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Definindo pseudociência e ciência — Sven Ove Hansson

Para um cientista, distinguir entre ciência e pseudociência é similar a andar de bicicleta. A


maioria das pessoas sabe andar de bicicleta, mas apenas algumas conseguem explicar como o fazem.
De alguma maneira temos a capacidade de manter o equilíbrio, e todos parecemos fazê-lo de maneira
aproximadamente igual, mas como fazemos isso?
Os Cientistas não têm dificuldades em distinguir a ciência da pseudociência. Todos sabemos
que a astronomia é uma ciência e a astrologia não é, e que a teoria da evolução é uma ciência enquanto
que o criacionismo não, e por aí vai. Alguns casos duvidosos permanecem (talvez a psicanálise; veja
Cioffi, capítulo 17 deste volume), mas a visão geral é uma de unanimidade notável. Os Cientistas
conseguem traçar a linha entre ciência e pseudociência, e com algumas poucas exceções, eles traçam
a linha no mesmo lugar. Mas pergunte-os quais princípios gerais eles usam para fazer isso. Muitos
deles acham difícil responder essa questão, e as respostas estão longe de serem unânimes.
Assim como manter o equilíbrio ao andar de bicicleta, distinguir entre ciência e pseudociência
parece ser um caso de conhecimento tácito, um conhecimento que não podemos explicitar totalmente
em termos verbais para que outros entendam e repliquem o que fazemos (Polanyi 1967). Na disciplina
moderna de gestão do conhecimento, o conhecimento tácito é articulado ao máximo possível (i.e.,
transformado em conhecimento explícito e comunicável). Quando o conhecimento tácito se torna
articulado, é mais facilmente ensinado e aprendido, e se torna mais acessível a críticas e melhorias
sistemáticas. Essas são todas boas razões para articular muitas formas de conhecimento tácito,
incluindo o da demarcação de ciência/pseudociência.
Mas mesmo que o conhecimento tácito sobre andar de bicicleta já tenha sido articulado com
sucesso (Jones 1970), o mesmo não pode ser dito sobre a demarcação de ciência/pseudociência. Os
filósofos da ciência desenvolveram critérios para essa demarcação, mas nenhum consenso foi
alcançado com eles. Pelo contrário, a falta de concordância filosófica nessa área tem um contraste
marcante quando comparado à concordância virtual entre cientistas em problemas mais específicos da
demarcação (Kuhn 1974, 803). Na minha visão, a razão para essa divergência é a de que os filósofos
procuraram por um critério de demarcação em um nível errado de especificidade epistemológica.
Pretendo mostrar aqui que uma mudança em relação a isso torna possível formular um critério de
demarcação que evita os problemas encontrados em propostas anteriores.
Uma demarcação de ciência/pseudociência com suficiente generalidade tem de ser baseada
em critérios epistemológicos gerais. Mas a área disciplinar da ciência, no sentido mais comum da
palavra, não está delimitada exclusivamente de acordo com critérios epistemológicos. Na próxima
sessão discutirei como a área disciplinar da ciência (e consequentemente, da pseudociência) deveria
ser delimitada para tornar possível uma demarcação epistemicamente cogente.
A ciência tem limites não apenas em relação à pseudociência mas também em relação a outros
tipos de não-ciência. “Anticientífico” é um conceito mais amplo do que “pseudocientífico”, e “não-
científico” é mais amplo ainda. Portanto, é inapropriado (apesar de infelizmente não ser incomum)
definir a pseudociência como aquilo que não é ciência. É preciso prestar atenção às maneiras
específicas pelas quais as pseudociências violam os critérios de inclusão da ciência e o que o termo
“pseudocientífico” significa para além de “não-científico”. Isso é discutido nas duas seções que se
seguem. Com base nessas considerações, uma definição de pseudociência é proposta. Ela se diferencia
da maioria das propostas anteriores por operar num nível de maior generalidade epistêmica.
Finalmente, defendo essa característica da definição e explico como ela contribui para evitar alguns
dos problemas constantes das definições propostas no passado.

A área disciplinar da ciência

O termo “ciência” em si mesmo é vago. Suas delimitações dependem não apenas de princípios
epistemológicos, mas também de contingências históricas. Originalmente, a palavra “ciência”
denotava qualquer forma de conhecimento sistemático, prático ou teórico. No século dezanove, seu
significado ficou restrito a certas formas de conhecimento acadêmico, principalmente aquelas
baseadas no estudo da natureza (Layton 1976). Hoje, “ciência” se refere às disciplinas que investigam
os fenômenos naturais, o comportamento humano individual e a algumas disciplinas que estudam as
sociedades humanas. Outras disciplinas que se preocupam com sociedades humanas e culturas são,
em vez disto, chamadas de humanidades. Assim, de acordo com as convenções da língua portuguesa,
a economia política é uma ciência (uma das ciências sociais) mas filologia clássica e história da arte
não são.
Mas as ciências e as humanidades tem algo importante em comum: seu propósito é nos
fornecer as afirmações mais epistemicamente justificadas que podem ser feitas, no presente momento,
sobre o objeto de estudo de seus respectivos domínios. Juntas, elas formam uma comunidade de
disciplinas do conhecimento caracterizada por um respeito mútuo pelos resultados e métodos de umas
das outras (Hansson 2007). Um arqueólogo ou historiador terá que aceitar o resultado de uma
sofisticada análise química feita em um artefato arqueológico. Da mesma maneira, um zoólogo terá
que aceitar o julgamento de um historiador sobre a confiabilidade de um texto antigo que descreve
animais extintos. Para entender as descrições antigas das doenças precisamos de cooperações entre
acadêmicos clássicos e cientistas médicos — não entre acadêmicos clássicos e homeopatas ou entre
cientistas médicos e bibliomantes.
As interconexões entre as disciplinas do conhecimento têm aumentado já há um bom tempo
e continuam a crescer. Há duzentos anos a física e a química eram duas ciências independentes com
apenas algumas poucas conexões. Hoje elas estão intimamente ligadas por disciplinas não menos
importantes, como a físico-química, a química quântica e a ciência de superfícies. As
interdependências entre as ciências naturais e as humanidades também estão crescendo rapidamente.
Apesar de ser difícil comparar, os arqueólogos parecem depender mais da química e da física hoje do
que os biólogos dependiam há duzentos anos. Esses e muitos outros laços entre as ciências naturais e
as humanidades aumentaram drasticamente no meio século que se passou desde a previsão pessimista
de C. P. Snow ([1959] 2008) sobre uma crescente lacuna entre as ciências naturais e as humanidades.
Um dos muitos exemplos disso é o de que métodos e conceitos de pesquisas em biologia evolutiva
(como o efeito fundador em série) foram, recentemente e com sucesso, aplicados para ampliar a
compreensão sobre o desenvolvimento das sociedades humanas e mesmo o desenvolvimento de
linguagens centenas de milhares de anos antes das evidências escritas (Henrich 2004; Pagel et al. 2007;
Lycett and von Cramon-Taubadel 2008; Atkison 2011).
Infelizmente, nem “ciência” nem outro tipo de termo estabelecido na língua portuguesa cobre
todas as disciplinas que são parte desta comunidade de disciplinas do conhecimento. Pela falta de um
termo mais adequado, as chamarei de “ciência(s) no sentido ampliado.” (O termo em alemão
é Wissenschaft, a tradução mais próxima de “ciência” para essa língua, tem este sentido ampliado; isto
é, ele considera todas as especialidades acadêmicas, incluindo as humanidades. Assim também faz a
palavra em Latim scientia.) A ciência em um sentido ampliado busca conhecimento sobre a natureza
(ciências naturais), sobre nós mesmos (psicologia e medicina), sobre nossas sociedades (ciências
sociais e história), sobre nossas construções físicas (ciência da tecnologia) e sobre nossas construções
mentais (linguística, estudos literários, matemática e filosofia). (Filosofia, obviamente, é uma ciência
neste sentido ampliado do termo; cf. Hansson 2003.)
Duas observações devem ser feitas sobre a comunidade de disciplinas do conhecimento.
Primeiro, que alguns ramos da aprendizagem não receberam status acadêmico. Isso se aplica, por
exemplo, à filatelia e à história da conjuração, ambos desenvolvidos por amadores devotos em vez de
acadêmicos profissionais. A filatelia é particularmente um exemplo iluminador, já que a área da
numismática, intimamente relacionada à ela, tem uma forte base acadêmica. Uma importante razão
para essa diferença é a utilidade da numismática na datação dos sítios arqueológicos em que moedas
foram encontradas. Mas em alguns poucos casos, quando historiadores precisam da ajuda de
filatelistas para datar uma carta estampada sem data, eles precisarão confiar na expertise de filatelistas
amadores da mesma forma que confiariam em numismáticos em outros contextos. Essa é uma boa
razão para incluir a disciplina de filatelia na comunidade de disciplinas do conhecimento. Não é o
status acadêmico, mas a metodologia e o tipo de conhecimento que devem determinar se uma
disciplina é científica (no sentido ampliado).
O segundo problema de menor importância diz respeito a cientistas e acadêmicos que
escolhem sair da comunidade e decidem não respeitar outras disciplinas. Exemplos disso são
acadêmicos que não acreditam na datação por carbono ou que escolhem desconsiderar evidências
arqueológicas das funções de artefatos antigos (como já foi discutido por Nickell 2007 e Krupp 1984,
respectivamente). Julgando por experiência, tal desprezo por outras disciplinas é um sinal claro de
baixa qualidade científica. Um dos exemplos mais notáveis diz respeito àquilo que foi timidamente
apresentado como o “programa forte” na sociologia do conhecimento (Bloor 1976). Os proponentes
dessa abordagem programaticamente desprezaram o que é conhecimento sobre a verdade ou falsidade
de teorias científicas em campos diferentes do seu próprio. Essa é uma metodologia malsucedida pelo
motivo óbvio de que os sucessos e fracassos de teorias científicas são fatores importantes que precisam
ser levados em consideração para se entender a ciência e seu papel na sociedade.
Uma demarcação de pseudociências que possua bons princípios não pode ser baseada na
concepção tradicional de ciência que exclui as humanidades. Como já foi mencionado, um número
significativo de autores vendem teorias extremamente problemáticas nos estudos de história e de
literatura — negacionistas do Holocausto; teóricos dos antigos astronautas; fabricantes dos mitos de
Atlantis; sindonologistas (investigadores do sudário de Turim), praticantes da arqueologia “bíblica”
vinculada às escrituras; proponentes das teorias marginais sobre a autoria de Shakespeare; defensores
do código da bíblia; e muitas outras (Stiebing 1984; Thomas 1997; Shermer e Grobman 2000). O que
os coloca fora da comunidade de disciplinas do conhecimento é primariamente sua negligência do
conhecimento histórico e literário. Em muitos desses casos a negligência ou falsificação das ciências
naturais é acrescida à falta de confiabilidade dos ensinamentos.
Temos um problema terminológico aqui. De um lado, pode parecer estranho usar o termo
“pseudociência” para se referir a um mito sobre Atlantis que não tem nada a ver com a ciência no
termo ordinário (e estreito) da palavra. Porém, por outro lado, a criação de uma nova categoria para as
“pseudohumanidades” não é justificada, já que o fenômeno se sobrepõe e coincide largamente com o
da pseudociência. Sigo a primeira opção e uso o termo “pseudociência” para cobrir não apenas versões
fracassadas da ciência no sentido tradicional, mas também versões fracassadas da ciência no sentido
ampliado (incluindo as humanidades). Assim, obtemos uma proposta de demarcação clara e
epistemologicamente unificada, que não pode ser obtida com a noção demasiadamente estreita e
tradicional de ciência da língua portuguesa.

Como a pseudociência viola os critérios de qualidade da ciência

As expressões “demarcação da ciência” e “demarcação entre a ciência e pseudociência” são


normalmente tratadas como sinônimas. Isso reduz a questão da demarcação a uma classificação
binária: para uma dada teoria ou afirmação, temos de determinar se ela é um exemplar de ciência ou
um exemplar de pseudociência. Nenhuma outra opção é considerada.
Essa caracterização é obviamente muito simplificada. A ciência tem fronteiras não-triviais
com fenômenos não científicos diferentes das de pseudociências, como por exemplo a religião, a ética
e várias formas de conhecimento prático. Considere, por um momento, a (de algum modo, nem um
pouco nítida) fronteira entre a ciência da musicologia e a musicalidade prática. A musicalidade prática
não é uma ciência, mas também não é pseudocientífica. Fronteiras também existem entre estudos
religiosos e a teologia confessionária, entre a economia política e as políticas econômicas, e entre os
estudos de gênero e as políticas de gênero, e assim por diante.
A pseudociência é caracterizada não apenas por não ser ciência, mas também,
importantemente, por se desviar consideravelmente dos critérios de qualidade da ciência. Para
encontrar a característica definidora da pseudociência precisamos olhar mais cuidadosamente para tais
critérios de qualidade. Existem três aspectos de maior importância sobre eles. O primeiro e mais básico
deles é a confiabilidade: uma afirmação científica deveria estar correta, ou pelo menos, estar o mais
próximo possível da correção que podemos chegar atualmente. Se um farmacologista nos diz que uma
certa substância reduz o sangramento, então ela provavelmente deve ser capaz de fazê-lo. Se um
antropólogo nos diz que os xamãs da Amazônia deram folhas que continham aquela substância para
membros da tribo machucados, então ele provavelmente deve ter dado. O requisito da confiabilidade
é fundamental em todas as disciplinas do conhecimento.
O segundo critério é a fecundidade científica. Considere duas cientistas que estão
investigando o canto dos pássaros. A primeira cientista grava e analisa o canto de uma centena de
pássaros machos de uma mesma espécie. O resultado é uma análise que identifica os diferentes
elementos do canto e as maneiras pelas quais eles são combinados por diferentes indivíduos. A segunda
cientista também grava e analisa o canto de uma centena de pássaros da mesma espécie, mas ela
seleciona os indivíduos de forma a poder comparar os cantos de pássaros de territórios vizinhos. Sua
análise fornece informações valiosas sobre a capacidade de membros adultos desta espécie de
aprenderem novos padrões de canto (cf. Doupe e Kuhl 1999). Deste modo, mesmo que as duas
pesquisas não se diferenciem em termos de confiabilidade, a segunda cientista desenvolveu uma
ciência melhor, já que, considerando os dados disponíveis, a informação que ela forneceu é
cientificamente mais valiosa.
O terceiro critério é a utilidade prática. Considere duas cientistas investigando a síntese da
serotonina no sistema neural. Uma delas fornece conhecimento sobre esses processos, embora não
haja um uso prático previsível desta nova informação. A outra descobre um precursor que pode ser
usado como uma droga antidepressiva. Assumindo que ambas as pesquisadoras fornecem informações
igualmente confiáveis, o segundo caso é um de melhor ciência, se julgado pelo critério de utilidade
prática.
A justificativa para estudos científicos depende de sua fecundidade científica, utilidade
prática, ou ambos. A ciência é comumente classificada como ou “básica” ou “aplicada”, sobre o
pressuposto de que a pesquisa básica tem por objetivo exclusivo a fecundidade científica e a pesquisa
aplicada a utilidade prática. Mas em muitas áreas da ciência, como a bioquímica e a ciência de
materiais, é comum os pesquisadores combinarem fecundidade científica com utilidade prática. É
também importante reconhecer que os três tipos de qualidade científica estão interconectados, já que
a confiabilidade é um pré-requisito para as outras duas. Se a pesquisadora em cantos dos pássaros
confundir os diferentes elementos dos cantos, então sua pesquisa não pode atingir uma alta pontuação
em fecundidade científica. Se a neurocientista confunde os neurotransmissores que identificou, então
a utilidade prática de sua pesquisa é essencialmente zero.
Como isso se relaciona com a pseudociência? A minha proposta é de que apenas um desses
três tipos de critério de qualidade científica está envolvido na distinção entre ciência e pseudociência,
mais especificamente o de confiabilidade. Considere os dois exemplos a seguir (no sentido ampliado)
de trabalhos científicos que satisfazem o critério de confiabilidade, mas não satisfazem nenhum dos
outros dois:
• Um químico realiza medições espectroscópicas meticulosas em um grande número de
minerais de sulfossal. Algumas novas linhas espectrais são encontradas, mas os novos dados não
levam a nenhum novo conhecimento sobre a estrutura ou propriedades desses minerais, e também
não possui nenhuma aplicação prática.
• Um pesquisador em mecânica estrutural investiga o comportamento de várias barras de
alumínio sobre diferentes cargas mecânicas. Os resultados previsivelmente confirmam o que já se
sabia; nada novo é aprendido.
• Um historiador passa cinco anos examinando fontes já anteriormente bem-estudadas do
reinado da rainha Maria I da Inglaterra. O resultado é essencialmente uma confirmação do que já
se sabia; nenhuma nova conclusão de importância pode ser traçada.
Apesar de nenhum desses ser um exemplo de ciência importante, soaria errado chamar tais
empreendimentos de pseudocientíficos (ou anticientíficos). Uma investigação não se qualifica como
uma pseudociência meramente por carecer de fecundidade científica e utilidade prática. Ela precisa
falhar nos termos de confiabilidade (justificações epistêmicas), o mais básico de todos os três critérios
de qualidade.
Podemos resumir isso dizendo que as pseudociências são caracterizadas por sofrerem de uma
falta de confiabilidade tão severa que não podem de forma alguma serem confiadas. Este é o critério
da não-confiabilidade. Ele pode ser entendido como uma condição necessária na definição de
pseudociência.

O “pseudo” da pseudociência

Um amigo meu que trabalha em um laboratório de química uma vez teve problemas com um
instrumento de medida. Uma longa série de medições teve de ser repetida depois de um instrumento
ser apropriadamente consertado e recalibrado. As medidas errôneas satisfazem o nosso critério de não-
confiabilidade, isto é, elas sofrem de uma falta de confiabilidade tão severa que de modo algum
merecem crédito. Entretanto, seria estranho chamar tais medidas de “pseudocientíficas”. Elas eram
apenas deficientes, nada mais. Como esse exemplo mostra, o critério da não-confiabilidade não é
suficiente para definir a pseudociência. Algo mais precisa ser dito sobre o uso e a função destas
afirmações não-confiáveis da pseudociência.
Um ponto de partida óbvio para esta discussão é o prefixo “pseudo-” (ψευδο-) da
“pseudociência”. Etimologicamente, significa “falso”. Muitos autores sobre pseudociência
enfatizaram a ideia de que a pseudociência é uma não-ciência tentando se passar por ciência. O
principal clássico moderno sobre pseudociência carrega o título Fads and Fallacies in the Name of
Science (Gardner 1957). De acordo com Brian Baigrie (1988, 438), “o que é objetável sobre essas
crenças é que elas se mascaram como se fossem genuinamente científicas.” Esses autores caracterizam
a pseudociência como consistindo em ensinamentos ou afirmações não-científicas que se passam por
ciência. Mais precisamente, é uma característica comum das pseudociências que seus principais
proponentes tentem criar a impressão de que são científicas (o critério da pretensão científica).
Entretanto, é fácil mostrar o porquê esse critério é demasiadamente amplo. Considere os
seguintes dois exemplos:
1. Uma bióloga que estuda mariposas nas ilhas Faroe se esforça para identificar os indivíduos
que ela coleta, mas apesar de suas boas intenções, ela comete diversos erros de classificação.
Portanto, seus colegas se abstêm de tirar quaisquer conclusões sobre os relatórios de seu estudo.
2. Um bioquímico fabrica dados experimentais, na intenção de confirmar uma hipótese recente
sobre a biossíntese de teias de aranha. Apesar de seu relatório ser falso, a hipótese é confirmada
pouco tempo depois através de experimentos legítimos.
O primeiro é um exemplo de uma cientista que tenta honestamente fornecer resultados
confiáveis, apesar de falhar. Seria excessivamente severo acusar a sua pesquisa de ser pseudocientífica.
O segundo é de fraude na ciência. Como em outros casos similares, ele claramente opera dentro dos
domínios da ciência, e certamente satisfaz o critério da não-confiabilidade. Ele também satisfaz o
critério da pretensão científica; a fraude científica é certamente “ciência falsa”. Mesmo assim,
tendemos a tratar a fraude e a pseudociência como sendo categorias diferentes. A fraude em outros
campos legítimos da ciência é raramente, se é que em algum caso, chamada de “pseudociência” (mas
certamente pode ser chamada de “anticientífica”).
O elemento crucial que está faltando nesses casos é a doutrina desviante. Todos os casos
típicos de pseudociência são casos em que existe uma doutrina desviante no papel principal (Hansson
1996). A pseudociência, como é comumente concebida, envolve um esforço sustentado de promover
ensinamentos que não têm legitimidade científica em sua época. Podemos assim especificar o critério
da pretensão científica e caracterizar uma afirmação pseudocientífica como aquela que é parte de uma
doutrina desviante em que seus principais proponentes tentam criar a impressão de que ela é científica
(o critério da suposta doutrina científica).
Este critério explica o porquê erros como o da bióloga e da fraude científica do bioquímico
nos exemplos acima não podem ser considerados pseudocientíficos. Perpetradores de fraudes
científicas que obtém sucesso tendem a não se associar a doutrinas não ortodoxas. Suas chances de
evitar descoberta são muito maiores quando os dados que eles fabricam estão de acordo com as
predições de teorias científicas estabelecidas.
O critério da suposta doutrina científica melhora significativamente a definição. Mas ainda
não terminamos. Considere os seguintes três exemplos:
3. Uma bioquímica realiza uma longa série de experimentos de qualidade questionável. Ela
consistentemente os interpreta como se mostrassem que uma proteína em particular tem um papel
na contração muscular, uma conclusão que não é aceita por outros cientistas.
4. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do que
água) são melhores do que aqueles da medicina convencional. Ele defende que suas afirmações
relativas à terapêutica têm suporte da ciência e faz tentativas de provar que este é o caso.
5. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do que
água) são melhores do que aqueles da medicina convencional, baseada em ciência. Entretanto, ele
não afirma que a homeopatia é científica. Em vez disto, ele afirma que ela está baseada em outra
forma de conhecimento que é mais confiável que a ciência.
O número quatro é um paradigma da pseudociência: uma doutrina comprovadamente falsa é
promovida e reivindicada como sendo científica. O número três é o mesmo caso. No número cinco
uma afirmação anticientífica dentro da área disciplinar da ciência é anunciada como sendo
conhecimento confiável, mas seus proponentes não a chamam de “ciência”. Autores em pseudociência
comummente usam o termo “pseudociência” em casos como esse, e alguns já disseram explicitamente
que é correto fazer isso: “existem algumas doutrinas pseudocientíficas que buscam legitimação e
suporte públicos ao afirmarem que são científicas; já outras, pretendem oferecer versões alternativas
a aquelas da ciência, ou afirmam explicar o que a ciência não pode explicar” (Grove 1985, 219). Uma
boa razão pode ser dada a esse uso estendido da noção de pseudociência: a ciência não é apenas mais
uma de muitas abordagens ao conhecimento. Para uma determinada área disciplinar se qualificar como
ciência, ela tem de ser a mais confiável, a versão mais epistemicamente justificada daquela área que é
nos é acessível (naquele determinado momento do tempo). Portanto, a definição de pseudociência não
deveria se referir ao uso da palavra “ciência”, mas sim a afirmações que correspondem ao significado
da palavra. Isso nos levaria a um critério ampliado da suposta doutrina científica e caracterizaria a
pseudociência como sendo parte de uma doutrina em que seus principais proponentes tentam criar a
impressão de que ela representa o conhecimento mais confiável sobre seu objeto de estudos (o critério
da doutrina desviante).

Definições e demarcações

Vamos então sumarizar essas deliberações em forma de definições de ciência e de


pseudociência. O resultado de nossa pesquisa para uma definição apropriada de ciência pode ser
resumido da seguinte maneira:
Ciência (no sentido ampliado) é a prática que nos fornece as afirmações mais confiáveis (i.e.,
epistemicamente justificadas) que podem ser feitas em um determinado momento sobre um objeto de
estudos abarcado por uma comunidade de disciplinas do conhecimento (i.e., sobre a natureza, nós
mesmos como seres humanos, nossas sociedades, nossas construções físicas e nossas construções
mentais).
A discussão anterior sobre pseudociência pode ser condensada na seguinte definição:
Uma afirmação é pseudocientífica se e somente se satisfaz os seguintes três critérios:
1. Pertence a um assunto que está contido nos domínios da ciência no sentido ampliado (o
critério do domínio científico).
2. Sofre de uma falta severa de confiabilidade a ponto de não merecer crédito (o critério da não-
confiabilidade).
3. Faz parte de uma doutrina em que seus principais proponentes tentam criar a impressão de
que representa o conhecimento mais confiável sobre seu objeto de estudos (o critério da doutrina
desviante).
Essa é uma versão melhorada de uma definição proposta anteriormente (Hansson 2009). Ela
difere das outras definições de pseudociência por focar na pseudociência em si. Em vez de usar a
demarcação de pseudociência versus ciência como um veículo para definir ciência, sugeri que
precisávamos primeiro clarificar o que a ciência é. Baseado nisso, podemos determinar qual das muitas
formas de desvio da ciência podem ser chamadas de “pseudociência”. Essa definição estrutural tem a
vantagem de tratar a noção de pseudociência como secundária a aquela de ciência, o que parece correto
em termos de prioridade conceitual.
Entretanto, devido a essa estrutura, a definição não é por si mesma operacional para a
demarcação de pseudociência. Para esse propósito ela precisaria ser complementada com a
especificação do critério de confiabilidade. Obviamente, várias especificações do tipo podem ser
adicionadas, dando espaço para diferentes demarcações entre ciência e pseudociência (e.g.,
falsificacionistas ou verificacionistas). Vamos então agora finalmente discutir tais especificações. Elas
são o objeto de estudos da maioria das abordagens tradicionais de demarcação entre ciência e
pseudociência.

Níveis de generalidade epistêmica

A bibliografia sobre a demarcação de ciência/pseudociência contém dois tipos principais de


propostas de demarcação. O primeiro tipo oferece uma definição exaustiva, isto é, um conjunto de
critérios suficientes e necessários que supostamente nos dizem em cada caso específico se uma
determinada afirmação é científica ou pseudocientífica. A proposta mais famosa desse tipo é o critério
de falseabilidade de Karl Popper, segundo o qual “afirmações ou sistemas de afirmações, para serem
classificados como científicos, têm que ser capazes de conflitarem com observações possíveis ou
concebíveis” (Popper 1962, 39). Tal critério é comumente contrastado com o critério dos positivistas
lógicos, segundo o qual uma afirmação científica pode ser distinguida de uma afirmação metafísica
por ser pelo menos a princípio possível de ser verificada. Entretanto, essa não é uma comparação
historicamente precisa. Os verificacionistas estavam interessados principalmente no significado, e
suas discussões focavam-se na diferença as entre afirmações científicas e metafísicas em termos de
significado. Originalmente, Popper tinha o mesmo foco e apresentou a falseabilidade como um critério
de distinção entre a ciência empírica e a metafísica (Popper, 1932, 1935), mas posteriormente mudou
seu foco para a distinção entre a ciência e a pseudociência (e.g., Popper 1962). É a segunda formulação
da falseabilidade que se tornou influente na filosofia e na ciência (cf. Bartley 1968).
Lakatos (1970, 1974a, 1974b, 1981) propôs que a demarcação não deveria ser aplicada a
hipóteses isoladas de uma teoria, mas em vez disso a um programa de pesquisas inteiro que seria
caracterizado por uma série de teorias que sucessivamente substituiriam uma à outra. Uma nova teoria
que é desenvolvida em tais programas, é, em sua visão, científica se tem um conteúdo empírico maior
do que seu antecessor; de outro modo seria degenerativa. Thagard (1978) e Rothbart (1990)
desenvolveram mais tal critério. Thomas Kuhn (1974) distinguiu entre ciência e pseudociência em
termos das habilidades da primeira de resolver quebra-cabeças. George Reisch (1998) defendia que
uma disciplina científica era caracterizada por ser adequadamente integrada em outras ciências. Todas
essas propostas foram submetidas a críticas severas, e nenhuma delas se aproximou de uma aceitação
geral.
O segundo tipo de proposta de demarcação segue uma abordagem multicritérios. Cada uma
dessas propostas fornece uma lista de erros cometidos pelas pseudociências. Normalmente, assume-
se que se uma afirmação ou uma teoria falha de acordo com um desses critérios, então ela é
pseudocientífica. Entretanto, não se exige exaustividade; em outras palavras, fica em aberto se
determinada afirmação ou teoria pode ser pseudocientífica não violando quaisquer dos critérios
listados (provavelmente porque viola algum outro, ainda não listado). Um grande número de listas do
tipo já fora publicado (normalmente contendo entre cinco a dez critérios), por exemplo, por Langmuir
([1953] 1989), Gruenberger (1964), Dutch (1982), Bunge (1982), Radner e Radner (1982), Kitcher
(1982, 30-54), Hansson (1983), Grove (1985), Thagard (1988), Glymour e Stalker (1990), Derksen
(1993, 2001), Vollmer (1993), Ruse (1996, 300-306), Mahner (2007). Eis um exemplo de tal tipo de
lista:
1. Credo na autoridade: É afirmado que alguma pessoa ou pessoas tem uma habilidade especial
de determinar o que é verdadeiro ou falso. Os outros precisam aceitar seus juízos.
2. Experimentos não repetíveis: A confiança é depositada em experimentos que não podem ser
repetidos por outros com o mesmo resultado.
3. Exemplos escolhidos a dedo: Exemplos escolhidos a dedo são usados apesar de não serem
representativos da categoria geral à qual a investigação se refere.
4. Resistência à testagem: Uma teoria não é testada apesar de ser possível fazê-lo.
5. Desdém por informações refutantes: Observações ou experimentos que conflitam com a teoria
são rejeitados.
6. Construída em subterfúgio: A testagem de uma teoria é arranjada de tal maneira que a teoria
pode apenas ser confirmada, e nunca desconfirmada, pelos seus resultados.
7. Explicações são abandonadas sem substituição: Explicações sustentáveis são abandonadas
sem serem substituídas, de forma que a nova teoria deixa muito mais coisas inexplicadas do que a
anterior. (Hansson, 1983)
O que os dois tipos de propostas de demarcação têm em comum é operarem com critérios
concretos e diretamente aplicáveis. Se desejamos determinar se a psicanálise freudiana é uma
pseudociência, podemos aplicar diretamente, por exemplo, o critério de falseabilidade de Popper, o
critério de resolução de quebra-cabeças de Kuhn ou o critério de integração com as outras ciências de
Reisch. Podemos também aplicar, para os mesmos propósitos, os critérios encontrados em listas de
multicritérios, como experimentos não-repetíveis, exemplos escolhidos à dedo, credo na autoridade, e
assim por diante. Entretanto, os dois tipos de propostas de demarcação se diferenciam em outro
aspecto: o primeiro tipo fornece um critério que visa ser suficiente para determinar em cada caso
particular se uma dada afirmação, prática ou doutrina é científica ou pseudocientífica. O segundo tipo
tem reivindicações mais modestas, e não há uma tentativa de mostrar que a lista de critérios oferecida
é exaustiva.
A definição de pseudociência proposta nas seções anteriores não pertence a nenhuma destas
duas categorias. De maneira similar ao primeiro grupo (Popper, Kuhn, etc.), ela tem a intenção de
oferecer um critério necessário e suficiente, válido em todos os casos em que uma distinção entre
ciência e pseudociência precisa ser feita. Entretanto, ela se diferencia de ambos os tipos mencionados
acima por não fornecer critérios concretos e diretamente aplicáveis. Se queremos determinar se a
psicanálise freudiana é uma ciência ou uma pseudociência, uma reformulação da questão em termos
de conhecimento confiável ou epistemicamente justificado ainda deixa a maior parte do trabalho por
fazer. Não nos é dito que tipo de informação ou investigação devemos empreender, ou que tipos de
pontos fortes e fracos devemos procurar dentro da literatura psicanalítica.
A justificativa para se escolher um critério não diretamente aplicável a problemas concretos
da demarcação é que a aplicabilidade direta vem também com um alto preço: ela é incompatível com
a exaustividade desejada da definição. A razão para essa incompatibilidade é que a unidade dos
diferentes ramos da ciência referidos acima não inclui uniformidade metodológica. O que une as
ciências, entre as disciplinas e ao longo do tempo, é o comprometimento básico em encontrar o
conhecimento mais confiável em várias áreas disciplinares. Entretanto, os métodos precisos para
alcançar tal objetivo diferem entre as áreas, e os métodos escolhidos também estão em constante
desenvolvimento. Não são apenas os métodos detalhados que mudam, mas também as abordagens
metodológicas em geral, como os métodos de teste de hipótese, princípios experimentais como
randomização e cegagem, e pressupostos básicos sobre quais tipos de explicações podem ser usadas
em ciência (como por exemplo ação à distância). A capacidade de auto aperfeiçoamento da ciência
não deixa de se aplicar às suas metodologias.
A maioria da literatura sobre demarcação enfatizou as demandas metodológicas de estudos
experimentais dentro das ciências da natureza. Entretanto, a exigência de estudos experimentais, como
reprodutibilidade, randomização, cegagem, dentre outros, não são relevantes em estudos históricos.
Também seria despropositado aplicá-los a experimentos conduzidos no século dezessete, antes da
metodologia experimental moderna ser desenvolvida. Nós precisaríamos então classificar o melhor da
ciência daquela época como sendo pseudocientífica, o que certamente seria errôneo.
O critério de falseabilidade de Popper pode servir como um exemplo desses problemas. É um
critério de uma ciência de hipóteses e testagem, mas a ciência como um todo está distante de ser
integralmente baseada em testagem de hipóteses. Estudos nas humanidades são claramente dirigidos
por questões abertas em vez de hipóteses, e o mesmo se aplica a importantes aspectos das ciências
experimentais da natureza. Muitos experimentos são conduzidos para determinar a veracidade de uma
hipótese pré-definida, mas muitos outros experimentos são exploratórios. Tais experimentos têm por
objetivo responder a perguntas abertas como “qual é a estrutura desta proteína?”, ao invés de uma
questão ao estilo sim-ou-não (hipótese-testagem) como, por exemplo, “esta proteína tem a estrutura
X?”. Um pequeno estudo estatístico dos artigos da Nature indica que estudos exploratórios podem
muito bem ultrapassar em números os estudos ao estilo “testagem de hipóteses” na ciência natural
moderna (Hansson 2006). A ciência progride através da combinação de investigações exploratórias e
também baseadas em testagem de hipóteses. Estudos exploratórios de sucesso tendem a resultar em
hipóteses precisas que são adequadas para testagens futuras. Hipóteses que sobreviveram aos testes
levam com frequência ao surgimento de novas perguntas de pesquisa que são mais adequadamente
abordadas, durante sua fase inicial, com estudos exploratórios.
Podemos escolher entre os dois tipos de demarcação de ciência/pseudociência. Podemos ter
uma demarcação que é geral e independente do tempo. Ela então não pode nos oferecer critérios
concretos para avaliar investigações específicas, afirmações ou teorias. Tais critérios precisarão se
referir às particularidades metodológicas que diferenciam as áreas disciplinares e que mudam de
acordo com a passagem do tempo. Alternativamente, podemos ter critérios de demarcação que são
suficientemente específicos para nos informar o que é requerido em um contexto particular, como as
ciências experimentais contemporâneas. Podemos, é claro, usar ambos os tipos de demarcação para
propósitos diferentes. Entretanto, um mesmo critério de demarcação não pode ser ao mesmo tempo
geral, independer do período do tempo e ser suficientemente preciso para nos dizer como avaliar o
status científico de investigações específicas.
Muitas das propostas de demarcação filosóficas tentaram fazer o impossível a esse respeito.
Elas, portanto, negligenciaram o que talvez seja o maior ponto forte da tradição científica, que é sua
notável habilidade de autoaperfeiçoamento, não apenas em relação aos detalhes, mas também sobre
sua metodologia básica. A unidade da ciência opera primariamente em outro nível, mais fundamental
que o da metodologia científica concreta.

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