Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Diagramaçâo
Devanil Alves de Oliveira
Arte de capa
Carolina Deconto Vieira
Pedro Luis Vieira
Bibliotecário:
Arthur Leitis Júnior - CRB9/1548
UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA:
CONTRA O SIMPLES, O BANAL E O DOUTRINÁRIO
INTRODUÇÃO
Já há alguns anos a palavra "epistemologia" frequenta nosso vocabu-
lário mais corriqueiro e cotidiano. Uma rápida pesquisa na Internet a partir
dos principais motores de busca nos mostraria a infinidade de referências
geradas e a quase impossibilidade de percorrê-las todas. No ambiente aca-
démico, muitos são aqueles que apelam para expressões do tipo: "do ponto
de vista epistemológico", ou "considerando a epistemologia", ou ainda, su-
blinham algo como "epistemologicamente importante" - para pontuar suas
afirmativas e demonstrar, talvez, rigor em seus discursos. Na bibliografia é
também cada vez mais usual a utilização dessa palavra com o mesmo intuito
e os títulos de artigos, livros, comunicações e palestras não deixam dúvidas
sobre a intenção desses autores de se associarem imediatamente aos valo-
res aparentemente positivos trazidos pela expressão. Na geografia, como em
várias outras áreas do conhecimento, essa dinâmica é perfeitamente paralela
e claramente identificada, sobretudo nos anos mais recentes.
Assim apresentada, essa noção - epistemologia - corre o risco de ironi-
camente se transformar naquilo que um dos pioneiros e grandes pensadores
dessa área, já no começo do século passado, denominou como "obstáculo
epistemológico". Bachelard chamava então a atenção para o uso de pala-
vras, metáforas ou analogias que se generalizavam a partir de um supos-
to consenso em seu emprego, mas que, de fato, não teriam um conteúdo
verdadeiramente claro e estáveH. Para Lecourt, essas expressões se situam
entre o senso comum e o conhecimento científico2. Visivelmente, se no início
essas expressões podem funcionar como uma ponte, seu uso indiscriminado
ou fora do apropriado contexto cria uma ruptura no sentido original e elas
perdem a capacidade de operar de forma eficiente e com o devido rigor da
ciência. Consequência direta disso é que, ao não conferirmos a devida im-
3 Parece ter sido pela primeira vez utilizada pelo químico e filósofo francês, de origem polone-
sa, Émile Meyerson em 1908. Há, aliás, uma importante querela entre o ponto de vista dele e o
de Bachelard, sobre as possíveis continuidades ou rupturas do discurso científico. Infelizmente,
essa discussão ultrapassa os estritos objetivos desta comunicação.
6 Japiassu, Hilton. "Origem e alcance da opinião". In Huhne, Leda Maria (org.) Filosofia e Ciên-
cia, Uape, SEAF, Rio de Janeiro, 2008.
7 Essa posição é diametralmente oposta àquela tida como "a ciência da ciência de base po-
sitivista como nos adverte D. Lecourt op. cit. Porém, essa posição crítica ao positivismo não
necessariamente deve conduzir à abertura do discurso científico à irracionalidade como pre-
tendem alguns, como por exemplo, Pierre Thuillier, La revanche efes sorcières. L "irrationnel et la
pensée scientifique, Belin, Paris, 1997 ou Paul Feyerabend. Contra o método, Francisco Alves,
Rio de Janeiro, 1996.
ESPAÇO E TEMPO 16
8 Identidade está sendo tomada aqui independentemente das diferenciações feitas por Hall
no processo de "descentração" que, segundo ele essa ideia sofreu no curso da modernidade.
Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, DP&A, Rio de Janeiro. 2006.
9 Esse raciocínio corresponde ao que Locke denominou como "sameness", ou seja, a capa-
17 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA
como qualquer outra, aliás, deve ser suficientemente restritiva para assinalar
a singularidade daquilo que estamos distinguindo das demais, porém deve
ser larga o suficiente para abranger as mudanças que ocorreram durante a
trajetória evolutiva desse objeto10.
Por isso mesmo, constatamos que a cada momento em que correntes
ou orientações novas procuraram se impor na geografia, trazendo uma rea-
valiação do que comporia o conteúdo desta disciplina, elas também se viram
forçadas a retraçar a trajetória desse conteúdo na história disciplinar, redes-
cobrindo antigos autores pouco valorizados ou ressaltando aspectos que te-
riam sido antes negligenciados11.
De forma global, podemos dizer que a partir dos anos 50 uma grande
parte dos geógrafos passa a reconhecer a insuficiência e fraqueza das bases
teóricas que pretendiam sustentar o projeto científico da geografia naquele
momento. Essa insuficiência provinha em grande parte da resistente ideia
de que a ciência geográfica se identificava inteiramente com o conhecimen-
to empírico dos lugares e não precisava necessariamente ultrapassar esse
estágio, ou seja, não precisava criar teorias ou explicações abstratas gerais.
Ela seria, portanto, uma ciência diferente das demais pois, não só privilegia-
va o conhecimento concreto como se limitava a ele. As poucas concepções
teóricas que circulavam eram vistas com desconfiança ou como algo acessó-
rio, quando não empobrecedor, o fundamental era a descrição da realidade.
Quando o problema do estatuto científico era levantado, devido a esse desin-
teresse em trabalhar com modelos teóricos, costumava-se apelar para quatro
principais ideias como resposta :
11 Esse recurso foi examinado com detalhes em Gomes, Paulo C. da Costa. Geografia e Mo-
dernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1996.
ESPAÇO E TEMPO 18
12 No começo do Século XX, sobretudo na França, muitos geógrafos tinham seguido estudos
de História, mas, também nesse caso e durante muito tempo, essa disciplina sofreu da mesma
doença enciclopedista e empirista descrita aqui para a geografia.
21 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA
15 Essa mesma constatação é feita para a física por Prigogine. Prigogine, llya. O fim das cer-
tezas: tempo, caos e as leis da natureza. Ed. da UNESR São Paulo, 1996.
27 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA
17 Foi exatamente por isso que ignorei a sugestão de contemplar a categoria do tempo nessa
oportunidade. A ordem cronológica é uma daquelas que sempre é arguida como fundamental
na compreensão dos fenómenos. Mesmos nós geógrafos estamos acostumados a fazer apelo
a essa ordem para encontrar explicações. Isso não é em si condenável, mas a obliteração
da ordem espacial sim. Assim, se reafirma o velho hábito de que as explicações diacrônicas
se imponham sempre como aquelas que aparentemente são mais válidas do que porventura
aquelas trazidas por uma análise sincrônica.
Foi, por essa mesma razão que ignorei todos aqueles autores, numerosos, que confundem
história da geografia com epistemologia, como se essas duas áreas se recobrissem perfeita-
mente. Ao fazerem negam a independência desse campo de questões epistemológicas e o
traduzem como simples etapas da evolução da disciplina, o que no ponto de vista defendido
aqui não é aceitável.
29 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA
fia. O lugar comum que agrada de imediato, mas que de fato nada acrescenta
aquilo que já é comumente pensado, o reforço do pensamento e da explica-
ção banais, a confusão entre o papel de produtor do conhecimento com o
de mero reprodutor, o encanto da denuncia e a posição de suposta superio-
ridade daquele que denuncia, a atração pelo discurso moralista, todos esses
ingredientes, embora facilmente compreensíveis pela sociologia da ciência,
têm sido muito nocivos à geografia, sobretudo pela grande generalização do
seu uso entre nós18.
Parece que precisamos renunciar, pelo menos em parte, ao discurso
simples que gera com facilidade uma sensação de glória pessoal e pensar-
mos nos benefícios possíveis do prestígio trazido pela colaboração na produ-
ção do saber, na efetiva contribuição ao desenvolvimento do conhecimento,
mesmo que isso não cause uma adesão imediata e desestabilize as confor-
táveis certezas do lugar comum. Renunciemos à banalidade para ganharmos
em importância.
18 Não somente entre nós. Todas as ciências sociais padecem desse mesmo mal. Muitas ve-
zes a reprodução da banalidade se faz sob um manto elaborado e todo o talento dos autores é
utilizado para revestir, com uma linguagem aparentemente sofisticada, uma afirmativa bastante
simples que tem livre curso bem estabelecido no senso comum.
19 Duvignaud, Jean. Pour entrer dans le XXème Siècle, Grasset, Paris, 1960 e Morin, Edgar,
Pour sortir du vingtième siècle, Nathan, Paris, 1981.
ESPAÇO E TEMPO 30