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Filosofia e Ciências

Material Teórico
Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Américo Soares da Silva

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

• Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Apresentar considerações sobre a relação da ciência e filosofia,
retomando o debate sobre a fragmentação do conhecimento e
apresentar elementos inicias para se pensar a complexidade.

ORIENTAÇÕES
Nesta unidade, você encontrará uma reflexão mais geral sobre a relação
filosofia/ ciência, também será introduzido(a) em alguns elementos do
pensamento complexo, como defendido por Edgar Morin.

Recomendo a você, estudante, dividir seus estudos em etapas: primeiro,


faça uma leitura atenta do texto. Nesse momento, não é tão importante
fazer marcações; busque uma compreensão de conjunto. Em um segundo
momento, retorne ao texto, mas, desta vez, você já conhece o final da
história, não é mesmo? Então, ao retornar, você o fará com um olhar de
investigador(a); busque pelos pontos principais: quem são os personagens
mais relevantes dessa “história”? Que ideias cada um deles defendia? Por
quê? Outras questões são colocadas ao longo do texto para sua reflexão?
Quais são elas?

Além disso, para que a sua aprendizagem ocorra num ambiente mais interativo
possível, na pasta de atividades, você também encontrará as atividades de
Avaliação e uma Atividade Reflexiva. Cada material disponibilizado é mais
um elemento para seu aprendizado; por favor, estude todos com atenção!
UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

Contextualização
Assista ao vídeo disponível no link a seguir: é uma entrevista com o pensador
francês Edgar Morin, que fala de cultura, educação, política e complexidade.

GRAVAULA. Pensamento complexo – Educação – Edgar Morin.


Explor

https://youtu.be/2sYQymE46I4

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Considerações sobre a Filosofia e a Ciência
A busca por entender o mundo é parte importante do DNA do pensamento
filosófico. Essa busca pode ser localizada no distante período pré-socrático e não
abandonou o pensamento filosófico mesmo nos dias atuais. Mas houve mudanças.

Ao longo desses séculos, a cultura cristalizou o conhecimento em áreas, campos


de atuação que apesar de guardar uma lembrança das antigas alianças com o
pensamento filosófico, a formação de seus próprios paradigmas lhe deu impulso
próprio, manifesto na forma de “fronteiras”, demarcações que passam a sinalizar
“onde um saber começa e termina”. Não temos dúvidas de que houve, e ainda há,
um ganho substancial dessa repartição.

O recorte de objetos e práticas metodológicas abriu uma longa estrada de


descobertas, as quais, por sua vez, permitiram um volume assombroso de de-
senvolvimentos técnicos e de tecnologias, sendo ainda que as últimas estabe-
leceram uma sinergia com as primeiras. Novos conhecimentos ajudam a criar
novas tecnologias, que também auxiliam no aparecimento de conhecimentos
mais novos ainda, em uma espiral positiva. Se olharmos para o horizonte da
história, a formação dessa espiral é recente, pois começa a se delinear a partir
do século XVII, quando ainda “os investigadores eram amadores no sentido
primitivo do termo: eram filósofos e cientistas. A atividade científica era so-
ciologicamente marginal e periférica” (MORIN, 1998, p. 19). Muito diferente
das carreiras profissionais e acadêmicas dos dias atuais. Também aqui se pode
encontrar outra sinergia: a da mobilização.

Essa última evolução, mais recente, foi o que permitiu a atividade científica
deixar para trás a condição romântica, de apêndice da atividade principal do
investigador, que era “cientista nas horas vagas”, para torna-se cada vez mais
séria, complexa e rigorosa. Quanto maior o seu reconhecimento junto à sociedade,
quanto mais numerosas as oportunidades profissionais, maior se tornavam os
contingentes de pesquisadores, contando com a subvenção de instituições de
ensino e do próprio Estado.

A sinergia de resultados (descobertas/ tecnologias) auxiliou a formar uma sinergia


de mobilização (valorização social/ profissionalização); muito embora a depender
da realidade social de cada país, essa segunda possa ter sido menos intensa do que
em outras nações, ainda assim, o fenômeno está lá.

A descrição dada até aqui carrega componentes tanto progressistas como


otimistas, e há razão para isso: basta olharmos os progressos feitos no campo
da metalurgia, das telecomunicações, da medicina, nos últimos 150 anos, e
comparamos com todo o período anterior ao avanço da ciência moderna.

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

Fonte: iStock/Getty Images

Contudo, a realidade não se dobra apenas às nossas aspirações. A complexidade


da existência humana, enquanto espécie que habita o planeta, é grande demais e
escapa de uma tela pintada apenas com cores virtuosas.

Aqui precisamos de um reencontro com a Filosofia. Há diferentes abordagens


do que é ou pode vir a ser o pensamento filosófico. Dentre muitas, há um aspecto
que não abrimos mão por entendermos ser esse – mais do que a letra – o espírito
filosófico, a saber, o antidogmatismo.

Um jogo lógico óbvio poderia insuflar a ideia de que ser antidogmático é aderir
a outro tipo de dogma e, portanto, seria uma contradição.

Compreendemos, para além desse jogo, que o antidogma-


tismo é na verdade um dogmatismo mínimo, cujo único
dogma é evitar outros dogmas.

O dogmatismo convencional assume uma miríade de pos-


tulados, cada qual tratado como Verdade irretocável, e, pela
força da própria lógica argumentativa, todo enunciado que
se opõe aos dogmas principais dessa ou daquela doutrina
são falsos. Em arranjos institucionais, o que viola o dogma
torna-se inapropriado. Acrescente ao arranjo institucional
a dimensão do poder, materializado, inclusive, como poder
O Pensador de coerção física e pronto: aquilo que confronta o dogma
Fonte: Wikimedia Commons torna-se heresia a ser erradica com violência.

Por isso, compreendemos a Filosofia como essencialmente antidogmática, assim


como capaz de olhar a realidade com uma serenidade racional, a qual elogiará ou
criticará com muito menos amarras do que o faz o discurso dogmático convencional.

Isso nos leva a interrogar sobre o olhar da Filosofia sobre a Ciência. Uma
filosofia que reivindique uma posição antidogmática não pode fazer concessões
ao dogmatismo ou a dogmatizações. No caso, as ciências, e as condições que
mencionamos do seu desenvolvimento, seus acertos e sucessos, podem e devem
ser examinados, mas a reverência dogmatizante e acrítica não pode ser aceita.

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Os avanços das ciências foram imensos. Não apenas no campo do conhecimento,
como também a tecnologia contribuiu fortemente para mudar a nossa forma de
convívio enquanto sociedade. Contudo, houve custos. A precificação se manifestou
de deferentes formas: do impacto ambiental, passando pela construção de
devastadoras armas de guerra, atingindo inclusive a própria teoria do conhecimento
e o discurso filosófico. E é sobre o último que iremos nos debruçar nesta unidade.

Fonte: iStock/Getty Images

O sucesso progressivo das ciências da natureza em trazer novas e interessantes


explicações sobre o mundo, ao mesmo tempo criando técnicas e tecnologias que
permitiam utilizar esses novos conhecimentos nas mais diversas formas de manipulação
da natureza; inaugurou uma verdadeira “corrida do ouro da sabedoria”. Mais do que
argumentar: “Isso funciona desse jeito”, as ciências tidas naturais podiam utilizar como
meio de convencimento a demonstração da manipulação da natureza, ou seja, seria
algo como: “Isso funciona assim, e veja! A natureza concorda!”.

Fonte: iStock/Getty Images

Esse entusiasmo ajudou muito a configuração de um corte, uma separação


entre aquilo que era fenômeno humano ou do espírito, sujeito a toda sorte de
controvérsias e, de outro lado, os fenômenos da natureza, que guardavam um
tesouro de regularidade e previsibilidade que estava lá, apenas esperando para ser
descoberto. Essa mentalidade contribui para a consolidação de um movimento
naturalista dentro do pensamento moderno e contemporâneo. Para efeito de
definição, seguimos a mesma linha de raciocínio de Japiassu:

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

[...] Entre seus vários sentidos, destacaremos dois: o filosófico e o


epistemológico. Do ponto de vista filosófico, o “naturalismo” se
apresenta, antes de tudo, como doutrina que exclui por completo toda
e qualquer referência a um saber de ordem “espiritual”, vale dizer, toda
ingerência do sobrenatural ou do transcendente na interpretação dos
fenômenos naturais. Do ponto de vista epistemológico, o “naturalismo”
designa a teoria do conhecimento que nega radicalmente, por uma
questão de princípio, a especificidade das ciências humanas e a validade
de seus conhecimentos, sob pretexto de que o único modelo de ciência
passível de ser aceito como verdadeiro, deve ser o das ciências naturais.”
(JAPIASSU, 1975, p. 78)

Essa combinação da rejeição dos aspectos espirituais, que coloca o naturalismo


em uma condição de materialismo no plano filosófico, como um critério de
legitimação que inclui as ciências naturais como válidas e desloca as outras formas
de saber ou os saberes que não compartilham dos mesmos critérios para um
limbo cultural, algo como pensamento ingênuo, preconceituoso ou equivocado,
abriu espaço para o aparecimento de um cientificismo, que mais do que ser uma
posição filosófica/ epistemológica, como o naturalismo de fato é, contribuiu para
tornar essa posição um objeto de reverência.

O positivismo, tido como clássico, de Auguste Comte foi um dos mais impor-
tantes percursores desse movimento no próprio terreno da filosofia. Aliás, o papel
da filosofia em relação às ciências no pensamento comteano se reduziria a uma
“coordenação metodológica”, auxiliando na demarcação das fronteiras entre as
várias ciências, delegando para as ciências naturais a responsabilidade de desbravar
os segredos do conhecimento. Mesmo com a dimensão humana da sua proposta
de “física social”, a investigação da sociedade deveria tentar ao máximo copiar os
métodos das ciências naturais.

No século XX, o neopositivismo radicaliza, expurgando de vez a “consciência


filosófica”, reduzindo-a a uma mescla de lógica e análise do discurso.

O cientificismo não se limitou à dimensão teórica, e embora os membros do


Círculo de Viena não fossem seus criadores, certamente contribuíram como porta-
vozes desse tipo de organização da investigação científica da qual eles mesmos
já eram produto e que não ficou apenas na profissionalização da atividade, mas,
também, permitiu o surgimento da figura do expert.

A expertização da comunidade científica deve-se tanto ao entusiasmo pelos


resultados em termos de conhecimento das ciências naturais, como pelos resultados
econômicos das tecnologias deles derivadas. No circuito de interesses, formou-se
um círculo de valorização: mais resultados, mais apoio (cargos, financiamentos,
salários etc.); mais apoio, novamente mais resultados. A questão é que o cientificismo
constrói em seu interior elementos para uma relação distorcida desse círculo de
valorização. Afinal, quais resultados interessam mais? Não se trata de exercícios
de censura direta, como descrevem fantasiosas teorias de conspiração. Mas,
nem por isso o efeito da consolidação dessas práticas deixou de ser importante.

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O Capital e o Estado, diretamente à frente ou pelo menos financiando as instituições
científicas, terminam por pautar quais investigações avançam mais. Quais
especialidades recebem maior financiamento, e isso ressoa para o mercado de
trabalho, pois o jovem aspirante a cientista, ao enxergar as possibilidades distintas
de carreira como expert, pode optar por uma especialidade mais valorizada. Essas
práticas podem perfeitamente induzir à redução do contingente de pesquisadores
de um campo e concentrá-los em outro.

Como se não bastasse esse efeito, a dimensão de expertização ao longo do século


XX tornou-se mais aguda; cada área de conhecimento começou a ficar cada vez
mais zelosa com suas fronteiras, e mesmo dentro dessas fronteiras a especialização
avançou para criar pequenos feudos do conhecimento: a subárea. Ou seja, não
bastasse os cientistas se afastarem progressivamente de questões filosóficas da
sua área, também passaram a centrar esforços numa supercompreensão da sua
subárea, deixando em segundo plano – ou para outro expert – falar, pensar ou se
preocupar com a subárea vizinha.

Uma imagem que auxilia nesse entendimento é comparar a perfuração


de um poço com as raízes profundas de uma árvore. O que está em jogo é a
profundidade. A sociedade precisa de um expert altamente especializado, que
alcança os detalhes mais “profundos” da área, ou melhor, da subárea a qual dedica
a sua investigação? Ou, precisamos de um expert que troca uma parte da sua
verticalidade pela horizontalidade? Ou seja, escava o solo do conhecimento não
apenas numa única direção, abre canais que “esbaram” em outras subáreas ou
mesmo em áreas afins, como um físico que conhece razoavelmente química, um
sociólogo com bons conhecimentos de história, ou um psicólogo que transita muito
bem por sistemas filosóficos.

Fonte: iStock/Getty Images

Nossa resposta é que a sociedade precisa dos dois.

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

Porém, o arranjo institucional que alimenta o cientificismo e que dele se


retroalimenta privilegia o “expert do poço”, criando, assim, uma cultura de
autoridades do saber, um modelo educacional e investigativo extremamente
fragmentado, que dificulta uma visão mais sistêmica da realidade.

Se nas próprias ciências da natureza esse modelo pode ser limitante, o estrago
do cientificismo junto às ciências humanas é ainda maior.

Num esforço para obter reconhecimento e aceitação social, muitos centros


acadêmicos de ciências humanas fazem reverência ao cientificismo, e o mais
extraordinário: o fazem de forma quase inconsciente!

Uma conversa com estudantes de ciências humanas – e até professores – sobre o


tema rapidamente alcançaria a condição de discurso inflamado, insurgindo e denun-
ciando os absurdos do cientificismo. Contudo, é praxe acadêmica vigente – inclusive
nas áreas de ciências humanas – modelos de pesquisa que privilegiam a fórmula do
“expert do poço”. Abundam pelos diferentes departamentos de psicologia, filosofia,
ciências sociais etc. dissertações e teses acadêmicas que são basicamente monográfi-
cas. Não estamos negando de nenhuma forma o valor acadêmico de uma tese que ver-
sa sobre Skinner, Machado de Assis, Weber ou Aristóteles. Assim como não negamos
a relevância do especialista em microbiologia, ou em contabilidade tributária, porém
esse movimento que identificamos como cientificista induz o pensamento a comportar-
-se como se sempre precisámos de um único tipo de expert e entendemos que em
muitos casos, principalmente na filosofia, essa abordagem, se tornada hegemônica,
mais limita do que amplia a reflexão.

Particularmente, entendemos como um gesto mesmo de prudência intelectual


que todo aquele que se debruce sobre as ciências humanas deva avançar um pouco
suas leituras e investigações para outros campos, se não pelas ciências da natureza
– o que seria louvável – pelo menos sobre outras ciências humanas, como maneira
de ter outras perspectivas sobre as quais pensar.

Dentro desse escopo de pensadores que aceitaram


o desafio de buscar uma forma de reflexão mais
ramificada, está o sociólogo francês Edgar Morin.

Tendo sua origem acadêmica no campo das ciências


sociais, Morin enveredou pelo flerte com outras áreas
do conhecimento, inclusive pelas ciências naturais.
O resultado foi uma forma de pensar que borra um
pouco as fronteiras diligentemente estabelecidas
pelas praxes acadêmicas, fosse na forma de pensar a
sociedade, educação ou a própria ciência, o discurso
Edgar Morin de Morin assumiu perspectiva mais interdisciplinar,
Fonte: Wikimedia Commons principalmente, com a sua teoria da complexidade.

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Para Morin (MORIN, 1998), os debates em filosofia da ciência, apesar de
interessantes, foram por demais capturados pelo binômio demarcatório científico/
não científico e não buscaram compreender o fenômeno da complexidade.

Talvez por isso, antes mesmo nos apresentar alguns dos aspectos de como ele
compreende a complexidade, o autor antecipa o comentário sobre mal-entendidos
a respeito do tema.

Segundo o pensador francês, é um erro pensar a complexidade como uma


receita, uma solução, ao invés de um desafio (idem). Além disso, outro equívoco é
tomar a complexidade como uma estratégia para lidar com a completude:
Acontece que o problema da complexidade não é o da completude, mas o
da incompletude do conhecimento. Num sentido, o pensamento comple-
xo tenta dar conta daquilo que os tipos de pensamento mutilante se desfa-
zem, excluindo o que eu chamo de simplificadores e por isso ele luta, não
contra a incompletude, mas contra a mutilação. (MORIN, 1998, p. 176)

A complexidade busca um conhecimento que seja multidimensional. Para


o autor, o pensamento convencional, mutilante, trata as diferentes dimensões que
nos cercam de forma totalmente isoladas; desconsidera que somos, por exemplo,
seres biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, simultaneamente (idem).

Ao tratar, então, das características que ajudam a definir o pensamento complexo,


Morin aponta para algumas “avenidas”, que iremos expor de maneira sintética:

1ª Irredutibilidade do acaso e da desordem: O acaso e a desordem sempre


fizeram parte do universo, inclusive influenciando nos processos evolutivos.
A matemática não consegue provar de forma definitiva o que é o acaso,
se é algo realmente imponderável em um nível muito específico ou se é –
como pressupõem os deterministas – uma aleatoriedade ilusória, produto
da nossa falta de conhecimento das relações de causa e efeito no universo
(idem, p. 177-178).

2ª Transgressão: A necessidade – também nas ciências naturais – de se


considerar a localidade do fenômeno. As pesquisas ecológicas, por exemplo,
não podem desconsiderar a peculiaridade de um determinado ecossistema
que permite a existência de elementos singulares; ou ainda, pesquisas na
física cujas “medidas só podem ser feitas num certo lugar e são relativas à
própria situação em que são feitas”1 (idem, p. 179). Ou seja, não respondem
tão tranquilamente a universalizações abstratas.

1
Um exemplo bastante interessante são as pesquisas da física e da astronomia sobre a
Explor

matéria escura e a energia escura; há interessantes documentários com linguagem não


técnica sobre esse tema disponíveis gratuitamente online.

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

3ª Complicação: O estudo dos fenômenos biológicos e sociais lançou um


desafio gigante, pois sua compreensão deveria considerar a sua dinâmica
viva, pois esses se mantêm um estado permanente de inter-retroações, agindo
e sofrendo ações externas; entrando ora em equilíbrio ora em contradição
com um intrincado número de elementos; portanto, as variáveis a serem
estudadas são gigantescas. A solução da ciência tradicional, contudo, foi
estudar o fenômeno morto, ou subtraído do seu ambiente, o que exclui
justamente as inter-retroações (idem, p.179).

4ª A relação complementar entre ordem, desordem e organização: O autor


cita as pesquisas de Ilya Prigogine (1917-2003) e de Heinz von Foerster
(1911-2002). Segundo o pensador francês:
Os trabalhos de Prigonine mostraram que estruturas turbilhonárias
coerentes podiam nascer de perturbações que aparentemente deveriam
ser resolvidas com turbulência. Entendemos que é nesse sentido que
emerge o problema de uma relação misteriosa entre ordem, a desordem
e a organização. (Idem, p.179).

5ª A organização: Um caminho específico para a organização se deve ao


fato de quando as ciências se debruçam sobre sistemas organizados podem
se deparar com níveis de complexidade distintos. Em sistemas com alto
nível de complexidade, Morin nos lembra de que nos depararíamos com um
funcionamento combinado, o qual contaria com uma anarquia de interações
espontâneas (acêntricas), com centros dispersos que exercem algum controle
e organização de interações (policêntricos) e, por fim, um centro de decisão
e comando (cêntrico) (idem, p. 180 - 181). Ora, na sociedade, temos
interações espontâneas entre as pessoas, centros múltiplos de organização,
a sociedade civil organizada em sindicatos, empresas, partidos políticos, o
terceiro-setor etc., e tudo isso convivendo com um centro de organização
mais amplo, o Estado (é claro que não teremos um padrão único nessas
relações, que variarão bastante caso a sociedade se configure como mais
democrática ou mais autoritária).

Ainda nesse escopo, Morin introduz na discussão a noção de Holograma, o


qual define: “Holograma é a imagem física cujas qualidades de relevo, de cor e de
presença são devidas ao fato de cada um dos seus pontos incluírem quase todas as
informações do conjunto que ele representa.” (MORIN, 1998, p. 181).

A condição hologramática é para lidar com as relações entre a parte e o todo. As


partes de sistemas complexos carregam em si traços do todo. Seja nas células que
trazem informações do organismo total ou nos sistemas de sociedades complexas,
em que o processo de socialização incutiu em seus elementos singulares (indivíduos)
um conjunto de informações culturais compartilhadas: códigos de conduta,
linguagem, valores morais e/ ou religiosos, etc.

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6ª Princípio de organização recursiva: Se o hologramático é um princípio da
complexidade, a organização recursiva é outro princípio importante. A partir
dos resultados das pesquisas de Norbert Wiener (1894-1964), que deram
origem à cibernética, temos a ideia na qual “o efeito retorna de modo causal
sobre a causa que o produz” (idem, p.182); esse fenômeno sinaliza para uma
circularidade entre causa e efeito: a informação absorvida produz um efeito
no sistema, sendo que esse efeito produz uma nova informação, que leva a
novo efeito... Essa interatividade borra as fronteiras não apenas do ponto
de vista empírico, como também no plano conceitual e lógico no momento
de fazer a definição entre produtor e produto, causa e efeito (idem, p. 183).

7ª A crise dos conceitos fechados e claros: Não é o caso aqui de afastar a


busca pela clareza ou pelo esclarecimento, mas de afastar a concepção de
que essa clareza conceitual deve ser obtida a todo custo, inclusive “forçando”
o fechamento de conceitos, os quais assumiriam um papel axiomático rígido.
A tratar-se de sistemas complexos, deve-se incorporar a ideia de autonomia
– podemos acrescentar que isso também se deve pela inclusão na discussão
das 4ª, 5ª e 6ª avenidas da complexidade que acabamos de mencionar –
para Morin, essa ideia de sistema autônomo equivale a postular que:
[...] um sistema autônomo aberto deve ser ao mesmo tempo fechado,
para preservar sua individualidade e sua originalidade. [...] No universo
das coisas simples, é preciso “que a porta esteja aberta ou fechada”, mas,
no universo complexo, é preciso que um sistema autônomo esteja aberto
e fechado, a um só tempo. (MORIN, 1998, p. 176).

8ª A volta do observador na sua observação: Morin nos relembra de que


é ilusório pressupor que o observador possa ser um fator a ser excluído do
resultado da observação. A ideia de uma observação totalmente neutra dos
fenômenos não convém para as ciências antropossociais e, tampouco, na
observação de determinados fenômenos das ciências naturais – como no
caso da microfísica. Isso não empurraria a ideia de complexidade para um
relativismo fácil e que não adiciona nada? A questão não descarta a validade,
a legitimidade, de uma observação que é influenciada pelo seu observador. A
partir das propostas de Morin, toda observação é afetada pelo observador.
Diferentemente de uma vulgarização do positivismo praticado por uns e
outros que apreciam professar que há mescla observação/ observador nos
concorrentes teóricos, e que por isso são proposições ou saberes falsos ou
incompletos. Já as próprias observações seriam “isentas”, “científicas” e,
portanto, “verdadeiras”... A proposta do pensador francês é que “[...] a
teoria, qualquer que seja ela e do que quer que trate, deve explicar o que
torna possível a produção da própria teoria e, se ela não pode explicar; deve
saber que o problema permanece” (idem, p. 186).

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

As lições deixadas por essas avenidas da complexidade nos orientam a pensar


não somente de forma puramente vertical, não somente segundo os ditames dos
paradigmas dominantes que tendem a valorizar, às vezes, excessivamente a figura
do “expert do poço”. E é exatamente devido aos mesmos elementos defendidos
por Morin que atualmente, apesar da força em contrário, nós não temos uma
completa hegemonia da visão fragmentada do conhecimento. Tal como dito, a
própria observação pode interferir na perspectiva do observador, alterando aquilo
que será visto numa próxima observação. Justamente a adoção de linhas de
abordagem semelhantes a essa, por parte de alguns pensadores, acadêmicos e
cientistas, que se preveniu – e se mantém resistência – a consolidação de um
cientificismo avassalador que tomaria todas as áreas de conhecimento.

Se não houvesse algum contraposto, hoje, nas ciências humanas, por exemplo,
teríamos exclusivamente uma praxeologia destinada a questões de desempenho
e de melhoria imediata da produtividade. Nada seria dito sobre questões que
envolvessem insalubridade ou qualidade de vida no trabalho. Nas ciências naturais
todos os esforços estariam voltados para a próxima tecnologia/ produto que
resultasse em maiores – e de preferência imediatos – ganhos econômicos.

Foi com abordagens cada vez mais transversais por um lado, e por outro, de se
evitar olhar para a apreensão do conhecimento como fonte instantânea de geração
de lucros, que podemos contar com pesquisas no campo da astronomia sobre o
afastamento das galáxias, outras sobre economia verde, reutilização de resíduos ou
formas de energia “limpa”. Já as “humanidades” podem contar ainda tanto com
pesquisas filosóficas, na área da literatura e das artes e pesquisas arqueológicas,
como com análises sobre condições de vida das populações (níveis de riqueza,
acesso à saúde básica, taxas de natalidade, etc.), que servem de norte para a
aplicação – quando não para a reivindicação – de políticas públicas.

Compreendemos que uma maneira de evitar o espectro do cientificismo total


e uma total compartimentação das áreas de conhecimento é a busca constante
por níveis de horizontalidade. O jovem pesquisador deve ser incentivado
tanto à multidisciplinaridade como a enfoques na própria área que não sejam
superespecializados. É preocupante o fenômeno que se faz presente em muitos
cursos de graduação, no qual já se expõe seus estudantes a uma expertização
prematura. Não é incomum em diferentes cadeiras universitárias – de instituições
renomadas – alunos de graduação serem apresentados a uma única linha de
pensamento dentro da subárea que está sendo estudada. Obviamente, por limitações
até de ordem prática, não é possível apresentar todas as vertentes pensadas sobre
um determinado tema. Todavia, principalmente em filosofia, ancorar, por exemplo,
toda a disciplina de Ética, ainda em nível de graduação, no livro Genealogia da
Moral, de Nietzsche, terá o mérito de verticalizar a discussão, aprofundar o debate
filosófico em torno do problema da moralidade segundo esse autor, mas ao custo de
se passar à margem das discussões sobre Aristóteles, Kant ou a da ética utilitarista.
É o melhor momento para esse tipo de estratégia? Não seria melhor municiar os
estudantes de graduação com pelo menos algumas das ramificações de pensamento
mais estudadas e deixar essa verticalização para uma posterior carreira acadêmica
como pesquisador?

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Afinal, não vemos como seja possível pensar com honestidade uma filosofia
política feita apenas com Hobbes, ou com Rousseau, ou ainda apenas com Karl
Marx. O mesmo vale para outras áreas das ciências humanas; a psicanálise,
por exemplo, apesar de dever sua fundação e uma importantíssima elaboração
teórica e clínica a Sigmund Freud, não pode ser reduzida somente às obras do
mestre vienense.

Por fim, é importante professores, estudantes universitários e os próprios


departamentos das mais diferentes áreas cultivarem uma perspectiva mais plural
de diálogos com áreas afins – e por que não com áreas nem tão próximas –,
e esse cultivo pode se dar nos mais diferentes níveis, tanto institucional, como
individual, pois aspirar a uma verdadeira autonomia demanda esforço e autocrítica
permanentes. Se aceitarmos os conselhos do pensamento de Morin sobre a
complexidade, veremos que o maior desafio ao pensar, talvez, nem seja começar
a refletir, e sim tornar essa reflexão permanente, manter nossas reflexões num
crescendo, ramificando-se como as raízes de uma árvore, muitas vezes para
além do comodismo do pensamento dos nossos autores favoritos, das fórmulas
prontas – e por isso práticas – ou seja, uma posição de permanente coragem de
ousar saber.

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UNIDADE Considerações sobre a Filosofia e a Ciência

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Filosofia da Ciência: Introdução ao Jogo e a Suas Regras
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.

Ciência: Conceito-chave em Filosofia


FRENCH, Steven. Ciência: conceito-chave em Filosofia. Tradução de André Klaudat. Porto
Alegre: Artmed, 2009.

A Filosofia no Século XX
LACOSTE, Jean. A Filosofia no século XX. Tradução de Marina Appenzeller; revisão técnica
de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1992.

Filosofia da Ciência e da Tecnologia


MORAIS, Regis de. Filosofia da ciência e da tecnologia. Introdução metodológica e crítica
[livro eletrônico]. Campinas: Papirus 2013

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Referências
ARAÚJO, Inês Lacerda. Curso de teoria do conhecimento e epistemologia.
Barueri: Minha Editora, 2012.

FEIJÓ, Ricardo. Metodologia e filosofia da ciência: aplicação na teoria social e


estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2003.

JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago


Editora, 1975.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e


Maria Alice Sampaio Dória. Ed. revista e modificada pelo autor. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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