o desejo —
teve alguma participação na gênese do projeto da História da sexualidade?
Em segundo lugar, o comentário de Deleuze parece assinalar certa “afetação”
de Foucault com a noção de desejo. Suas palavras “não posso suportar a palavra
desejo” não só dão o tom da discussão como indicam claramente sua posição crítica.
Com essas palavras e as seguintes ele, ainda que não explicitamente, aponta, de
forma mais clara, simples e quase direta, pois sem pompa, sem retórica, sem
teorizações, o que realmente lhe ocorria em relação ao desejo entendido como falta
ou repressão. Ao desejo assim entendido, o que pretendia Foucault senão neutralizá-
lo? Não exatamente por ser-lhe insuportável essa concepção de desejo (de modo que
mal tolerava a palavra), mas em razão do motivo pelo qual era-lhe insuportável. E por
que lhe era insuportável? Por se tratar de uma concepção naturalizada e, por
conseguinte, normatizadora do sujeito que ofusca a dimensão histórica de seu ser.
Foucault arquitetou, portanto, um plano de combate ao desejo e ao sujeito de desejo.
Nos aproximamos um pouco da gênese do projeto da História da sexualidade,
mas o que dizer da motivação envolvida? A partir do que acabamos de considerar
acerca do entendimento que tinha Foucault do desejo, podemos conceber que o
filósofo visava promover a noção de “uso dos prazeres” em detrimento da noção de
“desejo” como um dado natural, do desejo entendido como falta ou reprimido. Ora,
mas quem, precisamente, concebe o desejo como falta e como algo reprimido? A
referência não poderia ser mais clara. Aqueles que elaboraram e reelaboraram na
modernidade a antiga noção de desejo foram os psicanalistas. Eles elaboraram o
conceito de desejo como falta e como algo reprimido. Eles o concebem, o pensam e
o articulam dessa forma. Ademais, a crítica também abrange, todavia, toda aquela
corrente de pensamento chamada de freudo-marxismo (Reich, Marcuse).
Então, o interesse de Michel Foucault pela psicanálise, pelo menos em sua
vertente freudiana e lacaniana, é coisa antiga, embora nem sempre explícita. A
apreciação que dela faz o filósofo, no entanto, encontra-se em constante

9
deslocamento, de maneira que seus posicionamentos nem sempre são os mesmos.
As considerações críticas de A vontade de saber (1976), todavia, particularmente
tenazes e explícitas, representam, no diálogo com a psicanálise, um momento
decisivo de sua apreciação crítica. Nesse livro (concebido como “livro programa”) o
autor apresenta uma série de hipóteses inéditas concernentes à sexualidade e ao
desejo que vão de encontro à história tradicional da psicanálise. E ainda que
relativamente ao projeto inicial da História da sexualidade mudanças significativas
tenham ocorrido, sua principal tese, a saber, a da historicidade do desejo, permaneceu
a mesma. Em outras palavras, no fundo, é sempre e principalmente do problema da
inscrição discursiva da noção de desejo no Ocidente que essa história da sexualidade
se encarrega.
Quando publicada, A vontade de saber (1976) despertou o interesse do público
e, particularmente, dos psicanalistas. Isso fez Foucault propor um jogo a seus
contemporâneos. Essa é nossa primeira hipótese. Segundo ela: um jogo filosófico,
baseado na premissa da historicidade do desejo, foi destinado especialmente aos
psicanalistas, para quem a noção de desejo era fundamental. Mas a ideia geral é de
que A vontade de saber tanto pode ser abordada sob a perspectiva de um “convite à
filosofia” quanto sob a de um “jogo filosófico”. No primeiro caso, convém interpretá-la
como um convite não ao discurso filosófico, mas sim à prática filosófica. No segundo,
é o fato de sua origem advir de práticas que encerram características de jogo que
permite concebê-la como um jogo filosófico. Diante disso, dois são os objetivos:
contextualizar a concepção de A vontade de saber através de um levantamento da
relação de Foucault com a psicanálise e situar teoricamente o jogo filosófico de
Foucault a partir da revisão de algumas noções filosóficas de jogo.
Contudo, em que consistiu o jogo filosófico proposto por Foucault? Com efeito,
os jogos mais conhecidos são aqueles que se preservam através da repetição, isto é,
sendo recriados e atualizados na memória dos envolvidos. Mas ainda que não se
repita, um jogo pode deixar vestígios de sua existência histórica. Foucault propôs um
jogo filosófico onde cada eventual participante teria que empreender ele mesmo uma
pesquisa histórico-crítica da noção de desejo e, a partir de suas próprias descobertas,
propor uma narrativa a seu respeito. As narrativas oriundas desse jogo deveriam,
obviamente, obedecer às leis gerais da discussão filosófica para concorrerem com as
demais narrativas existentes sobre o assunto. Apostamos, portanto, na possibilidade

10
de apresentar o caráter filosófico do jogo, suas condições, as regras que o constituem,
assim como descrever a situação na qual ele foi efetivamente proposto, com que
palavras e com que intenções. Esse é o objetivo do primeiro capítulo chamado
“Projeto”.
Para a reconstituição de um “jogo filosófico” que ficou de fora da história
necessitamos de, pelo menos, alguns aportes teóricos relativos às concepções gerais
de jogo. Em vista disso, uma revisão filosófica da noção de jogo é o objetivo do
segundo capítulo, “Os jogos”. Sendo assim, seguindo um percurso cronológico, da
Grécia clássica até o fim do século XX, revisamos e mapeamos as noções de jogo.
Entre as numerosas referências sobre o tema, escolhemos duas para apoiar nossas
análises. A primeira dessas referências com a qual decidimos trabalhar mais
diretamente é a obra Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura (1938), de Johan
Huizinga.8 A segunda delas é Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem (1958),
de Roger Caillois,9 que, além de fazer uma apreciação crítica da primeira, fornece uma
categorização para os jogos.
Entretanto, alguém poderia inteligentemente observar que os autores de Homo
ludens e de Os jogos e os homens não partem dos mesmos pressupostos teóricos
que Foucault e, por conseguinte, assumem uma perspectiva totalmente diferente em
relação à história. Huizinga, por exemplo, apesar de desenvolver uma reflexão
histórico-filosófica original em torno dos jogos, não se distancia suficientemente da
tradicional concepção de história (cheia de essencialismos) que Foucault recusa. No
entanto, na falta de uma noção de jogo mais adequada, nada nos impede de tomar
de empréstimo a noção de jogo de Huizinga e aplicá-la a certos momentos da trajetória
filosófica de Foucault. Isso significa nos servir do pensamento de Huizinga como
costumamos nos servir do pensamento de Foucault, isto é, pegando de empréstimo
suas noções como se fossem “ferramentas” para pensar. Isso talvez baste para
assinalar o caráter de jogo de determinados atos filosóficos de Foucault. Portanto, não
se trata de estabelecer uma ponte entre os autores, entre o pensamento de Huizinga
e o de Foucault, mas de pegar uma categoria conceitual aqui e aplicar ali com o
propósito de tornar visível o que até então não está. Destacamos aqui o caso de

8 Huizinga, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 8.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2018.
9 Caillois, R. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 2001.
11
Huizinga devido à sua formação de historiador e sua proximidade com a concepção
tradicional de história, mas o caso de Caillois é semelhante. 10
Enfim, concebemos como “jogo” qualquer atividade que comporte as
características formais de jogo segundo esses autores, mesmo que essa atividade
não esteja entre aquelas que cotidianamente encaramos como jogo, tais como os
jogos eletrônicos (games), de tabuleiro (xadrez, damas, gamão), de cartas (poker,
canastra, buraco) e as brincadeiras de rua (esconde-esconde, tica-tica). Portanto,
dado que a concepção de jogo com a qual trabalhamos corresponde às características
formais de jogo, ela não é de natureza meramente aproximativa e metafórica. Todavia,
consideramos essa questão uma sutileza teórica cuja discordância a seu respeito é
incapaz de causar prejuízo real.
O terceiro capítulo, denominado “O jogo de Foucault”, se vale tanto dos
fundamentos de Homo Ludens para interpretá-lo quanto da classificação proveniente
de Os jogos e os homens para situá-lo com maior precisão entre outros tipos de jogos.
Nessa ocasião, consideramos que a última obra de Foucault, a História da sexualidade
(1976, 1984a, 1984b, 2018), assumindo uma perspectiva mais crítica, fornece
subsídios para uma filosofia crítica da psicanálise. O primeiro livro, A vontade de saber
(1976) — cuja originalidade está em parte na possibilidade de encará-lo como um
“convite à filosofia” ou como um “jogo filosófico” —, apresenta um conjunto de ensaios
críticos a conceitos fundadores da psicanálise. Os três livros seguintes, por sua vez,
embora não apresentem uma crítica explícita da psicanálise, dela retomam noções
essenciais como “sexualidade” e “desejo”. Neles o autor trata, por exemplo, do
surgimento do tema da “verdade do desejo” para as discursividades e práticas
ocidentais. Uma vez que o advento da psicanálise como dispositivo de constituição
ética do sujeito sustenta-se na noção moderna de “desejo”, a prática da confissão
psicanalítica persegue a questão da “verdade do desejo”.
Ao dar ênfase à noção de jogo, somos levados a colocar a questão: podemos
caracterizar a filosofia de Michel Foucault como jogo? Considerando seu pensamento
como um todo, a resposta é negativa. A filosofia de Foucault não é um simples jogo
filosófico. Em contrapartida, considerando exclusivamente o aspecto lúdico presente
na concepção e na elaboração de A vontade de saber, a resposta talvez seja positiva.

10Embora, como veremos adiante, as teses de Homo ludens e de Os jogos e os homens se choquem em um ponto
fundamental, Caillois retoma e incrementa a noção de jogo de Huizinga.
12
Tanto na escrita desse livro quanto em seus pronunciamentos em relação a ele, é
possível pensar num “filosofar-jogar”.
No quarto capítulo, a “Ética da verdade”, abordamos a problemática do dizer-
verdadeiro no âmbito da constituição ética do sujeito. É ao abordar a problemática do
“dizer-verdadeiro” nos seus últimos cursos — A hermenêutica do sujeito (1982), O
governo de si e dos outros (1983) e A coragem da verdade (1984) — e situá-lo no
mesmo âmbito da constituição ética, Foucault passa da “crítica à verdade do desejo”
à “apreciação da coragem da verdade” como constitutiva de um éthos. Enquanto que
a genealogia do sujeito de desejo empreendida na História da sexualidade (1976-
2018) deu lugar a uma crítica sistemática da verdade do desejo, os cursos ministrados
em 1982, 1983 e 1984 no Collège de France deram ensejo a um exame cada vez mais
tenaz da noção de “parrésia” no pensamento grego antigo. Ainda que importantes
aspectos da parrésia tenham sido abordados nos cursos anteriores, é decididamente
no último deles, distintamente denominado A coragem da verdade,11 que o jogo
parresiástico aparece com todo seu brilho, como jogo de veridicção entre dois sujeitos
e lugar privilegiado de constituição ética.
No que diz respeito a esses desenvolvimentos tardios do pensamento
foucaultiano, temos dois objetivos. Primeiro: assinalar a passagem que vai da “crítica
à verdade do desejo” à “apreciação da coragem da verdade” como constitutiva de uma
ética (éthos). Isso feito, avançamos em direção ao último dos nossos objetivos que
consiste em articular o “modo de vida filosófico” com a “prática da parrésia ética”.
Consideramos que o modo de vida filosófico e a prática da parrésia ética devem estar
acoplados um ao outro de maneira que não se dissocia facilmente, mas representam
ao mesmo tempo um modo de ser e de agir no mundo.
Neste momento, erguem-se algumas questões. Qual sujeito é visado pela
prática da parrésia? A qual sujeito se dirige preferencialmente o parresiasta? Ou
antes, quem é esse sujeito cujo éthos interessa ao parresiasta? Seria o sujeito em
geral? Ou seria um tipo particular de sujeito? Seria o ditador, o presidente, enfim, os
governantes em geral? Vistas as inúmeras formas assumidas pela parrésia ao longo
da história, não devemos admitir que a prática da parrésia é largamente adaptável e,
por conseguinte, passível de adequação ao mundo contemporâneo? Vistas as
funções historicamente desempenhadas pela parrésia, não é razoável presumir que,

11 Foucault, M. A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2014.
13
uma vez aclimatada a certos cenários atuais, essa prática deve ser reconhecida como
um dispositivo de constituição ética do sujeito? Além disto, não é provável que o jogo
parresiástico, por manter uma relação constitutiva com a verdade, exerceria uma
influência decisiva na formação ética do sujeito que opta pelo modo de vida
intelectual?
Embora não tenhamos a pretensão de responder à todas essas questões,
podemos começar dizendo que, em vez de se dirigir prioritariamente aos governantes,
a prática da parrésia deve se ater ao tratamento do filósofo, de sua alma, de seu éthos.
Primeiro porque sabemos das dificuldades envolvidas na pretensa “educação
existencial” de um governante. Os governantes são costumeiramente cercados por
conselheiros, colegas de partido ou funcionários que lhe assessoram, mas que não
estão exatamente preocupados com suas almas. Por outro lado, parece que quanto
mais alto é o cargo do governante e suas respectivas responsabilidades, mais atolado
fica com os afazeres mundanos. A justificativa é óbvia, não sobra tempo para si. Os
outros necessitam dele ou disso ele se convence.
O verdadeiro filósofo, por sua vez, é um tipo de sujeito muito específico cuja
existência está atravessada de cabo a rabo pela questão da verdade. Como não há
uma ruptura entre seu ofício e suas vivências de cunho mais pessoal, quando por
meio de sua prática filosófica — isto é, de certo modo de refletir, de falar e de ouvir —
o sujeito é atingido pela verdade, ele tem dela uma experiência que não é puramente
racional, estritamente intelectual ou mental. A experiência filosófica também é uma
experiência afetiva; logo, capaz de mexer com as emoções, reordenar os sentimentos
e afetar o corpo. Ou não é um fato que nossos corpos se movem em conformidade
com as verdades em nós inculcadas? Assim, o filósofo que ocupa-se consigo mesmo,
que se leva a sério ao ponto de trabalhar sua alma com afinco, que avança na
aquisição de virtudes por consequência de um cuidado de si, que se dispõe a repensar
não só toda sua maneira de ser, de pensar e de agir, mas também a — se necessário
— questionar e reinterpretar a existência, experimenta uma série de modificações em
si que pode eventualmente conduzi-lo a uma transformação radical de si mesmo e,
por conseguinte, a uma transvaloração da vida. Portanto, a quem, senão ao
verdadeiro filósofo, deve-se preferencialmente se dirigir a parrésia?
Pois bem, depreende-se dos últimos anos de ensino de Michel Foucault que o
filósofo em formação necessita ser ao mesmo tempo cuidado e incitado a cuidar de si

14
(epimélesthai seautoû), necessita ser inquirido a continuar avançando em direção ao
domínio de si mesmo (enkráteia). Em razão disso, é preciso que seja interpelado pela
verdade, que confesse a verdade em caso de culpa e, de modo geral, que seja capaz
de falar francamente (parrhésia). Ademais, importa também saber escutar a verdade
ou ao menos engajar-se no exercício da escuta da verdade.
Ao seguir essa e que articula a verdade (constituída por práticas, um tipo
específico de franqueza e uma maneira particular de escutar) com a constituição ética
do sujeito — perspectiva essa na qual a figura do filósofo parece ocupar um lugar
central ou um ponto de interseção —, somos levados a conceber a prática da parrésia
como “uma prática para não todos”. Bem, não esqueçamos que desde a Antiguidade
o ócio, a condição para que o sujeito possa se ocupar com ele mesmo, é uma condição
que está mais ao alcance da elite do que dos demais. Vivemos em outros tempos, é
verdade. O prestígio da figura do filósofo não é o mesmo, sua participação nas
decisões da cidade é oblíqua, parte de sua prática não passa de uma prática
discursiva que não implica o sujeito … Contudo, o filósofo da atualidade não
representa a elite no sentido tradicional do termo. Ele fez uma escolha pela filosofia.
Abriu mão de uma série de coisas por isso. Decidiu reservar um tempo para uma
prática que, de modo geral, não é um meio para algo, mas um fim em si mesma. E é
em parte por ter tomado essa decisão que lhe é concedido o privilégio de manter uma
relação desinteressada e autêntica com a verdade.
Entretanto, é claro que não só aos filósofos deve se dirigir a prática da parrésia.
Mas uma vez que a pertinência do jogo parresiástico como um todo ou da simples
prática da parrésia — que em sua simplicidade de dizer-a-verdade, francamente e de
tal e tal forma constitui o fundamento do jogo parresiástico — é medida pela relação
que determinado sujeito mantém com a verdade, a quem a parrésia deve
preferencialmente se dirigir?
De fato, as relações que mantemos com a verdade são de uma diversidade
praticamente insondável. Distribuir os sujeitos entre tipos e graus de proximidade com
a verdade soa-nos grosseiro e injusto. Todavia, sabemos de lugares em nossa
sociedade em que a verdade nem sempre é bem-vinda; de lugares em que sua
manifestação além de perigosa é infrutífera. Há também em nossa sociedade aqueles
lugares em que a verdade não pode se apresentar senão de maneira dissimulada; ou
seja, revestida por algum grau de mentira que oculta as intenções de quem a exprime

15
para que não seja rechaçada de cara. Mas há também, não obstante, muitos outros
lugares em que a verdade parece ser mais cedo ou mais tarde bem acolhida, seja ela
qual for. Alguns desses lugares são ocupados por aqueles denominados por Foucault
de “intelectuais específicos”.
Um intelectual específico tem formação num campo de estudos e seu saber é
especializado.12 Ele é, por assim dizer, efeito do nosso tempo, produto de nossa
sociedade e fruto a um só tempo dos projetos bem-sucedidos e malsucedidos da
modernidade. A figura do intelectual específico caracteriza-se principalmente pela
capacidade de perceber uma problemática da atualidade, analisá-la e, quiçá, apontar
caminhos para possíveis soluções a partir de seu respectivo campo de estudo e
especificidade de seu saber. Gostaríamos, no entanto, de ressaltar duas outras
características dessa figura. Em primeiro lugar, o intelectual específico é
comprometido com a verdade, sobretudo, com a verdade que está por vir. Em
segundo lugar, ele conduz sua prática com rigor. E tanto o compromisso com a
verdade como o rigor com o qual busca a verdade parecem decorrer de um imperativo
moral inerente à própria prática. Assim sendo, o intelectual específico, assim como o
filósofo, precisa trabalhar a si mesmo para exercer seu ofício, pois dele também é
exigida uma moralidade para pôr em prática sua expertise. Se entendemos
corretamente, é isso que permite ao intelectual específico — comparativamente a
outros — o cultivo de uma relação mais autêntica com a verdade.
Em vista disso, consideramos que a prática da parrésia pode contribuir
substancialmente para a formação do intelectual específico. Isto é, trata-se de uma
hipótese segundo a qual o dispositivo filosófico-parresiástico, por manter uma relação
constitutiva com a verdade, pode exercer uma influência positiva na formação ética do
intelectual, do sujeito que opta pelo modo de vida intelectual.

12A figura do intelectual específico é frequentemente contraposta a outras como a do gênio e a do filósofo universal
que, cada um a seu modo, percorriam vários campos de conhecimento.
16
II. Algo insiste na vida anímica

Algo de infantil, inútil e eventualmente dispendioso não cessa de insistir na vida


anímica do sujeito. Como um impulso oscilante, mas constante, lateja sem finalidade
ou propósito senão o desfrute de si. Como um infante insensato, alheio à razão,
implica o ser, eleva-o e atira-o ao chão. Como que insatisfeito, sem limites, sob a
quietude física do corpo subsiste, e no íntimo da alma ao movimento impele.
Apesar de ser impossível capturá-lo, ele está sempre próximo, muito próximo,
por aqui, por acolá, nas diferentes faces adjacentes ao ser. Até nas elucubrações do
espírito aparece, deixa sua marca. Seja por ocasião de propiciar um recreio para a
alma (que faz do labor divertimento), seja como revés de sua função diurna (quando
é coisa pública), fato é que tira o sono de quem já passou da hora.
Durante o dia, é bem-vindo, logo tem passagem; mas à noite, revestido de
outros impulsos se mistura. Se desmedido e mal acompanhado, desapruma, participa
do logro, do ludibrioso, da zombaria… Enfim, de todo tipo de lazer de má fama. Mas
como tudo tem sua hora, em tempo oportuno volta a ligar um ao outro, formar
parcerias, incitar contendas e, sem o saber, ensina a jogar. Sim, há algo de ingênuo
e astuto nessa coisa que, sem um saber, não obstante dá ensejo a uma série de
coisas.
Pois bem, como chamá-la? Trata-se, com efeito, de alguma coisa respeitante
à vida humana, constituinte da vida anímica e participativa de tantas coisas mais.
Contudo, ainda não encontramos para ela qualquer denominação insuspeita. O que
já sabemos a seu respeito? Primeiramente: que se manifesta como um impulso auto-
finalizado; que é alheio à razão; que é um elemento constituinte do ser. Segundo:
sabemo-lo insaciável, que impele o corpo e a alma ao movimento. Terceiro:
encontramo-lo por toda parte, inclusive no pensamento. Ele se estende, por meio dos
mais diversos avatares, dos platôs diurnos até umbrais da atividade reflexiva. Quarto:
sem compromisso com a utilidade, desempenha algum papel na socialização dos
sujeitos e na constituição do saber.
Então, como chamar a isso, a esse elemento impulsivo que suscita tantos ecos
em nossa tradição, inclusive dos últimos séculos? Certamente não de “vontade”, pois:

17
vontade de quê? Temos pelo menos três razões, relativamente próximas, para evitar
esse termo: Schopenhauer, Nietzsche e Foucault. 13
Aos desavisados que poderiam ver nisso de que falamos algum traço
schopenhaueriano: com efeito, tal como a Vontade em Schopenhauer, esse impulso
insiste cega e insaciavelmente. Mas a Vontade é una, é como que o próprio substrato
constituinte da existência. É uma força cuja efetuação está aquém ou além dos
sentidos. Já esse elemento impulsivo, por seu turno, é coisa mais humana, não possui
nenhuma amplitude metafísica nem se encontra além dos sentidos. Embora
frequentemente dissimulado nos objetos, esse elemento impulsivo e de teor infantil
não está de modo algum fora da dimensão sensível, mas nela imiscuído. É mesmo,
esse elemento, uma força mobilizadora tal como a Vontade e, no que se refere ao que
se pode dele presumir, também um substrato constituinte de coisas. Entretanto,
apesar de certo eco, essas noções não são equivalentes nem apresentam claro
parentesco entre elas. Ao que parece, cada filósofo tem sua ideia de força, pulsão,
vontade...
Em contrapartida — segundo exemplo para fins de comparação —, não teria
esse elemento impulsivo de teor infantil alguma relação com a Vontade de potência
nietzscheana? Não haveria algum nível de correspondência entre essas noções?
Importa lembrar que para Nietzsche a vontade não está fora do mundo, mas em toda
ordem de relação; logo, a vontade é múltipla e se mostra no real. Ou seja, a vida como
vontade de potência está presente em tudo. E o que busca? Expandir-se, superar-se,
juntar-se a outras e, tornando-se maior, também tornar-se algo diferente. Por isso,
somente um homem doente se conforma com a sobrevivência. Preservar-se e
adaptar-se não basta. Para viver efetivamente é necessário criar, atribuir sentido e
valores que correspondam às próprias condições da existência. O impulso do qual
falamos, por sua vez, não possui originalmente qualquer finalidade senão a da fruição
de si mesmo. Ele pode se articular com a vontade de potência e nela ter uma
participação (por exemplo, em sua expansão), adquirir uma função ou finalidade, mas
apenas provisória.
Conquanto poética e interessante, o fato de aparentemente nada escapar a
vontade de potência nos impede de aceitá-la em uma acepção próxima à que estamos

13 Relativamente próximas porque, numa genealogia do conceito de “vontade”, seria possível estabelecer uma
relação entre Schopenhauer e Nietzsche e, após relevantes modificações, entre Nietzsche e Foucault.
18
buscando atribuir a esse elemento para o qual ainda não encontramos um designativo
justo, mas que podemos chamar (ao menos provisoriamente) de “impulso lúdico”. Pois
bem, e o que podemos entender, nesse momento de nossa reflexão, por “impulso
lúdico”? Tratar-se-ia de entender, por “impulso”, uma pulsão, em sentido freudiano?
Por impulso lúdico, uma pulsão capaz de promover uma dinâmica lúdica? Seria o
impulso lúdico uma pulsão parcial caracterizada por traços infantis? Seja como for,
trata-se sempre de um impulso caprichoso e renitente, quando não indômito.
Ora, essa concepção segundo a qual o impulso lúdico seria uma pulsão parcial
também não estaria escusada de uma articulação com a vontade de potência, pois de
modo algum foge ao escopo desta. No entanto, relativamente à vontade de potência,
o impulso lúdico não seria mais do que uma ínfima quota de energia. Desse modo,
temos razões mais que suficientes para evitar o termo “vontade”.
Em Foucault encontramos vários empregos do termo “vontade”. O uso técnico,
todavia, aparece principalmente sob duas formas, como Vontade de verdade e como
Vontade de saber. A primeira14 dessas noções, originalmente nietzschiana e retomada
pelo autor, foi anunciada em A ordem do discurso (1971)15 como o mais importante
dos procedimentos externos de controle do discurso que rege nossa Vontade de saber
desde o século VI a.C.
Para fins de comparação da noção foucaultiana de Vontade de verdade com a
de impulso lúdico que começamos a tratar, consideremos então o seguinte trecho:

[…] na vontade de verdade, na vontade de dizê-la, o que está em jogo, neste


discurso verdadeiro, se não o desejo e o poder? O discurso verdadeiro […]
não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de
verdade, que nos foi imposta há muito tempo, é tal que a verdade que ela
quer não pode não a mascarar.
(Foucault, 2016, p.20)

Conforme essa passagem, o que estaria em jogo na vontade de verdade seria


o desejo de dizê-la e o poder que isso envolve. E no impulso lúdico, por seu turno, o
que estaria em jogo? Haveria algo como um desejo específico e uma função também
específica em relação ao poder? Embora possamos enxergar traços de desejo e de
poder nas dinâmicas concretas às quais o impulso lúdico dá ensejo, estes não
parecem constituí-lo fundamentalmente. E mais, até o momento também não

14 A noção de “Vontade de verdade” foi consideravelmente retrabalhada por Foucault em suas Lições sobre a
Vontade de saber (1970-1971).
15 Aula inaugural no Collège de France em dezembro de 1970 e publicada em 1971. Foucault, M. A Ordem do

Discurso. São Paulo. Ed. Loyola, 1996.


19
verificamos uma relação importante desse impulso com a questão do saber e da
verdade. Desse modo, ao menos por ora e até que tenhamos mais informações,
convém mantermos uma distância razoável entre essas noções.
Johan Huizinga, autor de Homo Ludens, é categórico ao afirmar que “não se
explica nada chamando ‘instinto’ ao princípio ativo que constitui a essência do jogo;
chamar-lhe ‘espírito’ ou ‘vontade’ seria dizer demasiado” ([1938] 2018, p.4). Ao nos
deixar influenciar por Huizinga, descartaremos, portanto, o uso dos termos “vontade”,
“instinto”, “espírito” e, talvez, até mesmo “impulso” por ser-lhes de algum modo
próximo. “Seja qual for a maneira como o considerem, o simples fato de o jogo
encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em sua própria
essência”.

20
III. O impulso lúdico

Finalmente, o impulso lúdico, aquilo que se manifesta, parece brotar de um


elemento pueril, um elemento que, permanecendo parcialmente alheio ao tempo e ao
espaço, conserva-se de certo modo primitivo, ligado ao não-saber e, paradoxalmente,
ao desamparo fundamental. Suporta-o sem saber. Por isso dizemos que há em todo
sujeito qualquer coisa de imaturo, de um infantil elementar que, em certo sentido, não
cresce jamais. Quer dizer, não cresce e não morre. Pois isso é mais antigo e primitivo
que ele, e dele todas as formas efetivas já conheceu. Dos anúncios da morte do sujeito
(não uma, mas repetidas vezes, e tanto quanto se quis), toda vez riu, gargalhou, pois
os proclamadores do desaparecimento só enxergaram um — o mortal, ou suas formas
históricas, igualmente passíveis de decomposição. Ignoraram o eternamente lúdico.
Sob uma variedade de formas e intensidades, veladas ou manifestas, o
substrato infantil permeia todos os âmbitos da vida humana, da economia dos
costumes e apetites do corpo às reviravoltas da imaginação. De ocorrência fugaz ou
duradoura, precipitada ou morosa, advém como um impulso multiforme. E não é como
numa espécie de impulso que a vida acontece? E embora os traços de sua presença
sejam mais expressivos nas criações originais do espírito, ele não deixa de ter um
papel na constituição até dos mais sérios trabalhos. E assim como o ato criativo, na
essência de produzir sentido, é gratuito, consonante as necessidades básicas do
sujeito, mas, ao mesmo tempo, de um ponto de vista econômico, de agenciamento
custoso e condicionado às circunstâncias, o produto final, por sua vez, tanto pode se
conservar inútil, alheio às requisições do mundo, como pode ser útil, de uso prático,
um instrumento para a execução de diversas tarefas, algumas imprescindíveis para a
conservação de nosso modo de vida.
Seria possível colocar a questão relativamente a algo criado, se quiséssemos,
em termos de ganho e gasto, de proveito e despesa, de modo que, se efetivo para o
bem, seria lucrativo e proveitoso, se para o mal, prejudicial e dispendioso. Entretanto,
que ponto de vista soberano, meta-histórico, nos permitiria suplantar a miopia
respectiva a cada período e validar essa diferenciação? As análises retrospectivas
são mais confiáveis do que as projetivas? Ou seriam estas últimas, ao invés das
primeiras, as mais confiáveis? Partindo do pressuposto de que as coisas úteis e

21
razoáveis não o são em si, mas o são em relação a outras coisas e estado de coisas,
como estar seguro de que o que temos em mais alta conta hoje continue nos servindo
amanhã, que as ideias que nos são caras hoje não se mostrem, numa escala de
séculos, nocivas? Não está tudo sujeito às vicissitudes do tempo, e não são
imponderáveis suas mais longínquas implicações?
Entretanto, embora pareça que todo enquadramento de tipo utilitarista seja
atravessado por esse problema — de definir e fundamentar o “bem-estar” em geral e
o seu contrário —, na vida real, ao considerar relações humanas, ações, eventos e
todo tipo de coisa que possa decorrer de escolhas, sequer passa pela cabeça do
humano comum fazer tal distinção, fazer cálculos, considerar variáveis
incomensuráveis e, tampouco, dar-lhe fundamentação metafísica. Em contrapartida,
mesmo assim parecemos propensos a admitir as consequências como um dos fatores
mais importantes entre aqueles colocados em jogo numa escolha, a tomá-las como
critério de avaliação e, com isso, a valorizar posturas pragmáticas.
Quanto à confecção de objetos imateriais, isto é, de ideias, dá-se o mesmo.
Qualquer que seja o estatuto reivindicado para uma ideia, do científico ao ficcional, de
saber teórico a empírico, exato a conjectural, há toda uma gradação relativa à sua
utilidade potencial no mundo partilhado. E essa utilidade, tomada no sentido amplo de
efetividade, não se opõe termo a termo ao elemento pueril ou ao impulso lúdico. A
despeito do aparente antagonismo, não há oposição radical, desse ponto de vista,
entre o pragmático e o idealista, entre o intelectual específico e o livre pensador. Todos
eles, participando de diferentes jogos do espírito, com diferentes riscos e graus de
ludicidade, fabricam o inteligível da obra imaterial do mundo.
E esse cenário no qual se inscreve a obra imaterial não é menos participativo
da experiência vital dos seres humanos do que aquele no qual se inscreve o material.
As ideias com as quais vivemos e a partir das quais nos são viabilizados certos modos
de nos relacionarmos com os outros e com nós mesmos não são menos constituintes
de nossa experiência do que as condições materiais de acesso à informação e
assistência. Até mesmo os serviços não consubstanciados em disposições materiais
específicas e processos de trabalho que não implicam um produto ou resultam numa
mercadoria, são tão constitutivos de nossa maneira de viver quanto nossos meios de
transporte ou tipo de alimentação. Isto é, o que pensamos e como pensamos é tão
efetivamente vivenciado quanto o modelo do carro que usamos para ir trabalhar ou o

22
aumento do preço do feijão nesta semana, pois, a bem da verdade, enquanto
elementos de um mesmo mundo e da vida concreta de um indivíduo, essas coisas
não estão completamente separadas.
Partindo dessa ideia de que não há distinção real, mas apenas nominal, entre
o útil e o inútil, e considerando a complexidade da condição adulta cuja constituição,
sob risco de malformação, não elide o infantil, mas acolhe-o, evocamos a realidade
do jogo como paradigma possível para se pensar o funcionamento do mundo. Ainda
que a formalização matemática apresenta dificuldades consideráveis e, quiçá,
intransponíveis, os problemas filosóficos podem ser lidos como jogos, assim como,
particularmente, a organização, a forma e a disposição de um ato filosófico podem ser
balizadas por princípios equivalentes a regras de um jogo.

23
IV. Metodologia

A transformação da reflexão espontânea em pensamento filosófico passou por


quatro etapas básicas, a saber, a da leitura, a da explicação, o do comentário e a da
dissertação. Na primeira etapa, podemos distinguir dois tipos de leitura do material
bibliográfico. Num primeiro momento, fizemos uma “leitura de reconhecimento” — ou
“leitura fria”, como dizem no teatro —, isto é, uma leitura que busca antes de tudo
reconhecer os tópicos mais relevantes do material com o qual trabalha. Trata-se de
uma leitura rápida, de caráter exploratório; uma leitura que busca situar o investigador
no panorama do campo de investigação; uma leitura que, enfim, busca familiarizar o
investigador com uma miríade de temas relacionados à sua pesquisa. Para nos
familiarizar com um tema precisamos sobretudo reconhecer, mesmo que em linhas
gerais, as principais questões formuladas e os problemas mais insistentemente
colocados a seu respeito. Ademais, é recomendável, mesmo para uma leitura de
reconhecimento, que ela contemple tanto as eventuais tentativas de resposta às
questões como às eventuais soluções propostas aos problemas. Foi dessa maneira
que, a partir de uma leitura de reconhecimento de um vasto material bibliográfico,
selecionamos os textos mais relevantes para a abordagem que fazemos do
pensamento tardio de Michel Foucault.

Então, a seguir, num segundo momento da primeira etapa, fizemos o que


chamamos de “leitura profunda” do material bibliográfico selecionado a partir da leitura
de reconhecimento. Trata-se, nesse momento, de empreender uma leitura mais
cuidadosa, detida, pormenorizada, minuciosa e explicativa de um material que, a
propósito, já se conhece em linhas gerais. Ou seja, tratar-se-á, pra ser mais preciso,
de uma releitura de teor examinatório, analítico, que visa, além de uma melhor
apropriação das questões e dos problemas, identificar nos textos a “intenção do autor”
e os pontos que o investigador poderá eventualmente trabalhar para atingir seus
objetivos de pesquisa.

É da leitura que, naturalmente, passa-se à segunda etapa, a da explicação.


Explicar consiste na enunciação do que se pode entender a partir do que há num texto.
Na explicação, discorre-se detalhadamente sobre alguma coisa ou acontecimento; dá-
se satisfação; esclarece-se; justifica-se; torna-se algo inteligível. Entretanto, cabe
frisar que toda explicação é oriunda de uma interpretação; que ao explicar o

24
investigador parte de uma perspectiva interpretativa previamente admitida. Ou seja,
ao tentar explicar uma ideia que seja de um autor já estamos, necessariamente,
interpretando-o.

A etapa seguinte, a terceira, é a do comentário. Nesta etapa interroga-se o que


o autor disse, isto é, busca-se, além de identificar a “intenção do autor”, ensaiar novas
possibilidades interpretativas do texto e estabelecer um diálogo com ele. Uma vez que
o comentário subentende uma compreensão mais avançada, recomenda-se, via de
regra, fundamentá-lo a todo instante. Mas, por outro lado, no caso do comentário
ensaístico, admite-se certa independência metodológica e liberdade interpretativa,
assim como desenvolvimentos de cunho mais autoral. É na etapa do comentário que
se forma a matéria prima autoral a ser trabalhada na etapa propriamente dissertativa.

Enfim, a quarta e última etapa é a da dissertação. A dissertação filosófica é, por


assim dizer, um dos exercícios filosóficos por excelência, sobretudo porque ela
envolve uma dinâmica com as etapas anteriores. Embora a etapa da dissertação seja
logicamente a última, na prática a atividade dissertativa pode ser intercalada com
outras atividades próprias de outras etapas. A apresentação de ideias de forma
sequenciada e encadeada num texto filosófico pode passar a impressão errônea de
que a reflexão filosófica que lhe deu origem seguiu, necessariamente, um trajeto
linear. A verdade é que a reflexão filosófica costuma ser, na maioria das ocasiões e
antes de ganhar sua forma final no texto concluído, muito rebuscada. A reflexão
filosófica tende, por sua própria natureza, a insistir nos pontos mais problemáticos das
análises empreendidas sobre os objetos e a retomar os pontos inquietantes, obscuros
ou frágeis do discurso estabelecido sobre eles. Assim, é natural que ao longo do
trabalho dissertativo o autor se sinta obrigado, por sua própria atividade reflexiva, a
retomar certas questões e a reavaliar certos problemas do tema abordado, assim
como a revisar suas explicações e comentários antes que seu texto atinja sua forma
final. Ou seja, embora a prioridade desse momento seja a produção textual, uma vez
que não se deixa de pensar porque está escrevendo, é preciso conciliar a atividade
dissertativa às reivindicações de uma reflexão sempre atual.

Quanto ao gênero do trabalho, ele assume a forma e os riscos de um ensaio


filosófico. Com esse gênero textual, busca-se defender uma posição, ideia ou
concepção sobre um determinado problema filosófico por meio de argumentos. Uma

25
vez que a melhor maneira de formular um problema é fazer uma pergunta, o objetivo
principal de um ensaio filosófico é responder a uma indagação e defender essa
resposta, oferecendo argumentos condizentes e refutando as objeções.
Esse ensaio filosófico tem como principal objetivo discutir a problematização do
desejo na filosofia de Michel Foucault expondo as ideias do ponto de visto do autor
com base em pesquisa referencial. Buscamos originalidade no enfoque sem, contudo,
a pretensão de explorar o tema de forma exaustiva. Nossa tese é de que Michel
Foucault, partindo da ideia de um desejo desnaturalizado, isto é, da premissa teórica
da historicidade do desejo, propôs um jogo filosófico aos seus contemporâneos (em
especial aos psicanalistas e teóricos de orientação freudiana, freudo-marxista e
lacaniana, freudo-lacaniana etc., para quem o conceito de desejo é caro).
Enfim, como o tema da historicidade do desejo é controverso, pouco usual e
tem alto grau de relevância para a filosofia e as ciências humanas, pretendemos
explorá-lo a partir de uma revisão bibliográfica de materiais diversos, tais como livros,
cursos, conferências e entrevistas. Ademais, julgamos que um exame do material da
década de 70 e 80 fornece as evidências de que precisamos para corroborar nossa
tese.
Se entendemos por metodologia a explicação minuciosa de toda ação
desenvolvida ao longo do trabalho de pesquisa, admitimos que a natureza das
pesquisas em filosofia é qualitativa, pois há um esforço para rastrear, analisar e
contextualizar os pensamentos, valores, suposições e informações a serem obtidas
nos textos do autor e de seus comentadores.
Como o ensaio é uma forma de audição do pensamento, ele se serve do
ensaísta para existir. Fazer um ensaio é lidar com a ameaça real, inevitável, insanável,
da aporia. O ensaísta tem de saber viver com isso, e ser honesto, reconhecê-la,
quando acontece. Por isso o ensaio transfigura o ensaísta. “Escrever o ensaio não é
aplicar tecnicamente um instrumento hermenêutico a um objeto vítima de corte
epistemológico”, disse alguém. Talvez o autor possa sobreviver ao ensaio. Talvez não
possa. Decerto não pode. Se sobreviver, sobreviverá outro. “O ensaio transfigura o
ensaísta”, disse outro alguém.

Consideramos que o interesse de Michel Foucault pela psicanálise, embora


nem sempre explícito, foi profundo e duradouro. Profundo demais, talvez, para fazer
dele um simples partidário; e duradouro o suficiente para, paulatinamente, nele

26
engendrar diferentes perspectivas em relação a ela. Contudo, não nos interessa aqui
o exame de todas elas. Partirmos de um levantamento geral da relação de Foucault
com a psicanálise, mas nosso foco é a apreciação crítica que o filósofo faz da
psicanálise ou de seus pressupostos a partir de meados dos anos 70 até 1984.

Ainda há pouco, na primeira seção desta introdução, fizemos umas trinta


perguntas acerca do pensamento tardio de Foucault. A bem da verdade, as fizemos
mais com o intuito de assinalar a existência de muitos pontos de partida para possíveis
pesquisas do que para outra coisa, pois responder a cada uma delas não parece algo
exequível nem apropriado nesta ocasião. Dito isso, devemos, doravante, dar enfoque
as questões imprescindíveis para esta pesquisa.

Retomemos agora as principais questões formuladas na primeira seção. Será


que a ideia da primazia do prazer sobre o desejo teve alguma participação na gênese
do projeto da História da sexualidade? A expressão aphrodisia, isto é, “atos de
Afrodite”, designa em grego antigo atos e gestos de cunho sexual, também chamado
por Foucault de “uso dos prazeres”. A análise que Foucault faz dessa expressão
revela que na subjetividade antiga o desejo não era reconhecido como um objeto de
conhecimento ou objeto para o sujeito de conhecimento, pois não era concebido como
uma coisa isolada. Pelo contrário, na experiência antiga dos afrodisia o desejo
encontra-se associado ao prazer e ao movimento de maneira a formar um conjunto
unitário.

Por que Foucault recusa a concepção de desejo como falta ou como algo
reprimido? Ele recusa essa concepção do desejo por se tratar de uma concepção
naturalizada e, por conseguinte, normatizadora do sujeito que ofusca a dimensão
histórica de seu ser. Foucault arquitetou, portanto, um plano de combate ao desejo e
ao sujeito de desejo.

Com o intuito de combater a noção moderna e naturalizada, Foucault propôs


um jogo a seus contemporâneos. Por que do jogo e em que consistia? Ora, o
pensamento tardio de Foucault abre espaço para pensarmos o exercício da liberdade
e formas de resistência em meio as relações de poder. Jogo subentende liberdade e
decisão de jogar. A proposta de um jogo filosófico em torno da historicidade do desejo
talvez seja uma ótima estratégia para enredar o sujeito numa atividade que o leve a
considerar a si mesmo como um ser histórico passível de transformação e de

27
empreender uma elaboração de si. Por isso Foucault convidava os outros a fazerem
eles mesmos uma genealogia de si.

Consideramos que tanto a “psicanálise moderna” quanto o “jogo parresiástico”


antigo se encontram entre os dispositivos de constituição ética do sujeito merecedores
de uma apreciação crítica. Foucault a iniciou e cabe a nós levá-la adiante ou não. O
que esses dispositivos tem em comum? Ambos visam a elaboração do éthos do
sujeito. O que esses dispositivos tem de diferente? Muita coisa. Primeiro: enquanto a
prática psicanalítica foi monetizada, o jogo parresiástico permaneceu sendo uma
prática voluntária de uma relação de mestria. Em segundo lugar: enquanto a
psicanálise se apoia ética e tecnicamente na moderna noção de desejo, o jogo
parresiástico se apoia na antiga prática da parrésia, na coragem da verdade, no dizer-
verdadeiro, na autoveridicção e na escuta receptiva da verdade.

Podemos então, a partir das análises de Foucault, fazer e refazer esse percurso
crítico do jogo parresiástico à psicanálise e da psicanálise ao jogo parresiástico, pois
enquanto no dispositivo da psicanálise o que está em questão é a “verdade do desejo”,
no dispositivo do jogo parresiástico o que está em questão é a “coragem da verdade”.

Resgatamos aqui a análise da parrésia e do jogo parresiástico como dispositivo


de constituição ética do sujeito por um motivo. Embora a prática psicanalítica e a
prática parresiástica não sejam mutuamente excludentes, mas capazes de
coexistirem e de serem praticadas por um mesmo sujeito, a psicanálise parece
preferível em algumas circunstâncias e enquanto que o jogo parresiástico parece
preferível em outras. No que concerne a esse último: vistas as inúmeras formas
assumidas pela parrésia ao longo da história, devemos admitir que a prática da
parrésia é largamente adaptável e, por conseguinte, passível de adequação ao mundo
contemporâneo. Além disto, consideramos que o jogo parresiástico, por manter uma
relação constitutiva com a verdade, exerceria uma influência decisiva na formação
ética do sujeito que opta pelo modo de vida intelectual.

28
PRIMEIRO CAPÍTULO: O PROJETO

Se minha alma pudesse dar pé, eu não me ensaiaria, me resolveria;


mas ela se encontra sempre em aprendizagem e à prova.

— Montaigne

1. Foucault e a psicanálise

Ainda que a bibliografia sobre a relação de Michel Foucault com a psicanálise


— ou, se quiserem, da situação da psicanálise no pensamento foucaultiano — seja
notadamente vasta, ainda consideramos que vale a pena, para melhor situar nossa
hipótese de trabalho, fazer aqui um breve levantamento de textos e de eventos da
vida do filósofo que se relacionam com o assunto. Para estabelecer esse
levantamento recorremos principalmente a certos trabalhos de caráter “técnico” ou
“instrumental” consagrados à filosofia foucaultiana, tais como o Vocabulário de
Foucault16 e a Introdução a Foucault17, de Edgardo Castro, e a cronologia18 da vida
de Foucault, redigida por Daniel Defert para a edição dos Ditos e Escritos. Isso deve
dirimir as dúvidas acerca do proeminente e duradouro interesse de Foucault pela
psicanálise.
O levantamento, ordenado cronologicamente, vai de 1949 a 1984. Ademais,
suprimimos os anos da trajetória de Foucault em que não houve registro de atividades
concernentes à sua relação com a psicanálise.
1949 – Foucault se formou em psicologia e começou a trabalhar. Tem crises
de angústia e abuso de álcool. Submete-se à psicoterapia. Maurice Pinguet diz que:
“a leitura de Freud lhe sugere que talvez seja de boa e saudável moral não ceder
sobre a verdade do desejo”.

16 Castro, E. Vocabulário Foucault – Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Autêntica Editora, Belo
Horizonte, 2009.
17 Id. Introdução a Foucault. Autêntica Editora, Belo Horizonte, 2015.
18 Defert. Cronologia. In: Foucault, M. Ditos e Escritos I. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e

Psicanálise. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

29
1950 – Em 17 de junho Foucault tenta suicídio. “Deixe que eu me cale… deixe
que eu me reabitue a olhar em frente, deixe-me dissipar a noite da qual tomei o hábito
de cercar-me em pleno meio-dia”, escreveu dias depois a um amigo. Hesita em
recorrer à psicanálise, mas por fim consulta-se com um psicanalista. Relatos sobre
essa época retratam Foucault como um jovem inquieto que lê muito, recita poemas
de cor e se vê tentado por “experiências-limite” à maneira de Bataille. Nesse ano ele
ainda passa por um tratamento de desintoxicação — “Retorno de um lugar um pouco
distante”, disse ao sair — e discute com seu pai sobre uma eventual hospitalização.
Nos anos seguintes, exerceu funções de psicólogo.

1953 – Foucault frequenta por um tempo o seminário de Jacques Lacan em


Saint-Anne. “Bebe muito, não mais está infeliz, mas está mais sozinho que antes.
Substitui Althusser como professor auxiliar de filosofia na Escola Normal e não tem
mais tempo para trabalhar para si”, escreveu a um amigo. Pinguet relata que Hegel,
Marx, Heidegger e Freud eram as principais referências de Foucault até ele se deparar
com a obra de Nietzsche nesse ano. “[…] vejo Michel lendo ao sol, na praia de
Civitavecchia, as Considérations intempestives”. No que concerne às atividades
acadêmicas formais, Foucault ministra seminários sobre Kant e Freud. Parece melhor,
mas ainda teme o alcoolismo.

1954 – Foucault escreve uma Introdução para o livro Le rêve et l’existence de


Binswanger onde problematiza o método freudiano de interpretação dos sonhos e
evidencia a limitação desse método diante das imagens.

A linguagem do sonho não é analisada senão na sua função semântica; a


análise freudiana deixa na sombra sua estrutura morfológica e sintática. A
distância entre a significação e a imagem não é jamais preenchida pela
interpretação analítica a não ser por um excedente de sentido; a imagem em
sua plenitude e determinada por sobredeterminação.

(Foucault, 1999, p.70)

Foucault chega a dizer que “Freud fez habitar o mundo do imaginário pelo
Desejo, tal como a metafísica clássica fizera habitar o mundo da física pelo querer e
pelo entendimento divinos”. A psicanálise, não tendo sido capaz de reconhecer o
sonho em sua realidade de linguagem, não teria dado ao sonho outro estatuto senão
o da palavra. A análise freudiana só atinge um dos sentidos possíveis por meio da

30
adivinhação ou pelos longos caminhos da probabilidade, sendo que o ato expressivo
em si jamais é reconstituído em sua necessidade.
De acordo com esse texto, Freud seria levado a admitir que a estrutura da
imagem tem uma sintaxe e uma morfologia irredutíveis ao sentido, já que ocorre ao
sentido se ocultar nas formas expressivas da imagem. Mas não há na obra freudiana
uma gramática da modalidade imaginária e uma análise do ato expressivo em sua
necessidade. Essas faltas da teoria freudiana decorreram de uma insuficiência na
elaboração da noção de símbolo. Embora o objetivo dessa crítica foucaultiana seja
descortinar a limitação da análise freudiana ante a imagem, Foucault ainda considera
rapidamente a análise kleiniana e a lacaniana. Diz que Melanie Klein buscou ao
máximo retraçar a gênese do sentido apenas pelo movimento do fantasma, assim
como Lacan fez de tudo para mostrar na lmago o ponto em que se detém a dialética
significativa da linguagem. Mas, no caso da primeira, o sentido não passa da
mobilidade da imagem e a esteira de sua trajetória, e no caso do segundo, a lmago
não passa de palavra envolta, em um instante silenciosa. Sendo assim:

[…] no domínio de exploração da psicanálise não foi encontrada a unidade


entre uma psicologia da Imago, que marca o campo da presença, e uma
psicologia do sentido, que define o campo das virtualidades da linguagem. A
psicanálise jamais conseguiu fazer falar as imagens.

(Foucault, 1999, p.73)

Nessa ocasião, relativamente à análise das imagens, Foucault contrapõe uma


análise fenomenológica à análise psicanalítica. Para Foucault, a real falha da análise
freudiana é ter visto nas imagens oníricas uma das significações possíveis do sonho,
e ter querido analisá-las e interpretá-las como uma de suas virtualidades semânticas.

Um método desse tipo supõe uma objetivação radical do sujeito sonhando


que viria desempenhar seu papel entre outros personagens, e em um cenário
no qual ele teria uma figura simbólica. O sujeito do sonho, no sentido de
Freud, é sempre uma mínima subjetividade, delegada, por assim dizer,
projetada e permanecida intermediária entre o jogo do outro, suspensa em
algum lugar entre o sonhador e aquilo com que ele sonha.

(Foucault, 1999, p.99)

Freud compreendeu, todavia, que o sentido do sonho não era para ser buscado
no nível do conteúdo das imagens, que a fantasmagoria do sonho velava mais do que
mostrava e que o sonho consistia num compromisso habitado por contradições.

31
1957 – Foucault publica um artigo chamado A Psicologia de 1850 a 1950.19
Nele desenvolve uma interessante análise da significação no discurso freudiano.
Identifica os traços naturalistas que denunciam sua origem. Vê na teoria das pulsões
(pulsão de vida e de expansão, pulsão de morte e de repetição) o eco de um mito
biológico. Identifica também o que chama de “fantasmas evolucionistas” de que Freud
não nos poupa. No entanto, reconhece a importância histórica de Freud dizendo que
ela se deve à impureza mesma de seus conceitos, visto que:

[…] foi no interior do sistema freudiano que se produziu essa reviravolta da


psicologia; foi no decorrer da reflexão freudiana que a análise causal
transformou-se em gênese das significações, que a evolução cede seu lugar
a história, e que o apelo a natureza é substituído pela exigência de analisar o
meio cultural.

(Foucault, 1999, p.130)

De acordo com esse texto de Foucault, devemos considerar quatro coisas a


respeito da obra freudiana. Em primeiro lugar: a análise psicológica não distribui as
condutas entre voluntárias e involuntárias, intencionais e automáticas, condutas
normais e comportamento patológico, pois não há diferença de natureza entre esses
sujeitos. Independente das aparentes diferenças, ambas as condutas têm um sentido.
A paralisia histérica tem o sentido da ação que ela nega, e a ação intencional tem o
sentido da ação que ela projeta. O sentido é coextensivo a toda conduta, explica
Foucault. O sentido sempre está presente, seja na incoerência do sonho, seja na
absurdidade de um lapso, seja na interrupção do discurso. Devemos conceber a
consciência e o inconsciente não como instâncias justapostas, mas como
modalidades de uma mesma significação. “E a primeira tarefa terapêutica será,
através da interpretação dos sonhos e dos sintomas, modificar essa modalidade do
sentido”, frisa Foucault.
Em segundo lugar: as significações imanentes da conduta que, por vezes, se
escondem da consciência são aquelas que a história do sujeito constituiu e cristalizou
no passado em torno de acontecimentos importantes. Por exemplo, com um trauma.
Quando as novas significações não se integram às significações antigas, o sujeito fica
preso ao conflito do passado e do presente, entre o imaginário e o real, entre o amor
e o ódio. Essa é a característica mais constante da neurose. Desse modo, o segundo

19 Foucault. A Psicologia de 1850 a 1950 [1957] 1999.


32
tema da terapêutica será a redescoberta dos conteúdos passados e das significações
passadas da conduta, dos atos falhos e dos sintomas atuais.
Em terceiro lugar, por mais assombrada e atormentada que ela seja pelo
passado, a conduta do sujeito ainda comporta um sentido atual. Um sintoma reproduz
simbolicamente um trauma arcaico, mas o passado não invade totalmente a
experiência do presente. A experiência do presente está sempre em dialética com seu
próprio passado; ela recalca as experiências passadas no inconsciente; ela projeta
sobre a atualidade os fantasmas da história do sujeito; ela inclusive sublima as
questões do sujeito, isto é, transpõe seus temas para níveis de expressão
reconhecidos. Em suma, a experiência do presente erige todo um conjunto de
mecanismos de defesa que a cura psicanalítica tem o encargo de girar e atualizar as
significações das experiências passadas pela transferência e pela ab-reação.20
Em quarto lugar: importa saber qual é o conteúdo dessa experiência presente,
qual é seu peso ante a massa latente do passado. Ela não é vazia ou instantânea, ela
é a instância social que em um grupo valida ou não determinada conduta. A dialética
das memórias afetivas das experiências passadas com a experiência do presente
reflete o conflito entre as formas individuais de satisfação e as normas sociais de
conduta. Em termos freudianos, diríamos que uma vez que o Ego se situa entre as
instâncias do Id e do Superego, recebendo as invectivas da primeira e as censuras da
segunda, ocupa o lugar de conflito, desenvolve mecanismos de defesa e constitui o
ponto de irrupção da angústia na existência. No tratamento psicanalítico, o papel do
analista é justamente, por meio do manejo da transferência, viabilizar um jogo de
satisfação e de frustração de modo a reduzir a intensidade do conflito, flexibilizar as
exigências do Id e do Superego e propiciar o abrandamento dos mecanismos de
defesa do Ego. O psicanalista não nutre um ideal mítico de eliminar o conflito, mas
visa transformar a contradição neurótica em uma tensão mais saudável. De acordo
com Foucault, Freud, ao levar aos seus limites extremos a análise do sentido, deu sua
orientação à psicologia moderna. Ele conferiu um estatuto objetivo à significação. Ele
buscou apreender a significação no próprio material do comportamento. Ele deu à
significação uma história real como conteúdo. Enfim, ele deu à significação o
afrontamento de duas histórias reais, a história do indivíduo e a história da sociedade.

20 Ibid. p.131.
33
Desse modo, superou as dicotomias subjetivo-objetivo, indivíduo-sociedade, e tornou
possível um estudo objetivo das significações.

1965 – Foucault concede uma entrevista a Alain Badiou sobre “Filosofia e


Psicologia”.21 Nessa ocasião, discorre sobre o problema do inconsciente e da
psicanálise como uma espécie de psicologia. A psicanálise pode ser concebida como
uma psicologia do inconsciente que ao ser acrescentada à psicologia da consciência
a duplica com uma camada suplementar que seria o inconsciente. A descoberta do
inconsciente, explica Foucault, não foi uma mera adição de domínios, uma extensão
da psicologia. Essa descoberta operou um confisco pela psicologia da maioria dos
domínios das ciências humanas. A partir de Freud, as ciências humanas se
converteram, em maior ou menor medida, em ciências da psyché. Muitas
transformações sucederam ao advento do inconsciente de modo que, por exemplo, a
velha distinção entre corpo e alma, válida para a psicofisiologia do século XIX, já não
faz mais parte da experiência que temos de nós mesmos. Para Foucault, “é
precisamente em torno da elucidação do que é o inconsciente que a reorganização e
recorte das ciências humanas foram feitos”.22
Foucault nos lembra que o inconsciente foi literalmente descoberto por Freud
como uma coisa, que ele o percebeu como um certo número de mecanismos com leis
próprias de funcionamento. Lembra também que para Freud o inconsciente tem uma
estrutura de linguagem, mas que Freud é um exegeta e não um semiólogo, que seu
problema, portanto, é um problema de deciframento e não um problema de linguística.
Disso decorre que teremos de descobrir o que tal material significante quer dizer.
Assim como teremos de descobrir segundo quais leis esses signos querem dizer o
que querem dizer.23
Por fim, Foucault discorre sobre o que, na sua opinião, se passava com a
psicanálise e com certo número de ciências como a antropologia. De acordo ele:

[…] depois da análise de Freud, alguma coisa como a análise de Lacan foi
possível, que depois de Durkheim, alguma coisa como Levi-Strauss foi
possível, tudo isso prova, de fato, que as ciências humanas estão prestes a
instaurar com elas próprias e para elas próprias uma certa relação crítica que

21 Foucault, M. Filosofia e Psicologia. (entrevista com A. Badiou) [1965] Dossiers pédagogiques de la radio-
télévision scolaire. 27 de fevereiro de 1965.
22 Ibid. p.201.
23 Ibid. p.202-203.

34
não deixa de fazer pensar na relação que a física ou as matemáticas exercem
quanto a elas próprias.

(Foucault, 1999, p.VII-VIII)

Não se trata, para Foucault, de fazer uma filosofia da psicanálise ou da


antropologia, mas de que um campo de estudo ou uma ciência possa ter uma relação
reflexiva consigo mesma.

1966 – Em seu livro As palavras e as coisas (1966)24, Foucault desenvolve seu


estudo arqueológico das ciências humanas. Nele encontramos, além de numerosas
menções a Freud, um capítulo inteiro dedicado à apreciação da psicanálise e da
etnologia.

E se se lembrar que Freud, mais que qualquer outro, aproximou o


conhecimento do homem de seu modelo filológico e linguístico, mas que foi
também o primeiro a tentar apagar radicalmente a divisão entre o positivo e
o negativo (o normal e o patológico, o compreensível e o incomunicável, o
significante e o não-significante), compreende-se de que modo anuncia ele a
passagem de uma análise em termos de funções, de conflitos e de
significações para uma análise em termos de norma, de regras e de sistemas:
e é assim que todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu,
em um século, de uma certa imagem do homem, gira em torno da obra de
Freud, sem contudo sair de sua disposição fundamental.

(Foucault, [1966] 2000, p.499, grifo nosso).

Vemos nessa passagem que Foucault atribui a Freud, primeiro, a aproximação


do saber acerca do homem de seu modelo filológico e linguístico; segundo, a primeira
tentativa de “apagar radicalmente a divisão entre o positivo e o negativo”. Dessa
maneira Foucault reconhece o pioneirismo do fundador da psicanálise no que diz
respeito à problematização de uma questão cultural. Diríamos hoje que Foucault
estabelece aí uma espécie de, por assim dizer, “corte” entre o que veio antes e o que
veio depois de Freud relativamente às tradicionais divisões da subjetividade ocidental
(corpo e alma, positivo e negativo, normal e patológico). Além disso, Foucault afirma
que “todo esse saber, em cujo interior a cultura ocidental se proveu, em um século,
de uma certa imagem do homem, gira em torno da obra de Freud, sem contudo sair
de sua disposição fundamental”. Com isso o filósofo situa a obra freudiana no centro
dos saberes emergentes no último século.

24 Foucault, M. As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes, São Paulo, 2000.
35
No início do capítulo V. Psicanálise, etnologia, Foucault diz que a psicanálise e
a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. Não porque teriam melhor
embasamento que qualquer outra ciência humana de maneira que seriam
verdadeiramente científicas, mas porque dos confins de todos os conhecimentos
sobre o homem,

[…] elas formam um tesouro inesgotável de experiências e de conceitos, mas,


sobretudo, um perpétuo princípio de inquietude, de questionamento, de crítica
e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer adquirido

(Foucault, [1966] 2000, p.517)

Isso se dá em virtude do objeto que cada um desses saberes se atribui, mas


também e sobretudo à posição que ocupam e à função que exercem no espaço geral
da episteme.

A psicanálise, com efeito, mantém-se o mais próximo possível desta função


crítica acerca da qual se viu que era interior a todas as ciências humanas.
Dando-se por tarefa fazer falar através da consciência o discurso do
inconsciente, a psicanálise avança na direção desta região fundamental onde
se travam as relações entre a representação e a finitude. Enquanto todas as
ciências humanas só se dirigem ao inconsciente virando-lhe as costas,
esperando que ele se desvele à medida que se faz, como que por recuos, a
análise da consciência, já a psicanálise aponta diretamente para ele, de
propósito deliberado — não em direção ao que deve explicitar-se pouco a
pouco na iluminação progressiva do implícito, mas em direção ao que está aí
e se furta, que existe com a solidez muda de uma coisa, de um texto fechado
sobre si mesmo, ou de uma lacuna branca num texto visível e que assim se
defende.

(Foucault, [1966] 2000, p.518)

De acordo com Foucault, embora no interior de todas as ciências humanas


opere-se uma função crítica, é a psicanálise que está mais próxima dessa função. A
psicanálise é a prática que se apropriou da função crítica de modo a torná-la
constitutiva e inseparável de seu próprio método de análise. A psicanálise, ao se
colocar na dimensão do inconsciente, representa uma animação crítica que inquieta
interiormente todo o domínio das ciências humanas. Cabe-nos interrogar, todavia:
qual é a especificidade da função crítica da psicanálise para Foucault?
Embora seu lugar de origem seja o setting analítico, a crítica psicanalítica há
muito extravasou para outros domínios do saber. Para ser preciso, desde Freud o
método psicanalítico não se limita à relação analítica. Fora seus trabalhos científicos,
textos teóricos e casos clínicos, Freud escreveu ainda sobre literatura, mitologia,
história, religião… Então, como se realiza essa crítica?

36
Em primeiro lugar, observando, escutando em atenção flutuante. Por isso a
psicanálise tem como principal tarefa incitar o discurso, fazer falar. Em segundo lugar,
refletindo sobre seu próprio discurso, sobre sua própria posição discursiva, sobre seu
próprio pensamento, suas próprias teorias, com ímpeto revisional e compromisso com
a verdade. Em relação a isso o discurso freudiano, essencialmente ensaístico, é
particularmente propício ao exercício da atividade crítica.
Na leitura que Foucault faz da psicanálise, esta, ao contrário das demais
ciências humanas, mira propositalmente o inconsciente, não como se esperasse o
aparecimento de algo, mas encarando-o como se encarasse a própria finitude.

Seguindo o mesmo caminho que as ciências humanas, mas com o olhar


voltado em sentido contrário, a psicanálise se encaminha em direção ao
momento — inacessível, por definição, a todo conhecimento teórico do
homem, a toda apreensão contínua em termos de significação, de conflito ou
de função — em que os conteúdos da consciência se articulam com, ou antes,
ficam abertos para a finitude do homem.

(Foucault, [1966] 2000, p.518)

Diante do inconsciente, as ciências humanas retrocedem. Permanecem no


espaço do representável. A psicanálise, por sua vez, avança para transpor a
representação, para extravasá-la do lado da finitude.

E, nessa região onde a representação fica em suspenso, à margem dela


mesma, aberta, de certo modo ao fechamento da finitude, desenham-se as
três figuras pelas quais a vida, com suas funções e suas normas, vem fundar-
se na repetição muda da Morte, os conflitos e as regras, na abertura
desnudada do Desejo, as significações e os sistemas, numa linguagem que
é ao mesmo tempo Lei. Sabe-se como psicólogos e filósofos denominaram
tudo isso: mitologia freudiana. Era realmente necessário que este empenho
de Freud assim lhes parecesse; para um saber que se aloja no representável,
aquilo que margeia e define, em direção ao exterior, a possibilidade mesma
da representação não pode ser senão mitologia. Mas, quando se segue, no
seu curso, o movimento da psicanálise, ou quando se percorre o espaço
epistemológico em seu conjunto, vê-se bem que estas figuras — imaginárias,
sem dúvida, para um olhar míope — são as próprias formas da finitude, tal
como é analisada no pensamento moderno […].

(Foucault, [1966] 2000, p.519)

Com efeito, a metapsicologia que, de todo arcabouço teórico da psicanálise,


representa a tentativa mais rigorosa por parte de Freud de estabelecer um
conhecimento rigoroso sobre o psiquismo, foi muitas vezes chamada de “mitologia
freudiana”. A descrição metapsicológica é sempre uma descrição do irrepresentável
num plano representável. Não existe em nossa cabeça um lugar preciso que
corresponda às instâncias psíquicas, não conseguimos isolar e extrair de nosso corpo
37
uma pulsão de vida ou pulsão de morte. No entanto, criando sua mitologia,
estabelecendo sua topologia, primeiro como “sistema inconsciente (Ics)” e “sistema
pré-consciente-consciente (Pc-Cs)” e depois como “Id, Ego e Superego”, Freud
arranjou as noções e organizou de tal modo a prática da psicanálise que esta passou
a suscitar interesse de epistemólogos. 25
Para Foucault, a psicanálise não está destinada a se desenvolver como puro
conhecimento especulativo ou teoria geral do homem. Mas a psicanálise também não
está destinada a tomar a forma de uma ciência empírica constituída a partir de
escrupulosas observações.

Essa travessia só pode ser feita no interior de uma prática em que não é
apenas o conhecimento que se tem do homem que está empenhado, mas o
próprio homem — o homem com essa Morte que age no seu sofrimento, esse
Desejo que perdeu seu objeto e essa linguagem pela qual, através da qual
se articula silenciosamente sua Lei.

(Foucault [1966] 2000, p.519)

Repetimos, a psicanálise não se desenvolve sob a forma de um saber


puramente teórico, especulativo, nem baseado na mais cuidadosa observação da vida
comum, mas serve-se da “relação singular da transferência para descobrir, nos
confins exteriores da representação, o Desejo, a Lei, a Morte que desenham, no
extremo da linguagem e da prática analíticas, as figuras concretas da finitude”. 26
Foucault aceita o fato de que todo saber analítico é inelutavelmente ligado a uma
prática, a uma relação entre dois sujeitos em que um escuta o discurso do outro,
“libertando assim seu desejo do objeto que ele perdeu (fazendo-o entender que o
perdeu) e libertando-o da vizinhança sempre repetida da morte (fazendo-o entender
que um dia morrerá)”.27
Destarte, uma conclusão à qual chega Foucault é a de que nada é mais
estranho à psicanálise do que uma teoria geral do homem ou uma antropologia. Essa
importante conclusão, no entanto, ainda não esclarece o que quer Foucault com a
psicanálise. O que mais, para o filósofo, caracteriza a psicanálise além de seu aspecto
prático e sua constitutiva função crítica? No entendimento de Foucault, a psicanálise
interroga não o próprio homem tal como pode aparecer nas ciências humanas, mas a

25 Cf. Bachelard, G. A psicanálise do fogo (1938).


26 Foucault, [1966] 2000, p.514.
27 Ibid. p.519.

38
região que torna possível, em geral, um saber sobre o homem. A psicanálise, assim
como a etnologia, atravessa todo o campo do saber num movimento que tende a
atingir seus limites.
Foucault vê, portanto, um profundo parentesco entre a psicanálise e a
etnologia, mas adverte que ele não se dá por uma preocupação que ambas teriam em
penetrar o profundo enigma, a parte mais secreta da natureza humana. O que se
espelha no espaço de seu discurso é, segundo ele, muito mais “o a priori histórico de
todas as ciências humanas — as grandes cesuras, os sulcos, as partilhas que, na
episteme ocidental, desenharam o perfil do homem e o dispuseram para um saber
possível”. Foucault chega a expressar o desejo de que ambas, tanto a psicanálise
quanto etnologia, fossem ciências do inconsciente. 28 “Não porque atingem no homem
o que está por sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem,
permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua
consciência”.29

[…] a psicanálise e a etnologia não são tanto ciências humanas ao lado das
outras, mas percorrem o domínio inteiro destas, o animam em toda a sua
superfície, expandem por toda a parte seus conceitos, podem propor em
todos os lugares seus métodos de decifração e suas interpretações.
Nenhuma ciência humana pode assegurar-se de nada lhes dever, nem de ser
totalmente independente do que elas puderam descobrir, nem estar certa de
não depender delas de uma forma ou de outra.

(Foucault [1966] 2000, p.525)

No que concerne ao desenvolvimento da psicanálise, Foucault considera que


por mais que haja pretensão de ter um alcance quase universal, nem por isso ela se
aproxima de um conceito geral de homem. Em momento algum a psicanálise tende a
delimitar o que no homem poderia haver de específico e de irredutível. A psicanálise,
na concepção de Foucault, pode dispensar o conceito de homem. De acordo com o
filósofo, pode-se dizer da psicanálise o que Lévi-Strauss dizia da etnologia: elas
dissolvem o homem. “Não que se trate de reencontrá-lo melhor, mais puro e como
que liberado; mas, sim, porque elas remontam em direção ao que fomenta sua
positividade”.30

28 Ibid. p.523.
29 Ibid. p.523-524.
30 Ibid. p. 525.

39
Quando situadas em relação às ciências humanas, a psicanálise e a etnologia
são consideradas por Foucault “contraciências”. Com isso, adverte o filósofo, não quer
dizer que elas sejam menos racionais ou objetivas do que as outras, mas que “elas as
assumem no contrafluxo, reconduzem-nas a seu suporte epistemológico e não
cessam de ‘desfazer’ esse homem que, nas ciências humanas, faz e refaz sua
positividade”.31 A partir desse ponto se compreende que a psicanálise e a etnologia
estejam situadas uma em face da outra numa relação fundamental 32 Foucault chega
a devanear com o prestígio e a importância de uma etnologia que em invés de se
definir pelo estudo das sociedades sem história buscasse deliberadamente seu objeto
do lado dos processos inconscientes que caracterizam o sistema de uma dada cultura.
Se assim fosse, a etnologia colocaria em jogo a relação da historicidade. Por outro
lado, teríamos uma psicanálise que encontraria, não a dimensão de uma etnologia
pela instauração de uma psicologia cultural, nem pela explicação sociológica de
fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas sim pela descoberta de que o
inconsciente também é, ele próprio, certa estrutura formal.33

[…] etnologia e psicanálise viriam, não a se superpor nem mesmo talvez a se


reunir, mas a se cruzar como duas linhas diferentemente orientadas: uma,
indo da elisão aparente do significado na neurose à lacuna no sistema
significante por onde esta vem a manifestar-se; a outra, indo da analogia dos
significados múltiplos (nas mitologias, por exemplo) à unidade de uma
estrutura, cujas transformações formais liberariam a diversidade de
narrativas.

(Foucault [1966] 2000, p.527)

1970 – Foucault concede uma entrevista a T. Shimizu e M. Watanabe sobre


Loucura, Literatura, Sociedade34 em que mais uma vez fala sobre psicanálise.

1974 – De outubro a novembro de 1974, no Rio de Janeiro, Foucault organiza


dois seminários. Um deles tem por título Genealogia da psicanálise no seio das
práticas da psiquiatria do século XIX.

31 Ibid. p.524-525.
32 De acordo com Foucault (2000, p.526)“[…] desde Totem e tabu, a instauração de um campo que lhes seria
comum, a possibilidade de um discurso que poderia ir de uma à outra sem descontinuidade, a dupla articulação
da história dos indivíduos com o inconsciente das culturas e da historicidade destas com o inconsciente dos
indivíduos abrem, sem dúvida, os problemas mais gerais que se podem levantar a propósito do homem”.
33 Ibid. p.525-526.
34 Foucault, M. Loucura. Literatura, Sociedade. Entrevista com T. Shimizu e M. Watanabe. Bungei, nº 12. dezembro

de 1970, p.266-285.
40
1975 – Foucault faz duas conferências em Paris (Nietzsche, Freud e Marx e
outra Theatrum Philosoficum); duas em Berkeley (Discurso e repressão e A
sexualidade infantil antes de Freud35); na Universidade de São Paulo (Freud e Max ao
infinito. O trabalho político vem dos antigos quadros sindicais e intelectuais).
Nesse mesmo ano Foucault pediu à editora Gallimard um adiantamento em
dinheiro para um projeto. Quando o fizeram assinar um contrato de exclusividade por
cinco anos, Foucault decidiu que seu próximo livro — posteriormente intitulado A
vontade de saber — seria pequeno e que não haveria outro durante cinco anos.
O ano de 1975 é repleto de acontecimentos dignos de nota. Em agosto Foucault
termina de escrever A vontade de saber. Em novembro faz uma conferência na
Faculdade de Filosofia da Bahia (Crítica da concepção jurídica do poder de Marx e de
Freud, da social-democracia e do investimento do campo sexual pelo Estado). E em
dezembro publica A vontade de saber, o primeiro volume da História da sexualidade.
De acordo com Defert, este livro foi concebido por Foucault “como um manifesto com
o qual se deve marcar um encontro”. A vontade de saber vai de encontro à expectativa
do público que não esperava uma crítica à hipótese repressiva. É digno de nota o
comentário de Defert acerca das intenções do autor na época: “O livro se apresenta
como uma introdução a uma história da sexualidade em seis volumes, mas o autor
confidencia não ter a intenção de escrevê-los”.36 Por fim, A vontade de saber foi mais
bem recebida nos movimentos feministas e gays do que nos meios intelectuais.
De acordo com A vontade de saber, a narrativa histórica sobre a qual a
psicanálise freudiana se vinculou por tanto tempo é aquela segundo a qual no início
do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza relativa às práticas e às palavras
de ordem sexual. Mas esse tempo teria se fechado com a chegada da burguesia
vitoriana.

A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de


casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade
da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e
procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a
verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo.
No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de
sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que
sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a
decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra
demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as
sanções.

35 As duas conferências inéditas foram preservadas.


36 Defert In: Foucault, M. 1999, p.45-46.
41
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui
eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso,
negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve
existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer — sejam atos ou
palavras.

(Foucault, [1976] 1999, p.9-10)

A repressão condena ao desaparecimento e exige silêncio, nega a existência


e impõe um nada para dizer, um nada para ver e um nada para saber. Mas já que a
sexualidade ilegítima não pode ser totalmente suprimida, finda sendo realocada para
círculos que dela obtém lucro. Exemplos desses círculos é o consultório do psiquiatra
ou do psicanalista. Um prazer ao qual não se alude passa então à ordem das coisas
que se contam nesses lugares.37

1976 – Em 1976 numa entrevista intitulada Bruxaria e Loucura concedida à R.


Jaccard,38 Foucault discorre sobre temas abordados em A vontade de saber.

Será bem necessário livrarmo-nos das “marcuserias” e dos “reichianismos”


que nos obstruem e querem nos fazer crer que a sexualidade é, de todas as
coisas do mundo, a mais obstinadamente ‘reprimida e ‘sobre-reprimida’ por
nossa sociedade “burguesa”, “hipócrita”, “vitoriana”.

(Foucault, [1976] 1999, p.291)

Foucault frisa que desde a Idade Média a sexualidade vem sendo muito
estudada, vem sendo interrogada e extorquida, trazida à tona em discursos e em
confissões obrigatórias. Curiosamente, muitos dos que se acreditam subversivos, por
expressarem sua sexualidade, não fazem mais do que obedecer a uma requisição
secular para tudo falar sobre seu desejo.

Desde a Inquisição através da penitência, do exame de consciência da


direção espiritual, da educação, da medicina, da higiene, da psicanálise e da
psiquiatria, a sexualidade foi sempre suspeita de deter sobre nós uma
verdade decisiva e profunda. Dize-nos o que é teu prazer, não nos esconda
nada do que se passa entre teu coração e teu sexo: nós sabemos o que tu
és e te diremos o que vales.

(Foucault, [1976] 1999, p.291)

Foucault diz que seria muito bom que um psicanalista retratasse em termos de
história a interrogação sobre a sexualidade.

37Foucault, [1976] 1999, p.10.


38Foucault, M. Bruxaria e Loucura (entrevista com R. Jaccard).Le monde. Nº 9.720. 23 de abril de 1976. p.18 (T.
Szasz. Fabriquer la folie. Paris. Payot, 1976).
42
1981 – Em 1981 Foucault concede a J. Nobecourt uma brevíssima entrevista
(em resposta a duas rápidas perguntas) que recebe o título Lacan, o “Libertador” da
Psicanálise.39 Em resposta à pergunta se Lacan teria sido o protagonista de uma
“revolução da psicanálise”, Foucault declara:

Acho que Lacan teria recusado este termo de ‘revolucionário’ e a própria ideia
de uma ‘revolução em psicanálise’. Ele queria apenas ser ‘psicanalista’. Isso
supunha, aos seus olhos, uma ruptura violenta com tudo o que tendia a fazer
depender a psicanálise da psiquiatria, ou a fazer dela um capítulo sofisticado
da psicologia.

(Foucault, 1981, p.1)

Na perspectiva de Foucault, Lacan queria subtrair a psicanálise da proximidade


com a medicina e com as instituições médicas, pois as considerava perigosas. A
psicanálise seria para Lacan uma teoria do sujeito e não um processo de normalização
dos comportamentos. Para Foucault, o pensamento lacaniano está alinhado a todos
os esforços que foram feitos para recolocar em questão as práticas da medicina
mental. Quando perguntado sobre o que mudou depois de Lacan, Foucault remonta
aos anos 50 e lembra que lia as obras de Levi-Strauss e os primeiros textos de Lacan.
Nessa época estavam se dando conta de que a filosofia e as ciências humanas
operavam com uma concepção muito tradicional do sujeito, e que já não bastava dizer,
ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre ou, ora com outros, que o sujeito era
determinado pelas condições sociais. “Nós descobríamos que era preciso procurar
libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente simples do pronome
‘eu’ (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, de que é tão difícil falar, e sem a qual
não podemos falar”.40
Ao ser interrogado sobre as acusações das quais Lacan era alvo, a saber, de
ser hermético e praticar um “terrorismo intelectual”, Foucault responde:

O hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura de seus


textos não fosse simplesmente uma ‘tomada de consciência’ de suas ideias.
Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de desejo,
através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos fosse
a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para
compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo.

39 Foucault, M. Lacan, o “Libertador” da Psicanalise entrevista com J. Nobecourt: trad. A. Ghizzardi). Corriere dela
sera. vol. 106, nº 212,11 de setembro de 1981. p.1.
40 Foucault, [1976] 1999, p.298.

43
(Foucault, 1981, p.1)

E no que concerne ao “terrorismo”, Foucault observa que Lacan não exercia


nenhum poder institucional. De modo que aqueles que o ouviam queriam exatamente
ouvi-lo. “Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A influência que
exercemos não pode nunca ser um poder que impomos”. 41
No mesmo ano de 1981, Foucault concede uma entrevista a J. François e J. de
Wit que seria publicada com o título Entrevista com Michel Foucault.42 Nessa ocasião,
o filósofo explica o lugar que dera à psicanálise em As palavras e as coisas (1966).
Para ele, tratava-se ali de investigar muitos tipos de dissertações científicas ou de
pretensão científica, notadamente sobre suas transformações e relações recíprocas.
Procurou examinar o papel que a psicanálise pode representar em relação a esses
domínios de conhecimento. Frisa, todavia, que a psicanálise não é uma ciência, mas
sim uma técnica de trabalho de si sobre si, fundada na confissão. Desse ponto de
vista, a psicanálise é igualmente uma técnica de controle, visto que ela cria um
personagem que se estrutura em torno de seus desejos sexuais. Isso não implica que
a psicanálise não possa ajudar as pessoas, ressalta Foucault.

O psicanalista tem pontos em comum com o xamã nas sociedades primitivas.


Se o cliente confere credibilidade a teoria praticada pelo xamã, ele pode ser
ajudado. Assim também acontece com a mistificação, porque ela não pode
ajudar ninguém que não creia nela, o que subentende relações mais ou
menos hierárquicas.

(Foucault, [1981] 1984, p.310)

Acontece que os psicanalistas rejeitavam na época — como, de modo geral,


rejeitam ou ignoram até hoje — a ideia de que a psicanálise seria mais uma das
técnicas de trabalho de si sobre si, a ideia segundo a qual haveria uma espécie de
continuidade histórica entre as práticas e técnicas de si e a psicanálise.

De minha parte, observei que os psicanalistas não gostam quando se tenta


aprofundar a história das formas de conhecimento que lhes são próprias, a
partir da prática dos asilos de alienados. Eu constato, em contrapartida, que
Einstein pôde pretender que a física se enraíza na demonologia sem com isso
ofender os físicos. Como explicar esse fenômeno? Pois bem, os últimos são
verdadeiros cientistas, nada tendo a temer por sua ciência, enquanto os
primeiros têm, antes, medo de ver comprometer-se, pela história, a fragilidade
científica de seus conhecimentos. Portanto, sob a condição de que os
psicanalistas não façam muito caso da história de suas práticas, eu teria mais
confiança na verdade de suas afirmações.

41 Ibid. p.299.
42 Foucault, M. Entrevista de Michel Foucault, entrevista com J. François e J. de Wit, 22 de maio de 1981, 1984.
44
(Foucault, [1981] 1999, p.310)

Em seguida, o entrevistador pergunta a Foucault se a teoria de Lacan provocou


uma mudança fundamental na psicanálise, ao que o filósofo responde:

Sem comentários, como dizem os funcionários do Estado, quando lhes


formulamos uma pergunta embaraçosa. Eu não sou suficientemente versado
na literatura psicanalítica moderna, e compreendo muito mal os textos de
Lacan para ter o menor comentário sobre este assunto. Contudo, tenho a
impressão de que se pode constatar um progresso significativo, mas isso é
tudo o que posso dizer sobre o assunto.

(Foucault, [1981] 1999, p.310)

Entretanto, Foucault afirma noutra ocasião que a importância de Lacan decorre


dele mostrar que é por meio do discurso do paciente, de sua neurose, que as
estruturas e o sistema mesmo da linguagem se expressam. 43 O sujeito é, por assim
dizer, mais falado do que falante.

43 Foucault, M. Dits et Écrits (1954-1988), vol. I, nº 37, p.513-514. Paris: Gallimard, 1994. 4 v.
45
2. As práticas e técnicas de si ou os exercícios espirituais

A primeira aparição do tema das chamadas “práticas e técnicas de si” na


atividade filosófica de Michel Foucault remonta aos anos de 1974-1975. O exame
dessas práticas e técnicas resultaria na elaboração de um quadro teórico e de análise
do qual o filósofo não se distanciaria mais. O seminário intitulado As técnicas de si,
pronunciado na universidade de Vermont em outubro de 1982, 44 contém uma das
últimas exposições sistemáticas sobre o tema. Nele Foucault fala como sua pesquisa
relativa à sexualidade foi conduzindo seu interesse para as vicissitudes do desejo e
sua dinâmica com a alma. Ressalta que diferente dos outros interditos, os interditos
concernentes à sexualidade costumam estar ligados à uma obrigação de dizer a
verdade sobre si.45 Assim, pontua a singularidade de seu projeto: traçar a evolução
do elo entre o dizer verdadeiro e os interditos que pesam sobre a sexualidade, e
interrogar qual a relação entre o ascetismo e a verdade.
Como que para mostrar a especificidade de sua investigação, justificar seu
interesse pelas técnicas de si e precisar uma das questões que lhe servira de mote,
Foucault sublinha outra importante questão da história das ideias, supostamente
colocada por Max Weber: “Se se quer adotar um comportamento racional e regular
sua ação em função de princípios verdadeiros, a que parte de si se deve renunciar?
A que tipo de ascetismo devemos submeter-nos?”. Mas sua questão, no entanto, não
é essa; não é a questão weberiana, mas sua contrapartida: “Como certos tipos de
saber sobre si se tornaram o preço a pagar para certas formas de interditos? O que
se deve conhecer de si para aceitar a renúncia?”46 Bem, temos aqui um procedimento
que lhe é característico, o da subversão das questões e das perspectivas de pesquisa.
O que há de novo, no entanto, ou, pelo menos, de mais característico de seu
pensamento tardio, é seu esforço em se fazer entender. A partir de determinado
momento, uma preocupação e um cuidado em se fazer entender têm uma função
tática.

44 Embora o seminário tenha sido pronunciado originalmente em francês com o título Les technique de soi, o texto
que se encontra na edição brasileira dos Ditos e escritos (volume IX) com o qual trabalhamos foi traduzido do texto
em inglês: Technologies of the self. A seminar with Michel Foucault, Amherst, The University Massachusetts Press,
1988, p.16-49.
45 Foucault, 2014, p.264.
46 Ibid. p.265.

46
Foi ao se indagar: O que se deve conhecer de si para aceitar a renúncia? —
que a pesquisa de Foucault se direcionou às hermenêuticas das técnicas de si nas
práticas pagãs e depois nas práticas cristãs dos primeiros séculos. Essas técnicas e
práticas eram pouco conhecidas e todo um trabalho de reconstituição de seu quadro
teórico se fez necessário. Isso em razão, primeiro, do cristianismo sempre ter se
interessado mais pela “história de suas crenças do que pela de suas práticas efetivas”.
Em segundo lugar: “esse tipo de hermenêutica, contrariamente à hermenêutica
textual, jamais foi organizado em um corpo de doutrinas”. Em terceiro lugar: operou-
se “uma confusão […] entre a hermenêutica de si e as teologias da alma”, de modo
que passaram muito tempo indistintas.47 A quarta razão, não obstante a mais
hipotética, merece destaque: “Uma hermenêutica de si se difundiu em toda a cultura
ocidental, infiltrando-se por inúmeros canais e integrando-se em diversos tipos de
atitudes e experiências, de forma que é difícil isolá-la e distingui-la de nossas
experiências espontâneas”. 48
No panorama de reflexão sobre as técnicas, Foucault as divide em quatro
grandes grupos: as técnicas de produção; as técnicas de sistemas de signos; as
técnicas de relação de poder; e as técnicas de si, “que permitem os indivíduos efetuar,
sozinhos ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua
alma, seus pensamentos, suas condutas, seu modo de ser”. 49 Mais do que isso,
ligadas ou não a religiões e doutrinas de salvação, elas visam tal transformação do
sujeito que alinhe seu ser a certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição
ou mesmo imortalidade. Essas técnicas quase nunca funcionam separadamente,
sempre estão associadas a algum tipo de dominação e implicam alguns modos de
educação e transformação dos indivíduos. Foucault quis descrever ao mesmo tempo
a especificidade dessas técnicas e sua interação constante.
Os discursos que sustentam as práticas e técnicas de si, tanto no período
clássico quanto no tardio da Antiguidade, são de natureza bastante diversa. Discursos
filosóficos, morais, pedagógicos, médicos… Enfim, todo um feixe discursivo de relativa
influência conforme a doutrina, a escola filosófica, o cânon médico ou vinculação
institucional e política que lhe outorgue a função meritória de direção de consciência

47 Ibid. p.265.
48 Ibid. p.265.
49 Ibid. p.265.

47
(no caso de uma relação de mestria ou afins) ou de simples manual (para certas
circunstâncias da vida).
No entanto, cabe salientar que uma parte considerável das práticas e técnicas
de si, e, principalmente, das regras de conduta, não se ancora explicitamente em
discursos teóricos. A admissão de uma regra para a vida, embora sempre facultativa,
muitas vezes dá-se tacitamente, por influência da tradição. Esse aspecto de
defasagem entre a dimensão teórica e a dimensão prática das artes da existência fica
mais claro nos cursos do que nos livros. O formato oral e expositivo das aulas permite
que se acompanhe de perto a atividade reflexiva do autor e a lenta formação, com
margem para retificações, do escopo teórico. Tomemos como exemplo A
Hermenêutica do Sujeito, curso ministrado em 1982. Vê-se desenvolver lentamente,
e reiterada de diversas maneiras, a maior parte das conclusões, provisórias e
intermediárias que sejam. Com o volume editado do curso, é como se tivéssemos em
nossas mãos, sob nossos olhos, uma ressonância do labor filosófico do autor. Quem
assistira as aulas tivera acesso a uma espécie de laboratório filosófico. Poucas
situações poderiam com essa competir o título de “laboratório filosófico”, pois tratava-
se, de fato, de uma atividade, de uma filosofia em ato.
Uma das teses mais importantes sustentadas por Foucault sobre essas práticas
e técnicas de si diz respeito aos princípios que as regem. Há, por um lado, o tradicional
princípio délfico do “conhece a ti mesmo” (gnôthi seautón) e, por outro, o princípio do
“cuidado de si” (epiméleia heautoû) tantas vezes evocado por Sócrates. Contrariando
a história tradicional da filosofia, a análise de Foucault proclama a proeminência do
“cuidado de si” em detrimento do “conhecimento de si”. Embora seja sob a égide do
princípio do “cuidado de si” que essas práticas e técnicas de si se encontram ao longo
de toda a Antiguidade, os referidos princípios não são mutuamente excludentes, mas
preceitos para a vida e imperativos que implicam a assimilação das verdades (logoi).50

Não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente


o conhecimento de si — este é o lado socrático-platônico — mas é também
o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios
que são simultaneamente verdades e prescrições. Cuidar de si é se munir
dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade.

(Foucault, [1984] 2004, p.270).

50 Foucault, [1984] 2004, p.269.


48
As técnicas de si implicam, em cada cultura, uma série de obrigações de
verdade: é preciso descobrir a verdade, ser esclarecido pela verdade, dizer a verdade.
Mas o jogo de Foucault, o jogo foucaultiano do desejo, é um jogo da verdade? Qual o
lugar, o estatuto, a função e o critério de verdade desse jogo? Qual a relação entre o
jogo filosófico foucaultiano e as técnicas de si?
Outro autor que se dedicou ao estudo dessas práticas e técnicas de si no
mundo antigo, porém denominando-as de “exercícios espirituais”, foi Pierre Hadot.
Seu livro Exercícios espirituais e filosofia antiga, 51 além de fornecer um panorama
desses estudos, apresenta um capítulo intitulado Um diálogo interrompido com Michel
Foucault52 que discorre sobre as convergências e divergências que eles tinham sobre
o assunto. Ademais, parte de sua crítica à noção de práticas e técnicas de si de
Foucault é retomada, de forma resumida, num trabalho oriundo de entrevistas e
publicado em 2001 sob o título La Philosophie comme manière de vivre : entretiens
avec Jeannie Carlier et Arnold I. Davidson.53
Desse amplo tema ambos os autores abordam, por exemplo, o da filosofia
como terapêutica (ou o aspecto terapêutico da filosofia), o cuidado de si, os diferentes
exercícios espirituais (ou práticas e técnicas de si) e o papel que a figura de Sócrates
desempenha em relação a esses temas. Em 1984, inclusive, Foucault retoma todos
esses temas e refere-se às pesquisas empreendidas por Hadot neste domínio. 54
Hadot comenta, no entanto, a entrevista concedida por Foucault a H. L. Dreyfus
e Paul Rabinow em 1983. Nela é colocada em evidência a última concepção de
filosofia de Foucault, a de uma “estética da existência”. 55 Embora Hadot reconheça na
filosofia na arte de viver, um estilo de vida que abarca toda a existência, ele hesita em
encará-la como uma “estética da existência”, seja a propósito da Antiguidade ou à
tarefa do filósofo em geral.56

Os modernos tendem a conceber o belo como uma realidade autônoma


independente do bem e do mal, ao passo que, para os gregos, ao contrário,
a palavra, aplicada aos homens, normalmente implica o valor moral […]. De
fato, o que os filósofos da Antiguidade buscavam não era primeiramente a
beleza (kalon), mas o bem (agathon) […].

51 Hadot, Exercícios espirituais e filosofia antiga. É Realizações, São Paulo, 2014.


52 Ibid. p.275-281.
53Hadot, La Philosophie comme manière de vivre : entretiens avec Jeannie Carlier et Arnold I. Davidson. Paris :
Albin Michel, 2001.
54 Cf. Foucault, M. O cuidado de si (1984), capítulo: Cultura de si.
55 Hadot, 2014, p.277.
56 Ibid. p.278.

49
(Hadot, 2014, p.278)

Por isso, Hadot considera preferível falar de transformação, transfiguração ou


mesmo de superação de si do que de uma “cultura de si”. Uma vez que se trata mais
de uma busca pela “verdade” do que pela “beleza”, o fim da prática filosófica como
modo de vida é o da “sabedoria”.

A sabedoria é o estado ao qual talvez o filósofo jamais chegará, mas ao qual


ele tende, esforçando-se para transformar a si mesmo a fim de se ultrapassar.
Trata-se de um modo de existência caracterizado por três aspectos
essenciais: a paz da alma (ataraxia), a liberdade interior (autarkeia) e (exceto
para os céticos) a consciência cósmica, isto é, a tomada de consciência do
pertencimento ao Todo e cósmico, espécie de dilatação, de transfiguração do
eu que se dá conta da grandeza da alma (megalopsuchia). [leia-se ataraxia,
autárkeia, megalopsychía]

(Hadot, 2014, p.278)

Segundo Hadot, Foucault reconhece e dá espaço a função terapêutica da


filosofia, mas vacila ao não concebê-la como destinada, antes de tudo, a produzir a
paz da alma, a proporcionar as condições de sua imperturbabilidade libertando-a das
angústias provocadas pelas preocupações da vida e pelo mistério da existência
humana. Com efeito, embora divirjam quanto aos meios de alcançá-lo, parece que a
paz da alma é o objetivo comum a todas as escolas filosóficas da Antiguidade. 57
Outro ponto de divergência entre Foucault e Hadot diz respeito à questão: “A
partir de que momento a filosofia deixou de ser vivida como um trabalho de si sobre si
(seja para realizar uma obra de arte ou para se ultrapassar na totalidade)?”. 58
Enquanto Foucault situa essa ruptura, senão exatamente em Descartes, mas num
certo contexto histórico-filosófico designado de “momento cartesiano”, Hadot situa
essa ruptura na Idade Média, quando a filosofia se tornou auxiliar da teologia e teve
seus exercícios integrados à vida cristã. Em sua defesa Hadot diz que, além de ter
escrito as Meditações, Descartes aconselhou seus leitores a meditar longamente
sobre “a dúvida universal” e sobre “a natureza do espírito” — “Isso mostra bem que,
para Descartes, também a evidência só pode ser percebida graças a um exercício
espiritual”.59 Para ele, isso sinaliza as dificuldades de se fazer uma história das
concepções que os próprios filósofos tinham da filosofia.

57 Ibid. p.279.
58 Ibid. p.279.
59 Ibid. p.280.

50
Foucault, por sua vez, embora faça constantes referências às pesquisas de
Pierre Hadot (particularmente àquelas voltadas aos exercícios espirituais), não se
detém às divergências existentes entre suas concepções nem se defende das críticas
feitas a ele por Hadot. Cabe observar que o diálogo entre Foucault e Hadot foi muito
breve, já que Foucault morre em 1984, apenas três anos depois da primeira edição
do livro Exercícios espirituais e Filosofia Antiga do Hadot. Ademais, sabe-se que dos
trabalhos de Hadot sobre os exercícios espirituais, dois se tornaram referências
importantes para Foucault: Epistrophè e metanoia nas história da filosofia (1953)60 e
Exercícios Espirituais (1975-1976)61.

60Comunicação pronunciada no Congresso de Filosofia de Bruxelas.


61Artigo preliminar apresentado no Anuário da Vª Seção da École Pratique de Hautes Études e que viria
compor o livro Exercícios espirituais e filosofia antiga publicado em 1981.
51
3. As formas do ato filosófico

A obra de Michel Foucault abrange objetos conceituais bastante heterogêneos


— da sublime inutilidade de ordem literária à ética de uma pragmática de si, passando
por uma extensa analítica dos saberes e dos poderes —, de modo que não se resume
aos livros publicados. É ainda defensável que nem aos cursos e textos compilados
postumamente se restrinja. São, a saber, 18 livros publicados 62 (três póstumos), 10
volumes de cursos63 e uma coletânea64 de 364 textos, fora o material dos arquivos. 65
E embora tenhamos, enfim, depois de quase quarenta anos, uma visão de conjunto
privilegiada dessa obra decisiva para o diagnóstico do presente (finalidade amiúde
reiterada pelo autor), trata-se, todavia, de uma visão provisória, tal como a partir de
um mapa com orientações gerais pode se formar uma representação mental útil a
respeito do território de uma densa floresta. É preciso incluir como aura da obra todas
as problemáticas nas quais se meteu ou criou, desenvolveu ou formulou; todos os
embates, de si para consigo (numa dobra da função-autor), e disputas com outros
(Derrida, Sartre, Chomsky, Habermas). Dessa maneira, torna-se possível reconstituir
ou, pelo menos, traçar em linhas gerais (pelos pronunciamentos ou por inferências
relativas às situações), as estratégias por trás de cada ato filosófico.
Um ato filosófico é composto por uma série de posicionamentos táticos
ordenados em favor de uma estratégia local e uma estratégia geral. Numa
transposição legítima de termos, poderíamos dizer que um posicionamento
corresponde a uma jogada, que se relaciona taticamente com outras jogadas,
passadas ou futuras (isto é, executadas ou presumidas) do jogador e de seu
adversário, e segundo uma estratégia que, se quisermos, pode ser descrita em termos
de perfil (perfil do jogador), valores (ideais do pensador), propósitos (objetivos do
intelectual) ou estilo (modo de expressão característica do filósofo).
Sendo o pensamento de um filósofo, em tese, e a despeito das opiniões
particulares, um artefato cultural de interesse geral, e sendo a aura da obra um

62 1954, 1961a, 1961b, 1962, 1963, 1963, 1966, 1969a, 1969b, 1971 (1970), 1973, 1975, 1976, 1984a, 1984b,
1986, 1989 (1970-1982), 2017.
63 1971 (1970-1971), 1972 (1971-1972), 1973 (1972-1973), 1974 (1973-1974), 1975 (1974-1975), 1976 (1975-

1976), 1978 (1977-1978), 1978, 1979 (1978-1979), 1980 (1979-1980), 1981 (1980-1981), 1982 (1981-1982), 1983
(1982-1983), 1985 (1983).
64 1994 (1954-1988).
65 Manuscritos para consulta nos arquivos Michel Foucault da Bibliothèque nationale de France.

52
componente da própria obra, o préstimo das iniciativas para realização de uma
bibliografia da obra e de seus comentadores é indiscutível. Ainda que não exaustiva
e, no que tange aos comentadores, necessariamente incompleta, cada
empreendimento dessa natureza, quando suficientemente bem-sucedido, produz
efeitos de atualização na esfera daquela filosofia. Demarcando, na ordem dos
discursos, a situação de um campo de discursividade (que compreende, quanto aos
enunciados originais e fundadores, modalidades da função-autor, e quanto à
bibliografia secundária, relevantes posicionamentos de comentadores e críticos),
estabelece-se uma perspectiva do estado da arte dessa filosofia.
Considerando a amplitude do material, e a dificuldade adicional imposta pela
característica múltipla e, de certo modo, fragmentária do pensamento de Foucault,
não demorou muito até que a obra completa (no sentido de uma apresentação
conjunta da produção) se encontrasse, ainda que virtualmente, em condição de
acessibilidade geral. Com a publicação de As confissões da carne (2018), último
volume da História da Sexualidade, a obra parece ter recebido da parte do autor a
derradeira contribuição e remate. Pois com ela não veio à tona apenas mais um livro
ocasionalmente deixado inacabado, mas, pelo contrário, já substancialmente
terminado entre 1981 e 1982, teve sua publicação escrupulosamente postergada
justamente por consistir numa peça que, no encadeamento das publicações, coloca
os principais trabalhos anteriores em perspectiva.
Mais do que o último livro do autor, conclusão pressentida de uma longa
pesquisa sobre a sexualidade no mundo antigo, As confissões da carne tanto
desenvolve a etapa capital da genealogia do homem de desejo no Ocidente — sua
principal tese — como, sob uma perspectiva performática, pode ser tomado como um
gesto filosófico em estilo propriamente foucaultiano. Deste modo, nenhuma
apresentação de seus trabalhos poderia ser qualificada de completa sem a publicação
desse último livro.
Com efeito, é ao conceber o ato filosófico como performance que se evoca, de
forma oportuna, a realidade do jogo. Pois, assim como nos jogos, é possível indicar
no ensejo do ato filosófico o elemento pueril, o aspecto lúdico atravessando-o de ponta
a ponta e a perpétua báscula entre gratuidade e dispêndio, sem que com isso se
conteste seus efeitos no mundo.

53
Já na ocasião de lançamento de História da Sexualidade I: A vontade de saber
(1976), houve algum alvoroço acerca das teses ali levantadas. A defesa de um
dispositivo biopolítico moderno da sexualidade (séculos XVI-XIX) em detrimento de
uma hipótese repressiva de origem mais ou menos freudiana (que marcara a
passagem do século XIX ao XX) suscitou discussões em alguns domínios, em
especial entre psicanalistas franceses. Vejamos porquê.
De acordo com A vontade de saber, não parece que estamos enfim liberados
da repressão que, durante os últimos dois séculos, recaiu sobre nossa sexualidade.
Os que observam algo nesse sentido geralmente dão mérito à Freud. Porém, com
quais preocupações científicas, com que prudência médica, com que discrição e por
meio de que manobras Freud evitou que a sexualidade transbordasse e, gerando
lucro, se mantivesse dentro do consultório?66 Com efeito, Foucault denuncia o
conformismo de Freud, as funções de normalização da psicanálise e sugere que não
devemos esperar significativos efeitos de liberação de uma prática profissional ou de
um discurso teórico. Segundo considera que se esse discurso sobre a repressão
moderna do sexo se sustenta, é porque é fácil de ser dominado. Para isso, há um
princípio de explicação normalmente aceito:

[…] se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma
colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora
sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse
dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe
permitem reproduzir-se?

(Foucault, [1976] 1999, p.11)

Em contrapartida, frisamos que uma vez que o sexo não se deixa dominar por
inteiro e, com insistência, se rebela, a política também deve se encarregar dele e
inscrevê-lo no futuro. Foucault questiona se não seria essa reiterada afirmação da
repressão que nos impediria de vincular revolução e felicidade, revolução e um outro
corpo ou mesmo revolução e prazer. “Falar contra os poderes, dizer a verdade e
prometer o gozo; vincular a iluminação, a liberação e a multiplicação de volúpias; […]
eis o que, sem dúvida, sustenta em nós a obstinação em falar do sexo em termos de

66 Foucault (1999, p.13) comenta: “somos a única civilização em que certos prepostos recebe retribuição para
escutar cada qual fazer confidência sobre seu sexo: como se o desejo de falar e o interesse que disso se espera
tivessem ultrapassado amplamente as possibilidades da escuta, alguns chegam até a colocar suas orelhas em
locação. Mais do que essa incidência econômica, o que me parece essencial é a existência, em nossa época, de
um discurso onde o sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a
promessa de uma certa felicidade, estão ligados entre si”.
54
repressão […]”.67 Porém, dizer que o sexo não é reprimido ou que sua relação com o
poder não é de repressão, contraria toda a economia e interesses discursivos que a
sustentam.68
Enfim, composto essencialmente de ensaios críticos e formulação de
hipóteses, A vontade de saber é o livro mais distinto da série sobre a sexualidade.
Apesar da economia de referências quando comparado a outros livros de Foucault,
seus efeitos nada desprezíveis não se limitaram à esfera livresca. A título de exemplo,
tomemos a cena inicial da sabatina transcorrida, a pretexto de entrevista, com nove
psicanalistas em 1977, pouco depois da publicação do livro.

[…] estou realmente contente de estar aqui com vocês. Foi um pouco por isso
que escrevi esse livro dessa forma. Até o momento, eu tinha empacotado as
coisas, não tinha poupado nenhuma citação, nenhuma referência, e havia
proposto problemas um pouco complicados, que ficavam a maior parte do
tempo sem resposta. Donde a ideia desse livro-programa, espécie de queijo
de gruyère, com furos, para que pudéssemos nos alojar neles. Eu não quis
dizer “Eis o que penso”, porque não estou ainda muito seguro do que estou
adiantando. Mas queria ver se isso podia ser dito e até onde isso podia ser
dito, e, é claro, há o risco de isso ser muito decepcionante para vocês. O que
há de incerto no que escrevi é certamente incerto. Não há astúcia, não há
retórica. E não estou certo, também, do que vou escrever nos livros seguintes.
É a razão pela qual eu gostaria de ouvir o efeito produzido pelo discurso
hipotético de modo geral. Parece-me que é a primeira vez que encontro
pessoas que querem jogar esse jogo que eu lhes proponho em meu livro.

(Foucault, [1977] 2014, p. 44, grifo nosso)

Esse encontro — O jogo de Michel Foucault 69 — apresenta o aspecto


performático de A Vontade de saber como ato e acontecimento filosófico. Trata-se,
efetivamente, de um “livro-experimento” no mais legítimo sentido da expressão. Pois
sobre os enunciados do livro, mas com relativa independência em relação a eles,
nessa báscula da função-autor, foi possível a Foucault dizer: “Não estou ainda muito
seguro do que estou adiantando. Mas queria ver se isso podia ser dito e até onde isso
podia ser dito”. Portanto, assim como não só os enunciados do livro, como também
os atos discursivos complementares do autor — em debates, entrevistas, etc. —
constituem um ato filosófico, a profusão de discursos secundários (bibliográficos e não
bibliográficos) remete à aura dele como acontecimento filosófico.

67 Ibid, p.12-13.
68 Ibid, p.13-14.
69 Foucault, M. O jogo de Michel Foucault [1977] in Foucault, M. Ditos & Escritos: IX Genealogia da ética,

Subjetividade e Sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 44-77.


55
Um admirável empenho e uma disciplina digna de um monge mantiveram o
filósofo nos trilhos dessa longuíssima pesquisa realizada acerca do tema da
sexualidade e do desejo — para não citar outros temas que, não obstante, os
atravessam. Então, através do quadro teórico das referidas práticas e técnicas de si
(por meio das quais o sujeito é, por um lado, historicamente produzido e, por outro e
sob as devidas condições, pode elaborar a si), tornou-se possível uma genealogia da
ética que consiste, basicamente, numa história crítica da relação do sujeito ocidental
consigo mesmo. A despeito da alegação de Foucault segundo a qual, em maior ou
menor medida, a experiência filosófica envolvida em praticamente todos os seus
trabalhos o modificou, acreditamos que a experiência vinculada a seus trabalhos
tardios tenha sido mais extraordinariamente profunda do que a dos períodos
anteriores.
Como a análise das práticas e técnicas de si proporciona uma visão — ora
local, ora ampla — de diversas relações de si, de diferentes formas do sujeito se
relacionar consigo mesmo e de maneiras ou procedimentos através dos quais as
alterações nessa relação de si para consigo tornam-se possíveis, somos
impreterivelmente levados a conceber outras formas de ser sujeito (outras formas-
sujeito) e a considerar os meios mais adequados para trabalhar sobre nós mesmos.
A compreensão e o exercício dessas práticas e técnicas permite não só modificar
alguns elementos subjetivos e aprumar um ponto ou outro da conduta do sujeito, mas
encerra em si a possibilidade de uma transformação e transfiguração do modo de ser
do sujeito.
Então, sob a perspectiva da noção de “experiência” que atravessa toda a
trajetória filosófica de Foucault, poder-se-ia conceber um jogo filosófico cujo objetivo
fosse especificamente uma experiência transformadora do sujeito. Por conseguinte,
ao propor um jogo filosófico sobre o desejo a seus contemporâneos, Foucault
pretendia mais incitar os outros a realizarem suas próprias pesquisas sobre o assunto
do que convencê-los de suas teses. Isso porque, só tomando para si a
responsabilidade de pensar a experiência filosófica atinge todo seu potencial de
transformação do sujeito. Mas que jogo seria capaz disso? Que jogo teria esse
potencial transformativo? Mais do que conceber, é possível demonstrar que esse jogo
foi efetivamente proposto por Foucault em 1976.

56
Tratar-se-ia de um jogo no qual seria proposto escrever (estabelecer uma
narrativa) não sobre o que o sujeito já sabe, mas sobre algo que, embora não saiba
ou sobre o qual não esteja seguro (ou justamente por isso) mobiliza sua vontade de
saber. Tratar-se-ia, em nossa concepção, de um jogo que visaria proporcionar a maior
quantidade de participantes possíveis (ou seu equivalente em intensidade,
engajamento, etc.) uma experiência tal que os transformasse sem anulá-los. Tratar-
se-ia de propor que os participantes fizessem seus próprios “experimentos
genealógicos”: Em síntese, podemos pensar o referido jogo proposto por Foucault
como um “concurso” de narrativas históricas cuja produção envolve experiências
potencialmente transformadoras.

Meu problema é o de fazer eu mesmo — e de convidar os outros a fazerem


comigo, por meio de um conteúdo histórico determinado — uma experiência
daquilo que nós somos, daquilo que não é somente o nosso passado mas
também o nosso presente, uma experiência de nossa modernidade de tal
maneira que dela saímos transformados.

(Foucault, [1978] 2010, p.292)

Mas apesar de toda inquietação gerada por A vontade de saber e a despeito


das expectativas relativas às análises viabilizadas pela noção de dispositivo da
sexualidade, vê-se um distanciamento dessa perspectiva nos desenvolvimentos
ulteriores.70 Após os cursos de 1974 e 1976 no Collège de France, Foucault gozara
de um ano sabático onde dera ensejo a, conforme relata Daniel Defert, pesquisas
sobre monges e padres dos primeiros séculos. Tratava-se de um novo canteiro teórico
cujas análises lhe permitiriam ir além da óptica estabelecida em Vigiar e punir (1975)
e reproduzida no primeiro volume da série sobre a sexualidade.

Entretanto, ainda que essa óptica assumida em A vontade de saber tenha sido
posta de lado pouco tempo depois, os ensaios que compõem essa obra fazem dela
algo mais que um mero “livro programa”, independentemente de suas teses terem
sido ou não testadas. Talvez seja o caso de considerá-la, inclusive, como gesto
filosófico supremo de um pensador que estava menos engajado com as hipóteses ali
propostas do que levado pela esperança lúdica de angariar rivais dispostos a travar
debates sobre elas. Afinal, se tomarmos por base essas suas palavras — “estou

70 A quarta capa de A Vontade de Saber anuncia originalmente uma sequência em 5 tomos: II. A carne e o corpo;
III. A cruzada das crianças; IV. A mulher, a mãe e a histérica; V. Os perversos; VI. População e raças. Mas nenhum
desses livros foi escrito. Contudo, segundo Frédéric Grós, o primeiro e segundo títulos são objetos de textos
contidos nos arquivos (Caixas XLIV e LI). GROS, F. In: Foucault, M., 2020.
57
realmente contente de estar aqui com vocês. Foi um pouco por isso que escrevi esse
livro dessa forma. Até o momento […] havia proposto problemas um pouco
complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta” —, seria isso ou
morrer de tédio. Não estaria Foucault em busca de qualquer cabeça pensante que,
em vez de se juntar a ele, lhe fizesse oposição e o instigasse a pensar diferentemente
do que já pensava? Se o jogo do pensamento consigo mesmo nos parece generoso,
se continua produzindo frutos, não é, em absoluto, por operar feito um monólogo
existencial. Ainda que o sujeito esteja a pensar trancado num quarto, longe de todos
que respiram, ele só concebe algo novo, só lhe advém uma nova ideia porque ele
internalizou um mundo de vozes antes de se isolar e se fechar sobre si.
Acompanhado, assediado, atormentado por um sem-número de vozes a lhe indagar,
a lhe questionar, a lhe censurar… Só assim o jogo do pensamento consigo mesmo
pode criar algo inédito, diferente do que fora até então. Sem um outro, sem a radical
alteridade, só resta a repetição inócua do mesmo.
Depois do livro de 1976 decorreu-se um relativo silêncio sobre a temática da
sexualidade na trajetória de Foucault. Sendo que nos cursos,71 por seu turno, se
empreendia uma elaboração de novos conceitos operadores de análise (1978–1979).
Para ter uma noção de conjunto, sublinhamos alguns pontos que nos interessam.
São seis os cursos correspondentes ao período ético ou, se preferirem, ao eixo
ético do pensamento de Michel Foucault. O primeiro deles, Do governo dos vivos
(1979–1980),72 se situa, justamente, no momento de transição da analítica do poder
para a genealogia da ética. Desenvolve a noção de “aleturgia” (de produção da
verdade do sujeito por ele mesmo) e de governo dos homens pela verdade. Por meio
de um primeiro exame das tecnologias do sujeito do cristianismo católico (batismo,
exomológēsis e exagóreusis), adentra, enfim, e de forma definitiva, no domínio da
ética. Em síntese, trata-se aí de uma genealogia da obediência cristã caracterizada
pela obedientia, a patientia e a humilitas.
O segundo desses cursos, Subjetividade e verdade (1980–1981),73 é
particularmente interessante para a problemática da historicidade do desejo por trazer

71 Quando mencionamos os cursos do Collège de France, geralmente indicamos o ano em que o autor inicia sua
pesquisa, seguido do ano em que ministra o curso.
72 Outra versão do conteúdo dessas análises estarão presentes nos volumes seguintes da História da Sexualidade.
73 Apesar da originalidade, boa parte das hipóteses deste curso não serão retomadas. O que permanece, todavia,

é a inflexão das análises no campo da ética. Neste sentido, debruçando-se sobre textos médicos, tratados de
casamento, interrogando o primado grego ativo/passivo nas distinções de gênero, essas aulas prenunciam O uso
dos prazeres e O cuidado de si.
58
hipóteses concernentes aos acontecimentos históricos e processos de subjetivação
envolvidos na mudança de um regime para outro da subjetividade ocidental. Através
do exame da experiência sexual ou, mais precisamente, da apreciação ética dos
prazeres sexuais na cultura antiga, delineia-se a estrutura da experiência antiga dos
aphrodisia74 (isto é, das práticas relativas ao prazer sexual). A experiência dos
aphrodisia é, a saber, seguida historicamente pela experiência cristã da carne que,
por sua vez, é seguida pela experiência da subjetividade moderna ancorada na
sexualidade.75 Foi, nos primeiros séculos de nossa era, a confiscação da experiência
sexual legítima para o interior do matrimônio e a crescente suspeita relativa aos atos
e prazeres sexuais que provocaram, por um lado, a subjetivação dos aphrodisia e, por
outro, a objetivação do desejo. Esses dois acontecimentos na subjetividade ocidental
propiciaram uma nova relação do sujeito com sua própria experiência sexual. É no
monaquismo cristão dos séculos IV e V, no entanto, a partir da intensificação da
relação do sujeito com sua própria sexualidade e a submissão desta relação às
técnicas de exame exaustivo, que emerge o sujeito de desejo. Ou seja, é do monge
sexualmente solitário e submetido às técnicas de confissão como o exame de
consciência que se começa a produzir um saber sobre o desejo. Estamos, então, nos
primórdios dessa vontade de saber sobre o desejo.
O terceiro curso, Malfazer, dizer verdadeiro: Função da confissão em juízo
(1981), apresenta uma história mais geral das tecnologias do sujeito, retomando,
inclusive, o exame de várias delas. Por exemplo, o exame de consciência pitagórico,
o exame de consciência estoico e o exame de consciência no monasticismo; a
orientação de consciência antiga e a orientação de consciência no monasticismo; a
penitência no cristianismo primitivo (exomológēsis) e a prática da veridicção nas
instituições monásticas dos séculos IV-V (exagóreusis); a exposição da alma
(expositivo animae) estoica e a publicação de si mesmo (publicatio sui) como pecador
no cristianismo primitivo; enfim, várias formas de “confissão” que vai da autoveridicção
espontânea até a confissão sob tortura como prova legal, passando pela confissão
sob tortura como prova inquisitorial. O fio condutor de todas essas análises é, no
entanto, como sugere o título, a função da confissão em juízo, a relação entre o
malfazer do sujeito e a necessidade desse mesmo sujeito de dizer a verdade sobre si

74 Não havendo em francês e, pelo menos, na maioria das línguas modernas palavras que correspondam ao termo
grego aphrodisia, Foucault geralmente o emprega sem traduzi-lo.
75 Parte desses desenvolvimentos também serão retomados nos próximos volumes da História da Sexualidade.

59
mesmo. Todas essas análises desembocam, no fim das contas, na problematização
da questão da subjetividade criminosa do século XX, da hermenêutica do sujeito
criminoso e da significação do criminoso para ele mesmo.
A hermenêutica do sujeito (1981–1982) é, sem sombra de dúvidas, o curso
mais conhecido de Foucault, tanto que foi o primeiro dos cursos remanescentes a ser
editado, tal como o primeiro a ser publicado no Brasil. Ainda na esteira da problemática
geral da subjetividade e verdade, nele fora realizada uma laboriosa investigação
acerca da noção de “Cuidado de si” (epiméleia heautoû) de modo a demonstrar sua
prevalência sobre o célebre princípio do “Conhece-te a ti mesmo” (gnōthi seauton) no
que diz respeito a organização das práticas filosóficas. Essas análises incidiram sobre
os modos de constituição do sujeito, lançando luz sobre os modos de subjetivação
antiga e, colateralmente, evidenciando a precariedade dos modos de subjetivação
modernos. Digamos, de modo geral, que foi a partir da relação entre “conhecimento
de si” e “cuidado de si”, no contexto das “técnicas e práticas de si”, e nas adjacências
do estatuto do discurso filosófico e da espiritualidade, que se recolocou a questão das
condições de acesso à verdade. Foucault desenvolveu, nesse curso de 82, a despeito
do maciço contrapeso das interpretações tradicionais, uma análise inédita e de todo
fecunda referente ao célebre aforismo délfico (gnôthi seauton). Tratava-se aí de
questionar nada menos do que sua primazia. Contudo, ao julgar pela variedade de
significações que sobrecarregavam o status dessa máxima, o ponto donde partiu a
análise, o Primeiro Alcebíades, foi a um só tempo estratégico e justificável. Ora,
sabemos que a figura de Sócrates, mais do que qualquer outra, fora largamente
associada ao conhecimento de si. Mas importa lembrar também que fora sob a forma
de injunção a esse ou àquele homem livre que, particularmente, a simples expressão
da máxima passou a remeter a Sócrates e vice-versa. Logo, para colocar em questão
a primazia do gnôthi seautón, importava restituir, em torno do personagem de
Sócrates e no uso que este lhe dá, em que consistia o “conhecimento de si” ou, pelo
menos, o “conhecimento de si” socrático-platônico.76

76 Ademais, era de se esperar que uma tarefa significativa como a de questionar a primazia do gnōthi seauton
pudesse incitar desconfianças e, no mínimo, provocar o ceticismo de alguns. Por isso parece razoável supor que
fora para situar a análise à altura de sua pretensão e abrandar as resistências iniciais à sua tese (que de outro
modo talvez sequer fosse considerada), que pareceu adequado apoiá-la no célebre diálogo de Platão — a
propósito situado por neoplatônicos no pórtico de seu pensamento — no qual Sócrates discute com Alcibíades não
só o princípio do “conhece a ti mesmo” (gnōthi seauton), como também o do “cuidado de si” (epiméleia heautoû).
No que concerne à relação ou a dinâmica entre esses dois princípios, há de se considerar as respectivas e
complexas alternâncias de acentuação ocorridas por ocasião da organização das práticas filosóficas ao longo da
Antiguidade grega e romana.
60
Em O governo de si e dos outros (1982–1983), partindo mais uma vez da
questão kantiana sobre a Aufklärung — “O que é o esclarecimento? —, aborda-se a
questão da saída do estado de menoridade e o exercício da atividade crítica como
condição para o governo de si. Em seguida, empreende-se uma genealogia da prática
da parrésia, de seu uso clássico (político) ao socrático-platônico (ético). Esse curso
dá prosseguimento, portanto, à análise do Sócrates de Platão iniciada no curso do
ano anterior, mas dessa vez em torno, sobretudo, da prática da parrésia ética. A
relação parresiástica é, então, esmiuçada, decomposta e expostos os elementos que
a constituem. Por fim, a partir de um exame das Cartas de Platão e de uma
interpretação original do discurso platônico, discorre sobre o tema da filosofia como
modo de vida e apresenta uma visão da filosofia antiga (e da filosofia moderna, no
que esta última retoma da filosofia antiga) como prática da alma.
No último curso A coragem da verdade (1983-1984), segue-se com a
genealogia da parrésia e a distinção entre esta e outras modalidades do dizer-
verdadeiro na cultura antiga. Um lugar de destaque é dado às práticas do dizer-a-
verdade sobre si mesmo e à figura do mestre de existência no horizonte do cuidado
de si, assim como à consideração do objeto do dizer-a-verdade parresiástico.
Demarca-se o surgimento de uma parrésia propriamente ética. A parrésia socrática
ou socrático-platônica é analisada de vários ângulos, assim como a parrésia cínica.
Aborda-se também o problema da vida filosófica e a consideração de seus elementos
tradicionais (a armadura de vida, o cuidado de si, os conhecimentos úteis e a vida
conforme). A responsabilidade da humanidade e o governo do mundo. A soberania
da vida cínica é baseada na felicidade e na manifestação da verdade. A atitude cínica:
conforme a verdade, conhecimento de si, vigilância dos outros. A transformação de si
e do mundo.
Nesse ínterim, no que concerne aos livros, uma vez que só oito anos depois do
primeiro volume da série sobre a sexualidade surgiram o segundo e terceiro volumes
— O uso dos prazeres (1984) e O cuidado de si (1984) —, e só recentemente fora
publicado o último, uma síntese dos cursos se fazia necessária para melhor situar o
complexo desenvolvimento dessa história crítica.
Em O uso dos prazeres77 foram anunciadas as modificações, a propósito,
radicais, feitas em relação ao projeto inicial. Essas alterações referentes à

77 Foucault, 2014, p.7-19.


61
periodização, fontes e metodologia praticamente estancaram as incursões críticas
relativas à incitação aos discursos sobre o sexo. Assim, deslocou o foco e, daí em
diante, todo esforço se voltara para a problematização moral dos prazeres na
Antiguidade clássica e tardia em torno da noção de aphrodisia, do uso dos prazeres.
Em O Cuidado de si, analisou-se o desenvolvimento de uma “Cultura de si” que atingiu
seu apogeu nos séculos I e II d.C. e sua relação com as transformações institucionais
do casamento e todo o conjunto de deslocamentos políticos, sociais, filosóficos e
éticos em torno do matrimônio e do vínculo conjugal.
As datas de publicação dos diferentes volumes da História da sexualidade
talvez encubram o gesto que indicava a proposta de um jogo filosófico em torno da
noção de desejo. Quase uma década e mudanças radicais se impõem entre o primeiro
e os dois volumes seguintes da série, um pouco mais de três décadas transcorreria
antes da publicação do quarto volume e mais de quatro décadas, no total, separam
este último do ato inaugural de A Vontade de saber.
É possível notar uma mudança no estilo de escrita de Foucault a partir de A
vontade de saber (1976), mas que só se acentua e se consolida com a publicação de
O Uso dos prazeres (1984) e O Cuidado de si (1984). No entanto, que importa que
tenha mudado? Que significação podemos dar a essa transformação do estilo em que
se inscreve o pensamento tardio de Foucault? Com efeito, não só a escrita se encontra
mais plana e menos barroca como a forma sob a qual se apresenta esse, digamos,
terceiro eixo de seu pensamento está diferente. Foucault agora privilegia a forma do
ensaio por meio do qual conduz, como que pela mão, seu interlocutor. A História da
sexualidade (1976–2018), última e mais extensa obra do autor, é, como sabemos,
basicamente composta por um conjunto de ensaios onde se desenvolvem uma
variedade de estudos específicos sobre a temática da sexualidade na cultura antiga.
Sem receio de seguir clichês úteis à Academia, podemos sublinhar as locuções
designativas “um conjunto de ensaios” e “uma variedade de estudos específicos” para
nortear duas advertências preliminares.
Primeiro: em vez de tomarmos essa obra relativa à temática da sexualidade
como um trabalho sistemático e auto-finalizado, talvez convenha encará-la, senão
sempre ao menos na maioria das vezes, como uma série justaposta de campos de
problematização desiguais. Isto é, ela é menos um grande estudo sobre a sexualidade
do que uma compilação de vários estudos locais que perpassam a problemática da

62
sexualidade no Ocidente. Cada um dos ensaios possui certa independência em
relação aos demais. Essa independência permite que determinado ensaio possa ser
tomado como peça de um ato filosófico maior ou como um ato filosófico em si
mesmo.78 Lembremo-nos da comparação das noções foucaultianas com uma caixa
de ferramenta e de Foucault ter se referido ao primeiro volume da História da
Sexualidade como uma “espécie de queijo de gruyère, com furos, para que
pudéssemos nos alojar neles”. 79
Em segundo lugar, na leitura dessa história da sexualidade tanto importa
considerar seu conteúdo sem perder de vista sua forma como reparar na forma sem
afastar-se do conteúdo. Ou seja, convém manter certa sensibilidade intelectiva em
relação ao que se depreende da forma, do próprio formato ensaístico que a compõe
e dos efeitos que tem sobre a atividade reflexiva. Assim como convém, por outro lado,
cultivar um estado de espírito desimpedido que favoreça as experiências do
pensamento diante dos conteúdos (específicos de cada análise). Desnecessário dizer
que a experiência do pensamento com a forma e com o conteúdo de um ato filosófico
(em relação ao qual o típico texto é apenas um formato) nunca é completamente
distinta uma da outra, mas imbricada e complementar.
Ao que, afinal, somos mais fiéis à forma ou ao conteúdo? Uma vez que
estivermos a par do conteúdo informacional, abdicaremos da apreciação da forma? O
que importa é o que é dito ou o como é dito? Não é como se a forma tivesse, ela
mesma, algum tipo especial de conteúdo? E se, pelo contrário, o conteúdo estiver
desorganizado, rasurado, disforme, manchado, nos debruçaremos sobre ele com o
mesmo afinco? Não deveria a forma nos conduzir pela mão sobre os escombros do
conteúdo? Não deveria a forma nos fazer ver o mesmo conteúdo de outra maneira?
Nos fazer ver coisas inéditas no mesmo? Alguns consideram o ensaio um tipo de texto
híbrido, situado entre a filosofia e a literatura. Foucault, no entanto, o considera “o
corpo vivo da filosofia”. Assim o descreve numa passagem de O Uso dos Prazeres:

O "ensaio" — que é necessário entender como experiência modificadora de


si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para
fins de comunicação — é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for
ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exercido de si, no
pensamento.

78 Por exemplo, O trabalho da alma (capítulo IV, seção 4) de O Cuidado de si, é um “texto ferramenta” com
significativa independência dos demais.
79 Foucault, [1977] 2014, p. 44.

63
(Foucault, [1984] 2014, p.13-14, grifo nosso)

Devemos compreender que “ascese” tem aqui — por isso as aspas — o sentido
de áskēsis, o de um exercício de si sobre si, sobretudo, no pensamento. Significa que
o labor ao mesmo tempo intelectual e afetivo que caracteriza o ensaio é refletido no
próprio ser do sujeito. O esforço empreendido no ensaio é experimentado como um
exercício espiritual, como um exercício sobre si mesmo. O ensaio subentende uma
relação com a verdade, uma dinâmica com a verdade, uma interação com a verdade,
enfim, todo um jogo constitutivo entre o sujeito e a verdade que configura uma
experiência transformadora de si.
Com efeito, a respeito da verdade que se encontra em jogo no ensaio, disse
Jorge Lorrosa em Operação ensaio (2014) que “trata-se não tanto da verdade
subjetiva, como da verdade da subjetividade”. O que é comunicável? O que vale a
pena escrever? “O que vale a pena pensar não é o real abstrato e nem o real empírico;
não é a verdade mais ou menos definitiva do que são as coisas, mas a experiência
viva de alguém, o sentido sempre aberto e móvel do que nos acontece”. 80
Por que o ensaio parece manter, comparado a outras formas de escrita, uma
relação especial com a verdade? Qual é a especificidade da relação do ensaio com a
verdade? Acontece que, no ensaio, o sujeito ocupa o lugar de fundamento da verdade.
“Dissolvidas as garantias transcendentais, o sujeito não tem outro fundamento a não
ser aquele que ele mesmo seja capaz de se dar”. 81 Por isso, observa Larrosa, o sujeito
“oscila entre sua precariedade e sua arrogância, o reconhecimento de sua
insubstancialidade e sua vontade de fazer-se a si mesmo e de fazer o mundo”.82 Por
que o ensaio pode dar ensejo a uma experiência modificadora de si?

Não se trata de medir o que há, mas de medir-se com o que há, de
experimentar seus limites, de inventar suas possibilidades. A verdade do
ensaísta não é algo exterior, mas algo que a própria vida faz. Trata-se da
verdade da subjetividade, da verdade feita subjetividade — e de uma
subjetividade que se faz verdadeira no ato mesmo de ensaiar-se. O ensaísta
sempre escreve e pensa sobre si mesmo e a partir de si mesmo. O valor de
sua escrita e de seu pensamento não se apoia em nada exterior, em nenhuma
autoridade, em nenhuma convenção. Por isso, o ensaísta arca com a
responsabilidade do que é dito, e é essa responsabilidade que o torna
verdadeiro. O ensaio tem algo da expressão de uma subjetividade, da
biografia de uma subjetividade. Mas desde que essa subjetividade expresse
um mundo, o seu mundo. E, também, desde que essa subjetividade se ponha

80 Larrosa, J. A operação ensaio. Sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação
& Realidade. 29(1):27-43 jan/jun 2004. p.38.
81 Ibid. p.36.
82 Ibid. p.36.

64
à prova, se ensaie, se invente e se transforme. Por isso, o ensaísta não só
põe em questão o que somos, o que sabemos, o que pensamos, o que
dizemos, o modo como olhamos, como sentimos, como julgamos, mas, acima
de tudo, põe em jogo a si mesmo nesse questionamento. Por isso, o ensaio
é, também, olhar a existência a partir dos possíveis, ensaiar novas
possibilidades de vida.

(Larrosa. 2004, p.37)

Para Larrosa, Foucault transformou a relação entre o sujeito e a verdade de


três formais: desnaturalizando o dispositivo moderno a partir do qual se definem as
regras dos jogos de verdade; criticando determinada vinculação entre subjetividade e
verdade e convidando o sujeito a dessujeição de si mesmo em relação às políticas da
verdade; e tornando verdadeiro aquilo que não deixa de destituir aquele que pensa,
que fala e que vive de questionar seu próprio pensamento, discurso e existência. 83

O ensaio, então, não é mais a expressão de um sujeito, mas o lugar no qual


a subjetividade ensaia a si mesma, experimenta a si mesma, em relação à
sua própria exterioridade, àquilo que lhe é estranho.

(Larrosa, 2004, p.38)

Larrosa considera o ensaio é uma das três maiores linguagens da experiência,


sendo as outras duas a poesia e a narrativa. “O ensaio pode ser tomado como uma
linguagem da experiência, como uma linguagem que modula de um modo particular a
relação entre experiência e pensamento, entre experiência e subjetividade, e entre
experiência e pluralidade”.84 Visto que o ensaio é a um só tempo a forma não regulada,
a forma mais variada e a forma mais subjetiva da escrita e do pensamento, ele julga
haver tantos ensaios quanto ensaístas. E quanto ao caráter genuinamente
experimental do ensaio? Pois bem, Larrosa declara que o ensaio é, justamente, “o
modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda
pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita
que dá o que pensar”, mas também é o modo experimental da vida, “de uma forma de
vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma, a uma permanente
metamorfose”.85 Assim, uma das características fundamentais do ensaio é uma
incessante problematização e reproblematização de si mesmo.

83 Larrosa, 2004, p.38.


84 Ibid. p.31.
85 Ibid. p.32.

65
4. Situação do jogo

Apesar dos métodos de pesquisa foucaultianos remeterem ao passado, seria


absolutamente inexato dizer que Michel Foucault não se dedicou a pensar o modo de
vida contemporâneo. Seu interesse pelas problemáticas do sujeito moderno ocidental
e a experiência que este efetivamente podia fazer de si mesmo se faz notar ao longo
de toda sua obra. Então, uma preocupação constante com o sujeito, com a
subjetividade e com a verdade parece pairar como pano de fundo da maioria dos
trabalhos do filósofo que, através da problematização dos modos de subjetivação, das
maneiras por meio das quais os sujeitos se constituem, das maneiras através das
quais estabelece e dos princípios sobre os quais fundamentam subjetivamente uma
relação de si para consigo e de si para com os outros, não só esboça uma face de
seu diagnóstico do presente como convoca seus ouvintes e leitores — conduzindo-os
através das análises e, sobretudo, a partir das conclusões que tira — a se implicarem
eticamente com esse presente.
Ora, Jorge Larrosa — para quem, lembremos, Foucault é antes de mais nada
um ensaísta —, diz a respeito da relação entre o passado, o presente e a verdade que
adotando a máscara do historiador o ensaísta não toma como tema de suas histórias
o passado, mas o presente. Para ele, “o que interessa ao ensaísta-historiador é a
história do presente: não a verdade de nosso passado, mas o passado de nossas
verdades; não a verdade do que fomos, mas a história do que somos, daquilo que,
talvez, já estamos deixando de ser”.86
Ao colocar a questão da história da loucura, por exemplo, esclarece a maneira
que nos relacionamos com o louco e a experiência que tem o sujeito da própria
loucura. Ao questionar a origem histórica da anormalidade, que lugar ela ocupa em
uma sociedade como a nossa, não deixa de lançar alguma luz sobre que experiência
tem de si o sujeito anormal. Quando explica porque as práticas sexuais entre homens
no período clássico grego não correspondem a homossexualidade tal como é
conhecida a partir do século XIX, não deixa de indicar aí outras possibilidades de
experiência sexual entre sujeitos do mesmo sexo não contempladas por uma
determinada categoria histórica. E quando se trata de comparar experiências distintas,

86 Ibid. p.34.
66
uma de um passado mais ou menos longínquo e outra de um período mais recente,
não deixa de considerar quais acontecimentos foram necessários e suficiente para
suprimir uma e constituir a outra, o que quer dizer: eis como, a partir de tais
acontecimentos historicamente assinalados, demarcados e analisados nos
constituímos enquanto tais, nos tornamos o que somos. Em suma, um dos aspectos
que está sempre em jogo é: quais discursos, práticas e normas atuam em dado
momento histórico determinando uma forma de ser e de agir do sujeito consigo mesmo
e com os outros? Tanto que em 1984, num artigo intitulado Uma estética da
existência87 (1984), o próprio Foucault dirá a respeito de seus últimos livros — O uso
dos prazeres (1984) e do O cuidado de si (1984) — que não acredita haver grande
diferença entre eles e os anteriores.
Desse modo, poderíamos afirmar que, no fundo, todos os livros de Foucault
visam algo semelhante: em primeiro lugar, fazer um retrato do sujeito, ou antes, traçar
perfis do sujeito moderno ocidental (do louco, do delinquente, do anormal…) de modo
a colocá-lo em evidência sob esse ou aquele ângulo até então não visto; em suma,
demonstrar, relativamente à subjetividade, a contingência histórica do que é. E em
segundo lugar, incitar seus contemporâneos a, diante de uma nova percepção do
sujeito, se implicarem com questões da atualidade, com questões do presente
histórico que os constituem enquanto tais e atravessam a experiência que fazem de
si mesmos. Em termos mais simples, seria como botar um espelho diante das
pessoas, um espelho que não mostrasse apenas a imagem atual de cada uma, mas
várias imagens da construção de seu jeito de ser, de agir e dos problemas que,
embora reais, são tão cotidianos que, uma vez naturalizados, se encontravam
dissimulados. E o que se pretende com isso? O que se tem em vista ao proporcionar
essa visão às pessoas? Estimulá-las a se importarem com esses problemas, é claro.
Contudo, o que realmente podemos esperar de alguém implicado com as
problemáticas de seu presente histórico? O que, de fato, uma pessoa real poderia
fazer? Por mais incitada que tenha sido, por mais encorajada que se encontre e por
maior que seja o entusiasmo com o qual respondera à exortação do filósofo, o que
realmente podemos esperar dela? Que percurso deve conduzi-la à ação?
Ora, a necessidade de que o sujeito se ocupe consigo mesmo, de que cuide
ativamente de si mesmo de maneira a aplicar-se de forma regrada e contínua numa

87 Foucault, [1984] 2004, p.289.


67
elaboração de si antes de se ocupar com as questões públicas e o eventual governo
dos outros é um tema muito antigo e inúmeras vezes retomado. Foucault mesmo o
explorou no curso de 1982 a partir da análise do primeiro Alcebíades. De resto, as
maneiras do sujeito se ocupar consigo mesmo de modo a elaborar um trabalho sobre
si visando sua transformação são hoje bastante conhecidas, seja como “técnicas de
si”, como as denomina Foucault, seja como “exercícios espirituais”, como as denomina
o helenista Pierre Hadot — principal interlocutor de Foucault sobre o tema. Entretanto,
não é para o conjunto dessas técnicas ou exercícios que gostaríamos de chamar
atenção, mas para uma prática e uma experiência, várias vezes mencionada por
Foucault, a escrita:

Quando escrevemos livros, desejamos que estes modifiquem inteiramente


tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos percebamos inteiramente
diferentes do que éramos no ponto de partida. Depois nos damos conta de
que, no fundo, pouco nos modificamos. Talvez tenhamos mudado de
perspectiva, girado em torno do problema, que é sempre o mesmo, isto é, as
relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência.

(Foucault [1984] 2004, p.289)

Mas que graça teria fazer o que quer que seja inteiramente sozinho? Em
realidade, tal empresa não é sequer concebível. E ocupar-se consigo mesmo, aplicar-
se, trabalhar-se, exercitar-se e experimentar-se de novas maneiras só faz sentido
quando têm por objetivo estabelecer uma relação tal consigo mesmo que viabilize
alcançar um determinado modo — que se almeja — de se relacionar com o outro.
Assim, o outro é, de certo modo, uma medida para o sujeito, um referencial, um
parâmetro, seu fim depois de si e fora de si. Pois assim como, para os antigos, a
salvação não era um individual, mas coletiva, Foucault nunca se conformou
completamente com a ideia de uma prática filosófica isolada, solitária, pois, para ele
a filosofia é, assim como a amizade, um modo de vida. E como modo de vida, como
questão de existência, a filosofia só encontra seu real quando, dando ensejo à verdade
no sujeito ou dando a este acesso à verdade, arranca-o de si e o transfigura.
Como disse, a amizade era algo importante para Foucault. Na entrevista Da
amizade como modo de vida88 concedida ao jornal Gai Pied e publicada em abril de
1981, ele fala sobre amizade e homossexualidade: “Tão longe quanto me recordo,

88De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada
no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, p.38-39.
68
desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso sempre foi, para mim, algo
importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de
existência”.89 E é como uma questão de existência que valoriza, sobretudo, o
compartilhamento de experiências: “compartilhar seus tempos, suas refeições, seus
quartos, seus lazeres, suas aflições, seus saberes, suas confidências”. 90 Embora essa
passagem diga respeito mais à sua vida pessoal do que a qualquer outra coisa, indica-
se aí duas coisas importantes: uma concepção de amizade como modo de vida e o
quanto Foucault valoriza o compartilhamento de experiências. Por que essas
informações são importam? Porque vemos nítidas ressonâncias disso no Foucault
filósofo que, além de apreciar o compartilhamento de experiências, o diálogo, o
debate, parecia almejar algo mais, algo como o compartilhamento de uma experiência
com a qual estava habituado, a experiência de transformação por meio da pesquisa e
da prática filosófica. Parecia querer compartilhar essa experiência não com um grande
público, como ocorria nos cursos do Collège de France, mas com um pequeno grupo,
mais próximo, mais íntimo.
Pois bem, vamos por partes. Que Foucault buscava ativamente interlocutores,
há numerosas indicações disso em entrevistas, em passagens dos cursos no Collège
de France e em declarações de pessoas próximas. Seu desejo era de aproximar, tanto
quanto possível, a forma de seu curso à de um seminário. A aula de 3 de fevereiro de
1982 do curso A hermenêutica do sujeito, por exemplo, começa, por sugestão do
próprio Foucault, com essa observação e com uma série de perguntas feitas pelos
ouvintes.

Bem, tenho sempre em mente que, se vocês eventualmente tiverem questões


a propor, seria bom que o fizessem. Como uso duas horas seguidas, o curso
que ministro tem um pouco a forma de seminário. Enfim, tento trazer um tipo
de material ou fazer certas referências que, de ordinário, mais dificilmente
têm lugar em um curso. Gostaria de aproximar um pouco esse procedimento
do que poderia ser um seminário. Porém, em um seminário isso implica que
haja algumas respostas, ou questões, ou questões-respostas. No momento,
por exemplo, há pessoas que gostariam de colocar questões, sejam elas
puramente técnicas, sejam questões gerais acerca do sentido da minha
exposição? Sim?

(Foucault, [1982] 2004, p.169, grifo nosso)

89 Ibid. p.38.
90 Ibid. p.38.
69
Não precisamos reproduzir aqui a série de questões e respostas transcorridas
nessa aula. O trecho citado parece suficiente para atestar que interessava a Foucault
que lhe colocassem questões. Essa foi, inclusive, uma das poucas ocasiões em que
ele e seus ouvintes se estenderam por mais tempo discutindo. No mais das vezes, os
cursos não proporcionavam interlocutores. Quando proporcionavam, a discussão não
se estendia: “[…] recebi agora há pouco uma objeção de um ouvinte, para precisar
uma ou duas coisas, caso não tenham ficado claras. A objeção é de fato
interessante”.91

Respondo a essa objeção, primeiro porque gosto muito que me façam


objeções. É ótimo. Dadas as dificuldades de circulação que há num auditório
como este, uns são obrigados a escrever, outros a responder oralmente. E,
segundo, creio que essa objeção, de fato, sem dúvida correspondia a certas
imprecisões que pude cometer na exposição, em todo caso penso que essas
mesmas objeções poderiam ser feitas por outros, logo estou contente por ter
podido responder a elas como fiz.

(Foucault, [1982-83], 2010, p.173)

Com efeito, como trabalhar filosoficamente senão através de questões?


Responder a uma nova objeção é uma oportunidade de repensar a problemática por
outro ângulo. Quando se trata de filosofia, esclarecer alguém sobre alguma coisa é,
ao mesmo tempo, se esclarecer. Em outras palavras: quando se trata de responder a
uma questão inédita, trata-se de fabricar um enunciado que não existia antes da
questão. Os obstáculos que, por razões legais, o Collège de France impôs a maneira
que Foucault gostaria de trabalhar, isto é, ao modo de vida filosófico desejado por ele,
rendeu à instituição algum ressentimento por parte do filósofo.

Em todo caso, numa das sessões que poderemos realizar depois das férias,
como já fizemos, poderemos continuar a discussão. […] No fim das contas,
acredito que essa prática da questão escrita e da resposta oral é uma das
possibilidades, mais uma vez, de comunicação numa instituição que
evidentemente não é feita para o diálogo e o trabalho em comum, o que acho
uma pena.

(Foucault, [1982-83], 2010, p.173)

Entretanto, numa nota das edições brasileiras dos cursos de Foucault no


Collège de France, encontramos a seguintes informações a respeito do ensino do
filósofo nessa instituição: “As aulas […] ocorriam nas quartas-feiras, do início de

91 Início da aula de 9 de fevereiro de 1983, primeira hora, [1982-83] 2010, p.171.


70
janeiro ao fim de março. O público, muito numeroso, composto de estudantes,
professores, pesquisadores, curiosos, muito deles estrangeiros, mobilizava dois
anfiteatros […]”.92 E mais:

Michel Foucault muitas vezes lamentou a distância que isso podia instalar
entre ele e seu “público”, e o pouco intercâmbio possibilitado pela forma do
curso. Ele almejava um seminário que fosse lugar de um verdadeiro trabalho
coletivo. Fez diferentes tentativas nesse sentido. Nos últimos anos, no final
da aula, dedicava um longo tempo para responder às perguntas dos ouvintes.

(Foucault, [1982-83], 2010, p.XII, grifo nosso)

Pois bem, Foucault almejava então “um seminário que fosse lugar de um
verdadeiro trabalho coletivo”. Por isso gostava das objeções, por isso apreciava tanto
as perguntas e se dispunha a respondê-las com toda a atenção, fosse na aula ou
depois. Mas, verdade seja dita, nem mesmo sempre foi assim, nem sempre haviam
perguntas, nem sempre parecia haver interlocutores por trás daqueles rostos
amontoados diante do filósofo. Em 1975, como informa a mesma nota, um jornalista
descreveu da seguinte maneira o fim de uma aula: “Foucault para. Os estudantes
precipitam-se à sua mesa. Não para lhe falar, mas para desligar os gravadores. Não
há perguntas. Na confusão, Foucault está só”.93
Sobre como era para ele, enquanto filósofo, a experiência de ministrar um curso
naqueles moldes, comenta o professor do Collège de France:

Seria preciso poder discutir o que propus. Por vezes, quando a aula não foi
boa, bastaria pouca coisa, uma pergunta, para tudo reordenar. Mas essa
pergunta nunca vem. Na França, o efeito de grupo torna impossível qualquer
discussão real. E, como não há canal de retorno, o curso se teatraliza. Tenho
com as pessoas presentes uma relação de ator ou de acrobata. E, quando
termino de falar, uma sensação de total solidão…

(Foucault, [1982-83], 2010, p.XII, grifo nosso)]

Ah, “quando termino de falar, uma sensação de total solidão…”, não seria a
primeira nem a última vez que um pensador se sentiria só. Donde vem essa sensação
que parece perseguir os pensadores? De alguma falha de comunicação? De supor
que não o compreendem apesar de seus esforços? Seja como for, o mal-entendido e
a incompreensão não é nenhuma novidade e talvez seja o que há de mais corriqueiro
na trajetória de um pensador. Embora todo um vocabulário e forma de articulação

92 Foucault, 2004, p.XI-XII.


93 Foucault, [1982-83], 2010, p.XII.
71
tenha sido desenvolvido para transmitir ou, melhor ainda, para comunicar seu
pensamento, não há garantias de entendimento e tampouco de intercâmbio de ideias.
Sonhava Foucault com uma comunidade de intelectuais formada pelo interesse
comum da partilha intelectual? Uma comunidade onde, numa perpétua luta contra o
mal-entendido, sempre houvesse perguntas a serem feitas e às quais responder, onde
os diálogos fosse coisa cotidiana e onde ocorressem longas e constantes discussões?
Uma comunidade onde cada intelectual, de seu próprio lugar de fala, pudesse
contribuir para um trabalho em comum? Quais são as possibilidades e limites do
trabalho cooperativo em filosofia? Sobre isso, comenta o Frédéric Gros na “situação
do curso” de 1983:

Mais do que antes, sente-se em 1983 que Foucault transmite trabalhos em


curso […] A impressão de participar da gestação de uma pesquisa é
fortíssima, com frequência, e o tom nunca é dogmático […]. Essa dimensão
de laboratório de ideias, de balões de ensaio teóricos, de caminhos traçados
suportava, no fim das contas, muito mal as condições encontradas por
Foucault no Collège de France: um vastíssimo público silencioso, cativado,
disposto a receber uma palavra magistral num recolhimento e numa
admiração sem falha. Nenhum intercâmbio, nenhuma discussão. Numerosas
vezes Foucault se queixa desse ambiente e da atitude que ele lhe impõe.
Como ele mesmo diz, está condenado ao “teatro”, a representar o papel do
grande professor oficiando sozinho do seu púlpito. Várias vezes, exprime seu
descontentamento e diz a sua vontade de encontrar estudantes e professores
que trabalhem sobre temas próximos, a fim de poder fazer um intercâmbio de
perspectivas. Ele organiza encontros, reserva salas para tentar reconstruir
um pequeno grupo de trabalho. Em 1984, essa saudade do trabalho em grupo
ainda se fará sentir.

(Gros In: Foucault, [1982-83] 2010, p.351, grifo nosso)

De fato, em 1984 essa saudade do trabalho em grupo ainda se fará sentir. Ao


iniciar o curso desse ano,94 Foucault relembra os ouvintes da obrigação imposta pelo
Collège de France aos professores:

Os professores do Collège têm a obrigação de informar regularmente, nesses


cursos públicos, sobre as pesquisas que fazem. Esse princípio traz
problemas e levanta algumas dificuldades, porque o trabalho, a pesquisa que
se pode fazer implicam cada vez mais […] um trabalho coletivo, trabalho
coletivo que, bem entendido, só pode ser feito sob a forma de um seminário
fechado, e não numa sala enorme como esta e com um público tão numeroso.

(Foucault, [1984] 2011, p.4)

94 Aula de 1º de fevereiro de 1984.


72
Ocorre-lhe então uma ideia — que, aliás, não se concretizaria — de dividir seu
ensino entre cursos públicos e cursos privados.95 Esses últimos “seriam reservados a
pequenos grupos de trabalho, com alguns estudantes ou pesquisadores mais
especializados na questão a estudar.” E os cursos públicos se tornariam, de certo
modo, a versão exotérica do trabalho um pouco mais esotérico feito em grupo.
Esotérico tem aqui o sentido ou um sentido próximo daquele que tinha nas escolas
filosóficas da Antiguidade, uma vez que, para Foucault, o labor filosófico não é apenas
um trabalho intelectual em sentido estrito e não se resume a operações da faculdade
do entendimento, mas também é uma ascese (áskēsis), um trabalho que o sujeito
empreende sobre si mesmo, um modo de subjetivação. 96 “O ascetismo como renúncia
ao prazer tem má reputação. Porém a ascese é outra coisa. É o trabalho que se faz
sobre si mesmo para transformar-se ou para fazer aparecer esse si que, felizmente,
não se alcança jamais”.97
Com o projeto de um ensino esotérico tratar-se-ia de estabelecer, portanto, as
condições necessárias não só para um trabalho filosófico em comum como também
para uma experiência filosófica baseada na relação com o outro e o intercâmbio de
ideias. Esses elementos são imprescindíveis para uma filosofia como modo de vida.
Entretanto, a condição ontológica para a áskēsis é o sujeito não natural. Para o
exercício da liberdade de ser, para uma maior liberdade de subjetivação, deve-se
combater todo tipo de naturalização do sujeito. E como fazer isso? Produzindo e
promovendo discursos críticos desnaturalizantes do sujeito.

É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente


contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas não necessárias. É

95 De acordo com a nota 2 da aula de 1º de fevereiro de 1984 (2011, p.19), no ano anterior Foucault já havia
sugerido a criação de um pequeno grupo de trabalho formado exclusivamente por pesquisadores cujas propostas
de trabalho dialogassem.
96 Na aula de 1º de fevereiro de 1984 Foucault (2011, p.29-30) fala uma última vez em sala de aula sobre o projeto

de um seminário fechado: “Sobre o seminário, mais uma vez, temos aqui um problema institucional e jurídico. Em
princípio, não temos o direito de fazer seminário fechado. E quando me ocorreu fazer um seminário fechado – o
que fizemos sobre Pierre Rivière, por exemplo, alguns talvez se lembrem , houve queixas. — E, de fato,
juridicamente, não temos o direito de fazer um seminário fechado. Só que, para certos tipos de trabalho, pedir por
um lado aos professores para fazer publicamente uma apresentação das suas pesquisas, impedindo-os por outro
lado de ter um seminário fechado onde passam, com estudantes, fazer pesquisas, creio que há uma contradição.
Em outras palavras, podemos pedir a um professor que faça a apresentação das suas pesquisas em ensino
público, e nada mais que isso, se ele faz pesquisas que pode realizar sozinho. E, por assim dizer, é por razões
puramente técnicas que, de fato, há anos eu dou cursos sobre a filosofia antiga, porque basta afinal de contas ter
os duzentos volumes de Budé à disposição, e pronto. Não precisamos de um trabalho de equipe. Mas se – o que
eu gostaria de fazer — quero estudar as práticas, formas, racionalidades de governo da sociedade moderna, só
posso fazer isso em equipe. Ora, vocês entendem, não é ofensa para ninguém aqui que esse auditório não poderá
constituir uma equipe. Então o que eu queria é obter o direito de dividir o ensino em dois: um público que é
estatutário; mas também um ensino, ou uma pesquisa em grupo fechado que é, creio, a condição para poder
realizar, ou ao menos renovar o ensino público que dou. […]”.
97 Ibid. p.38-39.

73
preciso fazer aparecer o inteligível sobre o fundo da vacuidade e negar uma
necessidade; e pensar que o que existe está longe de preencher todos os
espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que
se pode jogar e como inventar um jogo?

(Foucault, 1981, p.39)

Então, trabalhar na historicidade do desejo, na desnaturalização do sujeito


desejante, não seria uma estratégia de combate à naturalização do sujeito? Por isso,
ao lançar A vontade de saber Foucault lançava também um jogo relativo ao conceito
do desejo e a experiência do desejo no contexto geral da sexualidade. Há quem veja
na narrativa desse livro uma pré-história da psicanálise.98 Mas ainda que,
problematizando a noção de desejo em voga, visasse suscitar alguma reação entre
os psicanalistas, de modo algum seu projeto se restringia a isso. 99
Não obstante, contra o risco de que as múltiplas estratégias adotadas por
Foucault no desenvolvimento da História da sexualidade toldem a visão que temos da
obra, convém reter o seguinte: embora o filósofo tenha alterado radicalmente seu
projeto de uma história da sexualidade e essa mudança tenha envolvido várias etapas
até chegar à versão que conhecemos hoje, ele já trazia consigo desde pelo menos
1974 a ideia de colocar em xeque a tese naturalista do homem de desejo. Foi com
isso em mente que a princípio lhe ocorreu essa outra ideia de lançar um jogo em que
se colocasse a questão das narrativas possíveis relativas ao desejo. Como
proponente do jogo, tomou para si o dever da primeira jogada e fabricou uma primeira
narrativa histórico-crítica acerca da sexualidade, do sexo e do desejo por meio da qual
atacou de várias formas a “hipótese repressiva da sexualidade” Aliás, não só atacou
a “hipótese repressiva” (suposto sustentáculo da ontologia do desejo) como propôs
que ela fosse substituída por uma nova noção (mais promissora enquanto operadora
de análises), a de um “dispositivo biopolítico da sexualidade”. E, com efeito, pensar
as práticas discursivas e não discursivas relacionadas a sexualidade, ao sexo e ao
desejo como regidas por um dispositivo biopolítico nos conduz a ideia da historicidade
da sexualidade, só sexo e do desejo.
Evoco aqui mais uma vez a passagem inicial da entrevista O jogo de Michel
Foucault, de 1977, quando ele diz: “Até o momento, eu […] havia proposto problemas

98 Dunker, C. O sujeito da psicanálise e o sujeito foucaultiano, Falando nIsso, 181. 24 de jun. de 2018.
<https://www.youtube.com/watch?v=dz829CzFdFI&t=2s>. Acessado em Abril de 2021.
99 Uma boa analogia para essa situação é a cena da minissérie The Queen’s Gambit, de Scott Frank, em que a

protagonista Beth (órfã e prodígio no xadrez) joga simultaneamente com vários enxadristas sem se perder entre
as próprias estratégias ou abandonar qualquer uma das mesas.
74
um pouco complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta.” Parece
que a partir daí havia decidido mudar seu estilo, e não por acaso, mas tendo em vista
um propósito em nível da transmissão de sua filosofia. Parece que encarou o fato de
ficar a maior parte do tempo sem respostas como um sinal de que precisava modificar
sua maneira de se comunicar. Mas como fazer isso senão modificando sua própria
maneira de pensar que, por sua vez, subentende uma transformação de si? E como
modificar a si, como se transformar em coisa diferente, como se transfigurar a não ser
por meio de atos de verdade? “[…] Não há astúcia, não há retórica” — isto é, não há
embuste; está sendo franco. “[…] Parece-me que é a primeira vez que encontro
pessoas que querem jogar esse jogo que eu lhes proponho em meu livro.” Ele disse,
explicitamente, tratar-se de um jogo. E as regras desse jogo que ele propõe são
análogas àquelas que fundamentam à lógica de representação do mundo, a dos jogos
de verdade. Tratar-se-ia, então, de um jogo do pensamento cujo propósito, o principal
propósito, seria o de desafiar os regimes de verdade estabelecidos? Nesse ínterim,
Foucault se transformou, transformou sua filosofia e seu estilo através de atos de
verdade. Ele não estava brincando ao falar de jogo. Se estava brincando, estava-o
seriamente.

75
5. Contradição e mudança de estratégia

Ah, o problema das teses… Que importa se contradisse? De que adianta


colocar o autor-por-ele-mesmo ou o primeiro contra o último Foucault? De que serve,
senão para fins didáticos e rasteiros, essa divisão da qual estamos de todo modo
advertidos a não levar muito a sério? Então, sabemos o quanto essas denominações
canhestras são problemáticas. Isso não impede, contudo, que as questões em seu
entorno sejam absolutamente válidas. Onde levam esses esforços de busca tão
minuciosa no acervo discursivo de um autor, todo o esforço de articulação e
redirecionamento do enunciado para colocar o autor contra si mesmo? Ou não seria
esse o objetivo: “colocá-lo contra si mesmo”? Se, deveras, for esse o objetivo, partem
eles de um falso pressuposto insistentemente denunciado por várias práticas
discursivas, dentre elas a do próprio Foucault, particularmente com a problematização
da função-autor. Esse pressuposto não é outro senão àquele da unidade do sujeito,
não só no agora, mas em sua experiência de vir-a-ser, do sentir e do pensar.

Quanto àqueles para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar,


enganar-se, retomar tudo de cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar
a cada passo, àqueles para quem em suma, trabalhar mantendo-se em
reserva e inquietação equivale a demissão, pois bem, é evidente que não
somos do mesmo planeta.

(Foucault, [1984] 1998, p.12)

Quanto às ideias, hipóteses ou teses colocadas em xeque nesse jogo da


contradição do autor-por-si-mesmo, é como se o sujeito que as concebeu naquele
momento inicial fosse o mesmo que o atual, visse e entendesse as coisas da mesma
maneira, como se nada tivesse vivido, experimentado e pensado de novo nesse meio-
tempo.
É verdade que as considerações relativas à estratégia de um intelectual, ou de
um grupo de intelectuais em relação às suas próprias práticas discursivas, mesmo
quando declaradas, dificilmente aparecem de forma clara e precisa. Isso quando não
ficam ocultas. A identificação das estratégias e compreensão das táticas assumidas
pelo intelectual se torna ainda mais complexa no caso dos trabalhos extensos. Isso
porque estes resultam no mais das vezes de projetos cujos objetivos não só foram
alterados, mas que se desdobraram em tantos outros de maneira que só são

76
alcançados ao longo de anos. E nesses casos, tanto por fatores subjetivos como
práticos e teóricos, a permanência do autor numa mesma estratégia se mostra
extremamente difícil. Se, por um lado, sob a perspectiva da exequibilidade, essa
postura se mostra vantajosa, por outro lado, sob a perspectiva da experiência do
pensamento se mostra um tanto limitada.
Com efeito, com que arte fazer entender em que consiste esse gesto de
deslocar o olhar que “torna visível o que é visível”, que “faz aparecer o que está tão
próximo, tão intimamente ligado a nós que, por isso mesmo, não vemos?”.100 Pois foi
nesses termos que Michel Foucault falou em 1978, numa conferência em Tóquio, a
respeito do papel do intelectual. Negou-lhe, amiúde, qualquer compromisso com
verdades proféticas sobre o futuro, e chamou atenção para o “pequeno gesto” a se
operar sobre o detalhe — sobre o espaço ínfimo que, embora visível, pouco se vê. É
seguindo a passos curtos, um após o outro, a trilha das análises genealógicas, e
conferindo às ideias apresentadas uma imagem, que se vê desdobrar o espaço de
inteligibilidade de coisas desconhecidas, emergir objetos e se tornar visível ao
pensamento o que até então não se via: toda uma série de modos de ser, agir e sentir;
os movimentos da história; as continuidades, rupturas e deslocamentos entre
períodos. Enfim, acompanhado a narrativa dessa história crítica, de tempos em
tempos nos deparamos com a consideração de momentos decisivos nos quais a
ocorrência de determinados fenômenos (sociais, políticos, filosóficos, etc.), ao
promover alterações nos diferentes eixos da experiência — do saber, do poder e da
relação do indivíduo para consigo mesmo —, revelam-se acontecimentos dos quais
se irrompe a diferença.
Foucault desenvolve uma narrativa histórico-crítica da inscrição discursiva da
noção de desejo e de suas implicações na subjetividade ocidental. Essas implicações
decorreram da articulação dessa noção com certas práticas de subjetivação e do
notável papel desempenhado junto a elas. Uma tese da historicidade do homem de
desejo pressupõe que haja subsídios linguísticos e filosóficos indispensáveis para a
experiência do desejo. Na perspectiva de Foucault é nas imediações da experiência
cristã da carne que se elabora a do desejo.
A proposta de uma nova história do desejo anunciada e introduzida em meados
da década de 70 consistiu no primeiro gesto de uma série de atos filosóficos cujos

100 Foucault, 2011, p.246.


77
efeitos representaram um acontecimento não só para o campo filosófico como para o
da psicanálise. É um acontecimento, portanto, na história política da verdade sobre o
desejo.
Foucault lançou um jogo. Lançou-o aos psicanalistas principalmente, de quem
teve a expectativa de obter contrapartidas teóricas, mas também àqueles que,
independentemente da psicanálise, operam com o conceito do desejo. Há um extenso
corpo descontínuo de técnicos do desejo, donde cada membro e suas respectivas
falanges têm uma forma particular de se posicionar em relação ao conceito. Embora
seja verdade que, ao menos no entendimento de Foucault, não haja um discurso
contemporâneo sobre a sexualidade que não faça algum tipo de referência à
psicanálise.
Seja ou não inédita a hipótese da historicidade do desejo enquanto noção ao
mesmo tempo conceitual e articuladora de um conjunto de discursos, práticas e
técnicas, fato é que a formulação de Foucault chamou atenção para o problema da
subjetivação do desejo e, menos que estabelecer uma, incitou narrativas.

78
SEGUNDO CAPÍTULO: OS JOGOS

Ao término do jogo,
o rei e o peão voltam
para a mesma caixa.

— Provérbio italiano

Com o intuito de angariar subsídios teóricos suficientes para a elaboração de


uma noção de “jogo filosófico”, fizemos uma revisão da noção de jogo. Para não seguir
a esmo, primeiro buscamos pelo verbete “Jogo” em dicionários de filosofia. Num
segundo momento, selecionamos trabalhos de comentadores sobre o tema. Num
terceiro momento, selecionamos alguns dos trabalhos mais relevantes referentes à
concepção filosófica de jogo. Na ausência de consenso quanto à relevância dos
trabalhos que versam sobre os jogos, estabelecemos dois critérios para a seleção: a
influência da contribuição teórica e a notoriedade histórica do autor. Num quarto
momento, partindo das teses apresentadas por Johan Huizinga na obra Homo Ludens
— O jogo como elemento da cultura (1938), analisamos, sintetizamos e situamos as
ideias de vários autores relativas aos jogos. Num quinto momento, situamos a obra
de Roger Caillois, Os jogos e os homens — A máscara e a vertigem (1958), em relação
aos demais estudos sobre o tema e lhes tomamos de empréstimo uma classificação
elaborada para a categorização de jogos. Num sexto e último momento, fazemos um
balanço crítico de toda a exposição de maneira a apurar os resultados obtidos. Enfim,
com essa exposição crítica das noções de jogo, além de lançar alguma luz sobre a
estrutura dos jogos filosóficos, pretendemos tornar visível um jogo supostamente
proposto por Michel Foucault em A vontade de saber (1976).

Comecemos, então, com Johan Huizinga que apresenta logo no início de Homo
Ludens uma definição de jogo que abrange todo tipo de jogos entre os animais, as
crianças e os adultos. Para esse autor:

[…] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos


e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si

79
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana.

(Huizinga, [1938] 2018, p.33)

Trata-se, como podemos ver, de uma definição relativamente simples e


abrangente que permite colocar dentro da esfera do jogo uma gama de atividades,
dentre as quais alguns atos filosóficos. Essa é uma das razões pelas quais tomamos
Homo Ludens como principal referência para esse capítulo sobre a noção filosófica
de jogo.

1. O mundo dos jogos

No mundo dos jogos impera a ordem e, com isso, a efetiva possibilidade de


justiça. Nesse quesito, o mundo real só pode invejá-lo. Com efeito, se a realidade do
mundo dos jogos não fosse temporalmente tão precária, este talvez representasse,
em termos de justiça, o melhor dos mundos possíveis. Não obstante, trata-se de um
mundo provisório cuja existência, descontínua, precisa ser vez por vez recriada
isolando-o da imperfeição do mundo real. Sem atos de recriação, todo o universo dos
jogos estaria fadado ao esquecimento. No entanto, os jogos tendem mesmo a se
repetir e, desta maneira, a se conservarem como artefatos culturais.

Assim, como instauradores de pequenos mundos dentro do mundo real, os


jogos restabelecem, a cada vez que são repetidos, as condições para uma disputa
justa. Como artefatos imateriais da cultura, eles estão conosco desde, pelo menos, as
primeiras civilizações. E como atividades com fim em si mesmas ou sem finalidade
pré-definida são, todavia, capazes de promover descargas, gerar potência e
proporcionar uma experiência diferenciada daquela que habitualmente temos do
cotidiano.

Quanto às formas que efetivamente tomam os jogos como atividade humana,


eles podem, de fato, conforme a situação, não evocar outro aspecto que não o lúdico,
manter o caráter de brincadeira e consistir basicamente num passatempo; assim como
podem ter o aspecto de uma atividade laborativa, um caráter sério e consistir numa
espécie de treinamento para outra atividade; ou mesmo comportar aspectos de vício,
80
um caráter nocivo e consistir num hábito inveterado. Mas não parece correto julgar os
jogos pelo que decorre da condição humana e se faz presente nas atividades
humanas em geral. Embora seu exercício possa trazer vantagens ou prejuízos aos
jogadores e destes fomentar bons ou maus hábitos, os jogos em si não são bons nem
ruins. Mesmo que alguns autores lhes atribuam funções vitais e civilizatórias e outros
lhes acusem de serem corruptores e prejudiciais aos indivíduos, diferente das coisas
essenciais, diferente de tudo que é da ordem da necessidade, o propósito dos jogos
não consiste em ser útil às necessidades humanas básicas e imediatas.

81
2. O jogo do capitalista

Antes que todos tomem a palavra, antes que as concepções de jogo sejam
expostas, antes que os debates façam pesar o tema dos jogos, nos é permitido
algumas digressões. Levando a noção de jogo ao limite, seria possível pensar a
sociedade como um jogo? Se o impulso lúdico pode engendrar toda uma série de
mecanismos formadores da realidade compartilhada e deles elidir a justificativa
utilitarista, talvez sim. Todavia, a não ser que atribuamos um sentido excessivamente
amplo a palavra jogo, não é o caso de tomar a totalidade da sociedade como um jogo.
Com “sociedade” nos referimos aqui a certas situações sociais típicas e a certo
desenrolar das atividades cotidianas. Dessa maneira, uma vez que a sociedade assim
entendida possui elementos do jogo e por vezes esboça uma dinâmica semelhante à
de um jogo, estamos autorizados a, ao menos como metáfora, chamá-la de jogo.

Perder tempo em
aprender coisas que não interessam,
Priva-nos de descobrir
Coisas interessantes.

(Carlos Drummond de Andrade).

A partir de um certo ponto,


o dinheiro deixa de ser o objetivo.
O interessante é o jogo.

(A. S. Onassis)

82
De um lado, um poeta consagrado; do outro, um magnata 101 famoso em seus
dias pela atuação nos negócios. Quando postos assim, lado a lado, acontece desses
nomes parecerem, senão de igual natureza, igualmente distintos, não? Concederia o
nome Drummond, por sua aura e circunstancial proximidade, alguma graça poética ao
nome Onassis, ou conferiria este, por sua vez, algum préstimo mundano aos versos
do primeiro? Enquanto autor da primeira estrofe, o poeta fala sobre perda de tempo e
escolhas. Já a frase do empresário ressalta aquele ponto no qual o homem de negócio
perde de vista o que até então era seu pretexto e objetivo, o dinheiro, e passa a se
interessar pela atividade em si — negociar, fazer render etc. Assim vemos suceder
com o jogador a quem, a certa altura, mais importa jogar do que ganhar.

Ora, mas o campo e as formas de atuação da escrita de um poeta, isto é, seu


fazer poético, é radicalmente diferente do campo e das formas de atuação de um
empresário. Se tanto num caso quanto no outro a função-autor opera, não é, todavia,
da mesma maneira nos dois casos. No caso do primeiro, interessa-nos seus livros ou,
mais especificamente, sua escrita. A escrita do poeta é sua obra. No que diz respeito
à autoridade de Onassis enquanto autor, podemos dizer que é circunstancial, e que
se enfraquece ou se intensifica em função das vivências do indivíduo que
indiretamente lhe corresponde, dos atos e episódios mais ou menos meritórios de sua
vida, das escolhas feitas e ações tomadas em determinadas ocasiões e dos eventuais
acontecimentos históricos que testemunhara. Não é, portanto, sua escrita que nos
interessa. Sua obra é outra, é a da geração de capital. Dessa forma, embora a frase
há pouco citada de Onassis veicule uma ideia que corresponde ao espírito do jogo,
ela de modo algum é mais representativa, para os mesmos fins, que a própria figura
do empresário. Uma leitura de sua biografia, ainda que sumária, não deixaria de
revelar as “jogadas” do magnata ao longo de sua carreira e evidenciar, no jogo do
capitalista, aquilo que poderíamos chamar de “seu estilo”.

O mercado e o mundo dos negócios são constantemente relacionados à


realidade do jogo. Quase todo filme sobre Wall Street dá uma deixa sobre isso. 102 A
bolsa de valores, por exemplo, tal como os jogos se apoia num sistema de regras que

101 Aristóteles Sócrates Onassis foi quem permaneceu por mais tempo na posição de homem mais rico do mundo.
Cf. New York Times, March 16, 1975, "Headliners, Aristotle Onassis is Dead" by Gary Hoenig. Cf. Hussein,
Waris, Onassis, the richest man in the world (1988), movie for television.
102 Cf. O lobo de Wall Street (2013).

83
definem, grosso modo, as perdas e os ganhos (payoff). E se nas transações
capitalistas permeia e persiste algo que não visa necessariamente o lucro, de modo a
se estabelecer uma dinâmica lúdica em torno da atividade, qual a diferença entre essa
atividade e um jogo? É nesse ambiente que se movimenta Onassis. É lidando com
essas coisas que ele, por assim dizer, joga com a realidade.

Com efeito, no que concerne à sua relação com os outros, Onassis parece
ocupar, quase sempre ou nos momentos mais significativos, a posição de um jogador.
Ele foi reconhecido, por um lado, por sua postura sempre humilde e persistente e, por
outro, por seu gênio inventivo. Entrementes, essa combinação de características
pessoais ou performáticas, a aquisição ou o aperfeiçoamento dessas “habilidades
sociais” (como chamam alguns psicólogos) e o reconhecimento geral contribuíram
muito em todas àquelas ocasiões nas quais o empresário conseguiu angariar fundos,
investimentos, constantes empréstimos bancários etc. Seu casamento em 1946 com a
filha de Stavros Livanos (também empresário ligado à marinha mercante) e em 1968
com Jaquecline Kennedy (viúva de John F. Kennedy, ex-presidente dos Estados
Unidos) são significativos e representam, no jogo do capitalista, as alianças firmadas
por esse jogador.

Huizinga fala da existência de um princípio agonístico que, embora universal,


se faz presente sob diversas formas e em diferentes escalas de intensidade conforme
o período histórico e a cultura predominante. Já na época em que lançara Homo
Ludens, no fim dos anos 30, o autor considera os meios de comunicação — que
vinham tornando as relações humanas extraordinariamente fáceis — um fator que
impulsionava o espírito competitivo e levava o mundo em direção ao jogo. 103

Se noutros tempos, numa fase bem anterior aquelas dos meios de


comunicação, já podia se notar na rivalidade entre comerciantes certo elemento
lúdico, este, no entanto, passou a ser mais estimulado pelas associações com a vida
esportiva como, por exemplo, a ideia de “record”. É possível que a introdução de certo
elemento competitivo e teor esportivo na vida econômica tenha começado com as
estatísticas de vendas e de produção. Não é verdade que existe um aspecto esportivo
em quase todo triunfo comercial ou tecnológico? Parece que Huizinga tinha razão ao
afirmar isso em 1938 e continuaria tendo razão se, nos dias de hoje, voltasse a afirmar

103 Huizinga, [1938] 2018, p.222.


84
isso a respeito das relações comerciais, do mercado financeiro, etc. Enfim, não é de
hoje, já faz um tempo que os negócios se transformam em jogo. “Este processo vai
ao ponto de algumas das grandes companhias procurarem deliberadamente incutir
em seus operários o espírito lúdico, a fim de acelerar a produção. Aqui a tendência se
inverte: o jogo se transforma em negócio”,104 comenta Huizinga com perspicácia.

104 Ibid. p. 222.


85
3. As designações em jogo105

“As causas principais dos nossos erros provêm, quase todas, do mau uso das
palavras”, disse Gustave Flaubert. É provável que Johan Huizinga concordasse com
isso. Sendo a palavra “jogo” e a noção que lhe corresponde oriundas, não de um
pensamento lógico ou científico, mas sim do espírito espontaneamente criativo de
uma cultura, as diferentes línguas têm palavras e ideias diferentes quando tentam
exprimir a noção de jogo. Acontece de algumas línguas terem conseguido sintetizar
melhor do que outras os aspectos do jogo em uma só palavra, o que significa que a
abstração de um conceito geral de jogo penetrou nessa cultura muito mais cedo e de
maneira mais completa do que em outra.106

Entre as línguas que possuem expressões distintas para designar a atividade


lúdica estão o grego, o sânscrito, o chinês e o inglês. Vejamos o caso da língua grega
que tem, por um lado, a desinência -inda 107 como designação específica para os jogos
infantis e, por outro, três palavras diferentes, paidia, athyrō e agōn108 para designar o
jogo em geral. A desinência -inda como designação para jogos infantis é um sufixo
indeclinável, suas sílabas nada significam, mas dão a qualquer palavra a conotação
de “jogar” alguma coisa. 109 Quanto às palavras que designam os jogos em geral, a
primeira e mais conhecida é paidia.110 Ela serve para indicar todo tipo de atividade
lúdica, incluindo as mais elevadas e sagradas, e está associada às ideias de
despreocupação e alegria.111 A segunda palavra é athyrō e sua variante, adyrma.112
Embora elas se refiram à ação de jogar, à brincadeira e à diversão, estão mais ligadas
às ideias de frivolidade e futilidade. Enfim, a terceira dessas palavras que designam
os jogos em geral é agōn. Esta, por sua vez, corresponde a um domínio muito amplo
e importante na cultura grega antiga, mas remete, principalmente, às competições e
aos concursos.113

105 Essa seção apoia-se no segundo capítulo de Homo Ludens: A noção de Jogo e sua Expressão da Linguagem.
106 Huizinga,[1938] 2018, p.33-34.
107 -ινδα (-inda)
108 παιδια (paidia), ἀθύρω (athyrō) e ἀγών (agōn).
109 Por exemplo: Brincar de cabo-de-guerra, ἑλκυστίνδα (helkustinda); jogo de lançamento, arremesso ou pontaria,

στρεπτινδα (streptinda); brincam de ser rei, βασιλινδα (basilinda); jogar bola, σφαιρινδα (sfairinda).
110 Sua etimologia designa aquilo que é próprio da criança, mas se diferencia de παιδιά (infantilidade).
111 Seus derivados são παίζειν (paizein), que significa brincar, παῖγμα (paῖgma) e παίγνιον (paίgnion), que

significam de brincar ou brinquedo.


112 αδυρμα (adyrma).
113 Ibid. p.35.

86
Uma vez indicadas as palavras gregas correspondentes à noção de jogo,
podemos esmiuçar o valor semântico daquelas notadamente mais importantes, a
saber, paidia e agōn. O termo paidia remete, numa primeira acepção, aos jogos de
diversão, ao jogo espontâneo e geralmente sem regras onde o aspecto de competição
ou disputa não existe ou é mínimo, de maneira que é destinado principalmente, ainda
que não exclusivamente, às crianças. É um passatempo. Trata-se de um vocábulo
que tem por raiz pais, paidos,114 criança, menino. O verbo é paidzo,115 brincar, divertir-
se, ser jovial, dançar. Está, do mesmo modo, relacionado à paidíon,116 primeira
infância.117 Por extensão, está associado à diversão, turbulência, improviso, fantasia,
a atividades onde goza-se de liberdade, onde sente-se alegria e conta-se com a
improvisação. O termo paízo, 118 por sua vez, remete ao entretenimento amadurecido,
ao divertimento de indivíduos formados. Por fim, a raiz comum indica também uma
relação entre a palavra paidia e a palavra paideia119 cujo significado original era o de
cuidado com as crianças e de educação ideal para as crianças até evoluir para o de
cultura e de formação completa do homem.

Já o termo agōn remete, numa primeira acepção, aos jogos de caráter


competitivo, constituídos por regras e relativamente mais sérios. Mas, de modo geral,
comporta muitos outros sentidos, sendo os mais comuns: local de competição, campo,
reunião dos gregos nos jogos nacionais, luta, batalha, ação, processo em tribunal,
discurso proferido em tribunal, perante assembleia ou governante. Na retórica, tem o
sentido de argumento principal de um discurso. Agōn está associado ainda a luta
mental, ansiedade (daí agonia), luta por um prêmio, especialmente nos jogos públicos.
Na dramaturgia, disputa entre dois personagens (protagonista e antagonista). 120

114 παῖς (pais), παιδός (paidos).


115 παιδζω (paizo).
116 παιδίον (paidíon).
117 Não há, no grego antigo, um único termo utilizado para definir infância, mas uma série de palavras

correspondentes às diferentes fases do desenvolvimento humano, tais como: βρεφος (brephos) — recém-nascido;
παιδιών (paidion) — lactente; παιδαριων (paidarion) — criança que pode andar e falar; παιδίσκος (paidiskos) e
παις (pais) — criança passível de ser educada; μειράκιον (meirakion) — adolescente; νεανισκος (neaniskos) e
νεανίας (neanias) — jovem adulto; dentre outros. Entre esses termos, os mais empregados para determinar os
primeiros anos de uma criança são brephos, paidion, paidarion e pais, sendo este último também utilizado para
indicar as moças antes de se casarem e os escravos. (Sousa, L. N. 2020. p.83-84).
118 παίζω (paízo).
119 παιδια (paidia) e παιδεία (paideia).
120 Para uma revisão do sânscrito e do chinês que, assim como o grego, possuem mais de uma palavra para

designar jogo, Cf. Huizinga, [1938] 2018, p.37-38. Para uma revisão do japonês que além de designar a função
lúdica com apenas uma palavra possui um antônimo que designa seriedade, Cf. Huizinga, [1938] 2018, p.39. Para
uma rápida revisão das línguas semíticas, onde o conceito de jogo tem um caráter mais vago e fluido, Cf. Huizinga,
[1938] 2018, p.41.
87
De modo geral, os gregos apreciavam os dois tipos de jogos, os sérios (agōn),
como os Jogos Olímpicos que estavam associados ao rito religioso, e os não-sérios
(paidia), como o teatro. Para agōn, tenhamos em mente o sentido de competição e
disputa regida por regras; para paidia, o sentido de jogo infantil ou jogo espontâneo,
movido pela diversão e livre de regras. Apesar do emprego dos dois termos como que
para indicar coisas distintas, o agōn na cultura grega, assim como a competição em
qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais do jogo.121
Embora, cabe ressaltar, fora o jogo sério, a competição e a disputa regida por regras,
agōn remete preferencialmente ao contexto poético, aos concursos, mas também ao
político. Até entre os filósofos, seu uso é certamente mais político do que filosófico.
Assim, o termo não participava ou mesmo cabia na estrita vida filosófica no sentido
de uma vida contemplativa (bíos theoretikós).

Diferente do grego, o latim cobre todo o domínio do jogo com apenas uma
palavra: ludus, de ludere, de onde deriva lusus. A etimologia de ludere parece residir
na esfera da não-seriedade e, mais particularmente, na da ilusão e da simulação.
Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações
litúrgicas e teatrais e os jogos de azar.122 Toda uma série de palavras, de expressões
a compostos, apontam todas na direção do irreal e do ilusório. Essa base semântica,
segundo Huizinga, está oculta em ludi que remete tanto aos grandes jogos públicos
romanos, aos quais se encontra associado o sentido de competição, quanto às
escolas, às quais se encontra associado o sentido de prática. No entanto, o termo
Ludus como equivalente aos jogos em geral deixa de existir. Ele é suplantado logo
cedo nas línguas românicas por derivados de jocus, cujo sentido específico foi
ampliado para o de jogo em geral. Por conseguinte, temos em francês jeu e jouer; em
espanhol, juego e jugar; em italiano, gioco e giocare.123 No caso do português temos

121 Além de afirmar que é totalmente impossível separar a competição, como função cultural, do complexo “jogo-
festa-ritual”, Huizinga ([1938] 2018, p.36) sustenta que a nítida distinção terminológica entre jogo e competição na
língua grega pode ser explicada pelo fato das competições sagradas e profanas terem desde muito cedo ocupado
um lugar tão importante e adquirido um valor tão excepcional na vida dos gregos que as pessoas deixaram de ter
consciência de seu caráter lúdico. O caráter habitual das competições sobrepujou, por assim dizer, o caráter lúdico
das competições.
122 Huizinga ([1938] 2018, p.41) adverte que jocus, jocari, no sentido de fazer humor, contar piada, não significa

jogo em latim clássico.


123 Ibid. p.41-42.

88
jogo (do latim jocu “gracejo”), jogar (do latim jocare, por via semi-erudita) e jogatina
(do italiano giocatina).124

Entretanto, nas línguas europeias modernas a palavra jogo abrange um


domínio ainda mais vasto, muito mais amplo do que os alcançados pelos termos
gregos e latinos.125 Contudo, para Huizinga, “o valor conceitual de uma palavra é
sempre condicionado pela palavra que designa seu oposto”. 126 Assim, ainda que à
“seriedade” possam também se opor a “piada” e a “brincadeira”, ele considera a
antítese jogo-seriedade a mais importante parelha complementar de opostos. Mas
considera também o “trabalho”, num sentido muito especial, a segunda antítese do
jogo.

Pois bem, o fato de muitas línguas não designarem o contrário do jogo com um
substantivo, mas mediante um adjetivo, parece indicar que a abstração do antônimo
do jogo é conceitualmente incompleta. Com efeito, tirando por essas deficitárias
soluções linguísticas, o conceito de jogo parece ser muito mais fundamental do que
seu oposto. Não há em português, assim como na maior parte das línguas, um
conceito ao mesmo tempo amplo e apropriado para exprimir o não-jogo.127

124 Dicionário Etimológico Resumido por Antenor Nascentes. Coleção Dicionário Especializados. Instituto Nacional
do Livro. Ministério da Educação e Cultura, 1966.
125 Huizinga (2018, p.42) sugere que “logo que cada um dos ramos em que o germânico se dividiu criou uma

palavra para designar o jogo, […] o mesmo grupo de ideias, extremamente amplo e aparentemente heterogêneo,
foi concebido como ‘jogo’”. Ademais, no que tange às línguas germânicas, diz nosso autor que em todas elas
termos tipicamente lúdicos são correntemente empregados com o sentido de combate a mão armada. No interior
da esfera do pensamento primitivo o combate armado e toda espécie de competição eram incluídos com o jogo
numa ideia única e fundamental de luta com a sorte limitada por certas regras. “O jogo é um combate e o combate
é um jogo” (Ibid. p.47). Essa é mais uma razão para não estabelecer distinção entre jogo e competição.
126 Ibid. p.50.
127 “[…] analisando um pouco mais atentamente a antítese jogo-seriedade, verificamos que os dois termos não

possuem valor idêntico: jogo é positivo, seriedade é negativo. O significado de ‘seriedade’ é definido de maneira
exaustiva pela negação de ‘jogo’ — seriedade significando ausência de jogo ou brincadeira e nada mais. Por outro
lado, o significado de ‘jogo’ de modo algum se define ou se esgota se considerado simplesmente como ausência
de seriedade. O jogo é uma entidade autônoma. O conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais elevada do que
o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade”
(Huizinga, 2018, p.51).
89
4. O lugar do jogo

Colocar questões relativas à posição tradicional ocupada pelos jogos pode ser
útil para delimitar aspectos de sua função e representação social. Quando
relacionados a outras atividades como o trabalho e ao comércio, por exemplo, a
função do jogo ganha um aspecto ambíguo. A razão disso é a oposição que logo se
estabelece entre o caráter essencial dessas atividades para a vida em sociedade e o
caráter dispensável do jogo. Para que fiquemos com essa impressão muito contribui
o fato do jogo em si não gerar bens.

Seja como aplicação dos recursos humanos para alcançar um determinado fim;
seja como atividade coordenada necessária à realização de uma tarefa; seja como
uma atividade cujo fim é utilizar recursos naturais ou modificar ambientes para
satisfazer necessidades e interesses humanos, o trabalho é sempre uma atividade
básica ligada à sobrevivência e, portanto, de valor inquestionável para a conservação
da vida e da civilização.

Hegel, o primeiro a conceber uma teoria filosófica do trabalho, define trabalho


como “mediação entre o homem e seu mundo”, visto que diferente dos animais o
homem não consome de imediato o produto natural. Para Marx o trabalho e sua
produção constituem o próprio homem, seu modo específico de ser e de fazer-se
homem. Pelo trabalho o homem pode ascender à consciência de si mesmo enquanto
“espécie de natureza universal”. Kierkegaard defende uma estreita conexão do
trabalho com a dignidade humana, e considera que o dever de trabalhar para viver
exprime o universal humano, inclusive no sentido de ser uma manifestação da
liberdade. Depois desses autores, a ideia de um enobrecimento da existência humana
a partir do trabalho que faz deste não apenas um meio, mas também um fim, passa a
ser lugar-comum em filosofia e na cultura contemporânea.

Nietzsche, por sua vez, via no trabalho uma traição à espiritualidade alegre e
contemplativa que deveria ser própria do homem e o chamou de “vício peculiar do
Novo Mundo”. Isso nos remete a representação social do trabalho que envolve, desde
muito tempo, pelo menos, e a despeito das mudanças, a ideia de uma obrigatoriedade

90
penosa do trabalho frequentemente associada ao cansado, a fadiga, ao sofrimento, a
degradação.

Entretanto, prevalece em filosofia a concepção de trabalho como um


imperativo, como um dever de todo ser humano. Quanto a relação entre essa
concepção de trabalho e a noção de jogo, reproduzo aqui uma frase de Mark Twain
que sintetiza o posicionamento mais tradicional sobre o assunto: “O trabalho é tudo o
que se é obrigado a fazer; jogo é tudo o que se faz sem ser obrigado”.128

Seja como permutação de produtos, troca de valores ou compras e vendas de


mercadorias, o comércio também parece atuar como um imperativo entre os
indivíduos e os povos e, por conseguinte, consistir numa atividade básica ligada à
sobrevivência. A valer, parece que nenhuma outra atividade tivera, na maior parte das
sociedades conhecidas, maior proeminência que o trabalho e o comércio juntos.
Como que tangenciado por Eros enquanto princípio aglutinador, permeado por uma
pulsão aculturante, o comércio interliga e possibilita um intercâmbio entre diversos
povos e culturas. E entre os produtos disseminados por meio do comércio, certamente
também estão os jogos.129 Seguindo esse raciocínio, é lógico que o comércio
antecede o jogo, visto que do primeiro depende a vida em sociedade e do segundo
dependem, no máximo, algumas formas de viver. Pois bem, estamos divagando,
estamos dizendo as coisas tais como nos parecem, tais como aparecem no espírito.
Mas cabe observar, sobre esse ponto, que um dos mais influentes estudos sobre os
jogos sustenta que as características fundamentais do jogo já se encontram presentes
no uso da linguagem, na composição do mito, na execução dos rituais e no culto, de
sorte que o jogo antecederia a própria cultura. Em Homo Ludens, a noção de jogo
designa “um fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no mundo”,
pois “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”. 130 Retenham essa
ideia.

Contudo, assim como o trabalho e o comércio têm suas semelhanças, uma


interdependência e uma espécie de parentesco, há uma atividade que mantém
relativamente ao jogo estreitas relações: a arte.131 Acontece que, diferente do trabalho

128 The Adventures of Tom Sawyer, 1876.


129 Cf. nota 23.
130 Prefácio, §2.
131 A arte (tékhne) foi concebida por Platão como todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana

qualquer. Ora, também se emprega o termo jogo no sentido de conjunto de habilidades por meio das quais se
91
e do comércio, que são meios para outras coisas, o jogo e a arte não são meios, mas
fins. Assim, tudo leva a crer que nem a arte nem o jogo são atividades essenciais para
a sobrevivência, manutenção da prole ou estrito funcionamento social.

Foi por essa via, considerando a inutilidade imediata e não obrigatoriedade do


jogo e da atividade artística que a analogia entre ambas foi reconhecida pelo
pensamento europeu entre os séculos XVIII e XIX. Muitas voltas ainda seriam dadas
em torno dessa relação até que, um século depois, a distinção entre o jogo e a arte
aparecesse com nitidez no Homo Ludens (1938) de Johan Huizinga. Retomemos a
definição de jogo proposta por Huizinga:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e


determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.

(Huizinga, [1938] 2018. p.33)

Temos aqui os elementos constituintes de qualquer jogo: (1) atividade


voluntária; (2) limitada no espaço-tempo; (3) aceite de regras, doravante, obrigatórias;
(4) auto-finalizadas; (5) jubilosa tensão; (6) experiência distinta do cotidiano. Ora,
conseguimos conceber claramente uma prática artística que consista numa atividade
voluntária, limitada no espaço-tempo, com um fim em si mesma, acompanhada de
jubilosa tensão e experimentada como distinta do cotidiano. Porém, não conseguimos
conceber uma prática artística que, além de tudo isso, se encontre necessariamente
constrangida por regras. Se assim fosse, seria um jogo. Huizinga indica que embora
as formas mais complexas de jogo estejam saturadas de ritmo e harmonia, de modo
que são íntimos os laços que as une à beleza, esta não lhe é inerente.

Pois bem, consideremos agora outro tipo de jogos, os desportos. Verdade seja
dita, considerando o poder de atração e o fascínio causado pelos Jogos Olímpicos
nos participantes e em quem os assiste, de modo que são capazes de mover
multidões, logo somos persuadidos de que o espírito agonístico nunca estivera
completamente ausente de nossa civilização. Nenhum evento do mundo antigo

executa uma atividade. Não obstante, como todas as atividades citadas acima envolvem regras e técnicas (isto é,
diferentes maneiras, jeitos mais ou menos eficientes de fazer isso e aquilo) não parece absurdo falar numa “arte
de jogar em geral” ou “arte em determinado jogo”, assim como uma ou várias artes ligadas às transações
comerciais (como “arte de negociar”) e aos ofícios (por exemplo, o “sapateiro artesão”).
92
suscitou tanto o interesse geral quanto os Jogos Olímpicos realizados a cada quatro
anos no santuário de Zeus na cidade grega de Olímpia. Iniciados em 776 a.C. e
interrompidos em 393 d.C. a mando do Imperador cristão Teodósio I, os jogos da
antiguidade são considerados um dos maiores símbolos do esplendor da cultura grega
clássica132 — visto que, a despeito das perturbações causadas pela guerra do
Peloponeso, atingiram seu apogeu no século V a.C.

Assim, com o passar dos séculos os antigos jogos evoluíram de um evento


local para o festival mais prestigiado do mundo antigo. Tal era o magnetismo gerado
e o fascínio permanentemente suscitado pelos Jogos Olímpicos que, especulam
estudiosos, só o colapso do império, as invasões bárbaras e a proibição cristã do uso
de estruturas pagãs juntos conseguiram interrompê-los. Como pedra sepulcral dos
jogos olímpicos e maneira de reforçar a opinião cristã a respeito deles, uma igreja foi
construída no meio na oficina de Fídias onde a estátua de Zeus havia sido criada.
Vocês sabem do resto da história: um século depois terremotos deixaram a cidade de
Olímpia em ruínas e inundações a esconderam por mil e duzentos anos.

O complexo de Olímpia foi redescoberto por um inglês no século XIX. Mas foi
uma equipe de arqueólogos alemãs que, por volta de 1870, revelou aos seus
contemporâneos o esplendor dessa cidade. O entusiasmo gerado na Europa e nos
Estados Unidos se correlaciona com uma idealização e reinvenção ideológica do
homem grego na época. Na Inglaterra e na Alemanha viu-se estabelecer uma nova
abordagem de educação que ressaltava o valor do esporte para a formação de uma
nova elite que ofereceria uma liderança inspiradora ao país e às colônias. Os gregos,
por sua vez, também reivindicavam seu passado, visto que viviam há séculos sob o
domínio otomano. Havia uma demanda por uma restauração da cultura e das
instituições que tornaram seu povo importante aos olhos do mundo. Ora, a maneira
mais garantida de conseguir isso era, justamente, trazendo de volta os jogos
olímpicos. Como já dissemos, nenhum evento do mundo antigo gerou tamanho
fascínio e mobilizou tanta gente. Mas como na velha história sempre se apela para a

132 Há, em torno da origem dos jogos olímpicos da antiguidade, todo um discurso mítico fundacional. O templo de
Olímpia teria sido construído na Idade de Ouro, época em que Cronos era o rei dos titãs. Na ocasião em que Reia
foi a Creta e entregou o bebê Zeus aos dáctilos, os cinco irmãos de Ida, Héracles, o mais velho, derrotou os irmãos
(Paeonaeus, Epimedes, Iasius e Idas) numa corrida e foi coroado com um ramo de oliveira. Em algumas versões
do mito, Zeus teria derrotado Cronos em Olímpia, noutras teria ele celebrado lá jogos para comemorar sua vitória
sobre o titã. Entre os deuses, o campeão teria sido Apolo, que prevaleceu sobre Hermes na corrida e Ares no
pugilismo. Seja como for, muitos ainda haveriam de celebrar jogos em Olímpia depois dos deuses.
93
figura de um herói, de um sujeito visionário, pioneiro que, agindo no mundo, modifique
o curso histórico, o crédito relativo ao restabelecimento dos jogos olímpicos no mundo
moderno findou com um francês, o barão de Coubertin.

Conta-se, portanto, a história de que o barão estava obcecado com a ideia de


elites ricas competindo pela glória e não por dinheiro. Em 1894 ele anunciara sua ideia
num anfiteatro da Sorbonne: jogos para a elite. Elite de competidores com os melhores
atletas do mundo. Mas também elite de espectadores, como militares de alta patente,
diplomados, pessoas cultas e sofisticadas. E, de fato, assim transcorreu. Atenas
sedia, em 1896, a primeira edição dos jogos olímpicos da era moderna. As edições
seguintes, entretanto, com exceção de uma edição especial em 1906, não seriam
realizadas em solo grego, mas, respectivamente, em Paris (1900), Saint Louis (1904),
Londres (1908) e Estocolmo (1912). Depois de uma interrupção devido a Primeira
Guerra Mundial, as edições seguintes seriam realizadas em Antuérpia (1920), Paris
(1924), Amesterdão (1928) e Los Angeles (1932).

É óbvio que, mais do que atualmente, participar dos Jogos Olímpicos na época
das primeiras edições significava para uma nação o reconhecimento das demais.
Sediar uma edição então, além de uma honra, era, para qualquer nação, uma
oportunidade de mostrar ou mesmo propagar sua cultura ao mundo civilizado. Em
vista disso, da honra e do grande potencial atrativo dos jogos, o fato de não haver uma
sede fixa para a realização das olimpíadas fez desse evento um alvo de interesses
políticos de toda natureza. Nesse ínterim, o Comitê Olímpico Internacional determinou
em 1931 que os Jogos Olímpicos de Verão de 1936 seriam realizados em Berlim. A
Alemanha nazista aproveitou essa oportunidade para encantar espectadores e
jornalistas estrangeiros com a imagem de um regime político pacífico e tolerante, mas
também para uma exibição política do poder alemão. A abertura da Olimpíada de
Berlim ficou conhecida por seu caráter espetacular e mostrou ao mundo a importância
de se encenar uma grande cerimônia.

Enfim, que considerações faz Huizinga a respeito dessa grande sistematização


e crescente regulamentação do esporte já notória em sua época (mas cuja maior
representação na atualidade é justamente os Jogos Olímpicos Modernos)? Pois bem,
ele alega que isso implica a perda de uma parte das características lúdicas mais puras.
Quando no contexto dos jogos há, por exemplo, distinção entre “amadores” e

94
“profissionais”, há uma separação entre aqueles para quem o jogo já não é mais jogo
(ou se encontra gravemente empobrecido do elemento lúdico característico do espírito
do jogo) e os outros para quem o jogo permanece sendo jogo (ou permanecem
jogadores em sua essência, tomados pelo espírito do jogo, independentemente de
sua competência ou desempenho inferior numa partida). 133 No entanto, essas
disposições dos sujeitos em relação ao jogo, distintas, a princípio, findam se
interferindo mutuamente. Uma vez que o espírito do jogador profissional já não tem
um caráter lúdico, pois já não é espontâneo nem despreocupado, mas, pelo contrário,
premedita seus movimentos e preocupa-se com uma partida como se se tratasse de
uma tarefa das mais importantes, o espírito do jogador amador também é afetado e
por vezes sofre em consequência da comparação de suas competências e
desempenho com as do profissional e de avaliar as suas como inferiores. Essa
dinâmica, caso não seja eventualmente interrompida, finda levando o jogo cada vez
para mais longe da esfera lúdica.

O esporte ocupa, na vida social moderna, um lugar que ao mesmo tempo


acompanha o processo cultural e dele está separado, ao passo que nas
civilizações arcaicas as grandes competições sempre fizeram parte das
grandes festas, sendo indispensáveis para a saúde e a felicidade dos que
nelas participavam. Esta ligação com o ritual foi completamente eliminada, o
esporte se tomou profano, foi “dessacralizado” sob todos os aspectos e
deixou de possuir qualquer ligação orgânica com a estrutura da sociedade,
sobretudo quando é de iniciativa governamental. A capacidade das técnicas
sociais modernas para organizar manifestações de massa com um máximo
de efeito exterior no domínio do atletismo não impediu que nem as
Olimpíadas, nem o esporte organizado das Universidades norte-americanas,
nem os campeonatos internacionais tenham contribuído um mínimo que
fosse para elevar o esporte ao nível de uma atividade culturalmente criadora.
Seja qual for sua importância para os jogadores e os espectadores, ele é
sempre estéril, pois nele o velho fator lúdico sofreu uma atrofia quase
completa.

(Huizinga, [1938] 2018, p.219-220)

Com efeito, o esporte não só é uma atividade entendida como jogo pelo senso
comum, como costuma ser assim classificada em muitos meios instruídos. Mas como
chamar de jogo uma atividade cujo alto grau de organização técnica e de
complexidade científica repele o ludismo e ameaça de desaparecimento os elementos
lúdicos que constituem a parte mais pura do espírito do jogo? Há outros fenômenos,

133 Huizinga, [1938] 2018, p.219.


95
no entanto, que apontam em sentido contrário. Certas atividades cuja razão de ser
funda-se estritamente no interesse material e que inicialmente nada tem a ver com o
jogo, passam a incorporar o elemento lúdico às coisas sérias que, por sua vez, se
transformam em jogo, sem abdicar da seriedade e de seu caráter utilitário. “Estes dois
fenômenos estão ligados pela força dos hábitos agonísticos, ainda universalmente
dominantes, embora sob formas diferentes das de outrora”. 134

134 Huizinga, [1938] 2018, p.222.


96
5. Jogo e filosofia

As manifestações filosóficas do pensamento ocidental — desde o advento dos


modos de pensar que vão de uma elaboração sistemática do conhecimento racional
a uma crítica radical desse próprio pensamento — são uma realidade que se atualiza
a todo instante. O que nos impede de encarar a filosofia como um conglomerado
heterogêneo de atos filosóficos que podem tomar outras formas e dar ensejo a
acontecimentos instauradores de realidades? As realidades não efetivadas no real,
não atuais, existem como potência a espera de esforços eficientes.

Uma vez que as práticas discursivas de um período não esgotam as


possibilidades da linguagem — ainda que alguns tenham se ocupado em discutir seu
fim —, a filosofia histórica, tal como a conhecemos, não é da ordem da necessidade,
mas formada por uma série de contingências próprias das perspectivas
interpretativas. Nossa filosofia é um âmbito de uma prática específica do pensamento,
uma possibilidade da existência que se efetivou na história. É, com efeito, não mais
que um fenômeno histórico ou interpretações de modos de pensamentos que se
configuraram como gestos e atos filosóficos para nossa percepção e inteligência.

Por esse prisma, a filosofia — desde seu surgimento na Grécia do século VI


a.C. — consiste tanto num acontecimento na história do pensamento como num
princípio fundador de uma cultura. E essa cultura, filosófica enquanto tal, não foge à
regra: também tem seus jogos. Entrementes, embora seja verdade que uma das
características marcantes do mundo greco-romano seja seu gosto pelos jogos
públicos,135 isso não basta para estabelecer uma relação entre jogo e filosofia.

Por pouco Johan Huizinga não afirma, no capítulo O jogo e o conhecimento de


Homo Ludens, que o nascimento da filosofia se deu a partir do jogo dos enigmas. Ele
diz, contudo, que “não seria exagerado considerar os primeiros produtos da filosofia
grega como derivados dos enigmas primitivos”, 136 posto que os próprios “os gregos
da época mais tardia tinham plena consciência das relações existentes entre o jogo

135 Até filósofos que em virtude do modo de vida austero que levavam se mantinham distantes das disputas da
cidade manifestaram alguma simpatia, senão diretamente pelos jogos, pela disciplina exemplar de alguns
indivíduos por ocasião das competições. Dessas percepções decorrem noções como a do “modelo do atleta”.
136 Huizinga, [1938] 2018, p.130.

97
dos enigmas e as origens da filosofia”.137 De acordo com Huizinga, teria sido Clearco
de Soles, um dos discípulos de Aristóteles, quem escreveu um tratado sobre os
provérbios que encerrava uma teoria dos enigmas. Isso provaria que, originariamente,
o enigma fora um assunto filosófico. “Os antigos usavam-no como prova de sua
educação (paideia)”, cita Huizinga.

[…] o filósofo, desde as épocas mais remotas até aos últimos sofistas e
retores, sempre assumiu todas as características do campeão. Desafiava
seus rivais, submetia-os à crítica mais veemente, afirmando suas próprias
opiniões como as únicas verdadeiras, com toda a autoconfiança juvenil
própria do homem arcaico. Quanto ao estilo e quanto à forma, os exemplos
mais antigos de filosofia possuem um caráter polêmico e agonístico. Falam,
invariavelmente, na primeira pessoa do singular. Quando Zenão de Eléia
ataca seus adversários, fá-lo por meio de aporias — isto é, procura
ostensivamente partir das premissas deles para chegar a duas conclusões
contraditórias e que se excluem reciprocamente. Esta forma é a mais próxima
do enigma que é possível. Zenão pergunta: “Se o espaço é alguma coisa, o
que pode existir nele? O enigma não é difícil de resolver”. Para Heráclito, o
“filósofo obscuro”, a natureza e a vida são um griphos, um enigma, e ele
próprio é um decifrador de enigmas. As afirmações de Empédocles têm
muitas vezes a ressonância da solução de enigmas místicos, e se revestem
ainda de uma forma poética. Suas quase grotescas fantasias relativas à
origem da vida animal não pareceriam deslocadas num daqueles cantos dos
brâmanes da índia antiga, onde a imaginação parece completamente
desenfreada: “Dela (a Natureza) brotaram muitas cabeças sem pescoços,
braços erravam sem ombros, e no ar flutuavam olhos separados das faces”.

(Huizinga, [1938] 2018, p.130)

Para indicar algumas formas lúdicas da filosofia, Johan Huizinga nos remete à
figura do sofista grego. Trata-se aí de uma figura cujas características de exibição de
extraordinários conhecimentos e de derrotar seus adversários nas competições
públicas exprimem os dois principais fatores do jogo social da sociedade arcaica, o
exibicionismo e a aspiração agonística.138 Sofistas como Hípias Polihistor, o homem
das mil artes, Pródico, Górgias, Protágoras, eram admirados como seres superiores,
idolatrados como os campeões do atletismo. O jogo sofístico consistia em apanhar o
adversário numa rede de argumentos ou acerta-lhe um golpe fulminante. O clímax da
disputa era atingido quando se colocavam questões às quais só era possível dar
respostas erradas. Trata-se aí, diz Huizinga, do “velho jogo da perspicácia que, tendo
começado nas culturas mais remotas, oscila entre o ritual mais solene e o divertimento

137 Ibid. p.130.


138 Ibid. p.163.
98
puro e simples, por vezes elevando-se às alturas da sabedoria, outras, limitando-se a
uma simples rivalidade”. 139

Huizinga observa que o sofisma está relacionado com o enigma e que consiste
num truque de combate. A palavra grega πρόβλημα (problema), em seu sentido
original, remetia a qualquer coisa usada para defesa pessoal ou coisa que se joga aos
pés do outro com a significação de uma aposta ou desafio. 140 Esses significados se
aplicam à arte do sofista como “arte de colocar problemas”. Todavia, essas artimanhas
do discurso não eram exclusivas dos sofistas. Os gregos em geral apreciavam esses
jogos do espírito em que se procura surpreender os outros com perguntas capiciosas.
Lembremos de Clearco, o filósofo peripatético que escreveu uma teoria do enigma.
Conta-se a história de que numa ocasião teria dito “Tu não és o que eu sou. Eu sou
um homem, portanto tu não és um homem”; ao que se diz ter Diógenes respondido:
“Se queres que isso seja verdade, é melhor começares por mim”. 141

Como não é da natureza dos filósofos facilitar o trabalho do pensamento, os


jogos próprios da filosofia não são uniformes nem estão etiquetados. Desse modo,
seria sinal ou de ingenuidade ou de prepotência achar que um sobrevoo pela história
do pensamento ocidental seria suficiente para, de uma só vez, identificar e
compreender a variedades desses jogos. Uma luneta não faz às vezes de uma lupa e
vice-versa. Uma alternância de pontos de vista, um constante deslocamento do macro
ao micro e em diferentes ângulos se faz necessário para a identificação e dos
diferentes jogos filosóficos, pois eles não se encontram somente no interior das
malhas discursivas, como também amparados, em certo sentido, em práticas não
discursivas. É preciso voltar a atenção para todo o contexto no qual se dá um ato
filosófico e empreender uma análise que discrimine os gestos, que distinga as práticas
explicitamente discursivas das não discursivas. E mais ainda, para identificar os jogos
filosóficos, demarcar sua posição e examinar sua atividade e função, se faz
necessário, além de uma análise dos enunciados tendo em vista as estratégias,
táticas, modelos de inteligibilidade adotados, etc, também um trabalho “jornalístico-
filosófico” em torno do autor enquanto autor, de seus objetivos e intenções. Enfim, é

139 Ibid. p.164.


140 Ibid. p.165.
141 Ibid. p.166.

99
preciso perguntar quem fala o que é dito, e por quê. É preciso ir além da superfície do
texto e se interrogar sobre a performance da figura do autor.

No mais, sempre podemos recorrer a jogos mentais para sustentar um ponto


de vista. Ainda que as proposições filosóficas não possuam os mesmos valores e
estes variem em função dos critérios adotados, na prática, nenhuma censura em
especial parece se dirigir ao modelo do jogo e à linguagem com a qual suas
proposições são formuladas. Sem que desprestígio recaia sobre seu caráter
artificioso, há inclusive quem defenda o contrário, que somente em tais circunstâncias
artificiosas encontraremos as condições necessárias para o uso desimpedido da
razão.142

As referências, os gestos e os atos filosóficos passíveis de serem interpretadas


como jogos, apesar de raramente explícitas, são abundantes. Assim como são
abundantes as referências, os gestos e os atos filosóficos que, não correspondendo
às características formais do jogo, ainda se relacionam com ele de forma muito
próxima. Entre os pré-socráticos, por exemplo, encontramos uma relação
essencialmente agonística entre os pensamentos cosmológicos eleata e heraclitiano.
O confronto entre essas duas tendências opostas e, até certo ponto, mutuamente
excludentes do pensamento, assume muitas vezes a forma de uma grande disputa.
De modo mais específico, é também sob a forma de um jogo, de um jogo de perguntas
e respostas, que se apresenta certas afirmações dos eleatas de que “não existe
gênese, nem movimento, nem pluralidade”. Instado a se pronunciar sobre o problema
da existência, Parmênides chama essa tarefa de “jogar um jogo difícil” e, seguindo o
modelo do jogo de perguntas e respostas, formula: “O Um não pode ser partes, e é
ilimitado, portanto, destituído de forma; não está em parte alguma, não se move, é

142 Assim parece proceder John Rawls em Uma teoria da justiça (1971) quando, para defender sua teoria, formula
um cenário no qual se encontram condições de igualdade equitativa de oportunidades e escolhas para uma escolha
racional. Ora, uma situação perfeita, de absoluta igualdade, é própria da realidade do jogo. O “mundo criado” por
Rawls, a situação que ele concebe, têm características em comum com o jogo. Em primeiro lugar: ele funda
voluntariamente um mundo, isto é, concebe livremente uma situação. Em segundo lugar: esse mundo é
imaginariamente separado do mundo real e deve durar o tempo necessário às escolhas a serem feitas; isto é, é
limitado no tempo e no espaço. Em terceiro lugar: trata-se de um mundo ordenado por princípios e constituído por
regras específicas. Em quarto lugar: embora a situação desse mundo possa eventualmente desembocar em
alguma utilidade, esta não lhe é inerente nem imprescindível, logo, não tem finalidade pré-definida. Em quinto
lugar: dentro desse mundo, raciocinar equivale a empregar um esforço mental em prol de uma escolha racional,
esforço esse que gera uma tensão. Em sexto lugar: ocorre nesse mundo uma experiência cujo caráter artificioso
a distancia significativamente daquela que se tem da vida cotidiana. Diante disso, podemos afirmar que Rawls
formula uma situação para fazermos escolhas racionais que não só se assemelha a um jogo como contempla
todas as características formais do jogo. Isso deve bastar para mostrar que a linguagem através da qual se faz
uma exposição filosófica acaba se revelando, fundamentalmente, uma questão de escolha.
100
intemporal e incognoscível”.143 Um jogo ligeiramente semelhante pode ser visto na
atividade filosófica de Zenão que se destaca mais pela forma do que pelo conteúdo
de seus argumentos. A riqueza da filosofia de Zenão está inclusa na forma, quer dizer,
na estratégia que assume para estabelecer paradoxos para a razão, na performance
que efetivamente empreende e por meio da qual estarrece a razão. Não esqueçamos,
todavia, que o elemento lúdico e modelos de jogo também estão presentes em
filósofos do período clássico como Sócrates e Platão, 144 Este último, por exemplo,
pretendendo demonstrar as graves deficiências lógicas e éticas dos sofistas, adotou
para seu discurso o estilo do diálogo rápido e descontraído.

No capítulo intitulado Formas Lúdicas da Filosofia de Homo Ludens, Johan


Huizinga apresenta um singular esboço das sucessivas fases da filosofia:

[…] num passado muito remoto, ela se iniciou a partir do jogo de enigmas
sagrado, o qual era ao mesmo tempo um ritual e um divertimento festivo. Do
lado da religião deu origem à profunda filosofia e teosofia dos Upanishads e
dos pré-socráticos; do lado do jogo produziu o sofista. Não há uma distinção
absoluta entre os dois lados. Em sua busca da verdade, Platão eleva a
filosofia a um nível que só ele seria capaz de atingir, mas sempre daquela
forma leve que era e é o elemento próprio da filosofia. Ao mesmo tempo, ela
é cultivada sob as formas inferiores da habilidade sofistica e da argúcia
intelectual. Na Grécia, o fator agonístico era de tal modo forte que permitiu
à retórica desenvolver-se à custa da filosofia pura, a qual ficou oculta pela
sombra da sofisticação, que se exibia como cultura do homem comum.
Górgias é uma figura típica desta deterioração da cultura: afastou-se da
verdadeira filosofia para desperdiçar seu espírito no louvor e no abuso da
palavra brilhante e da falsa agudeza. Depois de Aristóteles caiu o nível da
filosofia, asfixiada pelo exagero da emulação e por um estreito espírito de
doutrina. No final da Idade Média, verificou-se um declínio semelhante,
quando à época da grande escolástica, que procurava compreender o
sentido íntimo das coisas, seguiu-se uma fase em que bastavam
simplesmente as palavras e as fórmulas vazias.

(Huizinga, [1938] 2018, p.169)

A competição, enquanto interação de indivíduos da mesma espécie que


disputam alguma coisa, é um traço marcante de períodos de grande desenvolvimento
cultural. Com efeito, a competição é um dos traços mais marcantes em toda evolução
da escolástica e das universidades entre os séculos IX e XVI. Por exemplo, foi a

143 Huizinga, [1938] 2018, p.167.


144 Ibid. p.168.
101
competição em torno do “problema dos universais”, tema central das discussões
filosóficas desse período, que ocasionou a divisão entre realistas e nominalistas. Esse
acontecimento na história do pensamento foi determinado, segundo Huizinga, por
fatores essencialmente agonísticos oriundos de uma “necessidade fundamental de
construir partidos opostos a propósito de todas as questões controversas”. 145 No
entendimento de Huizinga, o espírito de partido está presente mesmo que o objeto de
discussão tenha uma importância relativamente pequena. A filosofia, como toda forma
de conhecimento, é profundamente polêmica e não temos como compreender
qualquer polêmica a não ser em termos agonísticos.

No século XVIII, verificou-se um intenso comércio intelectual entre os sábios


de diversos países […]. Era uma época que se prestava maravilhosamente
às lutas intelectuais mais sérias ou mais superficiais. Juntamente com a
música, a peruca, o racionalismo frívolo, a graça do estilo rococó e o encanto
dos salões, esses combates intelectuais constituem um aspecto essencial
dessa ludicidade que todos reconhecem no século XVIII, e que
frequentemente nos sentimos tentados a invejar-lhe.

(Huizinga, [1938] 2018, p.175)

Sem embargo, uma vez que os jogos filosóficos estão presentes em


praticamente todos os períodos da história da filosofia, chega a ser impressionante
que durante tanto tempo pouca atenção tenha sido concedida a noção de jogo por
parte dos filósofos. Por outro lado, é compreensível que diante da virtude (aretê), da
justiça (dikaiosύnh) ou da felicidade (eudaimonia), uma noção como a de jogo (agōn
ou paidia) soasse imprópria para a contemplação do filósofo antigo. 146 As primeiras,
célebres, seja por conta da qualidade superior de seus referentes (dos quais adquiriam
o valor) ou por corresponderem a questões fundamentais da efetiva história da filosofia
(da qual já eram artefatos imateriais), dispensavam justificativa. Mas até em relação a
noções relativamente herméticas, particulares de alguns filósofos e de doutrinas
historicamente circunscritas, a noção de jogo não parece apresentar maior relevo.
Mesmo sem restrição quanto ao uso, todavia banal, dos vocábulos agōn ou paidia, o
pensamento grego não costumava empregá-los filosoficamente senão a pretexto de
explanação sobre outra coisa.

145Ibid. p.174.
146Com as devidas ressalvas, admitem-se no geral as traduções desses primeiros termos como viáveis. No caso
do termo ἀγών, (transl. agōn), são mais diversas e contextuais.
102
O espírito de agōn, no sentido de princípio agonístico, é um longevo
contributário da civilização grega. Decisivamente vigente durante o período
homérico,147 franqueado no arcaico (VIII-VI a.C.), era não só um dos traços
característicos da época, mas, sobretudo, um elemento constituinte da própria
realidade desse mundo. Presente na Ilíada, na Odisséia dera contexto aos Jogos
Olímpicos disputados desde o final do período homérico (776 a.C) até o helenístico
(393 d.C). Tratava-se de um evento tão importante que, nessa ocasião, até as guerras
eram interrompidas. Os atletas provinham de todas as Cidades-Estado da Grécia para
esse evento que, por sua vez, era um traço do esplendor da cultura grega na
Antiguidade.

As feições do agōn — tão importantes para a cosmogonia e representação que


o homem arcaico tinha de um mundo em comum com os deuses — foram expressas
como duais por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia (1872). Neste livro figura-se
o embate de dois princípios e impulsos artísticos, o apolíneo, que representa o
insaciável conhecimento otimista, com o dionisíaco, que representa a necessidade
trágica da arte. Foi nesses termos que o autor buscou resgatar o que fora o espírito
da Grécia arcaica antes do advento do “socratismo”, de modo que se compreende que
a passagem ao período clássico foi marcada por uma paulatina descentralização do
agōn relativa à função representativa do cosmos. No entanto, malgrado toda
transfiguração do horizonte de sentido, o traço agonístico do mundo arcaico não foi
ainda nessa ocasião completamente suprimido. No entender de Nietzsche, estaria
mais como que encoberto e restringido ao contexto das tragédias e concursos.

147 Séc. XII-IX.


103
6. Algumas noções de jogo

Há para Platão, assim como para a cultura grega do período clássico, uma
relação de consequência entre jogo (paidia) e educação (paideia). O jogo comporta
uma função instrumental de ensino no que se refere às questões ético-políticas do
futuro cidadão. Platão talvez seja o primeiro filósofo de quem conservamos o
pensamento a atribuir ao jogo (paidia) a função de preparar o indivíduo para uma
atividade futura. Importa lembrar, todavia, que o termo paidia entre os gregos é
empregado para se referir aos jogos infantis e às brincadeiras espontâneas sem
regras ou cujas regras são criadas pelas próprias crianças, enquanto que o termo
paízo é empregado para se referir ao entretenimento amadurecido, ao divertimento do
homem já formado. Esse também é o emprego que Platão faz dos termos.

Assim, quando ele propõe na República que os filhos da cidade (isto é, os


jovens) devem participar de jogos mais legítimos, mais conformes a lei, pois se “se os
seus jogos são desregrados eles também o serão e não poderão tornar-se quando
adultos, homens obedientes às leis e virtuosos”, e que não convém educar as crianças
pela violência, mas por meio da brincadeira, o que permitiria inclusive “descobrir as
tendências naturais de cada um”, 148 é o termo paidia que é empregado com a
significação de jogo.

Platão não chega a identificar exatamente a dialética grega com o jogo, mas
nela reconhece a possibilidade de se tornar um jogo. 149 motivo pelo qual não a
recomenda aos jovens. “Deves ter percebido, penso, que os adolescentes, depois de
terem experimentado uma vez a dialética, abusam e fazem dela um jogo [paidia]”. Ora,
visto que em Platão a dialética é sinônimo de filosofia, o método mais eficaz de
aproximação entre as ideias particulares e as universais, fica claro que para ele fazer
da dialética um jogo (paidia) é abusar dela, fazer mal uso. “Utilizam-se dela para

148Platão, As leis, Bauru: Edipro, 1999. 537a.


149Na República, numa discussão em torno da educação filosófica, Adimanto comenta a tática de Sócrates: por
meio de aparente inexperiência, a cada pergunta conduz a discussão a um pequeno desvio que, acumulando-se,
desemboca ao fim numa posição contrária à inicial; e tal como “no gamão, os jogadores hábeis cercam as pedras
dos outros e não os deixam chegar ao fim, nem ter para onde mover as pedras, também eles acabam por ficar
cercados e sem ter que dizer nesta outra espécie de jogo, feito não com pedras, mas com argumentos” (L. VI,
487b-c).
104
contestar a todo momento e, imitando os que os refutam, por sua vez refutam os
outros e sentem prazer, como cãezinhos, em assediar e dilacerar com argumentos
todos os que deles se acercam”. Como os jovens tendem a não praticar a dialética
com a devida seriedade, mas se servirem das habilidades por esse meio adquiridas
para contestar a todo momento, sem consideração pela verdade, fazendo pouco dos
que os refutam, é por precaução que é importante impedi-los que tomem gosto por
essa arte da palavra. Tanto porque não edificariam o espírito, não colheriam os bons
frutos provenientes da boa prática da dialética, como findariam, em consequência da
má prática, desenvolvendo maus hábitos.

Esse entendimento acerca do espírito juvenil é praticamente reproduzido nas


Leis e mais uma vez relacionado ao jogo, quando Platão diz que “quase sem exceção,
todos os indivíduos jovens são incapazes de conservar seja o corpo seja a língua
imóveis, estando tais jovens sempre procurando incessantemente se moverem e
gritarem, saltando, pulando e se deliciando com danças e jogos [paidia], além de
produzirem ruídos de todo naipe”.150 Mas, na realidade, o que se destaca nas Leis
relativamente aos jogos é sua função instrutiva, sua estreita relação com a educação
ou, se quiserem, seu caráter pedagógico. Nessa passagem, o termo empregado por
Platão e traduzido por “entretenimento” é paízo.

O que afirmo é que todo homem que pretenda ser bom em qualquer atividade
precisa dedicar-se à prática dessa atividade em especial desde a infância
utilizando todos os recursos relacionados a sua atividade, seja em seu
entretenimento [paízo], seja no trabalho. Por exemplo, o homem que pretende
ser um bom construtor necessita (quando menino) entreter-se brincando de
construir casas, bem como aquele que deseja ser agricultor deverá (enquanto
menino) brincar de lavrar a terra. Cabe aos educadores dessas crianças
supri-las com ferramentas de brinquedo moldadas segundo as reais. Além
disso, dever-se-á ministrar a essas crianças instrução básica em todas as
matérias necessárias; sendo, por exemplo, ensinado ao aprendiz de
carpinteiro sob forma de brinquedo o manejo da régua e da trena, àquele que
será um soldado como montar e demais coisas pertinentes. E assim, por meio
de seus brinquedos e jogos, nos esforçaríamos por dirigir os gostos e desejos
das crianças para a direção do objeto que constitui seu objetivo principal
relativamente à idade adulta. Em primeiro lugar e acima de tudo, a educação,
nós o asseveramos, consiste na formação correta que mais intensamente
atrai a alma da criança durante a brincadeira para o amor daquela atividade
da qual, ao se tornar adulto terá que deter perfeito domínio.

(Platão, As Leis, p.91-92)

150 Platão, As Leis, 652d-e.

105
Mais à frente, Platão afirma que “a educação é o processo de atrair e orientar
crianças rumo a esse princípio que é pronunciado como correto pela lei e corroborado
corno verdadeiramente correto pela experiência dos mais velhos e dos mais justos”. 151
É importante nesse processo que a alma da criança não se habitue a sofrimentos e
prazeres contrários à lei, mas como “as almas dos jovens são incapazes de suportar
o sério estudo, nós os chamamos de jogos [paidia] e cantos e os usamos como tais
[...]”.152 Em conformidade com as bases da educação grega (paideia), Platão
estabelece que “a formação do caráter da criança de mais de três anos e até seis
exigirá a prática de jogos [paidia]; neste período se fará uso do castigo a fim de impedi-
la de ser indolente — não, todavia, um castigo de tipo degradante”. 153 No caso das
crianças com menos de três anos, os jogos “nascem do próprio instinto natural e elas
os inventam elas mesmas sempre que estão juntas”. 154 Antes dos três anos de idade
as crianças possuíam liberdade e eram incentivadas a desenvolver capacidades
inventivas. Dos três aos seis anos, é o período durante o qual devem se submeter à
função estruturante dos jogos.

Platão declara que “há em todo Estado uma total ignorância a respeito dos
jogos infantis, de sua importância decisiva para a legislação com os fatores que atuem
para determinar se as leis promulgadas devem ser permanente ou não”; 155 e
estabelece uma estreita relação de causa e efeito entre a experiência da criança com
o jogo e a futura relação do indivíduo com as leis, ou seja, um isomorfismo
comportamental.

151 Ibid. 659d.


152 Ibid. 659e.
153 Ibid. 793e.
154 Ibid. 794a.

155 Ibid. 797a-b.


106
Quando há um a prescrição do programa dos jogos que assegura que as
mesmas crianças joguem sempre os mesmos jogos e se divirtam com os
mesmos brinquedos da mesma maneira e nas mesmas condições, se
permite também que as leis efetivas e sérias permaneçam inalteradas; mas
quando, ao contrário, tais jogos variam e sofrem inovações entre outras
mudanças contínuas, as crianças não cessam de fazer seu caprichos e
transferir de um folguedo para outro, de modo que nem no que diz respeito
às suas próprias posturas corporais nem no que respeita a todos os objetos
de seu uso contam com um padrão estabelecido e reconhecido de
propriedade ou impropriedade no seu comportamento.

(Platão, As Leis, 797b)

Dado esse isomorfismo entre o comportamento no jogo e o comportamento


perante as leis, os legisladores deveriam, segundo Platão, proibir que ocorressem
mudanças nos jogos infantis. No entanto, por considerarem essas mudanças
irrelevantes, dão assentimento a elas sem atentarem ao fato de que por isso as
crianças se tornam diferentes de seus pais, buscam outro tipo de vida e desejam
outras instituições e leis. O que de pior poderia acometer um Estado? De fato,
segundo Werner Jaeger, autor de Paidéia: A formação do homem grego (1933):

Platão inicia um novo esclarecimento de base sobre o valor educativo do


jogo, o qual até então fora completamente ignorado por todas as cidades.
[…]. O problema do jogo deve tê-lo preocupado na velhice com intensidade
maior do que nunca, e certamente como meio para o desenvolvimento
precoce de um éthos adequado.

(Jaeger, [1933] 1995, p.1356)

Portanto, vimos que para Platão os jogos constituem a mola fundamental da


educação que, na Grécia do período clássico, não se limitava à infância, mas se
estendia por toda a vida. Não obstante, no entendimento de Platão nem por isso os
jogos se restringiam a função educativa. Encontramos nas Leis uma prova disso.
Trata-se de uma passagem indicada por Huizinga que, por sua vez, quer encontrar
em Platão um ponto de apoio para sua tese segundo a qual não há diferença formal
entre o culto e o jogo.

Esta identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão,
que não hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. “É preciso tratar
107
com seriedade aquilo que é sério”, diz ele.156 ”Só Deus é digno da suprema
seriedade, e o homem não passa de um joguete de Deus, e é esse o melhor
aspecto de sua natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida
de acordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando
suas inclinações atuais. Pois eles consideram a guerra uma coisa séria,
embora não haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente
as coisas que nós consideramos mais sérias. Portanto, todos devem esforçar-
se ao máximo por viver em paz. Qual é, então, a maneira mais certa de viver?
A vida deve ser vivida como um jogo, jogando certos jogos, fazendo
sacrifícios, cantando e dançando, e assim o homem poderá conquistar o favor
dos deuses e defender-se de seus inimigos, triunfando no combate.157

(Huizinga, [1938] 2018, p.23, grifo nosso)158

Huizinga observa ainda que, ao identificar o jogo com o sagrado, Platão não
desqualifica este último, mas exalta o primeiro elevando-o às mais altas regiões do
espírito. É em razão dessa identificação do jogo com o sagrado que Platão valorizará
a seriedade nos jogos, sobretudo nos jogos mais nobres, é preciso tratar com
seriedade aquilo que é sério. No entanto, por mais surpreendente e aparentemente
importante que seja a relação estabelecida na referida passagem entre o jogo e o
sagrado, a noção de jogo (paidia) permanecia sendo empregada a pretexto de explicar
uma outra coisa, de modo que só indiretamente se apreendia seu sentido. Pois bem,
feita essa observação, retomemos o ponto anterior que trata da pertinência dos jogos
para a formação integral do cidadão.

De que maneira os jogos contribuem para a educação do sujeito? A que


critérios devem corresponder para exercerem uma função educativa? Que
características possuem? Apesar da aparente simplicidade dessas questões, é difícil
dar-lhes uma resposta definiva. Mas, para Platão, as crianças deveriam aprender a
contar através de jogos, os alunos deveriam aprender lições dos mestres de armas
através de jogos, e os velhos, em vez de jogar damas, deveriam se ocupar de
passatempo muito mais refinado para sua idade, como os “problemas concernentes à

156 Cf. Platão, As Leis, VII, 803c-d apud Huizinga, [1938] 2018, p.23.
157 Cf. As Leis, VII, 796b apud Huizinga, [1938] 2018, p.23.
158 Encontramos outra tradução dessa passagem para o português e reproduzimos aqui para fins de comparação

e esclarecimento mútuo, visto que a passagem original, em grego clássico, não é uma opção para todos. Assim
procedemos com toda passagem que consideramos difícil ou incerta. “O que quero dizer é que se deve levar a
sério coisas sérias e não ninharias e que o objeto realmente digno de todo esforço sério e abençoado é por
natureza a Divindade, enquanto o ser humano foi fabricado, como dissemos antes, para ser um brinquedo da
Divindade, consistindo nisto efetivamente sua melhor parte. Partindo daí, portanto, digo que todo homem e toda
mulher devem percorrer todo o curso de sua existência desempenhando esse papel, divertindo se com os jogos
mais excelentes, mas não entendendo seus jogos como os entendem hoje (Platão, As Leis, p.295) […] Deveríamos
viver nossas vidas participando de certos jogos — sacrificando, cantando e dançando — de modo a nos
capacitarmos a conquistar o favor divino e repelir nossos inimigos e vencê-los na luta”. 803d-e.
108
natureza essencial do comensurável e do incomensurável […] que é preciso examinar
e distinguir sob pena de se cair num esforço totalmente inútil; são esses os problemas
a serem mutuamente propostos”. 159 Então, não sendo prejudiciais nem difíceis, esses
assuntos devem ser aprendidos pelos jovens através do jogo, pois, assim, não
causam nenhum dano ao Estado.

Entretanto, tendo em vista que muitos jogos são perigosos, se porventura


ocorrer um incidente, como proceder? O incidente deve ser apurado, pois para toda
situação possível, há uma sanção correspondente. No caso de violência e
involuntária, “se alguém tiver matado um amigo numa competição ou em jogos
públicos”,160 etc., “depois de ter sido purificado como orienta a regra de Delfos, estará
livre de qualquer processo por crime”.161 Mas se, por outro lado, em desobediência à
lei alguém comete um assassinato durante os jogos e macula os próprios jogos, a
ágora e outras assembleias sagradas, ele pode ser processado — e provavelmente
será — por qualquer parente da vítima. O parente estará em seu direito de cobrar e o
outro em seu dever de pagar o dobro do montante das multas em dinheiro. 162

Os jogos públicos, assim como os sacrifícios públicos, a ágora, o tribunal ou


qualquer assembleia pública, são lugares sagrados para os gregos. Tamanha é a
importância dos jogos públicos que a maior das honrarias previstas em lei é um convite
para sentar-se no assento da primeira fila.163 Dessa maneira, por mais que algumas
situações provocadas por brigas, rixas e ódio mútuo entre indivíduos sejam
insustentáveis, por mais que alguém em situação semelhante também se sinta
inclinado a expor o adversário ao ridículo, a verdade é que “todo aquele que alguma
vez se entregou a essa prática ou fracassou na conquista de uma disposição virtuosa
ou perdeu grande parte de sua anterior grandeza de alma”.164 Importa, sobretudo, que
ninguém profira tais palavras em qualquer lugar sagrado.

A última espécie de jogo considerado por Platão nas Leis é um jogo que se
limita a ser imitativo e que não é sério.

159 Ibid. 820c.


160 Ibid. 865a.
161 Ibid. 865b.
162 Ibid. 868a-b.
163 Ibid. 881b-c.
164 Ibid. 935b.

109
Aqueles que o praticam utilizam muitos instrumentos e muitos gestos
corporais, incluindo uma mímica nem sempre decente. Envolve habilidades
que fazem uso das palavras, todas as artes das Musas e os gêneros de
representação visual, que são responsáveis pela produção de uma
multiplicidade de figuras variadas em diversos veículos, tanto úmidos quanto
secos. Entretanto, a arte imitativa não torna ninguém sábio em quaisquer
dessas coisas, mesmo aqueles que praticam sua arte com o máximo de
circunspecção.

(Platão, As Leis, 975d)

O “ateniense” ainda diz que o legislador, ao fazer um discurso sobre os deuses


mais belo e mais digno do que aqueles apresentados até então, envolve-se, por assim
dizer, num jogo nobre e honra aos deuses. 165 Ora, mas quem faz às vezes de
legislador aqui senão o próprio Platão? Quem senão ele mesmo fez um discurso sobre
os deuses? Que discurso seria mais belo do que esse diálogo de sua maturidade e
que tema o tornaria mais digno? Um discurso sério, sobre coisas sérias, mas de ponta
a ponta fictício. Não poderíamos concebê-lo, portanto, como um jogo, um “nobre
jogo”? Retenham essa ideia.

Platão discorreu sobre o emprego de vários tipos de jogos e sobre seu papel
decisivo para a formação ético-política do sujeito, mas em momento algum se deteve
na definição do conceito de jogo. Não obstante, o pensamento clássico não ignorou
complemente esse problema. Quanto a isso é Aristóteles quem mais uma vez
representa a exceção entre os antigos.

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles sustenta que a felicidade (eudaimonia) não


reside na recreação (pois esta não é um fim) e que não devemos, portanto, trabalhar
e suportar o peso da existência simplesmente para nos divertir. Mas como tudo que
escolhemos, escolhemo-lo tendo outra coisa em vista, para que se divertir?

Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas na recreação parece coisa tola e


absolutamente infantil. Mas divertir-nos a fim de poder esforçar-nos […]
parece certo; porque o divertimento é uma espécie de relaxação, e
necessitamos de relaxação porque não podemos trabalhar constantemente.
A relaxação, por conseguinte, não é um fim, pois nós a cultivamos com vistas
na atividade.

(Aristóteles, livro X, capítulo VI)

165 Ibid. 980a-b


110
Por outro lado, sobre as recreações agradáveis, Aristóteles sustenta que “não
as escolhemos tendo em vista outra coisa, uma vez que antes somos prejudicados do
que beneficiados por elas: tais atividades nos levam a negligenciar nossos corpos e
nossos bens materiais”. 166 Pois bem, se não as escolhemos tendo em vista outra
coisa, as recreações agradáveis são tomadas como se fossem um fim. Mas como,
diferente da felicidade (eudaimonia), as recreações agradáveis não são um fim,
devemos tomá-las tendo em vista o favorecimento ao trabalho.

Aristóteles também faz considerações sobre os jogos em vários momentos de


seu tratado sobre a Política.

Se o repouso e o trabalho são ambos indispensáveis, o repouso é pelo menos


preferível, e é uma questão importante saber em que se deve empregar o
lazer. Certamente não no jogo; senão, o jogo seria o nosso fim último. Se
possível, é melhor descartar o jogo entre as ocupações. Quem trabalha
precisa de descanso: o jogo não foi imaginado senão para isto. O trabalho é
acompanhado de fadiga e de esforços. É preciso entremeá-lo
convenientemente de recreações, como um remédio. O descanso é ao
mesmo tempo um movimento da alma e um repouso, pelo prazer de que se
acompanha. A cessação do trabalho é ela própria um prazer e faz parte da
felicidade da vida, felicidade esta que não se pode apreciar em meio às
ocupações e que só é bem sentida nos momentos de lazer. Não nos
entregamos ao trabalho senão com vistas a algum fim. A felicidade é um
destes fins.

(Aristóteles, livro VI, capítulo II)

Aristóteles assinala que em razão do jogo não ser um fim último, não devemos
nele empregar o lazer. “Se possível, é melhor descartar o jogo entre as ocupações”.
Não sendo ele mesmo um fim, tem por finalidade outra coisa que não ele mesmo:
“quem trabalha precisa de descanso: o jogo não foi imaginado senão para isto”. Uma
vez que o trabalho puxado pede pausas, recreações pode lhe servir de remédio. Os
jogos são alternativas de recreação. Já que o movimento da alma que resulta dos
jogos “produz relaxamento, e o prazer que deles se retira facilita o descanso”, convém
fomentar os jogos, desde que ponderemos acerca do momento oportuno de sua
utilização, para gozarmos de seus benefícios quando precisarmos e para não
relaxarmos em situação inoportuna.

166 Aristóteles. Ética a Nicômaco ; Poética. (Coleção: Os pensadores) ; v. 2) Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1991.
111
Nessa passagem, ficamos com a impressão de que se trata mais propriamente,
para Aristóteles, de colocar o jogo em seu devido lugar do que de lhe dar uma
definição. Enquanto Platão tinha atribuído uma função pedagógica ao jogo
(República), identificado ao sagrado (Leis) e valorizado a seriedade na atividade,
Aristóteles indica (Política) que o jogo é uma atividade qualquer, não séria, que se
exerce por si mesma ou a propósito de um relaxamento útil para a recuperação da
energia de trabalho. Pela constante ressalva de que “quem trabalha precisa de
descanso e o jogo não foi imaginado senão para isto”, percebemos que a hesitação
de Aristóteles quanto a valorização dos jogos é inversamente proporcional ao que fora
a valorização platônica. Mesmo assim, foi a definição aristotélica que findou de algum
modo aproximando formalmente a noção de jogo das noções de felicidade
(eudaimonia) e de virtude (aretê), que também se exercem por si mesmas.

Lembremos que o trabalho demanda lazer, mas que lazer para Aristóteles é
diferente de jogo. Ou seja, só a título de alternativa para o divertimento e relaxamento
o jogo é aceito. O jogo, como uma atividade com fim em si mesma, ao proporcionar
divertimento e uma espécie de relaxamento, “serve” para desopilar e restabelecer a
disposição para o trabalho. Por mais que não seja sua finalidade natural, o jogo “serve”
para isso. Por outro lado, Aristóteles rejeita a ideia de que o jogo sirva igualmente para
a educação.

É claro que a finalidade da educação dos mais jovens não deve ser o jogo.
Ninguém joga enquanto aprende, pois a aprendizagem surge acompanhada
de dor. Também não é conveniente oferecer divertimentos intelectuais às
crianças; não deve ser dado nessas idades, pois ao que é imperfeito não se
atribui um fim. Também poderá parecer que tal finalidade se esgota nos
momentos de lazer de que desfrutarão quando se tornarem adultos.

(Aristóteles, livro V, capítulo IV)

Seja como for, fixando o jogo nessa condição de atividades com fim em si
mesma, Aristóteles estabeleceu o conceito de modo que este permaneceu
substancialmente inalterado até o século XVIII. O que não quer dizer, é claro, que o
discurso platônico tenha sido suprimido. A tensão estabelecida entre o pensamento
de Platão e de Aristóteles, longe de excluírem-se mutuamente, como que os revigorou
e impulsionou. Sem esse embate da filosofia platônica e da filosofia aristotélica em
torno da noção de jogo, talvez não tivéssemos os devidos representantes do
112
pensamento antigo nos estudos sobre os jogos. Além do mais, esse embate
possibilitou que o jogo fosse tomado por dois caminhos, como meio de ensino e como
meio para o relaxamento da alma.

Parece que o conceito assim permaneceu até que Kant atribuísse ao jogo uma
função biológica de reforçar a energia vital na competição com as energias do
mundo.167 Ele propõe que o jogo seja dividido em jogo de azar, jogo de sons e jogo
de pensamentos. O jogo de azar requer um interesse, seja da vaidade ou do egoísmo.
Por não o considerar belo, Kant o deixa de fora de suas análises. O jogo de sons
requer apenas a mudança das sensações, das quais cada uma tem certa relação com
um afeto e desperta ideias estéticas. O jogo do pensamento surge da mudança das
representações na faculdade de julgar e, sem suscitar qualquer pensamento que traga
consigo um interesse, anima a mente.

Os jogos podem ser muito prazerosos, de modo que o sujeito pode sentir
vontade de jogar sem que tenha um propósito interessado. Afetos como esperança,
medo, alegria, raiva e atitudes como a zombaria podem entrar no jogo trocando de
papel a cada momento. Esses afetos e atitudes são tão vivazes que por meio deles
toda a atividade vital do corpo parece intensificada. Prova disso é a excitação da
mente por eles gerada, mesmo que não se tenha ganho ou aprendido nada com
isso.168 Enfim, o jogo para Kant é uma ocupação agradável em si mesma e, portanto,
comparável à arte. O trabalho, por seu turno, é uma ocupação desagradável em si
mesma, penosa, atraente por seu efeito, a remuneração, e passível de ser imposta
coercitivamente.169

Assim como nós sentimos a necessidade de evocar um impulso para abordar


a realidade do jogo e o denominamos “impulso lúdico”, Schiller também elabora uma
noção de impulso e recorre a expressão “impulso lúdico” (Spieltrieb) para designá-lo.

167 Cabe pontuar que a noção de jogo enquanto possuidora de uma função biológica de adestramento das
atividades vitais que reforçam a conservação do organismo, como expressas em Kant, já se encontra de certo
modo delineada em Platão no contexto dos processos envolvidos na formação do cidadão (visto que permitiria
observar as inclinações naturais do jogador e saber, dentre as características reveladas, às que convém ser
trabalhadas e como trabalhá-las) e a pretexto da educação das crianças (na qual, em oposição à violência sempre
nociva, o brincar tem um potencial edificante).
168 Ibid. p.79.
169 Ibid. p.79.

113
Foi numa das cartas170 para a educação estética do homem,171 escritas no ano de
1793, que Schiller definiu, depois dos dois impulsos naturais, o “impulso lúdico”.

O objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida


em seu significado mais amplo; um conceito que significa todo o ser material
e toda a presença imediata nos sentidos. O objeto do impulso formal,
expresso num conceito geral, é a forma, tanto em significado próprio como
figurado; um conceito que compreende todas as disposições formais dos
objetos e todas as suas relações com as faculdades do pensamento. O objeto
do impulso lúdico, representado num esquema geral, poderá ser chamado de
forma viva, um conceito que serve para designar todas as qualidades
estéticas dos fenômenos, tudo o que em resumo entendemos no sentido mais
amplo por beleza.

(Schiller, [1793] 2002, p.77)

Para Schiller, deve haver uma concordância entre os dois impulsos inatos, uma
síntese do impulso da forma e do impulso da matéria, isto é, deve haver um impulso
lúdico, pois “apenas a unidade de realidade e forma, de contingência e necessidade,
de passividade e liberdade, completa o conceito de humanidade”. 172 O impulso lúdico
não é concebido pelo filósofo como um instinto particular, mas como uma síntese do
impulso formal e do impulso sensível, como mediador e jogo desses impulsos opostos.
O impulso lúdico remete de imediato ao conceito de jogo. Podemos dizer que a noção
de jogo é o próprio impulso lúdico.

O jogo, enquanto elemento mediador, neutraliza os dois impulsos opostos no


sujeito, o da natureza e o da racionalidade, e estabelece a harmonia necessária para
atingir o ser humano absoluto, capaz de equilibrar as suas faculdades, trabalhar suas
diferenças sem perder suas particularidades, e lhe dar um uso moral. Só o jogo torna
isso possível. No pensamento de Schiller, o ser humano só está completo com o jogo,
pois o jogo é necessário para a criação de uma humanidade plena, de uma
humanidade de seres harmoniosos e capazes de fazer um uso da sua moral. “Pois
para dizer tudo de vez, o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da
palavra e somente é homem pleno quando joga”.173

170 Ibid. p.79.


171 Ibid. p.79.
172 Ibid. p.79.
173 Ibid. p.79.

114
Mas lembremos que o conceito de impulso lúdico designa igualmente todas as
qualidades estéticas dos fenômenos, isto é, está diretamente ligado à beleza de modo
que é o próprio fundamento do impulso artístico. Ao colocar o impulso lúdico no lugar
de fundamento do impulso artístico, Schiller institui o impulso lúdico como condição
primeira da atividade artística. “Não errará jamais quem buscar o Ideal de beleza de
um homem pela mesma via em que ele satisfaz seu impulso lúdico”. 174

Quando Schiller evoca a realidade do jogo, sempre o articula com a beleza,


pois “com o agradável, com o bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a
beleza, no entanto, ele joga”. 175 Para ele, é a razão quem diz: “o homem deve somente
jogar com a beleza, e somente com a beleza deve jogar”.176 Adverte-nos, no entanto,
de não lembrar aqui dos jogos da vida real, dos jogos de nosso cotidiano, geralmente
muito materiais. Não devemos procurar um alto grau de beleza por aí. Pelo contrário,
em vez de se contentar com os jogos de seu cotidiano, os homens deveriam elevar o
nível deles de modo a exprimirem um alto grau de beleza. “A beleza realmente
existente é digna do impulso lúdico real; pelo Ideal de beleza, todavia, que a razão
estabelece, é dado também como tarefa um Ideal de impulso lúdico que o homem
deve ter presente em todos os seus jogos”.177

Importa ressaltar que para Schiller, a imaginação e o senso comum estético,


enquanto faculdades de mediação, são capazes de mobilizar os ânimos e de geri-los
num jogo livre e harmônico. Essa mobilização representa, portanto, um terceiro
impulso. Um impulso que, todavia, não é inato nem natural, mas criado pelo jogo; um
impulso trabalhado, desenvolvido pela estética.

Ora, talvez seja isso que Huizinga queira dizer ao afirmar que a função do jogo
em suas formas mais elevadas pode ser definida por dois aspectos fundamentais:
“uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa”.178 A luta por alguma
coisa, por si só, parece bastante característica das formas convencionais de jogo. Já
a representação de alguma coisa, por si só, parece característica dos processos
envolvidos na linguagem. Mas juntas, essas funções constituem as formas mais
elevadas de jogo e “podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogo

174 Ibid. p.79.


175 Ibid. p.79.
176 Ibid. p.80.
177 Ibid. p.79-80,
178 Huizinga, [1938] 2018, p.16.

115
passe a ‘representar’ uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor
representação de alguma coisa”. 179 Quanto a isso, importa notar que não temos em
português um termo equivalente ao inglês to play, ao alemão spielen e ao francês
jouer que significam ao mesmo tempo jogar e representar, tanto no sentido de figurar
como no de apresentação ou representação teatral. 180

Com Schiller ainda estamos no nível da definição tradicional de jogo. O que


evidencia isso é o caráter de absoluta espontaneidade e liberdade que lhe é atribuído.
É com base nessa definição tradicional que se contrapõe jogo e trabalho. Como se
tivéssemos de lidar em nosso cotidiano, por um lado, com os jogos, as brincadeiras e
todo tipo de atividade lúdica, e por outro, com a seriedade do trabalho, cumprir com
as obrigações e não perder o foco do objetivo a ser alcançado. Como se as atividades
e ocupações fossem rigorosamente divididas entre aquelas que são um fim em si
mesmas e aquelas que visam um fim exterior a elas mesmas.

Nos séculos XVIII–XIX nota-se despontar um expressivo interesse teórico pela


noção de jogo que culminou na elaboração de várias teorias estéticas, psicológicas e
antropológico-filosóficas. Os Princípios de psicologia (1855) de Herbert Spencer é
uma obra que representa bem esse período. Trata-se, na verdade, de um dos livros
de sua monumental obra Sistema de Filosofia Sintética, publicada em série.
Spencer desenvolveu uma teoria evolutiva que busca expor o progresso
metafísico do universo de uma perspectiva otimista. Para Spencer, a evolução é
necessária, progressiva e busca o equilíbrio. A evolução está destinada a conduzir os
homens à perfeição e à felicidade. Deste modo, “o progresso não é um acidente, mas
uma necessidade”. De acordo com o autor o processo de desenvolvimento segue a
mesma lei em todos os campos. Por isso defendeu a escola privada. Em seu
entendimento, a interferência do Estado, estabelecendo uma educação igual para
todos, daria margem à estudantes por natureza inaptos a competir em sociedade.
Sustentava ainda que a vida consistia na adaptação dos organismos aos desafios do
ambiente. É dele a expressão “sobrevivência do mais apto”.
Para Spencer, a educação segue uma evolução similar à dos indivíduos e da
sociedade. Na escola deve-se ensinar sobretudo conteúdos de utilidade prática. Deve-
se eliminar velhas práticas educativas baseadas na ideia de maldade natural das

179 Ibid. p.16-17.


180 Ibid. p.20.
116
crianças, pois o progresso procede de uma educação não coercitiva. Deve-se
promover, em detrimento de uma aprendizagem memorística, uma aprendizagem
baseada nos processos espontâneos das crianças. Deve-se substituir o ensino das
normas pelo dos princípios. De modo geral, o ensino deve se basear na investigação
e na descoberta independentes, fomentar a capacidade de observação das crianças
e sua atividade espontânea em forma de jogo. As lições deveriam, portanto, ser
ministradas com boa didática, voltar-se para questões práticas e apresentar, sempre
que possível, as verdades em forma concreta, através de modelos. Como a
aprendizagem deve ser algo agradável, e não penoso, é importante o uso de jogos,
canções infantis, contos de fadas etc. e encerrar as lições caso os alunos se cansem.
Assim, o método natural de ensino se adapta ao desenvolvimento mental natural da
criança.
Quanto aos jogos, em Princípios de psicologia o autor sustenta que o instinto
do jogo consiste numa energia biológica excedente que se manifesta (de maneira
inferior) no esporte e (de maneira superior) na arte. Desse jeito, o impulso lúdico pode
se satisfazer com atividades não diretamente ligadas a finalidades biológicas. Essa
teoria foi muito difundida no fim do século XIX e início do XX, (principalmente entre
naturalistas como Wundt).
The Play of Animals (1898), de Karl Gross, é outra obra representativa desse
período. Nela o autor propõe uma teoria instrumentalista evolucionária do jogo. Ele,
assim como os filósofos do século anterior, considera haver uma estreita relação entre
a atividade lúdica e a artística. Diferente de Spencer, não acha que a atividade lúdica
seja uma descarga, mas uma preparação para a vida — logo, que é útil e passível de
ser explicado pelo processo normal de evolução por seleção natural.
Marca-se cada vez mais, a partir desses autores, o caráter estético da noção
de jogo, presente inclusive nessa espécie de divertimento da natureza ao produzir
muito mais do que aquilo necessário à sua conservação. Através do jogo físico de
seus processos vitais a natureza passaria ao jogo estético e, sem alcançar a sublime
liberdade do belo acima dos vínculos das finalidades, delineia algo dessa
independência no livre movimento que se dá. A despeito de toda essa metafísica, fato
é que os jogos passaram a ocupar cada vez mais espaço no domínio da filosofia e da
pedagogia do século XIX. A pedagogia moderna e contemporânea atribuiu ao jogo
uma importância cada vez maior para o desenvolvimento de disposições do sujeito,

117
enquanto que a psicologia e a antropologia lhe atribuíram função biológica e social.
“O jogo é a manifestação de uma livre espontaneidade e a expansão de uma atividade
em expansão”, declarou Gross em 1901.

Apesar de já termos passado pela definição de jogo de Johan Huizinga e,


inclusive, discorrido sobre alguns pontos de seu livro, chegou o momento de situar
sua contribuição em nossa cronologia. Antes de Homo Ludens, as últimas
contribuições relevantes haviam sido a de Spencer em 1855 e a de Gross em 1898.
Publicado em 1938, Homo Ludens passou a ocupar um lugar de destaque entre os
trabalhos dedicados à noção de jogo. Para compreender a originalidade desse
trabalho, devemos considerar que as concepções de jogo aceitas na primeira metade
do século XX eram todas oriundas de investigações científicas biologicistas que
tinham como ponto de partida o pressuposto de que o jogo era útil.

Há uma extraordinária divergência entre as numerosas tentativas de definição


da função biológica de jogo. Umas definem as origens e fundamento do jogo
em termos de descarga da energia vital superabundante, outras como
satisfação de um certo “instinto de imitação”, ou ainda simplesmente como
uma “necessidade” de distensão. Segundo uma teoria, o jogo constitui uma
preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá,
segundo outra, trata-se de um exercício de autocontrole indispensável ao
indivíduo. Outras veem o princípio do jogo como um impulso inato para
exercer uma certa faculdade, ou como desejo de dominar e competir. Teoria
há, ainda, que o consideram uma “ab-reação”, um escape para impulsos
prejudiciais, um restaurador da energia dispendida por uma atividade
unilateral, ou “realização do desejo”, ou uma ficção destinada a preservar o
sentimento do valor pessoal etc.

(Huizinga, [1938] 2018, p.4)

Huizinga pontua que apesar das divergências, no fundo, todas essas teorias
partilham do pressuposto de que deve haver uma espécie de finalidade biológica para
o jogo, de sorte que suas explicações relativas aos objetivos dessa atividade tendem
a se complementar.181 Huizinga se afasta de todas elas e propõe, por sua vez, que
concebamos o jogo como um fenômeno cultural e não biológico. O jogo é tomado pelo
autor como fenômeno cultural e não biológico. 182 Pois concebendo-o dessa maneira,
podemos estudá-lo como função criadora de cultura. Como há diferentes culturas ou
épocas numa cultura, diferentes são os lugares ocupados pelo jogo. Ocorre de o jogo

181 Huizinga, [1938] 2018, p.4.


182 Ibid. Prefácio, §3.
118
ocupar um lugar central, de destaque numa cultura, como também de lhe ser
reservado um lugar reduzido. Segundo o autor, seu objetivo era “determinar até que
ponto a própria cultura possui um caráter lúdico”, de modo que pudesse “integrar o
conceito de jogo no de cultura”.183 Mas, seja como for, o elemento lúdico jamais.

Um dos aspectos mais importantes da concepção de jogo de Huizinga talvez


seja o fato de que ainda em suas formas mais simples o jogo é mais do que uma
atividade física, biológica ou psicológico. “É uma função significante, isto é, encerra
um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as
necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa
alguma coisa”.184 Enquanto função significante, o jogo é capaz de alargar o mundo,
ampliá-lo, torná-lo mais denso, mais rico e eventualmente mais belo para o sujeito, ao
mesmo tempo que pode lhe conferir leveza. Isso porque, segundo Huizinga, “no jogo
existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida e
confere um sentido à ação”. Como interpretar essa passagem senão considerando
que existe no jogo algo de espiritual? O jogo tem o potencial de viabilizar uma
transformação que não se verifica ao nível das necessidades imediatas da vida, ou
seja, ele é capaz de transformar “algo” no sujeito.

Se nossa interpretação estiver correta, resta saber, todavia, que elemento


constituinte do jogo é responsável por essa transformação, por essa transcendência
das necessidades imediatas. Seria a intensidade alcançada pelo jogo? Pois é na
intensidade do jogo, no seu poder de fascinação e em sua capacidade de excitar o
sujeito que reside, para Huizinga, a própria essência e a característica primordial do
jogo.185 Mas de que intensidade se trata? A do divertimento,186 diz ele. O divertimento
é aquele elemento intrigante, que resiste a toda análise, a toda interpretação lógica e
que define ainda assim, ou justamente por isso, a essência do jogo. Com efeito, se o
mundo correspondesse a uma visão determinista de modo que fosse regido por forças
estritamente necessárias, o jogo seria algo inteiramente supérfluo. A própria

183 Ibid. Prefácio, §2.


184 Ibid. p.3-4.
185 Ibid. p.5.
186 Aqui Huizinga ([1938] 2018, p.5) adverte quanto a dificuldade de exprimir esse conceito em algumas línguas.

Por exemplo, enquanto em holandês (grap e aardigheid) e em alemão (Spass e Witz) são necessários dois termos
para exprimi-lo, em francês não há palavra que lhe corresponda exatamente. O mesmo se passa em português,
de modo que o emprego do termo divertimento é apenas uma maneira aproximada ou menos inadequada de
exprimir um conceito que também está ligado a noções como entretenimento, prazer, agrado, alegria, etc.
119
existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da
situação humana.187

A tese mais cara de Huizinga talvez seja aquela segundo a qual o jogo seria
“um elemento dado existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-
a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora nos
encontramos”.188 Com isso quer dizer que atividades arquetípicas da sociedade
humana como, por exemplo, a linguagem e o mito, estão profundamente marcadas
pelo jogo. No caso da linguagem, esse instrumento que nos permite designar as
coisas e elevá-las ao domínio do espírito, brincamos com uma maravilhosa faculdade
de designar, “é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria
e as coisas pensadas. Por trás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e
toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um
outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza”. 189

Embora o jogo não desempenhe uma função moral, Huizinga identifica nele um
certo valor ético. Esse valor ético está atrelado à tensão envolvida no jogo que põe à
prova as qualidades do jogador. O jogador quer ganhar à custa de seu próprio esforço,
mas, no jogo, sua pretensão tem de se haver inelutavelmente com a incerteza e o
acaso, logo, com a tensão. O jogo enquanto tal está além do domínio do bem e do
mal, mas “o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que
são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade, sua habilidade
e coragem e, igualmente, suas capacidades espirituais, sua lealdade”. Porque, apesar
de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às regras do jogo”. 190 Pois
bem, gostaríamos de pontuar como o aspecto espiritual é aqui mais uma vez evocado,
de sorte que não parece alheio ao que se passa no jogo.

Finalmente, para no espírito firmarmos o conceito de jogo de Huizinga,


examinemos uma última vez as características fundamentais do jogo. A primeira
característica fundamental do jogo é a de ser uma atividade voluntária. Isto é, jogo é
liberdade, é expressão de liberdade. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, passando a
ser no máximo uma imitação forçada. Um sujeito adulto e responsável pode

187 Ibid. p.6.


188 Ibid. p.6.
189 Ibid. p.7.
190 Ibid. p.14.

120
facilmente, caso queira, dispensar a função do jogo, pois é algo supérfluo. Só se
assemelha a uma necessidade urgente quando o prazer provocado no sujeito pelo
jogo transforma-se num apelo pelo próprio jogo. O jogo jamais é imposto por uma
necessidade física ou por um dever moral, mas praticado nos momentos de ócio, no
espírito de desobrigação. Assim, a qualquer momento o jogo pode ser suspenso ou
adiado.191 A segunda característica fundamental do jogo consiste nele proporcionar
uma evasão da vida cotidiana para uma esfera temporária de atividade com orientação
própria. Embora trate-se de uma atividade desinteressada, uma espécie de intervalo
em nossa vida cotidiana, o jogo é capaz de absorver inteiramente o jogador.

Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a


inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade.
Ele se torna seriedade e a seriedade, o jogo. É possível ao jogo alcançar
extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade.

(Huizinga, [1938] 2018, p.11)

O jogo ornamenta a vida, a amplia e, nessa medida, torna-se uma espécie de


necessidade para o indivíduo, como função vital, e para a sociedade, devido à sua
significação, a seu valor expressivo, as suas associações espirituais e sociais, em
suma, como função cultural. Na medida em que dá satisfação a todo tipo de ideais
comunitários, situa-se numa esfera superior aos processos estritamente biológicos de
alimentação, reprodução e autoconservação. 192 O autor observa que o fato do jogo
ser culturalmente útil não deve ser entendido como uma diminuição do caráter
desinteressado do jogo, pois “a finalidade a que obedece é exterior aos interesses
materiais imediatos e à satisfação individual das necessidades biológicas. Em sua
qualidade de atividade sagrada, o jogo naturalmente contribui para a prosperidade do
grupo social, mas de outro modo e através de meios totalmente diferentes da
aquisição de elementos de subsistência.

Pois bem, a primeira dessas características: ser uma atividade voluntária. A


segunda: proporcionar uma evasão da vida cotidiana. Agora, a terceira característica
fundamental do jogo: sua limitação no espaço e no tempo. Isto é, isolamento em
relação a outras atividades. O jogo se distingue da vida comum tanto pelo lugar que

191 Ibid. p.10-11.


192 Ibid. p.12.
121
ocupa quanto pela sua duração no tempo. O jogo possui um caminho e sentido
próprios.193 “Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância,
sucessão, associação, separação”.194 Uma outra característica do jogo ligada à sua
limitação no tempo é a possibilidade de se fixar imediatamente como fenômeno
cultural. “Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma
criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido,
torna-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento”. 195 Todo jogo transcorre no
interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária,
deliberada ou espontânea. É digno de nota que tal como não há diferença formal entre
o jogo e o culto, também não há entre o lugar sagrado e o terreno do jogo. Os lugares
que exercem a função de terrenos de jogo são “lugares proibidos, isolados, fechados,
sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras. Todos eles são mundos
temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade
especial”.196 Quarta característica fundamental do jogo: ser positivamente constituído
por regras particulares. Criando ordem, o jogo instaura na confusão da vida e na
imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada. Dentro do jogo a ordem é
específica e absoluta, de modo que a menor desobediência “estraga o jogo”, priva-o
de seu caráter próprio e de seu valor. 197 Quanto aos efeitos sociais do jogo, Huizinga
frisa que em seu desenrolar o jogo “promove a formação de grupos sociais com
tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao
resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes”. 198

Uma vez que nos interessamos pela experiência e pelo saber de experiência,
pelo potencial transformador da experiência e pela experiência significativa à qual o
jogo pode dar lugar, interessa-nos particularmente as dinâmicas de jogo em que há
uma entrega do sujeito diante e a possibilidade de uma experiência limite.

193 Ibid. p.12.


194 Ibid. p.13.
195 Ibid. p.13.
196 Ibid. p.13.
197 Huizinga ([1938] 2018, p.14-15) chama de “desmancha-prazeres” o jogador que desrespeita ou ignora as regras

do jogo de modo a abalar o próprio mundo do jogo. “Retirando-se do jogo, [o ‘desmancha-prazeres’] denuncia o
caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros”. O jogador
desonesto é aquele que, embora burle regras do jogo, finge jogá-lo seriamente e aparenta reconhecer o círculo
mágico, de sorte que os jogadores costumam ser mais indulgentes com ele do que com o jogador desmancha-
prazeres.
198 Ibid. p.16.

122
O jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O
jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-
se “apenas” de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está
indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mas
também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois pólos que
limitam o âmbito do jogo.

(Huizinga, [1938] 2018, p.24)

Huizinga adverte para não entendermos a presença de um elemento lúdico na


cultura como indicativo de que os jogos ocupam um lugar de primeiro plano entre as
diversas atividades da vida civilizada. A civilização não teve origem no jogo através
de qualquer processo evolutivo. Não se trata de afirmar que houve algo que era jogo
e depois algo que se transformou em cultura. A ideia de Huizinga é a de que a cultura
surge sob a forma de jogo. Ou seja, não é que para Huizinga o jogo se transforma em
cultura, e sim que em suas fases mais primitivas a cultura possui um caráter lúdico. A
cultura em suas fases primitivas, se processa segundo as formas de jogo e no
ambiente do jogo. Para o autor, “na dupla unidade do jogo e da cultura, é ao jogo que
cabe a primazia”,199 pois o jogo é objetivamente observável, passível de definição
concreta, enquanto que a cultura é apenas um termo que nossa consciência histórica
atribui a determinados aspectos dos fenômenos.

No decurso da evolução de uma civilização, a relação entre jogo e não-jogo


não permanece imutável. Como regra, o elemento lúdico vai passando gradualmente
para segundo plano, sendo em sua maior parte absorvido pelo sagrado e o restante
cristalizado por trás do saber. Embora o elemento lúdico original fique assim oculto
por detrás dos fenômenos culturais, é sempre possível que o instinto lúdico, diz
Huizinga, se reafirme em sua plenitude e faça a massa mergulhar na intoxicação de
um jogo gigantesco.200

Para Huizinga, a relação entre o jogo e a cultura torna-se especialmente


evidente nas formas mais elevadas de jogos sociais que consistem na atividade
ordenada de um grupo ou de dois grupos adversários “O jogo solitário só dentro de
estreitos limites possui uma capacidade criadora de cultura”. 201 Vejam só essa
afirmação. Se Huizinga estiver certo e só dentro de estreitos limites o jogo solitário

199 Ibid. p.53.


200 Ibid. p.54.
201 Ibid. p.54.

123
possui uma capacidade criadora de cultura, devemos sempre que possível fornecer
as condições necessárias para que o jogo coletivo se realize. Por mais intuitiva que
essa ideia nos pareça, lembremos de remetê-la à Huizinga quando, mais tarde, a
retomarmos.

Os jogos em grupo possuem um caráter fundamentalmente antitético e são, em


geral, jogados entre duas equipes. Mas “antitético” aqui não implica, necessariamente,
um caráter combativo ou agonístico. No entanto, no que se refere a tensão e a
incerteza, apontadas como características gerais do jogo, elas aumentam
enormemente quando o elemento antitético se torna efetivamente agonístico nos
jogos entre grupos. Isto é, a tensão aumenta quando se configura uma situação de
competição. A competição possui todas as características formais e a maior parte das
características funcionais do jogo. E quando exige aplicação, concentração,
conhecimentos, habilidade, coragem, força, etc. a tensão sentida pelo jogador é mais
notoriamente comunicada ao observador. Trocando em miúdos, quanto mais difícil é
o jogo ou acirrada a competição, maior a tensão geral. Fora a tensão, o prazer ou a
satisfação de jogar costuma aumentar com a presença de espectadores, embora esta
não seja indispensável para o prazer de jogar.202 De uma maneira ou de outra, ao
exigir dos jogadores seu desempenho máximo e o máximo de suas qualidades, um
jogo tem grandes chances de se tornarem ainda mais agradáveis por adquirirem
valores estéticos. E é verdade que a partir do momento em que um jogo se torna um
belo espetáculo, torna-se igualmente evidente seu valor cultural. Mas, importa
ressaltar, este valor estético não é indispensável para a cultura. Valores intelectuais,
morais ou espirituais também são capazes de elevar o jogo até o nível cultural. E
quanto mais alto for o nível atingido pelo jogo e, por conseguinte, a expressividade da
vida do indivíduo ou do grupo que dele participa ou a quem ele representa, mais
rapidamente passará a fazer parte da civilização. 203

Entretanto, o que está em jogo na competição? É claro que é ganhar. Mas não
é só ganhar por ganhar, mas ganhar porque o triunfo sobre o outro ou os outros
representa a superioridade do jogador ou do grupo de jogadores num determinado
jogo. Essa superioridade tende a assumir a aparência de uma superioridade geral.
Esse é, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes do jogo, o do instinto de

202 Ibid. p.57.


203 Ibid. p.55.
124
competição que impele o jogador ou os jogadores a competir. Esse instinto de
competição, pontua Huizinga, não é fundamentalmente um desejo de poder ou de
dominação. Ele consiste, primordialmente, num desejo de ser melhor que os outros
no jogo, de ser o primeiro e ser festejado por esse fato. Outra característica importante
do jogo é que o êxito obtido pelo indivíduo ou grupo passa prontamente para o grande
grupo. É dessa maneira e por essa via que da vitória resulta um aumento do poder do
indivíduo ou do grupo. 204

Estamos totalmente de acordo com Huizinga quando ele postula que a


essência do espírito lúdico é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e a tensão. Já
vimos que, de certa forma, a tensão aumenta a importância do jogo, tanto para o
jogador quanto para os espectadores. E quando se fala de jogo tenso, logo nos vem
à mente uma situação de competição. Sobre a competição Huizinga esclarece
algumas coisas. Esclarece, por exemplo, que não se compete apenas “por” alguma
coisa, mas também “em” e “com” alguma coisa. Vários são os motivos para se entrar
em competição, dentre eles para ser o primeiro “em” força ou destreza, em
conhecimentos ou riqueza, etc. Compete-se “com” a força dos músculos, com a
destreza adquirida treinando, com a razão à qual se cultivou ou com o patrimônio que
acumulou.205

Huizinga nos lembra que a palavra virtude, em sua conotação corrente, se


encontra ligada à ideia de idiossincrasia de uma coisa e que esse é o sentido do termo
grego aretê: o que lhe é específico, o que é próprio de sua espécie. Desse modo, a
força e a saúde são as virtudes do corpo, assim como a sagacidade e a inteligência
são as do espírito. Aretê também está ligada aristos que significa excelente, o melhor,
o mais eminente. A palavra aretê não possui ainda um sentido puramente ético.
Conservando parte de sua significação primitiva, há a ideia originalmente contida de
exercício por meio de uma competição.206 Neste caso, a própria competição é tomada
como um exercício. Assim, pode-se dizer que o indivíduo vitorioso, o indivíduo que
triunfou sobre os demais numa competição, tem a virtude de tal qualidade em relação
à qual rivalizou com os demais jogadores.207

204 Ibid. p.58.


205 Ibid. p.60.
206 Ibid. p.73.
207 Ibid. p.72.

125
Nosso ponto de partida deve ser a concepção de um sentido lúdico de
natureza quase infantil, exprimindo-se em muitas e variadas formas de jogo,
algumas delas sérias e outras de caráter mais ligeiro, mas todas elas
profundamente enraizadas no ritual e dotadas de uma capacidade criadora
de cultura, devido ao fato de permitirem que se desenvolvessem em toda a
sua plenitude as necessidades humanas inatas de ritmo, harmonia, mudança,
alternância, contraste, clímax etc. A este sentido lúdico está
inseparavelmente ligado um espírito que aspira à honra, à dignidade, à
superioridade e à beleza. Tanto a magia como o mistério, os sonhos de
heroísmo, os primeiros passos da música, da escultura e da lógica, todos
estes elementos da cultura procuram expressão em nobres formas lúdicas.
Uma geração mais tardia virá a chamar “heroica” à época que conheceu tais
aspirações. Portanto, é desde o início que se encontram no jogo os elementos
antitéticos e agonísticos que constituem os fundamentos da civilização,
porque o jogo é mais antigo e muito mais original do que a civilização.

(Huizinga, [1938] 2018, p.84-85)

É na fase arcaica do desenvolvimento das civilizações que a função agonística


é mais bela e mais fácil de discernir. Na medida em que a civilização vai se tornando
mais complexa, o solo cultural primitivo vai sendo gradualmente coberto por camadas
de ideias, de convenções, de instituições etc. que já perderam toda e qualquer relação
direta com o jogo.

Ainda naquela pegada do “instinto de competição”, Huizinga diz que a ânsia de


ser o primeiro assume tantas formas de expressão quanto às formas oferecidas na
sociedade. As maneiras por meio das quais os indivíduos são capazes de competir
pela superioridade são muito variadas, mas a surpreendente semelhança entre os
costumes agonísticos em todas as culturas talvez tenha seu exemplo mais
impressionante no domínio do conhecimento e da sabedoria. 208

Depois de Homo Ludens, a obra Os jogos e os homens — A máscara e a


vertigem (1958) de Roger Caillois talvez seja o trabalho mais relevante das últimas
décadas sobre o conceito de jogo. Parte desse livro é dedicada a uma revisão de
Homo Ludens, defende alguns de seus aspectos e demarca o ponto a partir do qual
divergem. De acordo com Caillois, Homo Ludens não é um estudo sobre os jogos,
mas uma pesquisa sobre a fecundidade do espírito de jogo no domínio da cultura ou,
mais precisamente, do espírito que preside a uma determinada espécie de jogos, os
jogos de competição regrada.209 Para Caillois, Huizinga, ao considerar o jogo o

208 Ibid. p.119.


209 Caillois, [1958] 2001, p.23.
126
principal elemento humano (criador de culturas e das instituições), comete o erro de
extrapolar as funções e objetivos que o jogo efetivamente possui em sociedades como
a nossa. Indica ainda que essa supervalorização do jogo em detrimento de outros
componentes constituintes de uma sociedade como, por exemplo, o trabalho e o
comércio, não ajuda na conceituação teórica desta atividade. No entanto, sendo
posterior a Homo Ludens, a obra de Roger Caillois, Os jogos e os homens, se encontra
num momento muito adiantado e, portanto, privilegiado dos estudos sobre os jogos e
da conceitualização da noção de jogo. Dessa maneira, embora o autor ofereça uma
notável contribuição ao estudo dos jogos, sobretudo no que diz respeito à classificação
destes, de modo geral retoma, como veremos, posicionamentos há muito
consolidados.

Em Roger Caillois — assim como em Kant e Schiller — o termo “jogo” designa


mais do que uma atividade específica. Muitos tipos de atividade são designados pelo
termo “jogo”. Jogos de sociedade, de destreza, de azar, jogos de ar livre, de paciência,
de construção, etc. Apesar da quase infinita diversidade e com notável constância,
Caillois observa que a palavra “jogo” ainda sugere as ideias de desenvoltura, de risco
ou de habilidade.

No entanto, não é por sua abrangência que a concepção de jogo de Roger


Caillois é considerada importante. Sua particularidade reside no fato dela ter como
princípio, primeira condição, ponto de apoio e primeiro fator determinante do jogo a
“vontade dos jogadores”. De fato, são sempre as regras que definem o que é jogo ou
o que não é jogo. Mas uma vez que as regras são determinadas pelos jogadores e o
jogo depende de que as regras sejam aceitas por eles, nenhum jogo é independente
da vontade dos jogadores. Ou seja, não só são os jogadores que definem o que é
permitido e o que é proibido num jogo, como o que constituem um jogo.

Entre as características do jogo, a gratuidade fundamental é aquela que mais


o deprecia, o desacredita. Devido a ela o jogador joga despreocupadamente,
mantendo-o isolado das atividades produtivas. Independente do cuidado a ele
aplicado, das faculdades por ele mobilizadas e do rigor por ele exigido, o jogo tende a
ser encarado como uma fantasia agradável e uma vã distração. 210 Para Caillois — na
esteira de Huizinga e de toda uma tradição de pensadores, incluindo Platão,

210 Ibid. p.9.


127
Aristóteles e Kant — os jogos em si contribuem, acima de tudo, para uma atmosfera
de descontração, de descanso e de divertimento. Evocando uma atividade sem
consequências na vida real, o jogo relaxa, diverte e distrai. Opondo-se à seriedade da
vida real, o jogo se vê qualificado de frívolo. Essencialmente estéril, o jogo não produz
nem bem nem obras. Nenhum jogo que envolva dinheiro representa exceção, pois
não criam riqueza, apenas a movimentam.

Notamos que essas afirmações de Caillois sobre os jogos não são exatamente
novas. A evocada oposição entre jogo e seriedade corresponde, como vimos há
pouco, à primeira antítese (jogo-seriedade) evocada por Huizinga. A segunda
oposição, desta vez entre o jogo e o trabalho, além de já ter sido indicada por
Aristóteles, assinalada por Kant e firmada por Schiller, também corresponde à
segunda antítese (jogo-trabalho) evocada por Huizinga. Também de modo similar à
Huizinga em Homo Ludens e à guisa de introdução geral ao seu estudo dos jogos,
Caillois analisa uma série de noções implícitas na ideia de jogo tal como surgem nos
diferentes empregos da palavra. 211 Num entendimento próximo ao de Huizinga,
Caillois considera que essas acepções da palavra “jogo” mostram como as
disposições psicológicas traduzidas e desenvolvidas pelo jogo podem constituir
fatores civilizacionais.

Nos jogos se propõe e se difunde estruturas abstratas, imagens de locais


fechados e reservados, onde se realizam concorrências ideais. Essas estruturas e
dinâmicas de jogo servem de modelo para as instituições e para os comportamentos

211 Caillois ([1958] 2001) observa, por exemplo, que numa de suas acepções mais comuns o termo “jogo” designa
não apenas a atividade específica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, dos símbolos ou dos
instrumentos necessários a essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo (p.10). Por isso nos
referimos ao conjunto de cartes como “jogo de cartas” e ao conjunto de peças indispensáveis ao xadrez como
“jogo de xadrez”. Reside aí a ideia de conjuntos completos e numeráveis de coisas. A falta ou a adição de
elementos nesses conjuntos, a não ser que seja anunciada antes e responda a uma intenção precisa, torna o jogo
impossível ou adulterado. Com a palavra “jogo” designa-se também o estilo, a maneira específica de um intérprete,
músico ou comediante tocar um instrumento ou representar um papel (p.10). Nesse contexto, o termo “jogo”
combina em si as ideias de limites, liberdade e invenção. Há também expressões como “ter bom jogo” que remete
à sorte, “jogar com cautela” e “jogar para ganhar” que remetem à habilidade, “mostrar seu jogo” que remete a
vantagens no início e “esconder o jogo” remete ao hábil emprego de uma estratégia. Quando associado à ideia de
risco, surgem às locuções “colocar em jogo”, “jogar alto”, “jogar a toalha”, “jogar sua carreira”, “jogar sua vida” etc.
(p.11). Para Caillois ([1958] 2001), “todo jogo é um sistema de regras que definem o que é ou o que não é do jogo,
ou seja, o permitido e o proibido” (p.11). Tratam-se de convenções arbitrárias, mas ao mesmo tempo imperativas
e inapeláveis. Quando violadas, destroem o universo criado pelo jogo. É o desejo de jogar que mantém as regras
e, por conseguinte, o universo do jogo. Aqui, o que denominamos “jogo” é um conjunto de restrições voluntárias,
aceitas pelos jogadores de modo a estabelecer uma ordem estável (p.11-12). Quando nos referimos a um “jogo
de engrenagem”, a palavra “jogo” sugere a ideia de amplitude, de facilidade de movimentos, de uma liberdade útil,
mas não excessiva. Nesse caso o jogo é, por assim dizer, o que “subsiste entre os diversos elementos que
permitem o funcionamento de um mecanismo”. Trata-se de um espaço cuidadosamente medido que impede que
a engrenagem se bloqueie ou se desregule. “Jogo significa, portanto, a liberdade que deve permanecer no seio do
próprio rigor, para que este adquira ou conserve sua eficácia” (p.12).
128
individuais.212 Caillois admite que, uma vez que se entenda o progresso da civilização
como a passagem de um universo rude a um universo administrado, assente num
sistema coerente e equilibrado, deve-se ter em conta a influência do princípio do jogo.
Assim, além de inspirar ou confirmar este equilíbrio, o jogo “proporciona
continuamente a imagem de um meio puro, autônomo, onde a regra, respeitada
voluntariamente por todos, não favorece nem lesa ninguém”. 213 O autor sustenta que
embora não constitua senão um universo de perfeição ínfima e precária, revogável e
autoextinguível, de duração fugaz e extensão rara, o jogo vale pelo menos como
modelo.214

Os jogos de competição resultam nos esportes; os jogos de imitação e de


ilusão prenunciam os atos do espetáculo. Os jogos de azar e de combinação
estiveram na origem de muitos desenvolvimentos da matemática — do
cálculo das probabilidades à topologia. É visível que o panorama da
fecundidade cultural dos jogos não deixa de ser impressionante. Sua
contribuição no nível do indivíduo não é menor. Os psicólogos lhes
reconhecem um importante papel na história da autoafirmação na criança e
na formação de seu caráter. Jogos de força, de destreza, de cálculo são
exercícios e treino. Tornam o corpo mais vigoroso, mais flexível e mais
resistente, a visão mais afiada, o tato mais sutil, o espírito mais metódico ou
mais engenhoso. Cada jogo reforça, exacerba algum poder físico ou
intelectual. Pelo viés do prazer e da obstinação, torna fácil o que antes foi
difícil ou extenuante.

(Caillois, [1958] 2001, p.15)

Percebemos nessa passagem a ressonância de vários autores — de Platão à


Huizinga, passando por Kant e pelos naturalistas — no discurso de Caillois. Este, no
entanto, especifica que com o jogo não se aprende um trabalho particular nem se
antecipa senão em aparência as atividades do adulto. Em vez de preparar para uma
profissão definida, o jogo se introduz no conjunto da vida aumentando toda a
capacidade de superar os obstáculos ou de enfrentar as dificuldades.

Numa passagem que lembra certo valor ético reconhecido por Huizinga nos
jogos, diz Caillois que “o jogo supõe, certamente, a vontade de ganhar ao utilizar da
melhor forma possível esses recursos e ao recusar os golpes proibidos”,215 mas, além
disso, os jogos exigem do sujeito que joga que seja muito cortês com o adversário,

212 Caillois, [1958] 2001, p.13.


213 Ibid. p.15.
214 Ibid. p.15.
215 Ibid. p.16.

129
que confie nele por princípio e com ele combata sem animosidade. O sujeito enquanto
jogador tem de aceitar de antemão o eventual fracasso, a falta de sorte ou a fatalidade.
Enfim, o verdadeiro jogador aceita a derrota sem cólera nem desespero, pois quem
se irrita ou se lamenta se desacredita. “Com efeito, como toda nova partida aparece
como um início absoluto, nada está perdido, e o jogador, em lugar de se recriminar ou
de se desencorajar, deve redobrar seu esforço”.216

O jogo convida, habitua a ouvir essa lição de autocontrole e a estender sua


prática ao conjunto das relações e das vicissitudes humanas em que a
competição não é mais desinteressada nem a fatalidade circunscrita. Tal
desapego em relação aos resultados da ação, mesmo que aparente e sempre
incerto, não é pouca virtude. Sem dúvida esse controle é mais fácil no jogo
em que, de alguma forma, é exigido e no qual parece que o amor-próprio
comprometeu-se antecipadamente a honrar suas obrigações. Todavia, o jogo
mobiliza as diversas vantagens que cada um pode ter recebido do destino, o
seu melhor zelo, a sorte impiedosa e imprescritível, a audácia de arriscar e a
prudência de calcular, a capacidade de conjugar estas diferentes espécies de
jogo de uma complexidade maior, que também são jogo e jogo superior, na
medida em que é arte de associar utilmente forças de difícil combinação.

(Caillois, [1958] 2001, p.16-17)

Caillois diz ainda que o jogo, e nada tanto quanto o jogo, exige atenção,
inteligência e resistência nervosa. Assevera que o jogo é capaz de levar o sujeito a
“um estado, por assim dizer, de efervescência, que, após o ápice, o desempenho, o
extremo atingido como por milagre com destreza ou perseverança, deixa-o sem
energia nem coragem”.217 Não há como não reconhecer nessa passagem uma
proximidade com o que Huizinga chama de jogo autêntico e espontâneo ao qual o
jogador entrega-se de corpo e alma e tem a alegria transformada não só em tensão
como também, por meio de uma espécie de arrebatamento, em êxtase.

Entretanto, o que está em questão na escola do jogo? Que princípios o regem?


Instruir ao jogador a nada negligenciar pelo triunfo. Ensiná-lo que o que está ganho
pode ser perdido; que a maneira de vencer é mais importante do que a própria vitória;
que é importante aceitar o fracasso como simples contratempo e a vitória sem
embriaguez nem vaidade. Dessa maneira, considerando a realidade como jogo,

216 Ibid. p.16.


217 Ibid. p.17.
130
conquistando mais terreno para esses costumes próprios do mundo dos jogos que faz
recuar a mesquinharia, a inveja e o ódio, damos prova de civilização.

Para concluir suas considerações gerais relativas ao espírito do jogo, Roger


Caillois sublinha que o jogo é uma atividade de luxo e que supõe tempo livre. A ele
não estamos de modo algum submissos. O jogo só se sustenta pelo prazer que
sentimos ao praticá-lo, de modo que está à mercê do tédio, da saciedade ou de uma
simples mudança de humor. O jogo também está condenado a não fundar nem
produzir nada, pois diferente do trabalho e da ciência, é de sua essência anular seus
resultados. Por fim, o jogo escolhe as dificuldades que serão enfrentadas isolando-as
de seu contexto. Sejam ou não resolvidas essas dificuldades, a única consequência
consiste num sentimento de satisfação ou de decepção. 218 “Numa palavra, o jogo
assenta indubitavelmente no prazer de vencer o obstáculo, mas um obstáculo
arbitrário, quase fictício, feito à medida do jogador e por ele aceite”. 219

Na definição ou caracterização do jogo proposta por Caillois, este admite que


o jogo, além de ter como fator primordial a liberdade, gera alegria e divertimento: “é
indiscutível que o jogo deve ser definido como uma atividade livre e voluntária, fonte
de alegria e divertimento”.220 Joga-se quando se quer e só existe jogo se os jogadores
estão dispostos a jogar, independentemente do quão absorvente ou extenuante seja
o jogo. Em caso de os participantes de um jogo serem forçados a jogar, as condições
de jogo seriam imediatamente desfeitas. Obrigatoriedade ou mesmo recomendação
vão de encontro à espontaneidade como característica fundamental do jogo. O jogo é
essencialmente estéril, não produz nada. Sua função é apenas a de descontrair e
divertir os participantes, ou seja, de afastar os participantes da vida de todos os dias.
“Com efeito, o jogo é essencialmente uma ocupação separada, cuidadosamente
isolada do resto da existência e realizada dentro de limites precisos de tempo e lugar”.
Isto é, para que se configure um jogo é necessária uma delimitação de tempo. A
partida começa e acaba quando se dá um sinal. Sua duração é no mais das vezes
fixada previamente e constitui uma desonra abandoná-la ou interrompê-la sem razão.
Para que se configure um jogo também é necessário que os jogadores estejam

218 Ibid. p.17-18.


219 Ibid. p.18.
220 Ibid. p.26.

131
situados dentro de determinado domínio (diante do tabuleiro, no estádio, na pista,
dentro do ringue, em cima do palco, dentro da arena, etc.).

Por fim, “as emaranhadas e confusas leis da vida diária são substituídas, nesse
espaço definido e durante esse tempo determinado, por regras precisas, arbitrárias,
irrecusáveis, que têm de se aceitar como tais e que presidem ao correto desenrolar
da partida”.221 Ou seja, o jogo subentende um contexto de regras partilhadas entre os
jogadores, embora alguns jogos dispensem regras fixas ou rígidas. Nesse ponto, cabe
observar que tanto Huizinga quanto Caillois concordam que a desonestidade do
trapaceiro é menos danosa ao jogo do que a atitude do pessimista de denunciar o
caráter absurdo ou meramente convencional das regras. Há, não obstante, exceções.
Há, no entendimento de Caillois, muitos jogos que não envolvem regras ou que, pelo
menos, não envolvem regras fixas e rígidas. São eles, no geral, os jogos que supõem
uma livre improvisação e cujo principal atrativo é o prazer de desempenhar um papel.
Aqui a ficção, o como se, substitui a regra e desempenha a mesma função. 222 Assim,
não existem jogos regulamentados e fictícios, mas ou regulamentados ou fictícios.
Ademais, é imperativo que os jogadores de qualquer tipo de jogo tenham a
possibilidade de sair do jogo quando lhes aprouver. 223

Quanto às características do jogo assinaladas por Roger Caillois, elas parecem


à primeira vista corresponder, ao menos parcialmente, àquelas propostas por
Huizinga em Homo Ludens. Entretanto, Caillois considera a definição de Huizinga ao
mesmo tempo demasiado ampla e demasiado restrita. 224 O autor de Os jogos e os
homens critica, em primeiro lugar, que a conivência entre o jogo e o segredo ou o
mistério tenha sido inserida na definição de jogo, pois “quando o segredo, a máscara,
o disfarce cumprem uma função sacramental, podemos estar certos de que aí não há
jogo, mas instituição”.225 Embora o mistério e o simulacro estejam próximos do jogo,
é preciso que o componente de ficção e de divertimento prevaleçam para que se

221 Ibid. p.27.


222 Ibid. p.28.
223 Ibid. p.28.
224 Caillois ([1958] 2001, p.23-24) reproduz uma das definições dadas por Huizinga aos jogos: “Sob o ponto de

vista da forma, pode resumidamente, definir-se jogo como uma ação livre, vivida como fictícia e situada para além
da vida corrente, capaz, contudo, de absorver completamente o jogador; uma ação destituída de todo e qualquer
interesse material e de toda e qualquer utilidade; que se realiza num tempo e num espaço expressamente
circunscritos, decorrendo ordenadamente e segundo regras dadas e suscitando relações grupais que ora se
rodeiam propositadamente de mistério ora acentuam, pela simulação, a sua estranheza em relação ao mundo
habitual”.
225 Ibid. p.24.

132
configure um jogo. Em segundo lugar, salienta Caillois, na parte da definição que
apresenta o jogo como uma atividade destituída de qualquer interesse material,
Huizinga parece esquecer as apostas, os jogos de azar, os cassinos, as casas de
jogos, a loteria etc. Embora os jogos sejam essencialmente estéreis e não produzam
nada, na medida em que podem envolver deslocação de propriedade, podem
inegavelmente trazer lucro ou causar a ruína dos jogadores. “Com efeito, uma
característica do jogo é não criar nenhuma riqueza, nenhum valor. Por isso se
diferencia do trabalho ou da arte. […] O jogo é ocasião de gasto total: de tempo, de
energia, de engenho, de destreza e muitas vezes de dinheiro”. 226

Outra característica fundamental do jogo é o desfecho a priori desconhecido


onde há sempre a possibilidade de erro ou de surpresa, pois pouca coisa é tão
incompatível com a natureza do jogo do que um resultado inelutável. 227 Como a
previsibilidade do resultado subtrai de forma mais ou menos proporcional a graça do
jogo e mina a experiência dos jogadores, é de suma importância que o resultado do
jogo se mantenha, ao menos essencialmente, incerto. Assim, no entendimento de
Caillois, “o jogo consiste na necessidade de encontrar, de inventar imediatamente uma
resposta que é livre dentro dos limites das regras”.228 Bem, encontramos aqui uma
definição de jogo que — sublinhando o fator “liberdade” — lembra um pouco a
concepção kantiana de “jogo livre das faculdades de conhecimento”, já que em ambos
os casos se concebe um jogo livre, não obstante, em conformidade com as leis ou as
regras.

No entretanto, é com base na crítica da definição de jogo proposta por Johan


Huizinga em Homo ludens que Roger Caillois chega a definir jogo como uma atividade:

1. – livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de
imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;
2. – delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e
previamente estabelecidos;
3. – incerta: já que seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado
obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa do
jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar;

226 Ibid. p.25.


227 Ibid. p.27.
228 Ibid. p.27.

133
4. – improdutiva: porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos
novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do
círculo de jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;
5. – regulamentada: sujeita a convenções que suspendem a leis normais e
que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;
6. – fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade
outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.

(Caillois, [1958] 2001, p.29-30)

Ou seja, o jogo é uma atividade livre, delimitada, incerta, improdutiva e


regulamentada ou fictícia. Assim como a definição de Huizinga, esta não é perfeita ou
a prova de falhas. Mas, incrédulo acerca da possibilidade de se estabelecer uma
definição geral de jogo que contemple todas as modalidades conhecidas de jogos, o
Caillois parece contentar-se com o fato de sua definição puramente formal contemplar
a maior parte dos jogos. 229

No entanto, a mais significativa contribuição de Roger Caillois à noção de jogo


se dá através de uma divisão do domínio do jogo em quatro categorias
fundamentais230 (que vem ocupar, diga-se de passagem, uma lacuna deixada por
Huizinga em Homo Ludens).231 Então, as rubricas correspondentes às quatro
categorias fundamentais são: Agōn, Alea, Mimicry e Ilinx. O que determina que os
jogos em questão sejam classificados sob uma ou outra rubrica é a predominância do
papel desempenhado, respectivamente, pela competição, pela sorte, pelo simulacro
ou pela vertigem. Há de se considerar ainda que, no seio desses setores, há dois
polos antagônicos em relação aos quais pode-se hierarquizar os jogos. Numa
extremidade se encontra a paidia, um princípio comum de diversão, turbulência,
improviso e despreocupada expansão marcado por um traço fantasioso. Na noutra
extremidade se encontra o ludus, onde a exuberância alegre e impensada do primeiro
princípio é disciplinada por uma tendência complementar, parcialmente contrária. 232

Passemos agora, finalmente, às categorias fundamentais do jogo. A primeira


categoria, denominada Agōn, remete às competições e favorece o combate entre os
jogadores, pois põe os adversários em condições ideais de confronto, valorizando o

229 Por mais abrangente que seja, essa definição ainda não contempla ou não se adapta totalmente a certo número
de jogos e distrações como o pião, as palavras-cruzadas, a paciência, o carrossel, dentre outros.
230 Caillois, [1958] 2001, p. 33-47.
231 Ibid. p.23.
232 Ibid. p.32.

134
triunfo do vencedor. Rivaliza-se acerca de uma única qualidade (rapidez, resistência,
força, memória, etc.), dentro de limites definidos e sem auxílio exterior. Esses jogos
podem opor dois indivíduos (boxe, judô, tênis), duas equipes (vôlei, futebol, basquete)
ou um número indefinido de concorrentes (corridas, golf, tiro ao alvo). A essa categoria
também pertencem os jogos em que os antagonistas dispõem de peças de valor e
número idênticos (damas, xadrez, bilhar).233 Jogadores de diferentes níveis podem
ainda chegar a um acordo quanto à vantagem a ser oferecida ao jogador de nível mais
baixo para que a condição de rivalidade ideal se estabeleça.234 Como o principal
interesse desse tipo de jogos é o de ver reconhecida sua excelência num determinado
domínio, sua prática supõe uma atenção persistente, um treino apropriado, esforços
assíduos, vontade de vencer, enfim, disciplina e perseverança.235

A segunda categoria, denominada Alea,236 nome latino para jogo de dados,


remete a todos os jogos que se baseiam no elemento sorte, no acaso. Uma vez que
o resultado do jogo não depende do desempenho dos jogadores e o vencedor não
tem nenhum mérito em relação à vitória, Alea se encontra numa posição
diametralmente oposta à do Agōn. Alea tem por função abolir as superioridades
naturais ou adquiridas dos indivíduos e colocar todos em pé de igualmente diante do
veredicto da sorte.237 Como os animais conhecem os jogos de competição, de
simulação e de vertigem, mas não os jogos de azar, estes se apresentam, malgrado
sua má fama, como jogos humanos por excelência. Nas palavras de Caillois “aguardar
passiva e deliberadamente a decisão de algo fatídico, por ela arriscar um valor para o
multiplicar na proporção das hipóteses de o perder, é uma atitude que exige uma
capacidade de previsão, de memorização e de especulação, de que só uma reflexão
objetiva e calculista é capaz”. 238 Por fim, embora agōn e alea traduzam atitudes
opostas, em ambas as categorias se dá a criação artificial das condições de igualdade
entre os jogadores que a realidade recusa aos homens. De uma maneira ou de outra,

233 Ibid. p.34.


234 Uma rivalidade ideal, com absoluta igualdade de oportunidades, nunca é inteiramente realizável. O fato de ser
o primeiro a jogar numa determinada partida de um jogo de tabuleiro pode representar uma vantagem. Nesse caso,
jogar mais de uma partida e alternar quem inicia o jogo é uma maneira de solucionar ou amenizar as desigualdades.
No caso do futebol, fatores como ter o sol de frente ou de costas, vento a favor ou contra e mais ou menos forte,
também representam vantagens ou desvantagens. Nesse caso, busca-se amenizar a condição de desigualdade
alternando a disposição dos times nos lados do campo a cada tempo.
235 Caillois, [1958] 2001, p.35.
236 O termo latino que designa o jogo de dados.
237 Sendo o resultado do agōn incerto, uma partida desse tipo de jogo pode ser objeto de aposta, isto é, de áleas.
238 Caillois, [1958] 2001, p.38-39.

135
evade-se da realidade cotidiana fazendo e adentrando outra, a realidade formalmente
perfeita do jogo.239

A terceira categoria, denominada Mimicry, remete a mimetismo e tem como


fator predominante o fictício, o simulacro e não a realização da ação em si. Essa
categoria abrange todo e qualquer jogo que supõe a aceitação temporária de uma
ilusão ou, pelo menos, de um universo fechado e imaginário sob alguns aspectos.
Nesse tipo de jogos o jogador assume personagens fictícios e seus respectivos
comportamentos com direito a fingimentos, fantasias, máscaras, enfim, todo tipo de
acessório que possa contribuir para o desenvolvimento e manutenção de uma ilusão.
“Encontramo-nos, então, perante uma variada série de manifestações que têm como
característica comum a de se basearem no fato de o sujeito jogar a crer, a fazer crer
a si próprio ou a fazer crer aos outros que é outra pessoa”. 240 A mímica e o disfarce
são os aspectos fundamentais dessa classe de jogos que parecem extravasar da
infância para a vida adulta. E como nesses jogos o intuito é ludibriar, a ilusão não pode
ser desfeita e o jogador tem que seduzir o espectador ou o interlocutor. Criar
situações, interpretar e encenar são regras básicas desses jogos. Quanto ao prazer,
é o de ser um outro, de se fazer passar por outro, de agir como se fosse outro e, quem
sabe, de experimentar-se como outro. A representação teatral e outras performances
dramáticas pertencem evidentemente a essa categoria de jogos.241

Tratando-se a mimicry de uma atividade livre, delimitada, incerta, improdutiva


e fictícia, apresenta todas as características do jogo com exceção da submissão a
regras precisas e imperativas. Mas, como já vimos, a ficção tem aqui a função das
regras e as substitui. Com efeito, a mimicry é invenção incessante, diz Caillois, e nela
a regra é uma só:

[…] para o ator consiste em fascinar o espectador, evitando que um erro


conduza à recusa da ilusão; para o espectador consiste em prestar-se à
ilusão sem recusar a priori o cenário, a máscara e o artifício em que o
convidam a acreditar, durante um dado tempo, como um real mais real do
que o real.

(Caillois, [1958] 2001, p.43)

239 Ibid. p.39.


240 Ibid. p.39.
241 Ibid. p.41.

136
A quarta e última categoria, denominada Ilinx, remete aos jogos de vertigem,
isto é, a um tipo de jogos que se assenta na busca da vertigem e que consiste numa
“tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à
consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico”. 242 Em todos os casos, diz
Caillois, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de tontura que
desvanece a realidade com uma imensa brusquidão. O que o jogador do ilinx procura
e tem como fim é, com frequência, a própria perturbação provocada pela vertigem.
Vários são os procedimentos físicos capazes de provocar vertigem e que como tais
podem compor esses jogos: a queda, a projeção no espaço, a rotação rápida, a
derrapagem, a velocidade etc. Daí o atordoamento e a embriaguez provocados pela
velocidade extrema, tal como se sente ao girar bruscamente a manopla de uma moto
de alta cilindrada ou ao pisar fundo no acelerador de um carro de 200 cavalos. Pode-
se dizer que as máquinas potentes tornaram mais fácil atingir uma sensação cuja
intensidade fosse capaz de estontear o organismo adulto, de modo que somente com
a era industrial a busca pela vertigem pôde se tornar uma categoria de jogo ao alcance
de uma multidão ávida. Como resultado de alguns desses jogos, pode-se ver:

[…] indivíduos pálidos, inseguros, no limiar da náusea. Deram gritos de pavor,


ficaram sem fôlego, tiveram a horrível sensação de que, no seu íntimo, até as
estranhas se amedrontavam e encarquilhavam para escapar a tão terrível
assalto. Todavia, a maior parte, antes mesmo de se acalmar, já se precipita
para a bilheteria para comprar o direito de experimentar mais uma vez o
suplício a tão desejada fruição.

(Caillois, [1958] 2001, p.46)

Mas existe também uma vertigem de ordem moral que se apodera subitamente
do indivíduo. Essa vertigem, pontua Caillois, associa-se habitualmente ao gosto,
normalmente reprimido, pela desordem e pela destruição, de modo que traduz formas
brutais de afirmação da personalidade. Um exemplo disso nos adultos é a estranha
excitação que muitos expressam ao destruir coisas fazendo um grande estardalhaço.
Enfim, é para abarcar as diversas variedades desse tipo de exaltação que consiste

242 Ibid. p.43.


137
num atordoamento ao mesmo tempo orgânico e psíquico que Caillois propôs o termo
ilinx, nome grego para turbilhão de águas.

138
7. Jogo no pensamento matemático243

Para introduzir a temática do jogo, primeiro o interrogamos a respeito de sua


localização. Qual o lugar do jogo? Que espaço ocupa na sociedade? Como esteve
situado em relação a outras atividades como o trabalho, o comércio e a arte? Qual de
seus aspectos se sobressai ao lado de cada uma dessas atividades?
Comparativamente, qual sua função e especificidade? Relativamente a elas, no que
se assemelha e no que difere? Que proximidade ou distância mantém? Em seguida,
discorremos sobre o jogo na cultura filosófica, sobre os jogos filosóficos como
artefatos dessa cultura, e fizemos uma breve revisão, em manuais de filosofia, da
evolução do conceito de jogo de Platão até os pensadores do século XIX, passando
pelas definições de Aristóteles e Kant.

Então, vimos nessa breve retrospectiva das definições de jogo que seu sentido
permanecera relativamente estagnado no ocidente por mais de dois milênios, e
seguira uma evolução lenta e truncada até os séculos XVIII e XIX. O que parece ter
ocorrido um tanto tardiamente foi o reconhecimento conjunto de uma função biológica,
educativa, estética, junto com a função social do jogo.

No entanto, seria um erro considerar que não houve, nos dois milênios
transcorridos de Aristóteles à Kant, um substancial trabalho do pensamento acerca
dos jogos. Em meados do século XVII, na Europa, surgiram os primeiros estudos
matemáticos dos jogos. A correspondência de Blaise Pascal com o matemático Pierre
de Fermat a propósito do “problema dos pontos”244 talvez seja o primeiro estudo sério
sobre um jogo (nesse caso, sobre um jogo de dados). A reposta de ambos — de que
há uma igualdade de chances para todos os jogadores —, que envolvia a
consideração matemática das probabilidades, tanto explicitou as regras matemáticas

243 O material exposto nessa seção se apoia largamente no livro Teoria dos Jogos e da Cooperação para Filósofos
de Rogério Antônio da Silva. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005-2016.
244 Silva (2006, p.2) contextualiza o “problema dos pontos”. Consideremos que as chances iniciais daqueles

envolvidos num jogo de dados são as mesmas. As incertezas relativas às chances crescem no transcorrer da
partida, normalmente com a variação dos pontos obtidos por cada participante em cada jogada. No que concerne
ao fim da partida, são os resultados obtidos que indicam quem ganhou. Mas se por força das circunstâncias uma
partida for interrompida sem que seja possível, em comum acordo, reiniciá-la, não há na realidade do jogo
ganhador ou perdedor. Esse é o “problema dos pontos” para o qual Pascal e Fermat propuseram, como alternativa,
a consideração das “probabilidades iguais de ganho de cada jogador, caso o jogo tivesse continuado até o final”.
139
que subjazem os chamados jogos de azar, como desenvolvera a teoria da
probabilidade.245

Na primeira metade do século XVIII, depois de Newton, a matemática já podia


ser vista como uma matéria capaz de solucionar diversos problemas, teóricos e
práticos. Fora nesse contexto que o matemático suíço Daniel Bernoulli (1700-1782)
concebera “a noção de utilidade como um valor de incremento inversamente
proporcional à quantidade inicial”. Pois bem, mas o que isso quer dizer? Rogério
Antônio da Silva, autor de Teoria dos Jogos e da Cooperação para Filósofos (2006),
explica:

[…] a noção de utilidade como um valor de incremento inversamente


proporcional à quantidade inicial” quer dizer que “tendo em vista o
comportamento dos jogadores, haveria uma medida subjetiva de satisfação
que explicaria a reação das pessoas em situações de risco, nos termos de
maximização de sua utilidade.

(Silva, 2006, p.3)

Essa circunstância receberia uma formulação moderna em 1927, por parte do


matemático francês Émile Borel (1871-1956), sob a forma do teorema minimax.246 Um
ano depois, seria apresentada uma solução geral por parte do matemático húngaro
John Von Newmann (1903-1957).

A obra de John von Neumann e a de Oskar Morgenstem sobre a teoria dos


jogos e do comportamento econômico impulsionaram o estudo dos jogos de estratégia
nos últimos tempos. A teoria dos jogos estratégicos, também chamada de “ciência de
conflitos”, trata da oposição entre dois ou mais competidores. Devemos ter em mente
que a teoria dos jogos estratégicos se atém aos aspectos lógicos da estratégia,
analisando dados, circunstâncias, decisões, etc. Desde que as situações sejam
passíveis de formalização, isto é, traduzíveis em aspectos lógicos, podem possuir até
mesmo caráter psicológico. Em suma, a teoria dos jogos de estratégia equivale a uma
lógica dos jogos formalizados.

245 A teoria da probabilidade, originalmente formulada no século XVI por Cardano, foi retomada por Pascal e Fermat
na primeira metade do século seguinte. Mas o primeiro livro exclusivamente dedicado à referida teoria só foi
publicado mais tarde: Sobre o Raciocínio em Jogos de Azar (1657), Christian Huygens.
246 A proposta das estratégias mistas de Borel consiste em aplicar as estratégias puras a uma taxa de variação

proporcional aos ganhos. O teorema minimax resolvia a questão de qual seria a melhor estratégia num jogo com
dois participantes e cinco alternativas de estratégia.
140
Há dois tipos de jogos de estratégia, o de informação completa e o de
informação incompleta. Os denominados “jogos de estratégia de informação
completa” normalmente têm regras pré-determinadas e são formalizáveis. Damas e
xadrez são exemplos desse tipo de jogo. Já no segundo tipo de jogo estratégico,
denominados “jogos de estratégia de informação incompleta”, os competidores
normalmente desconhecem ou só conhecem parcialmente as possibilidades de
jogada de seu oponente e os fatores que o farão determiná-la. Jogos de baralho em
geral, mas também conflitos militares e conflitos econômicos são jogos desse tipo.
Neles, cada um dos oponentes elege estratégias.

Outro conceito importante para a teoria é o conceito de “equilíbrio” surgido no


século XIX. Mas sua versão mais famosa só viria um século depois com John Forbes
Nash Jr. (1928-2015). Ela tornou possível aplicar a teoria dos jogos a situações em
que um dos lados poderia vencer sem necessariamente derrotar o lado oposto.247 Este
conceito é fundamental para a formalização do modelo de “jogos cooperativos”, isto
é, para a aplicação da teoria dos jogos a situações em que um lado pode vencer sem
implicar, necessariamente, a derrota do outro.

Essas situações análogas aos jogos nas quais um dos lados pode obter êxito
sem que isso implique na derrota do outro já foram objetos de reflexão e
representadas de diversas formas. Cenários que filósofos como Thomas Hobbes,
David Hume e Jean-Jacques Rousseau descreveram de modo intuitivo em suas
respectivas obras, Leviatã (1651), Tratado da Natureza Humana (1739) e Discurso
sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755). Mesmo
que Hobbes concebesse o indivíduo humano como espontaneamente egoísta e
propenso a lutar contra os outros pelos meios indispensáveis por sua sobrevivência,
dada a fragilidade dos indivíduos diante da natureza, a cooperação surge como uma
solução motivada pela razão. Hume imaginou uma situação hipotética na qual dois
fazendeiros tinham suas safras ameaçadas e, visto serem naturalmente egoístas,
tinham dificuldade de convencer um ao outro a colaborar limitando suas respectivas
colheitas. Rousseau, por sua vez, imaginou uma situação em que caçadores
dependem das ações de outros para conseguir caça suficiente. Mas por fim

247 Esses cenários já haviam sido tratados de forma intuitiva por Hobbes, Hume e Rousseau.
141
considerou provável que alguns desertassem caso tivessem a oportunidade de
capturar, sozinhos, uma presa menor que os satisfizessem.

Antônio Rogério da Silva vê no caso de Hammurabi, que reinou sobre toda


Mesopotâmia por volta do século XVIII a.C., uma valorização do princípio da
cooperação. Hamurabi reinou, legislou e, a propósito das leis, deixou uma coleção de
sentenças — entre as quais a célebre “olho por olho, dente por dente” — que remetem
a uma noção de direito fundada na valorização da reciprocidade. 248 Ora, mas a
importância da reciprocidade e das ações cooperativas de maneira geral não é algo
assente para qualquer civilização minimamente desenvolvida? Digo, não é algo
pressuposto em qualquer sociedade suficientemente desenvolvida? Mais interessante
parece o cenário pintado pelo estrategista chinês Sun Tzu (séc. V a.C.) do outro lado
do mundo e mil e tantos anos depois. Em seu manual A Arte da Guerra, recomendava
aos comandantes que lançassem suas próprias tropas em situações sem saída, pois
uma vez que seus homens estivessem prontos para morrer, dariam o máximo de si
na batalha.249 No que tange às estratégias de guerra que partilham do referido
entendimento acerca/ das situações, temos no Ocidente o exemplo, bem semelhante,
de Caio Júlio César (101-44 a.C.) que, numa batalha difícil, afugentava os cavalos
para impedir fugas e constranger todos a darem tudo de si. 250

Enfim, em situações em que pode haver “conflito de interesses entre duas ou


mais partes capazes de deliberarem sobre uma ação que implique numa reação
recíproca consequente”, a Teoria dos Jogos dos matemáticos, “tenta encontrar uma
formulação passível de ser tratada de modo tão rigoroso quando possível, com
objetivo de apontar respostas factíveis”.251

248 Silva. 2006. p.171.


249 Sun Tzu. A Arte da Guerra, cap. XI.
250 Silva cita ainda o caso de Hernán Cortés (1485-1547) que de maneira semelhante, muito séculos depois, fez

com que os barcos fossem destruídos para que, sem meios de fuga e em território hostil, até os soldados mais
descontentes se unissem a ele.
251 Silvia, 2006, p.4.

142
8. Noções de jogo em Foucault

No que concerne ao que tradicionalmente herdamos da filosofia, a história da


filosofia, ao problema do conhecimento e a sua relação com a verdade, a postura de
Michel Foucault sempre foi de natureza crítica. Na esteira nietzschiana, deslocou-se
dos lugares-comuns, afastou-se das tradicionais concepções de verdade e deu
algumas investidas no sentido de fazer uma história da produção da verdade no
Ocidente. Disse que sua intenção era fazer uma história da verdade a partir da
reconstituição de uma verdade produzida pela história isenta das relações com o
poder. Por isso, na medida em que cada sociedade possui seu próprio regime de
verdade, empenhou-se ao mesmo tempo em identificar as coerções múltiplas e os
jogos de verdade.

Bem, mas o que entender, precisamente, por “regime de verdade” e por “jogos
de verdade”? Nas palavras de Foucault, por regime de verdade devemos entender,
em primeiro lugar, “os tipos de discursos que as sociedades acolhem e fazem
funcionar como verdadeiros, como discursos verdadeiros”. Por regime de verdade
devemos entender, em segundo lugar, “os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros ou falsos, a maneira como uns e outros são
sancionados”. Por regime de verdade devemos entender, em terceiro lugar, “as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade”. Por
regime de verdade devemos entender, finalmente, “o estatuto daqueles que tem o
poder de dizer aquilo que funciona como verdadeiro”.252

Não podemos, contudo, nos conformar com o entendimento acerca dos


regimes de verdade em geral. Se cada sociedade possui seu próprio regime de
verdade, importa-nos saber quais são as características de nosso regime de verdade,
isto é, quais são as características da verdade que produzimos. Para Foucault, em
nosso regime de verdade, a verdade encontra-se centrada no discurso científico e nas
instituições que o produzem. A verdade, por assim dizer, científica é
permanentemente utilizada para a produção econômica e pelo poder político. Essa
verdade é largamente difundida por meio de instâncias educativas e pelos meios de

252Foucault, M. Questões de Michel Foucault à revista Hérodote e respostas dos geógrafos In: Ditos e Escritos IV:
Estratégia, Poder-Saber. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2003, p.183-184.
143
informação. Essa verdade é produzida e transmitida sob o controle dominante de
alguns grandes aparelhos políticos e econômicos, tais como as universidades, a
mídia, a escrita, o exército. Por fim, essa verdade é lugar de enfrentamentos, de
debates políticos violentos sob a forma de lutas ideológicas. 253

Uma vez elucidada a noção de “regimes de verdade”, no geral e aplicada à


nossa sociedade, interroguemo-nos então: em que consistem os “jogos de verdade”?
O que significa dizer que tal objeto de conhecimento ou tal experiência de si decorre
de um determinado jogo de verdade? Pois bem, antes de mais nada, os “jogos de
verdade” correspondem às condições de possibilidade da constituição dos objetos de
conhecimento e, como tal, são indissociáveis dos modos de subjetivação. Portanto
ocorre, por um lado, um processo de objetivação de alguma coisa e, por outro, um
processo de subjetivação no sujeito. E na medida em que essa objetivação e essa
subjetivação são dependentes uma da outra, a descrição de seu desenvolvimento
mútuo e de seu laço recíproco é, precisamente, o “jogo de verdade”. Ou seja, o que
está em questão não é a descoberta do que é verdadeiro, do que é sempre verdadeiro,
mas sim as regras segundo as quais aquilo que um sujeito diz sobre um determinado
objeto é tomado como verdadeiro ou como falso. Como se desenvolveram, a partir de
que objetificações e subjetivações, as regras e os critérios que permitem um discurso
ser qualificado de verdadeiro ou falso?254 E a qualificação desse discurso como
verdadeiro ou falso vai determinar, evidentemente, o poder que lhe será investido, sua
utilização por parte das mais variadas instâncias, sua circulação etc.

Assim sendo, podemos agora formular uma série de questões das quais
apenas muito superficialmente nos aproximamos no primeiro capítulo. Por exemplo,
por meio de que processos de objetificação e subjetivação fomos historicamente
constituídos? Que jogos de verdade permitiram ao sujeito ocidental moderno pensar-
se e experimentar-se enquanto tal? Que jogo de verdade foi responsável pela
reconfiguração do regime de verdade das sociedades ocidentais? Qual jogo de
verdade foi mais decisivo para a constituição de nosso modo de ser? Que jogo de
verdade, forjando o pecado, fez com que o sujeito ocidental pensasse a si mesmo
como pecador e experimentar-se a si mesmo como pecador? Que jogo de verdade
manchou indelevelmente a alma desse sujeito? Que jogo de verdade fez esse sujeito

253 Revel, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. Ed. Claraluz, São Carlos, 2005, p.86-87.
254 Revel, 2005, p.87.
144
ser habitado pelo maligno por tantos séculos? Que jogo de verdade fez desse sujeito
habitado por uma libido? Que jogo de verdade forjou, inquietou e incitou uma relação
tão problemática do sujeito com sua própria sexualidade? Enfim, que jogo de verdade
deu ensejo ao sujeito de desejo? Todas essas questões gravitam em torno do
problema do sujeito desejante e podem, de forma individual ou global, servirem de
ponto de partida para uma narrativa histórico-crítica.

Até certo ponto a noção de “jogos de verdade” de Foucault e a noção de jogo


de Huizinga se articulam.

Se aplicarmos à ciência nossa definição do jogo como atividade desenvolvida


dentro de certos limites de espaço, tempo e significado, segundo um sistema
de regras fixas, poderemos chegar à conclusão surpreendente e assustadora
de que todos os ramos da ciência são outras tantas formas de jogo, dado que
cada uma se encontra isolada em seu próprio campo e é limitada pelo rigor
das regras de sua própria metodologia. Mas se aplicarmos plenamente nossa
definição, concluiremos imediatamente que para que uma atividade possa ser
considerada um jogo é necessário algo mais do que limitações e regras.

(Huizinga, [1938] 2018, p.225-226)

Mas segundo a definição integral de jogo do próprio Huizinga, além de todo


jogo ser limitado no tempo, se isolar das realidades exteriores e conter seu fim em sua
própria realização, caracteriza-se também pela consciência de ser agradável e
proporcionar relaxamento das tensões da vida cotidiana. Pois bem, mas a ciência,
visando sua utilidade, não só não para de buscar contatar a realidade como
frequentemente procura estabelecer um padrão universalmente válido da realidade.
Além do mais, enquanto que as regras do jogo, uma vez definidas e aceitas, não
podem ser alteradas, as regras da ciência podem ser alteradas, modificadas e
redefinidas, visto serem constantemente desmentidas pela experiência. 255

Portanto, para Huizinga, “a afirmação de que a ciência não passa de jogo é


uma afirmação gratuita, demasiado fácil, que se impõe descartar provisoriamente”. 256
Não obstante, o autor ainda acha que há na ciência um elemento lúdico, dentro do
terreno circunscrito pelo seu método. Como exemplo, ele faz menção a uma tendência
de caráter parcialmente lúdico que os cientistas têm para a sistematização. Enfim, o

255 Huizinga, [1938] 2018, p.226.


256 Ibid. p.227.
145
autor de Homo Ludens não deixa de reconhecer na atividade científica alguns
elementos de capricho. Em suas palavras: “É certo que no final sempre se detecta a
margem de jogo, mas essa detecção prova que tal margem existe”. 257 Além disto,
outra via por meio da qual chega-se ao caráter de jogo da ciência é a do espírito
competitivo.

Além desta possibilidade de jogar o próprio método, tanto da parte do cientista


quanto do amador, um e outro podem igualmente ser levados ao caminho do
jogo pelo impulso competitivo propriamente dito. Embora na ciência a
competição seja menos diretamente condicionada por fatores econômicos do
que na arte, o desenvolvimento lógico da civilização a que damos o nome de
ciência está mais inextricavelmente ligado à dialética do que acontece no
caso da estética. […] A ciência, como com certa razão alguém afirmou, é
polêmica. Mas, constitui mau sinal quando a ânsia de se antecipar aos outros
na descoberta ou de arrasá-los com argumentos transparece demasiado no
resultado final do trabalho científico. Aquele que realmente procura a verdade
dá pouca importância ao triunfo sobre seus adversários.

(Huizinga, [1938] 2018, p.227)

Portanto, Huizinga conclui que enquanto a ciência antiga possuía inequívocas


características lúdicas, a ciência moderna se arrisca menos a cair no domínio do jogo.

Então, quando Foucault se refere aos “jogos de verdade” no domínio da ciência,


pretende designar aquilo que corresponde às condições de possibilidade da
constituição dos objetos de conhecimento e, como tal, são indissociáveis dos modos
de subjetivação. Embora algumas características do jogo possam estar presentes nos
“jogos de verdade”, o emprego da palavra “jogo” nessa expressão é de natureza
aproximativa e metafórica.

257 Ibid. p.227.


146
TERCEIRO CAPÍTULO: O JOGO DE FOUCAULT

1. Um convite à filosofia

Um dos motivos pra se dizer que o pensamento tardio de Michel Foucault ou a


última fase de sua filosofia tem início no fim dos anos 70 é que a partir desse período
vemos se formarem ou se desenvolverem, de modo geral, as principais pesquisas
genealógicas do filósofo, dentre as quais encontramos a genealogia da ética, a
genealogia da subjetividade e a genealogia da parrésia. Contudo, apesar de
especialmente desenvolvidas no período tardio do pensamento foucaultiano, a
formação de algumas genealogias teve início bem mais cedo. A título de exemplo,
reconhecemos na genealogia da verdade o reflexo das primeiras abordagens de
Foucault ao tema da verdade em 1970, tal como podemos reconhecer na genealogia
da sexualidade o reflexo das primeiras abordagens ao tema da sexualidade em 1974.
Fora isso, reparemos que nas próprias análises os temas das genealogias nem
sempre se encontram isolados uns dos outros, mas, pelo contrário, nelas se
encontram na maior parte das vezes mesclados.
Entretanto, visto a quantidade de pesquisadores que se dedicam atualmente
ao pensamento tardio de Foucault e o volume exorbitante de trabalhos já publicados
em várias línguas sobre suas genealogias, as dificuldades que essas particularidades
textuais da produção tardia do filósofo poderiam impor à pesquisa revelaram-se, no
teste da história, insignificantes. Em razão disso, grandes temas genealógicos
significativamente desenvolvidos nesse período — sexualidade, ética, subjetividade,
verdade… — já são quase lugares-comuns do pensamento foucaultiano. Em
contrapartida, o tema do “jogo filosófico” na obra de Foucault, apesar de indexado ao
tema do desejo e da sexualidade, ainda se encontra praticamente inexplorado.
Mas antes de adentrarmos no tema do jogo filosófico de Foucault, indiquemos
por alto a situação de seus métodos. O primeiro deles, o arqueológico, tem por
propósito descrever a constituição do campo como uma rede formada por inter-
relações entre diversos saberes. É essa constituição em rede que abre espaço para
a emergência do discurso. Já o segundo método, a genealógico, busca a origem dos
saberes a partir das condições de possibilidades externas aos próprios saberes. Em

147
vista disso, os saberes são considerados elementos de um dispositivo de caráter
estratégico. A principal diferença entre a arqueologia e a genealogia não reside no
objeto de estudo ou no domínio de investigação, mas na delimitação, na perspectiva
e no ponto de ataque. Em razão disso, a arqueologia e a genealogia consistem em
dois conjuntos de procedimentos complementares.
A arqueologia procura cercar as formas da exclusão, da limitação e da
apropriação, mostrar como se formaram, para responder a que necessidades, como
se modificaram e se deslocaram, que força exerceram e até que ponto foram
contornadas. Já a genealogia põe em prática outros princípios que, por sua vez, se
formaram através, apesar ou com o apoio da arqueologia. O ponto de interseção é o
da formação efetiva dos discursos que se dá ou no interior ou no exterior dos limites
do controle, ou de ambos os lados da delimitação. Enquanto a crítica analisa os
processos de rarefação, de agrupamento e de unificação dos discursos, a genealogia
analisa a formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular dos discursos.
Entretanto, uma vez que a tarefa da arqueologia consiste, por um lado, em
descrever as formas de seleção, adequação, reagrupamento, alteração ou exclusão
que operam submetendo o discurso ao controle e, por outro lado, dá sustentação à
tarefa da genealogia que consiste em analisar a proveniência considerando tanto os
mecanismos e estratégias das relações de força quanto os limites e regras objetivados
nas regularidades discursivas, esses métodos não só se complementam como são
indissociáveis.
No entanto, Foucault considera a tarefa da genealogia particularmente
trabalhosa por consistir numa atividade investigativa que procura os indícios para a
confirmação de suas hipóteses em fatos até então desconsiderados e desvalorizados,
quando não apagados, pelos fabricantes da história tradicional. O que está em jogo
nessa atividade, o que ela requer, é a singularidade dos acontecimentos para fazer
emergir o entendimento sobre os espaços onde determinado objeto como, por
exemplo, o desejo desempenha papéis distintos ou foi excluído do discurso
verdadeiro. Por meio desse tipo de análise ativa-se os saberes locais, não legitimados
ou valorizados pelo discurso verdadeiro. E uma vez que a genealogia se propõe
demarcar os acidentes e os acasos que deram origem ao que existe, a concepção
genealógica da história não pressupõe a verdade, o ser, um segredo a desvendar ou
essência das coisas a se buscar, mas sim acasos e descontinuidades. Em vez de

148
identidades que remetem a origens, as coisas que emergem nessa história
pressupõem a existência de uma discórdia entre elas. Do ponto de vista genealógico,
a própria razão teria nascido do acaso, das paixões de certos homens, da necessidade
de suprimi-las e, enfim, de sua vontade de saber. No que concerne à constituição do
sujeito, há um ponto de articulação do corpo com a história. E se as condições para a
produção do sujeito se definem na história, ao se produzir, o sujeito reproduz a
história. Nessa história efetiva, todo saber é perspectivo, parte de determinado ângulo
e movimenta-se visando avaliar o estado de coisas.
No entanto, é preciso ter em mente que o método genealógico não tem a
pretensão de destruir o atual estado de coisas e fundar um outro a partir de uma
verdade inédita. Não se busca, por meio de uma análise do passado em nome de uma
nova verdade, a destruição, mas sim a uma consideração do que somos enquanto
atravessados pela vontade de verdade.
Estudando as formas de poder na sua multiplicidade, diferença, especificidade
e reversibilidade, a genealogia se volta para as relações de força que se entrecruzam,
que se remetem umas às outras, que convergem ou que se opõem. Notemos que do
mesmo modo que o método genealógico é o mais adequado para a análise da
discursividade local, a parte arqueológica da análise geral é aquela que se liga aos
sistemas de recobrimento do discurso. Já a parte genealógica dessa análise é aquela
que se detém à formação efetiva do discurso entendido em seu poder de constituir
domínios de objetos por meio dos quais proposições verdadeiras ou falsas se tornam
possíveis. Em síntese, trata-se de uma tática que, partindo da discursividade local,
ativa vários saberes através da crítica à sujeição que ali emerge.
Foucault entende que nenhum exercício do poder prescinde de uma certa
economia dos discursos de verdade. “Somos submetidos pelo poder à produção da
verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade”.

A genealogia seria, portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos


saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento
para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de
oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e
científico.

(Foucault, [1978] 1979, p. 172)

149
Em vista disso, a história genealogicamente dirigida não se apega as
identidades, mas obstina-se em dissipá-las; não visa demarcar o território de onde
viemos, mas lançar luz sobre as descontinuidades que nos atravessam.
Então, uma vez caracterizadas as metodologias, retomemos o ponto em que
estávamos. No primeiro capítulo, mencionamos que um jogo filosófico foi proposto por
Michel Foucault a seus contemporâneos por ocasião do lançamento de A vontade de
saber. No segundo capítulo, retrocedemos até os gregos e, com base em alguns
estudos selecionados sobre jogos, revisamos a noção filosófica de jogo. Neste
capítulo, pretendemos dar prosseguimento à descrição do jogo, reconstituir sua
história e esclarecer sua relação com o projeto da História da sexualidade.
É preciso dizer que a expressão “jogo de Foucault” tem dois sentidos, o de
“convite à filosofia” e de “jogo filosófico”. Acontece também desses sentidos se
sobreporem em alguns contextos. Essa ambiguidade se deve a Foucault ter, ao
mesmo tempo e num só gesto, proposto um jogo mental a seus contemporâneos e
feito, sob a roupagem de um jogo filosófico, um convite à filosofia. Embora, por
definição, o jogo filosófico não tenha outra finalidade que não seu próprio exercício, o
jogo filosófico proposto por Foucault desempenha um papel na estratégia geral que
norteia toda a concepção da História da sexualidade. Para apreender esse papel nos
voltemos para a gênese de A vontade de saber. Já mencionamos — no primeiro
capítulo, tendo por principal fonte a Cronologia de Foucault redigida por Daniel Defert
— algumas coisas a respeito da época, da origem, da publicação e da recepção desse
livro. Retomemos alguns fatos conhecidos.
Em 1975, Foucault pediu a um adiantamento em dinheiro a Gallimard que, por
sua vez, o fez assinar um contrato de exclusividade por cinco anos. Diante disto,
Foucault decidiu publicar um livro pequeno e mais nenhum durante cinco anos. Esse
pequeno livro seria A vontade de saber. Algo em torno desse episódio parece ter
motivado Foucault a alterar o estilo de sua escrita e a forma que costumava arquitetar
seus livros.258

258Huizinga questiona, a propósito da ideia de “estilo” em arte, se não haverá a aceitação implícita de um certo
elemento lúdico. “Não será o próprio surgimento do estilo um jogo do espírito em busca de novas formas? O estilo
depende dos mesmos elementos que o jogo, do ritmo, da harmonia, da mudança e da repetição regular, da tensão
e da cadência. O estilo e a moda estão mais aparentados do que a estética ortodoxa habitualmente admite”
(Huizinga, [1938] 2018, p.206-207).
150
Para contextualizar o interesse de Michel Foucault pelas temáticas
desenvolvidas em A vontade de saber durante o ano de 1975, mencionemos algumas
ocasiões em que o filósofo se pronunciou sobre o assunto. De abril a maio de 1975,
duas conferências em Berkeley. De outubro a novembro, conferências na
Universidade de São Paulo. Em novembro, uma conferência na Faculdade de
Filosofia da Bahia. Mas foi em agosto (entre uma ocasião e outra dessas conferências)
que Foucault terminou de escrever o referido livro. Esse livro foi o único que ele
escreveu sem saber de antemão que título daria.
É precisar dar ênfase a algumas coisas a respeito de A vontade de saber. Esse
livro concluído em agosto de 1975 — e posteriormente intitulado A vontade de saber
— é ao mesmo tempo o único livro de Foucault inteiramente dedicado à
problematização de questões concernentes à psicanálise e aquele que apresenta sua
crítica mais contundente aos pressupostos da psicanálise. Daí a pretensão do autor
de que ele fosse tomado como uma arqueologia da psicanálise. Apesar da aparente
trivialidade, há mais dois detalhes para o qual gostaríamos de chamar a atenção. O
primeiro detalhe é o fato de A vontade de saber ser o mais curto de todos os livros de
Foucault. O segundo, no fato desse pequeno livro escrito por Foucault ter sido
originalmente publicado em dezembro de 1975, porém datado de 1976. Esse fato é
particularmente curioso. O que motivou o autor a alterar a data de publicação? Parece-
nos, nesse caso, tratar-se de uma ironia. Sim, e para ser mais preciso, de uma ironia
direcionada aos psicanalistas. Um tipo de, por assim dizer, “piada interna”.
Então, acabamos de assinalar três coisas a respeito de A vontade de saber —
uma relativa a seu conteúdo e dois detalhes relativos a, digamos, aspectos materiais
do livro. Concordamos que, no fim das contas, a posição de Foucault em relação à
psicanálise nem sempre é clara. No entanto, em certa ocasião ele expressa
abertamente sua opinião a respeito da obra de Freud ao declarar que, para ele,
importante é a Traumdeutung (1900) e não os Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905). Considerando essa declaração de Foucault, verificamos a
existência de três correlações entre A vontade de saber e a Traumdeutung.
Analisemos o contexto. Enquanto a Traumdeutung (título original da
Interpretação dos sonhos) é considerada a obra que marca oficialmente a fundação
da psicanálise, A vontade de saber representa o mais explícito empreendimento crítico
de Foucault contra a psicanálise ou, pelo menos, contra importantes pressupostos da

151
psicanálise. Observa-se uma correlação entre os propósitos diametralmente opostos.
A Interpretação dos sonhos como obra fundadora de um lado e A vontade de saber
como obra crítica do outro. A primeira correlação, uma correlação inversa.
Segundo ponto: a Interpretação dos sonhos é o mais extenso livro escrito por
Freud, enquanto que A vontade de saber é o mais curto livro escrito por Foucault.
Segunda correlação inversa. Ou seja, temos o livro fundador da psicanálise e, dentre
os livros de Freud, de maior extensão versus o livro crítico da psicanálise e, dentre os
livros de Foucault, de menor extensão.
Terceiro ponto: assim como A vontade de saber foi publicada em dezembro de
1975 e datada de 1976, a Interpretação dos sonhos (destacada por Foucault como
sendo a obra mais importante de Freud), embora datada de 1900, também foi
publicada no ano anterior, precisamente em 4 de novamente de 1899. Temos aí,
portanto, três correlações entre A vontade de saber e a Interpretação dos sonhos.
Está aí, nos parece, a ironia que cerca a publicação desse livro peculiar ]de Foucault.
Entretanto, de acordo com Daniel Defert, o autor de A vontade de saber o
concebeu “como um manifesto com o qual se deve marcar um encontro. […] ele vai
na contramão da expectativa do público por sua crítica à hipótese repressiva, cara aos
movimentos de liberação”. Então, se por manifesto entendermos um texto dissertativo
utilizado para levar ao público opiniões com diferentes fins comunicativos; se o intuito
do manifesto é sensibilizar ou persuadir a opinião pública por meio da defesa
argumentativa; se o propósito do manifesto é atrair leitores para comungar das ideias
e ou críticas expostas; e se por encontro entendemos encontrar com adeptos,
simpatizantes daquelas ideias e ou críticas, com eles travar conhecimento,
eventualmente compartilhar de uma experiência, A vontade de saber é um livro
diferente dos demais não só por suas características como pelo propósito com o qual
foi concebido.
Negar certa estranheza na concepção de A vontade de saber ou chamar de
coincidências os curiosos fatos que assinalamos a seu respeito, nos parece, no
mínimo, falta de espírito investigativo; pra não dizer denegação filosófica. Defert ainda
nos revela que embora esse livro tenha sido apresentado como uma introdução a uma
história da sexualidade em seis volumes, Foucault lhe confidenciou que não tinha
intenção de escrever os demais. Ora, como interpretar o anúncio de uma História da
sexualidade que o autor não tinha intenção de concluí-la? Ou mesmo, como interpretar

152
o fato do autor ter se empenhado em escrever uma Historia da sexualidade (não em
seis, mas em quatro volumes) após ter confidenciado a alguém próximo seu
desânimo? Essa questão segundo a qual Foucault anunciou o projeto da História da
sexualidade sem, todavia, ter a pretensão de concluí-lo, nos sugere algumas
hipóteses explicativas que, embora insuficientes, sustentam algumas conjecturas a
respeito de sua atitude.
Primeiro, mesmo que A vontade de saber tenha sido concebido como um
manifesto, o autor também se referiu a ele como um “livro programa”. Assim
caracterizado, parece decorrer disso e ser legítimo afirmar que esse livro é uma
espécie de experimento, ou que foi lançado como um “livro experimento” pra ver no
que dava. Qual seria a reação do público? Sendo ao mesmo tempo tomado como
manifesto e como experimento, ficamos mais propensos a aceitar a ideia de que ele
visa menos semear ideias do que incitar o pensamento, provocar uma reflexão, enfim,
reações no público. Portanto, sob a perspectiva de um “experimento”, A vontade de
saber poderia tem sua razão de ser independentemente dos demais volumes da
História da sexualidade. Como dizia o próprio Foucault: “Não escrevo um livro para
que seja o último. Escrevo para que outros livros sejam possíveis, não
necessariamente escritos por mim”.
Outra coisa também nos ocorre. Outra coisa que, vocês vão ver, é menos uma
nova hipótese do que um complemento à primeira. Ela encontra apoio na seguinte
passagem. Roberto Machado (uma das principais referências brasileiras no
pensamento de Michel Foucault), comentou a seguinte cena transcorrida em seu
último encontro com Foucault:

Quando eu assisti as palestras A verdade e as formas jurídicas […] foi um


choque, porque elas são totalmente diferentes de As palavras e as coisas,
fiquei apavorado, pra mim foi um choque muito grande. Eu não estava
acostumado a isso, […] um filósofo que no livro seguinte diga coisas
totalmente diferentes do que ele tinha dito, com uma metodologia totalmente
diferente… Aí eu fiquei muito nervoso com a história; chamei o Foucault pra
vir à minha casa pra gente conversar. E foi uma coisa muito estranha porque
eu comecei a bombardeá-lo de questões. Eu dizia: “Como é possível, nesse
livro aqui o senhor diz isso?! Mas nessa conferência aqui o senhor diz uma
coisa totalmente diferente!”. Então Foucault riu e disse algo assim: “Não leve
muito a sério essa conferência. Olhe, vou lhe dizer o porquê eu a escrevi. É
porque eu conheço uma pessoa muito simpática, o Klossowski. E eu gosto
muito dele. E ele tinha me chamado, a mim e a Deleuze pra ir ao colóquio
sobre Nietzsche que ele estava organizando. Aí eu disse, eu vou, mas eu não
apresento nada. Não quero falar nada. Aí eu fui, mas lá o tempo todo as
pessoas dizem, ‘faça uma palestra, faça uma palestra, faça uma palestra’. Aí
eu não aguentei esse tanto de convites. Resolvi fazer. Aí eu fui à sala do lado

153
uma hora antes e escrevi esse texto. Esse texto a que você está se referindo,
dando tanta importância, foi escrito nas coxas”.

(Machado, 2015)

Desse modo, o relato de Machado parece não só indicar uma postura, digamos,
“não-séria” de Michel Foucault sobre um texto de sua autoria, como externar um traço
lúdico de seu pensamento. Isso se nota nas últimas palavras reproduzidas: “Aí eu fui
à sala do lado uma hora antes e escrevi esse texto. Esse texto a que você está se
referindo, dando tanta importância, foi escrito nas coxas”. De modo semelhante,
algumas características de A vontade de saber, tais como o caráter quase fabuloso
de sua narrativa, seu estilo ensaístico e hipóteses sabidamente arriscadas, se não o
distanciam tanto da seriedade, aproximam-no, todavia, do aspecto menos sério e dos
traços lúdicos da esfera do pensamento.
A obra Homo Ludens (1938) de Johan Huizinga apresenta noções que, no
corpo do texto e talvez por razões de estilo, nem sempre aparecem de forma distinta.
Mas haja visto a importância de algumas dessas noções para o que estamos
trabalhando, as tomamos de empréstimo e as concatenamos logicamente. Por
exemplo, concebemos uma sequência lógica para “impulso lúdico”, “elemento lúdico”
e “espírito de jogo”.
Situamos o “impulso lúdico” no começo dessa série de noções por concebê-lo,
fundamentalmente, como princípio de tudo o que é lúdico no mundo e como o que dá
ensejo aos movimentos lúdicos da alma. Ao se organizar (seja pela intensidade,
distribuição, convergência de sua energia etc.) o “impulso lúdico” deixa de ser uma
coisa essencialmente anímica. Consolidando-se nas coisas do mundo, o que era um
impulso transforma-se num elemento. Este é o “elemento lúdico”, uma noção situada
no segundo lugar da série e que tem por característica básica ser, dos traços mais
ínfimos às partes mais notórias, dado à percepção. O “elemento lúdico” é o principal
componente constitutivo do “espírito de jogo”, o de maior relevância para sua
manutenção e, em caso de baixa, um dos motivos mais comuns de sua deterioração.
A noção de “espírito de jogo”, terceira e última da série, designa um estado subjetivo,
individual ou compartilhado com outros, relacionado ao domínio dos jogos.
Assim como o “impulso lúdico” é gerado internamente, mas sofre interferências
de fatores externos, o “espírito de jogo” é um estado de espírito que não é determinado
por um único fator. Por exemplo, o “espírito de jogo” tanto pode ser aumentado pelo

154
próprio jogo, pela participação no jogo, como pode ser reduzido por circunstâncias
alheias ao domínio do jogo. Mas, para resumir, uma das características mais
marcantes do “espírito de jogo” é uma certa sensação que envolve tensão,
divertimento, amistosidade e competição.
Então, esclarecemos o fator impulsivo, elementar e espiritual da esfera lúdica
através das noções de “impulso lúdico”, “elemento lúdico” e “espírito de jogo” que
desempenham um papel na experiência que temos dos jogos. Fizemos isso com o fim
de contextualizar a pergunta: a partir de tudo que foi exposto até o momento, podemos
inferir que essas noções de “impulso lúdico”, de “elemento lúdico” e de “espírito de
jogo”, próprias da esfera lúdica e do domínio dos jogos, se encontram presentes entre
as características de A vontade de saber e na postura assumida por seu autor? Não
parece que A vontade de saber revela uma disposição do filósofo em jogar com as
possibilidades do pensamento?
Sabemos, agora, que o início de qualquer jogo se dá a partir de um “impulso
lúdico”. Condensando-se, esse impulso compõe um “elemento lúdico”, pedra de
fundação da essência do jogo. Embora o “impulso lúdico” permeie a experiência que
temos do jogo, é originariamente anterior. O “elemento lúdico”, embora
contemporâneo ao alicerce sobre o qual as condições formais do jogo são
estabelecidas, também é anterior ao jogo propriamente dito. Mas uma vez
determinadas as condições formais do jogo, este passa a existir como uma atividade
distinta da realidade cotidiana e a manifestar o “espírito de jogo”. São três, portanto,
os momentos de constituição de um jogo a partir dos quais essas noções podem ser
respectivamente aplicadas.
Cada uma dessas noções desempenha seu papel como chave de leitura de
aspectos da esfera lúdica e do domínio do jogo. O aspecto do “elemento lúdico”, por
consistir no cerne e razão de ser do jogo, é aquele cujo enfraquecimento deteriora os
outros dois e cuja falta os extingue. Por isso, há jogos que existem e os que já não
existem, os que correspondem plenamente a concepção filosófica de jogo e os que
dela se distanciaram devido a perda de suas qualidades lúdicas.
Muitas coisas têm “traços de ludicidade”, mas nem por isso são jogos. Muitas
têm “elementos lúdicos”, sem que com isso se configurem jogos. Muitas também têm
“espírito de jogo”, mas não são reconhecidas como jogos. O livro lançado por Foucault
em 1976, A vontade de saber, possui esses três aspectos inerentes aos jogos. Mas o

155
que isso significa? De modo geral, a conservação do “elemento lúdico” é condição,
mas não garantia do “espírito de jogo”. Por exemplo, a simples aderência de outros a
ideia do jogo é um fator que fortalece o “espírito de jogo”. Enquanto o “elemento lúdico”
diz se isso tem condições de ser ou de se tornar um jogo, o “espírito de jogo” diz se
terá graça jogá-lo.
Entretanto, para continuarmos nos aproximando da gênese de A vontade de
saber, talvez convenha seguir outras vias e procurar saber, por exemplo, “quando”
surgiram as principais ideias contidas nele. Na aula de 19 de fevereiro de 1975, por
exemplo, Foucault ventilou pela primeira vez (de maneira incipiente, mas já
essencialmente formulada naquilo que trazia de original) a principal ideia do livro de
1976, a saber, a ideia de um dispositivo da sexualidade como operador de análises
mais fecundas do que aquelas amparadas na noção psicanalítica de repressão.

Podemos imaginar — eu não sei, mas podemos imaginar, pois creio que
agradaria a muita gente — que a regra de silêncio sobre a sexualidade só
começou mesmo a pesar no século XVII (digamos, na época da formação
das sociedades capitalistas), mas que antes todo o mundo podia dizer o que
bem entendesse sobre a sexualidade. Pode ser! Pode ser que fosse assim
na Idade Média, pode ser que a liberdade de enunciação da sexualidade
fosse muito maior na Idade Média do que nos séculos XVIII ou XIX.

(Foucault, [1975] 2010, p.214)

Foucault começa afirmando: “podemos imaginar”. Ele poderia estar nos


convidando a imaginar, sugerindo que imaginássemos, autorizando-nos a imaginar,
mas o que ele realmente faz é afirmar que “podemos imaginar”. Em seguida diz: “eu
não sei, mas podemos imaginar, pois creio que agradaria muita gente”. Foucault
admite que não sabe. E como Foucault não é Sócrates, não temos motivos para supor
que ele afirmaria não saber se acaso soubesse. Se ele diz não saber é porque de fato
não sabe. Portanto, Foucault admite que não sabe. Foucault admite que não sabe,
mas logo volta a afirmar que “podemos imaginar”. Ou seja: ainda que não saibamos,
ainda que não estejamos certos de algo sobre uma coisa, podemos efetivamente
imaginar esta coisa em tal estado. Na oração seguinte, complementa: “pois isso
agradaria muita gente”. Foucault indica aqui a possibilidade de imaginar uma coisa
sobre a qual não se sabe algo. Nesse caso, ele se dispôs a imaginar um cenário que
agradaria muita gente, seja como uma agradável ficção, seja como uma realidade
histórica possível. Mas que cenário é esse? Esse cenário agradável imaginado por
Foucault é aquele no qual “todo o mundo podia dizer o que bem entendesse sobre a
156
sexualidade”. E ainda que Foucault tenha afirmado não saber se o que imagina
corresponde aos fatos históricos, afirmou com mais insistência ainda que “pode ser!”.
Tanto que a afirmação da possibilidade é reiterada: “Pode ser! Pode ser que fosse
assim na Idade Média, pode ser que a liberdade de enunciação da sexualidade fosse
muito maior na Idade Média do que nos séculos XVIII ou XIX”.
Desculpem-nos pelo demorado exame dessa passagem. A razão disso é que
esse pequeno trecho talvez represente o primeiro esboço (ou, de todo modo, o
primeiro esboço transcrito que chegou até nós) do que seria o jogo filosófico proposto
por Foucault em 1976 acerca da historicidade do desejo. Pois bem, a ideia de que “a
regra de silêncio sobre a sexualidade só começou mesmo a pesar no século XVII” é
nova em 1975 e faz frente a ideias defendidas em um imenso volume de estudos,
grande parte deles de origem ou de influência psicanalítica. No trecho citado, Foucault
nos faz imaginar que as coisas podem ter ocorrido de outra forma, que nossa história
pode ter sido outra.

Olhem o que acontece agora. De um lado, vocês têm, atualmente, toda urna
série de procedimentos institucionalizados de revelação da sexualidade: a
psiquiatria, a psicanálise, a sexologia. Ora, todas essas formas de revelação,
científica e economicamente codificadas, da sexualidade são correlatas do
que podemos chamar de uma relativa libertação ou liberdade no nível dos
enunciados possíveis sobre a sexualidade. A revelação não é, aí, uma
espécie de maneira de atravessar, a despeito das regras, dos hábitos ou das
morais, a regra de silêncio. A revelação e a liberdade de enunciação se
defrontam, são complementares uma da outra. Se as pessoas vão tanto ao
psiquiatra, ao psicanalista, ao sexólogo, para enunciar a questão da sua
sexualidade, revelar o que é sua sexualidade, é porque há em toda parte, na
propaganda, nos livros, nos romances, no cinema, na pornografia ambiente,
todos os mecanismos de apelo que remetem o indivíduo, desse enunciado
cotidiano da sexualidade, à revelação institucional e custosa da sua
sexualidade ao psiquiatra, ao psicanalista e ao sexólogo. Temos então aí
atualmente, uma figura na qual a ritualização da revelação tem por vis-à-vis
e por correlativo a existência de um discurso proliferante sobre a sexualidade.

(Foucault, [1975] 2010, p.214-215)

Contrariando o entendimento assente de que há uma regra de silêncio geral


sobre a sexualidade, Foucault assinala os “procedimentos institucionalizados de
revelação da sexualidade” de que dispomos atualmente: a psiquiatria, a psicanálise e
a sexologia. Tratam-se, os três procedimentos, de “formas de revelação, científica e
economicamente codificadas, da sexualidade”. Ou seja, depois de muitos séculos
dominando as práticas de revelação da sexualidade, a Igreja cedeu lugar (não sem
hesitar, não sem relutar) a certas práticas com pretensão científica, de caráter

157
profissional, economicamente viáveis e no interior das quais normalmente ocorre, por
parte do sujeito que as procura, a verbalização da sexualidade. Esses procedimentos
ou práticas “são correlatas do que podemos chamar de uma relativa libertação ou
liberdade no nível dos enunciados possíveis sobre a sexualidade”.
Mas, afinal de contas, por que as pessoas vão precisamente ao psiquiatra, ao
psicanalista e ao sexólogo para enunciar a questão de sua sexualidade, revelar o que
é sua sexualidade? Por que esses procedimentos ocupam, no que concerne à
revelação da sexualidade, um lugar de destaque? É porque “há em toda parte, na
propaganda, nos livros, nos romances, no cinema, na pornografia ambiente, todos os
mecanismos de apelo que remetem o indivíduo, desse enunciado cotidiano da
sexualidade, à revelação institucional e custosa da sua sexualidade ao psiquiatra, ao
psicanalista e ao sexólogo.” Há, portanto, além de um discurso proliferante sobre a
sexualidade, uma série de mecanismos que incitam o sujeito a falar de sua
sexualidade sob a forma de um ritual de revelação em tais contextos
institucionalizados.

O que eu gostaria de tentar fazer esboçando assim, muito vagamente, essa


espécie de pequena história do discurso da sexualidade não é, portanto, de
modo algum, colocar o problema em termos de censura da sexualidade.
Quando houve censura da sexualidade? Desde quando se é obrigado a calar
a sexualidade? A partir de que momento e em que condições pode-se
começar a falar da sexualidade? Eu gostaria de tentar inverter um pouco o
problema e fazer a história da revelação da sexualidade. Isto é, em que
condições e segundo que ritual foi organizada, no meio dos outros discursos
sobre a sexualidade, certa forma de discurso obrigatório e forçado, que é a
revelação da sexualidade? E, está claro, um panorama do ritual da penitência
é que vai me servir de fio condutor.

(Foucault, [1975] 2010, p.214-2015)

Nesse trecho, Foucault diz que quer, esboçando uma espécie de pequena
história do discurso da sexualidade, colocar o problema não da censura, mas sim da
revelação da sexualidade. “Eu gostaria de tentar inverter um pouco o problema e fazer
a história da revelação da sexualidade”. Ora, será mesmo que Foucault notou algo
que nenhum historiador até então tinha notado? Será mesmo que Foucault notou algo
de inédito a respeito da sexualidade, ou a respeito do discurso sobre a sexualidade,
nos arquivos da história? Será mesmo possível que uma realidade histórica como
essa, a de uma exploração discursiva da sexualidade, tenha permanecido soterrada
e longe da vista de todos? Convenhamos que esse problema, formulado por Foucault

158
em termos de injunção quase generalizada à verbalização da sexualidade, parece
demasiado amplo e chamativo para que se tenha passado desapercebido por todos.
Seja como for, uma coisa é certa, meio que à maneira de Nietzsche, Foucault costuma
inverter, torcer e reformular problemas filosóficos tradicionais e largamente
conhecidos. Essa é uma das maneiras através das quais o filósofo torna visível aquilo
que, no visível, não se vê. Ou seja, Foucault tanto tem um gosto especial pela
subversão das problemáticas quanto um jeito todo seu de revelar as coisas que,
nessas problemáticas, bem debaixo do nariz de todo mundo, permanecem não vistas.
Pois bem, mas como Foucault entabula essa história da revelação da
sexualidade? Consideremos a situação na qual o problema fora apresentado ao
público como problema filosófico. Trata-se da referida aula de 19 de fevereiro de 1975
do curso Os Anormais. Imaginemos a cena. Um auditório do Collège de France lotado.
Pessoas em pé. Outra sala, anexa à principal, também lotada. Rostos conhecidos e
desconhecidos. Muitos estrangeiros. Diversos gravadores sobre a mesa do famoso
filósofo Michel Foucault, professor daquela renomada instituição. É claro que numa
ocasião como essa Foucault não ia apresentar um problema filosófico fresquinho e,
não dando nenhuma solução para ele, deixar seus ouvintes no vácuo. Com efeito, ele
dá uma palhinha sobre a história da revelação da sexualidade nessa aula. Porém,
essa é apenas a cena inicial a partir da qual toda uma série de pesquisas e análises
sobre a sexualidade começam a se arranjar em torno da questão da revelação da
sexualidade.
Entretanto, supomos que A vontade de saber não se limita a dar uma resposta
ao problema da revelação da sexualidade e a dar prosseguimento à história, iniciada
um ano antes, da revelação da sexualidade. Supomos que há mais coisas em jogo
nesse livro. Supomos que esteja em questão não um, mas vários problemas
filosóficos. Ou que, em torno do principal, se aglutinam vários outros problemas
filosóficos. Assim, sua gênese é um assunto que nos compete. Então, como surgiu A
vontade de saber? Qual foi seu mote? Por que tem a forma que tem e não outra? Por
que tomou como tema a história de revelação da sexualidade? Por que faz as
denúncias que faz? Por que apresenta as hipóteses que apresenta?
A bem da verdade, vários são os motivos para isso e não acreditamos que seja
possível percorrê-los aqui. Cada um tem uma história a esse respeito. Histórias que
às vezes se complementam e outras vezes se contradizem. Sigamos então em

159
direção às razões inexploradas para a concepção desse livro em particular e, por
extensão, para a concepção da História da sexualidade.
Lembremos que a escrita de Foucault — essencialmente ensaística, conforme
Jorge Larrosa — constituía para ele mesmo, e segundo ele mesmo, uma
“experiência”, no sentido forte do termo. E tal experiência, por sua vez, o modificava
e o impelia a deslocar seu ponto de vista. “Quando escrevemos livros, desejamos que
estes modifiquem inteiramente tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos
percebamos inteiramente diferentes do que éramos no ponto de partida”. Então, dessa
experiência do sujeito com a verdade resulta um saber de experiência que, pela
proximidade e coabitação com o ser do sujeito, o transforma. É verdade que, como
acontece com muitas experiências de transfiguração e mudança, “depois nos damos
conta de que, no fundo, pouco nos modificamos. Talvez tenhamos mudado de
perspectiva, girado em torno do problema, que é sempre o mesmo, isto é, as relações
entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência”. Ou seja, apesar de
reconhecer a constituição da experiência como fim de sua prática filosófica e prática
de escrita, havia, contudo, da parte de Foucault, certa decepção ou, no mínimo, certa
insatisfação em relação ao nível dessa experiência. Podemos supor que em algum
momento Foucault se deu conta ou vinha se dando conta que a experiência solitária
com a verdade de sua subjetividade já não lhe bastava.
Embora nos pareça que a diversidade subjetiva possa ser infinitamente maior
do que é; embora sonhemos com esse tempo talvez utópico em que cada sujeito seja
em si um espetáculo; embora nos enfademos com a homogeneização das
subjetividades e nos entediemos com o insistente “mais do mesmo”; não damos conta
sequer do que já somos, tal como somos, por mais repetitivo que sejam nossos
problemas. O que fazer ao se dar conta de nossa própria constituição e das
especificidades de nossas demandas? A princípio situações como essa, que
associamos a certa modalidade de “conhecimento de si”, nos parecem promissoras,
o ponto de partida para muitas soluções. No entanto, o sujeito por vezes se percebe
com necessidades subjetivas com as quais é difícil de se arranjar. O sujeito por vezes
se descobre constituído de tal forma que, por exemplo, nem a religião, nem a arte,
nem os prazeres mundanos lhe salvam. Enfim, o sujeito por vezes se desdobra
subjetivamente, se desvela diante de si mesmo e revela para si mesmo a única saída
que lhe resta, a única maneira de salvar-se, a única forma por meio da qual alcançar

160
a salvação. Há muitos indícios de que, no caso de Michel Foucault, a forma de
salvação mais ajustada, apropriada e compatível, ou mesmo a única saída cabível,
era a modificação, a transformação e a transfiguração de si. Por isso a valorização,
por parte desse filósofo, da experiência.
Insatisfeito com o que, para ele, já pareciam ser “experiências mirradas” —
“Depois nos damos conta de que, no fundo, pouco nos modificamos” —, e sabendo
que nenhuma alternativa lhe restava, que todos os outros caminhos estavam não só
fortuitamente obstruído, mas definitivamente bloqueados, Foucault empertigou-se
diante da questão: o que fazer para, me transformando, deixar de ser o que sou e
transcender aqui mesmo onde estou? Pois bem, era preciso, portanto, ampliar a
experiência. E já não se travava mais de ampliar a experiência atingindo uma
“experiência-limite” de inspiração batailleana. Já havia tentado isso em outros tempos.
Travava-se agora de ampliar sua experiência constituindo-a nas proximidades, nas
cercanias e em face de outras experiências. Tratava-se de, pondo a experiência de si
mesmo em contato com uma ou mais experiências, permitir que, em decorrência da
ressonância das diferenças, sua experiência se expandisse. Tratava-se, portanto, de
compartilhar uma vivência com outros, semelhantes e diferentes dele mesmo, de
consentir que a verdade de sua subjetividade entrasse em contato com a verdade de
outras subjetividades de modo que as experiências, enlaçadas umas às outras pelas
semelhanças, se alimentassem mutuamente e se expandissem continuamente em
virtude de suas inextrincáveis diferenças.
Digamos que as coisas tenham se passado assim. Digamos que a questão para
Foucault tenha sido essa. Digamos ainda que, assombrado pelo sentimento de solidão
desde muito tempo — como relevou seu companheiro Daniel Defert na Cronologia
que escreveu de sua vida — o filósofo quisesse não só “se salvar”, mas favorecer a
transformação de outros por meio de uma autêntica experiência filosófica.
Então, como viabilizar isso? Como arranjar um encontro desses? Como
oportunizar o contato com outras experiências? Não sob a forma de um livro onde os
outros, leitores, são pouco mais que sujeitos passivos diante de seu pensamento. É
preciso envolver os outros na experiência e convidá-los a fazer sua própria
experiência. “Meu problema é o de fazer eu mesmo — e de convidar os outros a
fazerem comigo, por meio de um conteúdo histórico determinado — uma experiência

161
daquilo que nós somos […]”, disse Foucault numa entrevista concedida a Duccio
Trombadori em 1978.
Enfim, mas como, efetivamente, fazer isso? Diante desse problema de como
viabilizar a constituição de uma experiência plural, potencialmente coletiva, qual
estratégia adotar? Bem, sabemos que, além dessa modalidade de prática filosófica e
de escrita defendidas por Foucault, há toda uma diversidade de práticas e técnicas às
quais se atribuem a capacidade de modificação e transformação do sujeito. O valor
dessas práticas e técnicas variam. Algumas são notoriamente mais relevantes e
tendem a se manter por mais tempo no curso da história. Cada contexto histórico
estabelece, por razões que lhe são próprias, as práticas e técnicas de si que têm maior
prestígio. Ora, visto que a psicanálise — tributária da prática da confissão e situada
no prolongamento das práticas e das técnicas de si organizadas sob a égide do
“cuidado de si” (epiméleia heautoû) — ocupa um lugar de destaque entre os
dispositivos contemporâneos que proporcionam uma experiência do sujeito com a
verdade, a abordagem das condições de possibilidade da experiência psicanalítica
(isto é, a sexualidade e o desejo) mostra-se um tema adequado para um livro que tem
em vista fazer um convite a seus leitores para que participem de uma experiência.
Essa seria uma razão para que o novo livro de Foucault (que visa fazer um convite à
experiência) se aproximasse das temáticas psicanalíticas. Outra razão para isso seria
o fato de que não só o interesse de Foucault pela psicanálise é antigo como seu
conhecimento relativo à obra freudiana o permitiria trabalhar imediatamente na
confecção de um livro.
É nessas circunstâncias, e atravessado por essas questões, que Foucault
elabora seu novo livro. E é através desse livro que o filósofo convida seus
contemporâneos a uma experiência. Mas como, efetivamente, Foucault faz esse
convite? Concebendo um jogo filosófico em torno de um problema filosoficamente
polêmico, o da historicidade do desejo e, por conseguinte, da historicidade do sujeito
de desejo. Esse é, por assim dizer, o núcleo de sua estratégia. Foucault pretende,
através de A vontade de saber, fazer um convite a seus contemporâneos, pretende
convidá-los à constituição de uma experiência do pensar face a verdade do desejo por
meio de suas respectivas participações num jogo filosófico.
Como um convite à constituição de uma experiência do pensar face a verdade
do desejo, Foucault propôs um jogo filosófico que tem por tema a história do desejo

162
ou a história do sujeito de desejo. Assim, a proposta de um “jogo do desejo” pode ser
tomada como um dos fios condutores da confecção de A vontade de saber sem que,
no entanto, seja explicitada no interior do livro. No entanto, a falta de eco nos deixa
com a impressão de que a proposta de jogo — um jogo em torno da historicidade da
noção de desejo e de suas implicações — não fora levada suficientemente a sério. O
livro em si, apesar da visível inquietação de alguns, não tivera grande acolhida entre
os intelectuais, diferente de obras como A história da loucura (1961) e Vigiar e punir
(1975). Mas a que se deve o insucesso de Foucault em envolver os outros e impregná-
los do “espírito de jogo” necessário tanto para o reconhecimento do jogo em sua ideia
geral quanto para dele participar?
Não há efetivamente uma resposta para isso, mas algumas hipóteses, Por
exemplo, como Foucault já havia empregado o termo “jogo” para designar os jogos do
verdadeiro e do falso que ficaram conhecidos pela noção de “jogos de verdade”, é
possível que essa noção tenha ofuscado a proposta de jogo filosófico feita por
Foucault a seus contemporâneos. Qual a diferença entre um jogo de verdade e uma
proposta de jogo filosófico? Para ressaltar a diferença existente entre esses dois usos
do termo “jogo” — como conceito e como atividade mental — na atividade filosófica
de Foucault, vejamos primeiro em que consiste os “jogos de verdade”.
Foucault afirmou numa entrevista de 1976 que depois de Nietzsche a questão
já não é mais “qual é o caminho mais certo da verdade?”, mas sim “qual foi o caminho
fortuito da verdade?” É como se Nietzsche torcido a velha e tradicional questão relativa
à verdade e alterado radicalmente o percurso a ser tomado pelo pensamento porvir.
E Foucault, querendo dar uma resposta à questão nietzschiana, pretendeu fazer
justamente uma história do caminho fortuitamente tomado pela verdade. “História da
verdade”, “história de verdade”, “história das políticas de verdade”, “história da
vontade de verdade” e “história dos jogos de verdade” são outras expressões
empregadas por Foucault para isso. Numa palavra, um ambicioso projeto filosófico
que consistia em, identificando os diferentes regimes de verdade das sociedades,
reconstruir a verdade produzida pela história.
Desse modo, devemos entender por verdade, como disse Foucault, “o conjunto
dos procedimentos que permitem pronunciar, a cada instante e a cada um, enunciados
que serão considerados como verdadeiros. Não há, absolutamente, uma instância
suprema”. Após estudar os jogos de verdade na ordem do saber e do poder, Foucault

163
quis então estudar os jogos de verdade na relação de si para consigo e na constituição
de si mesmo como sujeito. Para isso, considera que seu domínio de referência e
campo de investigação é a “história do homem de desejo”. É nesse ponto,
especificamente, que o emprego do termo “jogo” pode confundir as coisas.

A palavra "jogo" pode induzir em erro: quando digo "jogo", me refiro a um


conjunto de regras de produção da verdade. Não um Jogo no sentido de imitar
ou de representar…; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um
certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e
das suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda.

(Foucault, [1984] 2012, p.282)

Como podemos ver, a palavra “jogo” tem nessa passagem uma função
conceitual, pois é usada como sinônimo de “jogo de verdade”. Importa a nós não tanto
a consideração dos jogos de verdade na ordem do saber e na ordem do poder, mas
a consideração dos jogos de verdade na ordem da relação do si consigo mesmo, da
“constituição de si mesmo como sujeito, considerando como domínio de referência e
campo de investigação o que se poderia chamar de ‘história do homem de desejo’”.
Assim, nega-se a conceber o sujeito como uma substância e sugere, ao invés disso,
que ele seja pensado como uma forma, como uma determinada configuração da
subjetividade que não é idêntica a si mesma, visto que o sujeito-forma não mantém
consigo próprio o mesmo tipo de relação enquanto sujeito político e enquanto sujeito
de uma sexualidade, mas varia em conformidade com as relações estabelecidas com
os diversos jogos de verdade. Em suma, há diferentes modos pelos quais os seres
humanos tornam-se sujeitos e Foucault pretendera estabelecer sua história.
No “jogo filosófico” a palavra “jogo” tem a função de mera designação de algo
que, como qualquer jogo (no sentido corrente da palavra), pode ser jogado. No jogo
filosófico proposto por Foucault todos tem a oportunidade de constituir uma
experiência modificadora de si e, com essa experiência, entrar em contato com a
verdade de uma subjetividade radicalmente outra que não o domina, mas o liberta de
si. Enfim, a noção de “jogos de verdade” se articula com a noção de “jogo filosófico”,
certamente. Digamos que é a condição de possibilidade, uma das regras de operação
deste jogo. Por isso, a noção de “jogo de verdade” se encontra em segundo plano
enquanto a noção de “jogo filosófico” se encontra em primeiro plano. Mas o que
entender por “jogo filosófico”? Primeiramente: uma atividade que respeita todas as
condições de jogo. Para isso, deve-se escolher a definição que melhor contemple as

164
intenções de jogo dos envolvidos. Por exemplo, os já citados critérios propostos por
Huizinga: (1) atividade voluntária; (2) limitada no espaço-tempo; (3) aceite de regras,
doravante, obrigatórias; (4) auto-finalizadas; (5) jubilosa tensão; (6) experiência
distinta do cotidiano.
Primeiro ponto: na medida em que consiste num convite à prática filosófica, a
proposta de jogo filosófico tanto pode ser aceita como pode ser recusada. Assim, jogar
o jogo consiste numa atividade voluntária, numa ação livre. Apesar de ao longo de sua
trajetória filosófica Foucault ter mudado de rota muitas vezes, há alguns traços que
são, senão permanentes, comuns a vários períodos de seu pensamento, de modo que
podemos afirmar que, independentemente do período, nada nos parece mais distante
das intenções de Foucault do que a ideia de constranger alguém a fazer o que quer
que seja.
Segundo ponto: quanto à limitação do jogo no espaço-tempo, Huizinga
considera que ela tanto pode ser física quanto imaginária. No caso do jogo filosófico
de Foucault, podemos concebê-lo como um jogo que se dá num espaço imaginário
de natureza teórica e num tempo relativo mas limitável que é o da duração de um
diálogo filosófico. O diálogo de Foucault com Derrida em torno do cogito cartesiano é
um exemplo disso.
Terceiro ponto: quanto às regras do jogo, aceitas e obrigatórias, consistem na
proposição de narrativas teóricas acerca da historicidade do desejo. Cada
participante, individual ou coletivo, deve propor sua própria narrativa sobre a história
do desejo sob uma perspectiva teórica de sua escolha. Com efeito, Foucault propôs
através do quadro teórico das práticas e técnicas de si uma história-crítica da noção
de desejo denominada genealogia do homem de desejo.
Quarto ponto: o jogo filosófico de Foucault tem um fim em si mesmo na mesma
medida em que a filosofia tem um fim em si mesma. Que outras consequências
decorram do jogo ou da prática filosófica não implica que outros fins lhes devam ser
atribuídos.
Quinto ponto: uma jubilosa tensão característica dos jogos também está
presente na experiência daqueles que jogam um jogo filosófico. Essa tensão se faz
notar, por exemplo, nos momentos em que ocorre uma inspiração, uma nova
percepção, uma nova visão. Ela está presente na centelha que se acende no espírito
quando iluminado pelo pensamento que promove a compreensão de algo. Por fim, ela

165
também está presente no esforço que acompanha a elaboração e organização de
ideias e as expectativas que inadvertidamente se formam em relação às respostas por
vir.
Sexto ponto: como em outros jogos, a experiência do jogo filosófico de Foucault
consiste numa experiência distinta daquela que temos da realidade cotidiana.
Enquanto a experiência da realidade cotidiana envolve a partilha do senso comum
com os demais sujeitos e a vivência coparticipativa nos acontecimentos do dia a dia,
a experiência do jogo filosófico de Foucault remete o sujeito para uma realidade
alternativa, com outra ordem e baseada em outra noção de tempo e espaço. A
confecção e colocação em discurso dessa realidade do jogo filosófico decorrem
explicitamente de uma atividade mental de caráter teórico-imaginativo.
Um jogo filosófico deve transcorrer em condições projetadas para o exercício
do pensamento de si sobre si mesmo. Mas, como acabamos de ver, as condições
para jogar o jogo filosófico de Foucault são relativamente simples. Essa tendência a
simplicidade talvez tenha uma motivação prática. Lembremos da passagem na qual
Foucault menciona (por ocasião de explicitar suas intenções em A Vontade de saber
e a respeito de seus trabalhos anteriores) que até aquele momento “tinha empacotado
as coisas, não tinha poupado nenhuma citação, nenhuma referência, e havia proposto
problemas um pouco complicados, que ficavam a maior parte do tempo sem resposta”.
Com efeito, parece que Michel Foucault foi o primeiro a jogar com as
possibilidades interpretativas da história do homem de desejo. E dessa primeira
experiência de jogo filosófico ou de prática filosófica sob a forma de jogo, relata
Foucault:

No início, o sexo era um dado prévio, e a sexualidade aparecia como uma


espécie de formação, ao mesmo tempo discursiva e institucional, vindo
comunicar-se com o sexo, recobri-lo e, no limite, ocultá-lo. Era essa a primeira
linha. E, depois, eu mostrei a pessoas o manuscrito, e eu percebia que não
era satisfatório. Então, mudei a coisa. Era um jogo, porque eu não estava
muito seguro…

(Foucault, [1977] 2014, p.59, grifo nosso)

Acompanhando o relato de Foucault vemos que, primeiro, este partira de uma


determinada concepção de sexo (como dado prévio) e de uma determinada
concepção de sexualidade (como formação discursivo institucional). Concebendo-as
dessa maneira, uma primeira linha interpretativa lhe ocorreu e se impôs fazendo com
que a sexualidade recobrisse o sexo. Num segundo momento, o autor mostra a outras
166
pessoas seu manuscrito, isto é, coloca para a apreciação de outros sua narrativa
ensaística a respeito da relação entre sexo e sexualidade. Por fim, num terceiro
momento (após a consideração de seu pensamento por parte de outros), resolve
mudar a linha interpretativa, afinal, tratava-se de um jogo onde a experimentação de
diferentes linhas interpretativas e confecções de novas narrativas são não só válidas
como recomendadas.

Mas eu me dizia: no fundo, o sexo, que parece ser uma instância que tem
suas leis, suas pressões, a partir do que se definem tanto o sexo masculino
quanto o sexo feminino, não seria, pelo contrário, algo que teria sido
produzido pelo dispositivo de sexualidade? Aquilo a que se aplicou, de início,
o discurso de sexualidade não era o sexo, eram o corpo, os órgãos sexuais,
os prazeres, as relações de aliança, as relações interindividuais… […] um
conjunto heterogêneo, que, finalmente, foi recoberto pelo dispositivo de
sexualidade, o qual produziu, em um dado momento, como fecho de abóbada
de seu próprio discurso e, talvez, de seu próprio funcionamento, a ideia do
sexo. […] Vemos aparecer o sexo, parece-me, no decorrer do século XIX.

(Foucault, [1977] 2014, p.59-60, grifo nosso)

Notemos nessa passagem que, fazendo girar a mesa das possíveis linhas
interpretativas, Foucault passa a testar uma hipótese contrária à primeira: “eu me
dizia: no fundo, o sexo […] não seria, pelo contrário, algo que teria sido produzido pelo
dispositivo de sexualidade?”. Essas inversões de questões amplamente aceitas,
esses gestos pelos quais desloca-se de uma perspectiva, distancia-se de uma linha
interpretativa e se aproxima de outra, embora típicos do pensamento foucaultiano,
podem ser encarados também como uma estratégia adotada para esse jogo das
narrativas. E falando em estratégias, é o psicanalista Alain Grosrichard quem nessa
entrevista questiona Foucault a respeito da mudança de seus conceitos operadores
de análise:

Você escolhe seus objetos, a maneira de abordá-los, os conceitos para


compreendê-los em função de novos objetivos, que seriam hoje das lutas a
empreender, um mundo a transformar, mais do que a interpretar? Digo isso
para que as questões que vamos lhe propor não se afastem do que você quis
fazer.

(Grosrichard In: Foucault, [1977] 2014, p.49-50)

Ao que responde Foucault: “Veja que talvez seja bom que elas se afastem
completamente: isso provaria que meu propósito está distante”. Tais palavras indicam
que desejava chamar a atenção da comunidade psicanalítica, se fazer entender e,
efetivamente, ter a oportunidade de discutir suas hipóteses. No entanto, as regras do
167
jogo parecem escapar por entre os dedos de seus interlocutores. É Jacques Alain
Miller quem, entre os psicanalistas presentes, mais se aproximou de captar o espírito
da coisa: “Seu livro anterior tratava da delinquência. A sexualidade é, aparentemente,
um objeto de tipo diferente. A menos que não seja mais divertido mostrar que é igual?
O que você prefere?”, ao que Foucault responde:

Eu diria: tentemos ver se não seria igual. É a aposta do jogo, e se há seis


volumes, é que é um jogo! Esse livro é o único que eu escrevi sem saber
antes qual seria o título dele. E, até o último momento, eu não encontrei. A
História da Sexualidade é por falta de melhor. O primeiro título […] era Sexo
e Verdade. […] mas, enfim, isso era, apesar de tudo, meu problema: o que
aconteceu no Ocidente para que a questão da verdade fosse colocada a
propósito do prazer sexual?

(Foucault, [1977] 2014, p.59)

Ora, são mesmo, a delinquência e a sexualidade, objetos de tipo diferente?


“Tentemos ver se não seria igual”. Já tem muita gente estudando o óbvio, muitos
pesquisadores guiados por questões amplamente aceitas (de modo que nunca
descobrem algo sozinhos) e tantos outros colados numa versão da verdade; por que,
então, não buscar ver as coisas por outro ângulo, colocar relativamente a elas outras
questões ou, de todo modo, formulá-las de outra forma? Vai que descobrimos algo
diferente; algo que só descobriríamos ao colocar, precisamente, a questão daquela
maneira. Vai que, nesse encontro com o diferente, nos transformemos. O que mais
continuamente se espera da filosofia, da experiência de filosofar, do que pensar
diferentemente do que se pensa? Busca-se com essa “aposta do jogo”, aposta numa
linha interpretativa, uma chance de encontrar-se com o diferente.
Seguir uma metodologia é, sem dúvida, importante para a inteligibilidade de uma
problemática e para a transmissão do saber. Uma metodologia deve orientar o projeto
de pesquisa, conduzir a abordagem do problema, regular a formulação de questões e
direcionar à possíveis respostas. No entanto, mudanças metodológicas na prática
filosófica não são incomuns nem necessariamente negativas. Pelo contrário, ocorrem
com frequência em alguns itinerários filosóficos como sinal de uma permanente crítica
de si sobre si mesmo. Desse modo, visando se adaptar às condições de investigação
do objeto e a este proporcionar maior visibilidade, as metodologias empregadas por
Foucault em sua prática filosófica sofreram várias modificações, de pequenos ajustes
à drásticas alterações. Por exemplo, de um ponto de vista metodológico, observamos

168
uma cisão entre o primeiro e os demais volumes da História da sexualidade, embora
tanto num caso como no outro se trate do método genealógico.
Sobre o primeiro volume da História da sexualidade I: A Vontade de saber, disse
Foucault: “Esse livro é o único que eu escrevi sem saber antes qual seria o título dele”.
Por que será? Não teria ele definido previamente a metodologia a seguir, o problema
a ser abordado e questões a serem respondidas? Independentemente disso, uma vez
concebido como um jogo filosófico esse livro não se prende a uma metodologia e
ensaia um leque de possibilidades interpretativas acerca da sexualidade, do sexo e
do desejo. O jogo envolve, portanto, possíveis mudanças de estratégia, adoções de
novas linhas interpretativas e o estabelecimento de outras formas de narrativa, de
modo que escrever uma série de livros permitiria o autor manter-se numa contínua
metamorfose de seu pensamento. Foucault afirmou que, em todos os seus trabalhos,
a imersão na experiência era tal que antes de começar ele não sabia onde chegaria
nem o que teria a dizer, mas que no fim dela sempre saia transformado.
Voltemos mais uma vez à entrevista com os psicanalistas em 1977. Sabemos
o quão importante é para Foucault não exatamente a coisa, mas a história da coisa
como questão, isto é, da coisa enquanto objeto de reflexão, enquanto problema para
o pensamento. É assim que, para ele, só somos sujeitos de uma sexualidade a partir
do século XVIII e só temos um sexo a partir do século XIX. Antes disso, segundo suas
análises, só podemos mencionar dois outros tipos de experiência na história do
Ocidente, a experiência pagã dos afrodisia e (cuja tradução aproximada seria “atos de
Afrodite”) e a experiência cristã carne (articulada originalmente por Tertuliano entre o
século II e III). “Tertuliano reuniu, no interior de um discurso teórico coerente, duas
coisas fundamentais: o essencial dos imperativos cristãos — a didakhé — e os
princípios a partir dos quais se podia escapar do dualismo dos gnósticos”.259
Acusado por J.-A. Miller de procurar justamente “quais operadores vão lhe
permitir apagar o corte que se coloca para Freud”, Foucault frisa que as continuidades
ou descontinuidades são sempre um ponto de partida relativo.

Eu direi que, para mim, a história dos cortes e dos não cortes é sempre, ao
mesmo tempo, um ponto de partida e uma coisa relativa. […] Meu problema
era saber quais eram os grupos de transformações necessários e suficientes
no interior do próprio regime dos discursos para que se pudesse empregar
aquelas palavras melhor que estas, tal tipo de análise melhor que outro, que
se pudesse olhar as coisas sob tal ângulo e não sob outro. Aqui, por razões

259 Foucault, [1977] 2014, p.60.


169
que são de conjuntura, já que todo mundo insiste no corte, eu penso:
tentemos girar o cenário, e partamos de algo que é tão constatável quanto o
corte, com a condição de pegar outras referências.

(Foucault, [1977] 2014, p.60-61, grifo nosso)

Ao se colocar o problema de quais eram as transformações necessárias e


suficientes “para que se pudesse empregar aquelas palavras melhor que estas, tal
tipo de análise melhor que outro [e] olhar as coisas sob tal ângulo e não sob outro”,
Foucault parece a um só tempo pontuar sua intenção tática de tornar visível o não-
visto e colocar a questão das narrativas possíveis, não como ficções, mas como
discursos fabricados capazes de reivindicar o estatuto de verdade. Se formos capazes
de tornar visível e dizer, o que será disso sobre o qual dizemos tais coisas? “Aqui, […]
já que todo mundo insiste no corte, […] tentemos girar o cenário”. Este cenário que é
preciso girar, ou ao menos tentar girar, qual é? Trata-se, todavia, de fazê-lo girar para
enxergar outras possibilidades interpretativas, outras leituras possíveis, outras
narrativas verossímeis. Mas que cenário é esse? É claro que esse cenário do qual é
preciso se distanciar é aquele da tradicional história da psicanálise baseada na noção
de repressão ou recalque (Verdrängung). De modo que, se assim procedermos, logo
poderemos partir de algo “tão constatável quanto o corte, com a condição de pegar
outras referências.” É possível, portanto, constatar outras descontinuidades ou notar
algo como uma descontinuidade, ou mesmo operar outros cortes desde que
escolhamos outras referências. Não quaisquer referências, é verdade, mas
referências cuja combinação evidencie, em relação à questão que nos colocamos, um
ou mais pontos de mudança, de irrupção do diferente.
O que importa demonstrar com essa mudança de cenário (a princípio da
Modernidade para a Antiguidade) e de referências é que: “Vê-se aparecer essa
formidável mecânica, maquinaria de confissão, na qual, com efeito, a psicanálise e
Freud aparecem como um dos episódios.”, mas não mais como o ponto de partida,
não mais como uma prática absolutamente inovadora e sem precedentes. Pois bem,
“só o fato de eu ter jogado esse jogo exclui, sem dúvida, para mim, que Freud apareça
como o corte radical a partir do que todo o resto deve ser repensado.”

Farei, provavelmente, evidenciar que, por volta do século XVIII, se


estabelece, por razões econômicas, históricas, um dispositivo geral no qual
Freud terá seu lugar. E mostrarei, sem dúvida, que Freud revirou como uma
luva a teoria da degenerescência, o que não é a maneira como se coloca em
geral o corte freudiano como acontecimento de cientificidade.

170
(Foucault, [1977] 2014, p.61)

Michel Foucault não se dava ao trabalho de analisar coisas que não lhe
interessasse, não colocava questões ao acaso ou formulava problemas inutilmente —
ou nisso não se demorava. Dedicou-se ao estudo dos manicômios e das prisões mais
do que ao estudo da literatura, e isso por uma razão. Assim, o interesse de Foucault
nos objetos de estudo parece permeado por certo pragmatismo. O que sustenta,
portanto, o eu interesse de Foucault pela psicanálise — particularmente a freudiana e
a lacaniana — ou pelo diálogo com a psicanálise, como testemunham As palavras e
as coisas (1956), a História da sexualidade (1976-2018) e A hermenêutica do sujeito
(1982)? Foucault problematiza e desconstrói parte dos pressupostos históricos da
psicanálise e questiona sua concepção de desejo. Mas com que propósito? Duas são
as razões elencadas por Foucault na entrevista com os psicanalistas. A primeira:
demonstrar que “o importante não são Os três ensaios sobre a sexualidade, mas é a
Traumdeutung”. Em termos lacanianos, complementa J.-A. Miller: “Não é a teoria do
desenvolvimento, mas a lógica do significante”. Foucault: “Não é a teoria do
desenvolvimento, não é o segredo sexual por trás das neuroses ou das psicoses, é
uma lógica do inconsciente…” A outra razão é a pertinência de se fazer aparecer
melhor as diferenças entre a prática da confissão por parte dos confessores e a prática
psicanalítica de Freud.

[…] a grande originalidade de Freud não foi de descobrir a sexualidade. Ela


estava lá, a sexualidade. Charcot já falava dela. Mas sua originalidade foi de
tomar isso ao pé da letra e edificar sobre isso a Traumdeutung, que é
diferente da etiologia sexual das neuroses. Eu, sendo muito pretencioso, diria
que faço um pouco igual. Parto de um dispositivo de sexualidade, dado
histórico fundamental, e a partir do qual não se pode não falar.

(Foucault, [1977] 2014, p.67)

Mas o que motiva a eleição da psicanálise como interlocutor privilegiado de


uma história da sexualidade? A história da sexualidade, como a entende Foucault —
isto é, ao mesmo tempo como questão, como campo de problematização e como
experiência — culmina com a psicanálise? “Seguramente!”, responde o autor da
História da Sexualidade. “Atinge-se aí, na história dos procedimentos que colocam em
relação ao sexo e a verdade, um ponto culminante”.

171
2. A fabricação do cenário do jogo

Se após a experiência de leitura da História da sexualidade, dos exercícios


reflexivos e laboratórios de experimentação filosófica empreendidos por Michel
Foucault em seus cursos hesitamos em afirmar isso ou aquilo acerca da sexualidade
e das experiências possíveis ao sujeito, não é senão porque, deslocando-nos de um
saber fixo, dogmático, limitado, pensamos agora em nível das possibilidades. Não
necessitamos senão de um pouco de familiaridade com as temáticas e o tipo de
análises desenvolvidas na História da Sexualidade para perceber que — graças à sua
arquitetura, isto é, à maneira que os textos nela foram dispostos — não só é algo
praticável como é mesmo recomendado abordá-la de ângulos distintos, imputar-lhe
outras finalidades e manejá-la de maneira tal que se torne visível o que até então não
era.
Mas além dessa estrutura sobre a qual se distribui os textos — que, se à parte
dos demais, são mesmo ensaios independentes —, há certa disposição da escrita,
indiscutivelmente mais plana e fluida, o que, sem dúvida, favorece o manejo das
problematizações, seu aproveitamento e alinhamento a novos objetivos que, não
sendo essencialmente estranhos à aura da obra, dela só emanava como potencial
invisível tornado visível pelo pensamento desse outro, interlocutor da obra e, com
efeito, coautor de sua aura.
E assim como as noções e conceitos foucaultianos são ferramentas filosóficas,
operadores do pensamento e articuladores do discurso, as análises desenvolvidas na
maior parte dessa história da sexualidade são como o mapeamento, por parte do
pensamento enquanto atividade reflexiva, de certas temáticas, senão desconhecidas,
ainda não vistas de tal ângulo. Ao abordar um tema, por exemplo, ocorre da análise
inadvertidamente se deter num ponto, não se sabe se importante ou não, mas
simplesmente por considerá-lo obscuro e achar que, senão tem muito a ganhar,
tampouco tem a perder em lhe lançar um pouco mais de luz. Há também as análises
de questões que apesar de não formalmente obscuras, são de uma opacidade tal que
tampouco permitem que se enxergue através delas. À vista disso formam-se algumas
problematizações, particularmente, que parecem a essas questões se voltar como que
por intuição, e seja por se acumularem ou por se intensificarem, ocorre de vermos,

172
daquele ponto de ínfima significação, desdobrar todo um território prenhe de questões
até então inauditas. Não raras vezes ao longo dessa última genealogia somos
testemunhas desses acontecimentos que, não obstante emanem do texto, são da
ordem do pensamento e, desta forma, ampliam nosso mundo pensável.
Com efeito, um dos aspectos de sua estratégia global foi o desenvolvimento
desse campo de atuação próprio com territórios inexplorados e operadores de análise
inéditos que lhe permitissem não só o desenvolvimento de uma pesquisa original
como também, ou sobretudo, um trabalho sobre si mesmo, uma ascética de si.
Quanto às táticas assumidas no jogo do desejo, o que estava em questão era
confeccionar a “melhor narrativa” sobre a constituição do homem de desejo. Se a
hipótese mais interessante, desafiadora, e possivelmente incitadora de debates e
produção de narrativas fosse outra, Foucault não a teria elegido como sendo a melhor
estratégia (no sentido de linha de ações) para suas próximas jogadas? No entanto,
das alternativas que tinha a sua disposição, Foucault seguiu a estratégia que podemos
chamar: estratégia da historicidade do homem de desejo ou, ainda, da narrativa
histórico-crítica do homem de desejo.
No entanto, de um ponto de vista estratégico o projeto de uma história da
sexualidade não se restringe a apresentar um conjunto de estudos sob uma
metodologia de pesquisa específica nem a reunir uma diversidade de análises por
meio de um vago crivo temático. A História da sexualidade seria antes o título genérico
de um composto de atos filosóficos que tenciona colocar em cheque a noção de
desejo e de sujeito desejante — tema teórico aparentemente herdado, no século XIX
e XX, de uma longa tradição cristã.
Os quatro livros formariam, assim, uma espécie de bloco de armas de assédio
construídas com o propósito de abalar ou, pelo menos, desestabilizar as fortificações
teóricas do homem de desejo. Na esteira das metáforas de guerra, A vontade de saber
corresponderia a uma espécie de catapulta, tanto por sua força quanto por sua
imprecisão, enquanto O uso dos prazeres, O cuidado de si e As confissões da carne,
cada um a seu modo e em diferentes níveis, seriam responsáveis pelos golpes de
aríete. Ademais, outros textos ainda podem ser ligados à estratégia de desbastamento
da concepção de sexualidade como uma invariante. E é antes de tudo contra a
concepção de sexualidade como uma invariante que Foucault recusa a hipótese

173
repressiva — que subentende uma forma geral de interdição e diferentes formas de
atuação correlacionadas às formas historicamente singulares da sexualidade.
É verdade que do primeiro ao segundo volume há uma ruptura tão significativa
que, sob uma perspectiva temático metodológica, seria possível encarar A vontade de
saber (1976) como um livro independente, de modo que em vez de uma tetralogia
sobre a sexualidade haveria, a começar pelo O uso dos prazeres (1984), uma trilogia
sobre a ética sexual na Antiguidade ocidental. Por outro lado, num panorama dos
estudos sobre a sexualidade que não levasse em conta a heterogeneidade das
formas, vários outros trabalhos poderiam ser incorporados.
Na já mencionada introdução de O uso dos prazeres, propícia para a
compreensão do que se passou entre o primeiro e este segundo livro, encontramos a
definição de experiência como a “correlação, numa cultura, entre campos de saber,
tipos de normatividade e formas de subjetividade”. É segundo essa caracterização
geral da experiência que devemos conceber tanto a experiência da sexualidade nas
sociedades ocidentais modernas, quanto a experiência cristã da carne ao longo da
Idade Média e a experiência dos aphrodisia na Antiguidade.
Desse modo, a sexualidade é constituída, enquanto experiência histórica
singular, pela “formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que
regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se
reconhecer como sujeitos dessa sexualidade”. Porém, para analisar a formação e o
desenvolvimento da experiência da sexualidade a partir do século XVIII, de modo que
permitisse compreender como nesta se incrustara o sujeito moderno, seria necessário
fazer um recuo até a experiência cristã da carne, articulada inicialmente no século IV,
e desta empreender um trabalho histórico e crítico que permitisse expor a maneira
pela qual, através dos séculos, o homem ocidental veio a se reconhecer como sujeito
de desejo. Isto é, seria preciso fazer uma genealogia do homem de desejo.
Em síntese, de que maneira se deu a transição da experiência dos aphrodisia,
própria do homem antigo, para a experiência cristã da carne? O que se passou nos
primeiros séculos de nossa era, no bojo do cristianismo primitivo, que viabilizara a
articulação do desejo, prelúdio histórico do homem de desejo?
Entretanto, no decurso de seus últimos anos de ensino no College de France,
naquele meio-tempo de silêncio editorial entre A vontade de saber e os dois volumes
seguintes da História da Sexualidade, Foucault não fizera mistério acerca das

174
principais hipóteses que orientaram esse projeto. Em relação a como o homem
ocidental veio a se reconhecer como sujeito de desejo, por exemplo, comunicou em
várias ocasiões sua hipótese — causando, por sinal, reações controversas —
segundo a qual os indivíduos teriam sido levados a empreender uma espécie de
hermenêutica do desejo à quais preocupações com o comportamento sexual teriam
dado ensejo.
Não uma, mas um feixe de hipóteses guia a genealogia do sujeito de desejo
empreendida por Foucault. Do ponto de vista da analítica da sexualidade, a primeira
dessas hipóteses seria aquela segunda a qual a sexualidade não é um dado natural,
uma invariante natural, mas uma disposição subjetiva historicamente determinada. A
segunda, decorrente da anterior, seria, por conseguinte, aquela segundo a qual o
desejo não é uma invariante natural sujeita ao mecanismo de repressão ou recalque,
mas uma força cuja forma resulta da interiorização de um conjunto de forças atuantes
sobre o indivíduo. No entanto, e esse é um ponto que convém reter, nada está mais
distante dos propósitos desse filósofo do que fazer uma teoria da sexualidade ou do
desejo. Assim como não pretende uma teoria do sujeito, não pretende uma da
sexualidade ou do desejo. Ainda que, de modo geral, depreenda-se de suas
considerações acerca da historicidade do desejo uma concepção que o torna correlato
a uma concepção de sujeito segundo a qual este consiste numa forma que nem
sempre é idêntica a si mesma. A estrutura do desejo, por mais sistemática que se
apresente em certas teorias contemporâneas — destacadamente na psicanálise
lacaniana —, seria de natureza fantasmática. As grandes formas tomadas pelo desejo
como correlatos e constitutivos das experiências de si (afrodisia, carne, sexualidade)
estão sujeitas aos acontecimentos históricos.
Embora Foucault tenha dito que não pretendia fazer uma história das
sucessivas concepções do desejo, ele o articulou de três formas diferentes. A primeira
forma do desejo remete à noção de epithumia do período clássico grego. Tanto em
Platão quanto em Aristóteles o desejo (epithumia) aparece como um dos elementos
do sólido conjunto dos aphrodisia. Com a expressão “atos de Afrodite”, se quisermos
traduzir, nos referimos a todo um conjunto de atos, desejos e prazeres sexuais.
Entretanto, foi ao mesmo tempo elidindo o elemento do desejo (epithumia) do conjunto
dos aphrodisia e empreendendo uma hermenêutica do sujeito através de várias
técnicas de si que se formou outro desejo chamado concupiscência, fundamental para

175
a constituição da experiência da carne, distinta da antiga experiência dos aphrodisia.
O operador dessa mudança foi Tertuliano nos séculos II-III. Bem mais tarde, em
meados do século XVIII, outra grande mudança ocorreria. Um conjunto de
procedimentos e práticas eclesiásticas, com técnicas de exame exaustivo, produziu
uma série de reações sociais anômalas ou efeitos paroxísticos no corpo social antes
da Igreja ceder parte de seu poder às outras instituições, em especial, à medicina. O
amplo interesse dessas instituições pela concupiscência, pelos corpos e pelas
sensações que neles se experimentava foi o que fez aparecer, em meados do século
XVIII, o corpo de desejo e de prazer como questão.
Seria esse o ponto decisivo, o ponto de passagem da experiência cristã da
carne para a experiência da sexualidade? Foucault, na naquela entrevista com os
psicanalistas, diz não haver uma sexualidade antes do século XIX.
O que se pretende com a expressão “uso dos prazeres” (chrēsis aphrodisiōn)?
Trata-se, basicamente, de uma dinâmica, e de uma dinâmica estabelecida pela
natureza.

Essa dinâmica é definida pelo movimento que liga entre si os aphrodisia, pelo
prazer que lhes é associado e pelo desejo que suscitam. A atração exercida
pelo prazer e a força do desejo que tende para ele constituem uma unidade
sólida com o próprio ato dos aphrodisia. Será, em seguida, um dos traços
fundamentais da ética da carne e da concepção da sexualidade, a
dissociação — pelo menos parcial — desse conjunto.

(Foucault, [1984] 1998, p.41)

Por isso Foucault diz que a ontologia a que se refere essa ética dos aphrodisia
não é, pelo menos em sua forma geral, uma ontologia da falta e do desejo, mas sim a
de uma força que liga entre si atos, prazeres e desejos. A referida dissociação desses
elementos será marcada por uma elisão do elemento “prazer”. Uma das
consequências dessa operação é a de que a busca pela volúpia como fim da prática
sexual passa a ser, portanto, objeto de censura. Mas há também uma desvalorização
teórica do prazer expressa pela extrema dificuldade em situá-lo na concepção da
sexualidade. Entretanto, enquanto o prazer está à míngua, o desejo, por seu turno,
cada vez mais investido de interesse, é hipertrofiado, mas de modo que nele “se verá
a marca originária da natureza decaída ou da estrutura própria ao ser humano”.
Ainda que não tome a mesma forma em ambos os gêneros, a experiência da
“carne” será considerada como uma experiência comum aos homens e às mulheres.

176
A experiência da “sexualidade”, por sua vez, serpa marcada pela cesura entre
sexualidade masculina e feminina.
Antes do lançamento do último volume da História da sexualidade em 2018,
num artigo que pretende mostrar de que maneira Foucault chega a afirmar que a
relação entre sujeito e verdade na experiência dos aphrodisia é da ordem da
incompatibilidade, César Candiotto propôs, a partir da leitura do curso de 1981,
Subjetividade e verdade, que a emergência do sujeito de desejo podia ser identificada
no monaquismo cristão dos séculos IV e V. Ou seja, não teria sido na pederastia, na
erótica masculina grega que surgira a figura do homem de desejo tal como a
conhecemos. Também não teria sido no matrimônio romano, na própria dinâmica
reconfigurada do casamento dos séculos I e II sob Império que ela surgira.
Para apreender o advento do desejo, o momento da formação da figura do
homem de desejo, devemos nos ater, a dois processos — primeiro: “a subjetivação
dos afrodisia, que resultou em uma relação constante do sujeito com sua experiência
sexual”; e — segundo: “a objetivação do desejo, no sentido que ele deixa de ser
somente um elemento intempestivo e incontrolável situado ao lado da natureza,
passando a ser algo problemático e objeto de conhecimento”.
Porém, com o lançamento das Confissões da carne, vemos Foucault situar o
ponto de articulação e inscrição discursiva do desejo como desejo de concupiscência
em Tertuliano. A partir dessa inscrição conceitual da concupiscência como nódoa
permanente decorrente da queda original que a questão do sujeito de desejo teria
percorrido o pensamento ocidental de Tertuliano à Freud, com uma importante
inflexão no pensamento de Agostinho que elaborara a noção de libido, correlata à
experiência da carne no domínio da experiência sexual.
Mas em que consiste, afinal, essa experiência da carne? A experiência da carne
tem algo em comum com a experiência da sexualidade. Em O uso dos prazeres
destaca-se a desconfiança:

Um dos traços característicos da experiência cristã da “carne”, e


posteriormente a da “sexualidade”, será a de que o sujeito é levado nessas
experiências a desconfiar frequentemente, e a reconhecer de longe, as
manifestações de um poder surdo, ágil e temível que é tanto mais necessário
decifrar quanto é capaz de se emboscar sob outras formas que não a dos
atos sexuais. Uma tal suspeita não habita a experiência dos aphrodisia.

(Foucault, [1984] 1998, p.40)

177
3. O padre e o psicanalista

E se pudéssemos negociar com o tempo, com o espaço e com qualquer outra


dimensão capaz de nos situar num pensamento? E se num pensamento nos
movêssemos como em terra firme? E se buscando o ponto mais alto déssemos sorte
e encontrássemos um farol, o que iluminaríamos? Uma vez que pudéssemos nos
situar no cume do pensamento tardio de Michel Foucault e olhar para baixo — não de
esguelha ou tendo um vislumbre, mas, pelo contrário, demorada e fixamente —, o que
seríamos capazes de ver… Com efeito, não nos referimos aqui aos títulos dos seus
trabalhos nem aos elementos sutis de seu estilo, mas às estratégias visíveis que, de
tão vastas, ultrapassam nosso campo de visão; aos gestos precisos dos
deslocamentos que, doutra maneira, não permitiriam ver; aos avanços e recuos táticos
da exposição que, num movimento peristáltico, engendra-nos possíveis e enxerta-nos
questões.
Como já mencionado, julgamos que Foucault pretendeu com o primeiro livro da
História da sexualidade lançar um jogo relativo ao conceito e a experiência do desejo
no contexto geral da sexualidade. E há quem enxergue nessa história uma pré-história
da psicanálise. Ainda que visasse suscitar alguma reação entre os psicanalistas, e os
livros tenham trabalhado a temática do desejo, desenvolvido a tese de sua
historicidade, seu projeto não se restringiria de maneira nenhuma a isso. Uma boa
analogia para essa situação é a cena da minissérie The Queen’s Gambit, de Scott
Frank, em que a protagonista Beth (órfã e prodígio no xadrez) joga simultaneamente
com vários enxadristas sem se perder entre as próprias estratégias ou abandonar
qualquer uma das mesas.
No entanto, no que havia de mais relevante para os desenvolvimentos porvir,
sobretudo a partir dos anos 80, era o reconhecimento de que, no interior dessa
espécie de campo de liberdade, percebe-se “um procedimento perfeitamente
codificado, perfeitamente exigente, altamente institucionalizado, da revelação da
sexualidade, que era a confissão sacramental”. No que há de apontamentos críticos,
menciona uma série contemporânea de procedimentos institucionalizados de
revelação da sexualidade:

Se as pessoas vão tanto ao psiquiatra, ao psicanalista, ao sexólogo, para


enunciar a questão da sua sexualidade, revelar o que é sua sexualidade, é
178
porque há em toda parte, na propaganda, nos livros, nos romances, no
cinema, na pornografia ambiente, todos os mecanismos de apelo que
remetem o indivíduo, desse enunciado cotidiano da sexualidade, à revelação
institucional e custosa da sua sexualidade ao psiquiatra, ao psicanalista e ao
sexólogo.

(Foucault, [1975] 2010, p.146)

Nesse entremeio, algumas questões lhe cercavam: “Quando houve censura da


sexualidade? Desde quando se é obrigado a calar a sexualidade? A partir de que
momento e em que condições pôde-se começar a falar de sexualidade?” É como
resposta a elas que Foucault afirma pela primeira vez a ideia de fazer uma história da
sexualidade — nessa ocasião formulada em termos de uma história da revelação da
sexualidade. E até quanto ao panorama que lhe serviria de fio condutor estava
convicto: o ritual da penitência.
A exposição dessa aula se apoia em documentos, artigos de especialistas e,
em particular, trabalhos de L. Habert, autor conhecido por seu rigorismo e implicações
para a história religiosa francesa do século XVII-XVIII. Importava descrever dois
momentos distintos, mostrar o que estava em jogo na transição de um momento a
outro da pastoral cristã. Tratava-se de opor um modelo de penitência cujo mecanismo
de remissão dos pecados era uma tarifação quase jurídica a outro modelo que se
formaria em torno da revelação.
Sabemos que nas exposições foucaultianas os dados históricos são quase
sempre relevantes e às vezes cruciais para identificar, demarcar e compreender as
consequências dos deslocamentos que separam e distinguem um estado de coisas
de outro. Assim, o que caracteriza o primeiro momento do ritual da penitência nessa
exposição é o fato de que a obrigação de se confessar regularmente, ao menos uma
vez por ano, se tornou obrigatória no século XIII. Em segundo lugar, havia também a
obrigação continuidade do discurso (todos os pecados deveriam ser ditos, pelo menos
desde a última confissão). Em terceiro lugar, obrigação de exaustividade. Relatar
todos os pecados, pois ao padre que caberia distinguir o que seria venial do que seria
mortal. Em síntese, obrigação de regularidade, de continuidade e de exaustividade.
Havia normas e, digamos, táticas institucionais que contribuíam para o
cumprimento dessas obrigações, tais como a necessidade dos fiéis se confessarem
com o mesmo padre. Esse hábito levava a um vínculo que conduzia ao fortalecimento
da influência do padre sobre o fiel. Era também várias vezes recomendado e prescrito
aos fiéis (de modo a formar outro ciclo mais amplo) fazerem confissões gerais onde
179
deviam retomar a confissão de todos os pecados já cometidos em sua vida para serem
mais uma vez remidos. Logo, quem se submetia não uma vez, mas várias vezes na
vida a confissões gerais, estava garantida a exaustividade.
Temos que entender: uma vez que, a partir do século XII-XIII, foi atribuído ao
padre o poder da absolvição, isto é, de conceder livremente uma absolvição que daria
ensejo à operação divina de remissão dos pecados, ele fora também afixado ao
procedimento de revelação das faltas (disclosure peccatorum). A revelação da
verdade do sujeito, neste caso, dos pecados do fiel — por ele mesmo ao confessor,
isto é, ao padre designado para ouvir confissões — ocupa um lugar central no
mecanismo de remissão dos pecados. Nessa conjuntura da pastoral cristã é
imperativo revelar e qualquer omissão põe em risco a absolvição. E não se deve
revelar apenas os pecados graves, mas todos eles e até a exaustão. Correlativamente
a isso, houve um sólido crescimento do poder pastoral através da figura do padre e
de seu saber técnico relativo aos procedimentos de revelação, de manifestação ou
extirpação da verdade do sujeito.

Formou-se assim, em torno da revelação, como peça central da penitência,


todo um mecanismo em que o poder e o saber do padre e da Igreja estão
implicados. É essa a economia central e geral da penitência, tal como é
estabelecida em meados da Idade Média […].

(Foucault, [1975], 2010, p.151)

Hoje em dia há quem reconheça na prática da confissão penitencial


(poenitentiae confessionem) uma prática antecessora da psicanálise. Essa linha de
entendimento recusa-se a reconhecer, pelo menos quanto à prática, que um corte
radical tenha sido empreendido por Freud.
Vejamos essa questão um pouco mais de perto. Comparemos, por exemplo,
os requisitos para que um padre fosse designado confessor e os requisitos para que
um terapeuta seja reconhecido como psicanalista.

Primeiro, é necessária toda uma qualificação do próprio confessor. O


confessor deve possuir certo número de virtudes que lhe são próprias, em
primeiro lugar o poder: ele deve ter o caráter sacerdotal, de um lado, e, de
outro, o bispo deve ter lhe dado uma autorização para confessar.

(Foucault, [1975] 2010, p.153)

A longa preparação do padre para o exercício do sacerdócio é bem conhecida.


Já a preparação do psicanalista para a escuta do inconsciente do outro, além de bem

180
menos conhecida, já foi tema de muitas divergências e polêmicas entre as escolas de
psicanálise. Então, passado o período de maior tensão a esse respeito, como se dá a
formação do psicanalista hoje em dia? Como se adquire as qualidades que lhe são
necessárias? Como se constitui um saber sobre o inconsciente? Enfim, numa palavra,
como se alcança a expertise necessária para a prática da psicanálise?
A situação atual da formação do psicanalista é mais ou menos a seguinte. O
psicanalista ou aspirante a psicanalista não encontra nas instituições psicanalíticas —
por exemplo, nas associações e escolas de transmissão da psicanálise — muitas
garantias. Nisso as referidas instituições se distinguem radicalmente das escolas,
universidades e do sistema tradicional de ensino. Assim como no que tange à análise
pessoal o psicanalista não promete curar o sujeito nem estabelece estimativa de
tempo para o tratamento, isto é, para uma análise, no que tange à formação do
psicanalista as instituições responsáveis não garantem que o sujeito se tornará
psicanalista um dia ou se terá sua prática legitimada por seus pares. Ou seja, não
existe diploma oficial ou certificado reconhecido pelas principais entidades de
educação do país. Não há um documento que comprove a formação psicanalítica do
sujeito e legitime sua prática clínica.
A qualificação necessária para atuar como psicanalista e os dispositivos de
formação das escolas de psicanálise talvez sejam os temas mais controversos do
meio. No entanto, diferentes escolas de psicanálise consideram a análise pessoal
(situação análoga a de se confessar) imprescindível para a formação de um
psicanalista. Mas é entre os lacanianos que a análise pessoal é reconhecida como
principal dispositivo de formação. Para Lacan — em ordem de importância e não dos
acontecimentos — o sujeito que pretende exercer a função de analista deve, primeiro,
autorizar a si mesmo como psicanalista; e depois, ser reconhecido por seus pares.
No que concerne à lida do psicanalista com os próprios desejos e impulsos, é
crucial que o psicanalista saiba o que fazer nos momentos em que os apetites
irrompem, que ele saiba se conduzir adequadamente em situações que são ao mesmo
tempo tentadoras e impróprias, que ele já não se deteste tanto ao ponto de sabotar-
se cedendo a prazeres efêmeros e enganadores, que ele tenha alcançado autonomia
suficiente para decidir-se por si mesmo ao que convém ou não assentir, que ele, enfim,
já tenha avançado suficientemente em direção ao domínio de si de maneira a não
infringir a regra de abstinência.

181
O padre deve possuir, além do poder, o zelo, isto é, certo “amor” ou “desejo”.
[…] um “amor de benevolência”: um amor que "prende o confessor aos
interesses dos outros". […] É portanto esse amor, é portanto esse desejo, e
portanto esse zelo, que deve estar efetivamente presente, em ação, na
confissão, enfim, no sacramento da penitência.

(Foucault, [1975] 2010, p.153)

O analista deve possuir desejo de análise. Esse é o desejo do analista. Trata-


se de um desejo que prende o analisante aos interesses da análise. É um desejo que,
incitando desejo, forja adeptos e defensores do dispositivo. É todo um apreço e um
zelo que costuma estar presente nas sessões de análise.

[…] o padre deve ser santo […] “estar consolidado na prática da virtude”,
precisamente por causa de todas as “tentações” a que o ministério da
penitência vai expô-lo. O confessionário — diz Habert — é como o “quarto de
um doente”, isto é, reina ali certo ‘ar nocivo’ […] que ameaça contaminar o
próprio padre, a partir dos pecados do penitente. […] O que o penitente
mostrará do seu desejo não deve se transformar em desejo do confessor.

(Foucault, [1975] 2010, p.153)

O analista deve ser apto, deve estar consolidado na prática de se abster, não
dar vazão a impulsos ou fantasias que possam lhe ocorrer diante da vulnerabilidade
e ou da sedução do analisante. O setting analítico é como um antro de
irracionalidades, onde se ouve neuroses, fantasias e todo tipo de coisas que,
reverberando nas próprias questões do analista, poderiam perturbá-lo. Não é uma
condição incontornável, mas, de todo modo, convém que o analista não apresente os
mesmos sintomas ou queixas, isto é, que não sofra do mesmo mal que seu analisante.
Ou que, sendo esse o caso, consiga exercer sua função mantendo o semblante.

[…] esse amor de zelo e benevolência que o confessor tem pelo penitente,
mas que é corrigido pela santidade, que anula o mal do pecado no momento
mesmo em que e comunicado, esse duplo processo não poderá funcionar se
o confessor estiver demasiado ligado a seus pecados, e mesmo a seus
pecados veniais.

(Foucault, [1975] 2010, p.154)

Convém igualmente ao psicanalista — ou ao indivíduo que faz a função e atua


como psicanalista —, no mínimo, agir como uma pessoa íntegra, esteja ele em casa,
na rua ou no trabalho, com sua família, seus amigos ou entre desconhecidos. Esse
requisito de integridade mínima do psicanalista se impõe com base no seguinte
entendimento: Como alguém a quem falta caráter cobraria de si mesmo, sem

182
vigilância, um zelo para com sua prática psicanalítica? Isto é, como esse sujeito de
caráter duvidoso seria capaz de zelar pelo outro e sugestiona-lo por meio de seus atos
a zelar por si se ele mesmo não zela por seu caráter? E uma vez que em psicanálise
a técnica fundamenta-se na ética e a ética tem uma eficácia técnica, como o método
psicanalítico poderia ser praticado por alguém cujas ações não parecem eticamente
implicadas? Enfim, sujeitos antiéticos ou alheios à ética são ainda menos indicados a
ocupar a função de analista do que aqueles de constituição ética deficitária, aqueles
que não aprenderam adequadamente como se conduzir em certas situações. Mas a
todos eles convém um trabalho sobre si mesmo que os leve a uma elaboração ética
de si. Sem isso, isto é, sem ética, o que sustentará sua técnica? Então, restaria ao
sujeito autorizar-se por meio da dissimulação que, não obstante, transpareceria em
seu semblante e sua influência enquanto operador de análise seria desfeita.
A figura do juiz, do médico e do guia eram empregadas como modelos de
conduta para o confessor. É exigido do confessor que seja sábio como “juiz”, como
“médico” e como “guia”, pois seu dever é “regrar a consciência de seus penitentes”.
Essas figuras também se assentam no imaginário da prática psicanalítica de tal modo
que se exige de um psicanalista, de um legítimo psicanalista pelo menos, que tenha
discernimento como um “juiz”, que saiba cuidar como um “médico” e que, por meio de
questões ou interpretações, indique o desejo que como um “guia” orientará o sujeito
em sua existência.

A prudência é a arte, que o confessor deve possuir, de ajustar essa ciência,


esse zelo, essa santidade às circunstâncias particulares […] observar todas
as circunstâncias, compará-las umas com as outras, descobrir o que está
escondido sob o que aparece, prever o que pode acontecer.

(Foucault, [1975] 2010, p.154)

A psicanálise já foi reconhecida como uma arte da escuta, de leitura do


inconsciente e da espera do momento oportuno para agir. A predominância da escuta
durante as sessões, os longos silêncios do analista, a economia no uso das palavras,
o comedimento nas interpretações e a disposição de esperar o tempo que for
necessário e oportuno para se manifestar em relação ao discurso do outro são sinais
inegáveis de que, em sua prática, o psicanalista está a todo momento exercitando a
prudência. Ora, não seria a demasiada prudência analítica responsável pela demora
dos tratamentos? Talvez. Mas é por respeito ao outro, ao paciente, ao analisante, que
o analista se porta com demasiada prudência. É por respeito ao ritmo do sujeito que
183
se analisa, ao tempo que ele necessita para avançar, ao seu sofrimento que não
convém tornar insuportável em razão de um furor curandis. É por respeito, sobretudo,
a liberdade existencial do sujeito que o psicanalista normalmente mantém uma
postura reservada e se nega a guiá-lo, a fazer juízos de valor sobre as coisas ou
aconselhá-lo.
Pois bem, pelas razões acima mencionadas, consideramos a “prudência” uma
qualidade básica para o exercício da psicanálise. Com efeito, geralmente se espera
do psicanalista — não exatamente enquanto pessoa, mas enquanto operador de uma
função — que possua certas qualidades básicas. Como não encontramos nenhum
estudo a esse respeito, decidimos apontar arbitrariamente, a partir de nossa própria
experiência, outras duas qualidades básicas para compor a figura do psicanalista: a
“confiabilidade” e a “paciência”. Essas três qualidades, reitero, arbitrariamente
escolhidas para retratar a figura do psicanalista, são reconhecidas pela Igreja como
virtudes humanas e, por isso, valorizadas. No entanto, para a Igreja, muitas são as
virtudes e distintos são seus valores, de modo que encontram-se hierarquizadas.
Durante o período da alta espiritualidade cristã — iniciada no monaquismo cristão da
Antiguidade tardia e findada na época das invasões dinamarquesas — três eram as
virtudes fundamentais do modo de vida cristão: patientia, obedientia e humilitas. Isto
é, a “paciência”, a “obediência” e a “humildade”. Além de possuírem essas
características básicas, espera-se do psicanalista e do padre confessor que eles
sejam capazes de acolher a demanda do paciente e o sofrimento do penitente, de
questioná-los com sabedoria, de adverti-los dos perigos e de orientá-los em
momentos de necessidade.
A articulação entre a figura do confessor e a figura do analista é apenas mais
um exemplo que corrobora a tese de Foucault da existência de “continuidades” e
“descontinuidades” históricas entre todo tipo de coisa e em vários níveis. Se
entendermos por confissão o gesto por meio do qual o sujeito fala a verdade, admite
seu erro, sua culpa, seu pecado, e diz a verdade sobre si a outro, então há certa
continuidade, por exemplo, entre as práticas de confissão provenientes do
monaquismo cristão do século IV e as práticas modernas de confissão como a
psicanálise, a psiquiatria e a sexologia. Não importa se mudam de nome. Entre ideias,
concepções, conceitos etc., isto é, objetos abstratos, puramente mentais, também
existem “continuidades”. A influência que o pensamento de Platão, atravessando

184
séculos, exerceu sobre o pensamento ocidental, é um forte indício de continuidade
histórica.
Mas por que “continuidades” e “descontinuidades” no suceder histórico das
coisas devem ser indicadas uma por uma e não em bloco? Porque os fenômenos que
se sucedem por afinidade não costumam se romper simultaneamente como que por
intervenção divina nem apresentarem todos eles uma ruptura igualmente profunda.
Por exemplo: ficamos sabendo através da História da sexualidade que a ideia ou
concepção de desejo com as quais estamos tão familiarizados nem sempre existiu.
Tertuliano, um apologista cristão que viveu entre os séculos II-III, foi católico
por um tempo antes de virar um montanista rigorista. Quando ainda era católico
considerava que independente da gravidade de sua falta, todo pecador tinha direito a
fazer penitência, isto é, à oportunidade de redimir seus pecados, de ser perdoado.
Embora classificasse os pecados entre corporais e espirituais, consumados ou de
desejo, estava convicto de que todos podiam ser perdoados pela Igreja.
Tertuliano foi responsável, no entanto, por um corte na história da sexualidade,
da subjetividade e da verdade no Ocidente. É improvável, contudo, que ele tivesse
consciência do que estava fazendo. Mesmo que pressentisse alguma repercussão a
seus atos, não tinha motivos para imaginá-la nessa escala. Mas como, efetivamente,
ocorreu esse corte?
Pouco se sabe da vida de Tertuliano, a não ser por suas obras. Sabe-se,
contudo, que vivia lendo e escrevendo sobre teologia, fé, filosofia, direito, regra de fé,
trindade, cristologia, mariologia, eclesiologia, penitência, eucaristia, escatologia…
Desde o momento em que classificou o desejo e o inscreveu como um tipo de pecado
(opondo-o ao “pecado consumado”), já vinha concebendo-o como algo único, isolável
e distinto das outras coisas. Ora, mas o que é o desejo? Para responder a essa
questão é preciso antes de tudo conceber o desejo como um objeto com determinadas
características. Assim, torna-se possível estudar o desejo e estabelecer um saber a
seu respeito.
Portanto, no momento que escreveu o que entendia por desejo, que o isolou
dos elementos que encobriam sua autonomia, que decidiu não mais deixá-lo oculto,
fez dele um objeto de conhecimento e escreveu isso nas páginas da história.

185
O arcabouço teórico presente nos manuais de confissão destinados aos
confessores é muito elaborado. Mas para o “governo dos vivos” por meio do governo
de suas almas, os procedimentos técnicos discursivos que permitem extrair a verdade
do sujeito revelam-se mais importantes do que suas justificativas teóricas. Esses
procedimentos de extração da verdade podem tomar a forma de indução ao ato de
autoveridicção, isto é, uma maneira de induzir o sujeito a proferir a verdade sobre si
mesmo. Enfim, esses procedimentos também podem obter a verdade do sujeito
levando-o a produzir uma verdade sobre si com base em certa interpretação. A esse
ato de produção da verdade do sujeito por ele mesmo chamamos de “aleturgia”. Por
esse viés, há como uma supremacia das práticas e técnicas de si sobre a abstração
ou sobre tudo que não leve o sujeito à sua verdade.
No fim das contas, vemos nesses manuais de confissão que há sim certa
sistematização da escuta confessional antes da psicanálise. Mas o objetivo desses
manuais é, sobretudo, de natureza prática; é de proporcionar uma orientação à prática
da escuta confessional. Não fosse sua inextricável relação com a religião cristã, a
confissão sacramental poderia ser considerada uma espécie de ciência conjectural de
seu tempo, assim como é, de modo geral, o caso da psicanálise na atualidade.

Exercendo-se a técnica da Psicanálise na relação do sujeito com o


significante, o que ela conquistou de conhecimentos só é situável ao se
ordenar ao seu redor. Isso lhe confere seu lugar no grupo que se afirma como
ordem das ciências conjecturais.

(Lacan, [1956] 1998, p. 475)

Também é exigido do confessor — e nesse ponto é escusável já não seguirmos


com a comparação com o analista — quando um penitente lhe procura para confissão,
“mostrar certa qualidade de acolhida, mostrar que está disponível, que está aberto a
confissão que vai ouvir”. Ademais: exige-se do confessor uma atenção benevolente e
que nunca ateste aos penitentes, "nem mesmo por sinal ou palavra", que eles não são
ouvidos “de boa vontade”.
A lição na qual Foucault mais insistira foi a de que seu objetivo era fazer uma
ontologia de nós mesmos, e nos convida a fazer o mesmo. A história não trata só do
passado, do que foi, mas do que é, do que somos, e como viemos a ser. Assim, se
chafurdamos os arquivos do catolicismo e da tradição cristã, como fizera Foucault em
seus últimos anos, é porque estamos em busca de respostas para o que somos. Mas

186
também parece defensável, depois de relacionar a figura do padre confessor e a do
psicanalista, o ponto de vista segundo o qual os recônditos técnicos da pastoral cristã
representam uma espécie de pré-história da psicanálise. Assim sendo, se há uma
continuidade entre as práticas confessionais e a prática psicanalítica, como de fato
parece haver, seria necessário fazer uma relativização dos cortes e, com isso, toda
uma revisão crítica da história da psicanálise.
Teria ou não ocorrido uma descontinuidade radical entre as técnicas da
confissão, as tecnologias de perscrutação da alma dos confessores católicos e a
prática de Freud, a técnica psicanalítica tal qual formalizada por ele entre 1911 e 1914
nos Artigos sobre a técnica? Para Foucault, uma descontinuidade fundamental nesse
quesito técnico ocorreu em Tertuliano. Seja como for, não parece justo reconhecer as
similaridades entre essas duas práticas e suas respectivas técnicas e não considerar
suas diferenças.

187
4. Uma maneira de jogar

Uma vez que a prática filosófica tem a função de organizar o mundo circundante
e elaborar algum sentido para a existência, não seriam os jogos filosóficos uma
espécie de jogos de sentido, de atribuição de sentido?
Lembremos que para Huizinga todas as atividades humanas, incluindo a
filosofia, podem ser vistas como resultado de um jogo. Tal como o jogo a filosofia é
uma atividade voluntária (ninguém é constrangido a filosofar). Tal como o jogo a
filosofia é uma atividade exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e
de espaço (por exemplo, na confecção de um texto filosófico há o tempo de pesquisa,
o tempo de escrita, o espaço ocupado pelo discurso, etc.). Tal como o jogo a filosofia
é uma atividade exercida de acordo com regras livremente consentidas, mas
absolutamente obrigatórias (por exemplo, o princípio de não contradição ou o princípio
da razão suficiente). Enfim, tal como o jogo, trata-se de uma atividade dotada de um
fim em si mesmo, acompanhada de um sentimento de tensão e de uma consciência
de ser diferente da vida cotidiana. Sendo a produção de culturas uma das funções do
jogo, o jogo filosófico, isto é, o jogo no qual se desdobra a atividade filosófica, tem
como umas de suas implicações a produção de sentido.
Para complementar a caracterização do jogo do FILOSÓFICO de Foucault, desse
jogo em torno da noção de desejo, recorreremos ao quadro classificatório proposto
por Roger Caillois em Os jogos e os homens. Já vimos no capítulo dedicado à noção
de jogo que o autor divide os jogos em quatro categorias: Agōn, Alea, Mimicry e Ilix.
Podemos, de partida, dispensar duas dessas categorias. A primeira delas é a Alea
que remete aos jogos de azar. A segunda delas é a Ilinx que remete à busca da
vertigem. Agora, resta saber se o jogo do desejo é um Agōn ou um Mimicry. Seria o
jogo do desejo um Agōn, uma competição, uma disputa em torno das possibilidades
interpretativas a respeito do desejo? Seria o jogo do desejo um concurso de narrativas
sobre o desejo? Ou o jogo do desejo seria um Mimicry? O fator predominante desse
jogo é o fictício, o simulacro e não a realização da ação em si? Ao narrar sua história
do desejo é permitido ao jogador assumir um personagem, fingir ser outro que não ele
mesmo? É permitido criar deliberadamente os objetos da narrativa?

188
Apesar do jogo de Foucault admitir vários estilos de narrativa e tolerar
elementos ficcionais nos discursos, uma vez que exige um aporte teórico que os
sustente, limita a criação deliberada de objetos. Assim, o jogo do desejo não seria um
Mimicry. O jogo de Foucault é um Agōn, uma disputa em torno da conceituação do
desejo. Assim, no caso do jogo do desejo, do jogo filosófico de Foucault, somos
levados a associar o espírito de competição com o impulso lúdico. Sobre isso,
comenta Huizinga:

O espírito de competição lúdica, enquanto impulso social, é mais antigo que


a cultura, e a própria vida está toda penetrada por ele, como por um
verdadeiro fermento. O ritual teve origem no jogo sagrado, a poesia nasceu
do jogo e dele se nutriu, a música e a dança eram puro jogo. O saber e a
filosofia encontraram expressão em palavras e formas derivadas das
competições religiosas. As regras da guerra e as convenções da vida
aristocrática eram baseadas em modelos lúdicos. Daí se conclui
necessariamente que em suas fases primitivas a cultura é um jogo. Não quer
isto dizer que ela nasça do jogo, como um recém-nascido se separa do corpo
da mãe. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para nunca mais perder esse
caráter.

(Huizinga, [1938] 2018, p.193).

Com uma investidura genealógica, mais do que apenas jogar esse jogo que ele
mesmo propôs, mais do que fazer uma narrativa histórica do desejo, multiplicou as
narrativas em seus cursos no Collège de France e estabeleceu ano a ano um extenso
campo de problematização onde a noção de desejo não é mais que um dos elementos
possíveis para a articulação de narrativas.
A noção de “jogos de verdade” é uma das regras básicas desse jogo do desejo.
Ela subentende uma suspensão de certos critérios de validação da verdade e a
consideração de diferentes regimes de verdade. Pressupõe a possibilidade de vários
saberes sobre o desejo com seus respectivos regimes de verdade. A multiplicação
das narrativas acerca do desejo talvez dê ensejo a diferentes verdades que a um só
tempo se complementam e se limitam. Mas que experiência é essa de se deparar com
outra verdade? Que efeitos têm sobre os sujeitos as verdades? A experiência de
ruptura com o próprio pensamento decorre do contato com uma verdade outra, vinda
do exterior ou engendrada internamente. Não decorreria desse contínuo processo de
desconstrução um flerte com o não-saber no sentido de uma ignorância aprendida?
Não se descola assim — ao menos provisoriamente — da Vontade de verdade? E
quais seriam os efeitos éticos do não-saber? Que experiência tem de si o sujeito
quando arrancado do saber e lançado na dúvida?
189
Não é porque algo se torna uma verdade que será sempre verdade. Verdades
não existem como fatos. As verdades não devem ser finais, mas como que testadas
na prática. Por que a vontade de saber tem sido guiada, mais do que por qualquer
outro procedimento, pela vontade de verdade? Ah, que serenidade habita a douta
ignorância, e que fardo carregam os donos da verdade.
O jogo filosófico implica uma forma de filosofar que busca também estabelecer
narrativas sustentáveis. Mas a filosofia não é, ao fim e ao cabo, tese. A isso por vezes
se chega, é a intenção da lógica acadêmica, assim como o lugar-comum do
pensamento. Propriamente falando, a tese é um fim artificial, um estado provisório do
pensamento que precisou aterrissar antes de mais uma vez alçar voo. Aí tomamos
fôlego para mais uma vez nos lançar. Disso a história das ideias nos dá provas. Nela
vemos que os autores não morrem com as mesmas ideias com as quais começaram
a pensar. Mas o que fazer quando uma investigação já significativamente avançada
culmina não numa tese mas numa aporia? Quando toda “fundamentação” do percurso
só nos orienta à não conclusão? Não teremos feito, desse modo, filosofia, uma “boa
filosofia”? É bem sabido que para alguns a outorga de “filósofo” parece ter chegado
bem tardiamente, justamente por certos momentos de seus discursos nos levarem
mais ao aniquilamento das certezas do que ao estabelecimento e a fundamentação
destas. Nietzsche pretendia uma “filosofia de martelo”, destruidora das certezas
dadas, e corrosiva ante as vulgatas morais. Mas antes, bem antes, das dinamites
nietzschianas, na aurora da intelectualização do Ocidente e do espírito filosófico, os
homens já haviam se deparado com a figura do Sócrates histórico, que se dizia
amante do conhecimento, mas presenteava seus ouvintes com aporias. E para o
desespero de alguns, nem sequer escreveu!
O que é pensar filosoficamente? Podemos encarar a função do filósofo como
lugar e função de crítica. Não da crítica como censura, mas como lugar princeps do
desgarramento das certezas, da estagnação intelectual e, por conseguinte, subjetiva
e afetiva; em suma, como procedimento de sangria da estagnação das possibilidades
da palavra. O filósofo tem uma função crítica que se efetiva na esfera das verdades
que se pretendem universais, dos modos de ser da verdade, dos discursos que a isso
apelam, em suma, do conhecimento, ou antes, dos saberes. Trata-se sempre de
empreender uma investigação sobre o estado da palavra em torno do qual se ordena
a vida, sobre as possibilidades da vida, dos modos de viver; e mais, um exercício das

190
possibilidades interpretativas do dito, do efetivamente dito. Isso é crítica. Não somente
por questionar e, por vezes, desmascarar, mas por ferir, criar uma fenda onde se
semeia a possibilidade de novas séries discursivas. É um tipo de investigação que
não é da ordem do princípio do prazer, não é mera vontade de verdade nem
subserviente à vontade de saber.
É uma empresa de curiosidade crítica, um agenciamento de busca, um
empreendimento ao mesmo tempo epistêmico e ético. Epistêmico por ter por
finalidade o diagnóstico de um estado de coisas enquanto estado do discurso (e/ou
estado de práticas que envolvem discursos, explícitos e implícitos), e ético por levar
até às últimas consequências, ao menos a nível da reflexão, o exercício sobre as
possibilidades do que fazer com os dados desse diagnóstico, isto é, do saber em
questão.

Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. Para alguns, espero,
esse motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade — em todo
caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um
pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém
conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a
obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos
conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o
descaminho daquele que conhece?

(Foucault, [1984] 1998, p.13)

Tornou-se célebre a frase de Michel Foucault: “não me pergunte quem sou e


não me diga para permanecer sempre o mesmo”. Afinal de contas, “trabalhei tanto,
todos esses anos, para dizer sempre o mesmo e não poder mudar?”. Foucault é figura
tarimbada do discurso universitário brasileiro, que em geral dele absorve e reproduz
debilmente as teses. Mas talvez não passe, pelo menos na maioria das vezes, de uma
apropriação meramente acadêmica, escolar, quase inócua, onde muito se perde o
teor dinâmico e processual de seu pensamento.
É a lógica e a ousadia do método foucaultiano, sempre comprometido em se
adaptar à especificidade de seu objeto de estudo, que sempre nos interessa, mais do
que os estados provisórios de seu discurso — leia-se teses. Não desmerecemos, em
momento algum, a validade e a importância histórica de suas teses, hoje lugares
comuns da filosofia acadêmica. Mas acreditamos ainda mais na fecundidade de seu
método.

191
5. Outro jogador, outras referências, outra narrativa

Como saber que formas-sujeito decorrem de nossa atual concepção de desejo


senão desconstruindo essa noção tal qual nos foi dada a conhecer? Que outras
experiências de si foram vetadas ou desapareceram do horizonte de possibilidade por
não terem lugar na experiência moderna e contemporânea da sexualidade? Se houver
alguma razão em dizer que uma mentira contada mil vezes se torna verdade, será um
absurdo supor que acreditamos ou mesmo fomos forjados numa versão do desejo
contada reiteradas vezes? Uma versão fundamentalmente ficcional e contingente?
Que outras versões seriam possíveis de se conceber, quantas outras histórias
poderiam ser contadas?
Há, por exemplo, quem tenha buscado não em Tertuliano e no cristianismo
primitivo, mas na Grécia Arcaica, na Grécia Clássica e na Grécia Helenística as
diferentes formas de manifestação e inscrição do desejo. Zeferino Rocha, no primeiro
ensaio — “O desejo na Grécia Arcaica” — de uma série de três sobre o desejo na
Grécia Antiga, analisa a noção de thymós como manifestação embrionária do desejo
nos poemas épicos do período homérico, sublinha seu lugar na poesia lírica e seu
papel na ética aristocrática da moderação. O autor indica, nos poemas trágicos, “uma
dimensão ética que reveste o desejo na responsabilidade do homem trágico diante
das consequências de seus atos”. Por fim, busca mostrar “o lugar que o desejo ocupa
no pensamento dos primeiros filósofos da natureza”. Haveria um importante ponto de
inscrição discursiva do desejo nos fragmentos de Heráclito de Éfeso e na doutrina
pitagórica. As primeiras sistematizações, no entanto, só surgiram no período clássico
com Sócrates, Platão e Aristóteles, e é a elas que se detém o autor no segundo ensaio,
“O desejo na Grécia Clássica”. No terceiro e último ensaio — “O desejo na Grécia
Helenística” —, é o momento de considerar os discursos epicuristas e estóicos sobre
o desejo.
Antes de Foucault, alguém já havia considerado seriamente a questão da
historicidade do desejo? Essa série de ensaios sobre o desejo na Grécia Antiga não
o cita em momento algum, mas joga o jogo das narrativas históricas proposto por
Foucault relativamente ao desejo, pois, sem citá-lo, sem adotar suas teses, talvez até
desconhecendo ou deliberadamente ignorando a História da Sexualidade, Zeferino

192
Rocha estabelece por contra própria uma narrativa histórica que demarca as
manifestações do desejo na Grécia Antiga. Sua contribuição, divergindo radicalmente
da foucaultiana, promove outros cortes e marca uma linha de alteridade que se choca
com a narrativa de Foucault. E desse choque, o que decorreria? Quando as narrativas,
os enunciados das narrativas, seguem as regras dos jogos de verdade, mas apontam
em direções distintas, o que isso quer dizer?
Seria igualmente defensável a tese foucaultiana que estabelece um primeiro
corte em Tertuliano e um segundo em Agostinho e a tese de Zeferino Rocha que faz
o desejo remontar à Grécia Arcaica?

193
QUARTO CAPÍTULO: A PARRÉSIA ÉTICA

É preciso que vocês tenham aprendido os


princípios de uma maneira tão constante que,
quando os seus desejos, apetites, temores vierem
a se revelar como cães que rosnam, o logos falará
como a voz do mestre que, com um só grito, faz
calar os cães.
— Plutarco

1. De um sonho sobre jogar com a realidade

Quando amanhece, lembramos que mais uma rodada se completou e que logo
mais será nossa vez. É um jogo de sensatos, dizem eles, os mesmos que ganham a
corrida antes mesmo da largada. Prestamos atenção às jogadas, tentamos aprender
as regras, distinguir o necessário do desnecessário, antecipar alguns riscos, enfim, o
que mais pudermos, mas nunca estamos realmente preparados. Estamos cansados.
Viver em nosso tempo é, e cada vez mais, um jogo atado aos ponteiros. Não há
garantias de coincidência entre determinada extensão do tempo e o transcurso do ser
do sujeito. Pelo contrário, não só a fruição de si na duração do tempo não é a
experiência mais comum nos devires, como é uma dificuldade decorrente de nossa
maneira de viver na atualidade. E é sob uma ameaça constante de abandono do ser
(inquietação, tédio, torpor…) que se vive. Segundo os que se dedicam a escuta do
sujeito e de seu mal-estar, esses “estados de desabitação” do ser são característicos
da experiência subjetiva contemporânea.
Mas será que o “aqui e agora” já existiu? Será que a experiência que se ancora
na fruição da presença de si no espaço de duração de um acontecimento já foi
culturalmente predominante em algum período histórico do Ocidente? Será, de fato,
característico do sujeito moderno ou contemporâneo, e não do antigo ou medieval, a
sensação subjetiva de deslocamento, de viver em descompasso com o tempo? Enfim,
será possível que a justa experiência de si na duração já tenha sido coisa assente em
algum momento do fenômeno humano na terra?
Sobre o extenso tabuleiro do mundo (do qual não vemos as extremidades)
estão nossas peças, pouco gastas, mas cada vez menos numerosas. Algumas peças

194
são sempre perdidas, instruem os jogadores mais antigos. Independente da
estratégia, ou de ter ou não uma estratégia, só avançamos na medida em que
perdemos algumas. A perda é inevitável, e alcança a todos. Portanto, sejam quais
forem, o adversário também tem suas perdas. Constantemente assediados, é
impossível nos esquecer do jogo. Fomos lançados junto com os dados de nossa
existência e precisamos escolher, segundo as regras desse jogo, como viver, que
verdades e posturas adotar, pois delas decorrem os acontecimentos que caracterizam
as perdas e os ganhos com que, por fim, lidaremos. Porém, que nenhuma oposição
seja colocada em termos de verdadeiro e falso, realidade e ilusão, mas de
interpretação possível e impossível, e relações de poder. E é sempre uma aposta no
fim das contas. Mais ou menos provável, mais ou menos incerta.
Ora, não era de se esperar que o sujeito contemporâneo fosse, após tantas
formas já assumidas, mais inventivo e autônomo quanto às formas de viver? Seja
como for, parece que as formas históricas efetivamente assumidas pelo sujeito só se
dão algumas de cada vez, de modo que sempre as encontramos apegadas, com
raríssimas exceções, às mesmas formas de prazer e de dor, as mesmas formas de
gozar e de sofrer. Francamente, é tudo bem monótono.
E o tempo? É sempre o tempo em questão. De fato, o tempo não dá trégua.
Supérfluo dizer que, numa só vida, não dá pra se dedicar a todos os gostos, fazer tudo
com profundidade ou desenvolver mais do que algumas competências. Quanto às
maneiras de viver, as formas de barganha são muitas e variadas, mas nenhum recurso
até agora se mostrou suficiente para prolongar uma vida indefinidamente. No embate
com a morte, qualquer triunfo é provisório e, em última instância, uma ilusão. Podemos
até prever que em um século e meio todo contingente humano terá se renovado. De
conluio com o tempo, a morte sempre impera. E das experiências varridas, poucas
sulcam a história. Eis, portanto, a constante por excelência: a curva comum às
trajetórias humanas que, a despeito de serem indeterminadas, convergem afinal de
contas ao mesmo ponto. Desse modo, seja em contraste com as possibilidades ou
com as intenções que se cultiva, o que se alcança com uma vida é de fato muito
limitado. Para levarmos um propósito em particular especialmente longe, quantos
outros serão abortados! “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais
na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela”, já dizia o poeta. Sem
que nada à revogue, a finitude nos espreita, nos persegue e nos alcança. É sempre o

195
tempo em questão. Perpetuamente insatisfeito, a tudo devora. Como escapar ao
marca-passo? A propósito, como suportamos a vida com uma única certeza, a da
morte? É uma façanha. Cabe saber como viver sem antecipar todos os dias, sob as
diferentes formas de um mal-estar fundamental, o momento da morte ou a escuridão
silenciosa da inexistência.

196
2. A escolha pela vida filosófica

Não tem para onde correr, mais cedo ou mais tarde o princípio de realidade
baterá em nossa porta intimando-nos a nos comprometer com algo. Para sermos
gente, dizem eles, precisamos investir nosso tempo e energia em alguma coisa.
Aqueles que não se comprometem com alguma atividade, seja por escolha ou por
incapacidade, pouco importa, estão à margem da sociedade. Aqueles que, por outro
lado, se comprometem com muitas atividades, como se nutrissem um verdadeiro
horror pelo ócio, correm o risco de se escravizarem gastando toda sua energia e
tempo livre. Já aqueles que, por seu turno, são mais razoáveis, mais moderados, que
mesmo se envolvendo com várias atividades conseguem dosar a dedicação e o
esforço conforme a necessidade, ainda conseguem gozar de um tempo para si. Só
resta saber se, envolvendo-se com tantas coisas, eles têm como conhecer algo a
fundo. Não seria, no caso de cada sujeito e levando em conta suas próprias
capacidades, inversamente proporcional o grau de conhecimento e intimidade que ele
pode adquirir e alcançar relativamente a uma coisa e a quantidade de coisas com as
quais se ocupa? Conhecer algo a fundo exige tempo, e os dias têm sempre a mesma
quantidade de horas.
Embora todo conhecimento a respeito das coisas com que nos ocupamos seja
válido, seu valor é relativo, pois depende da natureza dessa ocupação e do lugar que
lhe reservamos de nossa vida. Se o lugar que lhe reservamos for o de principal
ocupação de nossa vida, aí sim, tudo muda. Uma vez tendo-a escolhido, teremos de
lhe conceder, senão a maior parte de nossos dias, o interesse constante de nosso
espírito. Ninguém pode ocupar esse lugar de principal ocupação de nossa vida.
Mesmo que a ocupação escolhida envolva relacionar-se com uma ou mais pessoas,
delas cuidar (como os pais fazem com os filhos) ou a elas prestar algum tipo de serviço
(como o médico aos pacientes e o professor aos alunos), o foco do sujeito não deve
recair sobre o outro, mas sobre sua função, nesse caso relativamente ao outro.
Ora, se a ocupação em questão for algo como a prática filosófica, o
conhecimento sobre ela é fundamental. No curso de 1983, O governo de si e dos
outros, Foucault analisa a Carta VII de Platão e chega justamente a esse tema da
escolha da filosofia, da escolha pela vida filosófica. É um fato que ao chegar o
momento de escolher a principal ocupação de sua vida, muitos ficam apreensivos,
inseguros. A falta de um conhecimento seguro a respeito do futuro ofício faz com que
197
muitos vacilem no momento de tomar a decisão. Às vezes findam dando ouvido a
opinião dos outros em vez de escolher por conta própria. Desse modo, no que diz
respeito aquele que sente uma inclinação para a filosofia, é importante que receba
uma instrução prévia relativa à prática filosófica. Então, quais são suas dúvidas? Ou,
de modo geral, quais questões estão em jogo para o aspirante a filósofo no momento
de sua decisão? Fora suas dúvidas particulares, a primeira questão que ele deve
considerar é, evidentemente, a da função do filósofo. Que papéis os filósofos tiveram
em nossa história? E qual o papel do filósofo na atualidade? Em seguida, ele deve
considerar questões como a do ser da filosofia e a da finalidade da prática filosófica.
O que é a filosofia? Em que consiste seu ser, sua especificidade? O que caracteriza
o discurso filosófico? Qual a finalidade da prática filosófica? É difícil filosofar sem pôr
para si mesmo essas questões. E importa colocar desde o início, pois decidir pela
filosofia já é filosofar.
Então, o que diz Platão na referida carta sobre a escolha pela filosofia?
Primeiro, que a filosofia é como um percurso a ser seguido. Postula que o sujeito deve
seguir esse percurso sob a direção de um guia que lhe mostre o caminho e o auxilie.
Esse percurso, que tem um começo e um fim, deve servir de teste para o sujeito. Pois
para que chegue ao fim, é necessário que o sujeito se sirva de toda sua força, que se
dedique a trabalhar longa e penosamente ao longo desse percurso sem interromper
ou relaxar, que se apresse e apresse seu guia até chegar ao outro extremo do
caminho. Importa lembrar que, a não ser que tenha se fortalecido suficientemente ao
ponto de poder prescindir das instruções de um diretor para agir adequadamente nas
situações mais adversas, o candidato jamais deve abandonar a direção daquele que
o conduz. Ademais, não só o fim do percurso filosófico precisa seja alcançado, como
também é indispensável que em momento algum o sujeito deixe esmorecer seu apego
à prática da vida cotidiana. Disso devemos reter a ideia segundo a qual a escolha pela
filosofia não é incompatível com as ações cotidianas. Pelo contrário, é justamente na
vida cotidiana e no curso das ações que se tem de realizar no dia a dia que devemos
nos servir da filosofia, que devemos acionar a filosofia. Pois bem, esse é um ponto
relevante para a consideração crítica de um texto de Platão ou, mesmo que apócrifo,
de um texto platônico, pois que seja requisitado ao filósofo, ao discípulo, ao aspirante
a filósofo, enfim, ao sujeito que decide pela filosofia um apego à prática da vida
cotidiana tem um sentido inverso àquele normalmente atribuído ao platonismo e à sua

198
concepção de mundo das ideias, das realidades eternas. Na referida carta VII, esse
apego à prática da vida cotidiana revela-se importante porque, afinal, é nessa
realidade que o sujeito deverá mostrar que possui os atributos necessários para
filosofar: a capacidade de aprender (eumathés), a capacidade de lembrar (mnémon)
e a capacidade de raciocinar (logízesthai dunatòs).
Entretanto, o que esperar do sujeito que resolve se dedicar à prática filosófica?
Coisas demais e variadas, certamente, inclusive, que muitos podem ser seus
propósitos. Sejamos, portanto, mais específicos. Se num momento decisivo de sua
vida o sujeito se decide pela filosofia e, em decorrência disso, se reorienta na
existência, se volta inteiramente para a vida filosófica e para as coisas que lhe
concernem, sua conduta cotidiana não deixa de revelar um propósito relativamente à
filosofia totalmente diferente daqueles concebíveis para os que com a filosofia só
mantém algum nível de envolvimento. Noutras palavras, o sujeito que se volta
inteiramente em direção à filosofia, que a ela se dedica sem reservas, tem o propósito
e a disposição de consagrar-se à vida filosófica. É a esses que Platão se refere
quando postula, na referida carta VII, que o sujeito que decide pela filosofia deve tomar
o modo de vida filosófico de maneira radical e definitiva.
Pois bem, trata-se aqui do tema da conversão. Segundo Hadot podemos
entender por conversão, de modo geral, uma mudança significativa de ordem mental
que pode ir da simples mudança de opinião até a transformação total da personalidade
do sujeito. Para o helenista, o fenômeno da conversão em geral reflete a irredutível
ambiguidade da realidade humana pode ser caracterizado por uma ruptura total com
a maneira habitual de viver. A modificação dos hábitos e costumes do sujeito
deflagrada pela sua conversão não é, exclusivamente, de ordem moral, embora seja
a transformação total de sua vida moral o que se visa com a prática assídua de
diversos exercícios espirituais. É assim que o filósofo deve alcançar a tranquilidade
da alma e a liberdade interior. Entrementes, de acordo com Hadot “a conversão
filosófica é ao mesmo tempo a mais radical e a menos difundida forma de conversão”.
Mas como, normalmente, se inicia a conversão filosófica do sujeito? O que
caracteriza a primeira etapa dessa conversão? É preciso, primeiro, de um aceite
voluntário por parte dos ouvintes. Essa é, para Foucault, a condição de um efetivo
discurso filosófico. Ademais, a conversão é um acontecimento provocado na alma de
um ouvinte pelo discurso de um filósofo. Com efeito, depois de Platão, nas escolas

199
estóica, epicurista e neoplatônica do período helenístico, a filosofia se torna
essencialmente um ato de conversão.
Quanto aos aspectos sociológicos do fenômeno da conversão, Hadot observa
que a passagem do sujeito de uma comunidade a outra costuma ser acompanhada
de escrúpulos morais, dificuldades de adaptação e de compreensão. Em
contrapartida, o autor observa também que um potente móbil da conversão reside na
atração que a comunidade de acolhida exerce.
Para Hadot, é possível acompanhar as formas que o ato de conversão filosófica
já assumiu ao longo da história e reconhecê-lo no pensamento de filósofos como
Descartes, Espinoza e Bergson. Em todo caso, a conversão filosófica é sempre
“desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente
‘natural’ do senso comum; ela é retorno ao original e ao originário, ao autêntico, à
interioridade, ao essencial”. O autor reconhece ainda outras formas do ato de
conversão pensamento de filósofos contemporâneos como Husserl, Heidegger e
Merleau-Ponty. “Sob qualquer aspecto com que ela se apresente, a conversão
filosófica é acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência
autêntica”.
Em outras palavras, ao decidir pela filosofia o sujeito deve se envolver de tal
maneira com as práticas filosóficas que, operando sobre si uma conversão, jamais se
desvia completamente da atividade filosófica. Mas como o sujeito fará isso? A
recomendação é de que ele alimente a atividade filosófica com sua alma de maneira
a mantê-la sempre em seu espírito. A conversão filosófica, consistindo basicamente
numa conversão da decisão ao modo de vida filosófico, não tem por fim a
contemplação de si ou das realidades eternas. No platonismo (ou, pelo menos, na
carta VII de Platão) a conversão filosófica se define justamente pela opção pela
filosofia, pelo percurso e pela aplicação do sujeito que possibilita o aprendizado, a
memória e o bom raciocínio.
Por fim, o sujeito cujo espírito já opera filosoficamente antes dele se decidir pela
filosofia tende a não encará-la como mero lazer ou a escolhê-la simplesmente porque
lhe agrada, mas por reconhecer que não pode viver sem filosofar. Esse é o chamado
da filosofia. Quando ouvido, toca no íntimo do sujeito. Porém, assim como o fenômeno
da conversão não é exclusivo da filosofia, o chamado também está presente nas mais
diversas religiões, nos meios militares, nos ofícios e na política. Há quem ouça,

200
inclusive, o chamado da poesia. A propósito disso Rainer Maria Rilke disse numa carta
a um aspirante a poeta que “uma obra de arte é boa quando surge de uma
necessidade”, e aconselha-o a voltar-se para si mesmo, a mergulhar em si mesmo e
em sua solidão, a sondar as profundezas de onde vem a sua vida, pois nessa fonte
deve encontrar a resposta para a questão de saber se precisa criar. Ao encontrar a
resposta, deve aceitá-la como vier, sem interpretá-la. Ela pode revelar um chamado
para ser artista. Nesse caso, que “aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua
grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora”. Mas a
resposta também pode revelar que deve renunciar a ser poeta, pois “basta, como foi
dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-
lo”. O chamado da filosofia é análogo ao da poesia. Quando o sujeito propenso à
filosofia recebe o chamado e decide pelo modo de vida filosófico, é menos por
considerar a prática filosófica agradável e capaz de proporcionar prazer do que por
ver nela uma certa relação com a verdade, um meio de se constituir pela verdade
enquanto sujeito de verdade e capaz de manifestar a verdade.

A vida filosófica é uma manifestação da verdade. Ela é um testemunho. Pelo


tipo de existência que se leva, pelo conjunto de opções que se faz, pelas
coisas a que você renuncia, pelas que aceita, pela maneira como você se
veste, pela maneira como fala, etc., a vida filosófica deve ser, de ponta a
ponta, a manifestação da verdade.

(Foucault, [1983] 2010, p.232)

Neste ponto, interessa a questão do real (prâgma) da filosofia, do real da


atividade filosófica. Com base na carta VII de Platão, Foucault entende que não é a
prática da filosofia como a prática do logos, do discurso, do diálogo que será o real
(prâgma) da filosofia, mas a prática da filosofia em suas próprias práticas, em suas
atividades, em seus exercícios (prágmata). Ora, já vimos que para Platão (tomado
aqui como representante dos filósofos antigos) são práticas (prágmata) próprias da
filosofia: o caminho a ser percorrido até o fim, a prova do trabalho assíduo e penoso
sob direção de um guia e a prática da vida cotidiana. Em virtude dessas práticas
(prágmata) serem indispensáveis à filosofia, elas constituem seu real (prâgma).
Mas qual o objeto dessas práticas, desses exercícios (prágmata) da filosofia?
De acordo com Foucault, o próprio sujeito. Isso implica que o real da filosofia não se
encontra num objeto externo, mas que “é na relação consigo, no trabalho de si sobre
201
si mesmo, nesse modo de atividade de si sobre si que o real da filosofia será
efetivamente manifestado e atestado”. A filosofia encontra seu real (prâgma), portanto,
no próprio labor filosófico, na prática da filosofia entendida como conjunto das práticas
(prágmata) por meio das quais o sujeito estabelece uma relação consigo mesmo,
trabalha a si, elabora a si mesmo. “O trabalho de si sobre si é o real da filosofia”. Essas
condições da filosofia são chamadas por Foucault de “círculo de si mesmo”.
Há, no entanto, uma especificidade e mesmo condição do discurso filosófico,
uma condição para que este não seja tão somente discurso, um discurso vazio, mas
uma realidade. No modo de ser do discurso filosófico o conhecimento da verdade não
é somente necessário ou uma condição prévia, mas uma função constante. E essa
função constante da relação com a verdade no discurso não se dissocia do efeito
direto e imediato que é operado tanto sobre a alma daquele a quem o discurso se
dirige quanto sobre a alma daquele que faz o discurso. Foucault chamou de “círculo
da escuta” a condição que consiste em não se dirigir a qualquer um, mas somente aos
que querem escutá-lo. “Ser escutado e encontrar no ouvinte a vontade de seguir o
conselho que será dado, é a primeira condição do exercício do discurso filosófico
como tarefa, como obra, como érgon, como realidade”, de modo que não se deve dar
conselhos senão aos que aceitam segui-los. O discurso filosófico não deve ser uma
abstração fechada em si mesma, mas ir de encontro à sua realidade na escuta
receptiva do outro. É quando se é ouvido, entendido e aceito por outro a quem se
dirige que esse discurso se torna real.

[…] a filosofia só pode se dirigir aos que querem ouvi-la. Um discurso que não
fosse mais que protesto, contestação, grito e cólera contra o poder e a tirania,
não seria filosofia. Um discurso que fosse um discurso de violência, que
quisesse entrar como por arrombamento na cidade e que, por conseguinte,
espalhasse à sua volta a ameaça e a morte, tampouco encontraria sua
realidade filosófica. Se o filósofo não é ouvido, e é a tal ponto não ouvido que
é ameaçado de morte, ou então se o filósofo é violento, e violento a tal ponto
que seu discurso leva a morte aos outros, num caso como no outro a filosofia
não pode encontrar sua realidade, é reprovada na prova da realidade.

(Foucault, [1983] 2010, p.214-215)

Uma vez restituída e proposta uma concepção de filosofia e do real da filosofia


através da análise foucaultiana da carta platônica, cabe agora abordar a questão de
sua aquisição. Ou seja: como se transmite a filosofia? A filosofia se adquire, diz a

202
carta, por “Synousía perì tò prâgma”. Isto é, estando em conjunção com o real da
filosofia, reunindo-se com ela, vivendo e coabitando com ela. A coabitação do sujeito
com a filosofia é o que constitui a própria prática da filosofia e sua realidade. Não é,
portanto, através de fórmulas (mathémata) ensinadas, aprendidas e conhecidas que
se transmite e se adquire a filosofia. Não há como pôr os problemas filosóficos em
fórmulas (mathémata). Então, se não é por meio de fórmulas que se adquire a filosofia,
de que maneira se aprende a filosofar e a viver como filósofo? “Quando se frequentou
muito tempo esses problemas (ek pollês synousías), se conviveu com eles (syzên), é
que a verdade brota de repente na alma, assim como a luz brota da centelha e, em
seguida, cresce por si mesma”. Ou seja, assim como devemos ficar junto ao fogo até
nos aquecer, devemos permanecer no pé da filosofia até nos instruir. É como uma
centelha se acendendo na alma que se adquire a filosofia.
É claro que essa questão da aquisição da filosofia está atrelada a diferentes
concepções de conhecimento. Na concepção de Platão, o conhecimento possui cinco
graus, dos quais apenas o quinto permite apreender o próprio ser da coisa. Pois bem,
e como se adquire esse quinto e mais alto grau de conhecimento? Na leitura de
Foucault, para Platão o “conhecimento último só se obtém e se adquire por uma
prática, por uma prática contínua, por uma prática perpetuamente exercitada, por uma
prática de fricção entre os outros modos de conhecimento”. O real do conhecimento
filosófico se dá, portanto, na fricção contínua dos modos de conhecimento uns nos
outros.

Só quando se esfregou penosamente (mógis dè tribómena), uns nos outros,


nomes, definições, percepções da vista e impressões dos sentidos, quando
se discutiu em discussões benevolentes em que a inveja não dita nem as
questões nem as respostas, só então é que sobre o objeto estudado vem
brilhar à luz da sabedoria e da inteligência (exélampse phrónesis perì
hékaston kaì noûs) com toda a intensidade que as forças humanas podem
suportar.

(Platão, Carta VII, 344b-c)

Parece que, através da análise da Carta VII de Platão, trata-se para Foucault,
por um lado, de indicar o lugar e a especificidade da filosofia antiga relativamente às
demais modalidades de discurso e, por outro, assinalar que a filosofia moderna retoma
esse lugar e especificidade. Assim, de acordo com Platão e Foucault, não cabe a
203
filosofia dizer o que fazer no domínio da política, pois é “como exterioridade
relativamente a uma política que [a filosofia] constitui sua prova de realidade”.
Também não cabe a filosofia dizer o que é a verdade no domínio da ciência, mas
apresentar-se como “crítica relativamente a um domínio de ilusão que a coloca diante
do desafio de se constituir como discurso verdadeiro”. Por fim, não cabe ou não condiz
com a prática efetivamente filosófica lidar com as ideias por elas mesmas, com o puro
logos. Pelo contrário, a filosofia é áskēsis, trata da constituição do sujeito por si
mesmo. É isso, portanto, que parece constituir para Foucault “o ser moderno da
filosofia, ou talvez o que, no ser moderno da filosofia, retoma o ser da filosofia antiga”.

A filosofia não tem de dizer o que se deve fazer na política. Ela tem de estar
numa exterioridade permanente e rebelde em relação à política, e é nisso que
ela é real. Em segundo lugar, a filosofia não tem de compartilhar o verdadeiro
e o falso no domínio da ciência. Ela tem de exercer perpetuamente sua crítica
ao que é logro, engano e ilusão, e é nisso que ela joga o jogo dialético da sua
própria verdade. Enfim, em terceiro lugar, a filosofia não tem de desalienar o
sujeito. Ela tem de definir as formas nas quais a relação consigo pode
eventualmente se transformar. A filosofia como ascese, a filosofia como
crítica, a filosofia como exterioridade rebelde à política, creio que é esse o
modo de ser da filosofia moderna. Era, em todo caso, o modo de ser da
filosofia antiga.

(Foucault, [1983] 2010, p.321)

A análise que Foucault faz da carta platônica permite-nos, portanto, extrair uma
concepção da filosofia muito diferente daquela proveniente das interpretações
tradicionalmente feitas do platonismo. As hipóteses às quais chega vão de encontro,
por exemplo, às leituras largamente aceitas de textos célebres como a República e as
Leis. A famosa crítica à escrita se baseia no fato dela dar à coisa conhecida a forma
do matema (máthema), isto é, de colocá-la em fórmulas (mathémata). As fórmulas são
de certo modo instrumentos por meio dos quais se veicula o conhecimento já adquirido
a quem deve conhecê-lo. Assim, infere Foucault: “a escrita, que é ligada portanto à
própria forma das mathémata, não pode de maneira nenhuma responder ao que é o
real do conhecimento filosófico: a fricção contínua dos modos de conhecimento uns
nos outros”. De seu princípio de que nenhum homem sério deveria tratar por escrito
de coisas da filosofia, o próprio Platão tira a conclusão, paradoxal aos olhos de
Foucault, de se a filosofia não pode ser praticada e aprendida através de fórmulas

204
(mathémata), o papel do filósofo tampouco poderá ser o de apresentar um conjunto
de leis aos cidadãos de uma cidade para que esta seja governada como convém. Isto
é, não é papel do filósofo ser um nomóteta, não é sua função legislar. Em suas
palavras: “quando vemos uma composição escrita, seja por um legislador sobre as
leis, seja por qualquer outro autor sobre qualquer tema, digamos que o autor não levou
a coisa muito a sério, se ele mesmo é sério”. Daí Foucault formula uma hipótese
segundo a qual as Leis e a República, longe de representarem as opiniões do próprio
Platão, consistem numa espécie de jogo filosófico.

[…] assim como Platão diz a propósito do mythos (do mito) que o mito não
deve ser levado ao pé da letra e que, de certo modo, ele não é sério ou que
se deve empregar toda a seriedade para interpretá-lo seriamente, será que
se pode dizer a mesma coisa a propósito dos célebres textos das Leis ou da
República, que foram frequentemente interpretados como a forma que Platão
dá idealmente à cidade que ele gostaria que fosse real?

(Foucault, [1983] 2010, p.231)

Foucault questiona se a atividade do nomóteta, do legislador e todo o sistema


legislativo e constitucional proposto pela República e pelas Leis não deveria ser
tomada com tantas reservas quanto um mito. Em seguida, formula a questão: “a
atividade do nomóteta que Platão parece se atribuir nas Leis e na República não será
um jogo?” Sim, assim como nós identificamos um jogo filosófico no projeto da História
da Sexualidade, particularmente em A vontade de saber, Foucault identificou um jogo
nas Leis e na República de Platão. E assim como nós corroboramos a hipótese do
jogo de Foucault a partir dos escritos do próprio Foucault, este corrobora sua hipótese
de jogo de Platão a partir da análise da Carta VII do próprio Platão. “Um jogo como o
mito, embora, é claro, de modo diferente? E o que a filosofia tem a dizer passa,
evidentemente, por esse jogo nomotético, como passa pelo jogo mítico, mas para
dizer outra coisa”.
Não poderíamos, junto com Foucault e nos apoiando nas teses de Huizinga,
encarar a República e as Leis como uma forma lúdica da filosofia? Não poderíamos
conceber esses diálogos como jogos filosóficos e exercícios de transcrição do
pensável? Ora, Huizinga reconhece a existência de uma tripla relação entre a poesia,
o mito e o jogo, e afirma que, embora o mito consiga exprimir relações que jamais

205
poderiam ser descritas mediante um processo racional, ele se situa, junto com a
poesia, dentro da esfera lúdica. Foucault diz, no entanto, que “uma vez jogado esse
jogo da cidade ideal, há que se recordar que a seriedade da filosofia está em outra
parte”. Pelo jeito, Foucault encara o jogo de Platão de uma maneira diferente daquela
que encarou seu próprio jogo e da maneira que encarou seus projetos de pesquisa e
escrita. Já discorremos sobre o caráter de experiência dos projetos de pesquisa e
escrita de Foucault, sobre seu potencial transformador, sobre sua capacidade
transfiguradora do sujeito. Então, já falamos sobre o saber de experiência, sobre o
estilo ensaístico do pensamento foucaultiano, sobre a escrita de si. Não convém
insistirmos mais nisso. O fato é que, no entendimento de Foucault, “a seriedade da
filosofia não consiste em dar leis aos homens e lhes dizer qual é a cidade ideal na
qual devem viver”. Parece que, para Foucault, devemos guardar a República e as
Leis, uma vez que essas obras não expressariam o real da filosofia. Para ele, a
seriedade da filosofia consiste em lembrar sem cessar, àqueles que querem escutar,
que “o próprio real da filosofia está nessas práticas, essas práticas que são as práticas
exercidas de si sobre si e que são ao mesmo tempo essas práticas de conhecimento
pelas quais todos os modos de conhecimento, ao longo dos quais você sobe e desce
e fricciona uns nos outros, finalmente nos põem em presença da realidade do próprio
Ser”.
Baseando-se nos relatos das vidas dos filósofos feitos por Diógenes Laércio e
por Filostrato, Foucault discorre sobre várias maneiras através das quais a vida
filosófica se anunciou como uma manifestação da verdade na cultura antiga. Uma
delas foi, certamente, aquela que procurava mostrar a verdade por meio dos três
aspectos seguintes, a maneira como se vive (éthos), a maneira como se reage à
determinadas situações (kairós) e a doutrina que se ensina. Outra maneira de
manifestação da verdade foi a parrésia, visto que durante toda a sua história na cultura
antiga, sempre se dirigiu aos que governam. Contudo, a vida filosófica também foi
uma parrésia no sentido de interpelação constante dirigida às pessoas. Mas, tratando-
se sempre, num caso e noutro, da manifestação da verdade, Foucault chega a
considerar a filosofia antiga como uma espécie de grande elaboração de “um projeto
geral que é a parresía, a coragem de dizer a verdade aos outros para conduzi-los em
sua própria conduta”; em suma, a filosofia antiga como uma espécie de grande prática
parresiástica. Essa coragem de dizer a verdade, esse jogo do dizer-a-verdade,

206
também desempenhou um papel importante em comunidades mais fechadas como a
dos epicuristas. Se formou ali uma prática de confissão e de confidência recíproca, de
relato detalhado dos erros que alguém comete e conta. Conta-se os erros ao diretor,
certamente, mas também se conta a outros para obter conselhos.

207
3. A parrésia e a constituição ética do sujeito

Seja como preceito de vida, como princípio geral ou como práticas exercidas
por alguns sujeitos e em alguns meios mais cultivados, o “cuidado de si” (epiméleia
heautoû) sempre inclui ideias como a de que é preciso ocupar-se consigo mesmo,
voltar-se para si mesmo, retornar para si mesmo, recolher-se em si mesmo, etc. Desde
a Antiguidade e ao longo de séculos, o “cuidado de si” incita alguns a se ocuparem de
si e a trabalharem sobre si. Esse trabalho sobre si se dá por meio de certos exercícios,
práticas e técnicas de si com fins de transformar a si mesmo. É significativo que Pierre
Hadot prefira chamar de “exercícios espirituais” essas práticas originárias do
pensamento antigo. Assumindo diferentes formas no curso de nossa história e
intervindo de diferentes maneiras no curso de nossa subjetividade, perpetuam a
manufatura do ser.
Não obstante a ênfase dada pelo princípio do “cuidado de si” (epiméleia
heautoû) à injunção de ocupar-se consigo mesmo, a presença do outro é uma
constante. O “cuidado de si” subentende a existência de um personagem
constantemente apresentado como o parceiro indispensável ao qual o sujeito se
vincula. A obrigação aletúrgica, isto é, a incitação a dizer a verdade sobre si mesmo,
deve ser situada num contexto mais amplo definido pelo princípio do “cuidado de si”
(epiméleia heautoû) em relação ao qual o princípio do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi
seautón) não passa de uma implicação. É para cuidar de si, editar a si (epimelesthai
sautou) que o sujeito se submete a aleturgia. A prática do dizer-a-verdade sobre si
mesmo se apoia e apela a presença do outro, do outro que escuta, que incentiva a
falar e que fala ele próprio. Trata-se de uma atividade conjunta, eventualmente com
outros, mas, geralmente, com um outro, uma prática a dois. Mas qual o estatuto desse
outro tão necessário?
Em outras palavras. Se um sujeito é acometido por um sofrimento anímico que
não tem por base uma doença orgânica ou qualquer tipo de mal fisiológico, mas uma
“doença da alma”, que remédio tomar? Se um sujeito se vê desorientado diante da
própria existência, à deriva, como se algo essencial lhe faltasse, que solução buscará?
Se um sujeito reconhece sua constituição subjetiva como deficitária, insuficiente para
a vida que almeja, a quem recorrerá? Na cultura ocidental moderna, encontramos
figuras como o médico, o psiquiatra, o psicólogo, o psicanalista... Na cultura cristã
mais recente, o padre católico, o pastor evangélico. Na cultura cristã de outrora
208
encontramos a figura do confessor ou do diretor de consciência. Mas na cultura antiga
o estatuto desse outro, desse dizer a verdade sobre si mesmo e conhecer a si mesmo,
precisamos de um outro que devemos ir buscar em qualquer lugar, contanto que seja
um homem de idade e sério. Pode ser um professor que faz mais ou menos parte de
uma estrutura pedagógica institucionalizada, mas também pode ser um amigo ou um
amante. Pode ser um guia provisório para um rapaz que ainda não atingiu sua
maturidade, que ainda não fez as escolhas fundamentais para sua vida, que ainda
não é totalmente senhor de si mesmo. Pode ser, enfim, um conselheiro permanente
disposto a seguir alguém ao longo de sua vida.
Então, já que o estatuto desse outro é variável, sua prática não é sempre a
mesma. Ela se apoia na pedagogia, mas também é uma direção de alma. Pode, em
alguns casos, tomar a forma de um aconselhamento político, mas também a forma de
prática médica. Trata-se, de modo geral, do cuidado da alma e da determinação de
um regime de vida que, por sua vez, comporta um regime das paixões e
eventualmente um regime alimentar. É uma prática que pode envolver o modo de vida
sob todos os seus aspectos. Mas qualquer que seja os diferentes perfis e aspectos
sob os quais podemos ver aparecer esse outro tão necessário para a aleturgia do
sujeito, exige-se dele, para que possa ser eficazmente o parceiro do dizer a verdade
sobre si, uma certa qualificação. Não se trata de uma qualificação dada por uma
instituição referente a posse e ao exercício de poderes espirituais específicos, como
no caso da cultura cristã. Também não se trata de uma qualificação institucional que
garante certo saber, como no caso da cultura moderna. A qualificação necessária a
esse personagem incerto, esse outro parceiro do dizer-a-verdade sobre si, é uma certa
prática discursiva, uma certa maneira de dizer a verdade chamada “parrésia”.
Então, para melhor nos situar no corpus foucaultiano, importa lembrar que foi
no curso A hermenêutica do sujeito (1982) que Michel Foucault abordou pela primeira
vez a noção de parrésia. Uma genealogia dessa noção foi desenvolvida no curso do
ano seguinte, O governo de si e dos outros (1983), bem como aprofundada em sua
dimensão ética no último dos cursos, A coragem da verdade (1984). Trata-se de uma
noção complexa, com vários significados e empregos ao longo de sua história. Em
seu sentido mais geral, o termo grego parresía remete à franqueza, liberdade de fala
e fala-franca; em seu sentido mais técnico e preciso, remete à expressão pública e
arriscada de uma convicção própria. Entre as formas antigas de parrésia estão, por

209
exemplo, a socrática, a cínica, a estóica e a epicurista. Mais tarde haverá também
uma forma cristã, em latim parrhesĭa, redefinida como abertura transparente do
coração ao diretor de consciência. Entre os autores antigos cujos textos foram
estudados por Foucault estão Filodemo, que escreveu um texto Sobre a parrésia
(parcialmente conservado), Plutarco, que escreveu um tratado sobre Como Distinguir
um Adulador de um Amigo, e Galeno de Pérgamo, que escreveu um tratado Sobre as
paixões e os erros da alma.
A noção de parrésia, arraigada originalmente na prática política e na
problematização da democracia, e só depois derivada para a esfera da ética pessoal
e da constituição ética do sujeito, permite Foucault colocar a questão do sujeito e da
verdade sob a perspectiva do que ele chama de governo de si e dos outros. Então,
das formas de parrésia examinadas, a “parrésia ética” é aquela que se distingue pelo
papel que desempenha na constituição ética do sujeito. Sobre essa distinção, diz
Foucault: “Se entendermos por parrésia a coragem da verdade, a coragem de dizer a
verdade, e ver, devemos ver aqui uma certa forma de parrésia muito diferente, em seu
fundamento e em seu desenrolar, da parrésia política”.
De fato, o objetivo da parrésia ética é diferente da parrésia política. De modo
geral, seu objetivo é fazer com que o sujeito cuide de si mesmo, mas que cuide de si
mesmo enquanto ser razoável que mantém com a verdade uma relação fundada no
ser de sua alma. A parrésia ética é uma forma diferente de parrésia que consiste na
coragem de dizer a verdade com fins de constituir ou reconstituir eticamente o sujeito
através de modificações no seu modo de ser e de agir. Enquanto prática discursiva
que visa contribuir para a formação do sujeito enquanto sujeito moral, desde que siga
alguns princípios, pode ser exercida de diferentes maneiras e em diferentes contextos.
De modo geral, para que haja parrésia, ao dizer a verdade — isto é, ao enunciar seu
pensamento, sua opinião, sua crença — o sujeito tem de assumir certo risco que diz
respeito à própria relação com a pessoa a quem se dirige. Corre-se o risco, dizendo a
verdade, de ferir o outro, de irritá-lo, de enraivece-lo ou de lhe suscitar reações que
podem chegar à violência.
No entanto, a parrésia ética também se insere em contextos particulares e em
domínios que não são originalmente os seus. No domínio da filosofia, por exemplo, a
parrésia ética tende a imiscuir-se com a parrésia filosófica quando esta, numa relação
entre dois sujeitos, utiliza da linguagem cotidiana, sem ornamento de vocabulário e de

210
estilo. Se dá o mesmo quando, em segundo lugar: diz as coisas ao acaso, tal como
vem à mente, como que traduzindo o próprio movimento do pensamento. Assim como,
em terceiro lugar: diz exatamente aquilo que se pensa, tendo fé no que disse,
confiando na justiça do que disse. Em suma, para Foucault a atitude parresiástica em
filosofia é a que “a propósito do sujeito moral traz sem cessar a questão do discurso
verdadeiro em que esse sujeito moral se constitui e das relações de poder em que
esse sujeito se forma”.
Enfim, apesar do domínio da filosofia ter sido historicamente privilegiado pela
parrésia ética, ela também foi amplamente exercida entre não filósofos. A parrésia
ética esteve e está presente, por exemplo, na franqueza do mestre pronto para sacudir
a alma do discípulo e provocar-lhe a cólera apontando sem rodeios seus defeitos,
seus vícios e suas más paixões.
Aqui, um parêntese: no curso de 1982, Foucault identifica nessa atitude do
mestre uma atitude ética e em seu discurso um procedimento técnico; já no curso de
1984, talvez para evitar que o dizer-verdadeiro da parrésia fosse confundido com o
dizer-verdadeiro do saber técnico, da tékhne, Foucault dirá que a prática da parrésia
não consiste numa técnica. Que a parrésia seja ou não considerada uma prática
técnica não deve ser tomada como uma questão de menor importância. Para
solucionar esse impasse, podemos considerar, se quisermos, a parrésia uma prática
na qual é possível identificarmos princípios técnicos, desde que não entendamos por
isso um procedimento técnico fruto de um saber técnico, passível de ser ensinado,
rigorosamente transmitido a outro. O sujeito que possui a parrésia não
necessariamente a aprendeu. Na verdade, no mais das vezes, ou se possui ou não
se possui parrésia.
Uma vez feitas essas considerações preliminares acerca da parrésia ética,
coloquemos agora algumas questões de ordem prática: uma vez que a prática da
parrésia ética nunca visou a maioria, mas, pelo contrário, só se ocupou de alguns,
dizer que sua finalidade é a constituição ética do sujeito não é uma afirmação
excessivamente ampla? Noutras palavras, é legítimo sustentar que o fim da parrésia
ética é a constituição ética do sujeito em geral enquanto sua prática é restrita a
poucos? Visto que a prática da parrésia é para “não-todos”, no sentido de que não
cabe a todo e qualquer sujeito, mas somente a alguns, como saber a que classe de
sujeito pertencemos? Já que querer verdadeiramente se melhorar, se edificar e se

211
constituir enquanto sujeito moral é uma condição, mas não uma garantia de
participação no jogo parresiástico, importa saber que fatores efetivamente qualificam
ou desqualificam o sujeito para o exercício da parrésia ética.
Ao cometer uma falta e senti-la pesar em sua consciência, é imperativo que o
sujeito a confesse. Mas importa que a confesse a quem, de fato, possa guiá-lo e ajudá-
lo a sair do desespero, do remorso ou do sentimento que tem de sua própria falta.
Nesse caso, como denominar esse outro da relação, esse sujeito qualificado como
possuidor de um tipo específico de franqueza, que pode e deve falar francamente para
que o sujeito que lhe procurou possa, por sua vez, dizer a verdade sobre si mesmo e
se constituir efetivamente enquanto sujeito de discurso verídico sobre si? A palavra
que lhe corresponde, “parresiasta” (parresiastés), é mais tardia do que a palavra
“parrésia” (parresía). A parresía é, etimologicamente, a atividade de dizer tudo: pân
rêma. Parresiázesthai significa justamente isso, “dizer tudo”. Assim, parresiastés é
aquele que diz tudo. Importa esclarecer que a palavra parresía pode ser empregada
com dois valores. Ela é encontrada com valor pejorativo muito frequentemente na
literatura cristã, com a significação de tagarela impertinente, de sujeito que não sabe
se conter. Em seu valor positivo, significa dizer a verdade, sem dissimulação, reserva,
preocupação com estilo ou ornamento retórico. Dizer tudo sem nada esconder.
O parresiasta, portanto, é aquele que dá sua opinião, diz o que pensa se
indexando à verdade, como que autenticando a verdade. Para Foucault, “o estudo da
parrésia e do parresiasta é uma espécie de pré-história dessas práticas que se
organizaram e se desenvolveram posteriormente em torno de alguns pares célebres:
o penitente e seu confessor, o dirigido e o diretor de consciência, o doente e o
psiquiatra, o paciente e o psicanalista”.

212
4. A parrésia e o jogo parresiástico

Agora sim, após essas considerações gerais acerca do “cuidado de si”


(epiméleia heautoû) e do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), da aleturgia, da
parrésia e do parresiasta, e da comparação do modo de veridicção parresiástico com
três outros modos de veridicção presentes no mundo antigo, convém definir em que
consiste a prática parresiástica, explicitar o que caracteriza a prática da parrésia. Bem,
são três as características fundamentais da prática da parrésia. Em primeiro lugar, a
parrésia é um ato de verbalização da verdade, um ato de veridicção através do qual
se manifesta um vínculo fundamental entre a verdade dita e o pensamento de quem
disse. Em segundo lugar, parrésia é um questionamento do vínculo entre os dois
interlocutores a partir da verdade proferida por um e endereçada ao outro. Por isso a
parrésia implica certa forma de coragem que consiste em que quem pratica a parrésia
se arrisque a desfazer essa relação com o outro que tornou possível, precisamente,
seu discurso de verdade.
Foucault lembra que esse vínculo entre a parrésia e a coragem é indicado por
Aristóteles na Ética a Nicômaco quando esta associa a grandeza de alma
(megalopsykhía) à prática da parrésia. Na dinâmica parresiástica sempre se corre o
risco de minar a relação entre os dois sujeitos que é a própria condição de
possibilidade da veridicção. A respeito desse risco, Foucault cita o exemplo do que
denominamos de “condução de consciência parresiástica”, onde “só pode haver
condução de consciência se há amizade, e em que o uso da verdade […] corre
precisamente o risco de questionar e romper a relação de amizade que, no entanto,
tornou possível esse discurso de verdade”.
Então, além dessas duas características — de manifestação do vínculo entre
veridicção e pensamento do enunciador e de questionamento do vínculo entre
interlocutores —, a parrésia tem uma última característica, a de poder se organizar,
se desenvolver, evoluir para o jogo parresiástico e nele se estabilizar. Para que se
alcance esse estado de coisas os envolvidos devem efetivamente aceitar o jogo da
parrésia.

Devem eles próprios jogá-lo e reconhecer que aquele que assume o risco de
lhes dizer a verdade deve ser escutado. E é assim que se estabelecerá o
verdadeiro jogo da parresía, a partir dessa espécie de pacto que faz que, se
o parresiasta mostra sua coragem dizendo a verdade contra tudo e contra
213
todos, aquele a que essa parresía é endereçada deverá mostrar sua
grandeza de alma aceitando que lhe digam a verdade. Essa espécie de pacto,
entre aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-
la, está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico.

(Foucault [1984] 2011, p.13)

A parrésia estabelece, por um lado, um vínculo forte, necessário e constitutivo


entre o sujeito e sua veridicção, indexa-o a seu ato de verdade, mas, por outro lado,
expõe ao risco de ruptura o vínculo entre o sujeito que fala e aquele a quem ele se
endereça. Porque, no fim das contas, aquele a quem o sujeito de endereça pode não
acolher bem o que é dito, pode se ofender, pode rejeitar o que lhe é dito como se não
fosse verdade, pode se arrepender de se dispor a ouvir e pode, afinal, ao se ressentir,
punir ou querer se vingar daquele que lhe disse a verdade.
O parresiasta é, portanto, um enunciador corajoso da verdade. É importante
ressaltar que ele não é um profissional, assim como a parrésia não é uma profissão.
Embora haja aspectos técnicos na parrésia, ela é menos uma técnica do que uma
atitude, uma maneira de ser que se aproxima ou, pelo menos, se aparenta a virtude.
É uma maneira de fazer-se sujeito de verdade, de constituir a si e ao outro como
sujeito capaz de verdade. A parrésia pode ser caracterizada como uma modalidade
do dizer-a-verdade capaz de modificar o sujeito implicando-o na verdade. “São
procedimentos, meios reunidos tendo em vista um fim e, com isso, claro, se aproxima
da técnica, mas também é um papel, um papel útil, precioso, indispensável para a
cidade e para os indivíduos”.

O objetivo desse dizer-a-verdade, dessa prática parresiástica, é a formação


no sujeito de uma determinada maneira de ser, de uma certa maneira de
fazer, de certa maneira de se comportar. O objetivo do dizer-a-verdade é,
portanto, menos a salvação da cidade do que o éthos do sujeito.

(Foucault [1984] 2011, p.58)

[…] a habilidade dos adversários, dos outros em falar pode ir até o


esquecimento de si. E, por conseguinte, podemos, de certa forma, correlativa
e negativamente, sentir que nós nos orientamos para a proposição reversa.
Se a habilidade em falar provoca o esquecimento de si, pois bem, a
simplicidade do falar, a palavra sem aparato ou sem ornamento, a palavra
diretamente verdadeira, a palavra de parresía portanto nos levará à verdade
de nós mesmos.

214
(Foucault [1984] 2011, p.64)

Enfim, é chegado o momento de avançar em direção a noção de parrésia. Nos


aproximar sem, contudo, estreitar muito nosso campo de visão. Ainda abarcamos,
com um golpe de vista, toda sua figura. Convém conservar essa imagem tripartite: a
parrésia como manifestação do vínculo entre veridicção e pensamento do enunciador;
a parrésia como questionamento do vínculo entre interlocutores; a parrésia como
dinâmica capaz de evoluir para o jogo parresiástico. A cada passo enxergamos novos
elementos nela. Trata-se, a bem da verdade, de uma noção relativamente simples,
sem muitos detalhes, mas cuja dinâmica, fluida e cheia de sutilezas, se desdobra e
reverbera infinitamente. Comecemos interrogando: como se estabelece essa
dinâmica a partir da qual um sujeito é constituído eticamente? Quais as condições
mínimas para que se configure tal dinâmica? O que se espera dos envolvidos para
que essa dinâmica seja eficaz? É evidente que os mestres de existência, os diretores
de consciência, os guias, os condutores de almas — ou como quer que chamemos
esses sujeitos que se encarregam de orientar um outro sujeito diante das
circunstâncias da existência a partir de uma relação de mestria, de condução
filosófica, de condução individual de alma, — devem, para exercerem adequadamente
sua função, possuir a parrésia e exercê-la. A mesma exigência recai sobre o discípulo,
o dirigido, enfim, sobre o sujeito cuja alma será conduzida. Ou seja, embora a parrésia
exerça um papel importantíssimo no trabalho desse sujeito sobre si, ela é, antes de
tudo, um requisito para que ele ocupe o lugar de discípulo; é um elemento
indispensável à condição de conduzido.
Pois bem, sabemos que a condução individual das almas é uma relação a dois.
Sabemos também que a parrésia de ambos os envolvidos é um requisito da relação
de mestria. Mas isso não é tudo. Resta saber como se articulam a partir daí o mestre
e o discípulo nessa relação. Como, efetivamente, se posicionam os sujeitos e se
organizam os gestos nessa relação de mestria? Então, é através de um pacto, do
pacto parresiástico que essa relação de mestria é estabelecida. Mas como esse pacto
é firmado? “É preciso ter três qualidades”, diz Platão no diálogo Górgias, “o saber
(epistémen), a benevolência (eúnoian) e a franqueza (parresían)”. É preciso que o
candidato tenha, portanto, além da franqueza (parresía), saber (episteme) e

215
benevolência, amizade (eunoia) para com o outro para ser aceito como discípulo.
Essas três características constituem os operadores da verdade do jogo parresiástico.
Mais do que traduzir, Foucault explica como devemos entender esses termos
no contexto do jogo parresiástico. A Episteme “faz que se diga o que se pensa ser
verdade” e “nunca dizer o que dizem a não ser sabendo efetivamente que é verdade”.
A Eunoia “faz que se fale somente por benevolência para com o outro”, de modo que
significa “sentimento de benevolência que provém da amizade.” A Parresía “dá a
coragem de dizer tudo o que se pensa, a despeito das regras, das leis, dos hábitos”;
“que nada que seja da ordem do medo ou da timidez ou da vergonha venha limitar a
formulação do que se pensa ser verdade. A coragem parresiástica é necessária”.
Assim funcionam esses três operadores da verdade do jogo parresiástico. São as três
condições sob as quais a identidade do discurso (homologia) num e noutro poderá
desempenhar esse papel de prova (básanos).
Mas é preciso que haja também entre as duas almas uma afinidade de
natureza. A relação entre as almas será de prova, de manifestação da autenticidade,
de demonstração da verdade da alma no que ela tiver de autêntica (étymos). Uma vez
que essas condições se encontrem presentes, a parrésia vinculará o mestre e o
discípulo, um ao outro. Mas como o mestre põe à prova a parrésia do candidato?
Questionando-o, tal como Sócrates em Górgias: “Quero que você responda às minhas
perguntas”. O candidato deve responder com franqueza, sem rodeios, exatamente o
que pensa. Deve dizê-lo como tem presente no espírito, com liberdade de fala, sem
nada dissimular, nem por interesse, nem por retórica, nem por vergonha. É através
desse jogo de verdade, jogo de prova, que se testa a parrésia do candidato e, por
conseguinte, a qualidade de sua alma. Platão fornece ainda uma descrição do pacto
parresiástico da prova de almas. Se uma falta for cometida, convém admitir que não
foi cometida voluntariamente. Quem a cometeu necessita mais uma vez e novamente
de conselhos. Mas se depois dos conselhos e esclarecida a natureza da falta a mesma
falta for cometida, a única punição do dirigido será ser abandonado pelo diretor. Enfim,
num segundo momento, deve-se verificar se há, entre o mestre e o discípulo, uma
identidade de discurso. Essa identidade de discurso num e noutro (homologia), que
prova a afinidade de natureza das duas almas, consiste essencialmente na evidência
de que “o que um diz pode ser dito pelo outro”. Essa identidade de discurso
(homologia) serve, para a relação entre o mestre e o discípulo, de critério de verdade.

216
E como, na relação parresiástica, o éthos é alterado, modificado, constituído?
É por meio de uma intervenção do dizer-verdadeiro na alma (psykhé). E essa forma
do dizer-verdadeiro é a parrésia ética que tem por correlativo privilegiado, como ponto
de aplicação primeiro, instância à qual se dirige e um domínio em que adquire seus
efeitos a alma (psykhé) do sujeito.

Essa dupla determinação da psykhé como correlativo do dizer-a-verdade


parresiástico e do éthos como objetivo da prática parresiástica implica que a
parrésia ao mesmo tempo que se organiza em torno do princípio do dizer-a-
verdade toma corpo num conjunto de operações que permite que a veridicção
induza na alma efeitos de transformação.

(Foucault, [1984] 2011, p.58)

O que é capital para o “cuidado de si” e para o “jogo parresiástico” é que o


sujeito deve cuidar de si mesmo enquanto sujeito ético e racional. O si mesmo na
relação do sujeito consigo, o si mesmo na sua relação de zelo por si, é definido
primeiramente pela razão prática em exercício (phrónesis) que permite tomar boas
decisões e rechaçar opiniões falsas. Em segundo lugar, o si mesmo é definido pela
verdade (alétheia) na medida em que esta é aquilo a que se prende a razão prática
(phrónesis). Mas a verdade (alétheia) também é o Ser visto que todo sujeito possui
uma alma (psykhé). “Se pudermos ter uma phrónesis e tomar as decisões adequadas,
é porque temos na verdade certa relação, que é fundada ontologicamente na natureza
da alma”.

217
5. A parrésia, a profecia, a sabedoria e o saber técnico

Sem embargo, antes de dar um passo à frente e examinarmos essas coisas


mais de perto, antes de nos concentrarmos em seus detalhes, recuemos um pouco,
tomemos um pouco de distância, alinhemos nosso olhar à linha do horizonte e fitemos
o vasto terreno ocupado pelas formas de enunciação da verdade. Para lançar mais
luz sobre o local onde se situa a noção parrésia, para melhor demarcar a posição
ocupada por essa noção em relação à verdade, para diferenciá-la de outras formas
de falar a verdade, para distingui-la de outras modalidades do dizer-a-verdade da
Antiguidade e para ressaltar o que há de mais característico de seu modo de
veridicção, comparemos sua modalidade de veridicção com três outras modalidades,
a da profecia, a da sabedoria e a do saber técnico.
Comecemos com o profeta. O profeta é, sem dúvida, alguém que diz a verdade.
Mas o que caracteriza fundamentalmente o dizer verdadeiro do profeta é sua postura
meditativa, pois, é em estado de meditação que ele alcança a verdade que deve
proferir. Ele alcança, articula e profere uma verdade que não é propriamente sua, visto
que vem de outro lugar. Sim, sua boca serve de intermediária para uma voz divina
vinda de outro lugar. Sim, ele não fala em seu nome, mas em nome da divindade. Sim,
o profeta endereça aos homens um discurso que não é o dele, que não é desse tempo,
mas de Deus e do tempo de Deus. Mas onde ele vai buscar a verdade que, mesmo
não sendo sua, lhe concerne? Onde essa verdade se encontra? Não é no presente,
certamente, mas tampouco é futuro. É numa posição intermediário entre o presente e
o futuro, num ponto intermediário entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses.
Enfim, o profeta é aquele que desvela o que o tempo esconde dos homens e que
nenhum olhar humano poderia ver, mas, ao mesmo tempo, aquele que não desvela
sem ser obscuro e não revela sem envolver o que diz na forma do enigma. Desse
modo, a profecia nunca dá uma prescrição unívoca e clara.
Ora, a parrésia claramente se opõe a essas características do dizer verdadeiro
profético. Em primeiro lugar, o parresiasta, por definição e em oposição ao profeta,
fala em seu próprio nome. É imprescindível ou mesmo essencial que a verdade
formulada pelo parresiasta consista na sua própria opinião, no seu próprio
pensamento e na sua própria convicção. Ele deve, por assim dizer, assinar sua fala.
Em segundo lugar, o parresiasta, diferente do profeta, não diz o futuro. Seu papel
218
consiste em ajudar os homens em sua cegueira sobre o que são, em ajudá-los a
melhor enxergar a si mesmos, a ter um melhor discernimento a respeito de algum
erro, a desvelar alguma distração, alguma desatenção ou dissipação moral, alguma
complacência, alguma covardia. Em terceiro lugar, o parresiasta, também por
definição e diferente do profeta, não fala por enigmas. Ele faz justamente o contrário,
diz as coisas da maneira mais clara, mais direta, sem disfarce, sem ornamento
retórico, de sorte que suas palavras podem receber imediatamente um valor
prescritivo. Ele não deixa ao seu interlocutor nada para interpretar, mas sim por fazer:
a rude tarefa de ter a coragem de aceitar a verdade que acabou de ouvir, de
reconhecê-la e dela fazer um princípio de conduta. Ele deixa, portanto, não a difícil
incumbência de interpretar um enigma, mas uma tarefa moral.
O sábio, por sua vez, assim como o parresiasta e em oposição ao profeta, fala
em seu nome. Independentemente de sua sabedoria ser inspirada por um deus, lhe
ser transmitida por uma tradição ou um ensino mais ou menos esotérico, o fato é que
o sábio está presente no que diz. A sua sabedoria, que é formulada em termos de
verdade, é sua própria sabedoria. O sábio, no que diz, manifesta seu próprio modo de
ser. Embora ele tenha uma função de intermediário entre a sabedoria atemporal e
tradicional, ele não é um mero porta-voz como pode ser o profeta. O sábio é sábio em
si, é seu modo de ser sábio como modo de ser pessoal que o qualifica como sábio, e
o qualifica para falar o discurso da sabedoria. Mas o sábio mantém sua sabedoria num
retiro, ou, pelo menos, numa reserva que é essencial. Diferente do parresiasta, ele
não é obrigado a falar, nada o obriga a distribuir sua sabedoria, a ensiná-la ou
manifestá-la. Entre as características de seu discurso há uma que, inclusive, o
aproxima do profeta. É que suas respostas podem muito bem ser enigmáticas e deixar
aqueles a quem se endereça na ignorância ou na incerteza do que efetivamente quis
dizer. Não obstante, uma característica fundamental do dizer verdadeiro da sabedoria
é que a sabedoria diz o que é, ao contrário da profecia que diz o que será. Mas,
devemos entender que o sábio diz o que é no sentido de dizer o ser da natureza, do
mundo e das coisas. E se isso pode adquirir o valor de prescrição, não é sob a forma
de um conselho específico ligado a uma conjuntura, mas sob a forma de um princípio
geral.
Ora, a essa caracterização do sábio como alguém estruturalmente silencioso,
que se cala, que só fala quando quer e somente por enigmas, também se opõe a

219
figura do parresiasta que tem por dever, por obrigação e encargo a tarefa de falar. Ele
não pode se furtar a tarefa de falar e deve falar tão claro quanto possível. Quando ele
intervém para dizer o que é, não é para dizer o que é o ser da natureza, do mundo e
das coisas como faz o sábio, mas sim o que é na singularidade dos indivíduos, das
situações e das conjunturas. O dizer verdadeiro do parresiasta tem a característica de
ser sempre aplicável, de questionar, de apontar para indivíduos e situações a fim de
dizer o que estes são na realidade. Ao dizer aos indivíduos a verdade deles mesmos,
ao revelar a situação atual na qual se encontram, caráter que possuem, os defeitos
que apresentam, o valor de suas respectivas condutas e as eventuais consequências
das decisões que tomam, o parresiasta não revela a seus interlocutores o que é em
geral. Ele desvela ou os ajuda a reconhecer o que eles, os interlocutores, são.
Enfim, vejamos a veridicção do saber técnico, a veridicção de quem ensina. A
quem Foucault se refere quando se interroga sobre a veridicção de quem ensina?
Quem ele chama de técnico? Nesta ocasião, ele chama de técnicos uma gama de
personagens portadores de um saber caracterizado como tékhne, isto é, de um saber
que implica conhecimentos, mas conhecimentos que tomam corpo numa prática e que
implicam, para seu aprendizado, um conhecimento teórico, mas também exercícios
(áskēsis ou meléte). Ele se refere, portanto, à personagens como o médico, o músico,
o sapateiro, o marceneiro, o mestre de esgrima, o ginasta, enfim, todo um conjunto de
indivíduos que, por deterem um saber técnico, professam-no e são capazes ensiná-lo
aos outros.
O técnico, seja ela qual for, tem certo dever de palavra. Embora nada prediga
a respeito dos acontecimentos do mundo, nada exprima a respeito do ser mesmo do
mundo e das coisas e nada ou muito pouco saiba dizer a respeito da singularidade
dos sujeitos, ela também tem, de certa forma, uma obrigação de verdade, a obrigação
de dizer o saber que possui e a verdade que conhece, pois esse saber e essa verdade
estão ligados a uma tradicionalidade. O homem da tékhne já foi, evidentemente,
discípulo de outro técnico (tekhnítes) que foi seu mestre. Do mesmo modo, para que
seu saber não morra com ele, ele vai ter que transmiti-lo. E o que está em jogo nessa
transmissão do saber, nessa prática de ensino? Bem, primeiro há de se considerar
que, diferente do parresiasta, esse professor, esse homem da tékhne e do ensino, não
assume nenhum risco. Pelo contrário, comenta Foucault refletindo sobre sua própria
prática docente, “quem ensina […] às vezes deseja estabelecer entre si e aquele ou

220
aqueles que o escutam um vínculo, vínculo esse que é o do saber comum, da herança,
da tradição, vínculo que pode ser também o do reconhecimento pessoal ou da
amizade. Em todo caso, nesse dizer-a-verdade, se estabelece uma filiação na ordem
do saber”. No caso do dizer-a-verdade da técnica, o ensino assegura a sobrevivência
do saber. O dizer-a-verdade do técnico e do professor une e vincula. Sim, é verdade
que a veridicção do parresiasta também pode, no fim das contas, unir e reconciliar os
sujeitos envolvidos no jogo da parrésia, mas não sem, antes, expor o vínculo entre os
dois indivíduos à possibilidade do ódio e da dilaceração.

221
6. Acerca das elações entre sujeito e verdade

Iniciamos essa seção com uma contextualização da parrésia em relação ao


cuidado de si e ao conhecimento de si, indicamos sua relação com a aleturgia e o
parresiasta, a comparamos aos modos de veridicção da profecia, da sabedoria e do
saber técnico e já discorremos sobre quase todos os seus elementos constituintes
com exceção de seu núcleo. O que reside no coração dessa noção de parrésia ética?
Ora, sabemos que o parresiasta não é um profeta que diz a verdade em nome de
outro e desvela, enigmaticamente, o destino. Também sabemos que ele não é um
sábio que em nome da sabedoria guarda silêncio e, quando lhe aprouve, diz o ser e a
natureza. Também sabemos, é claro, que ele não é um professor, não é um instrutor
que, em nome de uma tradição, transmite a verdade de sua tékhne. Ao contrário, na
medida em que assume o risco de entrar em guerra com os outros, o parresiasta põe
em jogo o discurso verdadeiro do que os gregos chamavam de éthos.
Nesse ínterim, podemos notar que esse percurso em torno da noção de
parrésia ética descortinou algumas coisas. Chegamos ao ponto em que as diferentes
considerações sobre o tema da parrésia convergem e permitem determinar não só o
objeto da própria parrésia como também os objetos das outras três modalidades do
dizer-a-verdade na cultura antiga. A profecia é a modalidade de veridicção
correspondente ao destino. A sabedoria é a modalidade de veridicção correspondente
ao ser. O técnico, o professor, o instrutor é a modalidade de veridicção correspondente
à tékhne. O parresiasta e o jogo da parrésia é a modalidade de veridicção
correspondente ao éthos, ou, inversamente, o éthos tem sua veridicção na palavra do
parresiasta e no jogo da parrésia. Cumpre notar, contudo, a advertência feita por
Foucault pra que não tomemos essas modalidades do dizer-a-verdade expressas por
ele através das figuras do profeta, do sábio, do técnico e do parresiasta como
personagens ou papéis sociais. Tratam-se aqui, essencialmente, de modos de
veridicção. Assim sendo, acontece desses modos de veridicção serem combinados
uns com os outros e encontrados em forma de discurso.
Foucault evoca a figura de Sócrates como exemplo de personagem que
comporta elementos da ordem da profecia, da sabedoria, do ensino e da parrésia.
Sócrates foi objeto de uma profecia. Sócrates recebeu do deus de Delfos o
reconhecimento de sua sabedoria. Sócrates, para honrar a profecia e honrar também
222
o deus de Delfos formula o princípio “conhece a ti mesmo” e inicia sua missão. A
função parresiasta de Sócrates não é totalmente estranha, portanto, a certa relação
com a função profética da qual, no entanto, se distingue. Sócrates também mantém
uma relação com a sabedoria que é marcada por características como a sua virtude
pessoal, ao seu domínio de si (enkrateia), à sua abstenção em relação a todos os
prazeres, sua resistência dos sofrimentos e sua capacidade de se abstrair do mundo.
Além disso, apesar de parresiasta, Sócrates também maneja o silêncio como o sábio.
Sócrates não faz discursos nem diz espontaneamente o que sabe. Pelo contrário,
Sócrates diz simplesmente que não sabe e se mantém na maior parte do tempo em
silêncio. Sócrates, em vez de proferir verdades propositivas, contenta-se em
interrogar. E a maneira de Sócrates interrogar equivale à maneira de, por assim dizer,
compor e conduzir a prática da parrésia. Dizendo que não sabe e interrogando é que
Sócrates vai cumprir seu dever de interpelar e falar. Afirmar não saber e interrogar é,
por excelência, o estilo da parrésia socrática. Vemos, portanto, mesclas da função
profética com a função parresiástica, bem como traços de sabedoria na prática
socrática da parrésia. Quanto à relação com o técnico, com a instrução, com o ensino,
lembremos que o problema de Sócrates consiste em, basicamente, como ensinar a
virtude e como dar aos jovens as qualidades e os conhecimentos necessários, seja
para viver, seja para governar.

Esses quatro modos de dizer-a-verdade são, a meu ver, absolutamente


fundamentais para a análise do discurso, na medida em que, no discurso, se
constitui, para si e para os outros, o sujeito que diz a verdade. Acredito que,
desde a cultura grega, o sujeito que diz a verdade assume essas quatro
formas possíveis: ou ele é o profeta, ou é o sábio, ou é o técnico, ou é o
parresiasta.

(Foucault, [1984] 2011, p.27)

Numa aula do curso de 1984, Foucault expõe algumas conjecturas relativas às


modalidades do dizer-a-verdade na modernidade. Ele estabelece algumas relações
entre as modalidades de veridicção do mundo antigo e as modalidades de veridicção
do mundo moderno. De acordo com Foucault, poderíamos encontrar a modalidade do
dizer-a-verdade profético em certo número de discursos políticos, de discursos
revolucionários, pois assim como o discurso profético, o discurso revolucionário fala
em nome de outro e fala para dizer o futuro. A modalidade ontológica do dizer-a-
223
verdade que diz o ser das coisas poderia ser encontrada, por seu turno, numa
modalidade do discurso filosófico. A modalidade do dizer-a-verdade do saber técnico
se organiza mais em torno de um complexo constituído pelas instituições de ciência e
pesquisa e as instituições de ensino. Já a modalidade do dizer-a-verdade
parresiástica, segundo Foucault, desapareceu enquanto modalidade autônoma. Ela
só aparece enxertada e apoiando-se numa das três outras modalidades de veridicção.
Ao assumir a forma de uma crítica da sociedade, o discurso revolucionário
desempenha o papel de discurso parresiástico. Ao analisar, refletir e criticar as coisas
de modo a extravasar os limites da finitude humana, o discurso filosófico desempenha
um pouco o papel de discurso parresiástico. Ao se desenrolar como crítica aos
preconceitos, aos saberes, às instituições, a certas maneiras de fazer, o discurso
científico desempenha esse papel parresiástico.
Reproduzimos essas conjecturas de Foucault a respeito das modalidades do
dizer-a-verdade na modernidade como forma de introduzir o problema do
desaparecimento da parrésia enquanto modalidade discursiva autônoma. No entanto,
temos razões para supor que Foucault apostou na possibilidade, senão de um
reaparecimento da modalidade de veridicção da parrésia, pelo menos de
ressurgimento de uma forma de parrésia na prática filosófica. Precisamos
compreender primeiro como ocorrera esse desaparecimento da parrésia.
No curso de 1982, A hermenêutica do sujeito, Foucault assinalou a ocorrência
de uma cisão entre filosofia e espiritualidade a partir do que chamou de “momento
cartesiano”. Como essa cisão ocorrera? Através da requalificação filosófica do
princípio “conhece a ti mesmo” (gnôthi seautón). O procedimento cartesiano, explícito
nas Meditações (1641), consistiu em instalar “a evidência”, tal como efetivamente se
dá na consciência, na origem, no ponto de partida do procedimento filosófico. Bem,
não que tenha sido efetivamente Descartes o responsável por toda essa
transformação no paradigma filosófico do Ocidente, mas é ele quem, sem dúvida,
melhor representa esse acontecimento. Além disso, ao colocar a evidência da
existência própria do sujeito no princípio do acesso ao ser, o conhecimento de si
mesmo, sob a forma da indubitabilidade da existência do sujeito enquanto sujeito, fez
do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) um acesso fundamental à verdade.
Foucault observa que entre o gnôthi seautón socrático e o procedimento cartesiano a
distância é imensa. Mas, “compreende-se porém por que, a partir deste procedimento,

224
o princípio do gnôthi seautón como fundador do procedimento filosófico, pôde ser
aceito, desde o século XVII portanto, em certas práticas ou procedimentos filosóficos.”
Mas ao passo que o procedimento cartesiano requalificou o “conhece-te a ti mesmo”
(gnôthi seaulón), contribuiu decisivamente para a desqualificação e exclusão do
princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) do campo do pensamento filosófico
moderno.
Para demarcar a mencionada cisão entre filosofia e espiritualidade, Foucault
propõe, primeiro, que se defina a filosofia como uma modalidade do pensamento que
em vez de se questionar sobre o que é verdadeiro e o que é falso, se questiona sobre
o que faz com que haja e possa haver o verdadeiro e o falso e o sobre o que torna
possível ou não separar o verdadeiro do falso; como uma modalidade de pensamento
que visa determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade.
Notemos, então, que ao buscar definir a filosofia, o modo de ser da filosofia e a prática
da filosofia, Foucault sempre nos remete a alguma relação fundamental com a
verdade.
A seguir, propõe que se defina a espiritualidade como um conjunto de buscas,
práticas de experiências como as asceses, renúncias, conversões, etc. que
constituem para o ser do sujeito o custo para se ter acesso à verdade. A
espiritualidade ocidental postula que “a verdade jamais é dada de pleno direito ao
sujeito”; que “o sujeito enquanto tal não tem direito, não possui capacidade de ter
acesso à verdade”; que “verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter
tal e qual estrutura de sujeito”. A espiritualidade postula, enfim, “a necessidade de que
o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, tome-se, em certa medida e até
certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito a o acesso à verdade”.
Então, o sujeito não tem direito à verdade, a verdade não é dada ao sujeito por
um simples ato de conhecimento e se faz necessário uma transformação no sujeito
para que ele tenha acesso à verdade. “A verdade só é dada ao sujeito a um preço que
põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade”.
Enfim, não pode haver verdade sem uma transformação do sujeito. Esta
transformação, porém, pode fazer-se sob diferentes formas.
A conversão pode ocorrer sob a foma de um movimento que arranca o sujeito
de sua condição atual, mas também sob a forma de um trabalho pela qual o sujeito

225
pode e deve transformar-se para ter acesso à verdade. Esta última forma de
conversão consiste num trabalho de si, elaboração de si, transformação progressiva
de si em que o sujeito é o responsável por um longo labor que é o da ascese (áskēsis).
Pois bem, a espiritualidade postula que quando se tem acesso à verdade por
meio de procedimentos espirituais, no sujeito se produz efeitos que são consequência
do procedimento espiritual realizado, mas que são também outra coisa, são efeitos da
própria verdade sobre o sujeito ou, como disse Foucault, são efeitos “de retorno” da
verdade sobre o sujeito. Lembremos que para a espiritualidade a verdade não é dada
ao sujeito a fim de recompensá-lo pelo ato de conhecimento e a fim de preencher este
ato de conhecimento. Para a espiritualidade, “a verdade é o que ilumina o sujeito; a
verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranquilidade de alma. Em
suma, na verdade e no acesso à verdade há alguma coisa que completa o próprio
sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura”. Enfim, podemos
concluir que, do ponto de vista da espiritualidade, um ato de conhecimento jamais
seria capaz de dar acesso à verdade se não fosse acompanhado e consumado por
certa transformação do próprio sujeito no seu ser de sujeito.
No pensamento antigo a questão filosófica de como ter acesso à verdade e a
prática da espiritualidade são dois temas que jamais estão separados. São temas
inseparáveis para os pitagóricos, para o platonismo, para os estoicos, os cínicos, os
epicuristas, os neoplatônicos, etc. (no que diz respeito a isso, Aristóteles é uma
exceção). O princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) designa precisamente o
conjunto das condições de espiritualidade, isto é, o conjunto de atitudes, práticas,
técnicas, procedimentos, exercícios e meditações capazes de dar ensejo às
transformações de si que constituem a condição de acesso à verdade.
A história da verdade entrou no seu período moderno quando se admitiu que o
que dá acesso à verdade é o conhecimento e tão somente o conhecimento. No tocante
ao acesso à verdade, a transformação de si tornou-se algo prescindível, não
essencial. Passou-se a considerar que aquele que busca a verdade é em si mesmo
capaz, por sua estrutura de sujeito, de ter acesso à verdade por meio de seus atos de
conhecimento. Passou-se a considerar o sujeito capaz de reconhecer a verdade e de
ter acesso à verdade contando unicamente com o conhecimento. Passou-se a
considerar outras condições para a obtenção da verdade. Há, de um lado, as
condições internas do ato de conhecimento e as regras a serem seguidas para ter

226
acesso à verdade (condições formais, condições objetivas, regras formais do método,
estrutura do objeto a conhecer). E há, por outro lado, as condições extrínsecas:
condições mentais (é preciso ser são, pois o louco é incapaz de reconhecer a verdade
e, portanto, de ter acesso a ela); condições culturais (ter realizado estudos, ter uma
formação, fazer parte de alguma instituição científica ou ter participação em trabalhos
científicos); condições morais (é preciso esforçar-se, não tentar enganar seus pares,
e que os interesses pessoais se ajustem bem às normas da pesquisa desinteressada).
Assim, Foucault considera que desde o momento em que se encarou o sujeito como
sujeito capaz de verdade sem que seu ser tenha sido posto em questão entramos
numa outra era da história das relações entre subjetividade e verdade.
Em síntese, podemos dizer que em determinado momento da história as
relações entre sujeito e verdade foram profundamente alteradas e transformaram
radicalmente a experiência que o sujeito passou a ter de si mesmo. Enquanto que
num primeiro momento, antigo, o encontro do sujeito com a verdade o iluminava, o
preenchia com um sentimento de completude e, como custo a ser pago pela
experiência, transfigurava seu ser, num segundo momento, moderno, as relações
entre sujeito e verdade se inverteram de tal modo que um simples ato de
conhecimento passou a conceder ao sujeito acesso à verdade. No entanto, em vez
de recompensa ou completude, o sujeito só encontrou uma dimensão indefinida onde
o conhecimento passou a se acumular. Antes, a verdade era capaz de salvar o sujeito;
depois, a verdade se revelou incapaz de salvar o sujeito. Se definirmos a
espiritualidade como “o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é,
não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar
e salvar o sujeito”, estamos admitindo que as relações entre sujeito e verdade no
mundo antigo é o que proporciona as condições de espiritualidade. As relações
modernas do sujeito com a verdade, por sua vez, postulam que “o sujeito, tal como
ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar
o sujeito”.

227
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS JOGOS E A QUESTÃO DA SALVAÇÃO

Que tempos são estes? Que tempos são estes em que a verdade não passa
de uma palavra conveniente, oportuna e servil? Que tempos são estes em que,
asfixiados por informações, padecemos diante de telas de luz azul? O que esperar de
nós, sujeitos da pós-verdade? Cá estamos um tanto decepcionados. A Modernidade
não foi nada daquilo que nos prometeram. E o que nos resta? Vagar nostalgicamente
sobre os escombros da humanidade? Nada mais mesquinho e covarde. Engajar-se
numa causa? Mas de acordo com quê? Quais são os critérios? Que princípios
orientariam nossa prática? Com o que devemos nos comprometer quando nos
dispomos a pensar a atualidade? Noutras palavras: o que esperar, afinal, do
intelectual contemporâneo?
Se não há uma razão universalmente válida nem possibilidade de consenso
legítimo; se toda impressão de progresso não passa de ilusão; se a ideia de paz
perpétua se revela, no fim das contas, ingênua; se a autópsia do sagrado só realçou
a desorientação e arrefeceu a esperança de um propósito comum; e se o
conhecimento que prometia nos libertar findou nos jogando no vácuo (semelhante à
abolição que, mirando na liberdade, lançou os ex-escravos mais perto da fome), o que
nos resta?
Diante disso, não parece exagero dizer que a ética do pensamento tardio de
Michel Foucault possa representar para alguns, para empregar aqui uma expressão
das Confissões da carne, uma espécie de “salvação”. Ter resgatado este termo de
sua conotação religiosa cristalizada — sem, contudo, renunciar à força de semelhante
emprego — foi, sem dúvida, um dos préstimos concedidos por esse estudo da ética
antiga.
Não obstante, falar em nome de uma ética foucaultiana ainda é algo, no
mínimo, discutível. Em parte, porque em lugar algum do pensamento público de
Foucault, isto é, do conjunto de seus livros, cursos, entrevistas e outros textos que

228
compõem os Ditos e Escritos encontramos uma formulação explícita de uma
concepção ética de autoria reivindicada, ao mesmo tempo efetivamente proposta e,
menos ainda, justificada em termos de universalidade. O aparecimento das
elaborações temáticas sob uma perspectiva ética e a necessidade da reformulação
da noção — ou, pra ser mais exato, da formulação de uma concepção própria — de
ética foi relativamente tardio. Não ocorreu com o início do projeto da história da
sexualidade por volta de 75, mas alguns anos depois. De forma mais explícita, mas
apenas como uma primeira aproximação, elaborações concernentes à ética ganham
espaço no curso Subjetividade e Verdade (1981-1982), primeiro como um aspecto de
elementos concretos de um campo de análise e depois como um ponto de vista da
ética sexual antiga (a partir da reconstituição dos princípios de apreciação sexual).
No ano sabático de 77, Foucault não ministra cursos nem publica livros. Volta-
se só para a pesquisa, em sua maior parte nova, e promove um deslocamento da
questão do biopoder à de governo. As menções à ética, de maneira geral emitidas
pelo autor nesse ano, ainda não é aquela que caracterizará seu pensamento tardio.
Alguns chamam de “guinada ética” o movimento pelo qual se fez surgir uma vasta
problematização histórica da subjetividade antiga e do cristianismo primitivo no
pensamento de Foucault. Esse movimento que inaugura aquilo que outros chamaram
de eixo ético — o terceiro eixo, antecedido por duas analíticas, do saber e do poder
— só ocorreria com a pesquisa e as aulas referentes ao curso O Governo dos Vivos
(1979-1980) no Collège de France.
A partir daí pode-se notar o surgimento de análises de temas sob um prisma
ético, elaborações que redimensionam e demarcam um novo campo de estudo,
hipóteses que, pouco a pouco, e cada vez mais, não se impõem como teses, mas
como operadoras provisórias de análises, e, enfim, exercícios de formulação de uma
noção de ética que correspondesse às expectativas das questões que vinham
surgindo a partir desses estudos. As concepções de ética herdadas da tradição não
pareciam servir. Mas também não era o caso de definir taxativamente, e de uma vez
por todas, um conceito de ética. Nenhum compromisso definitivo. Um campo rico em
possibilidades estava se abrindo, se descortinando aos poucos. Não convinha
qualquer dogmatismo. Era hora de experimentar, explorar as possibilidades, com
ousadia, pode-se dizer, pelo que veremos mais tarde, mas também com franqueza
para só admitir uma noção enquanto fosse útil para a análise e sensibilidade analítica

229
para fazer os ajustes de método necessários. Assim, não encontramos muitas
formulações explícitas de uma concepção de ética; e quando encontramos, na maior
parte das ocasiões, não se trata de uma concepção autoral no sentido forte do termo,
visto que corresponde a um problema específico passível de delimitação histórica.
Desse modo, também não é metodologicamente definitiva, mas contextual, reservada
àquele momento, conforme os ajustes mútuos do método e do objeto para o
experimento apresentado.
Assim, por mais retomada que tenha sido a problemática da ética por Foucault
a partir dos anos 1980, inclusive em entrevistas, onde se destaca A ética do cuidado
de si como prática da liberdade (1984), seria legítimo chamar de ética foucaultiana
aquilo que — conforme o próprio autor — seria a ética do cuidado de si, delineada a
partir de um longo estudo das práticas de cuidado de si em geral, e em suas
especificidades, orientadas por filósofos moralistas, diretores de consciência e
mestres de vida?
Uma vez que a experiência pagã da salvação não tem nenhuma pretensão de
universalidade, prescinde de qualquer compromisso com uma conversão geral. Ainda
que Sócrates conferisse a si mesmo a incumbência de interpelar os cidadãos
atenienses a se ocuparem consigo mesmos, cuidar de si mesmo tal como se devia
era um privilégio daqueles que (não precisando lavrar a própria terra como os hilotas)
podiam dispor de tempo para si. E mais, era mesmo uma prerrogativa daqueles que
deviam governar as cidades (pólis). Isto significa que o cuidado de si era uma prática
tão somente para alguns na medida em que tinha por finalidade, não a salvação como
predestinação comum, mas o governo de si mesmo em função de poder bem governar
os outros.
Embora o princípio do “cuidado de si” (epiméleia heautoû) tenha alcançado, nos
primeiros séculos de nossa era, no auge da “cultura de si”, o caráter de princípio geral,
no que tange à efetividade histórica dessas práticas — seja da direção de consciência
através da qual se deve recolher a palavra verdadeira (lógos), seja do regramento da
vida por meio do qual se pode dar à existência (bíos) uma forma determinada ou do
trabalho sobre si (áskēsis) capaz de reconfigurar os próprios termos da relação
consigo e, por consequência, da relação com os outros —, por mais difundidas que
tenham sido, estavam longe de constituírem uma atividade comum a todos. Não só
porque nem todos os indivíduos dispunham de tempo livre e tampouco tinham a

230
mesma pretensão de tomar partido na administração da cidade — principal indicação
dada no Alcebíabes —, mas também porque as práticas organizadas em função do
cuidado de si exigiam de seus adeptos não só um labor contínuo, mas uma conversão
global do sujeito sobre si mesmo a partir da qual esse labor cotidiano se ordenava.
Essa conversão — ou conversões — consistia numa atitude tal que,
convocando o sujeito para si, fazendo-o convergir em direção a si, e na medida em
que capturava seu olhar e retinha sua atenção, conservando-o em si, em sua meta,
alinhado seu caminho a seu propósito, estabelecia uma espécie de distância entre o
indivíduo e o mundo. Essa distância, entretanto, com exceção da vida monástica, não
consistia de modo algum numa ruptura radical com o mundo, mas sim numa mudança
de nível da percepção que, situando um intervalo entre o homem e o mundo, fazia
cessar o intercâmbio direto — não refletido — entre eles. Podemos presumir inclusive
que esse aspecto, por assim dizer, exterior da atitude de conversão (aspecto que
marca um distanciamento, de todo modo, entre esse modo de existência e a vida
humana comum) contribuíra para a caracterização desses modos de existência como
uma vida ascética, e para uma relativa equivalência durante bons séculos entre esta
e a vida filosófica.
Parece que até esse momento do pensamento greco-romano o termo sotería
só é empregado de duas formas, uma, digamos, instrumental, decorrente da
conjugação do verbo salvar e com o sentido de resgatar e conservar, e outro, por
assim dizer, de mera consequência. Assim a encontramos no curso de 1982, em meio
a uma análise de conselhos de vida e de práticas de si.
Os textos organizados sob a égide do princípio do “cuidado de si”, visavam
instrumentalizar a modificação do sujeito por ele mesmo no sentido de sua
constituição ou reconstituição moral. A esse respeito, cabe ressaltar a importância
dada por Foucault à análise histórica das modalidades de relação de si para consigo,
das diferentes maneiras pelas quais os sujeitos tomam alguma parte de si próprios
como centro de preocupação ética. Quatro são os elementos constitutivos da ética
para Foucault e em relação aos quais esses textos das artes da existência deveriam
instruir, a saber, a “substância ética”, o “modo de sujeição”, o “trabalho ético” e a
“teleologia do sujeito moral”.
Por substância ética devemos entender a parte mais relevante para o sujeito
conduzir-se moralmente que precisa ser indicada. Por exemplo, “a efetivação do ato,

231
os movimentos do desejo e a qualidade dos sentimentos constituem três partes
importantes de si mesmo”. Por modos de sujeição devemos entender a maneira
através da qual se sujeita a uma regra, “ou seja, como alguém se relaciona com ela e
sente-se na obrigação de colocá-la em prática”. Por trabalho ético devemos entender
a elaboração de um trabalho sobre si que resultará na transformação do indivíduo em
sujeito moral de sua própria conduta mediante certas práticas de si”. Por fim, a
teleologia do sujeito moral, a respeito da qual podemos dizer que se trata do “objetivo
que se pretende alcançar por meio da elaboração do trabalho de si sobre si, ou seja,
alcançar a condição de sujeito moral”.
Acontece que, segundo Foucault, os princípios morais da sociedade ocidental
foram não só profundamente transformados como rigorosamente invertidos, de modo
que “experimentamos a dificuldade em fundamentar uma moral rigorosa e princípios
austeros em um preceito que diz que devemos nos preocupar com nós mesmos mais
do que com qualquer outra coisa”. Devido termos herdado uma moral cristã que faz
da “renúncia de si” (abnegatio sui) a condição da salvação (salvatio) e do “conhecer-
se a si mesmo” (gnôthi seautón), um meio de renunciar a si, findamos herdando
também “uma tradição secular que vê na lei externa o fundamento da moral”. Trata-
se de “uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento aceitável
sobre as relações com os outros”. Assim, questiona Foucault, “como o respeito que
se tem consigo mesmo pode constituir a base da moral?”. Em síntese, se na
Antiguidade o “conhece a ti mesmo” (gnôthi seautón) decorreu do “cuidado de si” e
estava a ele subordinado, na Modernidade o conhecimento de si constitui o princípio
fundamental.

Todo o percurso que fizemos até aqui deve ter sido suficiente para demonstrar
que algo como um “impulso lúdico” não só habita o sujeito como constantemente o
impele ao divertimento e ao jogo. Poder-se-ia objetar que nem todos os sujeitos são
dados ao divertimento ou afeito a jogos, ou antes, que alguns sujeitos parecem se
abster completamente a qualquer tipo de divertimento e demonstrarem desdém ou
mesmo aversão a jogos. O autor dessa objeção obviamente não está considerando,
entre os possíveis divertimentos, aqueles que são próprios do pensamento, tais como
o devaneio, elucubrações, etc.. Que sujeito poderia alegar isenção dessa inextricável
atividade do espírito que consiste em fantasiar livremente sobre o estado de coisas

232
da realidade? Quantos não se pegam teorizando sobre o mundo e as coisas do mundo
sem nenhum fim em vista? Quanto aos jogos também poder-se-ia objetar que nem
todos os sujeitos deles participam, ou antes, que alguns sujeitos não só com eles
antipatizam como manifestam em relação aos mesmos uma verdadeira aversão.
E, com efeito, quer entendamos por jogo uma atividade permeada pelo que
chamamos “espírito do jogo” ou uma atividade que apresente as características
formais do jogo — ser uma atividade voluntária, limitada no espaço-tempo, constituída
por regras, auto-finalizada, acompanhada de jubilosa tensão e que represente uma
experiência distinta do cotidiano —, somos todos igualmente inclinados ao jogo.
Talvez o começo do caminho em direção a salvação seja algo despretensioso
como o impulso lúdico. Talvez Platão, de certo modo, tivesse alguma razão em
relacionar o jogo com a educação e o divino. Talvez Huizinga não tenha se enganado
quando disse que podemos enxergar por trás de toda a cultura elementos de jogo. Em
meio a tantas modalidades de jogo, nos perguntamos, quais seriam as consequências
de aceitarmos jogar na atualidade o jogo parresiástico resgatado da cultura antiga por
Foucault no fim de seu ensino? Como vimos, o jogo que se dá na esfera do
pensamento pode ou não se relacionar com a espiritualidade. Quanto ao jogo do
desejo, leva o sujeito a um trabalho de si? Por que desse jogo proposto por Foucault
declinam os psicanalistas? O que temem descobrir? Seu próprio inconsciente
histórico?

233
REFERÊNCIAS

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