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CAPÍTULO 3

O teste da dúvida.
A dúvida metódica
Responder aos céticos: em busca de um
fundamento para o conhecimento
Descartes pensa que os argumentos céticos merecem resposta.
Quem discordar deles, terá de mostrar o que há de errado no ceticismo.
Pensa também que, para refutar o ceticismo, é preciso encontrar um
fundamento (ou princípio) para o conhecimento que não esteja exposto às
dúvidas dos céticos.
Sem um fundamento absolutamente seguro no qual se apoiarem, todas as
nossas crenças ou opiniões se desmoronam, e os céticos levam a melhor.
Mas como encontrar esse fundamento, que os céticos dizem não existir?
A regressão infinita da justificação parece mostrar precisamente que não
há um fundamento ou princípio no qual as nossas crenças se apoiem.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


O método para testar crenças: a dúvida
Se a ideia é encontrar um princípio ou fundamento absolutamente seguro no qual
apoiar todas as nossas crenças (ou opiniões), então é preciso pôr de parte todas as
crenças (ou opiniões) que não sejam absolutamente certas.
É, pois, preciso encontrar uma maneira eficaz de testar as nossas crenças, de
modo a distinguir aquelas que são absolutamente certas das que não o são.
O teste, defende Descartes, consiste em submeter todas as nossas crenças à
dúvida. A ideia é, como fazem os céticos, procurar razões para duvidar de tudo, de
modo a ver se alguma crença é imune à dúvida.
Duvidar: é esse o método cartesiano.
Daí ser conhecido como a dúvida metódica.
O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano
O método: como funciona a dúvida?
O método é muito simples: se alguma crença conseguir sobreviver ao teste da dúvida,
então essa crença é indubitável. Podemos, assim, estar absolutamente certos disso.
Por isso, a dúvida cartesiana não pode deixar nada de fora: aplica-se a todo o tipo de
crenças e também às nossas faculdades racionais, isto é, a dúvida tem de ser
universal. Isso quer dizer que não podemos tomar nada como certo à partida.
Além disso, Descartes considera todo o tipo de razões para duvidar, mesmo as mais
rebuscadas e propositadamente exageradas. Por isso se diz que é uma dúvida
hiperbólica.
É possível que algumas crenças duvidosas sejam verdadeiras. Mas não interessam
crenças que sejam simplesmente verdadeiras, pois Descartes procura apenas crenças
indubitáveis, que são as únicas que podem servir como fundamento do conhecimento.
O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano
Aplicar a dúvida metódica: as crenças baseadas nos
sentidos (I)
Nós temos milhões de crenças ou opiniões. Como testar cada uma
delas?
Não é preciso testar uma a uma, pois há muitas crenças que
recorrem ao mesmo tipo de justificação: é o caso da enorme
quantidade de crenças baseadas nos nossos sentidos. Por isso,
podemos submetê-las em conjunto à dúvida metódica.
Teremos razões para duvidar delas?
Sim, os nossos sentidos já nos enganaram antes (ilusões
visuais, auditivas, etc.).
Se já nos enganaram antes, é possível que nos estejam a
enganar também agora.
Logo, as crenças baseadas nos sentidos são duvidosas.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Aplicar a dúvida metódica:
as crenças baseadas nos sentidos (II)

Resultado do teste: é possível que tudo o que vejo, o que ouço, o que cheiro, o
que toco, o que saboreio não passe de ilusão, pelo que nenhuma crença baseada
nos sentidos sobrevive à dúvida (nenhuma é indubitável).
Assim, se houver um fundamento para o conhecimento, esse fundamento não é
dado pelos sentidos.

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Aplicar a dúvida metódica: a hipótese cética do
sonho (I)
Será mesmo verdade que todas as crenças baseadas nos sentidos são duvidosas?
Os nossos sentidos não se podem corrigir uns aos outros? Por exemplo, tocando com o
dedo no lápis mergulhado no copo com água, posso confirmar que afinal o lápis não
está quebrado.
É, pois, muito improvável que todos os nossos sentidos em simultâneo nos enganem e,
portanto, talvez nem tudo o que percecionamos (vemos, ouvimos, tocamos, ...) seja
ilusório.
Porém, diz Descartes, não é precisamente isso que acontece quando estou a sonhar?
Quando estou a sonhar, tudo o que me parece estar a ver, a ouvir, a tocar, etc. é
ilusório. Não posso estar agora a sonhar?

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Aplicar a dúvida metódica: a hipótese cética do
sonho (II)

Enquanto estou a sonhar, acredito que aquilo que se passa no sonho está realmente a
acontecer.
Se acredito que aquilo que se passa no sonho está realmente a acontecer, então as
experiências que tenho enquanto estou a sonhar são semelhantes às que tenho
quando estou acordado.
Se as experiências que tenho enquanto estou a sonhar são semelhantes às que tenho
quando estou acordado, então é possível que esteja agora a sonhar.
Logo, é possível que esteja agora a sonhar.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Aplicar a dúvida metódica: a hipótese cética do
sonho (III)

Resultado do teste: não posso confiar em nenhuma das minhas experiências,


pelo que tudo pode ser ilusório.
Descartes não conclui que está a sonhar, mas antes que não pode ter a certeza
de que não está a sonhar.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Aplicar a dúvida metódica: a hipótese cética do génio
maligno (I)
Ainda assim, há coisas que continuam a ser verdadeiras, quer esteja a sonhar ou não.
Por exemplo, tanto faz estar a sonhar ou acordado, é verdade que 1 + 1 = 2.
Talvez a crença de que 1 + 1 = 2 seja indubitável.
Mas Descartes diz que nem mesmo crenças como essa (as chamadas verdades da
matemática) são imunes à dúvida. Recorrendo à dúvida hiperbólica, podemos imaginar
situações que nos permitam duvidar delas também.
Por exemplo, podemos imaginar um ser muito poderoso e inteligente (um génio) que
manipula de forma sistemática e maldosa (esse génio é maligno) os meus pensamentos,
fazendo-me acreditar que 1 + 1 = 2, apesar de ser falso que 1 + 1 = 2. Nesse caso, mesmo os
nossos raciocínios matemáticos seriam enganadores.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Aplicar a dúvida metódica: a hipótese cética do
génio maligno (II)

Mais uma vez, Descartes não afirma que existe um génio maligno. Contudo, a
sua mera possibilidade é suficiente para que a dúvida não desapareça.
Resultado do teste: tudo pode ser ilusório e nem sequer posso confiar nos meus
raciocínios. Nem mesmo as chamadas «verdades matemáticas» são
indubitáveis.

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


Ponto da situação

Será que tudo mesmo é duvidoso?


Não posso ter a certeza nos que os meus sentidos me mostram, também não
posso ter a certeza de que tenho um corpo, de que existe um mundo exterior com
objetos físicos, nem sequer posso confiar nos meus raciocínios.
Nada parece ter sobrevivido ao teste da dúvida.
Até que Descartes pensa para si mesmo:
Será que eu próprio existo?

O Espanto 11 | Filosofia 11.º ano


CAPÍTULO 4

O resultado da dúvida:
O Cogito
O Cogito: penso, logo existo
Enquanto penso que tudo pode ser falso, dou-me conta que tem de ser verdade que
sou alguma coisa: sou aquela coisa que está nesse preciso momento a duvidar (a
pensar que tudo pode ser falso).
Sou um ser que duvida, isto é, um ser pensante (duvidar é pensar).
Penso, logo existo (cogito, ergo sum) = Sou um ser pensante
Mesmo que haja um génio maligno que me queira enganar sistematicamente, ele não
me conseguirá enganar quanto à minha própria existência. Isto porque, para me
poder enganar, eu tenho de existir: sou aquele que o génio maldoso está nesse
momento a enganar.
Qual a importância do Cogito?
O Cogito tem uma importância central para a teoria do conhecimento de Descartes.
Por três razões principais:

1. É apresentado como uma refutação dos céticos: a prova de que os céticos


estavam errados quando diziam que o conhecimento não é possível;
2. É o princípio do conhecimento: proporciona o fundamento sólido que Descartes
procurava para o edifício do conhecimento;
3. Fornece um critério de verdade: constitui um modelo de clareza e distinção, o
qual poderá servir para distinguir as crenças verdadeiras das falsas.
Refutação do ceticismo (primeira parte):
o Cogito é uma crença indubitável
Os céticos radicais consideram que não podemos saber seja o que for, isto é, que o
conhecimento não é possível.
Porém, Descartes diz que o Cogito é um conhecimento inabalável, que os próprios
céticos são incapazes de rejeitar, pois é imune até às mais radicais dúvidas céticas (é
uma crença indubitável).
Experimente duvidar que está a pensar: consegue duvidar que está a pensar
sem estar a pensar?
A própria dúvida reforça a certeza de que pensa (que é um ser pensante).
Não há como rejeitar isso, defende Descartes.
1. Refutação do ceticismo (segunda parte):
o Cogito é uma crença autojustificada
Como justificar o Cogito, isto é, a crença de que sou um ser pensante?
A crença de que «eu estou a pensar» e, por exemplo, a crença de que «eu estou a correr» são
justificadas do mesmo modo?
Não, o tipo de justificação é diferente: ao passo que é impossível duvidar que estou a pensar sem estar
realmente a pensar (tem de ser verdade que estou a pensar), posso pensar que estou a correr sem
estar realmente a correr (pode ser falso que estou a correr):
• pode ser que esteja simplesmente a sonhar que corro;
• pode ser que a crença de que estou a correr seja uma alucinação;
• posso estar sob o efeito de uma substância química que produz essa impressão na minha mente.
Por sua vez, o Cogito é uma crença que se justifica a si própria: é uma crença autojustificada.
Logo, ao contrário do que dizem os céticos, nem todas as crenças se apoiam noutras crenças, pelo
que não há aqui uma regressão infinita da justificação.
. O Cogito é o princípio (fundamento) do
conhecimento
• Sendo indubitável, o Cogito é uma crença absolutamente segura. É, então, o
princípio ou fundamento sólido que Descartes procura para o conhecimento.
Descartes defende, por isso, uma perspetiva fundacionalista do conhecimento.
• Sendo autojustificado, o Cogito não se apoia noutras crenças. E, sendo o Cogito o
princípio em que o conhecimento se apoia, não há regressão infinita no processo
de justificação. Trata-se de um princípio ou fundamento a priori, pois encontra-
se no pensamento (ou razão) apenas, sem depender dos sentidos. Visto que tal
fundamento é racional, considera-se Descartes um racionalista.
O Cogito proporciona um critério de verdade.
O Cogito é uma verdade inabalável. Mas o que há de especial no Cogito para explicar a certeza proporcionada
por ele?
Nada, diz Descartes, a não ser que percebe com toda a clareza e distinção que tem de existir enquanto pensa.
Se a clareza e distinção é aquilo que o leva a ter a certeza na verdade do Cogito, então poderá usar a clareza
e distinção como critério de verdade, isto é, como critério para reconhecer outras crenças verdadeiras,
distinguindo-as das crenças falsas.
Percebe-se algo de forma clara quando isso é imediatamente percebido por uma mente atenta: não é preciso
refletir nem fazer deduções para lá chegar: é uma intuição do pensamento.
Percebe-se algo de forma distinta quando a perceção em causa está totalmente separada de todas as outras
perceções, isto é, quando não se confunde com outras perceções e contém apenas aquilo que é claro.
As perceções são conteúdos mentais ou pensamentos, pelo que o critério da clareza e distinção é um critério
racional: diz respeito ao que é claro e distinto para a mente ou pensamento e não para os sentidos.
CAPÍTULO 5

Ir além do Cogito
Como confiar no critério da clareza e distinção?
Descartes já sabe, sem dúvida, alguma coisa: que ele próprio existe (Cogito).
Mas, por enquanto, ainda não pode ter a certeza de que tem um corpo, nem que há
objetos físicos (incluindo outras pessoas, árvores, o Sol, etc.)
Como saber algo mais do que o Cogito? E como saber outras coisas a partir do
Cogito?
Eis uma resposta: aplicando o critério da clareza e distinção dado pelo Cogito.
Usando esse critério como guia, posso descobrir outras verdades.
Mas... poderei mesmo confiar no critério da clareza e distinção? Que garantias tenho
de que tal critério não me leva ao engano? Não poderei estar, neste caso, a ser
manipulado por uma espécie de deus enganador?
O génio maligno que, apesar de não me conseguir enganar quanto à minha
existência, pode no entanto enganar-me quando uso o critério da clareza e distinção.
Só um deus benévolo me permitirá confiar no
critério da clareza e distinção
Mesmo quando perceciono algo de modo claro e distinto, estou sujeito ao engano, a
não ser que haja um deus bondoso que, precisamente por ser bom e poderoso, não
permita tal coisa.
Assim, só um ser bondoso e com poder suficiente para isso (Deus) me pode
proporcionar a garantia extra de que não me engano sempre, nomeadamente de que
não me engano quando perceciono algo de modo claro e distinto.
Se esse ser poderoso e benévolo não existir, não posso ter a certeza de nada além do
Cogito, pois nada me impede de errar, mesmo que percecione algo de modo claro e
distinto.
Mas será que existe realmente esse ser poderoso e benévolo (Deus)?
Deus existe: o argumento da marca
O argumento da marca a favor da existência de Deus é sobre a causa da ideia de perfeição
que existe na nossa mente.
É o seguinte:
Tenho em mim a ideia de perfeição.
Essa ideia tem de ter uma causa (não pode vir do nada).
O que tem menos realidade (o que é menos perfeito) não pode ser a causa do que tem mais
realidade (do que é mais perfeito).
Logo, a ideia de perfeição só pode ter sido causada por um ser que tenha todas as perfeições: Deus.
Assim, tenho a ideia de perfeição porque Deus a colocou, desde que nasci (é uma ideia
inata), em mim. Não foi inventada por mim (essas são as ideias factícias) nem foi causada
por algo que eu tenha observado (essas são as ideias adventícias).
Ao colocar a ideia de perfeição em mim, o Deus criador quis deixar na minha mente uma
marca da sua própria perfeição.
Deus existe: o argumento ontológico
O argumento ontológico baseia-se na ideia de que a existência de algo perfeito faz
parte da essência do conceito de perfeição.
É o seguinte:
Vejo clara e distintamente que um ser maximamente perfeito tem todas as perfeições.
É também claro e distinto que a existência é uma perfeição.
Logo, existe um ser maximamente perfeito (Deus).
Assim, a existência está contida na ideia de perfeição.
Seria contraditório afirmar que temos a ideia de um ser perfeito que não existe
realmente: se não existe, não pode ser perfeito.
Há, afinal, objetos físicos
Uma vez provada a existência de Deus, todas as hipóteses céticas são definitivamente afastadas.

Assim, além do Cogito, podemos agora usar com confiança o critério da clareza e distinção para obter
conhecimento de outras coisas. Trata-se, então, de verificar com cuidado o que é claro e distinto.

Aplicando o critério da clareza e distinção, podemos separar o que é verdadeiro do que é falso. Por
exemplo, é claro e distinto que existem objetos físicos: são as causas das perceções dos sentidos.

Porém, nem tudo o que os nossos sentidos percecionam é claro e distinto. Por exemplo, as cores, os
sabores e os odores percebidos não são claros e distintos. Descartes considera que só as propriedades
que são compreendidas pela matemática (as propriedades quantificáveis) podem ser conhecidas.

Em suma: o mundo exterior existe, mas as coisas que o constituem não são exatamente como as
percebemos. Daí que os sentidos tenham de se submeter ao critério racional da clareza e distinção.
Eis, então, o que sabemos: que eu existo, que existe Deus e que há um mundo de objetos físicos. Estes nem
sempre são como nos parecem.

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