Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Janice Thomas
Tradução e exercícios de Faustino Vaz
Dúvida filosófica
Mesmo as espécies de axiomas e premissas básicas de que os racionalistas
pretendem partir são vulneráveis à dúvida adotada por esta espécie mais
severa de cético filosófico. A razão é que este tipo de dúvida é hiperbólica
(extremamente exagerada). Descartes chamou-lhe “dúvida metafísica”
nas Meditações, querendo dizer que ela ia para além dos habituais
sentimentos de incerteza e dúvida psicológica. Este tipo de dúvida é uma
ferramenta concebida para testar o conhecimento até ao limite: implica
suspender o juízo acerca de tudo aquilo em que é logicamente possível fazê-
lo.
Como Descartes concluiu que o seu famoso cogito ergo sum era uma
prova contra esta dúvida metafísica, abandonou o ceticismo. Mas alguns
céticos afirmam que é possível suspender o juízo mesmo neste caso. Diriam
que a experiência em si própria não produz conhecimento. Todo o
conhecimento envolve a aplicação de conceitos e informação prévia à
experiência. E mesmo o conceito mais sólido pode ser sujeito a revisão
conceptual.
“Bruxas”, “demónios”, os nomes de deuses Gregos, foram outrora vistos
como conceitos e expressões referenciais a que se dava crédito. Hoje pensa-
se que nunca referiram nada de real. Talvez o mesmo venha a suceder a
conceitos como os de ser pensante ou de sujeito da experiência.
Mais fácil de compreender e de merecer o nosso acordo é a prudência do
cético filosófico cuja dúvida recai sobre as descrições observacionais. Não
será de facto verdade que eu posso estar sempre enganado quando penso
ver uma coisa vermelha ou sentir uma coisa macia?
Se, como esta espécie de cético, recusarmos chamar conhecimento a tudo
o que seja vulnerável à dúvida hiperbólica, haverá muito poucas, se é que há
algumas, crenças a que poderemos com autoridade chamar conhecimento.
Ceticismo global
É justamente por estas razões que alguns filósofos pensam que não há
conhecimento. Podemos chamar a esta posição ceticismo global. O cético
global defende que nenhuma crença está imune a esta espécie de dúvida
corrosiva; nenhuma crença está suficientemente justificada para contar
como conhecimento.
Pensa-se por vezes que podemos refutar facilmente o cético global. O
cético que afirmasse saber que não há conhecimento estaria a derrotar-se a
si próprio no momento em que o dissesse. Estaria a afirmar que tem
conhecimento de que não há conhecimento.
Todavia, não é assim tão fácil enfrentar o ceticismo global. Como no caso
de Descartes, estamos perante um desafio dirigido sobretudo aos que
defendem que alguns tipos de conhecimento existem. O objetivo é fazer os
defensores do conhecimento produzir bons argumentos a favor da sua
posição.
Logo, o cético global pode simplesmente negar que existem crenças para
além do alcance da dúvida — incluindo a sua própria crença de que não há
conhecimento. O ónus da prova está agora do lado do anti-cético. Como irá
responder? Um pequeno passo que poderá ser dado consiste em argumentar
que não é logicamente possível que todas as minhas crenças sejam falsas ao
mesmo tempo. Algumas proposições em que acredito e tenho justificação
para acreditar terão de ser verdadeiras, e deste modo conhecidas por mim
ainda que eu não saiba quais são.
Questões de revisão
1. O que defende o ceticismo global?
2. Será que dizer que o ceticismo global se refuta a si próprio é suficiente para o
derrotar?
3. Reescreve na forma canónica o argumento contra o ceticismo global.
4. Como responde ao argumento o cético global?
p é verdadeira
S acredita que p
S está justificado em acreditar que p, e
Não há nenhum elemento de sorte ou acidente em S acreditar que p na base da
justificação que ele próprio sabe que tem.
Questões de revisão
1. O que é ser externista acerca do conhecimento?
2. O que é ser internista acerca do conhecimento?
3. Por que razão contra-exemplos como os de Gettier ameaçam mais o
internismo?
4.
O argumento da ilusão
Comparativamente, os exemplos que acabaste de ver e as consequências
céticas que era seu objetivo apoiar são num certo sentido estranhos e
exóticos. Lembra-te que eles se dirigem apenas às proposições que o cético
concede serem verdadeiras e altamente justificadas para o sujeito que
acredita nelas. Todavia, o cético tem razões para pensar que elas fracassam
como tentativas de conhecimento.
Mas há um grande número de argumentos céticos familiares que
procuram tirar proveito da consciência de que as nossas capacidades para
adquirir conhecimento são imperfeitas. Procuram fazer-nos duvidar
comparando as nossas circunstâncias atuais com aquelas em que no passado
acabámos por estar enganados, embora na altura pensássemos estar
justificados. Esta secção explicará o “argumento da ilusão”. Nas duas
próximas secções trataremos de argumentos que têm a ver com o sonho e
com a possibilidade de engano.
O argumento da ilusão é frequentemente usado pelos céticos a propósito
do conhecimento do mundo externo. É especificamente concebido para
derrubar a nossa confiança nos sentidos. Este argumento pode ser dividido
em três passos principais. Primeiro o cético pergunta “O que é aquilo de que
eu estou imediatamente consciente na experiência dos sentidos?” Ele quer
fazer-me aceitar que os objetos imediatos da perceção são os dados dos
sentidos.
Um dado dos sentidos é um fragmento simples do que é sensorialmente
dado; por exemplo, a mancha vermelha que eu vejo é um dado visual e o
som suave que eu ouço é um dado auditivo. Parece difícil resistir a afirmar
que aquilo de que eu estou imediatamente consciente na perceção sensorial
são os nossos dados dos sentidos.
Questões de revisão
1. Qual é o primeiro passo do argumento da ilusão?
2. Qual é o segundo passo do argumento?
3. Qual é o terceiro passo do argumento?
4. O que conclui o argumento acerca do conhecimento do mundo externo?
5.
O argumento do sonho
Muitos filósofos, incluindo notoriamente Descartes, levantaram um
problema cético a respeito do sonho. Este problema poderá ser claramente
formulado a partir do ponto a que acabamos de chegar na secção anterior. O
ponto é que, tanto quanto sabemos, os dados dos sentidos podem ser tudo o
que há.
Todos nós já tivemos a experiência de acordar de um sonho para descobrir
que o que nós pensávamos ver, ouvir ou sentir de outra maneira não estava
realmente lá. Enquanto dormíamos, a nossa experiência era exatamente
como se estivéssemos a ver ou ouvir o que quer que fosse. Mas agora
acordamos para ficar a saber que de certo modo estávamos iludidos.
O cético lembra-nos esta experiência universal de confundir as aparências
não verídicas ou dados dos sentidos do sonho com as verídicas. A seguir
pergunta como posso eu alguma vez estar seguro de que neste momento
não estou a sonhar, de tal modo que quaisquer dados dos sentidos de que eu
possa estar a ter experiência são somente os enganadores dados dos
sentidos dos sonhos.
Neste momento todos nós sabemos a diferença entre sonho e realidade. O
problema é que em nenhum ponto podemos aplicar um teste que nos diga
Questões de revisão
1. Reescreve de forma canónica o argumento do sonho.
2. O que conclui o argumento do sonho?
3.
O argumento do engano
O argumento do engano é outra hipótese cética que funciona de maneira
muito semelhante aos dois argumentos anteriores. Mas, pelo menos na
versão de Descartes, aplica a dúvida não apenas ao conhecimento baseado
nas descrições sensoriais, mas também às verdades necessárias da lógica e
matemática. Trata-se da hipótese segundo a qual, tanto quanto sei, alguém
pode estar a enganar-me e levar-me a acreditar em proposições que eu
penso estar bastante justificado a acreditar.
Descartes criou a noção de um enganador astuto: um ser omnipotente e
maligno que se devota a enganar-me tanto quanto possível. Assim, por
exemplo, eu posso pensar que estou a ver algum objeto material bastante
familiar em boas condições de luz e que tenho saúde e olhos que funcionam
bem. Mas é logicamente possível que durante todo esse tempo o objeto não
exista e que eu seja astutamente levado a pensar que o estou a ver. Talvez
nada de material exista e eu seja apenas uma mente imaterial sujeita a uma
enorme e sistemática fraude.
Deve ser dito que Descartes não acreditava que existe um tal enganador
astuto. Deus não permitiria que um ser assim existisse. Todavia, tão longe
quanto vai o que é logicamente possível, parece que não podemos excluir a
priori que qualquer uma das nossas crenças possa ser causada por um
embuste, e não pela sua causa aparente. Assim, também este argumento
cético parece apoiar fortemente o ceticismo radical.
Recentemente, céticos radicais recorreram a um expediente cético,
conhecido como a “hipótese do cérebro numa cuba”, que é muito
Janice Thomas
Philosophy for AS and A2, ed. Elizabeth Burns e Stephen Law (Londres: Routledge, 2004)
Questões de revisão
1. Por que razão o argumento do engano estende a dúvida às verdades lógicas e
matemáticas?
2. Que semelhança há entre a hipótese do enganador astuto e a hipótese do
cérebro numa cuba?
Questões de discussão
1. Por que razão a dúvida filosófica está limitada à discussão filosófica?
2. "O argumento da ilusão falha porque a longo prazo podemos saber que crenças
percetivas são ilusórias." Concordas?
3. "A realidade não é transparente. Logo, ter consciência de que sabemos não
implica que efetivamente sabemos como é a realidade." Concordas? Porquê?
4. "Se saber não implica saber que se tem uma crença justificada que é
verdadeira, como poderei melhorar as minhas crenças se uma posição destas
nada me diz acerca de como melhorá-las?" Concordas? Porquê?