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Assim como manter o equilíbrio ao andar de bicicleta, distinguir entre ciência e pseudociência
parece ser um caso de conhecimento tácito, um conhecimento que não podemos explicitar
totalmente em termos verbais para que outros entendam e repliquem o que fazemos (Polanyi
1967). Na disciplina moderna de gestão do conhecimento, o conhecimento tácito é articulado
ao máximo possível (i.e., transformado em conhecimento explícito e comunicável). Quando o
conhecimento tácito se torna articulado, é mais facilmente ensinado e aprendido, e se torna
mais acessível a críticas e melhorias sistemáticas. Essas são todas boas razões para
articular muitas formas de conhecimento tácito, incluindo o da demarcação de
ciência/pseudociência.
Mas mesmo que o conhecimento tácito sobre andar de bicicleta já tenha sido articulado com
sucesso (Jones 1970), o mesmo não pode ser dito sobre a demarcação de
ciência/pseudociência. Os filósofos da ciência desenvolveram critérios para essa
demarcação, mas nenhum consenso foi alcançado com eles. Pelo contrário, a falta de
concordância filosófica nessa área tem um contraste marcante quando comparado à
concordância virtual entre cientistas em problemas mais específicos da demarcação (Kuhn
1974, 803). Na minha visão, a razão para essa divergência é a de que os filósofos
procuraram por um critério de demarcação em um nível errado de especificidade
epistemológica. Pretendo mostrar aqui que uma mudança em relação a isso torna possível
formular um critério de demarcação que evita os problemas encontrados em propostas
anteriores.
A ciência tem limites não apenas em relação à pseudociência mas também em relação a
outros tipos de não-ciência. “Anticientífico” é um conceito mais amplo do que
“pseudocientífico”, e “não-científico” é mais amplo ainda. Portanto, é inapropriado (apesar de
infelizmente não ser incomum) definir a pseudociência como aquilo que não é ciência. É
preciso prestar atenção às maneiras específicas pelas quais as pseudociências violam os
critérios de inclusão da ciência e o que o termo “pseudocientífico” significa para além de
“não-científico”. Isso é discutido nas duas seções que se seguem. Com base nessas
considerações, uma definição de pseudociência é proposta. Ela se diferencia da maioria das
propostas anteriores por operar num nível de maior generalidade epistêmica. Finalmente,
defendo essa característica da definição e explico como ela contribui para evitar alguns dos
problemas constantes das definições propostas no passado.
Mas as ciências e as humanidades tem algo importante em comum: seu propósito é nos
fornecer as afirmações mais epistemicamente justificadas que podem ser feitas, no presente
momento, sobre o objeto de estudo de seus respectivos domínios. Juntas, elas formam uma
comunidade de disciplinas do conhecimento caracterizada por um respeito mútuo pelos
resultados e métodos de umas das outras (Hansson 2007). Um arqueólogo ou historiador
terá que aceitar o resultado de uma sofisticada análise química feita em um artefato
arqueológico. Da mesma maneira, um zoólogo terá que aceitar o julgamento de um
historiador sobre a confiabilidade de um texto antigo que descreve animais extintos. Para
entender as descrições antigas das doenças precisamos de cooperações entre acadêmicos
clássicos e cientistas médicos — não entre acadêmicos clássicos e homeopatas ou entre
cientistas médicos e bibliomantes.
Infelizmente, nem “ciência” nem outro tipo de termo estabelecido na língua portuguesa cobre
todas as disciplinas que são parte desta comunidade de disciplinas do conhecimento. Pela
falta de um termo mais adequado, as chamarei de “ciência(s) no sentido ampliado.” (O termo
em alemão é Wissenschaft, a tradução mais próxima de “ciência” para essa língua, tem este
sentido ampliado; isto é, ele considera todas as especialidades acadêmicas, incluindo as
humanidades. Assim também faz a palavra em Latim scientia.) A ciência em um sentido
ampliado busca conhecimento sobre a natureza (ciências naturais), sobre nós mesmos
(psicologia e medicina), sobre nossas sociedades (ciências sociais e história), sobre nossas
construções físicas (ciência da tecnologia) e sobre nossas construções mentais (linguística,
estudos literários, matemática e filosofia). (Filosofia, obviamente, é uma ciência neste sentido
ampliado do termo; cf. Hansson 2003.)
Uma demarcação de pseudociências que possua bons princípios não pode ser baseada na
concepção tradicional de ciência que exclui as humanidades. Como já foi mencionado, um
número significativo de autores vendem teorias extremamente problemáticas nos estudos de
história e de literatura — negacionistas do Holocausto; teóricos dos antigos astronautas;
fabricantes dos mitos de Atlantis; sindonologistas (investigadores do sudário de Turim),
praticantes da arqueologia “bíblica” vinculada às escrituras; proponentes das teorias
marginais sobre a autoria de Shakespeare; defensores do código da bíblia; e muitas outras
(Stiebing 1984; Thomas 1997; Shermer e Grobman 2000). O que os coloca fora da
comunidade de disciplinas do conhecimento é primariamente sua negligência do
conhecimento histórico e literário. Em muitos desses casos a negligência ou falsificação das
ciências naturais é acrescida à falta de confiabilidade dos ensinamentos.
Temos um problema terminológico aqui. De um lado, pode parecer estranho usar o termo
“pseudociência” para se referir a um mito sobre Atlantis que não tem nada a ver com a
ciência no termo ordinário (e estreito) da palavra. Porém, por outro lado, a criação de uma
nova categoria para as “pseudohumanidades” não é justificada, já que o fenômeno se
sobrepõe e coincide largamente com o da pseudociência. Sigo a primeira opção e uso o
termo “pseudociência” para cobrir não apenas versões fracassadas da ciência no sentido
tradicional, mas também versões fracassadas da ciência no sentido ampliado (incluindo as
humanidades). Assim, obtemos uma proposta de demarcação clara e epistemologicamente
unificada, que não pode ser obtida com a noção demasiadamente estreita e tradicional de
ciência da língua portuguesa.
A pseudociência é caracterizada não apenas por não ser ciência, mas também,
importantemente, por se desviar consideravelmente dos critérios de qualidade da ciência.
Para encontrar a característica definidora da pseudociência precisamos olhar mais
cuidadosamente para tais critérios de qualidade. Existem três aspectos de maior importância
sobre eles. O primeiro e mais básico deles é a confiabilidade: uma afirmação científica
deveria estar correta, ou pelo menos, estar o mais próximo possível da correção que
podemos chegar atualmente. Se um farmacologista nos diz que uma certa substância reduz
o sangramento, então ela provavelmente deve ser capaz de fazê-lo. Se um antropólogo nos
diz que os xamãs da Amazônia deram folhas que continham aquela substância para
membros da tribo machucados, então ele provavelmente deve ter dado. O requisito da
confiabilidade é fundamental em todas as disciplinas do conhecimento.
Como isso se relaciona com a pseudociência? A minha proposta é de que apenas um desses
três tipos de critério de qualidade científica está envolvido na distinção entre ciência e
pseudociência, mais especificamente o de confiabilidade. Considere os dois exemplos a
seguir (no sentido ampliado) de trabalhos científicos que satisfazem o critério de
confiabilidade, mas não satisfazem nenhum dos outros dois:
Podemos resumir isso dizendo que as pseudociências são caracterizadas por sofrerem de
uma falta de confiabilidade tão severa que não podem de forma alguma serem confiadas.
Este é o critério da não-confiabilidade. Ele pode ser entendido como uma condição
necessária na definição de pseudociência.
O “pseudo” da pseudociência
Um amigo meu que trabalha em um laboratório de química uma vez teve problemas com um
instrumento de medida. Uma longa série de medições teve de ser repetida depois de um
instrumento ser apropriadamente consertado e recalibrado. As medidas errôneas satisfazem
o nosso critério de não-confiabilidade, isto é, elas sofrem de uma falta de confiabilidade tão
severa que de modo algum merecem crédito. Entretanto, seria estranho chamar tais medidas
de “pseudocientíficas”. Elas eram apenas deficientes, nada mais. Como esse exemplo
mostra, o critério da não-confiabilidade não é suficiente para definir a pseudociência. Algo
mais precisa ser dito sobre o uso e a função destas afirmações não-confiáveis da
pseudociência.
1. Uma bióloga que estuda mariposas nas ilhas Faroe se esforça para identificar os
indivíduos que ela coleta, mas apesar de suas boas intenções, ela comete diversos erros
de classificação. Portanto, seus colegas se abstêm de tirar quaisquer conclusões sobre
os relatórios de seu estudo.
2. Um bioquímico fabrica dados experimentais, na intenção de confirmar uma hipótese
recente sobre a biossíntese de teias de aranha. Apesar de seu relatório ser falso, a
hipótese é confirmada pouco tempo depois através de experimentos legítimos.
O elemento crucial que está faltando nesses casos é a doutrina desviante. Todos os casos
típicos de pseudociência são casos em que existe uma doutrina desviante no papel principal
(Hansson 1996). A pseudociência, como é comumente concebida, envolve um esforço
sustentado de promover ensinamentos que não têm legitimidade científica em sua época.
Podemos assim especificar o critério da pretensão científica e caracterizar uma afirmação
pseudocientífica como aquela que é parte de uma doutrina desviante em que seus principais
proponentes tentam criar a impressão de que ela é científica (o critério da suposta doutrina
científica).
Este critério explica o porquê erros como o da bióloga e da fraude científica do bioquímico
nos exemplos acima não podem ser considerados pseudocientíficos. Perpetradores de
fraudes científicas que obtém sucesso tendem a não se associar a doutrinas não ortodoxas.
Suas chances de evitar descoberta são muito maiores quando os dados que eles fabricam
estão de acordo com as predições de teorias científicas estabelecidas.
3. Uma bioquímica realiza uma longa série de experimentos de qualidade questionável. Ela
consistentemente os interpreta como se mostrassem que uma proteína em particular tem
um papel na contração muscular, uma conclusão que não é aceita por outros cientistas.
4. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do
que água) são melhores do que aqueles da medicina convencional. Ele defende que
suas afirmações relativas à terapêutica têm suporte da ciência e faz tentativas de provar
que este é o caso.
5. Um homeopata afirma que seus remédios (consistindo quimicamente de nada mais do
que água) são melhores do que aqueles da medicina convencional, baseada em ciência.
Entretanto, ele não afirma que a homeopatia é científica. Em vez disto, ele afirma que ela
está baseada em outra forma de conhecimento que é mais confiável que a ciência.
Definições e demarcações
Ciência (no sentido ampliado) é a prática que nos fornece as afirmações mais
confiáveis (i.e., epistemicamente justificadas) que podem ser feitas em um
determinado momento sobre um objeto de estudos abarcado por uma comunidade
de disciplinas do conhecimento (i.e., sobre a natureza, nós mesmos como seres
humanos, nossas sociedades, nossas construções físicas e nossas construções
mentais).
Essa é uma versão melhorada de uma definição proposta anteriormente (Hansson 2009). Ela
difere das outras definições de pseudociência por focar na pseudociência em si. Em vez de
usar a demarcação de pseudociência versus ciência como um veículo para definir ciência,
sugeri que precisávamos primeiro clarificar o que a ciência é. Baseado nisso, podemos
determinar qual das muitas formas de desvio da ciência podem ser chamadas de
“pseudociência”. Essa definição estrutural tem a vantagem de tratar a noção de
pseudociência como secundária a aquela de ciência, o que parece correto em termos de
prioridade conceitual.
Entretanto, devido a essa estrutura, a definição não é por si mesma operacional para a
demarcação de pseudociência. Para esse propósito ela precisaria ser complementada com a
especificação do critério de confiabilidade. Obviamente, várias especificações do tipo podem
ser adicionadas, dando espaço para diferentes demarcações entre ciência e pseudociência
(e.g., falsificacionistas ou verificacionistas). Vamos então agora finalmente discutir tais
especificações. Elas são o objeto de estudos da maioria das abordagens tradicionais de
demarcação entre ciência e pseudociência.
Lakatos (1970, 1974a, 1974b, 1981) propôs que a demarcação não deveria ser aplicada a
hipóteses isoladas de uma teoria, mas em vez disso a um programa de pesquisas inteiro que
seria caracterizado por uma série de teorias que sucessivamente substituiriam uma à outra.
Uma nova teoria que é desenvolvida em tais programas, é, em sua visão, científica se tem
um conteúdo empírico maior do que seu antecessor; de outro modo seria degenerativa.
Thagard (1978) e Rothbart (1990) desenvolveram mais tal critério. Thomas Kuhn (1974)
distinguiu entre ciência e pseudociência em termos das habilidades da primeira de resolver
quebra-cabeças. George Reisch (1998) defendia que uma disciplina científica era
caracterizada por ser adequadamente integrada em outras ciências. Todas essas propostas
foram submetidas a críticas severas, e nenhuma delas se aproximou de uma aceitação geral.
O segundo tipo de proposta de demarcação segue uma abordagem multicritérios. Cada uma
dessas propostas fornece uma lista de erros cometidos pelas pseudociências. Normalmente,
assume-se que se uma afirmação ou uma teoria falha de acordo com um desses critérios,
então ela é pseudocientífica. Entretanto, não se exige exaustividade; em outras palavras, fica
em aberto se determinada afirmação ou teoria pode ser pseudocientífica não violando
quaisquer dos critérios listados (provavelmente porque viola algum outro, ainda não listado).
Um grande número de listas do tipo já foram publicadas (normalmente contendo entre cinco a
dez critérios), por exemplo, por Langmuir ([1953] 1989), Gruenberger (1964), Dutch (1982),
Bunge (1982), Radner e Radner (1982), Kitcher (1982, 30-54), Hansson (1983), Grove (1985),
Thagard (1988), Glymour e Stalker (1990), Derksen (1993, 2001), Vollmer (1993), Ruse
(1996, 300-306), Mahner (2007). Eis um exemplo de tal tipo de lista:
1. Credo na autoridade: É afirmado que alguma pessoa ou pessoas tem uma habilidade
especial de determinar o que é verdadeiro ou falso. Os outros precisam aceitar seus
juízos.
2. Experimentos não repetíveis: A confiança é depositada em experimentos que não podem
ser repetidos por outros com o mesmo resultado.
3. Exemplos escolhidos a dedo: Exemplos escolhidos a dedo são usados apesar de não
serem representativos da categoria geral à qual a investigação se refere.
4. Resistência à testagem: Uma teoria não é testada apesar de ser possível fazê-lo.
5. Desdém por informações refutantes: Observações ou experimentos que conflitam com a
teoria são rejeitados.
6. Construída em subterfúgio: A testagem de uma teoria é arranjada de tal maneira que a
teoria pode apenas ser confirmada, e nunca desconfirmada, pelos seus resultados.
7. Explicações são abandonadas sem substituição: Explicações sustentáveis são
abandonadas sem serem substituídas, de forma que a nova teoria deixa muito mais
coisas inexplicadas do que a anterior. (Hansson, 1983)
O que os dois tipos de propostas de demarcação têm em comum é operarem com critérios
concretos e diretamente aplicáveis. Se desejamos determinar se a psicanálise freudiana é
uma pseudociência, podemos aplicar diretamente, por exemplo, o critério de falseabilidade
de Popper, o critério de resolução de quebra-cabeças de Kuhn ou o critério de integração
com as outras ciências de Reisch. Podemos também aplicar, para os mesmos propósitos, os
critérios encontrados em listas de multicritérios, como experimentos não-repetíveis, exemplos
escolhidos à dedo, credo na autoridade, e assim por diante. Entretanto, os dois tipos de
propostas de demarcação se diferenciam em outro aspecto: o primeiro tipo fornece um
critério que visa ser suficiente para determinar em cada caso particular se uma dada
afirmação, prática ou doutrina é científica ou pseudocientífica. O segundo tipo tem
reivindicações mais modestas, e não há uma tentativa de mostrar que a lista de critérios
oferecida é exaustiva.
Muitas das propostas de demarcação filosóficas tentaram fazer o impossível a esse respeito.
Elas, portanto, negligenciaram o que talvez seja o maior ponto forte da tradição científica,
que é sua notável habilidade de autoaperfeiçoamento, não apenas em relação aos detalhes,
mas também sobre sua metodologia básica. A unidade da ciência opera primariamente em
outro nível, mais fundamental que o da metodologia científica concreta.
Agradecimentos
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