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CONCERNENTES
À PRIMEIRA FILOSOFIA
NAS QUAISA EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO REAL
ENTREA ALMA E O CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
PRIMEIRA MEDITAÇÃO"?
todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca-
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas. que tudo prováveis, de sorte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer O tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali- todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma conti- esses pensamentos são falsos e imagi-
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos-
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuirem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi-
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos e desviado do reto
me engane sempre, Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se-
gado a confessar que, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode
nides que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não hã ne- que não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata no momento de agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de editar e de cônhecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo pênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno??, não menos ardiloso & enga-
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden- toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências?º, coisas exteriores que vemos são apenas
II. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso ainda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ci a mim mesmo abso-
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar convivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; € se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos-
tume de aquiescer a isso e de confiar 21 A função do Deus enganador e do Gênio Malig-
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o:Gênio Maligno é um artifi-
cio psicológico que. impressionando mais a minha
são efetivamente, ou seja, como duvi- imaginação, levar-me-ã a tomar a dúvida mais à
sério e & inscrevê-la melhor em minha memória ("é
20 A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”).
MEDITAÇÕES 97
|. A Meditação que fiz ontem en- vel, até que tenha aprendido certa-
cheu-me o espírito de tantas dúvidas, mente que não há nada no mundo: de
que doravante não está mais em meu certo.
alcance esquecê-las, E, no entanto, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e transportá-lo
las; e, como se de súbito tivesse caído para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu-
modo surpreso que não posso nem fir- To. Assim, teres o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para encontrar somente uma coisa que
não obstante, é séguirei novamente a seja-certa é indubitável? 4,
mesma via que trilhei ontem, afastan- 3. Suponho, portanto, que todas as
do-me de tudo em que poderia imagi- coisas que vejo são falsas; persuado-
nar a menor dúvida, da mesma manei- me de que jamais existiu de tudo quan-
rá como se eu soubesse que istá fosse tó minha memória referta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa; penso não. possuir ne-
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; creio que o corpo, a
encontrado. algo de certo, ou, pelo
figura, a extensão, o movimento e o
menos, se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de méu espíri-
to, O que poderá, pois; ser considerado
Es Piano da Meditação:
A) 8919: da natureza do espírito huma verdadeiro? Talvez nenhuma outra
coisa a não ser que nada há no mundo
8$1-4: conquista da primeira certeza;
(881-3): procura de uma primeira
de certo, À Eai:
certeza;
4. Mas que sei eu, se não há nenhu-
(84): “Eu sou, cu existo”: ma qutra coisa diferente das que acabo
R$5-9: reflexão sobre esta primtira certe- de julgar incertas, da qual não se possa
za e conquista da segundas
(88 5-8 quem sou cu, cu que ter a menor dúvida? Não haverá algum
estou certo que-sou? Uma coisa Deus, ou alguma óutra potência, que
pensante. Determinação da essên- me ponha no espírito tais pensamen-
cia do Eu:
(59): descrição
da “coisa pensante” tos? Isso não é necessário; pois talvez
e distinção: entre. o pensamento seja eu capaz de produzi-los por mim
(atributo. principal desta substân- mesmo. Eu então, pelo menos, não
cia) e suas outras faculdades;
B) $910-18: ... .e de como ele;é mais fácil de. serei alguma coisa? Mas já neguei que
conhecer do que o corpo:
Contraprova da segunda certeza (0 pe 2* A primeira certeza adquirida não será, pois,à
Gago de cera)'e conquista da. terogira mais. altáy deve apenas inaugurar à cadeia idas
cérteza, razoes.
100 DESCARTES
lhantes sutilezas??, Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa- impressão. Pois não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha natureza, de si o poder de mover-se, de sentir €
quando me aplicava à consideração de de pensar; ão contrário, espantava-me
meu ser. Considerava-me, inicial- antes ao ver que semelhantes faculda-
mente, como: provido de rósto, mãos; des se encontravam em certos cor-
braços e toda essa máquina composta pos?
de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, O que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho?2 que há alguém que é extre-
pelo nomé de corpo. Considerava, mamente poderoso e, se ouso dizê-lo,
além disso, que me alimentava, que malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e
todas as suas forças e toda a sua indús-
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me? Posso estar certo
alma3º; mas não me detinha em pen- de possuir a menor de todas:as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se que atribuí há pouco à natureza corpó-
o fazia, imaginava que era algo extre-
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de-
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensava conhecê-la mui distintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns: que existam em mim. Os pri-
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen-
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode-também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi- coisas, durante o sono, as quais reco-
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi- nheci, ao despertar, não ter sentido
do de muitas maneiras, não por si efetivamente. Um outro é pensar; é
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
atributo que me pertence; só ele não
29 Sobre este método de determinação
do pro-
blems por- segregação, cf. o diálogo: Recherche de
la Vérité (Plóiade, phgs. 892-94), Ao interlocutor 3* Esté conhecimento “natural” que eu tenho de
aturdido que acaba de responder; “Diria, portanto; mim mesmo antes da prova da dúvida será mteira-
que sou um homem”, o cartesiano replica: “Não mente falso? Não. Se a alma é concebida à maneira
prestais atenção ao que perguntei
é a resposta quê dos escolásticos, em trocaa distinção entre
o corpo
apresentais, embora vos pareça simples, lançar- e 6 espírito (indispensável à Físi está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço- mas à titulo -de opinião provável, sem fundamento,
sas, se cu quisesse apertá-las por menos que seja. , , CI. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta respondéis 32 Mudança de plano. Do pensamento inspirado
& asi coisas do que vos Ra ci por “minha natureza” passamos à só idéia de mim
pois,.o que sois propriamente, na em que mesmo compatível com a instauração da dúvida, da
uvldato* e indeterminação: psicológica à determinação metafi-
2º Cf. Respostas, 508, sita.
102 DESCARTES
e desviar o espírito dessa maneira dé de mim mesmo? Pois é por si tão evi-
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente. entende e quem deseja que não é neces-
sua natureza??, sário nada acrescentar aqui para expli-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, possa ocorrer (como supus anterior-
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagimo não
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente3º, Certamente não é nar não deixa, no entanto, de existir
pouco-se todas essas coisas pertencem realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe é conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos-órgãos dos sen-
no entanto, entende e concebe certas tidos, posto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, me-ão que essas aparências são falsas
que-nega todas: as demais, que quer e e-que eu durmo. Que assim seja; toda-
deseja conhecê-las mais, que não quer via,.ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi- parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e É propriamente aquilo que
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver- ar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que:anteriormente?*,
ainda quando aquele que me deu a IO. Mas não me: posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas*º, cujas
forças para enganar-me? Haverá, tam- imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou dos, sejam mais distintamente conheci-
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
37 Em virtude desse princípio, não me é dado abso- imaginação: embora, com efeito, seja
jutaménte o direito de tecorrer à imaginação, pois
“tudo quanto pósso compreender por seu meio” foi uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida: Por aí al sei, ao: mesmo que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha naturezaÉ puró Ee
exclusivo de todo elemento corporal, E a ségunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir
com a distin- conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre-a alma é o corpo, estabelecida somen-
te na Meditação Sexta. CE. 510
*= Cumpre observar a diferença relativamente à 29 A saber, um pensamento; a) distinto dos corpos,
definição do 8 7: “Teto É, um espírito, um entendi- se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão”, Ad determinava-se a essência mente intelectuais, como a imaginação, que só me
da substância “coisa pensante”; aqui ela:& descrita pertencem porque implicam este pensamento puro.
cevestida de seus diferentes modos. Desse novo 4º Novo assalto do pensamento imaginativo: ine-
ponto de vista, reintegra-se na “coisã pensante” o rente à “minha natureza” e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essência. Todos: esses me desprénder: estou convencido, mas não persua-
modos (imaginar, sentir, querer), embora:não per- dido. Daí a necessidade: de uma contraprova que
tençam à minha natureza; não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
Góvida, na medida em que se beneficiam da certeza todas as figuras de retórica das Meditações, esta
do Cogito. integra-se na ordem.
104 DESCARTES
que são verdadeiras e certas é que per- todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu-
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cera per-
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, anda uma atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais facil- brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo **. som, mas somente um corpo que um
11, Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta- outras, Mas o que será, falando preci-
mente, a saber, Os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
€ que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpós em geral, pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, às coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, este peda- permanece senão algo de extenso, flexi-
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexi-
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tornar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini-
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e;
12. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta- tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esvai, minha faculdade de imaginar *2.
sua cor se modifica, sua figura se alte- 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele torna-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen-
ta e fica ainda maior quando está intei-
tocar e, embora nele batamos, nenhum
som produzirá. À mesma cera perma- ramente fundida e muito mais ainda
nece após essa modificação? Cumpre quando o calor aumenta? E eu não
concéberia claramente e segundo a ver-
confessar que permanece: é ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se
que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode 42: Raciocinio em duas partes: 1º o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer à mesma cera é sua identidade na medi-
intermédio dos sentidos, posto que da em que a cera é coisa extensa; 2.º mas este con-
teúdo sô pode ser idéia e-não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em ná-
*» Em outros termos: façamos de conta que inter- mero finito) qué poderia ocupar em seguida. CF.
rompemos a grdem afim de seguir o senso comum Quintas Respostas: “As faculdades de entender e de
em seu próprio. terreno. Sobre o fato de-ser esta imagmar diferem.não só segundo o maise o menos,
transgressão apenas aparente, cf o importantíssimo porém como: duas maneiras de agir totalmente
5515 das Respostas. diferentes”.
MEDITAÇÕES 105
segundo a extensão do que jamais ima- la, senão chapéus e casacos que podem
ginei. É preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que É essa cera e que julgo que são homens verdadeiros
somente-meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe“; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em aquilo que acreditava vér com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual olhos:
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí- seu conhecimento para além do
rito? Certamente é -a mesma que vejo, comum deve envergonhar-se de apro-
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das: for-
conhecia desde o começo. Mas o que é mas: e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi- perfeição o que era a cera, quando a
nação,e jamaiso foi, embora assim o percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser ou ao menos por meio: do senso
imperfeita e confusa, como era antes, comum, como o chamam, isto é, por
ou clara é distinta, como é presente- meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di- concebo presentemente, após haver
rija'mais ou menos às coisas que exis- examinado mais exatamente o que ela
tem nelae das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida.
14. Entretanto, eu não poderia es- Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o em dúvida. Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e meira percepção que fosse distintor e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as menor dos animais? Mas quando dis-
palavras detêm-me, todavia, e sou tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pelos termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum: pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen- nua* 4, é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor é juízo, não a posso conceber desta
a mesma figura: donde desejaria quase forma sem um espírito humano* 8.
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins- “+ C[:513, onde Descartes se defende de ter
peção
do espírito, se por acaso
não tendido “abstrair0 conceito da verade seus acido
olhasse pela jane a homens que pas- tes”. “Os acidentes são contingentes em relaçao à
sam pela rua, à vista dos quais não substância, mas; não à acidentalidade”, especifica
Guéroult. (Descartes,1. pág. 56.)
deixo de dizer que vejo homens da 45 Tal é o sentido exato do “pedaço
de cera"'reu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra-
ceras e, entretanto, que vejo desta jane- vés do. pensamento, a essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essencia? Não sei
*3 Por onde fica provado não só que'a imaginação amda. Pois não se trata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos nho efetivamente do conhecimento: da essência do
que sé lhe apresentam (o que era o Objetivo da corpo. mas de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas-ainda que o pensamento puro
éq seguro de possuir a idéia clara é distinta deste
único capaz de fazê-lo. corpo. Cf. Guêéroult, op: cit, pãgs: 144-45,
106 DESCARTES
16.. Mas, enfim, que direi desse espí- nitidez não deverei eu conhecer-me* 7,
rito, isto é, de mim mesmo* *? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
um espírito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro-
mim, que pareço cónceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon-
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade'e certeza, mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que-a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
segue-se bem mais evidentemente: que
eu próprio sou, ou que existo pelo fato
das.
18. Mas, enfim, eis que insensivel-
de eu a ver. Pois pode acontecer que
mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato,
que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou conçcebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não: mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos: sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo qué a cera existe, pelo fato de que pu de tocá-los, mas somente por os
a toco, séguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
Coisa, Ou seja, que eu sou; E se O julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. É o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim, meditação, eu imprima mais profunda-
17. Ora, se a noção ou conheci- mente em minha memória este novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 47 É aterceira verdade; 6 espírito é mais fácil de
conhecer do que o corpo, Com: efeito, obtenha
mas ainda por muitas outras causas, imediatamente o conhecimento da existência € da
com quão maior evidência, distinção e natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa-
mento mé proporciona apenas a idéia clara e dis-
4º Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemá-
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara € distintamente-sua que'o conhecimento da-alma é o mais facil dos
natureza, seja apenas imaginanido-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa É certa, no ponto em que mê encontro. verdades científicas é o primeiro dos conhecimentos
É que eu penso percebé-lo.. . Mostrando. que este na ordem da-ciência. Nao-quer dizer que'a ciência é
“pensamento” era indispensável so conhecimento mais: fácil do que o conhecimento vulgar. A passa-
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade, dificil das ascensões”. (Op. cit., pág. 128.)
MEDITAÇÃO TERCEIRA *?
De Deus; que Ele Existe
1. Fecharei agora os olhos, tampa- que pensa, isto é, que duvida, que afir-
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi-
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as odeia, que quer e não quer, que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao bém imagina e que sente. Pois, assim
menos, uma vez que mal se pode fazé- como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como: fal- que sinto € imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co- absolutamente nada fora de mim €
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei tornar-me de que essas maneiras de pensar, que
pouco à pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa
chamo sentimentos e imaginações so-
mente na medida em que são maneiras
“t Plano da Meditação: de pensar, residem e se encontram 'cer-
S91-4: recapitulação: tamente em mim. E neste poucó que
85: a questão de Deus;
8569: discriminação dos dados dó pro- acabo de dizer creio ter relatado tudo.o
bleira. que sei verdadeiramente, ou, pélo
A) 8$10-[4: primeiro caminho para o exame
dá valor objetivo das idéias: senso comum.
menos, tudo o que até aqui notei que
B)'$$ 15-29: segundo caminho: sabia.
(8$16-17): princípios de. causali-
dade e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata-
($18);-colocação do: problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconheceria eu o lutamente: em mim outros conheci-
valor objetivo de uma idéia?
($819-21): exame das diferentes mentos que não tenha-ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen-
prismiát;
(822): à idéia de Deus reconhecida
sante; mas não saberei também, por-
como -datada-de valor objetivo = tanto, o queé requerido para me tornar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(8523-28): reflexões sobre esta
prova. conhecimento só se encontra uma
C) $829-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(8$29-30): necessidade de outra conheço;a qual, na verdade, não seria
prova;
(853132); primeiro momento, pri- suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mim verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa:
Nisa imeiro momento, se-
pudesse acontecer qué uma coisa que
is Eu existo sem eu concebesse tão clara e distintamente
e se verificasse falsa, E, portanto, pare-
(835): segundo momento;
(8$36-37): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
$$38-42:; reflexão sobre o conjunto. regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES
luz natural que deve haver ão menos zido em um objeto que dele era priva-
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for por uma
total quanto no seu efeito: pois de onde coisa que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a idéia
tivesse em simesma 8*? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre* 5 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma, mas também que o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque-
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois, ainda que essa causa não trans-
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali-
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente nos seus efei- deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi- sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha- nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espirito, do qual
pode agora começar a ser, se não for elaé apenas um modo, isto é, uma
produzida. por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen- fim: de que uma idéia contenha uma tal
teº 8, tudo o que entra na composição realidade: objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contém em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu-
mesmas coisas ou outras mais excelen- ma causa, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tanta realidade formal. quanto
na pedra; e o calor não pode ser produ- esta idéia contém de realidade objeti-
vaº?, Pois, se supomos que existe algo
** Primeiro princípio invocado como “manifesto
pela luz natural”; princípio de causalidade (cf. ZIT'e
G 20, 21). Mas será este princípio, enunciado geral- 87 Do ponto de vista de sua realidade formal, as
mente, aplicável ao caso das idéias que nos preocu- idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Dat a-necessidade de completâ-lo como prin- mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cipio expresso no: parágrafo segumte, que Guéroult “aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: “princípio de correspondência da idéia é que o próprio entendimento é a causa delas”, (PrÊ-
de seu ideatum”. meiras Respostas.) Trata-se de uma inovação de
98 Nesse parágrafo difícil, mostra-se que o princi Descartes. Para-a Filosofia tomista, “não havia Re
pio-de causalidade vale tanto no caso de uma “reali blema especial da-causa do conteúdo das idéias;.
dade atual ou formal” quanto;no caso de uma “rea- porque este conteúdo; não sendo considerado como
lidade objetiva”, Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria...
existente em ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re-
que há na causa que à prodúziu
pelo menos tanta Ep uma caúsa (o intelecto que apreende « forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja pedra); mas:o ser objetivo de meu conceito não a
ágora & Idéia que eu tenho desta substância (isto €, requer”. (Gilson, Discours, 322) Com Descartes,
uma “realidade otra € não mais uma “reali o contrário, Colóca-se uma questão 'que pára a
dade atual ou formal”).É igualmente evidente: que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
hã no ser existente (“atual ou formalmente”) que é idéia para afirmar oo que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta “realidade objetiva”) “ComoNIE queo sendo para nós & o próprio RE
pelo menós tanta realidade Quanto nesta idéia traduz Guéroult, ao fim de-seu livro. (Op. cit,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia Read di 4
E Uma causa contém “formalmente” seu-cfeito ontologia do que se convencionou chamar “o idea-
quando eta lhe & homogênea,e o contém “eminente- lismo: moderno”,
de Fichre a Husserl que'aqui se
mente”, no caso contrário. CF.G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113
na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte- algo de-maior ou de mais perfeito 7º.
nha esse algo do nada; mas, por imper-
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado-
qual uma coisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco-
idéia º8, decerto não se pode dizer, no nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse- Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen-
formalmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que-eu con- posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje- decorre necessariamente que não exis-
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que hã
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que é a causa
suas causas *?; pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas, terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de-ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras € mesmo; pois procurei-os a todos: cui-
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorper que uma encontrar nenhum 7?,
idéia dê origem a uma outra idéia, isso
todavia não pode estender-se ao infimi- 19. Ora, entre essas idéias, além
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou-
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre- outras os anjos, outras os animais,
sentação néssas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho-
luz natural me faz conhecer evidente- mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às idéias que me representam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 79 Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o; anterior; faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do: Grande -Embusteiro,
** Há imperfeição na medida em que o conteúdo Ísso não “significa que as Idéias sejam efetivamente
representativo É privado da existência própria ão às imagens das coisas, porém me' permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respostas: “A aplicar o princípio de causalidade entre uma reali
maneira de ser pela-qual uma'coisa existe objetiva: dade objetiva-e-uma-realidade atual:
mente ou por representação no entendimento por 71 Recapitulação da exposição precedente (desdeo
sua idéiaé imperfeita”, 8 15) e posição do' problema; encontrarei cu uma
52 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal qué me seja
causa outra idéia e-assim sucessivamente ao infini- absolutamente impossível imputar à sua causa -a
to? Resposta; esta regressão É possivel, mas, cedo meuwexclusivo pensamento? Esta posítio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali- exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade “formal ou atual”. dos diversos gêneros de Idéias.
14 DESCARTES
concebo facilmente que podem ser for- falsidade material 7*, a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
Outras idéias que tenho das coisas cor- fosse alguma coisa. Por exemplo. as
idéias que tenho do calor e do frio são
porais e de Deus, ainda que não hou-
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros que por seu intermédio não posso dis-
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva-
anjos 72, E quanto às idéias das coisas ção do calor ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran- do frio, ou ainda se uma e outra são
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que: ima-
pois, se as considero de mais perto, € gens, não podé haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi-
edistintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, é assim outras idéias semelhan-
tes; às quais certamente não é neces-
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis-
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural mé faz conhecer que
entre si; e o movimento ou a:modifica- procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e q minha natureza e porque ela não é
número 73, Quanto às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, Os sons, os ado- são verdadeiras, todavia, já que me
res, os sabores, O calor, o frio é as ou- revelam tão pouca realidade que não
posso discernir nitidamente a coisa
tras qualidades que caem sob o tato, representada. do não-ser, não vejo
encontram-se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ-
com tanta obscuridade e confusão que zidas por mim mesmo e eu não possa
ignoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 7 >.
falsas e somente aparentes, isto é, se às
idéias que concebo. dessas qualidades 24 Cf a nossanota ao $ 9. Além da falsidade for-
mal, que é caso do juizo, temos a Falsidade material,
são, com efeito, as idéias de algumas dévida ao fato de certas idéias (sensíveis) serem ape-
coisas reais, Ou se não me representam nas pseudo-idéias, isto é, se apresentarem faisa-
apenas seres quiméricos que não mente a mim como dotadas de um caráter represen-
tativo. Mas existirão, no sentido estrito; idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha completamente falsas a natureza? Não é aqui o
notado acima que só nos juízos é que lugar de decidido. O fim do parágrafo levar-nos-á
simplesmente a observar que, mesmo que essas
se pode encontrar a falsidade formal e idéias fossem verdadeiras idéias, comportam pelo
verdadeira, pode, no entanto, ocorrer menos um minimo -de- realidade objetiva e, como
que se encontre nas idéias uma certa tais, poderiam muito bemser produzidas por mim
mesmo, É a única questão que nos interessa aqui.
75. Logo: B)Exclusão das idéias das qualidades sen
22 A) Exclusãodas realidades “animadas” (no senti- síveis corpóreas; Em-525, Descartes chama a aten-
do não estritamente cartesiano, visto que são incluí: ço de Gassendi para o fato de nunca ter dito que as
das as idéias dos animais). idéias das coisas sensíveis derivavam do espirito:
73 O exame dás-idéias claras e distintas das-coisas “Somente: mostréi naquele pónto nao haver nelas
“corporais « inanimadas” É remetido ao parágrafo tanta-realidade. . - que-se-deva-concluir que elas
seguinte: não podiam derivar do espírito só”.
MEDITAÇÕES 15
32. E não devo imaginar que as coi- maneira alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez mais difi- fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quais já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e me crie, por assim
mais dificil que eu, isto é uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente?º (para todos os
luzes é- os conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu-
Coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos os
sem dificuldade, se eu mesmo me tives- momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria necessário para produzila e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi- anda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber, de muitos conhecimentos de que ea criação não diferem senão com res-
minha natureza está despojada*º; não peito à nossa maneira de pensar, e não
me teria tampouco privado de nenhu- em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas. na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
hã nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
dificil aquisição; e se houvesse alguma, modo que eu, que sou agora, seja ainda
certamente ela me pareceria tal (su- no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
outras coisas que possuo), porque eu que não se trata até aqui precisamente
senão dessa parte de mim mesmo), se
sentiria que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto & não seria capaz dé alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne-
nhum poderem mim?! e por isso reco-
agora*?, nem por isso poderia evitar à
nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessário que Deus 35. Poderã também ocorrer que este
seja o autor de minha existência, Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode-ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, oeu-por meus pais ou por outras-causas
cada uma das: quais não depende de
2º Cumpre justificar a equação entre criação e
es É impossível, em virtude do princípio; “Quem conservação, colocada-ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos”. Ora, é mais difícil criar esem-a-qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas trata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamais são algo exceto acidentes (of. descontinuidade dos momentos do tempo.
G 23), Logo, como não posso produzir o.menos (as *1 Cfo 8 13, onde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia), não posso produzir o desconhecida não: era: repelida; mas tratava-se de
mais (ser o autor do meu ser). À hipótese é absurda, uma faculdade “própria para produzir idéias”, e
*º B) Admitamos que eu exista sem causa. À aquitrata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade ea independência dos momentos a mim próprio: tom meu desconhecimento, Ora,
do tempo. invalidam de pronto esta hipótese, por: dado que:eu aqui me considero :sempre como sendo
quanto implicam a necessidade para mim de ser nada muis do que uma-coisa pensante; tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável.
MEDITAÇÕES 149
menos: perfeitas do que eleº2? Muito não pode haver progresso até o infini-
ao contrário, isso não pode ser assim. to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que devé haver ao da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto
36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou
talvez muitas causas juntas tenham
urna coisa pensante, e tenho em mim
concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que e que de umarecebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à
perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria-
outra 4 idéia de alguma outra, de sorte
mente: confessar que ela deve ser de
que todas essas perfeições se encon-
igual modo uma coisa pensante e pos-
tram na verdade em alguma parte do
suir em-si a idéia de todas as perfeições Universo, mas não se acham todas jun-
que atribuo à natureza divina??, Em tas e reunidas em umáã só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
essa causa tem sua origem e sua exis-
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
tência de si mesma ou de alguma outra simplicidade ou a inseparabilidade de
coisa. Pois se ela a tem de si própria” *, todas as coisas que existem em Deus é
uma das principais perfeições que con-
segue-se, pelas razões que anterior-
mente aleguei, que deve ser, ela cebo existentes nele; e por certo a idéia
mesma, Deus; porquanto, tendo a vir-
dessa unidade e reunião de todas as
perfeições de Deus não foi colocada
tude'de ser e de existir por si, ela deve
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen- maispode ter feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
siº'?, tornar-seá a perguntar, pela eram e que as conhecesse a todas de al-
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira”*.
causa, se ela é por st, ou por outrem, 37. Noque se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci-
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res-
peito, daí não decorre todavia que
*2 Segundo momento:da prova: cu sei agora “que sejam eles qué me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim”, mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
*3 Invocação do princípio de causalidade é aplica- coisa pensante, pois aperias puseram
ção ao-caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
*s A) Esta causa estranha existe -por st, ela deve,
portanto, caúsar-se com todas às perfeições de que qual julgo que eu, isto é, meu espírito
tenho idéia. Portanto ela é Deus. — a única coisa que considero atual-
25 B) Esta casa é, por sua vez, produzida por mente como eu próprio — se acha
outra, mas é possivel remontar assim indefimida-
menté na série das causas? Não; aqui, não nos encerrado; e, portanto, não pode haver
assiste O direito, pois não se trata da causa que'me aqui, quanto a eles, nenhuma: dificul-
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa-
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do lempo, Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à Idéia cartesiana do tempo,
ra RM Fisica: (CE Guérouit, op. cito, págs:
21 48 Cf. Col.com Burman; A. T., Vopãgs: 15455.
120 DESCARTES
mim mesmo. certa capacidade de jul- modo que não devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi- 5. Assim, conheço que o erro en-
sas que possuo; e como ele não quere- quanto tal não é algo de real que
ria iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
que não poderei jamais falhar, quando uma carência; e, portanto, que não
a usar como é necessário. E não resta- tenho necessidade, para falhar, de
algum poder que me tenha sido dado
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver- por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me -enga-
parece, inferir dela a consegiiência de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo ese ele falso não ser infinito.em mim!?'8,
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis-
parece que nunca devo enganar-me!º 4, faz inteiramente!9 8: pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma purá negação, isto é, não é a sim-
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei-
nenhuma causa de erro ou de Falsida- ção que me não é devida, mas antes &
de; mas-em seguida, retornando a mim,
uma privação
de algum conhecimento
a experiência me ensina que estou, não que pareceé que eu deveria possuir. E,
considerando a natureza de Deus, não
obstante, sujeito a uma infinidade de me parece possível que me tenha dado
erros e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, noto que ao meu pensa- em seu gênero, isto é, à qual falte algu-
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que-lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte-
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ-
que estã infinitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; e que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe- partes? E por certo não há dúvida de
rano ser e o não-ser que nada se encon- que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga-
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre -aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu; mas
à, pois; mais vantajoso falhar do que
que, se me considero participante de
não falhar!9 79
alguma maneira do nada ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou
19% Estando o errono homem devido ao fato de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada é não sendo q nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e-Deus desonipado . ,-
(9: Por quê? É queo erro não está em mim como
tes E nó entanto eu mo engano... É a própria simples falta de ser. como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus, meu rapidez-a solução anterior, más como uma “imper-
criador, é mfinitamente perfeito; ora, o erro & o mal feição positiva”. Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso? A bem mas-uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, o problema assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
es do Que este ouiros. como, salvaguardando +07 O reconhecimento do erro como privação des-
definitivamente a veracidade de Deus, garantir loca o problema: já que Deus quer sempreo melhor,
definitivamente “a: possibilidade: “do conhecimento será: melhor que o-homem tenha sido «afetado de
das outras coisas do Universo”? uma privação?
MEDITAÇÕES 125
7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocorre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu- parte de todo este Universo. E, embo-
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe- duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam-
Deus as produziu! º8. Pois, sabendo já bém, já que reconheci o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e
ou, pelo menos, que não as possa pro-
infinita" ºº, não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade:
de coisas em sua potência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito, universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
de causas que se costuma tirar do
meus erros (que apenas testemunham
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas fisi-
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impeneétráveis que existe em mim e do poder de esco-
de Deus!!º, lher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é,
8. Demais, vem-me ainda ao espí- de meu entêndimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade''2. Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce-
perfeitas, mas de uma maneira geral boas idéias das coisas que posso asse-
todas as coisas em conjunto? ?*, Pois a gurar ou negar, Ora, considerando-o
assim precisamente, pode-se dizer que
108 Primeiro argumento metáfísico possível: recur- jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Deus. Ela possibilita a desde que se tome -a palavra erro em
tese: “O erro pode ser bom sem o nosso conheci-
mento”. CF. Princípias, MA, 2. sua significação própria. E, ainda que
*vê Podemos medir a diferença entre a nitude haja talvez uma infinidade de coisas
cartesiana e a finitude kantiana, se adyertirmos que neste mundo das quais não tenho idéia
Kant poderia escrever o primeiro membro: desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento, não se
"1º Fundamentação metafísica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física. A respeito, cf. Col. com
Burman (A. T., V, pãg. 158) e Princípios, 1, 28.
dessas idéias como de algo que seja de-
“Não devemos presumir tanto de nós mesmos a vido à sua natureza, mas somente que
ponto de crer que Deus nos quisesse participar seus não as tem; porque, com efeito, não hã
conselhos. . razão alguma capaz de provar que
117 Segundo argumento metafísico possível: o que
eu percebo como imperfeição sá é verdade em rela- Deus devesse dar-me uma faculdade de
ção a mim e não ao conjunto do Universo. Argu- conhecer maior e mais ampla do que
mento que se inscreve na linha das teodicéias clássi-
cas dos estóicos e de Santo Agostinho até Leibniz
(e, se se quer, até essas teodicêias modernas que são +12 Recorso do exame das faculdades psicológicas.
o hegelianismo e O marxismo). Deve-se observar Será sucessivamente mostrado que, nem a presença
que, apelando este urgumento para a idéia de Uni em mim do entendimento, nem a da vontade, me
verso, é necessário tomar o-recurso a esta compa- autorizam à queixar-me de uma privação qualquer
tivel com aordem, neste lugar. esportanto,
de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES
aquela que me deu; e, por hábil e enge- sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa; de sorte que é principalmente
as perfeições que póde por em algu- ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um amda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eua experimento tão vaga e tão exten- que, aí se encontrando juntos, a tor-
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e-mais eficaz, quer por
quaisquer limites" '3. E o que me pare- causa do objeto, na medida em que-a
ce muito notável neste ponto é que,de vontade se dirige -e se estende infinita-
todas: as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare-
mim, não há nenhuma tão perfeita é ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti- formal e precisamente nela mesma!” 8.
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem- fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce- é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que hã em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir-
uma extensão muito pequena e grande- mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti-
faculdade. muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; e, pelo simples fato de que me exterior nos-obrigue a tanto! ! 7, Pois,
posso representar sua idéia, conheço para queeu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei- um ou de outro dos dois contrários;
ra!'74, se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente-
não encontro nenhum que não seja em mente-que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em: Deus-não seja imenso e infinito! 15, assim O interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
173 Nota-se que a infinidade da vontade é primeiro
evocada quanto à grandeza; “Não se encontra
encerrada em quaisquer limites, . . a idéia de outra 118 Passagem que significa: a vontade: marca 'a
mais ampla: e mais extensa”, É por 4, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que-ela mais difere do entendimento, para o qual hã infinita em grandeza (pois Este infinito ainda é ape-
coisas incognosciveis de direito (o conteúdo do imf- nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser.
nito-em Deus). Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim e
t1* Esta passagem quererá dizer que'a finitúde-do, do não,
entendimento é do mesmo género que ada imagina- 17% Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guéroult nega e observa (op: cit,- págs: no homem, daquele que ha em Deus, do que-ad ser
328-29) que, se'a finitude du imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento É antes uma “indefinitude”: importa distinguir aqui esta “potência -real-e:posi-
nosso conhecimento pode aumentar “pradativa- tiva de se determinar” que Deus nos concedeu da
mente-até o infinito”, o que constitui uma espécie de “indiferença”, estado no qual à vontade, não sendo
finitude em face da infinitude positiva-de Deus: iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti-
“17 Éuma maneira de falar, pois a memória (que do, estã afastada ao máximo da-de Deus: Cf. Car-
supõe a sucessão temporal) « à imaginação (que tas, a Mesland, 2 de maio de- 1644, Esta “indife-
a a união a um corpo) não se encontram em rença” possível da vontade húmana desempenhará
S. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127
dimento não tem nenhum conheci me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque-
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei-
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tornam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e-não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei emymim; estando bem longe de conce-
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos: como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu'22, Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei- motivo de mé lastimar do fato de me
ra. haver dado uma vontade mais ampla
13, Ora, se me abstenho de formu- do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma:
não a concebo com suficiente clareza € coisa, é sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivísivel, parece que sua natureza é
muito bem e-que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu'23. E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, € até mesmo, ainda que jul- de que Deus concorra comigo para for-
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa- juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí- esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu-
sempre preceder a determinação da. ma.forma, mais perfeição em minha
vontade. E é neste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que formá-los, do que se não o pudesse! 2 *,
constitui a forma do erro!21, A priva- Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca-
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder que recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me-
dida em que ela depende dele. Pois não
*22 a):A fmitude de meu entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. CF.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios 1, 36.
123º b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que mê queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
121 O erro É, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado mfinita.
priv
e contrariamente ao que se passava na 124. c) Que minha vontade possa formar juizos é
solução do $ 5, E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
So desculpado por quatro considerações: “Não Elementos que concorrem ao erro humano não cons-
tenho nenhum motivo de me lastimar. ..” tituem sinal de nenhum não-ser ou de nenhum mal.
MEDITAÇÕES 129
que consiste a maior e principal perfei- preciso concluir que uma-tal conctep-
ção do homem, considero não ter ção ou um tal juízo é verdadeiro! 2º,
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De. resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida- hoje o que devo evitar para não mais
des e dos erros. falhar, más também o que devo fazer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver-
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von- tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento, minha atenção sobre todas as coisas
de tal modo que ela não formule juízo que conceber perfeitamente e se as
algum senão a respeito das coisas que separar das outras que não com-
preendo senão com confusão e obscu-
lhe são clara e distintamente represen-
ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, não pode zelosamente.
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi- 128 Daí a oitava verdade: as idéias claras e distih-
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imédiatamente certo, A
não pode ter Sua origem nó nada, mas regra segundo a qual “todas as coisas que conce-
bermos: muito. clara e muito. distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras”, queobtive por reflexão sobre o Cogi-
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe- to, ho começo da Meditação Terceira (8 2), E agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci-
ranamente peiíc!to, não pode ser causa sarei efetuar O Cogito g fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastara lembrar-me-dela.
MEDITAÇÃO QUINTA"?
Da Essência das Coisas Materiais;
e, Novamente, de Deus, que Ele Existe
por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensá-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver- todas as coisas que conheço clara e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem- distintamente são verdadeiras. E, con-
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa- que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre- clara-e distintamente'*? 8. E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma, ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen-
figura, a qual é imutável e eterna, que tidos. tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espirito; como parece, pelo fato de figuras, aos números € às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro- que pertencem à Aritmética e à Geo-
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ângulos são iguais a dois retos, 7. Ora, agora'* º, se do simples fato
que o maior ângulo & oposto ão maior de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco- tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente é mui evidente- e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe-de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma prova demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? É certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos'37 em mim sua idéia,
pode' dizer que cu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi-
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta-
vindo ao meu espírito por intermédio mente que uma existência atual e eter-
de meus sentidos, porque vi algumas na ence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de-
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, à cujo res- qualquer número pertence verdadeira-
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham caído número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie-
dades relativas à sua natureza, bem 13º. Retorno ao plano da “natureza”
— o da Medi-
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira — onde me É impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto Jato de uma verdade matemática quando ela se me
apresenta atualmente,
que as concebo claramente'3*. E, por-
tanto, elas são alguma coisa e não um +36 “Agora” = depois que estamos metafísica-
mente certos do valor objetivo das idéias claras é
puro nada; pois é muito evidente que distintas,
132 Notar à partir daí os “não... menos” e “ao
menos": a existência de Deus, legível em sua essên-
134 As idéias das essências matemáticas não são, cia, não É menos certa do que-as verdades matemá-
portanto, simuladas nem provenientes do sensível (8 ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocála
6), CI. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciais que -a
correspondem, pois,-a.algo. dúvida natural não conseguia abalar,
MEDITAÇÕES 133
não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, amda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis-
em meu espírito ao menos como tão tência, tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei até agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas aos números é às figu- com-vale não se segue que haja qual-
ras'38; embora, na verdade, isto não quer montanha: no mundo, do mesmo
pareça de início inteiramente mani- modo, embora eu conceba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de sofisma. Pois, estando habituado haja algum Deus existente: pois meu
em todas as outras coisas a fazer dis- pensamento não impõe necessidade al-
tinção entre a existência € à essência,
persuado-me facilmente de que a exis- guma às coisas; e como só depende de
tência pode ser separada da essência mim o imaginar um cavalo alado,
de Deus e de que, assim, é possível ainda que não haja nenhum que dispo-
conceber Deus como não existindo nha de asas, assim eu poderia, talvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan- atribuir existência a Deus, ainda que
do penso nisso com maior atenção, não houvesse Deus algum existen-
vérifico claramente que a existência te! so. Mas não é assim, é que aqui hã
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto quanto da essência de um desta objeção: pois pelo fato de que
triângulo retilíneo não pode ser sepa- não posso conceber uma montanha
rada a grandeza de seus três ânguios sem vale não se segue que haja monta-
iguais a dois retos ou, da idéia de uma
nha alguma nem vale algum, mas
montanha, a idéia de um vale; de sorte
que não sinto menos repugnância em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um Deus (isto é, um ser sobe- existam Ea não, não podem, de
ranamente perfeito) ao qual falte exis- maneira alguma, ser separados um do
tência (isto é, ao qual falte alguma outro; ao passo-que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber uma: eu não poder conceber Deus sem exis-
montanha que não tenha vale'38, tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
+38 Há uma certeza dá existência de Deus que é do verdadeiramente: não que meu pensa-
mesmo-tipo que a certeza espontânea e mpgênua que mento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às-verdades matemáticas. É esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que ora podemos validar, assim como validamos-a
certeza matemática: em nome do princípio do valor necessidade; mas, ao contrário, porque
objetivo das idéias claras e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
“prova ontológica” situa-se em plano diverso do saber, da existência de Deus, deter-
das duas outras provas (o fato de se encontrar em
outra Meditação basta para 'indicá-lo) e É depen- mina méu pensamento a concebê-lo
dente em relação a elas na ordem das razões dessa maneira. Pois não está em minha
metafísicas: liberdade conceber um Deus sem exis-
29 Sobre s imagem ds montanha e do vale: “Não
temos nenhumaóurra razão para assegurar
que não tência (isto é, um ser soberanamente
haja absolutameénte montanha sem vale, exceto que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos-ser impossível completar suas idéias quando
os consideramos um sem o outro, embora possa- como mé é dada a hberdade de imagi-
mos, por-abstração, ter a-idéia de uma montanhaou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lugar pelo qual subimos de baixo para cinta
sem considerar que se possa descer por aí mesmo de
cima para baixo”. (A Gibieuf, 19 de janeiro de +40: Segunda objeção possivel: não se tratará
1642.) Primeira objeção possivel a:esta nova prova somente-de uma existência em idéia no meu pensa-
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta: em minha idéia de Deus, eu per-
não existente? Resposta:a idéia da essência de ceby;a ligação da existência com a essência como
Deus é inseparável de sua existência assim como uma relação de essência necessária que se impõe ao
“em todas as-outras coisas”. meu espírito.
134 DESCARTES
clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E, embo- algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levadoa acreditá-lo
maneira, haja na verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam-
manifestamente conhecidas de qual- bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão âqueles que as conside- mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perto e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; todavia, uma vez quando deixo de considerar as razões
descobertas, não são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse in-
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual aos quadrados dos dois Deus! “4, E, assim, éu jamais teria uma
outros lados, como é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta ao maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma vez que isto foi reconhe- vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14, Como, por exemplo, quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, certamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espírito não estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen- três ângulos são iguais a dois retos e
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença contínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sensíveis, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des-
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente do que ele. Pois have- claramente compreendido, pode ocor-
rá algo por si mais claro e mais mani- rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser soberano e perfeito, em Deus! *8. Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e somente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna está incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com-
12, E, conquanto, para bem conce- preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade, eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplicação de espírito, pre- de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, todavia, estou mais seguro
144 Compreende-se aqui por que'a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, além disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela “natureza”, isto é da Psicologia, à certeza de que
Deus existe eternamente. Poupa, assim, O constante
depende tão absolutamente que, sem recurso às dificeis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimento, é impossível jamais matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo perfeitamente! “3, eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
“razões” da Meditação Terceira.
13. Pois, ainda que eu seja de tal 148 As provas a priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial e mdis-
**3 Diferença entre a essência de Deus e as essên- pensável); à prova ontológica assegura a lembrança
cias matemáticas: aquela pode garantir a certeza das evidências. Cf, o comentário feito nas Segundas
destas, Respostas, 222.
136 DESCARTES
coisas como verdadeiras e certas, que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
a julgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima-
e distintamente não pode deixar de ser ginramos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre-
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreendido clara e distinta- reconheço muito claramente que a cer-
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen-
razão contrária alguma que me faça ja- dem do tão-só conhecimento do verda-
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda- o conhecesse, não podia saber perfeita-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nénhuma outra coisa. E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui-
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante à
como as verdades da Geometria e ou- uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocâ-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida? Dir-me-ão que minha natu- medida em que ela pode servir de obje-
reza é tal que sou muito sujeito a enga- to as demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já ser que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos cujas razões conhe- algum, com sua existência! 48,
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e +48 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das-razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe- as propriedades das essências são as propriedades
das coisas e, no que concerne à essência de Deus, de
cido clara nem distintamente tais coi- que aí estã inscrita a existência necessária, portanto
sas e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
MEDITAÇÃO SEXTA!“
Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção
Real entre a Alma e o Corpo do Homem
que difere de meu espírito' *4, E conce- pórea que é o objeto da Geometria, a
bo: facilmente que, se algum corpo saber, as cores, os sons, Os sabores, a
existe ao qual meu espirito esteja con- dor e outras coisas semelhantes, embo-
jugado e unido de tal maneira que ele ra menos distintamente. E na medida
possa aplicar-sea considerá-lo quando em que percebo muito melhor tais coi-
lhe apróuver, pode acontecer que por sas pelos sentidos, por intermédio dos
este meio ele imagine às coisas corpó- quais, e da memória, elas parecem ter
reas: de sorte que esta maneira de pen- chegado até minha imaginação, creio
sar difere somente da pura intelecção que, para examiná-las mais comoda-
no fato de que o espírito, concebendo, mente, vem a propósito examinar ao
volta-se de alguma forma para si mesmo tempo o que é sentir, e ver se,
mesmo é considera algumas das idéias das idéias que recebo em meu espírito
que elé tem em si; mas, imaginando, por este modo de pensar, que chamo
ele se volta para o corpo e considera sentir, posso tirar alguma prova certa
nele algo de conforme à idéia que for- da existência das coisas corpóreas! 58,
mou de si mesmo ou que recebeu pelos & E, primeiramente, recordarei em
sentidos: Concebo, digo, facilmente minha memória quais são as coisas
que a imaginação pode realizar-se que até aqui considerei como verdadei-
dessa maneira, se é verdade que há ras, tendo-as recebido pelos sentidos, e
corpos; e, uma vez: que não posso sobre que fundamentos estava apoiada
encontrar nenhuma outra via para
minha crença. E, depois, examinarei as
mostrar como ela se realiza, conjeturo razões que me obrigaram em seguida a
daí provavelmente que os há: mas não colocá-las em dúvida. E, enfim, consi-
é senão provavelmente e, embora exa-
derarei o que-devo a respeito delas
mine cuidadosamente todas as coisas,
agora acreditar” 57,
não verifico, no: entanto, que, desta
idéia distinta da natureza corporal que 7, Primeiramente, pois! 5º, senti
tenho em minha imaginação, possa que possuía cabeça, mãos, pés e todos
tirar algum argumento que conclua os outros membros de que é composto
necessariamente a existência de algum este Corpo que considerava como parte
corpo! 55, de mim mesmo ou, talvez, como o
todo, Demais, senti que esse corpo es-
5. Ora, acostumei-me a imaginar tava colocado entre muitos outros, dos
muitas coisas além desta natureza cor- quais era capaz de receber diversas
comodidades e incomodidades e adver-
+64 Segunda presunção. Esta conungência da pre- tia essas comodidades por um certo
sença de imaginação em mim é fundamenta! em
relação á teoria: das Matemáticas expostas nas sentimento de prazer ou de voluptuo-
: embora possam € devam : apoiar-se na sidade e essas incomodidades por um
imaginação, as Matemáticas são essencialmente sentimento de dor. E, além desse pra-
obra do entendimento. O modelo matemático de
Descartes É à teoria das pro de Eudoxo (lr zer e dessa dor, sentia também em mim
vros V a VII de Euclides), que-a Álgebra permite a fome, a sede e outros semelhantes
universalizar, e não a Geometria “imaginativa” de
Euclides, pela qual, segundo Ballet, seu biógrafo,
não sentia quase nenhuma estima. Este ponto nos "8º Depois do tecurso ao entendimento « da anã-
parece capital para qualquer cotejo entre Descartés lise da imaginação, a málise da sensação.
e Kant e para tado estudo do conceito-clássico de 157 Anúncio dos momentos da pesquisa.
“imaginação” nos séculos XVII e XVIII, TRE “Primeiramente, recordarei em minha memó-
ee: Recapitulação: ao passo que a imaginação em ria quais são “as coisas que até aqui considérei como
mim prova à existência dos corpos, a explicação verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos”,a
que se lhe dá aqui só será verdadeira quando esta saber, que estou unido a um corpo
e que -as coisas
existênciaestiver comprovada. materiais existem.
140 DESCARTES
apetites, como também certas inclina- daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste- em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan- encontrava impressas em minha me-
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam proce-
das figuras, dos movimentos dos cor- der dé meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor € necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve- mim por quaisquer outras coisas, Coi-
lam ao tato. Demais, aí notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne-
variedade me fornecia meios de distin- ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir
o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito,só que essas
todos os outros corpos uns dos outros, coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam-
apresentavam ao meu pensamento, & bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa- que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce- que eram, as mais das vezes, compos-
diam essas idéias! *º, Pois eu experi- tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen- idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos,
sorte que não podia sentir objeto 11, Não era também sem alguma
algum, por mais vontade-que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti- que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente, jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei- as minhas afecções; e, enfim, eu era to-
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
dor em suas partes e não nas dos ou-
15º 4... e-sobre-que fundamento era apoiada
minha crença. ..”; enumeração até O $ 12 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos “prejuízos dá infância”. Os argu- 12. Mas, quando examinava por
mentos Serão os seguintes: à) a coerção (cf. Princi-
pios, 1,8 1: “Não está em meu poder fazer com que
que desse não sei que sentimento de
experimentemos um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro...” b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis: 0) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo em geral: d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de mêu corpo como dos outros fome, nos dá vontade de comer, e a se-
corpos; é) É nele que sinto minhas afecções é meus
preta (noção do corpo próprio); f) é em suas par- cura da garganta nos dá desejo de
es que sinto prazer e dor; &) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não ' podia
filológicos c as afecções da alma (contrações do
estômago é fome) pode provir tão-somente de um
apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141
pois não há, certamente, qualquer afi- 14. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de- que jamais acreditei sentir algo, estan-
sejo de comer, assim como entre o sen- do acordado, que não pudesse, tam-
timento da coisa que causa a dor é O bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti- ao estar dormindo; e como não creio
mento engendra. E, da mesma manei- que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao. dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen- devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que Os juízos, aquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado, E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los! 89, que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois! º!, muitas expe- que me pareciam ser as mais verdadei-
riências arruinaram, pouco a pouco, rás.
todo o crédito que eu dera aos senti- 15. E, quanto às razões que me ha-
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver-
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua- muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui-
os-mais altos cimos dessas torres, pare-
tas coisas de que a razão me desviava,
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando às
ensinamentos dessa natureza. E, embo-
olhava de-baixo; e, assim, em uma infi-
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outtas ocasiões, achei erros
não dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte-
pensava que se devesse, por isso, con-
riores. E não somente nos sentidos
exteriores, mas mesmo nos interiores; cluir que procediam de coisas diferen-
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape-
interior do que a dor? E, no entanto,
sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor- causa dessas idéias e que às produ-
tados, que lhes parecia ainda, algumas za! 62
vezes, sentir dores nas partes que lhes 16. Mas, agora que começo a me-
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia descobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embóra sen-
tisse dores nele. +82 Crítica dos argumentos a) é £) expostos
anteriormente: como já notara a Meditação Tercei-
vso Ea definição
do “pré-juizo”, ta, a “natureza” pode contravir a razão, e o argu-
vas “E, depois, examinarei as razões que me obri: mento proveniente da coerção é abalado pela hipó-
garam em seguida a colocá-las em dúvida, ..” Os tese-de uma faculdade desconhecida que poderia
E 13e 14 recapitulam as razões tiradas da Medita- produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira: sensíveis.
142 DESCARTES
que deva temerariamente admitir todas já que, de um; lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me-
nar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma coisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, e que, de outro,
geral! 82, tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em queé apenas uma coisa
que todas as coisas queconcebo clara extensa e que não pensa, é certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei-
que possa conceber clara é distinta- ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa'sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele! 88,
estar certo de que uma é distinta ou [8. Ainda mais, encontro em mim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti-
postas separadamente, ap menos pela culares e distintas de mim, as faculda-
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa- quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que sejaobrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
diferentes! 8*, E, portanto, pelo pro- não podem ser concebidas sem mim,
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que, no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
não pertence necessariamente nenhu- "que temos dessas faculdades, ou (para
servir-me dos termos:da Escola) no seu
ma outra coisa à minha natureza ou à
minha essência, a não ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente espécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, Os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên- modos: ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito nrudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado! 88, todavia, múltiplas posturas é outras semelhan-
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedentes, sem algu-
182 “E, enfim, considerarei o que devo a respéito
delas agora acreditar,” Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, é
trata mais “agora” de voltar aos “prejuizos” elimi- nem, por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mas tampounco:se trata: mas É muito evidente que essas facul-
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali-
sá-los à luz da veracidade dívina. Começa, aqui, à dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta- ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. . rea ou extensa, é não a uma substância
184 É o elemento essencial da provada distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamente. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, hã
invalidar todas as conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre a alma e 6 corpo.
18% Notar a reserva: não sabemos ainda sea prova
se acha contida, mas de modo nenhum
poderá ser aplicada. Cf: “E se Deus mesmo jun- qualquer inteligência" $ 7. Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma. que fosse
impossível uni-los mais, e fizesse um composto des-
tas duas substâncias assim unidas, conçebemos +84 É a décima verdade. Acerca das noções de dis-
também que: permaneceriam realmente distintas, tinção real e modal, cf. Princípios,
1, 60-61.
não obstante tal união, porque, qualquer que seja a *e2 Esta distinção dos modos da substânciaexten-
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos modos da substância inteligente anuncia
destes e do seu poder de separá-tas. ... “ (Princi- que deve haver em mim outra coisa-além do puro
pios, 1,60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143
contra-se em mim certa faculdade pas- mente. Pois, não me tendo dado nenhu-
siva de sentir, isto é, de receber € ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensi- seja assim, mas, ao contrário, uma
veis! 88: mas ela me seria inútil, e dela fortíssima inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor-
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa! *º, capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias, mento se, com efeito, essas idéias par-
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causas que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas corpóreas, ou fossem por elas produzi-
uma coisa que pensa, visto que ela não das, E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento! 7º, e, tam- que há coisas corpóreas que exis
bêm, que essas idéias me são frequen- tem? TZ.
temente representadas sem que eu em * 21. Talvez elas não sejam, todavia,
nada contribua para tantó e mesmo, inteiramente como nós-as percebemos:
amiúde, mau grado meu; É preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos
é muito obscura é confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den-
mim, na qual toda a realidade que há
objetivamente nas idéias por ela produ- tre elas, concebo clara e distintamente,
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen-
geral, compreendidas no objeto da
temente (como notéi antes). E esta
Geometria especulativa. aí se encon»
substância é ou um corpo, isto é, uma tram' verdadeiramente. Mas, no que se
tiatureza corpórea, na qual está conti- refere a outras coisas, as quais ou são
da formal é efetivamente tudo o que apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente é por represen- o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais menos claramente: e menos distinta-
nobre do que o corpo, na qual isto mente, como a luz, o som, a dor eou-
mesmo esteja contido eminentemen- tras semelhantes, é certo que, embora
te! 71 í
sejam elas muito duvidosas e incertas,
20, Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de: que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse-
ele não me envia essas idéias imediata- guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura, na qual que não me tivesse dado também algu-
a realidade das idéias não esteja conti- ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas eminente- poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
tes Passagem à prova da existência das coisas certeza! 73,
materiais. Parte-se ido: reconhecimento em mim da
existência de uma sensibilidade passiva:
vES "Se acredite; quea ação ea paixão são apenas +72 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única & mesma coisa a que se-atribuiram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta-
momes diferentes. : .” (A Hyperaspistes, 27 de julho mos:diante-de uma verdade: processamento análogo
de 1641) ao de uma prova por absurdo. Assim, fica estabele-
179 Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabé-lo. existência dos corpos.
172 Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 173 O'valor do sentimento. é especificado: ele vai
substancia fora de mim que, em virtude do-princípio mais longe do ques simples atestação da existência
de causalidade, será, ou máis “nobre” do que o dos corpos. Por menor que-sejaq valor objetivo da
corpo (causa eminente), ou o próprio Corpo (causa verdade sensível, esta possui, no entanto, um valor.
formal) Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível: qual-a verdadeira
infringiria o principio da veracidade divina: função do:sentimento e o: fim que o justifica.
144 DESCARTES
Yr* Não estarei indo longe demais ao conceder 177% Distinção das ordens. “A natureza” designa
esta “verdade” no sentimento?' Não redundará isso somente a substância composta, a zona de mistura
em justificar os “prejuizos da infância” e oserros de da alma e do corpo; s seu “ensinamento” em nada
uma Fisica “fenomenológica”, como a de Aristó- concerne ão conhecimento: limita-seà informação
telese dos escolásticos? biológica.
146 DESCARTES
onde se exerce a faculdade que cha- mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz O espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa” 3, embora as outras partes do nele ser excitados pór um ferimento
corpo possam estar diversamente dis- recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infmi- será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mésma dor que sentiria se aí tives-
necessário relatar "84. se recebido um ferimento. E cumpre
35. Notof além disso, que a natu- julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos" 2 5,
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re-
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que-está inteiramente tensa, se chegar- nisso de melhor, senão que esse movi-
mos a puxar é mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a priméira A não se mexerá de maneira todos os: sentimentos que é capaz de
diferente da que poderíamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par- mais ordinariamente útil à conserva-
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde'º*, Ora, a experiência nos
mesma meancira, quando sinto ama dor leva a conhecer que todos os senti-
no pé; a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos:deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não torne paten-
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu! * ?,
puxados no pé, puxam também, ao 37, Assim, por exemplo, quando os
mesmo tempo, O lugar do cérebro de nervos que estão no; pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e aí exci- seu movimento, passando pela medula
tam Certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri- *ES “O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeiao movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se 168 Seja qual for o ponto de partida da tração exer-
desde os pés até o cérebro, pode ocor- cida sobre ela, aglândula só pode, portanto, receber
um único movimento, O que acarreta uma limitação
rér que, embora suas extremidades que considerável da integração mérvosa. Deus precisou
se acham no pé não: sejam movidas, escolher, para 0: conjunto dos movimentos indife-
rençaveis-de cada nervo, a-sinalização mais útil ao
homem,
tes A glândula pineal. 187 Essa solução do problema, confórme:ao princi-
te4 Somente ao nível da glândula póde o espírito pio do melhor, possibilita todaviao erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal mini-
varia em função da variação na disposição dessa eg tornando-se, pois; compativel com a bondade
pequena glândula, Deus.
MEDITAÇÕES 149
da espinha dorsal até o cérebro, provo- dor como se ela estivesse no pé e o sen-
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por-
faz sentir algo, isto é, dor, como estan- que o mesmo movimento no. cérebro
do no pé, pela qual o espirito é adver- não podendo causar no espírito senão
tido é excitado a fazer o possível para O mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri- sendo muito mais frequentemente exci-
gosa e nociva para o pé tado por uma causa que feré o pé, do
38. É verdade que Deus podia esta- que por alguma outra que esteja alhu-
belecer a natureza do homem de tal res, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen- alguma outra parte'*º. E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove-
por exemplo, que o movimento sé nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou amda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga-
possa ser; mas nada disso teria contri- nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou-
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas,
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio deles, as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por- meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe-
necessidade de beber, para a conserva- rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, é podendo quase sem-
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto éxaminar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en- para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi-
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau-
vezes, falível e enganadora. sas de meéus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé, mas em qualquer “88 “rustificação” da ilusão
dos amputados. Po-
uma das partes do nervo que está ten- der-se-ia perguntar se Deus É inteiramente
descul-
pado. Afinal de contas, por que-co! Tão
dido desde o pé até o cérebro, ou
il