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METODOLOGIA CIENTÍFICA (QM/2023.1) – PROF.

MARCIO PEREIRA

03. FILOSOFIA E CIÊNCIA

(Objetivos) Ao final deste capítulo, o estudante deverá ser capaz de:


a) caracterizar as cláusulas para descrição de uma área de estudos;
b) descrever a especificidade da investigação filosófica;
c) explicar a especificidade da investigação científica.

No segundo capítulo, apresentamos rapidamente uma classificação geral das


informações produzidas pela nossa inteligência, dividindo-as entre aquelas produzidas pelo
senso comum (o conhecimento ingênuo) e aquelas produzidas pelo senso crítico (o
conhecimento crítico). Concentraremos nossa atenção agora em compreender a natureza
e a abrangência das duas principais formas de conhecimento crítico: a filosofia e a ciência.
Antes, contudo, examinaremos alguns aspectos importantes sobre definições de
teorias, em geral. Isto nos ajudará em vários pontos.

As cláusulas para a definição de uma área de estudos

É importante que você compreenda que nenhuma definição é suficientemente


completa, já que não substitui sua experiência direta daquilo que é definido. De todo modo,
uma definição deve servir como uma diretriz mais ou menos segura para demarcar, em
nosso caso, áreas de investigação e pesquisa. Pela mesma razão, ela não pode nem ser
vaga demais – incluindo tópicos que não pertencem àquela área – nem estreita demais –
deixando de fora o que deveria incluir.
Uma boa definição para qualquer área de estudos (acadêmica ou não) deve conter,
pelo menos, as duas primeiras das seguintes três cláusulas:

1. qual o objeto investigado


2. qual o método empregado
3. qual o objetivo perseguido

1. qual o objeto investigado?


Acerca do objeto de estudos, compreenda que descrever o que uma área investiga
envolve delimitar não apenas os eventos que interessam àquela área, mas também sob

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quais aspectos eles interessam. Ou seja, não é algo simples como dizer que seres vivos
são estudados pela zoologia ou pela botânica; uma vez que eles podem despertar
interesse na química orgânica, na etologia, na genética, etc., suscitando, em cada caso,
uma ordem distinta de questionamentos.
Cada ciência específica terá uma abordagem peculiar a essa ciência, fazendo um
determinado tipo de perguntas, ocupando-se com uma classe típica de questões,
apresentando uma perspectiva única; do contrário, duas ou mais ciências ocupando-se
com o mesmo grupo de fenômenos não teriam como se distinguir entre si, pois estariam
fazendo a mesma coisa! Demarcar o objeto de estudos de uma área de pesquisa (seja ela
qual for) implica, portanto, em estabelecer também uma maneira de considerar esse
objeto.

2. qual o método empregado?


No que diz respeito ao método empregado, temos, pelo menos, duas coisas a
considerar: o método de elaboração dos conteúdos daquela teoria e, quando for o caso, o
método de comprovação de seus resultados. Às vezes, ambos os métodos colapsam em
um só; por exemplo, na matemática e na lógica, a demonstração de teoremas funciona, ao
mesmo tempo, como construção e comprovação de informações (ou seja: demonstrar um
teorema é ao mesmo tempo, construí-lo e comprová-lo). Em outros casos, como na física,
com freqüência teorias complicadas são construídas e os testes que as comprovam podem
demorar a acontecer, por diferentes razões. Alguns resultados teóricos fundamentais na
física relativística – por exemplo: as lentes gravitacionais, as distorções temporais e o Big
Bang – foram primeiro obtidos por meio de cálculos e só depois comprovados por
observações.
Normalmente, identificar qual o objeto de estudos de uma área de pesquisa, bem
como quais os métodos por ela adotados, deve ser suficiente para uma definição dessa
área. E, diga-se de passagem, esses dois fatores estão interligados de maneira muito
próxima; pois, a natureza do objeto de estudos requer sempre a adoção de um método
apropriado a esse objeto. Por exemplo, não se demonstra um teorema matemático
fazendo experiências em um laboratório, e sim por meio de cálculos; por outro lado, é
improvável que se descubra algo interessante sobre o comportamento de partículas
subatômicas fazendo-se um levantamento histórico dos eventos, como o utilizado para se
entender a atual conjuntura sociopolítica. Portanto:

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tipo de objeto estudado tipo de método empregado

3. qual o objetivo perseguido?


Existem áreas, entretanto, que só podem ser definidas com alguma precisão se
forem consideradas as finalidades práticas perseguidas por essas áreas. É o caso de uma
ciência como a medicina, que, a rigor, não representa um corpo autônomo de
conhecimentos; em vez disso, é constituída basicamente por informações de outras áreas,
como biologia ou química. Como distinguir, nesse caso, o que interessa especificamente à
medicina? Destacando, naquelas outras ciências, o que tem a ver com a manutenção
(preservação ou restauração) da saúde humana – as finalidades da pesquisa médica.
Outros exemplos de ciências com essa peculiaridade – cuja demarcação requer a
descrição de suas finalidades – são a medicina veterinária (manutenção da saúde dos
animais não-humanos), a odontologia (manutenção da saúde dentária/gengival), a
engenharia civil (construção de edifícios e outras estruturas), a ciência da computação
(desenvolvimento de softwares), etc. Entender como é a pesquisa nessas áreas requer,
pois, identificar para que servem ou o que buscam realizar.

A especificidade da investigação filosófica

Tendo explorado as cláusulas que uma boa definição deve preencher, tentaremos
definir uma modalidade muito intrigante e antiga de conhecimento crítico: a filosofia.
Sobre a filosofia, há certamente muito a ser dito; contudo, como esta não é uma
disciplina de introdução à filosofia, nossa única preocupação será eliminar mal-entendidos
e delinear uma explicação bastante genérica acerca de seu objeto de estudos. Este passo
é necessário, tendo em vista uma incompreensão bastante corrente, gerada pelo senso
comum, de que a filosofia é uma espécie de exercício intelectual sem uma finalidade clara.
É muito comum encontrar indivíduos mal-informados que acreditam que a filosofia existe
“somente para desenvolver o senso crítico”, ou até mesmo para “polemizar apenas por
polemizar”, como se fosse uma atividade de obscurecimento desnecessário dos assuntos.
Antes de continuar, deixemos algo bem estabelecido, e que justificaremos ao longo
dos próximos parágrafos: a filosofia é o projeto mais racional e rigoroso de todo o
conhecimento humano, sendo mais racional e rigoroso do que o próprio conhecimento
científico, uma vez que é um ramo particular da filosofia (a filosofia da ciência, ou

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epistemologia) que investiga e efetivamente decide sobre questões como demarcação e


método científicos. E, diga-se também, de passagem, que essa afirmação pode ser
endossada pelos grandes cientistas de todos os tempos, nas diversas áreas de pesquisa
científica. Um passeio rápido pela história da ciência confirmaria nossa declaração.
O que conhecemos da história documental atesta que a filosofia começou a se
delinear, enquanto projeto de conhecimento, no século VI antes da era comum, nas
colônias gregas na Ásia menor. Ao longo de quase três milênios de história, ela conheceu
muitas preocupações distintas, e se apresentou de formas bastante diferentes. Por
exemplo, até alguns séculos atrás, o que nós hoje identificamos pelo nome de ciências
naturais (física, química, biologia) era considerado como apenas uma parte da filosofia
(chamada de “filosofia natural”) – como no título da obra máxima da física clássica, escrita
por Isaac Newton: Princípios matemáticos da filosofia natural. Mas, o que importa aqui é
que, em nossa época, mais do que em qualquer outra, a clareza quanto à natureza e o
escopo da investigação filosófica estão muito claramente delimitados, e é isto que
tentaremos apresentar, de maneira clara e resumida.
A ideia de conhecimento crítico surgiu junto com a filosofia, sendo esta a primeira
formulação daquele. Os gregos perceberam que o conhecimento opinativo (baseado em
opiniões ou crenças pessoais), que nós estivemos chamando também de “conhecimento
ingênuo”, não oferecia um fundamento seguro para a aquisição da verdade; pois, opiniões,
devido a seu caráter subjetivo, variam muito de acordo com a época, povo, grupo político,
religião, família, etc., e variam até de indivíduo para indivíduo. Pior ainda, o mesmo
indivíduo pode, ao sabor das circunstâncias ou movido por interesses não-racionais, mudar
de opinião, sem nenhuma justificativa convincente.
Eles também perceberam que um conhecimento com pretensões de validade
universal era possível, porque essa possibilidade era amplamente demonstrada pela
matemática. Tratava-se, portanto, de identificar qual o fundamento para uma produção de
informações seguras, e a resposta foi encontrada no raciocínio. Elaborar conteúdos a partir
do raciocínio, e quando necessário coletando dados experimentais, se revelou a única
possibilidade de um saber universalizável; porque, como discutimos acerca do senso
crítico (que poderia muito bem ser chamado de senso racional ou filosófico), esta é nossa
única instância conhecida de objetividade: a inteligência funcionando racionalmente (ou
seja, segundo certos critérios e regras).

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É claro que a filosofia não conseguiu se isentar completamente de interesses e


influências subjetivas ao longo de sua história; porém, o que importa aqui é que a direção
foi estabelecida logo no seu início e o projeto do conhecimento crítico foi concebido. Em
nossa época, repetimos, mais do que em qualquer outra, há uma clareza muito maior
quanto aos critérios e ao objeto da pesquisa filosófica. E é a partir dessa compreensão
contemporânea de filosofia que apresentamos nossa definição.

A filosofia é um projeto de conhecimento crítico, sistematizado e


rigoroso, de natureza hipotética e argumentativa, que investiga os
pressupostos, métodos e conceitos mais fundamentais relacionados
com a existência, o conhecimento e a atividade humanas.

Dizer que a filosofia é um tipo de conhecimento crítico, com características de


sistematicidade e rigor, é autoexplicativo; mas, algumas palavras sobre seu caráter
hipotético e argumentativo podem ser úteis.
A filosofia tem natureza hipotética e argumentativa. Ou seja, empregando o
raciocínio, ela levanta hipóteses explicativas (da mesma forma que a ciência, como
veremos depois) para seu objeto de estudos, e justifica, por meio de argumentos, suas
teses. Seus métodos são, pois, exclusivamente especulativos ou teóricos. Não se trata de
um capricho metodológico, como poderia parecer à primeira vista. Nós dissemos acima
que o objeto de estudos de uma área pede um método apropriado à sua investigação. Pois
bem, o objeto de estudos da filosofia é de tal natureza que somente pode ser estudado a
nível teórico. É importante você lembrar-se de outro ponto já discutido: caracterizar um
objeto de estudos significa considerar duas dimensões, a do objeto propriamente dito e a
perspectiva sob a qual ele é considerado. Esses dois aspectos, no caso da filosofia, são
destacados, respectivamente, a seguir.
A filosofia investiga a existência, o conhecimento e a atividade humanas. Esse
elemento da definição fornecida acima foi antecipado propositalmente na explicação, por
razões didáticas. Trata-se de uma caracterização do objeto de estudos propriamente dito
da filosofia, aquilo que ela estuda. Como foi também discutido antes, apenas esse fator
não esclarece a abordagem de uma área; mas, nem por isso, deixa de ser uma informação
indispensável. Pois bem, a filosofia se ocupa com a existência humana, mas também o
fazem a biologia, a antropologia, a história, etc. Também interessa à filosofia o

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conhecimento humano como um todo e em suas partes; entretanto, isso também interessa,
de certa maneira, à antropologia, à neurociência, à história, etc. E, enfim, a filosofia se
ocupa com o agir humano – comportamentos, condutas morais, hábitos, manifestações
artísticas, cultos religiosos, etc.; contudo, esses aspectos da vida humana também
interessam à psicologia, ao direito, à teologia, etc. Qual seria, então, o diferencial
filosófico? Qual a especificidade da abordagem filosófica, a qual, mesmo se ocupando de
objetos de interesse comum com outras áreas, torna única a perspectiva filosófica? Esta
não é uma questão fácil de explicar em poucas palavras; porém, uma caracterização
superficial é possível e suficiente para não-especialistas do assunto, como faremos a
seguir.
A filosofia pergunta por pressupostos, métodos e conceitos mais fundamentais. A
especificidade do questionamento filosófico tem, pois, um caráter bastante profundo. A
filosofia se ocupa com pressupostos e fundamentos; ou seja, quais são as teses ou
crenças implícitas em cada área de conhecimento ou atividade, e se essas teses estão
devidamente esclarecidas ou racionalmente justificadas.
Por exemplo, um conceito básico na física é o de força, e o pressuposto subjacente é
de que existem forças físicas. Conhecemos até o momento quatro forças fundamentais na
natureza (gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca). Desde a
mecânica clássica de Isaac Newton até os mais recentes desenvolvimentos de nosso
século, toda teoria física pressupõe a noção de força. Mas não se sabe o que são essas
forças, nem mesmo se elas existem de fato, pois observamos apenas os seus supostos
efeitos. Para o cientista, o que importa é que, supondo que elas existam (mesmo sem
entender direito o que são, nem por que existem), os cálculos são possíveis e as predições
costumam funcionar. Para examinar o assunto com mais profundidade, eles precisam
discutir filosofia da física (e muitos o fazem).
Alguns cientistas defendem que o conhecimento só é importante se for verdadeiro;
mas, como ter certeza de que um conhecimento é objetivamente verdadeiro? Essa certeza
é sequer possível? Do mesmo modo, discutir os fundamentos de uma área de pesquisa
(nos quais ela apoia a legitimidade de seus resultados), sua estrutura (tipos e estrutura do
conhecimento, critérios de demarcação entre ciência e não-ciência, métodos empregados,
limites de investigação, etc.), interpretação de seus resultados (o significado de noções
como gravitação ou ideologia, a questão de saber se um resultado científico é uma

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apreensão da realidade em si ou uma simplesmente uma construção teórica útil para


predições, etc.), todos esses são alguns exemplos da especificidade da pergunta filosófica.
Por conta dessa abordagem peculiar, podemos dizer que a filosofia pode, em tese,
investigar qualquer objeto, embora sua preocupação se distinga bastante da preocupação,
digamos, científica. Por exemplo, existe uma filosofia da ciência, e ela não se confunde
com a ciência; é filosofia. Do mesmo modo, temos a filosofia da história, a filosofia da arte,
a filosofia da religião, a filosofia da linguagem, a filosofia da ação, a filosofia moral, a
filosofia política, etc. Cada uma dessas áreas de reflexão filosófica, por sua vez, abriga um
sem-número de discussões e correntes de pensamento, algumas datando de quase três
milênios. Mas, se a filosofia não se confunde com a ciência, qual a diferença entre elas?

A especificidade da investigação científica

Concluiremos a presente exposição sobre o conhecimento crítico, explorando a outra


grande representante desse conhecimento – a ciência, bem como suas diferenças com
relação à filosofia. Finalmente, chegamos ao território que exploraremos durante o restante
da nossa disciplina.
Primeiro, é preciso que se diga que a discussão sobre o que deve ou não ser
chamado de conhecimento científico não está completamente definida, em nossa época.
Lembremos que a compreensão do que é ciência, como algo à parte da investigação
filosófica, só muito recentemente foi estabelecida, já o dissemos. E, da mesma forma que a
compreensão da natureza e papel da filosofia tem variado ao longo dos milênios, também
a compreensão daquilo que hoje chamamos de ciência sofreu suas próprias alterações.
Decidir o que é ou não ciência implica em conseqüências diversas; a mais
importante, sendo, talvez, o impacto no financiamento público ou privado das pesquisas
naquela área. Dificilmente, algum grupo econômico, ou mesmo algum governo, terão
interesse em financiar os delírios teóricos de um grupo de pessoas, cujos resultados não
serão sequer reconhecidos pelo meio acadêmico, nem terão sua importância devidamente
justificada para a sociedade que nela terá investido recursos financeiros.
Outro problema ligado à compreensão do que é ciência tem a ver com a variedade
das áreas de pesquisa que se abrigam sob aquele nome. Basta comparar de perto
ciências como a matemática e a sociologia, a física e a psicologia, ou a antropologia e a
lógica simbólica, para perceber que as disparidades de objeto e método são maiores do

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que as similaridades. O que, então, as permite serem reunidas sob o mesmo rótulo de
“conhecimento científico”?
Nós forneceremos uma definição de ciência que se concentrará no que essas
ciências têm em comum, e discriminará aquilo em que variam. Essa definição,
cuidadosamente concebida, permitirá também uma interessante classificação dos
diferentes grupos de ciências.

A ciência é um projeto de conhecimento crítico, sistematizado e


rigoroso, de natureza demonstrativa e/ou empírica, com exigências de
comprovação objetiva, que investiga a estrutura e o funcionamento de
classes pré-definidas de fenômenos; ou ainda, que investiga a estrutura
e o funcionamento de sistemas formais (simbólicos).

A definição acima pretende corrigir as imprecisões e equívocos de algumas


definições correntes nos manuais de metodologia científica, as quais ignoram importantes
aspectos ou grupos de ciências. Convidamos você a examiná-la conosco.

 A ciência é um projeto de conhecimento crítico, sistematizado e rigoroso. Essas


características, à luz de tudo que já conversamos antes, são autoexplicativas. Entretanto, é
interessante destacar, a essa altura, uma vez que estamos falando das ciências como
teorias razoavelmente bem construídas e que obedecem a parâmetros rigorosos de
investigação, que não se deve confundí-las com certas descobertas ou avanços teóricos
pré-existentes, que mostrem afinidades com o discurso científico. Por exemplo, muito
antes do surgimento da astronomia (organizada pela primeira vez com Aristóteles, no
século IV antes da era comum), numerosos povos (como os sumérios, babilônios e
egípcios) fizeram observações e descobertas de caráter astronômico, e até produziram
teorias rudimentares. Contudo, ainda não existia a astronomia propriamente dita (com
princípios teóricos gerais, sistematicidade nos conteúdos, métodos bem estabelecidos,
etc.). O mesmo pode ser dito a respeito de outras contribuições similares em muitas outras
áreas, como a geometria, a química ou a psicologia.

 A ciência tanto pode ser exclusivamente demonstrativa como pode ser, além disso,
também empírica, dependendo da especificidade de seu objeto de estudos. Seu caráter

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demonstrativo quer dizer que a ciência parte de hipóteses (suposições) para construir
sistemas teóricos (conjuntos articulados de teses, nos quais umas são derivadas a partir
de outras, como em um cálculo). Nós aprofundaremos a compreensão dessa estratégia
quando tratarmos do método dedutivo. Algumas ciências são construídas inteiramente por
meio de demonstrações abstratas – é o caso, por exemplo, da matemática. Entretanto, no
caso das ciências que pretendem investigar fenômenos (eventos observáveis), somente a
especulação e o cálculo não são suficientes para descrever como o mundo funciona, e a
observação empírica entra em cena para fornecer subsídios na produção de resultados.
Quando necessário, portanto, a investigação científica recorre a diversos métodos que
incluem, cada um a seu modo, coletas de dados observacionais/experimentais. De todo
modo, ao contrário do que o senso comum pensaria, nenhuma ciência pode ser construída
somente a partir da simples coleta de dados.

 Toda ciência tem exigências de comprovação objetiva de algum tipo. Essa


característica é tão importante que alguns critérios de demarcação científica (usado para
distinguir entre ciência e não-ciência) muito difundidos poderiam ser parafraseados assim:
só é ciência o estudo que adota procedimentos objetivos para testar seus resultados
teóricos. Como discutiremos bastante o problema do método científico depois, é suficiente,
por enquanto, destacar que cada ciência deve providenciar critérios para testar seus
resultados, garantindo a legitimidade destes. É possível que teorias muito importantes
demorem a encontrar condições de teste; de todo modo, para serem reconhecidas como
científicas, ainda que posteriormente refutadas, elas têm que ser passíveis de teste – ou
seja, deve haver alguma maneira possível de testar seus resultados, mesmo que esse
teste ainda não tenha condições de ser realizado (por exemplo, devido à limitação da
tecnologia disponível). A legitimidade dos resultados, pelo menos nas ciências
experimentais, tem a ver com sua descrição adequada acerca do funcionamento do
mundo; no caso das ciências demonstrativas, tem a ver com a correção dos cálculos
realizados.

 A ciência investiga a estrutura e o funcionamento de seu objeto de estudos. Essa


característica, simples como possa parecer, resume bem o que cada ciência pretende:
descrever como está disposto e como se comporta seu objeto de estudos. Não há
preocupação com seus próprios pressupostos teóricos ou metodológicos no interior de

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uma ciência; do contrário, como ela poderia se desenvolver, detendo-se na discussão


sobre como ela vai trabalhar ou sobre quais são suas condições de possibilidade? Ao se
debruçar sobre seu objeto de estudos, a investigação científica adota certos princípios
(sem examinar criticamente as hipóteses pressupostas por esses princípios), e certos
métodos (sem avaliar profundamente as garantias lógicas ou os limites desses métodos).
A maioria das ciências simplesmente constrói modelos explicativos do mundo, e o outro
grupo (a matemática e a lógica) está concentrado com teorias abstratas. Em qualquer
caso, a pesquisa científica pretende somente descrever estruturas e como elas funcionam,
sejam estruturas empíricas, sejam estruturas simbólicas. Esse é o principal ponto em que o
conhecimento científico se distinguirá do filosófico, visto que este último não está ocupado
com “mapear” (descrever, classificar, relacionar, etc.) seus objetos de estudos, mas com
fazer reflexões acerca de problemas mais radicais, conforme explicamos antes.

No próximo capítulo, explicaremos com mais detalhes esses diferentes tipos de


ciências, agrupadas segundo os tipos de objetos por elas estudados.

Onde você pode ler mais sobre o assunto: (opcional)


CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1998. ISBN 85-08-04735-5. (Ver p. 252-259)
LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de A.; Metodologia científica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1991.
ISBN 85-224-0641-3. (Ver p. 17-21)

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