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MEDITAÇÕES

CONCERNENTES
À PRIMEIRA FILOSOFIA
NAS QUAISA EXISTÊNCIA DE DEUS E A DISTINÇÃO REAL
ENTREA ALMA E O CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
PRIMEIRA MEDITAÇÃO"?

Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida

1. Há já algum tempo eu me aper- 2. Agora, pois, que meu espirito


cebi dé que, desde méus primeiros está livre de todos os cuidados, e que
anos, recebera muitas falsas opiniões consegui um repouso assegurado numa
como verdadeiras, E de que. aquilo que pacífica solidão, aplicar-me-ei seria-
depois eu fundei em princípios tão mal mente e com liberdade em destruir em
essegurados não podia ser senão mui geral todas as minhas antigas opiniões.
duvidoso e incerto; de modo que me Ora, não será necessário, para alcan-
era necessário tentar seriamente, uma çar esse desígnio, provar que todas elas
vez em minha vida, desfazer-me de são falsas, o que talvez nunca levasse a
sodas as opiniões a que até então dera cabo; mas, uma vez que a razão já me
crédito, é começar tudo novamente persuade de que não devo menos
desde os fundamentos, se quisesse esta- cuidadosamente impedir-me de dar
belecer algo de firme e de constante crédito às coisas que não são inteira-
nas ciências. Mas, parecendo-me ser mente certas e indubitáveis, do que às
muito grande essa empresa, aguardei que nos parecem manifestamente ser
stingir uma idade que fosse tão madu- falsas, o: menor motivo de dúvida que
ra que não pudesse esperar outra após eu nelas encontrar bastará para me
ela, na qual eu estivesse mais apto para levar a rejeitar todas! *. E, para isso,
executá-la; o que me fez diferila por não é necessário que examine cada
tão longo tempo que doravante acredi- uma em particular, O que seria um tra-
teria cometer uma falta se empregasse balho infinito; mas, visto que a ruína
aimda em deliberar o tempo que me dos alicerces carrega necessariamente
resta para agir. consigo todo o resto do edifício, dedi-
car-me-ei inicialmente aos princípios
“ A primeira Meditação tem como peculiaridade sobre os quais todas as minhas antigas
o fmto de não se tratar aí de “estabelecer
verdade
disesa, mas apénas de me desfazer desses antigos opiniões estavam apoiadas.
aeinêrda”. (Sétimas Respostas) Sus composição é 3, Tudo o que recebi, até presente-
a eguinte:
A) $51-3:0 principio da dúvida hiperbólica; mente, como o mais verdadeiro e segu-
Bj 55$2-13: argumentos que estendem e radica- ro, aprendio dos sentidos ou pelos
Srzam a dúvida.
(83): argumento dos erros dos
sentidos; 14 A dúvida-assim posta em ação: a) distinguir-se-
(884-9); argumento do sonho; á-da dúvida vulgar pelo fato de ser engendrada não
($89-13); argumento que estende 8 por, experiência, mas por ma decisão; b) será
dúvida so valor objetivo das essên- “hiperbólica”, isto é, sistemática e generalizada; €)
cias matemáticas, em duas etapas: consistirá, pois; em tratar como falso o que & apenas
9 Deus enganador; duvidoso, com sempre enpanador à que slguma
- 0 Gênio Maligna: vez me enganou.
34 DESCARTES
sentidos: ora, experimentei algumas mente; que é com desígnio e propósito
vezes que esses sentidos eram engano- deliberado que estendo esta mão e que
sos, e é de prudência nunca se fiar a sintor'0 que ocorre no sono não paré-
inteiramente em quem já nos enganou ce ser tão claro nem tão distinto quan-
uma vez! 8. to tudo isso. Mas, pensando cuidado-
4. Mas, ainda que os sentidos nos samente nisso, lembro-me de ter sido
enganem às vezes, no que se refere às muitas vezes enganado, quando dor-
coisas pouco sensíveis e muito distan- mia, por semelhantes ilusões. E, deten-
tes, encontramos talvez muitas outras, do-me neste pensamento, vejo tão
das quais não se pode razoavelmente manifestamente que não hã quaisquer
duvidar, embora as conhecêssemos por indícios concludentes, nem marcas
intermédio deles: por exemplo, que eu assaz certas por onde se possa distin-
esteja aqui, sentado junto ao fogo, ves- guir nitidamente a vigília do sono, que
tido com um chambre, tendo este papel me sinto inteiramente pasmado: e meu
entre as mãos e outras coisas desta pasmo; é tal que é quase capaz de me |
natureza. E como poderia eu negar que persuadir de que estou dormindo.
estas mãos e este corpo sejam meus? A 6. Suponhamos, pois, agora, que |
não ser, talvez, que eu me compare e estamos adormecidos e que'todas essas
esses insensatos, cujo cérebro está de particularidades, a saber, que abrimos |
tal modo perturbado e ofuscado pelos os olhos, que mexemos a cabeça, que
negros vapores da bile que -constante- estendemos às mãos, e coisas seme- |
mente asseguram que são reis quando lhantes, não passam de falsas ilusões; e E
são muito pobres; que estão vestidos pensemos que talvez nossas mãos,
de ouro e de púrpura quando estão assim como todo O nosso corpo, não.
inteiramente nus; ou imaginam ser são tais como os vemos, Todavia, &
cântaros ou ter um corpo de vidro. preciso ao menos confessar que as com
Mas que? São loucos e eu não seria sas que nos são representadas durante:
menos extravagante se me guiasse por o: sono são como quadros e pinturas.
seus exemplos. que-não podem ser formados senão 3
5. Todavia, devo aqui considerar semelhança de algo real e verdadeiro:e.
que sou homem! 8 e, por conseguinte, que assim, pelo menos, essas: coisas
que tenho o costume de dormir e de gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos &:
representar, em meus sonhos, as mes- todo o resto do corpo, não são coisas:
mas coisas, ou algumas vezes menos imaginárias, mas verdadeiras c existem
verossimeis, que esses insensatos em tes. Pois; na verdade, os pintores
vigília. Quantas vezes ocorreu-mê so- mesmo: quando se empenham cem p
nhar, durante a noite, que estava neste maior artifício em representar sereias e. j
lugar, que estava vestido, que estava sátiros por | formas estranhas e extraos-
junto ão fogo, embora estivesse inteira- dinárias, não lhes podem, todavia aaa
mente nu dentro de meu léito? Parece- buir formas e naturezas inteiramente,
me agora que não é com olhos adorme- novas, mas apenas fazem cérta mistura |
cidos que contemplo este papel; que e composição dos membros de pi
esta cabeça que eu mexo não está dor- sos animais; ou então, se pormcatadas
ts: Argumento-do
erro do sentido, primeiro grau da
sua imaginação for assaz extravagant
dúvida. É insuficiente para nos fazer duvidar siste- para inventar algo de tão novo, que Re
maticamente de nossas percepções sensíveis. mais tenhamos visto coisa semelk
"* Aqui começa o argumento do sonho, segundo
grau da dúvida, que irá-estende-la a todo conheci- E que assim sua obra nos ré
mento-sensível, ou pelo menos a'seu conteúdo.
“MEDITAÇÕES 95
tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca terá mais do que qua-
cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus-
7. E pela-mesma razão, ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte-
essas coisas gerais, a saber, olhos, za.
cabeça, mãos é outras semelhantes, 9. Todavia, há muito que tenho no
possam ser imaginárias, É preciso, meu espírito certa opinião! º de que há
todavia, confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora,
são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadei- nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são Tormadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu-
das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugare que, não
pensamento, quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne- todas essas coisas e-que tudo isso não
ro de coisas é a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral,é sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan- Julgo que algumas vezes os Outros se
tidade, ou grandeza, e seu número; enganam até nas coisas que eles acre-
como também o lugar em que estão, o ditam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes! ?. eu me engane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez, daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fi- que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia, a Medicina e todas ou em que julgo alguma: coisa ainda
as outras ciências dependentes da mais fácil, se É que se pode imaginar
consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas ser que Deus não tenha querido que eu
que a Aritmética, a Geometria e as ou- seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não eleé considerado soberanamente bom.
tratam senão de coisas muito simples é imádio se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em fazer-me de tal modo que eu me enga-
se elas existem ou não na natureza, nasse sempre, pareceria também ser-
contêm alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que cu me enga-
tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e, no entanto, não
quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi-
formarão sempre o número cinco e O tals.
10. Haverá talvez aqui pessoas que
17 O segundo argumento encontra, pois; o seu limi- preferirão negar a existência de um
tez ele-não me permite pôr em dúvida os compo-
nentes de minhas percepções, a saber, as “naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
simples”, indecomponíveis (figura, quantidade, es-
paço, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais 18 Essa “opinião” é-sustentada pelos teólogos das
elementos “escapam, contrariamente: aos objetos Segundas Objeções: Deus, dada sua
sensíveis, a todas ay razões naturais de duvidar”, pode nos enganar, Não& o parecer de Descartes: O
sublinha Guéroult, apojando-se ny texto da Quinta engano em Deus constituiria não só um: sinal de
Meditação: “A natureza
de meu espírito é tal que-cu malighidade, mas:de não-ser. (Col: com Burman)
não me: poderia impedir de: julgá-las verdadeiras: Isso redunda em afirmar o valor tão-somente meto-
enquanto as concebo clara e distintamente”. Daí à dológico dessa suposição antinatural,
nesessidade de recorrer ao Lerceiro argumento que Vê “A consideração da bondade, por si só; não basta
abalará está certeza “natural”. paranvalidar a suposição. Cf, a motá precedente,
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todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca-
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas. que tudo prováveis, de sorte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer O tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali- todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma conti- esses pensamentos são falsos e imagi-
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos-
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuirem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi-
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos e desviado do reto
me engane sempre, Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se-
gado a confessar que, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode
nides que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não hã ne- que não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata no momento de agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de editar e de cônhecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo pênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno??, não menos ardiloso & enga-
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden- toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências?º, coisas exteriores que vemos são apenas
II. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso ainda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ci a mim mesmo abso-
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar convivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; € se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos-
tume de aquiescer a isso e de confiar 21 A função do Deus enganador e do Gênio Malig-
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o:Gênio Maligno é um artifi-
cio psicológico que. impressionando mais a minha
são efetivamente, ou seja, como duvi- imaginação, levar-me-ã a tomar a dúvida mais à
sério e & inscrevê-la melhor em minha memória ("é
20 A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela”).
MEDITAÇÕES 97

não está em meu poder chegar ao eu reincido insensivelmente por mim


conhecimento de qualquer verdade, ao mesmo em minhas antigas opiniões e
menos está ao meu alcance suspender evito despertar dessa sonolência, de
meu juízo. Eis por que cuidarei zelosa- medo de que as vigílias laboriosas que
mente de não receber em minha crença se sucederiam à tranquilidade de tal
nenhuma falsidade, e prepararei tão repouso, em vez de me propiciarem al-
bem meu espírito a todos os ardis, guma luz ou alguma clareza no conhe-
desse grande enganador que, por pode-" cimento da verdade, não fossem sufi-
roso e ardiloso que seja, nunca poderá cientes para esclarecer as trevas das
impor-me algo. dificuldades que acabam de ser agita-
13. Mas esse desígnio é árduo e das.
trabalhoso2? é certa preguiça arrasta-
me insensivelmente para o ritmo de 22 Esta insistência na dificuldade de exercer uma
dúvida tão radical não é enfáticay quanto mais a dú-
minha vida ordinária. E, assim como vida for vivida como radical, mais as certezas que
um escravo que gozava de uma liber- se impuserem, em seguida, se apresentarão como
dade imaginária, quando começa a inabaláveis. Tomar a dúvida Jevianamente é expor-
se a nada compreender da sequência das Medita-
suspeitar de que sua liberdade é apenas gões. A este propósito, cf. 203, — “Não há erro
um sonho, teme ser despertado e cons- mais:grave”, diz Alain, “doque julgar que esta dú-
vida é fingida. Não há também erro mais comum,
pira com essas ilusões agradáveis para porque poucos homens jogam este jogo seriamen-
ser mais longamente enganado, assim tem
MEDITAÇÃO SEGUNDA?
Da Natureza do Espirito Humano;
e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do queo Corpo

|. A Meditação que fiz ontem en- vel, até que tenha aprendido certa-
cheu-me o espírito de tantas dúvidas, mente que não há nada no mundo: de
que doravante não está mais em meu certo.
alcance esquecê-las, E, no entanto, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e transportá-lo
las; e, como se de súbito tivesse caído para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu-
modo surpreso que não posso nem fir- To. Assim, teres o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para encontrar somente uma coisa que
não obstante, é séguirei novamente a seja-certa é indubitável? 4,
mesma via que trilhei ontem, afastan- 3. Suponho, portanto, que todas as
do-me de tudo em que poderia imagi- coisas que vejo são falsas; persuado-
nar a menor dúvida, da mesma manei- me de que jamais existiu de tudo quan-
rá como se eu soubesse que istá fosse tó minha memória referta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa; penso não. possuir ne-
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; creio que o corpo, a
encontrado. algo de certo, ou, pelo
figura, a extensão, o movimento e o
menos, se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de méu espíri-
to, O que poderá, pois; ser considerado
Es Piano da Meditação:
A) 8919: da natureza do espírito huma verdadeiro? Talvez nenhuma outra
coisa a não ser que nada há no mundo
8$1-4: conquista da primeira certeza;
(881-3): procura de uma primeira
de certo, À Eai:
certeza;
4. Mas que sei eu, se não há nenhu-
(84): “Eu sou, cu existo”: ma qutra coisa diferente das que acabo
R$5-9: reflexão sobre esta primtira certe- de julgar incertas, da qual não se possa
za e conquista da segundas
(88 5-8 quem sou cu, cu que ter a menor dúvida? Não haverá algum
estou certo que-sou? Uma coisa Deus, ou alguma óutra potência, que
pensante. Determinação da essên- me ponha no espírito tais pensamen-
cia do Eu:
(59): descrição
da “coisa pensante” tos? Isso não é necessário; pois talvez
e distinção: entre. o pensamento seja eu capaz de produzi-los por mim
(atributo. principal desta substân- mesmo. Eu então, pelo menos, não
cia) e suas outras faculdades;
B) $910-18: ... .e de como ele;é mais fácil de. serei alguma coisa? Mas já neguei que
conhecer do que o corpo:
Contraprova da segunda certeza (0 pe 2* A primeira certeza adquirida não será, pois,à
Gago de cera)'e conquista da. terogira mais. altáy deve apenas inaugurar à cadeia idas
cérteza, razoes.
100 DESCARTES

tivesse qualquer sentido ou qualquer vezes que a enuncio ou que a concebo


corpo. Hesito no entanto, pois que se em meu espirito? 7,
segue daí? Serei de tal modo depen- 5. Mas não conheço ainda bastante
dente do corpo e dos sentidos que não claramente o que sou, eu que estou
possa existir sem eles? Mas eu me per- certo de que sou; de sorte que dora-
suadi de que nada existia no mundo, vante é preciso que eu atente com todo
que não havia nenhum: céu, nenhuma cuidado, para não tomar imprudente-
terra, espíritos alguns, nem corpos mente alguma outra coisa por mim, €
alguns: não me persuadi também, por- assim para não equivocar-me neste
tanto, de que eu não existia? 5? Certa-
mente não, éu existia sem dúvida, se é conhecimento que afirmo ser mais
certo e mais evidente do que todos os
que eu me persuadi, ou, apenas, pensei que tive até agora?º,
alguma coisa. Mas há algum, não sei
qual, enganador mui poderoso e mui 6. Eis por que considerarei de novo
ardiloso que emprega toda a sua indús- O que acreditava ser, antes de me
empenhar nestes últimos pensamentos;
tria em enganar-me sempre. Não há,
e de minhas antigas opiniões suprimi-
pois, dúvida alguma de que sou, se-ele
me engana; e, por mais que me engane, rei tudo o que pode ser combatido
não poderá jamais fazer com que eu pelas razões que aleguei hã pouco, de
nada seja, enquanto eu pensar ser algu- sorte que permaneça apenas precisa-
ma coisa? *, De sorte que, após ter pen- mente o que é de todo indubitável. O
sado bastante nisto e de ter examinado que, pois, acreditava eu ser até aqui?
cuidadosamente todas as coisas, cum- Sem dificuldade, pensei que era um
pre enfim concluir e ter por constante homem. Mas que é um homem? Direi
que esta proposição, eu sou, eu existo, que é um animal racional? Certamente
é necessariamente verdadeira todas as não: pois seria necessário em seguida
pesquisar o que é animal e o que é
23 Retomemos o raciocinio. No ponto em que racional e assim, de uma só questão,
estou, não. poderia eu ter à certeza da existência cairiamos insensivelmente numa infini-
de “algum "E Não, nada o exige (e um dos
principios da análise dos gedmetras É o de não dade de outras mais dificeis e embara-
remontar a uma verdade superior Aquela com que cosas, & eu não quereria abusar do
posso me contentar). Irei invpcar a certeza
de minha
existencia conto indivíduo, sujeito concreto? Não, pouco tempo e lazer que me resta
nada 0: permite, visto que pus em dúvida a exis empregando-o em desimdar seme
tência de tudo O que há “no mundo”. -. Mas cuida-
do! A “hesitação” aqui é ditada pely medo de uma
confusão: fiel à regra da dúvida, não tenho motivo 27 Qifim da frase mdica que ela só é verdadeira
de abrir exceção em favor do homem concreto: que cada vez que penso nela atualmente. É também uma
sou; mas, aquém deste, há algo que irá resistir à dú- transição, pois:permitirá responder à pergunta que
vida. E doravante O Eu não será mais este Eu de agora haverá de colocar-se; qual É a natureza deste
chambree ao pé do fogo que a Primeira Meditação Eu-existente que acabo de afirmar?
evocava (como indica Goldschmidt, Congresso 26 Eu não conheço, ainda, o conteúdo desta exis-
Descartes de Royaumont, pág. 53). tência: que acabo de-afirmar, Importa, pois, encon-
2% Essa frase evidencia bem q papel do “Grande trádo pela exclusiva análise dos dados do problema,
Embusteiro”: impor & meus pensamentos uma Istole, por determinação, levando em conta tidoo
prova de tal ordem o aquele que lhe resistir seja, queé dado, mas excluindo tudo o que.não o é (a
quando não garantido como verdadeiro (E impos- referência à Regra XII é aqui indispensável). Notar
sivel antes da prova da existência de Deus), pelo a frase “Ê preciso que eu atente com todo cuidadi
menos recebido comg certo, Senão fosse arrancado, para não tomar imprudentemente alguma outra
extorquido ao Gênio Maligno, o Cogito não passa- coisa por mim”, que-seria absurdo no plano da Psi-
ria de uma banalidade. Sobre a originalidade do cologia-e que se justifica apenas o nível de uma Ál-
Cogito, cf. o fim do opúsculo de Pascal: De VEsprit gcbra das noções, comparável à “Álgebra dos
Géoméirique. comprimentos” das Regulae.
MEDITAÇÕES 101

lhantes sutilezas??, Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa- impressão. Pois não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha natureza, de si o poder de mover-se, de sentir €
quando me aplicava à consideração de de pensar; ão contrário, espantava-me
meu ser. Considerava-me, inicial- antes ao ver que semelhantes faculda-
mente, como: provido de rósto, mãos; des se encontravam em certos cor-
braços e toda essa máquina composta pos?

de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, O que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho?2 que há alguém que é extre-
pelo nomé de corpo. Considerava, mamente poderoso e, se ouso dizê-lo,
além disso, que me alimentava, que malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e
todas as suas forças e toda a sua indús-
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me? Posso estar certo
alma3º; mas não me detinha em pen- de possuir a menor de todas:as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se que atribuí há pouco à natureza corpó-
o fazia, imaginava que era algo extre-
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de-
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensava conhecê-la mui distintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns: que existam em mim. Os pri-
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen-
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode-também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi- coisas, durante o sono, as quais reco-
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi- nheci, ao despertar, não ter sentido
do de muitas maneiras, não por si efetivamente. Um outro é pensar; é
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
atributo que me pertence; só ele não
29 Sobre este método de determinação
do pro-
blems por- segregação, cf. o diálogo: Recherche de
la Vérité (Plóiade, phgs. 892-94), Ao interlocutor 3* Esté conhecimento “natural” que eu tenho de
aturdido que acaba de responder; “Diria, portanto; mim mesmo antes da prova da dúvida será mteira-
que sou um homem”, o cartesiano replica: “Não mente falso? Não. Se a alma é concebida à maneira
prestais atenção ao que perguntei
é a resposta quê dos escolásticos, em trocaa distinção entre
o corpo
apresentais, embora vos pareça simples, lançar- e 6 espírito (indispensável à Físi está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço- mas à titulo -de opinião provável, sem fundamento,
sas, se cu quisesse apertá-las por menos que seja. , , CI. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta respondéis 32 Mudança de plano. Do pensamento inspirado
& asi coisas do que vos Ra ci por “minha natureza” passamos à só idéia de mim
pois,.o que sois propriamente, na em que mesmo compatível com a instauração da dúvida, da
uvldato* e indeterminação: psicológica à determinação metafi-
2º Cf. Respostas, 508, sita.
102 DESCARTES

pode ser separado de mim. Eu sou, eu existirem, já que me são desconhe-


existo: isto é certo; mas por quanto cidas, não sejam efetivamente diferen-
tempo? A saber, por todo o tempo em tes de mim, que eu conheço? Nada sei
que eu penso?3; pois poderia, talvez, a respeito; não o discuto atualmente,
ocorrer que, sé eu deixasse de pensar, não posso dar meu juízo senão a coisas
deixaria ao mesmo tempo de ser ou de que'me são conhecidas: reconheci que
existir. Nada admito agora que não eu era, e procuro o que sou, eu que
seja necessariamente verdadeiro: nada reconheci ser. Ora, é muito certo que
sou, pois, falando precisamente, senão essa noção e conhecimento de mim
uma coisa que pensa, isto é, um espíri- mesmo, assim precisamente tomada,
to, um entendimento ou uma razão, não depende em nada das coisas cuja
que são termos cuja significação me existência não me é ainda conheci-
era anteriormente** desconhecida. da? 8: nem, por conseguinte, e com
Ora, eu sou uma coisa verdadeira E mais razão de nenhuma daquelas que
verdadeiramente existente; mas que são fingidas e inventadas pela imagina-
coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. ção. E mesmo esses termos fingir e
E que mais? Excitarei ainda minha imaginar advertem-me de meu erro;
imaginação para procurar saber se não pois eu fingiria efetivamente se imagi-
sou algo mais. Eu não sou essa reunião nasse ser alguma coisa, posto que ima-
de membros que se chama O corpo ginar nada mais é do que contemplar a
humano; não sou um ar tênue e péne- figura ou a imagem de uma coisa cor-
trante, dissemmado por todos esses poral. Ora, sei já certamente que eu
membrós; não sou um vento, um sou, e que, ao mesmo tempo, pode
sopro, um vapor, nem algo que posso ocorrer que todas essas imagens e, em
fingir e imaginar, posto que supus que geral, todas as coisas que se relacio-
tudo: isso não era nada e que, sem nam à natureza do corpo sejam apenas
mudar-essa suposição, verifico que não sonhos ou quimeras. Em seguimento
deixo de estar seguro de que sou algu- disso, vejo claramente que teria tão
ma coisa 3 5, pouça razão ao dizer: excitarei minha
8. Mas também pode ocorrer que imaginação para conhecer mais distin-
essas mesmas Coisas, que suponho não tamente o que sou, como se dissesse:
estou atualmente acordado e percebo
23 Entre todas às faculdades: 1) doc — Bda algo de real e de verdadeiro; mas, visto
alma, uma só, O pensamento, resiste à exclusão: que não o percebo ainda assaz nitida-
Vemos aqui a importancia do fim do: $ 4: “Esta
proposição — su sou, eu existo — É necessariá- mente, dormiria intencionalmente a
mente verdadeira sempre que eu a pronuncio ou que fim de que meus sonhos mo represen-
eu à concebo em meu espírito”, É ao refletir sobre tassem com maior verdade e evidência.
esta inseparabilidade — único dado que:se encontra
em minha-posse — que obtenho imediatamente-a E, assim, reconheço certamente que
natureza “daquilo que sou”. Trata-se da primeira nada, de tudo o que posso com-
verdade da cadeia de razões.
3º “Anteriormente”, isto €, no plano emque nos preender por meio da imaginação, per-
colocava o parágrafo precedente, eu podia proferir tence a este conhecimento que tenho de
estas palavras, mas-sem lhes ter determinado:o sen- mim mesmo e que é necessário lembrar
tido, portanto sem conheçedo.
26 Sobre o fim desse parágrafo, cf; 505 e segs. Não
há necessidade alguma de ir procurar em outra *º O contraditor que retorquisse- haver talvez em
parte uma resposta, visto que-dei a única resposta mim alguma outra faculdade desconhecida situar-
que-respeitava os dados do problema: “Eu sou uma se-ja-no plano da Psicologia e não das razões meta-
coisa que pensa”. Mas “o homem natural” sente-se físicas. Um dos princípios da análise é que não
tentado a recorrer à imaginação a fim de completar tenho-o direito-de“arguir propriedades ainda desco-
esta resposta. Há nisso uma inclinação que-o pará- nhecidas. para combater as-que se acham agora
grafo seguinte irá desenraizar: estabelecidas.
MEDITAÇÕES 103

e desviar o espírito dessa maneira dé de mim mesmo? Pois é por si tão evi-
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente. entende e quem deseja que não é neces-
sua natureza??, sário nada acrescentar aqui para expli-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, possa ocorrer (como supus anterior-
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagimo não
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente3º, Certamente não é nar não deixa, no entanto, de existir
pouco-se todas essas coisas pertencem realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe é conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos-órgãos dos sen-
no entanto, entende e concebe certas tidos, posto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, me-ão que essas aparências são falsas
que-nega todas: as demais, que quer e e-que eu durmo. Que assim seja; toda-
deseja conhecê-las mais, que não quer via,.ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi- parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e É propriamente aquilo que
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver- ar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que:anteriormente?*,
ainda quando aquele que me deu a IO. Mas não me: posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas*º, cujas
forças para enganar-me? Haverá, tam- imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou dos, sejam mais distintamente conheci-
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
37 Em virtude desse princípio, não me é dado abso- imaginação: embora, com efeito, seja
jutaménte o direito de tecorrer à imaginação, pois
“tudo quanto pósso compreender por seu meio” foi uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida: Por aí al sei, ao: mesmo que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha naturezaÉ puró Ee
exclusivo de todo elemento corporal, E a ségunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir
com a distin- conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre-a alma é o corpo, estabelecida somen-
te na Meditação Sexta. CE. 510
*= Cumpre observar a diferença relativamente à 29 A saber, um pensamento; a) distinto dos corpos,
definição do 8 7: “Teto É, um espírito, um entendi- se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão”, Ad determinava-se a essência mente intelectuais, como a imaginação, que só me
da substância “coisa pensante”; aqui ela:& descrita pertencem porque implicam este pensamento puro.
cevestida de seus diferentes modos. Desse novo 4º Novo assalto do pensamento imaginativo: ine-
ponto de vista, reintegra-se na “coisã pensante” o rente à “minha natureza” e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essência. Todos: esses me desprénder: estou convencido, mas não persua-
modos (imaginar, sentir, querer), embora:não per- dido. Daí a necessidade: de uma contraprova que
tençam à minha natureza; não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
Góvida, na medida em que se beneficiam da certeza todas as figuras de retórica das Meditações, esta
do Cogito. integra-se na ordem.
104 DESCARTES
que são verdadeiras e certas é que per- todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu-
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cera per-
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, anda uma atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais facil- brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo **. som, mas somente um corpo que um
11, Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta- outras, Mas o que será, falando preci-
mente, a saber, Os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
€ que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpós em geral, pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, às coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, este peda- permanece senão algo de extenso, flexi-
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexi-
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tornar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini-
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e;
12. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta- tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esvai, minha faculdade de imaginar *2.
sua cor se modifica, sua figura se alte- 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele torna-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen-
ta e fica ainda maior quando está intei-
tocar e, embora nele batamos, nenhum
som produzirá. À mesma cera perma- ramente fundida e muito mais ainda
nece após essa modificação? Cumpre quando o calor aumenta? E eu não
concéberia claramente e segundo a ver-
confessar que permanece: é ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se
que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode 42: Raciocinio em duas partes: 1º o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer à mesma cera é sua identidade na medi-
intermédio dos sentidos, posto que da em que a cera é coisa extensa; 2.º mas este con-
teúdo sô pode ser idéia e-não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em ná-
*» Em outros termos: façamos de conta que inter- mero finito) qué poderia ocupar em seguida. CF.
rompemos a grdem afim de seguir o senso comum Quintas Respostas: “As faculdades de entender e de
em seu próprio. terreno. Sobre o fato de-ser esta imagmar diferem.não só segundo o maise o menos,
transgressão apenas aparente, cf o importantíssimo porém como: duas maneiras de agir totalmente
5515 das Respostas. diferentes”.
MEDITAÇÕES 105

segundo a extensão do que jamais ima- la, senão chapéus e casacos que podem
ginei. É preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que É essa cera e que julgo que são homens verdadeiros
somente-meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe“; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em aquilo que acreditava vér com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual olhos:
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí- seu conhecimento para além do
rito? Certamente é -a mesma que vejo, comum deve envergonhar-se de apro-
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das: for-
conhecia desde o começo. Mas o que é mas: e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi- perfeição o que era a cera, quando a
nação,e jamaiso foi, embora assim o percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser ou ao menos por meio: do senso
imperfeita e confusa, como era antes, comum, como o chamam, isto é, por
ou clara é distinta, como é presente- meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di- concebo presentemente, após haver
rija'mais ou menos às coisas que exis- examinado mais exatamente o que ela
tem nelae das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida.
14. Entretanto, eu não poderia es- Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o em dúvida. Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e meira percepção que fosse distintor e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as menor dos animais? Mas quando dis-
palavras detêm-me, todavia, e sou tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pelos termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum: pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen- nua* 4, é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor é juízo, não a posso conceber desta
a mesma figura: donde desejaria quase forma sem um espírito humano* 8.
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins- “+ C[:513, onde Descartes se defende de ter
peção
do espírito, se por acaso
não tendido “abstrair0 conceito da verade seus acido
olhasse pela jane a homens que pas- tes”. “Os acidentes são contingentes em relaçao à
sam pela rua, à vista dos quais não substância, mas; não à acidentalidade”, especifica
Guéroult. (Descartes,1. pág. 56.)
deixo de dizer que vejo homens da 45 Tal é o sentido exato do “pedaço
de cera"'reu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra-
ceras e, entretanto, que vejo desta jane- vés do. pensamento, a essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essencia? Não sei
*3 Por onde fica provado não só que'a imaginação amda. Pois não se trata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos nho efetivamente do conhecimento: da essência do
que sé lhe apresentam (o que era o Objetivo da corpo. mas de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas-ainda que o pensamento puro
éq seguro de possuir a idéia clara é distinta deste
único capaz de fazê-lo. corpo. Cf. Guêéroult, op: cit, pãgs: 144-45,
106 DESCARTES

16.. Mas, enfim, que direi desse espí- nitidez não deverei eu conhecer-me* 7,
rito, isto é, de mim mesmo* *? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
um espírito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro-
mim, que pareço cónceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon-
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade'e certeza, mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que-a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
segue-se bem mais evidentemente: que
eu próprio sou, ou que existo pelo fato
das.
18. Mas, enfim, eis que insensivel-
de eu a ver. Pois pode acontecer que
mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato,
que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou conçcebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não: mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos: sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo qué a cera existe, pelo fato de que pu de tocá-los, mas somente por os
a toco, séguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
Coisa, Ou seja, que eu sou; E se O julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. É o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim, meditação, eu imprima mais profunda-
17. Ora, se a noção ou conheci- mente em minha memória este novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 47 É aterceira verdade; 6 espírito é mais fácil de
conhecer do que o corpo, Com: efeito, obtenha
mas ainda por muitas outras causas, imediatamente o conhecimento da existência € da
com quão maior evidência, distinção e natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa-
mento mé proporciona apenas a idéia clara e dis-
4º Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemá-
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: “Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara € distintamente-sua que'o conhecimento da-alma é o mais facil dos
natureza, seja apenas imaginanido-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa É certa, no ponto em que mê encontro. verdades científicas é o primeiro dos conhecimentos
É que eu penso percebé-lo.. . Mostrando. que este na ordem da-ciência. Nao-quer dizer que'a ciência é
“pensamento” era indispensável so conhecimento mais: fácil do que o conhecimento vulgar. A passa-
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade, dificil das ascensões”. (Op. cit., pág. 128.)
MEDITAÇÃO TERCEIRA *?
De Deus; que Ele Existe

1. Fecharei agora os olhos, tampa- que pensa, isto é, que duvida, que afir-
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi-
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as odeia, que quer e não quer, que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao bém imagina e que sente. Pois, assim
menos, uma vez que mal se pode fazé- como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como: fal- que sinto € imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co- absolutamente nada fora de mim €
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei tornar-me de que essas maneiras de pensar, que
pouco à pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa
chamo sentimentos e imaginações so-
mente na medida em que são maneiras
“t Plano da Meditação: de pensar, residem e se encontram 'cer-
S91-4: recapitulação: tamente em mim. E neste poucó que
85: a questão de Deus;
8569: discriminação dos dados dó pro- acabo de dizer creio ter relatado tudo.o
bleira. que sei verdadeiramente, ou, pélo
A) 8$10-[4: primeiro caminho para o exame
dá valor objetivo das idéias: senso comum.
menos, tudo o que até aqui notei que
B)'$$ 15-29: segundo caminho: sabia.
(8$16-17): princípios de. causali-
dade e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata-
($18);-colocação do: problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconheceria eu o lutamente: em mim outros conheci-
valor objetivo de uma idéia?
($819-21): exame das diferentes mentos que não tenha-ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen-
prismiát;
(822): à idéia de Deus reconhecida
sante; mas não saberei também, por-
como -datada-de valor objetivo = tanto, o queé requerido para me tornar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(8523-28): reflexões sobre esta
prova. conhecimento só se encontra uma
C) $829-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(8$29-30): necessidade de outra conheço;a qual, na verdade, não seria
prova;
(853132); primeiro momento, pri- suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mim verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa:
Nisa imeiro momento, se-
pudesse acontecer qué uma coisa que
is Eu existo sem eu concebesse tão clara e distintamente
e se verificasse falsa, E, portanto, pare-
(835): segundo momento;
(8$36-37): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
$$38-42:; reflexão sobre o conjunto. regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES

concebemos mui clara e mui distinta- rano poder de um Deus se apresenta a


mente-são todas verdadeiras
*º, meu pensamento, sou constrangido a
3, Todavia, recebi e admiti acima confessar que lhe é fácil, se ele o qui-
várias coisas como muito certas € ser, proceder de tal modo que eu me
muito manifestas, as quais, entretanto, engane mesmo nas coisas que acredito
reconheci depois serem duvidosas € conhecer com uma evidência muito
incertas. Quais eram, pois, essas coi- grande. E, ao contrário, todas as vezes
sas? Eram a terra, O céu, os astros € que me volto para as coisas que penso
todas as outras coisas que percebia por conceber mui claramente sou de tal
intermédio de meus sentidos. Ora, o maneira persuadido delas que sou leva-
que é que eu concebia clara e distinta- do, por mim mesmo, à estas palavras:
mente nelas? Certamente nada mais engane-me quem puder, ainda assim
exceto que as idéias ou os pensamentos jamais poderá fazer que eu nada seja
dessas coisas se apresentavam a meu enquanto eu pensar que sou algo; ou
espírito. E ainda agora não nego que que algum dia seja verdade que eu não
essas idéias se encontrem em mim. tenha jamais existido, sendo verdade
Mas havia ainda outra coisa que eu agora que eu existo; ou então que dois
afirmava, e que, devido ao hábito que e três juntos façam mais ou menos-do
tinha de acreditar nela, pensava perce- que cinco, ou coisas semelhantes, que
ber mui claramente, embora na verda- vejo claramente não poderem ser de
de não à percebesse de modo algum, a outra maneira. senão como as conce-
saber, que havia coisas fora de mim bo 8º,
donde procediam essas idéias e às 5. E, por certo, posto que não tenho
quais elas eram inteiramente semelhan- nenhuma razão de acreditar que haja
tes. E era nisso que eu me enganava; algum Deus que seja emganador,e
ou, se eu julgava talvez segundo a ver- mesmo que-não tenha ainda conside-
dade, não havia nenhum conhecimento rado aquelas que provam que há um
que eu tivesse que fosse causa da ver- Deus, a razão de duvidar que depende
dade de meu julgamento. somente desta opinião é bem frâgil e,
4. Mas quando considerava alguma por assim dizer, metafísica. Mas, a fim
coisa de muito simples e de muito Fácil de poder afastá-la inteiramente, devo
no tocante à Aritmética-e à Geometria, examinar se hã um Deus, tão lógo a
por exemplo, que dois e três juntos ocasião se apresente; e, se achar que
produzem o número cinto, e outras existe um, devo também examinar se
coisas semelhantes, não as concebia eu ele pode ser enganador: pois, sem o
pelo, menos bastante claramente para conhecimento dessas duas verdades,
assegurar que eram verdadeiras? Cer- não vejo como possa jamais estar certo
tamente, se julguei depois que se podia de coisa alguma, E a fim de que eu
duvidar destas coisas, não foi por possa ter a ocasião de examinar isto
putra razão senão: porque me veio ao
RS “Produz-se, em consegiencia, uma oscilação
espírito que talvez algum Deus tivesse entre w fato e o direito, entre a certeza
do Tato de
podido me dar uma tal natureza que eu que-sou-quando penso ga dúvida absoluta que man-
me enganasse mesmo no concernente tém dé direito a hipótese do Deus enganador...
Assim, enquanto o Cogito: constitui o único ponto
às coisas que me parecem as mais de apoio para é ciência, a ciência... é impossível,
manifestas. Mas todas as vezes que pois, desde que meu espírito deixa de fixar-se no
esta opinião acima concebida do sobe- Cogito para se dirigir alhures, este ponto de apoio
se abisma na noite-da dúvida universal, arrastando
consigo foda a cadeia das razões.” (Guéroult, Des-
48 A respeito desta regra, cf. 561. cáries, E, pães: 1585-157.)
MEDITAÇÕES 109
sem interromper a ordem de meditação 7. Agora”*, no que concerne às
que me propus, que é de passar grada- idéias, se as consideramos somente
tivamente das noções que encontrar netas mesmas e não as relacionámos à
em primeiro lugar no meu espírito para alguma outra coisa, elas não podem,
aquelas que aí poderei achar depois*?, propriamente falando, ser falsas; pois;
cumpre aqui que eu divida todos os quer eu imagine uma cabra ou uma
meus pensamentos em certos Bêneros e quimera, não é menos verdadeiro que
considere em quais destes gêneros há eu imagino-tanto uma quanto a outra,
propriamente verdade ou erro. 8. Não é preciso temer também que
se possa encontrar falsidade nas afec-
6. Entre meus pensamentos, alguns
ções ou vontades; pois, ainda que
são como as imagens das coisas, e só
possa desejar coisas más, ou mesmo
àqueles: convém propriamente o nome que jamais existiram, não é pór isso,
de idéia *?: como no momento em que
todavia, menos verdade que as desejo.
eu represento um homem ou uma qui-
9. Assim, restam tão-somente os
mera, OU O Céu, ou um ano, ou mesmo: juízos, em relação aos quais eu devo
Deus. Outros, além disso, têm algumas
outras formas: como, no momento em
acautelar-me para não me enganar 8,
Ora, o principal erro e'o mais comum
que-eu quero, que eu temo, que;eu afir-
que se pode encontrar consiste em que
mo ou que eu nego, então concebo
eu julgue que as idéias que estão em
efetivamente umá coisa. como o sujeito
mim são semelhantes ou conformes às
da ação de meu espírito, mas: acres-
coisas que estão fora de mim; pois,
cento também alguma outra coisa por
certamente, se eu considerasse as
esta ação à idéia que tenho daquela
idéias apenas como certos modos ou
coisa *3; e deste gênero de pensamen-
formas de méu perisamento, sem que-
tos, uns são chamados vontades ou
ter relacioná-las a algo de exterior,
afecções, € outros juízos.
mal* º poderiam elas dar-me ocasião
de falhar.
51 Afim de varrer definitivamente a dúvida, procu- 10. Ora, destas idéias, umas me
rar-se-á a “ocasião” de provar que há um Deus e
que ele não é enganador, mas sem interromper, no parecem*7 ter nascido comigo, outras
entanto, a Cadeia das razões. Donde, atéq 815,0 ser estranhas e vir de fora, e as outras
exame minucioso dos dados em meu poder sobre os ser feitas e inventadas por mim
quais: eu poderia eventualmente: basear minha
prova.
5? Esta definição da idéia como cópia-na qual se 54 Segunda classificação: quais são, dentre-os-con-
anuncia um original (a idéia-quadro) reaparecerá teúdos anteriores, aqueles em que podemos nbs
muitas vezes nesta Meditação. Importa tânto mais Rar? Todos, salto os juízos.
sublinhar que os termos: “como uma imagem” cons- *5 Enquanto conteúdo de pensamento, O juizo é
tituem apenas uma comparação destinada a expli- tão certo como os outros: (parece-me-que eu. jul-
car a função-da idéia. Não se trata, de forma algu- 80... .). Mas cumpre Exclui Tá da indagação, na me-
ma, de assimilar a idéia intelectual à imagem dida em que Consiste Em afirmar ou em negar sem
sensível, CE o protesto contra Hobbes nas Ferceiras fundamento, que o conteúdo de-minha idéia porres-
Respostas: “Pelo nome de idéia, ele quer somente ponde a uma realidade fora dela. Ou-ainda: afirma
que se-entendam aqui as imagens das coisas mate- Ou nega que o conteúdo de uma idéia (sua “reali
riais pintadas na fantasia torpórea; e sendo isso dade objetiva”) possui um valor objetivo, sem exa-
suposto, é-lhe fácil mostrar que não se pode ter minar previamente o conteúdo desta idéia,
nenhuma idéia própria e verdadeira de Deus nem de 5% Restrição quetem sua importância. Tornar-se-á
um anjo. -"; assim como G Z: “Pelo nome de compreensivel no$: 19 desta Meditação:
idéia. -. * Sobre a novidade do sentido dado por 82 “Parecem” indica que Descartes se coloca no
Descartes à palavra “idéia”, cf. Gilson, Discours, nível do senso comum. Aqui, com efeito, começa a
pág. 319. crítica da classificação: das idéias segundo o senso
*3 Por-esta primeira classificação, distinguem- -se: comume dos preconceitos que ela implica — ê£ o
Lº as idéias; 27 os conteúdos nos quais uma ação “primeiro caminho” possivel da investigação; o
do espirito-se acrescenta às idéias, segundo micia-se no'$ 15.
Ho DESCARTES
mesmo. Pois, que eu tenha a faculdade e convincentes ?º. Quando digo que me
de conceber o que é aquilo que geral- parece que isso me é ensinado pela
mente se chama uma coisa ou uma ver- natureza *º, entendo somente por essa
dade, ou um pensamento, parece-me palavra natureza uma certa inclinação
que não o obtenho em outra parte que me leva a acreditar nessa coisa, €
senão em minha própria natureza; mas não uma luz natural que me faça
se ouço agora algum ruído, se vejo o conhecer que ela é verdadeira. Ora,
sol, se sinto calor, até o presente jul- essas duas coisas diferem muito entre
guei que estes sentimentos: procediam si; pois eu nada poderia colocar em dú-
de algumas coisas que existem fora de vida daquilo que-a luz natural me reve-
mim; e enfim parece-me que as sereias, la ser verdadeiro, assim como ela me
os hipogrifos e todas as outras quime- fez ver, ha pouco, que, do fato de eu
ras semelhantes são fieções e inven- duvidar, podia concluir que existia. E
ções de meu espírito. Mas também tal. não tenho em mim outra faculdade, ou
vez eu possa persuadir-me de que poder, para distinguir o verdadeiro do
todas essas idéias são do gênero das falso, que me possa ensinar que aquilo
que eu chamo de estranhas e que vêm que essa luz me mostra como verda-
de fora ou que nasceram todas comigo deiro não o é, e na qual eu me possa
ou, ainda, que foram todas feitas por fiar tanto quanto nela. Mas, no que se
mim; pois ainda não lhes descobri cla- refere a inclinações que também me
ramente a verdadeira origem. E o que parecem ser para mim naturais, notei
devo fazer principalmente neste ponto frequentemente, quando se tratava de
é considerar, no tocante aquelas que escolher entre-as virtudes é os vícios,
me parecem vir de alguns objetos loca- que elas não me levaram menos ao mal
lizados fora de mim, quais as razões do que ao bém; eis por que não tenho
motivo de segui-las tampouco no refe-
que me obrigam a acreditá-las seme-
lhantes a esses objetos: rente ao verdadeiro e ao falso.
I3. E, quanto à outra razão, segun-
tl. A primeira dessas razões é que do a qual essas idéias devem provir de
me paréce qué isso me é ensinado pela alhures, porquanto não dependem de
natureza; é a segunda, que experi- minha vontade, tampouco a acho mais
mento em mim próprio que essas convincente*º, Pois, da mesma forma
idéias não dependem, de modo algum, que as inclinações, de que falava hã
de minha vontade; pois amiúde se pouco, se encontram em mim, não obs-
apresentam a mim mau grado meu, tante não se acordarem sempre com
como agora, quer queira quer não, eu minha vontade, e assim talvez haja em
smto calor, e por esta razão persuado- mim alguma faculdade ou poder pró-
me de que este sentimento ou esta idéia prio para produzir essas idéias sem
de calor é produzido em mim por algo
diferente de-mim mesmo, Ou seja, pelo SE Começo da crítica do senso comum, que
compreenderá três argumentos,
calor do fogo ao pé do qual me encon- 5º Primeiro àrgumento: impossibilidade de confiar
tro. E nada vejo que pareça mais num instinto pretensamente “natural”.
razoável do que julgar que essa coisa &o Segundo argumento: ... nem na independência
aparente das idéias adventicias em relação à minha
estranha envia-me € imprime em mim vontade, para concluir que essas idéias têm certa:
sua semelhança, mais do que qualquer mente por origem uma: coisa exterior a mim: É de
notar que a idéia de uma faculdade desconhecida
outra coisa. que Era rejeitada na Meditação Segunda, porque ela
não podia valer contra uma idéia clara e distinta, é
12. Agora é preciso que eu veja se aqui admitida: Mas é para mostrar que nada posso
estas razões são suficientemente fortes concluir-na ausência de uma idéia clara e distinta.
MEDITAÇÕES ul
auxílio de quaisquer coisas exteriores, formas de pensar, não reconheço entre
embora ela não me seja ainda conheci- elas nenhuma diferença ou desigual-
da; como, com efeito, sempre me pare- dade, e todas parecem provir de mim
ceu até aqui que, quando durmo, elas de uma mesma maneira; mas, conside-
se formam em mim sem a ajuda dos rando-as como imagens, dentre as
objetos que representam, E, enfim*?!, quais algumas representam uma coisa
ainda que eu estivesse de acordo que e as outras uma outra, é evidente que
elas são causadas por esses objetos, elas são bastante diferentes entre si.
não é uma conseguência necessária Pois, com efeito, aquelas que me repre-
que lhes devam ser semelhantes. Pelo sentam substâncias são, sem dúvida,
contrário, notei amiúde, em muitos algo mais:e contêm em si (por assim
exemplos, -haver uma grande diferença falar) mais realidade objetiva, isto é,
entre o objeto e sua idéia. Como, por participam, por representação, num
exemplo, encontro em meu éspírito maior número de graus de ser ou de
duas idéias do sol mteiramente diver- perfeição do que aquelas que repre-
sas: uma toma sua origem nos sentidos sentam apenas modos ou acidentes *º.
e deve-ser colocada no: gênero daquelas Além do mais, aquela pela qual eu
que disse acima provirem de fora, e concebo um Deus soberano, eterno,
pela qual o sol me parece extrema- infinito, imutável, onisciente, onipo-
mente pequeno; a outra é tomada nas tente e criador universal de todas as
razões da Astronomia, isto é, em cer- coisas que estão fora dele; aquela,
tas noções nascidas comigo. ou, enfim, digo, tem certamente em si mais reali-
é formada por mim mesmo, de qual- dade objetiva do que aquelas pelas
quer modo que seja, e pela qual o sol quais as substâncias finitas me são
me parece muitas vezes maior do que-a representadas.
16. Agora, é coisa manifesta pela
terra. inteira. Por certo, essas duas
idéias que concebo do sol não podem
s7 Terceiro argumento. É o mais importante,
ser ambas semelhantes ao mesmo sol; Supondo-se que à idéia tem de fato por origem uma
ea razão me faz crer que aquela que coisa Exterior, dai não resulta, no entanto, que ela
lhe seja semelhante, O juizo sobre:a origem (X- é
vem imediatamente de sua aparência é causa de Y) não autoriza, de modo algum, o juízo
a que lhe é mais dessemelhante. sobre o valor objetivo (Y assemelha-se a X). Assim
14, Tudo: isso me leva a conhecer fica definitivamente afastada a “via” do senso
comum.
suficientemente que até esse momento 52 “Eu não poderia dizer que ainda se apresenta
não foi por um julgamento certo e outra via se não houvesse anteriormente rejeitado
premeditado, mas apenas por um cego todas 4s outras-e, por este meio, preparado o leitor
a melhor conceber o que eu tinha a escrever” (A.
e temerário impulso, que acreditei T.. V; 354). Tendo decidido elimmar os “juízos” de
haver coisas fóra de mim, e diferentes que parte o senso comum, partiremos das idéias
de meu ser, as quais, pelos órgãos de Somente, & perguntaremos: existem idéias tais que
não posso deixar de lhes reconhecer valor: “objetivo?
meus: sentidos ou por qualquer outro Por “ocasião” desta pesquisa é-que será demons-
meio que séja, enviam-me suas idéias trada:a existência-de Deus:
ou imagens e imprimem em mim suas 83 Cf G 23. — A “diferença” entre os conteúdos
não apenas -a diferença desses conteúdos
semelhanças, mesmôs. uma cadeira, um pedaço de cera, um gene-
15. Mas há ainda uma outra via S2 ral), mas também a diferença de “seus graus-de ser
ou de perfeição”, conforme o objeto: que represen-
para pesquisar se, entre as coisas das tam. “Perfeição” “designa Um bem que se deve natu-
quais tenho em:mim-as idéias, há algu- rálmente possuir e, como tal, pertence pois ao ser
mas: que existem fora de mim. A saber, (sf. Gilson, Discours, 317). — Esta diferença quan-
titativa entre os graus-de ser-dos conteúdos possibr-
caso essas idéias sejam tomadas so- litarã a aplicação do princípio de causalidade, enun-
mente na medida em que são certas ciado adiânte.
H2 DESCARTES

luz natural que deve haver ão menos zido em um objeto que dele era priva-
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for por uma
total quanto no seu efeito: pois de onde coisa que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a idéia
tivesse em simesma 8*? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre* 5 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma, mas também que o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque-
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois, ainda que essa causa não trans-
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali-
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente nos seus efei- deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi- sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha- nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espirito, do qual
pode agora começar a ser, se não for elaé apenas um modo, isto é, uma
produzida. por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen- fim: de que uma idéia contenha uma tal
teº 8, tudo o que entra na composição realidade: objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contém em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu-
mesmas coisas ou outras mais excelen- ma causa, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tanta realidade formal. quanto
na pedra; e o calor não pode ser produ- esta idéia contém de realidade objeti-
vaº?, Pois, se supomos que existe algo
** Primeiro princípio invocado como “manifesto
pela luz natural”; princípio de causalidade (cf. ZIT'e
G 20, 21). Mas será este princípio, enunciado geral- 87 Do ponto de vista de sua realidade formal, as
mente, aplicável ao caso das idéias que nos preocu- idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Dat a-necessidade de completâ-lo como prin- mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cipio expresso no: parágrafo segumte, que Guéroult “aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: “princípio de correspondência da idéia é que o próprio entendimento é a causa delas”, (PrÊ-
de seu ideatum”. meiras Respostas.) Trata-se de uma inovação de
98 Nesse parágrafo difícil, mostra-se que o princi Descartes. Para-a Filosofia tomista, “não havia Re
pio-de causalidade vale tanto no caso de uma “reali blema especial da-causa do conteúdo das idéias;.
dade atual ou formal” quanto;no caso de uma “rea- porque este conteúdo; não sendo considerado como
lidade objetiva”, Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria...
existente em ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re-
que há na causa que à prodúziu
pelo menos tanta Ep uma caúsa (o intelecto que apreende « forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja pedra); mas:o ser objetivo de meu conceito não a
ágora & Idéia que eu tenho desta substância (isto €, requer”. (Gilson, Discours, 322) Com Descartes,
uma “realidade otra € não mais uma “reali o contrário, Colóca-se uma questão 'que pára a
dade atual ou formal”).É igualmente evidente: que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
hã no ser existente (“atual ou formalmente”) que é idéia para afirmar oo que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta “realidade objetiva”) “ComoNIE queo sendo para nós & o próprio RE
pelo menós tanta realidade Quanto nesta idéia traduz Guéroult, ao fim de-seu livro. (Op. cit,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia Read di 4
E Uma causa contém “formalmente” seu-cfeito ontologia do que se convencionou chamar “o idea-
quando eta lhe & homogênea,e o contém “eminente- lismo: moderno”,
de Fichre a Husserl que'aqui se
mente”, no caso contrário. CF.G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113

na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte- algo de-maior ou de mais perfeito 7º.
nha esse algo do nada; mas, por imper-
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado-
qual uma coisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco-
idéia º8, decerto não se pode dizer, no nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse- Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen-
formalmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que-eu con- posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje- decorre necessariamente que não exis-
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que hã
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que é a causa
suas causas *?; pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas, terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de-ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras € mesmo; pois procurei-os a todos: cui-
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorper que uma encontrar nenhum 7?,
idéia dê origem a uma outra idéia, isso
todavia não pode estender-se ao infimi- 19. Ora, entre essas idéias, além
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou-
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre- outras os anjos, outras os animais,
sentação néssas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho-
luz natural me faz conhecer evidente- mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às idéias que me representam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 79 Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o; anterior; faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do: Grande -Embusteiro,
** Há imperfeição na medida em que o conteúdo Ísso não “significa que as Idéias sejam efetivamente
representativo É privado da existência própria ão às imagens das coisas, porém me' permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respostas: “A aplicar o princípio de causalidade entre uma reali
maneira de ser pela-qual uma'coisa existe objetiva: dade objetiva-e-uma-realidade atual:
mente ou por representação no entendimento por 71 Recapitulação da exposição precedente (desdeo
sua idéiaé imperfeita”, 8 15) e posição do' problema; encontrarei cu uma
52 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal qué me seja
causa outra idéia e-assim sucessivamente ao infini- absolutamente impossível imputar à sua causa -a
to? Resposta; esta regressão É possivel, mas, cedo meuwexclusivo pensamento? Esta posítio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali- exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade “formal ou atual”. dos diversos gêneros de Idéias.
14 DESCARTES

concebo facilmente que podem ser for- falsidade material 7*, a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
Outras idéias que tenho das coisas cor- fosse alguma coisa. Por exemplo. as
idéias que tenho do calor e do frio são
porais e de Deus, ainda que não hou-
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros que por seu intermédio não posso dis-
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva-
anjos 72, E quanto às idéias das coisas ção do calor ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran- do frio, ou ainda se uma e outra são
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que: ima-
pois, se as considero de mais perto, € gens, não podé haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi-
edistintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, é assim outras idéias semelhan-
tes; às quais certamente não é neces-
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis-
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural mé faz conhecer que
entre si; e o movimento ou a:modifica- procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e q minha natureza e porque ela não é
número 73, Quanto às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, Os sons, os ado- são verdadeiras, todavia, já que me
res, os sabores, O calor, o frio é as ou- revelam tão pouca realidade que não
posso discernir nitidamente a coisa
tras qualidades que caem sob o tato, representada. do não-ser, não vejo
encontram-se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ-
com tanta obscuridade e confusão que zidas por mim mesmo e eu não possa
ignoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 7 >.
falsas e somente aparentes, isto é, se às
idéias que concebo. dessas qualidades 24 Cf a nossanota ao $ 9. Além da falsidade for-
mal, que é caso do juizo, temos a Falsidade material,
são, com efeito, as idéias de algumas dévida ao fato de certas idéias (sensíveis) serem ape-
coisas reais, Ou se não me representam nas pseudo-idéias, isto é, se apresentarem faisa-
apenas seres quiméricos que não mente a mim como dotadas de um caráter represen-
tativo. Mas existirão, no sentido estrito; idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha completamente falsas a natureza? Não é aqui o
notado acima que só nos juízos é que lugar de decidido. O fim do parágrafo levar-nos-á
simplesmente a observar que, mesmo que essas
se pode encontrar a falsidade formal e idéias fossem verdadeiras idéias, comportam pelo
verdadeira, pode, no entanto, ocorrer menos um minimo -de- realidade objetiva e, como
que se encontre nas idéias uma certa tais, poderiam muito bemser produzidas por mim
mesmo, É a única questão que nos interessa aqui.
75. Logo: B)Exclusão das idéias das qualidades sen
22 A) Exclusãodas realidades “animadas” (no senti- síveis corpóreas; Em-525, Descartes chama a aten-
do não estritamente cartesiano, visto que são incluí: ço de Gassendi para o fato de nunca ter dito que as
das as idéias dos animais). idéias das coisas sensíveis derivavam do espirito:
73 O exame dás-idéias claras e distintas das-coisas “Somente: mostréi naquele pónto nao haver nelas
“corporais « inanimadas” É remetido ao parágrafo tanta-realidade. . - que-se-deva-concluir que elas
seguinte: não podiam derivar do espírito só”.
MEDITAÇÕES 15

20. Quanto às idéias claras e distin- somente certos modos da substância, e


tas que tenho das coisas corporais,
há como que as vestes sob as quais a
algumas dentre elas: que, parece, pude substância corporal nos aparece, e que
tirar da idéia que tenho de mim sou, eu mesmo, uma substância, parece
mesmo? *, como:a que tenho da subs- que elas podem estar contidas em mim
tância, da duração, do númeroé de ou- eminentemente”? *.
tras coisas semelhantes. Pois. quando: 22. Portanto, resta tão-somente a
penso que a pedra é uma substância, idéia de Deus, na qual é preciso consi-
ou uma coisa que é por si capaz de derar se há algo que não possa ter pro-
existir, é em seguida que sou uma subs- vindo de mim mesmo? Pelo nome de
tância, embora eu conceba de fato que Deus entendo uma substância infinita,
sou uma coisa pensante e não extensa, eterna, imutável, independente, onis-
e que a pedra, ao contrário, é uma ciente, onipotente e pela qual eu pró-
coisa extensa e não pensante, e que, prio e todas as coisas que são (se é ver-
assim, entre essas duas concepções há dade que há coisas que existem) foram
uma notável diferença, elas parecem, criadas e produzidas. Ora, essas vanta-
todavia, concordar na medida em que gens são tão grandes é tão eminentes
representam substâncias? 7,Da mesma que, quanto mais atentamente-as consi-
maneira, quando penso que sou agora
dero, menos me persuado de que essa
e me lembro, além disso, de ter sido
idéia possa tirar sua origem de mim
outrora é concebo mui diversos persa-
tão-somente. E, por conseguinte, é pre-
mentos, cujo número conheço, então ciso necessariamente concluir, de tudo
adquiro em mim as idéias da duração e o que foi dito antes, que Deus existe*º;
do número que, em seguida, posso
pois, ainda que a idéia da substância
transferir a todas as outras coisas que
esteja em mim, pelo próprio fato de ser
quiser 78, eu uma substância, eu não teria, toda-
21. Quanto-às outras qualidades de via, à idéia de uma substância infinita,
cujas idéias são compostas as coisas eu que sou um ser finito, se ela não
corporais, a saber, a extensão, a figura, tivesse sido colocada em mim por al-
a situação e o movimento de lugar, é
verdade que elas não estão formal- 2º DyExclusão da segunda classe das idéias das coi-
mente em mim, posto que sou apenas sas Corporais, isto é, das idéias “dos atributos que
pertencem às coisas às quais são atribuídas”. (Prin-
uma coisa que pensa; mas, já que são cípios, 1,57.)
80 Aplicação do mesmo princípio de causalidade,
78 C) Exclusãode uma primeira classe de idéias das Contendo um máximo de realidade objetiva, a idéia
Coisas Corporais. de Deus envia necessariamente 4 uma causa que
conterê; no mínimo, um máximo absoluto de-reali-
77 “A noção que temos da substância-criada refe- dade Tormal. Como eu não posso ser esta causa; &
re-se da mesma maneira a todas, isto É, aquelas que mister Concluir-que Deus existe. Até agora procura-
são imateriais assim como áquelas que são mate- Va-se apenas, aparentemente. que idéia em mim
riais:ou corporais; pois, para entender que são subs- podia ser; ida como investida de;um valor
tâncias, é preciso apenas perceber que podem existir objetivo. Acabamos de: acha-la, mas achamos ao
sem a ajuda dé qualquer Coisa criada.” (Princípios, mesmo tempo a' primeira prova da existência de
1, 52.) Esta univocidade, de que se lança mão aqui. Deus pelos efeitos. Este 8: 22 constitui uma volta
vale: apenas: para as “substancias criadas”, pois a decisiva. Pois-a quarta verdade que acabamos assim
pilavra “substância”, em compensação, já não tem de estabelecer não é da mesma ordem que as prece-
G mesmo sentido quando aplicada a Deus é as cria- dentes: ela Confére, por exemplo, sua verdade ao
turas. (Mbid;, $513 Cogito, ainda que eu não pense nele atugimente;Ela
78 CÊ Princípios, |, 55:“Pensamos somente que-a: abole.o. poder do Grande. Enganador, para nos
duração -de-cada coisaé um modo-ou uma maneira transferir ao de um Deus:garante da verdade de mi-
como consideramos cada coisa enquanto ela conti- nhas: idéias elaras e dislintas, Veja-se, 'a respeito
nua sendo";€ 57, deste ponto, a obra de Guéroult.
16 DESCARTES

guma substância que fosse verdadeira- semelhantes: pois, ao contrário, sendo


mente infinita”. ] esta idéia mui clara e distinta, e con-
23, E não devo imaginar*? que não tendo em si mais realidade objetiva do
concebo:o infinito por uma verdadeira que qualquer outra, não há nenhuma
idéia, mas somente pela negação do que seja por si mais verdadeira nem
que é finito, do mesmo modo que com- que possa ser menos suspeita de erro é
preendo o repouso e as trevas pela de falsidade.
negação do movimento e da luz; pois, 25. A idéia, digo, desse ser sobera-
ao contrário, vejo manifestamente que namente perfeito e infinito é inteira-
há mais realidade na substância infi- mente verdadeira; pois, ainda que tal-
nita do que na substância finita e, por- vez se possa fingir que um tal ser não
tanto, que, de alguma maneira, tenho existe, não se pode fingir, todavia, que
em mim a noção do infinito anterior- sua idéia não me representa nada de
mente à do finito, isto é, de Deus antes real, como disse há pouco da idéia do
que de mim mesmo, Pois. como seria frio,
possivel que eu pudesse conhecer que 26. Esta mesma idéia é também mui
duvido e que desejo, isto É, que me clara e distinta porque tudo o que meu
falta algo e que não sou inteiramente espírito concebe clara e distintamente
perfeito, se não tivesse em mim nenhu- de real e de verdadeiro, e que contém
ma idéia de um ser mais perfeito que o em si alguma perfeição, estã contido e .
meu, em comparação ao qual eu encerrado inteiramente nessa idéia.
conheceria as carências de minha 27. E isto não deixa de ser verda-
natureza*3? deiro, ainda que eu não compreendao
24. E não se pode dizer que esta infinito, ou mesmo quese encontre em
idéia de Deus talvez seja material- Deus uma infinidade de coisas que eu
mente falsa, e que, por conseguinte,
eu não possa compreender, nem talvez
a possa ter do nada, isto é, que ela também. atingir de modo algum pelo
possa estar em mim pelo fato de eu ter pensamento: pois é da natureza do infi-
carência, como disse acima, das idéias nito que minha natureza, que é finita e
de calor é de frio é de outras coisas limitada, não possa compreendê-lo; e
basta que eu conceba bem isto, e que
st “FE manifesto que tudo o.que concebemos:ser em julgue que todas as:coisas que concebo
Deus dessemelhante às cojsas externas-não pode vir claramente, e nas quais sei que há al-
ao nosso pensamento por intermédio destas “prá-
prias coisas, mas somente por mtermédio da causa guma perfeição, e talvez também uma
pie diversidade, isto é, Deus.” (Terceiras Respos- infinidade de outras que ignoro, estão
h em Deus formal ou eminentemente,
“= Aqui começa, até o 5:29, uma reflexão sobre à
prova que acabo de obter; sua certeza Eng para que a idéia que dele tenho seja a
ts Cf 526 e 563. — Sobre a precessão
da mais verdadeira, a mais clara e a mais
de infinito com ru à noção de finito, cf.é ol
com Burman(A, T., V, 153) 6, sobretudo, o seguinte distinta dentre todas as que se acham
texto que nos indica à orientação antidialética de em meu espirito* 4,
uma tal doutrina: “Nós não lemos a inteleéção do 28. Mas é possível também que eu
infinito por negação da limitação; c-do fato de a
limitação conter anegação do mfinito infere-se erra- seja algo mais do que imagino ser e
damente que a negação da limitação contém o que todas as perfeições que atribuo à
conhecimento do iifinito; posto que aquito pelo quê natureza de um Deus estejam de algum
o infinno difere do finito é real e positivo; mas, ao
contrário, a limitação pela qual o finito difere-do
infinitoé não-ser ou negação do ser; óra, o que não 84 Não-só posso conhecer o infinito sem o “com-
É não pode conduzir ao conhecimento do que é; preender”, mas o conhecimento desta incompreensi-
mas, inversamente, sua negação deve ser percebida bilidade me concede um conhecimento verdadeiro e
Ea do conhecimento da coisa”: (A. T. Il, pag: inteiro do infinito, embora cu tenha apenas um
conhecimento parcial do que ele contém:
MEDITAÇÕES 117

modo em mim em potência, embora capaz de adquirir algum maior acrés-


ainda não se produzam e não façam cimo. Mas concebo Deus atualmente
surgir suas ações. Com efeito, já perce- infinito em tão alto grau que nada se
bo que meu conhecimento aumenta é pode acrescentar à sobérana perfeição
se aperfeiçoa pouco a pouco e nada que ele possui. E, enfim, compreendo
vejo que o possa impedir de aumentar muito bem que-o ser objetivo de uma
cada vez mais até o infinito! *, pois, idéia não pode ser produzido por um
sendo assim acrescido e aperfeiçoado, ser que existe apenas em potência, o
nada vejo que impeça que eu possa qual, propriamente falando, não é
adquirir, por seu meio, todas as outras nada, mas somente por um ser formal
perfeições da-natureza divina; e, enfim, owatual.
parece que o poder que tenho para a 29. E por certo nada vejo em tudo o
aquisição dessas perfeições, se ele exis- que acabo de dizer que não seja muito
te em mim, pode ser capaz de aí impri- fácil de conhecer pela luz natural a
mir e introduzir suas idéias. Todavia, todos os que quiserem pensar nisto
olhando um pouco mais de perto, reco-
nheço que isto não pode-ocorrer; pois, cuidadosamente: mas, quando abrando
um pouco minha atenção, achando-se
primeiramente, ainda que fosse verda-
meu espírito obscurecido e como que
de que meu conhecimento adquire
cegado pelas imagens das coisas sensi-
todos os dias novos graus de perfeição
veis, não se lembra facilmente da razão
e que houvesse em minha natureza
pela qual a idéia que tenho de um ser
muitas coisas em potência que não
mais perfeito que o meu deva necessa:
existem ainda atualmente, todavia
riamente ter sido colocada em mim por
essas vantagens não pertencem e não
um ser que seja de fato mais perféi-
se aproximam de maneira alguma da
1088.
idéia que tenho da Divindade, na qual
30. Eis por que desejo passar adian-
nada se encontra em potência, mas
te e considerar se eu mesmos, que tenho
onde tudo & atualmentee efetivamente. essa idéia de- Deus, poderia existir, no
E não será mesmo um argumento infa- caso de não haver Deus. E, pergunto,
lível e muito seguro de imperfeição em
de quem tirarei minha existência? Tal-
meu conhecimento o fato de crescer ele
pouco a pouco é aumentar gradativa- vez de mim mesmo, ou de meus pais,
mente? Demais, ainda que meu conhe- ou ainda de quaisquer outras causas
cimento aumentasse progressivamente, menos perfeitas que Deus; pois nada se
nem por isso deixo de conceber que ele pode imaginar de mais perfeito, nem
não poderia ser atualmente infinito, mesmo de igual a ele.
porquanto jamais chegará a tão alto 31. Ora, se eu fosse independente de
grau de perfeição que não seja ainda todo outro ser, e fosse eu próprio o
autor de meu ser??, certamente não
** Dai porque Descartes não poderá perceber duvidaria de coisa alguma, não mais
contradição na noção do “maior dé todos os núme- conceberia desejos e, enfim, não me
ros”: o que me impede dé enumerar indefinidamente
ou talvez mesmo infinitamente? Mas poderei por no faltaria perfeição alguma; pois eu me
mesmo: plana este infinito que-o meu conhecimento teria dado todas aquelas de que tenho
é talvez capaz de alingir (nada sei dele) é a presença alguma idéia é assim seria Deus,
atual do infinitoà qual me envia à idéia de Deus? A
idéia dominante desse parágrafo é a oposição entre
o atualmente infinito eo infinito que não se-pode “* Sobre à sentido da segunda prova (que aqui se
distinguir do indefinido. (Cf. Priteípios, 1 27) enceta), Cl. 213.
Asérca da origem e do alcance matemático dessas 87 Priméiro momento desta prova: posso eu ser
noções. consultar o cap, IV do Leibniz Critique de por mim mesmo? A JAdmitamos que sous o autor de
Descartes, de Belaval.
18 DESCARTES

32. E não devo imaginar que as coi- maneira alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez mais difi- fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quais já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e me crie, por assim
mais dificil que eu, isto é uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente?º (para todos os
luzes é- os conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu-
Coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos os
sem dificuldade, se eu mesmo me tives- momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria necessário para produzila e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi- anda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber, de muitos conhecimentos de que ea criação não diferem senão com res-
minha natureza está despojada*º; não peito à nossa maneira de pensar, e não
me teria tampouco privado de nenhu- em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas. na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
hã nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
dificil aquisição; e se houvesse alguma, modo que eu, que sou agora, seja ainda
certamente ela me pareceria tal (su- no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
outras coisas que possuo), porque eu que não se trata até aqui precisamente
senão dessa parte de mim mesmo), se
sentiria que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto & não seria capaz dé alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne-
nhum poderem mim?! e por isso reco-
agora*?, nem por isso poderia evitar à
nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessário que Deus 35. Poderã também ocorrer que este
seja o autor de minha existência, Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode-ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, oeu-por meus pais ou por outras-causas
cada uma das: quais não depende de
2º Cumpre justificar a equação entre criação e
es É impossível, em virtude do princípio; “Quem conservação, colocada-ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos”. Ora, é mais difícil criar esem-a-qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas trata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamais são algo exceto acidentes (of. descontinuidade dos momentos do tempo.
G 23), Logo, como não posso produzir o.menos (as *1 Cfo 8 13, onde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia), não posso produzir o desconhecida não: era: repelida; mas tratava-se de
mais (ser o autor do meu ser). À hipótese é absurda, uma faculdade “própria para produzir idéias”, e
*º B) Admitamos que eu exista sem causa. À aquitrata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade ea independência dos momentos a mim próprio: tom meu desconhecimento, Ora,
do tempo. invalidam de pronto esta hipótese, por: dado que:eu aqui me considero :sempre como sendo
quanto implicam a necessidade para mim de ser nada muis do que uma-coisa pensante; tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável.
MEDITAÇÕES 149

menos: perfeitas do que eleº2? Muito não pode haver progresso até o infini-
ao contrário, isso não pode ser assim. to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que devé haver ao da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto
36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou
talvez muitas causas juntas tenham
urna coisa pensante, e tenho em mim
concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que e que de umarecebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à
perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria-
outra 4 idéia de alguma outra, de sorte
mente: confessar que ela deve ser de
que todas essas perfeições se encon-
igual modo uma coisa pensante e pos-
tram na verdade em alguma parte do
suir em-si a idéia de todas as perfeições Universo, mas não se acham todas jun-
que atribuo à natureza divina??, Em tas e reunidas em umáã só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
essa causa tem sua origem e sua exis-
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
tência de si mesma ou de alguma outra simplicidade ou a inseparabilidade de
coisa. Pois se ela a tem de si própria” *, todas as coisas que existem em Deus é
uma das principais perfeições que con-
segue-se, pelas razões que anterior-
mente aleguei, que deve ser, ela cebo existentes nele; e por certo a idéia
mesma, Deus; porquanto, tendo a vir-
dessa unidade e reunião de todas as
perfeições de Deus não foi colocada
tude'de ser e de existir por si, ela deve
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen- maispode ter feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
siº'?, tornar-seá a perguntar, pela eram e que as conhecesse a todas de al-
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira”*.
causa, se ela é por st, ou por outrem, 37. Noque se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci-
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res-
peito, daí não decorre todavia que
*2 Segundo momento:da prova: cu sei agora “que sejam eles qué me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim”, mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
*3 Invocação do princípio de causalidade é aplica- coisa pensante, pois aperias puseram
ção ao-caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
*s A) Esta causa estranha existe -por st, ela deve,
portanto, caúsar-se com todas às perfeições de que qual julgo que eu, isto é, meu espírito
tenho idéia. Portanto ela é Deus. — a única coisa que considero atual-
25 B) Esta casa é, por sua vez, produzida por mente como eu próprio — se acha
outra, mas é possivel remontar assim indefimida-
menté na série das causas? Não; aqui, não nos encerrado; e, portanto, não pode haver
assiste O direito, pois não se trata da causa que'me aqui, quanto a eles, nenhuma: dificul-
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa-
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do lempo, Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à Idéia cartesiana do tempo,
ra RM Fisica: (CE Guérouit, op. cito, págs:
21 48 Cf. Col.com Burman; A. T., Vopãgs: 15455.
120 DESCARTES

eu existo e de que a idéia de um ser coisa imperfeita, incompleta é depen-


soberanamente perfeito, isto é, Deus, é dente de outrem, que tende é aspira
em mim, a existência de Deus está mui incessantemente a algo de melhor e de
evidentemente demonstrada? 7, maior do que sou, mas também conhe-
38. Resta-me apenas examinar de ço, ao mesmo tempo, que aquele de
que maneira adquiri esta idéia. Pois quem dependo possui em si todas essas
não a recebi dos sentidos e nunca ela grandes coisas a que aspiro € cujas
se ofereceu a mim contra:minha expec- idéias encontro em mim, não indefini-
tativa, como o fazem as idéias das coi- damente e só em potência, mas que ele
sas sensíveis quando essas coisas se as desfruta de fato, atual e infinita-
apresentam ou parecem apresentar-se mente e, assim, que ele é Deus. E toda
aos órgãos exteriores de meus sentidos. a-força do argumento de que aqui me
Não é também umãá pura produção ou servi para provar a existência de Deus
ficção de meu espírito; pois não estã consiste em que reconheço que seria
em meu poder diminuir-lhe ou acres- impossível que minha natureza fosse
centar-lhe coisa alguma. É, por conse- tal como é, ou seja, que eu tivesse em
guinte, não resta outra coisa a dizer mim'a idéia de um Deus, sé Deus não
senão que, como a idéia de mim existisse verdadeiramente; esse mesmo
mesmo, ela nasceu e foi produzida co- Deus, digo eu, do qual existe uma-ídéia
migo desde o momento em que fui em mim, isto é, que possui todas essas
criado. altas perfeições de que nosso espírito
39. E certamente não se deve achar pode possuir alguma idéia, sem, no
estranho que Deus, ão me criar, haja entanto, compreendé-las a todas, que
posto em mim esta idéia para ser como não é sujeito a carência alguma e que
que a marca do operário impressa em nada tem de todas as coisas que assi-
sua obra; e não é tampouco necessário nalam alguma imperfeição.
40. Daí É bastante evidente que ele
que essa marca seja algo diferente da
não: pode ser embusteiro, posto que a
- própria obra. Mas pelo simples fato de
luz natural nos ensina que o embuste
Deus me ter criado?8, é bastante crível
depende necessariamente de alguma
que ele, de algum modo, me:tenha pro-
carência?”,
duzidoà sua imagem é semelhança e 41, Mas, antes de examinar mais
que eu conceba essa semelhança (na cuidadosamente isso e passar à consi-
qual a idéia de Deus se acha contida) deração das outras verdades que daí se
por méio da mesma faculdade pela podem inferir, parece-me muito a pro-
qual me concebo a mim próprio; isto pósito deter-me algum tempo na con-
quer dizer que, quando reflito sobre templação deste Deus todo perfeito,
mim, não só conheço que sou uma ponderar totalmente à vontade seus
maravilhosos atributos, considerar, ad-
87 Deus é colocado
como causa de si, autor-de
meu
ser E soberanamente perfeito. É a quinta verdade. mirar e adorar a incomparável beleza
Guéroult acentua que, se à primeira prova É a mais dessa imensa luz, ao menos na medida
importante (ao menos ma ordem das razões, que não em que a força de meu espírito, que
se-deve-confundir com a ordem das coisas). posto
que só ela me permite colocar Deus, passar do sub- queda de algum modo ofuscado por
jetivo ao objetivo, esta segunda prova, por seu ele, mo puder permitir.
tumo, me faz conhecer melhor quem ele é, CF. Prin- 42. Pois, como a fé nos ensina que a
cípios, 1, 22.
“ Todas as coisas criadas se parecem com seu
criador, pelo menos na medida-em que são, como “8 Assim fica cumprido'o programa em dois pon-
ele, substâncias, Quanto mais ser ele lhes concedeu, tos, traçadono $ 5: 1.º Deus existe; 2º Deus não é
mais elas se lhe parécem, enganador.
MEDITAÇÕES 121

soberana felicidade da outra vida não ção, embora incomparavelmente


consiste senão nessa contemplação da menos perfeita, nos faz gozar do maior
Majestade divina, assim perceberemos, contentamento de-que sejamos capazes
desde agora, que semelhante medita- de sentir nesta vida.
MEDITAÇÃO QUARTA???
Do Verdadeiro e do Falso

1. Acostumei-me de tal maneira ser completo e independente, ou seja,


nesses dias passados a desligar meu de Deus, apresenta-se a meu espírito
espirito: dos sentidos e-notei tão exata- com igual distinção é clareza; e do
mente que há muito poucas coisas que simples fato de que essa idéia se encon-
sé conhecem com certezano tocante às tra em mim, ou que sou ou existo, eu
coisas corporais, que há muito mais que possuo esta idéia, concluo tão
que nos são conhecidas quanto ao evidentemente a existência de Deus €
espírito humano, e muito mais ainda que-a minha depende inteiramente dele
quanto ao próprio Deus"º?, que agora em todos os momentos de minha vida,
desviarei sem nenhuma dificuldade que não penso que o espirito humano
meu pensamento da consideração das possa conhecer algo com maior evi-
coisas sensíveis ou imagináveis. para dência e certeza'º2. E já me parece
dirigilo aquelas que, sendo. despren- que descubro um caminho que nos
didás de toda matéria, são puramente conduzirá desta contemplação do ver-
“inteligíveis. dadeiro Deus (no qual todos os tesou-
2. E certamente a idéia que tenho ros da ciência e da sabedoria estão
do espírito humano, enquanto é uma encerrados) ao conhecimento das ou-
coisa pensante-é não extensa, em lon- tras coisas do Universo! 93,
gura, largura e profundidade, e que 3. Pois, primeiramente, reconheço
não participa de nada que pertence ao que é impossível que ele me engane
corpo, é incomparavelmente mais dis- jamais, posto que em toda fraude e
tinta do que a idéia de qualquer coisa embuste se encontra algum modo de
corporal. E quando considero que imperfeição. E, conquanto pareça que
duvido, isto é, que sou uma coisa poder enganar seja um sinal de sutileza
incompleta e dependente,a ídéia de um ou de poder, todavia querer enganar
testemunha indubitavelmente fraqueza
100 Plano da Meditação: ou malícia. E, portanto, isso não se
88$1-2: recapitulação: pode encontrar em Deus.
$853-5: esboço de uma-solução para ino- 4. Em seguida, experimento em
centar Deus do erro;
86: rejeição desta solução;
987- 8: dois argumentos metafísicos pos- 192 Reconheço; pois. agora. que Deus & a coisa
SÍVEIS; mais facil de conhecer, embora sendo, lombremo-lo,
$89-12; recurso à Psicologia 's explica- incompreensível.
ção dó mecanismo do erros tos Este “caminho” É à confrontação de duas teses
$$13-14: Deus desculpado do erro; aparentemente contraditórias: 1.º fui criado por um
$$15-17: retorno à Metafísica e valida- Deus -não enganador; 2:º devo reconhecer que sou
ção daregra da claridadec da distinção. sujeito-ao erro. CL a oscilação entre 0 princípio da
vor Deus é “portanto, mais conhecido do que o dúvida universal é O fato da certeza do Cogito, no
meu Eu pensante, começo da Meditação precedente.
124 DESCARTES

mim mesmo. certa capacidade de jul- modo que não devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi- 5. Assim, conheço que o erro en-
sas que possuo; e como ele não quere- quanto tal não é algo de real que
ria iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
que não poderei jamais falhar, quando uma carência; e, portanto, que não
a usar como é necessário. E não resta- tenho necessidade, para falhar, de
algum poder que me tenha sido dado
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver- por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me -enga-
parece, inferir dela a consegiiência de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo ese ele falso não ser infinito.em mim!?'8,
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis-
parece que nunca devo enganar-me!º 4, faz inteiramente!9 8: pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma purá negação, isto é, não é a sim-
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei-
nenhuma causa de erro ou de Falsida- ção que me não é devida, mas antes &
de; mas-em seguida, retornando a mim,
uma privação
de algum conhecimento
a experiência me ensina que estou, não que pareceé que eu deveria possuir. E,
considerando a natureza de Deus, não
obstante, sujeito a uma infinidade de me parece possível que me tenha dado
erros e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, noto que ao meu pensa- em seu gênero, isto é, à qual falte algu-
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que-lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte-
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ-
que estã infinitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; e que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe- partes? E por certo não há dúvida de
rano ser e o não-ser que nada se encon- que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga-
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre -aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu; mas
à, pois; mais vantajoso falhar do que
que, se me considero participante de
não falhar!9 79
alguma maneira do nada ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou
19% Estando o errono homem devido ao fato de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada é não sendo q nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e-Deus desonipado . ,-
(9: Por quê? É queo erro não está em mim como
tes E nó entanto eu mo engano... É a própria simples falta de ser. como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus, meu rapidez-a solução anterior, más como uma “imper-
criador, é mfinitamente perfeito; ora, o erro & o mal feição positiva”. Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso? A bem mas-uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, o problema assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
es do Que este ouiros. como, salvaguardando +07 O reconhecimento do erro como privação des-
definitivamente a veracidade de Deus, garantir loca o problema: já que Deus quer sempreo melhor,
definitivamente “a: possibilidade: “do conhecimento será: melhor que o-homem tenha sido «afetado de
das outras coisas do Universo”? uma privação?
MEDITAÇÕES 125

7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocorre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu- parte de todo este Universo. E, embo-
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe- duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam-
Deus as produziu! º8. Pois, sabendo já bém, já que reconheci o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e
ou, pelo menos, que não as possa pro-
infinita" ºº, não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade:
de coisas em sua potência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito, universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
de causas que se costuma tirar do
meus erros (que apenas testemunham
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas fisi-
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impeneétráveis que existe em mim e do poder de esco-
de Deus!!º, lher, ou seja, meu livre arbítrio; isto é,
8. Demais, vem-me ainda ao espí- de meu entêndimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade''2. Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce-
perfeitas, mas de uma maneira geral boas idéias das coisas que posso asse-
todas as coisas em conjunto? ?*, Pois a gurar ou negar, Ora, considerando-o
assim precisamente, pode-se dizer que
108 Primeiro argumento metáfísico possível: recur- jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Deus. Ela possibilita a desde que se tome -a palavra erro em
tese: “O erro pode ser bom sem o nosso conheci-
mento”. CF. Princípias, MA, 2. sua significação própria. E, ainda que
*vê Podemos medir a diferença entre a nitude haja talvez uma infinidade de coisas
cartesiana e a finitude kantiana, se adyertirmos que neste mundo das quais não tenho idéia
Kant poderia escrever o primeiro membro: desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento, não se
"1º Fundamentação metafísica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física. A respeito, cf. Col. com
Burman (A. T., V, pãg. 158) e Princípios, 1, 28.
dessas idéias como de algo que seja de-
“Não devemos presumir tanto de nós mesmos a vido à sua natureza, mas somente que
ponto de crer que Deus nos quisesse participar seus não as tem; porque, com efeito, não hã
conselhos. . razão alguma capaz de provar que
117 Segundo argumento metafísico possível: o que
eu percebo como imperfeição sá é verdade em rela- Deus devesse dar-me uma faculdade de
ção a mim e não ao conjunto do Universo. Argu- conhecer maior e mais ampla do que
mento que se inscreve na linha das teodicéias clássi-
cas dos estóicos e de Santo Agostinho até Leibniz
(e, se se quer, até essas teodicêias modernas que são +12 Recorso do exame das faculdades psicológicas.
o hegelianismo e O marxismo). Deve-se observar Será sucessivamente mostrado que, nem a presença
que, apelando este urgumento para a idéia de Uni em mim do entendimento, nem a da vontade, me
verso, é necessário tomar o-recurso a esta compa- autorizam à queixar-me de uma privação qualquer
tivel com aordem, neste lugar. esportanto,
de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES

aquela que me deu; e, por hábil e enge- sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa; de sorte que é principalmente
as perfeições que póde por em algu- ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um amda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eua experimento tão vaga e tão exten- que, aí se encontrando juntos, a tor-
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e-mais eficaz, quer por
quaisquer limites" '3. E o que me pare- causa do objeto, na medida em que-a
ce muito notável neste ponto é que,de vontade se dirige -e se estende infinita-
todas: as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare-
mim, não há nenhuma tão perfeita é ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti- formal e precisamente nela mesma!” 8.
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem- fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce- é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que hã em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir-
uma extensão muito pequena e grande- mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti-
faculdade. muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; e, pelo simples fato de que me exterior nos-obrigue a tanto! ! 7, Pois,
posso representar sua idéia, conheço para queeu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei- um ou de outro dos dois contrários;
ra!'74, se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente-
não encontro nenhum que não seja em mente-que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em: Deus-não seja imenso e infinito! 15, assim O interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
173 Nota-se que a infinidade da vontade é primeiro
evocada quanto à grandeza; “Não se encontra
encerrada em quaisquer limites, . . a idéia de outra 118 Passagem que significa: a vontade: marca 'a
mais ampla: e mais extensa”, É por 4, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que-ela mais difere do entendimento, para o qual hã infinita em grandeza (pois Este infinito ainda é ape-
coisas incognosciveis de direito (o conteúdo do imf- nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser.
nito-em Deus). Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim e
t1* Esta passagem quererá dizer que'a finitúde-do, do não,
entendimento é do mesmo género que ada imagina- 17% Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guéroult nega e observa (op: cit,- págs: no homem, daquele que ha em Deus, do que-ad ser
328-29) que, se'a finitude du imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento É antes uma “indefinitude”: importa distinguir aqui esta “potência -real-e:posi-
nosso conhecimento pode aumentar “pradativa- tiva de se determinar” que Deus nos concedeu da
mente-até o infinito”, o que constitui uma espécie de “indiferença”, estado no qual à vontade, não sendo
finitude em face da infinitude positiva-de Deus: iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti-
“17 Éuma maneira de falar, pois a memória (que do, estã afastada ao máximo da-de Deus: Cf. Car-
supõe a sucessão temporal) « à imaginação (que tas, a Mesland, 2 de maio de- 1644, Esta “indife-
a a união a um corpo) não se encontram em rença” possível da vontade húmana desempenhará
S. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127

e o conhecimento natural, longe de facilmente e escolhe o mal pelo bem ou


diminuírem minha liberdade, antes a o falso pelo verdadeiro. Q que faz com
aumentam ea fortalecem. De maneira que eu-me engane e peque? 'º,
que esta indiferença que sinto, quando 11, Por exemplo, examinando, estes
não sou absolutamente impelido para dias passados'?º, se alguma coisa
um lado mais do que para outro pelo existia no mundo e reconhecendo que,
peso de alguma razão, é o mais baixo pelo simples fato de examinar esta
grau da liberdade, e faz parecer mais questão, decorria necessariamente que
uma carência no conhecimento do que eu próprio existia, não podia impedir-
uma perfeição na vontade; pois, se eu me de julgar que era verdadeira uma
conhecesse sempre claramente o que é coisa que concebia tão claramente, não
verdadeiro e o queÉ bom, nunca esta- que a isso me achasse forçado por al-
ria em dificuldade para deliberar que guma causa exterior, mas somente por-
juízo ou que escolha deveria fazer; e que à uma grande clareza que havia no
assim seria inteiramente livre sem meu entendimento seguiu-se uma forte
nunca ser indiferente! 18, inclinação em minha vontade; e fui le-
10. De tudo isso reconheço que vado a acreditar com tanto mais liber-
nem o poder da vontade, o qual recebi dade quanto me encontrei com menos.
de Deus, não é em si mesmo a causa de indiferença. Ao contrário, agora não
meus erros, pois é muito amplo e somente sei que existo na medida em
muito perfeito na sua espécie; nem que sou alguma coisa que pensa, mas
tampouco o poder de entender ou de apresenta-se também ao meu espírito
conceber; pois, nada concebendo uma certa idéia da natureza corpórea;
senão por meio deste poder que Deus: o que faz com queseu duvide se esta
me conferiu para conceber, não há dú- natureza pensante que existe em mim,
vida de que tudo o que conçcebo, conce- ou antes, pela qual eu sou o que sou, é
bo como é necessário e não é possível diferente dessa natureza corpórea, ou
que nisso me engane. Donde nascem, ainda, se ambas não são senão uma
pois, meus erros?:A saber, somente de mesma coisa. E suponho, aqui, que
que, sendo a vontade muito mais não conheço ainda nenhuma razão que
ampla e extensa que o entendimento, me persuada de uma coisa mais do que
eu não a contenho nos mesmos limites, de outra: donde se segue que sou intei-
mas estendo-a também às coisas que ramente indiferente quanto a negá-lo
não entendo; das quais, sendo a vonta- ou assegurá-lo, ou mesmo ainda a abs-
de por si indiferente, ela se perde muito ter-me de dar algum juízo a este
respeito.
Nº Sobre ofim desse parágrafo, cf. as especifica- 12. E essa indiferença não se esten-
ções essenciais oferecidas pela carta a Mesland,- de de somente às coisas das quais o enten-
9 de fevereiro de 1654, onde Descartes: distingue
entre a liberdade
antes da ação e enquanto
se exerce
a ação. Só no segundo momento, diz ele, É que'a 3 O conhecimento do mecanismo do erro aqui
liberdade “consiste apenas na facilidade que temos obtido constitui a sexta verdade. O erro é possível
de operar... . e foi neste sentido
que escrevi que me porque: a: vontade livre, fundamentalmente indife-
dirígia tanto mais livremente a uma coisa quanto rente, pode tornar-se “indiferente” no segundo senti-
era a ela impelido
Roe mais razões”. Para Mersenne, do da palavra — no caso, pronunciar-se sobre o que
ele sublinha tam “que somos sempre livres de ela não entende inteira ou suficientemente, “E quan-
deixar de: perseguir um bem que nos é claramente do dela abusamos deste modo, não é de admirar que
contra ou de adquirir uma verdade eviden- cheguemos anos equivocar.” (Princípios, 1,35.)
“(27 de maio de 1641). Assim, Descartes 1Z070s 86 11 e 12tiram a conclusão da verdade
pode mnier, so ide leio 5 sein Cação: a precedente, mostrando-me como devo usar meu
liberdade-indeterminação ea livre arbítrio a fim de evitar o erro; ao mesmo
neidade, Cf. uma crítica desta última em Sartre, tempo, orientam-nos para outra verdade: a confir-
Situations, 1, pág: 317. mação definitiva da veracidade de Deus:
128 DESCARTES

dimento não tem nenhum conheci me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque-
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei-
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tornam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e-não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei emymim; estando bem longe de conce-
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos: como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu'22, Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei- motivo de mé lastimar do fato de me
ra. haver dado uma vontade mais ampla
13, Ora, se me abstenho de formu- do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma:
não a concebo com suficiente clareza € coisa, é sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivísivel, parece que sua natureza é
muito bem e-que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu'23. E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, € até mesmo, ainda que jul- de que Deus concorra comigo para for-
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa- juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí- esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu-
sempre preceder a determinação da. ma.forma, mais perfeição em minha
vontade. E é neste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que formá-los, do que se não o pudesse! 2 *,
constitui a forma do erro!21, A priva- Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca-
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder que recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me-
dida em que ela depende dele. Pois não
*22 a):A fmitude de meu entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. CF.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios 1, 36.
123º b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que mê queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
121 O erro É, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado mfinita.
priv
e contrariamente ao que se passava na 124. c) Que minha vontade possa formar juizos é
solução do $ 5, E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
So desculpado por quatro considerações: “Não Elementos que concorrem ao erro humano não cons-
tenho nenhum motivo de me lastimar. ..” tituem sinal de nenhum não-ser ou de nenhum mal.
MEDITAÇÕES 129

coisa ou um ser é que, se a relacio- criado de modo que eu nunca falhas-


namos a Deus como à sua causa, ela set27. Mas não posso por isso negar
não deverá ser chamada privação mas que não seja, de alguma maneira, a
somente negação, segundo 'o signifi- maior perfeição em todo o Universo o
cado que se atribui a essas palavras na fato de algumas de suas partes não
Escola!2 8, serem isentas de: defeitos, do que se
14. Pois, com efeito, não é uma fossem todas semelhantes. E não tenho
imperfeição em Deus o fato de ele me nenhum direito de me lastimar se
haver concedido a liberdade de dar Deus, tendo-me colocado no mundo,
meu juízo ou de não o dar sobre certas não me tenha querido colocar na
coisas, à cujo respeito ele não pôs um ordem das coisas mais nobres e das
claro e distinto saber em meu entendi- mais perfeitas; tenho mesmo motivo de
mento; mas, sem dúvida, é em mim me rejubilar porque, se ele não me con-
uma imperfeição o fato de eu não a cedeu a virtude de jamais falhar atra-
usar corretamente e de dar temeraria- vés do meio a que me referi acima, que
menté meu juízo sobre coisas que eu depende de um claro e evidente conhe-
concebo apenas com obscuridade e cimento de todas as coisas a respeito
confusão! 26, das quais posso deliberar, ele ao menos
15. Vejo, no entanto, que era fácil a deixou em meu poder o outro meio,
Deus fazer de sorte que eu nunça me que é reter firmemente a resolução de
enganasse, embora permanecesse livre jamais formular meu juízo a respeito
e com um conhecimento limitado, a de coisas cuja verdade não conheço
saber, dando a meu entendimento uma claramente'28, Pois, embora eu note
clara e distinta inteligência de todas as essa fraqueza em minha natureza, de
coisas a respeito das quais eu devia al- não poder ligar continuamente meu
guma vez deliberar, ou, então, se ape- espírito a um mesmo pensamento,
nas houvesse gravado tão profunda- posso, todavia, por uma meditação
mente em minha memória a resolução atenta e amiúde reiterada, imprimi-la
de nunca julgar a respeito de alguma tão fortemente na memória, que não
coisa sem concebê-la clara e distinta- deixe jamais de lembrar-me, todas as
mente de sorte que eu nunca-a pudesse vezes de que tiver necessidade, e adqui-
esquecer. E noto efetivamente que, rir, desta maneira, o hábito de nunca
enquanto me considero inteiramente falhar. E, na medida em que é nisto
só, como se apenas eu existisse no
mundo, teria sido muito mais perfeito '27 Descartes sentir-se-á agora inteiramente satis-
do que sou caso Deus me houvesse feito? Não parece. Pois, afinal, Deus: dispunha do
meio de-não permitiro erro — e eleo permitiu. Dai
por que, definitivamente, a dialética cartesiana
*28 d) Mas o próprio erro, na medida em que necessita dos argumentos clássicos da Teodicéia:
resulta do jogo dos elementos anteriores, sem dúvi- por que não teria Deus concedido todas as perfei-
da é privação ou imperfeição em nós, mas não é ções? Não é melhor parao Lodo que-haja imperfei-
produzido por Deus. O erro provém do fato de Deus ções nas partes? É mister, na verdade, recorrer aos
“não
nos ter dado tudo quanto podia
nos dar”, mas fins de Deus, mesmo que nos sejam impenetráveis,
“não era de modo algum obrigado" a nos dar (Prin- para inocentá-lo de nossa “finitude”. Veremos, de
cípios, 1, 31). Assim, isso que, para nós, é privação modo mais-geral, que, em: Descartes, a Antropo-
ou imperfeição positiva, não passa de-negação ou logia reintroduz a finalidade que a Física mecanij-
ser-limitado do ponto de vista de Deus. Em termos dista exclui.
modernos, poder-se-ia dizer que o homem torna ser *28 Mas esta aparente insatisfação representava
o não-ser, mas que, no absoluto, trata-se deuma ilus apenas um desvio para outra conclusão importante:
são, Esta confirmação da veracidade e da perfeição dado-que, no absoluto, o erro não é nada de real, eu
de Deus pode ser considerada como a sétima jamais falharia se me lembrasse sempre que devo
verdade, julgar o que me aparece clara e distintamente como
128 Recapitulação: Deus é mocentado. real ou verdadeiro.
130 DESCARTES

que consiste a maior e principal perfei- preciso concluir que uma-tal conctep-
ção do homem, considero não ter ção ou um tal juízo é verdadeiro! 2º,
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De. resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida- hoje o que devo evitar para não mais
des e dos erros. falhar, más também o que devo fazer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver-
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von- tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento, minha atenção sobre todas as coisas
de tal modo que ela não formule juízo que conceber perfeitamente e se as
algum senão a respeito das coisas que separar das outras que não com-
preendo senão com confusão e obscu-
lhe são clara e distintamente represen-
ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, não pode zelosamente.
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi- 128 Daí a oitava verdade: as idéias claras e distih-
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imédiatamente certo, A
não pode ter Sua origem nó nada, mas regra segundo a qual “todas as coisas que conce-
bermos: muito. clara e muito. distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras”, queobtive por reflexão sobre o Cogi-
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe- to, ho começo da Meditação Terceira (8 2), E agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci-
ranamente peiíc!to, não pode ser causa sarei efetuar O Cogito g fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastara lembrar-me-dela.
MEDITAÇÃO QUINTA"?
Da Essência das Coisas Materiais;
e, Novamente, de Deus, que Ele Existe

1, Restam-me muitas outras coisas enumerar nela muitas partes diversas e


a examinar, concernentes aos atributos atribuir a cada uma dessas partes toda.
de Deus é à minha própria natureza, sorte de grandezas, de figuras, de situa-
isto é, ao meu espírito: mas retomarei ções e de movimentos; e, enfim, posso
em outra ocasião, talvez, a sua pesqui- consignar a cada um desses movimen-
sa, Ágora (após haver notado o que tos toda espécie de duração.
cumpre fazer ou evitar para chegar ao 4. E não conheço estas coisas com
conhecimento da verdade), o que tenho distinção apenas quando as considero
principalmente a fazer é tentar sair e em geral; mas, também, por pouco que
desembaraçar-me de todas as dúvi- eu a isso aplique minha atenção, con-
das'*! em que mergulhei nesses dias cebo uma infinidade de particularida-
passados e ver se não é possível conhe- des'32 referentes aos números, às figu-
cer nada de certo.no tocante às coisas ras, aos movimentos e -asoutras coisas
semelhantes, cuja verdade: se revela
materiais.
2, Mas, antes de examinar se há'tais com tanta evidência e se acorda tão
bem com minha naturezá que, quando
coisas que existam fora de mim, devo começo a -descobri-las, não parece que
considerar suas idéias na medida em aprendo -algo de novo, mas, antes, que
que se encontram em meu pensamento me recordo de algo que já sabia
e ver quais são distintas e quais são anteriormente, isto é, que percebo coi-
confusas. sas que estavam já no meu espírito,
3. Em primeiro lugar, imegino dis- embora eu ainda não tivesse voltado
tintamente esta quantidade que os filó- meu pensamento para elas.
sofos chamam vulgarmente de quanti- 5. E o que, aqui, estimo mais consi-
dade continua, ou a extensão em derável é que encontro em mim uma
longura, largura e profundidade que hã infinidade de idéias de certas coisas:
nessa quantidade ou, antes, na coisa à que não podem ser consideradas um
qual ela é atribuída. Demais, posso puro nada, embora talvez elas não te-
nham nenhuma existência fora de meu
+39: Plano da Meditação: pensamento!3º, e que não são fingidas
95 1-2: exame das idéias das essências:
862-6: validação da verdade das-essên-
cias matemáticas; as-“naturezas verda- 3? Apósos entes matemáticos, suas propriedades:
deiras e imutáveis” da Matemática não essenciais tais como Deus as instituiu.
são inventadas nem extraídas da expe- vês: À separação entre essência ea existência só
fiência; tem sentido ao nível-das idéias. Quando eu penso a
:887-10: a prova ontológica; essência do triânguloe a existência do mesmo triân-
$511-15:vantagens destanoveprova: gulo; diz alhures:Descartes, esses dois pensamentos
+31 Programa das Meditações Quinta e Sexta: diferem apenas enquanto são pensamentos; no
estabelecer- a veracidade divina em toda 4 sua triângulo existente fora de meu pensamento, a
amplitude. essência € a existência não podem ser distinguidas.
132 DESCARTES

por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensá-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver- todas as coisas que conheço clara e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem- distintamente são verdadeiras. E, con-
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa- que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre- clara-e distintamente'*? 8. E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma, ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen-
figura, a qual é imutável e eterna, que tidos. tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espirito; como parece, pelo fato de figuras, aos números € às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro- que pertencem à Aritmética e à Geo-
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ângulos são iguais a dois retos, 7. Ora, agora'* º, se do simples fato
que o maior ângulo & oposto ão maior de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco- tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente é mui evidente- e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe-de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma prova demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? É certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos'37 em mim sua idéia,
pode' dizer que cu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi-
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta-
vindo ao meu espírito por intermédio mente que uma existência atual e eter-
de meus sentidos, porque vi algumas na ence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de-
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, à cujo res- qualquer número pertence verdadeira-
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham caído número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie-
dades relativas à sua natureza, bem 13º. Retorno ao plano da “natureza”
— o da Medi-
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira — onde me É impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto Jato de uma verdade matemática quando ela se me
apresenta atualmente,
que as concebo claramente'3*. E, por-
tanto, elas são alguma coisa e não um +36 “Agora” = depois que estamos metafísica-
mente certos do valor objetivo das idéias claras é
puro nada; pois é muito evidente que distintas,
132 Notar à partir daí os “não... menos” e “ao
menos": a existência de Deus, legível em sua essên-
134 As idéias das essências matemáticas não são, cia, não É menos certa do que-as verdades matemá-
portanto, simuladas nem provenientes do sensível (8 ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocála
6), CI. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciais que -a
correspondem, pois,-a.algo. dúvida natural não conseguia abalar,
MEDITAÇÕES 133

não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, amda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis-
em meu espírito ao menos como tão tência, tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei até agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas aos números é às figu- com-vale não se segue que haja qual-
ras'38; embora, na verdade, isto não quer montanha: no mundo, do mesmo
pareça de início inteiramente mani- modo, embora eu conceba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de sofisma. Pois, estando habituado haja algum Deus existente: pois meu
em todas as outras coisas a fazer dis- pensamento não impõe necessidade al-
tinção entre a existência € à essência,
persuado-me facilmente de que a exis- guma às coisas; e como só depende de
tência pode ser separada da essência mim o imaginar um cavalo alado,
de Deus e de que, assim, é possível ainda que não haja nenhum que dispo-
conceber Deus como não existindo nha de asas, assim eu poderia, talvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan- atribuir existência a Deus, ainda que
do penso nisso com maior atenção, não houvesse Deus algum existen-
vérifico claramente que a existência te! so. Mas não é assim, é que aqui hã
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto quanto da essência de um desta objeção: pois pelo fato de que
triângulo retilíneo não pode ser sepa- não posso conceber uma montanha
rada a grandeza de seus três ânguios sem vale não se segue que haja monta-
iguais a dois retos ou, da idéia de uma
nha alguma nem vale algum, mas
montanha, a idéia de um vale; de sorte
que não sinto menos repugnância em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um Deus (isto é, um ser sobe- existam Ea não, não podem, de
ranamente perfeito) ao qual falte exis- maneira alguma, ser separados um do
tência (isto é, ao qual falte alguma outro; ao passo-que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber uma: eu não poder conceber Deus sem exis-
montanha que não tenha vale'38, tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
+38 Há uma certeza dá existência de Deus que é do verdadeiramente: não que meu pensa-
mesmo-tipo que a certeza espontânea e mpgênua que mento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às-verdades matemáticas. É esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que ora podemos validar, assim como validamos-a
certeza matemática: em nome do princípio do valor necessidade; mas, ao contrário, porque
objetivo das idéias claras e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
“prova ontológica” situa-se em plano diverso do saber, da existência de Deus, deter-
das duas outras provas (o fato de se encontrar em
outra Meditação basta para 'indicá-lo) e É depen- mina méu pensamento a concebê-lo
dente em relação a elas na ordem das razões dessa maneira. Pois não está em minha
metafísicas: liberdade conceber um Deus sem exis-
29 Sobre s imagem ds montanha e do vale: “Não
temos nenhumaóurra razão para assegurar
que não tência (isto é, um ser soberanamente
haja absolutameénte montanha sem vale, exceto que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos-ser impossível completar suas idéias quando
os consideramos um sem o outro, embora possa- como mé é dada a hberdade de imagi-
mos, por-abstração, ter a-idéia de uma montanhaou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lugar pelo qual subimos de baixo para cinta
sem considerar que se possa descer por aí mesmo de
cima para baixo”. (A Gibieuf, 19 de janeiro de +40: Segunda objeção possivel: não se tratará
1642.) Primeira objeção possivel a:esta nova prova somente-de uma existência em idéia no meu pensa-
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta: em minha idéia de Deus, eu per-
não existente? Resposta:a idéia da essência de ceby;a ligação da existência com a essência como
Deus é inseparável de sua existência assim como uma relação de essência necessária que se impõe ao
“em todas as-outras coisas”. meu espírito.
134 DESCARTES

9, E não se deve dizer aqui que é, na jamais eu imagine triângulo algum;


verdade, necessário cu confessar que mas todas as vezes que quero conside-
Deus existe após ter suposto que ele rar uma figura retilinea composta
possui todas as sortes de perfeições, somente de três angulos é absoluta-
posto que a existência é uma delas, mente necessário que eu lhe atribua
mas que, com efeito, minha primeira todas as coisas que servem para con-
suposição não era necessária; da cluir que seus três ângulos não são
mesma maneira que não é necessário maiores do que dois retos, ainda que
pensar que todas as figuras de quatro talvez não considere então isto em
lados podem inscrever-se no círculo, particular. Mas quando examino que
mas que, supondo que tenho este figuras são capazes de ser inscritas no
pensamento, sou obrigado a confessar círculo, não é de maneira alguma
que o rombóide pode inscrever-se no necessário que eu pense que todas as
círculo, já que é uma figura de quatro figuras de quatro lados se encontram
lados; e, assim, serei obrigado a con- neste rol; pelo contrário, nem mesmo
fessar uma coisa falsa!*!. Não se posso fingir que isso ocorra enquanto
deve, digo, alegar isto: pois, ainda que eu nada quiser receber em meu pensa-
não seja necessário que eu incida ja- mento que não possa conceber clara e
mais em algum pensamento de Deus, distintamente. E, por conseguinte, há
todas as vezes, no entanto, que me uma grande diferença entre as falsas
ocorrer pensar em um ser primeiro e suposições, como essa, e as verda-
soberano, e tirar, por assim dizer, sua deiras idéias que nasceram comigo e,
idéia do tesouro de meu espírito, é dentre as quais, a primeira e principal
necessário que eu lhe atribua todas as é a de Deus,
espécies de perfeição, embora eu não 10. Pois, com efeito, reconheço de
chegue a enumerá-las todas e a aplicar muitas maneiras que esta idéia não é
minha atenção a cada uma delas em de modo algum algo fingido ou inven-
particular. E esta necessidade é sufi- tado, que dependa somente de meu
ciente para me fazer concluir (depois pensamento, mas que é a imagem de
que reconheci ser a existência uma uma natureza verdadeira e imutável.
perfeição! *2). que este ser primeiro e Primeiramente, porque eu nada pode-
soberano existe verdadeiramente: do ria conceber, exceto Deus só, a cuja
mesmo modo que não é necessário que essência a existência pertence com
necessidade. E, em seguida, também,
141 Terceira objeção possivel: concedendo a Deus porque não me é possível conceber
todas as perfeições, não teria partido de uma falsa
suposição que tornaria minha conclusão caduca?
dois ou muitos deuses da mesma
Resposta: esta suposição não é gratuita; ela se limi- maneira. E, posto que há um agora que
ta-a tomar explícito o conteúdo mesmo da essência existe, vejo claramente que é neces-
de Deus, tal como esta se acha presente em meu
espirito. Do mesmo modo: “Se eu penso em um sário que ele tenha existido anterior-
triângulo, então penso em uma figura onde a soma mente por toda a eternidade e que exis-
dos ângulos é iguala dois. retos”. ta eternamente para o futuro. E, enfim,
t42 Este pressuposto é que será recusado por Kant
em sua critica à prova ontológica: a existência não porque conheço uma infinidade de ou-
é uma perfeição que pertença ao conceito. Cumpre, tras coisas em Deus, das quais nada
todavia, observar que Descartes não tira a exis-
tência de Deus da idéia que eu tenho dele. Depois de
posso diminuir nem mudar.
estabelecer que-a idéia de Deus corresponde a uma 11. De resto, de qualquer prova e
essência, mostra que, estando eu atento 4 esta essên: argumento que eu me sirva, cumpre
cia (já não se trata da idéia como representação da
essência), percebo nela necessariamente a existên- sempre retornar a este"ponto, isto é,
cia. que são somente as coisas que concebo
MEDITAÇÕES 135

clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E, embo- algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levadoa acreditá-lo
maneira, haja na verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam-
manifestamente conhecidas de qual- bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão âqueles que as conside- mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perto e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; todavia, uma vez quando deixo de considerar as razões
descobertas, não são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse in-
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual aos quadrados dos dois Deus! “4, E, assim, éu jamais teria uma
outros lados, como é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta ao maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma vez que isto foi reconhe- vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14, Como, por exemplo, quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, certamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espírito não estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen- três ângulos são iguais a dois retos e
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença contínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sensíveis, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des-
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente do que ele. Pois have- claramente compreendido, pode ocor-
rá algo por si mais claro e mais mani- rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser soberano e perfeito, em Deus! *8. Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e somente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna está incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com-
12, E, conquanto, para bem conce- preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade, eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplicação de espírito, pre- de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, todavia, estou mais seguro
144 Compreende-se aqui por que'a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, além disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela “natureza”, isto é da Psicologia, à certeza de que
Deus existe eternamente. Poupa, assim, O constante
depende tão absolutamente que, sem recurso às dificeis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimento, é impossível jamais matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo perfeitamente! “3, eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
“razões” da Meditação Terceira.
13. Pois, ainda que eu seja de tal 148 As provas a priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial e mdis-
**3 Diferença entre a essência de Deus e as essên- pensável); à prova ontológica assegura a lembrança
cias matemáticas: aquela pode garantir a certeza das evidências. Cf, o comentário feito nas Segundas
destas, Respostas, 222.
136 DESCARTES

coisas como verdadeiras e certas, que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
a julgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima-
e distintamente não pode deixar de ser ginramos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre-
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreendido clara e distinta- reconheço muito claramente que a cer-
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen-
razão contrária alguma que me faça ja- dem do tão-só conhecimento do verda-
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda- o conhecesse, não podia saber perfeita-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nénhuma outra coisa. E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui-
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante à
como as verdades da Geometria e ou- uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocâ-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida? Dir-me-ão que minha natu- medida em que ela pode servir de obje-
reza é tal que sou muito sujeito a enga- to as demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já ser que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos cujas razões conhe- algum, com sua existência! 48,
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e +48 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das-razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe- as propriedades das essências são as propriedades
das coisas e, no que concerne à essência de Deus, de
cido clara nem distintamente tais coi- que aí estã inscrita a existência necessária, portanto
sas e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
MEDITAÇÃO SEXTA!“
Da Existência das Coisas Materiais e da Distinção
Real entre a Alma e o Corpo do Homem

1. Só me resta agora examinar se objeto das demonstrações de Geome-


existem coisas materiais; e certamente, tra, visto que, dessa maneira, eu as
ao menos, já sei que as pode haver, na concebo: mus clara e distintamente” <º,
medida em que são consideradas como Pois não há dúvida de que Deus tem o
poder de produzir todas as coisas que
147? Plano da Meditação: sou capaz de conceber com distinção;
A) 881-16; problema da existência das coisas e nunca julguei que lhe fosse impos-
materiais:
$i; reconhecimento da possibilidade de sivel fazer algo, a não ser quando
Sua existência; encontrasse contradição em poder con-
8624: reconhecimento da probabili- cebê-la! *º, Demais, a faculdade de
e de sua existência: exame da imagi-
imaginar, que existe em mim e da qual
MyTê: análise da sen sação £eco colocação
Es vejo por expériência que me sirvo
(57): RÃ das cojsas que eu
quando me aplico à consideração das
considerava como verdadeiras; coisas materiais, é capaz de me persua-
(8898-123). recordação dos motivos dir da existência delas! 5º: pois, quan-
de meus “prejuízos”
($$ 12-15); recapitulação das ta- do considero atentamente o que é a
zoes extraídas da Meditação Pei- imaginação, verifico que ela nada mais
meira é nova crítica dos prejuízos; é que uma aplicação da faculdade que
($ 16): no ponto em que cheguei, no
que posso crer? conhece ao corpo que lhe é intima-
B) $917-29: db
as ardida últimas:
$917-18: “a décima verdade: distinção
real da alma e de corpo: 148 A existência das coisas materiais é primeira-
55 19-20: a dêcima primeira verdade: há mente reconhecida como possível, posto que as
Coisas corporais que existem; idéias claras e distintas que tenho de-suas essências
$521-29: décima segunda. Rae envolvem aprstiado de sua existência.
Rio de o asa — 123 alusãoà complexissima téoria da possibili-
ustificação e limitação do valor do sen- dade; analisada por Guéroult (gp. cit, 1, págs.
Uimento natural como órgão: de informa- 26-39); 1º posso afirmar a possibilidade de-uma
ção biológica. coisa quando tenho idéia clara e distinta de sua
€) 883041: ia natureza não será, no possibilidade ou quando não tenho idéia clara e dis-
entanto, intrinsecamente errônea? tmta de sua impossibilidade; 2.” devo manter em
“8$30-32: colocação do problema e:a re: suspenso o meu juízo quando não tenho idéia clara
cusa da solução materialista: é distinta de sua possibilidade
nem de sua impossi-
a justificação de Deus em vista bilidade; 3.º posso negar a sua possibilidade quando
da no; dado psicofisiológico tenho idéia clara e distinta dessa impossibilidade.
150 O exame
da imaginação levará
a reconhecer
D) aaa Sn como provável a existência das coisas materiais:
138 DESCARTES

mente presente e, portanto, que exis-


estahelecem a diferença entr e o quilió-
s? 52
gono e os demais polígono
2. E, para tornar isso mais manife,
to, noto primeiramente a diferença que 3. Quando se trata de considerar
há entre a imaginação é a pura intelec- um pentágono, é bem verdade que
ção, ou concepção. Por exemplo, quan- posso conceber sua figura, assim comc
do imagino um triângulo, não o conce-
bo apenas como uma figura composta a do quiliógono, sem o auxílio da
e determinada por três linhas, mas, imaginação; mas posso também imagi-
além disso, considero essas três linhas ná-la aplicando a atenção de meu espí-
como presentes pela força e pela apli- rito a cada um de seus cinco lados e,
cação interior de meu espírito; e é
ao mesmo tempo, à área ou ao espaço
propriamente isso que chamo imagi-
nar. Quando quero pensar em um que eles encerram. Assim, conheço cla-
quiliógono, concebo na verdade que é ramente que tenho nécessidade de par-
uma figura composta de mil lados tão ticufar contenção de espírito para ima-
facilmente: quanto concebo que um ginar, da qual não me sirvo
triângulo é uma figura composta de
absolutamente para cunceper! 83, e
apenas três lados; mas não posso ima-
ginar os mil lados de um quiliógono esta particular contenção de espírito
como faço com os três lados de um mostra evidentemente a diferença que
triângulo, nem, por assim dizer, vê-los há entre a imaginação e a intelecção.
como: presentes com os olhos de meu ou concepção pura,
espirito: E conquanto, segundo O cos-
tume que tenho de me servir sempre de 4. Noto, além disso, que esta virtu-
minha imaginação, quando penso mas de de imaginar que existé em mim, na
coisas corpóreas, ocorra que, conce- medida em que difere do poder de con-
bendo um quiliógono, eu me represente
ceber, não é de modo algum necessária
confusamente alguma figura, é, toda-
via, evidente que essa figura não é um à minha natureza ouà minha essência,
quiliógono, posto que em nada difere isto é, à essência de meu espírito; pois,
daquela que me representaria se pen- anda que nao a possuísse de modo
sasse em um miriágono, ou em qual- algum, estã fora de dúvida que eu
quer outra figura de muitos lados; e permaneceria sempre o mesmo que sou
que ela não serve, de maneira alguma, atualmente: donde me parece que se
para descobrir as propriedades que
pode conclur que ela depende de algo

131 “Parg situar “a imaginação” ora em exame, cf,


Regula XT: “É uma só e mesma força que. . ., se +82 “Como (a alma) não pode traçar assim mil
se aplica à imaginação somente, enquanto coberta pequenas linhas e lhes dar uma figura no cérebro, a
de figuras variadas, se chama lembrar-se; se se apli- não ser confusamente, resulta daí que ela não imagi-
za à imaginação para criar novas figuras, se chama na distintamente um quiliógono; mas apenas de
imaginar...” (Ed. Pléiade, pág. 79.) Aqui parece RD maneira confusa...” (Col com Burman,
tratar-se do primeiro caso. Quanto 3 distinção entre
imaginar e sentir, €£. Col. com Burman (A. TV, 1$3 Sobre esta diferença entre a fimitude da imagr-
pás. 162): na sensação, “as imagens são traçadas. nação e à “infinitude” do entendimento, cf, Medita-
pelos objetos extemos, é estando éstes presentes, ão ção Quarta, $ 8. É a primeira presunção em favor
passo que na outra elas o são pela alma, sem obje- da existência de um outro, além do pensamento, que
tos externos e, por assim dizer, com todas as janelas explicaria esta “particular contenção de espirito” e
fechadas”. que poderia muito bem ser o corpo.
MEDITAÇÕES 139

que difere de meu espírito' *4, E conce- pórea que é o objeto da Geometria, a
bo: facilmente que, se algum corpo saber, as cores, os sons, Os sabores, a
existe ao qual meu espirito esteja con- dor e outras coisas semelhantes, embo-
jugado e unido de tal maneira que ele ra menos distintamente. E na medida
possa aplicar-sea considerá-lo quando em que percebo muito melhor tais coi-
lhe apróuver, pode acontecer que por sas pelos sentidos, por intermédio dos
este meio ele imagine às coisas corpó- quais, e da memória, elas parecem ter
reas: de sorte que esta maneira de pen- chegado até minha imaginação, creio
sar difere somente da pura intelecção que, para examiná-las mais comoda-
no fato de que o espírito, concebendo, mente, vem a propósito examinar ao
volta-se de alguma forma para si mesmo tempo o que é sentir, e ver se,
mesmo é considera algumas das idéias das idéias que recebo em meu espírito
que elé tem em si; mas, imaginando, por este modo de pensar, que chamo
ele se volta para o corpo e considera sentir, posso tirar alguma prova certa
nele algo de conforme à idéia que for- da existência das coisas corpóreas! 58,
mou de si mesmo ou que recebeu pelos & E, primeiramente, recordarei em
sentidos: Concebo, digo, facilmente minha memória quais são as coisas
que a imaginação pode realizar-se que até aqui considerei como verdadei-
dessa maneira, se é verdade que há ras, tendo-as recebido pelos sentidos, e
corpos; e, uma vez: que não posso sobre que fundamentos estava apoiada
encontrar nenhuma outra via para
minha crença. E, depois, examinarei as
mostrar como ela se realiza, conjeturo razões que me obrigaram em seguida a
daí provavelmente que os há: mas não colocá-las em dúvida. E, enfim, consi-
é senão provavelmente e, embora exa-
derarei o que-devo a respeito delas
mine cuidadosamente todas as coisas,
agora acreditar” 57,
não verifico, no: entanto, que, desta
idéia distinta da natureza corporal que 7, Primeiramente, pois! 5º, senti
tenho em minha imaginação, possa que possuía cabeça, mãos, pés e todos
tirar algum argumento que conclua os outros membros de que é composto
necessariamente a existência de algum este Corpo que considerava como parte
corpo! 55, de mim mesmo ou, talvez, como o
todo, Demais, senti que esse corpo es-
5. Ora, acostumei-me a imaginar tava colocado entre muitos outros, dos
muitas coisas além desta natureza cor- quais era capaz de receber diversas
comodidades e incomodidades e adver-
+64 Segunda presunção. Esta conungência da pre- tia essas comodidades por um certo
sença de imaginação em mim é fundamenta! em
relação á teoria: das Matemáticas expostas nas sentimento de prazer ou de voluptuo-
: embora possam € devam : apoiar-se na sidade e essas incomodidades por um
imaginação, as Matemáticas são essencialmente sentimento de dor. E, além desse pra-
obra do entendimento. O modelo matemático de
Descartes É à teoria das pro de Eudoxo (lr zer e dessa dor, sentia também em mim
vros V a VII de Euclides), que-a Álgebra permite a fome, a sede e outros semelhantes
universalizar, e não a Geometria “imaginativa” de
Euclides, pela qual, segundo Ballet, seu biógrafo,
não sentia quase nenhuma estima. Este ponto nos "8º Depois do tecurso ao entendimento « da anã-
parece capital para qualquer cotejo entre Descartés lise da imaginação, a málise da sensação.
e Kant e para tado estudo do conceito-clássico de 157 Anúncio dos momentos da pesquisa.
“imaginação” nos séculos XVII e XVIII, TRE “Primeiramente, recordarei em minha memó-
ee: Recapitulação: ao passo que a imaginação em ria quais são “as coisas que até aqui considérei como
mim prova à existência dos corpos, a explicação verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos”,a
que se lhe dá aqui só será verdadeira quando esta saber, que estou unido a um corpo
e que -as coisas
existênciaestiver comprovada. materiais existem.
140 DESCARTES
apetites, como também certas inclina- daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste- em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan- encontrava impressas em minha me-
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam proce-
das figuras, dos movimentos dos cor- der dé meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor € necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve- mim por quaisquer outras coisas, Coi-
lam ao tato. Demais, aí notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne-
variedade me fornecia meios de distin- ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir
o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito,só que essas
todos os outros corpos uns dos outros, coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam-
apresentavam ao meu pensamento, & bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa- que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce- que eram, as mais das vezes, compos-
diam essas idéias! *º, Pois eu experi- tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen- idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos,
sorte que não podia sentir objeto 11, Não era também sem alguma
algum, por mais vontade-que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti- que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente, jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei- as minhas afecções; e, enfim, eu era to-
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
dor em suas partes e não nas dos ou-
15º 4... e-sobre-que fundamento era apoiada
minha crença. ..”; enumeração até O $ 12 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos “prejuízos dá infância”. Os argu- 12. Mas, quando examinava por
mentos Serão os seguintes: à) a coerção (cf. Princi-
pios, 1,8 1: “Não está em meu poder fazer com que
que desse não sei que sentimento de
experimentemos um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro...” b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis: 0) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo em geral: d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de mêu corpo como dos outros fome, nos dá vontade de comer, e a se-
corpos; é) É nele que sinto minhas afecções é meus
preta (noção do corpo próprio); f) é em suas par- cura da garganta nos dá desejo de
es que sinto prazer e dor; &) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não ' podia
filológicos c as afecções da alma (contrações do
estômago é fome) pode provir tão-somente de um
apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141

pois não há, certamente, qualquer afi- 14. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de- que jamais acreditei sentir algo, estan-
sejo de comer, assim como entre o sen- do acordado, que não pudesse, tam-
timento da coisa que causa a dor é O bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti- ao estar dormindo; e como não creio
mento engendra. E, da mesma manei- que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao. dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen- devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que Os juízos, aquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado, E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los! 89, que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois! º!, muitas expe- que me pareciam ser as mais verdadei-
riências arruinaram, pouco a pouco, rás.
todo o crédito que eu dera aos senti- 15. E, quanto às razões que me ha-
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver-
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua- muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui-
os-mais altos cimos dessas torres, pare-
tas coisas de que a razão me desviava,
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando às
ensinamentos dessa natureza. E, embo-
olhava de-baixo; e, assim, em uma infi-
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outtas ocasiões, achei erros
não dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte-
pensava que se devesse, por isso, con-
riores. E não somente nos sentidos
exteriores, mas mesmo nos interiores; cluir que procediam de coisas diferen-
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape-
interior do que a dor? E, no entanto,
sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor- causa dessas idéias e que às produ-
tados, que lhes parecia ainda, algumas za! 62
vezes, sentir dores nas partes que lhes 16. Mas, agora que começo a me-
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia descobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embóra sen-
tisse dores nele. +82 Crítica dos argumentos a) é £) expostos
anteriormente: como já notara a Meditação Tercei-
vso Ea definição
do “pré-juizo”, ta, a “natureza” pode contravir a razão, e o argu-
vas “E, depois, examinarei as razões que me obri: mento proveniente da coerção é abalado pela hipó-
garam em seguida a colocá-las em dúvida, ..” Os tese-de uma faculdade desconhecida que poderia
E 13e 14 recapitulam as razões tiradas da Medita- produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira: sensíveis.
142 DESCARTES

que deva temerariamente admitir todas já que, de um; lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me-
nar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma coisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, e que, de outro,
geral! 82, tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em queé apenas uma coisa
que todas as coisas queconcebo clara extensa e que não pensa, é certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei-
que possa conceber clara é distinta- ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa'sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele! 88,
estar certo de que uma é distinta ou [8. Ainda mais, encontro em mim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti-
postas separadamente, ap menos pela culares e distintas de mim, as faculda-
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa- quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que sejaobrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
diferentes! 8*, E, portanto, pelo pro- não podem ser concebidas sem mim,
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que, no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
não pertence necessariamente nenhu- "que temos dessas faculdades, ou (para
servir-me dos termos:da Escola) no seu
ma outra coisa à minha natureza ou à
minha essência, a não ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente espécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, Os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên- modos: ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito nrudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado! 88, todavia, múltiplas posturas é outras semelhan-
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedentes, sem algu-
182 “E, enfim, considerarei o que devo a respéito
delas agora acreditar,” Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, é
trata mais “agora” de voltar aos “prejuizos” elimi- nem, por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mas tampounco:se trata: mas É muito evidente que essas facul-
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali-
sá-los à luz da veracidade dívina. Começa, aqui, à dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta- ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. . rea ou extensa, é não a uma substância
184 É o elemento essencial da provada distinção:
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamente. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, hã
invalidar todas as conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre a alma e 6 corpo.
18% Notar a reserva: não sabemos ainda sea prova
se acha contida, mas de modo nenhum
poderá ser aplicada. Cf: “E se Deus mesmo jun- qualquer inteligência" $ 7. Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma. que fosse
impossível uni-los mais, e fizesse um composto des-
tas duas substâncias assim unidas, conçebemos +84 É a décima verdade. Acerca das noções de dis-
também que: permaneceriam realmente distintas, tinção real e modal, cf. Princípios,
1, 60-61.
não obstante tal união, porque, qualquer que seja a *e2 Esta distinção dos modos da substânciaexten-
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos modos da substância inteligente anuncia
destes e do seu poder de separá-tas. ... “ (Princi- que deve haver em mim outra coisa-além do puro
pios, 1,60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143

contra-se em mim certa faculdade pas- mente. Pois, não me tendo dado nenhu-
siva de sentir, isto é, de receber € ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensi- seja assim, mas, ao contrário, uma
veis! 88: mas ela me seria inútil, e dela fortíssima inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor-
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa! *º, capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias, mento se, com efeito, essas idéias par-
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causas que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas corpóreas, ou fossem por elas produzi-
uma coisa que pensa, visto que ela não das, E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento! 7º, e, tam- que há coisas corpóreas que exis
bêm, que essas idéias me são frequen- tem? TZ.

temente representadas sem que eu em * 21. Talvez elas não sejam, todavia,
nada contribua para tantó e mesmo, inteiramente como nós-as percebemos:
amiúde, mau grado meu; É preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos
é muito obscura é confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den-
mim, na qual toda a realidade que há
objetivamente nas idéias por ela produ- tre elas, concebo clara e distintamente,
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen-
geral, compreendidas no objeto da
temente (como notéi antes). E esta
Geometria especulativa. aí se encon»
substância é ou um corpo, isto é, uma tram' verdadeiramente. Mas, no que se
tiatureza corpórea, na qual está conti- refere a outras coisas, as quais ou são
da formal é efetivamente tudo o que apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente é por represen- o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais menos claramente: e menos distinta-
nobre do que o corpo, na qual isto mente, como a luz, o som, a dor eou-
mesmo esteja contido eminentemen- tras semelhantes, é certo que, embora
te! 71 í
sejam elas muito duvidosas e incertas,
20, Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de: que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse-
ele não me envia essas idéias imediata- guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura, na qual que não me tivesse dado também algu-
a realidade das idéias não esteja conti- ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas eminente- poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
tes Passagem à prova da existência das coisas certeza! 73,
materiais. Parte-se ido: reconhecimento em mim da
existência de uma sensibilidade passiva:
vES "Se acredite; quea ação ea paixão são apenas +72 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única & mesma coisa a que se-atribuiram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta-
momes diferentes. : .” (A Hyperaspistes, 27 de julho mos:diante-de uma verdade: processamento análogo
de 1641) ao de uma prova por absurdo. Assim, fica estabele-
179 Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabé-lo. existência dos corpos.
172 Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 173 O'valor do sentimento. é especificado: ele vai
substancia fora de mim que, em virtude do-princípio mais longe do ques simples atestação da existência
de causalidade, será, ou máis “nobre” do que o dos corpos. Por menor que-sejaq valor objetivo da
corpo (causa eminente), ou o próprio Corpo (causa verdade sensível, esta possui, no entanto, um valor.
formal) Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível: qual-a verdadeira
infringiria o principio da veracidade divina: função do:sentimento e o: fim que o justifica.
144 DESCARTES

22. E, primeiramente, não há dúvi- quando meu corpo tem necessidade de


da de que tudó o que a natureza me en- beber ou de comer, simplesmente per-
sina contém alguma verdade. Pois, por ceberia isto mesmo, sem disso ser
natureza. considerada em geral, não advertido por sentimentos confusos de
entendo agora outra coisa senão o pró- fome-s de sede. Pois, com efeito, todos
prio Deus, ou a ordem e a disposição esses sentimentos de fome, de sede, de
que Deus estabeleceu nas coisas cria- dor, etc., nada são exceto maneiras
das. E, por minha natureza, em parti- confusas de pensar que provêm e
cular, não entendo outra coisa senão a dependem da união e como que da
complexão ou o conjunto de todas as mistura entre o espírito e o corpo.
coisas que Deus me deu. 25. Além disso, a natureza me ensi-
23. Ora, nada há que esta natureza na que muitos outros corpos existem
me ensine mais expressamente, nem em torno do meu, entre os quais devo
mais sensivelmente do que o fato de procurar uns e fugir de outros. E,
que tenho um corpo que está mal dis- certamente, do fato de que sinto dife-
posto quando sinto dor, que tem neces- rentes sortes de cores, de odores, de
sidade de comer ou de beber, quando sabores, de sons, de calor é de dureza,
nutro Os sentimentos de fome ou dé etc., concluo, com segurança, que hã
sede, ete. E, portanto, não devo, de nos corpos, de onde procedem todas
modo algum, duvidar que haja nisso essas diversas percepções dos sentidos,
alguma verdade! 74, algumas variedades que lhes. corres-
24. A natureza me ensina, também, pondem, embora essas variedades tal-
por esses sentimentos de dor, fome,
vez não lhes sejam efetivamente seme-
sede, etc., que não somente estou aloja-
lhantes. E, também, do fato de que,
do em meu corpo, como um piloto em entre essas diversas percepções dos
seu navio, mas que, além disso, lhe sentidos, umas me são agradáveis e ou-
estou conjugado muito estreitamente e tras desagradáveis, posso tirar uma
de tal modo confundido e misturado, consequência completamente certa,
que componho com ele um único isto é, que meu corpo (ou, antes, eu
todo! 78. Pois, se assim não fosse, mesmo por inteiro, na medida em que
quando meu corpo é ferido não sentiria sou composto do corpo e da alma)
por isso dor alguma, eu que não sou pode receber diversas comodidades ou
senão uma coisa pensante, e apenas incomodidades dos outros corpos que
percéberia esse ferimento pelo entendi- o circundam.
mento, como o piloto percebe pela 26. Mas há muitas outras coisas
vista se algo se rompe em seu navio; e que parece-me terem sido ensinadas
pela natureza, as quais, todavia, não
174 Depreende-se agora, o que-de verdade contém recebi verdadeiramente dela, mas que
“o ensinamento da natureza”, ou, ainda, qual o se introduziram em meu espírito por
papel priginal do sentimento. Em seu nível, desven-
da-se a décima segunda verdade: eu tenho um corpo certo costume que tenho de julgar
ao qual estou jungido. inconsideradamente as coisas; e,
778 Frase capital, Descartes não estabeleceu que
éu sou Um entendimento: + um corpo, porém que assim, pode ocorrer facilmente: que
em mim há, além dg mais, uma “mistura” dessas - contenham alguma falsidade. Como,
duas substâncias. E esta mistura de faio corrige o
dualismo de direito. A idéia de-que sou totalmente
por exemplo, a opinião que tenho
corpo e totalmente espírito anuncia um tema Funda- segundo a qual todo espaço, no qual
mental da Antropologia moderna. Pode-se dizer, nada há que se mova é cause impres-
por exemplo, que a Phénoménologie dela Percep-
tion de Merleau-Ponty. constitui, em certo -sentido, são em meus sentidos, é vazio; que, em
um comentário dessas linhas: um corpo que é quente, há alguma
MEDITAÇÕES 145

coisa de semelhante à idéia do calor ensine que dessas diversas percepções


que existe em mim; que, em um corpo dos sentidos devêssemos jamais con-
branco ou negro, há a mesma brancura cluir algo a respeito das coisas que
ou negrume que sinto; que. em um existem fora de nós, sem que o espírito
corpo amargo ou doce, hã o mesmo as tenha examinado cuidadosa e madu-
gosto ou mesmo sabor e assim por ramente. Pois é, ao que me parece,
diante; que os astros € as torres, e somente ao espírito, E não ao com-
todos os outros corpos distantes, têm a posto de espírito e corpo, que compete
mesma figura e grandeza que parecem conhecer a verdade dessas coisas! 7 7,
ter-de longe aos nossos olhos, etc. 7 8 28. Assim, ainda que uma estrela
27. Mas, a fim de que nada haja não cause em meus olhos mais impres-
nisso que eu não conceba distinta- são do que o fogo de uma vela, não há,
mente, devo definir com precisão o que todavia, em mim nenhuma faculdade
propriamente entendo quando digo que real ou natural que-mé leve a acreditar
a natureza mé ensina algo. Pois tomo que ela não é maior do que esse fogo,
aqui a natureza numa significação mas que assim o julguei desde meus
muito mais limitada do que quando a primeiros anos sem nenhum funda-
denomino: conjunto ou complexão de mento razoável. E, conquanto, ao me
todas as coisas que Deus me deu; visto aproximar do fogo, sinta calor e,
que esse conjunto ou complexão com- mesmo, sofra dor, aproximando-me
preende muitas coisas que pertencem perto demais, não há, todavia, nenhu-
apenas ao espírito, das quais não pre- ma razão que me possa persuadir de
tendo falar aqui, ao falar da natureza: que haja no fogo alguma coisa de
como, por exemplo, a noção que tenho semelhante a esse calor, assim como a
desta verdade, de que aquilo que foi essa dor; mas tenho somente razão
uma vez feito já não pode de modo para acreditar que há alguma coisa
algum deixar de ter sido feito, € uma nele, qualquer que seja, que provoca
infinidade de outras semelhantes. que em mim estes sentimentos de calor ou
conheço pela luz natural, sem a ajuda de dor.
do corpo, e que compreende também 29, Do mesmo modo, também, em-
muitas outras que pertencem apenas bora haja espaços nos quais não
ao corpo é que aqui não mais estão encontro nada que provoque e que
incluídas sob o nome de natureza: mova meus sentidos, não devo concluir
como a qualidade que ele tem de ser daí que esses espaços não contêm em
pesado, e várias outras semelhantes, si nenhum corpo; mas vejo que, tanto
das quais não falo tampouco, mas nisso como em várias outras coisas
somente das coisas que Deus me deu, semelhantes, acostumei-me a perverter
como sendo composto de espírito e de e a confundir a ordem da natureza,
corpo. Ora, essa natureza me ensina porque, tendo estes sentimentos ou
realmente a fugir das coisas que cau- percepções dos-sentidos sido postos em
sam em mim o sentimento da dor e a mim apenas para significar ao meu
dirigir-me para aquelas que me comu- espírito que coisas são convenientes ou
nicam algum sentimento de prazer; nocivas ao composto de que é parte, e
mas não vejo que, além disso, ela me sendo até aí bastante claras e bastante

Yr* Não estarei indo longe demais ao conceder 177% Distinção das ordens. “A natureza” designa
esta “verdade” no sentimento?' Não redundará isso somente a substância composta, a zona de mistura
em justificar os “prejuizos da infância” e oserros de da alma e do corpo; s seu “ensinamento” em nada
uma Fisica “fenomenológica”, como a de Aristó- concerne ão conhecimento: limita-seà informação
telese dos escolásticos? biológica.
146 DESCARTES

distintas, sirvo-me delas, no entanto, impelidos pela natureza, como acon-


como se fossem regras muito certas, tece com os doentes, quando desejam
pelas quais possa conhecer imediata- beber ou comer coisas que os podem
mente a essência e a natureza dos cor- prejudicar. Dir-se-á talvez aqui que a
pos que existem fora de mim, da qual, causa de se enganarem elesê que sua
todavia, nada me podem ensinar senão natureza é corrompida; mas isso não
algo muito confuso e obscuro” 72, afasta a dificuldade, porque um
30 Mas acima já examinei suficien- homem doente não é menos verdadei-
temente como, não obstante à sobe- ramente criatura de Deus do que um
rana bondade de Deus, ocorre que haja homem que goza de plena saúde; e,
falsidade nos juízos que formulo dessa portanto, repugna tanto à bondade de
maneira. Somente ainda se apresenta Deus que ele tenha uma natureza enga-
aqui uma dificuldade relativa às coisas nadora e falível quanto o outro. E
que a natureza me ensina que devem como um relógio composto de rodas e
ser seguidas ou evitadas e, também no contrapesos não observa menos exata-
que concerne aos: sentimentos interio- mente todas as leis da natureza quando
res que ela pôs em mim; pois parece- é mal feito, € quando não mostra bem
me ter reparado nelas algumas vezes a as horas, do que quando satisfaz intei-
existência do erro. 6, assim, que sou ramente ao desejo do artífice; da
diretamente enganado por minha natu- mesma maneira também, se considero
reza! 79, Como, por exemplo, o gosto o corpo do homem como uma máqui-
agradável de algum alimento ao qual na, de tal modo construída e composta
se tenha misturado veneno pode convi- de ossos, nervos, músculos, veias, san-
dar-me a tomar este veneno e, assim, gue e pele que, mesmo que não hou-
me enganar. É verdade, todavia, que vesse nele nenhum espírito, não deixa-
nisto a natureza pode ser escusada, ria de se mover de todas as mesmas
pois ela me leva somente à desejar o maneiras que faz presentemente, quan-
alimento do qual encontro um sabor do não se move pela direção de sua
agradável, e não a desejar o veneno, vontade, nem, por conseguinte, pela
que lhe é desconhecido; de maneira
ajuda do espírito, mas somente pela
que disso não posso concluir outra disposição de seus órgãos, reconheço
coisa senão que minha natureza não
conhece inteira e universalmente todas facilmente que seria tão natural a este
as coisas: do que, certamente, não hã corpo, sendo, por exemplo, hidrópico,
que espantar, posto que o homem, sofrer a secura da garganta que costu-
sendo de uma natureza finita, não pode ma significar. ao espírito o sentimento
também ter senão um conhecimento de da sede, e dispor-se por esta seçura a
uma perfeição limitada. mover seus nervos e suas outras partes
31. Mas nós nos enganamos tam- da forma requerida para beber e assim
bém bastante frequentemente mesmo aumentar seu mal e prejudicar-se a si
nas coisas às quais somos diretamente mesmo, quanto lhe é natural, quando
não tem nenhuma indisposição, ser le-
178 Longe de-ser “natural”, o emprego dos qaaos vado a beber para sua utilidade por
sensíveis: com vistas ao conhecimento é, pois, uma semelhante secura da garganta. E,
extrapolação ilegítima em relação no ensinamento
da “natureza”. A falta só cabe a mim. ainda que, no concernente ao uso ao
173 Não haverá, todavia, erros: mevitáveis e aos qual o relógio foi destinado por seu
quais me-conduz o ensinamento da natureza? Acei- artífice, eu possa dizer que ele se des-
tá-ló é pôr em causa, através da infalibilidade desta,
& bondade de Deus, Tomamos, assim, à um pró via de sua natureza quando não marca
blerma de Teodiçéia. bem as horas; e que, do mesmo modo,
MEDITAÇÕES 147
considerando a máquina do corpo hu- homem, tomada desse modo, seja falí-
mano como formada por Deus para ter vele enganadora!*?. :
em si todos os movimentos que costu- 33. Para começar, pois, este exam
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui, primeiramente, que há gran-
de pensar que ela não segue'a ordem de de diferença entre espírito e corpo, pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua própria
seca e que beber prejudica-lhe à con- natureza, sempre divisível e o espírito
servação; reconheço, todavia, que este inteiramente indivisível. Pois, com efei-
último modo de explicar a natureza é to, quando considero meu espirito, isto
muito diferente do outro! Pº. Pois esta é, eu mesmo. na: medida em que sou
não é outra coisa senão uma simples apenas uma coisa que pensa, nao
denominação, a qual depende inteira- posso aí distinguir partes algumas,
mente do meu pensamento, que com- mas me concebo como uma coisa
para um homem doente é um relógio única e inteira. E, conquanto, o espi-
mal feito com a idéia que tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito, todo, todavia um pé, um braço ou
e a qual não significa nada que se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo, é certo que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli- haverá aí algo de subtraido a meu espí-
car a natureza, entendo algo que se rito, E'as faculdades de querer, sentir.
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc, nao podem propria-
portanto, não deixa de ter alguma mente ser chamadas suas partes: pois O
verdade. mesmo: espírito emprega-se todo em
32. Mas, certamente, embora em querer e também todo em sentir, em
relação ao corpo hidrópico trata-se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, o contrário com as coisas corpóreas ou
quando se diz que sa natureza está extensas: pois não hã uma sequer que
corrompida, pelo fato de que, sem ter eu não faça Facilmente em pedaços por
necessidade de beber, não deixa de ter meu pensamento, que meu espirito não
a garganta seca e árida; todavia, com divida mui facilmente em muitas par-
tes e, por conseguinte, que eu não reco-
respeito à totalidade do composto, isto
nheça ser divisível. E isso bastaria
é, do espirito ou da alma unida a este
para ensinar-me que o espírito ou a
corpo, não se trata de pura denomina-
alma do homem é inteiramente dife-
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato deter sede, quando suficientemente aprendido alhures'82,
lhe é muito nocivo o beber; e, portanto, "* 34, Noto também que o espírito não
resta ainda examinar como a bondade recebe imediatamente a impressão de
de Deus não impede que a natureza do todas as partes do corpo, mas somente
do cérebro, ou talvez mesmo de uma
18º Antes de passar à justificação de Deus, Des- de suas menores partes, a saber, aquela
cartes afastará uma solução inaceitável. Trata-se de
compresnder por “minha natureza” o corpo mate-
rial como, máquina. Portanto, já não procede falar 187 Após omalogro da solução materialista, a difi-
de falha na natureza, assim como não procede dizer culdade subsiste, póis, totalmente.
que um relógio é “falível” quando não marcaa hora tê O que vai desculpar Deus é a consideração das
certa: não há patologia máquinas, Mas-esta dificuldades suscitadas de faro pela união entre a
solução, que Consiste em reduzir a substância com- alma'e o corpo. Dat por que Descartes, aqui, come:
posta humana ao corpo físico (ou ao animal-má- ça pondo em evidência aincompatibilidade dos dois
quina), é evidentemente incompatível coma união termos a unir: q divisível eo" indivisível; união,
substancial. Em Descartes, à psicofisiologia huma- aliás, que jamais , mas ape-
na não é materialista. nas'constatar e descrever,
148 DESCARTES

onde se exerce a faculdade que cha- mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz O espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa” 3, embora as outras partes do nele ser excitados pór um ferimento
corpo possam estar diversamente dis- recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infmi- será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mésma dor que sentiria se aí tives-
necessário relatar "84. se recebido um ferimento. E cumpre
35. Notof além disso, que a natu- julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos" 2 5,
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re-
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que-está inteiramente tensa, se chegar- nisso de melhor, senão que esse movi-
mos a puxar é mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a priméira A não se mexerá de maneira todos os: sentimentos que é capaz de
diferente da que poderíamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par- mais ordinariamente útil à conserva-
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde'º*, Ora, a experiência nos
mesma meancira, quando sinto ama dor leva a conhecer que todos os senti-
no pé; a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos:deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não torne paten-
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu! * ?,
puxados no pé, puxam também, ao 37, Assim, por exemplo, quando os
mesmo tempo, O lugar do cérebro de nervos que estão no; pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e aí exci- seu movimento, passando pela medula
tam Certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri- *ES “O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeiao movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se 168 Seja qual for o ponto de partida da tração exer-
desde os pés até o cérebro, pode ocor- cida sobre ela, aglândula só pode, portanto, receber
um único movimento, O que acarreta uma limitação
rér que, embora suas extremidades que considerável da integração mérvosa. Deus precisou
se acham no pé não: sejam movidas, escolher, para 0: conjunto dos movimentos indife-
rençaveis-de cada nervo, a-sinalização mais útil ao
homem,
tes A glândula pineal. 187 Essa solução do problema, confórme:ao princi-
te4 Somente ao nível da glândula póde o espírito pio do melhor, possibilita todaviao erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal mini-
varia em função da variação na disposição dessa eg tornando-se, pois; compativel com a bondade
pequena glândula, Deus.
MEDITAÇÕES 149
da espinha dorsal até o cérebro, provo- dor como se ela estivesse no pé e o sen-
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por-
faz sentir algo, isto é, dor, como estan- que o mesmo movimento no. cérebro
do no pé, pela qual o espirito é adver- não podendo causar no espírito senão
tido é excitado a fazer o possível para O mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri- sendo muito mais frequentemente exci-
gosa e nociva para o pé tado por uma causa que feré o pé, do
38. É verdade que Deus podia esta- que por alguma outra que esteja alhu-
belecer a natureza do homem de tal res, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen- alguma outra parte'*º. E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove-
por exemplo, que o movimento sé nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou amda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga-
possa ser; mas nada disso teria contri- nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou-
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas,
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio deles, as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por- meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe-
necessidade de beber, para a conserva- rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, é podendo quase sem-
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto éxaminar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en- para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi-
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau-
vezes, falível e enganadora. sas de meéus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé, mas em qualquer “88 “rustificação” da ilusão
dos amputados. Po-
uma das partes do nervo que está ten- der-se-ia perguntar se Deus É inteiramente
descul-
pado. Afinal de contas, por que-co! Tão
dido desde o pé até o cérebro, ou
il

RE SGD nasaciaa À Naa


mesmo no cérebro, o mesmo movi-
mento que se faz ordinariamente quan-
do o pé está mal disposto, sentir-se-á a
150 DESCARTES

doravante que se encontre falsidade elas me aparecem e quando, sem


nas coisas que me são mais ordinaria- nenhuma interrupção, posso ligar o
mente representadas pelos meus senti- sentimento que delas tenho com a
dos'2º, E devo rejeitar todas as dúvi- sequência do resto de minha vida,
das desses dias passados como estou inteiramente certo de que as per-
hiperbólicas e ridículas, particular- cebo em vigília e de modo algum em
mente esta incerteza tão geral no que sonho. E não devo de maneira alguma
diz respeito ao sono que eu não podia duvidar da verdade dessas coisas se,
distinguir da vigília: pois agora encon- depois de haver convocado todos os
tro uma diferença muito notável no meus sentidos, minha memória e meu
fato de que nossa memória não pode entendimento para examiná-las, nada
jamais ligar e juntar nossos sonhos uns me for apresentado por algum deles
com os outros e com toda a segiência que esteja em oposição com o que me
de nossa vida, assim como costuma for apresentado pelos outros. Pois, do
juntar as coisas que nos acontecem fato de que Deus não ê enganador
quando despertos, E, com efeito, se segue-se necessariamente que nisso
alguém, quando eu estou acordado, me não sou enganado.
aparecesse de súbito e desaparecesse 43, Mas, como a necessidade dos
da mesma maneira, como fazem as afazeres nos obriga amiúde a nos
imagens que vejo ao dormir, de modo determinar antes que tenhamos tido o
que eu não pudesse notar nem de onde lazer de examiná-las tão cuidadosa-
viesse, nem para onde fosse, não seria mente, é preciso confessar que a vida
sem razão que eu consideraria mais do homem está sujeita a falhar muito
um espectro ou um fantasma formado frequentemente nas coisas partícula-
no meu cérebro e semelhante áqueles res; e, enfim, é preciso reconhecer a
que aí se formam quando durmo do
imperfeição e a fraqueza de nossa
que um verdadeiro homem. Mas quan-
natureza!*º.
do percebo coisas das quais conheço
distintamente o lugar de onde vêm e
+40. Embora nos proporcione o fundamento da ver-
aquele onde estão, e o tempo no qual dade é nos desvende os mecanismos do erro, a
Metafísica não nos fornece, igualmente, o meio infa-
tes O mundo é restabelecido na sua verdade: dis- lível de não falhar, De resto, ela nos ensinou tam-
pomos-dos meios:de evitar ao máximo o erro. bêm a medir mais exatamente a nossa finitude.

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