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René Descartes e David Hume

Faustino Vaz

Empirismo e racionalismo

Imagina que enfrentaste o ceticismo e superaste o desamparo em que ele queria


deixar-te. Vais pressupor que sabemos algumas coisas. Mesmo que esse
conhecimento seja trivial, isso basta para os nossos propósitos. Por exemplo,
sabes que “a teoria de Darwin é tratada na página 99 do manual de Biologia”; se
alguém te perguntar por que razão o sabes, a tua resposta será “porque consultei
o manual e vi que a teoria de Darwin era tratada na página 99”. Sabes que “o
mar está calmo” porque foste à praia e viste que o mar estava calmo. Nos dois
casos, afirmas que tens conhecimento com base no que viste. A experiência de
ver é a justificação para as tuas crenças. Daí podermos dizer que a experiência é
a origem destes conhecimentos. A teoria associada à ideia de que a origem do
conhecimento está na experiência é o empirismo. Na sua forma extrema, o
empirismo defende que, em última instância, todo o conhecimento deriva de, ou
consiste em, verdades obtidas apenas a partir da experiência (a posteriori).
Considera um exemplo diferente. Imagina que tens três gatinhos e dois cestos
e que vais distribuir alguns gatinhos por um dos cestos e alguns gatinhos pelo
outro. Quantas maneiras tens de o fazer? Poderás descobrir experimentando e
contando todas as possibilidades. Ou poderás descobrir raciocinando da
seguinte maneira: o primeiro gatinho pode ir para o cesto direito ou para o
esquerdo, o que dá duas maneiras de começar; cada uma destas maneiras pode
ser continuada pondo o segundo gatinho no cesto direito ou no cesto esquerdo,
o que faz duas vezes duas ou quatro maneiras de realizar a tarefa; por último, o
terceiro gatinho pode ir para o cesto direito ou esquerdo, o que dará um total de
quatro vezes duas ou oito maneiras de distribuir os gatinhos pelos cestos. Neste
caso, descobres quantas maneiras tens de distribuir os gatinhos sem recorrer a
indícios empíricos; sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico. Se
tiveste dificuldade em entender este exemplo, podes simplesmente pensar num
exercício de aritmética elementar como somar 85 a 23. Caso resolvas o exercício
apenas pelo pensamento, dispensando o recurso a uma máquina de calcular,
também neste caso sabes a verdade previamente a qualquer indício empírico.
Diz-se por isso que estes conhecimentos são a priori: a sua origem está na
razão. A teoria associada à ideia de que a origem do conhecimento está na razão
é o racionalismo. Na sua forma extrema, o racionalismo defende que, em última
instância, todo o conhecimento deriva ou depende de verdades obtidas apenas a
partir da razão (a priori).
As noções de a priori e de a posteriori exprimem modalidades epistémicas.
Isto quer dizer simplesmente que o a priori e o a posteriori são modos de
conhecimento. Os exemplos dos gatinhos e da soma é elucidativo: podes saber
certas coisas de um modo a priori ou a posteriori. Se sabes através da
experiência, sabes a posteriori, se sabes pelo pensamento apenas, sabes a
priori. Em si, as crenças não são a priori ou a posteriori. Mas não penses que a
noção de a priori é pacífica entre os filósofos especializados na discussão de
questões epistémicas. Aceitar que podemos conhecer coisas a priori é, em geral,
aceitar que podemos saber coisas acerca do mundo sem olhar para ele,
independentemente da experiência. Contudo, não é fácil explicar como isso é
possível, e alguns filósofos rejeitam que isso seja possível.
Arrumar os filósofos mais importantes da Idade Moderna em racionalistas e
empiristas poderá ser útil para fins didácticos, mas deves ter consciência desde
já que na maior parte dos casos se trata de uma simplificação grosseira por não
dar conta das diferenças subtis entre os filósofos em questão. Poucos foram os
filósofos que exemplificaram sem sombra de dúvida a forma extrema de
racionalismo ou a forma extrema de empirismo. Isto quer dizer que na maior
parte dos casos há apenas uma diferença relativamente ao tipo de explicação
que se tem do a priori. Dito isto, vais agora estudar Descartes, filósofo francês
do século XVII, do lado do racionalismo; e do lado do empirismo, David Hume,
filósofo escocês do século XVIII.
O objectivo desta lição não é apresentar toda a filosofia de Descartes e de
David Hume e as objecções que enfrentam; é apenas o de mostrar que posição
têm perante os seguintes problemas filosóficos: Que coisas podemos saber? E de
que modo adquirimos esse conhecimento?

Questões de revisão

1. Segundo o empirismo, qual é a justificação última das crenças?


2. Segundo o racionalismo, qual é a justificação última das crenças?
3. Mostra, recorrendo ao exemplo dos gatinhos ou ao exemplo da soma, que
o a priori e o a posteriori são modalidades epistémicas e não
propriedades das crenças.

Descartes

O Cogito

Descartes recorreu a argumentos céticos como um instrumento para chegar ao


conhecimento seguro. Apesar de o fazer, Descartes não é um cético. Vejamos,
por exemplo, o argumento do sonho e o argumento do génio maligno. No
primeiro, Descartes defende que não é possível fazer a distinção entre estar
acordado e estar a sonhar, porque podes sonhar que estás a fazer um teste para
te certificares de que estás acordado. No segundo, a suposição de um génio
maligno bastante poderoso que se empenha em enganar-te mesmo quando
acreditas que 2 + 2 = 4, leva-te a suspender o juízo em relação às verdades
lógicas e matemáticas, por mais simples que sejam. Mas por mais que tentes
duvidar da tua existência, supondo que estás apenas a sonhar ou a ser enganado
por um génio maligno que te leva a pensar que existes, terás nesse momento a
certeza de que alguma coisa existe para que ocorra a actividade de duvidar. Terá
de haver um sonhador para sonhar a sua própria existência e um enganado para
ser enganado. Descartes conclui que, enquanto pensar que está a ser enganado
por um génio maligno, terá de existir como ser pensante. Trata-se do
famoso cogito ergo sum (penso; logo, existo).
Através de argumentação a priori, Descartes obteve conhecimento acerca de
algo que realmente existe: ele próprio como ser pensante. Para compreenderes
melhor o que garante este conhecimento teremos de analisar a certeza
implicada pelas crenças “Estou a pensar” e “Existo”. Em primeiro lugar, ambas
são incorrigíveis, o que se define do seguinte modo: se alguém acredita que está
a pensar ou que existe, então não pode estar errado. Em segundo lugar, têm a
propriedade de ser autoverificáveis, a qual contribui para a incorrigibilidade e se
define do seguinte modo: se alguém afirma estas proposições, então essa
afirmação é verdadeira.
Vejamos melhor o que isto quer dizer. Considera a proposição expressa pela
frase P: “Estou a pensar”. Se pensares que P é falsa, exprimes nesse momento
uma contradição. Mas não se trata de uma contradição lógica porque “Eu não
estou a pensar” e “Eu não existo” não são falsas em todas as circunstâncias
possíveis devido à sua forma lógica, como acontece com a proposição expressa
pela frase “O mar tem peixes e o mar não tem peixes”; como é óbvio, em estados
do mundo em que eu não existisse, aquelas proposições seriam verdadeiras. As
negações de “Estou a pensar” e de “Existo” derrotam-se a si próprias do ponto
de vista pragmático, autofalsificam-se no preciso momento em que são ditas, e
não devido à sua forma lógica; podemos compará-las à proposição expressa pela
frase “Estou ausente” dita por ti quando o teu professor de filosofia faz a
chamada. Assim, sempre que alguém diz ou mentalmente concebe “Estou a
pensar” e “Existo”, as proposições expressas por estas frases terão de ser
verdadeiras. Mas estas não são verdades lógicas como “Chove ou não chove” ou
verdades analíticas como “Nenhum solteiro é casado”; são verdades
pragmáticas, as quais se definem por se autofalsificarem quando alguém afirma
a sua negação.

Questões de revisão

1. Será que Descartes é realmente um cético? Porquê?


2. De que modo Descartes obteve conhecimento do Cogito?
3. As frases “Estou a pensar” e “Existo” quando ditas por alguém exprimem
verdades pragmáticas. Porquê?

Deus

Chegado aqui, Descartes pode dizer que tem certezas na primeira pessoa acerca
de si próprio como eu pensante. Mas isto é pouco. Subsiste a questão de saber se
o mundo exterior existe. Daí que Descartes precise de uma ligação ou “ponte”
que lhe permita vencer a distância entre este eu pensante e o mundo. A
premissa “Deus existe e não é enganador” irá desempenhar esse papel. Ora, a
existência deste Deus que não é enganador precisa, por sua vez, de ser provada.
Sem essa prova não há maneira de refutar o ceticismo. Descartes teria nesse
caso apenas umas quantas verdades acerca de si próprio e nada mais seria
seguro. Destruindo a hipótese do génio maligno ao estabelecer a existência de
um Deus sumamente bom e sábio, Descartes obtém a garantia absoluta de que o
mundo é como pensamos que é, na condição de usarmos corretamente as
faculdades com que Deus equipou o homem.
Para o fazer, Descartes apresenta argumentos a priori a favor da existência de
Deus que supõe conclusivos. Esses argumentos são a priori porque se baseiam
na ideia de Deus que Descartes descobre em si apenas com a ajuda da razão. O
facto de Descartes não ter optado por argumentos a posteriori a favor da
existência de Deus quando os tinha à sua disposição, poderá mais uma vez
indicar a importância que depositava no uso da razão. Neste contexto, esses
argumentos não serão analisados. O que é importante saberes é que, segundo
Descartes, também este conhecimento de Deus resulta do raciocínio, e não da
experiência; Deus, tal como o Cogito, não pode ser provado recorrendo à
observação. Nenhum indício sensorial ou experimental pode mostrar que as
proposições “Existo como ser pensante quando estou a pensar” e “Deus existe”
são verdadeiras, ou justificar que acredites nelas.

O mundo exterior

Sustentado o mundo no pilar de Deus, Descartes irá tratar das coisas físicas. A
questão que o ocupa é a de saber qual é a natureza das coisas físicas. Para isso,
sujeita à nossa consideração o seguinte exemplo. Temos um pedaço de cera com
uma certa forma, tamanho, cor, perfume; através dos sentidos, temos
experiência destas propriedades; mas se o aproximares do fogo, estas
propriedades alteram-se, embora o pedaço de cera seja o mesmo. Logo, estas
propriedades não pertencem à natureza ou essência da cera. Isto quer dizer que
a experiência não me permite captar a essência da cera e o mesmo sucede com
qualquer outra coisa física. Deste modo, só o raciocínio descobre a essência da
cera; assim, a cera muda de forma, tamanho, cor, perfume e o mesmo se dirá de
qualquer outra propriedade de que temos experiência através dos sentidos; mas
se deixar de ser uma coisa extensa no espaço deixará de ser o que é. Logo, a
extensão pertence à sua essência e à de qualquer outra coisa física.
O que fazer a partir daqui? Que coisas podemos saber acerca do mundo
exterior e de que modo adquirimos esse conhecimento? Partindo desta
descoberta metafísica, Descartes recorre à imutabilidade de Deus para
estabelecer as leis básicas da física. Parece seguro dizer que a imutabilidade de
Deus impõe algumas restrições ao que estas leis deviam ser. Assim, as duas
primeiras leis da física, que são leis do movimento, são as que têm uma conexão
mais íntima com a imutabilidade de Deus. A primeira diz que um corpo
permanece no estado em que se encontra, a menos que alguma coisa o altere; e
a segunda diz que um corpo em movimento, se as condições se mantiverem,
continua a mover-se em linha reta, o que antecipa a lei da inércia retilínea de
Newton.
À medida que o conhecimento progride a partir destas leis básicas, mais
necessária se torna a observação e a experiência. Como leis alternativas podem
ser deduzidas das leis básicas, a experiência será indispensável para se decidir
qual delas exprime o mecanismo de que resulta um determinado fenómeno. É
assim abusivo atribuir a Descartes a ideia de que estas leis podem ser deduzidas
da natureza de Deus através de um raciocínio puramente lógico.
Esta descoberta metafísica de que toda a matéria é extensão contribui para
derrubar a conceção aristotélica de natureza. Segundo esta conceção, os céus
não são feitos da mesma matéria que a Terra; além disso, a matéria dos céus
tem um grau de perfeição superior à matéria da Terra. Como esta extensão é
homogénea, não há lugar para matérias diferentes e graus diferentes de
perfeição. Estão assim criadas as condições para que se unifique a explicação
astronómica dos céus e a explicação mecânica da Terra. Um mundo que na sua
essência é extensão tridimensional só é conhecível através de uma física
matematizada. Nesta física não há definitivamente lugar para noções
qualitativas, como a de graus de perfeição. E também parece não haver para as
noções qualitativas e pré-filosóficas do homem comum; este, apesar de ter
experiência de fenómenos como a gravidade e relações entre massas, tempos e
velocidades, não está em condições de os explicar de maneira objetiva.
Questões de revisão

1. Por que razão Deus é conhecido a priori?


2. Que relação há entre as duas primeiras leis da física e a natureza de
Deus?
3. Será que, segundo Descartes, todo o conhecimento físico tem uma
justificação a priori? Porquê?

Conclusão

O que somos e o que temos perante nós e como o conhecemos? Temos um eu


pensante que funciona sobretudo de maneira dedutiva, um mundo cuja essência
é extensão e um Deus que é a garantia do bom uso das nossas capacidades
racionais. Nas suas propriedades essenciais, o eu e o mundo são conhecidos a
priori. Mas muito conhecimento físico exige o concurso da experiência e foi isso
o que o próprio Descartes fez nas suas obras científicas. Descartes vence assim o
ceticismo.

Questões de discussão

1. Descartes estabelece a existência de Deus para justificar a confiança nas


nossas capacidades racionais; mas, por sua vez, as nossas capacidades
racionais justificam a existência de Deus. Será o argumento persuasivo?
Porquê?
2. Discute a seguinte afirmação: “Se Descartes levasse consistentemente a
dúvida filosófica até ao fim, a própria noção de dúvida seria suspensa e o
seu pensamento ficaria paralisado”.

Hume

Impressões e ideias

Hume pensa que os conteúdos da mente são as impressões e as ideias. A


diferença entre umas e outras é que as impressões são mais vívidas que as ideias
quando surgem na consciência. Hume diz que as ideias são pálidas imagens das
impressões no pensamento. Isto compreende-se tendo em conta a sua afirmação
central de que as ideias derivam e por isso dependem das impressões. Para
defender esta afirmação central, Hume recorre ao exemplo da criança que tem a
ideia de escarlate ou laranja, amargo ou doce, porque lhe foram apresentados
objetos que produziram nela as impressões correspondentes; seria absurdo
pensar que a criança produz as impressões a partir das ideias. Mas de onde vêm
as impressões? As impressões são o resultado da experiência, que consiste na
perceção e introspeção. Através da perceção vemos, ouvimos, cheiramos, etc.,
algo de que temos consciência e que é imediatamente presente à mente pelos
sentidos. Por sua vez, a introspeção é a perceção dos conteúdos da mente — as
impressões e as ideias.

A justificação do conhecimento e suas consequências


Hume defende que a justificação do conhecimento está nas impressões.
Segundo Hume, este facto determina 1) a extensão do conhecimento e 2) que
frases têm sentido. Para sabermos se uma frase tem sentido, o teste que terá de
ser feito consiste simplesmente em ver se a proposição que ela exprime deriva
de uma impressão.
Imagina que tens a ideia de uma montanha X com neve. Perante isto, Hume
faria a seguinte pergunta: De que depende e deriva essa ideia? E tu
provavelmente responderias que deriva da experiência de ver (impressão visual)
a montanha X com neve. Imagina que tens a ideia de alegria intensa. A mesma
pergunta seria feita e tu provavelmente responderias que essa ideia depende da
experiência de ter certos estados mentais a que tens acesso imediato por
introspeção e que são produzidos por um 18 no teste de Matemática ou pela
vitória do teu clube no campeonato de futebol. Segue-se assim que a proposição
expressa pela frase “A montanha X tem neve no mês de janeiro” pode ser
verificável ou falsificável pela observação; e que a proposição expressa pela frase
“Sinto uma alegria intensa quando tenho um 18 a Matemática” pode ser
verificável ou falsificável pela introspeção.
Hume diz que ambas as frases têm sentido e podem exprimir conhecimento.
E como são verificáveis ou falsificáveis pela observação ou introspeção,
exprimem proposições empíricas. Mas para Hume há também frases analíticas
como “Um quadrado tem quatro lados” ou “Um dia húmido não é um dia seco”.
Uma frase é analítica quando a sua verdade ou falsidade depende
exclusivamente do significado dos termos nela envolvidos. A negação de uma
verdade analítica é autocontraditória, o que não acontece quando se nega uma
frase empírica. Para uma frase não ser desprovida de significado terá de ser
empírica ou analítica. A conclusão que daqui se retira é devastadora e tem um
enorme alcance. Basta pensares em frases como “Deus existe”, “O homem é livre
e moralmente responsável”, ou “A alma é imortal”, para concluíres que as
proposições expressas não são empíricas nem analíticas — pelo menos, assim
pensava Hume. Logo, como o mesmo se passa com todas as outras frases
metafísicas, segundo Hume, todas são desprovidas de significado. E como são
desprovidas de significado, não podem exprimir qualquer espécie de
conhecimento. A este famoso argumento de Hume chama-se “argumento
antimetafísico”. Na sua vida pessoal, Hume foi consistente com este argumento.
No leito de morte, houve quem aguardasse ansiosamente a sua conversão. Em
vão. Nesse momento extremo, manteve a doçura e serenidade que o
distinguiam.

Questões de revisão

1. Segundo Hume, que relação há entre as impressões e as ideias?


2. Segundo Hume, qual é a justificação última do conhecimento?
3. Que teste se faz às frases para saber se elas têm sentido e se exprimem
conhecimento? Apoia a tua resposta aplicando o teste a um exemplo
criado por ti.
4. Mostra que razão poderá haver para pensar que a frase “Deus existe” não
é empírica nem analítica.

Causalidade, inferência indutiva, eu e mundo


O teste adotado por Hume para determinar se uma frase tem sentido e pode
exprimir conhecimento não o levou apenas ao abandono de crenças metafísicas.
Noções centrais como as de causalidade, eu e mundo terão de ser drasticamente
redefinidas.
Vejamos como. Em que experiência se baseia a noção de causalidade? Na
experiência de ver repetidamente um certo tipo de objeto ou evento ser seguido
por um objeto ou evento de outro tipo. Essa experiência de contiguidade leva a
mente a inferir um determinado objeto ou evento sempre que tem a impressão
do objeto ou evento que habitualmente o antecede. Segundo Hume, a
causalidade é simplesmente uma conexão mental que a experiência do passado
formou em nós; é um hábito mental produzido por factos contingentes ligados à
natureza humana. Daqui resulta que a ideia tradicional de causalidade como
conexão necessária entre duas coisas terá de ser abandonada e redefinida. Não
temos a impressão de uma conexão necessária entre duas coisas; o que temos é
apenas a impressão de contiguidade entre objetos ou eventos. O que deste modo
se forma em nós é apenas um hábito mental e não há lugar para qualquer
demonstração a priori da existência de relações causais no mundo.
Este hábito mental de estabelecer conexões causais está na base de
inferências de factos observados para factos não observados e do passado para o
futuro. Essas inferências são argumentos indutivos como os seguintes: da
experiência de ter observado que a cadeira onde estou sentado aguenta o meu
peso, concluo que será bastante provável que o mesmo aconteça no futuro; do
facto de ter tido a experiência de que o pão alimenta e dá energia, concluo que
todo o pão alimenta e dá energia. Mas o que nos leva a pensar assim? A resposta
é que esperamos que os casos futuros sejam semelhantes aos casos do passado e
que o curso da natureza continue uniformemente a ser o mesmo. A isto chama
Hume o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN).
Há alguma justificação para PUN, ou estamos mais uma vez na presença de
um hábito mental contingente? Vejamos o que sucede se tentarmos justificar
PUN através de um argumento indutivo. PUN afirma que as uniformidades do
passado continuarão no futuro. Em que premissa podemos apoiar esta
conclusão? Na premissa de que a natureza tem sido uniforme nas minhas
observações do passado. Mas como Hume diz que todos os argumentos
indutivos pressupõem PUN como premissa, o argumento é circular: pressupõe
como premissa o que tenta estabelecer como conclusão. Logo, a justificação
indutiva de PUN falha.
E será que uma justificação dedutiva de PUN teria sucesso? Mais uma vez,
Hume diz que não. Se apreciares mais uma vez o argumento do parágrafo
anterior, terás de concluir que ele não é dedutivamente válido. PUN não pode
ser deduzido das observações feitas no passado. Um outro tipo de justificação
dedutiva seria deduzir PUN das definições dos termos que usa. Nesse caso PUN
seria uma verdade conceptual como “Um dia húmido não é um dia seco”. Assim,
tal como da definição de “dia húmido” podemos deduzir que “um dia húmido
não é um dia seco”, também seria possível deduzir que “a natureza é uniforme”
da definição de “natureza”. Mas é evidente que não há qualquer contradição se
dissermos que a natureza deixará subitamente de ser uniforme. Logo, esta
tentativa também falha. PUN não é uma verdade conceptual.
Mas se todas estas tentativas falham, o que é PUN então? Mais uma vez, é
simplesmente um hábito mental contingente, ainda que bastante importante na
aquisição de conhecimento empírico. Tal como a noção de causalidade, não tem
uma demonstração a priori. Acontece que a natureza humana funciona assim,
mas ninguém pode honestamente excluir a possibilidade de que um dia deixe de
funcionar da mesma maneira.
Intuitivamente supomos que os “eus” são entidades que persistem através do
tempo e da mudança. Claro que acontecem mudanças na vida de uma pessoa,
mas presumimos que não são essenciais: no fundo de cada um de nós há um
substrato do nosso pensamento, da nossa perceção, de todas as nossas
propriedades psicológicas. Esse substrato permanece inalterável. Hume defende
que esta conceção de eu não tem base empírica. Assim, se por introspeção
tentarmos compreender o que é afinal este eu, veremos apenas uma sucessão de
impressões momentâneas e efémeras numa espécie de teatro em contínua
mudança. Nada mais vemos além disto. A introspeção não capta qualquer
substrato inalterável. Ora, o erro da nossa conceção intuitiva está no facto de a
mente sentir a experiência de objetos relacionados como se fosse a experiência
de um objeto único e imutável. O que se passa é que vemos unidade naquilo que
de facto é diversidade. Logo, a introspeção apenas nos autoriza a conceber o eu
como um feixe de perceções mutáveis, e não como um substrato permanente.
A mesma estratégia é seguida por Hume quando se trata de examinar a noção
de mundo externo. Intuitivamente supomos que o mundo externo é feito de
objetos estáveis. Mas aquilo de que temos experiência direta é momentâneo e
efémero. Logo, a nossa conceção intuitiva de que o mundo é feito de objetos
distintos e contínuos está errada. A experiência não fornece justificação para
pensar desse modo.

Questões de revisão

1. Por que razão pensa Hume que a causalidade não pode ser definida como
uma conexão necessária entre duas coisas?
2. Em que se baseiam as inferências causais, segundo Hume?
3. Por que razão pensa Hume que o eu não é um substrato permanente?
4. Em que confusão pensa Hume que se baseia a ideia de eu como substrato
permanente?
5. Será que, segundo Hume, podemos justificar a nossa crença em objetos
estáveis? Porquê?

Conclusão

Como acabaste de ver, a redefinição levada a cabo por Hume de crenças tão
fundamentais como as de causalidade, inferência indutiva, eu e mundo externo
pode abalar seriamente a tua confiança nas nossas capacidades de justificação
racional. Essa é a razão que leva alguns filósofos a dizer que os seus argumentos
são um exercício de ceticismo. Mas talvez Hume esteja apenas a dizer que o
nosso conhecimento é mais limitado do que os racionalistas julgaram. Esta é
precisamente a opinião de outros filósofos. Para eles, Hume é cético em relação
às afirmações de conhecimento a priori dos racionalistas, o que é muito
diferente de ser cético em relação à possibilidade global do conhecimento.
Assim, em vez de ser um cético, Hume é um “naturalista”, alguém que
argumenta a favor da ideia de que as nossas noções centrais não são
estabelecidas pela razão, mas pelo funcionamento da natureza humana. Somos
simplesmente feitos dessa maneira e isso é contingente, o que quer dizer que
podíamos não ser feitos dessa maneira. Se Hume é cético ou “naturalista”, é
uma questão que te cabe avaliar criticamente e tomar posição.
Hume mantém-se fiel à sua teoria empirista do conhecimento. Parece que a
única justificação plausível do conhecimento genuíno é empírica. Mas afinal que
conhecimento temos? Vimos no início desta lição que Hume só admitia frases
empíricas ou analíticas. Mas como as verdades analíticas (segundo Hume, as
verdades lógicas e matemáticas) dependem exclusivamente dos significados dos
termos e apenas exprimem conhecimento linguístico e não substancial, o único
conhecimento genuíno acerca do mundo é empírico. De fora deste quadro
apertado é deixado um conjunto significativo de noções filosóficas fundamentais
até aí aceites, como as noções já discutidas de eu, mundo e causalidade. Como
não têm justificação empírica, estas noções terão de ser abandonadas. Diz-se,
por isso, que Hume foi revolucionário e que a sua filosofia teve o saudável efeito
de obrigar a discutir e redefinir noções fundamentais.

Questões de discussão

1. Hume defende que não temos livre-arbítrio porque podemos inferir a


nossa ação do nosso carácter e das nossas motivações. Será isto
compatível com a sua teoria da causalidade?
2. "A frase “a indução é racional” é analítica. Logo, não faz sentido procurar
justificar racionalmente a indução. Ela é racional por definição."
Concordas? Porquê?
3. "Hume está errado. Por duas razões. 1) Há impressões que derivam de
ideias e 2) sem conceitos prévios que fazem parte de uma linguagem as
impressões nada significam." Concordas? Porquê?
4. Hume é um cético ou um “naturalista”? Porquê?
5. Serão as verdades analíticas meramente linguísticas? Apoia a tua
justificação num exemplo.
6. Discute o seguinte argumento: “Tal como por vezes as células de um
corpo são substituídas e a sua unidade permanece, também o feixe de
impressões pode mudar e o eu de que fazem parte permanecer idêntico.
Logo, o eu não se confunde com as impressões e é uma unidade”.

Faustino Vaz

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