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O termo “ciência” em si mesmo é vago. Suas delimitações dependem não apenas de princípios
epistemológicos, mas também de contingências históricas. Originalmente, a palavra “ciência”
denotava qualquer forma de conhecimento sistemático, prático ou teórico. No século dezanove, seu
significado ficou restrito a certas formas de conhecimento acadêmico, principalmente aquelas
baseadas no estudo da natureza (Layton 1976). Hoje, “ciência” se refere às disciplinas que investigam
os fenômenos naturais, o comportamento humano individual e a algumas disciplinas que estudam as
sociedades humanas. Outras disciplinas que se preocupam com sociedades humanas e culturas são,
em vez disto, chamadas de humanidades. Assim, de acordo com as convenções da língua portuguesa,
a economia política é uma ciência (uma das ciências sociais) mas filologia clássica e história da arte
não são.
Mas as ciências e as humanidades tem algo importante em comum: seu propósito é nos
fornecer as afirmações mais epistemicamente justificadas que podem ser feitas, no presente momento,
sobre o objeto de estudo de seus respectivos domínios. Juntas, elas formam uma comunidade de
disciplinas do conhecimento caracterizada por um respeito mútuo pelos resultados e métodos de umas
das outras (Hansson 2007). Um arqueólogo ou historiador terá que aceitar o resultado de uma
sofisticada análise química feita em um artefato arqueológico. Da mesma maneira, um zoólogo terá
que aceitar o julgamento de um historiador sobre a confiabilidade de um texto antigo que descreve
animais extintos. Para entender as descrições antigas das doenças precisamos de cooperações entre
acadêmicos clássicos e cientistas médicos — não entre acadêmicos clássicos e homeopatas ou entre
cientistas médicos e bibliomantes.
As interconexões entre as disciplinas do conhecimento têm aumentado já há um bom tempo
e continuam a crescer. Há duzentos anos a física e a química eram duas ciências independentes com
apenas algumas poucas conexões. Hoje elas estão intimamente ligadas por disciplinas não menos
importantes, como a físico-química, a química quântica e a ciência de superfícies. As
interdependências entre as ciências naturais e as humanidades também estão crescendo rapidamente.
Apesar de ser difícil comparar, os arqueólogos parecem depender mais da química e da física hoje do
que os biólogos dependiam há duzentos anos. Esses e muitos outros laços entre as ciências naturais e
as humanidades aumentaram drasticamente no meio século que se passou desde a previsão pessimista
de C. P. Snow ([1959] 2008) sobre uma crescente lacuna entre as ciências naturais e as humanidades.
Um dos muitos exemplos disso é o de que métodos e conceitos de pesquisas em biologia evolutiva
(como o efeito fundador em série) foram, recentemente e com sucesso, aplicados para ampliar a
compreensão sobre o desenvolvimento das sociedades humanas e mesmo o desenvolvimento de
linguagens centenas de milhares de anos antes das evidências escritas (Henrich 2004; Pagel et al. 2007;
Lycett and von Cramon-Taubadel 2008; Atkison 2011).
Infelizmente, nem “ciência” nem outro tipo de termo estabelecido na língua portuguesa cobre
todas as disciplinas que são parte desta comunidade de disciplinas do conhecimento. Pela falta de um
termo mais adequado, as chamarei de “ciência(s) no sentido ampliado.” (O termo em alemão
é Wissenschaft, a tradução mais próxima de “ciência” para essa língua, tem este sentido ampliado; isto
é, ele considera todas as especialidades acadêmicas, incluindo as humanidades. Assim também faz a
palavra em Latim scientia.) A ciência em um sentido ampliado busca conhecimento sobre a natureza
(ciências naturais), sobre nós mesmos (psicologia e medicina), sobre nossas sociedades (ciências
sociais e história), sobre nossas construções físicas (ciência da tecnologia) e sobre nossas construções
mentais (linguística, estudos literários, matemática e filosofia). (Filosofia, obviamente, é uma ciência
neste sentido ampliado do termo; cf. Hansson 2003.)
Duas observações devem ser feitas sobre a comunidade de disciplinas do conhecimento.
Primeiro, que alguns ramos da aprendizagem não receberam status acadêmico. Isso se aplica, por
exemplo, à filatelia e à história da conjuração, ambos desenvolvidos por amadores devotos em vez de
acadêmicos profissionais. A filatelia é particularmente um exemplo iluminador, já que a área da
numismática, intimamente relacionada à ela, tem uma forte base acadêmica. Uma importante razão
para essa diferença é a utilidade da numismática na datação dos sítios arqueológicos em que moedas
foram encontradas. Mas em alguns poucos casos, quando historiadores precisam da ajuda de
filatelistas para datar uma carta estampada sem data, eles precisarão confiar na expertise de filatelistas
amadores da mesma forma que confiariam em numismáticos em outros contextos. Essa é uma boa
razão para incluir a disciplina de filatelia na comunidade de disciplinas do conhecimento. Não é o
status acadêmico, mas a metodologia e o tipo de conhecimento que devem determinar se uma
disciplina é científica (no sentido ampliado).
O segundo problema de menor importância diz respeito a cientistas e acadêmicos que
escolhem sair da comunidade e decidem não respeitar outras disciplinas. Exemplos disso são
acadêmicos que não acreditam na datação por carbono ou que escolhem desconsiderar evidências
arqueológicas das funções de artefatos antigos (como já foi discutido por Nickell 2007 e Krupp 1984,
respectivamente). Julgando por experiência, tal desprezo por outras disciplinas é um sinal claro de
baixa qualidade científica. Um dos exemplos mais notáveis diz respeito àquilo que foi timidamente
apresentado como o “programa forte” na sociologia do conhecimento (Bloor 1976). Os proponentes
dessa abordagem programaticamente desprezaram o que é conhecimento sobre a verdade ou falsidade
de teorias científicas em campos diferentes do seu próprio. Essa é uma metodologia malsucedida pelo
motivo óbvio de que os sucessos e fracassos de teorias científicas são fatores importantes que precisam
ser levados em consideração para se entender a ciência e seu papel na sociedade.
Uma demarcação de pseudociências que possua bons princípios não pode ser baseada na
concepção tradicional de ciência que exclui as humanidades. Como já foi mencionado, um número
significativo de autores vendem teorias extremamente problemáticas nos estudos de história e de
literatura — negacionistas do Holocausto; teóricos dos antigos astronautas; fabricantes dos mitos de
Atlantis; sindonologistas (investigadores do sudário de Turim), praticantes da arqueologia “bíblica”
vinculada às escrituras; proponentes das teorias marginais sobre a autoria de Shakespeare; defensores
do código da bíblia; e muitas outras (Stiebing 1984; Thomas 1997; Shermer e Grobman 2000). O que
os coloca fora da comunidade de disciplinas do conhecimento é primariamente sua negligência do
conhecimento histórico e literário. Em muitos desses casos a negligência ou falsificação das ciências
naturais é acrescida à falta de confiabilidade dos ensinamentos.
Temos um problema terminológico aqui. De um lado, pode parecer estranho usar o termo
“pseudociência” para se referir a um mito sobre Atlantis que não tem nada a ver com a ciência no
termo ordinário (e estreito) da palavra. Porém, por outro lado, a criação de uma nova categoria para as
“pseudohumanidades” não é justificada, já que o fenômeno se sobrepõe e coincide largamente com o
da pseudociência. Sigo a primeira opção e uso o termo “pseudociência” para cobrir não apenas versões
fracassadas da ciência no sentido tradicional, mas também versões fracassadas da ciência no sentido
ampliado (incluindo as humanidades). Assim, obtemos uma proposta de demarcação clara e
epistemologicamente unificada, que não pode ser obtida com a noção demasiadamente estreita e
tradicional de ciência da língua portuguesa.
O “pseudo” da pseudociência
Um amigo meu que trabalha em um laboratório de química uma vez teve problemas com um
instrumento de medida. Uma longa série de medições teve de ser repetida depois de um instrumento
ser apropriadamente consertado e recalibrado. As medidas errôneas satisfazem o nosso critério de não-
confiabilidade, isto é, elas sofrem de uma falta de confiabilidade tão severa que de modo algum
merecem crédito. Entretanto, seria estranho chamar tais medidas de “pseudocientíficas”. Elas eram
apenas deficientes, nada mais. Como esse exemplo mostra, o critério da não-confiabilidade não é
suficiente para definir a pseudociência. Algo mais precisa ser dito sobre o uso e a função destas
afirmações não-confiáveis da pseudociência.
Um ponto de partida óbvio para esta discussão é o prefixo “pseudo-” (ψευδο-) da
“pseudociência”. Etimologicamente, significa “falso”. Muitos autores sobre pseudociência
enfatizaram a ideia de que a pseudociência é uma não-ciência tentando se passar por ciência. O
principal clássico moderno sobre pseudociência carrega o título Fads and Fallacies in the Name of
Science (Gardner 1957). De acordo com Brian Baigrie (1988, 438), “o que é objetável sobre essas
crenças é que elas se mascaram como se fossem genuinamente científicas.” Esses autores caracterizam
a pseudociência como consistindo em ensinamentos ou afirmações não-científicas que se passam por
ciência. Mais precisamente, é uma característica comum das pseudociências que seus principais
proponentes tentem criar a impressão de que são científicas (o critério da pretensão científica).
Entretanto, é fácil mostrar o porquê esse critério é demasiadamente amplo. Considere os
seguintes dois exemplos:
1. Uma bióloga que estuda mariposas nas ilhas Faroe se esforça para identificar os indivíduos
que ela coleta, mas apesar de suas boas intenções, ela comete diversos erros de classificação.
Portanto, seus colegas se abstêm de tirar quaisquer conclusões sobre os relatórios de seu estudo.
2. Um bioquímico fabrica dados experimentais, na intenção de confirmar uma hipótese recente
sobre a biossíntese de teias de aranha. Apesar de seu relatório ser falso, a hipótese é confirmada
pouco tempo depois através de experimentos legítimos.
O primeiro é um exemplo de uma cientista que tenta honestamente fornecer resultados
confiáveis, apesar de falhar. Seria excessivamente severo acusar a sua pesquisa de ser pseudocientífica.
O segundo é de fraude na ciência. Como em outros casos similares, ele claramente opera dentro dos
domínios da ciência, e certamente satisfaz o critério da não-confiabilidade. Ele também satisfaz o
critério da pretensão científica; a fraude científica é certamente “ciência falsa”. Mesmo assim,
tendemos a tratar a fraude e a pseudociência como sendo categorias diferentes. A fraude em outros
campos legítimos da ciência é raramente, se é que em algum caso, chamada de “pseudociência” (mas
certamente pode ser chamada de “anticientífica”).
O elemento crucial que está faltando nesses casos é a doutrina desviante. Todos os casos
típicos de pseudociência são casos em que existe uma doutrina desviante no papel principal (Hansson
1996). A pseudociência, como é comumente concebida, envolve um esforço sustentado de promover
ensinamentos que não têm legitimidade científica em sua época. Podemos assim especificar o critério
da pretensão científica e caracterizar uma afirmação pseudocientífica como aquela que é parte de uma
doutrina desviante em que seus principais proponentes tentam criar a impressão de que ela é científica
(o critério da suposta doutrina científica).
Este critério explica o porquê erros como o da bióloga e da fraude científica do bioquímico
nos exemplos acima não podem ser considerados pseudocientíficos. Perpetradores de fraudes
científicas que obtém sucesso tendem a não se associar a doutrinas não ortodoxas. Suas chances de
evitar descoberta são muito maiores quando os dados que eles fabricam estão de acordo com as
predições de teorias científicas estabelecidas.
O critério da suposta doutrina científica melhora significativamente a definição. Mas ainda
não terminamos. Considere os seguintes três exemplos:
3. Uma bioquímica realiza uma longa série de experimentos de qualidade questionável. Ela
consistentemente os interpreta como se mostrassem que uma proteína em particular tem um papel
na contração muscular, uma conclusão que não é aceita por outros cientistas.
4. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do que
água) são melhores do que aqueles da medicina convencional. Ele defende que suas afirmações
relativas à terapêutica têm suporte da ciência e faz tentativas de provar que este é o caso.
5. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do que
água) são melhores do que aqueles da medicina convencional, baseada em ciência. Entretanto, ele
não afirma que a homeopatia é científica. Em vez disto, ele afirma que ela está baseada em outra
forma de conhecimento que é mais confiável que a ciência.
O número quatro é um paradigma da pseudociência: uma doutrina comprovadamente falsa é
promovida e reivindicada como sendo científica. O número três é o mesmo caso. No número cinco
uma afirmação anticientífica dentro da área disciplinar da ciência é anunciada como sendo
conhecimento confiável, mas seus proponentes não a chamam de “ciência”. Autores em pseudociência
comummente usam o termo “pseudociência” em casos como esse, e alguns já disseram explicitamente
que é correto fazer isso: “existem algumas doutrinas pseudocientíficas que buscam legitimação e
suporte públicos ao afirmarem que são científicas; já outras, pretendem oferecer versões alternativas
a aquelas da ciência, ou afirmam explicar o que a ciência não pode explicar” (Grove 1985, 219). Uma
boa razão pode ser dada a esse uso estendido da noção de pseudociência: a ciência não é apenas mais
uma de muitas abordagens ao conhecimento. Para uma determinada área disciplinar se qualificar como
ciência, ela tem de ser a mais confiável, a versão mais epistemicamente justificada daquela área que é
nos é acessível (naquele determinado momento do tempo). Portanto, a definição de pseudociência não
deveria se referir ao uso da palavra “ciência”, mas sim a afirmações que correspondem ao significado
da palavra. Isso nos levaria a um critério ampliado da suposta doutrina científica e caracterizaria a
pseudociência como sendo parte de uma doutrina em que seus principais proponentes tentam criar a
impressão de que ela representa o conhecimento mais confiável sobre seu objeto de estudos (o critério
da doutrina desviante).
Definições e demarcações