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MARCIO PEREIRA
quais aspectos eles interessam. Ou seja, não é algo simples como dizer que seres vivos
são estudados pela zoologia ou pela botânica; uma vez que eles podem despertar
interesse na química orgânica, na etologia, na genética, etc., suscitando, em cada caso,
uma ordem distinta de questionamentos.
Cada ciência específica terá uma abordagem peculiar a essa ciência, fazendo um
determinado tipo de perguntas, ocupando-se com uma classe típica de questões,
apresentando uma perspectiva única; do contrário, duas ou mais ciências ocupando-se
com o mesmo grupo de fenômenos não teriam como se distinguir entre si, pois estariam
fazendo a mesma coisa! Demarcar o objeto de estudos de uma área de pesquisa (seja ela
qual for) implica, portanto, em estabelecer também uma maneira de considerar esse
objeto.
Tendo explorado as cláusulas que uma boa definição deve preencher, tentaremos
definir uma modalidade muito intrigante e antiga de conhecimento crítico: a filosofia.
Sobre a filosofia, há certamente muito a ser dito; contudo, como esta não é uma
disciplina de introdução à filosofia, nossa única preocupação será eliminar mal-entendidos
e delinear uma explicação bastante genérica acerca de seu objeto de estudos. Este passo
é necessário, tendo em vista uma incompreensão bastante corrente, gerada pelo senso
comum, de que a filosofia é uma espécie de exercício intelectual sem uma finalidade clara.
É muito comum encontrar indivíduos mal-informados que acreditam que a filosofia existe
“somente para desenvolver o senso crítico”, ou até mesmo para “polemizar apenas por
polemizar”, como se fosse uma atividade de obscurecimento desnecessário dos assuntos.
Antes de continuar, deixemos algo bem estabelecido, e que justificaremos ao longo
dos próximos parágrafos: a filosofia é o projeto mais racional e rigoroso de todo o
conhecimento humano, sendo mais racional e rigoroso do que o próprio conhecimento
científico, uma vez que é um ramo particular da filosofia (a filosofia da ciência, ou
conhecimento humano como um todo e em suas partes; entretanto, isso também interessa,
de certa maneira, à antropologia, à neurociência, à história, etc. E, enfim, a filosofia se
ocupa com o agir humano – comportamentos, condutas morais, hábitos, manifestações
artísticas, cultos religiosos, etc.; contudo, esses aspectos da vida humana também
interessam à psicologia, ao direito, à teologia, etc. Qual seria, então, o diferencial
filosófico? Qual a especificidade da abordagem filosófica, a qual, mesmo se ocupando de
objetos de interesse comum com outras áreas, torna única a perspectiva filosófica? Esta
não é uma questão fácil de explicar em poucas palavras; porém, uma caracterização
superficial é possível e suficiente para não-especialistas do assunto, como faremos a
seguir.
A filosofia pergunta por pressupostos, métodos e conceitos mais fundamentais. A
especificidade do questionamento filosófico tem, pois, um caráter bastante profundo. A
filosofia se ocupa com pressupostos e fundamentos; ou seja, quais são as teses ou
crenças implícitas em cada área de conhecimento ou atividade, e se essas teses estão
devidamente esclarecidas ou racionalmente justificadas.
Por exemplo, um conceito básico na física é o de força, e o pressuposto subjacente é
de que existem forças físicas. Conhecemos até o momento quatro forças fundamentais na
natureza (gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca). Desde a
mecânica clássica de Isaac Newton até os mais recentes desenvolvimentos de nosso
século, toda teoria física pressupõe a noção de força. Mas não se sabe o que são essas
forças, nem mesmo se elas existem de fato, pois observamos apenas os seus supostos
efeitos. Para o cientista, o que importa é que, supondo que elas existam (mesmo sem
entender direito o que são, nem por que existem), os cálculos são possíveis e as predições
costumam funcionar. Para examinar o assunto com mais profundidade, eles precisam
discutir filosofia da física (e muitos o fazem).
Alguns cientistas defendem que o conhecimento só é importante se for verdadeiro;
mas, como ter certeza de que um conhecimento é objetivamente verdadeiro? Essa certeza
é sequer possível? Do mesmo modo, discutir os fundamentos de uma área de pesquisa
(nos quais ela apoia a legitimidade de seus resultados), sua estrutura (tipos e estrutura do
conhecimento, critérios de demarcação entre ciência e não-ciência, métodos empregados,
limites de investigação, etc.), interpretação de seus resultados (o significado de noções
como gravitação ou ideologia, a questão de saber se um resultado científico é uma
que as similaridades. O que, então, as permite serem reunidas sob o mesmo rótulo de
“conhecimento científico”?
Nós forneceremos uma definição de ciência que se concentrará no que essas
ciências têm em comum, e discriminará aquilo em que variam. Essa definição,
cuidadosamente concebida, permitirá também uma interessante classificação dos
diferentes grupos de ciências.
A ciência tanto pode ser exclusivamente demonstrativa como pode ser, além disso,
também empírica, dependendo da especificidade de seu objeto de estudos. Seu caráter
demonstrativo quer dizer que a ciência parte de hipóteses (suposições) para construir
sistemas teóricos (conjuntos articulados de teses, nos quais umas são derivadas a partir
de outras, como em um cálculo). Nós aprofundaremos a compreensão dessa estratégia
quando tratarmos do método dedutivo. Algumas ciências são construídas inteiramente por
meio de demonstrações abstratas – é o caso, por exemplo, da matemática. Entretanto, no
caso das ciências que pretendem investigar fenômenos (eventos observáveis), somente a
especulação e o cálculo não são suficientes para descrever como o mundo funciona, e a
observação empírica entra em cena para fornecer subsídios na produção de resultados.
Quando necessário, portanto, a investigação científica recorre a diversos métodos que
incluem, cada um a seu modo, coletas de dados observacionais/experimentais. De todo
modo, ao contrário do que o senso comum pensaria, nenhuma ciência pode ser construída
somente a partir da simples coleta de dados.