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“Assim é dito em toda a parte: tudo deve ser do Estado, e eis o Estado
totalitário, como é chamado: nada sem o Estado, tudo ao Estado. Mas
há aqui uma falsidade evidente, e que é impressionante como homens,
sérios e dotados de talento, o digam, enganando às massas. De fato,
como o Estado poderia ser verdadeiramente totalitário, dar tudo ao
indivíduo e tudo requerer; como poderia dar tudo ao indivíduo para a
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sua satisfação interior – porque se trata de cristãos – para a
santificação e glorificação da alma? Por isso, quantas coisas fogem da
responsabilidade do Estado, na vida presente e em vista da vida futura,
eterna! E, neste caso, seria uma grande usurpação, pois se há um
regime totalitário – totalitário de fato e de direito – é o regime da Igreja,
porque o homem pertence totalmente à Igreja, deve pertencer a ela,
dado que o homem é a criatura do bom Deus, ele é o preço da Redenção
divina, ele é o servidor de Deus, destinado a vive para Deus em
qualquer lugar, e com Deus no céu. É o representante das ideias, dos
pensamentos e dos direitos de Deus é a Igreja. Então, a Igreja tem
verdadeiramente o direito e o dever de reclamar a totalidade do seu
poder sobre os homens: todo homem, inteiramente, pertence à Igreja,
porque pertence inteiramente a Deus. Não há dúvida sobre este ponto,
para quem não deseje tudo negar.”
Pio XI, Discorso agli iscritti alla
Federazione francese dei sindicati cristiani
(1938)
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“(...) com toda aquela sede, vi, do lado de fora da janela, ao “alcance da
mão, um bonito caramelo de gelo. Abro a janela, quebro o caramelo,
mas logo adianta-se um grandalhão que está dando voltas lá fora e o
arranca brutalmente da minha mão. – Warum? Pergunto em meu pobre
alemão. – Hier is kein warum. Responde, empurrando-me para trás.”
Primo Levi, É isto um homem?
“Ao terminar, cada qual fica em seu canto, sem ousar levantar o olhar
para os demais. Não há espelhos, mas a nossa imagem está aí na nossa
frente, refletida em cem rostos pálidos, em cem bonecos sórdidos e
miseráveis. Estamos transformados em fantasmas como os que vimos
ontem à noite. Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a
nossa língua não tem palavras para expressar está ofensa, a
aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase
profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais baixo
não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá
para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos,
até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem,
não nos compreenderão. Roubaram também o nosso nome, e, se
quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para
tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que
éramos.”
Primo Levi, É isto um homem?
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mesmo, quando releio meus textos após alguns anos. Nós,
sobreviventes, somos uma minoria não só minúscula, como também
anômala. Somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte,
jamais tocaram o fundo. Os que tocaram, e que viram a face das
Górgonas, não voltaram, ou voltaram sem palavras.”
Primo Levi, Os afogados e os
sobreviventes
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“...a Górgona é sempre representada de face, sem qualquer exceção.
Máscara pura e simples ou personagem integral, o rosto da Górgona
invariavelmente encara de frente o espectador que a observa. Em
segundo lugar, a “monstruosidade”. Quaisquer que sejam as
modalidades de distorção empregadas, a figura sistematicamente joga
com as interferências entre o humano e o bestial, associados e
misturados de diversas maneiras.”
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máscaras gorgôneas pelos guerreiros no campo de batalha.
Expressando monstruosidade e desumanidade, o uso das máscaras
servia para incutir no inimigo “o medo em estado puro”. Face do terror e
da morte, o olhar gorgônico gelava o coração do adversário mediante a
difusão plena do pavor, do medo e do pânico. É também a manifestação
da ira e da fúria em estado puro, da força maior que devassava os
frágeis limites entre a vida e a morte, a cultura e a barbárie, o homem e
o bestial. Na Ilíada, a ira é uma das primeiras palavras escritas por
Homero. A ira é compartilhada pelos deuses e homens em suas ações
ordinárias, mas amplamente potencializada no curso da guerra. Foi
descrita em muitos versos, mas em dois deles é explícito o seu sentido:
1) no verso que descreve a ação de Heitor em direção aos barcos dos
Acaios, ceifando vidas a cada marcha dos seus cavalos: “Heitor, esse de
toda a parte os acossava, impelindo os seus cavalos de belas crinas, e
os olhos fulguravam-lhes terríveis como os da Górgona ou de Ares.
Calamidade dos mortais”; 2) no verso no qual o poeta descrevendo as
vestimentas guerreiras de Agamenon diz que “na cabeça, à maneira de
coroa, com o visco da própria peçonha, grudara-se a Górgona, de olho
feroz e olhares terríveis, e logo ali, ao lume vivo do mau-olhado,
nasciam o Espanto e a Fuga.”. O olhar gorgôneo estava presente em
todos os guerreiros, não sendo uma característica de um dos povos em
luta. Sua representação simboliza a presença da morte na face
humana, bem como é a expressão maior da violência total contida no
ser humano.
É possível dizer que se as Górgonas arrancam “o homem de sua
vida e de si mesmo (...) para projetá-lo para baixo, na confusão e no
horror do caos”, no Lager (o campo de concentração e extermínio criado
pelo nazismo) a força que arrastou os confinados até o fundo foi a da ira
e da fúria, da desumanização e do racismo, a violência extrema
organizada burocrática e militarmente, potencializadas e manipuladas
pelos estados totalitários. Dupla, portanto, seria então a face das
Górgonas no universo concentracionário: a da violência imanente que
há no ser humano e a violência extrema dos Estados totalitários.
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IV – A construção social do estigma, do poder e das instituições
totais: o interacionalismo simbólico de Erving Goffman
1) A metodologia de Erving Goffman
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Alessandro Dal Lago, “Prefazione” In
Goffman, Asylums. Le istituzioni totali: i
meccanismi dell'esclusione e della
violenza
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moral mediante a qual, quem detém o poder nas instituições, justifica
as práticas de degradação dos seres humanos frequentemente
efetuadas.”
Destacar:
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f) O criticismo analítico: a reconstrução do problema sociológico e a
informação da existência dos processos culturais que legitimam as
instituições totais e a violência contra os indivíduos e grupos não
reconhecidos em seus direitos de existência, marginalizados e
segregados e excluídos do convívio público. A busca das conexões de
sentido entre os processos sociais e a estrutura institucional que
regulam a interação social.
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“Para Goffman, o ator social não é um indivíduo exclusivamente envolto
em cálculos racionais, nem é um puro e simples executor de preceitos
culturais, nem uma mera expressão de instâncias profundas, como
pretenderam as teorias sociais mais em voga no século XX, como o
marxismo e a psicanálise (em suas versões caricaturadas). Ou melhor, é
um pouco de tudo isto, e algo mais: sobretudo, é um virtuoso por
sobreviver em um mundo cotidiano repleto de perigos potenciais para o
respeito de si ou, o que é a mesma coisa, para o respeito “do seu eu” (...)
Este é precisamente o sentido de Asilo, no qual a descrição das práticas
de controle e desumanização dos internos é complementar ao
reconhecimento da sua luta de “resistência” pela identidade.”
Destacar:
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- Transmitir os valores e as normas, as práticas morais e as
regras sociais que geram as identidades coletivas.
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pessoa pelos magistrados que presidem o júri, com os prêmios, os
concursos, as seleções. E isto porque é uma articulação estatal
verdadeira e propriamente formada por um empenho invasivo. Isto
implica uma produção constante ao nível dramatúrgico e por uma parte
de enorme multidão. É um milagre, aquele ateniense de que se fala ao
nível cultural, intimamente conexo ao fato de que a própria cidade
tenha investido no teatro, compreendendo-o como uma fundamental
articulação com a educação coletiva.”
Luciano Canfora, Intervista “Il mondo di
Atenas” (2012)
Destacar:
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- a “ordem de interação”: os comportamentos que
sustentam a “condição de sociabilidade” (a investigação
sociológica dos pequenos comportamentos, que rotinizados,
são transformados em hábitos interativos, nos ajudam a
compreender a estrutura da ordem social; a investigação da
ordem social através dos pequenos comportamentos
rotinizados e habituais que as pessoas realizam sem
compreender o significado e o sentido social profundo):
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comportamento do outro, as reciprocidades, as
condutas rotinizadas.
- O uso das máscaras: aquele que usa máscara e oculta sua face
para interpretar um papel.
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- a exposição pública dos ritos sociais: experiências cotidianas,
dos comportamentos em público.
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Destacar
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deve ser uma ciência que investigue a realidade efetuando,
continuamente, sucessivas ressignificações da vida pessoal e
coletivas, distanciando-se dos sempre novos “sistemas
ptolomaicos” e aproximando-se das contínuas “revoluções
copernicanas”, galilenianas, que abrem a realidade das coisas
para novas formas de visão e compreensão através da observação
atenta e curiosa e das experiências hipotéticas e especulativas.
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- as estruturas linguísticas e semânticas
- os esquemas mentais (os mecanismos inconscientes e automáticos
que dão forma ao ser que pensa e age; as palavras e a estrutura
gramatical)
- a força das metáforas
“As instituições totais são lugares, espaços fechados, nos quais são
segregados os incapazes não perigosos (cegos, velhos, órfãos ou
indigentes), os indivíduos perigosos para a comunidade (sanatórios,
hospitais psiquiátricos, leprosários), os indivíduos altamente perigosos
ou considerados como tais (prisões, penitenciárias, campos de
prisioneiros, lager), mas também as instituições criadas para
desenvolver em um lugar concentrado alguma atividade (caserna,
navios, colégios, campo de trabalho, plantações coloniais) ou nos quais
pessoas se isolam voluntariamente do mundo (abadias, monastérios,
conventos, claustros) (...) A instituição total unifica em um mesmo lugar
e sob uma única autoridade todas as atividades cotidianas, abolindo
aquela espécie de “pessoal economia da ação” que nos identificamos
com a liberdade individual.”
Marco Belpoliti, Clinica, prisioni, caserna:
i luoghi in cui si deve lottare per restare
liberi
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desenvolvido na era moderna no curso da conquista do novo mundo e
na transformação política dos indígenas e africanos em subumanos e
escravos, alcançou o interior da Europa no século XX. A desumanização
do outro ou do inimigo, sempre existiu na história da humanidade, nos
clãs, nas tribos, nos génos, nas pólis gregas e nas urbes romanas, na
idade média, no colonialismo e no imperialismo. Contudo, a
singularidade do processo de desumanização do outro realizado pelos
nazistas reside no uso da ciência e da técnica, da organização estatal
burocrática e, sobretudo, da racionalidade instrumental. A combinação
de tais fatores possibilitou que no interior do campo ocorresse uma
profunda transformação na antropologia do ser humano: o
complemento do processo de desumanização, iniciado com a política de
violência nas grandes cidades com as leis raciais e a construção dos
guetos, alcançava o seu maior desenvolvimento na transformação dos
Häftlingen (prisioneiros) em seres não mais humanos, bestializados e
inferiorizados pela língua do Herrenvolk (povo dos senhores) e pelos
jargões do campo: “animais”, “escravos”, “mulçumano”, “animal-
homem”; “subespécie”, “ervas secas”, “impuros”, “cães” (LEVI, Os
afogados e os sobreviventes, p.39, 88 e 91; LEVI, Se questo è un uomo.
La tregua, p.345), “inúteis”, “merda”, “insetos”, “vermes”, “ratos”,
“bacilos”, “bestas”, “peças” (BURGIO, 2010, p.133), “cretinos”,
“camelos”, “porcos” (AGAMBEN, Quel che resta di Auschwitz. L’archivio
e il testimone, p.39 e 53). O muçulmano, aquele que desceu até o fundo
da lógica biopolítica do campo de concentração e extermínio, e que pôde
ver a face que também é gorgônea do ser humano – a face da
ferocidade, da brutalidade e da violência ilimitada que destrói e mata –,
seria para Levi a testemunha integral do campo de concentração e
extermínio. Um ser que deixou de viver antes da morte efetiva do corpo,
agindo sem a consciência moral, desprovido da fala e da
comunicabilidade linguística, o muçulmano era o resultado comum e
final que o totalitarismo reservava ao Untermensch (sub-homem).
Testemunha pela ausência daqueles que foram afogados e mortificados
pela face e ação gorgônea dos habitantes do “univers concentrationnaire”
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(Levi, Os afogados e os sobreviventes, p.4), viveu profunda e
dolorosamente a aporia de ser uma testemunha parcial do campo de
concentração e extermínio:
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2) as instituições criadas para tutelar aqueles que devido à
incapacidade de cuidar de si mesmos, representam um perigo (mesmo
que intencional) para a comunidade: os portadores de doenças
contagiosas (lepra, tuberculose), os doentes mentais.
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profanações” sistematicamente realizadas pelos funcionários, pelo
“staff” das instituições totais.
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e grupo social que o poder hegemônico identifica como politicamente,
racialmente ou socialmente suspeito de ser perigosa e ameaçadora,
estranha e impura: são espaços sociais e políticos que concentram os
excluídos que devem ser eliminados (etimologicamente, significa “fazer
sair”, “excluir”) da vida social.
Na criação das instituições totais como espaço político, o poder
soberano neutraliza os conflitos sociais, e no sentido mais amplo do
termo a presença na sociedade da dialética (das tensões, dos conflitos,
das contradições; das lutas sociais por reconhecimento dos grupos
sociais minoritários, subalternos, dominados; das novas formas de vida
e identidade subjetiva), através do confinamento, do aprisionamento, da
segregação e da exclusão social.
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desonrado, a pessoa e a não-pessoa, o nós e os outros. O estigma é uma
espécie de etiqueta, marca, que sinaliza o estranho, o diverso, o outro.
Goffman, identificou três tipos de estigmas que podem coexistir
em determinados períodos históricos e formações sociais:
Destacar
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existência de uma “ordem natural das coisas” (kosmos, cosmos: para
Alexander Koyrè, a palavra kosmos criada pelos gregos expressa uma
ordem hierárquica estática, perfeita e harmônica, dentro da qual cada
ontologia está em seu "lugar natural". Na “ordem natural das coisas”
reina a separação entre cada coisa e ser, a proporção exata que mede e
expressa cada coisa e ser. O corpo desforme é o contrário da ordem
harmônica, perfeita, pura, proporcional, equilibrada, de modo que, a
visão deste corpo gera perturbação, repugnância, medo do contágio,
temor do caos: o contrário da “ordem natural das coisas”, o reino do
disforme, do impuro, do indiferenciado, da desarmonia. O estigma
endereçado ao corpo disforme e deformado expressa a crença nos mitos
da pureza e da ordem, bem como, nos valores da raça superior e da
exclusividade da condição humana aos corpos reconhecidos,
identificados, prestigiados, como “normais”, belos, harmônicos. O
estigma somático foi um elemento fundamental para os processos de
desumanização, racismo, discriminação, exploração dos corpos das
mulheres, dos judeus, dos africanos, dos indígena nas Américas, dos
asiáticos na sociedade nacional e industrial.
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moral foi um elemento fundamental para os processos de
desumanização e discriminação, repugnância e desprezo para com os
andarilhos, os nômades, os mendigos, os moradores de rua, os
desempregados, os toxicodependentes, as prostitutas, os jogadores
compulsivos, os homossexuais, os homens e mulheres divorciados, as
mulheres que abortaram, etc., na sociedade nacional e industrial
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Os processos e mecanismos de estigmatização formam parte da
desumanização do outro e da restrição da exclusividade do humano aos
grupos e classes socais dominantes. Há fortes nexos entre os processos
de estigmatização, desumanização, racismo e dominação: todo ser e
grupos social estigmatizado é retirado do pertencimento à comunidade
humana, identificado como inferior física, mental, moralmente
(animalizado, instrumentalizado) e submetido aos processos de
submissão, dominação e exploração.
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