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prévia, por escrito, dos autores.

Diagramaçâo
Devanil Alves de Oliveira

Arte de capa
Carolina Deconto Vieira
Pedro Luis Vieira

E77 Espaço e tempo : complexidade e desafios do pensar e do


fazer geográfico / Francisco de Assis Mendonça, Cicilian
Luiza Lowen-Sahr, Márcia da Silva (organizadores). -
Curitiba : Associação de Defesa do Meio Ambiente e
Desenvolvimento de Antonina (ADEMADAN), 2009.
740p. : il. ; 18 cm

Traz alguns textos apresentados no VII Encontro Nacional de


Pós-graduação e Pesquisa em Geografia, pela Associação Nacional
de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (ANPEGE).
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-60764-03-7

1. Geografia - Congressos. 2. Geografia ambiental. 3.


Geografia urbana. 4. Geografia cultural. 5. Geografia rural. 6.
Epistemologia. I. Universidade Federal do Paraná. II.
Encontro Nacional da ANPEGE (8. : 2009 : Curitiba, PR).
III. Título.
CDD: 906

Bibliotecário:
Arthur Leitis Júnior - CRB9/1548
UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA:
CONTRA O SIMPLES, O BANAL E O DOUTRINÁRIO

GOMES, Paulo César da Costa

INTRODUÇÃO
Já há alguns anos a palavra "epistemologia" frequenta nosso vocabu-
lário mais corriqueiro e cotidiano. Uma rápida pesquisa na Internet a partir
dos principais motores de busca nos mostraria a infinidade de referências
geradas e a quase impossibilidade de percorrê-las todas. No ambiente aca-
démico, muitos são aqueles que apelam para expressões do tipo: "do ponto
de vista epistemológico", ou "considerando a epistemologia", ou ainda, su-
blinham algo como "epistemologicamente importante" - para pontuar suas
afirmativas e demonstrar, talvez, rigor em seus discursos. Na bibliografia é
também cada vez mais usual a utilização dessa palavra com o mesmo intuito
e os títulos de artigos, livros, comunicações e palestras não deixam dúvidas
sobre a intenção desses autores de se associarem imediatamente aos valo-
res aparentemente positivos trazidos pela expressão. Na geografia, como em
várias outras áreas do conhecimento, essa dinâmica é perfeitamente paralela
e claramente identificada, sobretudo nos anos mais recentes.
Assim apresentada, essa noção - epistemologia - corre o risco de ironi-
camente se transformar naquilo que um dos pioneiros e grandes pensadores
dessa área, já no começo do século passado, denominou como "obstáculo
epistemológico". Bachelard chamava então a atenção para o uso de pala-
vras, metáforas ou analogias que se generalizavam a partir de um supos-
to consenso em seu emprego, mas que, de fato, não teriam um conteúdo
verdadeiramente claro e estáveH. Para Lecourt, essas expressões se situam
entre o senso comum e o conhecimento científico2. Visivelmente, se no início
essas expressões podem funcionar como uma ponte, seu uso indiscriminado
ou fora do apropriado contexto cria uma ruptura no sentido original e elas
perdem a capacidade de operar de forma eficiente e com o devido rigor da
ciência. Consequência direta disso é que, ao não conferirmos a devida im-

1 Bachelard, Gaston. La formation de 1'espritscíentifique. Contribution à une psychanalyse de la


connaissance objective, Vrin, Paris, 1983.

2 Lecourt, Dominique. Pour une critique de 1'épistémologie : Bachelard, Canguilhem, Foucault.


Maspero, Paris, 5 ! ed. 1980.
ESPAÇO E TEMPO 14

portância à definição e ao teor das expressões e quanto mais consensual


e mais disseminado for o seu uso, menor será a precisão do seu conteúdo.
Inúmeras vezes inclusive, sua utilização se resume a uma mera posição de
princípio, bastante geral e imprecisa. Assim, muito ampla para criar qualquer
oposição, a expressão é também muita restrita para ter qualquer uso opera-
cional. Em outros termos, serviria para dizer muita coisa, mas não sabemos
exatamente o que ela quer dizer.
Toda a ironia dessa situação é a constatação de que em sua origem essa
palavra queria justamente prevenir e alertar para os perigos de adotarmos tal
atitude dentro do discurso científico. Ela foi criada no começo do Século XX
para concorrer com a ideia de Filosofia da Ciência, fortemente identificada à
então dominante corrente positivista3. Quando sabemos que essa ideia de
Filosofia da Ciência se transformou, nos últimos anos do Século XIX e co-
meço do XX, em uma verdadeira doutrina, um protocolo que visava julgar a
conformidade do conhecimento produzido em relação às regras da ciência
positiva, compreende-se melhor o contexto dentro do qual a ideia de episte-
mologia surgiu4.
Ela nasceu sob o signo do conflito e do desacordo com essa visão au-
toritária e unívoca da ciência positivista. A principal vocação da epistemolo-
gia é pois, desde o início, constituir um campo de discussão, de questões
sobre métodos e limites de validade, sua inclinação não é normalizar nem
restringir as iniciativas. Podemos, de forma muito geral, dizer assim que a
epistemologia é um campo crítico de discussões sobre as formas de pensa-
mento científico. Isto quer dizer que essas discussões epistemológicas dizem
respeito antes de mais nada aos métodos, aos objetos e as finalidades de
um conhecimento científico5. Discutir criticamente as formas de construir um
pensamento científico não quer absolutamente dizer se transformar em um
tribunal para julgar da sua conformidade ou não em relação a um modelo
único e ideal, ao contrário.
A epistemologia pretende ser justamente um domínio aberto ao reco-
nhecimento da pluralidade de recursos e orientações nas diferentes discipli-

3 Parece ter sido pela primeira vez utilizada pelo químico e filósofo francês, de origem polone-
sa, Émile Meyerson em 1908. Há, aliás, uma importante querela entre o ponto de vista dele e o
de Bachelard, sobre as possíveis continuidades ou rupturas do discurso científico. Infelizmente,
essa discussão ultrapassa os estritos objetivos desta comunicação.

4 Meyerson, Émile. Identité et réa//féAlcan, Paris, 1908, reeditada ("conclusions") em Laugieret


Wagner (org.) Philosophie des sciences : Théories, expériences et méthodes, Vrin, Paris, 2004.

5 Norris, Christopher. Epistemologia : conceitos-chave em filosofia. Artmed editora, Porto Ale-


gre, 2007.
15 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

nas científicas. Ser um domínio de discussões significa exatamente não estar


orientado de forma exclusiva e não agir como se detivéssemos algum tipo de
certeza que legitimasse a priori esse ou aquele caminho, em detrimento de
outros possíveis6. O objetivo de uma discussão epistemológica não é, por-
tanto, estabelecer, ao final, uma orientação que deve ser seguida por todos
ou quase todos. Trata-se, sobretudo, de demonstrar que a maneira de fazer
ciência é também um produto histórico e contextual, mais importante ainda,
trata-se de demonstrar que a cada momento as respostas são múltiplas e
que essa pluralidade crítica é a razão mesmo da existência da ciência7.
Por isso, podemos, já nesse ponto, justificar a necessidade de melhor
exprimir o sentido da expressão epistemologia, sem que isso, no entanto,
nos seja imputado como uma demanda pelo estabelecimento de um sentido
singular e específico. Em outras palavras, queremos que fiquem claros os li-
mites da discussão que o uso dessa expressão nos conduz e não justamente
decretar, seja pelo consenso, seja pela soberba da autoridade, o fim dessas
necessárias discussões.
O segundo ponto importante desse campo de discussões é a geografia.
Ao associarmos geografia e epistemologia queremos indicar que a discussão
pretendida aqui não almeja estabelecer a forma ideal e absoluta pela qual a
geografia deve ser pensada ou tampouco apontar a boa direção para traba-
lharmos geograficamente. Queremos sim, demonstrar que há discussões no
corpo da geografia que não devem ser evitadas, sobre sua natureza, seus
métodos e suas finalidades, que elas podem ser organizadas em torno de
algumas grandes questões, que esses debates fazem parte do percurso de
uma ciência moderna. Finalmente, gostaríamos que ao final ficasse a cons-
tatação de que essas dúvidas não nos enfraquecem, ao contrário, elas são
o testemunho e os elementos pelos quais a geografia pode ser reconhecida
como uma ciência, viva e dinâmica, aberta e plural.
Corroborando justamente a importância do contexto, podemos perceber
que desde os anos 70 apareceram as primeiras manifestações em prol de
uma discussão verdadeiramente epistemológica na geografia. Isso coincide
justamente com o fim de um longo período durante o qual imaginávamos que

6 Japiassu, Hilton. "Origem e alcance da opinião". In Huhne, Leda Maria (org.) Filosofia e Ciên-
cia, Uape, SEAF, Rio de Janeiro, 2008.

7 Essa posição é diametralmente oposta àquela tida como "a ciência da ciência de base po-
sitivista como nos adverte D. Lecourt op. cit. Porém, essa posição crítica ao positivismo não
necessariamente deve conduzir à abertura do discurso científico à irracionalidade como pre-
tendem alguns, como por exemplo, Pierre Thuillier, La revanche efes sorcières. L "irrationnel et la
pensée scientifique, Belin, Paris, 1997 ou Paul Feyerabend. Contra o método, Francisco Alves,
Rio de Janeiro, 1996.
ESPAÇO E TEMPO 16

um caminho, e somente um, nos levaria à construção de uma boa geografia.


Correntes e contra-correntes competiam pela supremacia, competiam tam-
bém pela possibilidade de anular as outras tendências em concorrência. Só
mesmo depois dos anos 80 começaríamos a ver despontar uma nova com-
preensão da geografia, muito mais aberta à pluralidade, ao diálogo e, muitas
vezes, ao conflito, pois nem sempre as posições são de fato conciliáveis.
Assim, o grande elemento diferenciador nessas discussões é que aban-
donamos cada vez mais a pretensão de que uma corrente terá a primazia e o
privilégio de ser a verdadeira intérprete ou a porta-voz da boa geografia. Acei-
tamos, exatamente por isso, a persistência dessas discussões sobre sua natu-
reza, seus métodos e suas finalidades como parte do incessante processo de
construção do conhecimento. Em outras palavras, ao assim agirmos estamos
verdadeiramente desenvolvendo um campo epistemológico na geografia.
Esse campo envolve uma infinidade de questões, discussões, tratamen-
tos, escalas etc. Nessa oportunidade, queremos apenas nos deter breve-
mente sobre três aspectos da discussão epistemológica na Geografia: o que
funda um discurso geográfico, suas condições de validade e sua possível
relevância.

IDENTIDADE DISCIPLINAR: OS SINTOMAS DE UMA CRISE

O primeiro ponto é, sem dúvida, o mais importante. Diz respeito à onto-


logia do saber geográfico e pode ser traduzido em termos mais simples pela
questão - Sob que condições e sob que aspectos seria lícito conferir o quali-
ficativo de "geográfico" a um fenómeno?
Responder a essa questão corresponde a ser capaz de indicar um cam-
po de atributos e características que são próprios e exclusivos ao que de-
nominamos como geografia. Significa, portanto, que essas características
e atributos atuam como constituintes essenciais da Geografia, aqueles que
fazem parte da sua natureza, que são os traços que a distinguem, ou em uma
só palavra, respondem por sua identidade8.
Se assim for, esses traços têm que estar presentes sempre que utilizar-
mos esse qualificativo de geográfico, e isso a despeito de toda variedade das
aplicações e a despeito inclusive dos usos que foram dados em outros mo-
mentos a essa mesma palavra9. Isso quer dizer que a identidade disciplinar,

8 Identidade está sendo tomada aqui independentemente das diferenciações feitas por Hall
no processo de "descentração" que, segundo ele essa ideia sofreu no curso da modernidade.
Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, DP&A, Rio de Janeiro. 2006.

9 Esse raciocínio corresponde ao que Locke denominou como "sameness", ou seja, a capa-
17 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

como qualquer outra, aliás, deve ser suficientemente restritiva para assinalar
a singularidade daquilo que estamos distinguindo das demais, porém deve
ser larga o suficiente para abranger as mudanças que ocorreram durante a
trajetória evolutiva desse objeto10.
Por isso mesmo, constatamos que a cada momento em que correntes
ou orientações novas procuraram se impor na geografia, trazendo uma rea-
valiação do que comporia o conteúdo desta disciplina, elas também se viram
forçadas a retraçar a trajetória desse conteúdo na história disciplinar, redes-
cobrindo antigos autores pouco valorizados ou ressaltando aspectos que te-
riam sido antes negligenciados11.
De forma global, podemos dizer que a partir dos anos 50 uma grande
parte dos geógrafos passa a reconhecer a insuficiência e fraqueza das bases
teóricas que pretendiam sustentar o projeto científico da geografia naquele
momento. Essa insuficiência provinha em grande parte da resistente ideia
de que a ciência geográfica se identificava inteiramente com o conhecimen-
to empírico dos lugares e não precisava necessariamente ultrapassar esse
estágio, ou seja, não precisava criar teorias ou explicações abstratas gerais.
Ela seria, portanto, uma ciência diferente das demais pois, não só privilegia-
va o conhecimento concreto como se limitava a ele. As poucas concepções
teóricas que circulavam eram vistas com desconfiança ou como algo acessó-
rio, quando não empobrecedor, o fundamental era a descrição da realidade.
Quando o problema do estatuto científico era levantado, devido a esse desin-
teresse em trabalhar com modelos teóricos, costumava-se apelar para quatro
principais ideias como resposta :

• A geografia é uma ciência de síntese - a diferença da geografia das


outras ciências é que ela integra todos os conhecimentos na apre-
ciação de um lugar (espaço, região, etc). Em outras palavras, para
conhecermos a forma de ser de um espaço é necessário conhecer-
mos todos os elementos que estão presentes e contribuem na fisio-
nomia daquele espaço. A geografia é assim definida como a ciência
dos lugares. Era comum também apresentar a geologia, a pedologia,
a climatologia, mas também a demografia, a sociologia, a economia,

cidade de mudar existencialmente (materialmente), mas permanecendo o mesmo como ideia,


ou como identidade. Locke, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Nova Cultural, São
Paulo, 1978. (Coleção Os Pensadores).

10 Williams, Raymond. Keywords, Fontana, Londres, 1976.

11 Esse recurso foi examinado com detalhes em Gomes, Paulo C. da Costa. Geografia e Mo-
dernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1996.
ESPAÇO E TEMPO 18

entre outras, como ciências subsidiárias à geografia. Estas disciplinas


seriam analíticas, tratariam de um campo fenomênico, ou seja, parti-
riam do questionamento sobre um problema ou de um domínio. A ge-
ografia não responde a um problema específico, nem por um tipo de
fenómeno, ela trata dos lugares e, portanto, integra todos os conhe-
cimentos que operam naquele espaço. De certa forma, nesse caso a
ciência geográfica não tem como papel explicar, mas simplesmente
relacionar os campos analíticos advindos de outras disciplinas. Por
isso se difundiu a ideia de que a geografia faria uma grande síntese.

• A geografia é uma ciência indutiva - a geografia, como outras ciências


físicas e naturais, partiria dos fatos para só depois construir explica-
ções, ao contrário das ciências dedutivas, como a matemática, que
avançaria por raciocínios lógicos dedutivos. Assim, o mais importante
seria o conhecimento empírico, ou pelo menos, qualquer teoria deve-
ria partir do conhecimento profundo dos lugares (ou regiões, paisa-
gens etc). Se o que concentra e define a substância do conhecimento
científico da geografia é a maneira como se apresentam os lugares,
então o primeiro e mais importante passo na formação do conheci-
mento é a descrição minuciosa e total de todos os aspectos que ca-
racterizam um lugar. A permissão ao uso e a legitimidade de qualquer
modelo de análise teórico ficam submetidas ao conhecimento empíri-
co, quase exaustivo, do conjunto dos lugares, ou seja, só pode haver
teoria depois que a massa de conhecimento empírico for estabeleci-
da e sistematizada. Como se pode perceber trata-se de uma missão
quase impossível superar essa primeira fase na maneira como ela era
apresentada por alguns geógrafos.

• A geografia é uma ciência "charneira" - A diferença da geografia pro-


vém de sua posição, entre as ciências sociais e naturais. O campo
das questões geográficas se situa nessa relação, ou melhor, a geo-
grafia nessa versão deve responder sobre as múltiplas influências ou
condicionamentos gerados entre o mundo natural e a organização
social. Essa posição singularíssima em relação às outras ciências é
responsável pelas dificuldades em desenvolver grandes painéis expli-
cativos, uma vez que o determinismo geográfico foi condenado desde
o começo do Século XX, ou seja, exatamente no momento em que a
geografia começa a ser difundida através de um ensino sistemático.
19 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

• A geografia é uma ciência do empírico - Alguns poucos geógrafos


procuraram de forma mais aprofundada e movidos por um genuíno
desejo de esclarecimento uma forma de definir a geografia na ma-
neira como ela era praticada nessa primeira metade do Século XX.
Um dos trabalhos mais conhecidos apresentava a "excepcionalidade"
do método geográfico como uma derivação da natureza do próprio
objeto de estudo da geografia: o espaço. Essa excepcionalidade teria
sido pela primeira vez identificada por Kant, já no Século XVIII, em sua
classificação das ciências quando ele descreve o caráter a priori das
categorias de espaço e tempo. De fato, Kant assinalou o fato de que
para percebemos qualquer fenómeno e criarmos categorias de aná-
lise, é necessário que esse fenómeno esteja contido no tempo e no
espaço, senão ele não seria identificável, uma vez que se misturaria a
outros. Então, disse ele, as categorias tempo e espaço são categorias
a priori, são como condições para a nossa percepção. Certos geógra-
fos interpretaram isso como um estatuto científico diferente para a ge-
ografia (e também para a História que estuda o tempo, outra categoria
a priori, segundo Kant) uma vez que essa ciência estuda o espaço e
este é uma categoria apriorística, não há necessidade de encontrar
justificativas lógicas, ele é um dado concreto e fundamental. Daí a
geografia ter dificuldade em operar no campo da abstração já que sua
base é uma categoria que não necessita de definição.

Nessas quatro situações percebemos que o que se pretendia afirmar


era a singularidade da geografia em relação às outras ciências. Ainda que se
constatassem problemas de integração da geografia aos métodos das outras
disciplinas, de forma alguma se estava renunciando ao prestigioso estatuto
de ciência. Essas explicações apresentadas acima procuravam assim uma
justificativa para dificuldade da geografia de produzir modelos de explicação,
ou para a sua incapacidade de criar um verdadeiro campo analítico de inves-
tigação. Essas explicações operavam também como justificativas para que
os geógrafos não frequentassem as discussões mais gerais sobre as teorias
do conhecimento que atravessavam as demais disciplinas. A natureza singu-
lar da geografia em face das outras disciplinas os pouparia desses debates.
Esse traço, todavia, não deve ser interpretado simplesmente como in-
dolência ou puro conservadorismo dos geógrafos. A geografia tal como a
história é filha dos modelos de erudição que caracterizavam o saber antes da
revolução científica do final do Século XVIII. O enciclopedismo e o princípio
das coleções são sempre fortes tentações que, embora hoje mais fracas,
ESPAÇO E TEMPO 20

exercem seu poder sobre os interessados nesses campos.


O fato de que a geografia tenha se constituído como disciplina a partir da
herança deixada pelos viajantes e suas descrições e pelos naturalistas e suas
coleções variadas, certamente foi decisivo. Por um lado, foi a partir do ma-
terial deixado por esses pioneiros que os geógrafos começaram a trabalhar.
Por outro lado, essa proximidade com viajantes e naturalistas e suas aventu-
rosas e curiosas estórias devem, sem dúvida, ter contribuído no tipo de públi-
co atraído para o campo da geografia. Isso quer dizer que muitos geógrafos
inicialmente tinham como horizonte e interesse essa agenda descritiva de
lugares, por vezes bastante anedótica, e talvez tivessem pouca sensibilidade
para esquemas explicativos abstratos12. Podemos mesmo nos perguntar se
ainda hoje, a tentação de definir, ou de pelo menos manter uma forte cono-
tação naturalista dentro de certos domínios da disciplina não provenha ainda
dessa mesma origem.
O fato mais significativo que queremos assinalar aqui, no entanto, é que
a partir de meados do século passado essas quatro linhas de raciocínio apre-
sentadas pelos geógrafos e citadas anteriormente começam a mostrar claros
sinais de insuficiência. Para termos uma ideia da importância dessa discus-
são basta que consideremos que é a partir delas, de sua aceitação, que a
geografia pode ou não justificar a legitimidade de seu estatuto como ciência
frente às demais disciplinas. Examinemos, ainda que brevemente, alguns dos
pontos críticos que atingiram essas linhas de raciocínio.

• Em relação à ciência de síntese - todo domínio científico precisa pro-


duzir conhecimento, não há como imaginar que uma ciência pode
existir sem definir um campo de investigação próprio e, além disso,
pretenda ser a síntese de todos os demais. A ideia de que a geografia
era uma ciência caracterizada pela inter-relação de diversos campos
não pode se sustentar pois todas as ciências se nutrem elas mesmas
de inter-relações entre variados campos. Ademais, no estado atual do
conhecimento científico, profundo, especializado e sofisticado, como
poderia o geógrafo ser capaz de produzir uma síntese global desses
conhecimentos?

• Em relação à ciência indutiva - Todas as outras ciências, físicas e


naturais, que também podem ser classificadas como indutivas, proce-

12 No começo do Século XX, sobretudo na França, muitos geógrafos tinham seguido estudos
de História, mas, também nesse caso e durante muito tempo, essa disciplina sofreu da mesma
doença enciclopedista e empirista descrita aqui para a geografia.
21 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

dem e têm como finalidade produzir explicações. Aliás, as descrições


só têm sentido dentro de um quadro científico quando referenciadas
a um ponto de vista que é ele mesmo dado pelo quadro de uma te-
oria ou de um esquema interpretativo. Desde Kant e das doutrinas
modernas do conhecimento sabemos da impossibilidade de conhe-
cer as coisas em sua totalidade, as coisas-em-si (a diferença entre o
noumêno e o fenómeno). Assim, não se consegue jamais descrever
todos os aspectos de uma coisa ou fato, por maior que seja o esfor-
ço, a profundidade e os detalhes da descrição. Além disso, ao entrar
em contato com o empírico o observador já está municiado de cate-
gorias abstraías imprescindíveis à própria observação e descrição.
Da mesma forma, o interesse que guia e legitima a descrição é tam-
bém muito mais o produto de um quadro de referências abstratas do
que simplesmente o resultado de uma observação gratuita nascida
de forma espontânea e fortuita. É assim que a relação entre nossas
categorias abstratas de análise e a observação empírica, segundo a
teoria clássica da ciência, constitui o método recomendável para a
produção do conhecimento. Por fim, essa classificação de ciências
indutivas e dedutivas foi muito fortemente criticada desde o come-
ço do Século XX por inúmeras correntes que denunciam a falácia da
separação entre categorias mentais e percepção (Convencionalismo,
Neo-Kantismo, etc). Sem precisarmos ir até essa discussão, parece
que dentro dessa linha de raciocínio de uma ciência exclusivamen-
te indutiva tampouco poderia se encontrar justificativa para manter a
geografia como uma mera coleção de observações empíricas, sem
discussões teóricas explicativas.

• Em relação à ciência « charneira » - Como já foi dito anteriormente é


difícil imaginar que uma ciência defina seu campo de estudos como
uma relação, sobretudo de uma amplitude tão grande como essa en-
tre o mundo natural e a organização social. De qualquer forma, ainda
que isso fosse aceito, seria necessário produzir modelos abstratos
generalizantes - O que é regular nessa relação? Quais os graus de
dependência entre os diversos aspectos ambientais e socioculturais
descritos? Que elementos gerais resultam da análise? Em outras pa-
lavras, dizer que a geografia estuda a relação homem-meio e pro-
duzir uma série de descrições de casos singulares que apenas de-
monstram os condicionamentos e as limitações particulares de cada
parcela analisada não corresponde aos resultados que se espera de
ESPAÇO E TEMPO 22

um campo disciplinar verdadeiramente científico.

• Em relação à ciência do empírico fundada no raciocínio de Kant do


espaço como uma categoria a priori da percepção e do conhecimento
- não quer dizer para ele, e nem poderia, que a geografia, que estuda
o espaço, fica dispensada de produzir outras categorias de análise.
Toda ciência para Kant deve desenvolver e trabalhar a partir de cate-
gorias gerais que, aliás, são elas que conformam nossa percepção e
nosso entendimento. O modelo fundamental de ciência para Kant é a
física newtoniana, ou seja, a instrumentalização de nossa percepção
através de categorias, a observação formal do comportamento em-
pírico e construção de um sistema de explicação abstrato, lógico e
generalizante. Nada é mais distante do sistema kantiano do que essa
ideia de que pode haver uma ciência eminentemente empírica que se
nutre de uma observação direta, sem construção teórica.

A esses argumentos críticos somam-se muitos outros. Alguns de pe-


queno alcance, como por exemplo, os que diziam que: "os geógrafos não
gostam de matemática" por isso não têm boa capacidade de análise e de
abstração; ou ainda, "o recrutamento dos geógrafos é feito sobre a base de
uma geografia do ensino médio, caracterizada pela memorização, nada há
nesse ensino que deixe perceber que existe na geografia um esforço de com-
preensão teórica do funcionamento dos fenómenos que ela diz estudar, por
isso são atraídos para a carreira aqueles elementos que não possuem qual-
quer vocação para o pensamento abstrato"; finalmente, chegava-se mesmo a
diagnósticos bastante severos como aqueles que definiam o geógrafo como
um apreciador do anedótico ou um especialista em generalidades13.
Ao lado dessas críticas apareciam outras de ordem bem mais geral como
aquelas que demandavam que o estatuto de ciência fosse acordado à geo-
grafia somente na medida em que ela se mostrasse capaz de construir mo-
delos gerais de análise e de formular teorias explicativas como todas as de-
mais ciências, inclusive as sociais. Muito se falou também da dificuldade em
aplicar um conhecimento que não era fundado em modelos abstratos e por
isso a dificuldade em operacionalizar esse conhecimento como o faziam as
outras áreas que participavam da esfera da ação, inclusive em domínios onde
a geografia parecia poder trazer alguma contribuição como no planejamento
territorial, na discussão de políticas públicas, no desenvolvimento regional etc.

13 Allemand, Sylvain, Dagorn, René-Éric e Vilaça, Olivier. La Géographie contemporaine, col.


Idées recues, Le cavalier Bleu Editions, Paris, 2006.
23 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

Nessa discussão muito se tem confundido ciência e engenharia e, mui-


tas vezes, a decantada integração dos campos físico e humano da geografia
responde não mais do que pela simples aplicação de um conhecimento na
tentativa de solução de um problema prático. Esse colossal equívoco en-
tre produção do conhecimento, relativo à esfera da ciência e, portanto, ne-
cessariamente atravessado por questões epistemológicas e a aplicação do
conhecimento, relativo à esfera das engenharias, da solução de problemas
práticos, tecnicidade e operacionalização dos conhecimentos, tem sido fruto
de imensos problemas na definição do papel do geógrafo e de suas compe-
tências. Esse equívoco não afeta somente à identidade do saber geográfico,
ele se transforma em grave problema na formação dos geógrafos e na inser-
ção deles no mercado de trabalho.
O diagnóstico dos problemas parecia, portanto, convergir no sentido de
que as principais falhas eram atribuídas à ausência ou ao pequeno desenvol-
vimento de uma discussão teórica dentro do campo da geografia. Podemos
pois chegar a conclusão de que o que caracteriza a geografia no pós-guerra
é essa consciência aguda de que seu futuro como ciência dependeria da
capacidade de gerar instrumentos de análise abstratos, ou seja, superar a
descrição dos casos e encontrar regularidades capazes de fundar um campo
de discussões teóricas. Talvez pudéssemos ousar dizer, de forma bem exem-
plar - passar da geografia dos elementos à construção de uma verdadeira
ciência geográfica.

A BUSCA POR UM OBJETO: LIMITES E FRUSTRAÇÃO

Ainda que o diagnóstico fosse quase unânime, o mesmo não ocorria


com as recomendações a seguir e isso foi imensamente positivo para a ge-
ografia. De fato, a crise iniciada pelas insuficiências desses argumentos que
alicerçavam a chamada "geografia clássica" conduziu os geógrafos a se lan-
çarem em um verdadeiro debate epistemológico. Esses debates tomaram
diversas direções. Uma das mais centrais seria aquela que discute sobre o
objeto de estudos da geografia.
Para alguns, a busca desse objeto tomou a forma de uma verdadeira
epopeia mítica. Encontrar um objeto para a Geografia corresponderia a salvar
a disciplina de sua deriva, haveria a definição de novos rumos, a geografia
se libertaria do classicismo e serviria à libertação social. O objeto da geo-
grafia, tal qual o Santo Graal, era procurado por grupos de pessoas unidas
pelas promessas redentoras em torno de sua posse. Esse objeto "sacraliza-
do" seria encontrado pelos bravos e somente os puros de espírito teriam sua
ESPAÇO E TEMPO 24

guarda e, finalmente, sua descoberta anunciava muita paz e prosperidade e


reconhecimento à ciência geográfica.
O nome desse mágico objeto era "espaço" e como nos abundantes mi-
tos, muitos foram aqueles que reclamaram sua descoberta e posse. Parte do
problema parecia, portanto, estar resolvido. Sabíamos qual era o objeto de
estudo da geografia, possuir esse objeto daria distinção e prestígio.
Dois grandes problemas surgiriam imediatamente depois desse consen-
sual concerto em torno da ideia de que era o estudo do espaço que daria
identidade e relevância à Geografia. O primeiro era o de sua posse exclusiva,
seu monopólio. Outros domínios disciplinares ao trabalharem com o espaço
estariam indevidamente explorando os recursos nos terrenos da geografia?
Como fazer com a física e sua já tão antiga reflexão sobre a categoria espaço,
ou com a matemática, para citar apenas esses exemplos entre muitos outros?
Uma das tentativas de solução apresentadas para esse problema era
afirmar a diferença do espaço geográfico em relação aos outros tipos de
espaço trabalhados por outras disciplinas. Esse recurso, todavia, é apenas
parcial pois transfere as imprecisões contidas na definição da geografia ao
espaço e tudo aquilo que foi dito em relação às marcas distintivas e exclusi-
vas que devem ser apresentadas quando da definição de um campo identitá-
rio. Daí, aliás, deriva justamente o segundo grande problema - definir o tipo
de espaço que deve ser estudado pela geografia.
Rapidamente, os geógrafos compreenderam que a detenção, ainda que
apenas nominativa, de um suposto objeto único não garantia nem definia as
direções que os estudos geográficos deveriam tomar. Ainda que estivésse-
mos de acordo sobre a denominação de um objeto, as questões relativas à
natureza desse objeto, a como abordá-lo, a como justificar sua pertinência e
sua relevância restavam sem resposta.
Espaço matemático, geométrico, sistémico, polarizado, socialmente de-
finido, polarizado, homogéneo, vivido, físico, concreto, foram algumas das
classes criadas para definir o substrato essencial para uma nova ciência ge-
ográfica do espaço. Até mesmo a denominação "geografia" foi colocada sob
suspeita e propostas de ciência do espaço ou espaciologia foram sugeridas
como alternativas no processo de apropriação desse objeto.
Uma questão fundamental permanecia, todavia, em silêncio. É aquela
que indagava sobre a necessária associação de uma disciplina ao domínio
de um objeto específico. Todas as disciplinas possuem um objeto que lhes
pertence? Os recortes disciplinares correspondem à transformação e frag-
mentação do real em uma coleção de objetos, depois selecionados de acor-
do com os limites impostos por cada uma das disciplinas? A quem pertence
25 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

determinados objetos complexos, como, por exemplo, o estudo das cidades?


De certa forma, a definição do espaço como objeto de estudos da ge-
ografia, ou daquilo que iria conferir identidade e marca geográfica a um fe-
nómeno, não significou uma verdadeira ruptura com o projeto clássico da
disciplina. Em outras palavras, a escolha de um objeto, largo e sem muitas
delimitações, significou a possibilidade de continuar a manter as ideias da
geografia como ciência de síntese, da relação entre o natural e o cultural, ou
ainda, do espaço como um reflexo da sociedade, mantendo assim, em todas
essas formas, a economia de uma reflexão teórica própria ou o desenvolvi-
mento do debate epistemológico dentro da geografia.
A engenharia retórica, por mais bem elaborada que ela fosse, não con-
seguiu ser suficiente para soldar as lacunas de um raciocínio verdadeiramen-
te epistemológico necessário ao desenvolvimento de uma ciência moderna.
Esse entendimento não se impõe pela simples posse de um objeto. É ne-
cessário ser claro quanto à contribuição relevante trazida pela disciplina na
investigação de um fenómeno e não apenas dizer que aqueles tipos de fenó-
meno fazem parte do seu domínio.

CAMINHOS QUE NOS LEVAM, NÃO


AO PARAÍSO, MAS A ALGUM LUGAR

Nesse ponto chegamos talvez ao momento mais importante do raciocí-


nio desenvolvido aqui - que característica marca a reflexão e a contribuição
da geografia no estudo de certos fenómenos? Ao que responderemos - A
ordem espacial.
Foi assim que denominamos a ideia de que há um arranjo físico das
coisas, pessoas e fenómenos que é orientado seguindo um plano de dis-
persão sobre o espaço14. Há coerência, lógicas, razões, que presidem essa
distribuição. Há uma trama locacional que é parte essencial de alguns fenó-
menos. A análise dessa trama locacional é a especificidade da ciência geo-
gráfica. Ela é relevante pois o ordenamento espacial de alguns fenómenos
lhes é essencial.
Na distribuição das espécies vegetais que caracteriza tipos de bioma,
no processo de sedimentação que forma uma praia ou na densidade de po-
pulação dentro de uma aglomeração urbana, em qualquer um desses fenó-
menos, há um arranjo espacial coerente e explicativo que é parte da própria

14 Gomes, Paulo C. da Costa. "Geografia fin-de-siècle: o discurso sobre a ordem espacial do


mundo e o fim das ilusões". In Castro, Iná E. de; Gomes, Paulo C. C ; Corrêa, Roberto L (orgs.).
Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997.
ESPAÇO E TEMPO 26

natureza do fenómeno. De fato, o que explica cada um desses arranjos não é


derivado de uma mesma conexão: o jogo das interações dentro de um bioma
gera um plano de distribuição que não tem rigorosamente a mesma causa-
lidade lógica dos modelos físicos que explicam a diferente granulometria ao
longo do perfil de uma praia, ainda menos, esses fatores poderiam servir
para explicar a densidade de população de uma aglomeração urbana. Assim,
embora o problema na base seja o mesmo, para a compreensão dos planos
de dispersão de determinados elementos ou fenómenos, os instrumentos
mobilizados para explicá-los são necessariamente muito diversos e variados.
Imaginar que esses elementos serão federados e uma ordem total apa-
recerá, corresponde a trabalhar com a hipótese de um demiurgo plano, uma
teleologia global que fere frontalmente as laicas concepções da ciência mo-
derna. Fere também frontalmente a ideia que se impõe cada vez mais for-
temente em nossos dias, por vezes associada ao pós-moderno, de que há
sempre uma multiplicidade de sistemas explicativos e de completo rechaço
de uma mono-causalidade ou das assim chamadas "grandes narrativas". A
simplicidade desse holístico desenho é contestada sempre pela complexida-
de que se impõe e que aparece a partir das infinitas interações que caracteri-
za os fenómenos, de seus limites críticos, de suas diversas escalas, de suas
transitórias e mutáveis estruturas.
A conclusão mais importante desse raciocínio aqui não é, no entanto,
aquela que simplesmente sublinha a complexidade dos sistemas espaciais. A
constatação da complexidade não pode ser um bloqueio ou um álibi. A cons-
tatação da complexidade não pode ser um consentimento para a confusão. A
constatação da complexidade não pode ser uma senha de autorização para
sistemas de entendimento totais ou totalitários. A constatação da complexi-
dade é tão somente o reconhecimento de que o percurso para a construção
de um conhecimento demanda esforço, dedicação e muito trabalho de re-
flexão. A constatação da complexidade é tão somente o reconhecimento de
que nosso entendimento, apesar de todo esse esforço, é sempre parcial e
representacional. Nunca chegaremos a envolver todos os aspectos da miría-
de de elementos inter-relacionados na composição dos sistemas espaciais.
Seus desenhos, embora possam ser traduzidos em esquemas simplificados
para fins de apresentação são o produto de sofisticados processos15.
Assim, o mais importante, embora possa parecer bem simples, é que
o terreno da ciência geográfica não se define pela posse de um objeto, o
espaço. Esse terreno se delineia pelo tipo de questão que é dirigida a um

15 Essa mesma constatação é feita para a física por Prigogine. Prigogine, llya. O fim das cer-
tezas: tempo, caos e as leis da natureza. Ed. da UNESR São Paulo, 1996.
27 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

fenómeno. O tipo de questão construído pela ciência geográfica é aquele


que se interroga sobre a ordem espacial deles. Outros domínios disciplinares
trabalharão os mesmos fenómenos, mas construirão outras perguntas, terão
outras curiosidades, desenvolverão outras análises e chegarão a outros re-
sultados. Cada disciplina cria suas representações e trabalha a partir delas,
o que demonstra bem a impossibilidade de um saber totalizante e absoluto.
Dentro dessa perspectiva, não há uma geografia física e uma geogra-
fia humana, unificadas em seus respectivos campos. Menos ainda haveria a
possibilidade de federá-las em um campo totalizador, que seria a "verdadeira
geografia". Há, contudo, sempre uma análise geográfica quando o centro de
nossa questão é a ordem espacial, pouco importando o tipo do fenómeno,
inorgânico, orgânico ou social, até porque essas fronteiras são de difícil deli-
mitação em muitos casos, quando falamos de natureza e de sociedade, por
exemplo.
Haverá, contudo, sempre uma geografia quando o fenómeno da disper-
são espacial construir a questão central do problema. A geografia existe em
qualquer fenómeno em que haja uma ordem de dispersão espacial16. A uni-
dade não provém do tipo de fenómeno, mas do tipo de pergunta.

REPENSANDO O DISCURSO GEOGRÁFICO E SUA IMPORTÂNCIA

Depois dessas considerações, somos agora talvez mais capazes de exa-


minar, ainda que rapidamente, com outros olhos o problema da relevância do
campo de trabalho da geografia.
Se a composição espacial colabora de forma essencial nos fenómenos,
a análise das posições, das implicações relacionais delas no sistema loca-
cional constitui uma dimensão fundamental para a compreensão dos fenó-
menos. Em outras palavras, isso funda um plano de análise autónomo, um
verdadeiro campo de questões, um domínio epistemológico. Isso significa
que ao ignorar ou negligenciar esse plano perdemos a oportunidade de des-
vendar toda uma ordem de sentidos e significações fundamentais que consti-
tuem os fenómenos. Essa negligência faz com que outras ordens explicativas
sejam sempre reforçadas e, paralelamente, significa um empobrecimento da
compreensão das múltiplas possibilidades analíticas, das representações
possíveis de um fenómeno, resumindo, gera uma equivocada simplificação

16 Como na ideia de Cosgrove, Denis. "Geography is everywhere: Culture and Symbolism


in Human Geography". In David Gregory & R. Waldorf (orgs.) Horizons in Human Geography,
MacMillan, Londres, 1989.
ESPAÇO E TEMPO 28

na interpretação dos eventos17.


A importância da ordem espacial não ficou confinada à geografia. Muitos
autores de diversas outras áreas foram, por diversas razões, levados, muitas
vezes, a tratar desse plano do ordenamento espacial que se impôs como uma
dimensão fundamental na compreensão de certas dinâmicas. Há numerosos
exemplos, alguns já célebres como os de Anthony Giddens, de Henri Lefèb-
vre, de Fernand Braudel, de Michel Foucault, entre muitos outros, que, sem
serem geógrafos, chamaram a atenção para a centralidade e para a impor-
tância da espacialidade na compreensão de certos processos e dinâmicas.
Perceber que há uma ordem espacial da vida social, por exemplo, é per-
ceber que nossas práticas são modificadas pela modulação da localização,
que essa modulação modifica também nossa compreensão dos conteúdos,
que essa modulação classifica, hierarquiza, regula, qualifica nossas atitudes,
tanto as mais claramente expressivas quanto aquelas mais cotidianas.
A relevância dessa dimensão espacial dos fenómenos é, portanto, extra-
ordinária. Ela pode nos ajudar a entender melhor inúmeros fenómenos, que
atuam em diferentes escalas e trazer inéditos recortes e condicionantes que
escapam das dominantes causalidades comumente apontadas. Cabe ao ge-
ógrafo fazê-lo, mas se ele não o fizer, outros justificadamente o farão e é isso
que já vem, de certo modo, acontecendo no movimento que ficou conhecido
como a "virada espacial" (the spatial turrí).
Essa dimensão espacial e suas repercussões não são simples de serem
percebidas pois justamente escapam dos elementos que normalmente são
analisados e sobre os quais se atribui o peso da causalidade na constituição
dos fenómenos. O desafio que se coloca à Geografia é, por esse ângulo, por-
tanto, formidável - iluminar um novo campo de questões e demonstrar sua
pertinência e importância.
A sedução do discurso fácil e do consenso imediato tem sido muitas ve-
zes um entrave de peso na produção do conhecimento relevante na Geogra-

17 Foi exatamente por isso que ignorei a sugestão de contemplar a categoria do tempo nessa
oportunidade. A ordem cronológica é uma daquelas que sempre é arguida como fundamental
na compreensão dos fenómenos. Mesmos nós geógrafos estamos acostumados a fazer apelo
a essa ordem para encontrar explicações. Isso não é em si condenável, mas a obliteração
da ordem espacial sim. Assim, se reafirma o velho hábito de que as explicações diacrônicas
se imponham sempre como aquelas que aparentemente são mais válidas do que porventura
aquelas trazidas por uma análise sincrônica.
Foi, por essa mesma razão que ignorei todos aqueles autores, numerosos, que confundem
história da geografia com epistemologia, como se essas duas áreas se recobrissem perfeita-
mente. Ao fazerem negam a independência desse campo de questões epistemológicas e o
traduzem como simples etapas da evolução da disciplina, o que no ponto de vista defendido
aqui não é aceitável.
29 UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA

fia. O lugar comum que agrada de imediato, mas que de fato nada acrescenta
aquilo que já é comumente pensado, o reforço do pensamento e da explica-
ção banais, a confusão entre o papel de produtor do conhecimento com o
de mero reprodutor, o encanto da denuncia e a posição de suposta superio-
ridade daquele que denuncia, a atração pelo discurso moralista, todos esses
ingredientes, embora facilmente compreensíveis pela sociologia da ciência,
têm sido muito nocivos à geografia, sobretudo pela grande generalização do
seu uso entre nós18.
Parece que precisamos renunciar, pelo menos em parte, ao discurso
simples que gera com facilidade uma sensação de glória pessoal e pensar-
mos nos benefícios possíveis do prestígio trazido pela colaboração na produ-
ção do saber, na efetiva contribuição ao desenvolvimento do conhecimento,
mesmo que isso não cause uma adesão imediata e desestabilize as confor-
táveis certezas do lugar comum. Renunciemos à banalidade para ganharmos
em importância.

A epistemologia não é uma forma de estabelecer o modelo, ideal, único


e infalível para produzir conhecimento. É um campo de tensões e discussões.
Por isso, debates e discordâncias são inexoráveis. A aceitação de que isso é
a regra do jogo nos flexibiliza, nos faz abdicar mais rapidamente das palavras
doutrinárias, das certezas, nos coloca face a face com a multiplicidade de
pontos de vista, com a complexidade.
Ao final da 2 § Grande Guerra, desiludidos com os esquemas explicativos
e com as orientações do Partido Comunista Francês, dois grandes intelec-
tuais escreveram livros com títulos evocadores: Para entrar no Século XX,
de Jean Duvignaud e Para sair do Século XX de Edgar Morin19. O primeiro
acreditava que as velhas doutrinas do Século XIX teriam se prolongado e
se popularizado no XX e o quadro analítico, simplificado e esquemático que
fundava a ciência não tinha mais como sobreviver no contexto complicado
do mundo pós 2 9 Guerfa. O segundo se perguntava - como explicar o mundo
depois da barbárie desse evento e após a desilusão dos esquemas explicati-

18 Não somente entre nós. Todas as ciências sociais padecem desse mesmo mal. Muitas ve-
zes a reprodução da banalidade se faz sob um manto elaborado e todo o talento dos autores é
utilizado para revestir, com uma linguagem aparentemente sofisticada, uma afirmativa bastante
simples que tem livre curso bem estabelecido no senso comum.

19 Duvignaud, Jean. Pour entrer dans le XXème Siècle, Grasset, Paris, 1960 e Morin, Edgar,
Pour sortir du vingtième siècle, Nathan, Paris, 1981.
ESPAÇO E TEMPO 30

vos unificados e doutrinários que serviram de matrizes às ciências até então,


o positivismo e o marxismo? A conclusão essencial era a mesma: é preciso
reaprender a pensar.
A estrita consideração da economia, da técnica e dos processos de pro-
dução jamais seriam sozinhos capazes de fornecer a chave para interpre-
tar esse complexo mundo moderno. Da mesma forma, a atribuição de uma
causalidade simples não pode mais ser aceita como absoluta e formatadora
da totalidade dos fenômenos. Sabemos que esses ingredientes somados às
grandes tensões geradas por outras disciplinas, como a física e toda a dis-
cussão sobre a possibilidade de unificação das forças de interações físicas
(gravitacional, eletromagnética, fraca e forte), a conectividade entre os fenô-
menos, as flutuações, a não-linearidade, entre outras noções, deram origem
ao que Edgar Morin chama do novo paradigma da complexidade.
Seja como for, parece que cabe à geografia tomar a si a tarefa de discutir
o complexo sistema de posições e de localização, tentar desvendar o papel
e a importância desse sistema na estrutura dos fenómenos e demonstrar o
valor dessa análise para a compreensão deles. Tudo isso não pode ser feito
sem um profundo mergulho no horizonte epistemológico. Mesmo os entre
nós mais pessimistas devem admitir que os principais elementos para isso
já estão reunidos e as condições para tal empreitada já estão dadas. Então,
mãos à obra.

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