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Filosofia e Ciências

Material Teórico
Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Américo Soares da Silva

Revisão Textual:
Profa. Esp. Kelciane da Rocha Campos
Thomas Kuhn e as Transformações
nos Paradigmas da Ciência

• Thomas Kuhn e as transformações nos paradigmas da ciência


• Material Complementar

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Apresentar uma síntese do pensamento de Thomas S. Kuhn acerca
da pesquisa científica, suas ideias acerca da dinâmica que conduz a
rupturas na maneira de pensar da ciência.

ORIENTAÇÕES
Nesta unidade, você conhecerá um pouco do pensamento do filósofo
Thomas Kuhn, físico de formação que acabou se debruçando sobre questões
que dizem respeito tanto à Filosofia como à História da Ciência. Sua busca
em compreender as revoluções científicas, ainda hoje, é uma referência no
debate que envolve o pensamento científico e o filosófico.

Recomendo a você, estudante, dividir seus estudos em etapas: primeiro,


faça uma leitura atenta do texto. Nesse momento, não é tão importante
fazer marcações; busque uma compreensão de conjunto. Em um segundo
momento, retorne ao texto, mas, dessa vez, você já conhece o final da
história, não é mesmo? Então, ao retornar, você o fará com um olhar de
investigador(a); busque pelos pontos principais: quem são os personagens
mais relevantes dessa “história”? Que ideias cada um deles defendia? Por
quê? Outras questões são colocadas ao longo do texto para sua reflexão?
Quais são elas?

Além disso, para que a sua aprendizagem ocorra em um ambiente mais


interativo possível, na pasta de atividades, você também encontrará
as atividades de Avaliação e uma Atividade Reflexiva. Cada material
disponibilizado é mais um elemento para seu aprendizado; por favor, estude
todos com atenção.
UNIDADE Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

Contextualização
Leia o texto a seguir, que fornece um exemplo de controvérsias no campo
científico e o papel da própria comunidade científica:

Plutão não é mais um planeta


Explor

Agência FAPESP - 25/08/2006


Espera-se que a sonda Novos Horizontes faça as primeiras imagens diretas do planeta anão
Plutão em 2015. Acesse o texto em: https://goo.gl/hkwrEG

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Thomas Kuhn e as Transformações
nos Paradigmas da Ciência
Karl Popper deixou aberta a porta que leva à discussão sobre o papel da
comunidade científica na validação ou confirmação de novas teorias. Como iremos
discorrer nesta unidade, essa porta de certa forma foi cruzada por Thomas Kuhn,
que ao fazê-lo inscreveu seu nome nas referências fundamentais da historiografia e
da filosofia da ciência moderna.

Thomas S. Kuhn, estadunidense, nascido


em Cincinnati em 1922, fez PhD em Física
pela universidade de Harvard, veio a lecionar
História da Ciência na mesma instituição anos
mais tarde, também foi professor em Berkeley,
Princeton e em 1979 no MIT. Faleceu em 1996.

Um adágio muito utilizado recomenda que


toda história, ou toda explicação, “deve se
iniciar pelo começo”. O que pode à primeira
vista parecer óbvio guarda uma boa dose de
cautela metodológica.
Figura 1 - Thomas S. Kuhn
Fonte: Wikimedia Commons

Em circunstâncias que se deve apresentar todo um cabedal de informações


de maneira mais condensada, o autor da apresentação/explicação deverá fazer
escolhas, sínteses e até mesmo reconstruções, que por melhores que sejam não
devem – e sequer têm essa pretensão – substituir a fonte primária, ou fonte
original. Toda construção comentada deve servir como ponto de saída, cabendo ao
estudante seguir a trilha ali iniciada rumo à fonte primária, rumo à reflexão original.

A tarefa que aqui se apresenta não irá “fechar” todas as possibilidades de uma
obra polêmica e rica como é o pensamento de Kuhn, mas sim circunscrever
aspectos entendidos como mais relevantes e em algumas ocasiões assinalar pontos
de contato/atrito com outras correntes de pensamento que operam com os mesmos
problemas, além de indicar pontos de comunicação que poderão vir a conectar
outros debates no futuro.

Isso nos traz de volta ao adágio célebre de se começar pelo início, embora, pelos
motivos expostos, venhamos a dar alguns “saltos” dentro do pensamento kuhniano,
o que impede uma progressão rigorosamente linear. Podemos, sim, iniciar pelo
começo; aliás, começaremos exatamente pelo início da obra que tornou Thomas
Kuhn célebre, a saber, A estrutura das revoluções científicas:
Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que
anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva

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UNIDADE Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

na imagem de ciência que atualmente nos domina. Mesmo os próprios


cientistas têm haurido essa imagem principalmente no estudo das
realizações científicas acabadas, tal como estão registradas nos clássicos
e, mais recentemente, nos manuais que cada nova geração utiliza para
aprender seu ofício. Contudo, o objetivo de tais livros é inevitavelmente
persuasivo e pedagógico; um conceito de ciência deles haurido terá tantas
probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu
como a imagem de uma cultura nacional obtida através de um folheto
turístico ou um manual de línguas. [...] (KUHN, 2011, p. 19).

E assim se inicia a introdução de sua famosa obra, introdução essa que ainda
traria um sugestivo subtítulo: “Um papel para a história”.
Para a melhor compreensão tanto do trecho citado como da linha de pensamento
– que apresentaremos ao longo da unidade – do próprio Thomas Kuhn, é importante
que destaquemos o papel dado por ele da análise histórica, como já mencionamos.
De certa forma, Kuhn atravessa uma porta que Popper tinha se limitado a abrir
sem, no entanto, cruzá-la: o papel da comunidade científica.
Mas, afinal, o que significa essa travessia? E o que Kuhn “encontrou do outro lado”?
Primeiramente, Popper ao dar relevo a essa temática – a comunidade científica
– introduziu a dimensão da intersubjetividade de uma forma mais contundente
naquilo que, segundo as aspirações neopositivistas, seria uma evidência lógica, do
próprio pensamento; em outros termos, segundo os neopositivistas, se seguidas
corretamente as etapas – ou o método científico - sempre chegaríamos a resultados
consensuais, pelo menos essas eram em grande parte as aspirações dos teóricos
do círculo de Viena. Uma vez seguido o “método científico” – lembremos que o
método tido como tal teria de ser o método das ciências naturais – os resultados
produzidos seriam inequívocos.
Popper começa uma insurgência contra essa dimensão de certeza ao propor um
constante “patrulhamento” da comunidade de cientistas, que deveria buscar sempre
novos testes, novas contraprovas para as teorias, evitando uma corroboração
precipitada, ou pelo menos apressada, de determinadas proposições. Aqueles que
se posicionam de forma mais alinhada com a abordagem de Kuhn ainda perceberão
como tímida a insurgência popperiana, afinal se há necessidade da confirmação
por parte de outros cientistas da descoberta feita por um membro da comunidade,
essa descoberta não é absolutamente evidente e/ou inequívoca, principalmente se
pressupormos que em vários casos a teoria pode não se confirmar.
A pergunta que se coloca: essa ausência de confirmação foi por limitações teóricas-
técnicas daquele pesquisador em particular? O fato de surgir uma nova explicação
para um fenômeno correlato ou mesmo um novo aparato (tecnologia) que permitiu
extrair dados que antes não eram acessíveis foi o único obstáculo para aquele
pesquisador cuja teoria fora rejeitada posteriormente? Considerando seus pontos de
saída em suas pesquisas, o ponto de chegada não poderia ser nenhum outro?
Se assumirmos as premissas anteriores do neopositivismo, a resposta seria que
se o pesquisador cumpriu corretamente as etapas do método, então há um ponto
de chegada “mais correto”; saindo do ponto A, o pesquisador é praticamente

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“empurrado” para atingir o resultado B.

A premissa do falseacionismo é que essa chegada deve ser revista e analisada


sobre novos aspectos, novos ângulos; situações previstas pela teoria devem ser
testadas à exaustão, pois o pesquisador pode ter deixado “algo passar” e com
isso o resultado pode ser diferente do esperado, o que implica ou a correção dos
enunciados da teoria ou mesmo abandoná-la.

A discordância entre pesquisadores a respeito das teorias, o dissenso produzido


por determinados enunciados, relevou uma pista para o pensamento kuhniano, pois
se um pesquisador “deixou algo passar” por limitações da época, essas “limitações”
são apenas de ordem técnica? Foi ausência de tecnologia ou desinteresse ou, por que
não, preconceito que afastou o pesquisador de determinada linha de investigação?

Se o sujeito-pesquisador propõe algo que entra em descordo com o restante da


comunidade científica, qual a fonte desse desacordo? Por que o sujeito-pesquisador
erra? Ou se ele está certo em suas descobertas, então por que a comunidade errou
em não compreendê-las? Ou ainda, o caso mais extremo, aplicando os critérios
conhecidos e reverenciados pela metodologia científica, como é possível a questão
permanecer em aberto, sem termos a certeza de que a novidade proposta pelo
sujeito-pesquisador está correta ou se que está correto o contra-argumento da
comunidade rejeitando a proposta?

Nesse território, a análise da evolução/transformação do conhecimento científico


começa a flertar com elementos que não são exatamente racionais: preconceito,
interesse, convencimento etc. Ou seja, há uma dimensão não racional – e por que
não dizer até não científica – junto ao próprio processo científico. Isso traz para
o palco da discussão componentes que fariam parte de uma análise sociológica e
até psicológica em relação à descoberta científica. Para Thomas Kuhn, está posto
o papel da História nessa dinâmica de transformação do conhecimento científico,
o que certamente causa profunda estranheza para aqueles que defendem uma
evolução científica mais “pura” pela acumulação linear dos conhecimentos.

Justamente por isso, é adequada a definição do pensamento de Thomas Kuhn:


“É ambicioso o projeto kuhniano: ir da história da ciência para a epistemologia
passando por generalização sobre as condições psicossociais que tornam possível
o fazer ciência.” (OLIVA, 1994, p. 68).

A partir desse escopo, Kuhn se assume como muito mais historiador da ciência
do que filósofo da ciência, pois sua proposta busca se diferenciar de construções
idealizadas sobre os métodos de justificativa científica, incluso abrir caminho para
se investigar os elementos extrajustificacionais que estariam presentes no processo
(conf. OLIVA, 1994). Trata-se de uma leitura que não buscará nenhum cânone
metodológico que diga como a ciência deve evoluir, e mais, descrever como ela
evoluiu influenciada por fatores intra e extracientíficos.

Kuhn (idem, 1994) rejeita que a descrição da dinâmica de desenvolvimento da


ciência esteja completamente confinada em etapas como:

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UNIDADE Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

»» P1: Formulações de problemas.


»» TT: Teorias propostas para a solução dos problemas.
»» EE: Eliminação dos erros que possam surgir nas teorias.
»» P2: Novos problemas surgem.

E a repetição virtuosa desse círculo.

No entendimento kunhiano, esse modelo mais idealizado deixa de fora a


competição inicial entre várias teorias na fase inicial de maturação da ciência, e
também induz, erroneamente, à crença de que a ciência muda a cada momento as
suas formulações, de acordo com a necessidade e problemas novos surgidos. A leitura
histórica das transformações do pensamento científico por parte de Kuhn aponta
para momentos de enrijecimento, quando o aparecimento de novos problemas
não modifica substancialmente o núcleo de teorias daquela área para explicação
dos fenômenos estudados, ou para momentos de ruptura, quando o núcleo teórico
utilizado é colocado em xeque e passa a demandar novas construções teóricas.

Por isso Kuhn separa o momento em que, segundo ele, uma ciência está na
condição de protociência, ainda lutando para estabelecer um eixo de entendimento,
um consenso inicial, sobre o objeto da própria ciência e o caminho para sua
investigação; é o momento posterior quando esse eixo se torna nítido.

O momento dessa “nitidez” é nomeado pelo pensador como ciência normal.


Das páginas de A estrutura das revoluções científicas: “Neste ensaio, “ciência
normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações
científicas passadas” (KUHN, 2011, p. 29).

Nesse contexto, o autor estadunidense menciona os grandes nomes que


contribuíram para a ciência, desde Aristóteles, passando por Ptolomeu, Newton
Franklin, Lavoisier e assim por diante, e ainda segundo o autor:
[...] Suas realizações foram suficientemente sem precedentes para atrair
um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas
de atividade científica dissimilares. Simultaneamente, suas realizações
eram suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas
para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência.
(KUHN, 2011, p. 30)

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Figura 2 - Isaac Newton Figura 3 - Antoine Lavosier Figura 4 - Benjamim Franklin
Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons

Considerando essas duas características dessas realizações, que Kuhn dá a


denominação de paradigma. Sendo que paradigma se aplica à ciência normal...

Ou seja, em um estágio inicial chamado de protociência ainda não há


paradigma, justamente porque os praticantes, os interessados naquele tipo de
busca de conhecimento que ainda está se formando não chegaram a um consenso
claro sobre os “limites” de seu campo de pesquisa e tampouco como deve ser
realizada essa pesquisa.

Lembremos que as aspirações kuhnianas estão mais atreladas a um esforço


para descrever uma dinâmica de desenvolvimento e mudança, no que se refere
ao pensamento científico, e menos a um esforço de elaborar um receituário que
“promova” a protociência para a condição de ciência normal; esse tipo de projeto
é melhor identificado com o positivismo clássico.

Então, seguindo uma dinâmica histórica e não apenas um consequencialismo


lógico, surge uma teoria que consegue – ora mais rápido, ora mais lentamente –
sobrepujar todas as outras teorias concorrentes, e isso se dá com o aumento da
adesão dos praticantes da, naquele momento, protociência. Com essa progressiva
adesão, a teoria nova ganha hegemonia junto ao grupo de praticantes; quando
alcança esse patamar, a teoria nova torna-se paradigma da área.

A partir do ponto em que se estabeleceu um paradigma – sempre considerando


a adesão em massa – junto aos estudiosos de uma determinada área, começa um
movimento de autoconsolidação, pois os estudiosos que adotaram o paradigma
ensinarão seus discípulos através dele, escreverão livros divulgando e defendendo
essas ideias. Aparecerão os manuais introdutórios e, também eles, ajudarão a
divulgar as teorias – agora dominantes.

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UNIDADE Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

Fonte: iStock / Getty Images

Assim sendo, podemos retomar o trecho inicial com o qual abrimos essa unidade.

Ao se referir aos “manuais que a cada nova geração” cumpre tarefas pedagógicas
e persuasivas, Kuhn não está tomando partido pelo antididático, ou pelo relativismo
infantil que ao primeiro contato com a ideia de paradigma começa a gritar contra
todo conhecimento científico, acusando-o de tendencioso ou de falso.

A tratativa é de que o conhecimento tende a se formar não apenas por regras


lógicas internas, como também sendo influenciado pela capacidade persuasiva de
seu discurso. Uma teoria com grande poder explicativo e grande força de persuasão
tende a se estabelecer como paradigma dominante, e assim permanecerá sem
data prévia de validade, até um momento – não programado – em que uma nova
proposição (fruto tanto de problemas não explicados como da genialidade do
proponente) ganhe força e passe a ocupar ou pelo menos a deixar a comunidade
de praticantes com uma dúvida severa sobre o paradigma vigente.

Esse momento, no limiar da transformação do conhecimento, quando o


paradigma anterior começa a perder força, é compreendido no pensamento
kunhiano como momento de crise.

Vamos recorrer a outro exemplo dado pelo próprio Kuhn oriundo da astronomia:
O descobrimento de Urano por Sir William Herschel [...] Em pelo menos
dezessete ocasiões diferentes, entre 1690 e 1781, diversos astrônomos,
inclusive vários dos mais eminentes observadores europeus, tinham visto
um estrela em posições que, hoje supomos, devem ter sido ocupadas
por Urano nessa época. Em 1769, um dos melhores observadores desse
grupo viu a estrela por quatro noites sucessivas, sem contudo perceber
o movimento que poderia ter sugerido uma outra identificação. Quando
doze anos mais tarde Herschel observou pela primeira vez mesmo objeto,
empregou um telescópio aperfeiçoado, de sua própria fabricação. Por
causa disso foi capaz de notar um tamanho aparente de disco que era,
no mínimo, incomum para estrelas. Algo estava errado; em vista disso
ele postergou a identificação até realizar um exame mais elaborado. Esse
exame revelou o movimento de Urano entre as estrela e por essa razão
Herschel anunciou que vira um novo cometa! Somente vários meses depois,
após várias tentativas infrutíferas para ajustar o movimento observado a
uma órbita de cometa, é que Lexell sugeriu que provavelmente se tratava
de uma órbita planetária. [...] (KUHN, 2011, p. 152).

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Para tirarmos um melhor proveito do exemplo dado pelo autor, devemos con-
siderar que a observação científica enquanto ato de ver não está isenta da visão
de mundo dominante; os conceitos prévios que o cientista carrega do paradig-
ma anterior muitas vezes torna-se obstáculo para uma visão distinta sobre o fe-
nômeno novo, a tal ponto de o “novo” não ser imediatamente reconhecido com
algo inédito, já que o esforço inicial é para enquadrar a “novidade” dentro das
classificações já conhecidas.

Kuhn utiliza como analogia a psicologia da gestalt para explicar a descontinuidade


de uma forma de ver um fenômeno em relação a uma forma diferente.

Para melhor nos posicionarmos nesse ponto, utilizaremos aquele velho conhecido
dos manuais de psicologia, que é o exemplo dos vaso/rostos:

Nesse contexto, o truque permitido pelo jogo ótico nos permite focar
alternadamente do fundo escuro (dois rostos se encarando) para o fundo claro (um
vaso no centro da imagem).

Para Kuhn, a mudança de um paradigma para o outro é um tipo de mudança


visual (gestáltica); essa reversão gestáltica deve ocorrer de forma súbita, ou então
ela não ocorre (Conf. KUHN, 2011, p. 192). Ou melhor, não há mudança por
acumulação lógica e gradual que faz um paradigma se metamorfosear aos poucos
até torna-se outro, tal como a mudança de matizes de cores no horizonte durante a
aurora. Assim como no exemplo da figura dos rostos, a mudança de foco faz “surgir”
uma figura diferente; é essa mudança de perspectiva que modifica o paradigma
utilizado pelo cientista. Note-se que ao brincarmos com a figura podemos alternar
o foco e vermos ora os rostos, ora os vasos, indo de uma perspectiva para outra,
várias vezes. No caso do paradigma, a descontinuidade não permitiria esse “ir e
vir” de uma teoria para outra, pelo menos não naquilo que Kuhn nomeou como
sendo uma ciência normal.

Mais precisamente: “A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona
novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites
do paradigma frequentemente nem são vistos.” (KUHN, 2011, p. 44 - 45).

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Isso ajuda a compreender melhor por que no exemplo dado pelo próprio Kuhn,
Urano começou como “estrela”, vira “cometa” e depois é finalmente reconhecido
como planeta. E assim se manterá, até o momento em que uma mudança
paradigmática no campo da ciência astronômica leve a outra categorização.

Lembremos, então, que em sua fase de protociência (ou pré-ciência) não há


paradigma dominante. Nesse momento, as querelas vão, às vezes, para além
das discussões sobre o método e afetam até a delimitação do objeto de estudo.
Por isso, nessa fase estão presentes discussões de natureza mais filosófica acerca
de quais deveriam ser os fundamentos da ciência que vai surgir. Portanto, antes
da cristalização do paradigma, os praticantes da ciência se veem às voltas com
questões de natureza metafísica, tudo começa com:

»» “Quais as entidades fundamentais que compõem o universo?”

A partir disso:

»» “Que interrogações hipotéticas podem ser legitimamente formuladas a


respeito de tais entidades?”

E, finalmente:

»» “Que técnicas podem ser empregadas na busca por soluções?” (Conf.


OLIVA, 1994, p. 77).

Superada essa fase, vigora a ciência normal. Os praticantes da ciência não


mais voltarão seus esforços para discutir fundamentos, tampouco irão competir
sobre aspectos metodológicos, como tais aspectos serão considerados postos. Suas
energias serão direcionadas para a resolução de problemas visíveis sobre a luz do
paradigma estabelecido.

Mas como mencionamos há pouco, há o momento de ruptura de descontinuidade,


quando as coisas param de se encaixar, quando parece ser necessária uma mudança
de foco. Mas isso somente ocorre, segundo Kuhn, quando o paradigma mergulha
em profunda crise, de tal intensidade que podemos falar em um quase recuo para
as condições de protociência. Não se trata de um recuo completo, pois há uma
história de realizações anteriores, algo que também a protociência não teria, visto
que o campo de pesquisa ainda não havia se formado com clareza. De qualquer
maneira, no momento em que a crise pressiona a ciência normal, ressurgem os
questionamentos de ordem filosófica, novas formulações começam a aparecer como
alternativa ao paradigma em crise. A comunidade científica se fragmenta entre
os defensores do velho paradigma e os grupos que lançam novas possibilidades
teóricas. Esse momento Kuhn nomeia como etapa de pesquisa extraordinária.

Aqui é importante marcar uma diferenciação que o pensador estadunidense faz


em relação ao pensador austríaco.

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Para o falseacionismo, o monitoramento – inclusive por parte da comunidade
científica – era fundamental para afastar dogmatismos precipitados sobre certas
teorias. Para Thomas Kuhn, é um equívoco acreditar que essa postura acontece
o tempo inteiro. Seria, segundo ele, aceitar que a ciência jamais alcançaria uma
normalidade após deixar a condição de protociência, seria uma transformação
pequena em relação a esse estágio inicial; o conhecimento se encontraria em
permanente crise, a chamada pesquisa extraordinária seria, então, uma “pesquisa
regular”, o paradigma estaria sempre sob cerco.

A própria ideia kuhniana de paradigma pressupõe que o cerco cessa, que


os praticantes da ciência abaixam suas armas teóricas, firmam o acordo de paz
do consenso e passam a dedicar suas forças apenas à resolução dos problemas
apontados pela nova ciência normal; parodiando com o exemplo gestáltico:
deixam de encarar os rostos e se concentram no vaso...

Seguindo um diagrama simples, o movimento de transformação científica


tenderia a seguir:

Protociência → Ciência Normal → Crise → Pesquisa Extraordinária → Nova


Ciência Normal → Nova crise → Nova pesquisa extraordinária → Novíssima
Ciência Normal → ...

Note-se que o estágio de pré-ciência (protociência) somente ocorreria uma vez,


antes da delimitação do campo de pesquisa; a partir daí seriam sucessões entre a
formação de um paradigma, sua crise e a substituição por um novo paradigma.
Por fim, devemos mais uma vez destacar que apesar de montar um quadro para
a transformação da ciência (ou uma análise sobre uma estrutura de revoluções
científicas), Kuhn não buscou um receituário que fizesse as áreas que, em seu
modelo descritivo, fossem classificadas de protociência mudassem ou fossem
promovidas para ciência normal.
Suas pesquisas o levaram ao contato com as ciências sociais – e as ciências
humanas de uma maneira mais geral – áreas de conhecimento que ainda
preservam um vigoroso debate sobre fundamentos e métodos, convivendo com
paradigmas distintos. Mesmo assim, ele resistiu à tentação de criar um score de
pontos a ser dado para essa ou aquela ciência competir numa espécie de torneio
pela “maior cientificidade”.
Parece-nos razoável a conclusão de Alberto Oliva acerca do quadro
desenhado por Kuhn: “São tipo-ideias pela imaginação criadora que muito
contribuíram para ajudar a esclarecer esse obscuro objeto da razão chamado
ciência” (OLIVA, 1994, p. 102).
Mas, nesse debate filosófico acerca da razão científica, qual o espaço, qual a
condição das ciências humanas? Essas áreas do conhecimento que parecem
escapar a todos os esforços até de compreensão da dinâmica da ciência, visto que
nem positivistas, nem falseacionistas, e como acabamos de ver, nem a categoria de
paradigma de Kuhn parece apreender completamente?

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UNIDADE Thomas Kuhn e as Transformações nos Paradigmas da Ciência

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Filosofia da Ciência: Introdução ao Jogo e a suas Regras
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.

Ciência: Conceito-chave em Filosofia


FRENCH, Steven. Ciência: conceito-chave em Filosofia. Trad. André Klaudat. Porto Alegre:
Artmed, 2009.

O método das Ciências Naturais


GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método das Ciências Naturais. - 1ed. São Paulo:
Ática, 2010.

A Filosofia no Século XX
LACOSTE, Jean. A Filosofia no século XX. Tradução de Marina Appenzeller; revisão técnica de
Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1992.

Filosofia da Ciência e da Tecnologia


MORAIS, Regis de. Filosofia da Ciência e da Tecnologia. Introdução metodológica e crítica
[livro eletrônico]. Campinas: Papirus 2013.

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Referências
ARAÚJO, Inês Lacerda. Curso de teoria do conhecimento e epistemologia.
Barueri: Minha Editora, 2012.

FEIJÓ, Ricardo. Metodologia e filosofia da ciência: aplicação na teoria social e


estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2003.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz


Vianna Boeira e Nelson Boeira. 10 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de


Fátima Sá Correia et al. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

OLIVA, Alberto. Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade


científica. In: PORTOCARRERO, Vera (Org.). Filosofia, história e sociologia das
ciências I: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994.

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