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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


Ciências Sociais - Bacharelado
Epistemologia das Ciências Sociais
Eric Quevedo Silva

Moon (2009): reflexões a partir de Descartes e Kant

Confesso que antes de ver “Moon” (pela primeira vez, em 2023), um filme
relativamente antigo, e sem ter lido o livro que o inspirou, não esperava muito quanto
aos efeitos especiais ou da história em si. Nem sempre sabemos o motivo pelo qual
consideramos um filme bom ou ruim, tudo irá depender das nossas experiências, dos
processos de socialização que constituem as bases nas quais as características de nossas
personalidades, valores, visões de mundo etc. são definidas.
Um filme sempre será igual, no sentido de que todas as pessoas assistem as
mesmas cenas, atores e elementos cinematográficos. No entanto, uma mesma produção
pode interagir de maneiras diversas com os espectadores, variando de acordo com os
fatores acima mencionados.
Duncan Jones, filho de David Bowie, dirige esta produção independente com um
orçamento de 5 milhões de dólares1 - algo que dificulta as capacidades da filmagem
tratando-se deste gênero. Ele vai recriar de maneira espectacular a superfície da lua,
através de maquetes em grande escala2 (recurso que atualmente caiu praticamente em
desuso, em decorrência do aumento dos efeitos especiais digitais). Ademais, esta ficção
científica de primeira é também, de certa forma, embasada em publicações científicas3 e
apresenta um cenário distante, abordando temas como solidão, identidade, realidade e
moralidade.
"Moon" é um filme que se passa em um futuro distópico (ou nem tanto), onde a
exploração lunar é uma realidade. Sam Bell (interpretado por Sam Rockwell), um
astronauta que está concluindo um contrato de três anos com a empresa Lunar
Industries, na estação lunar automatizada chamada Sarang - uma complexa instalação
na lua que produz Helium-3, substância que sustenta 70% das necessidades energéticas
do planeta. O protagonista passa seu tempo na estação em companhia de uma IA
chamada Gerty, que o auxilia nas tarefas diárias. À medida que o filme avança, Sam

1
https://web.archive.org/web/20190307072156/https://www.syfy.com/syfywire/how_david_bowies_son_
woun
2
https://www.comingsoon.net/movies/features/52031-sundance-exl-duncan-jones-sam-rockwell-on-moon
3
https://jornal.usp.br/atualidades/combustivel-do-futuro-helio-3-e-dez-vezes-mais-comum-na-terra-do-que
-se-imaginava/
começa a ter experiências estranhas e começa a questionar sua própria sanidade e a
natureza de sua missão.
Faltam poucos dias para terminar seu suposto contrato de trabalho e finalmente
poderá retornar à Terra, mas durante uma atividade rotineira fora da estação, Sam sofre
um acidente e desmaia. Quando acorda, ele se encontra na enfermaria da estação com
uma cópia de si mesmo cuidando dele. Sam fica perplexo ao descobrir que ele é um
clone e que várias cópias como ele foram criadas para cumprir o mesmo serviço.
A função da Sarang Station é, basicamente, a extração de uma substância
presente no solo lunar que é utilizada como energia “limpa” em alternativa aos
combustíveis fósseis. Estas instalações altamente tecnológicas necessitam de um único
indivíduo para realizar as operações mínimas para a continuidade dos trabalhos,
Conforme os Sams começarem a se confrontar e tentar descobrir a verdade por
trás de sua criação, eles descobrem que são peões em um esquema corporativo obscuro.
Quem é o clone de quem? Quem foi que os clonou e por qual motivo? Após ser
questionado, Gerty revela que, na verdade, todos os Sam são clones de um Sam
original, com suas memórias e sentimentos implantados (portanto sintéticos). Se um
clone tiver alcançado o seu máximo de “vida útil” (cerca de 3 anos) é direcionado a uma
cápsula que iria levá-lo para a Terra - uma ilusão que criam para fazer o clone entrar na
câmara.
Com esta prática, a Lunar Industries consegue reduzir e poupar recursos que
seriam utilizados no treinamento de novos funcionários e demais custos relacionados à
contratação de mão de obra humana para apropriação da mais-valia. A única missão da
central seria esconder a verdade dos clones para assegurar a continuidade de sua
produção. Apesar de possibilitar um leque de discussões quanto à natureza do trabalho e
as grandes corporações, o filme segue um rumo diferente. Faz-nos questionarmos, se
nós fossemos clones, teríamos direitos a qualquer coisa que fosse? nossas lembranças e
sensações seriam autênticas? ou estaríamos limitados às experiências passadas pelo
indivíduo “original”?
No clímax do filme, Sam, confrontando a empresa e suas próprias limitações
físicas, faz um último esforço para expor a verdade e salvar a si mesmo e às outras
cópias. O filme termina com uma reflexão sobre o destino das cópias e as consequências
morais e éticas da exploração espacial. "Moon" é um filme provocativo que aborda
temas como identidade, solidão, ética na exploração espacial e a natureza da
consciência. Com uma atmosfera sombria e uma atuação impressionante de Sam
Rockwell, o filme nos leva a questionar a natureza da humanidade e o preço que
estamos dispostos a pagar em busca de progresso e exploração científica.
Se tentássemos contrastar essa obra cinematográfica com as ideias de
pensadores, como Descartes e Kant, poderíamos identificar possíveis conexões com as
suas obras; contudo, gostaria de relembrar que a análise de qualquer tipo de produção e
a comparação com ênfase em determinadas teorias vai depender (como já mencionado)
do entendimento de cada espectador.
Em sua obra “Meditações Metafísicas”, René Descartes busca estabelecer uma
base sólida de conhecimento através do seu método da dúvida hiperbólica. No filme,
Sam também passa por questionamentos acerca de sua própria existência e realidade,
buscando saber se ele é realmente humano ou um mero clone, assim refletindo o espírito
cartesiano de busca por certezas fundamentais - que nos remete, por sua vez, à primeira
certeza do autor, “cogito, ergo sum” (Eu sou, eu existo), quando ele busca uma
fundamentação para a certeza da existência individual.
Descartes começa suas meditações duvidando de todas as suas crenças e
conhecimentos adquiridos, buscando encontrar uma base sólida para a verdade. O
pensador vai reconhecer ter aprendido falsas opiniões como verdadeiras, desfazendo-se
de todas estas para começar novamente pelos fundamentos, a fim de desenvolver algo
sólido e real nas ciências. No filme, o protagonista Sam Bell é confrontado com
circunstâncias que o levam a duvidar de sua própria identidade e realidade. Ele
questiona a natureza do mundo ao seu redor e as informações que recebe, levando-o a
uma dúvida hiperbólica semelhante à proposta por Descartes.
O protagonista Sam Bell vai experimentar alucinações e eventos inexplicáveis,
que levantam questões relacionadas, por exemplo, a confiabilidade dos sentidos e a
natureza de nossa realidade. Nesse ponto, poderíamos inter-relacionar o filme com o
primeiro e segundo argumento de Descartes - o erro dos sentidos e o sonho. O autor vai
afirmar na sua publicação:

“Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,


aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes
que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar
inteiramente em quem já nos enganou uma vez.” (DESCARTES4, 2000).

4
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Em certo momento, após acordar do acidente e se encontrar com o outro clone,
Sam “mais velho” afirma que não entende o que está acontecendo, acredita estar ficando
louco. Não consegue assimilar as circunstâncias e não entende o que seus sentidos estão
percebendo, portanto, se nossos sentidos podem nos enganar por vezes, não são
confiáveis para definir a verdade.
Mais tarde em sua obra, Descartes apresenta seu segundo argumento, o sonho,
afirmando:

“Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que
tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas
coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília.
Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar,
que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente
nu dentro de meu leito?” (DESCARTES, 2000).

No filme, buscaram explorar os reflexos do isolamento na vida de Sam e do


deterioramento das condições psíquicas do clone mais velho, ele começa a alucinar,
tendo visões e sonhos; por exemplo, no momento em que ele sonha que está com sua
[falsa] esposa. Descartes argumenta que não podemos ter certeza de que nossas
experiências durante o sono não são apenas ilusões produzidas por nossa mente. No
filme, o protagonista experimenta eventos estranhos, levando-o a questionar a natureza
de suas próprias experiências e a realidade das mesmas.
Finalmente, outro ponto que podemos salientar, trazendo essa pegada crítica ao
industrial maquiavélico que é presente no filme, poderíamos comparar com o terceiro
argumento - o malin genin, ou o Deus enganador. Descartes afirma:

“Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da


verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que
poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me.”
(DESCARTES, 2000).

Assim como no argumento do "gênio maligno", em que nossa percepção pode


ser manipulada por um Deus enganador, Sam Bell é vítima de uma manipulação
enganosa por parte da empresa responsável pela clonagem. A revelação de que suas
memórias e experiências foram fabricadas e controladas alimenta a dúvida sobre a
natureza da realidade e a confiabilidade de suas percepções.
Por outro lado, a obra central de Immanuel Kant, “Crítica da Razão Pura”,
aborda questões de conhecimento, ética e moralidade. No filme, Sam Bell se depara
com uma conspiração capitalista na base lunar, levantando problemáticas sobre o que é
moralmente correto e/ou aceitável em relação à busca pelo progresso científico,
tecnológico e, principalmente, econômico; por exemplo com relação à clonagem de
pessoas a fim de reduzir custos e ter uma quantidade (de certa maneira) ilimitada de
servidores e assim otimizar ao máximo os lucros.
No filme, Sam Bell confronta limitações em relação ao seu conhecimento sobre
o mundo exterior e sua própria identidade. Ele questiona a natureza da realidade e as
informações que recebe, o que reflete a ideia kantiana de limites da razão e a
impossibilidade de alcançar um conhecimento absoluto.
No início da obra, Kant estabelece a distinção entre conhecimento empírico,
baseado na experiência sensível, e conhecimento racional, baseado na razão. Ele
argumenta que a razão5 humana tem limites claros e só podemos conhecer o que nossa
intuição sensível é capaz de perceber do mundo, jamais conhecemos as “coisas em si”.
Por “intuição sensível” entende-se como nossa faculdade perceptiva (nossos sentidos,
razão e mente), e de que modo podemos perceber o mundo. Parte da ideia de que os
sentidos não são automáticos, há uma estrutura ou uma certa forma, que nos é própria
dos nossos sentidos.
Kant6 defende que a liberdade humana é uma condição necessária para a
moralidade e a responsabilidade moral. Ele acredita que somos livres para agir de
acordo com nossa própria vontade racional e seguir os imperativos categóricos da
moralidade. Podemos traçar um paralelo do filme com essa ideia kantiana. Sam Bell se
vê em uma situação determinada pelas circunstâncias impostas a ele pela empresa de
clonagem. No entanto, ele luta para encontrar sua liberdade dentro dessas restrições e
tomar decisões que afetam seu destino. Essa luta pela liberdade pode ser interpretada
como uma manifestação do princípio kantiano de que a liberdade moral não está
necessariamente ligada às circunstâncias externas, mas à capacidade de agir de acordo
com a própria razão e assumir a responsabilidade por nossas ações.
"Moon" nos leva a refletir sobre a natureza da humanidade e o preço que
estamos dispostos a pagar em busca do progresso científico e da exploração espacial. A

5
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 5ª Edição. Trad.: Manuela Pinto e. Alexandre Morujão.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
6
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2003.
atuação impressionante de Sam Rockwell contribui para criar uma atmosfera sombria e
intensa. O clímax do filme nos confronta com as consequências morais e éticas da
exploração espacial, levantando questões sobre identidade, solidão e a busca por uma
compreensão mais profunda da consciência humana.
Ao relacionar o filme com as obras de Descartes e Kant, podemos identificar
conexões interessantes. O questionamento de Sam Bell sobre sua própria existência e
realidade ecoa o espírito cartesiano de busca por certezas fundamentais. Assim como
Descartes duvidava de suas crenças e conhecimentos adquiridos, Sam Bell é
confrontado com circunstâncias que o levam a duvidar de sua própria identidade e
realidade.
Os argumentos de Descartes sobre o erro dos sentidos, o sonho e o Deus
enganador também encontram reflexos no filme. Sam Bell questiona a confiabilidade de
seus sentidos e a natureza de suas experiências, assim como Descartes argumenta que
nossos sentidos podem nos enganar e que nossas experiências durante o sono podem ser
ilusórias. Já a obra de Kant traz à tona questões de conhecimento, ética e moralidade,
presentes em "Moon". A luta de Sam Bell para encontrar sua liberdade dentro das
restrições impostas pela empresa de clonagem reflete o princípio kantiano de que a
liberdade moral está ligada à capacidade de agir de acordo com a própria razão e
assumir.

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