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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2010, Vol.

18, no 1, 17 – 30

Uma família fisicamente violenta: uma visão pela teoria


bioecológica do desenvolvimento humano
Clarissa De Antoni
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Silvia Helena Koller


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo
O objetivo deste estudo de caso foi compreender o fenômeno da violência física em uma família
pelo viés dos pressupostos da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Aspectos
sistêmicos foram identificados, quando relacionados às pessoas, aos processos, aos contextos de
desenvolvimento e ao tempo (história de vida e rotinas familiares) e aos fatores de risco e de
proteção existentes. Os resultados obtidos por meio de entrevistas individuais e em grupo com a
família e por depoimentos de profissionais da rede mostraram que as interações eram marcadas
por severas agressões corporais e verbais, utilizadas como estratégias de comunicação e como
forma de relacionamento entre todos os seus membros. A violência era resultado de diversos
fatores, como das características pessoais e do grupo, da rede de apoio escassa e da influência
cultural e da mídia. Este estudo de caso revela como profissionais que atuam na prevenção e
intervenção com famílias violentas podem identificar aspectos relevantes em uma análise
ecológica do fenômeno da violência.
Palavras-chave: Violência Intrafamiliar, Análise Ecológica, Vulnerabilidade e Risco.

A physically violent family: A bioecological theory of human


development perspective

Abstract
The objective of this case study was to evaluate a physically violent family, using the
Bioecological Theory of Human Development to identify risk and protective factors. Systemic
aspects related to the variables such as: the person, the processes, the developmental contexts
and time (life history and family routines) were identified. Results obtained through interviews
of family members, and professionals, showed that the interactions were marked by severe
corporal and verbal aggressions, which were used as communication strategies, and as a way to
establish contact among all members. Family members indicated that violence was seen as
natural, what hindered the acceptance of change. The case study illustrates how professionals
who work in prevention, and intervention with violent families may identify relevant aspects in
a systemic analysis of the violence phenomenon.
Keywords: Intrafamiliar Violence, Ecological Analysis, Vulnerable and Risk.

A violência faz parte do cotidiano de dessas crianças e adolescentes. Pesquisas


muitas famílias brasileiras. Não apenas a apontam que o abuso físico ou o uso de
violência urbana ou social a que estão força física contra a criança ou adolescente
expostas, mas a violência que ocorre dentro por parte de seus cuidadores (Cecconello,
do ambiente doméstico, perpetrada por De Antoni, & Koller, 2003) são uma das
pessoas que deveriam zelar pelo bem-estar formas mais frequente de violência
18 De Antoni, C., & Koller, S. H.

existentes no contexto familiar (Cecconello, 2000; De Antoni, Barone, & Koller, 2006;
De Antoni, & Koller, 2003; Zottis, Algeri, & De Antoni, Teodoro, & Koller, 2009).
Portella, 2006). Segundo dados da Secretária Esse tipo de interação familiar deve ser
Especial de Direitos Humanos da analisado como um fenômeno complexo e
Presidência da República do Brasil multicausal, pois é influenciada e influencia
(SEDH/PR), a negligência e o abuso físico outros contextos. A perspectiva sistêmica
concentram o maior número de ligações permite essa compreensão, com base em
recebidas pela Central de atendimento uma abordagem multifacetada na qual o
(Disque Denúncia Nacional de Abuso e problema é visto de forma processual e
Exploração Sexual Contra Crianças e dinâmico, envolvendo o contexto, a história
Adolescentes, o Disque 100), que acolhe e as pessoas como protagonistas e
denúncias de violência contra crianças, observadores do fenômeno. Uma das teorias
principalmente em relação ao abuso sexual. sistêmicas mais recentes da Psicologia é a
Entre 2003 e junho de 2009, 35% foram de Teoria Bioecológica do Desenvolvimento
casos de negligência, 34% de violência Humano (TBDH), proposta por Urie
psicológica e física e 31% de violência Bronfenbrenner (1979/1996, 2004). Essa
sexual. abordagem define o desenvolvimento
O abuso físico ou a violência física são humano como um fenômeno de
facilmente diagnosticados quando há, em continuidade e mudanças nas características
decorrência dessas agressões, lesões biopsicológicas dos seres humanos, tanto no
orgânicas, como as cutâneas, ósseas, indivíduo como no grupo. Esse processo
oculares e neurológicas. Queimaduras, estende-se pelo ciclo vital, pelas gerações,
hematomas, fraturas são alguns exemplos. pela história passada e futura, sendo o
Os critérios de identificação dessa violência desenvolvimento compreendido como
são descritos por manuais elaborados pelo contínuo e processual.
Ministério da Saúde brasileiro e pela Belsky (1993) salientou que a etiologia
Organização Mundial de Saúde. No entanto, dos maus-tratos deve ser considerada a partir
atualmente, observa-se que os pretensos de fatores históricos, contemporâneos,
cuidadores de crianças e adolescentes se culturais, situacionais, além de atribuídos às
utilizam cada vez mais de materiais que não características dos pais e dos filhos. O
deixam marcas físicas visíveis (De Antoni, modelo teórico-metodológico de
2005), dificultando a identificação, sua Bronfenbrenner (2004) abrange todas essas
notificação e o encaminhamento devido da dimensões, pois envolve quatro núcleos
situação. inter-relacionados dinamicamente na
As famílias com abuso físico procuram compreensão dos fenômenos: a Pessoa, o
justificar tal prática e possuem certa Processo, o Contexto e o Tempo (Modelo
peculariedade entre si. A maioria das PPCT). Esse modelo possibilita conhecer a
famílias demonstra a crença nos valores interação desses núcleos e os aspectos que
autoritários e na asserção de poder dos pais envolvem o funcionamento familiar.
sobre os filhos (Cecconello, De Antoni, & O núcleo Pessoa, ou também
Koller, 2003; Oates, Ryan, & Booth, 2000). denominado “eu ecológico”, representa o ser
Muitas vezes, o abuso é justificado como humano ou o grupo familiar em
uma prática disciplinar, e o poder decisório desenvolvimento por meio das suas
está centralizado no abusador (Cecconello, características biológicas, psicológicas,
De Antoni, & Koller, 2003; De Antoni, sociais e por suas interações. A família pode
2005). Estudos realizados com famílias com ser considerada uma unidade relacional alvo,
história de abuso físico revelam que os pais e ser analisada como uma entidade particular.
violentos tendem a desencadear menos O núcleo Processo relaciona-se à
situações de interação com seus filhos do maneira como a pessoa ou a família significa
que pais não abusivos. Demonstrações de suas experiências e interpreta o ambiente ao
carinho e afeto são raras e predomina um longo de seu ciclo vital. O processo é o
sentimento de rejeição entre os familiares. A motor do desenvolvimento e ocorre por
relação entre pais e filhos é marcada por meio do desempenho de papéis, das
hostilidade, ausência de reciprocidade e atividades diárias exercidas e das inter-
desequilíbrio de poder (De Antoni & Koller, relações estabelecidas em determinado
Teoria bioecológica e a violência familiar 19

ambiente e na intersecção de vários risco e de proteção presentes no meio


contextos. familiar, levando-se em conta os fatores
O núcleo Contexto é visto como o meio intra e extrafamiliares. Assim, tem-se um
ambiente ecológico no qual as pessoas se panorama das relações, das causas e
desenvolvem ao longo de suas histórias, e consequências da violência naquele contexto
tais contextos interpostos se denominam (Koller & De Antoni, 2004).
como microssistema, mesossistema, Em todos os contextos vivenciados pelo
exossistema e macrossistema eu ecológico, há fatores de risco e de
(Bronfenbrenner, 1979/1996). Esses proteção ativos e com ações dinâmicas que
ambientes podem ser compreendidos como influenciam os processos familiares em seu
esferas concêntricas contidas uma nas desenvolvimento. O termo risco tem sido
outras. O microssistema compreende utilizado, no campo da saúde mental, com o
atividades, papéis e interações significado de estressor ou fator que
experienciadas pela pessoa ou grupo familiar predispõe a um resultado negativo ou
em determinado ambiente. A família, indesejado (Cowan, Cowan, & Schulz,
portanto, é o primeiro microssistema no qual 1996). O risco poderá desencadear um
a pessoa em desenvolvimento interage. distúrbio ou uma doença, de acordo com sua
O mesossistema é o conjunto de severidade, duração, frequência ou
microssistemas de determinada pessoa ou intensidade de um ou mais sintomas ou
família, composta pela interação dos comportamentos. Os fatores de proteção
diversos ambientes no qual ela transita, poderão defender ou fortalecer a pessoa
como a escola, o local de trabalho, a diante de um risco ou frente a uma condição
instituição religiosa que frequenta, entre de vulnerabilidade. Risco e proteção não são
outros. O exossistema consiste em um ou eventos estáticos, portanto, devem ser vistos
mais ambientes no qual as pessoas/famílias como processos e podem ser definidos por
não estejam fisicamente presentes, mas nos suas implicações nas relações e nos
quais as decisões tomadas têm influência resultados específicos. Cabe lembrar que
sobre seu desenvolvimento. O qualquer variável pode agir como indicador
macrossistema engloba a cultura, subcultura de risco ou de proteção em uma determinada
e todo o sistema de crenças ou ideologias situação.
subjacentes em uma sociedade e que têm Segundo Rutter (1999), os indicadores
influência no desenvolvimento das pessoas de risco e de proteção devem ser
ao longo de seu ciclo vital (Bronfenbrenner, examinados dentro do contexto de vida da
1979/1996). Segundo Garbarino e pessoa ou da família, pois um indicador
Eckenrode (1997), na visão ecológica, a compreendido como de risco pode se tornar
família reflete os modelos ou esquemas protetivo no futuro e vice-versa. Se, diante
existentes no macrossistema, principalmente de fatores de risco, um indivíduo
em relação ao funcionamento, aos valores e desencadeia uma doença ou o sistema
às tradições de acordo com a cultura em que familiar utiliza-se de estratégias
está inserida. Esses modelos influenciam no inadequadas para lidar com tais fatores,
desenvolvimento pessoal e social, e assim a pode-se identificá-lo como vulnerável
dinâmica entre pessoa, família e sociedade naquele momento. Todavia, se consegue
vai, ao longo do tempo, sofrendo um enfrentar o risco, por meio de um
processo de mudança. comportamento adaptativo positivo e
O núcleo Tempo está relacionado às aprender com essa situação, há um processo
influências e às heranças culturais existentes de resiliência, ou seja, a família apresenta
nas famílias, revelando as raízes históricas uma capacidade dinâmica para superar esse
da sociedade, as descendências étnicas e a estresse (Yunes, 2003).
valorização ou não de determinada prática A intervenção com famílias violentas
cultural ou ritualística. Tal núcleo também exige antes uma análise criteriosa dos
organiza, cronologicamente, as rotinas e os fatores de risco e de proteção existentes ao
eventos, possibilitando conhecer a história longo da história em cada grupo. Portanto, o
pregressa e as expectativas de futuro. objetivo deste estudo de estudo de caso é
O modelo PPCT permite analisar de compreender o fenômeno da violência física
forma ampla e específica os mecanismos de em uma família por meio dos pressupostos
20 De Antoni, C., & Koller, S. H.

da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento categorias de sentido relacionadas aos


Humano (Bronfenbrenner, 1979/1996, 2004). fatores de risco e de proteção foram
Aspectos sistêmicos foram identificados, levantadas. Esses fatores foram integrados
quando relacionados às pessoas, processos, ao modelo Pessoa-Processo-Contexto-
contextos de desenvolvimento e tempo Tempo da TBDH, para uma compreensão
(história de vida e rotinas familiares) e aos dinâmica e ecológica do fenômeno e dos
fatores de risco e de proteção existentes fatores de risco e de proteção presentes. Este
nesse contexto familiar. estudo seguiu as determinações da
Especificamente neste estudo será Resolução no 196/96, do Ministério da
utilizado como roteiro para descrição e Saúde (1996), do Estatuto da Criança e do
avaliação da família o esquema de análise Adolescente (ECA, Lei no 8.069, de 1990) e
proposto e publicado por Koller e De Antoni teve aprovação por dois Comitês de Ética
(2004). Esse esquema sugere a análise do (da Universidade e do Hospital).
Processo no núcleo Pessoa desde um nível
ecológico individual – o eu ecológico, ao
longo dos demais Contextos (do Breve histórico da família
microssistema ao macrossistema) em seu
A família Peres era formada pelo pai,
ciclo vital (Tempo).
Rui, 37 anos, a mãe Mara, 34 anos e dois
filhos dessa relação, Van, 18 anos e Rambo,
Método para elaboração do 11 anos. Esses nomes são fictícios para
preservar a identidade da família. No
estudo de caso entanto, os nomes verdadeiros dos filhos
Os dados para realização deste estudo prestigiam atores de filmes norte-americanos
de caso foram obtidos por meio de de ação e violência que são conhecidos
diagnóstico inicial realizado em um serviço mundialmente pela imagem de força física e
de atendimento psicológico familiar em um brutalidade.
Hospital referência em Porto Alegre-RS. A aparência física deles mostrava certa
Esse diagnóstico estava vinculado à pesquisa homogenia na forma de se vestirem, se
de doutorado intitulada Coesão e hierarquia comportarem e na sua constituição física.
em famílias com história de abuso físico (De Todos usavam calças compridas largas,
Antoni, 2005). Todas as famílias com camisetas, jaquetas ou coletes (simulando
denúncia de violência que eram coletes salva-vidas) com camuflagem militar
encaminhadas pela rede para o Hospital e tênis. Falavam em tom de voz alto e
passavam por esse processo. O caso descrito gesticulavam com movimentos bruscos.
neste artigo foi encaminhado por meio de Estavam com sobrepeso e aparentavam ter
ordem judicial pela Promotoria da Infância e mais idade. Eram de etnia branca. O casal
Juventude e tratava-se de um menino de 11 estava junto há 20 anos e se conheceu na
anos, denunciado pela escola ao Conselho casa de vizinhos, quando Rui tinha 16 anos e
Tutelar (CT) por apresentar um Mara, 14. Namoraram contra a vontade da
comportamento agressivo para com os mãe de Mara. Após alguns meses, foram
colegas e professores. morar juntos em outro estado, longe da
Foram entrevistados separadamente e família, mas por questões financeiras
em conjunto três familiares: o pai, a mãe e o retornaram. Aos 16 anos, Mara engravidou
menino. Os instrumentos aplicados foram: de Van e sua maior preocupação era: “Aí, e
uma entrevista semidirigida, o Teste do agora? Como é que vou dizer pra minha
Sistema Familiar – FAST – (Gehring, 1993), mãe, ela vai me bater!”1 . Mara revelou que
que avalia a coesão e a hierarquia do sistema sua mãe sempre lhe batia, mesmo depois de
familiar em três situações diferentes, típica, casada: “Às vezes, não tinha motivo nenhum,
ideal e em situações de conflito, que, nesse ela ficava louca da cabeça e me batia”.
caso, eram as situações de violência, e Justificou essas ações como: “Foi a criação
informações obtidas pela rede, tais como: dela, meu avô ensinou ela assim”. Mara
entrevista com professores, parecer jurídico
e dos técnicos do Conselho Tutelar. A partir 1
Os trechos referentes à entrevista foram
dos dados coletados foi realizada a análise transcritos de forma literal, sem correções
de conteúdo (Bardin, 1977), em que gramaticais.
Teoria bioecológica e a violência familiar 21

comentou sobre sua mãe lhe bater com muitos bens materiais. Já a comunidade em
arame farpado, fincando-o na cabeça. que viviam foi descrita como “um lugar
Revelou, também, o homicídio de seu pai onde há tráfico de drogas”. A família não
cometido por sua mãe, sem querer dar mais tinha contato com outros parentes.
detalhes do acontecimento. Apenas A rotina familiar era marcada pelo
comentou que “foi sem motivo aparente e individualismo de atividades. Os pais
que o pai encheu o saco”. Sua mãe ficou trabalhavam na rua das 16h às 21h. Rambo
presa durante três meses e que “não deu em acordava ao meio-dia, almoçava e ia para a
nada o processo judicial”. escola. Retornava pelas 15h30 e assistia aos
Rui comentou que não teve pai e programas na televisão até as 4 horas da
descreveu sua mãe como uma pessoa manhã, inclusive via filmes pornográficos e
comunicativa. Acrescentou que nas famílias de violência. A mãe esperava Rambo
que vivem em cidades interioranas, a retornar para sair ao trabalho. Temia que, se
agressão física é uma prática aceita e faz não houver alguém em casa para impedir,
com que os filhos respeitem os pais. Van poderia “saquear a casa!”. Rambo
Justificou, portanto, o fato de a mãe lhe tinha, então, a função de proteger os bens da
bater como: “Lá no interior não é problema família contra os abusos e furtos do irmão.
se sempre bateu (pais). O problema é que Van não tinha horários para sair ou chegar e,
quando eles (pais) acham que gente tá geralmente, passava a noite fora.
errado, né? Pelo menos as pessoas não Ultimamente estava impedido de entrar na
erram muito que nem agora... Nêgo véio casa e, portanto, estava dormindo na rua. Foi
com 36, 40 anos apanha. Então, eu até acho mordido por ratos e apresentava desnutrição
bonito isso aí, que, pelo menos, a pessoa e diversos hematomas e escoriações na
respeita a família, né?”. última vez que falou com a mãe.
Quando foram morar na capital, Rui levava, eventualmente, Rambo ao
passaram privações econômicas e até fome. bar onde jogavam sinuca. Aos sábados, o pai
Aos 20 anos, Mara engravidou pela segunda saia para trabalhar e a mãe ficava limpando
vez de um menino, mas a criança teve a casa. Aos domingos, os três saiam para
infecção generalizada e faleceu quando tinha almoçar em restaurantes e, quando estavam
aproximadamente um ano. Nunca em casa, cada familiar permanecia em um
pronunciaram o nome dessa criança em cômodo assistindo à televisão. Quando
todas as entrevistas. Então, como desejava faziam as refeições em casa, cada um se
uma filha, dois anos depois, aos 23 anos, recolhia individualmente aos seus
engravidou novamente e, assim, nasceu dormitórios para comer “diante da sua
outro menino: “Quando o Rambo veio, nós televisão”. Mara comentou na frente de
já estávamos com a nossa vida bem”. Rambo, e este confirmou sua observação, de
A família Peres, segundo o relato dos que o menino sentia falta de um contato
pais, era de nível socioeconômico médio. O mais próximo com o pai: “Antigamente, ele
casal trabalhava como vendedor ambulante (Rui) pegava o guri e saía pra jogar bola,
de um produto ilícito. Van não trabalhava e, com os dois (Rambo e Van). Ia comprar uns
segundo a família, por ser usuário de drogas, tênis... ou iam ao bar tomar refri, mesmo
realizava assaltos na rua ou vendia os tendo refri em casa”. A mãe mencionou não
objetos de casa para adquiri-las. usufruir de momentos de lazer com a família
O pai estudou até a quinta série do ou com o marido.
ensino fundamental e a mãe era analfabeta.
Van parou de estudar na quinta série, e
Rambo cursava a turma de progressão (ciclo A manifestação da violência na
AB), que equivale à primeira e à segunda
família
série do ensino fundamental, em uma escola
pública. Os pais não incentivavam os A primeira intervenção do Conselho
estudos de Rambo. Frequentavam, Tutelar na família foi por uma denúncia da
eventualmente, uma igreja neopentecostal e tia de Mara, quando Van tinha oito anos. Os
informaram que suas vidas “fermentaram” pais informaram que Van era um bom aluno
com essa adesão, isto é, conquistaram a até os 14 anos, mas, nessa idade, ele
partir daí maior estabilidade financeira e abandonou os estudos. Esteve internado em
22 De Antoni, C., & Koller, S. H.

um local de recuperação para tratamento que eles falam na escola, eu não entendo!
para drogadição e duas vezes na antiga Que em casa ele não faz nada disto, dizem
FEBEM. Os pais revelaram que: “Ele rouba, que na escola ele bate nos outros, pega pelo
ele cheira, ele fuma, não podemos bater pescoço, eu não acredito nisto”. A mãe
mais, porque o Conselho se meteu”. defendeu: “Dizem que levou uma faca, mas
O fato de o CT não os deixar bater no não tem faca nenhuma, a única coisa que ele
adolescente ou de os impedir de trancar Van leva é a tesoura, todas as crianças levam
em casa, na visão do casal, desencadeou a tesoura pra cortar papel”. Segundo
situação de delinquência do filho. Em informações da professora da escola e do
relação a Rambo, os pais receberam a prontuário, Rambo repetia várias vezes que:
primeira queixa sobre o comportamento “Eu não sei por que eu nasci, só para
agressivo na escola quando este estava na obedecer aos outros e apanhar”. Durante o
educação infantil. O CT foi acionado e atendimento psicológico, Rambo contou que
acompanhava o caso desde aquela época. O colocou um brinco e que seu pai ameaçou
menino frequentava a escola no turno da “arrancar sua orelha” se não o tirasse.
tarde e permanecia lá apenas até o horário de A relação entre os pais e Rambo,
recreio, sendo diariamente dispensado pela segundo a percepção dos pais, “é muito
professora. O motivo alegado pela boa”. Para o pai: “Rambo é uma criança
professora da escola para mandá-lo embora calma, é prestativo, até auxilia a mãe que
nesse horário é que ele se tornava está com o braço quebrado. Conversamos
incontrolável, não tinha limites, não aceitava sobre tudo, pois ele é nosso companheiro”, e
opiniões, ameaçava e batia nos colegas, não a mãe completou: “O único companheiro
prestava atenção às aulas, não obedecia à aqui é ele”, e “Tudo o que ele quer a gente
professora, não realizava as atividades dá”. Em algum momento o pai afirmou que
propostas e assediava sexualmente as fora de casa: “Ele é meio rebeldezinho, que
meninas. Os pais relataram um episódio em isto eu sei, porque eu o ensinei assim desde
que Rambo agrediu fisicamente uma pequeno”. No entanto, na família, Rambo
professora e disseram que a diretora se tinha que seguir as determinações dos pais,
queixou que ele constantemente levava uma sem questionar, de acordo com o pai: “O
faca para a escola. Segundo relato da Rambo é assim, eu grito com ele e ele chega
professora e da orientadora em reunião a ficar tremendo”. A mãe observou que: “E
realizada junto à equipe de atendimento no
o guri não pode chorar!”.
Hospital: “Rambo tornou-se um mito. Todos
têm medo dele”. A professora disse que a Sobre a criação dos filhos,
mãe batia (tapas no rosto e na boca) em consideravam que deve ser “à moda antiga”,
Rambo na frente de todos, quando este isto é, da mesma forma que seus pais agiam
tentava falar algo. Rambo contou que seus em relação a eles com rigidez e punição
colegas o chamavam de “gardenal” e que se física. Para Rui: “Os pais têm que bater com
alguém o ofendia ou a sua família, ele já um pedaço de pau, ferro, o que tiver na
partia “pra porrada”. mão”, e que: “Sempre deixo um pedacinho
A mãe revelou que obrigava Rambo a de mangueira de bobeira, um caninho
tomar água de melissa, depois do almoço, d’água, para bater nos filhos”. Para Rui:
para que ele ficasse mais tranquilo. Rambo “Os pais podem bater em qualquer parte do
achava que o “remédio” só fazia efeito até o corpo, inclusive na cabeça. O objetivo
intervalo da aula, por isso não conseguia se principal é machucar”. E continuou: “a
controlar após o recreio. Havia um impasse criança aprenderá que não deve repetir o
em relação à permanência de Rambo na comportamento”. O pai desautorizava
escola, pois tanto a diretoria, os pais dos constantemente as ordens da mãe, por
demais alunos e o próprio Rambo desejavam exemplo, a mãe castigou Rambo
a troca de escola, mas os seus pais eram restringindo-o de assistir à televisão e o pai
incisivos em mantê-lo. perguntou: “Por que você não está vendo
Os pais não concordavam com o televisão?”. Rambo respondeu: “A mãe disse
comportamento agressivo descrito e que eu tô de castigo!”. E o pai retrucou:
defendiam Rambo das acusações realizadas “Então pode ligar, porque eu tô
pela escola. O pai comentou: “Muitas coisas mandando!”.
Teoria bioecológica e a violência familiar 23

Mara e Rui falaram sobre suas em relação ao seu futuro. Julgavam que não
diferenças na forma como manifestam sua valia a pena investir em Van “em função de
agressividade. Para Rui, a mãe “vive dando ser usuário de drogas”. O pai comentou:
tapas e empurrões nos filhos”. Por outro “Van não vai ajudar nós em nada”. A mãe
lado, ele batia uma só vez: “Mas é para falou que desistiu e que temia que ele fosse
aprender!”. Mara percebeu que quando morto. A esperança de Rui era que Rambo
estava irritada com alguém, procurava interrompesse os estudos e se dedicasse à
“descarregar” na pessoa que lhe causou esse rádio comunitária que estão organizando e
sentimento. Já o marido, “explode” com ela aos negócios do pai, sendo seu sucessor.
e os filhos. Rui contra-argumentou essa
afirmativa, dizendo que: “Eu não explodo
com ninguém. Eu sou daquele tempo ainda Indicadores de Risco
que o marido é quem manda dentro de casa, Diversos indicadores de risco foram
entendeu? Se é pra tal coisa, não vai fazer, identificados nessa família utilizando-se o
não deve fazer”. O pai intitulava-se: “Sim, o modelo PPCT. Esses fatores de risco podiam
xerife da casa sou eu”. potencializar a violência naquele contexto.
Na relação com o irmão, Rambo disse De acordo com Koller e De Antoni (2004),
que sempre conversava com Van, com o os fatores compreendidos no núcleo Pessoa
objetivo de aproximar-se. De acordo com ou “eu ecológico” estão relacionados às
Mara, ela sempre escutava o diálogo deles: características biopsicossociais. Geralmente
“Bah, mano, sai da droga, os caras vão esse núcleo é o único foco de análise para
acabar te matando”. Havia também brigas um diagnóstico psicológico, com base nos
constantes entre os irmãos, com pontapés e processos intrapsíquicos e de acordo com
socos, por disputa de objetos. Para Rui, a uma visão mais tradicional da Psicologia.
maioria das brigas na família era entre os No entanto, na concepção sistêmica pode-se
irmãos e, para impedi-las, disse que pensar como se estabelecem as interações
interferia de alguma forma. (núcleo Processo) a partir dessas
Segundo relato, o casal dificilmente características individuais. Por exemplo,
conversava. As decisões eram tomadas por essa família apresentava características
Rui e quando Mara tentava contestar, comportamentais semelhantes, ao
começavam as agressões verbais e físicas. reproduzirem o mesmo comportamento
Para o casal, o principal motivo da violência (falar, vestir, gesticular). Buscavam uma
conjugal tinha origem em questões forma de identidade familiar, no entanto, os
financeiras. Já para Rambo, os motivos das membros da família Peres não eram
brigas eram diversos e, muitas vezes, não “companheiros”. Apresentavam uma atitude
estavam claros. O menino confirmou: individualista, em função da insegurança no
“Basta o pai estar de mau humor”, por ambiente familiar e do sentimento de solidão
exemplo. Os filhos buscavam interferir na ou isolamento provocado pela falta de trocas
“pancadaria deles e acabamos apanhando afetivas. Cada um isolava-se em seu próprio
também”. Sempre defendiam a mãe, e esta mundo, com sua própria televisão e sua
defendia-os. Rambo revelou que o irmão e própria dor. E isso era um reflexo do
ele pensavam em: “Pegar o pai e deixá-lo isolamento emocional vivenciado por todos.
no hospital, na próxima vez que agredir a Rambo também apresentava baixa
mãe”. Mara revelou que “apanha calada” e autoestima e autoimagem enfraquecida e,
não sabia o porquê de o marido bater nela. para lidar com isto, assumia um “papel” de
Disse que “conta até três para não revidar e forte e “valentão”, contrário aos reais
se controlar”, porque sabe que “se perder o sentimentos. A imagem que os pais
controle, pode matá-lo”. Revelou, também, possuíam de Rambo, como ser calmo,
que no início aceitava os carinhos do marido confirmava o comportamento submisso do
como forma de perdoá-lo pelas agressões, menino no ambiente doméstico.
mas que agora não queria nenhum tipo de Adicionalmente, tal imagem reafirmava que
intimidade entre eles. em outros ambientes, como na escola, sua
Os pais tinham expectativas diferentes vontade era de reproduzir um modelo de
para os dois filhos. Em relação a Van, não comportamento valorizado e semelhante aos
conseguiram expressar qualquer expectativa pais, exercendo o poder por meio da força e
24 De Antoni, C., & Koller, S. H.

brutalidade. No entanto, Rambo declarava de origem, principalmente a severidade dos


seu desejo de morrer e isso podia demonstrar atos agressivos por parte da mãe de Mara e
seu sentimento de inferioridade, fragilidade de Rui. Esses atos agressivos eram
e depressão. Van apresentava um frequentes e naturais, mesmo quando
comportamento antissocial, e, de certa adultos. Inclusive, o homicídio do pai de
forma, essas ações eram reforçadas e Mara foi informado como um ato banal, sem
valorizadas por Rui, que criou os filhos para repercussões legais ou morais. Em relação
serem “rebeldes”. ao tempo de organização familiar, a rotina
Segundo Cobb (1992), a adolescência é não favorecia as interações, pois as
marcada pela busca e formação da atividades não eram em conjunto. Por
identidade psicológica, que se caracteriza exemplo, Rambo não tinha horários a
pela consciência de si e do outro. Assim, cumprir.
como Van não tinha documentos de Portanto, Tempo e Processo interagem
identidade, parece que não encontrou a sua dinamicamente, pois o comportamento
identidade psicológica, pois demonstrava violento estava presente na história dessa
sua fragilidade e vulnerabilidade frente à família e reforçava a crença de que ele
interação com os outros, reproduzindo um sempre fez parte das interações. Rui também
comportamento agressivo e distante. O pai falou com naturalidade sobre os pais
apresentava um comportamento desafiador e exercerem seu controle sobre os filhos por
irônico, contestando frequentemente as meio da intimidação e força física. Além
observações e o sistema de apoio. Parecia disso, parecia haver uma crença de que o
ver o ambiente de forma hostil, o que o respeito se adquire por imposição ou
levava a agir agressivamente aos contatos punição, em vez de ser conquistado pela
sociais. A mãe fazia um movimento de admiração. Portanto os familiares
contestação às ordens de Rui, mas acabava associavam e confundiam os sentimentos de
cedendo aos seus mandos, de forma medo com os de respeito, e buscavam
submissa, pelo medo e reproduzindo o despertar esses sentimentos nos filhos como
comportamento agressivo. uma forma de se sentirem respeitados. Esse
A compreensão do núcleo Pessoa é fato tornava-se risco para violência à medida
primordial para conhecer como a violência que as gerações aprendiam erroneamente
se manifesta nas interações familiares. No essa distorção em relação aos sentimentos e
entanto, as análises dos núcleos Tempo e absorviam essa crença.
Contexto possibilitam ampliar a visão sobre Percebe-se, ainda, nesse caso, que o
o fenômeno da violência nessa família, risco da repetição de atos abusivos por parte
pensando sobre outras influências, além das dos pais, na relação parental, podia ser
questões comportamentais diretamente intensificado pela falta de insight sobre a
observadas. severidade desse comportamento e de suas
No núcleo Tempo, segundo Koller e De consequências negativas para o
Antoni (2004), deve-se levar em conta a desenvolvimento saudável de seus filhos.
história anterior ou o ciclo de violência Rui afirmou que não se importava com as
evidenciado nas relações transgeracionais ou sequelas dos abusos físicos e que, por ter
intergeracionais desse grupo. A presença de passado por essa experiência e estar vivo, o
abuso físico no microssistema familiar mesmo aconteceria com seus filhos. Assim,
revelou uma repetição de um modelo a aceitação passiva e incontestável sobre a
parental aprendido possivelmente pelo agressividade para com os filhos, associada
processo de modelação (Cecconello, De ao desconhecimento sobre os Direitos
Antoni, & Koller, 2003). Para Bandura Humanos, pode impedir o rompimento desse
(1997), a modelação é uma forma de padrão, perpetuando-o entre gerações.
aprendizado pela observação do No núcleo Contexto, em termos
comportamento do outro e implica microssistêmicos, teoricamente, as relações
elaboração de uma representação mental familiares saudáveis deveriam ser
desse comportamento, o armazenamento na estabelecidas com reciprocidade, afeto e
memória e sua reprodução posterior frente a equilíbrio de poder (Bronfenbrenner,
uma experiência semelhante. O casal relatou 1979/1996). A família forma uma unidade
os abusos físicos sofridos em suas famílias funcional, e, para manter a homeostase desse
Teoria bioecológica e a violência familiar 25

sistema, seus membros empregam e trocam Koller (2003), em uma revisão da literatura,
constantemente energia, isto é, há um o estilo negligente refere-se aos pais que não
esforço físico e emocional para que o são afetivos nem exigentes, e demonstra
sistema funcione da forma que compreende distanciamento em relação ao
como esperada. Para a família de Rambo, a comportamento do filho. Os pais autoritários
manifestação do afeto amoroso, que é são rígidos e autocráticos e tendem a
idealmente esperada de uma família, era enfatizar a obediência por meio do respeito à
substituída pela agressão física. O carinho autoridade e à ordem, utilizam de punição
demonstrado por beijos e abraços inexistia. como forma de controle e não valorizam o
A mãe expressou não querer mais carinho do diálogo, a autonomia e a opinião dos filhos.
marido, que sempre ocorria após as brigas. Além disso, como no caso desses pais que
As relações eram estabelecidas por uma acreditavam na disciplina severa, havia uma
competitividade de força física, portanto, os tendência de utilizar disciplinamento
socos, tapas e pontapés estavam presentes acompanhado por ações agressivas, além do
constantemente. Essa era a forma que abuso emocional provocado pelo
usavam para tocarem uns nos outros. A comportamento do pai que desautorizava
violência servia para que as relações não constantemente as ações da esposa,
mudassem; por mais que a mãe e os filhos principalmente em relação à adoção de uma
desejassem que a violência fosse prática disciplinar restritiva, como não
minimizada, nenhuma ação era efetivamente permitir assistir aos programas da TV. Isso
realizada. Havia um desejo de revidar a podia causar certa confusão em Rambo, ao
violência com mais violência, podendo não conseguir discernir se o comportamento
chegar à aniquilação ou destruição do outro. que eliciou o castigo era passível de
Isso ficou evidente, por exemplo, na correção. Isso também reforçava a ideia de
articulação de uma estratégia entre os irmãos que a mãe não tinha controle sobre ele. Por
para “pegar” o pai. Assim, os pensamentos e outro lado, os pais não colocavam limites
os sentimentos eram pautados por intensa para os filhos. Segundo a mãe: “Ele tem
raiva. tudo, ganha tudo que quer”. A falta de
Como os atos agressivos eram orientação, de regras e de limites podia fazer
cultuados, principalmente pelo pai, como com que Rambo não avaliasse ou
forma de afirmação da sua masculinidade e desenvolvesse a responsabilidade por seus
força, em algumas situações, o motivo da atos, como também podia interferir no
agressão não estava claro para a vítima. A julgamento adequado sobre os mesmos. No
mãe, por exemplo, alegou que, muitas vezes, caso dessa família, o abuso físico era, em
apanhou sem saber a causa; o mesmo algumas situações, justificado pela adoção
parecia acontecer com seus filhos e, como de uma prática disciplinar; no entanto, essa
revelou Rambo, para apanhar bastava “o pai justificativa não se mantinha, em função da
estar de mau humor”. Percebe-se que a falta frequência e pelos motivos que ocasionavam
de um modelo parental adequado pode levar a violência.
ao risco de aceitação dessa prática como Outro fator de risco existente nesse
“educativa” e “natural”. Os pais tinham a microssistema era o casal ter tido os filhos
crença que tal ação era eficiente, talvez quando ainda adolescente (Levandowski, De
porque tinham um efeito imediato ao cessar Antoni, Koller, & Piccinini, 2002) e,
o comportamento indesejado dos filhos. No conforme revelado, muitos aspectos
entanto, mostrou-se ineficaz em longo prazo, relacionados à própria sexualidade e
pois fazia-se necessário utilizá-la parentalidade eram desconhecidos. Esse
repetidamente. risco associado a outros indicadores pode ter
A prática disciplinar adotada por essa favorecido o início da violência. A falta de
família era a coercitiva, pela qual os pais conhecimento sobre gravidez, a ausência de
ameaçavam e puniam fisicamente seus filhos orientadores, a imaturidade, o despreparo
com o intuito de corrigir comportamentos para assumir seus papéis de pai e mãe e a
indesejados, mas nem sempre incorretos. necessidade de formar a identidade podem
Adotavam um estilo parental negligente em ter incrementado o fato de idolatrar
relação a Van, e autoritário em relação a personagens e a valorização das ações
Rambo. Para Cecconello, De Antoni e agressivas.
26 De Antoni, C., & Koller, S. H.

Em relação à comunicação, o diálogo pastor. Parecia servir como reforço para


era substituído por agressões. Ao invés de legitimar a busca da prosperidade material,
conversar sobre os problemas e buscar sem contribuição para o desenvolvimento
alternativas, os pais se calavam ou agrediam moral ou espiritual. A escola de Rambo não
verbal e fisicamente. A única tentativa de estabelecia uma relação de reciprocidade e
diálogo ocorreu entre Rambo e Van, reforçava o estereótipo de que Rambo é
promovida pelo primeiro, que buscava agressivo e perigoso. A família estava
conscientizar, sem sucesso, o irmão sobre os isolada, pois não tinha amigos ou parentes.
perigos causados pelo uso de drogas. As outras instituições de contato formal, tais
Os processos de comunicação como o Conselho Tutelar, a promotoria e o
intrafamiliares são importantes para o Hospital, eram vistas por eles com desprezo
desenvolvimento da resiliência familiar, na e desdém.
superação dos eventos estressores e na Parece que a família não permitia
promoção do curso adequado ao seu formar uma rede de apoio social e afetiva.
desenvolvimento. Segundo Yunes (2003), Assim, o risco de aumentar a severidade e a
uma das formas de incrementar a resiliência frequência dos atos violentos era maior, pois
baseia-se em “expressões emocionais não tinha abertura para que outras pessoas
abertas” (p. 82) que estão relacionadas ao ou instituições os orientassem. A ausência
compartilhamento de sentimentos, à empatia de relações de amizade e de apoio levou a
nas relações, na tolerância das diferenças, família ao isolamento e ao fechamento do
interações prazerosas e bem-humoradas. sistema, isto é, pouca troca com outros
Nessa família, não havia expressões sistemas. Percebe-se, então, que a mesma
emocionais abertas, pelo contrário, apenas o não apresentava recursos sociais em seu
silêncio em relação ao compartilhamento de padrão de organização, além de rigidez
sentimentos e as interações eram dolorosas e frente às mudanças e reformulações.
mal-humoradas. Os membros não falavam Em termos macrossistêmicos,
sobre os sentimentos relacionados a aspectos apareceram diversos aspectos, como a
positivos, como felicidade, ou negativos, aceitação cultural da punição física, como
como o medo e a dor. Parecia que a esposa prática educativa; a influência da mídia; a
tinha receio de expor-se diante do marido, crença na impunidade; o machismo; e a
pois no contato individual apareceram desvalorização do ensino formal. A
sentimentos de intolerância à situação de violência não era somente naturalizada ou
violência vivida e ao desejo de romper com banalizada por essa família, mas nitidamente
o casamento. valorizada. A influência da mídia sobre essa
No microssistema dessa família não família era um fato muito aparente, que
tinham sido, aparentemente, utilizadas perpassa os nomes dos filhos, a forma como
estratégias eficazes que colaborem para a se vestem, se comunicam e se comportam.
resolução de problemas. A colaboração na Há influência aparente da televisão, filmes,
busca de soluções fazia parte do processo de video games e jogos eletrônicos, da mídia
comunicação (Yunes, 2003), assim como as impressa e de clipes musicais no
tomadas de decisão compartilhadas com comportamento das pessoas desta família.
negociação, reciprocidade e justiça. Essa Tal influência já havia sido salientada por
família mostrou-se vulnerável frente à Porto (2002), pois a violência deve ser
tomada de decisão, gerando violência compreendida como um fenômeno plural,
conjugal pelas discordâncias de opiniões. isto é, com múltiplas causas, sendo a mídia
O mesossistema dessa família era um dos fatores que colaboram para tal.
restrito ao ambiente de moradia, ao local de Embora haja muita controvérsia, há estudos
trabalho dos pais, à igreja e à escola de que comprovam que há um aumento da
Rambo. A família não transitava agressividade em pessoas expostas a
constantemente em outros microssistemas. O programas violentos na televisão (Njaine &
trabalho do casal era executado ao “ar Minayo, 2004). No caso dessa família, não
livre”, onde circulavam muitas pessoas e não havia dúvida desse fato. A violência
havia formação de vínculos. A igreja era promovida e a exposição declarada dessa
frequentada eventualmente e sem relação de família à mídia com conteúdos agressivos
amizade com outros adeptos ou com o revelaram perda de sensibilidade ou, mesmo,
Teoria bioecológica e a violência familiar 27

dessensibilização frente aos comportamentos uso de atos agressivos servia para impor seu
destrutivos. As pessoas parecem ficar desejo e não ser questionado em suas
indiferentes ao assistir uma cena real de atitudes. Ao se denominar o “xerife”,
violência dirigida a outro ou ter uma atitude assumia o poder de quem detém a liberdade
de omissão em relação à vítima, como nos ou o confinamento do outro, isto é, o poder
casos de relato de bullying de Rambo na de decidir sobre o outro. O sistema familiar
escola (Koller & De Antoni, 2004; Njaine & tinha, então, que funcionar da forma como ele
Minayo, 2004). Esse aspecto estava determinava. A esposa também se submetia a
relacionado às variáveis de saúde, em nível essa crença, quando apanhava “calada”.
macrossistêmico social e ambiental. O pai Outra crença relacionada aos valores
sugeriu que os filhos nasceram e foram culturais, portanto, macrossistêmica, é a
criados para serem violentos e, desvalorização do estudo formal. O pai
principalmente, “rebeldezinhos”, isto é, para considerava que Rambo não precisava mais
confrontarem o sistema social vigente. estudar, que o tempo poderia ser mais bem
Portanto, necessitam corresponder a esse empregado se ele trabalhasse. A família
papel atribuído, como o comportamento de acreditava que o estudo não era importante,
Van por roubar, usar drogas, abandonar a pois em sua visão, nem para obter ganhos
escola, portar ilegalmente uma arma, entre financeiros era necessário, como se o único
outros, e de Rambo, de agredir colegas e objetivo de quem estuda seja o de agregar
professores. valor material. Os pais, então,
Além disso, existia nessa família uma impossibilitavam ao filho adquirir novos e
crença sobre a impunidade, isto é, de que diferentes conhecimentos advindos das
não serão alvos de ações, punições ou informações escolares e das trocas efetuadas
processos por seus atos. Talvez essa crença nesse ambiente.
seja reforçada por aspectos culturais
macrossistêmicos que associam a ideia de
haver na sociedade um alto índice de Indicadores de Proteção
criminalidade e insuficientes políticas Os indicadores de proteção nessa
públicas para solucionar esse problema. família foram escassos. Em nível
Portanto, os familiares manipulavam microssistêmico, a estabilidade econômica
informações, exerciam atividades poderia favorecer o acesso a bens de
profissionais ilícitas, confrontavam ordens consumo e certo conforto material, evitando
judiciais e instituições legais. Comentavam reviverem a situação traumática de passar
de forma natural, sem segredos ou pudores, fome, ocorrida no passado. Em termos do
a existência de brigas, conflitos, lutas, exossistema, encontrou-se uma rede de
furtos, e outras agressões no contexto serviços que era oferecida e atuava em
familiar. Parecia que a família não conjunto no sentido de melhorar a qualidade
qualificava a violência de forma negativa, de vida de toda a família e de cada um de
como transgressão ou violação de Direitos seus membros. A promotoria, a escola, o
Humanos, mas como um evento cotidiano Conselho Tutelar e o Hospital eram partes
no seu contexto de desenvolvimento. do mesossistema que buscavam
Outra crença macrossistêmica presente dinamicamente promover proteção a esse
nessa família é a cultura patriarcal, grupo. Adicionalmente, a afiliação religiosa
conhecida popularmente como “machismo”. e o investimento na comunidade poderiam
Segundo DeSouza, Baldwin e Rosa (2000), favorecer a essa família o senso de
o “machismo” é um conjunto de condutas, pertencimento, o que poderia auxiliá-la na
constituídas, aprendidas e reforçadas estruturação de uma rede de apoio social
culturalmente. Está relacionado às mais bem estruturada e mais funcional no
características e ao desempenho de papéis futuro.
instituídos ao gênero masculino na cultura
latina, e forma uma ideologia que promulga
que é bom e até natural que os homens Considerações finais
controlem o governo, as atividades públicas A família Peres também se tornou um
e a mulher. O pai acreditava que o outro “mito”, assim como Rambo foi descrito pela
tinha que ceder às suas vontades, portanto, o professora. As atividades ilícitas, o
28 De Antoni, C., & Koller, S. H.

isolamento social e a forma como se vestiam psicoterapia com Rambo e a terapia familiar,
e se comportavam reforçavam e fomentavam a família abandonou o tratamento. Segundo
esse mito entre eles mesmos e nos informações obtidas pela rede, a família
microssistemas em que transitavam. A mudou de município, sem deixar qualquer
família valorizava a imagem de destemidos, forma de contato. Esse fato evidencia a
rebeldes e violentos e reproduzia esses dificuldade da família em lidar com uma
comportamentos em todos os contextos em possível mudança em suas crenças e no seu
que se inseria, talvez como uma forma de comportamento. Assim, demonstra sua
proteção ao meio social, que, na sua vulnerabilidade frente a tantos fatores de
percepção, sempre fora hostil. Assim, ao se risco, que impedem o desenvolvimento de
sentirem poderosos, lidavam com as um processo de resiliência familiar e
humilhações sofridas em sua história compactuam com a perpetuação da
familiar. violência. Também evidencia as limitações
O modelo PPCT promoveu uma visão do trabalho dos profissionais, que atuam
do fenômeno da violência nessa família. muitas vezes de forma isolada, sem uma
Este estudo de caso revela como estrutura de rede, que possa exercer tanto o
profissionais que atuam na prevenção e acompanhamento, como o controle jurídico
intervenção com famílias violentas podem e social.
identificar aspectos relevantes em uma Sugere-se que novos estudos sejam
análise sistêmica no fenômeno da violência. realizados, utilizando a Teoria Bioecológica
A partir dessas análises pode-se pensar em como aporte para a compreensão do
um planejamento estratégico com fenômeno da violência intrafamiliar, estudos
intervenções possíveis, tanto em nível de que possam consolidar esse modelo de
um atendimento psicossocial dos análise como eficaz na estruturação de uma
indivíduos e do grupo familiar, como na intervenção psicossocial. Da mesma forma,
articulação da rede de serviços. O sugerem-se estudos sobre redes primárias e
atendimento pode contemplar os processos secundárias (mesossistema) que possam
psicológicos presentes na pessoa (eu contribuir para amenizar ou,
ecológico), como também na esperançosamente, possibilitar formas de
conscientização do microssistema familiar interações familiares sem violência.
sobre suas relações. Por exemplo, abordar Infelizmente, a história de vida dessa
os processos de comunicação, os padrões família inclui cenas de violência e permite
de organização e a influência fazer analogia com um filme de ação. O
transgeracional (núcleo Tempo), as práticas roteiro inclui diversos tipos de violência
educativas (Processo) e a influência da vividos por seus protagonistas: violência
mídia e da concepção “machista” (Contexto transgeracional, intrafamiliar, social e
– macrossistema). As intervenções em rede urbana. No cenário, destaca-se uma
poderiam envolver instituições como a residência com conforto e pequenos
Promotoria, CT, escola e o próprio serviço ambientes fechados, como nos cômodos da
de atendimento, e esses órgãos devem estar casa, que mostram o isolamento e não
atentos e coesos em suas ações a fim de permitem trocas. Os membros da família
auxiliar e apoiar a família nas mudanças são atores de uma realidade, em que
necessárias. Esse modelo de análise permite desempenham papéis de fortes, valentes,
também auxiliar os profissionais no rebeldes, contraventores e destemidos.
atendimento e na intervenção psicossocial, Chorar não está no script, embora sofrer
já que a formação acadêmica, muitas vezes, faça parte desse turbilhão de sentimentos,
não contempla especificamente a assim como raiva, medo e desprezo. Rambo
instrumentalização na intervenção em casos e Van carregavam a sina em seus nomes.
de violência ou em situações de riscos Van já atendeu, talvez em demasia, às
severos e persistentes. expectativas familiares, e Rambo, por mais
Apesar dos esforços da equipe de que tenha vontade de mudar isso, acaba
psicólogas do Hospital em realizar um representando o papel instituído. Assim,
atendimento integrado, após iniciar a escritores da sua história, essa família vem
Teoria bioecológica e a violência familiar 29

desempenhando um reality show, cujo De Antoni, C., Barone, L., & Koller, S. H.
título poderia ser “Nascidos para Matar (a (2006). Violência e pobreza: um estudo
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