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Aula VII – A construção social do estigma, do poder e das

instituições totais: o interacionalismo simbólico de Erving


Goffman

I – Sobre as instituições totais 2

II – A espoliação do ser humano pelo poder totalitário: o 3


testemunho do universo concentracionário por Primo Levi

III – Sobre a face gorgônea do poder e da ordem 5

IV – A construção social do estigma, do poder e das


instituições totais: o interacionalismo simbólico de Erving
Goffman
1) A metodologia de Erving Goffman 7

2) Sobre a interação: a ritualidade da vida social 10

3) Sobre o sentido do teatro e os quadros sociais 12

4) Sobre frames: os quadros da análise sociológica 16

5) As instituições totais e o processo de desumanização 19

6) A construção social do processo de estigmatização 23

I – Sobre as instituições totais

“Assim é dito em toda a parte: tudo deve ser do Estado, e eis o Estado
totalitário, como é chamado: nada sem o Estado, tudo ao Estado. Mas
há aqui uma falsidade evidente, e que é impressionante como homens,
sérios e dotados de talento, o digam, enganando às massas. De fato,
como o Estado poderia ser verdadeiramente totalitário, dar tudo ao
indivíduo e tudo requerer; como poderia dar tudo ao indivíduo para a

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sua satisfação interior – porque se trata de cristãos – para a
santificação e glorificação da alma? Por isso, quantas coisas fogem da
responsabilidade do Estado, na vida presente e em vista da vida futura,
eterna! E, neste caso, seria uma grande usurpação, pois se há um
regime totalitário – totalitário de fato e de direito – é o regime da Igreja,
porque o homem pertence totalmente à Igreja, deve pertencer a ela,
dado que o homem é a criatura do bom Deus, ele é o preço da Redenção
divina, ele é o servidor de Deus, destinado a vive para Deus em
qualquer lugar, e com Deus no céu. É o representante das ideias, dos
pensamentos e dos direitos de Deus é a Igreja. Então, a Igreja tem
verdadeiramente o direito e o dever de reclamar a totalidade do seu
poder sobre os homens: todo homem, inteiramente, pertence à Igreja,
porque pertence inteiramente a Deus. Não há dúvida sobre este ponto,
para quem não deseje tudo negar.”
Pio XI, Discorso agli iscritti alla
Federazione francese dei sindicati cristiani
(1938)

“Estou me referindo às chamadas “casa de trabalho” ou “casas de


correção”, nas quais eram encerrados os chamados “vagabundos” que,
na realidade, eram os desocupados, encarcerados em ações
simplesmente policiais. As condições nestas “casas de trabalho” eram
efetivamente terríveis, e, de certo modo, elas podem ser compreendidas
como uma pré-figuração do universo concentracionário. Não somente
eram encerradas em uma instituição total que separava as famílias, o
marido da esposa, e ambos os genitores de seus filhos para evitar, como
se sustentava, que estes vagabundos pudessem exercer uma influência
nefasta sobre seus filhos, mas todos os internos nas “casas de trabalho”
eram submetidos a uma disciplina férrea e, por vezes, a formas de
sadismo.”
Domenico Losurdo, Il totalitarismo

II – A espoliação do ser humano pelo poder totalitário: o


testemunho do universo concentracionário por Primo Levi

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“(...) com toda aquela sede, vi, do lado de fora da janela, ao “alcance da
mão, um bonito caramelo de gelo. Abro a janela, quebro o caramelo,
mas logo adianta-se um grandalhão que está dando voltas lá fora e o
arranca brutalmente da minha mão. – Warum? Pergunto em meu pobre
alemão. – Hier is kein warum. Responde, empurrando-me para trás.”
Primo Levi, É isto um homem?

“Ao terminar, cada qual fica em seu canto, sem ousar levantar o olhar
para os demais. Não há espelhos, mas a nossa imagem está aí na nossa
frente, refletida em cem rostos pálidos, em cem bonecos sórdidos e
miseráveis. Estamos transformados em fantasmas como os que vimos
ontem à noite. Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a
nossa língua não tem palavras para expressar está ofensa, a
aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase
profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais baixo
não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá
para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos,
até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem,
não nos compreenderão. Roubaram também o nosso nome, e, se
quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para
tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que
éramos.”
Primo Levi, É isto um homem?

“Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de


nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais
o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem.”
Primo Levi, É isto um homem?

“Nós, que sobrevivemos aos campos, não somos verdadeiras


testemunhas. Esta é uma ideia incômoda que passei aos poucos a
aceitar, ao ler o que outros sobreviventes escreveram – inclusive eu

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mesmo, quando releio meus textos após alguns anos. Nós,
sobreviventes, somos uma minoria não só minúscula, como também
anômala. Somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte,
jamais tocaram o fundo. Os que tocaram, e que viram a face das
Górgonas, não voltaram, ou voltaram sem palavras.”
Primo Levi, Os afogados e os
sobreviventes

“Não havia um campo de Auschwitz; haviam 39. Havia Auschwitz


cidade e dentro havia um lager, e era Auschwitz propriamente dito, a
capital do sistema; mais além, a dois quilômetros, Birkenau, isto é,
Auschwitz segundo: aqui estava a câmara de gás; era um enorme lager,
dividido em 4-6 lager confinados; e mais acima havia a fábrica cujas
instalações estavam em Monowitz, o Auschwitz terceiro: eu estive ali;
este lager pertencia a uma fábrica, fora construído por ela; no geral,
havia 30-35 pequenos lager (minas, fábrica de armas, fazenda agrícolas,
etc.). O lager mais afastado estava em Brno, na Moravia: estava a cem
quilômetros em linha reta e pertencia a Auschwitz. No meu lager
erámos cerca de 10 mil pessoas: em Auschwitz central cerca de 15 a 20
mil; em Birkenau muito mais: 70-80 mil; e outros 20 mil esparramados
naqueles lager menores, onde se trabalhava entre a fome e o frio: eram
campos de punição. Mas a Administração estava em Auschwitz um, e o
campo de extermínio em Birkenau. O sistema de Auschwitz era o fruto
da experiência recolhida em todos os outros lager, para o extermínio e
para o trabalho forçado.”
Ferdinando Calmon, Conversazione con Primo
Levi

“Quanti mais o tempo passa, mais Auschwitz se aproxima.”


Grete Weil, Generationen

III – Sobre a face gorgônea do poder e da ordem

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“...a Górgona é sempre representada de face, sem qualquer exceção.
Máscara pura e simples ou personagem integral, o rosto da Górgona
invariavelmente encara de frente o espectador que a observa. Em
segundo lugar, a “monstruosidade”. Quaisquer que sejam as
modalidades de distorção empregadas, a figura sistematicamente joga
com as interferências entre o humano e o bestial, associados e
misturados de diversas maneiras.”

“Já em Homero ergue-se o palco em que Gorgó vai surgir e representar


seus diferentes papéis. Na Ilíada, a cena é de guerra. Gorgó figura na
égide de Atenas e no escudo de Agamêmnon; por outro lado, quando
Heitor faz seus cavalos girarem em todos os sentidos, levando a morte à
refrega, “seus olhos têm o olhar da Górgona”. Nesse contexto, de
confronto sem piedade, Gorgó é um Poder de Terror associado a “Pavor,
Derrota e Perseguição que gelam os corações” (...) É o medo em estado
puro, o Terror como dimensão do sobrenatural.”

“Usar uma máscara é deixar de ser o que se é e encarnar, durante a


mascarada, o Poder do além que se apossou de nós e do qual imitamos
ao mesmo tempo a face, o gesto e a voz (...) A face de Gorgó é o Outro,
nosso duplo, o Estranho, em reciprocidade com nosso rosto como uma
imagem no espelho (...) Olhar nos olhos de Gorgó é ver-se face a face
com o além em sua dimensão de terror (...) Quando encaramos Gorgó, é
Lea que faz de nós o espelho no qual, transformando-nos em pedra,
contempla sua face terrível e se reconhece no duplo, no fantasmas que
nos tornamos ao enfrentar o seu olho.”
Jean-Pierre Vernant, A morte nos olhos.
Figuração do outro na Grécia Antiga.
Ártemis e Gorgó

Em seu estudo sobre os mitos gregos Jean-Pierre Vernant afirmou


que olhar das Górgonas é o “poder da morte” próprio dos deuses, mas
que passava a ser propriedade dos homens mediante o uso das

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máscaras gorgôneas pelos guerreiros no campo de batalha.
Expressando monstruosidade e desumanidade, o uso das máscaras
servia para incutir no inimigo “o medo em estado puro”. Face do terror e
da morte, o olhar gorgônico gelava o coração do adversário mediante a
difusão plena do pavor, do medo e do pânico. É também a manifestação
da ira e da fúria em estado puro, da força maior que devassava os
frágeis limites entre a vida e a morte, a cultura e a barbárie, o homem e
o bestial. Na Ilíada, a ira é uma das primeiras palavras escritas por
Homero. A ira é compartilhada pelos deuses e homens em suas ações
ordinárias, mas amplamente potencializada no curso da guerra. Foi
descrita em muitos versos, mas em dois deles é explícito o seu sentido:
1) no verso que descreve a ação de Heitor em direção aos barcos dos
Acaios, ceifando vidas a cada marcha dos seus cavalos: “Heitor, esse de
toda a parte os acossava, impelindo os seus cavalos de belas crinas, e
os olhos fulguravam-lhes terríveis como os da Górgona ou de Ares.
Calamidade dos mortais”; 2) no verso no qual o poeta descrevendo as
vestimentas guerreiras de Agamenon diz que “na cabeça, à maneira de
coroa, com o visco da própria peçonha, grudara-se a Górgona, de olho
feroz e olhares terríveis, e logo ali, ao lume vivo do mau-olhado,
nasciam o Espanto e a Fuga.”. O olhar gorgôneo estava presente em
todos os guerreiros, não sendo uma característica de um dos povos em
luta. Sua representação simboliza a presença da morte na face
humana, bem como é a expressão maior da violência total contida no
ser humano.
É possível dizer que se as Górgonas arrancam “o homem de sua
vida e de si mesmo (...) para projetá-lo para baixo, na confusão e no
horror do caos”, no Lager (o campo de concentração e extermínio criado
pelo nazismo) a força que arrastou os confinados até o fundo foi a da ira
e da fúria, da desumanização e do racismo, a violência extrema
organizada burocrática e militarmente, potencializadas e manipuladas
pelos estados totalitários. Dupla, portanto, seria então a face das
Górgonas no universo concentracionário: a da violência imanente que
há no ser humano e a violência extrema dos Estados totalitários.

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IV – A construção social do estigma, do poder e das instituições
totais: o interacionalismo simbólico de Erving Goffman
                           
1) A metodologia de Erving Goffman

Alessandro Dal Lago, sociólogo italiano, apresenta o livro de


Erving Goffman Asilo com as seguintes palavras:

“Após haver analisado as características distintivas das instituições


totais, Goffman descreve o caráter complexo das “carreiras” psiquiatrias
(os percursos das instituições dos internos), o mundo do staff, as
cerimônias institucionais e, por fim, as adaptações dos internos à
cultura institucional, ou a sua luta de resistência para a manutenção
da dignidade. Para poder levantar o véu sobre uma dimensão tão
complexa, e solidamente fechada à opinião pública e à pesquisa social,
era necessário uma sensibilidade particular. No final do prefácio,
Goffman apresenta a pesquisa de campo, conduzida principalmente em
um hospital psiquiátrico de Washington, fora dos cânones (ou da
retórica) da neutralidade científica. Com a ironia que lhe era peculiar, o
autor esclarece que uma pesquisa sobre a situação dos doentes
psiquiátricos deve colocar-se do seu lado:

“O meu método tem ainda outros limites. Se quero descrever


fielmente o mundo do paciente não se pode ser objetivo (Disto me
desculpo, entre certos limites – afirmando que o desequilíbrio é
contudo o justo prato da balança, porque quase toda a literatura
profissional sobre pacientes mentais é escrita do ponto de vista do
psiquiatra, e ele está – socialmente falando – na outra parte (...)
Enfim, diversamente daquilo que acontece em alguns pacientes,
eu cheguei ao hospital animando por bem pouco respeito pela
psiquiatria como ciência, e por outras entidades a ela vinculadas”
(Goffman, Asilo. As instituições totais: os mecanismos de exclusão
e de violência).”

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Alessandro Dal Lago, “Prefazione” In
Goffman, Asylums. Le istituzioni totali: i
meccanismi dell'esclusione e della
violenza

A objetividade pode ser alcançada, ao menos na sociologia,


reconhecendo as assimetrias de papéis, de posição social ou de poder
que dão uma determinada característica à interação social. Esta
posição não é isolada na sociologia de Goffman. Vinte anos mais tarde,
ele retornará ao mesmo problema no discurso presidencial escrito para
o Congresso de 1982 da American Sociological Association, um discurso
que não pode ser proferido devido à doença que o conduziu à morte:

“Esta é a nossa herança e esta é ainda aquilo que temos que


transmitir. Se somos forçados devemos justificar o nosso estudo
motivado por necessidades sociais, digamos que ela consiste na
análise não padronizada das situações sociais de que gozam
aqueles que têm autoridade institucional – sacerdotes,
psiquiatras, professores, policiais, generais, chefe de governo,
pais, homens, brancos, cidadãos, operadores de mídia e todas as
outras pessoas situadas em uma posição que permite a eles dar
um discurso oficial as versões da realidade”. (Goffman, The
Interaction Order)

O sociólogo italiano Alessandro Dal Lago, destaca que a partir de


tal premissa, Asilo pode ser lido, trinta anos depois, como uma pesquisa
antipsiquiátrica. Ao descrever a situação dos internos psiquiátricos, e
em geral das “instituições totais”, Goffman era consciente que o staff
detinha uma posição capaz de produzir uma “versão oficial da
realidade”. Logo, tratava-se então, para um pesquisador objetivo,
separar-se desta versão e de analisar a cultura e a estrutura
institucional que regulam a interação social. Assim, Goffman realiza
uma descrição impressionante “daquilo que verdadeiramente acontece”
em uma instituição total, além da retórica científica, terapêutica ou

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moral mediante a qual, quem detém o poder nas instituições, justifica
as práticas de degradação dos seres humanos frequentemente
efetuadas.”

Destacar:

a) A utilização de diversas formas de conhecimento da realidade social:


filosofia, antropologia, ciência política, psicologia, romances, narrativas,
tratados médicos, laudos, perícias, autobiografias: a contínua procura
por compreensão das formas de interações entre os atores e da
estrutura do poder em uma determinada situação.

b) A observação sociológica sempre atenta das interações efetuadas


pelos atores dentro de uma determinada cultura e estrutura social: a
procura por novos pontos de vista da realidade social através da
observação direta que guarda (empírica, natural) detalhes e minúcias
das interações face a face entre os atores sociais para reordená-los e
catalogá-los.

c) A sensibilidade sempre desperta e ativa: a vontade de compreender o


sentido e significado das ações e interações dos atores sociais em uma
determinada situação problemática. A vontade de querer saber qual é a
natureza específica do fato social;

d) A descrição minuciosa dos processos sociais (interações subjetivas


dentro de uma estrutura social) e das dinâmicas culturais que
legitimam a situação social de controle e ordem, de uso da violência e
do poder de mando.

e) A revelação e exposição pública das vozes e faces dos sujeitos,


indivíduos e grupos sociais submetidos aos processos de
desumanização e degradação, preconceito e estigma, violência e
dominação.

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f) O criticismo analítico: a reconstrução do problema sociológico e a
informação da existência dos processos culturais que legitimam as
instituições totais e a violência contra os indivíduos e grupos não
reconhecidos em seus direitos de existência, marginalizados e
segregados e excluídos do convívio público. A busca das conexões de
sentido entre os processos sociais e a estrutura institucional que
regulam a interação social.

g) A crítica aos processos sociais ideológicos de imunização do tecido


social pelo poder público: a contestação radical dos discursos e versões
oficiais da realidade social;

h) A subjetividade e objetividade na investigação sociológica: Goffman


parte de pressuposto de que a pesquisa tem sempre lugar em situações
preventivamente desequilibradas, e que a objetividade é um ponto de
chegada e não um ponto de partida da pesquisa. A objetividade pode ser
alcançada, ao menos na sociologia, reconhecendo as assimetrias de
papéis, de posição social ou de poder que dão uma determinada
característica à interação social.

2) Sobre a interação: a ritualidade da vida social

“Para Goffman, a interação tem regras próprias e, sobretudo, uma


marca específica. Brevemente, a ordem de interação é de tipo “ritual”
(...) Goffman sublinha a autonomia da ordem ritual que governa as
interações ordinárias, coloquiais, aparentemente banais da vida
cotidiana (...) Trata-se de uma dimensão extremamente complexa, da
qual Goffman deixou análises detalhadíssimas, explorando o
funcionamento, as lacerações, as reparações, as vias de fuga, etc.”

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“Para Goffman, o ator social não é um indivíduo exclusivamente envolto
em cálculos racionais, nem é um puro e simples executor de preceitos
culturais, nem uma mera expressão de instâncias profundas, como
pretenderam as teorias sociais mais em voga no século XX, como o
marxismo e a psicanálise (em suas versões caricaturadas). Ou melhor, é
um pouco de tudo isto, e algo mais: sobretudo, é um virtuoso por
sobreviver em um mundo cotidiano repleto de perigos potenciais para o
respeito de si ou, o que é a mesma coisa, para o respeito “do seu eu” (...)
Este é precisamente o sentido de Asilo, no qual a descrição das práticas
de controle e desumanização dos internos é complementar ao
reconhecimento da sua luta de “resistência” pela identidade.”

Alessandro Dal Lago, Prefazione. In


Goffman, Asylums. Le istituzioni totali: i
meccanismi dell'esclusione e della
violenza

Destacar:

a) A ordem social é composta por regras e ritos, formas simbólicas de


ação e de interação que, na sua natureza, organizam as ações do corpo
e da mente dos atores sociais. São funções dos ritos sociais:

- Humanizar as ações sociais estabelecendo os limites e o sentido


da ação, ordenando o espaço em regras e símbolos, dirigindo as
ações no tempo, rotinizando as identidades e valores.

- Desumanizar o ser social não-reconhecido em seus aspectos


físicos, comportamentos e valores, espoliando as qualidades
particulares da sua forma de vida.

- Hierarquizar os atores sociais em seus papéis e funções, status


e prestígio, poder e honra.

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- Transmitir os valores e as normas, as práticas morais e as
regras sociais que geram as identidades coletivas.

- Proteger a face do ator social da vergonha, humilhação, medo:


as regras de trato, cortesia, deferência, sorriso, descrição,
cumprimentos, acenos.

b) Para Goffman, o eu e o nós são construções sociais, resultados dos


jogos e dos rituais de interação entre as pessoas em uma determinada
situação. Ambos são formações sociais que estão submetidas as
pressões sociais, aos constrangimentos das instituições totais (em
linguagem simmeliana, das forças e formas que compõem o espírito
objetivo de uma determinada situação social).

c) O ator social não é ordenado pelo racionalismo e utilitarismo, nem


pelo valores culturais e nem pela estruturas profundas (do poder
econômico e das pulsões). É um ser que age e pensa, pensa e age
buscando manter ativo e criativo o seu eu (em linguagem simmeliana, o
seu espírito subjetivo) dentro de um espaço social e de um tempo
histórico marcados por forças sociais sempre mais potentes e
ameaçadoras.

d) Goffman acentua a importância do eu, do self, em uma sociedade


caracterizada pela hipertrofia da ordem social e da capacidade das
instituições, públicas e privadas, de controle e coerção, nivelamento de
emoções e afetos e formalização de condutas e carreiras.

3) Sobre o sentido do teatro e os quadros sociais

“Há o teatro, o qual é o pilar, é o outro lugar da educação coletiva, um


elemento importantíssimo e não circunscrito unicamente ao âmbito
cultural. O teatro, não por acaso é comandado pela cidade em primeira

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pessoa pelos magistrados que presidem o júri, com os prêmios, os
concursos, as seleções. E isto porque é uma articulação estatal
verdadeira e propriamente formada por um empenho invasivo. Isto
implica uma produção constante ao nível dramatúrgico e por uma parte
de enorme multidão. É um milagre, aquele ateniense de que se fala ao
nível cultural, intimamente conexo ao fato de que a própria cidade
tenha investido no teatro, compreendendo-o como uma fundamental
articulação com a educação coletiva.”
Luciano Canfora, Intervista “Il mondo di
Atenas” (2012)

Destacar:

a) O sentido duplo do teatro:

1) O teatro e política: a encenação das emoções, sentimentos,


valores e ideais que foram a “educação coletiva” de um povo:

- a formação da memória e da tradição


- da moral e da lei
- dos papéis e dos deveres
- dos valores e das expectativas
- a encenação dos ritos e da subjetividade (identidade) comum

2) O teatro político: a propaganda política:

- a encenação mistificadora e ideológica da realidade


- a manipulação das emoções e sentimentos
- a formalizar da subjetividade (identidade) política

b) A análise sociológica das ações cênicas:

- A análise da vida como um palco cênico:

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- a “ordem de interação”: os comportamentos que
sustentam a “condição de sociabilidade” (a investigação
sociológica dos pequenos comportamentos, que rotinizados,
são transformados em hábitos interativos, nos ajudam a
compreender a estrutura da ordem social; a investigação da
ordem social através dos pequenos comportamentos
rotinizados e habituais que as pessoas realizam sem
compreender o significado e o sentido social profundo):

“Caminhar, atravessar uma rua, pronunciar uma frase


completa, vestir uma calça comprida, amarar o cordão do
sapato, fazer contas – todas essas ações práticas habituais
que representam uma competência individual espontânea,
foram alcançadas por um processo de aquisição cujos
primeiros estágios foram negociados em meio a suores
frios.” (Goffman, Frame Analysis)

- a “condição de sociabilidade” é uma específica forma de


“consenso operativo”: uma forma de “sentir” e “agir” comum
aos membros de uma determinada organização, instituição,
ordem social.

- a “organização da experiência” na mente das pessoas (que


pode sempre produzir novo um sentir e um agir social) e
nas estruturas da ordem social:

- os papéis desempenhados pelos atores: o


“envolvimento (a participação) dos indivíduos” na
“organização da experiência”.

- as interações entre os atores (e seus papéis) dentro


de um determinado palco cênico: o que se espera no

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comportamento do outro, as reciprocidades, as
condutas rotinizadas.

- as sempre possíveis situações de tensão, conflito,


ruptura nas interações sociais:

a) o amor e o ódio (Empédocles)


b) a convergência e a divergência (Heráclito de Éfeso)
c) a insociável sociabilidade dos seres humanos
(Kant) d) o espírito subjetivo e o espírito objetivo
(Simmel)
e) o conflito eterno entre os valores (Weber)
f) eros e thanatos (Freud)

- A “definição da situação”: os valores e os princípios que formam


as regras implícitas da ordem social.

- O uso das máscaras: aquele que usa máscara e oculta sua face
para interpretar um papel.

- A representação do papel na face mascarada do ator: a


interpretação do sentido dos papéis e das funções. A
interpretação que oculta a face das emoções e dos interesses que
não podem ou devem ser visíveis – a desfaçatez.

- a interpretação do ator que transmite uma mensagem.

- a expectativa do ator de que sua mensagem seja compreendida e


assimilada pelo outro.

- a expectativa da plena assimilação do conteúdo das mensagens.

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- a exposição pública dos ritos sociais: experiências cotidianas,
dos comportamentos em público.

É possível dizer que a metáfora do teatro em Goffman envolve está


precisa dimensão do teatro na Atenas antiga: espaço de educação
coletiva (valores e ideais, normas e regras) e espaço de transmissão
política da ordem social. É o espaço de interação no qual, face-a-face, a
ordem social é duplamente estabelecida e tensionada: 1) é a
representação das ações no espaço da ordem da estrutura social e 2) é a
representação efetuadas pelos diversos atores em situações diárias, nas
quais ocorre tanto a continuidade das ações determinadas pelo poder,
como as tensões que geram a formação social de novas formas de
interação social.
Usando a metáfora do teatro, Goffman procurou enfatizar as
relações nada lineares entre as vontades e desejos e as normas e
estruturas sociais, bem como a pluralidade de ações que se estabelecem
nos limites e nos choques entre os atores. É por isso que enfatiza a
análise sociológica em frames, quadros – esquemas, onde os atores
encenam e expõem suas expectativas subjetivas dentro dos limites da
estrutura social existente. É o espaço no qual ocorre os choques e as
tensões entre o espírito subjetivo (vontade e identidade pessoal,
expectativas e respeito de si) e o espírito objetivo (normas e regras,
sanções e determinação, constrangimentos e imperativos, não-
reconhecimento do outro e violência institucional).

4) Sobre frames: os quadros da análise sociológica

Em Frame analysis: an essay on the organization of experience


(1974) Goffman efetua a seguinte interrogação para qualificar o sentido
das suas análises sociológicas acerca das situações que investiga em
busca do sentido e significado: “O que está acontecendo aqui?”

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Destacar

a) “O que está acontecendo aqui?”: não se trata apenas de uma


determinada postura científica, a sociologia que se dirige à realidade
empírica e que se afasta dos sistemas formais e abstratos, mas também
de uma ênfase no compromisso da ciência em transformar a realidade,
no sentido lato do termo, em problemas, construindo dúvidas e
hipóteses através da observação atenta e da experiência sempre
renovada. A pergunta “O que está acontecendo aqui?”, neste espaço
social e neste tempo histórico, implica em assumir determinadas
posições epistemológicas:

- Primeira: que pouco sabemos de fato e com certeza, o que está


se processando nas relações sociais primárias e secundárias;

- Segundo: que desconhecemos a constituição real dos fatos e


fenômenos por acreditarmos que as explicações estabelecidas e
aceitas são corretas e explicativas daquilo que se observa, seja
qual for a forma do que vemos, das faces em interação, dos
conteúdos manifestos e ocultos. Adaptamo-nos as regras e as
explicações emitidas pelas autoridades legais e legítimas e
passamos a nos transformar em móveis de seus sentidos e
significados, emitido juízos e sentenças sem compreender as suas
origens e finalidades, significações e disposições;

- Terceiro: se retirarmos de nossa mente as percepções e os juízos


estabelecidos e manifestos dentro de uma determinada ordem e
estrutura social, se nos aproximarmos o máximo possível à
realidade efetiva na qual a vida pessoal e coletiva é desenvolvida e
articulada, seremos obrigados a refazer o percurso tanto da
percepção como da determinação do sentido e significados das
ações, relações, normas e leis. Logo, para Goffman, a sociologia

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deve ser uma ciência que investigue a realidade efetuando,
continuamente, sucessivas ressignificações da vida pessoal e
coletivas, distanciando-se dos sempre novos “sistemas
ptolomaicos” e aproximando-se das contínuas “revoluções
copernicanas”, galilenianas, que abrem a realidade das coisas
para novas formas de visão e compreensão através da observação
atenta e curiosa e das experiências hipotéticas e especulativas.

b) “O que está acontecendo aqui?” também implica na construção de


um problema determinado, que contém em si uma série de interações e
encenações, manifestações e representações, consensos e ruptura dos
consensos, ordens e desordens. São três tipos gerais de quadros que
Goffman analisa:

- Quadros primários: são quadros que não se referem a outro


quadro, e que servem de base para a existência de outros
quadros. Os quadros primários podem ser transformados em
quadros naturais e sociais:

- Quadro naturais: são aqueles nos quais se desenvolvem os


acontecimentos puramente físicos, produzidos por nossa
específica natureza;

- Quadro sociais: são aqueles nos quais se desenvolvem


acontecimentos provenientes das vontades e objetivos dos agentes
e atores.

O objetivo dos quadros é articular entre a análise das interações,


a experiência dos participantes e a dimensão cognitiva das
participações em situações sociais.

c) Em qualquer quadro (frame) está objetivado o passado e o presente,


as bases emotivas e cognitivas que permitem ao ser humano existir,
pensar e agir:

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- as estruturas linguísticas e semânticas
- os esquemas mentais (os mecanismos inconscientes e automáticos
que dão forma ao ser que pensa e age; as palavras e a estrutura
gramatical)
- a força das metáforas

d) No quadro (frame) e nas interações entre diversas formas de vida ou


entre formas de vida e o poder existente, pode estar presente as
oposições, as tensões, as contradições, os conflitos e o não-
reconhecimento.

5) As instituições totais e o processo de desumanização

“As instituições totais são lugares, espaços fechados, nos quais são
segregados os incapazes não perigosos (cegos, velhos, órfãos ou
indigentes), os indivíduos perigosos para a comunidade (sanatórios,
hospitais psiquiátricos, leprosários), os indivíduos altamente perigosos
ou considerados como tais (prisões, penitenciárias, campos de
prisioneiros, lager), mas também as instituições criadas para
desenvolver em um lugar concentrado alguma atividade (caserna,
navios, colégios, campo de trabalho, plantações coloniais) ou nos quais
pessoas se isolam voluntariamente do mundo (abadias, monastérios,
conventos, claustros) (...) A instituição total unifica em um mesmo lugar
e sob uma única autoridade todas as atividades cotidianas, abolindo
aquela espécie de “pessoal economia da ação” que nos identificamos
com a liberdade individual.”
Marco Belpoliti, Clinica, prisioni, caserna:
i luoghi in cui si deve lottare per restare
liberi

Desumanização é a categoria central para compreendermos o


universo totalitário. O campo de concentração e extermínio representou
a continuidade de um longo processo de desumanização do outro que,

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desenvolvido na era moderna no curso da conquista do novo mundo e
na transformação política dos indígenas e africanos em subumanos e
escravos, alcançou o interior da Europa no século XX. A desumanização
do outro ou do inimigo, sempre existiu na história da humanidade, nos
clãs, nas tribos, nos génos, nas pólis gregas e nas urbes romanas, na
idade média, no colonialismo e no imperialismo. Contudo, a
singularidade do processo de desumanização do outro realizado pelos
nazistas reside no uso da ciência e da técnica, da organização estatal
burocrática e, sobretudo, da racionalidade instrumental. A combinação
de tais fatores possibilitou que no interior do campo ocorresse uma
profunda transformação na antropologia do ser humano: o
complemento do processo de desumanização, iniciado com a política de
violência nas grandes cidades com as leis raciais e a construção dos
guetos, alcançava o seu maior desenvolvimento na transformação dos
Häftlingen (prisioneiros) em seres não mais humanos, bestializados e
inferiorizados pela língua do Herrenvolk (povo dos senhores) e pelos
jargões do campo: “animais”, “escravos”, “mulçumano”, “animal-
homem”; “subespécie”, “ervas secas”, “impuros”, “cães” (LEVI, Os
afogados e os sobreviventes, p.39, 88 e 91; LEVI, Se questo è un uomo.
La tregua, p.345), “inúteis”, “merda”, “insetos”, “vermes”, “ratos”,
“bacilos”, “bestas”, “peças” (BURGIO, 2010, p.133), “cretinos”,
“camelos”, “porcos” (AGAMBEN, Quel che resta di Auschwitz. L’archivio
e il testimone, p.39 e 53). O muçulmano, aquele que desceu até o fundo
da lógica biopolítica do campo de concentração e extermínio, e que pôde
ver a face que também é gorgônea do ser humano – a face da
ferocidade, da brutalidade e da violência ilimitada que destrói e mata –,
seria para Levi a testemunha integral do campo de concentração e
extermínio. Um ser que deixou de viver antes da morte efetiva do corpo,
agindo sem a consciência moral, desprovido da fala e da
comunicabilidade linguística, o muçulmano era o resultado comum e
final que o totalitarismo reservava ao Untermensch (sub-homem).
Testemunha pela ausência daqueles que foram afogados e mortificados
pela face e ação gorgônea dos habitantes do “univers concentrationnaire”

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(Levi, Os afogados e os sobreviventes, p.4), viveu profunda e
dolorosamente a aporia de ser uma testemunha parcial do campo de
concentração e extermínio:

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as


autênticas testemunhas. Esta é uma noção
incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco,
lendo as memórias dos outros e relendo as minhas,
muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma
minoria anômala, além de exígua: somos aqueles
que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não
tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona,
não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são
eles, os “muçulmanos”, os que submergiram – são
eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria
significado geral. Eles são as regras, nós, a exceção.
LEVI, Os afogados e os sobreviventes

Em Asilo, Goffman compreende por instituição total “um local de


residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por um
período considerável de tempo, levam uma vida fechada e formalmente
administrada”. Toda instituição total é primeiramente um espaço social
ou um espaço político fechado cercado por muros e controlado por
forças sociais associativas, burocráticas e/ou militares, que está fora do
espaço social aberto e de livre movimentação. É um espaço social que
confina e administra o corpo dos internos através do corpo dos
funcionários que controlam rigidamente os comportamentos e as
mentalidades, as ações e as interações segundo as normas
estabelecidas. Goffman definiu cinco tipos de espaços sociais nos quais
há uma específicas instituição social:

1) as instituições criadas para cuidar e tutelar dos incapazes não


perigosos: os idosos, os cegos, os órfãos e os indigentes.

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2) as instituições criadas para tutelar aqueles que devido à
incapacidade de cuidar de si mesmos, representam um perigo (mesmo
que intencional) para a comunidade: os portadores de doenças
contagiosas (lepra, tuberculose), os doentes mentais.

3) as instituições criadas para segregar, confinar e proteger a sociedade


daqueles que são considerados perigosos: os criminosos nas prisões, os
campos para os prisioneiros de guerra, os campos de concentração.

4) as instituições criadas para formar novos membros ou usá-los de


modo instrumental, tais como: quartéis, navios, escolas internas,
campos de trabalho, colônias.

5) as instituições criadas para servir de refúgio do mundo, que também


podem servir como locais de instrução para religiosos, tais como:
abadias, mosteiros, conventos e outros claustros.

Para Goffman, as cinco instituições totais possuem elementos


sociais em comum, não obstante suas diversas funções sociais:

1) são espaços sociais e políticos construídos para confinar e conter os


internos, rompendo com a norma social da liberdade de movimento, de
autonomia do indivíduo, da pessoa, do sujeito e, nos espaços totais mais
extremos (os campo de concentração) do cidadão. São espaços sociais
que rompem as “barreiras” (os limites, as linhas de separação) do
trabalho e da habitação própria, da vida social e da vida privada.

2) são espaços sociais cercados por linhas de contenção, cercas, muros,


vigilância, que impedem a saída dos internos.

3) são espaços sociais que efetuam a violenta “mortificação do eu”, a


“espoliação” da subjetividade da pessoa (dos valores e da vontade
própria, da identidade própria) através das “humilhações, degradações e

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profanações” sistematicamente realizadas pelos funcionários, pelo
“staff” das instituições totais.

4) são espaços sociais que impõem ao interno o culto da autoridade


(sempre chamados pelo substantivo “senhor”) e os valores da disciplina,
da obediência e da ordem:

- a “mutilação pessoal”: a neutralização da vontade e da


identidade pessoal; as humilhações, os desrespeitos e as
violências verbais; as violências físicas (amputações, marcas no
corpo); as punições degradantes e humilhantes.
- a sistemática disciplina coercitiva do corpo e da mente.
- a submissão total à autoridade.
- o controle severo dos comportamentos e das atitudes diárias.
- as correções da conduta e as penitências.
- o autocontrole coercitivo.
- a delação.

5) a “manipulação das necessidades humanas” de um conjunto de


internos através do sistema administrativo, burocrático, hierárquico e
de um “staff” formado por funcionários.

As instituições totais são espaços sociais e políticos fechados,


mais ou menos hermeticamente, no qual uma força social soberana e
absoluta controla, vigia, administra um conjunto de seres humanos
reduzidos a uma existência que mortifica o eu, espolia os valores
subjetivos e a vontade própria, desrespeita e degrada os seres humanos,
destrói a subjetividade e a autonomia do ser humano. São espaços
sociais e políticos situados fora da vida social ordenada por direitos
comuns e fundamentais, nos quais vigora a lei do mais forte, o pleno
arbítrio dos senhores.
As instituições totais também servem para exortar, pôr fora dos
limites civis e políticos da sociedade humana todas identidade subjetiva

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e grupo social que o poder hegemônico identifica como politicamente,
racialmente ou socialmente suspeito de ser perigosa e ameaçadora,
estranha e impura: são espaços sociais e políticos que concentram os
excluídos que devem ser eliminados (etimologicamente, significa “fazer
sair”, “excluir”) da vida social.
Na criação das instituições totais como espaço político, o poder
soberano neutraliza os conflitos sociais, e no sentido mais amplo do
termo a presença na sociedade da dialética (das tensões, dos conflitos,
das contradições; das lutas sociais por reconhecimento dos grupos
sociais minoritários, subalternos, dominados; das novas formas de vida
e identidade subjetiva), através do confinamento, do aprisionamento, da
segregação e da exclusão social.

6) A construção social do processo de estigmatização

Em Estigma. A identidade negada Erwin Goffman analisa o


processo de estigmatização que gera a construção social da
personalidade desviante contida em determinados seres e grupos
sociais. A estigmatização é um processo social (no sentido lato do termo:
simultaneamente é um processo econômico, político e cultural) através
do qual uma identidade subjetiva não é reconhecida em seu direito de
existência e submetida aos processos de desumanização, espoliação (a
negação dos seus valores, comportamentos, mentalidades, atitudes),
controle e dominação. Em todo processo de estigmatização ocorre a
construção social de um sinal, de uma marca que identifica o não-
reconhecimento e a desumanização do grupo social: uma determinada
característica do grupo, que pode ser real ou imaginada, conduz aos
processos de exclusão moral e social.
Para Goffman, o estigma expressa um atributo profundamente
desprestigiador, que desqualifica socialmente aquele que o possui. O
processo de estigmatização é parte do poder hegemônico que traça as
linhas de separação, divisão, distinção entre o igual e o desigual, o
normal e o anormal, o puro e o impuro, o fiel e o infiel, o honrado e o

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desonrado, a pessoa e a não-pessoa, o nós e os outros. O estigma é uma
espécie de etiqueta, marca, que sinaliza o estranho, o diverso, o outro.
Goffman, identificou três tipos de estigmas que podem coexistir
em determinados períodos históricos e formações sociais:

“Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em


primeiro lugar, há as abominações do corpo - as várias deformidades
físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como
vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e
rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos
conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo,
homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento
político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e
religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar
por igual todos os membros de uma família. Em todos esses exemplos
de estigma, entretanto, inclusive aqueles que os gregos tinham em
mente, encontram-se as mesmas características sociológicas: um
indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social
quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e afastar
aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para
outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica
diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam
negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim
chamados de normais.”
Erving Goffman, Estigma. Notas sobre a
manipulação da identidade deteriorada

Destacar

a) o estima físico: expressa o sinal existente em um corpo cuja


visibilidade gera inquietação, repugnância, temor e medo no
observador. A visibilidade do corpo desforme e desarmônico revela uma
forma anômala que perturba a profunda crença e convicção na

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existência de uma “ordem natural das coisas” (kosmos, cosmos: para
Alexander Koyrè, a palavra kosmos criada pelos gregos expressa uma
ordem hierárquica estática, perfeita e harmônica, dentro da qual cada
ontologia está em seu "lugar natural". Na “ordem natural das coisas”
reina a separação entre cada coisa e ser, a proporção exata que mede e
expressa cada coisa e ser. O corpo desforme é o contrário da ordem
harmônica, perfeita, pura, proporcional, equilibrada, de modo que, a
visão deste corpo gera perturbação, repugnância, medo do contágio,
temor do caos: o contrário da “ordem natural das coisas”, o reino do
disforme, do impuro, do indiferenciado, da desarmonia. O estigma
endereçado ao corpo disforme e deformado expressa a crença nos mitos
da pureza e da ordem, bem como, nos valores da raça superior e da
exclusividade da condição humana aos corpos reconhecidos,
identificados, prestigiados, como “normais”, belos, harmônicos. O
estigma somático foi um elemento fundamental para os processos de
desumanização, racismo, discriminação, exploração dos corpos das
mulheres, dos judeus, dos africanos, dos indígena nas Américas, dos
asiáticos na sociedade nacional e industrial.

b) o estigma moral: expressa a não fiabilidade, a desconfiança a


deslealdade imputada àqueles que não seguem e praticam os valores e
os princípios da ordem social. O estigma moral imputa a culpabilidade
inerente ao grupo social que viola os valores e as normas sociais
reconhecidas e práticas pelas pessoas e cidadãos: a pessoa imoral é
identificada como sendo indiferente aos valores e as normas sociais, o
que gera o desprezo e a desconfiança: a pessoa imoral é identificada
como sendo sempre capaz de mentir, enganar, trair, corromper a vida
social. Logo, o estigma moral produz a marca da impossibilidade do
relacionamento cotidiano, da interação social, da previsibilidade das
ações e reações. O estigma moral expressa a “deformidade sobre o plano
moral” que coloca em risco a continuidade da ordem social: o estranho
no plano moral corrompe a virtuosidade e a pureza da moral
estabelecida, gerando vícios e comportamentos desviantes. O estigma

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moral foi um elemento fundamental para os processos de
desumanização e discriminação, repugnância e desprezo para com os
andarilhos, os nômades, os mendigos, os moradores de rua, os
desempregados, os toxicodependentes, as prostitutas, os jogadores
compulsivos, os homossexuais, os homens e mulheres divorciados, as
mulheres que abortaram, etc., na sociedade nacional e industrial

c) o estigma tribal/de grupo: a estigmatização tribal/de grupo diz


respeito aos elementos de identidade sobre a base do qual se é
historicamente constituída a cidadania e nele são estabelecidos os
limites: o pertencimento a outra etnia, região, nação. O estigma
tribal/de grupo forma parte do mecanismo de exclusão social, no qual o
estigma somático e o estigma moral são potencializados com o estigma
cultural: os valores, os costumes, os comportamentos e mentalidades, a
língua, a religião da tribo e do grupo são identificados como estranhos,
desconhecidos, misteriosos, antagônicos, inquietantes. O estigma
tribal/ de grupo promove o não-reconhecimento das formas de vida, da
moralidade, da identidade subjetiva do grupo considerado estanho e
diverso, logo, não pertencente à comunidade dos iguais. O estigma
somático foi um elemento fundamental para os processos de
desumanização, racismo, discriminação, exploração dos corpos das
mulheres, dos judeus, dos africanos, dos indígena nas Américas, dos
asiáticos, dos imigrantes na sociedade nacional e industrial.
Para Goffman, as três formas de estigma podem estar juntas,
acionadas e promovidas no curso dos conflitos sociais: a estigmatização
física pode ativar o estigma moral e vice-versa; o estigma físico ou o
estigma moral podem criar processos sociais que ativem o estigma
tribal/ de grupo, promovendo exclusões e expulsões sociais. Os
três tipos de estigmas sociais – a deformidade, a imoralidade, a
estraneidade – são mecanismos que geram o não-reconhecimento
recíproco, a separação, a clivagem, a distinção, a hierarquização entre
os seres humanos, os grupos sociais, as classes sociais.

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Os processos e mecanismos de estigmatização formam parte da
desumanização do outro e da restrição da exclusividade do humano aos
grupos e classes socais dominantes. Há fortes nexos entre os processos
de estigmatização, desumanização, racismo e dominação: todo ser e
grupos social estigmatizado é retirado do pertencimento à comunidade
humana, identificado como inferior física, mental, moralmente
(animalizado, instrumentalizado) e submetido aos processos de
submissão, dominação e exploração.

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