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18, no 1, 17 – 30
Resumo
O objetivo deste estudo de caso foi compreender o fenômeno da violência física em uma família
pelo viés dos pressupostos da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Aspectos
sistêmicos foram identificados, quando relacionados às pessoas, aos processos, aos contextos de
desenvolvimento e ao tempo (história de vida e rotinas familiares) e aos fatores de risco e de
proteção existentes. Os resultados obtidos por meio de entrevistas individuais e em grupo com a
família e por depoimentos de profissionais da rede mostraram que as interações eram marcadas
por severas agressões corporais e verbais, utilizadas como estratégias de comunicação e como
forma de relacionamento entre todos os seus membros. A violência era resultado de diversos
fatores, como das características pessoais e do grupo, da rede de apoio escassa e da influência
cultural e da mídia. Este estudo de caso revela como profissionais que atuam na prevenção e
intervenção com famílias violentas podem identificar aspectos relevantes em uma análise
ecológica do fenômeno da violência.
Palavras-chave: Violência Intrafamiliar, Análise Ecológica, Vulnerabilidade e Risco.
Abstract
The objective of this case study was to evaluate a physically violent family, using the
Bioecological Theory of Human Development to identify risk and protective factors. Systemic
aspects related to the variables such as: the person, the processes, the developmental contexts
and time (life history and family routines) were identified. Results obtained through interviews
of family members, and professionals, showed that the interactions were marked by severe
corporal and verbal aggressions, which were used as communication strategies, and as a way to
establish contact among all members. Family members indicated that violence was seen as
natural, what hindered the acceptance of change. The case study illustrates how professionals
who work in prevention, and intervention with violent families may identify relevant aspects in
a systemic analysis of the violence phenomenon.
Keywords: Intrafamiliar Violence, Ecological Analysis, Vulnerable and Risk.
existentes no contexto familiar (Cecconello, 2000; De Antoni, Barone, & Koller, 2006;
De Antoni, & Koller, 2003; Zottis, Algeri, & De Antoni, Teodoro, & Koller, 2009).
Portella, 2006). Segundo dados da Secretária Esse tipo de interação familiar deve ser
Especial de Direitos Humanos da analisado como um fenômeno complexo e
Presidência da República do Brasil multicausal, pois é influenciada e influencia
(SEDH/PR), a negligência e o abuso físico outros contextos. A perspectiva sistêmica
concentram o maior número de ligações permite essa compreensão, com base em
recebidas pela Central de atendimento uma abordagem multifacetada na qual o
(Disque Denúncia Nacional de Abuso e problema é visto de forma processual e
Exploração Sexual Contra Crianças e dinâmico, envolvendo o contexto, a história
Adolescentes, o Disque 100), que acolhe e as pessoas como protagonistas e
denúncias de violência contra crianças, observadores do fenômeno. Uma das teorias
principalmente em relação ao abuso sexual. sistêmicas mais recentes da Psicologia é a
Entre 2003 e junho de 2009, 35% foram de Teoria Bioecológica do Desenvolvimento
casos de negligência, 34% de violência Humano (TBDH), proposta por Urie
psicológica e física e 31% de violência Bronfenbrenner (1979/1996, 2004). Essa
sexual. abordagem define o desenvolvimento
O abuso físico ou a violência física são humano como um fenômeno de
facilmente diagnosticados quando há, em continuidade e mudanças nas características
decorrência dessas agressões, lesões biopsicológicas dos seres humanos, tanto no
orgânicas, como as cutâneas, ósseas, indivíduo como no grupo. Esse processo
oculares e neurológicas. Queimaduras, estende-se pelo ciclo vital, pelas gerações,
hematomas, fraturas são alguns exemplos. pela história passada e futura, sendo o
Os critérios de identificação dessa violência desenvolvimento compreendido como
são descritos por manuais elaborados pelo contínuo e processual.
Ministério da Saúde brasileiro e pela Belsky (1993) salientou que a etiologia
Organização Mundial de Saúde. No entanto, dos maus-tratos deve ser considerada a partir
atualmente, observa-se que os pretensos de fatores históricos, contemporâneos,
cuidadores de crianças e adolescentes se culturais, situacionais, além de atribuídos às
utilizam cada vez mais de materiais que não características dos pais e dos filhos. O
deixam marcas físicas visíveis (De Antoni, modelo teórico-metodológico de
2005), dificultando a identificação, sua Bronfenbrenner (2004) abrange todas essas
notificação e o encaminhamento devido da dimensões, pois envolve quatro núcleos
situação. inter-relacionados dinamicamente na
As famílias com abuso físico procuram compreensão dos fenômenos: a Pessoa, o
justificar tal prática e possuem certa Processo, o Contexto e o Tempo (Modelo
peculariedade entre si. A maioria das PPCT). Esse modelo possibilita conhecer a
famílias demonstra a crença nos valores interação desses núcleos e os aspectos que
autoritários e na asserção de poder dos pais envolvem o funcionamento familiar.
sobre os filhos (Cecconello, De Antoni, & O núcleo Pessoa, ou também
Koller, 2003; Oates, Ryan, & Booth, 2000). denominado “eu ecológico”, representa o ser
Muitas vezes, o abuso é justificado como humano ou o grupo familiar em
uma prática disciplinar, e o poder decisório desenvolvimento por meio das suas
está centralizado no abusador (Cecconello, características biológicas, psicológicas,
De Antoni, & Koller, 2003; De Antoni, sociais e por suas interações. A família pode
2005). Estudos realizados com famílias com ser considerada uma unidade relacional alvo,
história de abuso físico revelam que os pais e ser analisada como uma entidade particular.
violentos tendem a desencadear menos O núcleo Processo relaciona-se à
situações de interação com seus filhos do maneira como a pessoa ou a família significa
que pais não abusivos. Demonstrações de suas experiências e interpreta o ambiente ao
carinho e afeto são raras e predomina um longo de seu ciclo vital. O processo é o
sentimento de rejeição entre os familiares. A motor do desenvolvimento e ocorre por
relação entre pais e filhos é marcada por meio do desempenho de papéis, das
hostilidade, ausência de reciprocidade e atividades diárias exercidas e das inter-
desequilíbrio de poder (De Antoni & Koller, relações estabelecidas em determinado
Teoria bioecológica e a violência familiar 19
comentou sobre sua mãe lhe bater com muitos bens materiais. Já a comunidade em
arame farpado, fincando-o na cabeça. que viviam foi descrita como “um lugar
Revelou, também, o homicídio de seu pai onde há tráfico de drogas”. A família não
cometido por sua mãe, sem querer dar mais tinha contato com outros parentes.
detalhes do acontecimento. Apenas A rotina familiar era marcada pelo
comentou que “foi sem motivo aparente e individualismo de atividades. Os pais
que o pai encheu o saco”. Sua mãe ficou trabalhavam na rua das 16h às 21h. Rambo
presa durante três meses e que “não deu em acordava ao meio-dia, almoçava e ia para a
nada o processo judicial”. escola. Retornava pelas 15h30 e assistia aos
Rui comentou que não teve pai e programas na televisão até as 4 horas da
descreveu sua mãe como uma pessoa manhã, inclusive via filmes pornográficos e
comunicativa. Acrescentou que nas famílias de violência. A mãe esperava Rambo
que vivem em cidades interioranas, a retornar para sair ao trabalho. Temia que, se
agressão física é uma prática aceita e faz não houver alguém em casa para impedir,
com que os filhos respeitem os pais. Van poderia “saquear a casa!”. Rambo
Justificou, portanto, o fato de a mãe lhe tinha, então, a função de proteger os bens da
bater como: “Lá no interior não é problema família contra os abusos e furtos do irmão.
se sempre bateu (pais). O problema é que Van não tinha horários para sair ou chegar e,
quando eles (pais) acham que gente tá geralmente, passava a noite fora.
errado, né? Pelo menos as pessoas não Ultimamente estava impedido de entrar na
erram muito que nem agora... Nêgo véio casa e, portanto, estava dormindo na rua. Foi
com 36, 40 anos apanha. Então, eu até acho mordido por ratos e apresentava desnutrição
bonito isso aí, que, pelo menos, a pessoa e diversos hematomas e escoriações na
respeita a família, né?”. última vez que falou com a mãe.
Quando foram morar na capital, Rui levava, eventualmente, Rambo ao
passaram privações econômicas e até fome. bar onde jogavam sinuca. Aos sábados, o pai
Aos 20 anos, Mara engravidou pela segunda saia para trabalhar e a mãe ficava limpando
vez de um menino, mas a criança teve a casa. Aos domingos, os três saiam para
infecção generalizada e faleceu quando tinha almoçar em restaurantes e, quando estavam
aproximadamente um ano. Nunca em casa, cada familiar permanecia em um
pronunciaram o nome dessa criança em cômodo assistindo à televisão. Quando
todas as entrevistas. Então, como desejava faziam as refeições em casa, cada um se
uma filha, dois anos depois, aos 23 anos, recolhia individualmente aos seus
engravidou novamente e, assim, nasceu dormitórios para comer “diante da sua
outro menino: “Quando o Rambo veio, nós televisão”. Mara comentou na frente de
já estávamos com a nossa vida bem”. Rambo, e este confirmou sua observação, de
A família Peres, segundo o relato dos que o menino sentia falta de um contato
pais, era de nível socioeconômico médio. O mais próximo com o pai: “Antigamente, ele
casal trabalhava como vendedor ambulante (Rui) pegava o guri e saía pra jogar bola,
de um produto ilícito. Van não trabalhava e, com os dois (Rambo e Van). Ia comprar uns
segundo a família, por ser usuário de drogas, tênis... ou iam ao bar tomar refri, mesmo
realizava assaltos na rua ou vendia os tendo refri em casa”. A mãe mencionou não
objetos de casa para adquiri-las. usufruir de momentos de lazer com a família
O pai estudou até a quinta série do ou com o marido.
ensino fundamental e a mãe era analfabeta.
Van parou de estudar na quinta série, e
Rambo cursava a turma de progressão (ciclo A manifestação da violência na
AB), que equivale à primeira e à segunda
família
série do ensino fundamental, em uma escola
pública. Os pais não incentivavam os A primeira intervenção do Conselho
estudos de Rambo. Frequentavam, Tutelar na família foi por uma denúncia da
eventualmente, uma igreja neopentecostal e tia de Mara, quando Van tinha oito anos. Os
informaram que suas vidas “fermentaram” pais informaram que Van era um bom aluno
com essa adesão, isto é, conquistaram a até os 14 anos, mas, nessa idade, ele
partir daí maior estabilidade financeira e abandonou os estudos. Esteve internado em
22 De Antoni, C., & Koller, S. H.
um local de recuperação para tratamento que eles falam na escola, eu não entendo!
para drogadição e duas vezes na antiga Que em casa ele não faz nada disto, dizem
FEBEM. Os pais revelaram que: “Ele rouba, que na escola ele bate nos outros, pega pelo
ele cheira, ele fuma, não podemos bater pescoço, eu não acredito nisto”. A mãe
mais, porque o Conselho se meteu”. defendeu: “Dizem que levou uma faca, mas
O fato de o CT não os deixar bater no não tem faca nenhuma, a única coisa que ele
adolescente ou de os impedir de trancar Van leva é a tesoura, todas as crianças levam
em casa, na visão do casal, desencadeou a tesoura pra cortar papel”. Segundo
situação de delinquência do filho. Em informações da professora da escola e do
relação a Rambo, os pais receberam a prontuário, Rambo repetia várias vezes que:
primeira queixa sobre o comportamento “Eu não sei por que eu nasci, só para
agressivo na escola quando este estava na obedecer aos outros e apanhar”. Durante o
educação infantil. O CT foi acionado e atendimento psicológico, Rambo contou que
acompanhava o caso desde aquela época. O colocou um brinco e que seu pai ameaçou
menino frequentava a escola no turno da “arrancar sua orelha” se não o tirasse.
tarde e permanecia lá apenas até o horário de A relação entre os pais e Rambo,
recreio, sendo diariamente dispensado pela segundo a percepção dos pais, “é muito
professora. O motivo alegado pela boa”. Para o pai: “Rambo é uma criança
professora da escola para mandá-lo embora calma, é prestativo, até auxilia a mãe que
nesse horário é que ele se tornava está com o braço quebrado. Conversamos
incontrolável, não tinha limites, não aceitava sobre tudo, pois ele é nosso companheiro”, e
opiniões, ameaçava e batia nos colegas, não a mãe completou: “O único companheiro
prestava atenção às aulas, não obedecia à aqui é ele”, e “Tudo o que ele quer a gente
professora, não realizava as atividades dá”. Em algum momento o pai afirmou que
propostas e assediava sexualmente as fora de casa: “Ele é meio rebeldezinho, que
meninas. Os pais relataram um episódio em isto eu sei, porque eu o ensinei assim desde
que Rambo agrediu fisicamente uma pequeno”. No entanto, na família, Rambo
professora e disseram que a diretora se tinha que seguir as determinações dos pais,
queixou que ele constantemente levava uma sem questionar, de acordo com o pai: “O
faca para a escola. Segundo relato da Rambo é assim, eu grito com ele e ele chega
professora e da orientadora em reunião a ficar tremendo”. A mãe observou que: “E
realizada junto à equipe de atendimento no
o guri não pode chorar!”.
Hospital: “Rambo tornou-se um mito. Todos
têm medo dele”. A professora disse que a Sobre a criação dos filhos,
mãe batia (tapas no rosto e na boca) em consideravam que deve ser “à moda antiga”,
Rambo na frente de todos, quando este isto é, da mesma forma que seus pais agiam
tentava falar algo. Rambo contou que seus em relação a eles com rigidez e punição
colegas o chamavam de “gardenal” e que se física. Para Rui: “Os pais têm que bater com
alguém o ofendia ou a sua família, ele já um pedaço de pau, ferro, o que tiver na
partia “pra porrada”. mão”, e que: “Sempre deixo um pedacinho
A mãe revelou que obrigava Rambo a de mangueira de bobeira, um caninho
tomar água de melissa, depois do almoço, d’água, para bater nos filhos”. Para Rui:
para que ele ficasse mais tranquilo. Rambo “Os pais podem bater em qualquer parte do
achava que o “remédio” só fazia efeito até o corpo, inclusive na cabeça. O objetivo
intervalo da aula, por isso não conseguia se principal é machucar”. E continuou: “a
controlar após o recreio. Havia um impasse criança aprenderá que não deve repetir o
em relação à permanência de Rambo na comportamento”. O pai desautorizava
escola, pois tanto a diretoria, os pais dos constantemente as ordens da mãe, por
demais alunos e o próprio Rambo desejavam exemplo, a mãe castigou Rambo
a troca de escola, mas os seus pais eram restringindo-o de assistir à televisão e o pai
incisivos em mantê-lo. perguntou: “Por que você não está vendo
Os pais não concordavam com o televisão?”. Rambo respondeu: “A mãe disse
comportamento agressivo descrito e que eu tô de castigo!”. E o pai retrucou:
defendiam Rambo das acusações realizadas “Então pode ligar, porque eu tô
pela escola. O pai comentou: “Muitas coisas mandando!”.
Teoria bioecológica e a violência familiar 23
Mara e Rui falaram sobre suas em relação ao seu futuro. Julgavam que não
diferenças na forma como manifestam sua valia a pena investir em Van “em função de
agressividade. Para Rui, a mãe “vive dando ser usuário de drogas”. O pai comentou:
tapas e empurrões nos filhos”. Por outro “Van não vai ajudar nós em nada”. A mãe
lado, ele batia uma só vez: “Mas é para falou que desistiu e que temia que ele fosse
aprender!”. Mara percebeu que quando morto. A esperança de Rui era que Rambo
estava irritada com alguém, procurava interrompesse os estudos e se dedicasse à
“descarregar” na pessoa que lhe causou esse rádio comunitária que estão organizando e
sentimento. Já o marido, “explode” com ela aos negócios do pai, sendo seu sucessor.
e os filhos. Rui contra-argumentou essa
afirmativa, dizendo que: “Eu não explodo
com ninguém. Eu sou daquele tempo ainda Indicadores de Risco
que o marido é quem manda dentro de casa, Diversos indicadores de risco foram
entendeu? Se é pra tal coisa, não vai fazer, identificados nessa família utilizando-se o
não deve fazer”. O pai intitulava-se: “Sim, o modelo PPCT. Esses fatores de risco podiam
xerife da casa sou eu”. potencializar a violência naquele contexto.
Na relação com o irmão, Rambo disse De acordo com Koller e De Antoni (2004),
que sempre conversava com Van, com o os fatores compreendidos no núcleo Pessoa
objetivo de aproximar-se. De acordo com ou “eu ecológico” estão relacionados às
Mara, ela sempre escutava o diálogo deles: características biopsicossociais. Geralmente
“Bah, mano, sai da droga, os caras vão esse núcleo é o único foco de análise para
acabar te matando”. Havia também brigas um diagnóstico psicológico, com base nos
constantes entre os irmãos, com pontapés e processos intrapsíquicos e de acordo com
socos, por disputa de objetos. Para Rui, a uma visão mais tradicional da Psicologia.
maioria das brigas na família era entre os No entanto, na concepção sistêmica pode-se
irmãos e, para impedi-las, disse que pensar como se estabelecem as interações
interferia de alguma forma. (núcleo Processo) a partir dessas
Segundo relato, o casal dificilmente características individuais. Por exemplo,
conversava. As decisões eram tomadas por essa família apresentava características
Rui e quando Mara tentava contestar, comportamentais semelhantes, ao
começavam as agressões verbais e físicas. reproduzirem o mesmo comportamento
Para o casal, o principal motivo da violência (falar, vestir, gesticular). Buscavam uma
conjugal tinha origem em questões forma de identidade familiar, no entanto, os
financeiras. Já para Rambo, os motivos das membros da família Peres não eram
brigas eram diversos e, muitas vezes, não “companheiros”. Apresentavam uma atitude
estavam claros. O menino confirmou: individualista, em função da insegurança no
“Basta o pai estar de mau humor”, por ambiente familiar e do sentimento de solidão
exemplo. Os filhos buscavam interferir na ou isolamento provocado pela falta de trocas
“pancadaria deles e acabamos apanhando afetivas. Cada um isolava-se em seu próprio
também”. Sempre defendiam a mãe, e esta mundo, com sua própria televisão e sua
defendia-os. Rambo revelou que o irmão e própria dor. E isso era um reflexo do
ele pensavam em: “Pegar o pai e deixá-lo isolamento emocional vivenciado por todos.
no hospital, na próxima vez que agredir a Rambo também apresentava baixa
mãe”. Mara revelou que “apanha calada” e autoestima e autoimagem enfraquecida e,
não sabia o porquê de o marido bater nela. para lidar com isto, assumia um “papel” de
Disse que “conta até três para não revidar e forte e “valentão”, contrário aos reais
se controlar”, porque sabe que “se perder o sentimentos. A imagem que os pais
controle, pode matá-lo”. Revelou, também, possuíam de Rambo, como ser calmo,
que no início aceitava os carinhos do marido confirmava o comportamento submisso do
como forma de perdoá-lo pelas agressões, menino no ambiente doméstico.
mas que agora não queria nenhum tipo de Adicionalmente, tal imagem reafirmava que
intimidade entre eles. em outros ambientes, como na escola, sua
Os pais tinham expectativas diferentes vontade era de reproduzir um modelo de
para os dois filhos. Em relação a Van, não comportamento valorizado e semelhante aos
conseguiram expressar qualquer expectativa pais, exercendo o poder por meio da força e
24 De Antoni, C., & Koller, S. H.
sistema, seus membros empregam e trocam Koller (2003), em uma revisão da literatura,
constantemente energia, isto é, há um o estilo negligente refere-se aos pais que não
esforço físico e emocional para que o são afetivos nem exigentes, e demonstra
sistema funcione da forma que compreende distanciamento em relação ao
como esperada. Para a família de Rambo, a comportamento do filho. Os pais autoritários
manifestação do afeto amoroso, que é são rígidos e autocráticos e tendem a
idealmente esperada de uma família, era enfatizar a obediência por meio do respeito à
substituída pela agressão física. O carinho autoridade e à ordem, utilizam de punição
demonstrado por beijos e abraços inexistia. como forma de controle e não valorizam o
A mãe expressou não querer mais carinho do diálogo, a autonomia e a opinião dos filhos.
marido, que sempre ocorria após as brigas. Além disso, como no caso desses pais que
As relações eram estabelecidas por uma acreditavam na disciplina severa, havia uma
competitividade de força física, portanto, os tendência de utilizar disciplinamento
socos, tapas e pontapés estavam presentes acompanhado por ações agressivas, além do
constantemente. Essa era a forma que abuso emocional provocado pelo
usavam para tocarem uns nos outros. A comportamento do pai que desautorizava
violência servia para que as relações não constantemente as ações da esposa,
mudassem; por mais que a mãe e os filhos principalmente em relação à adoção de uma
desejassem que a violência fosse prática disciplinar restritiva, como não
minimizada, nenhuma ação era efetivamente permitir assistir aos programas da TV. Isso
realizada. Havia um desejo de revidar a podia causar certa confusão em Rambo, ao
violência com mais violência, podendo não conseguir discernir se o comportamento
chegar à aniquilação ou destruição do outro. que eliciou o castigo era passível de
Isso ficou evidente, por exemplo, na correção. Isso também reforçava a ideia de
articulação de uma estratégia entre os irmãos que a mãe não tinha controle sobre ele. Por
para “pegar” o pai. Assim, os pensamentos e outro lado, os pais não colocavam limites
os sentimentos eram pautados por intensa para os filhos. Segundo a mãe: “Ele tem
raiva. tudo, ganha tudo que quer”. A falta de
Como os atos agressivos eram orientação, de regras e de limites podia fazer
cultuados, principalmente pelo pai, como com que Rambo não avaliasse ou
forma de afirmação da sua masculinidade e desenvolvesse a responsabilidade por seus
força, em algumas situações, o motivo da atos, como também podia interferir no
agressão não estava claro para a vítima. A julgamento adequado sobre os mesmos. No
mãe, por exemplo, alegou que, muitas vezes, caso dessa família, o abuso físico era, em
apanhou sem saber a causa; o mesmo algumas situações, justificado pela adoção
parecia acontecer com seus filhos e, como de uma prática disciplinar; no entanto, essa
revelou Rambo, para apanhar bastava “o pai justificativa não se mantinha, em função da
estar de mau humor”. Percebe-se que a falta frequência e pelos motivos que ocasionavam
de um modelo parental adequado pode levar a violência.
ao risco de aceitação dessa prática como Outro fator de risco existente nesse
“educativa” e “natural”. Os pais tinham a microssistema era o casal ter tido os filhos
crença que tal ação era eficiente, talvez quando ainda adolescente (Levandowski, De
porque tinham um efeito imediato ao cessar Antoni, Koller, & Piccinini, 2002) e,
o comportamento indesejado dos filhos. No conforme revelado, muitos aspectos
entanto, mostrou-se ineficaz em longo prazo, relacionados à própria sexualidade e
pois fazia-se necessário utilizá-la parentalidade eram desconhecidos. Esse
repetidamente. risco associado a outros indicadores pode ter
A prática disciplinar adotada por essa favorecido o início da violência. A falta de
família era a coercitiva, pela qual os pais conhecimento sobre gravidez, a ausência de
ameaçavam e puniam fisicamente seus filhos orientadores, a imaturidade, o despreparo
com o intuito de corrigir comportamentos para assumir seus papéis de pai e mãe e a
indesejados, mas nem sempre incorretos. necessidade de formar a identidade podem
Adotavam um estilo parental negligente em ter incrementado o fato de idolatrar
relação a Van, e autoritário em relação a personagens e a valorização das ações
Rambo. Para Cecconello, De Antoni e agressivas.
26 De Antoni, C., & Koller, S. H.
dessensibilização frente aos comportamentos uso de atos agressivos servia para impor seu
destrutivos. As pessoas parecem ficar desejo e não ser questionado em suas
indiferentes ao assistir uma cena real de atitudes. Ao se denominar o “xerife”,
violência dirigida a outro ou ter uma atitude assumia o poder de quem detém a liberdade
de omissão em relação à vítima, como nos ou o confinamento do outro, isto é, o poder
casos de relato de bullying de Rambo na de decidir sobre o outro. O sistema familiar
escola (Koller & De Antoni, 2004; Njaine & tinha, então, que funcionar da forma como ele
Minayo, 2004). Esse aspecto estava determinava. A esposa também se submetia a
relacionado às variáveis de saúde, em nível essa crença, quando apanhava “calada”.
macrossistêmico social e ambiental. O pai Outra crença relacionada aos valores
sugeriu que os filhos nasceram e foram culturais, portanto, macrossistêmica, é a
criados para serem violentos e, desvalorização do estudo formal. O pai
principalmente, “rebeldezinhos”, isto é, para considerava que Rambo não precisava mais
confrontarem o sistema social vigente. estudar, que o tempo poderia ser mais bem
Portanto, necessitam corresponder a esse empregado se ele trabalhasse. A família
papel atribuído, como o comportamento de acreditava que o estudo não era importante,
Van por roubar, usar drogas, abandonar a pois em sua visão, nem para obter ganhos
escola, portar ilegalmente uma arma, entre financeiros era necessário, como se o único
outros, e de Rambo, de agredir colegas e objetivo de quem estuda seja o de agregar
professores. valor material. Os pais, então,
Além disso, existia nessa família uma impossibilitavam ao filho adquirir novos e
crença sobre a impunidade, isto é, de que diferentes conhecimentos advindos das
não serão alvos de ações, punições ou informações escolares e das trocas efetuadas
processos por seus atos. Talvez essa crença nesse ambiente.
seja reforçada por aspectos culturais
macrossistêmicos que associam a ideia de
haver na sociedade um alto índice de Indicadores de Proteção
criminalidade e insuficientes políticas Os indicadores de proteção nessa
públicas para solucionar esse problema. família foram escassos. Em nível
Portanto, os familiares manipulavam microssistêmico, a estabilidade econômica
informações, exerciam atividades poderia favorecer o acesso a bens de
profissionais ilícitas, confrontavam ordens consumo e certo conforto material, evitando
judiciais e instituições legais. Comentavam reviverem a situação traumática de passar
de forma natural, sem segredos ou pudores, fome, ocorrida no passado. Em termos do
a existência de brigas, conflitos, lutas, exossistema, encontrou-se uma rede de
furtos, e outras agressões no contexto serviços que era oferecida e atuava em
familiar. Parecia que a família não conjunto no sentido de melhorar a qualidade
qualificava a violência de forma negativa, de vida de toda a família e de cada um de
como transgressão ou violação de Direitos seus membros. A promotoria, a escola, o
Humanos, mas como um evento cotidiano Conselho Tutelar e o Hospital eram partes
no seu contexto de desenvolvimento. do mesossistema que buscavam
Outra crença macrossistêmica presente dinamicamente promover proteção a esse
nessa família é a cultura patriarcal, grupo. Adicionalmente, a afiliação religiosa
conhecida popularmente como “machismo”. e o investimento na comunidade poderiam
Segundo DeSouza, Baldwin e Rosa (2000), favorecer a essa família o senso de
o “machismo” é um conjunto de condutas, pertencimento, o que poderia auxiliá-la na
constituídas, aprendidas e reforçadas estruturação de uma rede de apoio social
culturalmente. Está relacionado às mais bem estruturada e mais funcional no
características e ao desempenho de papéis futuro.
instituídos ao gênero masculino na cultura
latina, e forma uma ideologia que promulga
que é bom e até natural que os homens Considerações finais
controlem o governo, as atividades públicas A família Peres também se tornou um
e a mulher. O pai acreditava que o outro “mito”, assim como Rambo foi descrito pela
tinha que ceder às suas vontades, portanto, o professora. As atividades ilícitas, o
28 De Antoni, C., & Koller, S. H.
isolamento social e a forma como se vestiam psicoterapia com Rambo e a terapia familiar,
e se comportavam reforçavam e fomentavam a família abandonou o tratamento. Segundo
esse mito entre eles mesmos e nos informações obtidas pela rede, a família
microssistemas em que transitavam. A mudou de município, sem deixar qualquer
família valorizava a imagem de destemidos, forma de contato. Esse fato evidencia a
rebeldes e violentos e reproduzia esses dificuldade da família em lidar com uma
comportamentos em todos os contextos em possível mudança em suas crenças e no seu
que se inseria, talvez como uma forma de comportamento. Assim, demonstra sua
proteção ao meio social, que, na sua vulnerabilidade frente a tantos fatores de
percepção, sempre fora hostil. Assim, ao se risco, que impedem o desenvolvimento de
sentirem poderosos, lidavam com as um processo de resiliência familiar e
humilhações sofridas em sua história compactuam com a perpetuação da
familiar. violência. Também evidencia as limitações
O modelo PPCT promoveu uma visão do trabalho dos profissionais, que atuam
do fenômeno da violência nessa família. muitas vezes de forma isolada, sem uma
Este estudo de caso revela como estrutura de rede, que possa exercer tanto o
profissionais que atuam na prevenção e acompanhamento, como o controle jurídico
intervenção com famílias violentas podem e social.
identificar aspectos relevantes em uma Sugere-se que novos estudos sejam
análise sistêmica no fenômeno da violência. realizados, utilizando a Teoria Bioecológica
A partir dessas análises pode-se pensar em como aporte para a compreensão do
um planejamento estratégico com fenômeno da violência intrafamiliar, estudos
intervenções possíveis, tanto em nível de que possam consolidar esse modelo de
um atendimento psicossocial dos análise como eficaz na estruturação de uma
indivíduos e do grupo familiar, como na intervenção psicossocial. Da mesma forma,
articulação da rede de serviços. O sugerem-se estudos sobre redes primárias e
atendimento pode contemplar os processos secundárias (mesossistema) que possam
psicológicos presentes na pessoa (eu contribuir para amenizar ou,
ecológico), como também na esperançosamente, possibilitar formas de
conscientização do microssistema familiar interações familiares sem violência.
sobre suas relações. Por exemplo, abordar Infelizmente, a história de vida dessa
os processos de comunicação, os padrões família inclui cenas de violência e permite
de organização e a influência fazer analogia com um filme de ação. O
transgeracional (núcleo Tempo), as práticas roteiro inclui diversos tipos de violência
educativas (Processo) e a influência da vividos por seus protagonistas: violência
mídia e da concepção “machista” (Contexto transgeracional, intrafamiliar, social e
– macrossistema). As intervenções em rede urbana. No cenário, destaca-se uma
poderiam envolver instituições como a residência com conforto e pequenos
Promotoria, CT, escola e o próprio serviço ambientes fechados, como nos cômodos da
de atendimento, e esses órgãos devem estar casa, que mostram o isolamento e não
atentos e coesos em suas ações a fim de permitem trocas. Os membros da família
auxiliar e apoiar a família nas mudanças são atores de uma realidade, em que
necessárias. Esse modelo de análise permite desempenham papéis de fortes, valentes,
também auxiliar os profissionais no rebeldes, contraventores e destemidos.
atendimento e na intervenção psicossocial, Chorar não está no script, embora sofrer
já que a formação acadêmica, muitas vezes, faça parte desse turbilhão de sentimentos,
não contempla especificamente a assim como raiva, medo e desprezo. Rambo
instrumentalização na intervenção em casos e Van carregavam a sina em seus nomes.
de violência ou em situações de riscos Van já atendeu, talvez em demasia, às
severos e persistentes. expectativas familiares, e Rambo, por mais
Apesar dos esforços da equipe de que tenha vontade de mudar isso, acaba
psicólogas do Hospital em realizar um representando o papel instituído. Assim,
atendimento integrado, após iniciar a escritores da sua história, essa família vem
Teoria bioecológica e a violência familiar 29
desempenhando um reality show, cujo De Antoni, C., Barone, L., & Koller, S. H.
título poderia ser “Nascidos para Matar (a (2006). Violência e pobreza: um estudo
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