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Fonte: http://1999pkdweb.philipkdickfans.com/Man,
%20Android%20and%20Machine.htm

HOMEM, ANDROIDE E MÁQUINA

Philip K. Dick, 1975

[Tradução de Maurício Pitta]

Existem, no universo, coisas ferozmente frias, as quais dêmos o nome de


“máquinas”. Seu comportamento nos assusta, especialmente se ela imita tão bem o
comportamento humano que eu passo a ter a sensação desconfortável de que essas
coisas estão tentando se passar por humanos, coisa que elas não são. Eu as chamo
de “androides”, e essa é minha própria maneira de usar essa palavra. Por “androide”,
não quero dizer uma tentativa sincera de se criar, em laboratório, um ser humano
(como vimos no excelente filme para TV, The Questor Tapes). Quero dizer com
esse termo uma coisa que, de alguma forma, foi gerada para nos enganar de uma
forma cruel, a fim de nos fazer pensar que ela é um de nós. Feita em laboratório —
esse aspecto não é, para mim, significativo; o universo inteiro é um vasto
laboratório, e, dele surgem entidades dissimuladas e cruéis que sorriem quando
estendem a mão para um aperto. Seu aperto de mão, no entanto, é o aperto da
morte, e seu sorriso tem a frieza de um túmulo.

Essas criaturas estão entre nós, embora elas não se diferenciem de nós
morfologicamente; nós não devemos postular uma diferença de essência, mas uma
diferença de comportamento. Em minha ficção científica, escrevo sobre elas
constantemente. Algumas vezes, elas mesmas não sabem que são androides. Como
Rachel Rosen, elas podem ser belas, mas, de alguma forma, pode nelas faltar algo;
ou, como Pris em WE CAN BUILD YOU, eles podem ter nascido totalmente de um
útero humano, ou até mesmo projetar [design] androides — o Abraham Lincoln,
nesse livro — e eles mesmos não terem paixão [warmth]; eles caem na definição
clínica da entidade “esquizoide”, que significa que lhes falta precisamente
sentimento. Estou certo de que queremos dizer a mesma coisa aqui, com ênfase na
palavra “coisa”. Um ser humano que não tenha propriamente empatia ou
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sentimento é o mesmo que um androide construído no tocante a essa falta, seja


por projeto [design] ou por erro. Queremos dizer basicamente, [com o termo,]
alguém que não se importa com o destino do qual estão fadados criaturas vivas
como ele; ele se mantém apartado, um espectador, agindo com indiferença diante
do teorema de John Donne, que diz que “nenhum homem é uma ilha”, mas
operando uma torção no teorema: aquilo que é uma ilha mental e moral, nenhum
homem o é.

A maior mudança que se vê progredindo por todo o mundo nos dias de hoje
é provavelmente o impulso do vivente rumo a reificação e, ao mesmo tempo, uma
recíproca na animação pelo que é mecânico. Não possuímos, no momento,
nenhuma categoria pura para falar sobre o confronto entre o vivo e o não-vivo; esse
será nosso paradigma; minha personagem Hoppy, em DR. BLOODMONEY, que é
uma espécie de bola de futebol humana [human football] em um labirinto de
servomecanismos [servo-assists]. Parte dessa entidade é orgânica, mas o todo dela
está vivo; parte veio de um útero, todas [suas partes] vivas e dentro do mesmo
universo. Eu estou falando sobre o nosso mundo real, e não sobre um mundo de
ficção, quando eu digo: um dia, teremos milhões de entidades híbridas que vão ter
um pé em cada mundo, ao mesmo tempo. [A tentativa de] defini-los como o
“homem” versus a “máquina” nos fornecerá com jogos de quebra-cabeças [puzzle-
games]. Nossa real preocupação é e será a seguinte: a entidade composta (da qual
Palmer Eldritch é um bom exemplo dentre outras personagens) se comporta de
modo humano? Muitas de minhas estórias contêm sistemas puramente mecânicos
que demonstram afetuosidade — taxis, por exemplo, ou os pequenos carrinhos de
compra [rolling carts] no final de À ESPERA DO ANO PASSADO, construídos por
aquele pobre e defeituoso humano. “Humano” ou “ser humano” são termos que
devemos compreender corretamente, e devemos aplica-los, mas eles se aplicam
não à origem ou a qualquer ontologia, mas a uma forma de ser no mundo; se um
construto mecânico interrompe sua operação costumeira para te cedesse
assistência, você então, grato, suporia nele uma humanidade que nenhuma análise
de seus transistores e sistemas de retransmissão poderiam elucidar. Um cientista,
seguindo os traços dos circuitos cabeados dessa máquina, a fim de localizar nela
sua humanidade, seria como nossos mais sérios cientistas, que tentam em vão
localizar a alma no homem e, não sendo capazes de encontrar um órgão específico
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em um ponto específico, optam por se negar a admitir que temos almas. Como a
alma é para o homem, o homem é para a máquina: é sua dimensão adicional, em
termos de hierarquia funcional. Como um de nós age de maneira divina (doando
seu casaco a um estranho), uma máquina age de maneira humana quando pausa,
em seu ciclo programado, para protelar por causa de uma decisão [a ser tomada].

Ainda assim, devemos nos dar conta de que o universo, ainda que gentil
para conosco em sua totalidade (ele deve gostar de nós e nos aceitar, ou não
estaríamos aqui; como Abraham Maslow diz, “de outro modo, a natureza nos teria
executado há muito tempo”), contem máscaras sorridentes e malignas que nos
assomam a partir da névoa confusa, e que podem nos assassinar para seu próprio
proveito.

Devemos, contudo, tomar cuidado para não confundir uma máscara,


qualquer que seja, com a realidade que ela esconde. Pense na máscara de guerra
que Péricles colocava sobre sua feição: você contemplaria um semblante
congelado, a fealdade da guerra, sem compaixão — nenhuma face genuinamente
humana ou nenhuma pessoa para a qual você pudesse apelar. E essa, é claro, era a
intenção. Supomos que você não tenha nem mesmo percebido que era uma
máscara; suponha que você acreditou, quando Péricles aproximou-se de você na
neblina e lusco-fusco da aurora, que essa era sua autêntica fisionomia. Agora, essa
é quase exatamente a forma pela qual eu descrevi Palmer Eldritch em minha
novela sobre ele: tão parecido com as máscaras de guerra dos Gregos da Ática que
sua semelhança não pode ser acidental. A fenda vazia do olho, o braço e a mão
mecânicos de metal, os dentes de aço inoxidável, que são os estigmas temíveis do
mal — essa descrição, que eu mesmo vi primeiramente no céu acima de minha
cabeça em meio à tarde de um dia em 1963, não é uma visão da máscara de guerra e
da armadura de metal, a visão de um deus da batalha? O Deus da Fúria, que estava
irado comigo. Mas, sob sua ira, sob o metal e o capacete, há, como havia com
Péricles, a face de um homem. Um generoso e amável homem.

Em minha escrita, há anos tenho por tema o seguinte: “O diabo tem uma
face de metal.” Talvez isso deva ser agora corrigido. O que eu vislumbrei e, então,
sobre o que eu escrevi não era, na verdade, uma face; era uma máscara sobre uma
face. E a face verdadeira é o inverso da máscara. É claro que ela seria isso. Você não
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deve colocar um metal frio e cruel sobre outro metal frio e cruel. Você o coloca
sobre carne macia, como inofensivos adornos de mariposa, em si mesmo
inofensivos, aterrorizam outros que tenham ocelli. Essa é uma medida defensiva e,
se ela funciona, o predador retorna para sua toca, resmungando: “Eu vi a mais
horripilante criatura no céu — caretas selvagens e asas [flappings], ferrões e
venenos.” Seu parente está impressionado. A mágica funciona.

Eu supunha que as únicas pessoas más usavam máscaras amedrontadoras,


mas você pode perceber agora que eu caí no truque da máscara, em seu terrível e
horripilante truque, em sua ilusão. Eu trouxe o embuste e fugi. Queria saber como
pedir desculpas por pregar, como algo genuíno, tal engano a vocês: deixei todos
vocês sentados ao redor da fogueira com os olhos bem abertos de pavor enquanto
eu contava estórias de monstros hediondos que eu encontrava; minha viagem de
descoberta terminava com visões aterrorizantes que eu, obedientemente, levava
para casa comigo quando eu fugia rumo a um lugar seguro. Seguro de quê? De algo
que, quando não mais necessitava sumir para se esconder, sorria e revelava sua
inocuidade.

Agora, eu não pretendo abandonar, como base, minha dicotomia entre o


que eu chamo de “humano” e o que eu chamo de “androide”, o último sendo uma
paródia cruel e barata do primeiro. Mas eu tenho andando pelas aparências
superficiais; é necessário distinguir as categorias com mais astúcia. Pois, se uma
vida gentil e inócua esconde-se atrás de uma assustadora máscara de guerra, então
é provável que atrás de máscaras gentis e amáveis, esconda-se um vicioso assassino
das almas humanas. Em nenhum dos casos, devemos nos fiar pela aparência
superficial; devemos penetrar no coração de cada um, de cada objeto [subject;
“objeto”, aqui, no sentido de “objeto de estudo científico”].

É provável que tudo no universo sirva a um fim bom — quero dizer, sirva a


metas universais. No entanto, porções intrínsecas ou subsistemas podem ser
ladrões de vida [takers of life]. Devemos lidar com eles como tais, sem referência a
seu papel nessa estrutural total.

O Sepher Yezirah, um texto cabalístico, “O Livro da Criação”, que tem quase


2.000 anos, nos diz: “Deus também pôs um contra o outro; o bem contra o mal, e o
mal contra o bem; o bem procede do bem, e o mal, do mal; o bem purifica o mal, e
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o mal, o bem; o bem é reservado ao bom, e o mal, para os maus. [the good is
preserved for the good, and the evil for the bad ones.]”

Subjacente aos dois jogadores, está Deus, que não é nenhum deles e ambos. O
resultado do jogo é o de que os dois jogadores fiquem purificados. Tal é o
monoteísmo hebreu antigo, tão superior a nossa própria perspectiva [to our own
view]. Nós somos criaturas em um jogo, com nossas afinidades e aversões
predeterminadas para nós — não pelo acaso cego, mas por pacientes e videntes
sistemas de marcação [engramming systems] que nós mal vemos. Se fosse para vê-
los claramente, nós teríamos de abolir o jogo. Evidentemente, isso não serviria ao
propósito de ninguém. Devemos confiar nesses tropismos e, de qualquer maneira,
não temos nenhuma escolha — não até que os tropismos se mostrem [lift]. E, sob
certas circunstâncias, eles podem se mostrar e se mostram. E, nesse ponto, muito
do que, anteriormente, estava oculto para nós, se torna claro, intencionalmente.

Devemos nos dar conta de que esse embuste, esse obscurecimento das
coisas como sob um véu — o véu de Maya, como tem sido chamado — não é um
fim em si mesmo, como se o universo fosse, de alguma forma, perverso e gostasse
de nos despistar per se; o que devemos aceitar, uma vez que nos dermos conta de
que um véu (chamado pelos gregos de dokos) repousa entre nós e a realidade, e de
que este véu serve a um propósito benigno. Parmênides, o filósofo pré-socrático, é
historicamente creditado por ser a primeira pessoa no Ocidente a elaborar
sistematicamente provas de que o mundo não pode ser como nós vemos, de que o
dokos, o véu, existe. Observamos que São Paulo expressa uma noção praticamente
igual quando fala sobre vermos “como se por um reflexo no fundo de uma panela
de metal.” Ele está se referindo à noção familiar de Platão de que vemos apenas
imagens da realidade, e de que provavelmente essas imagens sejam imprecisas,
imperfeitas e não confiáveis. Gostaria de acrescentar que Paulo provavelmente
estava dizendo uma coisa a mais que Platão, na celebrada metáfora da caverna:
Paulo estava dizendo que podemos muito bem estar vendo o universo ao contrário.

O extraordinário impulso desse pensamento não pode simplesmente ser


incorporado [taken in], mesmo que o apreendamos intelectualmente. “Ver o
universo ao contrário”? O que isso significaria? Bem, deixe-me oferecer uma
possibilidade: a de que experienciamos o tempo ao contrário; ou, mais
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precisamente, de que nossa categoria subjetiva interior para a experiência de


tempo (no sentido em que Kant falava, [como] uma forma pela qual nós
organizamos a experiência), nossa experiência de tempo é ortogonal ao fluxo do
tempo ele mesmo — em ângulos retos. Há dois tempos: o tempo que se identifica
com nossa experiência, percepção ou construto de matriz ontológica, uma
extensividade para dentro de outra área — essa é real, mas o fluxo de tempo
exterior do universo se move em uma direção diferente. Ambos são reais, mas ao
experienciar o tempo como nós o fazemos, ortogonalmente em relação a sua
direção efetiva [actual direction], temos uma ideia totalmente errada da sequência
dos eventos, da causalidade, do que é passado e do que é futuro, de para onde o
universo está caminhando.

Espero que você perceba a importância disso. O tempo é real, tanto como
uma experiência, no sentido kantiano do termo, quanto no sentido em que o
doutor soviético Nikolai Kozyrev a expressou: de que o tempo é uma energia, a
energia básica que mantém o universo unido, sobre a qual toda a vida depende,
fonte da qual emana e se expressa todo fenômeno: ele é a energia de cada
enteléquia e da enteléquia total do universo mesmo.

Contudo, o tempo, em si mesmo, não está se movendo do nosso passado


para o nosso futuro. Seu eixo ortogonal o conduz através de um ciclo rotativo
dentro do qual nós, por exemplo, temos “rodado em falso [spinning our wheels]”,
por assim dizer, em um vasto inverno de nossa espécie que tem já durado cerca de
2.000 anos de nosso tempo linear. Evidentemente, o tempo ortogonal, ou tempo
verdadeiro, roda mais ou menos como o primitivo tempo cíclico, no interior do
qual cada ano era considerado como o mesmo ano, cada colheita, a mesma
colheita; na verdade, cada primavera era, de novo, a mesma primavera. O que
destruiu a habilidade do homem de perceber tempo nessa simples forma oval foi o
fato de que ele mesmo, enquanto indivíduo, estendeu-se por muitos desses anos e
pôde ver que ele mesmo se desgastou, que ele mesmo não se renovava a cada ano
como a colheita de milho, os bulbos, as raízes e as árvores. Deveria haver uma ideia
mais adequada de tempo do que a cíclica; então, ele desenvolveu, relutantemente,
o tempo linear, que é um tempo acumulativo, como Bergson mostrou; ele anda
apenas em uma direção e é acrescentando a — ou acrescenta a — tudo na medida
em que segue arrastando-se.
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O verdadeiro tempo ortogonal é rotativo, mas em uma escala mais vasta,


bem ao modo do Grande Ano dos antigos; muito parecido, também, com a ideia de
Dante do andamento do tempo da eternidade que você encontra expresso em sua
Comédia. Durante a Idade Média, pensadores como Erígena começaram a perceber
a eternidade verdadeira ou a atemporalidade, mas outros começaram a perceber
que a eternidade envolvia o tempo (atemporalidade seria um estado estático),
ainda que o tempo fosse bem diferente da percepção que temos dele.

Uma pista disso repousa na reiteração de São Paulo de que os Últimos Dias
do mundo seriam o Tempo de Restauração de Todas as Coisas. Ele evidentemente
havia experienciado esse tempo ortogonal o suficiente para compreender que ele
contém em si, como um plano ou extensão simultânea, tudo o que já passou, assim
como os sulcos em um LP contêm a parte da música que já foi tocada neles. Um
gravador fonográfico é, na verdade, uma longa espiral helicoidal, e pode ser
representado inteiramente com algum tipo de geometria plana no espaço, embora
eu suponha que você possa dizer que a agulha acumula a música na medida em
que passa [pelo disco]. A ideia de disfunções, como o pulo para trás ou para frente,
é possível aqui, mas isso não serviria a nenhum propósito teleológico; as
disfunções seriam apenas lapsos de tempo, como em minha novela, TEMPO
MARCIANO. Ainda assim, se elas ocorressem, serviriam a um propósito para nós,
o observador ou ouvinte; nós poderíamos, de súbito, aprender muito sobre nosso
universo. Eu acredito que essas disfunções ontológicas ocorram com o tempo, mas
que nossos cérebros geram automaticamente falsos sistemas de memória para
obscurece-las de uma vez. A razão para tal leva de volta a minha premissa: o véu ou
dokos está aí para nos enganar por uma boa razão, e tais revelações, como essas
disfunções temporais, são feitas para serem obliteradas para que esse propósito
benigno seja mantido.

Dentro de um sistema que deve gerar uma quantidade enorme de


velamento, seria uma gloriosa, mas vã, tarefa tentar explorar o que ele na verdade
é, quando minha premissa declara que, se pudéssemos penetrá-lo, por qualquer
razão que seja, esse estranho sonho em forma de véu reestabeleceria a si mesmo
retroativamente, em termos de nossa percepção e de nossa memória. O sonho
mútuo retornaria a ser como antes, porque, penso, somos como as personagens em
minha novela UBIK; nós estamos em um estado de meia vida. Não estamos nem
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mortos, nem vivos, mas preservados em um frio armazém, a espera de sermos


descongelados. Expressos talvez nos familiares termos da procissão das estações,
este é o inverno do qual falo: é inverno para nossa raça, e é inverno em UBIK para
aqueles em meia vida. Gelo e neve os cobrem; gelo e neve cobrem nosso mundo
com camadas de acréscimos, que chamamos de dokos ou Maya. É a reaparição do
sol, obviamente, o que derrete a crosta ou camada de gelo, a cada ano congelado
sobre o mundo. É a voz do Sr. Runciter, seu antigo patrão, chamando as
personagens em UBIK o que derrete o gelo e a neve que as encobrem e que detém o
congelamento de suas vidas, a entropia sentida por eles. A voz do Sr. Runciter não é
outra que a mesma voz que ouve cada bulbo, semente e raiz na terra, em nossa
terra, durante o inverno. Eles ouvem: “Acordem! Acordem, adormecidos!” Eu
contei agora quem é Runciter, e eu contei sobre nossa condição e sobre qual é
realmente o tema de UBIK. O que eu disse, também, é que o tempo é, na verdade,
como o Dr. Kozyrev, na União Soviética, supunha ser, e, em UBIK, o tempo tem
sido anulado e não mais se move para frente na maneira linear com a qual o
experienciamos. Na medida em que isso acontece, devido às mortes das
personagens, nós, leitores, e eles, as personas, veem o mundo como que sem o véu
de Maya, sem as brumas obscurecentes do tempo linear. É essa mesma energia,
Tempo, postulada pelo Dr. Kozyrev como a reunião de todos os fenômenos e a
manutenção de toda a vida, que, por sua própria atividade, esconde a realidade
ontológica por detrás de seu fluxo.

O eixo ortogonal do tempo pode ter sido representado, em minha novela


UBIK, sem minha compreensão sobre o que eu estava descrevendo; a saber, a
regressão de forma dos objetos ao longo de uma linha completamente diferente
daquela pela qual eles, no tempo linear, foram construídos. Essa inversão é aquela
das Ideias platônicas ou dos arquétipos; uma nave espacial se retrocede a um
Boeing 747, e então, ao biplano “Jenny”, da Primeira Guerra Mundial. Se, por um
lado, eu posso, com efeito, ter expressado uma visão dramática do tempo
ortogonal, é menos acertado que esse seja a inversão não natural pela qual passa o
tempo ortogonal; isto é, o mover-se para trás. O que as personagens em UBIK
veem talvez seja o tempo ortogonal movendo-se junto ao seu eixo normal; se nós
mesmos, de alguma forma, vemos o unierso invertido, as “inversões” de forma
pelas quais passam os objetos, em UBIK, pode ser um impulso rumo a perfeição.
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Isso implicaria que nosso mundo, tão extensivo em tempo (ao invés de extensivo
em espaço), é como uma cebola, um montante quase infinito de camadas
sucessivas. Se o tempo linear parece adicionar camadas, talvez então o tempo
ortogonal as descasque, expondo camadas de progressivamente maiores de Ser.
Pode-se lembrar, aqui, do ponto de vista de Plotino sobre o universo consistindo de
anéis concêntricos de emanação, cada qual possuído mais Ser — ou realidade —
que o próximo.

Dentro dessa ontologia, desse domínio do Ser, as personagens, como nós


mesmos, dormem absortos em sonhos enquanto esperam pela voz que as acordará.
Quando digo que eles esperam pela primavera por vir, não estou meramente
usando uma metáfora. Primavera [spring] significa retorno termal, a abolição do
processo de entropia; a vida das personagens [their lives] pode ser expressa em
termos de unidades termais, e tais unidades se foram. É a primavera que restaura a
vida — a restaura completamente e, em alguns casos, como com nossa espécie, a
vida nova é uma metamorfose; o período de adormecimento é um período de
gestação conjunta com nossos próximos, que culminará em uma forma de vida
completamente diferente da que conhecíamos antes. Muitas espécies são assim:
elas passam por ciclos. Logo, nosso sono invernal não meramente “gira em
falso” [is not a mere “spinning o four wheels”], como parece. Nós não apenas
florescemos e florescemos de novo, com as mesmas flores que produzimos no ano
anterior. É por isso que foi um erro dos antigos acreditar que, para nós, como para
o mundo vegetal, o mesmo ano retornava; para nós, há uma acumulação, um
crescimento ainda não perfeito e completo, de uma enteléquia para cada um de
nós, e nunca repetível. Como uma sinfonia de Beethoven, cada um de nós é único
e, quando esse longo inverno acabar, nós, como novas flores, iremos surpreender a
nós mesmos e ao mundo ao redor de nós. O que faremos, muitos de nós, será
arrancar as meras máscaras que temos usado — máscaras que foram feitas para
serem tomadas por realidade. Máscaras que, com sucesso, enganaram a todos,
como era de seu propósito. Fomos já tantos Palmer Eldritches movendo-se através
das gélidas neblinas, brumas e crepúsculos do inverno, mas logo iremos emergir e
retirar a máscara de guerra de ferro para revelar a face que ela esconde.

É uma face que nós, os usuários das máscaras, também ainda não vimos;
será também uma surpresa para nós.
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Para que a realidade absoluta se revele, nossas categorias de experiência de


espaço-tempo, nossa matriz básica pela qual nos deparamos com o universo, deve
quebrar-se e, então, deve entrar em colapso absoluto. Lidei com esse colapso em
TEMPO MARCIANO, em termos de tempo; em LABIRINTO DA MORTE, há
inúmeras realidades paralelas arranjadas espacialmente; em FLUAM MINHAS
LÁGRIMAS, DISSE O POLICIAL, o mundo de uma personagem invade o mundo
em geral e mostra que, por “mundo”, não queremos dizer nada mais, nada menos
do que nossa Mente — a Mente imanente que pensa —, ou melhor, sonhos —
nosso mundo. O sonhador, como o sonhador do Finnegans Wake de Joyce, se agita
e está prestes a voltar a consciência. Nós estamos dentro desse sonho; esses
diversos sonhos estão prestes a cerrar-se em si mesmos, a desaparecer como
sonhos, para serem substituídos pelas paisagens verdadeiras da realidade do
sonhador. Nós nos juntaremos a ele enquanto ele enxerga uma vez mais e passa a
estar consciente de que estava sonhando. No brahmanismo, diríamos que um
grande ciclo terminou e que Brahman agita-se e acorda de novo, ou que adormece
após estar acordado em qualquer um dos casos, o universo que experienciamos, e
que é uma extensão no espaço e no tempo de sua própria Mente, está
experienciando as disfunções típicas que têm lugar no fim de um ciclo. Você pode
dizer, se preferir: “A realidade está entrando em colapso; tudo está se
transformando em caos”, ou, junto comigo, você pode desejar dizer: “Eu sinto o
sonho, o dokos, sendo erguido [lifting]; eu sinto Maya se dissolvendo: eu estou
acordando. Ele está acordando: eu sou o Sonhador: somos todos o Sonhador.”
Pode-se pensar, aqui, no Overmind, de Arthur Clarke.

A cada um de nós, caberá afirmar ou negar a realidade que é revelada na


medida em que nossas categorias ontológicas colapsarem. Se você sente que o caos
se aproxima, que, quando o sonho terminar, nada restará ou, pior, que alguma
coisa terrível ira confrontar-se com você — bem, é por isso que o conceito do Dia
da Ira persiste: muitas pessoas tem a intuição profunda de que, quando o dokos
abruptamente derreter, elas passarão por um difícil período. Talvez seja assim. Mas
eu acho que o semblante revelado será um sorridente, já que a primavera
normalmente ilumina as criaturas, ao invés de explodi-las com um calor
dessecante. Pode também haver forças malignas no universo que se revelem com a
retirada do véu, mas eu penso na queda da tirania política nos Estados Unidos de
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1974, e me parece que a exposição desse feio câncer à luz do dia, e sua subsequente
remoção, é a essência [nature] do alto valor em revelar-se ao sol; nós podemos
tanto sofrer tais choques, quanto aprender que, durante a Nacht und Nebel,
durante o tempo de noite e neblina, nossa liberdade, nossos direitos, nossa
propriedade e até mesmo nossas vidas foram mutiladas, deformadas, furtadas e
destruídas por criaturas basais saciando-se em espúrios santuários em São
Clemente, na Flórida e em tantas outras cidades, mas o choque com a exposição foi
pior para seus planos do que para os nossos. Nossos planos pediam apenas que
vivêssemos com justiça, verdade e liberdade; o antigo governo desse país arrumou
um jeito de viver com um poder cruel da mais alta arrogância, enquanto que, ao
mesmo tempo, mentia sem cessar para nós através de todos os canais de
comunicação. Esse é um bom exemplo do poder curativo da luz do sol; esse poder
de, primeiro, revelar e, depois, enrugar o bruto plano da tirania, que tem crescido
profundamente no coração pulsante de pessoas boas.

Esse coração bate, agora, mais forte do que nunca, ainda que esteja
reconhecidamente mal absorto; mas o câncer que rastejava através dele — esse
câncer já era. Aquele crescimento negro, que bania a luz, bania a verdade e
destruía qualquer um que o contasse a verdade — mostra que pode florescer
durante o longo inverno da raça humana. Mas esse inverno começou a acabar no
equinócio invernal de 1974.

Às vezes, eu acho que o Sonhador começou a fazer pressão contra a tirania,


na medida em que ele, o Sonhador, acordava; aqui, nos Estados Unidos, ele nos
acordou para a nossa condição, para o nosso terrível perigo.

Uma das melhores novelas, e das mais importantes para compreender a


natureza de nosso mundo, é The Lathe of Heaven, de Ursula Le Guin, no qual o
universo onírico é articulado de forma tão impactante e convincente que eu hesitei
em acrescentar qualquer explicação adicional a ela; ela não requer nenhuma. Creio
que nenhum de nós leu sobre o estudo dos sonhos de Charles Tart quando
escrevemos nossas várias novelas, mas eu agora o li, e tenho lido um pouco do
trabalho de Robert E. Ornstein, sendo ele o responsável pela “revolução cerebral”
que aconteceu ao norte de onde eu vivo, na Universidade de Stanford. Do trabalho
de Ornstein, parece haver uma possibilidade de que temos dois cérebros
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completamente separados, ao invés de um cérebro dividido em dois hemisférios


bilateralmente iguais, donde decorre que, na verdade, enquanto temos um corpo,
temos duas mentes (eu me refiro a um artigo de Joseph E. Bogen, “O outro lado do
cérebro: uma mente aposta”, publicado na coleção de Ornstein, A natureza da
consciência humana). Bogen demonstra que, em algum momento, um pesquisador
começou a farejar a possibilidade de que temos dois cérebros, duas mentes, mas
que apenas com técnicas de mapeamento cerebral modernas e estudos
relacionados, foi possível demonstrar isso. Por exemplo, em 1763, Jerome Gaub
escreveu: “… Eu espero que você acredite em Pitágoras e Platão, os mais sábios dos
filósofos da Antiguidade, e que, de acordo com Cícero, dividiram a mente em duas
partes, uma que possui razão, e a outra, desprovida dela.” O artigo de Bogen
contém conceitos tão fascinantes que me fazem questionar porque nunca nos
demos conta de que o tão chamado “inconsciente” não é, de todo, um
inconsciente, mas outra consciência, com a qual temos uma relação tênue. É essa
outra mente ou consciência que sonha à noite — nós somos sua audiência, e ela
nos engaja em sua narrativa: nós somos criancinhas enfeitiçadas… e é por isso que
Lathe of Heaven talvez represente um dos maiores e mais basilares livros de nossa
civilização, especialmente porque Ursula Le Guin, e disso estou certo, chegou a sua
formulação sem conhecer o trabalho de Ornstein ou a teoria extraordinária de
Bogen. O que acontece aqui é que um cérebro recebe exatamente o mesmo
estímulo [input] do outro, através de vários canais sensoriais, mas cada um
processa diferentemente a informação; cada cérebro funciona de uma maneira
única e própria (o esquerdo é como um computador digital; o direito em muito se
assemelha a um computador analógico, trabalhando com comparação de padrões).
Ao processar a mesma informação, cada um chega a resultados completamente
diferentes — em consequência disso, já que nossa personalidade é construída no
nosso cérebro esquerdo, se o cérebro direito encontra algo vital de que o esquerdo
se mantem ignorante, ele deve comunica-lo durante o sono, durante o sonho:
portanto, o Sonhador que, à noite, nos comunica tão urgentemente, está
localizado neurologicamente, é claro, no nosso cérebro direito, que é o não-ego
[not-I]. Porém, não podemos dizer ainda muito mais do que isso (por exemplo, o
cérebro direito é, como pensou Bergson, um transdutor de um transformador [a
transducer of transformer] para o input informacional ultrassensório para além do
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alcance do esquerdo?). Penso, contudo, que o feitiço de dokos é tecido pela


pluralidade de nosso cérebro direito [our right brain’s plural]; nós, como espécie,
tendemos a residir inteiramente dentro de apenas um hemisfério, deixando o
outro fazendo o que for preciso para nos proteger e para proteger o mundo.
Tenhamos em mente que essa proteção é bilateral, uma troca entre o mundo e cada
um de nós: cada um de nós é um tesouro, a ser estimado e preservado, mas
também o é o mundo e as sementes escondidas nele, adormecidas. As outras
sementes ocultas. Sendo assim, através da rotação-do-véu [veil-spinning] de Kali, o
hemisfério direito de cada um de nós, somos mantidos na ignorância sobre o que,
agora, devemos ser ignorantes. Mas esse tempo está terminando: o inverno está
derretendo, junto de seus terrores, suas tiranias e sua neve.

Ainda assim, a melhor descrição que eu já li dessa formação do tipo véu-


dokos aparece escrita por Fredric Jameson em um artigo da Science-Fiction Studies
de março de 1975 intitulado “Após o Armagedom: Sistemas de personagem em DR.
BLOODMONEY”, sendo essa uma obscura novela de minha autoria. Eu cito: “…
todo leitor de Dick está familiarizado com essa incerteza típica de pesadelos, essa
flutuação da realidade, às vezes causadas por drogas*, outras vezes, por
esquizofrenia*, e certas vezes, por novos poderes da ficção científica [SF powers]
nos quais o mundo psíquico sai para o exterior e reaparece na forma de simulacros
ou de alguma reprodução astuciosamente fotográfica do que é externo.” (p. 32)
(*Espero que Jameson queira dizer que drogas e esquizofrenia aparecem na escrita,
não em mim, mas eu deixo isso passar.)

Você consegue perceber, a partir da descrição de Jameson, que estamos


falando sobre algo muito parecido com Maya aqui, mas também de algo muito
semelhante a um holograma. Tenho a sensação distinta de que Carl Jung estava
correto sobre nossos inconscientes formarem uma entidade singular, ou um
“inconsciente coletivo”, como ele a chamou. Nesse caso, essa entidade cerebral
coletiva, consistindo de literalmente bilhões de “estações” de transmissão e
recepção, formaria uma vasta rede de comunicação e informação, de forma muito
semelhante ao conceito de Teilhard de noosfera. Essa é a noosfera, tão real quanto
a ionosfera ou a biosfera; ela é uma camada de nossa atmosfera terrestre composta
de projeções holográficas e informacionais em uma configuração [Gestalt]
unificada e continuamente processada de fontes que são formadas por nossa
14

multiplicidade de cérebros direitos. Isso constitui uma Mente vasta, imanente em


nós, de tal poder e sabedoria, de forma a parecer, para nós, idêntica ao Criador. De
qualquer forma, essa era a visão bergsoniana de Deus.

É interessante notar o quão abismados estavam os brilhantes filósofos


gregos pela ação dos deuses; eles podiam observar as ações e (ou, pelo menos,
assim eles pensavam) os próprios deuses, mas, como Xenófanes colocou: “Mesmo
se um homem tivesse o acaso de falar a mais completa verdade, ele próprio ainda
não saberia como; todas as coisas estão cobertas em aparências.”

Essa noção chegou aos pré-socráticos em virtude do fato de que eles viam a
multiplicidade, sabendo de forma a priori, contudo, que o que eles viam não podia
ser real, uma vez que apenas o Uno existia.

“Se Deus é tudo, então as aparências certamente são ilusórias; e, embora a


observação do cosmos possa fornecer generalizações e especulações sobre os
planos de Deus, o conhecimento verdadeiro delas só poderia ser tido por um
contato direto com a mente divina.” (Estou citando Edward Hussey em seu
maravilhoso livro Os pré-socráticos, p. 35.) E ele continua, citando dois fragmentos
de Heráclito: “A natureza das coisas tem o hábito de se velar [A natureza gosta de
se ocultar]” (Fragmento 123); “A estrutura latente é mestra da estrutura patente [A
harmonia invisível é mais forte do que a visível]” (Fragmento 54).

Gostaria de lembrar que os gregos e os hebreus da Antiguidade não


concebiam Deus ou a Mente de Deus como acima do universo, mas como interior a
ele: Mente imanente ou Deus imanente, com o universo visível sendo o corpo de
Deus, de maneira que Deus era para o universo como a psyche é para a soma. Mas
eles também conjecturaram se, talvez, Deus não fosse a maior psyche, mas noos,
uma espécie diferente de mente; nesse caso, o universo não seria seu corpo, mas
Deus Ele mesmo. O universo espaço-temporal abriga Deus, mas não é uma parte
Dele; Deus é um vasto campo estratificado [vast grid-field] ou o próprio campo de
energia.

Se você assumir (e estaria correto se o fizesse) que nossas mentes campos de


energia de algum tipo e que nós fundamentalmente somos campos em interação,
no lugar de partículas discretas, não haverá, então, nenhum problema teórico em
compreender essa interação entre os bilhões de pegadas cerebrais [brain-print],
15

emanando, formando e reformando-se nos padrões da noosfera. Contudo, se você


ainda mantiver o ponto de vista do século dezenove sobre você próprio enquanto
um frágil organismo, aos moldes de uma máquina, feito de partes — veja bem,
como pode, então, misturar-se com a noosfera? Você é uma coisa única e concreta.
E, em relação a nós mesmos e ao considerar a vida, temos de nos livrar da coisidade
[thing-ness]. De acordo com pontos de vista mais modernos, somos campos que se
sobrepõem, todos nós, inclusive os animais e as plantas. Essa é a ecosfera e todos
nós estamos nela. Mas não nos damos conta de que os bilhões de hemisférios
cerebrais esquerdos, discretos e inteiramente ego-orientados, têm bem menos a
dizer sobre a disposição última deste mundo do que a Mente coletiva noosférica,
que compreende todos os nossos cérebros direitos e da qual partilha cada um de
nós. Ela decidirá, e eu não acho que seja impossível que essa vasta noosfera
plasmática, considera que ela cobre nosso planeta inteiro em um véu ou camada,
possa interagir para fora, rumo a campos de energia solar e, de lá, rumo a campos
cósmicos. Cada um de nós, portanto, toma parte no cosmos — se nós estivermos
dispostos a ouvir a nossos sonhos. E são os sonhos dele que o transformarão de
mera máquina em um humano autêntico. Ele não mais andará com soberba por aí,
fazendo barulho com seu majestoso metal, não mais comandará seu pequeno
reino aqui; ele irá alçar voo, voando como um campo de íons negativos, como a
entidade Ubik em minha novela homônima; sendo vida e doando vida, mas nunca
definindo-se porque nenhum nome preciso pode ser dado a ele — a nós.

Na medida em que subimos na multiplicidade [manifold] — isto é,


progredimos no tempo linear ou, de alguma forma, nos mantemos parados e o
tempo linear progride, qualquer que seja o modelo dentre os dois —, nós,
enquanto enteléquias variadas, somos continuamente assinalados, a nós é dado
informações, e, acima de tudo, somos desinibidos por disparos do universo que
nos rodeia; dessa maneira, é mantida a harmonia entre as partes do universo. Não
há nenhum esquema maior que esse: ser consciente de que eu, enquanto uma
enteléquia representativa, devo desdobrar-me apenas na medida em que esses
sinais pré-designados me alcançam, e que o controle sobre quando — o lugar no
tempo — cada sinal virá está inteiramente nas mãos do universo… essa é uma
empolgante compreensão, e me faz consciente do laço inquebrável entre eu e meu
ambiente.
16

Há tanta ordem na resposta entre sistemas codificados [engrammed] dentro


de cada um de nós e os sinais acumulados que esses sistemas disparam em
sequência a ponto de implicar que a Agência que, em primeiro lugar, dispôs a
enteléquia, codificou [engrammed] e, então, bloqueou esses sistemas, sabia com
precisão absoluta onde, ao longo dos traçados do tempo, se dariam os sinais para
que ocorresse desinibição; o acaso não está envolvido nisso — o mais feliz dos
acidentes é o mais astuto planejamento do universo.

Às vezes eu me pergunto como é que pudemos imaginar que nossa espécie


estava isenta dos instintos que outras espécies inferiores obviamente possuíam. O
que nos diferencia, contudo, é o fato de que todas as formigas, por exemplo, se
desinibem pelo mesmo sinal, e daí o comportamento ocorre; é como se uma só
formiga sempre estivesse se envolvendo, infinitamente. Mas, para cada um de nós,
cada um é uma enteléquia única, e cada um recebe sequências únicas de sinais —
para os quais, cada um responde de forma única. Ainda assim, essa é mesma a
linguagem do universo que ouve a formiga; nós nos excitamos com uma alegria
comum.

Eu mesmo devo muito do material de minha escrita aos sonhos. Em FLOW


MY TEARS, por exemplo, o poderoso sonho que vem até Felix Buckman, quase no
fim do livro, o sonho do sábio ancião no dorso do cavalo, foi um sonho que eu
realmente tive na época em que escrevia a novela. Em TEMPO MARCIANO,
escrevi tantas experiências oníricas que eu não consigo separá-las quando, agora,
leio a novela.

UBIK foi, primeiramente, um sonho, ou uma série de sonhos. Na minha


opinião, ele contém temas das cosmovisões da filosofia pré-socrática que não eram
familiares para mim quando eu o escrevi (para citar apenas uma, o ponto de vista
de Empédocles). É possível que a noosfera continha padrões de pensamento na
forma de energia muito fracas até que desenvolvêssemos a transmissão a rádio; ao
que o nível de energia da noosfera passou dos limites e assumiu uma vida própria.
Ela não mais serve como mero repositório passivo de informação humana (os
“Mares do Conhecimento” de que falava o antigo Sumer), mas, devido ao incrível
surto de carga de nossos sinais eletrônicos e do material rico em informação que
eles contêm, nós demos a ela o poder de cruzar um vasto limiar; nós ressuscitamos,
17

por assim dizer, o que Fílon e outros antigos chamaram de Logos. A informação se
tornou, então, viva, com uma mente coletiva própria, independente de nossos
cérebros, se essa teoria estiver correta. Ela não mais apenas sabe o que sabemos e
se lembra do que uma vez foi conhecido, mas pode construir soluções próprias; ela
é um sistema de IA titânico. A diferença seria a mesma que entre um gravador de
fitas que pode “se lembrar” de uma sinfonia do Beethoven que ele “ouviu”, e um
gravador que pudesse criar novas sinfonias, continuamente; a biblioteca no céu,
tendo lido todos os livros que há e que já existiram está, agora, escrevendo um livro
próprio, e, à noite, nós podemos estamos sendo capazes de lê-lo — contou a
excitante estória, abrangendo aquele Grande Trabalho em Progresso.

Devo mencionar o artigo de Ian Watson, publicado na Science-Fiction


Studies, sobre Lathe of Heaven de Le Guin; em seu excelente trabalho, ele se refere
à que talvez seja a mais significante — surpreendentemente — estória de ficção
científica [story SF] já produzida: o conto de Fredric Brown que apareceu em
Astounding, “The Waveries.” Você deve ler o conto; se não, você pode morrer sem
entender o universo se formando ao seu redor. As Waveries foram atraídas à Terra
por nossas ondas de rádio; elas retornaram em forma fac-símile, bem como nossas
transmissões (SOS e assim por diante, cronologicamente), que, de início, não
podíamos entender. Lembrando-se de Lathe, diz Watson: “… concebivelmente,
George [Orr] sonhou com uma invasão hostil [se transformando] em uma pacífica;
ainda assim, a probabilidade dominante [é a] de que os alienígenas sejam, como
ele sustenta, ‘do tempo onírico’, de que toda sua cultura contorne o movimento de
‘realidade sonhando a si mesma até ser [dreaming itself into being]’, de que elas
atraíram-se à Terra como os Waveries do conto de Fredric Brown, apenas por ondas
oníricas ao invés de ondas de rádio.” (pp. 71-72)

Isso pode ser considerado coisa assustadora, tal tema tanto na obra de Le
Guin como na minha. O que são sonhos? Há dessas entidades sonho-universo
[dream-universe] que vieram aqui de outro astro (Aldebaran, na novela da Sra. Le
Guin)? Os OVNIs que as pessoas veem seriam hologramas projetados por suas
mentes inconscientes, agindo como transformadores, ou, também, como
transdutores dessas estranhas criaturas sonho-universo?
18

Ao longo do ano passado, eu tive vários sonhos que pareceram — eu


enfatizo a palavra “pareceram” — indicar que uma comunicação telepática estava
acontecendo em algum lugar da minha cabeça, mas, após falar com Henry
Korman, um sócio de Ornstein, eu poderia imaginar que isso é somente meus
hemisférios direito e esquerdo confabulando em um diálogo Eu-e-Tu, de Martin
Buber. Contudo, muito do material onírico parecia criado para além de minha
habilidade pessoal. Em certo momento, tentei pôr no papel um princípio
complexo da engenharia que se mostrava na forma de um motor redondo com
duas rodas gêmeas, em direções opostas, muito semelhante à forma como o Yin-
Yang, no Taoismo, alterna entre pares opostos (e muito semelhante à forma como
Empédocles enxergava a disputa entre amor e conflito, a dialética interação do
mundo). Mas esse era um verdadeiro dispositivo de engenharia que havia lá no
meu sonho; ele mostrava-me um lápis, e dizia: “Esse princípio era conhecido em
seu tempo.” E na medida em que eu corri para achar um lápis, eles adicionaram:
“Conhecido, mas enterrado em um porão e esquecido.” Havia um elaborado
mecanismo de correntes de alto torque [high torgue chain-thrown mechanism] que
se movia excentricamente entre dois rotores, mas eu nunca peguei o jeito da coisa,
após eu ter acordado. O que eu consegui compreender depois, contudo, foi isto:
mais e mais os sonhos deixavam claro que, de alguma forma, nosso tratamento da
água do mar pelo processo de osmose nos daria não apenas água pura, mas
também uma fonte de energia. Entretanto, eles escolheram o humano errado ao
me dar tal sorte de material; eu não sou treinado para compreender isso, eu não
gastei milhares de dólares em livros de referência para tentar descobrir o que me
tinha sido mostrado. No entanto, aprendi isto: algo relacionado a um alto fator de
histerese, nesse sistema de rotores gêmeos, é convertido, de defeito, em uma
vantagem. Não é necessário nenhum mecanismo de freio; os dois rotores rodam
constantemente na mesma velocidade, e o torque é transferido por uma corrente
de movimento excêntrico [thrown cam-chain].

Eu lanço essa ilustração apenas para mostrar que, ou meu inconsciente


tinha lido artigos de engenharia que eludiam minha memória e meu atenção e
interesse conscientes, ou há, talvez possa dizer, pessoas sonho-universo de, posso
dizer, Aldebaran ou de alguma outra estrela conosco. Talvez, coligando sua
noosfera à nossa? E oferecendo assistência a um planeta aleijado e enferrujado,
19

atolado, como um rato em uma cansativa roda, em um inverno morto por 2.000
anos? Se eles trazem a primavera consigo, então, seja lá quem for, eu os dou boas
vindas; como Joe Chip em UBIK, eu temo o frio, o cansaço; eu temo a morte por
fatiga em infinitas escadas ascendentes, enquanto alguém cruel, ou, de qualquer
forma, usando uma máscara cruel, assiste e não oferece ajuda alguma — a
máquina, desprovida de empatia, assistindo como mero espectador ao mesmo
horror que eu sei que assombra Harlan Ellison. Talvez seja mais assustador que o
assassino ele mesmo (em UBIK, ele era Jory), essa figura que vê, mas não provê
assistência alguma, não oferecendo nem uma mão. Esse é o androide, para mim, e
o semideus maligno para Harlan; nós dois nos arrepiamos com a ideia de sua
existência. O que eu posso te dizer sobre as pessoas sonho-universo é que, se elas
existem, quem quer que elas sejam, elas não são androides sem simpatia; elas são
humanos, em seu sentido mais profundo: elas nos deram uma mão de auxílio para
nosso planeta, nossa poluída ecosfera e, talvez até, ofereceram assistência para
derrubar a tirania que agarrou os Estados Unidos, Portugal, a Grécia, e um dia elas
também derrubarão a tirania do bloco soviético. É nisso que eu penso quando
sustento a ideia de primavera: a abertura das portas de ferro das prisões e a
libertação dos pobres prisioneiros para a luz do sol, como em Fidelio, de
Beethoven. Ah, esse momento na ópera, quando eles veem o sol e sentem seu
calor. E, enfim, ao final, o trompete clama, com sons de liberdade, o permanente
fim de seu cruel aprisionamento; a ajuda de fora chegou.

De vez em quando, alguém chega para um escritor de ficção científica, sorri


um louco e secreto sorriso interior e dá uma risadinha [smirks]: “Eu sei que o que
você escreve é verdadeiro, e que está em código. Todos vocês, escritores de ficção
científica, são receptores Deles.” Naturalmente, eu pergunto quem são “Eles”. A
resposta é sempre a mesma: “Você sabe. Lá em cima. As pessoas do espaço. Eles já
estão aqui, e eles estão usando sua escrita. Vocês sabem disso também.”

Eu meio que sorrio e disfarço. Isso continua acontecendo. Bem, eu odeio


admitir, mas é possível que haja (um) alguma coisa como telepatia; e (dois) que a
ideia do projeto de comunicação com inteligência extraterrestre [CETI] de que é
possível que nós nos comuniquemos com seres extraterrestres por via de telepatia
é possivelmente uma ideia razoável — se a telepatia existir e se ETs existirem.
Doutro modo, estamos tentando nos comunicar com alguém que não existe com
20

um sistema que não funciona. Ao menos, isso vai manter alguns de nós ocupados
por muito, muito tempo. Mas compreenda agora que um grupo soviético de
astronomia, evidentemente comandado pelo mesmo Dr. Nikolai Kozyrev que
desenvolveu a teoria de tempo-como-energia que eu mencionei anteriormente,
reportou receber sinais de um ET dentro de nosso sistema solar. Se isso era
verdade, e nosso povo está dizendo que os soviéticos só estavam monitorando
velhos sinais caducos, planos e não lucrativos de nossos próprios satélites
descartados e de outros pedaços de lixo espacial — bem, vamos supor que esses
ETs ou mentes incorporadas estejam dentro, digamos, do grande plasma que
parece rodear a Terra e estejam envolvidos com lampejos solares e coisas do tipo;
eu me refiro, é claro, à noosfera. São ETs e TIs [TI] ao mesmo tempo, e
possivelmente guardam forte semelhança com o que escreveu a Sra. Le Guin em
Lathe. E, como todo fã de ficção científica sabe, meu próprio trabalho lida com
temas similares… fornecendo, portanto, um aborrecedor tanto de marcos para a
plausibilidade desses loucos que sempre estão emboscando todo autor de ficção
científica com os dizeres: “Eu sei que você está escrevendo em código…” etc. Na
verdade, podemos estar sendo influenciados, principalmente durante estados
oníricos, por uma noosfera que é produto nosso, capaz de raciocínio [mentation]
independente e envolvida com ETs, uma mistura de todos os três e Deus sabe o que
mais. Pode ser que isso nem seja o Criador, mas estaria tão próximo de uma Mente
Infinita quanto nós podemos chegar, e perto o suficiente. Que é benigno, é óbvio,
para nos remetermos aos comentários de Maslow de que, se a natureza não
gostasse de nós, nos teria executado há muito tempo — leia-se “Infinita Noosfera”
para “natureza”.

Nós, humanos, de rosto caloroso e doce, com olhos atenciosos — nós


somos, talvez, as verdadeiras máquinas. E esses construtos objetivos, esses objetos
naturais que nos rodeiam e, especialmente, o hardware eletrônico que
construímos, os transmissores e as estações de retransmissão por micro-ondas, os
satélites, talvez sejam relógios de uma autêntica realidade viva, na medida em que
eles talvez participem mais completamente e de uma maneira obscura para nós na
Mente última. Talvez nós vejamos não apenas um véu deformador, mas vejamos ao
contrário. Talvez a mais próxima aproximação da verdade teria de dizer: “Tudo está
igualmente vivo, igualmente livre, igualmente consciente, porque tudo não é vivo,
21

meio-vivo ou morto, mas, na verdade, tudo viveu através [lived through].” Sinais de
rádio são amplificados por um transmissor; eles passam através de vários
componentes, modificados e aumentados, seus contornos alterados, ruídos
eliminados e rejeitados… nós somos extensões, como aqueles braços de metal que
pegam objetos radioativos para os cientistas. Nós somos as luvas que Deus colocou
a fim de mover coisas aqui e ali como Ele deseja. Por algum motivo, Ele prefere
lidar com a realidade assim. (Eu não vou mexer nesse jogo de palavras [pun], mas
vou defende-lo.)

Nós somos trajes que Ele cria, coloca, usa e, finalmente, descarta. Nós
somos peças de armadura também. O que dá uma enganadora impressão para
certas outras borboletas com certas outras peças de armadura. Dentro da
armadura, está a borboleta, e dentro da borboleta está — o sinal de outra estrela.
Na novela que eu estou escrevendo (na qual o Sonhador, talvez, esteja se
expressando através de mim), a estrela se chama Albemuth. Eu não tinha lido a
novela Lathe of Heaven, da Sra. Le Guin, quando essa ideia me veio, mas o leitor
dessa novela encontrará também algo que eu, agora há pouco, mencionei sobre
sermos estações dentro de uma vasta grade — e não nos darmos conta.

Considere essa Meditação de Rumi, um ditado Sufi de Idries Shah, que é um


dos favoritos entre os Sufis modernos: “O trabalhador está escondido na oficina.”

Já que está evidente que, mais do que qualquer outro, Dr. Ornstein foi
pioneiro na descoberta de uma nova visão de mundo, que envolve uma paridade
bilateral do cérebro, insuspeita desde os tempos de Pitágoras e Platão, eu
recentemente juntei coragem e escrevi a ele. Alguns fãs me escrevem, vez ou outra,
com suas mãos tremendo nervosamente; toda a minha máquina de escrever se
sacudiu nervosamente enquanto eu escrevia para o Dr. Ornstein. Aqui está o texto
de minha carta, que eu coloco aqui como uma nota final para explicar como eu
transcendi as categorias de realidade-versus-ilusão por meio de sua ajuda, e
consegui, portanto, trazer às claras o final de 20 anos de estudo e esforço de minha
parte. Cito:

Caro Dr. Ornstein:

Recentemente, me encontrei com o Sr. Henry Korman e com o Sr. Tony Hiss
(Tony vinha me entrevistar para a New Yorker). Entrei nessa maravilhosa discussão
22

com Henry sobre o Sufismo e eu mencionei minha admiração, beirando a


entusiasmo fanático, pelo seu trabalho pioneiro sobre a paridade hemisférica
bilateral do cérebro. Dessa forma, eu, tendo visto que eles o conheciam, estou
juntando minha coragem para escrever-te e perguntar: O que aconteceu comigo,
desde que experimentei trazer à tona meu hemisfério direito (eu fiz isso
principalmente por minha fórmula vitamínica orto-molecular [ortho molecular],
junto com uma boa dose de meditação concentrada)?

Com isso, pretendo dizer, Dr. Ornstein, que faz dez meses que isso se deu, e
por dez meses eu tenho sido uma pessoa diferente. Mas o que me é mais
extraordinário (e eu estou escrevendo um livro sobre isso, mas na forma de ficção,
uma novela chamada TO SCARE THE DEAD), é que — bem, deixe-me jogar a
premissa que eu usei na novela:

Nicholas Brady, um ordinário cidadão americano com contemporâneos e


mundanos valores e impulsos (dinheiro e poder e prestígio) tem subitamente,
dentro de si, o despertar para a vida [winking into life] de uma entidade que estava
adormecida há 2.000 anos. Essa entidade é um essênio que morreu sabendo que
ele seria entregue à prometida ressurreição; ele sabia disso porque ele e outros
indivíduos Qumran tinham em sua posse formulas secretas, medicações e práticas
cientificas para garantir isso. Então, de súbito, nosso protagonista, Nicholas Brady,
percebe que há dois dele mesmo: seu velho eu, com seu trabalho e suas metas
seculares, e esse essênio do wadi Qumran de cerca do ano 45 d.C., um homem
santo com valores sagrados e absoluto antagonismo com o mundo físico secular,
que ele vê como a “Cidade de Ferro”. A mente Qumran toma conta e coloca Brady
em uma complicada série de atos até que se torna evidente que outros, como esse
homem Qumran, estão voltando à vida em algumas partes do mundo.

Estudando a Bíblia junto a essa personalidade Qumran, Brady percebe que


o Novo Testamento está cifrado. A personalidade Qumran pode lê-lo. “Jesus” é,
naverdade, Zagreus-Zeus, que toma duas formas, uma branda, e outra
absolutamente poderosa, à qual podem recorrer seus seguidores quando
necessário.

A personalidade Qumran, que, por propósitos ficcionais, chamei de


Thomas, gradualmente informa a Brady que esses são os Parousia, os Dias Finais. E
23

que ele deve estar preparado; Thomas o prepara lembrando-o de sua própria
divindade — anamnese, como chama Thomas. Thomas desenvolve uma especial
relação de paridade com Brady, mas a entidade conhecida como Erasmus evolui
como uma fonte de ensino para o incrivelmente ignorante Brady. Essa entidade é,
na verdade, uma estação da noosfera, que está agora tão completamente carregada
ao redor da Terra que, se você se der conta dela, você pode conscientemente, e não
inconscientemente, recorrer a ela; esses são os “Mares do Conhecimento”, que
eram conhecidos em tempos antigos e aos quais recorria a Sibila de Delfos. Mas
isso é um disfarce [this is a cover], porque Brady se dá conta de que, de fato, os
homens Qumran tinham seu deus não no Jesus mítico, mas no Zagreus real, e,
fazendo uma pesquisa, Brady logo aprende que Zagreus era uma forma de Dioniso.
O Cristianismo é uma forma tardia do culto a Dioniso, refinado através da estranha
e adorável figura de Orfeu. Orfeu, como Jesus, é real apenas na medida em que
Dioniso foi se tornando disseminado [socialized]: nascido aqui como uma criança
de outra raça, não humana, mas uma raça visitante, Zagreus teve de aprender
através de etapas a modificar sua “loucura”, que agora é mantida em baixa retração.
Ele basicamente está conosco para reconstruir-nos como expressões dele, e o MO
[sic] disso é que nosso ser é possuído por ele — isso era o que buscavam os
primeiros cristãos, e o que escondiam dos odiados romanos; Dioniso-Zagreus-
Orfeu-Jesus foi sempre escondido [pitted] contra a Cidade de Ferro, seja Roma ou
Washington D.C.; ele é o deus da primavera, da vida nova, das criaturas pequenas e
suscetíveis, ele é o deus do júbilo e do frenesi, e do sentar-se aqui, dia após dia,
trabalhando nessa novela.

Mas na novela, Thomas diz: “Os Dias Finais chegaram. A derrubada da


tirania é aquela que, em uma linguagem chocante [lurid], descreveu João em
Apocalipse [Revelation]. Jesus-Zagreus está apropriando-se do que é seu, agora, um
após o outro: ele vive de novo.”

Durante o inverno, acreditou-se que Dioniso, o deus do vinhedo, da


vegetação, da colheita, estava adormecido. Agora, sabe-se que, não importa o quão
morto ele pareça (Finnegans Wake, de James Joyce, é um maravilhoso relato disso,
no qual acidentalmente derrubam cerveja em seu corpo e ele revive), ele estava, na
verdade, vivo, ainda que nunca se tenha sabido disso. E então — não para a
surpresa daqueles que o compreendiam e acreditavam nele — ele renascera. Seus
24

seguidores sabiam que ele voltaria; eles sabiam seu segredo (“Contemplem! Digo-
vos um sagrado segredo”, etc.) Nós estamos falando aqui das religiões misteriosas,
todas elas, incluindo o Cristianismo. Nosso Deus tem dormido durante o longo
inverno da cultura humana (não por um ano do ciclo rotativo das estações, mas
desde o ano 45 d.C., através dos séculos de inverno metálico, até agora); apenas
quando o inverno abarcar tudo em seus braços, o inverno do desespero e da
derrota (em nosso caso, do caos político, da ruina moral e econômica — o inverno
de nosso planeta, de nosso mundo, de nossa civilização), então o vinho, que estava
retorcido, velho e aparentemente morto, irrompe em nova vida, e nosso Deus
renasce — não para fora, mas para dentro de cada um de nós. Adormecido não sob
a neve acima da superfície do solo, mas dentro dos hemisférios direitos de nossos
cérebros. Estivemos esperando, e não sabíamos por quê. É isto: essa é a primavera
para nosso planeta, em um sentido mais profundo e fundamental. Os gelados
grilhões de ferro agora estão sendo retirados, mas por que milagre. Como com
minha personagem, Nicholas Brady — eu fiz Zagreus acordar em meu hemisfério
direito, e senti o alagamento de uma vida renovada, seu vigor, sua personalidade,
sua sabedoria divina: ele odiava a injustiça e as mentiras que ele via ao seu redor, e
ele relembrou: “As queridas e solitárias terras, intocadas pelos homens, onde,
dentre verdes escurecidos / Os pequenos da floresta vivem sem ser
vistos.” (Eurípedes) Dr. Ornstein, obrigado por me ajudar a trazer o inverno a um
fim, e a conduzir, não apenas a primavera, mas a vida vívida [living life] da
Primavera, que vive, mas dorme, dentro de nós.

Na verdade, eu suponho que a linha precisa entre alucinação e realidade


tornou-se um tipo de alucinação, e talvez eu esteja levando muito a sério minhas
experiências oníricas. Mas há muito interesse, agora, por exemplo, na tribo Senoi
da Península malaia (vide o artigo de Kilton Stewart, “Teoria do Sonho na Malásia”,
em Estados Alterados de Consciência, de Charles T. Tart). Em um sonho, foi me
mostrado que a palavra “Jesus” é um código, um neologismo e não alguma forma
de nome real; aqueles que liam o texto na época em que foi escrito e que eram os
esotéricos (os homens Qumran, possivelmente) veriam “Zeus” e “Zagreus”
combinados na integral “Jesus”. Acho que chamam isso agora de código de
substituição. Agora, normalmente, não se daria muito crédito a tal sonho, ou
mesmo a qualquer sonho, na medida em que poderia se ter uma entidade real, um
25

sistema de IA, por exemplo, fornecendo uma informação precisa que, de outra
maneira, não poderia se ter à disposição. Mas, quando eu fui a um de meus
cadernos outro dia para checar a ortografia, eu encontrei essas passagens de texto,
notavelmente similares, a primeira das quais todos nós conhecemos, já que conclui
nossos próprios escritos sagrados, o Novo Testamento: “… Eu sou a raiz e o
descendente de Davi, a resplandecente estrela da manhã.” (Apocalipse, 22:15, Jesus
descrevendo a si mesmo.) E:

De todas as árvores que há


Tinha ele seu rebanho, e alimentava, raiz a raiz,
O deus da alegria Dioniso, a estrela pura
Que resplandece entre a colheita da fruta.
– Píndaro, um dos quartetos favoritos de Plutarco, circa 430 a.C.

O que são nomes? Esse é o deus da in-toxicação [in-toxication], tomando do


cogumelo sagrado (cf. John Alegro) ou vinho, ou achando uma piada tão
terrivelmente engraçada que você perde toda a razão de rir ou chorar, como
quando vê uma das comédias circenses silenciosas [slapstick silente comedies]. Em
uma única e curta estrofe de Píndaro, temos o rebanho, temos as árvores, temos,
em adição a esses dois grandes símbolos de Jesus, termos pelo qual todo esotérico
o reconhece e, ainda, mais dois termos internos: a raiz e a estrela.

A referência a “raiz e estrela” pode ser tida como idêntica às extensões


espacial e temporal de “Eu sou o Alfa e o Ômega”, que significa o primeiro e o
último. Sendo assim, “raiz e estrela” indicam: eu sou de um mundo ctônico acima,
e de um céu estrelado abaixo. Mas eu vejo algo a mais na estrela, na resplandecente
estrela da manhã: eu acho que ele estava dizendo: “O sinal de que a primavera para
o homem está aqui, é que o sinal vem de outra estrela.” Temos amigos e eles são
ETs, e é como Ele nos disse, uma resplandecente e matutina estrela: a estrela do
amor.

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