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O PROBLEMA DO

CONHECIMENTO
Resposta de Descartes
O FUNDACIONALISMO CARTESIANO

O fundacionalismo…
• é uma das respostas clássicas para o problema do ceticismo;
• sustenta que a existência de crenças básicas, autoevidentes, põe um travão na
regressão das cadeias de justificações, tornando possível a existência de
crenças justificadas e, por conseguinte, do conhecimento;
• apresenta-nos uma imagem do conhecimento como um enorme edifício
sustentado por alicerces inabaláveis: as crenças básicas ou fundacionais.

Mas que tipo de crenças pode aspirar a esse estatuto?


O FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Descartes procurou arduamente responder a esta pergunta e propôs-se encontrar


pelo menos uma crença com estos características, desenvolvendo
uma perspetiva que ficou conhecida por fundacionalismo cartesiano.
O que pretendia Descartes alcançar?
Que estratégia seguiu para atingir esse objetivo?
Foi bem-sucedido?
O PROJETO CARTESIANO

Descartes viveu numa época marcada por grandes transformações


sociais, políticas e ideológicas.

Num período relativamente curto, as velhas certezas tradicionais foram postas


em causa e assistiu-se a um profundo abalo de convicções amplamente enraizadas.

Instalou-se, assim, um clima de ceticismo generalizado no que diz respeito à nossa


capacidade de alcançar qualquer espécie de conhecimento sólido e duradouro.
O PROJETO CARTESIANO

Descartes não estava disposto a aceitar o ceticismo sem tentar escapar à conclusão
aparentemente inevitável de que nada se pode saber.

Com este objetivo em mente, Descartes decide levar o ceticismo ao extremo e


vencê-lo no seu próprio jogo, ou seja, decide recorrer à própria dúvida cética como
método para provar a impossibilidade do ceticismo.
O PROJETO CARTESIANO

Se seguisse os caminhos mais extremos da dúvida, talvez pudesse encontrar algo de


absolutamente indubitável.

uma crença básica que seja de tal modo autoevidente que nem a mais
extrema das dúvidas a põe em causa.

Uma crença com estas características constituiria uma base sólida sobre a
qual poderia edificar com segurança o conhecimento.
O PROJETO CARTESIANO

Objetivo de Descartes: estabelecer um conhecimento seguro e indubitável, ou


seja, encontrar pelo menos uma crença básica que pudesse servir de fundamento
para o conhecimento.

Método de Descartes: a dúvida – duvidar de tudo o que se possa imaginar e


averiguar o que resiste a esse processo; por razões óbvias, este procedimento ficou
conhecido por dúvida metódica.
O PROJETO CARTESIANO

Fundacionalismo
Cartesiano

Objetivo Método
Conhecimento Dúvida metódica
seguro
O PROJETO CARTESIANO

Para concretizar os seus propósitos, Descartes não precisa de examinar cada crença
isoladamente (tarefa que seria interminável).

Basta…
• Analisar as principais fontes das nossas crenças e rejeitar todas as crenças
minimamente duvidosas; se detetarmos o menor grau de dúvida numa
dessas fontes, temos uma justificação para rejeitar todas as crenças que dela
provenham.
DÚVIDA CARTESIANA VS. DÚVIDA CÉTICA

Embora Descartes recorra à dúvida cética, a dúvida cartesiana não se identifica


inteiramente com a dúvida cética original.

Descartes subverte-a, instrumentalizando-a, isto é, servindo-se dela como método


para alcançar o conhecimento e provar a insustentabilidade do próprio
ceticismo.
DÚVIDA CARTESIANA VS. DÚVIDA CÉTICA

Assim, contrariamente ao que acontecia com a dúvida cética original, a dúvida


cartesiana não é um ponto de chegada — o desfecho inevitável de um rigoroso
processo de reflexão -, mas sim um ponto de partida – um meio para alcançar a
verdade.
DÚVIDA CARTESIANA VS. DÚVIDA CÉTICA

Não se trata, portanto, de uma suspensão permanente do juízo, mas sim de uma
decisão de considerar provisoriamente falso tudo o que seja
minimamente duvidoso.

Isto significa que, à partida, a dúvida cartesiana não conhece limites e não há nada
de que não seja legítimo duvidar. Neste sentido, ela é absolutamente universal;
por princípio, pode aplicar-se a tudo, pelo menos até que se encontre algo que seja
absolutamente indubitável.
DÚVIDA CARTESIANA VS. DÚVIDA CÉTICA

Descartes leva a dúvida ao seu extremo, de tal modo que rejeita como falso tudo
aquilo que seja meramente duvidoso, razão pela qual se apelida a dúvida cartesiana
de hiperbólica (do grego hyperbolé, que significa excesso ou exagero).

Assim, a dúvida cartesiana caracteriza-se por ser:


- Metódica
- Provisória
- Universal
- Hiperbólica
RAZÕES PARA DUVIDAR

Descartes vai recorrer a uma argumentação cética para pôr em causa


tudo aquilo que julgamos saber, deitar abaixo todas as nossas
convicções e verificar se existe alguma que resista a tamanha
devastação.
Estes argumentos são geralmente conhecidos por "razões
para duvidar", pois a sua conclusão é justamente a de que
não podemos confiar em crenças que tenham uma
determinada origem.

Sentidos – ilusão percetiva


Sonho – indistinção vigília-sono
Hipótese do génio maligno – erros de raciocínio
RAZÕES PARA DUVIDAR

Os sentidos
O primeiro argumento de Descartes baseia-se nas ilusões dos sentidos, que nos
enganam em diversas ocasiões: por exemplo, quando vemos uma cana
mergulhada na água parece que está partida; muitas vezes, objetos longínquos
parecem redondos, quando na realidade são quadrados; por vezes, parece que
nos estão a chamar e afinal é só o vento a passar; pode parecer-nos que cheira a
batatas fritas quando alguém está a fritar rissóis, etc.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Aplicando o princípio hiperbólico da dúvida, segundo o qual devemos rejeitar


como falso tudo aquilo que seja minimamente duvidoso, Descartes conclui que
não temos justificação para acreditar em nada que tenha origem nos sentidos.
RAZÕES PARA DUVIDAR

O argumento pode ser reformulado conforme se segue.

(1) Os nossos sentidos enganam-nos algumas vezes.


(2) Se os nossos sentidos nos enganam, então não podemos saber se nos estão
a enganar neste momento ou não.
(3) Se não podemos saber se os nossos sentidos nos estão a enganar, então não
podemos confiar nas informações adquiridas através deles.
(4) Logo, não podemos confiar nas informações adquiridas através dos
sentidos.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Será este argumento suficiente para nos persuadir de que nunca temos justificação
para acreditar nos nossos sentidos?

Muitos autores consideram que não. Embora a primeira premissa seja claramente
verdadeira, a segunda premissa deixa muito a desejar. Do facto de, por vezes, os
nossos sentidos nos enganarem não se segue que temos boas razões para nunca
confiar neles, até porque a maior parte dessas ilusões pode facilmente ser resolvida
recorrendo aos próprios sentidos.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Por exemplo, posso aproximar-me para ver um objeto mais de perto, posso usar
uma régua para fazer medições mais exatas e, sobretudo, posso sempre usar os
outros sentidos para me certificar de que não estou a ser iludido por um deles (se
tocar na cana, constato que afinal não estava partida; se abrir a janela, vejo que não
está ninguém a chamar-me; ao sentir o vento no rosto e ao ver as árvores a abanar,
descubro que fui enganado pelo som do vento e se olhar para a frigideira posso ver
que o cheiro a fritos afinal vem dos rissóis...).
RAZÕES PARA DUVIDAR

A indistinção vigília-sono

Descartes reforça o argumento das ilusões dos sentidos com uma razão
adicional para duvidarmos de tudo aquilo que tenha uma origem
sensível: devemos duvidar da experiência sensível, pois, por vezes, acreditamos
que estamos a ter uma determinada experiência, quando na realidade estamos
apenas a sonhar.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso noturno, me


deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão
vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido!
Mas agora, observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça
que movo não está a dormir, voluntária e conscientemente estendo esta mão e
sinto-a: o que acontece quando se dorme não parece tão distinto. Como se
não me lembrasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos
semelhantes! Por isso, se reflito mais atentamente, vejo com clareza que
vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros. (Descartes)
RAZÕES PARA DUVIDAR

Descartes dá-nos, assim, um bom motivo para duvidar da veracidade da nossa


experiência sensível. Habitualmente, só depois de acordarmos é que nos
apercebemos que estávamos apenas a sonhar.

Mas poderemos alguma vez estar certos de que já acordamos?


Com efeito, a vivacidade e a intensidade de certos sonhos convencem-nos
muitas vezes de que estamos a ter experiências reais, quando na realidade essas
experiências não passam de ilusões provocadas pela atividade dos nossos
cérebros adormecidos. Aparentemente não existe um processo inequívoco para
determinar se uma experiência sensível é verídica ou se não passa de um
sonho.
RAZÕES PARA DUVIDAR
Este argumento ficou conhecido como argumento da indistinção vigília-sono e pode ser explicitamente
formulado como se segue:
(1) Não podemos distinguir por nenhum sinal seguro as experiências que temos durante os sonhos
daquelas que temos durante o estado de vigília.
(2) Se não podemos distinguir por nenhum sinal seguro as experiências que temos durante os sonhos
daquelas que temos durante o estado de vigília, então as crenças que formamos a partir da experiência
sensível ou são falsas (porque estamos apenas a sonhar) ou, ainda que sejam verdadeiras, são-no apenas
por acaso (porque não podemos saber se estamos apenas a sonhar ou não).
(3) Se as crenças que formamos a partir da experiência sensível ou são falsas ou, ainda que sejam
verdadeiras, são-no apenas por acaso, então não podem constituir conhecimento.
(4) Logo, as crenças que formamos a partir da experiência sensível não podem constituir conhecimento.
RAZÕES PARA DUVIDAR

O argumento é válido e, à partida, as suas premissas parecem bastante


plausíveis.

Mas se refletirmos mais sobre o assunto, acabaremos por nos aperceber que quer
estejamos a dormir quer estejamos acordados parecem existir conhecimentos à
prova deste argumento, nomeadamente, as verdades da geometria e da aritmética

“2 + 3 = 5"
"um quadrado tem sempre quatro lados"
RAZÕES PARA DUVIDAR

No entanto, Descartes pretende levar a sua dúvida tão longe quanto possível e,
por isso, vai propor novos argumentos que ponham à prova mesmo
conhecimentos que, à partida, parecem tão seguros e indubitáveis.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Erros de raciocínio
Descartes considera que, por muito indubitáveis que as verdades da geometria e
da aritmética nos possam parecer, existem tópicos mais complexos acerca dos
quais podemos sempre cometer certos erros de raciocínio.

Assim, Descartes, aplicando uma vez mais o princípio hiperbólico da dúvida,


decide rejeitar mesmo as crenças que têm origem nos raciocínios mais
elementares.
RAZÕES PARA DUVIDAR

“E porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo a propósito dos


mais simples temas de geometria ao considerar que eu estava sujeito a
enganar-me como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões de que
anteriormente me servira nas demonstrações.“
(Descartes)
RAZÕES PARA DUVIDAR

Este argumento pode ser formulado do seguinte modo:

(1) Podemos cometer erros mesmo nos raciocínios mais simples.


(2) Se podemos cometer erros mesmo nos raciocínios mais simples, então não
podemos justificadamente acreditar em crenças que tenham origem no nosso
raciocínio.
(3) Logo, não podemos justificadamente acreditar em crenças que tenham
origem no nosso raciocínio.
RAZÕES PARA DUVIDAR
Contudo, este argumento parece presumir demasiado:
o Será que não existem raciocínios acerca dos quais podemos estar seguros?
o É certo que alguns raciocínios podem correr mal, mas parece simplesmente
implausível considerar que nos podemos enganar a contar os lados de um
quadrado, certo?

Descartes acreditava que não. E para o provar concebeu uma das experiências
mentais mais famosas da história da filosofia.
RAZÕES PARA DUVIDAR

A Hipótese do Génio Maligno

Para abalar a nossa confiança nas proposições mais triviais e elementares da


geometria e da aritmética, a dúvida cartesiana vai extremar-se ainda mais.

Desde cedo nos é incutida a crença de que fomos criados por um ser superior,
sumamente inteligente e de poderes ilimitados.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Ora, um ser com estas características poderia introduzir nas nossas mentes as
ideias que bem entendesse, fazendo-nos tomar por evidências os maiores
absurdos que possamos imaginar. Poderia, por exemplo, fazer-nos acreditar que
um quadrado tem quatro lados quando na realidade teria apenas três.

Como podemos saber que isso não está,


de facto, a acontecer?
RAZÕES PARA DUVIDAR

Descartes apercebe-se de imediato que esta suposição, conhecida como


Hipótese do Deus Enganador, enfrenta sérias dificuldades, pois a ideia de um
Deus Enganador é uma contradição nos termos.

Sendo Deus um ser perfeito por


definição, não pode possuir qualquer
Por este motivo, espécie de defeito, como, por
Descartes vê-se forçado exemplo, ser enganador.
a abandonar a Hipótese
do Deus Enganador
RAZÕES PARA DUVIDAR

Descartes recorre a uma espécie de Plano B: a Hipótese do Génio Maligno.


Concebe uma experiência mental que consiste na suposição de que existe um
ser tão poderoso quanto perverso, que designa por Génio Maligno para evitar os
problemas associados à ideia de um Deus Enganador, que se diverte a usar os
seus poderes para nos induzir em erro relativamente a tudo.

Uma vez que não se espera que este ser exiba a perfeição moral
característica de um ser perfeito, não corremos o risco de cair em
contradição.
RAZÕES PARA DUVIDAR

Descartes apresenta-nos esta possibilidade do seguinte modo:

Enquanto a Hipótese do Génio Maligno não for afastada, não podemos estar
certos de que, quer as crenças que têm origem na experiência sensível, quer as
que têm origem no raciocínio não sejam mais do que maquinações do Génio
Maligno. O Génio Maligno pode fazer-nos acreditar que estamos a ter
determinadas experiências, pode introduzir-nos falsas memórias e pode virar o
nosso intelecto do avesso, de forma que até as mais elementares demonstrações
matemáticas não passem de ilusões que este introduz nas nossas mentes. O que
é que resiste a esta dúvida? Aparentemente, nada. (Descartes)
RAZÕES PARA DUVIDAR
Vejamos como fica este argumento explicitamente formulado:
(1) Não podemos saber se existe um Génio Maligno, extremamente poderoso e astuto, que nos pode
enganar relativamente a tudo o que pensamos.
(2) Se não podemos saber se existe um tal Génio Maligno, então a maioria das nossas crenças são falsas
ou, ainda que sejam verdadeiras, são-no apenas por acaso (pois não temos nenhuma justificação para
acreditar que não se trata de uma das suas maquinações).
(3) Se as nossas crenças ou são falsas ou são verdadeiras apenas por acaso, então não temos
conhecimento (pois só temos conhecimento se tivermos crenças verdadeiras justificadas).
(4) Logo, não temos conhecimento.

Será esta a única conclusão que podemos extrair se decidirmos aplicar a dúvida
cartesiana? O que é que poderia resistir a uma dúvida tão extrema?
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

O próprio Descartes mostra que o argumento do Génio Maligno não é tão


inabalável quanto à primeira vista possa parecer. Pelo contrário, em vez de
conduzir à conclusão de que nada se sabe, a Hipótese do Génio Maligno conduz
à conclusão de que existe algo que podemos, garantidamente, saber.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

O problema está na segunda premissa do argumento, pois, ainda que eu não possa
saber se estou, ou não, a ser enganado por um Génio Maligno, existe algo que
posso saber com toda a certeza: que existo.

Mesmo que o Génio Maligno exista e se esforce tanto quanto pode para me
enganar, nunca me poderá convencer de que não existo, pois, para que me possa
convencer seja do que for, eu tenho necessariamente de existir.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO
Esta constatação conduziu a uma das mais célebres passagens da história da
filosofia:

“Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso,
era de todo necessário que eu, que o pensava, tivesse alguma coisa. E, notando
que esta verdade: “penso, logo existo”, era tão e tão certa que todas as
extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que a
podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.”
(Descartes)
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

O argumento pode ser formulado do seguinte modo:


(1) Se penso, existo.
(2) Penso.
(3) Logo, existo.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

Deste modo, Descartes encontrou uma crença que resiste ao mais radical processo
de dúvida que se possa imaginar: Penso, logo existo.

Cogito, ergo sum. Cogito

A sua verdade não pode consistentemente ser posta em causa, pois para se
poder duvidar do que quer que seja é preciso existir.
Quem quer que se questione acerca da veracidade do cogito tem
automaticamente justificação para acreditar nele.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

Assim, Descartes refuta o ceticismo por redução ao absurdo.

Assumindo como premissa a ideia de que nada se pode saber, somos


conduzidos a uma contradição, pois para podermos duvidar da
possibilidade do conhecimento, somos forçados a admitir que existe
algo que sabemos com toda a certeza: sabemos que existimos, caso
contrário não poderíamos duvidar fosse do que fosse.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

Podemos reconstituir este argumento do seguinte modo:


(1) Nada se pode saber. (Suposição a rejeitar por redução ao absurdo)
(2) Se nada se pode saber, então nem sequer posso saber se existo.
(3) Sei que existo, pois se não existisse não poderia duvidar de coisa nenhuma.
(4) Logo, é falso que nada se pode saber.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

A importância do cogito no fundacionalismo cartesiano é inquestionável.

O cogito é uma crença básica, que não precisa de ser justificada com base noutras
crenças e, por conseguinte, pode estabelecer-se como primeira evidência,
fornecendo os alicerces seguros que Descartes procurava para edificar o
conhecimento.

Deste modo, podemos considerar que o cogito representa o tão desejado triunfo
sobre o ceticismo.
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

Por mais extremas que as nossas dúvidas possam ser, existirá sempre pelo
menos uma coisa que podemos saber com toda a certeza: que existimos.

Mas será esta crença suficiente para fundar todo o nosso conhecimento do mundo?
Será que saber que existimos é suficiente para saber que temos um corpo e restaurar
a nossa confiança nas nossas experiências sensíveis?
O PAPEL DO COGITO
NO FUNDACIONALISMO CARTESIANO
O TRIUNFO SOBRE O CETICISMO

Não, na verdade o cogito não é, por si só, capaz de estabelecer a verdade de


nenhuma destas coisas, pois enquanto não afastarmos definitivamente o fantasma
do Génio Maligno não temos a certeza de que não estamos a ser enganados por
ele, acreditando erradamente que temos um corpo, mãos, olhos, nariz, etc.

Mas, então, o que é que podemos saber com


toda a certeza?
UMA COISA PENSANTE (RES COGITANS)

Podemos estar certos, ainda que o Génio nos engane, que temos de existir de
algum modo para que este nos possa enganar. Mas isso não implica que tenhamos
necessariamente um corpo.
Ou seja…
Sabemos, com toda a certeza, que existimos enquanto coisa que pensa,
ou res cogitans (coisa/substância pensante, em latim)

Nada sabemos acerca do mundo físico, do mundo da matéria, do mundo das


coisas extensas (que ocupam um espaço), ou seja, nada sabemos acerca
da res extensa (coisa/substância extensa, em latim).
UMA COISA PENSANTE (RES COGITANS)

O cogito não é suficiente para nos assegurar que temos um corpo, nem que as
nossas experiências percetivas são fiáveis.

Ao tomar consciência de que pode imaginar que não tem um corpo, sem que isso
implique que não existe, Descartes conclui que é essencialmente uma substância
pensante, isto é, uma mente ou alma imaterial que existe independentemente
do corpo e que é de natureza inteiramente distinta do mesmo.

Dualismo cartesiano
UMA COISA PENSANTE (RES COGITANS)

Podemos formular as diferentes etapas deste argumento do seguinte modo:


Parte I
(1) Posso conceber que existo sem ter um corpo.
(2) Não posso conceber que existo sem ter uma mente/alma.
(3) Se posso conceber que existo sem ter um corpo, mas não posso conceber
que existo sem ter uma mente/alma, então a mente/alma não é igual ao corpo.
(4) Logo, a mente/alma não é corpo.
UMA COISA PENSANTE (RES COGITANS)

Mas se a única coisa que Descartes conseguiu demonstrar, até ao momento, foi a
sua existência enquanto coisa pensante, poderá ele alguma vez estar certo de que
sabe alguma coisa para além disso?

Descartes acreditava que sim.


UM CRITÉRIO DE VERDADE

Descartes considerava que, uma vez que o que torna o cogito uma crença tão
evidente não é mais do que o seu elevado grau de clareza e distinção, estas
características deveriam ser adotadas como critério de verdade, ou seja, como
procedimento que nos permite distinguir o que é absolutamente verdadeiro do que
é meramente duvidoso ou falso.

Assim, o cogito não só fornece um fundamento seguro para o conhecimento mas


também um modelo daquilo que devemos perseguir na procura de um saber seguro
e indubitável.
UM CRITÉRIO DE VERDADE

O argumento subjacente a este critério de verdade é algo que podemos expressar


nos seguintes moldes:

(1) Se não puder estar certo daquilo que concebo clara e distintamente, então
não posso estar certo do cogito,
(2) Posso estar certo do cogito.
(3) Logo, posso estar certo daquilo que concebo clara e distintamente.
UM CRITÉRIO DE VERDADE

Deste modo, para saber se uma determinada proposição é verdadeira, bastará que
Descartes a conceba clara e distintamente.

Mas será que, para além do cogito, existe alguma proposição com estas
características?
A IDEIA DE DEUS

Munido do seu recém-adquirido critério de verdade, Descartes decide vasculhar a


sua mente em busca de outras ideias que, à semelhança do cogito, se possam
conceber clara e distintamente.

Ao inventariar as suas ideias apercebe-se de que tem a ideia de Deus.

Pensa então: "Se eu conseguir provar que Deus existe e não é enganador, talvez
possa estar certo de muitas outras coisas para além de saber que existo enquanto
coisa pensante, pois um criador supremo e sumamente bom não me teria feito de
modo a que nunca pudesse conhecer a verdade acerca de coisa alguma."
A IDEIA DE DEUS
O Argumento da Marca

Ao tomar consciência de que possui a ideia de Deus, ou seja, de um Ser Perfeito,


Descartes vê-se forçado a reconhecer que ele próprio não é perfeito, pois, na sua
opinião, saber é claramente melhor do que duvidar e ele está certo de que é um ser
que duvida.

No entanto, apesar de não ser perfeito, ele tem a ideia de Ser Perfeito. Ora,
Descartes subscreve o Princípio da Causalidade.

Tudo o que existe tem uma causa. Mas qual poderá ser a causa
desta ideia? Poderia ser ele próprio o seu autor?
A IDEIA DE DEUS

Descartes vai tentar demonstrar que não pode ser ele o autor dessa ideia, pois na
sua opinião uma causa deve ter pelo menos tanta realidade quanto os seus efeitos.
Isto significa que, tal como o nada não pode dar origem seja ao que for, também o
menos perfeito não pode dar origem a algo que seja mais perfeito.

Assim, e uma vez que não é perfeito, Descartes conclui que não pode ser ele a
origem da ideia de perfeição.

Esta ideia deve ter origem em algo que seja pelo menos tão
perfeito quanto ela, ou seja, em Deus.
A IDEIA DE DEUS

Explicitamente formulado, este argumento diz-nos o seguinte:


(1) Eu tenho a ideia de Ser Perfeito.
(2) Se eu tenho a ideia de Ser Perfeito, então existe um Ser Perfeito que é a origem desta ideia.
(3) Existe um Ser Perfeito que é a origem da minha ideia de perfeição. (De 1 e 2)
(4) Ou eu sou o Ser Perfeito ou existe um algo para além de mim que é perfeito e que é a
verdadeira origem da minha ideia de perfeição.
(5) Se duvido, não sou perfeito.
(6) Duvido.
(7) Não sou perfeito. (De 5 e 6)
(8) Logo, existe algo para além de mim que é perfeito e que é a verdadeira origem da minha
ideia de perfeição. (De 4 e 7)
A IDEIA DE DEUS

Deste modo, Descartes acredita ter conseguido provar que, para além do cogito,
pode estar certo da existência de Deus.

Este argumento ficou conhecido como Argumento da Marca porque é como se, ao
criar-nos, Deus tivesse introduzido nas nossas mentes a ideia de perfeição, para
que esta funcionasse como uma espécie de marca, ou assinatura, do autor.
O PAPEL DE DEUS NO FUNDACIONALISMO
CARTESIANO

Deus desempenha um papel fundamental no fundacionalismo cartesiano, porque,


uma vez que Deus existe e não é enganador (pois enganar seria uma imperfeição),
não iria criar-nos de modo a que fôssemos incapazes de conhecer seja o que for.
Pelo contrário, Deus deu-nos as ferramentas necessárias para descobrirmos a
verdade e para nos orientarmos no mundo.

Mas se Deus nos concedeu tais ferramentas, por que razão estamos sujeitos à
dúvida e ao erro?
O PAPEL DE DEUS NO FUNDACIONALISMO
CARTESIANO

Resposta de Descartes: Deus é perfeito e, como tal, é sumamente bom, por isso
decidiu criar-nos com livre-arbítrio. No entanto, muito embora uma vontade livre
seja, de facto, uma dádiva de valor inigualável, ela traz consigo um pequeno
inconveniente: a possibilidade de fazer escolhas acarreta a possibilidade de fazer
más escolhas.

Assim, Descartes conclui que o erro não vem de Deus, que é perfeito, mas sim de
nós, que, não sendo perfeitos, fazemos por vezes um mau uso da nossa liberdade,
dando assentimento a coisas que não concebemos muito clara e distintamente.
O PAPEL DE DEUS NO FUNDACIONALISMO
CARTESIANO

Portanto, uma vez provado que Deus existe e não é enganador, não temos razões
para acreditar que nos possamos enganar quando concebemos algo com clareza e
distinção. Aliás, o próprio Descartes reconhece que é justamente por esse motivo
que podemos confiar naquilo que concebemos com clareza e distinção.
O PAPEL DE DEUS NO FUNDACIONALISMO
CARTESIANO

Deus é eterno e imutável. Deus desempenha um papel fundamental


no fundacionalismo cartesiano porque:

DEUS GARANTE A VERDADE DAS NOSSAS IDEIAS CLARAS E


DISTINTAS ATUAIS E PASSADOS.
O PAPEL DE DEUS NO FUNDACIONALISMO
CARTESIANO

Sem esta garantia não seria sequer possível avançar um argumento, pois não
poderíamos garantir a verdade de cada uma das suas premissas nem poderíamos
estar seguros de que, num argumento com mais do que uma premissa, a primeira
premissa permaneceria verdadeira no momento em que deixássemos de a ter
presente para conceber a segunda, e assim sucessivamente.
A FASE CONSTRUTIVA DO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

A partir da garantia da existência de Deus, Descartes pode deduzir muitas outras


verdades e construir com segurança o edifício do conhecimento apoiando-se
naquilo que concebe clara e distintamente.

A existência de coisas matérias (substância extensa) posta em causa adquire agora


outro grau de plausibilidade – Deus iria criar-nos de modo a que a nossa mente
recebesse do corpo as sensações adequadas à sua preservação e não de modo a que
não passássemos de fantasias.
A FASE CONSTRUTIVA DO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Mas, então, o que acontece quando nos deixamos enganar pelos sentidos?

Quando os sentidos nos enganam é porque nos precipitamos a dar o nosso


assentimento a coisas que não concebemos clara e distintamente, mas sim de
modo confuso.

Para compreender a verdadeira natureza das coisas devemos proceder a uma


análise matemática e geométrica das mesmas, pois só este modelo de investigação
nos traz a evidência que tem sido o modelo seguido por Descartes.
A FASE CONSTRUTIVA DO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Embora os nossos sentidos estejam sujeitos ao erro, Deus concedeu-nos a


possibilidade de os corrigirmos através de um uso reto das nossas faculdades
racionais.

Por exemplo, se considerarmos a distância a que o Sol se encontra de nós, somos


capazes de corrigir pelo uso da razão a ilusão que se apresenta aos nossos sentidos
relativamente ao seu tamanho.
A FASE CONSTRUTIVA DO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO
E o que acontece relativamente ao problema da indistinção vigília-sono?

O problema é afastado porque:


1. Quer estejamos a dormir quer estejamos acordados, corremos sempre o risco de errar se
damos assentimento a coisas que não concebemos clara e distintamente. Inversamente, se
concebemos algo de modo claro e distinto, a sua verdade está assegurada mesmo que
estejamos a dormir. Por exemplo, se um matemático concebesse clara e distintamente uma
demonstração perfeita de um teorema, mesmo que estivesse a dormir, poderia
estar tão seguro da sua veracidade como se esta lhe tivesse ocorrido enquanto estava
acordado. Pelo contrário, se o que conceber não for claro e distinto, deve abster-se de lhe
dar assentimento, mesmo que esteja acordado.
A FASE CONSTRUTIVA DO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

2. Além disso, nos sonhos acontecem frequentemente coisas demasiado insólitas para
que sejam reais.

Deste modo, Descartes acredita ter finalmente triunfado sobre a mais radical das dúvidas;
mas será isto verdade?

Em seguida, iremos analisar algumas das principais objeções que o fundacionalismo


cartesiano enfrenta.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Eu penso, ou há pensamento em curso

Se prestarmos a devida atenção ao cogito, apercebemo-nos de que a sua certeza


é apenas momentânea - "Estou, neste momento, a pensar, logo existo"; se parar
de pensar, posso muito bem deixar de existir. Mas, nesse caso, o cogito
dificilmente será verdadeiro, isto é, dificilmente a consciência de que existe
pensamento seria suficiente para provar a existência de um único eu — ou seja,
um ser que se reconhece como sendo o mesmo ao longo do tempo que reclame o
pensamento atualmente em curso como seu.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Segundo esta objeção Descartes nem sequer deveria dizer "Eu penso", deveria
dizer simplesmente "há pensamento", como quem diz "troveja". Tudo o que
Descartes conseguiu mostrar foi que existe pensamento, mas não a existência de
um qualquer Eu a quem esse pensamento tenha necessariamente de pertencer.

É mais evidente a existência de pensamentos do que a existência de um Eu (de


uma mente, ou substância pensante), sobre o qual esses pensamentos repousam.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

Objeções ao Argumento da Marca

O Argumento da Marca enfrenta vários problemas:


1. o argumento pressupõe, na primeira premissa, que temos a ideia de Deus, ou
Ser Perfeito, mas esta ideia está longe de ser consensual. Algumas tradições
teológicas, como o fideísmo, afirmam que a perfeição de Deus desafia a nossa
compreensão, pois somos seres finitos e limitados, pelo que nem sequer
podemos considerar que temos a ideia de Deus, ou Ser Perfeito.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

2. Descartes pressupõe que duvidar é menos perfeito do que saber, para concluir
que, uma vez que duvida, não pode, ele mesmo, ser o Ser Perfeito. Mas por
que razão não podemos considerar que duvidar é mais perfeito do que possuir a
totalidade do conhecimento? Um saber completo e perfeitamente delimitado
pode ser encarado por muitos como demasiado monótono e estático,
incompatível com uma ideia dinâmica de perfeição, envolvendo
necessariamente algum espaço para o progresso.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

3. o argumento também se apoia no princípio da causalidade e na ideia de que


uma causa deve ter pelo menos tanta realidade e, consequentemente, ser tão
perfeita quanto os seus efeitos. No entanto, no momento em que formula este
argumento, Descartes não tem maneira de saber se estas ideias são verdadeiras.
OBJEÇÕES AO
FUNDACIONALISMO CARTESIANO

O círculo cartesiano

Esta é, talvez, a objeção mais forte. Consiste na acusação de que Descartes incorre
numa petição de princípio, pois recorre às suas capacidades racionais para
estabelecer a existência de Deus e recorre a Deus para justificar a confiança nas
suas capacidades racionais – este é um exercício de raciocínio claramente circular.

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