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V Ministério da Justiça
ISBN 85-7009-011 0

Medo do feitiço:
relações entre magia
e poder no Brasil
Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 1991 Yvonne Maggie

Comissão julgadora
Mana da Graça Salgado, presidente; Antõnio Houaiss, lsmênia de Lama Mar
uns, Luciano Raposade Almeida Figueiredo,Norma de GóesMonteiro, Regi
na Mana Marfins Pereira Wanderley

Medo do feitiço:
relações entre magia
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e poder no Brasil

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Maggie, Yvonne
Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil
/ Yvonne Maggie. Rio de Janeiro; Arquivo Nacional. Arquivo Nacional
1992 órgão do Ministério da Justiça
297p.; 22cm. -- (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa; 3)

ISBN 85-7009 011-0

1. Misticismo Brasil. 1. Título. 11.Série


Rio de Janeiro, 1992
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©1992 by Arquivo Nacional
Rua Azeredo Coutinho, 77,
20230-170, Rio de Janeiro, RJ
Telefones:(021) 252-2617; 242-9454
Fax: (021) 232-8430
Telex: 21-34103

Ministro da Justiça
Maurício Corrêa

Díretor-Geral do Arquivo Nacional


Jaime Antunes da Silva

Série Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 3


Coordenação editorial
Rotina lannibelli

Edição de texto
Sebastião Uchoa Leite

Capa
Luiz Alphonsus

Produção Editorial e Gráfica


Imprensa Nacional
Divisão de Editoração
SIG Sul, Quadra 6, Lote 800
70604-9D0, Brasília, Distrito Federal
Telefone: (061) 225-4790
Fax: (061) 225 2046
É preciso, antes de tudo, formar o
maior catálogo possível de categorias;
é precisopartir de todas aquelasdas
quais pode-se saber que os homens se
serviram. Ver se-á que existiram e
ainda existemmuitas luas mortas, ou
pálidas, ou obscuras no firmamento
da razão.

Marcel Mauss (1968:309)


Impresso no Brasil
Printed in Brazií
Para Luiz Aiphonsus e Domingos
Agra decimentos

Este livro foi, originalmente, minha tese de doutoramento, apresentada ao


Programa de Pós-Graduaçãoem Antropologia Social do Departamento de An
tropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
1988. Os comentários da banca examinadora, constituída pelos professoresJo-
sé Ricardo Ramalho, Laura de Mello e Souza. Rubem Cezar Fernandes,Gilber-
to Velho e presidida pelo Prof. Peter Fry, foram importante estímulo para mi'
nha ousadiaem participar do concurso promovido pelo Arquivo Nacional, o
que possibilitou sua publicação.
Um trabalho dessanatureza só poderia concretizar-seatravés da preciosa
colaboração de várias pessoase instituições durante o período de pesquisa de
campo e redação do texto.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq>, o Conselho de Ensino e Pesquisa para Graduados (CEPG> da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, a então Fundação Nacional de Arte (Funar-
te), a AssociaçãoNacional de Pós-Graduaçãoem CiênciasSociais(ANPOCS}
e a Fundação Ford concederamindispensável apoio
Os professores e colegas do Programa de Pós-Graduação (PPGAS} do
Museu Nacional foram todos importantes. Gilberto Velho, muito influenciou
através de diálogos enriquecedores. Yonne de Freiras Leite, mais que amiga. es-
teve sempre presen te.
Os Encontro Macumba representaramfórum de discussãode inegávelva
lor. Foi de um dessesencontrosque surgiu, com a colaboraçãode Marco An-
tonio Teixeira Gonçaives, o argumento central da tese. No Centro de Estudos
Abro-Asiáticos (CEAA), espreitaram-seos laços com Carlos Hasenbalge Marle-
ne de Oliveira Cunha, co organizadoresdos encclntros.
Os funcionários do Arquivo Nacional, indo e vindo com processosem-
poeirados, fizeram verdadeira pesca de linha naquele mar de documentos. Foi
crucia/, em muitos momentos,o conbecfmentoque tem do .Arquivo o Sr. E/í-
seu, da sala de consulta, preciosidade para os pesquisadoresque se aventuram Or/ando Senha, I'\''a/diria Proença, .4/exandre Campos, Cega (;uimaraens,
na busca de documentos antigos. Afonso Henriques Neto, Dinah Guimaraens, Margarida Sá, Marcos Medeiros,
Jether e Lucília Ramalho, Carlos Antonio Moita
Nessesanos de pesquisa,foram muitos os terreirospercorridos onde con-
versei e colhi informações. Um deles deve ser lembrado especialmente, o llê de A confiança de Peter Fry em minhas percepçõesiniciais sobre a crença no
Oxalá e Obaluaê. Lá contei com a ajuda, amizade e inteligência de Dona Con- feitiço e sua constante insistência para relativizar o material deram maior exa-
cepção,Sr. Ary, Helena, Aparecida e todos os médiuns da casa. tidão ao trabalho. Possoagora dizer que o desafio de ser orientador de uma
amiga foi mais do que bem-sucedido porque levou amizade e orientação a
Do Grupo de Trabalho Religião e Sociedadee do Grupo de Trabalho Cul- bom porto.
tura Brasileira da ANPOCS vieram críticas e sugestõesque foram incorpora-
Alphonsus de Guimaraens Filho ajudou com muita informação sobre reli-
das
gião africana na !iteratura brasileira e deu a dica para a forma dos agradeci
Vários pesquisadores acompanharam de perto este trabalho. Vivaldo Cas- mentes. Hymirene Papá de Guimaraens dividiu os cuidados com Domingos e
ta Lima. ciceroneextraordinárionas visitas a Salvador,discutindoe compa- estimulou-me com seu interesse.lsaura Gomes da Seivaacompanhou a pesqui-
rando os dados com a história da Bahia. EduardoSalvae Marcos Bretãs,con sa e é parte dela
versandoe discutindo. Jogo José Reis, ouvindo inúmeras passagense dando Luiz Alphonsus esteveperto e longe. Sua presençacomigo nos terreiros
seu estímulo. Beatriz Góes cantas, discutindo algumas partes e cedendo docu-
do Rio e seuamor dão razão última ao trabalho.
mentos importantes. Mana Lha Leão Teixeira, debatendo em fases diferentes
Meu filho Domingos, constante incentivo ao término da <(tese».
da pesquisa. Patrícia Barman, com amizade levantando diversas questões. Car-
dosAlberto Messeder Peneira, instigando e rindo das inseguranças. Anaiza Ver-
bo!ino, fazendo críticas que permitiam algumas reformulaçõesdo trabalho de
campo. Glaucia Vilas Boasajudando a formular com precisão algumasidéias.
Sérgio Costa Ribeiro, pesquisador recente no campo das Ciências Humanas,
foi de grande paciência e generosidade.
JoséHenrique Vilhena de Parva e Michel Messe,então diretor e vice
diretor no IFCS, mostraram-se extremamente prestimosos e pacientes
Os colegas do Departamento de Ciências Sociais deste Instituto comparti-
!param períodos de dificuldades institucionais. Neide Esterci, amiga do IFCS
desde1970, interlocutora inestimável, colaborou em muitas fasesda pesquisa.
Mana RosileneBarbosaAlvim desbravouo primeiro copião, com importantes
observações.JoséRicarda ajudou na organização do material, mostrando o ca-
minho para fazer «mapasl>dos documentos.
No Núcleo da Cor. do Laboratório de PesquisaSocial, o ambiente foi
sempre agradável e estim ulante.
Durante essesanos todos, muitos estudantesparticiparam de diferentes fa-
ses da pesquisa. Através de discussões em saia de aula idéias se esclareceram.
Todos foram generosos ouvintes e colaboradores. Seus nomes são citados no
decorrer do trabalho.
Sânía Olesko digitou os originais com dedicaçãoe competência. Verá
Adami reviu o copião origina! e Ange]a Me]in fez a ediçãoda versãofinal com
linguagem moderna e precisa
Muitos foram os amigos que participaram dessatrajetória com abetoe in-
teligência. Sérgio Santeiro, TeresaKopschitz, Mariana Paulon, Leon Capelíer, +

Jeanne,Manha, Annah, Ghíslaine, Luiz, Paulo, Cardose Sérgio Costa Ribeiro,


Sumário

APRESENTAÇÃO '17
ILUSTRAÇÕES ' 19

INTRODUÇÃO .21
Pontos, trabalhos, encruzilhadas e guias + 25
Itinerário da pesquisae 33
Sinopse e 34

PARTE 1 -- FEITICEIROS, MÉDICOS E JUÍZES: RIO DE JANEIRO


(1890-1940)
Introdução e 39
o que vale o processo? e 40
Periodização + 41
Como são os processose como foram coletados + 48

CAPITULÇ) 1 -- A estrutura dos processos (acusaçõese condenações) e 53


l Pipocas e azeite-de-dendêfazem feitiçaria no Castelinho da Rua do
Lavradio + 5ó
2. O paradigma das campanhas e 72
3. Os desfechos
dosprocessos
e 74
4. .Cabo-verdiano, profissão: curandeiro e 75
5. Espírita sonâmbulo, por Evaristo de Moraes + 78

CAPÍTULO ll A versão dos especialistas, acusados e testemunhas 83


6 A versão dos especialistas-- juízes, promotores, delegadose
advogados e 87
7. O Ferrazdo Andaraí e 90
8. O Juízodos Feitosda SaúdePública 99
9 O Mão Santa um paradigma jurídico e 107 28 O significado das acusações+ 239
10 Curava uma contusão com lápis lilás por 30$000 115 29 Quando a acusaçãoé indireta. O caso da pombagira Mana Padilha © 241
11 A versão dos acusados e 121 30 Quando feiticeiras são acusadassob o rótulo de estelionatárias ou «o caso
12 A versão das testemunhas e 133 da macumbeira>> e 249
13 Clientes e vizinhos + 134 31 Feitiçaria e fronteira políticas: «o xangâ de Alagoas» e 251
14 Policiais depõem + 140 32 A corda rói do lado mais fraco © 254
33 Casos bons para se pensar e 255
CAPITULO 111-- As evidênciasdo crime; o auto de flagrante, o auto de
apreensãoe a perícia e 145 CAPÍTULO Vll -- Os objetosda feitiçaria ' 257
15. A narrativada crençae 150 CONCLUSÃO e 269
16. Ainda sobre a narrativa da crença + 160
17. A crençacomoevidênciae 166 O feitiçohoje e 271
CAPITULO IV -- A crençana feitiçaria na República e 171
ANEXOS e 275
18. Homologias: as categorias da crença e as categoriasjurídico-
burocráticas e 179 Anexo 1 -- Relação dos processos e sentenças por ates de feitiçaria e prática
19. As expressõese categoriasdo universo religiosonão relativizadas:os ilegal da medicina + 277
discursos que concordam e o lugar da divergência. F de falso e 181 Anexo 11-- Relaçãodos objetos que compõem o Museu de Magia Negra da
20. Cronologia da crença. A macumba e o candomblé: as marcas da feitiçaria
Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações da Primeira
no Rio de Janeiro e 187 DeleÉacia Auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal + 279
21. O campo religioso e as instituições repressivas + 190

Conclusão e 193
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e 283
Documentos consultados e 285
Coleção das Leis do Brasil © 286
PARTE ll CASOS E FEITIÇOS 0U 0 QUE ESTA NOS AUTOS ESTA Jornais e 287
TAMBÉMNOMUNDO Revistas e 288
Introdução e 199 Fotografias + 289
Documentosdo Arquivo Nacional consultados 289
CAPÍTULO V -- O Centro Redentor e 203 Livros e Monografias + 289
22. As versões dos médicos + 207
23. Outras campanhase 215
24. Baixo e alto como categorias hierarquizadoras + 219

CAPÍTULO VI -- Seu :ete, a pombagira Mana Padilha, a macumbeira e o


xangâ e 223
25. Seu Sete da Lira e 226
26. Briga de santo ou questõesfilosóficase doutrinárias + 231
26.1. A versão da cúpula da Igreja e 232
26.2. As versõesda crença e 232
26.3. A briga entre vertentes estéticasou a dominação simbólica 236
27. As alianças © 238
Apresentação

O Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, uma das mais importantes ini-


ciativas institucionais de 1991, foi instituído na gestão de Mana Alice Barroso,
em comemoração ao aniversário de fundação do Arquivo Nacional, com o ob-
jetivo de incentivar o uso e a divulgação das fontes documentaissob a guarda
da Instituição.
Esta monografia, que agora vira livro, foi classificadaem terceiro lugar
pela ComissãoJulgadora do concurso, após acurado exame dos vinte e sete
trabalhos inscritos, analisando-os sob os seguintesaspectos:relevância científi-
ca, contribuiçãoda pesquisapara a divulgaçãodas fontesdo Arquivo Nacio-
nal, profundidadeda análise,tratamentometodológico,ineditismodo tema e
estrutura lógica e organização do texto.
A professora Yvonne Maggie, que concorreu ao Prêmio Arquivo Nacional
de Pesquisa de 1991 sob o pseudónimo de <(Mana Padilha>>,é doutora em An
tropoiogià Social pelo Museu Nacional, da UniversidadeFederaldo Rio de Ja-
neiro, coordenadorado Programa de Iniciação Científica do Laboratório de
PesquisaSocial do Departamento de Ciências Sociais, da referida.universida-
de, onde é regenteda cadeira de Antropologia. E autora do livro Guerra de
orixá: um estudo do rifua/ e conf7íto, já em segunda edição, editado no Rio de
Janeiro pela Zahar
Sua pesou\sa,Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}, va-
loriza as fontes históricas no trabalho antropológico, ao utilizar os processos
criminais para estudar as formas de combate e perseguiçãoàs religiões mediú-
nicas e para analisar a maneira pela qual a crença na feitiçaria se constitui e se
organiza.

Jaime Antunes da Seiva


Diretor-Geral do Arquivo Nacional
Ilustrações
l Üélação entre a cor dos acusadose a cor da população do Río de
Janeiro © 69
2 Relação"entre a cor do acusadoe o artigo no qual foi enquadrado no
inquérito policial e 70
3 Porcentagemde pretos, pardos e brancos por artigo e 70
4 Frequência de acusados e 71
5 Origem dos acusados e 71
6 Processos analisados e 74
7 Relaçõesentre estratégiase discursos e 131
8 Relação entre instituições repressivase espiritismo e 192

Documentário fotográfico(encarte)
9 [)espacho na encruzi]hada
10 Sacudimentono cemitério realizado por filhos ê'filhas-de-santodo llê de
C)xalá e Obaluaê. Nova Iguaçu, 1979
11 Matança na casade exu. llê de Oxalá e Obaluaê. Miguel Couto,
1979
12 Obrigação de um filho-de-santo do llê de Oxalá e Obaluaê. Miguel Couto
1979
13 [)espachona encruzi]hada.Migue] Couto, 1979
14 D. Concepção,mãe-de-santo do llê de Oxalá e Obaluêê -- à esquerda --
com suamãe-de-sangue, D. melena.Miguel Couto, 1979.
15 D. Helenacom três filhas-de-santodo. 1lêde Oxalá e C)baluaê.Miguel
Couto, 1979
16 llê de Oxalá e Obaluaê. Miguel Couto, 1979
17 Despacho na encruzilhada
18 Antiga sededo Centro Redentor,anualasilo
19 Anual sede do Centro Redentor
20 Mledicina versus espiritismo: manchete no l)fárío da Noite
21 Seu Sete da Lira realizando curas
22 PombagiraMana Padilha na delegada.Foto jornal O Dfa, 1979
23 Pastor tenta exorcizar Mana Padilha na delegada. Foto, O l)ia,
1979
24 Tio Salú: Feiticeiro dos políticos alagoanos. ./arma/ de Á/agoas
25 Repressão à feitiçaria em 1941
26 Exu Tiriri. Museu da Polícia
27 Exu Sete Capas. Museu da Polícia
28 Assentamento de exu. Museu da Polícia
29 Vestimentas rituais. Museu da Polícia
30 Objetos rituais. Museu da Polícia
Introdução
Não há pessoaque passepelo Rio de Janeirosem repararnos
despachos,(i) velas e oferendas nas praias, cachoeiras e parques. As oferendas
insistem em estar presentes, apesar de quase sempre feitas às escondidas. As
mães não deixam os filhos pequenos mexerem naquelas coisas perigosas. Nin
guémesqueceo medo infantil ao ver vela, galinha preta. pele de cobra seca,
alguidar com farofa, panos vermelhos e pretos, garrafas de cachaçana esquina
de casa.
Quem vive a vida dos terreiros, casas de cu/to e centros pode perceber
com muita clarezaque há dois tipos de rituais e cerimónias.Há sessões
e ri
duaispúblicos com cerimónias de uma riqueza impressionante e há rituais pri-
vados como as consta/fase os sacudímenfos. É nos rituais privados que se pro
cessaa magia e é neles que se produzem os despachos.
Tudo se passacomo se os fiéis tivessemlido Durkheim e aprendidocom o
sociólogo francês as diferenças entre magia e religião. Para [)urkheim (1968), a
religião tem caráter coletivo e público; a magia se escondedo coletivo e do
público, reservando-seespaçosmais individuais e privados. Crentesda magia
e da religião podem compartilhar os mesmosdeuses,mas os cultuam em
domínios diferentes
É assima vida no sarro: a magia transbordaos limites espaciaisda casa
onde se realizam os rituais públicos e insiste em aparecer em locais públicos de
forma misteriosa, às escondidas -- nos despachos, oferendas, ebós, íeftíço.
O interessecentral do livro Guerra de orixá (Maggie,1975)lá eram os as
pectos privados dos rituais, em detrimento das cerimónias públicas. Na análise
da estrutura de poder interno de um terreiro ressaltavamos aspectosrelativos
às tensões,conflitos e acusações,contra os de consensoe na face privada da
organização política ou da ordenação do poder. E anos depois, buscando en
tendera relaçãodos rituais religiososcom a vida de um bairro, segue-se uma
(1) Neste trabalho as categorias e expressões que são usadas por todos os personagens dos casos
relatados estão em grifo, na primeira vez em que aparecem(lista em anexo)

e 21
yvonne A4aggíe fde r no Brasil

pesquisanuma casa de culto da periferia do Rio (Maggiee Confins, 1980).AÍ O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no
se focaliza também a relação das cerimónias religiosas com a vida privada e combate aos feiticeiros regulando acusações, criando juízos especiaise pessoal
cotidiana das pessoas. Em um mês de estada nessa casa em muito se ampliou a
reflexão sobre essesrituais privados: sacudimento, despacho, trabaJÀosno ce-
mitério, na encruzilhada,consultas.Esselado da vida do terreiro ocupava
mais as pessoase suas conversas do que os rituais mais públicos.
O presentetrabalho tem objetivo mais abrangente.Pretendeinvestigar as se institucionalizou e passoua ser usado com mais intensidadecomo instru-
relaçõesentre a crença na magia ma/é6ca e bebé/ica, as acusaçõesde feifiçarfa mento de combate aos feiticeiros.
e coar/afanfsmo e os mecanismos sociais reguladores dessasacusações. Afirmava-se e se afirma ainda que o Estado perseguiu e reprimiu
A crença na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocul- macumbeiros, espíritas e umbandistas, e a maior parte dos participantes desses
tos e sobrenaturais é bastante genera]ízada no Brasil desde os tempos co]o- cultos diz que os repressoresforam vencidos. Essaidéia está presenteem quase
todos os discursos quer de estudiosos ou de mães e pais-de-santo e revela um
niais. De acordo com a crença, certas pessoaspodem usar consciente ou in-
conscientemente(2)essespoderes sobre os outros, para arrasar a vida, fechar consensosobre a história das religiões mediúnicas. Houve uma repressão na
camínbos, roubar amantes, produzir doenças, mortes e uma infinidade de ou- origem, mas a crença venceu e conseguiu expandir-se.
tros males. Essa crença enche e encheu desde a Colónia as casas dos A literatura sociológicatenta dar conta dessahipóteserepressiva A idéia
curandeiros, centros, terreiros, benzedeiras,espíritas e médiuns de todas as es- central formulada pelos estudiososdo assunto é a de que os senhoresbrancos
pécies. Norteou também a atuação de juízes, promotores, advogados e poli- reprimiam os folguedose a religião dos escravosna Colónia de forma brutal,
ciais sendoo sincretismo religioso resultado dessarepressão, que fez com que os es-
cravos fingissem e escondessemdivindades africanas sob a máscara de santos
A magia brasileira, desde a Colónia, dispõe de mecanismosreguladores
das acusaçõesa bruxos e feíficefros nos terreiros e locais de culto; e diferente- católicos (Rodrigues, 1935; Ramos, 1942; Bastide, 1971). Surgiu então uma.no-
mentede muitas sociedadesonde é forte a crençana feitiçaria, aqui não sepu- va religião, denominadaabro-brasileira. Mais recentemente uma quantidade
ne os feiticeiros com a morte. Foi a partir da República,no entanto, com o de- de trabalhos continua afirmando que o Estado reprimiu a umbanda, culto nas-
cido nos anos 20, no Rio, e hoje nacionalmente espraiado e que as federações,
creto de ll de outubro de 1890, que o Estadocriou mecanismosreguladores
do combate aos feiticeiros, instituindo o Código Penal. No Código introduziu- órgãos centralizadores, que cresceram em número a partir dos anos 30 deste
século, no Rio de Janeiro, teriam surgido para livrar os centros dessapersegui-
se três artigos(3) referentesà prática i/ega/ da medícfna, à prática da magia e à
proibição do curandefrismo. Ao serem instituídos, os artigos revelaram, da
parte dos autores, temor dos malefícios e necessidadede se criar modos e insti- Penas prisão celular por um a seis meses e multa de IDOS a 500$000

tuições para o combate a seus produtores. $ 1" se por influência ou em consequênciade qualquer dessesmeios resultar ao paciente pri
vação ou alteração temporária ou permanente das faculdades físicas
Penas -- prisão celular por um a seis meses e multa de 200$ a 500$000
(2) Evans-Pritcharddistingue bruxaria de feitiçaria, sendoa primeira um sistemainconscientede
$ 2' em igual pena, e mais na privação do exercício da profissão por tempo igual ao da con-
produzir malefícios e a segunda um sistema consciente de atacar a vítima. Neste trabalho será
denação incorrera o médico que diretamente praticar das artes acima referidas ou assumir res-
sempre usado o termo feitiçaria porque mesmo havendo a distinção conceptualela é pouco ex-
ponsabilidade por elas
plicativa e a magia acaba sendo um sistema de explicação no qual se tenta responder porque o
infortúnio e acredita-seem que pessoaspossamusar poderespara atacar vítimas e produzir- Art. 158 -- Ministrar, ou simplesmenteprescrever,como meio curativo para uso interno ou
Ihesa dor, a desgraçae até a morte externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazen-
do, ou exercendoassim, o ofício denominado de curandeiro
(3) Art. 156 -- Exercer a medicina em qualquer dos seusramos e a arte dentária ou farmácia: pra-
ticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado Penas prisão celular por um a seis meses e multa de lOaS a S00$000
segundo as leis e regulamentos. Parágrafo único -- se do emprego de qualquer substância resultar à pessoaprivação: .ou alte-
Penas -- prisão celular por um a seis mesese multa de 100$ a 500$000. ração temporária ou permanente de faculdades físicas ou funções fisiológicas, deformidade, ou
nabilitação do exercício de órgão ou aparelho orgânico, ou, em suma qualquer enfermidade
Parágrafo único -- pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em geral, os seus
autores sofrerão, além das penas estabelecidas,as que forem impostas aos crimes a que derem Penas -- prisão celular por um a seis anos e multa de 200$ a 500$000
causa Se resultar morte
Art. 157 -- Praticar o espiritismo, a magiae seussortilégios,usar de talismãse cartomancias Pena-- prisão celularpor seisa vinte e quatro anos
para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstiascuráveis ou incuráveis,
enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública Código Penal de 1890, Decreto de ll de outubro de 1890, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional

22 e e 23
yvonne Maggíe Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasi}

ção (Brown, Barman,Seiblitz, Negrão e Concone,1985). Os próprios umban- desteséculo, há dois tipos de rituais; os rituais de magia negra, de feitiçaria e
distas e candomb/ezeiros pensam dessamaneira; as novas modalidades religio- os rituais de invocação de espi'rufos, onde se cultuam os espíritos.
sas surgidas na República, como a umbanda, e os órgãos centralizadores que Todos os casosestudados revelam essadistinção clara entre magia e culto
defendem interesses dessas religiões, nasceram também da repressão
dos espíritos. Portanto, o que está em jogo é justamente a crença na magia e a
Na décadade 80, com o trabalho de Beatriz Góis Danças(1983),tentou-se maneira pela qual esta se relaciona com a religião. Os acusadossão sempre de
relativizar essahipóteserepressiva. Ela demonstrouque enquanto alguns ter- finados como feiticeiros e sempre se defendem dessa acusação.
reiros eram violentamente reprimidos, outros eram protegidos por intelectuais Aqui se procura responder às seguintes perguntas: que crença é essa?
da e]ite ]oca]. Essesúltimos -- geralmente os nagâs puros -- foram isentos da
Quais os mecanismosreguladores das acusações?O que significa a crença na
acusaçãode impuros e mágicose alçadosao sfafusde religião, fora do alcance
da polícia. feitiçaria na sociedade carioca republicana e contemporânea?Que tipo de do-
minação simbólica e de resistência à dominação foi possível diante do recru-
Este trabalho segue o rumo estabelecido por [)antas, procurando re]ativi- descimentodas acusações
de feitiçaria no período que se estendede 1890 a
zar ainda mais a hipótese da «repressãodo Estado às religiões afro-brasileiras e 1986 no Rio de Janeiro?
ao espiritismo». Com isso se procura demonstrar que os mecanismos regulado-
res criados pelo Estado a partir da República não extirparam a crença mas, ao
contrário, foram fundamentaispara sua constituição. O trabalho se baseiana Pontos, trabalhos, encruzilhadas e guias
descrição e análise do que se passou no Rio de Janeiro. Além de materiais et-
nográficos contemporâneos, localiza 25 processoscriminais(4) instaurados por É preciso dizer que Edward Evans-Pritchard foi o maior inspirador deste
suspeitade infração dos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890 no trabalho em dois sentidos. Em primeiro lugar porque foi a partir do clássico
período de 1890 a 1945
Bruxaria, orácu/os e magia entre os azande que se pede entender a feitiçaria
Os processosformais são instrumentos-chaveda regulamentaçãodas acu- como sistema cognitivo, sistema de crenças, sistema que visa explicar o infor-
sações,desvendando também a arena onde se entrelaçou a trama dos discursos túnio. Evans-Pritchard compreendeu o significado da bruxaria quando desco-
dos personagens.Constituem um material privilegiado para captar as formula- briu através de muitos casos por que os azande chamavam a bruxaria de <<se-
ções dos vários segmentos sociais envolvidos. A análise do material permitiu gunda lança)>.Os azande são caçadores e a caça é abatida com lança. A pri-
formular generalizações dado o grande número de pessoas e circunstâncias des- meira lança fere mortalmente e a segunda acaba de matar o animal, segundo
crinas
os informantes. Mas o que tem a ver a <lsegundalança» com bruxaria? A mor-
Há um ditado jurídico que diz: «o que não está nos autos não está no te de um indivíduo por desabamentode um celeiro esclareceua bruxaria como
mundo» (Correa, 1983). Ele explicita a idéia de que a instância dos processos sistemade explicaçãodo infortúnio. Velho, comido pelastérmitas, o celeiro
tem autonomia em relação à realidade e de que o juiz só analisa fatos do pro- desabousobre o infeliz. Todos disseram que foi bruxaria. Para o antropólogo,
cessoe não da realidadeexterior. Sistemasque devemser conhecidosem si o celeiro, carcomido, cairia de qualquer jeito. O homem estava embaixo, por'
mesmos, os processos foram, então, analisados em primeiro lugar, e separada tanto morreria esmagadopelo peso do celeiro. Os azandeconcordaramcom
mente. ele. Ê claro, os bichos destroem os celeiros, as pessoasdescansamà sua som-
A primeira vista os processos criminais se referem a ações de repressão bra. à tarde. Portanto, podem morrer se o celeiro cair. Mas a pergunta a ser
aos cultos. A análisemais detida descobreque, na verdade,tratam da caça respondida não era <(como)>morreu a pessoa, mas «por que)>aquela pessoa
aos feiticeiros. Sua leitura não evidencia a intenção de liquidar a crença. mas a exatamente naquele momento, estava debaixo do celeiro?
necessidade de identificar feiticeiros, autoresda magia maléfica. As representa- A bruxaria é assim a «segunda lança>>,ou seja, é a explicação da causa da
çõesexpressaspelos personagensdos casos analisadosenfatizam uma diferença morte e não de como se morre. E a respostaao porquê aquelapessoaestava
claramente definida entre magia maléfica e magia benéficae indicam que as re- ali naquele momento. O <(como se explica por observação empírica do senso
ligiões mediúnicasou cultos são percebidoscomo práticas de magia benéfica, comum. O homem morreu porque o celeiro caiu sobre ele. Mas ipso não expli-
enquanto feiticeiros e criminosos são aquelesque fazem o ma/, tuba/bam para ca por que aquele indivíduo particular foi morto por aquele celeiro que caiu
o ma/. Os verdadeiros espíritas, umbandistasetc., fraga/bam para o bem e nessahora e local e não em outra circunstância.A feitiçaria explicapor que
cultuam os verdadeirosespírffos.Como definiu um perito, na décadade 30 pessoasparticulares, em lugar e hora específicos,sofreram infortúnios particu-
lares -- acidentes, doenças, morte, perda do emprego. A feitiçaria como teoria
(4) Ver o quadro do Anexo 1, ondese faz um resumodas características
de cada processo. de causalidade, está voltada para a singularidade do infortúnio

24 e e 25
yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasi]

Há outras explicações para esseproblema metafísico: por que certas coisas nome do culpado; os processosinstaurados pelos artigos 156, 157, 158. O orá
acontecem a certas pessoas em local e hora específicos? Há explicações como culo era a períciaespecializada
em analisar objetos apreendidospela polícia,
carma,destino, desejo de Deus, ação dos espíritos de ancestrais.No Brasil tam- ctuandodepois de uma denúncia, se invadia um terreiro, casade culto ou resi-
bém se emprega alguma dessas outras respostas. Os agnósticos podem chamá- dência do acusado. Os peritos nessesobjetos desenvolveramtécnicas para
la de chance; a interação de duas cadeias de eventos no tempo e espaço- identificar objetos próprios para fazer o mal ou objetos fa/sos, de cear/afães
Por isso tudo, a crença na feitiçaria não exclui outras explicaçõesque se ou mistificadores
pode chamar de observações empíricas sobre «como» os eventos ocorreram. De um modo geral, na terra zande, como no Brasil, são denunciadosos
Uma bruxa não tem poderes para ferir díretamentc. Ela só pode atacar usando nomesde pessoasde algumaforma inimigas do denunciante.Acredita-seque
doença, morte, desemprego. quem usa seuspoderes contra alguém é inimigo.
A feitiçaria, assim, não se opõe ao pensamentocientífico. Enquanto a Assim Evans-Pritchard ensinou que a feitiçaria busca explicar o porquê do
ciência procura entender o como, o pensamentomágico responde ao porquê infortúnio e relacionou, através da análise das técnicas dos oráculos, o porquê
Um exemplo claro pode ser retirado de um dos casosrelatadosnos processos à animosidade que causa nos homens o desejo de fazer o mal a outros.
criminais, <.Pipocase azeitede dendêno Castelinhoda Rua do Lavradio)}.A Além da feitiçaria, o culto dos ancestraisfaz essaligação com a interação
questãocentral do processoera saber se a dona da pensãotinha ou não feito moral das pessoas.Infortúnios se abatem sobre médiuns por não cumprirem
um trabalho contra algumas das pensionistas. Às vezesas prostitutas perdem o suas obrigações com os santos ou por não observarem regras morais. A feiti-
emprego e o negócio anda mal. Mas por que naquele momento um determina- çaria, no entanto, ataca a pessoavirtuosa, enquantoos ancestraispunem
do negócio começa a dar errado e uma determinada pensionista é mandada quem agiu errado.
embora?
A ideia centralé a de que a feitiçaria tem a ver com as relaçõesentreos
Falou-se aqui na feitiçaria como teoria de causalidade, mas não se mencio- homense é, portanto, uma teoria que se liga aos aspectosmorais dessasrela-
nou a natureza dos feiticeiros. Na prática, as pessoassofrem infortúnios e
ções. Quem é invejoso? Quem é moralmente condenável por ser ambicioso?
crêemque estão sendo atacadas por um feiticeiro. Na teoria, o feiticeiro coloca
seuspoderesmalignos para fora e causao infortúnio. Os azandeacreditamem Evans-Pritchard também ensinou que os sistemas de crença na bruxaria
que a bruxaria é uma substância localizada no estomago. Qualquer um pode tendem a ser fechados, absorvendo muitas falhas e evidências aparentemente
possuí-la, mas nem todos a põem para fora. A pessoatolerante e generosa, contraditórias. Essaespécie de sistema de crença é caracterizada por aquilo que
não coloca seus poderes contra as outras. Mas se o homem é irascível, ambi- Evans-Pritchard chamou de «elaboração secundária da crença». Em muitos ca-
cioso, sua feitiçaria sai à noite para fazer mal a quem Ihe tenha provocado in- sos a magia não funciona. A falha pode ser interpretada dentro do sistema
veja ou raiva invocando se outras crenças.(ÕJ
No Brasil, as coisasse passamda mesmaforma. (1)ualquerum pode ir ao O sistemaé capazde consertarboa parte das falhas. Permite, além disso,
terreiro e fazer um trabalho para atacar um inimigo. O ataque é considerado a existênciado ceticismo.O importante, no entanto,é que falhase ceticismo
um mal, uma maldade provocada por inveja ou ambição. Todo médium tem se referema acusaçõesparticulares de feitiçaria e não ao sistemacomo um to-
poderes para o ma/, mas só os maus aplicam esserecurso. do
Por isso, a feitiçaria é também uma teoria moral. Dizem os azande: «A A análise de Evans-Pritchard ilumina a natureza circular do raciocínio
inveja vem antes, a feitiçaria seguedepois». E aqui se diz {(olho grande é pior em qualquer sistema de pensamento. Assim, seu estudo não explica apenaso
que um feitiço» -- a inveja é pior que a feitiçaria. A moral da feitiçaria desa- sistema zande de crença na feitiçaria, permitindo comparações. Essa natureza
prova os vícios anel-sociaise aprova a virtude. SÓse procura identificar o fei- circular, portanto, estápresenteentre brasileiros e azande,dentro das premis-
ticeiro que produz o mal quando a doença ou infortúnio é grave. Usam-sevá- sasde seus respectivos sistemas de crença, do mesmo modo que no pensamen-
rios métodos para buscar o nome do verdadeiro culpado. Havia entre os azan- to científico.(Ó)
de o «oráculo do veneno)>,a mais importante técnica de investigação. O adivi-
nho ministrava a uma galinha uma poção especial,que podia ou não mata-la:
se a a+e morria, o nome consultado era culpado; se não morria, era inocente. (5) No Brasil criou-se a idéia de charlatanismo e com ela se explicou falhas ou falsos casosde ma-
gia. O charlatão é também culpado de outro crime, o da falsidade, mistificação
Há nos terreiros várias técnicaspara se descobriro feiticeiro, mas foi na (6} Para essadescriçãoda teoria da bruxaria e para a leitura do pensamentode Evans-Pritchard
Repúblicaque o Estadocriou o método que se tornou popular de selecionaro foi importante a leitura de Gluckman (1955)

2Ó e e 27
rvonne J\4aggíe
1.dedodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

Em /-ífstórfa da sexta/idde (1985), Michel Foucault repensa a hipótese re-


O ancestralda teoria da bruxaria inspirou estetrabalho em outro sentido.
Foi ele quem afirmou que nenhum informante pode dar sozinho a explicação pressiva. A tese defendida por estudiosos dos valores medievais e técnicas in-
da bruxaria como sistema. Clabe ao antropólogo buscar o sistema, analisando quisitoriais e os próprios teóricos da sexualidade é a de que se reprimiu o sexo,
dúziasde casosde acusações
e outros tantosde acusações
infundadas.[)esse vendo uma história de luta contra a repressão.Foucault, por outro lado, de-
esforço comparativo e analítico se pode depreender o sistema que organiza a monstra que a repressãonão visa extirpar a sexualidade,ela funda a própria
sexualidade.SegundoFoucault o poder não se impõe a partir de um grupo de
vida e a mente do grupo estudado. Seguindo essaBufa, se pede descobrir atra-
vés da análisee discussãode dúzias de casose processoscriminais qual o siste- cínicosque maquiavelicamente controla e subjuga um outro grupo ingênuo.
Impõe-seatravés de finos mecanismos, de uma microfísica de ates e comporta-
ma em Jogo.
mentos, onde não se pode detectar dois grupos opostos. O poder se impõe
Nos anos 70 a antropologia social inglesa retoma os estudos na área e através de mecanismos de conhecimento. Para dominar é preciso que se conhe-
acumula informações sobre casos de feitiçaria africana. Nessestrabalhos se ça e para conhecer é preciso a confissão, o depoimento do dominado. As téc-
prioriza a busca das redes de acusaçõese através delas, como faz Mary [)ou- nicas visam disciplinar e normatizar atividades, práticas socialmente dispersas-
glas (1970), procura-se entender o substrato político do sistema de crença na Nessesentidoé que a repressãofunda a sexualidade,porque o sabersobreela
feitiçaria.(7) Os antropólogos ingleses buscam entender quando e por que sur- é fundamental para que o poder se estruture. Poder e saber caminham juntos e
gem acusações e quais as consequências políticas dessas acusações. Mary Dou- só se pode dominar se há conhecimento, saber, sobre as práticas dos domina-
glas (1970) enfatiza os conflitos como origem das acusaçõese tenta entender dos
como as acusaçõesproduzem delimitação de fronteiras políticas. Marwick Com essecaminho aberto ao pensamento,a cada leitura dos processos
(1979) aponta a causa do surgimento de acusaçõesde feitiçaria nas tensões criminais tudo parecia ficar mais claro. O Estado, no Brasil, se imiscuiu nos as-
existentes entre grupos.
suntos da magia porque era preciso conhecer, disciplinar e socializar essasprá-
Não se vai discutir aqui em profundidadeo debateentre essesdois tipos ticas tidas como de negros e pobres, mas que todos conheciam na «alucinação
de explicação. Tanto Mary Douglas quanto Marwick levantam pontos impor da dor ou na ambição)}. Magia e poder se entrelaçaram e magistrados, fiéis e
dantesa serem pesquisador. Ou seja: quem acusa quem? Através dessa pergun- acusados são tocados pelo mesmo sistema de crenças.
ta se entendecomo se colocam os grupos frente às acusaçõese assim se delimi- Finalmente um ponto central precisava ser esclarecido. Por que tantas
tam fronteiras. acusaçõese por que o feitiço é tão central no Brasil de 1890 a 1985?
Victor Turner é inspiraçãodesdeGuerrade orixá, com sua idéia de uma Também Lévi-Straussfoi guia, em dois sentidos.Em primeiro lugar, o ca-
estrutura no processo. A noção de drama social está presenteem cada caso so do adolescentezune, descrito em Feificeíro e sua magia (Lévi-Saraus,1985),
descrito. Ela permite compreendernas processoscriminais e nos casos mais permitiu fazer a ponte entre a magia de tribos ameríndias e as práticas forenses
contemporâneos descritos uma estrutura que possibilita cismas e continuida- do Brasil contemporâneo.Não se trata de pensaro primitivismo sobrevivendo
des
hoje. As culturas têm uma lógica. E é essalógica que se busca entender através
Amigo de saudosamemória, Turner visitou comigo terreiros do Rio; nos- de dúzias de casos.
sas conversasgiraram em torno dessanoção de drama, guia seguropara a O adolescentezuni, acusadode feitiçaria, só foi inocentado quando assu-
compreensão da estrutura no processoda vida social e semperda do objeto miu a responsabilidade pelo enfeitiçamento, descrevendoaos juízes o sistema
primeiro da antropologia, a ação e a vida de mulheres e homens concretos de crença em que todos acreditavam e que era precisoconcretizar, materiali-
Embora não se mencione e discuta o conceito de drama no decorrer deste tra-
zar, comprovar. O adolescenteteve que se provar feiticeiro e mostrar a prova
balho, ele permeia as descrições, incorporado a cada passo dado no sentido de concreta do feitiço, uma pluma. Feita a demonstração, todos ficaram tranqüi-
pensar a estrutura desses processos. los, a crença estava recuperada. Por ter perdido seus poderes, o adolescente
Através de Michel Foucault (1985) abriram-se os caminhos para o entendi- pede ser afinal absolvido, mas a feitiçaria continuou viva
mento: como explicar a repressão às religiões mediúnicas que tanto prolifera- Apesar de Evans-Pritchard lá ter ensinado isso, foi a pluma do adolescen-
ram nestes últimos cem anos? Terão vencido CPS repressores que desejavam
te que fez lembrar os objetos apreendidos dos processoscriminais no Brasil.
exterminá-las?
Lévi-Strauss inspirou ainda a busca do significado para essaquantidade de
grupos, segmentos, pessoase coisas que surgiam a cada caso. Cada acusação
17)A antropologia social inglesa nos anos 70 seguiu a pista já anunciada por Evans-Pritchard de feitiço parecia acender uma luz, a enquadrar ou focalizar grupos, pessoas,
quando descobriu que os feiticeiros estavamentre os inimigos e que a feitiçaria era assunto
que ligava a causa do infortúnio à moral das relações sociais. segmentos,sempre hierarquizando-os. Há baixos e a/ros espiriffsmos. Há maus

e 29
28 e
yvonne A4aggíe !cedo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

e bons espi'ritos. Espírífos superiores e inferiores. Por que tantos grupos rela- Sem denúncia, é impossível haver processo referente a um dos três artigos
cionados, por que a hierarquia? do Código Penal. Eis um exemplo de denúncia feita ao chefe de polícia em
1892
Em Tofemísmo bole (1986), Lévi-Strauss divide a sociedade humana em
dois grandes grupos -- as sociedadestotêmicas, classificatóriase as sociedades Tenho a honra de cumprimenta-lo apesar de não ter a honra de
sacrificiais. conhecê-lo. Como sabemos que V. Exa. é amigo da moralidade e da
justiça, iremos, por meio desta, fazer um apelo a V. Exa. para fazer
Simplificando sua idéia, as sociedadestotêmicasclassificam grupos por
cessar este abuso (ilegível) feitiçarias e cartomancia que infesta esta
metáforas, de forma igualitária. Gaviões e corvos, como metáforas, expressam cidade. as vítimas são muitas, vamos relatar um fato que indicará a
os clãs dos quais são totens. Há diferenças entre gaviões e corvos, mas as duas V. Exa. a que ponto chega o abuso dessa gente.
classese suas diferenças não são hierarquizadas. Já as sociedadessacrificiais
operam através de classes que se ligam metonimicamente, por contiguidade. Na Rua Senador Pompeu existe um tal Rocha ou Costa preto
Estashierarquizam as diferenças. Cada caso descrito neste trabalho revela gru- mina rica que vive às custasdas ignorantesvítimas, tendo uma se-
pos e classesque se ligam e relegampor proximidade e contigüidade. nhora ido consulta-losobre o marido que achava-seausentee que-
Surgiu dos processos um inesperado sincretismo entre categorias do uni- rendo fazer volta-lo foi procurar o tal negro a conselhode outras
verso jurídico e categorias da crença. O leitor dos processos criminais se so- pessoas.O tal feiticeiro disse-lheque fazia o trabalho para ele vol
bressaltasem saber que despacho se menciona, o despachodo juiz ou o despa- tar para casa porém mediante 300$000 pagos adiantados. AÍ a .se-
cho da encruzilhada. Essaaproximação de categoriaslevou à primeira desco- nhora caiu em prantos e disse-lheque não podia pois não os tinha,
berta do sincretismo como metonímia, aproximando grupos e classespor con- que fizesseo marido voltar para casa que dele mesmo tiraria o di-
tigiiidade. nheiro. O negro disse que não precisava isto pois ela tinha no seu
corpo com que pagar e ali apontou para a senhora, ela saiu deses-
Ao lado disso, cada acusaçãode feitiço revelava uma rede de grupos
perada e relatou-nos o fato, fiquei indignado e prometi, por.meio
contíguos que se colocavam hierarquicamente uns em relação aos outros. O de uma carta, denuncia-loa V. Exa. Há outros em piores condições
caso de Seu Sete da Lira em 1971, descrito na segundaparte, é o paradigma. seria muito longo, porém dou a V. Exa. a numeração e casa porque
Com a acusaçãosurgiram grupos a favor e contra Seu Sete,grupos mais serão apanhados em flagrante pelas imoralidades ali praticadas. E
e/evadose menos desenho/vídos, e organizaçõesa nível nacional tentando reu- uma vergonha, existe um na Travessa das Monqueiras defronte ao
nir os terreiros mais desenho/vidas e extirpar o mal, os abusos, os charlatães. número 49 (...) estessão feiticeiros que dizem que acabam com a
A acusaçãocolocou em relação tropicalistas e conceituais e fez vir à tona a fa-
la da contracultura. Assim. se chegou ao feitiço como operador lógico dessa república se eles quiserem, certas mulheres fazem ponto para as
pândegas e defloramentos. O tal da Travessa das Monqueiras
classificaçãometonímica que no Brasil hierarquiza e relaciona grupos. chama-se Cipriano conhecido por Bedê, outro conhecido por Diogo
No entanto, a compreensãodessesistematão incorporadoao modo de mina.. essessão terríveis e matadores, dão palpites de bicho median-
pensar de todas as classesexigiu que se saíssedo Brasil. Peter Fry, orientador e te percentagem, pedimos providências para essaspobres vítimas ig-
amigo, insistiu em situar o caso brasileiro numa perspectiva comparativa. norantes que caem nestas baboseiras. Com vagar darei a V Exa
O sistema legal em Zimbábue(0) (antiga Rodésia), descrito por Peter Fry listas dessepovo e bicheiros e cartomantes.(Ç)
(1976), é oposto ao instituído no Brasil. Enquanto aqui se privilegiou a acusa- A carta é anónima e deve ter havido muitos missivistas como esse,porque
ção, lá esta foi proibida. Através desseoutro modelo, usado em toda a Africa os processossempre mencionam as inúmeras denúncias feitas à delegada con-
Inglesa e que em Zimbábue tomou o nome de Lei de Supressãoà Feitiçaria, se tra o acusado.
pode relativizar o caso do feitiço no Brasil. O fundamental nesse tipo de denúncia é o fato dela ser feita por alguém
A primeira característica dos processos criminais brasileiros estudados é que participou do engodo, um amigo da vítima. Não se denunciaa crença na
sua instauração a partir de denúncia. Ela é fundamental para a lógica dos pro- feitiçaria, mas pessoasespecíficasque praticam o ma/.
cessos.O Código de 1890 e leis posteriores, como a n' 173 de 1893, estimulam Estará carreta a interpretação dessesprocessos como processos de comba-
a denúncia de associaçõesreligiosas {'quando elas servirem para fins ilícitos».
te à feitiçaria? A denúncia não fará parte de qualquer processo criminal? Tais

(8) Zimbábue é o nome adorado pelo governo depois da independência,aqui utilizado de agora
em diante mesmo em referência ao período pré-independência,antiga Rodésia. (9) Caixa 6, C 21 do Arquivo Nacional. A carta foi gentilmente cedida por Marcos Bretãs

30 e
yvonneA4aggie Mledodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

perguntasse impunham toda vez que os processoseram interpretados como Se os inglesescolonialistasvisaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite
um tipo de regulamentação do combate a feiticeiros. A impressão que causa a brasileira, nela emaranhada, procurava administra-la satisfatoriamente. E esta
leitura é mesmo a de que se tratava de um combateaos feiticeiros. Essaim- a hipótese do trabalho.
pressãotornou-se mais concreta com a descobertade que em Zimbábue, os Essespontos e guias foram sendo construídos no decorrer do trabalho de
ingleses instituíram, mais ou menos na mesma época, 1897, a Lei'de Supressão pesquisa.As idéias, no entanto, foram se tornando claras à medida que se or-
à Feitiçaria, e de que um dos artigos mais usadospela justiça inglesa era o que ganizava o material e se tentava dar ordem ao caos aparente dos dados. Não
proibia acusaçõesa feiticeiros. Assim os inglesesbarraram o secularprocesso houve por assim dizer um insfgbf mas um grande esforço no sentido de religar
de combate à feitiçaria, impedindo as acusaçõesem juízo coisase voltar a velhas perguntas sobre os mesmoscasos
Seo denunciante acima citado estivesseem Zimbábue sob a Lei da Supres- A pesquisaque deu origem a este trabalho tem uma história e é esseitine
são à Feitiçaria (Crawford. 1967}, seria preso e sofreria processo.No Brasil, rário que se passa a narrar
sob a égide dos três artigos do Código Penal, os acusadoressão bem-vindos.
Cartas como as citadas se acumulam nas delegadas.Os delegadosas acionam
no momento oportuno Itinerário da pesquisa
O exame que fez Crawford (1967) da crença na feitiçaria em Zimbábue
dos anos 60 deste século é uma chave para o entendimento do sistema de acu- Tudo começou em 1979 com uma proposta apresentadaem seminário
sação e perseguição às religiões mediúnicas no Brasil promovido pelo Grupo André Rebouças.Um estudanteda UFF propôs o le-
A Lei de Supressãoà Feitiçaria data de 1897. O artigo 3' do Ato de Su- vantamento da Coleção de Magia Negra do Museu da Polícia Civil da Secreta-
pressãoà Feitiçaria diz: ria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A bandeira de luta dos estudantes
(j2uemquer que impune a qualquer outra pessoao uso de meios do Grupo de Trabalho André Rebouçasera a devoluçãodaspeçasdo Museu
não-naturais ocasionando qualquer doença a qualquer pessoa ou da Polícia a seus verdadeiros donos. O levantamento completo das peças do
animal ou causando qualquer injúria a qualquer pessoaou proprie- Museu (Maggie et a/.1 1979) não produziu material documental e de arquivo
dade, em outras palavras, quem quer que aponte ou indique qual- sobre os donos originais nem sobre como os objetos tinham ido parar no Mu
quer outra pessoacomo mago ou feiticeiro deverá ser culpado de seu. Durante anos em vão se tentou descobrir o arquivo morto da polícia, sen-
uma ofensa e sujeito a uma multa não superior a 100 pounds ou a do grande a dificuldade de conseguir informação das autoridades policiais. SÓ
prisão por um período não superior a três anos ou a castigos corpo- em 1983, durante o governo Brizola, se teve finalmente acessoa microfilmes
rais, não superiores a vinte chibatadas ou a qualquer um dessesdois dos livros de tombos e livros de ocorrência das delegadaspoliciais do Rio de
ou mais de tais castigos. (Ápud Crawford, 1967) Janeiro, no Centro de Microfilmagem da Secretaria de Segurança Pública do
Estado, localizado na 16' Delegada de Polícia na Barra da Tiluca. Durante um
SegundoCrawford o objetivo primordial da lei era prevenira imputação ano, em idas diárias ao centro, levantou-se o material referenteaos livros de
da feitiçaria e das atividades do médico adivinho e a maioria dos casos se
enquadrava nesseartigo 3'. Para as tribos e povos dominados, a lei era incon- tombos, que registramdados dos inquéritos policiais das delegadasde 1912a
1945,inclusive os livros de tombos da I' DelegadaAuxiliar, responsável,a
cebível, pois a acusação e posterior punição dos feiticeiros causadores de mal partir de 1934,pela {<repressãoao baixo espiritismoe curandeirismo>> no Rio
aosmembrosde suaslinhagensfaz parte da moral e da crençana feitiçaria. de Janeiro.
Como, aliás, é o caso de todos os sistemasde crença na feitiçaria
A primeira elaboraçãodo material (Maggie, 1985)ainda partia da idéia de
Essa diferença é crucial para se entender também o sistema de crença e re- {(repressão policial aos cultos .abro-brasileirop>, seguindo o modelo explicativo
gulamentação instituído no Brasil, na mesma época (1890), que não constituiu da literatura sociológica sobre o tema (Brown, 1985, 1986; Bastide, 1971,
sistema de extermínio à crença na feitiçaria, como em Zimbábue, mas sistema 1973: Carneiro. 1936, 1948; Costa Pinto. 1952; Fernandes,1937; Valente,
de caça a feiticeiros baseado em crença partilhada por juízes, acusadose acu-
sadores
1976; Ortiz, 1978; Ramos, 1934, 1932, 1937; Rodrigues, 1932; Cavalcante,
1935; Mattos, 1938). A relativização dessemodelo teve início, como se disse, a
Se as tribos de Zimbábue não podiam conceberessalei inglesa, muito partir de outro modelo explicativo implícito na análise da hierarquia religiosa
menos o podiam os nossos magistrados, promotores, advogados e testemu- construída pelos intelectuais nordestinos que estudaram os terreiros tradicio
nhas, sem falar nos próprios acusados.Como os shona em Zimbábue, eles nais da Bahia -- os nagós puros. Beatriz Góis Danças (1983, 1982a) relativiza
acreditavam na magia e consideravam um dever coibir seusabusos. a tese da repressão sem substantivar os nagâs, vendo essa categoria religiosa

32 e e 33
yvonne A4aggie !«edo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasa!

como categoria construída. Reavalia, em consequência,a ideia de uma repres- O segundo capítulo A versão dos especialistas, acusados e testemunhas
são aos impuros. Dançasnão fez, no entanto, uma análiseda repressão,mas -- trata das formulaçõesdos diversospersonagensenvolvidosna trama ex-
sim da construção das categorias definidoras da religião africana autêntica. pressa nos processos. AÍ se questiona a racionalidade das argumentações dos
A partir do material obtido no Centro de Microfilmagem se deu a decisão juízes, a justificativa das sentenças,absolvição e ou punição, a aceitaçãoou
não dos fatos narradosna denúncia como crime, a unanimidadeou não na
de discutir a relação entre a polícia, o Estado e as religiões mediúnicas no Rio versão dos juízes. Em relação aos demais especialistas(.advogados,promoto-
de Janeiro. Como o material se referia a inquéritos policiais, tentou-se localizar res, delegadosde polícia), se questiona as concepçõesde feitiçaria e crime que
os processoscriminais daí resultantes,inicialmente nas varas criminais, e de-
pois no Arquivo Nacional. Assim surgiram descrições- de rituais privados, con- permitemcom que identifiquem feiticeiros, formulem pareceres,. argumentosde
acusaçãoe defesa. Analisa-se o modo como os acusados se fazem presentes
sultas, despachos,casose mais casos de acusaçõesde feitiçaria. Surgiu uma ci-
nos processos, o significado do fato de suas falas se apresentarematravés da
dade repleta de velas nas encruzilhadas, curandeiros, centros, terreiros, casas mediação dos escrivães. Quanto às testemunhas, se analisa as disputas e con-
por onde «passavaum resumo de nossasociedade»,no dizer de Jogo do Rio flitos, os caracteresdas relaçõessociais em jogo nas acusações,a maneira co-
(1906)
mo os depoimentosatenuamou agravam a situação do réu faceao julgamento
A cidade descrita nos processos criminais não parecia muito diferente do do juiz
Rio de hoje. Quase20 anos de pesquisano Rio de Janeirocontemporâneoe a O terceiro capítulo -- As evidências do crime, o auto de apreensãoe a
reflexão sobre casos mais recentesna segundaparte do trabalho, informaram, perícia -- é uma análise das peças do processo; o auto do flagrante. o auto de
é claro, a leitura dessematerial do passado. Apesar do racismo e da marca da apreensãoe o laudo pericial. Nessaanálise, se revela a figura do perito, não o
épocaem que viveram, João do Rio e NanaRodríguessãoainda muito con- perito médico, mas o encarregado dos objetos da magia. A leitura dos proces'
temporâneos. Nana Rodrigues (1935) diz que toda a sociedade baiana acredita sos mostra que o perito faz a distinção entre magia benéfica e maléfica. charla-
no feitiço e o temee Joãodo Rio (1906)diz que na alucinaçãode uma dor, ou tanismo e a religião verdadeira; classifica os objetos como sendo dos feiticei-
na ambição, todos vão buscar os conselhos dos feiticeiros. Suas observações ros, dos falsos médiuns ou dos curandeiros e distingue os rituais de magia ne-
permanecem vivas, apesar das mudanças radicais que a cidade sofreu, assim gra dos rituais de invocação de espíritos, propriamente religiosos São os peri-
com a macumba, lembrando a frase de Pouillon citada por Sahlins (1985) tos que dizem onde estão os feiticeiros e que, na verdade, nos processos,nar-
quanto mais permanecea mesmacoisa mais muda» ram a crença, a partir dos fragmentos recolhidos nos depoimentos de testemu-
A decisão de aprofundar a análise dos processos criminais e de casos mais nhas e acusados e nos autos de flagrante e apreensão. AÍ se considera essa in
contemporâneos, onde algumas vezes foi passível fazer observação participan- terferência e os desdobramentosda atuação dos peritos na constituição da
te, e que desembocouna relativizaçãoda teseda repressãoreligiosa,foi fruto crença
da idéia de uma crença que perpassa toda a sociedade. O quarto capítulo A crença na feitiçaria na República descreve,em
Que crença é essaque toca pessoasde todas as classesno Brasil? primeiro lugar, as versõesda concepçãode magia maléfica expressasnos pro'
cestos. Em segundo lugar, analisa-se as homologias entre categorias da crença
e as categoriasjurídico-burocráticas. Trabalho, sessão,despachoe consulta ca-
tegorias usadas tanto para referência a aros burocráticos quanto a eventos sa
Sinopse grados.Por último se faz uma cronologia da crença, demonstrando-se
como os
eventossão ordenados pela crença, mas também como, nesseprocesso, a cren-
A primeira parte.do trabalho compõe-sede quatro capítulos: ça é reordenada
O primeiro capítulo -- A estrutura dos processos-- acusaçõese condena- Mas se «o que está nos autos está também no mundo», em paráfrasedo
ções -- trata da análise dos mecanismos reguladores do combate aos feiticei- ditado jurídico, a análise de «Casose feitiços» na segundaparte, demonstra que
ros os princípios de classificação e hierarquização que norteiam as representações
É moralmente necessáriopunir feiticeiros. A identificação dos feiticeiros contidas nos processos estão também presentesem outras instâncias da vida
supõe acusações,mas as condenaçõesnão podem ser validadas de modo abso- social (Fausto, 1984). Os processossão uma das formas de regulamentaçãodo
luto. Se assim fosse, não haveria lugar para explicitação, enriquecimento, so- combate à feitiçaria, mas há também outros mecanismos reguladores. Para fa
cialização e confirmação da crença. Os processosde acusaçãovisam -- exata- zer essademonstraçãofoi preciso recorrer a outro tipo de material: entrevis-
mente -- incitar, promover, constituir feiticeiros. Por isso as condenaçõessão tas, diários, documentos de centros, notícias veiculadas pela imprensa, tesesde
pouco numerosas em relação ao número de acusações. médicos e de antropólogos, documentos de instituições públicas.

34 e e 35
yvonne.NÍaggie

No quinto capítulo -- O Centro Redentor se aprofundaa tesecom a


introdução do estudo detalhado de um caso exemplar para a definição do per-
fil dos feiticeiros no Rio de Janeiro.
No debatetravado em torno do Centro Redentorse abriu espaçopara a
configuraçãoe explicitação das vertentes da noção de feitiçaria. Através das
acusaçõesde feitiço ao centro identificaram-se os vários segmentosenvolvidos
-= ficou estabelecidauma relação e uma hierarquiados grupos, segundoo
princípio de baixo ou alto espiritismo.
O sextocapítulo Seu Seteda Lira, a pombagiraMana Padilha,a ma-
cumbeira e o xangâ -- é uma descrição de quatro casos em que as acusações
de feitiçaria não apenas discriminam, mas hierarquizam pessoas,grupos sociais
e crenças..Os casosdescritos e analisadosaprofundam e demonstram a hipóte-
se de que o feitiço é um mecanismo lógico hierarquizador
O capítulo sete -- Os objetos da feitiçaria -- analisa as coleçõesdos mu
seusonde se guarda os objetos da feitiçaria e mostra que tais coleçõessão cria-
das para atualizar a crença na magia, sendo provas concretas de que a magia
negra existe.
Neste capítulo se volta à comparação com o caso de Zimbábue. O estado
colonial inglês, ao proibir a acusaçãode feitiçaria, restringiu os assuntosda
crençaaos nativos. Dessemodo, os médiuns shona tornaram-se líderes, repre-
PARTEI
sentantesda africanidade, em oposição aos valores europeus dos dominadores feiticeiros, médicos e juízes
(Fry, 1976). A atuação do Estado, no Brasil, ao colocar o aparato jurídico co-
mo regulador e árbitro das acusaçõesatravés de processosjudiciais, não terá Rio de Janeiro j1890-19401
agido exatamenteno sentido inverso, ampliando o campo de circulação dos
assuntosda feitiçaria e da crençana eficácia da magia?
Por último se propõe a concepçãoda feitiçaria como operador lógico, que
estabelecerelaçõese hierarquias entre coisas, pessoas,grupos, filosofias e cren-
ças. Ao contrário do totemismo, que classifica estabelecendo a diferença entre
iguais (Lévi-Strauss, 1986), a feitiçaria opera com critérios de bem e mal, falso
e verdadeiro, alto e baixo; ou seja, sfafus. Em algum nível, essescritérios de
discriminação servem para pensar a alocação do poder nas relações sociais.
Não residiria nestaeficácia política a força da crençana feitiçaria no Brasil?


Introdução

Nesta primeira parte se descrevee analisa a noção de feitiçaria a partir da


discussãode processoscriminais movidos contra pessoasacusadasde praticar
ilegalmente medicina, magia ou ainda curandeirismo. Em 1890, é decretado o
prmteiro Código Penalrepublicano, inovador em relação.aos códigos anterio
res por introduzir três artigos que regulam a prática ilegal da medicina, a prá-
tica da magia e do espiritismo e proíbem o curandeirismo; artigos 156, 157 e
158 respectivamente. O código é discutido adiante.
Os processoscriminais foram tomados para análisepela necessidade
de se
descortinarfontes novas, que pudessemiluminar a questão da «repressãoàs
religiões mediúnicas», recorrentemente descrita na literatura sobre o assunto.
A leitura e o estudo de mais de cem processoscriminais encontrados no Arqui-
vo Nacional e nos Arquivos de Varas Criminais, revelam que a República, ao
instituir os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal, criou um mecanismo regu-
lador das acusaçõesa produtores de malefícios.
Os processoscriminais não foram ainda usadoscomo fonte de pesquisae
não tinham sido levantados. Alguns autores usaram fonte de Arquivo Policial,
como Bastide (1973) e Matos (1938). Essesautores analisaram materiais que
colheram na Delegada de Costumes e no Serviço de Repressãoao Baixo Espi-
ritismo
Matos analisou inúmeros autos dessa seção de Repressãoao Baixo Espiri-
tismo. É quase impossível saber a data dos autos por ele compilados, mas al-
guns registram os anos 20, o que faz supor que sejam basicamentedessa déca-
da
Bastideanalisouprontuários policiais, velhos jornais paulistase jornais da
época da pesquisa, além de publicações do arquivo do Estado. Usou também
pesquisasde alunos, feitas na capital e no interior para descrevera «Macumba
Paulista». As fontes de Bastide são prontuários de polícia de 1938 e 1941. Ele
arrola em primeiro lugar os tipos de acusação-- curandeiro, feiticeiro, charla-
tão, macumbeiro etc. -- e acrescentaa cada tipo o sexo e a cor do acusado.
e 39
yvonne Maggfe quedo do feítiça: relações entre magia e poder no Brasil

Antes dessesestudos os pesquisadoresbaseavam-seem alguns relatos de partir das peçasque compõem os autos. Nessesentido, o processo tem suas re
informantese principalmente notícias de jornais, como Rodrigues(1935), Rio aras e acaba se constituindo um domínio distinto e que vale para se conhecer
(1906) e Ramos (1942>.Também utilizaram materiais de arquivo jurídico, co- o aparelho repressivo
mo leis e regulamentosinstituídos tanto na Colónia e no Império como na Re- Correa (1983) cita também um ditado jurídico: «o que não está nos autos
pública. não está no mundo)>. O processo restringe as falas dos personagens,dirigidas
SÓmais recentemente processos inquisitoriais serviram de base para Souza pelosmanipuladorestécnicos.Mas com todos esseslimites, para Fausto,os au
(1986), que a partir deles analisa e descreveo calundu colonial. Reis (1987) le tos traduzem, a seu modo, dois fatos, <(ocrime e a batalha que se instaura pa
vantou documentosinéditos, como o de um juiz de província da Bahia, que ra punir, graduar a pena ou absolver>>(1984, p. 21). E mesmo sendo uma es-
discute a invasão de um candomblé péciede ficção, como diz Mariza (-orrea, onde o real é processadoe sobreele
Os processoscriminais contemporâneos constituem, portanto, fonte nova, construído um modelo de culpa e de inocência, o processo criminal também se
cujo valor enquanto material de pesquisase faz necessárioconsiderar. baseianuma lógica ordenadora, que norteia os comportamentosconforme as
identidades sociais -- a conduta adequada ao sexo, ao papel na família etc.
Chaloub (1986), também interessado nos processos, leva a discussãoa ou
O que vale o processo? tro domínio, porque diz que; ao contrário, os autos não impõem a conceitua-
ção e as representaçõesdominantes e que neles se pode ver o pensamentoe a
Os processossão documentos especiais,pela contribuição que trazem ao cultura dos dominados. SegundoChaloub, os processosque analisou lançam
entendimento da batalha que se trava na justiça e na vida social mais ampla. luz sobre a cultura dos trabalhadores urbanos e sua relação (de oposição) com
Daí a importância de se discutir seuvalor. a cultura dominante.
Os casosaqui analisadosrevelamum lado encobertopelo modelo cons- Souza (1987) não faz propriamente uma reflexão sobre o que valem os
cientede antropólogose informantes, que não dá conta da proliferação gigan- processosinquisitoriais que analisa, mas parte do pressupostode que há uma
tesca dessas práticas mágicas, apesar da repressão. relação entre real e discursosobre o real, e pensa o processoinquisitorial co-
Os processosforam instrumentosimportantes na regulamentaçãoda caça mo um instrumentode poder, no sentido foucaultiano. Um dos aspectosque a
aos feiticeiros, e como os processos inquisitoriais, instrumentos de saber. co autora frisa é a confissãocomo basepara a constituiçãodos discursose de
suas imbricações.
nhecimento e socialização de práticas muitas vezesindividuais e particulares.
Assim, esta análise dos processos leva em consideraçãoseu valor especial, As discussõescom os pesquisadores
acima citados desembocaramna ideia
dos processoscriminais como documentos em si, ou seja, como «autos>>e não
inscrito nos vários discursos que contêm, discursosdiferenciados em termos de «atop}. Conseqüentemente,trouxeram à tona a natureza das coisas que são di-
origem, mas filtrados por um sistema que fala pelos sujeitos das ações. Acusa-
tas no processo: <<oque não está nos autos não está no mundo>>,como diz o
dos e testemunhasfalam obliquamente, através do escrivão. Juízes, promoto- ditado jurídico
res e advogados, sujeitos às leis e regulamentos, só podem se pronunciar sobre
o que está nos autos. Delegadose policiais, que fazem o inquérito policial, O juiz julga o que está nos autos e não o que se passou «na verdado>.
também.devem se pronunciar dentro das regras processuais.Mesmo fazendo Portanto, o que não estános autos não pode ser levado em consideração.O
parte da mesma classe ou compartilhando a origem dos acusados, processo refere-se,assim, àquilo que contém. Invertendo o ditado, porém,
transformam-se
em mediadores,traduzindo o que se fala em fala dos juízes, pode-se dizer, sem medo, que «o que está no processo está no mundo>>,isto é,
que são ouvidos em último lugar. os princípios que regulam e norteiam o discurso dos juízes são também
princípios ordenadores de discursos da sociedade de um modo geral.
Volta-se a essa discussão no terceiro capítulo. Deve se lembrar, porém,
que outros pesquisadorestambém pensaram o estatuto dos processos
Correa (1983), refletindo sobre o valor do processo criminal, quando ana- Periodização
lisou os casosde legítimadefesada honra, diz, parafraseando
um juiz do tri-
bunal: «são autos e não atos>}.Ou seja, os processosfalam de algo que só está Além dos marcos gerais, referidos às transformações estruturais políticas,
contido nos autos;: não adianta perguntar se o crime descrito «realmente» económicas e sociais da historiografia brasileira, na periodização dos processos
ocorreu, se o acusado é «realmente» culpado. Os autos é que dirão. Não há criminais em pauta foram também considerados outros marcos, que nem sem-
provas fora do processo e juízes, advogados e especialistassó podem falar a pre coincidem com os primeiros.

40 e e 4]
yvonne À4aggie h4edo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

Em 1889, proclama-se a República, mas o marco mais importante no pre' te, é quaseuma cópia do de 1830.(i2)SÓinova no que se refereaos artigos
sente caso é o decreto de ll de outubro de 1890, que institui o Código Penal e 156, 157 e 158, que tratam de questõescom que o Código Imperial pouco se
introduz os três artigos, 156, 157 e 158, cuja matéria antes disso, só indireta preocupou.
mente era regulada pelo Estado. Os artigos vieram no bojo de uma discussão O legisladorde 1890de um lado regula o exercícioprofissionalda medici-
em torno do controle médico de um espaço institucional e também da regula na, limitando suaprática a quem provasseestar habilitado -- no artigo 156;
mentaçãoou plena liberdade profissional. de outro lado, extinguee conceitua o <(ofíciodenominado de curandeiro>> --
Os juristas e médicos envolvidos no debate, que lutavam pela regulamen- artigo 158 (nos processosda virada do século muitos acusadosdefinem-seco-
mo curandeiros). No artigo 157, o Código proíbe a magia e o espiritismo
tação do espaço profissional, viram-se a discutir questões religiosas, emaranha-
dos no processo de discernir quem era religioso e quem usava magia, quem era quando servem para inculcar sentimentos de ódio e amor e curas de moléstias
curandeiro e quem era médico. curáveis e incuráveis, pressupondoo legislador que para regular a prática mé-
dica, era preciso combater tendências ou segmentosque, além de pretenderem
Era um terreno minado por crenças populares muito generalizadas e se co- curar moléstias, inculcassemsentimentosde ódio e amor (ver texto legal na in-
meçava a utilizar instituições judiciais como mecanismos reguladores. trodução geral).
Ao que tudo indica. a intercessãoentre uma discussãoe outra produziu a Os delitos de que tratam essestrês artigos se incluem entre os crimes con-
necessidade de instituições reguladorasdas acusaçõesmais complexase intro- tra a SaúdePública e tiveram até o início do século um tribunal especial o
duziu novos mecanismossociais de controle e combate aos produtores de ma- Juízo dos Feitos da Saúde Pública.(]3)
lefícios, inseridos em outro domínio.
O regulamento sanitário e as leis referentesà Saúde Pública se reportam a
A medicina já vinha sendo regulada desde a Colónia, mas data do final essesartigos. Com a reforma da cidade do Rio de Janeiro e com a discussãoda
do Império a grande polêmica sobre liberdade profissional.(lo) A tese da ampla necessidadede higienização travada por seus administradores, amplia-se o de-
liberdadeprofissional não era unânime, mas era forte e aquelesque queriam bate sobre o controle da magia e dos curandeiros. Em 1904, o Decreto n'
restringe-lanão conseguiram ter suas posições vitoriosas na Constituinte. Por 1.151, de 5 de janeiro, que reorganiza os Serviçosde Higiene Administrativa
outro lado, os adeptosda ampla liberdade profissional tambémnão consegui- da União e possibilita o <<botaabaixo)> de Pereira Passos no Rio, define a com-
ram imprimir no texto constitucionala plena liberdadepara o exercíciodas petência do Juiz dos Feitos da Saúde Pública. Uma de suas funções é o julga-
profissões (Fry e Carrara, 1986).
mento dos crimes e contravençõesde higiene e salubridade públicas, inclusive
Em 7 de janeiro de 1890, o Governo Provisório, em decreto de número os tratados nos três artigos do Código Penal.
119, «proíbe a intervenção da autoridade federal e dos estados federados em
Daí até 1940, foram promulgadosvários decretose leis com o fim de re-
matéria religiosa, consagra plena liberdade de cultos, extingue o padroado gular as práticas em questão, que as definiram como crimes contra a Saúde
(...))} (In: Leis do Brasil, 1890-fascículo 1). Assim, vê-se que o espírito dos que Pública
proclamaram a República era nitidamente favorável à separação do Estado e
da Igreja Católica. Embora, pelo decreto, todas as confissõesreligiosas ganhas- Desdecedo, logo apósa proclamaçãoda República,há preocupação das
sem iguais direitos, estenão estabelecia o que era «confissãoreligiosa>>e o que autoridadesno sentido de regulamentaras atividades das associaçõesrelógio
nao era. sas. Assim, em 1893, a Lei n' 173, de 10 de setembro, regula a «organização

C) Código Penal republicano foi decretadoa ll de outubro de 1890 e a


Carta Magna é entregue pela Constituinte só em fevereiro de 1891.(tl) O Códi- (12) O Código Penal de 11890foi redigido pelo conselheiro Batista Pereira e alvo de muitas críticas
go Penal de 1890, decretado pelo Governo Provisório e anterior à Constituin- e modificações. Sobre a história dos Códigos Penais, ver Garcia (1954). Há diversas modifica
çõesnó Código de 1890, mas nenhuma delas alterou os três artigos discutidos a não ser o Có-
(lO) Antes da Proclamação da República havia um regulamento elaborado pela Junta Central de digo de 1940 promulgado em 1942. Segue-seum resumo das principais datas e legisladores
Higiene em 1881, que resguardava os privilégios dos médicosdiplomados e servia de arma le que alteraram o Código. Em 1927, Virgílio de Sá Pereira reformulou a parte geral e uma co-
gal contra o curandeirismo Essaposição da Junta de Higiene se estendeaté depois da Repú- missão constituída por Evaristo de Moraes e Mano Bulhões Pereira reviu o projeto de Sá Pe-
blica e produz o debate exposto neste trabalho. Sobre o debate antes de 1890, ver Lins reira. O professor Alcântara Machado fez a revisão do prometoe foi o grande influenciador
(1967).lvan Lins, importante liderança positivista, tinha uma posiçãoreligiosa contra.o mo- na formulação do Código de 1940. Em 1932, o desembargadorVicente Piragibe consolidou as
nopólio dos médicos. Corroborava as tesesde Pereira Barreto, eleito em 1891 membro da leis posteriores ao Código de 1890
Constituinte Estadual, depois presidente da Assembléia Constituinte e presidente do Senado
l;stadual
a (13) Sobre o curandeirismo no Direito Penal brasileiro, ver Barrela (1972) e sobre os três artigos
citados, Peixoto (1980). Os dois trabalhos são reflexões do ponto de vista dos juristas e advo-
(11) Para o levantamento de decretos e leis referentesà questão foi inestimável a ajuda de Olivia gados
a
Galvão, que recolheu graciosamenteo material.

42 e e 43
Yvonne Maggie Mledodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasii

das associaçõesque se fundarem para fins religiosos...» nos termos do artigo Essespadrões de crendices grosseiras, aparentemente sectários,
72, $ 3' da Constituição. O artigo I' dessalei diz que as associações para fins disfarçam indústrias clandestinas, contra as quais, além do direito
religiosos «... poderão adquirir individualidade jurídica inscrevendo o contrato que assisteaos representantesda ciência médica, de impugnar con
social no registro civil da circunscrição onde estabelecerema sua sede».E nes- corrências desleais, ressalta a obrigação, comum aos poderes públi-
sa mesma lei, seu artigo 13 diz que: cos, de assumir a defesa das populações contra todas as atividades
crim idosas
As associaçõesque promoveremfins ilícitos ou que se servirem
de fins ilícitos ou imorais serão dissolvidaspor sentençamediante O charlatanismo professado por pseudocurandeiros, adivinhos
denúnciade qualquer pessoaou do Ministério Público. e hierofantes que mercadejam beberagens nocivas e vaticínios ilu-
Em 1917, antes da reorganização do Serviço Nacional de Saúde Pública, é sórios, não vinha despertando a atenção que se impunha a uma
organizadoo Serviçode Fiscalizaçãodo Exercícioda Medicinae da Farmácia polícia empenhada em desobrigar-se de suas atribuições
que, no artigo 35 da lei que o criou, regula o uso particular de farmáciasdi-
O índice das observações demógrafo-sanitárias coloca o baixo
zendo que os estabelecimentospúblicos e corporações religiosas poderão pos
suarfarmácia, masdeverão ter licença da Diretoria Geral da SaúdePública. espiritismoe seussimilaresem terceirolugar na escalados fatores
que concorrem à alienação mental em nosso país. Apenas os su-
Os herbanários, segundo essalei, só podiam vender: plantama sífilis, o álcool, ostentandopercentagens
maiorese, con-
Drogas simples, vegetais ou animais (.1.) sendo-lhes expressa- sequentemente, mais ruinosas à raça ou à nacionalidade.
mente proibida a venda de qualquer outro medicamento, mesmo
aprovadopela Diretoria Geral de SaúdePública Não se restringem, porém, ao quadro das moléstias psíquicas
os efeitos desseelemento depressivo, que se manifesta como causa-
O Serviço de Fiscalização do Exercício da Medicina prenuncia as mudan- dor de outras formas patológicas pelo emprego de drogas que enve-
ças que virão a ocorrer na década de 20, quando novo surto higienizador to- nenam e podem determinar lesõesprovenientes de uma errónea ou
ma conta dos administradores da cidade. criminosa aplicação.
O Decreto n' 3.987, de 2 de janeiro de 1920, que cria o Departamento A liberdade das nossas leis, reflexo da liberdade dos nossos
Nacional de Saúde Pública (DNSP), reorganiza o Serviço Nacional de Saúde costumes, cria ambiente no Brasil para todas as doutrinas de fundo
Pública, reestruturando a fiscalização da medicina. O decreto cria também religioso, desdea filosofia árida e positiva de Comte. não obstante
uma po]ícia sanitária. com livre ingressoem qualquer habitação particular ou a força do seumétodoe o valor de suasistematização, até a teoso-
local público, mediante formalidades legais. Essapolícia sanitária, junto com a fia e práticas do ocultismo
polícia civil, vai controlar as regras de higiene e saúde pública. A década de 20
é particularmente rica em investidas contra os centros espíritase é nessaépoca As controvérsias doutrinárias e a ação das autoridades interes
que se organiza uma perícia quase especializada nos assuntos referentes a essas fadas em reprimir o exercício ilegal da medicina têm suscitado quem
práticas consideradas nocivas à Saúde Pública iões, cuja soluçãonas instâncias judiciárias, corrobora a convicção
de que a nossalegislaçãocriminal, nesteponto estacionária,deve
O relatório de 1927 do chefe da Polícia Civil mostra que as autoridades ser reformada a fim de atender as conquistas da cultura já inscritas
estavampreocupadas com os crimes contra a Saúde Pública. O ano de 1927 e
nos institutos jurídicos adiantados
o relatório do chefe de polícia compõem um marco importante na complexifi-
cação das instituições de regulação das acusaçõesde feitiçaria. [)iz o re]atório: A distinção entre os adeptos de doutrinas respeitáveispelos
O capítulo dos crimes contra a SaúdePública tem grande inte seus fins de assistência e educação e praticantes do falso espiritismo,
ressepara a polícia. Muito há que empreenderno sentidode impos- cartomancia e demais formas de abusão e mercância, na falta de
sibilitar a prática do baixo espiritismo, da cartomancia e de outras urna lei que a especifique, é feita, presentemente, pelas autoridades
formas de exploração da credulidade pública judiciárias e policiais, visto como é imperativo este discernimento
do que é lícito e do que é proibido
Cultos misteriosos de origem oriental, remanescentesdos cre-
dos esotéricos procedentesdas tribos africanas, como a macumba e Antes da iniciativa, tomada por esta administraçãode camba
o candomblé,
deturpados
pelaignorânciae pelavenalidade,
cam ter os agentesde tal exploração, os anúncios de cartomantes, viden
peavam sem maiores precauçõesno Distrito Federal, à sombra da tes, ocultistas privilegiados em aliviar desgraçase profetizar felici-
nossa indiferença na aplicação de claros dispositivos penais. dade, enchiam colunas inteiras de jornais desta capital.

44 e 45
yvonne .ZWaggie Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

A campanha contra esseselementos foi confiada ao delegado O marco final dessahistória, que vem definir com clarezaquem são os
Dr. Augusto Mendes e já produziu resultadospositivos, a começar acusadosmais perigosos, é o Código Penal promulgado em 1942.(iÓ)
pelo êxodo de curandeiros e magos que, até então, violavam aber- Já no final dosanos30, logo depoisdo golpede 37, coma criaçãoda Se-
tamentea lei nesta capital. (1928,relatório da Polícia Federal)
ção de Tóxicos e Mistificações,começaa surgir uma polémicaem torno da
Cria se aí a comissãodo delegadoAugusto Maltas Mendespara a repres- modificação dos mecanismosreguladoresdas acusaçõesaos feiticeiros.
são do baixo espiritismo e curandeirismocom jurisdição prorrogada a todo o
Distrito Federal. Juristas e médicos debatem os três artigos do Código em reuniões fechadas
e através da imprensa. Assim, o novo Código promulgado em 1942 modifica o
Até 1934é o delegadoMaltas Mendesquemvai regularas acusações
aos artigo 157 e classificao crime de <íinculcarou anunciar cura por meio secreto
charlatães, macumbeiros, ao candomblé, ao baixo espiritismo, enfim, aos pra- ou infalível)>: charlatanismo. Após intenso debate é retirada do artigo a cate-
ticantes do falso espiritismo, considerados produtores de malefícios sociais in- goria espiritismo. A doutrina estabelecidapor esseartigo define os charlatães e
calculáveis e responsabilizados pelo número crescente de alienados mentais aponta o candomblé e a macumba como perigosos e criminosos. Essesartigos
São eles o terceiro favor a concorrer para a loucura, só suplantado pela sífilis e continuam inalterados até o Código mais recente.(17)A partir de 1942 os acu-
o álcool,segundoo relatório citado. sados enquadrados nesse artigo recebem a denominação de macumbeiros.
No relatório de 1927, o chefede polícia refletesobrea necessidadede se
criar mecanismose leis reguladorasdo combateaosfalsos e baixos espíritas.
(16) O Decreto-Lei n' 2.848 de 7 de dezembro de 1940 foi publicado no Diário Oficial de 31-12-
Em 1934, organizam-se as Polícias de Clostumesque deverão controlar es- 1940, mas só passou a vigorar em 1942 quando foi decretada a Lei das Contravenções Penais.
sas instituições religiosas e médicas. Os artigos 282, 283 e 284 se incluem no capítulo dos Crimes Contra a SaúdePúb/ica e rezam
o seguinte
A partir de 1927, portanto, os centros espíritas (nome genérico dado às Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmácia Art. 282 exercer, ainda que a
diversas formas de associações religiosas mediúnicas) estiveram controlados título gratuito a profissão.de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorizaçãolegal ou
pela polícia, e de 1934 a 1945 essecontrole é confiado à I' Delegada Auxiliar. excedendo-lhe os limites
Pena -- detenção, de seis meses a dois anos
Em 1937, cria-se a Seção de Tóxicos e Mistificações(14)dentro da Delega-
da de Costumes que se especializa nesse tipo de regulação e controle Parágrafo único: se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa, de um
a cinco contos de réis
Desde a virada do século, a existência legal dos centros ficou condiciona- Char[atanismo Art. 283 incu]carou anunciar cura por meio secretoou infa]íve]
da a alvará e licençana polícia. Em 1941,o chefede políciapassoua exigir, Pena detenção de três mesesa um ano, e multa, de um a cinco contos de réis
além do registro na Delegada Distrital e na DelegadaEspecializada,que eles Curandeirismo Art. 284 exercero curandeirismo:
1 -- prescrevendo,
ministrando
ou
se registrassemna Delegada Especialde SegurançaPública, que informaria so- aplicando habitualmente qualquer substância; ll usando gestos, palavras ou qualquer ou-
bre os antecedentespolítico-sociais, e na Delegada Geral de Investigações,que tro meio; 111-- fazendo diagnósticos:
informaria sobre os antecedentescriminais de seuscomponentes.Para o centro Pena detenção, de seis meses a dois anos.
espírita poder funcionar, o processode registro deveria seguir para o gabinete Parágrafo único -- se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também su-
do chefede polícia que despachariaa favor ou contra a liberaçãode seufun jeito à multa, de um a cinco contos de réis.
cionamento.{iu Forma qualificada -- Art. 285 -- aplica-se o disposto no art. 258 aos crimes previstos neste
capítulo, salvo quanto ao definido no art. 267
Formasqualificadasde crime de perigo comum -- Art. 258 -- se o crime doloso duaperigo
(14) Em Maggie (1986), pensa-se a relação entre tóxico e mistificação associados nessa seção da comum resulta lesão corporal de natureza grave, a pena privativa de liberdade é aumentada
Delegada de Costumes. Em primeiro lugar os crimes a que as categorias se referem são classi- de metade; se resulta morte, é aplicada em dobro. No caso de culpa, se do fato resulta lesão
ficados como crimes contra a saúdepública. Em segundolugar, talvez as práticas fossem rela- corporal, a pena aumenta-sede metade; se resulta morte, aplica-sepena cominadaao ho-
cionadasà marginalidadede um grupo étnico -- os negros-- o tóxico mais reprimido nesse micídio culposo, aumentada de um terço
período é a maconha (ver Adíala 1987) que era associadaa negros. Em terceiro lugar, «misti-
(17) Código Penal de 1985
ficações>>
e <ítóxicos»produzem e são práticas de pessoasanui-sociais,{(promíscuas»,e fruto
de anomia social. Identifica-se <<tóxico>>
e «mistificação» a agentespoluidores e produtores de Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmácia -- Art. 282 -- exercer, ainda que a
malefícios à sociedade (aos costumes). título gratuito a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorizaçãolegal ou
excedendo-lhe os limites
(15) Filinto Müiler, o chefe de polícia, justifica a medida dizendoque tinha sido tomada em res-
posta aos insistentespedidos feitos pelas diretorias dos hospitais de alienados. Charlatanismo Art. 283 inculcar ou anunciar cura por meio secretoou infalível

46 e 47
yvonne À aggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasíl

Vê-se, então, que desde a virada do século, as instituições jurídicas, sani- um clienteou consulente.Tambéma partir dos anos20, o examedos objetos
tárias e a polícia, vêm-se organizando no combate a essas práticas, considera- apreendidos acabou se transformando em uma perícia quase especializada.
das nocivas aos costumese à saúde pública. Para se iniciar o inquérito policial tem de haver o flagrante. Assim, sem
Nesta primeira parte do trabalho, tomou-seo período de 1890a 1945 co- qualquer tipo de mandado, a polícia invade casas,centros ou consultórios mé-
mo base de análise dos processos criminais, já que seguindo as etapas acima dicos e dá o flagrante.
citadas se construiu os principais mecanismos sociais reguladores das acusações Embora nem sempre fique claro, vê-se que em muitos processosos acusa-
e do combate aas que eram considerados produtores de malefícios. dos e as testemunhas(geralmente clientes e assistentesdos rituais) são tortura-
Foram usadosprocessosdo Rio de Janeiro e não foram incluídos casos dos e obrigados a assinar declarações falsas
quetenhamexigidoo tribunal do júri. As penasvariam de prisão celular de um a seismeses,alémda multa. No
entanto, pelos abusos cometidos, os autores podem sofrer, além das penas es
tabelecidas,as que forem impostas aos crimes que deram causa
Como são os processos e como foram coletados Além disso,há agravantese resultar à vítima privação ou alteraçãotem-
Os processosanalisadostêm regras e tramitam em instânciaspróprias, porária ou permanente das faculdades psíquicas ou funções fisiológicas (pena
que merecem descrição. de um a seisanos e multa de 200$000ou 500$000). Se resultar em morte, a pe-
na é de prisão celular de seisa vinte e quatro anos.
Os crimes apenados nos três artigos citados do Código Penal são afiançá-
veis e só vão ao tribunal do júri quandoa essecrime se associaoutro como Há uma quantidade enorme de processosonde se percebeuma desorgani-
assassinato, estupro etc. zação burocrática. Faltam testemunhasem alguns; outros ficam inacabados;
Até o início do século.havia um Juízodos Feitosda SaúdePública, que outros duram mais tempo do que a pena prevista, fazendo com que a pena
prescreva. O acusado às vezes responde em liberdade, se consegue pagar a
julgava em primeira instância. As partes podiam apelar e as Câmaras de Ape- fiança. Caso contrário, cumpre mais do que a pena na Casa de Detenção
lação respondiam e sentenciavam os casos apelados. O processo podia seguir
A aparente desorganização tem uma lógica, desvendada no próximo
para a Corte de Apelaçãoa nível federal seas Câmarasde Apelaçãonão fizes-
sem as partes acordarem capítulo. Por ora, é precisodizer que tal desorganização não é tão aleatória
quanto parece e impõe uma dificuldade a mais ao pesquisador, que perde in-
Os processossurgemde uma acusação,que pode partir do Serviço de formações e seguepistas falsas
Saúde Pública ou da própria polícia, mas que em geral parte de uma «pessoa
do povo>}, que encaminha sua queixa à polícia. A Lei n' 173, de 10 de setem- Dessesprocessosanalisados, não foram incluídos na amostra os encami-
bro de 1893, citada acima, estipula que qualquer pessoapode denunciar insti- nhados ao tribunal do júri pela impossibilidade de rastreá-los nas varas crimi-
tuições com fins religiosos. nais. Mesmo mais tarde, descoberto o arquivo do tribunal, a tarefa de levantá-
lcs suplantava as necessidadesdeste trabalho. A pesquisadessesprocessos,po-
A polícia faz o inquérito baseada nessa acusação, que pode ser anónima, rém, terá seguimento em outra oportunidade
e em cinco testemunhas,que devem depor junto com o acusado.O delegado
A descoberta dos processos criminais percorreu caminhos interessantes
faz um relatório ao promotor sugerindoo artigo no qual deveser enquadrado.
O promotor dá seu parecer e, na maioria dos casos, pede a condenação. O Em 1979, por proposta de uma vertente do movimento negro, buscou-sedes-
processoé então encaminhadoao Juiz, que ouve novamente o acusadoe as cobrir a origem dos objetos rituais guardados no Museu da Polícia do Rio de
testemunhas e depois pronuncia a sentença. Em juízo, o acusado deve apresen' Janeiro,(la) que tinham sido apreendidos pela polícia. Depois disso buscou-se
tar defesa,feita por advogado nomeadoou por ele próprio descobrir documentos que identificassem os proprietários dessesobjetos. Dian-
te dos entraves,na polícia e na Secretariade SegurançaPública, para obter in-
Na fasedo inquérito policial, sobretudoa partir da décadade 20, o dele- formações, a tarefa pareceu inatingível. SÓ em 1983 se retomou a busca desse
gado nomeia peritos médicos para os examesde sanidadefísica e mental de material Com a ajuda da antropóloga Julieta Lemgruber, funcionária do Desi-
pe durante o governo Brizola, abriu-seo acessoao Centro de Microfilmagem
Curandêirismo -- Art. 284 -- exercer o curandeirismo: 1 -- prescrevendo, ministrando ou da Polícia na 16? [)elegacia de Polícia, na Barra, onde se encontram microfi]
aplicando habitualmente qualquer substância; ll -- usando gestos, palavras ou qualquer ou-
tro meio; 111 -- fazendo diagnóstico
Parágrafo único -- se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também su- j18) Uma primeira descrição e análise dessemuseu encontra-se em Maggie ef a/. (1979), relatório
jeito à multa, de dois mil cruzeirosa dez mil cruzeiros. apresentado à Funarte

48 e 49
yvonne J\4aggie
Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasa!

mados os livros de tombos e os livros de ocorrênciadas delegadasdo Rio de ração do Código de 1940, quando houve grande debate sobre a inclusão ou
não dessesartigos.
Janeiro. Lá foram encontrados livros das delegadas auxiliares e informações
sobre inquéritos policiais denunciando pessoaspelos crimes de curandeirismo, Assim, paralelamente aos processos,foram levantados os debates da
prática ilegal da medicina e prática do falso espiritismo.(19) Constituinte de 1891 e os debates na justiça, os que firmaram a jurisprudência
dessesartigos em 1890 e os que precederam a mudança no Código de 1942
Quinhentos e oitenta e um inquéritos policiais registradosno Centro de
Microfilmagem e referentesaos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal repu- A análise e o estudo dessesprocessos partiram da convicção de que o cri-
blicano foram levantados. Os inquéritos estão arrolados em microfilmes cor- me revela mais do que um comportamento desviante. Como bem diz Fausto
respondentes a livros de tombos de DelegadasAuxiliaresdos seguintesanos: (1984),<.Partode outro ponto de vista, ou seja, de que se apreendidaem nível
1912; 1914; 1915; 1919; 1922; 1927 a 1938; 1944 e 1945. mais profundo a criminalidade expressaa um tempo uma relaçãoindividual e
uma relação social indicativa de padrões de comportamento de representações
Uns poucos inquéritos citados nos livros de tombos foram encontrados em e valores sociais>}.A análise dos processos é uma tentativa de perceber as re-
varas criminais. O grosso, no entanto, foi localizado no Arquivo Nacional.
Nos Livros de Relaçãodo Arquivo, onde constamos processoslistados tam- gularidades
bém pelos artigos do Código Penal, foram levantados todos os processosrefe-
rentesa essestrês artigos. Noventa e nove deles registrados nos livros 23, 24 e
34.(20)
Dos noventa e nove processos do Arquivo e mais dez localizados nas va-
ras criminais, os quarenta mais ricos foram minuciosamenteresumidos em
quadros com as seguintes informações:
Quadro 1: nome, profissão, flagrante, sentença,ano.
Quadro 2: acusadores, objetos, perícia, peritos
Quadro 3: depoimentos de testemunhas e acusados
Quadro 4: discurso dos especialistas: delegado, promotor, advogado, juiz.
Dentre os resumos foram selecionadosos vinte e quatro casosmais signifi-
cativos em relação a dois aspectos:1) como pensavamjuízes, advogados, dele-
gados e promotores e 2) como pensavam testemunhas,acusadose peritos e co-
mo se evidenciavao crime. Cada processorecebeuum nome, fornecendoin-
formações para um quadro geral (Anexo l).
São estudados a lei e o processo na tentativa de desvendar os discursos
dos personagensdas tramas. O Código de 1830 não se refere a crimes dessa
natureza. Não se encontrou documentos referentesà elaboração do Código de
1890. a não ser as discussõesda Constituinte sobre liberdade profissional e li-
berdade religiosa. O debate na Constituinte e a jurisprudência são posteriores
ao Código de 1890, promulgado por decreto a ll de novembro, sendo a Carta
Magna de fevereiro de 1891, como se disse. Promulgada a Constituição, não
se fez nenhuma modificação no Código no que se refere aos três artigos. A
primeira grande mudança no Código Penal registrou-se por ocasião da elabo-

(19) Um tratamento inicial dessematerial encontra-seem Maggie,1985


(20) Clério, Neiva. Ligia. Jorgee Lídice, estudantesdo Curso de Ciências Sociaisdo Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, prestaram grande aju-
da nesselevantamento.DeniseFerreirada Salva,atravésde auxílio do CEPGe da AN-
POCS/FORD,ajudou no trabalho de leitura e resumodos processosem 1984

50 e
Capítulo l
A estrutura dos processos
jacusações e condenaçõesl
Olho grande é pior que um feitiço
cedro, personagem do /ívro Guerra de orixá
N4aggie(1975}

O combate aos feiticeiros deve ser regulado, diz a literatura clássica sobre
o tema. A República no Brasil criou um mecanismo regulador desse combate
instituindo os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890. Os processos
criminais estudadosfazem parte dessa instituição reguladora. A partir da insti-
tucionalizaçãodessetipo de mecanismoregulador, um número maior de seg-
mentos sociais passou a ser cúmplice da crença na feitiçaria e do combate aos
feiticeiros.
O combate aos feiticeiros é um imperativo moral da crença na feitiçaria e
a descoberta dos feiticeiros, o primeiro passo para cumprir esseimperativo.
No Rio de Janeiro há várias maneirasde se descobrirquemé o feiticeiro
causador dos malefícios ou de onde vem o ataque mágico. A forma mais fre-
qüente é procurar um médium que diagnostique se o ma] que assola o consu-
lente vem de tuba/bo /efta, despacho, feitiço ou alba grande. Ou seja, se a
mal vem de um ataquede bruxos ou feiticeiros. A diferenciaçãoparececrucial
porque os trabalhos de magia benéfica ou de «defesa>>
são feitos de maneira es-
pecífica dependendo do tipo de ataque.
Não é objetivo destetrabalho analisar o combateritual levado a eleita
nos terreiros, centros espíritas e outras instituições religiosasespalhadaspela
cidade. Há pouca literatura sobre essa questão porque a sociologia brasileira
preocupou-semais com os aspectosrituais públicos, com os rituais de invoca-
ção dos espíritos, e menos com esse outro tipo de ritual, geralmente
privado.(Zi)Outro trabalho(Maggie,1975)descrevee analisao combateocor-
rido em um terreiro da Zona Norte do Rio de Janeiro, que significou uma luta
pela hegemonia na ordenação política interna a essainstituição.
O objeto desta primeira parte do trabalho e deste capítulo em particular
não é analisar a crença nos terreiros e centros espíritas e os mecanismosregu-
(21) Peter Fry (1982) também refletiu sobre essarelaçãoentre a magia e os rituais públicos nos
terreiros

e 55
yvonne A4aggíe f\dedo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasíl

ladores do combate aos feiticeiros aí encontrados. O objetivo aqui é analisar e grandedesespero


da suaproprietária, que aindafoi de novo ao ta-
discutira crençana magiae a regulaçãodo combateaos feiticeirosquese bernáculo do Rei Mandinga, exigindo-lhe que desseum golpe decisi-
constituem na República a partir do universo jurídico, com a decretação do vo no ta] negócio,que já havia feito empenhartodas as suasjóias.
Código Penal de 1890. São inúmeras as semelhançasentre os dois tipos de O Rei prometeu fazê-lo, ontem, e para dar o golpe de morte,
combate -- nos terreiros e nos processoscriminais e essascoincidências sãa como ele o chamou, fez transportar para a casa n' 42 da Rua do
interpretadasà luz da teoria da feitiçaria. Lavradio grande quantidade de ervas de todas as espécies,búzios,
A legislação desde o advento da República exige que se acuse produtores galinhas mortas, manipanços, santos tais como São Damião, São
de malefícios e os processoscriminais analisadossão formas institucionais cria- Cosmeetc., tudo para preparar uma sessãoque poria cobro ao cai-
das para disciplinar as acusações, julgar os feiticeiros verdadeiros e distingui- pora de Mana Cordeiro.
los dos charlatães, e conferir penas aos culpados e liberdade aos inocentes No entanto, o delegado da 7' Circunscrição Urbana tendo de
O presente
capítulovai descrever
a estruturadesse
tipo de regulação
das tudo ciência deu buscano ex-Hotel Aliança apreendendotoda aque-
acusações a partir das seguintes perguntas: será que o combate é travado por la trapizanga.
que todos os personagensdos processoscriminais acreditam em que existem O Rei Mandinga, porém, não foi preso por não ter ainda che-
feiticeiros e em que eles devem ser punidos? Por que a República institucionali- gado para a celebraçãodo ato de ocultismo estranho e... porco. Foi
zou tal combate? Como é feito o combate?Quem julga? Por que julgam aberto inquérito a respeito.
LJ processo que se passa a narrar é um paradigma para a compreensão de Essanotícia do jornal O Pafz, anexadaao processo,conta um pouco o
como se estrutura o processo a partir da acusação. drama que se passou, mas não fala do ponto de vista das pessoasenvolvidas.
l Antonio Francisco,JustiçaMana da Concepção, Luiza Levy, Mana José
Pipocas e azeite-de-dendê fazem feitiçaria no Cordeiro, Ana Vieira de Carvalho e Leopoldo de tal sãodenunciadoscomo in-
Castelinho da Rua do Lavradio(22) cursos no artigo 157 do Código Penal:
Como não visse prosperar sua casade alugar cómodos a mere- Os denunciadospraticavam atou de feitiçaria explorando por
essemodo a credulidade pública. Tendo disso conhecimento o dele-
trizes, sita à Rua do Lavradio, 42, Mana JoséCordeiro, em junho
último foi consultar o velho preto Antonio Francisco,o Rei Man- gadoda 7' CircunscriçãoPolicial Urbana,no dia 25 de agostofin-
dinga, que fez o seu templo de babuzeira r» casada Rua dos Inváli- do, procedeua uma buscana aludida casa,foram aí encontradosos
dos, 153. objetos constantesdo auto de apreensão,os quais eram destinados
à prática desseato criminoso.
O Rei Mandinga pâs-se a ministrar à madame. como a cha-
mam na roda íntima, as drogas que a sua ciência oculta indicava O auto de apreensão enumera os seguintes objetos:
para fazer cessara sorte má, que perseguiao conventinho, outrora treze metros de pano, escrito a giz; uma veia branca; uma lâmpada de
conhecido como Hotel Aliança. azeite;dois castiçais;um copo com água; um pacotede quiabos;
um saco de pipocas; um cacete; pimentas verdes; diversos pés de
Tempos depois, uma filhinha de Mana Joséadoece e, entregue galinha seca;uma porção de carne fresca.
ao tratamento do velho Mandinga, em poucosdias falecia de mo-
léstia desconhecida No depoimentoà polícia, a dona do hotel, Mana JoséCordeiro,declara
Não desanimou Mana Cordeiro e, em companhia de Luiza que o preto Leopoldo (essepersonagemnão é mencionadona notícia do jor-
nal, só citado nos depoimentos das testemunhas) tratou de sua filha apenas
Levy, que fora quem a apresentaraao preto quando era sua inquiri
com banhos de ervas e que pagou pelo tratamento mais de 150 mil réis. Ape-
na, volveu de novo à igrejinhada Rua dos Inválidos à procura de
bons ares para sua eleganteestalagem sar de ter apresentado,no princípio, alguma melhora, a menina faleceutrês
dias depois. Tendo dito a Leopoldo que sua casavinha Ihe trazendo prejuízo,
Mas apesarde pagar caro, pois não Ihe custavamenos de 100$ este afirmou que «ia armar uns santos» a fim de fazer com que a casa deixasse
cada servicinho do mandingueiro, continuava a casa da Rua do La- de ser infeliz. Para isso, no dia 25 de agosto, levou à casa três imagens de san-
vradio, quase que inteiramente às moscas. Isso deu causa a um to que armou sobre uma mesa, pedindo a Mana José Cordeiro que comprasse
os objetos apreendidosno flagrante e ficando de voltar mais tarde. A depoente
(22) Processon' 756, ano 1899. caixa 1.959, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro diz que há dias foi apresentada a Antonio Francisco, por sua inquilina, Luiza
5Ó e e 57
yvonne Maggie N4edodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasii

Levy, que este havia combinado com ela a quantia de 100 mil réis para fazer a Bastaler o depoimentoda quinta testemunhapara ver que es-
mesmotrabalho que o tal Leopoldo, que o trabalho foi feito com a finalidade ta. desavindacom a acusadapor motivos que não vêm a pena
de melhorar a sorte da casa, não de fazer mal a pessoa alguma, e que ela acre- mencionar-se,entendeuque com auxílio de Alice, amásiado escri-
ditava nessascoisas por ser analfabeta. vão da 7' [)elegacia, envo]veu a acusada e seus desafetos em um
As testemunhas,todas elasinquilinas da pensãode Mana José,continuam processocujo único resultado é incomodar a Justiça.
depondoe Luiza Levy confirma o depoimentoda dona da pensão. [)epuseramcinco testemunhas,as três primeiras nada imputa-
ram à acusadasobre feitiço, declararam que a acusada.como reli-
Rira de Cássia Carmem, porém, diz que nunca viu a denunciada praticar giosa, acendiavelas de cera em oratório que possui; a terceira de-
feitiçaria, mas que sabia que Marca rosé mandava fazer trabalhos com inten- põe sobre o modo empregado pelo denunciado Antonio Francisco,
ção de melhorar a sorte. Afirma que o tuba/bo feffo naqueledia tinha sido
a pedido da denunciada, que agia para deter as inquilinas e dar-lhes
preparado por Antonio Francisco, Leopoldo de tal e Justina. No entanto, há freguesia; a quinta -- a denunciante como confessa não trazendo à
dias tinha aparecido na porta de seu quarto azeite derramado e um pó que, se- causa ponto algum que possa sujeitar a denunciada à penalidade pe-
gundo Mana José,tinha sido espalhadopor Ana de tal quando ali morava; es- dida na denúncia,declara que nunca viu a denunciadapraticar alas
sa Ana disse, por sua vez, que tinha sido Mana rosé. Adiante, Rira de Cássia de feitiçaria -- viu apenas fechar-se em um quarto com o pardo
diz que a feitiçaria era feita apenaspara melhorar a vida de Mana José,mas
Leopoldo e a preta Justina e para ele levarem ingredientes próprios
em seguidadiz que era feita para atrasar a vida dela, Rira de Cássia.Diz a de-
para a feitiçaria.
poente que Mana José pediu a Antonio Francisco que fizesseum defumadouro
para que a depoente se mudasse da casa. Essesingredientes, segundo declara essa testemunha, são obje-
tos comestíveise outros que nada dizem sobre feitiçaria. Onde,
As outras inquilinas também dizem que encontrarampipoca nos quartos, pois, o característico do delito em todo esse processo?
que aquilo era feito para atrasar a vida, não sabendo elas quem teria feito. Os outros acusadosnão constituíram advogados e não tiveram defesa.
Ana Vieira, uma portuguesade 30 anos, acusaMana Joséde fazer despa- O processoexpressanitidamente uma demanda,uma guerra de oríxá. Seja
chos para atrasar sua vida, dizendo que Mana Joséfazia isso sempre que algu- nos terreiros ou através do processo, essa guerra tem as mesmascaracterísti-
ma inquilina mudava de casa. cas. Aqui, quem acusa a patroa é uma empregada, uma pensionista da dona
Antonio Francisco, 52 anos, encarregadoda casade cómodos n' 153 da do Castelinho. Nos terreiros, a guerra e as acusaçõestambém podem ser esta-
Rua dos Inválidos, confirma o depoimento de Mana José. belecidas entre pessoas de posições diferenciadas.(23)
Diante do juiz todos confirmam seusdepoimentos.Mana José,no entan- A pensionista não aciona apenasas suas entidades para combater o feitiço
to, diz que Rira de Cássiaé testemunhasuspeita,porque é sua inimiga, e que de que acusaa patroa. Ela vai à polícia. Dessemodo, o processose torna uma
esta, por intermédio de Alice de tal, amásiado escrivãoda 7? Circunscrição, forma de defesade ataquesmísticos, além de ser instância reguladoradasacu-
fez a denúncia saçoes.
Os depoimentosfalam em despachos,caipora, pipoca e azeite de.dendê.
Acabam ficando como réus Antonio Francísco(que, diante do juiz, nega Talvez uma briga entre inquilinas da pensão tenha gerado essabriga de santo
ser feiticeiro); Mana José Cordeiro (que acusa Ratade Cássia de ter saído de com feitiços e despachosna qual a polícia interveio por meio da amantede um
sua casa sem pagar e de ter, por intermédio de Alice, arranjado o flagrante); escrivão da delegada. O tititi confirma que a lei se inscreve na crença, pois
Ana Vieira de Carvalho (que declaraque nunca foi feiticeira); Luiza Levy (que para que se inicie o processo é preciso haver denúncia, aceitação, por parte de
confirma o depoimento de Mana José); Justina Mana da Conceição (que diz policiais e juízes, da denúncia enquanto denúncia. Todos os processostêm essa
ter encontradopipoca à sua porta) e Leopoldo de tal, que nunca foi encontra- estrutura; uns, de forma mais marcante.
do
Mas se acusadase testemunhas se debatem, usando o próprio artigo do
O advogado Horácio Maia defendeMana JoséCordeiro dizendo: Código Penal na disputa e fazendo o Estado intervir nela. o juiz se utiliza da
(...) se não fora o respeito e a consideraçãoque nos merece o ilustre briga para incrementarsua disputa com outros juristas. Na forma, as duasbri-
juiz sumariante, abster-nos-íamosde escrever sobre este processo gas, entre juristas e entre acusadose testemunhas,não se diferenciam tanto.
oriundo, como muitos outros na Justiçacujos destinosestão entre-
gues a escrivães e inspetores seccionais. (23) Ver a disputa entre Mano e Pedro no caso estudado por Maggie, 1975

58 e e 59
rvonne À aggie Medo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

Os juízes devem julgar se a acusaçãoé verdadeira ou falsa, ou seja, de- O delegado diz que chegou a seu conhecimento o fato de que havia um
vem descobrir se o acusadoé ou não um feiticeiro de verdadee se estava curandeiro no Morro de Santo Antânio. Ou seja, o processo começa com uma
usando feitiço ou era um charlatão, iludindo a boa-fé. Há diferentes posições delação e, embora não fique claro quem delatou, transparece no depoimento
entre os juízes, expostas no próximo capítulo. das testemunhas uma confusão que não é percebida pelo advogado, nem pelo
juiz, nem pelo promotor. A confusão é o disse-que-me-disseem torno de se ele
No sistemajurídico em pauta optou-sepor aceitaracusações a feiticeiros. ia matar, como curandeiro, a mulher do Manoel.
Daí se supor que todos concordavam cotn que existiam feiticeiros a se perse-
guir. [)esde Evans-Pritchard (1978) a ]iteratura antropo]ógica diz que ninguém Terá sido por medo da feitiçaria que ManDeI, conhecendoo cabo de es-
se autodefine como feiticeiro pois a magia maléfica é moralmente condenada. quadra, contou-lhe o fato que este delatou ao delegado?Com base nas fofocas
Assim, os sistemasculturais que incluem a crençana magia maléfica têm que de hoje dos terreiros, talvez Juvêncio Serafim estivesseenvolvido em demanda
construir sistemas de acusaçõesà feitiçaria para regular o combate, considera- com a mulher de Manoel -- ou teria sido um caso de amor? --, e a resposta à
do moralmente necessário. guerrade orixá se deu com a delaçãoà polícia. Pode-sepensartambémque a
sindicância feita pela polícia tenha gerado as acusaçõesentre as testemunhas.
Todos os sistemas de combate à feitiçaria têm que instituir um sistema de
acusação; assim foram construídos tanto os oráculos entre os azande (Evans- De qualquer forma, as acusaçõesaparecem sempre. Em vez de perguntar
Pritchard, 1978) como os tribunais da Inquisição (Souza,1986 e Thomas, o que vem antes, sea intervençãoda polícia ou a acusaçãoà polícia, tentou-se
1980)
8 seguir a pista das acusaçõespara desvendaro que há de particular nessetipo
Se a pretensão da lei fosse extirpar a crença, aproximar-se-ia da legislação
de processoque o distingue dos outros processoscriminais, Por que a polícia
tem sempreque começar dizendo que houve denúncia e as testemunhassempre
inglesa na Ãfrica. Os juízes ingleses não acreditavam naquela feitiçaria e, pu- acabam desatando?Outro caso ocorrido em Madureira é claríssimo sobre esse
nindo acusadores,intervinham no processogerador de feiticeiros, além, é cla-
ponto e mostra como os clientes acusam.
ro, de tentar aniquilar o sistemapolítico local dastribos e grupos nativos, pois
a feitiçaria tem claros desdobramentospolíticos. Os feiticeiros estão entre os Antonio Alves Lopesfoi preso pelo delegado(25) da 17' Circunscrição,a
inimigos (Evans-Pritchard, 1972 e Douglas, 1970). uma hora da tarde, em companhia de pessoasde ambos os sexos, em número
de trinta praticando cura de várias pessoasenfermas,por meio de práticas
Mas há outros tipos paradigmáticosde acusação,como as feitas por vizi-
nhos e clientes de terreiros. espíritas, diz o auto do flagrante.
Na delegada depõem as testemunhas e o acusado. A primeira testemunha
Nos processos analisados, os delegados dizem quase sempre frases como conta a sua versão. Segundoelas
estas: «chegando ao meu conhecimento)}, <Konstando-me»,«segundo denún
cia», <<haviaconstantes queixas)}ou <(porhaver recebido denúncia segura». Es- há pouco mais ou menos 20 dias, Lopes apareceuem sua casa,
em Madureira e encontrandouma filha da testemunha,de nome
sas expressões estão quase sempre ligadas a acusações, como mostra o caso do
curandeiro no Morro de Santo Antânio.(24) Delfina. de 13 anos, sofrendo uns ataques, induziu-a e a seu marido
de virem morar em companhia dele, Lopes, sob pretexto de curar
Juvêncio, brasileiro de 65 anos, pardo, solteiro, é alvo de várias acusações Delfina. dizendo-lhes,nessaocasião,que a dita Delfina tinha o dia-
durante o inquérito policial, uma delas partindo de um cliente. ManDeI, do bo no corpo e o espírito de seu falecido pai.
Morro de Santa Tereza. Manoe] aparece também no depoimento de outra tes- Acrescentouque na ausênciado marido, que não é pai de Delfina, Lopes
temunha, e o juiz manda chamar o referido doente e sua mulher. convidou-as a morar com ele e:
O disse-que-me-disse entre as testemunhas é grande, e José Rodrigues, o Ensinava-lhesa revirar os olhos, estirar os braços e fazer certas
cabo de esquadra que entregou o nome do cliente do Morro de Santa Tereza, contorçõesa fim de fazer crer aos freqüentadoresdas reuniõesque
diz em juízo que o dito ManDeI tinha Ihe contado que o curandeiro estava ten- Lopes dava, que elas estavam em estado sonambúlico (...)
tando matar a mulher dele. Manoel nega, mas diz que a mulher dele se tratava obrigava-as a se fingirem de médiuns
com Juvêncio. Outra testemunhadiz que o Juvêncioia matar a mulher como
curandeiro. Acusa Antonio Alves Lopes de extorquir dinheiro para fazer curas. Disse
ainda que a filha contou que Lopes queria dormir com ela.

(24) Juvêncio Serafim Nascimento, Processo n' 596. ano 1898. caixa 1.997, Arquivo Nacional, Rio (25) Antonio Alves Lopes, Processon' 691, ano 1898, caixa 1.859, ans. 157 e 362 do Código
de Janeiro Penal, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

ÓO e
e Ó.l
}'vonne.A4aggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi]

Segundo a testemunha, Lopes, desconfiando de que elas iam embora de Quando perguntarama Antonio Alves Lopesse tinha algumacoisaa di-
sua casapara não tomar parte <(nessas ridículas práticas que chamava de espi- zer sobre a testemunha, ele contestou o depoimento da senhorinha, dizendo
ritismo», ameaçou-ase declarou que <(iafazer um trabalho para que seu mari- que ela era feiticeira. A senhorinha Osório é uma cliente que inicia um preces'
do não levasseDelfina e caso saíssemela ficaria completamentelouca)}. Ela o se contra um médium praticante de feitiçaria. Ela acusa um médium em parti-
acusaainda de ter batido numa mulher com um pedaço de pau-de-gufné.[)el- cular porque abusou ou usou mal os seuspoderes. O caso revela um lado das
fina confirma o depoimentoda mãe. acusações,o de que elas preservam a crença na mediunidade e nos espíritos,
As outras testemunhas, todas elas clientes, afirmam que iam assistir às pois não há acusações gerais, mas apenas a um médium particular. A defesa
sessõesespírffas e que assistiam apenas às sessões,não a outros fraga/Àos de do acusado em pauta também é reveladora. Ele acusa a acusadora de feitiça-
espiritismo. Uma delas diz que foi ameaçada de receber pancada com um pau- ria. A consequência da delação muitas vezes é a retribuição da acusação.
de-guiné. Quem vai dizer onde está a feitiçaria? Os juízes. E o que mostra o próximo
capítulo.
O acusado nega tudo e diz ter 33 anos, ser viúvo, canastreiro e português.
[)iz que <aó traba]ha para o bem, que é médium e tem o dom de curar, que Há ainda outro tipo de denúncia: o de vizinhos acusando um pai-de-
trabalha com os poderes de [)euP}. santo. No dia 12 de setembro, a polícia prendeu em flagrante Julgode Araújo
Pereira.(ZÓ)baiano, solteiro, 65 anos, desempregado, vulgarmente conhecido
Deu sua versão sobre as pauladas: como<eTio
Julgo)}.
Tio Julgofoi denunciado
por um vizinho,RomuloRodri-
estando com um espírito no corpo apareceuem sua casa uma se- gues, brasileiro, casado, 33 anos:
nhora de idade a quem o espírito que ele tinha no corpo dissera-lhe Tendo o declarante sua velha mãe residente à Rua Dorothea
que a referida senhora -- senhorinha Osório da Concepção -- era (...) teve ocasião de assistir várias cenas degradantespraticadas pelo
feiticeira e que tinha deitado sobre o altar uns pós brancos, então ele indivíduo conhecidopelo vulgo de Tio Julio, que esseindivíduo o
impelido pelo espírito que tinha recebidoempunhou uma vara-de declarante conhece desde menino como sendo feiticeiro (...) que
guiné, mandou ajoelhar a referida senhora e fez-lhe sobre a cabeça muitas das cenas assistidas comunicou-as a esta repartição e hoje,
movimentos e passespara Ihe cortar todas as forças, para não fazer acompanhou os investigadores na diligência que levaram a efeito na
mais feitiço a ninguém. A senhora pâs-lhe a gritar que não a matas- casa de Tio Julgo. ..
se e ele pediu-lhe então que não contassea ninguém, porque quem O vizinho é acusador e declara que desde menino assistia e conhecia o in
fazia isso não era ele e sim o espírito. Que as varas-de-guiné de que divíduo como feiticeiro. Por que só agora o denunciou?O processonão per-
usa e emprega chamam-se varinhas de condão e servem para atrair mite responder a essapergunta, mas o caso revela que em certas circunstâncias
os espíritos. se instauram processosformais contra feiticeiros.
O delegadodá nota de culpa ao acusadocomo incurso nos artigos 157 e Outro exemplo é a denúncia do Morro de São Carlos, no dia 22 de julho
362 do Código Penal (o artigo 362 trata de extorção). de 1930, quando foi preso Leopoldo Alves(27), 28 anos, pedreiro, alfabetizado.
Virtuoso Gamesda Silva, cabo de esquadrada I' Companhiado 6' Batalhão
A senhorinhaOsório, brasileira, 59 anos, moradora do Engenhode [)en- Militar, residente no quartel, depõe dizendo:
tro, confirma o depoimentoda primeiratestemunhae diz que quandoela bo-
tou a nota de 2.000 réis sobre a mesa, depois de contar a Lopes seusincómo- que hoje cercade l hora da manhã acompanhadode vários pra
dos, ele, chamando-a de feiticeira, ameaçou espancá-la com pau-de-guiné. ças dirigiu-se ao Morro de São Carlos, parte denominada 'Querose-
Conta que Lopes tinha dito que seu mal era grave e que ficaria curada se to- ne' por ter informaçõesde que o barracão de residênciade Leopol-
masseum remédio por ele fabricado, que custava 70 mil réis. Como ela não ti- do Alves, conhecidocomo elementocontumaz em desordens,prati-
cava o mesmo indivíduo aros de falso espiritismo, que efetivamente
nha o dinheiro, ele disse que se não tomasseo tal remédio, morreria em 13
dias o depoente acompanhado de seus praças surpreendeu o acusado
presente efetuando receitas de despachos sendo que com a apresen'
A senhorinha Osório saiu da casa aterrorizada e foi ao vizinho, que resol- ração do depoente houve correrias mas todas as pessoasque ali se
veu escreverum artigo para o Jorna/do Brasa/.Um furriel da Brigadade
PolíciaaconselhouAlbano, o vizinho, a não publicar, mascomunicaro fato à
autoridade,e o próprio furriel, a pedidode Albano, comunicouo fato à dele- (26) Processon' 2.313. ano 1927, caixa 1.775, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
gada que fez o flagrante. (27) Leopoldo Alves, Processon' 193, ano 1930, caixa 1.795, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

Ó3
Yvonne À4aggíe h,cedodo feitiço: relações entre magia e poder no Brasa!

encontravam foram detidas (...) praticava a 'magia negra' fornecen- tar um cliente ou uma amante. O medo do feitiço feito contra clientes e aman-
do a consulentesdespachosque o acusadofoi conduzidoa estade- tes ainda hoje é comum nos que buscam conselhocom médiunse pais-de-
legada no carro da Assistência Policial (...) que o depoente tem co- a
santo
nhecimento de que o acusado presentefaz trabalhos de magia negra No caso de Antonio Alves Lopes repete-se o medo do amante feiticeiro
no intuito de despertarsentimentosde ódio e amor dentre os quais com poderespara enlouquecera amásia. Também se revela mais uma vez o
recentemente destinou um serviço para Francisco de tal, sapateiro medo que o cliente tem do feitiço do médium. Aparece finalmente a crençaem
residente no Morro de São Carlos. que os médiuns podem ser charlatães, chantagear clientes e parentes. O caso
No processo há indícios de que o indivíduo conhecido como <<elemento mostra ainda que o acusado, sentindo-se ameaçado pelas denúncias, afirma
contumaz em desordens» destinara um serviço (trabalho, feitiço -- no texto que não trabalha para o mal. Na linguagem da feitiçaria, essaexpressãosignifi-
aparece a palavra serviço entre aspas) para Francisco, o sapateiro. ca que o acusado não contesta que possa haver quem trabalhe para o mal
Uma demanda entre o sapateiro e o <.mauelemento contumaz» no morro (quem seja feiticeiro), mas sim que ele, acusado, não faz isso.
gera conflito e a polícia é chamada a intervir. No casode Tio Julgoaparecea crença em que vizinhos podem fazer feiti-
As demandas, guerras, conflitos, são comuns dentro de centros e terreiros ço.
e entre centros e terreiros. Essecaso é revelador de um tipo de acusaçãoe con- Também no caso do Morro de São Cardoshá evidência de que se acredita
flito que não se dá entre pessoas de um mesmo terreiro, mas entre vizinhos. em que alguém possa fazer magia negra (magia maléfica) contra um vizinho.
Os processosestão cheios dessasacusações,sendo difícil saber por que al- No último caso descrito revela-se a crença em vários tipos de feiticeiros
gumas vezes se opta pela via legal e outras não (caso relatado em Guerra de definidos em relação a uma magia ou crença verdadeira; o espiritismo científi-
orfxá, Maggie, 1975). co. Tudo o que não fosseespiritismo científico, seria magia maléfica.
Apareceoutro tipo ainda de acusaçãoquando um policial participa de Aparecem também vários tipos de acusadores. Os vizinhos parecemser os
uma facção religiosa. É o caso do investigador Sampaio, que trabalhou anos mais freqüentes. Mas há ainda os clientes, os policiais da delegada que repri-
na Delegada de Costumes, tendo antes sido investigador a serviço do delegado mem, as amásias do acusado ou os empregados do réu.
com comissão para <írepressão ao baixo espiritismo>>.
Os processos fornecem dados sobre os acusadores, geralmente pessoas
No processoem que são acusadosAlexandrinaAntonio e Joaquim Fer próximas às vítimas, como se disse. São operários, trabalhadores, pessoaspo'
nandes, presos no dia 27 do mês de julho de 1929. em Bento Ribeiro.(28) Sam- bres. mas, às vezes, clientes ricos. Os policiais, individualmente, também fa-
paio, interrogado pela defesa,diz que <ldesconhece
o espiritismocomo religião, zem acusações,e muitas vezes, o acusador usa seu conhecimento de algum po-
que conheceo espiritismo científico, que não era o que a acusadaexercia». licial para fazer a denúncia,como no casodo Castelinho da Rua do Lavradio.
O advogado de defesa que fez a pergunta, já sabia, é claro, que esse in- Dados sobre os acusadostambém revelam a lógica das acusações.Nos
vestigador tinha poderes para reprimir centros e curandeiros que não fossem processosse pode obter dados como a cor, profissão, nacionalidade,grau de
adeptos do espfrítismo cfentífíco. E até possível que estivessenessa função po- instrução, artigos do Código Penal nos quais foram enquadrados etc. A sim-
licial por acaso. Mas, sem dúvida, sua opção filosófica influenciava a escolha ples leitura dos processoslá indica que há grande número de brancos e mi-
daqueles que seriam perseguidos pela polícia. Nesse caso, a perseguição fica grantes acusadores. Qual seria a razão desse tipo de acusação?
claramente religiosa; dependendo da facção religiosa do policial, a repressão
tem um destinoparticular. Levantou-se a hipótese de que essefato se relacionassecom a lógica das
acusações de feitiçaria. Se a acusação de feitiçaria se relaciona diretamente
Resumindo,são vários os tipos de acusaçõesque revelam ocasiõesou si- com conflitos mais geraise rompimentos de regrasde relacionamentoe regras
tuações em que se acredita em que alguém possa estar fazendo feitiço contra morais (Douglas, 1970), a explicação para o alto número de brancos acusados
outra pessoa
(e. entre esses,o alto índice de imigrantes), pode estar no conflito entre os di-
No primeiro caso descrito, acredita-seem que os patrões são capazesde ferentes segmentossociais do Rio de Janeiro no período (Chaloub, 1986) --
enfeitiçar os empregados. No segundo caso, o de Juvêncio, revelam-se várias nacionais versus imigrantes e brancos versus negros.
possibilidades: o feiticeiro é capaz de usar seuspoderesde curandeiro para ma- Como os processosnão podiam ser usadospara qualquer tipo de cálculo
estatísticoporque seu número não era suficiente, usou-seo material colhida
(28) Processon' 165, ano 1929, caixa 30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. nos arquivos da polícia para uma tabulação que revelassequem era mais acu-
8 Ó5
yvonne À4aggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

fado e em que artigos do Código Penal se enquadrava para verificar a percen- Serãoanalisadasnestetrabalho informaçõesreferentesà cor(n) e à natu-
tagem de pretos, pardos e brancos acusados. ralidade dos acusados, além de informações referentes aos artigos do Código
O material utilizado foi coletadono Centro de Microfilmagem da Secreta- Penal nos quais foram enquadrados.
ria de SegurançaPública do Rio de Janeiro e se refere aos registrosencontra- Â primeira vista, salta aos olhos o número de brancos acusados.Ao com-
dos em livros de tombos de delegadas do Rio de Janeiro. parar a cor dos acusadoscom a cor da populaçãodo Rio de Janeiropara o
Trata-sede um arquivo da PolíciaCivil, que tem o objetivo de fornecer período, percebe-seque há uma proporção muito maior de brancos acusados.
dados às autoridadespoliciais e judiciárias. Não é organizadopor técnicos e Na figura1-1, emanexo,serelacionaa porcentagem
dos acusados
por cor
nem está relacionado com a rede de arquivos públicos do estado. É um arqui- com a porcentagemda populaçãode pretos, pardos e brancosnos anos de
vo de uso interno e só foi aberto à pesquisapor curto período de tempo, por 1890, 1906, 1920 e 1940. Verifica-se que a proporção do total de brancos acu-
insistênciade uma funcionária do Desipe, também antropóloga, que obteve sados é comparativamente maior que a proporção de brancos na população
permissão especial do delegado responsável. nesseperíodo. Enquanto a proporção de pretos e pardos acusadosé menor que
Os livros de tombos mais antigos eram guardados nas várias delegadasde a proporção de pretos e pardos na população nesseperíodo.
polícia do Rio. Nos anos 60, a Secretariade Segurançaresolvearquiva-los e, [)epois dessaprimeira constatação, verifica-se que é maior o número de
em portaria, exigeque as delegadasdo Rio os depositemnum local determina- acusadosno artigo 157 do Código Penal. As figuras 1-2, 1-3, anexas, mostram
do. Durante anos essematerial não foi devidamenteguardado, só nos anos 70, que o número de brancosacusadosé sempremaior em todos os três artigos e
com a criação do Centro de Microfilmagem, funcionários da polícia passaram que há mais pretos e pardos acusadosnos artigos 157, 158 e 157/158 em rela-
a arquivar os documentos. ção aos acusadospretos e pardos nos artigos 156, 156/157 e 156/158.
A Secretaria de Segurançanão conservou os originais como parece ser re- Na figura 1-4, anexa,a freqüênciados inquéritosno período de 1912a
gra nos arquivos públicos. Depois de microfilmar os documentos,destruiu-os, 1945aponta uma concentração entre 1927 e 1938. Essaconcentração não signi-
segundo informação dos responsáveispelo arquivo. fica que tenha realmente havido mais inquéritos no período. Talvez expresse
uma deformação no registro dos inquéritos
Assim, apesar do cuidado de rubricar páginas e revelar falhas do original,
são grandes as lacunas, porque os livros estavam bastantes danificados. Con- De toda maneira, resolveu-sena Figura 1-5, em anexo, tomar para análise
tudo, obteve-secom essesregistros uma mostra significativa e próxima aos nú- apenasos dados do período de 1927 a 1938. Comparou'se a naturalidade dos
meros obtidos por Bastide (1973) para São Paulo. acusadose verificou-se uma grande proporção de imigrantes.
Coletou-senessesmicrofilmes os dados dos acusadosem inquéritos poli- Os números revelam que há grande porcentagem de brancos acusadose
ciais e denunciados nos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal. Os inquéritos menor quantidade de pretos e pardos em relação à proporção de pretos, par'
não foram todos encontrados(29), mas os livros de tombos trazem muitos da- dos e brancos na população do Rio de Janeiro no período. Revelam ainda uma
dos reveladores sobre os acusados. porcentagem grande de imigrantes estrangeiros.
Quinhentos e oitenta e um inquéritos policiais referentesaos artigos 156, O que significam esses números?
157 e 158 e ocorridos nos anos 1912, 1914, 1915, 1919, 1922, 1927 a 1938, Reger Bastide (1973) descobre números semelhantes na delegada responsá
1944 e 1945 foram levantados
vel pela repressãoao baixo espiritismo em São Paulo e conclui que a macum-
Os livros pertencem à delegada cujo chefe recebera, em 1927, uma comis- ba paulista se embranqueceue que, por isso, foi deturpada em relação aos pre'
sãopara «repressão
ao baixo espiritismoe ao curandeirismo)}(30)
e a partir de ceitos africanos verdadeiros, tornando-se fonte de crime e erotismo
1934 à I' Delegada Auxiliar, de Costumes, responsável pela repressão ao bai- Bastide (1973) diferencia a macumba paulista da carioca. No entanto, os
xo espiritismo e curandeirismo no Rio de Janeiro. Os inquéritos anteriores a dados revelam que, em termos de cor e de naturalidade dos acusados, o caso
1927 pertencem a várias delegadas, mas são remetidos em 1934 para a I' De- de São Paulo é bem próximo do caso carioca (Bastide 1973;193-247)
legada Auxiliar. Salvo distorção dos números para o Rio, aqui se dá uma proporção me
Nesseslivros se encontram as informações sobre o acusado e o inquérito nor de pretos e pardos acusados em relação à porcentagem de pretos e pardos
policial.
(31) Utiliza-seaqui ascategoriaspreto, pardo e branco porque assimforam registradose é a partir
129) Processo e inquéritos são discutidos em outro trabalho, Maggie (1988) dessas categorias que se pode comparar com outros dados sobre a cor da população no Bra-
(30) Conforme portaria assinada pelo chefe de polícia em 1927. sil
yvonne Maggíe ?dedodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi]

na população do estado. Em São Paulo, segundo Bastide (1973:202) há 25% descreveu,a partir de processoscriminais, essesconflitos no Rio de Janeirodo
de pretos acusadosenquanto a percentagem de pretos na população do estado início do século
é de 10% . A maior porcentagem de brancos e imigrantes, em relação à população
Bastide analisa dados obtidos no período de 1938 a 1941, mas essa dife- total do estadono período,pode significar que os negrosforam melhoresacu-
rença parece não ser signigicativa lá que não há muita variação na população sadores... Ou seja, não se pode tomar os dados obtidos na polícia como se re-
no período. presentassem a populaçãototal de participantesdessescultos.
Os números expressam, de um lado, essamaior participação de brancos e Outros tipos de acusaçãoe acusadores,descritosa seguir, dão um sentido
migrantes, o que mostra que não só os negros estavam na mira das autorida- e um caminho particular ao combate aos feiticeiros
des policiais.
No entanto, parece que as conclusõesde Bastide para a repressãoe para a
macumba paulista podem esconder um outro lado da questão que deve ser es-
clarecido.
Segundo muitos estudiosos, inclusive Bastide (1973), de um modo geral,
os brancos sempre participaram dos rituais abro-brasileiros, desde o século
XIX. Reis (1987) mostra a indignação de um juiz ao descrever o candomblé,
onde havia crioulos e africanos reunidos, em 1822. [)ois anos depois, o mesmo
juiz reclama por ter encontrado um procurador branco entre os participantes
do candomblé que reprimiu (Reis, 1987). A literatura especializadaestá sem- 1890
pre se referindo a essa participação de brancos e à expropriação e deturpação
da cultura negra. 1906
Como aponta Carlos Hasenbalg(1979), uma tendência na literatura res- 1920
ponsabilizao negro pela sua marginalizaçãosocial. Bastide(1973), por exem-
plo, descreveo negro em São Paulo como um segmentoque se deixou detur- 1940
par culturalmente com a aproximação da cultura branca. Uma das causas des-
sa deturpação cultural é, segundo Bastide, a origem baniu dos negros paulis- Acusados
tas, mais <<fracos>}culturalmente (Bastide, 1973:241). Segundo Bastide, os
brancosdeturparam a macumba, que passoudo preto ao branco. Os brancos
procuravam lucro e dinheiro:
Penetrando nela, o branco iria desnaturá-la, introduzir os ele
mentos eróticos e sádicos de que falamos a propósito da Europa Pardo Branco
Preto
(Bastide 1973:244-5).
Essainterpretação de Bastide (1973), feita a partir de dados obtidos na
polícia em São Paulo, influenciou de forma contundentea literatura sobre os
cultos abro-brasileiros.
Figura1-1 Relaçãoentrea cor dos acusadose a cor da populaçãodo Rio de
E o caso de se perguntar se talvez não representemapenasa ponta de um Janeirot''/
iceberg a revelar algo mais profundo e aparentementede difícil quantificação.
Se os processos criminais constituíram instrumentos de regulamentação
das acusações
de feitiçaria, talvezessapercentagemgrandede brancose imi-
grantes não revele sua maior participação nos cultos, e sim o conflito e as ten
iões entre essesimigrantes e nacionais e também as tensõesdas relaçõesraciais (32) Os dados referentesà cor da população do Río de Janeiro foram extraídos das estimativas de
entre pretos e brancos no Rio de Janeiro. A propósito, Sidney Chaloub (1986) Adamo (1983)

e Ó9
yvonne Jb/aggie Medo d

450 120

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156 '157' '158' '156/7" '156/8"157/8' total 0


Artigos 12 14 16 18 20 22 24 2Ó 28 30 32 34 36 38 40 42 44
Figura 1-2 Relação entre a cor do acusado e o artigo no qual foi enquadrado
no inquérito policial Ano 19

Figura 1-4 Frequência de acusados

PP
o o Cor
r r 27.0%

A Preto
r
t Pardo
l
D Fluminenses
a 44.5%
g Branco
g
0
N Demais estados
e
m
D
S

Estrangeiros

]56' 157' '158' '156/7''156/8''157/8 total

Artigos

Figura 1-3 Porcentagem de pretos, pardos e brancos por artigo gura 1-5 Origem dos acusados

70 e
yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

2. O paradigma das campanhas concebeos feiticeiros entre os inimigos e as acusaçõesrevelam conflitos entre
acusados e acusadores.
Muitas vezes as acusaçõesnão partem de indivíduos isolados como nos Depõe também o Dr. Luiz Antonio da SalvaSantos, 44 anos, médico, se-
casosdescritos acima. Há campanhas empreendidaspela polícia ou por órgãos cretário da Díretoria Geral da Saúde Pública. Para Ferraz, essa testemunha
da SaúdePública. Os processos revelam, no entanto, que as campanhas se uti- também é suspeita, por pertencer à classemédica e ser secretário do órgão que
lizam do mecanismoacusatóriapreexistente.Para reprimir e coibir o feitiço promoveu o processo.
as autoridades seguem a trilha dos conflitos internos dos grupos que são obje-
to da repressão.Assim, quando resolvemfazer campanhasde saúdepública, é O Dr. Luiz Antonio respondedizendo que não tem interessedireto nem
comum o delegado dizer «era sabido» ou <<conhecido macumbeiro». A expres- profissional na causa:
são revela que todos já sabiam da existência do feiticeiro
.tendo em dezembro de 1897 o chefe de sua repartição notícia de
O caso mais famoso e que firmou jurisprudência nos tribunais, com sen- que um pedreiro chamado Ferraz exercia ilegalmente a medicina fa-
tença de Viveiros de Castro, é o de Ferraz(3S)
ocorrido em 1877-1878.O pro zendoofício de curandeirooficiou à Diretoria de Higiene.Pública
cessoé iniciado por requisiçãodo Diretório Geral da SaúdePúblicae o Dr para que sindicasseo fato par meio de algum procedimento judi-
Paulino Werneck, brasileiro, casado,:médico, morador da Rua Conde de Bon- cial... A 7-12-1897o Dr. Diretor de Higiene respondeu a esseofício
fim, é a primeira. testemunha indicada pela promotoria. (j2uandoo juiz pergun- transmitindo a informação e oficiou ao procurador-geraldo distrito
ta a Ferraz se tem.l.algumacoisa a dizer sobre a testemunha.ele responde que o transmitindo cópia de informação do Dr. Paulino Werneck... solici-
depoimento dessapessoa é suspeito, porque pertenceà classemédica, <íqueé a tando providênciaslegais:..
maior inimiga do espiritismo e dos que exercema medicina sem diploma ou
título científico». O [)r. Pau]ino Werneck diz que não conheceo denunciado e Enfim, a campanhaé iniciada porque o chefe da repartição teve notícia
nem tem prevenção contra ele. Explica que foi chamado a depor porque como como ele mesmo diz, de que Joaquim José Ferraz, 47 anos, solteiro, brasileiro
de cor parda, residente na Rua da Serra, no Andaram Grande, lugar denomina
funcionário do Diretório de Higiene e AssistênciaPública Muni- do Anil, analfabeto, era o conhecido feiticeiro, e
cipal foi encarregadopelo chefede verificar seo denunciadoexercia
ilegalmente a .medicina à requisição do [)iretório Geral da Saúde causa admiração... assistir à procissão de indivíduos que vão procu'
Pública. (1)ueno cumprimento desta incumbênciadirigiu-se à resi- rar recursosmédicosjunto do referido Ferrazl.. que os bondes se-
dência do acusado. Que teve então a ocasião de verificar ser verda- guem repletosde doentesna maior parte do sexo feminino e bem
deira a denúncia pelo grande número de pessoasque íam consultar assim de crianças. ..
o denunciado. Que entrou na sala onde o denunciado atendia seus O padrão de acusaçãonas campanhas é semelhanteaos descritos anterior-
doentes e teve ocasião de verificar estar ele exercendo ilegalmente a mente. A diferença está em que o acusador é membro de instituição de Saúde
medicina, isto é, não propriamente como médico osculante... Mas Pública. Apesar de se guiar por denúnciasde vizinhos e clientes,tem poderes
respondendo aos doentes que lhes expunham suas moléstias que to-
para restringir a atuação dos curandeiros, que «infestam» a cidade, como diz o
massemtais remédios, em geral vegetais, que não se recorda dos relatório de 1927 do chefe de polícia.(34)As campanhasdão certo sentido ao
nomesdestesvegetais...Que comunicandoo ocorrido a seu chefe combateaos feiticeiros pois têm um objetivo purificador, despoluidor, higieni-
cumpria assim a missão que fora incumbido (. .) não se preocupou zador. Os feiticeiros são poluidores e nesta moral, como na moral zande, os
mais com o denunciado ignorando o que tem ele feito. feiticeiros devem ser punidos.
A testemunha é empregado da Diretoria Geral de Saúde Pública. Até aqui se expôs como se acusa e quem acusa; podendo-se afirmar que
as acusaçõessão feitas através de pessoasisoladas ou de instituições públicas,
O médico da Saúde Pública diz ser verdadeira a denúncia. confirmando como os serviços de higiene.A Igreja não aparecenos processoscomo acusa-
com isso que houve uma primeira acusaçãoa Ferrazdo Andaraí. O acusado, dora
por sua vez, revela que os médicos são inimigos dos espíritas, por isso os acu-
É necessário, agora, entender como se condena e qual o castigo para o cre-
sam. Nessa formulação fica demonstrado que o sistema de crença na feitiçaria me

13a) Processon' 571/1898, caixa 2.002, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro 134) Ver Introdução à Parte l

e 73
yvonne Maggfe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

3 Os desfechos dos processos Somando-seas ações arquivadas, prescritas e os indultos, tem-se 10 casos
de acusados não-sentenciados. A maioria dos acusados é absolvida e dos qua-
Bons Fausto (1984), comentando os desfechosdos processossubmetidos tro condenados,três são pretos. Essaamostragemnão é significativa porque
ao tribunal do júri de 1887 a 1924, diz que «tomadosos númerosem seucon- não revela uma percentagem carreta da relação entre pretos, pardos e brancos
junto, as condenações
superamas absolvições»
(p.231).fINo entanto,se se acusadoscomo se viu mais acima. [)e qua]quer modo, é significativo o número
cruza a cor com o desfecho dos processos,as absolvições e arquivamentos são de absolvições, maior do que o de condenações,e o fato de entre os quatro con-
minoritários quando se trata de negros e mulatos e maioritários quando se tra- denados três serem pretos
ta de brancos» (p. 232).
A seguir são narrados dois casos que esclarecem como se condena e quem
Essesdadosreferentes
a processos
do tribunaldo júri surpreendem
em é condenado.
função do reduzido número de condenaçõesde acusadosenquadradosnos arti-
gos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890.
De um lado, pretos e pardos, emborasejamos menosacusados,são os
que proporcionalmente recebem maior número de sentençascondenatórias, o 4 Cabo-verdiano, profissão: curandeiro(3s)
que vai de encontro à hipótese de Bons Fausto de que não se
trata apenasdo preconceitogenéricocontra o preto; o que se tem
diante da imponência da sala de sessões,é um ser inferior preto O Sr. ManoelGomes,cabo-verdiano,
é presono dia 5 de dezembro
de
e pobre -- acusadode um delito com relação ao qual há má vonta- 1904 no Engenho de Dentro pelo inspetor de polícia quando
de dos julgadores leigos ou tocados, defendido apenasformalmente praticava o espiritismo, a magia e seussortilégios achando-sepre-
por um advogado de circunstância (pp.235-236). sentes e sujeitando-se a todos os sentimentos que lhes incutiam o
De outro, no entanto, o fato das condenações serem,em númerosabsolu- acusado presente, mais de 20 pessoas.
tos, minoritários, faz divergir das observaçõesfeitas por Fausto(1984), porque Diz o auto da prisão em flagrante:
nos crimes contra a propriedade por ele analisados é alto o número de conde- Na sala em que havia a sessãode magia foram encontradosos
naçoes.
seguintesobjetos: diversas imagens; diversos pratos com amendoins
É claro que o material recolhido não permite fazer generalizaçõesporque e pipocasde milho em frente às imagensde SantoOnofre e São
não foram analisadostodos os processos,nem foi feito um survey estatístico, Cosme; grande quantidade de figas de madeira da Guiné, búzios e
mas, de qualquer forma, a diferença ressalta. talvez porque não se trate, neste favas de Santo Início; duas figuras de madeira escura e um crucifi-
caso, de crimes contra a propriedade. xo de metal branco em cruz de madeira pintada de preto, tendo nas
Entre os 23 processos escolhidos para serem analisados mais devidamente extremidades pequenos tornos de osso; em um quarto, duas gali-
foram acusadas 34 pessoas e assim se distribuem as sentenças e a cor dos sen- nhas pretas, diversos cascos de boi, rabos de arrasa e diversas peles
tenciados: de cabras diferentes; em outra quarto, chifres diferentes e grande
quantidade de ervas desconhecidase duas peles de cabrito, um .par
C+l IÇjl l DC4\Av D
de meias de algodão brancas amarradas em três nós, bem como len-
ços, tudo servido, encontrando mais um baralho de cartas e um bo-
Cor
de de grandes chifres.
Sentença Total Preto Pardo Branco Incompleto Manoel Gomes, em seu depoimento no auto de qualificação, diz ser, por
Absolvido 20 9 2 7 2 profissão, curandeiro, natural da ilha de Cabo Verde, analfabeto e desconhe-
Condenado 4 3 cer sua idade.
l
Arquivado 5 l 3 As testemunhas do processo depõem na delegada e confirmam o depoi-
Prescrito 4 2 2 mento do acusado, dizendo que Manoel é curandeiro. O inspetor da 20' Cir-
Indultado l l cunscrição, também testemunha, diz que encontrou o acusadosentado em tor-
no de uma mesa e cercado das demais pessoasusando «da magia para incutir
Total 34 14 5 7 7
(35) Processo s/n 1.904. at. 157, caixa 1.817. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

74 e
}''vonne.N4aggfe Medo do feitiço; relaçõesentre magia e poder no Brasil

no espírito das pessoaspresentes, temor, ódio ou vingança, enfim subjugando À primeiravista pareceque se trata antesda figura do artigo
a credulidadepública)}.[)iz ainda que conheceo acusadode vista e sabeque 158 do código em vista da declaração do próprio réu de que exerce
ele vive exclusivamente desse <(misten}. Os policiais que fazem a prisão sempre a profissão de curandeiro. Bem examinada porém a figura delituosa
são testemunhas,assim como os clientes dos acusados. evidencia-seque ela está enquadrada no artigo 157, porque o réu
praticava a magia e seus sortilégios, usava de talismãs e cartoman-
Ao contestar o depoimento do inspetor de polícia, ManDeI Gomes diz que cia para inculcar curas de moléstias e fascinar a credulidade pública
há muito tempo exercea profissãode curandeiro,e isso por meio e explorava também o espiritismo. O réu foi encontrado dando au-
de ervas e água e sempre para fazer o bem e não o mal. (2ue a sua diência a sua numerosa clientela (...) Os obietos apreendidos pela
casa é sempre freqüentada por gente boa e de muito dinheiro. polícia (...) constituíam a mfse-en-scênecom que o réu iludia a cre-
Outra testemunha, um vizinho do acusado, português, diz que o acusado dulidade dos clientes (...) O réu confessou plenamente o seu delito.
estava em sessão de espiritismo tendo a casa cheia e que essasreuniões aconte- (...) Parece, portanto, que deve ser condenado nos termos da de-
nuncia.
cem segundase sextas-feiras (...) inúmeras mulheres que frequentam a casa do
acusado dali se retiram comentando a forma por que ele administrava remédios O leitor pode pensar que o réu vai ser condenado porque é crime ser cu-
ou coisa que o valha. randeiro, segundo o artigo 158 do Código Penal, e porque ele mesmose define
como curandeiro. Está equivocado, porque o promotor o enquadra no artigo
Outra vizinha confirma que ouviu dizer que ele é espírita e faz curas, mas 157, que proíbe a magia e seussortilégios.
não sabe se ele cobra pelas consultas.
Vê-se que o que está em jogo não é coibir uma prática considerada crime,
O delegadodá o acusadocomo incursono artigo 157 do Código Penal. o curandeirismo, mas coibir e combater aqueles que usam o arsenalda feitiça-
Os autose os objetosapreendidos
sãoremetidosao juiz dos Feitosde ria, como diz o flagrante. Os objetos considerados do arsenal da feitiçaria são:
SaúdePública. O subprocurador dos Feitos da SaúdePública denuncia o acu- figas, amendoim, pipoca. imagens de santos, couro de cobra, galinhas e um
sado com base no artigo 157 do Código Penal e no parágrafo único do artigo bode
251 do Regulamento Sanitário (que regula também a cura de moléstias por O promotor encaminhao feiticeiro para o juiz, que se decidepor conde-
meio de magia).Relataque foi apreendido
no flagranteum arsena/de nar o réu. Com isso, demonstra acreditar na feitiçaria de Manoel.
feitiçaria (amendoim, pipoca, imagens de santo, figas, couro de cobra, gali- O juiz dos Feitos da Saúde Pública, Eliezer Gerson Tavares, em sua sen-
nhas e um bode). Pede ainda que os objetos sejam remetidos ao depósito pú-
blico tença, condena o cabo-verdiano sem discutir a denúncia, dizendo=
.considerando que o crime praticado pelo réu está cumpridamente
Depondo em juízo, ManDeI Games confirma o depoimento que tinha da- provado, preso como foi em flagrante delito, como se vê do auto
do na delegada. O inspetor que fez a diligência na casa do cabo-verdiano re- de informação (...) e considerando que o réu efetivamente praticava
pete o depoimento prestado à polícia, com algumas modificações. Diz que a magia e seussortilégios como resultado do mencionado auto e do
«não viu o acusadopropriamente receber dinheiro, viu dinheiro depositado depoimento das testemunhas (...) Julgo procedente a denúncia con-
num pires».. [)iz ainda que o de]egado recebia queixas constantes a respeito da denandoo réu a 6 mesesde prisão celular e multa de 500 mil réis
casade Manoel e que <.ouviudiversaspessoasdizerem que se tinham curado grau máximo do referido artigo 157
com o tratamento dele e que o acusadoexerciaa profissão de curandeiro e já
Manoel Gomes é devolvido à Casa de Detenção porque a Casa de Corre-
havia sido preso uma vez por essemotivo».
ção estava lotada. A multa é convertida em 62 dias de prisão; tendo sido a pe-
Contestandoessedepoimento, Manoel Games diz que <cnãodá remédio na consideradacumprida. O juiz requer o alvará de soltura a 9 de agosto de
nenhum para beber, que vende figas, que algumaspessoastêm fé nele e acredi- 1905. O cabo-verdiano fica oito mesespreso na Casa de Detenção.
tam nas orações que faa}. Diz que os objetos apreendidos são de uso pessoal,
que as <<galinhasque se achavam debaixo de sua cama estavam chocas, o cou- Guardadas as proporções quanto às penas impostas, esse processo pode
ro de cobra pendurado no fumeiro para secar e o bode amarrado no quintal)}. ser comparado aos processosinquisitoriais europeus. A pena pode ser conside-
rada branda se compararmos aos castigos infligidos às feiticeiras européias.
Manoel Games, preso desde o flagrante, não constitui advogado e a Saú-
de Pública, como autora, dá as seguintesrazõespara a condenaçãodo cabo- Resumindo,
o juiz, branco,da elite carioca,condenao africanonegro
verdiano: acreditandoem que ele seja feiticeiro. O africano, que afirma só trabalhar pa-

e 77
rvonne Maggie Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasa!

ra o bem, implicitamentereconhecea existênciada magianegra.Os policiais O delegadomanda dar nota de culpa ao acusadocomo incurso no artigo
acusam-node feiticeiro que tem um arsenalde feitiçaria. As outras testemu- 157 do Código Penal e encaminha o processo dizendo
nhas dizem que ele é curandeiro, que faz magia benéfica. Este inquérito versa sobre uma das formas múltiplas do estelio
Nesseprocesso todos acreditam em que existe magia negra e que peles de nato -- o exercíciodo ocultismo em proveito de um charlatão que
cobra, bodes, galinhas, amendoim e pipoca podem servir para produzir ma- se ia locupletandocom a credulidadealheia (...) indivíduo analfabe
lefício. O processo criminal é instaurado, portanto, para se saber se aquele in- to como se vê pela ortografia da petição (...) desdemuito intitula-se
divíduoem particularé feiticeiro.No caso,a estratégia
do acusadonão foi Espírita Sonâmbulo(SP)atribuindo-se, por meio de práticas ocultas,
convincente, porque ele foi condenado. O cabo-verdiano era preto e não cons- a faculdade de descobrir segredose mistérios da vida e curar molés-
tituiu advogado, o que já Ihe dá uma enorme desvantagem,mas sua condena- tias. Com essaprofissão, vendo aumentar sua clientela de mulheres
ção se explica para além da cor e desproteção.Ele não conseguiuuma estraté- histéricas e indivíduos crédulos, ia explorando a bolsa do público,
gia para convencer a todos de que não praticava a magia negra ou que fazia a até que resolvi embargar o estelionato (...) O indivíduo é um verda
bem deiro charlatão. Espiritismo, sonambulismo, ocultismo e magia, to-
das estas idéias se embaralham e confundem seu espírito inculto,
O caso que se descreve a seguir leva adiante a discussão.
que sem as compreender tira delas proveito, explorando a sua clien
tela de ignorantes.
Outras testemunhasde defesa,ouvidas pelo advogado do espírita, negam
5. Espírita sonâmbulo, por Evaristo de Moraes(36) o flagrante e dez dizem que Pedra Leitão foi levado à delegada e ali não con-
fessounenhum crime, tendo o delegado Ihe dado um «papel)>para assinar.
Melhor sorte teve Pedro Leitão; que foi defendido por Evaristo de Moraes Evaristo de Moraes nega o flagrante porque em seu depoimento, a testemunha
da acusaçãodo delegadoAugusto M. Caldeira Brant, da 5' CircunscriçãoUr- do Ministério Público, o guardacivil a serviço da polícia, disseque não sabia
bana.(37)A primeira testemunha, o inspetor seccional, que acompanhou o de- o que o acusado estava fazendo quando foi preso. Destrói o flagrante decla-
legado até a casa n' 111 da Praça da República, declara que viu o delegado rando que essaprova policial não tem nenhuma validade. Termina dizendo
dar voz de prisão ao acusadoPedra Leitão, no dia 3 de abril de 1906, por es- que sem o flagrante, é impossível a condenação.
tar o mesmo em companhia de uma senhora praticando consulta de espiritis- O juiz Eliezer Tavares, que no mesmo ano condenou o cabo-verdiano Ma-
mo, sonambulismo, magia ou <«pisa que o valhal>. noel Games, absolve Pedra Leitão, mas não discute o artigo 157 e sim o modo
As duas outras testemunhaseram patroa e empregada.A empregadade- como foi encaminhado o processo. Acompanhando o argumento do advoga-
clara que acompanhou a patroa à casa da Praça da República e viu quando es- do, pergunta como pode condenar o acusado se não há flagrante. O espírita
ta entrou numa saleta. A empregadaficou na sala de esperae também viu sonâmbulo respondeu o processo em liberdade porque pagou fiança.
quando três homensentraram pela porta e foram para a saletaonde seencon- Pode-sedizer que no primeiro processo, menos assistido, o acusado rece-
trava a patroa. beu condenaçãoe no segundo, com a defesa de Evaristo de Moraes, o juiz não
A patroa declara que leu no ./orça/ do Brasa/um anúncio publicado pelo pede condenar. No entanto, os dois processos relatam a trama de dois homens
acusado de <lprática de curas por meio do espiritismo>>. que dizem ter como profissão o curandeirismo e o espiritismo. Um é condena-
Há dias consultara o acusadoque Ihe dera um vidro com um do, o outro absolvido. Um é estrangeiro, africano, do Cabo Verde, preto. O
líquido branco que Ihe parecera água dizendo-lhe que com aquele outro é brasileiro. No primeiro caso, o acusadofaz a própria defesa; no se-
remédioficaria boa até o dia 23 do corrente. gundo entra em cena o melhor advogado do Rio de Janeiro. O primeiro é
acusadode feitiçaria; o segundo, de charlatanismo. Mas a diferença maior está
Pedra Leitão, brasileiro,(3a) casado, comerciante, «profissão espíritas, de-
clara que <lexercea profissão de espiritismo por ser ela reconhecida pela Cons- em que o primeiro acusadose diz curandeiro e é negro africano, faz rituais
com animais, bodescom chifres, couro de cobra e o segundose diz espírita, é
tituição da República»
bem falante, cura com água f7uídíca e talvez seja branco
13ó) Processo s/no 1.906, art. 157, caixa. 1.762, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
137) Essascircunscrições mudam e seria preciso um outro trabalho para entender as mudançasdas
divisões da cidade e do controle po]icia]. IS9) NanaRodrigues(1932)definia o transecomo sonambulismo,o que remetepara outro nível de
(38) Muitas vezesnão se declara a cor do acusado, o que leva a crer que seja branco consenso da crença

e 79
rvonne JWaggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

Segundo a literatura clássica, os sistemas de crença na feitiçaria incluem o produzem um discurso de defesa que se baseia nas mesmas categorias dos dis-
ceticismo. É através da dúvida em relação a um feiticeiro em particular que se cursos acusatórios
reafirma a crença no sistema (Evans-Pritchard, 1978). Todo sistema regulador Vale aqui consideraro que diz Foucaultsobre o sexo(Foucault,1986).As
de combate aos feiticeiros deve dispor de um mecanismopara distinguir os crenças discutidas nos processos não fazem parte daquilo que a burguesia des-
verdadeiros dos falsos. Além disso, o sistemadeve ter regras: nem todos os in- qualificou. (-onstituem, ao contrário, aquilo que inquietou, preocupou, solicj
divíduos podem ser acusadosde feitiçaria ou charlatanismo.Entre as regras, tou e obtevecuidadosde burguesiae que ela cultivou com uma mistura de
algumas definem quem são os mais perigosos. medo, curiosidade, deleite e febre
A própria crença na feitiçaria no Rio de Janeiroe a análisedos dois pro- O pequeno número de condenações faz supor que os processos estimulam
cessosdescritos evidenciam o primeiro acusado como um perigoso feiticeiro a realização dos rituais. Cada vez que alguém é preso por estar realizando ri-
Porém, apesar do fato de ser negro e usar objetos não ser suficiente para con- tuais de magia negra, os discursos se misturam, a magia é discutida e há mar-
denar ninguém, todos os condenados usam essascoisas. gempara a divulgaçãode rituais e sacerdotesda magia.
A literatura mais recente que analisa as religiões mediúnicas no Rio de Ja- O objetivo dos processosno Brasil diferentementede Zimbábue, onde a
neiro aponta para a condenação das práticas mais próximas da Africa, como a Lei de Supressãoà Feitiçaria coíbe a acusaçãoa feiticeiros e médicos adivinhos,
macumba e o candomblé. Danças (1983) diz que os sinais que no Nordeste ser- não é de extirpar a crença, mas de provar que a feitiçaria existe e produz ma-
viam para legitimar os cultos, no Rio, deslegitimavam.Os dois desfechosaci- lefícios
ma analisadosapontampara um consensonessaperspectiva.Os juízesdo A prova de que a feitiçaria é crençaem que todos os que participamdo
início do século já condenavam africanos e pretos porque acreditavam em que cessoacreditam está no fato da discussão travada entre acusados, acusado-
elesfaziam magia negra, eram.feiticeiros e deviam ser consideradosperigosos. res, juízes, promotores e advogados não desqualificar a feitiçaria. Não se nega
O Espírita Sonâmbulo acusado de charlatanismo consegueuma estratégia a existênciado mal produzidode forma mágica.Nega-seou aceita-seo fato de
perfeita. Provando a falsidade da acusação,conseguea absolvição. O juiz rea- um indivíduo em particular praticar a magia maléfica, fazer o mal.
firma a crença não porque absolve o réu, mas porque aceita o argumento de O próximo capítulo descreve como os diversos personagensque compõem
que os acusadoresmentiram. Acredita na verdade daquele médium, e continua rama processual se posicionam frente à questão e discute mais a fundo co-
definindo a possibilidade do charlatanismo. mo os juízes e especialistas acabam se imiscuindo e regulamentando o combate
Ainda resta explicampor que tanta perseguiçãoe ao mesmo tempo tantos aos feiticeiros no Rio de Janeiro
processoscom desfechosque inocentam os acusados
Nos procesosinquisitoriais, o próprio sistemausadopara descobriro feiti-
ceiro, muitas vezes implicava uma condenação. Na Nova Inglaterra, por exem-
plo, o acusado era colocado debaixo de enormes pedras. Se morresse, não era
consideradofeiticeiro. Se sobrevivesse,ia para a fogueira, ficava provada sua
culpa. Na República, de um modo geral, o pagamentoda fiança liberava o
acusadoda pena. Se o acusadonão pagassea fiança ficaria preso até o final
do processo,o que equivale, muitas vezes,a uma pena maior do que a previs-
ta para o crime. Assim, condenação e absolvição não se relacionam apela.as
com a sentença do juiz. O juiz pode absolver um acusado que já passou mais
de um ano na Casa de Detençãoe condenaroutro que, tendo pago a fiança e
aguardado em liberdade, não cumprirá pena por esta já estar prescrita na oca-
sião do desfecho judicial.
Por que tanta severidade de um lado e tanta tolerância de outro? A julgar
pelo pequenonúmero de condenações,pode-sepensaros processosnão como
instrumento para barrar o desenvolvimento dessascrenças, mas como estraté
gia que visa à constituição de um discursosobre elas. Não só discursoconsti-
tuído contra elas, mas discursode retorno. Os processosacusam.incitam e

80 e
Capítulo ll
A versão dos especialistas, acusados e testemunhas
pode-se afirmar que na Bahia todas as classes,
mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem
negras. O número dos brancos, mulatos e in-
divíduos de todas as cores e matizes que vão con-
sultar os negros feiticeiros nas suas aflições, nas
suas desgraças,dos que crêem publicamente no
poder sobrenatural dos talismãs e feitiços, dos que
em muito maior número, zombam deles em públi-
co. mas ocultamente os ouvem. os consultam. esse
número seria incalculável se não fossemais simples
dizer de um modo geral que é a população em
massa. à exceção de uma minoria de espíritos su-
periores e esclarecidosque tem a noçãoverdadeira
do valor exato dessas manifestações psicológicas
Rodrigues (1935:186)

Neste capítulo se descreve as versões dos personagens que fazem parte das
tramas dos processos.
O capítulo tem três subdivisões. Na primeira, é analisada a versão dos es-
pecialistas(juízes,promotores,advogadose delegados);na segunda,a versão
dos acusadose na terceira. a das testemunhas.
Nessestrês níveis ou a partir dessastrês posições, se discute a justificativa
ideológica dos especialistaspara o combate aos feiticeiros. Também aqui apa-
recem os contextos e lutas em que estavam inseridos os especialistas
Questiona-se ainda em relação às versões de acusados e testemunhas, como fa
lam e o que é dito em seusdepoimentos.
O combate aos feiticeiros tem uma justificativa legal e os juízes, promoto-
res, delegadose advogadosnarram seuspontos de vista e estabelecem
uma
conversa com acusados e testemunhas. Essa conversa só pode ser travada por
haver concordância em alguns pontos entre perseguidorese perseguidos. Essa
hipótesenorteia a descriçãodas versõese é aqui aprofundada.
Como acusadose testemunhasfalam através dos «manipuladorestécnicos»
(40)na expressãocunhada por Mariza Correa, deve-se,de início, pensar essa
(40) Manipuladorestécnicossão os escrivães,oficiais de justiça e todo o tipo de funcionário que
faz o processo «andar». Ver sobre isso, Correa (1983)

e 85
yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasa!

conversa a partir da própria narrativa processual. os escrivães usam uma téc. campo das correlações de força; podem existir discursos diferentese
nica discursiva na qual se eximem do que é dito pelo depoente, que fala obli. mesmocontraditórios dentro de uma mesmaestratégia;podem, ao
quamente e por meio do interrogador. «O acusado disse que estava dando contrário, circular sem mudar de forma entre estratégiasopostas
consulta...)>.Essaforma de inquirir faz com que o manipuladornão se com- (idem pp.96-97)
prometa com o que é dito. Por isso mesmo, ele pode afirmar, sem susto, tudo Os especialistas algumas vezes tinham e têm estratégias opostas às de acu-
o que o depoente disser sados e testemunhas, mas usam categorias e discursos semelhantes. Os acusa-
A vontade de saber explica por que os depoimentos se dão dessa forma. dos entre si podem ter estratégiassemelhantese usar categorias e discursos di-
Quanto mais for dito, mais coisas ficarão conhecidas e é claro, controladas e ferentes.
disciplinadas A partir dessasaproximações e distanciamentos serão aqui discutidas as
Os depoimentosaqui são como confissões,instrumentose rituais para a versões'dosespecialistas,acusadose testemunhas, sempre tendo em mente que
produção da verdade, como diz Foucault (1985:78). Podem ser pensados como os processoscriminais são instrumentos importantes para a construção do sa-
confissõesporque implicam num discurso que só pode ser feito diante de um ber sobre os <Krimes»que supostamentese quer extirpar. Essesaber, ao mes-
parceiro que não é apenas interlocutor, mas a instância que requer a confissão, mo tempo construído a partir dos depoimentos e fragmentos do processo, aca-
que a impõe e aprecia, intervindo para julgar, punir ou perdoar. ba vindo a constituir a própria crença.
No caso analisado, diferentemente de confissões, os depoimentos são ri-
tuais produtores de uma verdade que só será completada com a narrativa con-
vincente dos peritos, que reorganizarão os fragmentos confessados num discur- 6. A versão dos especialistas-- juízes, promotores, de
so acusatória. Isso, é claro, só é possível porque a legados e advogados
instância da dominação não está do lado do que fala (pois é ele o
pressionado)mas do lado de quem escutae cala; não do lado do
que sabe e responde, mas do que interroga e supostamente ignora A primeira pergunta que se deve responder é o que tem juízes, advoga-
(falem, p . 62>
dos, promotores e delegadosa ver com a caça aos feiticeiros? Estavam cons-
A palavra suposfamenfe está destacada porque, no caso, o interrogador cientesdessepapel de reguladoresdo combate aos feiticeiros? Não vieram a in-
na realidade não ignora o que é dito, mas deve fingir que ignora. Foucault diz tervir nessedomínio por mero acaso?
que
Os processosrecolhidos e analisadosse referem a uma miríade de práticas
essediscurso de verdade adquire efeito, não em quem o recebe, mas de cura e tipos de espiritismo, tanto nos termos das categorias acusatóriasem-
sim naquele de quem é extorquido (idem, p.62). pregadas por delegados, juízes,. promotores e advogados, quanto nos das cate-
Também diz Foucault sobre o sexo que, gorias empregadas por acusados e testemunhas para definir o ato que pratica-
vam na hora da prisão em flagrante. Até 1940havia três posiçõesquanto a es-
nossa sociedade articulou o difícil saber sobre o sexo, não na trans-
missão do segredo mas em torno da lenta ascensão da confidência sesdelitos por parte dos juízes, advogadose criminalistas, constituindo o que
(idem, p.62)
o direito chama «jurisprudência». Foram posições formadas do final do século
XIX até os primeiros anos do século XX. SÓno final da décadade 30 aparecem
No que diz respeito às crenças aqui tratadas, a sociedadearticulou o novas formulações
difícil sabersobre elas não na transmissãodo segredo,mas em torno dos in- Como se disse na introdução à Parte l deste trabalho, a República foi pro-
quéritos e depoimentos arrancados e convincentementenarrados pelos peritos. clamada por um grupo que tinha em mente laicizar o Estado e desvencilhar-se
O poder desseritual é ainda mais impositivo porque a partir da narrativa da Igreja .Católica. Mas, por outro lado, pretendia estender seus tentáculos
acusatória a crença se reconstitui. As instâncias do poder sempre se eximem do com o fim de controlar profissõese crençasfora do âmbito da Igreja Católica.
que é dito, mas acabam incorporando a crença. Se há feiticeiros é porque se Os artigos 156, 157 e 158 do Código Penal estão referidos a essecontexto, em
acredita nesse tipo de feitiçaria tese. Tratava-se de regular a. medicina e o exercício das profissões. Mas inter-
Concordando com Foucault, vir nessecampo significava vencer ideológica e institucionalmente as.institui-
não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um çõesque barravam o caminho. Para tanto, conheceros outros «saberesde cura»,
outro contraposta. Os discursossão elementosou blocos táticos no c:omodiziam. No processode construir um sabersobre eles, essesgrupos aca'
e 87
yvonne A4aggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

baram presos no emaranhado das acusaçõesaos produtores de malefícios, en- A terceira posição considerava os três artigos inconstitucionais,contra a
curralados dentro do sistema fechado da crença na feitiçaria liberdade profissional e religiosa promulgada pela Constituição. Exigir diploma
Ao discutirem liberdade religiosa e profissional, os juízes estavam se rede. científico e perseguir os modos de se exercer espiritismo significava propor
rindo também a questões internas da classe médica e à relação da elite com a uma religião oficial ou uma ciência do Estado. Os artigos deviam ser abolidos
Igreja Católica. Assim, posicionaram-sediferentementecom relação à crença e. nos casos de necessidadede punir religiosos que explorassem incautos, que
na magia. Aos poucos, o consenso vai sendo estabelecido. Uma das posições seutilizasse o artigo referente ao crime de estelionato, aplicado a qualquer tipo
sai vitoriosa e marca, de forma profunda, o envolvimento do Estado nesse de falsificação de identidade e exploração com fins lucrativos. Para concretizar
combate, que na verdade lá existia, sendo vivido por segmentos dominados o estelionato, a vítima tinha que reclamar e instaurar o processo. Segundoesse
desdea Colónia,(4i)fora da égidedo Estado. ponto de vista, a incoerência dos três artigos do Código Penal está em confun-
O combate aos feiticeiros existiu e continua existindo e sendo regulado em dir o crime contra a pessoacom o crime contra o bem público. O criminoso
outras instâncias: os rituais de terreiros, centros e templos das religiões me. sÓpodia causar dano à propriedade da pessoa iludida e forçada a pagar por
diúnicas. Como se disse no capítulo anterior, não se vai tratar dessasinstân- algo oferecido. Mesmo cobrando, os curandeiros não estariam agindo crimi-
nalmente se os pacientes acreditassem nesse tipo de cura. Viveiros de Castra,
cias rituais do combate neste trabalho. No entanto, prevalece aqui a hipótese
de que os juízes acabam se imiscuindo nas mesmasregras e princípios que or- famoso juiz maranhense, foi quem mais lutou por essa interpretação.
ganizam o combate aos feiticeiros nessasoutras instâncias rituais, quase como As três posiçõesvão sendo aplicadas por diversos juízes até 1940. Ora um
se tivessem sido convencidos pelos segmentosperseguidosda verdade de suas juiz condena, apoiado na primeira interpretação, ora outro juiz absolve,
crenças apoiado na terceira.
A primeira posiçãodefendidapelos juízesera a de que toda prática ou SÓem 1940 aparece a primeira grande mudança na interpretação dos arti-
arte de curar deveria ser consideradafora da lei e era prejudicial à saúdepú- gos 156, 157 e 158 do Código Penal. As discussõessobre essescrimes já se in-
blica, a não ser aquela «arte» obtida através da ciência, com diploma e regis- tensificam a partir do final da década de 30. O Código Penal de 1940 traz uma
tro legal. Essaera a posição da maioria dos discípulos de Nina Rodrigues. Pa- primeira modificação na interpretação dessesartigos. Sai vitoriosa a segunda
ra essaspessoas, o espiritismo como prática de cura e magia em si prejudicava posiçãorelatada acima. Os juízes terão de julgar a própria crençae ver quem
a saúdepública e devia ser extirpado da sociedade.Não sendoreligião, fazia utiliza falsos prfnclpios.
parte dos itens que denegriam nossa <(civilização».Essaé a posição mais pró- Tais posiçõesse relacionamcom a vertenteclássica,liberal, de um lado e
xima da posição dos ingleses na Africa. O grupo pretendia extirpar a crença com a vertentepositivista no Direito Penal,de outro (Fragoso,1987).A ver-
como pretendiam os ingleses.Acreditavam que os policiais acusadores,como
tente liberal postula que o livre arbítrio deve ser entendido de forma ampla em
os acusados, tinham a mesma crença. Segundo Nana Rodrigues, o curandeiro
termos de aplicação da pena. Já a vertente positiva postula um constrangimen-
como o policial que o perseguia,eram ignorantese boçais. Em Zimbábue os
to do [ivre arbítrio na responsabi]idadepena], ao dizer que é necessáriolançar
inglesespensavam assim sobre os médiuns shona. Não acreditavam naquele ti-
po de feitiçaria. mão de mecanismos
mais severospara se definir a responsabilidade
e a
e
pena.(42)
A segundaposição pretendia limitar e controlar a prática médica e as prá- C)sdebates na Constituinte de 1946 e a redação do Código Penal de 1940,
ticas religiosas, fazendo com que o Estado intervisse no modo como se empre-
gavam certos princípios religiosos. Para estes, nem toda magia e nem todo es- promulgadoem 1942, acabampor definir uma posição conciliatória entre a li-
beral e a positivista mais radical. Foi assim que se modificou o artigo 157,
piritismo eram prejudiciais. Algumas pessoaspraticavam religiõesverdadeiras
transformado em artigo 282, que reza sobre charlatanismo e propõe o combate
que deviam ser protegidas. Outras, no entanto, agiam para iludir os incautos e
àquelesque usam mal os preceitos da crença. O que se pune, então, é um cer-
deviam ser perseguidas por serem nocivas à saúde mental do povo. A esses
dois tipos de prática deu-se os nomes de verdadeiro espiritismo (a ser protegi- to modo de exercero espiritismo, consideradoprodutor de malefícios.Não se
do) e falso espiritismo (a ser perseguido). proíbe ou pune todo espírita, curandeiro ou praticante da magia.
A vitória da conciliaçãona Constituinte e no Código Penalde 1940intro-
(41) .Não se quer dizer que não houvesse perseguição e combate à magia na Colónia. Há farta lite- duziu o aparato jurídico no combate à magia maléfica, obedecendoà idéia in-
ratura sobre o tema e sabe-seque desde a Colónia se reprimia feiticeiros e todo ritual consi- terna da crença de que havia uma religião verdadeira e uma falsa. Não há, até
derado mágico. Embora sempre com característicassemelhantesao da República, o combate
não era regulado dessaforma. Ver sobre a repressãona Colónia e no Império, Souza (1986)e
Reis (1987) 142)Ver sobre essadiscussãono Código de 1940, Fry, Peter e Carraro, Sergio; 1985

89
yvonne Maggie N'ledado feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasi}

hoje, quem se posicione contra a idéia de que existem alguns que aplicam mal queixado de sofrerem de enfermidades e a elas o declarante tem res-
os princípios do espiritismo. pondido que não é médico, e que por isso recusa-sea tomar conhe-
Com o fim de desvendar o combate aos feiticeiros na versão dos juízes. cimento do que Ihe dizem sofrer; tampouco não lhes ensina, nem
conheceras respostasdos acusadosa tais acusaçõese, finalmente, o que dizem lhes dá remédio algum, que é verdade que ele declarante reza pela
as testemunhas, a seguir aparecem alguns processos nos quais se trava esse de- frente e pelas costas as pessoasque Ihe pedem, mas isto não é para
bate cura-las de enfermidades é pura e simplesmente pregar a doutrina
espírita e nunca curar enfermidade. Que se algumas pessoasa quem
ele tem rezado têm se restabelecido de moléstias ele declarante não
7 O Ferraz do Andaraí(43) é responsável, porquanto quando reza não é sua intenção que esse
restabelecimentotenha lugar. Que finalmente as testemunhasque
depuseram disseram que se restabeleceram de suas moléstias devido
Em janeiro de 1897, Joaquim JoséFerraz, denunciado como feiticeiro, fica a medicamentos
ou receitasque o declarantelhestenhafornecidoe
impossibilidato de dar reuniões. Joaquim José Ferraz requer ao delegado que isto,,é falso.
marquedia e hora para que possadar prova de sua inocênciae continuar com
suas sessões. O acusado depõe, dizendo que em sua residência c/á sessões
espJ'fitasa pessoassuas conhecidas e a outras que o procuram e têm fé nessa As cinco testemunhasdo inquérito policial são clientese algumasdelasvi
crença;que não é exato que em sua residênciatrate de qualquerpessoa,de zinhas de Ferraz.
qualquer moléstia com feitiçaria, conforme a denúncia recebida pela delegada.
Clementina Mandanese,30 anos, viúva, natural da Grécia, costureira, al
O delegado julga a justificação dizendo que o acusadopoderá continuar a
dar sessão. fabeti2ada, diz:
Em finais de 1897, o mesmo Ferraz é denunciadoe, dessavez, pelo Tendo conhecidopor um seu vizinho da existênciade um
diretor-geral da Saúde Pública, que manda averiguar se Joaquim José Ferraz espírita no Andaraí Grande, no lugar denominadoAnil, há cercade
exercei/egalmentea medicinano lugar denominadoAnil, à Rua da Serra,no um mês que o visita com o intuito de procurar melhorar a sua vida
Andaraí Grande. que se acha atrasada, que o dito espiritista (...) nas sessõespúblicas
O chefe do Distrito Geral de Higiene, Dr. Paulino Werneck, informa aa que faz, reza orações pela frente e pelas suas costas, que isso faz
diretor de Higiene e Assistência Pública: Ferraz com todas as pessoasque o procuram, quer sofram física
cabe-meinformar-vos que averigüei o fato de existir na estrada quer moralmente. Que .àpprimeiras porém dá Ferraz, além das ora-
da Serra, no Andaraí Grande, no lugar denominadoAnil, um in- ções, medicamentos..Que ela iá viu o referido Ferraz indicar a pes'
divíduo de nome José Ferraz, que exerce ilegalmente a medicina. soamdoentes água de cal, sabugueiro, quina e outros medicamentos.
Causa admiração o..) assistir à procissão de indivíduos que vão Que existe na casa de Ferraz um pequeno oratório com diversas
procurar recursos médicos junto do referido Ferraz, principalmente imagensde santos e as pessoasque vão consulta-lo costumam dei-
às de segunda a sexta-feiras em que os bondes seguem repletos de xar sobreesseoratório uma pequenaespórtulaque todavia o dito
doentes na maior parte do sexo feminino e bem assim de criança.. Ferraz não pede e só é dada por quem quer (...) Ignora se Ferraz te-
nha outra ocupaçãoalém dessade dar sessões
espíritas
Ferraz, de 47 anos, solteiro, brasileiro, de cor parda, carpinteiro, residente
na Rua da Serra, Andaraí, lugar denominado Anil, analfabeto, responde ao Já Alvaro Ribeiro Marfins, brasileiro de 17 anos, solteiro caldereiro de
interrogatório do delegadoda 15' CircunscriçãoUrbana, Dr. FranciscoLázaro forno, morando na Estaçãodo Encantado,alfabetizado, diz:
Tourinho, dizendo:
que não exerce absolutamente a medicina, que dá sessõesespíri- que veio ao Andaraí a fim de visita-lo porque deve-lheum favor
tas em sua casa, a que comparecem, em dias úteis, muitas pessoas de haver curado um seu irmão de dois anos que sofria de tossee
que vão assistir, que por muitas vezesajgumas destas,seIhe têm tendo Ferraz indicado um chá este restabeleceu-se em pouco tem-
PO

(43) Processon' 571, ano 1898. art. 157 do Código Penal, caixa 2.002, Arquivo Nacional, Rio de Diz, como a primeira testemunha, que não pagou pela consulta e só deu
Janeiro uma espórtula

90 e
}''vo.nne ]\4aggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

Julio CelestinoMagarão, de 42 anos, casado,brasileiro, empregadopúbli- profissão, o limite de sua interpretação. Justifica sua posição dizendo que o
co aposentado, morador da Rua da Serra, 1, alfabetizado, diz: CongressoConstituinte rejeitou a emendaque os sectáriosde Comte propuse-
que Ferraz dá sessõesespíritas e que as pessoassão rezadas por ram naquela assembléia, a qual dispensava o exame e o diploma oficial para o
Ferraz não sabendo o declarante o fim para que são rezadas e que exercício profissional. Assim, segundo o delegado, se essa emenda não foi vi-
ignora se Ferraz dá remédio ou recebedinheiro. toriosa era porque devia ser vitoriosa a emenda que visava restringir a liberda-
de profissional (que aliás também não foi aprovada).
JoaquimJoséde Araújo, 26 anos, solteiro, brasileiro, artista, morador da
Rua da Serra, alfabetizado, diz: O delegado acha que o caso de Ferraz merece repressão imediata:
que há cerca de cinco mesesmora vizinho de Ferraze sabeque O caso em questão é daqueles que merecem repressão imediata,
ele dá sessõesespíritas onde comparecem algumas pessoas. Que Fer- não que dele ressalteo animus nocendí, que o analfabetismo, a con-
raz cura moléstias por meio de rezas e sabendo disto o declarante dição social do delinqüente poderiam iludir, mas porque a ação
achando-seuma vez doente de febre intermitenteapresentou-se
a subjetiva ou hipnótica, a magia e a influência espiritual que essein-
Ferraz e este sem Ihe dar nem receitar medicamentos o curou por divíduo exerce, especialmentesobre mulheres e crianças, leva à per-
meio de rezas. versão dos costumesque o fanatismo autoriza e ao contraimento de
males físicos e morais tantas vezes verificados em nossa história cri-
Repetetambém que nada pagou a Ferraz. minal. Compreendese que a arte de curar não seja um privilégio e
EduardoJoséda Silveira, 35 anos, brasileiro, solteiro, trabalhador, mora- os progressoscientíficos o autorizam a crer e afirmar, mas não se
dor na Rua da Serra, diz: compreendeque, com infração flagranteda lei, exerçaa medicina
que Ferraz dá sessões espíritas em sua casa (...) cura moléstias um inconscientee inepto curandeiro que, nem sequertem a noção
por meio de rezas somente (...) que o tem curado rezando-lhe pela científica do organismo humano, nem pode avaliar o caso patológi-
frente e pelas costas. co sujeito à sua apreciação. As benzeduraspela frente e pelas costas
Eduardo Joaquim Teixeira, 46 anos, solteiro, brasileiro, de cor parda,(44) a que se referemas testemunhase o próprio acusadonão dão a
morador da Rua Senador Euzébio, analfabeto, diz: ação exclusiva de que ele lança mão; se bem que evidente fica que
Ferraz ministra drogas e da terapêutica podem produzir males cujos
que sentindo-se mal de moléstia de fígado, queixou-se a diversos resultadosserãotalvez fatais. Estandopois provado o inquérito que
médicos que o medicaram sem que os remédios Ihe fizessem melho- Joaquim JoséFerraz exerceilegalmente a medicina e pratica o espiri-
rar de saúde, que com isso gastou dinheiro sem obter resultados. tismo, violando as leis do país e incidindo na sançãopenal dos arti-
Mas desejando restabelecer-se queixou-se a diversas pessoas e uma gos 156, 157 e 158 (...)
delas indicou um indivíduo de nome Ferraz (...) cheio de esperanças
tomou o conselhoe foi à casade Ferraze com duasconsultasme- Esse despacho -- isto é, o encaminhamento do delegado, não o despacho,
lhorou seu mal-estar (...) Ferraz receitou-lhe uns medicamentos que feitiço, oferenda -- é seguido da denúncia do promotor, que também concorda
ele declarante foi buscar na farmácia. que o inquérito prova que Joaquim JoséFerraz
pratica o espiritismo, inculcando cura de moléstias curáveis e incu
A partir dessesdepoimentos, que falam em rezar pe/a frente e pe/as costas ráveis, fascinando e subjugando assim a credulidade pública
e elogiam os poderes de cura de Ferraz, o delegado utiliza as testemunhasque
pretendiam afirmar o valor de Ferraz para, em seu relatório, indicar os arti- Denuncia Ferraz como incurso no artigo 157 do Código Penal
gos 156, 157 e 158 como sendo aquelesem que Ferrazincide na sanção penal. O juiz começa a ouvir as testemunhas.
O delegado inicia seu relatório afirmando que o Decreto n' 11.847. de ll Até aqui falaram o delegado,as testemunhasdo inquérito policial -- to-
de outubro de 1890, que promulgou o Código Penal, não foi em absoluto re- das elas consulentes de Ferraz -- o promotor e as testemunhas indicadas por
vogado pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. [)iz que a Constituição, ele -- médicos e funcionários da Saúde Pública. O próprio Ferraz depõe, não
em seuartigo 72, consagraa liberdadede profissão moral, intelectual e indus- só como acusado desseprocesso, mas como acusado em processoanterior, pe
trial e que essaliberdade garantida ao exercícioda profissão tem, na própria dando ao delegado que permita que continue dando sessões espíritas. Nessa
ocasião,é outro delegadoquefala e concedea licença.
(44) A cor nem sempre aparece arrolada como característica da testemunha ou do acusado O advogado, defendendoFerraz, começa sua argumentaçãocitando o
Supõe-se,nessescasos, que se trata de indivíduo de cor branca. acórdãodo tribunal de 12 de novembrode 1897,no qual o juiz Dr. Viveiros
92 e e 93
yvonne À/aggíe Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

de Castra -- que também é o juiz deste processo -- coloca a posição que virá em que se dirigia para casa, quando chegou à polícia, estava tão perturbada
a defender em todos os processos do período. Essseacórdão será citado por que não sabia o que dizia. A outra testemunha só diz blue Ferraz é adepto do
todos os juízes a partir daquela época: espiritismo e sectário de Allan Kardec.; Uma das testemunhas, empregada na
I' A simples prática do espiritismo não constitui um crime (...) Diretoria Geral da SaúdePública, ignora completamente o fato referido na de-
é um direito garantido na ConstituiçãoPolítica. núncia, tendo ouvido dizer que Ferraz gosta de rezar
O funcionário da [)iretoria Geral da Saúde Pública limita-se a informar
2' Somentepode haver crime se a prática do espiritismo foi o
meio fraudulento, o pretextode que o delinquentese serviu para sobreos ofícios enviadospor essadiretoria e diz que não sabedo caso de Fer-
raz
iludir a boa-fé de outrem e obter para si o lucro e proveito
3' Neste caso trata-se de um crime de. estelionato, mas não O Dr. Paulino Werneck, signatário das informações que determinaram o
basta alegação vaga -- é necessárioque a denúncia especifique os inquérito policial, segundo o advogado, se desdiz. No inquérito, diz que averi-
fatos, declare quais as provas ilididas e em que consistiu o prejuízo. guou a denúncia de que um individuo de nome Ferraz exercia ilegalmente a
Discorrendo sobre essa sentença, diz o advogado que a partir dessa posi- medicina. No depoimento, em juízo, declara que não conhecia o denunciado e
ção firmada pelo tribunal, seria absurdo pensar que se estaria denunciando pouco depois afirma que entrou na casa onde o encontrou exercendoilegal-
mente a medicina, que tomavam remédios, em geral vegetais, não recordando
Ferraz pela simples prática de um direito. Segundo esseadvogado
porém que vegetais eram esses.
deve-se entender que a denúncia se funda no modo por que o
denunciado pratica o espiritismo: O advogado aponta ainda para um erro no processo, pois o médico que
inicia o processo como denunciante, não poderia ser, no mesmo inquérito, tes-
Pergunta o defensor de Ferraz: temunha.
Mas onde a prova de que, conforme os termos da respeitável
Diz o defensor de Ferraz=
sentença (o acórdão de 12 de novembro de 1897), tenha ele se servi-
do de ardil, de manobra fraudulenta para iludir a boa-féde alguém Mesmo se se considerar esse depoimento de uma testemunha
e por estemeio proporcionar-selucro ou proveito? que não poderia ser levado em conta, isoladamente, não dá provas
Continua o advogado apontando os defeitos do inquérito.(45) a denúncia, que não cogita de exercício ilegal da medicina e sim da
prática do espiritismo.
O advogadoafirma que apesardos setemesesque levou para ser con
cluído, o inquérito não conseguiumostrar a gravidadedo crime. Aponta algu O advogado junta, ainda, alguns documentosque, segundoele, provam
mas inconsistênciasnas denúncias -- o inquérito foi aberto contra Ferraz pelo que
crime previsto no artigo 156 do Código Penal(prática ilegal da medicina) e, a Ferraz, na qualidade de delegado do Centro União Espírita, so-
partir das informações prestadaspelo médico da higiene e pela Diretoria Geral ciedadede existêncialegal, celebravaem sua casasessõesespíritas,
da Saúde Pública, o delegadoapurou contra Ferraz, além do 156, mais dois muito freqilentadas, é certo, nas quais se circunscrevia ao seu papel
crimes, os previstos nos artigos 157 e 158 do Código (prática da magia e do de médium-curadorcujo desempenho é a simplesevocaçãodos su-
espiritismo para despertar sentimentos de ódio e amor e inculcar cura de mo- periores espíritos para cura dos enfermos por graça de Deus. ... Se
léstia e curandeirismo respectivamente). A denúncia pronuncia o réu em rela- aquelesque não conhecemo espiritismo confundemo trabalho de
ção ao artigo 157 médium-curador, que apenas evoca espíritos sem intenção de curar,
O advogado cita depois as testemunhas.Três delas desaparecem.Além com o trabalho dos espíritos guias por ele evocados,não tem o de
disso, a promotoria apresentacomo testemunhastrês funcionários públicos, nunciado culpa disso, nem pode ser por isso responsável.
dois deles da Diretoria de Higiene e Assistência Pública. Estranha que uma das
testemunhastenha refeito seu depoimento no inquérito. Para ele, o depoimen- E finaliza o advogado:
to em juízo faz suspeitar do decoro da polícia: a testemunha, presa no bonde Religião óu ciência, ou uma e outra. ao mesmo tempo, o que ê
fato é que a prática do espiritismo, em qualquer dos pontos de vis
ta, se achagarantidapela Constituição Federal.
(45) Não só os inquéritos, mas também os processos, como já foi dito, são geralmente confusos.
Muitos ficam inacabadose a maior parte leva demasiadotempo para serconcluída, o que in- Ferraz defende-seno inquérito policial afirmando que é espírita e que sua
valida a sentença, prescrevendo a pena. missão não é curar, mas propalar a mensagemdo espiritismo.

94 e e 95
yvonne ]Waggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

As testemunhascontam sua história e dizem que foram buscar a cura de A partir desse argumento, o juiz absolve Ferraz, porque a denúncia era
doenças, mas também afirmam que Ferraz é espírita. Apenas buscavam a cura vaga e porque o inquérito não revelou que o denunciadotenha praticado al-
de suas moléstias ou buscavam mais? Estariam querendo uma explicação para gum estelionato, sobretudo porque não menciona o nome das vítimas que te-
o seu infortúnio? Pelas minúcias com que relatam suas dores, os depoimentos riam sido iludidas
apontam nessadireção.
Viveiros de Castra consideraque se o crime for o de fraude não deveria
Delegados e promotores, apesar de restritos pelos decretos e artigos pe-
ser arrolado nos crimescontra a SaúdePública e sim contra a propriedadedo
nais, deixam evidente sua posição particular. Para o primeiro delegado,por iludido. Viveiros de Castro pensaa fraude, ou o espiritismo, como meio frau-
exemplo, Ferraz podia continuar dando sessões,já o segundo acha que o crime dulento, como crime de estelionato, mas qual espírita negaria o fato de que
devia ter repressãoimediata. existem pessoasque fazem má utilização do espiritismo? Essaquestão vai se
O advogado, em dado momento, diz que além de denunciar sem provas, tornando cada vez mais clara à medida que se lê os processos.
o promotor estaria incriminando {<o modo pelo qual o espiritismo é professa-
do». Chitao acórdão de Viveiros de Castro, que fala no espiritismo como reli- Ferraz responde ao processo em liberdade, mas em 1904 é novamente pre-
gião e no espiritismo como meio fraude/unto para se obter lucro. A distinção é so e processado, defendido por Evaristo de Moraes. Em Memórias de um rá-
crucial para o entendimento da própria lei como parte das premissasculturais bu/a crimina/isto (Moraes, 1922), há um depoimento que não só revela a posi-
que informam acusados e acusadores de feitiçaria, bruxaria, magia negra, espi- ção de Evaristo de Moraes, como nos dá uma impressãoforte sobre o acusa-
ritismo etc. do. Evaristo confessaque acredita em que ao lado de muitos exp/oradorese
Viveiros de Castra, no acórdão citado, lança as basesde seupensamento. mistificadores, há criaturas sinceras e caridosasque
Na sentençado processo de Ferraz em 1898, porém, explicita melhor seu argu-
mento
e se dedicam à missão de curar seussemelhantes,acreditando fazê-lo
com o auxílio de espíritos desencarnados,
provectosem medicina
Na sentença,Viveiros reforça a idéia de que a prática do espiritismo é um (OP. cít., P. 130).
direito garantido pela Constituição, não podendo ninguém ser processadoe
punido por causade suas crençasreligiosas.Diz ainda, que não cometecrime Continua dizendo que acredita em que, apesardos progressosda ciência,
o espírita que invoca espíritos superiores para cura de enfermos, como o sacer- aindase conhecemuito pouco, e que a fé, a confiança,muitasvezesé o mais
dote católico invoca também a proteção da Virgem Mãe ou dos santos. Consi-
dera a tendência ao auxílio sobrenatural própria da natureza humana <aápidoveículo para conduzir à mesma cura»
que desenganadada ciência e torturada pelo sofrimento apega-sea Descreve o acusado com um carinho surpreendente, dizendo
esta suprema esperança de uma intervenção misteriosa e superior.
Era Ferraz um mulato escuro, de estatura elevada, em cujo ros
Mas completa o seu argumento dizendo: to e em cujas mãos se notavam sinais evidentes de morféia. que es
O espiritismo, como qualqueroutra religião, pode servir de tragavam a primeira impressão
meio fraudulento para alguém locupletar-seà custa de terceiro, ilu-
dindo sua credulidade ou abusando de sua confiança. A pouco e pouco, expandia-se aquele semblante iluminado por
E continua: luz interior, luz de bondade e caridade. Ignorante, quaseanalfabe-
to, mostrava todavia, muita experiênciade vida, compreensãolúci-
mas então é necessárioque o Ministério Público demonstreexistir da dos fatos, raciocínio e memória excelentes.Falavacom lentidão,
no ato incriminado a reuniãodos três elementosque constituemo sem graves incorreçoes.
estelionato -- primeiro, a intenção fraudulenta do agente de adqui- Mas, o que maravilhava era a crença na sua missão providen-
rir para si lucro, um proveito em prejuízo da vítima, locupletando- cial de receber os conselhos dos espíritos superiores. Sentia-se que
se da factura alheia na técnica de nosso Código Penal; segundo, que ele convencia os simples e os crédulos, porque estava, por sua vez,
o agente tenha usado de falso nome, falsa qualidade, falsos títulos, sinceramente convencido;(. . .)
de qualquer manobra fraudulenta, de qualquer ardil para captar e
iludir a confiançada vítima; terceiro,o resultadoda operação,o (...) No vasto terreno da casa em que morava, à Rua da Serra,
lucro ilícito obtido como prejuízoda vítima. 'nos dias de sessão', encontravam se esperando a hora, crentes e

9Ó e 97
yvonne A4aggíe
Mledo do feitiço; relações entre magia e poder no Brasil
\
consulentes de todas as classes, principalmente do sexo feminino. 8 O Juízo dos Feitos da Saúde Pública(4Ó)
desdea cocofre e a mulher protegida do Cacetee de Botafogo até a Em 1904,(47)a Procuradoria dos Feitos da Saúde Pública acusa Ferraz «pe
rameira da Rua do Núncio, desdea senhora rica, de boa sociedade.
lo fato delituoso de exercer ilegalmente a medicina e praticar o espiritismo»:
até a operária de fábrica.
Segue-seà denúncia uma peça importante nessesprocessos,os autos de
Não se incumbia -- eu disto me certifiquei -- de empreita- apreensão:
das indecorosas, de serviços de feitiçaria, nem do que consistisse em por ordem do Dr. delegadode SaúdePública foram apreendidos
fazer mal, fosse a quem fosse. Sermonava as que Ihe iam pedir cer- os seguintesobjetos que foram remetidos à Diretoria-Geral de Saú-
tos trabalhos, confundindo-o com os mandingueiros, e punha-as de de Pública, como outros documentoscomprobatórios das práticas
prevenção com as forças dos especuladoresgananciosos. exercidaspelo dito Sr. J. J. Ferraz:um livro contendoas precesde
O evangelho segundo o espiristismo e o Código das leis das almas
Nunca se fez anunciar, nem solicitou reclames etc... uma brochura velha, bastantedanificada, contendopedidos
de graçasde todo gêneroe dirigidos ao Sr. Ferraz.
Por estas e outras qualidades -- pouco comuns em curadores
espíritasde baixa condição social viu-se o Ferrazdo Andaraí (co- Na defesaprévia ao juiz dos Feitos da SaúdePública, o advogado afirma
mo era conhecido)cercadode sólidas simpatias,quando a polícia o que Ferraz nega, em absoluto, exercer a medicina ilegalmente e diz não ser
colheu em sessãoe o embrulhou em um auto de flagrante (pp. 131- nem jamais ter sido curandeiro. Afirma ainda
n2)
3 quanto à prática do espiritismo,não a exerceem condiçõesque
autorizema aplicaçãoda lei pedal na forma do citado artigo 157.
Interrompendo um instante a saga de Ferraz, é preciso lembrar que os dis- Cidadão brasileiro, no uso e gozo de seusdireitos civis e políticos,
cursos de juízes e acusados, advogados e promotores, testemunhase médicos acredita poder, livremente, francamente manifestar sua crença reli-
acusadoresfazem parte de estratégiasdistintas, masse valem de categoriasse- giosa e sua convicção moral...
melhantes. Juízes, promotores e médicos, e até advogados, estão referidos a Diz Evaristo de Moraes que Ferraz é adepto do espiritismo, mas não in-
um debate paralelo, diferente desseque se trava entre eles e os acusadose tes- culca curas de qualquer moléstia, não pretende fascinar a credulidade pública e
temunhas. Juízese promotores, assim como médicos e advogados, estão lutan-
do pela hegemoniano campo jurídico. Advogados, juízes e médicosde um la- nãa põe em perigo a saúde de seussemelhantes.Mantém, pois, sua
do e acusadose testemunhasde outro se interessamde forma diferentepela liberdade de consciência à altura que a Constituição Federal permi-
questãoda liberdade profissional. Os primeiros devem construir uma estraté- te
gia para vencer ideológica e institucionalmente os opositores, que podem ser Continuaafirmandoque Ferraznão foi surpreendidoem flagrantede
seuspares, porque não há unanimidade entre eles. Já acusadose testemunhas qualquer crime -- conforme reza a denúncia. Estava entre seus irmãos em
se debatemem outro campo de forças. Ser acusadoe preso pela polícia pode crença, dissertando acerca de um ponto moral espírita.
abalar seu poder nesse campo. O advogado, falando por Ferraz, sublinha a unanimidade das versõesdas
Os discursos, portanto, se entrelaçam, servindo-se das mesmascategorias. testemunhase diz que elas não são favoráveis à acusação.Não ficou provado,
Todos falam em rezar pela frente e pelas costase fazer fraga/bos para o maJ, a segundoo defensor, que Ferraz tivesse incorrido nos crimes previstos nos arti-
partir de posições estratégicas diferentes (para uns, o acusado é falso, porque gos 156 e 157; a acusaçãonão menciona qual o ramo da medicina que Ferraz
trabalhapara o mal; para outros, é verdadeiro, porqueíaz caridade). estaria praticando.
(46) Processos/n', ano 1904, caixa 1.817, ares.156 e 157, Juízo dos Feitosda SaúdePública, Ar-
O fato de o processose basearem acusaçõesleva a uma situaçãona qual quivo Nacional, Rio de Janeiro
o sistema de crença é circular e fechado. No que diz respeito às acusações,os
(47) No ano de 1904 cria-se o Juízo dos Feitos da Saú(b Pública para julgar os casos enquadrados
discursos de quem acusa e de quem é acusado convergem: ninguém duvida de dentro dos crimescontra a SaúdePública. O capítulo dos crimescontra a SaúdePública foi
que possa existir falsos médicos, espíritas e curadores. A discordância se insta- introduzido pela primeira vez no Código de 1890./Foi, no entanto, em 1904,com o Decreto n'
la na qualificação de um indivíduo em particular como falso. 1.151 que reorganizou os Serviços de Higiene (4,/'União e possibilitou o {ebotaabaixo» de Pe-
reira Passos,que se criou um juízo especiallograessescasos. O juízo só foi extinto alguns
A seguir, o desfecho da saga de Ferraz, e mais alguns casosque serviram anos depois e os processosjulgados em vares comuns. Ver essacronologia na Introdução e
para firmar a jurisprudência dos juízes. Parte l deste trabalho

99
98 e
rvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasa!

Segundo a interpretação de Viveiros de Castro e Evaristo de Moraes, para do espiritismo. Os delegadose o promotor do Juízo dos Feitosde SaúdePúbli-
que houvesseinfração do artigo 156 era necessárioestar provado qual dos ra- ca postulam que Ferraz é culpado e deve ser condenado.
mos da medicina (homeopatia, dosimetria ou hipnotismo) estaria sendo prati- Evaristo de Mordes consegueinocentá-lo porque prova que Ferraz é um
cado
a
espírita que não aceita serviços de feitiçaria, não é mandíngueiro, é honesto e
Quanto ao artigo 157. diz o advogadocitando Viveiros de Castro, que a não estátirando lucro em proveito próprio.
simplesprática do espiritismo não constitui crime, e sim exercíciode um direi- Outros casosque se passaa discutir vão mostrar como se confrontam li-
to garantido pela Constituição. berais e positivistas, que acabam construindo um instrumento eficaz de com-
Arroja outras inconsistênciasda acusaçãodizendoque o auto de infração bate aos feiticeiros.
não indica como o acusadodelinqüia, ou seja, a maneirado crime. Diante da O caso do velho JuvêncioSerafim,(48)
aqui intitulado «Curandeirodo
omissão do auto, a verdade dos fatos só está na declaraçãodas testemunhas. Morro de Santo Antõnio>}, denunciado por exercer em sua residência o crimi-
Além disso, o advogado lembra que o acusadojá foi absolvido da mesma noso ofício de curandeiro, revela Q aprofundamento dessasposições.
acusaçãoem 1898 e anexa um pedido de Àabeascorpus preventivo requerido O advogado, defendendoJuvêncio, diz:
por Ferraz em 1900, quando se renovou a perseguição,e que Ihe foi concedi- sempre as melhores testemunhas são agentes de Segurança Públi-
do
ca, militares ou civis que se prestam ao ofício de elevar alto a ativi-
«Que vacilação poderia ter um tal homem...)} diz Evaristo, e continua: dade do delegadode polícia que preside a ocorrência...
«... A prova de que o acusado estava convencido da legitimidade de seus aros Arroja os erros do processo, dizendo que
se encontra na circunstância de haver posto na sua sala, em um quadro, a cer-
tidão da sentença». os testemunhossão nulos, porque (...) limitam-se a responder falan-
do a linguaguem da sua consciência.
Assim, para Evaristo, mesmo que se quisessepunir a simples prática do
espiritismo, o que, segundo ele, seria uma monstruosidade, era visível que Fer- Algumas testemunhas<(ouviram dizep} e nenhuma delas relata o {çfatode-
raz não pensava estar agindo erradamente. lituoso )}.

Considerar monstruosidadea punição da simples prática do espiritismo E continua


não é posiçãounânime. Baseadonela, o juiz EliezerTavaresabsolveFerraz, O processoé um amontoado de inverdades,uma coaçãofeita a
mas há juízes que não pensam assim, como se verá adiante. um homem maior de 50 anos que se julgava seguro, protegido pelas
Eliezer Tavares repete a sentença de Viveiros de Castro no processo ante- leis de seu país.
rior, dizendo que não ficou provado qual das característicasdo estelionato te- Viveiros de Castro, o juiz, não dá ouvidos ao advogado, consideraprova'
ria o réu infringido. Eliezer Tavares cita, ainda, o artigo 186 do Código Penal: do o fato. O acusadoexerceo ofício de curandeiro.Mas se pergunta:consti-
Não se pode impedir por qualquer modo a celebraçãode ceri- tui, porém, essefato um delito? Diz o juiz que não.
mónias,solenidades
e ritos de qualquerconfissãoreligiosaou A liberdade profissional, independentemente de qualquer título
perturba-la no exercício de seu culto. científico, de qualquer diploma científico, é um princípio que a ra-
C) próprio auto de infração diz que Ferraz foi preso quando presidia uma zão justifica e aprova, que felizmentefoi sancionadona Constitui-
sessãoespírita. O juiz absolve Ferraz em 31 de janeiro de 1905. ção Política da República(...) É certo que ninguémpode exercer
C) desfecho do processo descreve a posição dos que concordam com que uma profissão sem estar devidamente preparado, sem ter conheci-
sessõesespíritas podem ser praticadas livremente. Essaposição afirma que, pa- mentos técnicos que essa profissão exige. Mas também é certo que
ra se provar que o indivíduo pratica ilegalmente a medicina, é preciso se dizer essesconhecimentospodem ser adquiridos fora do ensino oficial,
fora das faculdades, academias e colégios (...) náo era médico Pas-
qual de seus ramos está exercitando. Esclareceque o espiritismo só é crime
teur
quando for meio fraudulento para se obter lucro ou proveito próprio e então
seria um crime de estelionato, com as três condiçõesnormais para se estabele- Viveiros de Castra cowibateas posiçõescontrárias à doutrina da plena li-
cer esse crime . berdade profissional ínc'tpendentemente de diploma acadêmico, chamando-as
Ao final do processo de Ferraz, a posição liberal acaba vencendo. Mas
revela-se, além dessa posição, aquela que considera crime o próprio exercício (48) Processo n' 596, ano ';8, caixa 1.997, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

]00 e ]OIZ
yvonne À aggie Medo

de «idólatrasda ciência oficial». Segundoseusopositores,a plena liberdade O promotor denuncia Lopes «pela prática do espiritismo, inculcando cura
profissional exporia a gravíssimo perigo a vida, a saúde e a fortuna dos enfer- de moléstias curáveis e incuráveis e recebendo por estas, remuneração das pes-
mos, ignorantes entregues a charlatães ou estelionatários soasque o procuravam. Além disso, por ter extorquido da senhorinhaOzório
a quantia de oitenta mil réis ameaçando-ade que se não Ihe desseessaquantia
A lei não foi tão imprudente, pois não deixou sem«o devido corretivo os
morreria em 13 diap> e o pronuncia como incurso nos artigos 157 e 362, $,1',
artifícios fraudulentos dos especulativos gananciososou as consequênciasde-
sastradasdos charlatães».Tudo isso, segundoViveiros, estáprevisto nos arti- do Código Penal(o artigo 362, $ 1', diz: extorquir de alguémvantagemilícita
pelo temor a grave dano à sua pessoaou bens).
gos 297, 309 e 338 do Código Penal (artigo 297 e artigo 306 -- imprudência ou
negligência na arte ou profissão, artigo 338 -- estelionato, artigo 70 -- a obri- Antonio Alves Lopespaga fiança, embora num despacho(sentença)do
gação de indenizar o dano será regulada segundoo Direito Civil; Código Pe- promotor, este Julgue que o acusado não deveria ter sido afiançado porque
nal, 1890).<(Otexto constitucionalé claro e expresso,o $ 24 do artigo 72 da respondia pelo artigo 362, que é inafiançável. Mesmo assim, Lopes respondeo
Constituição Política da República declara expressamente que é garantido o li- processo em liberdade.
vre exercícioda profissão. >> Viveiros de Castra dá a sentença.O juiz divide a sentençaem duas par'
O juiz maranhenseacha que os idólatras da ciência oficial lançam um ar- tes; a primeira quanto à prática do espiritismo, na qual repetea mesma sen-
gumento falso ao evocarem a história dos debatesconstituintes. Baseiam-seno tençado casodo {cFerraz do Andaraí». Diz que a prática do espiritismoé um
fato de que todas as emendas que estabeleciama plena liberdade profissional direito. Considera que curar alguém por meio de práticas espíritas não consti-
semdiploma científico foram rejeitadaspelo CongressoConstituinte. Viveiros tui o delito de estelionato,' senão quando há emprego de manobras
de Castro cita o fato de o Presidenteda República ter pedido ao Congresso,
em 1895, uma lei interpretativa do $ 24 do artigo 72, tendo o Congresso silen-
ciado a esserespeito, o que significaria, segundo o juiz, que a clareza do texto
constitucionalnão precisavade explicação.
ter um Lucroilícito, não diz o nomeda vítima, o prejuízosofrido, a qualidade
Viveiros de Castra diz ainda que é precisoexaminara Constituição como das manobras fraudulentas.
um todo. Se um de seus princípios fundamentais é a plena liberdade religiosa,
não tendo portanto o Estado uma religião oficial, como poderia essa mesma Considera improcedente a primeira argüição da denúncia e passa a anali-
Constituição impor uma ciência oficial, ou dizer que somente é habilitado sar o delito de extorsão. Segundo ele, ficou provado pelos depoimentos que o
quem possui um <lpergaminho)>? Ou seja, o texto constitucional, que diz que é acusado
preciso estar habilitado para exercer uma profissão,'não determina que essa aterrorizou com um pau-de-guiné,gritos, vociferaçõese cerimónias
habilitação tenha que ser a universitária. Poderá ser uma habilitação obtida extravagantes o espírito inculto da sexagenáriasenhorinha Ozório
através de outros meios. Termina dizendo que o acusado da Conceição,declarando que morreria ela dentro de treze dias se
exerce simplesmente o ofício de curandeiro, acreditando na eficiên- não tomasseum remédiopreparadopor ele e que custava70.mil
cia milagrosa de sua água benta das Sete Igrejas, como outros acre- réis... O fato articuladona denúnciae comprovadopelo inquérito
ditam na água de Lurdes, nas rezas milagrosas, no valor das pro- policial e pelo sumário de culpa reúne os elementosconstitutivos da
tentativa de extorsão.
messas.Não cometeu crime algum, exercesimplesmenteuma profis-
sao O promotor recorreu da sentença,dizendo que não só houve o delito do
Esse processo esclarece um ponto importante. A idéia da plena liberdade 157, como o que houve não foi tentativa de extorsão, mas o delito consuma-
religiosa, discutida no caso do «Ferraz do Andaraí)}, está ligada à idéia da ple- do
na liberdade profissional, segundoViveiros de Castro. Para ele, essesdois Viveiros de Castro respondeque, quanto à extorsão, não se consumouo
princípios andam juntos e é preciso que se entenda que a habilidade provada delito, porque o dinheiro não foi entregue a Lopes. Por isso pronunciou o acu-
para se exercer uma profissão não deve ser aquela obtida por diploma. sado no artigo 362, combinadocom o 13 (artigo 13 -- .{(haverátentativa de
No processode Antonio Alves Lopes,(49)lá citado, intitulado «Com o dia- crime sempre que, com intenção de cometê-lo, executar alguém aros exteriores
bo no corpo em Madureira ou feiticeira leva surra com vara-de-guiné»,apare- que, pela sua ação direta com o fato punido, constituam começo de execução,
ce o debatecom a posiçãopositivista no direito criminal mais radical. e esta não tiver lugar por circunstâncias independentesda vontade do crimino-
so )})
(49) Processon' 691, ano 1898,caixa 1.859, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
e ]03
iZ02 e
rvonne Maggfe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

Reafirma sua posição quanto ao artigo 157 porque ficou O Conselhodo Tribunal aceitao recursoe estabeleceum acórdãoque
provado que o denunciado, na casa onde residia, celebrava sessões pronunciaAntonio Alves Lopescomo incursono artigo 157do Có-
espíritas, mas não há prova alguma que o espiritismo servissede digo Penal porquanto está provado que o réu praticava o espiritis-
meio ao denunciado para prática do estelionato. mo para inculcar curas de moléstias.
O promotor recorreu desse despacho. Ameniza a posição do subprocurador, dizendo que é claro que o exercício
puro do espiritismo não é crime, mas completa:
Viveiros de Castro, respondendoao recursodo promotor, então argumen-
ta que a República secularizou o Estado. «O Estado não tem religião oficial O delito do artigo 157 compreende-se no número 'dos crimes
igreja privilegiada, não subvenciona cultos (...) Perante a lei não há crentes. contra a SaúdePública', e não é constituído pelo exercíciopuro do
há simplesmentecidadãos.)>Compara novamente a crença espírita à católica, a espiritismo, mas pelo mau ou abusivo emprego dos seuspreceitos,
água magneffzada com a água de Lurdes, a expulsão de espíritos perversos do emprego que não raro produz enfermidades mentais. A disposição
corpo com o católico expulsando o demónio por meio dos exorcismos. penal não viola a liberdade de consciência,é um meio de prevenir
casos de alteração das faculdades psíquicas.
Acrescenta ainda que não cometem crime os médiuns espíritas que rece- Antonio Alves Lopes é condenado, mas em despacho de 19-7-1899, o pro-
bem gratificações pelos trabalhos e cerimóniasque praticam; pois ninguém motor público pede a extinçãodo processopor prescriçãode pena, já que de-
lembrou-se de chamar estelionatário o sacerdotecatólico porque obtém dinhei- correumais de um ano do crime. O processoé arquivado.
ro para celebrar missa.
E conclui: Neste caso, ficaram claras as três posições em relação ao espiritismo. Ape-
sar de diferentes, todas concordam, porém, num ponto: o espiritismo tem po-
O espiritismo, como qualquer outra religião, pode ser o meio derespara provocar coisasmalévolas. Tanto Viveiros de Castra quanto os
empregado por algum estelionatário na prática do ato criminoso juízesdo tribunal concordamque pode haver um mau uso da doutrina. Todos
AÍ não se trataria de uma religião, mas de abuso de confiança. E reitera a acabamse colocandona posiçãode julgadoresdos preceitosda crença.
necessidadedos três elementosconstitutivos do crime de estelionato.Segundo Os espíritas de ontem e de hoje não discordariam dessassentenças.Pensar
Viveiros, a fórmula do artigo 157, {'fascinar e subjugar a credulidade pública» a partir dos preceitos puros e impuros da crença é pensar a partir da lógica da
ê genérica e ampla.
propria crença.
O processovai para o Tribunal de Apelaçãoe opina o subprocuradorGa. Quem são os espíritaspuros? Quem usa ma/ ou abusivamenteos
briel Luiz Ferreira. preceífos?É claro, dependede quem julga e de quem acusa.Além disso, para
Segundo ele, a matéria não é de solução difícil. que os juízes julguem preceitos e fraudes é preciso que conheçamessesprecei-
tos
Em vez de se indagarse a Constituição,consagrando
o
princípio de plena liberdade religiosa, implicitamente anula o artigo Nos processosdescritos até aqui, misturam-se três questões.De um lado,
157 do Código Penal, o que cumpre é ver se este pune a prática do no processo de Joaquim José Ferraz, <lO Ferraz do Andaram», a questão da prá-
espiritismo como um ato religioso, como um fato de consequências tica do espiritismo se mistura com a questão do curandeirismo e da prática ile-
funestas à Saúde Pública e ao bem social gal da medicina. Médicos, juristas e fiéis refletem sobre essastrês questões.
para Gabrie] Luiz Ferreíra, o Código é claro e considera esseaspecto fu- Juvêncio Serafim, o «Curandeiro do Morro de Santo Antânio),, produz o
nesto porque o capítulo onde se acha inserido é o dos crimes contra a Saúde debateem torno da liberdade profissional que, segundoalguns, estaria regida
Pública pelo mesmo princípio da liberdade religiosa.
É, por conseguinte, ociosa qualquer indagação sobre a realidade e nature- No processode Antonio Alves Lopes,(<(Como diabo no corpo em Madu-
za dos fatos espíritas, ou se o espiritismo é ou não uma religião. reira ou feiticeira leva uma surra com vara-de-guiné>>),
as três questõessemis-
turam, mas enfatiza-sea liberdade religiosa. Viveiros de Castra absolve, em
A questão seria: é ou não verdade que o espiritismo tem dado nome da liberdade profissional e religiosa, mas o acórdão da Câmara de Ape-
lugar a inúmeros casos de loucura, e que seu desenvolvimento é um lação condena, colocando uma segunda posição, que diz que o artigo 157 não
favor constante de degeneração mental? pune o mero exercíciodo espiritismo, mas o mau ou abusivo uso de seuspre-
]04 e ]05
yvonne Maggie Medo do feitiço: relacõesentre magiae poder no Brasil

celtas. No entanto, um dos procuradores da Câmara de Apelação considera o Ora, para saber se alguém está abusando de algum preceito é preciso saber
espiritismo em si nocivo. qual o preceito certo e não abusivo, e até mesmo concordar com ele. Acredita-
rão essesjuízes no preceito? Aparentemente sim, porque em suas posiçõesesta
O processo de Antonio Alves Lopes mostra a posição positivista mais ra-
implícito o conhecimento da maneira carreta de ser espírita.
dical na versãodo juiz Gabriel Luiz Ferreira. Ela classificaqualquerespiritismo
como produtor de loucura. Mas não é esse,ainda, o desfecho do processo. Os Para verificar como a questãoda liberdade profissional se associaà da li-
juízes que sentenciam no acórdão da Câmara de Apelação dizem que apenas berdade religiosa, se analisa adiante o famoso processo do Mão Santa (Domin-
os que usam mal ou abusivamente os preceitos produzem males à saúde men- gos Ruggiano). Nele Evaristo de Moraes, como advogado, criou .jurisprudên-
tal. É a posição vitoriosa no processo, que firmara jurisprudência a partir do cia. O processo é um paradigma, porque nele se encontram as três modalida-
Código de 1940. A partir dessaformulação vitoriosa, os juízes criam um ins- des de discurso sobre os crimes previstos nos artigos 156, 157 e 158 do Código
trumento eficaz de combate aos consideradosmaus ou produtores da ma/date. Penal
e

Evaristo de Moraes, referindo-seao Mão Santa em suas memórias(Mo-


Em <.Pipocase azeite-de-dendêfazem feitiçarias no Castelinho da Rua do raes, 1922), compara-o com o Ferraz do Andaraí e diz que era
Lavradio>>,Capítulo 1, Viveiros de Castra leva adiante a questãoda liberdade um convencido,um sincero, com a diferençade sustentarque a vir-
religiosa. Compara a lei com as leis da bruxaria na Europa e discorre sobre o tude curadora residia em si próprio (op. cft., p. 133).
evolucionismo e a visão positivista da religião, afirmando que o artigo 157 es-
tava revogadopelo $ 3' do artigo 72 da Constituição.Além disso, o artigo Evaristo diz que viu «curas admiráveis, incontestáveis».Conta ainda a
confundiria a propriedade com o direito da pessoa,englobandoestelionatoe advogado que no dia da apelação achou que deveria levar seu cliente perante
crime contra a Saúde Pública. a corte. Segundo ele, a figura do constituinte predispâs favoravelmente o tri-
bunal. Um dos desembargadores chegoua confessarque já tinha exercidoa
Se os artigos 156, 157 e 158 se aproximam das leis de bruxaria, como dis curandeirismo.
se o juiz maranhaense,não é por mero acaso.Lá como cá, juízes, feiticeiros e
bruxos participam da mesma crença. A própria teoria liberal, defendida por
Viveiros de Castro, com suas posiçõessobre a evolução da mente e da cons- 9 O Meão Santa(50) um paradigma jurídico
ciência, teve suas propostas vencidas na Constituinte todas as vezes que seus
adeptos quiseram definir claramente a plena liberdade profissional. Para o pró-
prio Viveiros de Castro, quando cita Nina Rodrigues,as sociedadesconvivem No dia 18 de outubro de 1900, na 13? Circunscrição Urbana, perante o
com o fetichismo porque todos, mesmo evoluídos, crêem nele. delegado,Dr. JogoGóesManso, depuseram,no inquérito policial, no qual era
Embora todos concordem com que haja pessoasque usam poderes para o acusadoDomingos Ruggiano, cinco testemunhas.
mal, há os mais próximos aos ingleses, como o juiz Gabriel Luiz Ferreira, e há [)iz õ auto de prisão em flagrante:
os mais avançadospara a época como Viveiros de Castra, que tem a posição Constando-me que na Rua do Cacete n' 101 estava estabeleci-
liberal mais clara. Porém, aquelesque com maior evidênciaaderemà lógica do um indivíduo italiano que, semtítulo legal, exerciaa medicina,
dos próprios crentes são os que preconizam que o artigo 157 não crimínaliza o anunciando curas milagrosas e fazendo bombásticos e escandalosos
puro exercíciodo espiritismo, mas o mau ou abusivo uso de seuspreceitos. Is- reclames.(Si)determinemimediatamente ao inspetor João Rufino dos
so cai como luva na lógica da hierarquização e do conflito dos próprios espíri- Santos que verificasse o que havia a respeito. Informando-me o re-
tas, que querem ver prevalecer a linha ou tendência do espiritismo que profes- ferido inspetor que realmente na casa mencionada havia Domingos
sam. Os casosde guerras de orixás serão discutidos mais adiante, mas já se Ruggiano (...) instalado um verdadeiro consultório médico, que
pode antecipar que, na própria doutrina legal, o texto do acórdão que conde- aliás era regularmente concorrido, resolvi verificar pessoalmente a
nou Antonio Alves Lopes será utilizado para condenar todos os outros daí em santa propriedade de suas mãos, como' charlatanescamente fazia ele
diante definidos como maus espúítas. crer aos seusconsultantes, que o procuravam confiantes na veraci-
Então, o que é que se criminaliza? Não se pune o puro espiritismo, mas (50) Processon' 778, ano 1901,artigo 156, caixa 29. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
uma certa maneira ou modo de pratfcá-/o. E a partir dessaformulação que se (51) «Bastaum toque na parte enferma que fica completamente curado como sejamdor de cabeça,
instaura a guerra travada na justiça e nos terreiros. Na justiça, os juízes aca- dores reumáticas,surdez, histerismos, paralisia, beribéri, sem tomar medicamentos.Curas
bam virando teólogos, com a atribuição de julgar se há abuso dos preceitos. grafuifas do curso de fluidos» (reclamedo Mão Santa anexado ao processo)

]OÓ e 8 IZ07
}''vonne ]b'/aggie b,cedodo feitiço; relaçõesentre magiae poder no Brasa!

dade dos anúncios publicados nos jornais e em outros espalhados Evaristo de Moraes, na sua defesa, descreveas posiçõesexistentesna épo-
em profusão por esta capital ca sobre a questão:(52)
As 15h30m,de 18 do corrente mêsde outubro, penetrandono A defesa precisa levantar em favor do acusado o direito resul-
santuário do charlatanescoindivíduo de quem felizmenteeu não era tante do $ 24 do artigo 72 da Constituição Federal.Apenas limitar-
conhecidopude à vontade e facilmentenotar que [)omingos Rug- se-á demonstrar:
giano, aproveitando-se com relativa habilidade de ligeiras noções a) que, a propósito do exercício dito ilegal da medicina diver-
que tem de eletromagnetismoprocurava convenceros seuscrédulos gem as opiniões dos mais conspícuosmagistrados, jurisconsultos,
consultantes que bastava a aplicação de suasmãos para que pronta- parlamentares, homens de imprensa e as dos próprios médicos di-
mente se dissipasse a dor ou qualquer outro incómodo que sentis- plomados e -- dada essa divergência -- um estrangeiro pode bem
sem, daí a razão do anúncio-reclame Mão Santa. ser levado em erro quanto à legalidade do seu ato, não sendo apli
(...) Preso Ruggiano ordenei a apreensão de tudo que existia cível ao casoo princípio de que a ignorância da lei penal não apro-
em sua sala e gabinetede consultaso que, aliás, confirmava o venta
exercício ilegal que ele fazia da arte de curar e convidando algumas b) que nem os documentos juntos do auto de flagrante, nem a
das pessoaspresentesa virem a esta delegada, fiz prontamente la- prova testemunhaldefinem a ação que o acusadopraticava para
vrar o respectivo auto de flagrante contra o inepto curandeiro obter suas curas e portanto havendo como há, especialização de
pondo-o em liberdade dias depois por ter prestado fiança na forma modalidades criminais no artigo 156, essa incerteza acarreta a não-
da lei
pronúncia, porque a certezado delito é uma das condiçõesdo des-
(...) Evidencia-se destes autos que Ruggiano esforçava-se por pacho de pronúncia.
iludir a boa-fé e perfeita ingenuidadedos seusfrequentadoresnão Continua o advogado dizendo que em seu artigo «Liberdade profissional)>,
só garantindo-lhes que curava radicalmente, mesmo os surdos, co- escrito em 1898, já definia a questão, mostrando que para
xos e mancos (...) como também aplicando as propriedades curati-
vas de suasmãos por meio de uma auto-sugestãopor ele promovi- uns o exercício de certas profissões é limitado pelas leis e regula-
da à distância de modo que eram os próprios doentes que se cura- mentos referentes às condições de capacidade especial, verificadas
vam, fato este inadmissível no estado atual da ciência e que apenas por meio de academias;para outros, todas as limitaçõesdo livre
serve para engazofar a credulidade dos tolos exercício, mesmo a exigência de diploma para certas profissões ca-
ducam perante o instituto da liberdade profissional, que se encontra
(...) Parece-me achar-seDomingos Ruggiano incurso no artigo consagradonaquele $ 24 do artigo 72. Para os da primeira opinião,
156 combinado com o artigo 338, $ 8', do Código Penal. estão em inteiro vigor os artigos 156 e 158 do Código Penal; para
O Mão Santa afirma em seu depoimento que: os da segunda,essesartigos, constantesde uma lei de ll de outu-
Procedia cam uma certa sugestãocujo fim era o doente curar bro de 1890, estão revogados pelo dispositivo constitucional posto
se por si mesmo e que nestascondições tem sido procurado por pes- em vigor a 24 de fevereiro de 1891.
soasnão só em Montevidéu como aqui, tendo sempreobtido suces- Cita Evaristo uma lista de juízes, representantesdo Ministério Público e
se
advogados, além de jornais favoráveis à segunda posição, ou seja, à liberdade
Disse ainda que: profissional, como Macedo Soares, Aureliano Campos, Esmeraldino Bandeira,
Carlos Carvalho e Ubaldino do Amaral, o ministro Amara Cavalcanti, além
Entre seus discípulos figura Romãs Peradesseque pelo mesmo
sistema curou o presidente do Uruguai(. .) os consulentes compen
do jornal O Pa;z e o Jorna/ do Comércio. Diz ainda que Viveiros de Castra
sam seus trabalhos dando-lhe qualquer quantia ou mesmo nada. (notável criminalista), depois de ter condenadouns dois ou três médicospráti:
cos ou curandeiros, aceitou inteiramente a tese da liberdade profissional.(S31
Não tem título legal neste país que o habilite a essaprofissão
O promotor SampaioVianna denunciouo Mão Santa:
porque na casa em que reside (...) o réu exercea medicina sem (52) Evaristo além das razõesapresentadasnos autos, escreveuo memorial que publicou mais
tarde com o título <<Médicose curandeiros». Aqui se resume suas posições.
estar habilitado segundo as leis e regulamentos e pediu a condena-
15a)Ao que tudo indica, Evaristo se referia ao velho Viveiros de Castro, não a FranciscoJoséVi-
ção pelo grau médio do artigo 156 do Código Penal veiros de Castra, contemporâneo do advogado

I08 e e I09
rvonne ÀÍaggfe Medo do feitiços relaçõesentre magia e poder no Brasíl

[)iz que no Juízo Federa] do distrito, {lque é um dos mais movimentados>}, o mica, se exercesemo empregode 'remédios',aplicadosinterna ou
[)r. Godofredo da Cunha manteve a ]ivre advocacia em obediência ao preceito externamente. Mas se dos autos não consta esse emprego de 'remé-
constitucional. dios' e se não há dúvida que o Código Penal se refere à medicina
Continua citando adeptos da liberdade profissional: Barbosa Lima, no alopática, como incriminar o acusado que diz empregaro fluido?
parlamento; o Dr. Galeão Carvalhal, autor de um parecer sobre o assunto on- (...) O digno dr. delegado da 13' (hoje 5') Circunscrição é
de colocaa opinião do Instituto dos Advogados,favorável à liberdadeprofis- médicodiplomado e talvez por isso, aproveitou a ocasiãopara ridi-
sional, na Comissão da Constituição, Legislaçãoe Justiça; os Srs. Souza Pinto, cularizar os 'bombásticose escandalososreclamese as curas mila-
Julgode Castilhos e Souto Werneck. l)iz que a Assembléia Estadual do Rio de grosas' (...). Morre um já irrecuperável quando entregue a qualquer
Janeiro debateu o assunto sem que os deputados chegassema uma conclusão. 'prático' e por pouco que a família insinue a habilidade do homem,
Fala das opiniões como a do Dr. Cunha Cruz, médico diplomado e empregado logo a polícia corre a prendê-lo.
na polícia, que teria se manifestadoa favor do livre profissionalismo. Seo Meritíssimo Promotor demonstrasseno casouma ilaquea-
Termina por declarar que, se essessenhorescultos e cheios de responsabi- çãoda boa-féalheia seriao casodo estelionato,
no entanto,a
lidade vacilam quanto à credulidade dos alas atribuídos ao acusado, como po- má-fé do denunciado não ficou por qualquer forma demonstrada
deria estesaber que estava em erro? para caracterizar-seo delito. E quanto ao que se Ihe imputa, já vi-
mos que falecem os elementos para pronúncia.
Admitindo que tenha(o réu) lido a ConstituiçãoFederalé fora
de dúvida que na expressãolivre exercícioqualquer pessoaencontra O juiz Zachariasdo RegoMonteiro não se deixa influenciar pela defesade
motivos para crer que não há, aqui, o privilégio acadêmico,máxi- Evaristo e julga Domingos Ruggiano culpado, condenando-o pelo artigo 156
me comparandoo empregodo adjetivolivre do $ 24 com o empre- do Código Penal.
go do advérbio livremente no $ 3' com o empregodo adjetivo no $ O Mão Santa apresenta recurso através do advogado, que apela, dizendo
5', com o emprego do citado advérbio do $ 8' (...) Diante das dú- o seguinte:
vidas que cercam a interpretação do $ 24 do artigo 72 da Constitui- Para o Merítíssimo Juiz é indubitável que Domingos Ruggiano
ção Federal-- é lícito a um estrangeiroignorar que alguns juízes exerce a medicina. Ora, exatamente uma das questões levantadas
puneme a políciapersegue
o exercícioda medicinapelosnão- pela defesaconsistiu em negar que houvesseprova nos autos do
diplomados.
exercício de qualquer medicina por parte do acusado. Continua pois
Além disso, dii o advogado, para aplicar o artigo 156 deve o Ministério a defesaa sustentar o mesmo erro (...)
Público demonstrar qual espéciede medicina se exercia, ou então provar que a Já demonstramos como é restrita a noção de medicina dada por
cura era feita por meio de qualquer dos três sistemasmarcados na lei; «ho- aquele artigo (156).
meopatia, dosimetria, hipnotismo ou magnetismo animal)}, como argumentou
Viveiros de Castro nos processos anteriores. A medicinaa queele serefereé a alopática,a ensinada
nas
nossasacademias.Tanto assimé que o legisladordestacou,logo, a
SegundoEvaristo, nada disso ficou provado nos autos, nem sequer foi homeopatia, a hipnótica e a dosimetria. A expressão em qualquer
averiguado. Os documentos reunidos pela polícia falam em imposição das de seus ramos se refere evidentemente às especialidades médicas co-
mãos, fluidos e curas gratuitas. As testemunhasque depõem nada revelam so- mo a operatória, a ginecologia, a psiquiatria etc. Todos sabemque
bre o exercício da medicina. Se Domingos Ruggiano,segundoseu advogado, os alopatas escolhemquase sempre um ramo da medicina e se inti-
pratica curas milagrosas, nem o denunciante,nem a polícia, nem seusdocu- tulam de acordo com essa especialização (...).
mentos, nem as testemunhas afirmam isso no processo do acusado.
Em todo caso, admitindo que Domingos Ruggiano pela simples
Se a lei desse suposto delito contra a Saúde Pública falasse
imposição de mãos exercesse a medicina e não procedesse apenas à
apenasna arte de curar, até certo ponto poder-se-iacompreendero semelhança dos frades com seus cordões e benzeduras, seria ele cri-
fundamento da acusação,mas, a lei é bem clara; pune o exercício minoso?
da medicina por parte dos não-diplomados e logo vão destacando a
homeopatia, como para dar a entender que a medicina é, segundo o Continua Evaristo:
Código, a que se ensina nas nossasacademias,compreendidadaí a Ê fato que a Câmara Criminal tem condenado curandeiros,
cirurgia. Ninguém seriamentedirá que a medicina oficial, a acadê- mas isso é do conhecimento de bem poucos, dos homens do foro

]10 e IZ:Z]
yvonne A,4aggíe ?ü4edo
do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

em especial. O grande público, mesmo o grande público, está ainda ainda na dúvida em torno da questão da liberdade profissional, destacando
na incerteza,não sabeo que pensare por importante motivo. duascorrentesde opinião referentesao artigo 72, $ 24, da ConstituiçãoFederal.
Além das sériasdúvidas levantadastodos os dias acerca do $ Segundo uma destas correntes (te opinião o pré-citado artigo
24 do artigo 72 da ConstituiçãoFederal,o povo não vê que se re- 72, $ 24, consagra o regime de plena liberdade profissional ex
prime regularmente o exercício ilegal da medicina. cluídas quaisquer limitações e ingerências regulamentares para o
Por toda a cidade, desde os pontos mais centrais até os subúr- exercíciode qualquerespéciede profissão.Regiõeshá no país em
bios, são afamados certos espíritas-curadores,procurados por enor- que as leis (...) e jurisprudênciade seustribunais locaisassinalamo
me clientela. Não menor é o número de farmacêuticosque não sÓ procedimento em contraste de semelhante doutrina.
manipulam drogas como as receitam. Em tais condiçõesera lícito acreditar em boa-fé.
Evaristo alega na defesa do recurso que Domingos Ruggiano não exercia a Os juízes da Corte de Apelação absolvem Domingos Ruggiano e o proces'
medicina em nenhum dos seus ramos <{... é evidente que o Código Penal se passaa servir de doutrina durante a primeira décadado século.
refere-seà medicina alopática)}, repete Evaristo. Esseprocesso, de 1900, é marcante, deixando claro que os três artigos do
O delegado policial, médico diplomado, não encontrou Domin- Código se entrelaçam referindo-se à mesma discussão. Médiuns curadores e
gos Ruggiano exercendo a medicina alopática, a oficial, a acadêmi- falsos médicos.
ca, a de que trata o Código. Viu sim, ele bem diz, que o acusado Mas a acusaçãoao Mão Santaintroduz outra questão,revelandooutro
aplicava as mãos sobre as pessoas. viés dessalei que, ao reprimir a crença, adquire característicasda própria
O acórdãoem CâmaraCriminal do Tribunal Civil e Criminal julgou crença. O N4ãoSanta é acusado de ates charlatanescos, isto é, além de prati-
aprovada a denúncia porque Ruggiano car ilegalmentemedicina, seria um charlatão, que pretendia.curar utilizando
métodos enganosos. Nas décadas subsequentes, o conceito de charlatanismo
se intitulava doutor sementretantopossuirtítulo que o intitulava a
exercer legalmente a medicina em qualquer de seus ramos (...') vai tomandoforma e se transformanum dos principaiscritérios de avaliação
de médicos, curandeiros e espíritas.
anunciava curar radicalmente diversas moléstias por meio de fluido
e toquesde mão, conseguindocom isto atrair à sua casadiversas O leitor já deve ter percebido que o Estado, que se retira das questõesre-
pessoas que ali iam buscar auxílio para suas enfermidades (...) ligiosas na proclamação da República, volta a intervir nessasquestõesa fim de
separar o joio do trigo: diferenciar os espíritas verdadeiros dos falsos, os médi-
Houve um voto contra do Dr. Montenegro, que o justificou dizendo que cos verdadeiros dos charlatães. Passa também a definir aqueles que usam mal
as provas e o depoimentodas testemunhas
não caracterizavam
crime de ou abusivamente os preceitos do espiritismo, empregando métodos fraudulen-
exercícioindevido da medicina. Segundoele, «o curativo pela imposição das tos ou charlatanescos.O que se tenta mostrar é que a versão positiva do direi-
mãos escapaà qualificação delectiva do artigo 156 (...))>. Justifica sua opinião to. vitoriosa em vários sentidos, coincide com a versão da crença de que há
repetindo os argumentos de Evaristo de Moraes na defesae no recurso. sempre falsificadores, charlatães e marmoteiros, mistificadores que devem ser
Sendo Ruggiano condenado pelo Tribunal Civil e Criminal, o advogado perseguidos. Perseguidospor serem poluidores, produtores de malefícios mo-
apela à instância superior, alegando erro no julgamento. rais. como a loucura, a degeneração e a falta de civilidade. A versãoliberal é
menos acusatória porque acredita em que essespoluidores devem conviver no
O desembargador ManDeI Pedro Alvares Moreira Villaboin, procurador- seio da sociedade até sua destruição pelo progresso. A vertente positiva locali-
geral do distrito, opinou pela improcedência da apelação, considerando que a za nessesacusadosa causa do nosso atraso e da nossa doença. Até o Código
crime estavaprovado. Porém acordaramem CâmaraCriminal da Corte de de 1940, as posições vão sendo paulatinamente construídas, não estando ainda
Apelação os juízes, que absolveram [)omingos Ruggiano, dizendo que o pro- os poluidores delineadoscom clareza. O Código de 1940 iá define com clareza
cesso não oferecia
aquelesque impedem nosso progresso e nossa civilização.
basefirme para semelhantecondenação,por faltarem nele elemen- O processo do Mão Santa revela que os juízes e especialistastinham estra-
tos precisos e indispensáveispara caracterizar qualquer das modali- tégias semelhantes porque buscavam os mesmos objetivos e que essasestraté-
dades que constituem a figura delituosa do artigo 156. gias diferiam da estratégia do acusado que, em princípio, desejava poder usar
Os juízes disseram que deveria ter sido realizado «examepericial para de- seus poderes de cura. Mas as estratégias diferentes não correspondem sempre a
terminar a naturezaainda dos fatos que são elementosessenciais.)} Falaram crenças e usos de categorias opostas. No caso em questão, a vitória da posição

]]2 e ]]3
yvonne J\daggíe füedo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

positivista, que define os poluidores como aquelesque usam mal os preceitos. 10 Curava uma contusãocom um lápis lilás por
revela que estratégiasdistintas acabam sendo utilizadas por grupos que têm as 30$0000u
mesmascrenças e usam as mesmascategorias. Nenhum curador, médium, pai-
de-santo, vidente ou adivinho acha que não existam charlatães, mistificadores Realizou-sena 3' Vara Criminal, peranteo juiz Milton Barce-
a seremperseguidos. los, o julgamento de Antonieta de Souza,processadacomo macum-
beira. Na denúncia o promotor J. A. Ribeiro Mariano alegava que
Assim, a vitória dessaposição coloca em blocos táticos distintos discursos a ré fora presa em flagrante quando praticava a macumba,no dia
semelhantes.Os que queriam extirpar a crença nos poderes ocultos e os moto. 15 de outubro último, (...) no interior do prédio n' 15 da Rua An-
dos de cura sem diploma médico acabamusando o mesmo discurso dos que dré Cavalcante, quarto 20. Atendia mediante a quantia de 30$000 a
querem ou efetivamente usam essespoderes e fazem essascuras. consulente Regina Duarte Fontes passando um giz lilás pelas suas
costas para fazer sarar uma contusão. Consta dos autos que a acu-
A coincidência dos discursosamplia o controle sobre essaspráticas, é a sada exercia a magia negra, a macumba e seussortilégios para des-
intercessãodessesdiscursos que possibilita a criação de um instrumento de pertar sentimentos de ódio e amor, inculcar curas e moléstias curá-
combate aos maus ou abusivos usos dos preceitos. veis e incuráveis, explorando assim a credulidade pública. (...) Em
Não se pretende esgotar aqui as causasque transformaram a posição posi- sua defesaescrita o advogado da ré (...) alegou que o flagrante po-
tivista no direito criminal em versão vitoriosa nos anos40. Mas se pode dizer licial foi forjado,pois o processoconstituíaum 'amontoadode
que tendo sido vitoriosa, marcou profundamente o debate sobre quem era de- mentirase torpezas'.A polícia na buscafeita na casade suaconsti-
positário do verdadeiro saber religioso e médico, por um lado, e por outro, tuinte, encontrou apenas, ainda segundo o advogado, um rosário e
institucionalizou o combate aos que usavam abusivamentedos preceitos pro- alguns charutos e dessa maneira não se poderia atribuir à acusada a
duzindo malefícios. prática de macumba -- se assim fosse -- argumentou o causídico.--
toda a população brasileira ou quasetoda estaria amarrando os dis-
O debate travado nos processoscriminais, iniciado talvez por questõesre- sabores do cárcere, como a acusada já está desde 15 de outubro
lativas à esfera da saúde física e do controle médico sobre as artes de curar. (...) (...) Disse o advogado (em juízo) que a acusada nunca fizera
acabou inscrito na necessidadede criação de categorias jurídicas conceituando mal a ninguém,portanto, não podia ser punida por adotar uma
verdadeiros e falsos pais-de-santo, médicos, médiuns e curandeiros. A vitória crença exótica (...) o juiz Milton Barcelos (...) condena Antonieta
da posiçãopositivista inscrevea ordem jurídica na ética e na moral do sistema de Souzaa 30 dias de prisão celular grau mínimo do artigo 157 da
de combate aos produtores de malefícios que existia e existe na ordem propria- CLP. Como a ré já cumprira pena, o juiz ordenou que fosseexpedi-
mente religiosa; nos terreiros, casasde culto, nos centros e nos templos das re- do o alvará de soltura... Em sua sentençao Sr. Milton Barcelosdis-
ligiões mediúnicas. se que estava provado pelo flagrante da polícia que Antonieta de
Souzapraticava macumba, e que diante da lei, não se podia com-
Até o final da década de 30, os juízes condenam e absolvem de acordo parar a magia negra às religiões que merecem a proteção dos Juízes.
com suas convicções e posição face a essasinterpretações. A partir dos anos A denúncia
diz:
20, ninguém mais discute, por exemplo, a inconstitucionalidade dessesartigos.
foi presa em flagrante quando atendendo a consulente Resina
Na décadade 30 vai ficando claro, a partir das sentençasdos juízes, que a Duarte Fontes e passando um giz lilás pelas costas da mesma onde
posiçãovitoriosa e que será inscrita no Código de 1940 será aquela que crimi- havia uma ferida. com o fim de cura-la, exercia assim a macumba e
naliza o mau ou abusivo uso dos preceitos do espiritismo. Nessadécadaau- seus sortilégios para despertar sentimentos de ódio e amor (...) os
mentam o número de processos,sobretudoa partir de 1937; mas aumenta objetos apreendidos(...) foram consideradoscomo próprios para a
também o número de desfechosonde os réus são absolvidos. Nessadécada prática dos rituais da macumba (...) estando assimincursa nas pe-
aparecem com muito mais frequência certas expressõesclassificatórias: macum- nas do artigo 157 da CLP. (Vê-seque o Ministério Público usou o
beiro, mistificador, baixo espiritismo. Os réus classificados nessas categorias termo macumba, em vez de magia, como está no texto legal, semse
constituemo objeto de discussãodos juízes. dar conta do erro. Terá sido erro?)
O processo narrado a seguir é um paradigma da posição que se consolida (54) Antoníeta de Souza.Arquivo do Juízo da 3? Vara Criminal, Processon' 369, ano 1941,art
nos anos 40. 157

1]4
yvonne JWaggíe tqedo do feitiço: relqcõesentre magia e poder no Brasil

No auto de apresentação e de apreensão,o investigadorOrlando de Bar. tas pretas 'terço', duas velas de estearina (...); uma garrafa com ró-
ros diz: tulo de álcool a 36' contendovinho de mesa'sangue'.(Algunsdes-
Uma figa de madeira; um rosário; dois pedaçosde vela; dois sesobjetos não constavam do auto de apreensão.)
pedaços de charutos; uma imagem de 'Santo Antânio' de metal Interrogados sobre se as substâncias e objetos apresentados a exame po'
branco colado sobre um pedaço de massa preta, tendo em suas ex- doamser empregadosna prática da macumba ou do curandeirismo, respon-
tremidadesum cordão azul; três colaresde vidros coloridos; uma dem
e
garrafa contendo líquido escuro e finalmente um pedaço de giz cor Sim, os objetos apresentadospodem ser empregadosna prática
de lilás (.:.) surpreendeu em flagrante a acusada ... quando esta ritual da macumba,não se prestando,no entretanto,à prática do
com o giz acima citado rezava a consulente (...) e passavao mesmo curandeirismo.
sobre uma ferida que ela consulenteapresentavanas costas.
O exame médico a que Regina Duarte Fontes, cor parda, é submetida re
Antonieta de Souzadiz: vela que a mesma:
que Resina Duarte (...) declarou-lhe encontrar-se doente e desem- Apresenta na região escapular pequenas manchas hipercrânicas
pregada e que como a declarante sabe rezar e tem como protetores medindo doze centímetros (. . .) sem características outras apreciáveis
Cosme e Damião poderia pâ-la boa e arranjaria uma colocação. Pa- no que tange à sensibilidade superficial.
ra isso cobrava a quantia de 30$000réis. A declarantecostumava Diante disso, os peritos respondem {<sim)>ao primeiro quesito (se apresen'
fazer caridade, não pâs dúvida em receberpelo seu trabalho, uma ta os sintomas da enfermidade que alega). Ao segundo, <<se o tratamento por
vez a consulenteboa e empregada(...) a declarantevem há muito meio de 'rezas' seguidas de 'passes', comumente usado pelos que praticam o
tempo exercendo o curandeirismo nesta capital pois ignorava ser is- falso espiritismo, é prejudicial à saúde do paciente pela demora do tratamento
so crime porque em suaterra natal tal procedimentonão constitui conveniente», respondem «não», uma vez que a doença de pele em questão
crime
não tem repercussãomaior para a saúde geral da paciente. Ao terceiro, {cseo
A consulente diz que: paciente fosse submetido a tratamento adequado poderia vir a restabelecer-
se?», respondem <<provavelmente não».
Ali apareceu por se encontrar doente, desempregada, vindo sa-
ber por intermédio de uma sua conhecida que a acusadaexercia o Antonieta de Souza, interrogada pelo juiz, respondeuque era natural da
curandeirismo como rezadeira assim poderia melhorar a situação da Bahia. solteira, cozinheira e não sabia ler nem escrever
declarante (...) que a acusadapresentedeclarou que trabalhava com O advogado Oswaldo da Sirva Costa, em defesaprévia, diz que ela não
o protetor Cosme e Damião. estavapraticando curandeirismonem receitando ou rezando no momento da
piisao.
A primeira testemunha, um investigador de polícia diz
Antonieta de Souzafica presa na casa de detençãoa partir do dia do fla-
que (...) a acusadaexerciao curandeirismo (...) que ali chegando grante
surpreendera a acusada presente quando esta passava um giz escuro
sobre uma ferida existente nas costas da senhora. As testemunhas depõem em juízo e repetem seu depoimento na polícia,
com exceçãoda informante, a consulente Resina Duarte, que o juiz não arrola
A segunda testemunha, também investigador de polícia, responde: «que se como testemunha. Ela diz que não sabe se a acusada exerce o curandeirismo,
dirigiam à Rua André Cavalcante porque segundo denúncia ali a acusadapre- que não disse isso no depoimento na polícia, que mostrou a.mancha das costas
sente exercia o curandeirismo>>. Repete o depoimento do antecessor. a acusadaem conversa com ela e que não ouviu a acusadadizer na polícia que
A acusada foi considerada culpada pelo delegado e incursa no artigo 157, tinha como protetores Cosme e Damião.
combinado com o 158. O primeiro promotor público diz que o delito ficou demonstradonos au-
tos:
Depois do examedos objetos os peritos Luiz Nougué e Antonio Cardos As testemunhas afirmam plenamentea acusação.Aliás a pró-
Villanova relatam:
pria consulente,que pretendedefendera acusada,é a primeira a
aberto o referido embrulho foram encontradose examinadosos nos demonstrar que, na realidade, a acusada exercia a magia negra
seguintes objetos: uma figa de madeira-de-guiné; um rosário de con- para os fins descritosna denúncia.
e IZIZ7
yvonne ÀÍaggíe Medo

Opinapela «condenação
da acusada
no grau mínimodo artigo 157da Atendendoa ter sido a ré presano dia 15 de outubro e já haver
CLP» cumprido pena corporal imposta, determino a expediçãodo alvará
de soltura, em 30 de dezembrode 1941.
O advogado da acusadaa defende dizendo que o processo é um amontoa-
do de mentiras e torpezas, por absoluta falta de provas. Diz ele que o depoi- O processode Antonieta de Souza é significativo porque nele fica claro
mento dos investigadores é suspeitíssimo, que apenas o depoimento da consu. que os juízes se afastam dos ensinamentos de Viveiros de Castra.à medida que
lente pode ser levado em conta, pois seria esta a pessoaofendida. vai terminandoa décadade 30. A vítima (a consulente)não reclama,nada;ao
Segundo o advogado, o processo é aberrante, brutal, violento, incon- contrário, é a única pessoaque nos interrogatórios defendea acusada.Mas o
cebível. Em: juiz condenaa benzedeiraem seu nome. Condena porque acredita em que a
prática da macumba e os proces.sosde baixo espirit.esmonão constituem reli-
completo desrespeito à Constituição do Estado Novo, (...) invadem gião e são nocivos à sociedade. O juiz acredita.nas testemunhase a prova que
uma casade família, encontram uma mulher indefesa,de cor preta condena a macumbeira é a prova testemunhal. As testemunhas que acusam
e pobremente vestida, examinando uma ferida ou mancha que Outra são aquelas que iniciam o processo porque, segundo consta, receberam denún-
Ihe mostrava e isso é o quanto basta para que os rapazesda polícia. cias. São os investigadores da [)elegacia de Costumes.
no cumprimento de seu dever, forjassemo flagrante que se vê nes. As provas materiais, imagens de santos, charutos e rosários, isoladamen-
tes autos tendo que para isso arrombar armários, santuários e ou- nada significam. Mas em conjunto são evidências de uma crença. Os católi-
tros móveis para acharem aquelesobjetos ridículos que só um peri- cos nao possuem essetipo de santuário, nem misturam .imagensde santos com
to de má vontade pode afirmar ser para práticas de rituais de ma- charutos. Todos sabem, inclusive o juiz, que só macumbeiros juntam essesob-
cumba.
jetos A evidênciado crime é a própria crença.O juiz condenaAntonieta de
Há, Meritíssimo Juiz, mal que uma pessoatenha em sua casa Souzaporque ele próprio conhecea macumba que ela pratica e acredita em
que possa fazer mal. Os juízes que condenavam as bruxas européias também
imagens de santos de sua devoção, rosários, charutos e outros obje-
tos mais da qualidade dos que foram apresentadosa exames iam seuspoderes. Assim, guardando as devidas proporções quanto à pena-
lização, Antonieta de Souza, como as feiticeiras européias, é.condenada por-
Não, não e não
que o juiz acredita em que a macumba, que cura com rezas, charutos e benze-
Se assim fora toda a população brasileira ou quase toda estaria duras, pode ser usada para o mal.
amarrando os sabores do cárcere, como a acusada já está desde 15 Através do processo descrito se vê como foi sendo criado um instrumento
de outubro (...) pois é costume encontrar em todas as casas, princi- eficaz no combate à feitiçaria, à magia negra, considerada prática de baixo es-
palmente na de pessoas pobres, pequenos altares com diversas ima- piritismo e de macumba
gens de sua devoção
A posição liberal já havia sido superadapela posiçãopositivista no Direi-
O juiz Milton Barcelos, no entanto, tem outra opinião. Acha que ficou Criminal. A ética que presidiu o processo em pauta, como todos os outros,
provado que a acusada praticava aros de macumba, é a ética que consideraamoraso uso de poderesocultospara produzir ma-
pretendendocom rezas e benzedurascurar uma chaga viva que lefícios Assim, o juiz condenaporque acredita em que a acusadapratica feiti-
apresentava a vítima, a qual teve que se submeter ao pagamento de çaria, magia negra, e usa seuspoderes e medicamentos mágicos para o mal.
30$000. Considerando a prova testemunhal obtida em juízo positi- O texto do novo Código Penalque vigora a partir de 1942 suprimeas ex-
vam estar a acusada(...) praticandoaros de macumbae pretendia pressõesespiritismo e magia, substituindo-as por charlatanismo, levando a crer
não só curar as feridas que apresentava a vítima Resina, como ar- que a lei deixa de reprimir os espíritas e os que praticam magia. O artigo 157 é
ranjar para a mesma emprego com a prática daqueles processos substituídopelo 283. Charlatanismo: <<--inculcar ou anunciar cura por meio
condenáveisde baixo espiritismo, o que não pode constituir coma secreto ou infalível.»(SS)
pretende a defesa, uma religião permitida pela Constituição Federal, A doutrina desseartigo, no entanto, reafirma a posiçãopositivista do
pois tais processossão altamente nocivos à sociedadee especialmen- início do século, pois considera que se deve punir o mau ou abusivo uso dos
te nas camadas menos favorecidas o que ocorre com a vítima. Con- preceitos do espiritismo.
siderando que a prova material do delito ficou plenamente constata-
da com o auto de apreensão, julgo procedente a denúncia e em con-
seqüênciacondeno Antonieta de Souzaa um mês de prisão celular. (55) Ver os artigos do Código de 1940 na Introdução à Primeira Parte

e ]]9
yvonne Maggie Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

O legislador da década de 40 acha que o espiritismo como religião, dou- nados. Os espíritas das federações,por outro lado, conseguem,aos poucos, se
trina filosófica, encontra proteção no texto constitucional, que asseguraliber. defender das acusações.
dade de cultos e de consciência:
Nessa guerra Judicial, ou melhor, nesse mecanismo de combate aos feiti-
A lei, porém, pune aqueles abusos e excessos, desvirtuamentos ceiros, pareceque ficou convencionado que os macumbeirossão ignorantes,
e práticas que, sob a capa de rito religioso ou manifestação de um não-religiosos, charlatães e mistificadores ou feiticeiros.(58)
credo, não mais são que fatos definidos como crime
Em suma,o Estadono Brasildo final do séculoXIX e início do séculoXX,
O Código Penal pune por igual o exercício ilegal da medicina não opas às religiõesmediúnicasuma recusafundamental. Ao contrário, pro-
o charlatanismoe o curandeirismo-- sistemaque visa a defesada duziu sobre elas um discurso verdadeiro. Criou categorias a partir do discurso
SaúdePública, que exige que se regulamentee fiscalize o exercício dos próprios acusadosque, como os juízes adeptosdo direito positivo, acredi-
da medicina e farmácia. O baixo espiritismo, a magia negra, a tavam em que havia feiticeiros a seremperseguidos.
quimbanda ao serviço de curandeirismoé prática nociva à saúde
físicae moral do povo e devemser combatidose punidos os seus
agentescomo burlões, embusteiros, mistificadores que se arrogam o
poder de curar e fazer diagnóstico. A mediunidade mesma, o estado 11 A versão dos acusados
de transe, se seguramentecomprovado, não se tratasse de simula-
ção, como tem ocorrido com inúmerosmédiuns,não isentariada
responsabilidade, por isso que seria um estado procurado volunta- O tão citado Ferraz do Andaraí,(SÇ)carpinteiro, acusadoem 1897 de ser
riamente e conscientemente,para a prática do curandeirismo. À jus- feiticeiro e de dar reuniões ou sessõesespíritas, responde que
tiça não interessa exaurir doutrinas, esmiuçar filosofias (...)
dá sessõesespíritas a pessoassuas conhecidas e a outras que o pro-
Essaé a conclusão a que chegam os juízes que condenam Albertina Lopes curam e têm fé nessacrença.
dos Santos,(56)pelo artigo 283 (curandeirismo): Carneiro da Cunha, presidente
Diz ainda que
com voto, José [)uarte, re]ator e Ade]mar Tavares. Eles usam as categorias da
crençapara definir a ética que devepresidir o estabelecimento da pena e da não é exala que em sua residênciatrate qualquer pessoa,de qual-
culpa. Deve-sepunir quem estiver usando seuspoderespara o mal, a magia quer moléstia com feitiçaria.
negra, a quimbanda. Deve-sepunir os charlatães,embusteirosque dizem ter No mesmo ano, acusado novamente, desta vez de exercer ilegalmente a
poderes mas são falsos. medicina, responde dizendo que dá
Na década de 40, a vitória cabia aos acusadores,que apontavam macum- sessõesespíritas, que reza pela frente e pelas costas as pessoasque
beiros, mesmoquando os processosnão terminavamcom condenaçãodos acu- Ihe pedem mas isto não é cura-las de enfermidade é pura e simples-
sados. Como revelou a leitura dos processos, aumentou o número de acusa- mente pregar a doutrina espírita.
ções aos macumbeiros.
Confessa-se espírita e nega ser curandeiro.
Esta doutrina jurídica pode muito bem ser comparada às justificativas e Juvêncio Serafim,(ÓO) negro, de 65 anos, nega dar remédios a doentes
representaçõesreligiosas expressaspor médiuns nos terreiros e centros espíritas quando,em 1898,é acusado«de praticar o criminoso ofício de curandeiro)}.
para explicar seusconflitos internos. Há constantesacusaçõesa mistificadores Outro acusado. Antonio Alves Lopes,(Ói) português, diz que só trabalha
falsos médiuns e quimbandeiros (feiticeiros).(SZ)
para o bem, que é médium e tem o dom de curar, que trabalha com os pode
Assim, a lei que pretendia extirpar a feitiçaria dos ignorantes no Brasil, res de Deus.
mscreve-sena crença, na magia, criando mais um instrumento, além do que
existe nos terreiros, de combate aos feiticeiros (58) Toda a literatura fala da vitória da umbanda (ver Brown. 1985),do espiritismo sobreos ma-
No caso aqui estudado há os que conseguemfazer ouvir melhor suas acu- cumbeiros. Qualquer crente dirá que a sua banda venceu a repressão(ver também Danças,
1983)
sações.Aparentemente,os negrose pobressão, de um modo geral, os conde- (59) Joaquim rosé Ferraz, Processon? 571/1898, caixa 2.002, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(60) Juvêncio Serafim do Nascimento, Processon' 596/1848, caixa 1.997, Arquivo Nacional, Rio
(56) Ver o Acórdão na Revista Forense, vo1. 99, Set. 1944, fascículo 494. de Janeiro
(57) Sobre as representações religiosas e as acusaçõesem terreiros, ver Maggie (1975). (61) Antonio Alves Lopes, Processon' 691/1898, caixa 1.859, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

]20 e ]2]
yvonne AÍaggie fvÍedo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasi}

Esse é um depoimento constante nos interrogatórios. Os acusados estão quando praticava caridade aos irmãos que se achavam em sua casa
sempredizendo que trabalham para o bem, o que na crença significa não fazer foi surpreendido pela autoridade que este preside a qual Ihe deu voz
feitiçaria, magia negra. de prisão, sendo apreendido todos os apetrechos(...) que as velas
O caso de Antonio Alves Lopes é significativo, pois foi acusado de cura que estavam acesaseram para os irmãos sofredores que se achavam
por meio do espiritismo e de extorsão. presentesao ato (...) que estavasentadosobre um tamboretee não
estava manifestado, mas sim concentrado, que todos os objetos e
Ao se defender da acusação da cliente, Antonio Alves Lopes a acusou de
feiticeira. utensílios apreendidos servem apenas para afastar tudo quanto é
mau
Responder que não trabalha para o mal, supõe a suspeita de que esta sela Em 1927, outra acusada responde à acusação e depõe relatando como
a acusação, mas implica em participação no tipo de sistema instituído para pu-
nir falsos espíritas, feiticeiros etc. Qualquer sistema de feitiçaria implica um processam-seas curas. Mana da Conceição,(Ó7) portuguesa, 63 anos, viúva,
operária, alfabetizada, declara que:
sistema de perseguir feiticeiros. Negando ser feiticeiro, o acusado se defende da
acusação,mas não nega a necessidademoral de um sistemapunitivo aos que Há um ano vem <<arezar>>pessoasque procuram alívio para
trabalham para o mal sofrimentos físicos (...) quando atendia fazendo «passes»a sua co-
nhecida (...) foi surpreendida (...) que somente trata de pessoastu-
Há acusadosque confirmam a acusação,dizendo que realmenteestavam berculosas já desenganadas pelos médicos e também loucas sempre
realizando ritos ou práticas mágicas. É o caso de Mana JoséCordeiro, do Cas- obtendo melhores resultados (...) que foram arrecadadosem sua ca-
telinho, na Rua do Lavradio(ÓZ)que diz ter contratado um tal Antonio Francis- sa dois litros e um garrafão de água rezada que tem aplicado no
co para armar uns santose fazer a casa {(voltar a ser feliz>>.O preto Antonío tratamento de feridas crónicas.
confirma o depoimento da dona do Castelinho. Mas tratava-se, segundoa
acusada, de magia benéfica. O depoimento da portuguesa tem interessepor mostrar que em alguns
Há ainda acusados que, ao deparem, descrevemminuciosamenteo que fa- processosos acusadosse defendemda acusaçãode falsos médicosou de práti-
ca ilegal da medicina afirmando que só tratam pessoasoficialmente considera-
ziam. E o caso do Mão Santa(63) «procediacom uma certa sugestãocujo das incuráveis. Ou seja, não fazem mal algum.
fim era curar-se por si mesmo e que nestas condições tem sido procurado por
pessoas e obtido sucesso>>. Tio Júlio,(Ó8)raiano, solteiro, 65 anos, desempregado,acusadopor um vi-
zinho de promover <ccenasdegradanteu>,nega a acusação:
Dentro dessa linha, alguns respondem que têm a profissão de curandeiro,
como o preto cabo-verdiano Manoel Games.(Ó4) Segundo o processo de 1904, Há um ano mais ou menos o declarante vem dando consultas
ele diz que: na casa em que reside, consultas estasque consistem em fazer curas
Há muito tempo exerce a profissão de curandeiro e isso por por meio de rezase pessoasenfermas...
meio de ervas e água e sempre para fazer o bem e não o mal. Que Os réus, ao deporem, sempre respondendo a uma acusação, fazem um
sua casaé sempre freqüentada por gente de muito dinheiro. enorme esforço para explicar e descreversuas consultas, passes,trabalhos, ca-
Já Pedro Leitão,(Ó5)em 1906, diz ser de profissão espírita, segundoele, ridade etc. Essa impressão se depreende do texto dos depoimentos. Sempre há
permitida pela Clonstituição. uma frase a mais, além daquela que o interrogador ou escreventepõe no pa-
pel. Os acusados sempre ultrapassam as fórmulas existentes como exercia ilegal-
Os acusados respondem quase sempre que não cobram pelos serviços. mente a medicina ou praticava o baixo espfrftismo, fugindo à generalizaçãoe
A partir de 1925, começa a aparecer no depoimento dos acusadosmais in- às regrasdo texto legal. As perguntasdo interrogatório já vêm carregadasde
formações sobre os rituais que estavam sendo realizados na hora da prisão. conhecimento sobre a prática dos rituais. O delegado pode perguntar para que
Francisco Nogueira da Salva,(ÓÓ)
português, 55 anos, casado, construtor, servemas velas acesas.O juiz pode perguntar a que seita pertenceo acusado.
residentena estradado Pau Ferro s/n', há 25 anos, só assinao nome, diz que: Os acusadosfalam pouco nos interrogatórios e sempreatravés de um ri-
(62) Processo n' 756, caixa 1.959, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. tual discursivo, qqe coloca o depoimento na terceira pessoa,ou melhor, na fa-
la do escrivão. Assim, diz o escrivão: {(Francisco Nogueira disse que ... «Essa
(63) Pro(ôsso n' 778, ano 1901, caixa 29, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
(64) Processo s/n', ano 1904, caixa 1.817, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
estratégiaretira a autoria do depoimentodo acusadoe a colocano escrivão.
(65)'Processos/n', ano 1906,caixa 1.762, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. (67) Processon' 276, ano 1927.caixa 69, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
(66) Processon' 1.005, ano 1925, caixa 1.974. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro ló8> Processon' 2.313, ano 1927, caixa 1.775, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

IZ22 e
yvonne ]Waggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasa!

Este,no entanto,como fala na terceirapessoa,se eximeda responsabilidade


e complexas. Por exemplo, Alexandrina,(71) de 76 anos, natural da Bahia, preta,
da autoria do que é dito. Não importa o que o depoente disser, o escrivão fará declara, em 1929, respondendo às acusações de prática de falso espiritismo:
constar do depoimento. Tal recurso permite conhecer práticas e discursos indi- Há seis anos recebe consulentes, reza quebranto, mau olhado,
viduais e particulares. A sentençados juízes também é dada a partir dessesde- erisipela, cobreiro, e dor de dente, que prescrevechás de ervas me-
poimentos. Assim, o discurso jurídico se constrói com essesfragmentos. dicinais não havendo preço (...) que Joaquim (...) estando ali de fa
Os acusadosfalam obliquamentee o fazem diante da autoridade que pre- vor (...) recebe espíritos de caboclo conhecido por «Pai Joaquiml} e
sideo inquérito e por força das perguntasdo inquiridor. Não são livres para .Santo Antânio», que a espadaarrecadadaé de um rapaz de nome
dizer o que querem, nem quando e como querem. Essatécnica discursiva colo- Paulo (...) que foi soldado da polícia militar (...) que os tambores
ca o interrogado na posição de quem sabe e o interrogador daquele que supos- são de Josefade tal que se ausentou para a Bahia, há muito tempo
tamente não sabe. Tal técnica tem o poder de construir um saber sobre o que (...). (Essaépoca coincide com o final de um período de grande re-
é inquirido porque, eximindo o interrogador da responsabilidadesobreo que é pressãoa cargo do delegado em comissão para a repressãoao baixo
dito, inscreve no discurso jurídico e, no caso em questão, na escrita, discursos espiritismo . )
antes isolados e muitas vezes próprios de grupos minoritários, fazendo circular C)sacusadosmuitas vezesdeclaram estar em transe na hora do flagrante.
crenças, categorias e práticas. talvez pensandoem usar a inconsciência como defesa.
Em 1929, acusado de prática de falso espiritismo, Eugênio José Rufino,(69) Respondendoà acusaçãode falso espiritismo -- [rabalbos de magia negra
natural do estadode Minas Gerais, empregadono comércio, diz que: -- Leopoldo Alves,(7Z)28 anos, pedreiro, alfabetizado, residenteno Morro de
Presentemente se encontra desempregado (...) que a casa de re- São Cardos, declara no interrogatório:
sidência do declarante é de sua propriedade (...) que o declarante
sendo um crente no espiritismo e não de magia negra e como tinha hoje por volta de uma hora da madrugada se encontrava em sua re-
se desenvolvido dá consultas em sua casa só praticando o bem, que sidência quando foi surpreendido pelo comparecimento de três pra-
por isso é que à sua residência aflui grande número de pessoasen- çasda PM tendo uma delas(...) dado-lhevoz de prisão em flagran
te quando em estado de mediunidade; tendo seu irmão conseguido
fermasque ali vão em buscade alívio para seusmales,atendendoo
declarante a todos, receitando como medicamentosbanhos, passese fugir bem como mais duas pessoascujos nomes ignora; que no rede
rezas de acordo com os conselhosde seusprotetores (...) que os ob- rido barracão se encontravam mais de 20 pessoas(consulentes)sen-
jetos serviam para as sessõesde macumba. do que após a diligência foi o declarante conduzido a esta reparti-
ção (...) por ser acusadode praticar alas de magia negra; que o de-
Eugênio José Rufino diz que faz parte de um centro espírita filiado à Fede- clarante por duas vezes esteve na casa de detenção em ambas por
ração Espírita e consegueformular sinteticamente o que é desenho/viço e como ofensas físicas.
são as sessões de macumba.
No final dos anos 20 começa a aparecer com freqüência nos depoimentos O acusado faz a própria defesa, usando termos jurídicos. Afirma seusdi-
a alegaçãode que não se cobrava nada pelos serviços.Assim, em 1929, ao se reitos, dizendo que pratica uma religião.
defender da acusação de prática do falso espiritismo, José dos Santos Porque em absoluto, quando foi preso não exercia o falso espi-
Terroso,(70)natural do Rio de Janeiro, com 68 anos, casado, aposentado, sa- ritismo e a magia negra; porque quando os policiais arrolados como
bendo ler e escrever, diz: testemunhasno flagrante e no inquérito Ihe deram voz de prisão na
Que há mais de 30 anosvem exercendoo espiritismo com pas- casa de seu irmão Leopoldino Alves (...) não estava exercendo qual-
sese rezando as pessoasque o procuram para aliviar os males, na- quer ato religioso; além disso, porque a religião que professanão é
da cobrando pela consulta. aquela que o Código Penal nos seusartigos 157 e 158 qualifica co-
As descriçõesde serviços e tipos de cura se multiplicam. Os depoimentos mo crime. Porque o espiritismo ou qualqueroutra religião no Brasil
dos acusadosficam mais extensos,apareceuma miríade de rituais e cerimónias pode ser exercidalivremente, artigo 72, $ 3', da Constituição, neste
em que estavam envolvidos na hora do flagrante. Talvez haja correspondência particular dá ampla liberdade (...). Porque a prática do espiritismo
entre a diversificação do que é dito e as instituições repressivascada vez mais não constitui crime de espécie alguma como faz certo a jurisprudên-

(69) Processan' 66, ano 1929. caixa 1.76ó, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. (71) Processon' 165, ano 1929,caixa30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(70) Processo n' 307, ano 1929, caixa 1.920, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (72) Processon' 193, ano 1930,caixa1.795, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

IZ24 e
yvonne A4aggfe Medo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

cia pacífica de nossos juízes e tribunais (...) Porque os objetos Que há cercade seis mesesvem dando consultasa pessoasenfer-
apreendidos no Morro de São Carlos e examinados não constituem mas, na residênciade J. Tavares, conhecido como vulgo de Campis-
elementospara a prática da magia negraou feitiçaria, antes alguns ta (...) que grande número de pessoascomparecemàs sessõespara
delesaté são condimentos para alimentação. Porque do exame de se tratar; que ignora se receita remédios e se os consulentespagam
sanidadeprocedido na pessoade Albertina Silva, não se verificou a consulta sabendo que os mesmos levam velas e presentes para os
aplicação de qualquer medicamento nocivo ou não à úlcera que santos, que tudo o que foi apreendido pertence a J. Tavares.
apresentana região pubiana. Pelo que a denúncia deverá ser julga- O outro envolvido no mesmo processoacima citado, J. Tavares, viúvo,
da improcedenteem virtude de se firmar numa falsa prova como pedreiro, alfabetizado, diz que:
sói ser a contida no flagrante e no inquérito. Por isso exercendo co- Há cerca de quatro meses vem emprestando sua residência para
mo exerceo espiritismo com caráter puramentereligioso, não inci- sessões
de baixoespiritismo,por ter uma devoção(...) queentre
diu em nenhuma sanção do Código Penal, ao contrário, exerceum outros médiuns costuma aparecer em sua residênciaàs segundase
direito amplamente garantido pela Constituição Brasileira. Final- sextas-feiras, Iracema Brandão (...) o declarante disse que comprou
mente porque na prova colhida pela polícia não existe a menor afir-
todos os objetos constantes do auto de apreensão.
mativa de que estivessepraticando a magia negra nem tampouco
foram discriminados ou relatados os atos que eram praticados de Os tipos de rituais, linhase vertentesvão então se diversificandono de-
sorte que desta circunstância surge fatalmente a imprestabilidade do poimento dos acusados.Em 1931, dois acusadosde praticar o baixo espiritis-
auto de prisão em flagrante.: mo(74)e a magia negra respondemque festejam o dia de São Sebastião.Ru-
bensJoséde Souza, qualificado em juízo, diz que é funcionário público, sabe
Julgadopor Viveiros de Castro, LeopoldoAlves talvez fossesolto e absol- ler e escrever. Declara que
vido. Seusargumentos são os mesmos do jurista que marcou a posição liberal vive maritalmente com a acusada Carmem Pereira (...) que o de-
na virada do século. Mas a lei e sua concepçãoforam se transformando, como poente e sua amante festejam anualmente o dia de São Sebastião,
foi esclarecido.Ao que tudo indica, na décadaque se segueà Revoluçãode que para essefim convidam pessoasde suasrelaçõespara assistirem
30, prevaleceua posiçãoque consideranecessárioo julgamentodo mau ou a festa religiosa que consiste em cânticos e ritmos africanos que o
abusivo uso dos preceitos religiosos como tarefa dos juízes. A prática do acu- depoente bem como a sua companheira não praticam o baixo espi-
sado é considerada mau ou abusivo uso dos preceitos, interpretada como ma- ritismo, que tem a denominaçãode magia negra, pois não traba-
gia negra, trabalho para o mal, e o acusadoé condenado. lham com espíritosde caboclos, que o depoentebem como sua
Nos interrogatórios, ao responder a acusações, os acusados descrevem companheiranão fazem qualquer trabalho nem receitam beberra-
seusrituais. Dizem, como acima, que estavamem transe, inconscientes,na ho- gens nem dão consultas... Os policiais entraram apreendendodiver-
ra da prisão. Alegar o estadode medíunidadepressupõeque o acusadosente sos objetos que são utilizados durante a dança de estilo africano
que será compreendido pelo interrogador. Ãs vezes,a alegação parte dos pró- O acusadorespondeque não pratica a magia negra, não faz trabalhos
prios policiais que fazem a prisão (ver adiante).' Em geral, essadeclaração não nem pratica o baixo espiritismo, não trabalha com caboclos. Lavrando-seda
vem isolada. O acusado diz que estava com muitas pessoasou numa sessão,o acusaçãode fazer o mal, no entanto, não nega que possa haver o tal baixo es-
que significa que o ritual era compartilhado e que pode haver testemunhasa piritismo e a ta] magianegraou trabalho. Além disso, descreveum ritual em
seu favor. homenagema um santo, o qual consistede cánficos e ritmo africanos, o que,
para os acusadores,é coisa de baixo espiritismo, feitiço e magia negra. [)izen-
Em 1930, respondendoà acusaçãode prática do baixo espiritismo(7S)
dois do que não trabalham com caboclos, está afirmando que pertencema outra
médiuns definem seus caboclos como da /inca de umbanda. A acusada de Mi- vertente, talvez africana.
nas Gerais, de cor preta, analfabeta, diz
Carmem Pereira,natural da Bahia, viúva, não sabendoler e escrever,re-
que há cerca de seis mesestem o dom da mediunidade, sendo pete o depoimento do companheirono processo acima, falando em rito
seu protetor o {íCaboclo Rei Congo>>da linha de umbanda que é in- africano que consiste de cantos e danças e diz que hoje <<nomomento em que
conscientee ignora o que faz quando em estado de mediunidade. cantavam e dançavam foram surpreendidos pela polícias .

(73) Processo n? 172, caixa 1.897, ano 1930, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. (74) Processon9 247, caixa 1.853. ano 1931, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

]2Ó e
yvonne À4aggfe Medo do feitiço; relaçõesentre magiae poder no Brasil

Os depoimentos revelam que há, por parte dos acusados,a necessidadede dos a descrevero que faziam na hora do flagrante. Em 1933, no Morro do
se defender da acusação de trabalhar com caboclos. A defesa desvenda uma Pinto, o conhecido macumbeiro, Paulo,(7Ó) diz que
possível acusaçãode feitiçaria àquelesque trabalham com caboclos. Trabalhar de fato pratica a caridadecurando as pessoasque Ihe procuram
com caboc]ossignifica, na linguagem do santo, ser macumbeiro. Os caboclos porque tem estepoder que Deus Ihe deu e assim encontrava-seem
são cultuados hoje na umbanda e foram figuras importantes no candomblé de sua residência na prática da caridade, tencionando o mesmo sacrifi-
caboclo como era chamado o ritual da Bahia. Dizendo-se do rito africano, os car um carneiro para obter de Deus as graçasquando foi preso.
acusadostalvez quisessemdizer que eram puros, alegar sua pertencençaà Até aqui se vê como se relacionam acusações e respostas dos acusados.
legítima tradição dos orixás. Segundoa literatura (ver Danças,1983, p.e.), no Parecehaver também coincidência entre a fala cada vez mais complexa do
Rio, os sinais da africanidade eram justamenteaquelesque deslegitimavam. acusadoe a diversificação de categorias acusatórias, paralelas à maior comple-
Ao se apresentarem como sendo do rito africano, os acusados deram argumen- xidade das instâncias e instituições especializadasnessetipo de repressão.
tos aos juízes encarregados de eleger os verdadeiros preceitos do espiritismo.
Se não falassem nesses ritos e linhas, talvez não houvesse como classifica-los. Assim, em 1937, quando é criada a Seçãode Tóxicos e Mistificaçõesda
I' [)e]egacia Auxiliar, as acusações começam a definir o estado do acusada
Isso aponta para a hipótese de que a repressãoconstitui o campo religioso. Os
na hora do flagrante e muitos acusadosdescrevemesseestado em seus depoi-
juízes, em suas sentenças, se apropriam dessesfragmentos de discurso e o cam-
po vai então sendo constituído e conhecido. São também essesfragmentos que mentos. Três acusadas, respondendo à acusação de prescrever remédios no
Centro Espírita São João Batista, se definem como praticantes do alto espiritis-
a polícia utiliza quando apreende objetos. (77)
Apesar de guardar aspectos importantes da confissão (ver Foucault, 1985),
a fala oblíqua dos acusadosrestringe seusdepoimentos, que por isso difere da Mana Antonia, a primeira acusada,diz
confissão inquisitorial. Na confissão o réu que sofria processo inquisitorial fa- que é médium e freqüenta o Centro Espírita São João Batista.. que
lava na primeira pessoae devia confessarseucrime. No depoimentocontem- somentepratica a caridade e alto espiritismo (...) hoje, de fato esta-
porâneoo acusadodeve defender-se e não fala na primeira pessoa.Sua fala va mediunizada atendendo a Sebastião Salva (...) que a declarante
vai também se apagando no processo porque deve recorrer a um advogado tem como protelar o 'Enviadoda Luz' (...) é mero instrumentoda-
que fala por ele. quele espírito, que se a declarante prescreve o purgante foi porque
o espírito já referido falou por intermédio de sua boca.
De qualquer modo os depoimentosrevelam fragmentosdas concepçõese
crençasdo acusadoque não deveconfessaro crime. O acusadoestásempre Joaquina Mana da Conceição diz
negando que faça magia negra. A negativa, é claro, põe em evidência concep- que é médium espírita, frequentando o Centro (...) que é portadora
çõesde magia benéficae maléfica, religião e ritual divinatório. Mas os acusa- da declaranteo espírito 'enviado da Nossa Mãe Dolorosa', espírita
dos perdem a voz nos processos, quando o advogado fala por eles, dificultan- esseque se serve da declarante para praticar a caridade sendo que a
do ainda mais a apreensãode suaversão. declarante somente serve de instrumento
No caso aqui discutido, a instituiçãode combateaos feiticeiroslança mão Mana da Penha Santos, a terceira acusada, diz
de outra estratégia de construção do saber sobre a magia, a perícia dos obje- que é médium, freqüentandoo Centro Espírita (...) que é protelar
tos. Os peritos, policiais, são os mediadoresentre acusadose juízes. A partir da declaranteo 'Enviado de São Jorre', (...) não foi ela, mas sim
deles, se constrói o saber sobre a magia (ver próximo capítulo). seuprotetor que seserve da declarante.
Pelos fragmentos vê-se que não se acusa só espíritas, umbandistas, ma- As acusadasfalam de sua crença, explicam algo que ainda não está escrito
cumbeiros e africanos. Também se acusa quem /ê mão e adívinba o futuro pe- e vão construindo no discurso jurídico as categorias e classesde culto e ritual.
/as cartas. É o caso de Madame Carmem(7S) acusadade dar «papéisdesvalio- Não é muito diferente a forma de os policiais descreveremo ritual que presen-
sos à guisa de talismã e de prática de uma das modalidades de magia negral. ciaram no momento da prisão.
Madame Carmem responde que é professora de grafologia e psicologia experi-
mental
e Seitas,rituais e locais onde se praticam esses<<crimes>> tambémse am-
pliam. Em 1938, num prédio na Rua Automóvel Clube, é presoem flagrante
Aparecem nas acusaçõesdiversas formas de culto e de rito. Os macumbei-
ros acusadosde fazer trabalhos e estar encarnadosem moça/mano são obriga- (76) Processon' 487. ano 1933.caixa l0.861, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
(75) Processo n' S2A, caixa 59, ano 1932, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (77) Processo nP 1.629. ano 1937. caixa 1.822, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

e ]29
rvonne À'íaggíe
Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

Quem mistifica é moralmenteculpado. Por outro lado, serve de anteparo


um indivíduo praticando baixo espiritismo, dando passes,fazendodespachose ou instrumento da verdade suposta. Se ele mente, há quem verdadeiramente
mediunizado com o caboclo oxalá . receba o espírito.
JoséCardoso da Luz Salva, natural da Bahia, com 34 anos de idade, casa- As acusaçõesultrapassam as fronteiras das casas. Não apenasos lares são
do, marceneiro, residente à Rua Marquês de Queluz n' 189, Irajá, sabendoler invadidos pela polícia na busca de feiticeiros. Pessoasfazendo oferendasem
e escrever diz encruzilhadas, becos e esquinas também vão presas, acusadas de trabalhar pa-
que é espírita há muitos anos e está organizando uma tenda espíri- ra o mal. Olivia Batista é presa na encruzilhada quando colocava um «volu-
ta;, que (...) é proprietário do erbanário 'coração de Jesus'(...) que mo>, vulgarmente conhecido como despacho.(78)Olivia diz que estava fazendo
o declarante conhece a testemunha Altiva Ribeiro desde sexta-feira uma oferenda a São Jorre, para se restabelecerde uma doença do útero. Os
(...) para que o declarantea tratassede uma enfermidadee a me- peritos dizem que estava fazendo feitiçaria, ebó.
lhorassede vida económicapor meio do espiritismo,tendo o decla- Os réus sempre falam usando termos da crença, que todos parecem com-
rante respondido que de moléstia não Ihe atendia e quanto à sua vi-
preender, havendo oportunidade de debates e divergências durante os proces-
da ela, Altiva, teria que compraro material arrecadadodas mãos sos
dela pelo policial (.....)com o qual o declarantefaria uma simpatia
por ocasião da festa de Nossa Senhora de Santana.... De um lado, os mesmos discursos circulam entre estratégiasdiferentes.
Uma acusaçãorecorrente a partir da décadade 30 é a de mistificador. Os Juízes,promotores e delegados,por exemplo, devem conhecer para controlar e
acusadossempre respondem a essaacusaçãodizendo que são espíritas e rece- têm, portanto, outra estratégia.'[)ominadores,co]ocam-seem outro eixo face
aos acusados. De outro lado, discursos diferentes podem ser formulados por
bem instruções de espíritos superiores. Em 1939, denunciado como mistifica-
dor, Olavo Alves da Silva, brasileiro,comerciante,residenteà Rua Dr. Mano pessoasque têm estratégiassemelhantes.É o que se viu entre os juízes que,
mesmo com estratégias semelhantes, têm concepções diferentes sobre magia e
Viana, Niterói. diz que:
C) grupo foi por ele fundado em 1936 e por meio de psicogra- crime. No direito penal formulam conceitos liberais ou positivistas, o que os
fias, recebeu o desenho de instruções dos espíritos superiores, para coloca em planos discursivos diversos.
a feitura dos aparelhos que se encontravam nesta delegada os quais Os mesmosdiscursospodem, portanto, aparecer em planos opostos, ou
tinham o fim de levar os passes magnéticos e espirituais às pessoas no mesmoplano com sinaisinvertidos.
necessitadas, sem que fosse tocado nos corpos das mesmas com as A figura a seguir descreve as relações possíveis entre estratégias e discur-
mãos dos médiuns; que àquele tempo eram também prescritas recei- sos diversos e similares.
tas o que não é mais hoje. Que os aparelhos não se encontram
anualmenteem funcionamento, visto que estão para serempesquisa-
dos por médicos e para por eles serem prescritas as receitas, mas
não tendo médicos que isto queiram fazer não estão os aparelhos
em funcionamento.
O acusado diz que não mistifica, não finge, mas pratica uma religião, sen-
do membro do Grupo Espírita Estudante da Verdade e tendo recebido mensa-
gem psicografada.
A acusaçãode mista/ícar, de fingir, é recorrente nos terreiros e também no
discurso jurídico. Juízes, promotores e manipuladores técnicos usam essa e ou-
tras categorias do discurso religioso sem hesitar. Adiante se discute isso com
mais vagar. Por ora, vale notar que essasemelhançano discursode acusadose
acusadoresrevela uma discussãocoletiva da verdade do transe e das formas de
se estar em transe. Os acusados sempre alegam que verdadeiramente se encon-
travam em estado de mediunidade ou que estavam concentrados (prestes a en-
trar em transe). A alegaçãode falso transe assustamais, o erro seria duplo. Figura ll-l Relações entre estratégias e discursos
Ser mistificador é mais grave que ser médium. O acusadofinge'sef algo já
considerado criminoso. A moral ou a ética da acusaçãoé duplamente reforça-
(78) Processon' 156, ano 1930, art. 157. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
da: o acusado,além de ser criminoso, mente.
e IZ3:1
]30
yvonne A4aggfe
Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

No eixo horizontal coloca-sea estratégiados juízes, dominadores, por on- bém fomentam e incitam a prática desses rituais, que se socializam e expan'
de correm discursos divergentes. No eixo vertical, a estratégia dos acusadosou dem. Muitas vezes, o médium ou pai-de-santo parece fazer propaganda de sua
acusadores, em geral dominados, no qual circ.ulam discursos semelhantes com casa, consultas etc. A divugação pelos jornais dos processos criminais também
sinais invertidos. O acusador diz que o acusado não é médium verdadeiro ou é uma forma de estimulara prática dessescultos. Desdeo final do séculoos
que é feiticeiro. O acusadorespondeque não é feiticeiro e que é verdadeiro jornais falam nos processos,descrevendointerrogatórios,flagrantese senten-
Mesmo sendo de classesdiferentes, acusadose acusadoressituam-se no mesmo a
eixo de discurso. ças
As versões das testemunhase dos policiais esclarecemainda mais o ponto
O discursopositivista se cruza com o dos acusadose acusadoresna medida que se quer enfatizar: que a repressão não barrou o desenvolvimento das cren-
11 em que cria uma teoria que hierarquiza sincronicamenteverdadeiros e falsos. ças.Ao contrário, faz parte do desejode saberque se inscrevetambém.no de-
superiores e inferiores. O discurso liberal cruza com o de acusados e acusado-
sejo de poder. Inscrevendo as crenças, construídas nesse embate, no discurso
res na medida em que constrói uma igualdade entre pólos opostos, uma hierar-
jurídico, constrói-seum imenso controle sobre todos os envolvidos, que pas-
quia diacrónica. Falsos, feiticeiros e mágicos pertencem ao passado e tendem a sam a ter suas idéias escritas, socializadas, divulgadas e disciplinadas.
desaparecer no futuro.
Os juízes da vertente positiva não pensamde modo muito diferente dos
acusados. Todos acham que se deve coibir os espíritas maus, abusivos e bai- 12 A versão das testemunhas
xos. A versão liberal parece estar sempre em segundo plano, quase como um
recurso da defesa,mas recurso em última instância. Geralmente, fala-se em «li- Pelasregrasprocessuais,na fase do inquérito policial, é obrigatório que
berdade religiosa», mas é o advogado quem fala. Os acusados, conscientesde cinco testemunhasprovem o flagrante, depondo posteriormente perante o juiz.
que são vítimas de acusaçãode prática de magia maléfica, semprerespondem Por força da desorganizaçãoburocrática, muitas vezesas testemunhasdesapa-
que trabalham para o bem. receme há necessidadede se constituir novas. No entanto, em geral, são as
Assim foram sendo construídos os discursosnessecampo, que se passaa mesmaspessoasque depõemduas vezes no processo. Pode-seouvir mais de
denominarde campo da feitiçaria. Juízese acusadossabemque por trás do cinco testemunhas,mas geralmente o juiz se além às cinco obrigatórias.
processo, estruturando-o de forma subjacente, está uma acusação de usar mal As testemunhas depõem acusando ou defendendo o réu, quase sempre
os poderesocultos, produzindo malefícios.Algumas pessoas,portanto, se pessoasque estavamjunto ao acusadona hora do flagrante.Assim, os clientes
vêem na obrigação de hierarquizar os maus, maléficos e mistificadores no mo- levados à delegada na hora em que prendem o acusado, invariavelmente são
mento presente, outras, acreditando em que a hierarquia lá está dada pela his- testemunhas.Os policiais que fazem a prisão são as outras testemunhasarrola-
tória, acham que não se deve discutir essassobrevivências. A moral das pri- das, entre as quais às vezesse encontram médicos dos Serviços de SaúdePú-
meiras situa-seclaramentedentro da ótica do sistemade feitiçaria, e das últi- blica. Há diferenças nos depoimentos dessastestemunhas, o que se tenta mos-
mas supõe uma ética liberal. trar a seguir
Revelados, rituais, maneiras de curar, nomes de entidades, tipos de devo- Antes, porém, vale dizer que, do ponto de vista das testemunhas,os pro-
ção, ganham legitimidade e, sobretudo, são inscritos no jargão e no domínio cessosrepresentamuma pequenamostra da saúdedo povo e das formas de
do judiciário e da polícia. Apesar de não seremtão completoscomo as confis- pensa-la.'É inacreditável a quantidade de pessoasque, acreditando-sedoentes.
sões inquisitoriais, essesinterrogatórios contêm elementos das confissões se- vai buscar alívio nessescentros, curadores e médiuns. Muitas vezesdescrevem
gundo Foucault (1985): são instrumentos de construção de um saber sobre as seupériplo infrutífero na ânsia de aliviar a dor e a melhora. depois do encon-
práticas em questão. tro com o acusado. Há casos de peritos médicos que examinam lavadeiras
Em suma, nos processosos acusadosfalam pouco, pois são defendidos exaustase anêmicas, concluindo que o tratamento a que se sujeitaram faz mal
por advogado e têm sempre que responder a perguntas feitas por delegadose Nem todas as testemunhassão pobres. Há clientes ricos e algumas vezes os
juízes.(79)No entanto, no esforço de dar respostas, acabam dizendo coisas que «manipuladores técnicop} (Correa, 1983) frisam essefato, lastimando que pes-
não estavam na boca do investigador, que constrói e inscreve na instância soasde bem, cultas, se sujeitem a médiuns ignorantes.
jurídica um saber sobre as crenças.Os depoimentosnos interrogatórios tam- Dores que não são físicas também fazem parte da justificativa dos clientes
quando testemunham, como o sofrimento dos amantes abandonados, das pes-
(79) Sobre a participação dos acusados nos processos, ver Fausto (1984); Correia (1983); Chalub soascom a vida arrasada,a ansiedadediante da ambiçãono trabalho ou na
política.
e ]33
yvonne ÀÍaggie M

Vivi três mesesno meio dos feiticeiros, cuja vida se finge des-
As perguntas feitas sem dúvida levam as testemunhasa descreversuas conhecer, mas que se conhecena alucinação de uma dor ou da am-
aflições(ao)e limitam seu depoimento. Inúmeros depoentes,porém, afirmam bição... (ibidem, 40)
que ali estão porque acreditam no espiritismo e fazem questão de descrever em
que e por que acreditam. As testemunhasque aparecemnos processos,depondo,são pessoaspo-
bres, trabalhadores, pretos ou migrantes estrangeirosou empregados,mas
Os depoimentos também trazem pistas sobre como as pessoasforam leva- também ricos senhorese senhoras, patrões. Seguem-sevários exemplosde de-
das a buscar aquele médium específico ou porque estavam presentes na hora
poimentos de consulentes.
da batida policial. Muitos dizem que estavampo} acaso.lam passandona ho-
ra. Outros, que foram por curiosidade. Mas a maioria diz que foi porque al- As testemunhas, quando são clientes do acusado, descrevem o que vieram
fazer, dizendo, por exemplo, que a visita tinha o <Cintuitode melhorar a vida
guém disse que lá existia um maravilhoso curandeiro ou médium.
Os vizinhos que depõemdescrevema relaçãodos médiunse dos rituais
com a vizinhança.
O disse-que-me-disse
entre as testemunhasé o forte dos depoimentos.Mui-
tas das testemunhasque acusamsão clientese vizinhos, o que reforça a idéia porque ele <<dásessões espíritas)> .
de que o Estado intervém em conflitos próprios do grupo e legitima facções ao Os clientes descrevemsua história:
condenar ou absolver acusados.
Sentindo-semal de moléstia de fígado, queixou-sea diversos
Descrevendo e transpondo para o universo jurídico acontecimentos corri- médicos que o medicaram sem que os remédios Ihe.fizessem.melho-
queiros, as testemunhastransformam as práticas de uns poucos clientes e vizi- rar de saúde, clue com isso gastou dinheiro sem obter resultado...
nhos em coisa pública. A transformação, ou transposição, se dá de forma tam- cheio de esperanças tomou o conselho(de um amigose foi à casa
bém estrutural, porque os depoimentossão transcritos com a mesma técnica de Ferraz e com duas consultas melhorou o seu mal.(8i)
discursiva do depoimento dos acusados. O escrivão transcreve o depoimento
como se não fosse responsávelpelo escrito. Ao lado do distanciamento, essa Essesdepoimentos, que elogiam os poderes do acusado e descrevemsuas
curas. contraditoriamente servem para incriminar o réu, quase sempre preso
técnica impõe constante incorporação do discurso do depoente na escrita da
escrivão.Não há erro na transcriçãode conceitose categoriasda crença. porque alguém o acusou. Ao indiciar o acusado, o delegado fala as mesmas
frases das testemunhas: {as benzeduraspela frente e pelas costap} a que se re-
ferem as testemunhasnão são as únicas ações de que ele lança Jnao pois fica
13 Clientes e vizinhos evidente que o acusado'«receitava drogas de ação terapêutica»,(82)por exem-
Plo
O acusadoem questão,(83)
o citado Ferrazdo Andaraí, respondea proces-
NanaRodrigues dizia no final do século e na Bahia que no Brasil «todos se so no final do século, sendo incriminado pelas informações fornecidas por
curam com folhas do mato)>.A expressãosignifica que todos aqui acreditam aqueles que queriam inocentá-lo e que, na verdade, elogiavam seus feitos. O
nas curas praticadas em terreiros, por curandeiros e não-médicos, conhecedo- delegado, ao incriminar õ acusado, entende o que significa benzedurase díz
res de remédios da natureza. O mestre maranhenseafirmava que a crença era que se fosse só isso talvez o inocentasse, mas as testemunhasfalam de remé-
de toda a sociedade.Nos depoimentosdas testemunhaspresasem flagrante fi- dios e, sobretudo, dos poderesde cura do acusado.
ca evidente essaafirmação, que corrobora a impressãotão bem descrita por Os vários agentesque falam no processoconversamde forma aparente-
Jogo do Rio: mente tranquila. No caso, as testemunhasde acusaçãosão médicos da Direto-
Pelo corredor estreito desfilava um resumo de nossa sociedade, ria de Higiene e Assistência Pública, também responsáveis pela denúncia.
Mostram-se espantados com a
desdehomens de posição a prostitutas derrancadas, com escala pe-
las criadas particulares (Rio, 1906:40).
João do Rio intuiu, com a maior propriedade, também os motivos que le- (81) Ver Processon' 571, caixa 2.002, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.Ver relato dessepreces
se no início do Capítulo ll
vavam as pessoas a buscar esses {(mercadores da paspalhico}.
(82) Idem.
(83) /bídem
180) Vector Turner (1968) certamente descreveria essas práticas cama cultos de aflição
e ]35
]34
Yvonne A4aggie Medo do feitiço: relaçõeserltre magiae poder no Brasi}

procissão de indivíduos que vão procurar recursos médicos junta Henrique da Costa Macedo, 27 anos, brasileiro, solteiro, empregadodo
do referido acusadoprincipalmenteàs segundase sextas-feirasem comércio, morador à Rua Visconde do Rio Branco, diz que estava de visita à
que os bondes seguem repletos de doentes na maior parte do sexo casado acusadoe que «sabeque os vidros e ervassão para remédiop>.Cita
feminino e bem assim de crianças...(Õ4) um doente de nome Manoel, que mora no Morro de Santa Tereza e que rece-
A cena descrita pelo médico que ao mesmo tempo denuncia e testemunha bia remédios.(Õ8)
e comum na experiência contemporânea. Ainda hoje bandos de pessoas procu- A amásia, brasileira, solteira, diz que vivia há muito tempo com o acusa-
ram um afamado médium curador (ver o casode Seu Seteda Lira na segunda do e que sabia que os «vidros e as ervas são para remédios fornecidos a doen-
parte deste trabalho) tep> .(89)

Voltando ao processocitado acima, o advogadoarrola mais uma testemu. Depõe ainda o cabo de esquadra da Brigada Policial do 2' Batalhão, que
nha, desta vez gente importante. O coronel da guarda nacional Josino do Nas- diz que o acusadoé curandeiropor profissão,fornecendoremédiosaos clien-
cimento Ferreira da Silva, carioca, funcionário público aposentado, diz tes. Afirma conhecer o tal doente ManDeI, do Morro de Santa Tereza.(ÇO)
que conhece o acusado há muitos anos sempre como um homem No processocitado, o cabo que prendeu o curandeiro aparecefazendo
honrado e trabalhador e respeitaa maneirapela qual ele pratica o acusaçõese prestandotestemunhoincriminatório. O disse-que-me-disse entre
ato da seita espírita de que se revela adepto convicto (...) que pode testemunhasleva a suspeitar de que os interrogatórios serviam também para
dizer em sã consciência que ele não se inculca como curandeiro propiciar delaçõese estimular fofocas, coisa freqüente no cotidiano dos terrei-
No processodo <cCurandeiro
do Morro de SantoAntânio)} apareceoutra ros e centros espíritas. Neste caso, por exemplo, o delegado intima Manoel e
característica recorrente. A fofoca e o disse-que-me-disseque acaba envolven- sua mulher, Carmemde Souza, que aparecemnos depoimentosdo cabo. A
do terceiros através de um mecanismo comum em terreiros e centros espíritas primeira nega ter se tratado com o acusado, mas o tal Manoel, português,40
hoje. Os juízes e delegadosaceitam o disse-que-me-disse,que se transforma em anos, casado, negociante, morador de Santa Tereza, diz que sua mulher teve
instrumento do almejado conhecimento sobre a crença. As testemunhasse di- uma {'conferência» com o acusado e que este forneceu-lhe algumas ervas e ou-
videm; umas negam que o acusado faça remédios e cure doentes, outras afir- tros medicamentos
mam que cura pessoas.No inquérito, a amante do acusadodiz que ele é cu- Em juízo, os depoimentos ficam mais reveladores.
randeiro, mas em juízo nega essedepoimento.(85) JoséRodrigues, o cabo de esquadra, repete o depoimento inicial, dizendo
Cristiano Silva, brasileiro, 16 anos, residenteno Morro de Santo Antânio. que contou ao delegado o que Ihe foi confidenciado por ManDeI e acrescentan-
diz que mora na casado acusadoe que é alfaiate; declaraque em sua casa do que encontrou vários <lbichossecos»e garrafas que o acusadodizia que
nunca viu continham <(águabenta das Sete lgrejan}. [)iz que Manoe] ]he contou que o
fazer-se remédios e nem irem doentes curarem-se, não sabia para acusadotinha tentadomatar suamulher. O tal ManDeI,o do Morro de Santa
que serviam as ervas e os demais objetos.(8Ó) Tereza, diz que o depoimentodo cabo é falso, que sua mulher se tratava com
o acusado, mas que ele nunca tentou mata-la. Outra testemunha, JoséAlfredo,
PaschoalFrances,francês, 62 anos, solteiro, trabalhador, <(moradoragre- repete o depoimento do cabo e diz que o acusado ia matar a mulher <<como
gado na casado acusado»,diz que mora com o réu e a amásiahá muito tem- curandeiro >>
.(9i)
po e nunca viu fazer remédios. Conta que há dias foi à casa do acusado «um
velho que veio de fora, e chamado Pedro, com diarréia». O réu o mandou à Esseprocesso, como outros, revela como as testemunhas acabam denun-
6' Delegada para requerer guia de internamento na Santa Clasade Misericór- ciando o acusado, sendo impelidas, no depoimento, a falar contra o acusado,
dia. O homem morreu na Santa Casa, mas a testemunhanunca viu o acusado mesmo podendo ou querendo estar do seu lado. Estimular o disse-que-me-disse
Ihe dar remédio.(87) é uma técnica de arrancar confissõesdas testemunhasque não difere muito das
técnicasinquisitorias. Nos dois casos, as pessoaspróximas ao acusadosão as
que revelam como agiam os feiticeiros.
184) Ver Processon' 571, caixa 2.002, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Ver relato desseproces-
so no início do Capítulo 11. '
(88) /dem
la5) JuvêncíoSerafim do Nascimento,Processon' 596, ano 1898,caixa 1.997, art. 158, Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro. Ver relato desseprocessono Capítulo 1. ' (89) /dem
18ó) /dem. (90) Idem
187) /dem (91) /dem
yvonne fWaggie fdedo do feitiço: relaçõeser\tre magiae poder no Brasil

Há testemunhas que acusam intencionalmente, como no caso intitulado Mana Mana,(ÇÓ)


moradora da Penda, não sabendoler nem escrever,des-
«como diabo no corpo em Madureira>,da já citadasenhorinhaOsória creveu seus males dizendo
(Capítulo 1). Ela inicia o processo dizendo que o acusadotinha dito que se não estar muito doente sofrendo de uma fractueza profunda (...) que o
desseo dinheiro para comprar o remédio que iria cura-la em 13 dias, morre- tratamento de sua enfermidade, a declarante vem fazendo por meio
ria. O depoimento dessa testemunha leva à instauração do processo e induz a de preces e rezas na 'macumba' (aspas do escrivão).
amante do acusado a denuncia-lo por extorsão e maus tratos.(92)
Há testemunhasque depõemcontra patroas, acusando-asde aros de feiti- Há testemunhas,(97)
por exemplo, que descrevema especialidadedo acusa-
çaria, caso do processo {lPipocas e azeite-de-dendêfazem feitiçaria no Casteli- do, dizendo o que o acusado fazia; rezava mau oleado e ventre virado, por
nho da Rua do Lavradio)>,que estabeleceuma guerrasemelhanteà travada meio de um copo com água.
nos terreiros.(93) Como disse Jogo do Rio (1906), essescorredores estreitos guardam um re-
Há clientes que descrevem exaustivamente suas aflições. sumo da sociedade brasileira, incluindo homens de posição, como o consulente
Um italiano(Ç4)com 36 anos, casado,morador à Rua Dom ManDeI,sa. Antonio Casiglia, natural da França.(98)Com 57 anos, casado,industrial, sa
bendo ler e escrever, díz que bendo ler e escrever, morador à Rua Ampaes, 19, Cascadura, ele declara que
estandodoentehá um mêse como não obtivessemelhoracom re- fora para se consultar quando viu o investigador (...) dar voz de
médio de médicos foi inculcado que na casa do Pau Ferro em Jaca- prisão, que o depoenteprocura o acusadohá muito tempo, o que
fez hoje, tendo o mesmo dado passese rezado pois o depoentevem
repaguá, havia um curandeiro chamadoNogueira. Dirigiu-se para sofrendo dos rins e do coração.
esta casa e quando assistia aos trabalhos, aos dez minutos mais ou
menos, a polícia (...) deu-lhe voz de prisão e flagrante. O advogado que defende Terroso, o acusado em pauta, apresentaum ates-
Diz ainda que Nogueira estava tado do médico do industrial francês, dizendo que ele está
sentado em um tamborete praticando os trabalhos e em redor gran- desde muitos anos sob tratamento médico, o que segundo o advo-
de quantidade de velas acesas. gado prova que as rezas não tinham objetivo curativo excludente
da ação técnica e terapêutica dos médicos, regularmentehabilita-
No processo em pauta, o réu era português, acusadode praticar bruxaria. dos
O italiano narra sua aflição em relato muito comum nos terreiros até hoje. O industrial foi buscar alívio para a aflição, o que prova que na alucina-
Passou por muitos médicos sem conseguir curar seu mal, até que encontrou o ção de uma dor, não apenaspobres e ignorantes, mas tambémpessoasricas,
acusado. Como muita gente até hoje, o italiano acabou buscando as <(folhas conhecem os curandeiros.
do mato>>
Em outro processo,(95)
a consulenteJulietada Silva, brasileira.viúva. 56 Há pessoasque buscamalívio para outras dores, como a mulher(9Ç)que
anos, doméstica, elogiando os poderes de Tio Julio declara que diz que
Estando sofrendo (...) e sabendo que na Rua Dorothea Eugenia, Ali apareceu por se encontrar doente, desempregada, vindo a
139, um indivíduo (...) fazia curas maravilhosas (...} dirigiu-se para saber por intermédio de uma sua conhecida que a acusadaexercia o
lá a fim de ser consultada (...) que cerca de 12h30m, se achava sen- curandeirismo como rezadeira e assim poderia melhorar a situa-
tada numa cama, num quarto, sendo rezadapelo acusadopresente ção
(...) quando ali entrando funcionários da polícia. E os que vão por mera curiosidade, na busca de serem atendidos por
fritos de cabos/os,como dizem algumas testemunhas.Há testemunhasque
descrevem o ritual, embora afirmem que estavam passando pelo local por aca'
(92) Antonio Alves Lopes, Processon' 691, ano 1898, caixa 1.859, Arquivo Nacional, Rio de Ja
negro, citado no Capítulo l.
(96) Processo n' 66, ano 1929. caixa 1.766. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(93) Processon' 756, ano 1899, caixa 1.959, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, citado no Capítu-
lo l (97) Processon' 165, ano 1929. ares.157 e 158. caixa 30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(98) Processon' 307, ano 1929. caixa 1.920, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(94) Processon? 1.305, ano 1925, art. 157, caixa 1.974, Arquivo Nacional, Río de Janeiro
(99) Ver citaçãono início do Capítulo 11,ProcessoAntonieta de Souza,Arquivo Juízoda 3? Vara
(95) Processon' 2.313. ano 1927, caixa 1.775, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Criminal, Processo n' 369, 1941

e :139
Yvonne JbÍaggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}
l
se e se sentiram atraídas, caso do alfaiate(loo) residenteem Quintino Bocaiuva delegado até a casa n' 111 da Praça da República. Ele diz que o acusado esta
sabendo ier e escrever. Diz va em companhia de uma senhora «praticando consulta de espiritismo, o so-
nambulismo,a magia ou coisaque o valha». De um modo geral, os policiais
que passava pela Rua Quinhão quando sua atencão foi despertada são indelicados quando se referem aos presos e chegam a empregar termos
por uma jazz band que tocava no fundo de uma casa; que o depoen. grosseiros.
te entrando no portão da casa89, da mesmarua, dirigiu-se aosfun.
Alguns policiais são testemunhasde processos durante todo o período que
dos onde entrou por engano em uma pequenasala que, uma vez
ali, alguém disse ao depoente que se quisesse tomar parte da sessão
vai de 1927 a 1940. Um suplente do delegado(i03) depondo como testemunha,
diz
tirasse o calçado dos pés para entrar no recinto (...) que o depoente
não sabendo bem o que significava aquela festa, tirou o calçado. que deu voz de prisão à acusada(...) no momento em que esta ti-
No mesmoprocesso,outra testemunha,Mana de Oliveira, moradorana nha por consulente Mana dos Prazeresque se queixava e procurava
rua onde sedeu a flagrante, analfabeta,diz que remédio para combater uma gripe de que estava atacada por meio
de 'passes' e rezas (aspas do escrivão).
conhece a acusada que hoje (...) estava na casa dos acusados pre-
sentesem uma sala (...) assistindoa uma festa que ali se realizava Outro investigador, testemunha no mesmo processo, diz
uma devoção a São Sebastião, que na sala (...) tinha um oratório que no momento da prisão a acusadaexerciailegalmentea medici-
com santos de diversos tamanhos (...) na e iludindo a boa-fé da consulente (...) dizia cura-la de uma forte
As duas testemunhas descrevem o ritual com envolvimentos opostos. A gripe (...) que as consultas em número de nove cobradas a razão de
primeira diz que foi lá por acasoe a outra estavalá por devoção.Assim se vê 10 mil réis.
que nem todos participam igualmente da crençae dos rituais. Os policiais descrevemminuciosamenteos ritos. O investigador de
Os vizinhos tambémdepõeme descrevemos rituais como é o caso de polícia(i04)n' 484, natural destacapital (RJ),61 anos, casado,sabendoler e
uma das testemunhas do processo do «Cabo-verdiano, profissão curandeiro» escrever, declara
paradigma de condenação descrito no Capítulo 1. 0 depoimento é ambíguo e que hoje, por volta das 15 horas (...) em um quarto prendeu
pode ser tomado como versão arrancada à testemunha. Um vizinho do cabo- em flagrante o acusado (...) que conhece e sabe se chamar Antonio
verdiano diz que o acusado estava Josédos Santos Terroso, na ocasião em que praticava o falso espiri-
em sessãode espiritismo tendo a casa cheia e que essasreuniões tismo e o exercícioilegal da medicina por meio de passese rezas,
acontecemsegundase sextas-feiras...diz ainda que inúmeras mulhe- tendo como consulente a mocinha (...) que ali fora alegando sofrer
res que freqüentam a casa do acusadodali se retiram comentando a de moléstia da pele (...) que além da consulente acima referida, se
forma por que ele administrava remédios ou coisa que o valha.(iol) encontravam na casa do acusado várias pessoasque esperavam a
vez para serematendidas (...) que o depoenteconheceo acusado,
Além de descrevero que vê, revelando intimidade com o que se passa na
casa do vizinho, a testemunha descreve também o que ouve. Nessa descrição
podendo afirmar que ele explora a credulidade pública dizendo-se
senhor de poderes sobrenaturais capazesde curar moléstias incurá-
torna públicas situações bastante individuais e particulares vens
José Tuyuty Batalha, outro investigador famoso, diz no mesmo processo
14. Policiais depõem que conhecia o acusado e estava presente quando
Os policiais que fazem a prisão são sempre testemunhasdo flagrante e estefoi presoem um quarto da casan' 47 (...) praticandoo falso
descrevemnão só a prisão do acusadocomo o que estavaele praticando na espiritismo e exercendo ilegalmente a medicina por meio de passese
rezas (...) e que o acusado presente explora a credulidade pública,
hora da ocorrência.
No casodo {cEspírita
sonâmbulo,
por Evaristode
Moraesl},(102)a primeira testemunha é o inspetor seccionarque acompanhou o ilaqueando a boa-fé dos incautos, dizendo-se possuidor de dons so-
brenaturais o que é acreditável por muitos dos seusconsulentes de
(100) Processo n' 247, ano 1931, caixa 1.853, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. pouca cultura
1101) Processo s/n', ano 1904, art. 157, caixa 1.817, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
(103) Processon' 276, ano 1927, art. 157, caixa 69, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(102) Processos/n', caixa 1.762, ano 1906, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, descrito no Capítu
0 (]04) Processo n? 307, ano 1929, caixa 1.920, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

lido e e .24]
l yvonne A,4aggfe Medo do f
l
Quando depõem, os policiais são sempre testemunhasque acusam. Embo- Declaraçõesdessetipo aparecem com muita frequência. Em certo proces-
ra pareçamconhecerbem os rituais descritos,entrando em questõesquaseque so, um juiz perguntoucomo o policial sabiadisso. Um.delesrespondeu{lpor'
religiosas nos depoimentos, sempre querem, com visível violência, incriminar que falava na linguagemdo caboclo)>.Os policiais reconhecemo transe, sabem
os acusados. Isso se dá desde a virada do século, mas principalmente a partir os gestos e a linguagem e fazem questão de afirmar que não era comédia. Por
da criação da Comissão do Delegado, em 1927, que se especializana repressão quê? Na versão dos policiais enquanto testemunhas,o verdadeiro transe incri-
ao baixo espiritismo, e da criação da Delegada de Costumes, em 1934. Para mina mais do que a mistificação?
incriminar sempre afirmam que são falsos, baixos, bruxos, praticantes da ma-
gia negra, macumba etc. Tudo indica que sim, porque se o indivíduo estava em verdadeiro estado
de mediunidade,confirma-sea crença em que podem existir outros que men-
Na delegada especializada, um investigador, espírita científico, persegue tem. Os acusadostambém afirmam algumas vezes que estavam em estado de
falsos ou baixos espíritas. José Sampaio,(ioS)inquirido pela defesa, faz impor- mediunidade. A diferença das posições é interessante. Usando o mesmo argu-
tante acréscimo a seu depoimento:
mento, um quer inocentare o outro incriminar.
Disse ele que desconheceo espiritismocomo religião e como
A descrição das versões das testemunhas e acusados aponta, em primeiro
ciência; que conheceo espiritismo científico, que não é o que a acu-
sada exerce. lugar, para a hipótesede que é nessaesferajurídica onde se legitimam as pró-
prias categorias religiosas, estimulando-se. incitando-se aquelas práticas. [)is-
O investigador a serviço do delegado, com comissão para repressão ao cutir a verdade do transe permite construir a própria classificaçãode transe,
baixo espiritismo, é espírita científico (não se sabe bem o que significa essees- enquanto manifestação falsa ou verdadeira. Em segundo lugar, transes verda-
piritismo...) e desconheceo espiritismo praticado pela acusada.Fica evidente deiros e falsos são discutidos por todos com simplicidade. Todos pensam, por'
que o policial que crê no espiritismo científico também acredita em que o ou- tanto, a partir das mesmaspremissasculturais.
tro espiritismo deve ser perseguido, Nessecaso, a repressão passa a ser tam-
bém religiosa. Esseinvestigador fica muitos anos nessadelegada. As versõesdos especialistas(juízes, promotores, advogados),dos acusa-
dos e das testemunhasexpressama concordância em termos de crençasbási-
As testemunhas da polícia discutem a verdade do transe. Um guarda cas. O processo explicita uma conversa entre setores, segmentos, que discutem
civil,(ioÓ) diz que: verdades, posições e convicções, às vezes diferentes, mas construídas em torno
Em virtude de ordem do delegadodirigiu-se ao local onde se de uma problemática comum: a ética do sistemade feitiçaria, que implica na
dizia praticar o falso espiritismo,que ali chegandoencontrarama punição aos que rompendo regras morais, se tornam falsos, mistificadores ou
dona da casa sentada junto a uma mesa tendo à sua frente o acusa- verdadeiros feiticeiros.
do presente (...) benzeu uma água (...) entrando a seguir na prática
de tais cerimoniais geralmenteusadosnas macumbas,que o acusa- As versões dos personagense a estrutura dos processoscriminais aponta-
do acompanhava aquela mulher em tais cerimoniais, estando mani- ram para o surgimentode uma instância jurídica de combate.aos produtores
festado, isto é, em estado de mediunidade, que o acusado tinha con- de malefícios. Na história da construção dessemecanismo regulador das acusa-
vulsões constantes durante todo o tempo em que decorreu a sessão ções aos que usam mal ou abusivamente os preceitos da crença, conforme fi-
espírita (...) estava possuído pelo espírito de São Paulo, sendo certo cou demonstrado, os discursossão
que a referida mulher se dirigia a ele pelo nome de Pedro (...) que a elementos ou blocos táticos no campo das correlações de força; po'
impressão pessoal do depoente é que o acusado estava realmente dem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de
em estado de mediunidade e não que estivesserepresentandouma uma mesmaestratégia;podem, ao contrário, circular semmudar de
comédia para iludir os presentes. forma entre esfrafégías opostas (Foucalt, idem, pp. 96-97)
O policial descreveo ritual e diz que o depoenteestavarealmenteem es-
tado de mediunidade,não representavauma comédia. O instrumento jurídico de combate aos feiticeiros acaba hierarquizando
crençaspor meio dessesfragmentos que circulam.
(105) Processon' 165, ano 1929, caixa30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. As peçasfundamentaispara a constituição de uma narrativa convincente
(106) Antânio Amorim Machado e Elvira de Jesus,Processon' 273, ano 1931, caixa 1.987, Arqui- da crença são o ]audo pericial, o auto do flagrante e o auto de apreensão,ana-
vo Nacional, Rio de Janeiro. lisados a seguir.
e .243
]42 e
Capítulo lll
As evidênciasdo crime:
o auto de flagrante, o auto de apreensãoe a perícia
Os negros do Rio não eram conhecidos como
comunistas», eram mais temidos como feiticeiros
e glorificados como malandros, pois eram muito
pobres
(Landes, 1967:71)

A literatura sociológica frisa que no sistema de crença na feitiçaria as evi-


dências para a descoberta do feiticeiro são construídas a partir das concepções
da própria crença. O caso do adolescente zune(l07) citado por Lévi-Strauss
(1985) é tomado em termos comparativos para se pensar como se dá a com
provação dos crimes apenadosnos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal re-
publicano.
Lévi-Strauss mostra que não se absolve o acusado, porque este nega ser
feiticeiro, mas porque reivindica seu pretenso crime.
O debate não procede, como nos nossos processos, por acusa-
çõese contestações,
mas por alegaçõese especificações.
Os juízes
não esperam do acusado que ele conteste uma tese e menos ainda
que reputefatos; exigem-lheque corrobore um sitemado qual não
detêm senão um fragmento, e do qual querem que reconstitua o res-
to de uma maneira apropriada (op. c/f. , 1985, P. 200)

(107) Um adolescente zuni, acusado de ter enfeitiçado uma jovem. tenta se defender negando ser
feiticeiro. A tática revela-seinútil, o adolescentetoma outra estratégia,improvisando uma
narrativa na qual explica como tinha sido iniciado na feitiçaria e feito o tratamento da jo-
vem acometida de ataques nervosos. À noite, no entanto, o adolescentefoge. O júri impla-
cável o perseguee traz de volta. Nova tática: o adolescentediz que é feiticeiro, contacomo
recebeu'essa herança dos ancestrais e descreve suas feitiçarias, dizendo que se fazem por
meio de plumas mágicas, que Ihe permitem abandonar a forma humana. O júri exige as plu-
mas como prova da veracidade da narrativa. O adolescente, aturdido com a exigência,tenta
dissuadir os juízescom várias desculpas.Insiste em que as plumas tinham sido escondidas
no revestimento
de uma parede.O júri exigeque elevá buscar.O adolescente
tem que in-
ventar mais uma tática, porque sua narrativa é fantasiosa.Resolvederrubar o revestimento
pouco a pouco. A primeira paredevai abaixo. No derrubar a segunda,sai do revestimento
uma pluma velha. O adolescentea agarra em frente a todos e jura que é a pluma.mágica. O
júri exige que ele explique o mecanismo da feitiçaria. O adolescenteinventa mil detalhes. Fi-
nalmente, diz que perdeu o poder, por isso não abandonou a forma humana

e .147
rvonne A4aggfe !«edo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasa!

O autor cita a investigadora do caso, M.C. Stevenson: crença de forma apropriada, distinguindo, classificando e hierarquizando ri-
tuais; distinguindo, principalmente, aqueles que usam poderes para produzir
Os guerreiros se deixaram absorver tão completamentepela malefícios dos que usam para o bem, a caridade ou a cura. Os peritos materia-
narrativa do rapaz, que pareciam ter esquecido a razão primeira de
seu comparecimento perante eles (op. cíf. , p. 200)
lizam o feitiço, já que examinamobjetos, o próprio feitiço na sua materialida-
de
A pesquisadora comenta a reação do júri quando a pluma, instrumento Aqui se trata, é claro, dos peritos que examinam objetos apreendidos,não
da magia do acusado,apareceu: dos peritos médicos. Essesúltimos também são chamados a corroborar a cren-
A consternação se propagou entre os guerreiros, que exclama. ça. Estão preparados para isso, até mesmo respondendo em. formulários pró-
ram de uma só vez: O que significa isto? Agora, eles tinham a cer- prios se o tratamento pelo espiritismo faz mal, se a demora de tratamento mé-
teza de que o rapaz dissera a verdade (op. cff. , p. 201). dico afeta a saúdede paciente, se o tratamento por meio do falso espiritismo
O mestrefrancêsresumeo casoa partir da descriçãofeita por M. C. Ste. prejudica a saúde
venson, dizendo que a acusaçãotinha como finalidade reconstruir a crença Os peritos que examinam objetos não são médicos. Alguns se especializam
partilhada por todos, coletiva, e se pergunta se a astúcia do adolescenteno nesse tipo de perícia, sendo chamados a dar sua opinião durante muitos
processonão se teria transformado em convicção. Talvez o rapaz tenha acaba- (109>
do acreditando no próprio relato, tornando-se ele mesmo feiticeiro e até curan. Sendoa feitiçaria aqui diferente da zune, a narrativa dos peritos é também
do a jovem enfeitiçada. diferente. Cabe a eles determinar se os objetos apreendidos são próprios para
O autor citado argumentaque os nossosprocessossão construídospor rituais de macumba e candomb/ée se os rituais são práticas de magia negra.
acusaçõese contestações. E verdade. No entanto, neles acontece algo extrema- Definir se os objetos servem para produzir malefícios e se o método emprega-
mentepróximo do caso zune. Prova-se os crimes apenadosnos artigos 156, 157 do pelo acusado é o usado pelos baixos ou falsos espíritas. Definir se os obje-
e 158 do Código Penal como no sistema de feitiçaria. Para que o processo pos- tos servem para produzir malefícios ou para praticar a medicina ilegal.
sa existir, é preciso provar que existem pessoasque produzem malefícios à sol- A semelhançaque existe está na descrição fragmentada dos fatos e rituais
ta no Rio de Janeiro. Nos nossos processos,a tarefa de reconstruir a crença praticados. Entre os zune, os fragmentos são reconstruídos pelo próprio acusa-
da qual os juízestêm os fragmentose -- buscara prova de que a feitiçaria do que narra o fato. No Brasil republicano, essa tarefa cabe aos acusadores.
existe fica a cargo dos peritos,(108)não do acusado. Também os nossos juízes Outros doisfatos nos aproximam dos zuni: a razão primeira dos processospa'
totalmente absorvidos pela narrativa dos peritos, parecemesquecera razão regeser relegadaa segundoplano(110) e a narrativa da feitiçariaganhadesta-
primeira que os levou a estabelecero processo.Antes, no auto do flagrante e que porque é ela que prova que a crença coletiva é verdadeira. Do mesmo mo-
de apreensão, os policiais já encontraram a pluma: os objetos apreendidos. Os do, os objetos da feitiçaria devem ser descobertospara mostrar que a crença
rituais descritosno auto do flagrante, ao lado dos depoimentosdos acusadose reconstruída continua operando. A feitiçaria tem materialidade. Os objetos de-
testemunhas, com sua técnica peculiar, são os fragmentos da crença de que vem ser encontrados.
dispõem os juízes. Ao contrário do caso zune, os acusadosvão perdendo a voz
no processo.Advogados falam por eles, que devemater-seàs perguntasde de- Os processos de 1890 até 1940 são constituídos dessaspeças fundamentais.
Do final do século até 1920, essa técnica ainda não estava totalmente aprimo-
legadose juízes. Já os peritos devem falar. As versõesdos personagensdo pro-
cessosó ficam claras depois do laudo pericial. Comparando os estilos narrati- rada. É a partir de 1927que começaa aparecernos processosum jogo dramá-
tico realmente eficaz, e os processos, nos quais os acusadossão em sua maio-
vos de acusadose testemunhasde um lado, e de peritos de outro, pode-sedi-
ria absolvidos, conseguemconfirmar a certeza coletiva de que a feitiçaria exis-
zer que acusadose testemunhassão citados no processo.Isso não quer dizer
que não façam afirmações. Como se vê no capítulo anterior, essetipo de cita te. Os processos,como a narrativa do jovem zuni, servem,certamente,para
ção é uma afirmação oblíqua. Os peritos, em contrapartida, fazem afirmações (109) Em entrevista, um perito que declarou ter feito essetipo de perícia em tempos mais recentes,
diretas. Não são sujeitos do enunciado, mas sua estratégiadiscursiva em tom disse que todos temiair\ tocar essesobjetos, que só alguns tinham coragem e aceitavam fazer
afirmativo e acusatório costura todas as falas do processo. a perícia. Pelas assinaturas nos laudos, parecem ser pessoas sem alto nível educacional. Cer-
Na primeira leitura, os laudos dos peritos já parecemreveladores.Na rea- tamente, não têm grau universitário, não se exigia na época grau universitário para a
perícia, a não ser a méd a. Não foi possível saber a profissão dos peritos (só em processos
lidade,elestêm o mesmopapeldo depoimento
do acusado
zune.Narrama mais antigos se decIDi.vd = profissão do perito -- carpinteiro, por exemplo).A partir de
1927, principalmente. i; perícia técnica já tinha funcionários contratados (ver Correr. 1982)
(108) Para uma análise da perícia no processocriminal, ver Correa (1982) (llO) A propósito, são poucas as condenações, como se vê no Capítulo l

]48 e ]49
yvonne À4aggie

cer o curandeirismo acaba, pela frase, concordando com que seja uma profis-
reafirmar a todos (juízes, promotores, acusados, delegados, advogados e mani-
puladores técnicos em geral) de que os rituais com fins malévolos existem são. Também não se faz perícia das ervas, mas o juiz do processo se refere a
elas na sentença para confirmar que o acusado exerce uma profissão permit.ida
Através dos fragmentos contidos no auto do flagrante,(111)no auto de pela Constituição. Ele é apenasum xamã, que cura com ervas, o que o distin-
apreensão, nos depoimentos de clientes e acusados e no próprio testemunho de
gue do feiticeiro, segundo o juiz do processo.
policiais, o perito reconstrói a crença atravésde uma narrativa convincentee
apropriada. Antonio Alves Lopes,(116)
do casointitulado <'Como diabo no corpo ou
feiticeira leva uma burra com vara-de-guiné», é preso. Reza o flagrante:
O acusadofoi presopelo delegado...à l hora da tarde,em
15. A narrativa da crença companhia de várias pessoasde ambos os sexos, em número de 30,
praticando curas de várias pessoasenfermas, por meio.de práticas
Aqui se descreveos flagrantese apreensões
com o fím de reconstituira espíritas.
narrativa dos rituais mágicos,de cura ou produçãode malefíciose a narrativa O auto do flagrante afirma que o acusadocurava várias pessoas.Nessecaso,
construídaa partir dos objetos do curador ou feiticeiro. A estrutura dos pro-

l
tambémnão há perícia, mas Antonio Alves é julgado e cabeao juiz dizer sede
cessose semprea mesma, quer seja o acusadoincriminado por prática ilegal fato cura ou seusa seuspoderespara o mal.
da medicina, falso espiritismo ou curandeirismo, pois a acusaçãosempre se re- No caso do <(Castelinhoda Rua do Lavradio,(n7)o auto de apreensãoenu-
fere a práticas capazesde produzir malefícios,(iiZlou à prática da mistificação
mera os seguintesobjetos:
O auto de apreensãodo processodo já conhecidoFerraz,(llS)descreveob- treze metros de pano, escrito a giz, uma vela branca, uma lâmpa-
jetos que incriminam o acusadodo
da de azeite, dois castiçais,um copo com água, um pacotecom
fato delituoso de exercerilegalmentea medicinae praticar o espiri- quiabos, um saco de pipocas, um cacete, pimentas verdes, diversos
tismo: um livro contendo as preces de O evangelho segundo o pes de galinha seca, uma porção de carne fresca.(n8)
espfríf/smoe Código das leis das almas, uma brochura velha, bas
Não há perícia, mas o juiz, na sentença, comparando o caso com preces'
tangedanificada, contendo pedidosde graçasde todo gêneroe diri-
gidas ao Sr. Ferraz...(tt4) sos inquisitoriais, cita os objetos como parte da crençae a comparacom a
crença na cura pela água de Lurdes.
Em processosanteriores, Ferraz já havia sido denunciado como feiticeiro e
No casodo «Mão Santa»,(i19)diz o auto de flagrante:
por rezar pela frente e pelas costas. Nessa época, ainda não havia perícia em
todos os processos. um indivíduo italiano que, semtítulo legal, exerciaa medi-
No caso de Juvêncio -- o curandeiro do Morro de Santo Antânio.(115) cina. anunciando curas milagrosas e fazendo bombásticos e escan-
o delegado diz {Khegando ao meu conhecimento que Juvêncio Serafim Nasci- dalosos reclames... instalado em verdadeiro consultório médico,
mento, morador do Morro de Santo Antânio exerce a profissão de curandei- que aliás era regularmente conhecido... Ãs 15h30min, pene'
ro» e manda proceder {(à busca e apreensãode tudo quanto foi encontrado na arandono Santuário do charlatanescoindivíduo de quem eu não
casa referente a medicamentos». Na casa de Serafim foram encontrados os se-
era felizmenteconhecidopude à vontade notar que
guintes medicamentos: «algumas ervas e duas caixas de papelão, sendo uma aproveitando-secom relativa habilidade de ligeiras noçõesque tem
com substância em pó e outra em pedra>} O delegado define a profusão de Se-
de eletromagnetismoprocurava convencer que bastavaa aplicação
rafim na categoria de curandeiro. Ao denunciaro acusadopelo crime de exer- de suasmãos para que prontamente se dissipassea dor daí a ra-
zão do ... reclame -- Mão Santa.(120)

(111) Nem todos os processostêm auto do flagrante porque se pode dar início ao processopren-
. dendo o acusado fora de suas atividades criminosas. A maioria dos processos, no entanto,
seinicia com a prisão em flagrante (116) Processon' 691, ano 1898,caixa 1.859, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(112)Ver sobre isso os Capítulosl e ll. (117) Processon' 756. ano 1899, caixa 1.959, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(113) Processos/n', ano 1904. caixa 1.817, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. (118) Ver Capítulo l
(114) Ver Capítulo l (119) Domingos Ruggiano, Processon' 778, ano 1901, caixa 29, Arquivo Nacional, Rio de Janei
ro
(115) Juvêncio Serafim do Nascimento, Processon' 596, ano 1898, caixa 1.997, Arquivo Nacio-
nal, Rio de Janeiro (120) Ver Capítulo lll

e .151Z
liSO e
rvonne A4aggie Mledodo feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasi}

i.-= O advogado Evaristo de Moraes conseguea absolvição pela corte de ape- Em outro processo, intitulado <<O espírita sonâmbulo)>,(iZS) o acusado é
lação,frisando sua convicção na liberdade de profissão promulgada pela Cons. preso em companhia de uma senhora <<praticandoconsulta de espiritismo, o
tituição mas no processo há juízes que consideram o acusado um charlatão'e sonambulismo, a magia...>>(124)
Consulta é a expressãousada pela polícia para
outros que o acusam de curandeiro produtor de malefícios '' ' descrever
o ritual que o acusado
realizavana hora do flagrante.E todosse
Já no caso do <(Cabo-verdiano, profissão curandeiros,(12i) Manoe] Games perguntam se de fato se trata de consultas ou se o acusado praticava sortilé-
e preso no dia 5 de dezembro de 1904 no Engenhode Dentro pelo inspetor de gios .\\ ' ".' /
polícia quando ' ' ''' Indiciado no mesmo artigo 157 está também Francisco Nogueira da Sirva,
praticava o espiritismo, a magia e seussortilégios achando-sepre- no processochamado"Bruxaria: sentadoem um tamboreterodeado de muitas
sente e sujeitando-se a todos os sentimentos que lhes incutiam o pessoascom grande quantidadede velas acesas.»(126) A 4 de julho de 1925,
acusado presente, mais de 20 pessoas. FranciscoNogueira da Silva é preso em flagrante na estrada do Pau Ferro
[)iz o auto da prisão em flagrante: s/no. O flagrantee o auto de apreensãofeitos pelosguardasdo 3' Batalhão
da PM afirmam que esse indivíduo
Na sala em que havia a sessãode magia foram encontradosos sentadoem um tamboreterodeado de muitas pessoascom uma
seguintes objetos: diversas imagens, diversos pratos com amendoins
e pipocasde milho em frente às imagensde Santo Onofre e São grande quantidade de velas acesas,praticava a bruxaria (...) Que
sme: grande quantidade de figas de madeira da Guiné, búzios e ali o dr. delegadoentrando, encontrando o acusadoem prática de
favas de Santo Inácio; duas figuras de madeira escura e um crucifi- bruxaria deu voz de prisão (...) apreendendotodos os utensílios
xo de metal branco em cruz de madeira pintada de preto, tendo nas (...}: quatro garrafas contendo líquido branco e uma contendo
líquido cor de vinho com rótulo de vinho verde (.«.) 22 velas (...)
extremidades pequenos tornos de osso; em um quarto, duas galinhas
pretas, diversos cascos de boi, rabos de arrasa e'diversas peles de ca- dois pacotes fechados, um com pó amarelo, dois charutos, três
cuias,uma panelade barro, quatro pinhões,um gorro de lã, uma
bras.diferentes; em outro quarto, chifres diferentes; e grande quan- vara-da-guiné, um pedaço de bambu, um pacote de ervas e um ci-
tidade de ervas desconhecidas
e duaspelesde cabrito, um par de
meias de algodão brancas amarradas em três nós, bem como lenços,
pó besuntadocom óleo enrolado.
tudo servido, encontrado mais um baralho de cartas e um bode pre- O juiz absolve o acusado, não se espanta com os objetos nem com o fato
to de grandes chifres.(iZZ) de o acusado estar sentado em um tamborete. Diz apenas que ele não pratica-
va o curandeirismo.
Não há perícia, mas o juiz condena o acusadoporque
Nos autos de apreensãode grande quantidade de pessoasdescritasnos fla-
como se vê no auto de informação (o auto de informação é o con-
grantes como falsos espíritas aparecem litros de água rezada descobertos pelos
junto de dadoscontidos nos depoimentosdas testemunhas),o réu
efetivamente praticava a magia e seus sortilégios. policiais. É o caso de Mana da Conceição,(IZ7)presano dia 31 de outubro de
1927. O condutor José Tuyuty Batalha diz que:
Ou seja, os objetos da feitiçaria aqui consistem de galinhas pretas, cascos Em companhia do delegado suplente e outros investigados foi
de boi, rabos de arraia, imagens de Santo Onofre e São Cosme figas da Guiné
C ao n' 72 de Rua Carolina Meyer onde era sabido exercer o falso es-
piritismo e ilegalmente a medicina a acusada (...) a quem deu voz
O juiz finaliza a sentença dizendo: {eos objetos apreendidos constituem a de prisão no momento em que atendia a consulente Mana dos Pra-
mime-en-scêne
com que o réu iludia a credulidade dos clientes». E iludir é fazer zeres (...) que assistiu serem arrecadadas na residência da acusada
o mal, como se demonstra no próximo capítulo. O juiz acredita na feitiçaria um garrafãode dois litros contendoágua'rezada'.(Aspasdo escri-
acusadoquandoIhe mostrama prova do crime.ou seja,o feitiço -- a ma- vão)

a feitiçaria. do ato de fazer mal. A arma do crime, no caso, é o próprio crime,


terialização
(123) Processos/n', ano 1906. caixa 1.762, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(124) Ver Capítulo ll
(125) Ver Capítulo l
(121) Processos/n?, ano 1904, caixa 1.817,' Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. (12ó) Processo n' 1.305, ano 1925, caixa 1.974. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(122) Ver citação no Capítulo l. (127) Processon' 27ó, ano 1927, artigo 157, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro

e .253
yvonne AÍaggie N4edodo feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

O mal produzido por essesacusadosestáem fraudar, mistificar, praticar a Em outro processo do mesmo ano, intitulado <<Vulgarmenteconhecido co-
medicina sem habilitação. mo Tio JÚlio,(i29) o investigador José Tuyuty Batalha, que é acusado por al-
Nesseano de 1927, que coincide com a criação da comissão do delegado guns advogados de criminoso e elemento perigoso, declara no auto de prisão
Mantos Mendes para reprimir o baixo espiritismo,(128)as perícias médicas de em flagrante, que prendeu Júlio de Araújo Pereira, vulgarmente conhecido co-
objetosficam mais elaboradas.Os examescomeçama ser feitos com maior ri- mo «Tio Júlio)}, no dia 12 de setembro.
gor. No casode Mana da Concepção, a consulenteé examinadapelosmédicos Hoje cerca de 12 horas (...) dirigiu-se à Rua Dorothea Eugenio,
legistas -- Dr. Cândido C.. de Godoy e Miguel Júlio DançasSaltes. Depois de 139, donde tiveram notícia de que (...) Tio Júlio vinha explorando
examinar a paciente que, segundo eles, apresenta sinais clínicos de provável o falso espiritismo, que ao entrar na aludida casao declarantede-
tuberculose os peritos preenchem um formulário. Caso submetida a tratamento parou com o acusado(...) dando consulta a uma mulher (...) que
adequado poderia curar-se? A essa segunda pergunta do formulário, os peritos seu colega deu voz de prisão em flagrante arrecadando 90 réis (...) e
respondemque sim. No terceiro quesito -- «Êprejudicial ao estadoda pacien- outros objetos próprios para a exploração do falso espiritismo, que
te tratamento pelo falso espiritismo?>>-- eles respondemafirmativamente. na casa se achavam outras pessoas que esperavam o momento para
As informações constantes dos formulários vão sendo aperfeiçoadas no serem consultadas (...) conduzindo os objetos apreendidos: ... um
decorrerda décadade 30 e já no final dos anos20 são feitas por pessoasque chicote de crina em forma de espanador, retalhos de cetim verme-
conhecem, reconheceme definem os tipos de rituais e os diferentes segmentos lho, retalhosde cetim branco, três metros de cetim preto, quatro
da crença, fazendo um trabalho de classificação e hierarquização. penas brancas, uma tábua aparelhada por pontos de pemba, medin-
Entre os quesitos a que respondem os peritos em objetos apreendidos há do (...) dois pratos fundos, uma peça de cadarço, duas foices, uma
perguntascomo <<quala natureza dos objetos?)}.No processocitado, descre- faca com cabo preto, um tacão velho sem cabo, cinco velas de cera
vem minuciosamente as garrafas e o garrafão: {lquanto à espécie de água sendo uma grande, 16 pedaços de caramujos conhecidos por búzios
da Índia, quatro favas, um pedaço de giz também conhecido por
fluida ou rezadn>. Ao quesito: <(o que é água fluida?», respondem: <(água
fluida é a água comum depositada em um receptáculo qualquer sob a qual são pemba,sendoum de cor verde e um de cor vermelhae um de cor
descarregadosfluidos magnéticos dos médiuns, fluidos essesaliados às preces púrpura, usados pelos falsos espíritos, três argolas de metal, três co-
para que maior valor tenham essesfluidos>,. A pergunta «a água fluida pode lares, uma trouxa de pano vermelho contendo um despachocom-
ser considerada medicamento e como tal empregada no exercício ilegal da me- posto de um leque de papel ordinário e velho, uma pedra de carvão
dicina?)>,respondem: <<sim,os princípios curativos da água fluida são potentes vegetal, vários caroços de abóbora, grande quantidade de cinza, um
embrulho maior de papel contendo um pão, certa porção de ervas,
e médiuns há que empregam água fluida ou rezada no exercício ilegal da medi-
cana >> pedaçosde docesdeteriorados,cinco molhos pequenosde guiné,
objetos estes que foram arrecadados na casa...
O laudo é cristalino e reforça o argumento de que os processossão instru-
mentos de combate aos feiticeiros. Para se perseguir feiticeiros é preciso que os SÓ uma pessoa que conhecesse os rituais poderia fazer dessa forma a des-
personagensparticipem de alguma forma da crençana magia maléfica. Em pri- crição do auto do flagrante e dos objetos no auto de apreensão.Isso fica evi-
meiro lugar, o laudo pericial traduz os termos da crença nos mesmostermos dente pelos termos usados, por exemplo despacho, categoria que no texto tem
-- águafluida é água soba qual sãodescarregados fluidos. No entanto,quem significado de oferenda, ou melhor, feitiço. Além disso, o policial descreveos
respondeao quesito parece saber mais, ou de forma mais completa, o que é objetos com o cuidado de fazer com que todos possamentendercertas pala-
água fluida, pois responde ao quesito de forma a fazer com que o interlocutor vras, como búzios, que ele define como caramujos, ou pomba, que diz ser giz.
entendaseu significado. Em segundo lugar, os peritos acreditam nos poderes Os peritos respondemaos quesitos e iniciam o laudo descrevendoos obje-
da água fluida, pois dizem que são <<potentes>>.
Em terceiro lugar, substantivan- tos apreendidos da mesmamaneira como foram descritos pelos policiais no au-
do a prática ilegal da medicina, respondemque essaágua pode ser usada no to de apreensãomas retiram as explicaçõessobre o significado de búzios e
«exercício ilegal da medicina)> . pemba. Respondemtambém à pergunta «qual a aplicação dos objetos submeti-
Os peritos concordam,portanto, com o acusado.Agua fluida é um ins- dos a exame?»,dizendo que são aplicados nos trabalhos de baixo espiritismo,
trumento mágico de cura, um medicamento. «mais conhecido como magia negra, utilizados o mais das vezespara fins mal-
dosos ou perversos. São usados nas macumbas ou candombléu}. Respondem a
uma outra pergunta, <lo que se denomina candomblés ou macumba?),
(128) Ver Capítulo l (129) Processo n' 2.313, ano 1927, art. 157, caixa 1.775

]54 e
rvonne Maggie Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasa!

Candomblés ou macumbas são reuniões de baixo espiritismo A expressão[er por corsa/ente é ambígua e pode significar uma consulta
feitas clandestinamente,e dirigidas por indivíduos que se dizem médica.Mas os objetos descritosno auto de apreensãocircunscrevem
a con-
pais-de-santotrabalhando com espíritos de africanos e de caboclos sulta a algum ritual mágico.
que são atraídos ali por pontos riscados a pemba sobre o assoalho Nessecaso, como na maioria dos processos,os peritos descrevemos obje-
ou sobre tábuas colocadas no chão, ou por cânticos significativos. tos com os mesmos termos usados pelos policiais no auto da apreensão:
Nessas reuniões são tratados assuntos diferentes, concernentes a cu.
Seis capacetes de penas, um capacete de pano, uma espingarda
ras, a melhoras de vida, a aproximaçãoou separaçãode pessoasde velha para caça, duas liras de papel, um saco com ervas, dois bo-
sexos diferentes, sendo todos essestrabalhos (ilegível) à discrição e
doques,dois estandartesde cetim com franjas, uma almofadabran-
para o seu completo êxito, recorrem a sortilégios e a despachos.As ca com a palavra 'Emanjar', cinco flexas, um sabre usado com bai-
manifestaçõesespirituais quer de cabocloscomo de africanos, quer
de santos são feitas espetaculosamente sob a direção do pai-de- nha de couro, uma bainha de metal branco para espada,dois cho-
santo que é o chefe da macumba ou candomblé. calhos de folha, três tamburfos, doze garrafas de parati, três cha-
A peçacitada acima é fundamentalpara esclarecero argumento.Os peri- péus de pano, um crucifixo, uma campainha, cem cartões para os
festejos de São Jerõnimo, cento e seis outros para os festejos em
tos não estranham a possessãoe os rituais que descrevem. Estão tão dentro da louvor a São Jorre, um livro de magia de São Cipriano, setefacas
crença que em nenhum momento relativizam palavras como trabalhos
espíritos de a/Ficamosou caboc/os, manffesfações,macumba ou candomblé. e punhais já usadas, um charuto, quatro colares chamados 'guias',
reconstroem a crença com essesfragmentos. um chifre de veado, uma 'pemba' grande, uma pedra de breu, duas
guias, uma machadinha de madeira, seisbonés de pano, uma cami-
Os peritos, como os próprios participantes das seitas, usam a expressão
sa encarnada e preta, uma camisa branca e verde, mais duas calças
baixo espiritismo, sem questionar o fato corriqueiro de um pai-de-santo poder encarnadas,uma camisa encarnada e branca, uma faixa verde sem
atrair espíritos com pontos riscados e cânticos. Os peritos, narrando e dando franja, uma dita encarnadacom franja dourada, uma dita verde
significado aos objetos, hierarquizam essessegmentos,tendo o cuidado de di-
com franja prateada, uma dita branca e verde com franjas pratea-
zer que os rituais descritos são reuniões de baixo espiritismo realizadasclan- das, uma encarnadacom rendas brancas, uma vermelha com duas
destinamente, o que implica na crença num alto espiritismo, exercido livre- letras brancas, quatro ditas encarnadas,uma amarela. uma encar-
mente. No caso, diferentemente do laudo citado na página 131, os peritos es- nada com pontas douradas, uma camisa encarnada e branca. uma
tão dizendo que os objetos são usados para fins maldosos. Acreditam, portan- encarnadacom listras brancas e outra encarnada com iistras pretas.
to, que há objetos usados para a cura, como a água fluida, e objetos usados
para fins malévolos. os peritos respondemassim ao quesito {lessesobjetos são aplicáveis às
sessõesde macumba». <íQueé macumba?l}, pergunta o delegado em segundo
A perícia tem também a função de traduzir. Traduzem as narrativas natu- lugar. E eles respondem:
ralizadas feitas pelos participantes e se transformam em veículos da própria
crença, classificando tipos de rituais mágicos e formas de curas, dando signifi- Macumba é a reunião espírita sob o rito africano, onde prote-
cado às categorias utilizadas e hierarquizando o campo através da idéia de fei- tores enviados de santos se manifestam invocados por pontos canta-
tiçaria como prática mágica para produzir malefícios. dos ou sambados, por sinais cabalísticos no chão feitos com traços
O processoacima foi comparado com outro, de 1929, intitulado «Reunião de pemba e onde os espíritos manifestados em sua maioria de cabo-
espírita no rito africano para invocar espíritos».(i30)Dizem os investigadores clos e de africanos, bebem, fumam, sambam, cantam, efetuando
no auto de prisão em flagrante: nessasocasiõesos seustrabalhos, aconselhandocom banhos de er-
vas tizonas, de fumaça e fazendo passes.Ao contrário do alto espi-
Foi a casa de número 300 da Rua Terceira na Penha onde era
ritismo, consideradomagia branca. em cujas sessões,segundo os
sabido que um indivíduo praticava o falso espiritismo e o exercício preceitos de Allan Kardec, só se manifestam espíritos brancos
ilegalda medicina,que entrandona casaviu o dr. delegadodar atraídos por concentração dos médiuns e preces, na macumba ou
voz de prisão ao acusado(...) quandotinha por consulenteIrene magia negra, só se manifestam espíritos de africanos e caboclos.
Braga, que ainda assistiu a mesma autoridade arrecadar os objetos
(...) que em seguida o declarante carregou o acusadopresentea esta «Podem ser consideradas de falso espiritismo as sessõesde magia negra?)},
repartição onde chegou às 2 horas da manhã... pergunta o delegado, ao pedir a perícia. Os peritos respondem:
Não. As sessõesde magia negra dirigidas por 'pai-de-santo' ou
(130) Processo n' 66. ano 1929, ans. 157 e 158, caixa 1.766, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. 'mãe-de-santo'
são sessões
espíritas,como são as de magiabranca

e IZ57
yvonne A4aggie
Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

dirigidas pelos presidentes, é apenasquestão de rito. Em ambaspre- nado em primeira instância pelo crime descrito no artigo 157 do Código Penal.
dominam o intuito caridoso, o bem ao próximo, embora existam Apela para o Tribunal e é então absolvido.
em ambas muitos charlatães e exploradores que se locupletam na Há que se distinguir as duas perícias em outro sentido. Na primeira, ma-
credulidade dos consulentes, prometendo coisas impossíveis de rea. cumba e candomblé são considerados, como um todo, rituais para fins malé-
lizar e exigindo em troca verdadeirasextorsões.Assinamo laudo: volos. Na segunda,os peritos distinguemtipos de rito, dizem que macumbae
João Antonio Barreiro e Levy Abrentes. candomblé são baixo espiritismo, que existe o alto espiritismo, que os dois são
Como no caso de Tio Júlio, citado acima, as categoriasutilizadas pelos ritos para fazer caridade,e que há charlatãesque.usam tanto um quanto outro
peritos não se distinguem das categoriasutilizadas pelos fiéis. para iludir. A questãoda maldadenão se coloca no tipo de rito, como no pri-
meiro caso, mas na fraude.
Usam sessõesde macumba, manifestados, pemba, magia branca, alto espi-
ritismo, magia negra, macumba. O próprio delegadopergunta se as sessõesde Nos dois casoscitados acima, a perícia, peça fundamental na construção
magia negra podem ser consideradas de falso espiritismo, empregando a cate- da narrativa da crença, distinguerituais para produzir malefíciosde rituais pa-
goria sessão que é a palavra usada nos terreiros e centros espíritas para definir ra fazer caridade, para fazer o bem, e ainda distingue mistificadores. Essasex-
o ritual pressõessão usadas nas narrativas das pessoasque freqüentam centros ou ter-
reiros hoje e ninguém diria que os peritos estão enganados:há quem usepode-
Os peritos descrevem o ritual estabelecendo distinções hierarquizadoras. res para produzir malefícios,há quem faça o bem e há mistificadores.
utilizando adjetivos como alto e baixo, branca e negra, para definir tipos de ri-
to A evidência do crime é a crença e, como os acusados, os peritos sabem
distinguir uma faca de cozinha de uma faca ritual para sacrificar animais. Esses
No mesmo processo, ao examinar objetos encontrados numa mala, os pe- objetos só poderiam ser tomados como objetos próprios para sortilégio e feiti-
ritos demonstram conhecer o ritual e saber do que estão falando. A mala con- çaria se os acusadorestambém conhecessemos rituais de feitiçaria. A narrati-
têm
va, além disso, deve construir a crença de forma adequada; assim, todos con-
Uma calça encarnada, uma saia preta e encarnada,um paletó cordam com seu texto e se salvaguarda a crença.
preto e encarnado, uma camisa verde com franjas douradas, uma Os peritos(131)acreditam em que os objetos apreendidos,os despachose
saia rosa, uma faixa rosa, uma calça rosa (...) três barretesverme- as manifestaçõesespirituais espetaculosaspodem também ser armaçõespara
Ihos
(131) Leonídio Ribeiro foi chefe do Gabinete de Identificação e perito médico de 1930 a 1946. Mas
Segundoos peritos, em seu laudo, objetos aplicáveis à macumba e utiliza- antes, em 1918, exerceu o lugar de médico legista interino da Polícia Civil do Distrito Fede-
dos como ornamentos. ral durante alguns meses.Depois disso, defendeu tese sobre medicina legal na FaculdadeFlu-
minense de Medicina. Talvez pudesse ter tido alguma influência nas perícias da década de 20
Comparandoesselaudo com o do processoanterior, o do Tio Júlio, vê-se e sobretudo de 30. No entanto, essaperícia especializadaem questões de feitiçaria e descri-
que existem diferenças, embora um dos peritos seja o mesmo nos dois. Os ob- ção de crençaé maisproduçãodo próprio sistemajurídico, não necessariamente
de algum
jetos encontrados na casa do Tio Júlio pareceram aos peritos <(própriospara médico em particular. É o caso de se pesquisar Afrânio Peixoto, discípulo do mestre mari-
trabalhos de baixo espiritismo, que são reuniõesde macumbaou candomblé nhense, que foi diretor do Serviço Médico Legal da Secretaria de Segurança Pública até
1910.Teria influenciado a criação da perícia dessesobjetos que acabase firmando no final
realizadas clandestinamente» . Mas a descrição do ritual é parecida, aparecendo da décadade 20?Mariza Correa aponta uma relação de tensão e conflito entre os médicos
nos dois laudos a preocupaçãoda comparaçãocom outros tipos de rituais, funcionários da Faculdadede Medicina e os funcionários da Polícia (Correa. 1982: 167-
quando se fala em manifestação do espírito de forma espetaculosa(haveria 168). Não se pode afirmar com certeza. mas, as colocaçõesde Mariza Correa levam a supor
uma forma menos espetaculosa7)ou ainda em baixo e alto espiritismo, magia que, na briga por espaço,os policiais acabaramganhandoessaperícia dos objetos,já que, a
branca e negra. Os peritos consideramos objetos do Tio Júlio próprios para partir dos anos 30, os médicosda Faculdadede Medicina parecemter <«onseguidoa apro-
priação e direção de um aparato definido antes como pertencenteà esferapolicial» (idem
despacho,mas os de EugênioJoséRufino seriampróprios do rito africano, p. 169). A perícia que os médicos conseguiram conquistar foi a perícia médica. A perícia dos
também realizado para caridade. Isso, ao que parece, não espanta o juiz. Nem objetos talvez estejainserida dentro dessabriga por espaçoque se trava entre funcionários
pode enganar o leitor, porque sabe-se que no caso do Tio Júlio, os objetos da Polícia e médicos da Faculdade de Medicina. A perícia de 1927 é anterior aos livros que
eram destinados a um despacho, usados para fins malévolos, e que no caso de descreveramessascrenças depois de Nana Rodrigues e Jogo do Rio, todos da década de 30
Eugênio JoséRufino, tratava-se de objetos do rito, utilizados nas sessõesde in- Ramos(1932);Carneiro (1936) e Bastide(1939). A perícia prenuncia o que vai ser tam-
bém o discurso da Antropologia, ciência que se funda na descriçãodessesrituais (Correa,
vocação de espíritos. 1982). Como diz Danças (1983), os intelectuais que estudaram essesrituais constituíram um
Para os peritos, Tio Júlio era um feiticeiro, enquanto Eugênio JaséRufino discurso em que separavam os verdadeiros dos falsos. Essemecanismo já estava presentena
mente dos peritos, talvez discípulos de Nana Rodrigues, adeptos da versão positiva no Direi-
apenas realizava um rito africano. Mesmo assim, Eugênio José Rufino é conde- to Criminal

e .259
yvonne Àdaggie h4edo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

enganar (mais tarde vai aparecer a palavra mistificar), no sentido de ilusionis- que hoje, cerca das 15 horas, assistiu e viu o investigador João
mo. Para Viveiros de Castro, essa interpretação seria no mínimo pueril Por- Joséde Sampaioprender em flagrante o acusado(...) na ocasiãoem
que, segundoele, para iludir ou explorar, é necessáriauma das três condições que na casada EstradaMarechal Rangel,em um quarto praticava o
do estelionato. SegundoViveiros de Castro, o ilusionismo é próprio de todas falso espiritismo, exercendoilegalmente a medicina por meio de
as religiões. O juiz maranhense sempre fazia comparaçõescom os fiéis da Igre- passese rezas,tendo como consulenteSilvina Teixeira de Matos,
ja Católica, que acreditavamna água de Lurdes.Mas pareceque não foi essaa que ali fora para tratamento de pele.
lição que ficou dos textos do jurista.(i32) O auto de apreensãodiz:
As períciasdessesobjetos, pertencentesa gentesemimportância, em casos Aos vinte e um dias do mês de agosto de mil novecentose vin-
semmuita repercussão,contam a história de como a crençana magia foi sen- te e nove, nesteDistrito Federal(...) presenteo investigador
de
do traduzidae explicada.Os próprios acusadostiveram que fazer um esforço polícia Jogo José de Sampaio, o qual apresentou à autoridade (...)
de descrição.dos rituais, quando inquiridos, assim como os inquisidores,que os seguintesobjetos: um bloco de papel em branco, dois papéis com
tinham que saber o que perguntar. declarações
assinadas
por Ana Carolinada Silva, sobresuafilha
Como no caso do adolescentezune, nos processos,é preciso uma estraté- Airan dos Santos, três livros de cartões de cores marcando os dias
gia para se reconstruir a crença a partir de fragmentos. Aqui, a perícia formu- de consultas,um cartaz com os seguintesdizeres'Aqui só se reza',
la a narrativa. Como na conclusãode Lévi-Strauss,talvez venha dessanarrati- um cartaz de papelão com os seguintes dizeres 'Enquanto Deus exis-
va apropriada a eficácia que se imputa aos acusadosenquanto curadores, pro- tir e a fé não me faltar por todos hei de pedir a ele para os curar
dutores de felicidade ou malefícios. C) delegadoque presideo inquérito manda dar nota de culpa ao acusado
como incurso nas penas dos artigos 156, 157 do Código Penal e nomeia os pe-
Os peritos são possivelmentepoliciais oriundos de estratossociaisbaixos,
pertencentes à mesma classe da maioria dos acusados nos processos. Provavel- ritos Cláudio Mendonçae Otacílio Leal para procederemao examedos objetos
mente freqüentadoresde terreiros e centros,a perseguição
que de fato fazem apreendidos. Designa também os peritos médicos legistas.
não é consideradamoralmente reprovável. Ao contrário, o combate aos feiti- Os peritos respondemaos quesitose dão o seguintelaudo depoisde des-
ceiros e mistificadores é dever moral dos que acreditam na magia. Mas o pro- crever os objetos da mesma maneira que os policiais no auto de apreensão:
cessopenal como instrumento regulador do combate aos feiticeiros coloca a Preenchidasas formalidades legais, iniciam os peritos o exame
perseguiçãoem outra instância. Não se trata aqui de dois médiunsque se acu- ordenado, findo o qual não tiveram dúvida em concluir que diver-
sam num terreiro,(133)e que detêm o mesmo poder e a mesmaposição. Os po- sos dos objetos submetidos à sua consideração estão a denunciar
liciais estão aqui investidos de uma posição na ordem dominante e certamente queno prédio onde fora arrecadadoo material (...) sepratica o fal-
têm mais poder de fazer valer seuspontos de vista. so espiritismo em parceria com o magnetismo animal. Ê verdade
Traduzindo conceitos e categorias e explicitando rituais os peritos fazem que em poder do acusadonão fora encontrado o arsenalcompleto
distinções incorporadas pelos juízes ao discurso jurídico. (...) empregado pelos indivíduos que exploram a credulidade dos
E preciso dizer ainda como se realiza essamediaçãoe o que faz do perito o inespertospor meio da prática de bruxaria. Isto, porém, nada signi-
guardião da narrativa convincente sobre a crença. fica pois pessoashá que prescindemdas coisasnecessárias
à
mime-en-scêne, fiados tão-somentena sua força de persuasão.Estão
neste caso os cultores do magnetismo, os quais, dizendo-seinspira-
16 dores, profetas, obram prodígios, curando, instantaneamente por
Ainda sobre a narrativa da crença meio de passese orações.Estáclaro que, muita vez, a sugestão,nas
pessoasfacilmente sugestionáveis,agua, maxime quando o consu-
No caso intitulado «Aqui só se reza>},(134)
o auto de prisão em flagrante lente padecede um mal de origem nervosa. Na maioria dos casos,
conta, através do depoimento do condutor de preços, o guarda civil Otaviano porém, o que há é o charlatanismono seumais alto grau. No caso
Giorgio Penda, natural desta capital, 35 anos, casado, em apreço o acusado age, na maioria das vezes, socorrendo-sedos
passes.Assim tendo estudadocom cuidado a questão que Ihe fora
(132)Ver essadiscussãono Capítulo ll. apresentada,não tem dúvida (...) que o acusadoexplora a creduli-
(133) Ver Guerra de orfxá, Maggie (1975), sobre acusaçõesnum terreiro. dade dos menos avisados, praticando o falso espiritismo, coadjuva-
(134) Processo n' 307, ano 1929, ares. 156 e 157, caixa 1.920, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro do pela prática do magnetismoanimal.

IZÓO e
rvonne Maggfe Med

Os peritos dizem que os objetos destinam-se«à prática do falso espiritis- Pessoaspouco inteligentes, embora dotadas de dose apreciável
mo e do exercício ilegal da medicina». O delegado pergunta se os passes de velhacaria, nada mais fazem do que imitar os outros oficiais do
enquadram-seno magnetismoanima/, os peritos respondemque sim. Como se mesmo ofício, empregando os mesmos truques grosseiros, servindo-
vê por essecaso, os peritos não desqualificama crença e sim esseparticular se dos mesmos apetrechos, notando-se somente certa modificação
rezador, e acreditam no poder de cura das rezas. A categoria charlatanismo de no rito (...) enganaro próximo para adquirir proventosimpingindo
agora em diante, será cada vez mais usada para definir os falsos espíritas. aos crentes a sua ciência divinatória cuja fama voa mais rápida que
Há que se frisar ainda a afirmação dos peritos de que os objetos são de o pensamentoavolumando-se,de dia para dia, o númerode consu-
bruxaria (blocos de papel etc.) e fazem parte do arsenal de bruxaria. Assim lentes arrebanhados em todas as classessociais (...). Nos antros dos
passes,magnetismo animal e falso espiritismo são passíveisde serem definidos macumbeiros ignorantes ou nas cavernas dos espertalhõescom. cer.ta
tambémcomo bruxaria. No relato dos peritos, nestecasoem particular. trata- agudezade espírito e que vêem na prática do espiritismodesvir-
se de fraude, mas pode haver a bruxaria. tuado um filão inesgotável a se explorar socorrem damas elegantes
A perícia do médico legista(ns) no caso em pauta -- {CAquisó se reza» possuidoras de ricas limousines, negociantes endinheirados, donos
ajuda a esclarecermelhor a relação da feitiçaria com a prática ilegal da medici- de luxuosos palacetes,proateurs de guerra, políticos ou politiquei-
ros e até altas patentesvão cheios de unção ouvir a palavra miste-
na. Ela repete com termos técnicos as queixas dos clientes: {CSilvinatem uma
dermatoso}, respondendo aos quesitos em formulário impresso: riosa do profeta, confiar-lhe as suas mágoas, pedir os seus conse-
lhos para o bom êxito densaou daquela empresaque têm em pers'
1 -- 0 tratamento por meio de 'preces' ou 'rezas' seguidas de pectiva. O misterioso sempre há de dominar a humanidade. O ho-
passes'comumente usados pelos que praticam o falso espiritismo é mem anda em buscade algo que desconhecepara a satisfaçãodos
prejudicial à saúde,pela demorado convenientetratamento?2 -- seusdesejos.Qualquer causa o conquista, por mais grosseiraque
Se o paciente fosse submetido a tratamento adequado poderia vir a seja, contandoque se apresentesob forma de mistério. .E não deixa-
restabelecer-se?
ria de ser ridículo se já não principiasse a causar cuidados, a manei-
Os peritos respondem «sim)>a ambas as questões. ra como se deixam enganaraquelesque freqüentamo arraial da
macumba. Julgar-se-á que uma força extranatural. atua sobre o
Em outro processo,o de Alexandrina Antonia e Joaquim Fernandes,inti- espírito dos consulentes:mas assim não é: nem.mesmo se pode crer
tulado «Espíritacientífico é investigador da delegadaque persegueo falso es- na influência dos fluidos magnéticos. O que seduz os crentes, o que
piritismo)>,(i36)os laudos periciais são reveladores. Confirmam que a crença é
os conquista, os arrebata são as palavras labiosas sobre as suas per'
reconstituída a partir de fragmentos e que, nessareconstrução, alguns segmen- tonalidades proferidas pelo pontífice e que lhes emprestamvirtudes
tos -- como os macumbeiros,
terminamcarregando
o pesode seremo que não possuem; são as predições cheias de esperanças emanadas
esp;ríffsmo desvirtuado. Os peritos descrevem os objetos:
da boca do adivinho
Dois tambores, uma cruz grande de madeira, uma espada sem E como se crê, facilmente, no que se quer crer, a dama que não
bainha, uma cuia, cinco caramujosgrandes,uma figa-de-guiné,um acredita na fidelidade do esposo; o pro6teur de guerra que em nin-
cachimbo, quatro pacotesde pólvora, três charutos, seis medalhas
guém confia, o negociante que desconfia de sua própria sombra e
de metal branco, uma medalhade metal amarelo,uma pedra de até o político profissional conhecedor das trincas e mexericos da po-
breu, um frasco branco contendo uma cobra conservada em álcool.
liticagem e, por isso mesmo, desconfiadíssimo.-- todos essespersa'
um frasco pequenocontendoparati, um pau-de-guiné,três papéis nagensde matizes tão diversos, sem exceção de.um só, confiam ce-
com vários dizeres,uma garrafacom vinho de cana, uma garrafa gamente no macumbeiro, seguem os seus conselhos; sem que a sua
de parati.
consciência se revolte, e aceitam como dogmas os seus ensinamen-
Submetidos a exame, são classificados como objetos que pertencem ao tos. os mais absurdos, desde que essesconselhos, essesensinamen-
material comumente empregado pelos indivíduos que exploram a credulidade tos, corram parelha com seus desejos(o que sempre acontece)se.ca-
pública, através da prática do falso espiritismo. Diz o laudo: sem com sua vontade. Das classesignorantes nem vale a pena falar:
naqueles cubículos todas as camadas sociais.se nivelam, quando se
trata de ouvir a palavra misteriosa, prenhe de ciência do i/umfnado
(135) Sabre Perícia fvlédíca ver Correa, 1982.
(o grifo é dos autores). E enquanto isto acontece, as espórtulas caem
(136) Processon' 165, ano 1929, caixa 30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. a granel na sacola dos espertalhões. Os mais limpos, os civilizados,
]Ó2
yvonneA4aggíe Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

osprofessores,essesnão tuba/bam por interessematerial: (os auto. A narrativa dos peritos nessecaso é sucinta. Limita-se a dizer que <lpelo
res continuam gritando) não recebemestipêndios; aceitam, porém examedos objetos conclui-se que o acusado, logicamente, entrega-seà prática
arrobas de cera para o culto, peçasde sedapara o ornamento do do falso espiritismo>.Na lista dos objetos apreendidoshá muitos objetosda
templo e se servem de meios outros cujo fim é lograr o seu seme- vida cotidiana. Mas, para quem participa da crença, o fato de vê-los juntos,
lhante, extorquindo-lhe dinheiro. Os objetos descritos e já enumera- assim dispostos e contendo cerveja, a bebida de ogum, vencedor de demanda,
dos, assim como outros muitos, que não constam da relação men. não há dúvida de que serviampara o despacho,o feitiço contra alguém.Os
cionada, pertencem ao material, que entra como parte indispensável peritos que com essesfragmentosdevem reconstruir a crençaem narrativa
no cerimonialda macumba.E aquelesem cuja posseforam encon- convincentenão precisamdizer muito. Todos já sabem, a essaaltura -- 1930
trados, logicamente, praticam o falso espiritismo. Este, o modo de --, que objetos assim dispostos servem para despacho.
ver dos peritos. As descriçõesdos peritos são eloqüentes. No caso do processo intitulado
Assinam o laudo os peritos Otacílio Leal e Cláudio Mendonça, que certa- 'Rei Congo linha de umbanda e o baixo espiritismo,(13a) no qual foram acu-
mente copiaram frases de Jogo do Rio, sem cita-lo (Rio, 1906). sados Iracema Brandão e José Tavares, diz o flagrante que cerca de 23
A narrativa que acabamosde expor na íntegraé uma amostra da estraté- horas,(139>na casa do lote 7 da Rua F, em Irajá, foi presa Iracema Brandão
gia seguida pelos peritos. Eles negam a verdade dos fatos que descrevem. mas «por prática do baixo espiritismo e exercício ilegal da medicina>}.Foram
sua narrativa é construída de forma apropriada. Talvez ao final já não achem apreendidos os seguintes objetos:
os acusados tão velhacos e até os procurem na aflição de uma dor ou da ambi- Um capacetede penas, cinco cachimbos,quatro panos com si-
ção. A velhacaria, a fraude dos antros de macumba, aponta para a verdadeira nais cabalísticos,dois punhais, sendo um com bainha, uma camisa
feitiçaria. de um lado, e para a verdadeira magia benéfica, de outro. Negando encarnada, um capacete encarnado, seis pacotes de fumo, um pires
que essescharlatães específicos estejam usando forças sobrenaturais, não ne- de folha, vinte velas, uma palmatória, um avental encarnado,um
gam que elas possam existir. Sociologizando a magia, dizem que a velhacaria é fogareiro de barro com sinais cabalísticos, três pedaçõesde giz
fruto do meio. (pemba), nove charutos, um colar (guia), um breve com fitas de cor
Em 1930, Leopoldo Alves é preso -- processo intitulado <IGuerrade orixá e a quantia de 21 e quatrocentos réis.
no Morro de São Carlos.(ia7)No auto do flagrante,diz o motorista da assis- No 1audopericial, Cláudio N4endonçae Otacílio Leal dizem que:
tência Satisfeitasas formalidades legais, iniciaram os peritos o exame
.que hoje, (dia 22 de julho de 1930)por volta da primeira hora,
conduzia num carro da AssistênciaPolicial, o acusado(. .) Leopol- ordenado,findo o qual foram levadosa concluir que as peçascons-
do Alves por ter sido surpreendidoe preso em flagrantequando titutivas da matéria apresentadafazem parte do arsenalcomumente
empregado por indivíduos que se entregam à prática de bruxaria
praticava alas de 'magia negra', na sua residênciano Morro de São com o intuito manifesto de iludir a credulidade dos menosavisados.
Carlos; que foram trazidos igualmente (...) apetrechos utilizados pa- Na verdade,entre as coisasexaminadasfigura em primeiro lugar
ra a prática do falso espiritismo e arrecadadosna casado acusado
um capacetede penas. Tal peça é usada pelo pai-de-santo nas ses-
presente;que muitas pessoasseencontravamno local iá aludido as-
sõesde macumba quando pretende receber esta ou aquela divindade
sistindo aos trabalhos do acusadopresente, que não só Leopoldo Al- em manifestação. Os cachimbos e os charutos entram como apetre-
ves como as demaispessoasforam apresentadas à autoridadeque
preside este ato. chos indispensáveisno cerimonial bruxo. O médium não se mani-
festa sem ter entre os lábios o charuto ou cachimbo. Os panos com
Os objetos eram: sinais cabalísticos conhecidos pela denominação de pontos são obje-
Cinco velas, um embrulho com pólvora, um pedaço de giz co- tos da míse-en-scênepara se criar um ambiente impressionante. Os
nhecidopor 'pemba', dois pedaçosde giz, um breve, uma medalha, punhais também chamados ponteiros plantam-senos pontos para
um parescom pó preto e pó branco, um litro de parati, duas garra- afugentar os maus espíritos. A palmatória serve para castigar os
fas de cerveja,dois vidros de azeite-de-dendê, uma cuja, um prato (138) 1racemaBrandão e JoséTapares Filho, Processo n' 172, caixa 1.897, ares. 157 e 158, Vara
de louça, um fogareiro de carvão, um copo de vidro, um caderno I', ano 1930, Arquivo Nacicnnal, Rio de Janeiro
com pontos diversos, papéis e uma lista para subscrição. (139) A hora em que grande parte das pessoasé presa também tem significado. É a Hora Grande,
(137) Leopoldo Alves, Processo n' 193. ano 1930, caixa 1.795, ares. 157 e 158. Vara la, Arquivo a hora dos exus. Até }\oje, nos terreiros, essahora é dedicadaa essesespíritos-- exus --
Nacional, Rio de Janeiro. que representam a traí)aça e o feitiço. Ver sobre isso, Maggie (1975).

]Ó4 e e ]Ó5
yvonne Maggfe !cedo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

médiuns recalcitrantes. O fogareiro para se queimar o defumador O material é levado a exame ainda embrulhado e os peritos dão o laudo=
(...) Os objetos examinados se empregamem diversos ritos dos cul- Aos peritos Claudio de Mendonça e Otacilio Leal, nomeados
tos bruxos
pela autoridade competente para opinarem sobre a matéria que deu
Quanto à natureza dos objetos e sua aplicação, dizem os peritos: «Os di- origem ao inquérito a que respondeOlivia Batista, acusadade ha-
tos objetos se destinam à prática do falso espiritismo>}.Quando inquiridos se ver colocado um embó (trabalho) em determinado local, no dia três
pelo exame dos objetos se pode concluir que os acusadospraticam falso espiri- de junho do corrente ano, foi apresentado em embrulho contendo:
tismo e se entregam ao exercício ilegal da medicina, respondem{.sim, os acusa-
dos exercemo ofício denominado de curandeiro» a) dois charutos;
O leitor deve perdoar a repetição deste laudo pericial. É uma verdadeira b) uma caixa de fósforo;
aula de classificaçãoe hierarquizaçãode cu/fos: As sessõesde macumba. tão c) um vidro pequeno, contendo 'parati
bem descritaspor todos, são consideradas baixo ou falso espiritismo. Os peri- d) uma porção de farofa amarela.
tos revelam aqui que os proprietários dos objetos são bruxos, macumbeiros
Satisfeitas as formalidades legais, deram os peritos início ao
Os peritos definem o que deve ser perseguido, o que é falso, o que é bai- exame ordenado e o resultado a que chegaram é que se trata, de fa-
xo espiritismo e o que é bruxaria. Aparentemente, na década de 30, o baixo to, de um embó (despachoou trabalho) a matéria examinada. O
espiritismo é a acusaçãoimputada à macumba e ao candomblé, aos quais são fim a que se destina é enfeitiçar a pessoa contra quem se deseja al-
atribuídas as características que compõem o lugar do feitiço, da magia negra e go. E é justamentepara produzir-seenfeitiçamentoé que se lança
da fraude. A narrativa dos peritos é cheia de afirmaçõesque têm o intuito de mão do embó. Referindo-seaos 'trabalhos' ou embós, assimse ex-
convencer. Por isso falam do capacete de penas usado
prime Ortiz no seu trabalho l,os Negros Brejos. 'Para produzir la
pelo pai-de-santonas sessõesde macumbaquando pretendereceber salación (enfeitiçamento esclarecimento dos peritos) es para lo
esta ou aquela divindade em manifestação. Os cachimbos e os cha- que con mayor frecuencía /os bruços componen embós. En estesde-
rutos entram como apetrechosindispensáveisno cerimonial bruxo. positan e] ma]efício, e] bi/anão ó mafiunga (bilongo é o fluido, por
Os peritos servem assim de mediadores e os juízes acabarão convencidos assim dizer, que se desprende do embó explicação dos peritos), y
do feitiço atravésda sua materialidade,ou seja,dos objetosda feitiçaria basta que una persona se ponha en su contacto para que seasa/ada.
Foram necessários50 anos de República para se definir com convicção E/ bí/ongo no se transmite sino á la personacontra la cual seprepa-
quem eram os verdadeiros feiticeiros. No Código Penal de 1940 se delineou ró el ambó; pero si no se hizo contra personadeterminada,enton
claramente o perfil dos acusáveis: macumbeiros e candomblezeiros, ignorantes. ces cualquiera puede ser su víctima. En los bardos pobres de la Ha-
bana no era raro ver, especialmente en oiros tiempos,y todavia se
ve á menudo, tirados en las acerasde las caulesó en los umbrales
de las casas, sobre todo por la magana, envoltorios de trapos con
17 A crença como evidência
temendo embós, en los que algumasignorantes depositaramtoda la
malignidad de sus daítinas intenciones. Las materiais que entran en
Ficou para o final um processode 1930, único entre todos levantados. la compósición de los embós son incontables: cabellos, cenizas,
porque o acusado é preso na rua. É o processode Olivia Batista,(i40) dientes, upas, huesos y excrementos humanos, mais, ecó, diversas
presa na encruzilhada das Ruas Alayde e Mana José, quando colo- semillas, cáscaras de frutas, botones, trapos y demás objetos perten-
cientes á la persona que se deseaembrujar; hierbas y hajas, ciertas
cava um volume contendo vários objetos apropriados à prática da
magia negra, vulgarmente denominado despacho. plumas, patas y crespasde galão y de obrasaves, trozos de cuerno y
de círios, alacranes, sapos, caracoles, azuelos, clavos, pólvora, mo-
Na polícia, diz a acusadaque fazia uma oferenda a São Jorge, pois estava nedas, manteca de cortejo, almagre, etc.' Na ausência de banha de
doente do útero e queria restabelecer-se.O casal que se encontrava com ela coruja, lançam mãos os feiticeiros do azeite-de-dendêde que fazem
diz que apenasa acompanhava. Olívia diz que aquele trabalho tinha sido re- a farota. São inúmeros os ingredientes que entram na confecção dos
comendado por uma vizinha, que não sabia nem onde estava.
embós, como diz o autor citado e varia a matéria empregada. con-
forme a natureza do embó. Pensam os peritos nada mais ser preciso
j140) Olivia Batista, Processon' 156, ano 1930, art. 157. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. adicionar-se e, assim, passam a responder aos quesitos formulados.
yvonne A'faggfe Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

]' (?uesffo O Estado. através dos três artigos do Código Penal, procura classificar os
mistificadores. feiticeiros e curadores e procura distinguir os que usam mal os
Qual a natureza dos objetos examinadose a sua aplicação? preceitos do espiritismo dos que usam os verdadeiros preceitos.
O processomais comum para se descobrir se o acusadoé feiticeiro, xamã
2' Quesífo ou charlatão,sobretudoa partir dos anos20, é arrecadaros objetos(apetre-
chos) na hora da prisão e manda-los para os peritos que, conhecendoa fundo
Pelo exame da matéria apresentada conclui-se que a acusada
pratica o falso espiritismo? a feitiçaria, vão poder dizer se são objetospróprios para fazer o mal ou se são
objetos (arsenal) usados por mistificadores e charlatães. Por essesobjetos,
pode-setambém saber se são feiticeiros os seususuários.
Resposta
Nossosjuízesse convencemda veracidadeda feitiçaria e da cura mágica
através da narrativa dos peritos, que reconstroema crença a partir dos frag-
Áo prfmefro quesífo: Prejudicadaa primeira parte pela descri-
ção da matéria apresentadaa exame. Quanto à segundaparte, tal mentos descritos pelos acusadose testemunhase pela polícia no auto de
matéria se destina à prática da bruxaria. Áo segundoquesito: Logi- apreensão e no flagrante.
camente, sim. No caso de Olivia Batista, os peritos dizem que a coisa -- o despacho --
é um trabalho para o mal. O promotor nega. Não seencontrou outro processo
os peritos analisam o embó, segundo suas palavras, porque as testemun- como esse, mas o procedimento é, aparentemente, corriqueiro. Os processos
has, a acusadae os policiais falam em trabalho e despacho.Citam o antropó- são feitos por afirmações e contestações, como diz Lévi-Strauss (1985). Os pe-
logo cubano Ortíz para definir feitiçaria e concluem que a acusadaestava pra- ritos estão afirmando, narrando a crença, e os promotores e juízes podem
ticando atos de magia negra. Os peritos são os mesmosque examinaram obje- contesta-los. Os acusadosnegam sempre a acusaçãodos promotores, que po-
tos de fraude, só que desta vez, descrevema crença nos poderesocultos de dem aceitar a versão dos peritos e defina-los como feiticeiros. A estratégiaper-
produzir o mal. mite que todos se posicionem diante da crença. O promotor que absolve Oli-
via contesta os peritos com o mesmo argumento por eles apresentado: há tra-
O promotor, no entanto, manda arquivar o processo usando o argumen- balhos para a bem e para o mal. Salvaguarda-se assim a crença na magia.
to de que a acusadaia fazer o trabalho para si própria com o objetivo de
A crença construída nesseespaço jurídico formula as categorias que tam-
curar-se e não fazer mal a ninguém.
bém operam na sociedademais ampla. Em outras palavras, a instância jurídica
O texto legal e o texto da crençasão homólogos.Ninguémpoderádizer formula categoriasde crime e cu]pa. verdade e mentira, ma] e bem a partir das
que essacrença é de negros e ignorantes.:O Estadoparticipa dela como nos mesmaspremissascom que são formuladas na sociedadecomo um todo. A es-
processosde caça às bruxas européias. A diferença é que aqui no Rio de Janei- fera jurídica é um dos espaçosde luta onde a crença vai tendo que ser cons-
ro, de 1890 a 1940, a crença não se funda na possessãodemoníaca, mas na truída. Há nessa luta versões ou discursos de perdedores e vitoriosos.
ideia de que algumas pessoas têm poderes de <(recebermanifestações de espíri-
tos para produzir malefícios)}. Tanto é assim que no inquérito policial o pro-
motor absolve a acusadaporque ela não estavafazendomal a ninguém. Esta-
va usando os poderespara a própria cura. O sistemade crença faz, portanto,
distinções: há poderes mágicos para curar e poderes mágicos para produzir
malefícios, e há ainda a fraude.

A crença comum a todos é a de que os espíritos -- caboclos, divindades


maus espíritos etc. -- podem se comunicar com os vivos. Essesespíritos po
dem ser usadosde maneira fraudulenta, mistificadora, charlatanesca,para ilu
dir a boa-fé e podem realmente fazer o mal, através dos feiticeiros. bruxos
macumbeiros e baixos espíritas. Altos espíritas usam os espíritos para o bem
para a cura, no sentido do xamanismo. Persegue-seos mistificadores e feiticei
ros

e ]Ó9
Capítulo IV
A crençana feitiçaria na República
O Feitiço é nosso vício, nosso gozo, a dege-
neração
(João do Rio, 1906)

Essa primeira parte do trabalho mostrou como se estruturam os processos


criminais. Desvendou as formas de acusaçãoe os modos de se condenar. Des-
creveu as várias versõesdos personagensque compõem a trama processuale
as três peças fundamentais dessatrama -- o auto do flagrante, o auto de
apreensãoe a perícia. Todos essesângulos por onde se pode ler os processos
apontaram para as hipótesesgerais de início colocadas. Em primeiro lugar, os
personagens da trama parecem participar das mesmas premissas culturais. Em
segundolugar, relativizandoa hipóteserepressiva,tudo leva a crer que a re-
pressão não barrou o desenvolvimento das crenças, ao contrário, parece ser
fruto da mesma rede histórica que funda o campo denominado de campo da
feitiçaria.
Resta saber como essa crença é narrada e como se dá a relação entre a
crença e as instituições jurídico-burocráticas envolvidas com a repressão.A
idéia lá esboçadade que a vontade de saber se alia ao poder será aprofunda-
da. Por poder não se entende uma instância maquiavélica e cínica que controla
um grupo mgênuo e se aproveita da ingenuidade. Eis uma questão-chavedo
trabalho: como se dá a relação entre os discursos que se entrelaçam?
O leitor se pergunta: se todos vivem a partir das mesmaspremissascultu-
rais. onde está o discurso dos dominados e o dos dominadores?
Essa pergunta merece reavaliação. Tudo se passa como se na instância dos
processos os personagens falassem a mesma língua. Mas, é claro, há divergên-
cias nem todos estão referidos às mesmastradições e contextos. As falas dos
acusadose dos acusadoresnão se opõem enquanto sistemas.Não se pode dizer
que a fala dominante está sempre do lado dos acusadores.Além disso, a cren-
ça tem uma cronologia. Há princípios gerais que permaneceme há categorias
que se modificam. Deve-se agora discutir a «nossa»crença na feitiçaria.
C) Brasil republicano, até 1940, conheceu apenasum conceito de feitiçaria.
Acreditava-se no poder da magia maléfica, diferentementeda Inglaterra dos
e ]73
yvonne ]Waggíe N4edodo feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil

séculosXVI e XVll (que tinha dois conceitosde feitiçaria, um popular -- a própria existência dos rituais. A associação da magia com a loucura, por
crençanos poderesocultos de produzir malefícios-- e outro ligado à concep- exemplo, revela uma dessassutilezas conceituais. Os processospassama ideia
ção teológica), a essênciada feitiçaria não estavaligada à noção de diabo.(t4tl de que os espíritos podemproduzir a loucura de forma mágicaatravésde for-
O medo de malefícios está na base de grande parte das acusaçõesnos proces- ças sobrenaturais, mas há pessoasque acreditam em que a loucura é produzida
sos criminais analisados. aí porque o meio é promíscuo,anémico. Os rituais produzemo mal porque
Não se pode saberao certo a extensãoda crençana possibilidadeda ma- sãoprodutos do mal social.
gia maléfica porque é difícil quantificar crençasdo passado.Nem mesmo Seguem-se alguns exemplos.
adiantiaria contabi]izar o número total de processoscriminais referentesaos Um dos famososjuízesda corte de apelação,Gabriel Luíz Ferreira,no
três artigos em questão no período, porque muitas acusaçõesnão chegavam a processo de Antonio Alves Lopes,(145)assim se refere ao problema:
produzir processo formal. Sabe-se,no entanto, que hoje é grande o número de A questão seria: é ou não verdade que o espiritismo tem dado
pessoasno Rio de Janeiro que se consideram vítimas de ataques místicos. Os lugar a inúmeros casosde loucura, e que seu desenvolvimento é um
inquéritos policiais levantados(i42)totalizam mais de 500 casos,embora se sai- favor constante de degeneração mental?
ba que muitos dessesinquéritos não chegavam a constituir processoscriminais
Inúmeros outros processosaté 1940 se referem a essemal produzido pela
e que muitas acusaçõesgeravam batidas policiais que não chegavaih sequer a
ser registradas. Não se pode deduzir dos processoscriminais analisadosporque crença nos espíritos e a discussão travada em torno da elaboração do Código
Penal de 1942 se dá em torno dessa idéia.(14Ó)
algumasacusaçõesde feitiçaria geram processosformais e outras ficam apenas
a nível local ou são resolvidasdentro dos terreirosou centros.(143) O que se Num dos relatórios do delegadoMattos Mendes, no processocontra Ale-
pode dizer é que os processosformais aqui tratados são como pontas de xandrina Antonio e Joaquim Fernandes,(i47)em 1929, diz o delegado:
iceberg. Mesmo essaponta é incerta, pois os registros se perderam e se depen- Segundoa ciência,o falso espiritismoé o segundofalar de lou-
de apenas de suposições razoáveis. cura. Quantos infelizes encontram na macumba o caminho reco pa-
Da virada do século até 1940, há uma constante referência à crença em I'a os IT'lâRICÕll\lOS.\i'to/
espíritos. A idéia central é a de que alguns espíritos podem fazer o mal, produ- Essa idéia está presenteem relatórios do chefe de polícia desde1927 e
zir malefícios -- são às vezeschamados de baixos espíritos. Mas existem os al- Mantosl\tendes, como outros delegadose juízes, incorpora a noção.
tos espíritos, ou espíritos superiores, os que fazem o bem. Há ainda a noção
de que as pessoaspodem usar mal ou abusivamente os preceitos do espiritis- No processode Antonio Amorim Machado e Elvira de Jesus,(149)
apare-
cem essasvertentes com muita nitidez. A segunda acusada é examinada por
mo, ou seja, usar mal os espíritos e, assim, produzir malefícios. Além disso, há
peritos psiquiatras que, em seu laudo, dizem:
a ideia .de que existem mistificadores. A categoria mistificar é usada até hoje, e
desdea virada do século,com o sentido de fraudar. A categoriacharlatãoé indivíduo de fácil sugestionabilidade mental sem qualquer cultu-
associadaà de mistificador e começa a ser mais empregada a partir da década ra intelectual que após um delírio de origem tóxica aceitou como
de 30. Os mistificadores, nos processos,como nos terreiros hoje, em dia, são verdadeiros os aros e alucinações auditivas... o onirismo de caráter
os que são acusadosde fingir poderes mágicos. Na concepçãode mistificação místico... forjado pelo ambiente inculto e estimulado pela atenção
estácontida a idéia de mentira, de falsidade,tão comum nos terreiros, exigin- dada pelos circundantes (sincera ou não) ou pela crendice dos que
do provas de fogo, que verificam se o acusadoestárealmenteincorporado ou Ihe procuravam, destinou 2 horas da semanapara a prática dessa
se está fingindo,(144) mistificado. santidade.
Mas além dessascontinuidades e consensos,são cruciais as sutilezas con- O delegado a retira do processo como acusada porque ela tinha sido reco-
ceituais na definição do que seja a feitiçaria ou de como os poderesocultos se lhida à Assistência aos Psicopatas e pede que o juiz interne Elvira nessehospi-
tal. As testemunhasouvidas são unânimes em ressaltar que:
caracterizam.Há de um lado, a crença nos poderesmágicosde produzir o mal
e, de outro, a socializaçãoda magia, quando se vê o mal como produto da (145) Processon' 691, ano 1898. caixa 1.859, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(141} Sobre os conceitos de feitiçaria na Inglaterra, ver Thomas (1970) }
(146) Ver Capítulo ll e a segundaparte do trabaho. Com o casodo Centro Redentor,volta-sea
essaquestão
(142) Os inquéritos policiais foram levantadosno Centro de Microfilmagemda Polícia Civil, na
16' Delegada de Polícia, como foi visto na Introdução deste trabalho
>

(147) Processon' 165, ano 1929. caixa 30, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(143) Sobre demandas e acusações, ver Maggie (1975). (148) Ver Capítulo ll
(144) Ver sobre isso, Maggie (1975). 1149) Processo n? 273, ano 1931, caixa 1.897, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

]74 e
Yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

praticam o espiritismo e dão consultas, passesfluídicos e uma Assim nossasconcepçõesde feitiçaria compõem um sistema fechado como o
beberagemque é preparada por ambos e dada aos presentesem pe- sistema zande.(iS4)
quenos cálices de vinho.
A versãoliberal do direito, descritano Capítulo ll não nega o valor e a
Os psiquiatras e o delegado, nessaversão, acusamo espiritismo -- o meio verdade da crença. Penaliza apenas aqueles que prometem coisas que não po-
-- de ser causador da loucura -- do delírio místico. Ou seja, socializam a ma- dem produzir. Viveiros de Castro, o juiz maranhense,representaessaposição.
gia, e desacreditando nos poderes ocultos da magia, divergem da crença dos
Para ele, a feitiçaria é uma crença, e deve ser respeitada como crença do pas-
que testemunham no processo, que acreditam nos poderes ocultos da acusada. sado, mas deve-se perseguir os falsos feiticeiros. Além disso, o curandeirismo
Os psiquiatrasnão negamo poder e a característicado <(fenâmenó)>
que aco- supõe um saber que deve ser legalizado. Assim, a magia não deve ser questão
mete a moça l<duasvezes por semana>>.
O que eles põem em dúvida é seu ca-
ráter sobrenatural. legal. A lei deve se restringir aos que mentem e fingem em proveito próprio. A
vertente liberal expressapor Viveiros de Castra não difere tanto da visão posi-
Médicos e juízes estão referidos a outros contextos, mas acabam envolvi- tivista.(ISS)que acredita ser a magia uma etapa da evolução. O liberalismo
dos pela crença na magia. Os médicos descrevemos sintomas da paciente co- consisteem deixar essaetapa conviver com a civilização, restringindo e con-
mo <(onirismo místico>>, e a causa do <(onirismo>>é colocada no <(ambiente». trolando os falsos e fraudulentos. Um argumento tautológico leva sempreà
Juízes,assim como médicos referidos a linhas e correntes de sua disciplina, pa- oposiçãoclássicaentre verdade e mentira. Para saber onde se dá a fraude, é
recem, no entanto, convencidos de que há «fenâmenop>que devem ser expli- precisoregulamentaro que não é fraude. A verdadeira feitiçaria, ou melhor, a
cados. crença, acaba preservada.
A associação dessascrenças mágicas com a loucura está presente na ver-
A versão do direito positivo, cujo expoenteé o juiz Gabriel Luiz Ferreira,
são de médicos, juízes e advogados, podendo-sedizer que é uma versão erudi- citado mais acima, que penaliza o espiritismo como um mal em si, desacredita
ta. No entanto,pela experiênciahoje nos terreiros,percebe-se
quepessoaspo- os efeitos da magia Não consegue, porém, ultrapassar as barreiras do sistema
bres, com pouca escolaridade, também vêem a loucura como consequênciada
cognitivo da feitiçaria, já que pensa a mentira, o charlatanismo, a exacerba-
feitiçaria.(150)Há duas vertentes paralelas no tocante à questão. Uma afirma ção, como mal objetivo, que produz e é produto de anomia, de degeneração
que os malefícios mágicos atacam a vítima e produzem conseqüênciasobjeti-
vas, perda do emprego, do amante, doença, morte e loucura. Outra socializa a social e, por isso, de loucura. Nina Rodrigues,mestre dessaposição, tem em
Viveiros de Castra seumaior opositor.(ISÓ)Os {ediscípulos»de NanaRodrigues,
magia. Ou seja, a macumba, o candomblé, o espiritismo alto ou baixo, produ- como Afrânio Peixoto, Juliano Moreira e Leonídio Ribeiro, dentro dessaver-
tos da anemia, acabam produzindo um mal social: a loucura. O delegado cita-
são apontam para o perigo social das crenças mágicas.tn/P
do acima afirma que o espiritismo é o segundofalar de loucura.(iSI) Assim, a
magia não existiria enquanto mal sobrenatural que ataca vítimas. A versão A versão do direito positivo se diferencia em parte da versão mágica
que associa a feitiçaria com loucura desqualifica a crença nos poderes ocultos quando acredita em que poderesocultos podem produzir a loucura. De algu-
de produzir malefícios e culpabiliza os feiticeiros pela fraude mas, invertendo a ma forma. na versão do direito positivo, a magia não é um sistemade produ-
crença na magia, transforma poderes ocultos em mal objetivo, produzido pelas ção de malefícios ocultos, mas um sistemaobjetivo,(iS8)que vigora em situa-
relaçõessociais vigentes. Os terreiros são vistos como o lugar da produção da ção social anémica, fora do controle, impura.(IS9)
loucura por serem anel-sociais, por estarem isolados, fora do controle, em «lu-
gares ermos e de difícil acesso>>,no dizer do fundador da medicina legal.(IS2)
São produtos da anomia social, sobrevivênciasdo passadoe produtores, por (154) Ver Evans-Pritchard (]978)

sua vez, de anemia, desordem social e degenerescênciada civilização.(iS3) Isso (155) Deve-se fazer uma ressalva quanto ao positivismo no Brasil. São várias as vertentes. De um
tudo se produz também porque há fraude, engodoe mentira para explorar in- lado, há a vertenteda religião positivista, do templo positivista. De outro, os adeptosdo di-
reito positivo, cujo expoente foi. no final do século, Nana Rodrigues. São diferentes suas po-
cautos. Sabe-seque a crença na feitiçaria implica na possibilidadede fraude. sições quanto à questão de se coibir ou não essaspráticas. Isso é discutido no próximo
capítulo
(150) No caso do terreiro, estudado em Guerra de orfxá, um dos medos dos médiuns era a loucura (156) SobreNanaRodriguese o debatecom Viveiros de Castra, ver Correa (1982)
provocada por feitiçaria (Maggie, 1975).
(157) Ver a tesede Oliveira (1931)
(151) Essaé a versão expressano relatório ao ministro do Interior, de 1927,citado na Introdução
lts8) A questão da objetividade da magia é discutida no último capítulo do trabalho.
(152) Ver Rodrigues (1935).
(159) As acusações a certos segmentos das religiões abro-brasileiras pendem para esselado da ano-
(153) Ver Arthur Ramos (1937) e Bastide (1973) mia. da poluição, da sujeira, do vício e das relaçõeseróticas. Ver sobre isso, Maggie (1987)
yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasa!

Considerar o espiritismo um mal em si é radicalizar a vertente positivista. 18 Homologias: as categorias da crença e as categorias
Os seusadeptos propõem a punição de um certo modo de ser espírita.(160)A jurídico-burocráticas
versão dominante entre os adeptos do direito positivo considera certos seg-
mentosdo espiritismocomo produto e fruto da anemia, e é por isso que se Tendo discutido as vertentes da noção de feitiçaria no Brasil, resta discutir
opta pela expressãomau ou abusivo uso dos preceitos do espiritismo.(161) As- o discurso dos atires dos processos. O leitor deve ter reparado que foram su-
sim, nem todo o espiritismo é produto da anemia, só o que usa mal seus pre- blinhadas algumascategoriase expressõesnas falas dos personagensdos pro-
ceitos produz a doença -- a loucura -- por ser fruto de uma situação social cessos.Essasexpressõese categorias fazem parte das várias falas que se entre-
desequilibrada. Os maus, perigosos, são os falsos espíritas ou baixos espíritas. laçam. As expressõese categorias sublinhadas não parecem estranhas a ne-
A interpretação é tautológica, acaba circunscrita à crença mágica. Ninguém di- nhum dos amores do processo.Os escrivães,que cometemmuitos erros na
rá que não há falsos espíritas, macumbeiros ou candomblezeiros que usem mal transcrição dos depoimentos e interrogatórios, não erram quando registram es-
os preceitos de crença, produzindo malefícios. Na versão da crença. os que sas palavras.
usam mal os preceitos do espiritismo são os feiticeiros. A comunicação a partir de categorias semelhantesé, de um lado, o indício
de que todos os envolvidos nos processospartilham das mesmaspremissascul-
Foi possível, então, detectar dos processos, essadistinção fundamental na
concepçãoda feitiçaria. De um lado uma vertente que vê a magia sociologiza- turais. As várias falas deixam transparecer que todos têm familiaridade com os
rituais e expressõesclassificatórias. De outro lado há, desde1890, uma incrível
da,'ao gosto da ciência social. De outro, uma vertente objetiva, que vê a ma-
coincidência entre algumas categorias do discurso jurídico burocrático e da
gia e os poderes ocultos intervindo nas relaçõespessoaise cotidianas. As duas discurso da crença. A coincidência parece apontar para a outra hipótese for-
vertentes da concepção de magia'se apoiam na idéia de que existem produtores
de malefícios,criminosos que devem ser perseguidos.Assim, os feiticeiros, mulada, de que a repressãoàs crençasmediúnicas,longe de barrar seudesen-
volvimento, é fruto da mesma situação histórica que as engendrou.
sendo os culpados pelo mal da sociedade, devem ser perseguidos.
Ao iniciar a leitura dos processos,trabalho, despacho,sessãoe consulta
C) debateentre a versãodo direito positivo e a do direito clássicoparece são as categorias que mais incomodam. É enorme a dificuldade de entender a
não chegar nunca a bom termo. Esse debate se entrelaça à versão dos acusa- que trabalhos estão se referindo. Fala-se em trabalhos burocráticos ou em tra-
dos. A idéia positivista de que é preciso reprimir o mau ou abusivouso de balhos da sessãode espiritismo? A cabeça embaralha com a categoria despa-
preceitos coincide com a idéia de fraude contida na versão mágica cho. A que despachose refereo promotor? O da encruzilhadaou o do juiz?
Que consulta estava sendo mencionada? A consulta da perícia médica? A con-
Fica, então, evidente que juízes, delegadose advogados, que têm a versão sulta do advogado ou a consulta do médium curador?
sociologizada mais claramente definida, estão também referidos a outros con-
textos de discussão. De início, não se consideroua homologia. A pesquisana literatura ficcio-
nal e sociológica é inútil. Nela se usa a palavra trabalho sem qualquer relativi-
Os juízes, por exemplo, também estavam ocupados com a discussãodo li- zação. Trabalhos de espiritismo, trabalhos para o mal ou para o bem, traba-
vre arbítrio, das razõese causasque levam o indivíduo ao crime. lhar com poderes,fazer um trabalho. Até hoje se usa essasexpressõesnos ter-
reiros, talvez o sentidose relacionassecom os negros.Quem trabalha é negro.
O entrelaçamento se dá também em outros níveis. Um deles é a busca de O ritual é de origem africana.Assim, o que é feito lá, é definido comotraba-
controle do saber, de um lugar, de um campo, pelas diversas vertentes. Outro, lho. No entanto, a categoria é usada desde o século XVlll, pelo menos, com o
em função da visão do mal como produto das relaçõessociais,aparecena re- sentido de serviços feitos por brancos ou pretos.
velação do lado conflituoso e problemático das relaçõessociais. (A crença na
anemia como produtora de malefícios é também uma crença na relação entre Certo dia, numa reunião de departamentona faculdade, de maneira for-
mal o chefe inicia a reunião dizendo: «vamos começar os trabalhos desta ses-
o mal e as relaçõessociais.O que explica e produz o mal são relaçõessociais
problemáticas) . (ió2>
são>}.Na mesmahora vêm à cabeçaos processos:no terreiro, comonos pro-
cessose nos aros burocráticos, as categorias citadas têm o mesmo sentido.
Trabalho é usado no sentido de ação realizada com um certo objetivo. Sessão
(160) Ver Capítulo ll é o tempo em que se dão os trabalhos. As outras categorias também se expli-
(161) Ver Capítulo 11,sobre a posição dos juízes frente a essaquestão. cam de forma semelhante. Despacho é a categoria jurídica que define alguma
(162) Guedes(1974)) analisando concepções de loucura na umbanda, no espiritismo e na psiquia- sentençaque faz o processocaminhar. Despacharexu ou despachona encruzi-
tria. aponta esselado relacional do conceito de loucura na umbanda e no espiritismo. lhada têm o mesmosentido, permitir a abertura de caminhos.

e ]79
rvonne À4aggie Medo

Se há homologia entre guerra de orixá e a guerra que se trava nos tribu-


nais, como se disse no segundo capítulo, há também homologia entre termos
empregadospara definir e descrever atividades forenses, burocráticas e catego-
rias da crença. Isso corrobora o argumento de que a lei cria segmentaçõesreli-
giosas porque traduz e distingue, hierarquizando alto e baixo, falso e verdadei- dos. cultores de caboclos, orixás, espíritos e santos.
ro e, além disso, coloca no papel aquilo que era apenasfalado, atravésdas Pensar essacoincidência como sincretismo pode levar, por caminho para-
exaustivasdescriçõesdos rituais e das situaçõesem que elesse verificam. Cria
segmentaçãotambém porque aceita a denúncia, a delação, como parte do pro-
cesso e segue a trilha das brigas internas, reforçando algumas facções e segre-
gando ou impedindo outras de se desenvolverem. Mas a leí é utilizada também
pelos vários segmentosque dela se apropriam em suasdisputas internas. Final-
mente, a lei funda a própria crençaem outro sentido, porque ao ser consti-
tuída nesseembate çom os mecanismos burocráticos, criam-se outras homolo-
gias entre os dois processos. A sessão, os trabalhos e o despacho passam a ser
egorias que servem tão bem aos dois universos que não é preciso traduzi-
das.O texto legal e o texto da crença são homólogos.(iÓ3)Ninguém pode dizer
que essacrença pertence apenasa negros e a ignorantes. O Estado participa da
crença, como nos processos europeus de caça às bruxas
A ideia de uma linguagem homóloga é, de certa forma, uma elaboração
que parte das colocações de alguns autores, de que há essahomologia entre a dem metonímica.
umbanda e a sociedade brasileira (Fry, 1983). Neste nível, a crença e o próprio
aparelho burocrático podem ser descritos como se fossema crença mágica Pe- 19 As expressõese categorias do universo. religioso não
ter Fry enfatiza a idéia de homologia comparando o ritual dramático da um- relativizadas: os discursos que concordam e o lugar
banda com a política e o sistemade favor da sociedadebrasileira.'A umbanda
seria a metáfora (Fry, 1983). As categorias despacho e despachante são usadas da divergência. F de Falso
no argumento do autor citado para pensar a umbanda como metáfora.(164)
Dentro dessa idéia de ritual como metáfora gramatical, as coincidências
assinaladas podem apontar para um sincretismo laico. As crenças mediúnicas
teriam sofrido um sincretismo com o discurso jurídico-burocrático. Não se'po-
de determinar a época na qual se originou tal sincretismo, mas o fato é que es-
sas categorias, presentesno discurso da crença, aparecem no discurso jurídico
desde 1890 e estão presentes nos dois discursos até hoje -- '
Com exceção
da categoriaconsulta,maisfrequenteno discursoda um-
banda e do espiritismo, as outras, trabalho, despachoe sessãoatravessam seg-
mentosdo candombléao espiritismo.
A explicação a partir da noção de sincretismo sempre pareceu suspeita
(Maggie, 1975).. A noção, tradicional na literatura sobre religiões mediúnicas.
$ Xi:
::::'UW=1.nU'=g$g.B
varinha para atrair espíritoP>
não dá conta do problema que se propõe analisar. Essenovo sincretismo é

""'$1BBillH$1
%i:ll#$$F:;
(164) Ver Fry, 1983,P. 40 (165) Processon' 571, ano 1898. caixa 2.002, Arquivo Nacional, Río de Janeiro

]80 e
yvonne À4aggfe Med

poimentos de acusados, testemunhas e do auto do flagrante e apreensão. Tudo


se passa.de forma a convencer de que o discurso sobre essesrituais e a recons-
trução da narrativa dramática feita pelos peritos só pudessese realizar com a
participação daquelesque fazem os rituais e são acusados.A forma e o estilo
oblíquo dos depoimentosfavorecem o relato de coisasdesconhecidas.rituais
pouco socializados, num jogo circular onde acaba-se sem saber qual o discurso
que domina
africano
Os acusadose os clientes dessesacusadosparecemse esforçar, como já se
disse, para dizer o que estavam fazendo na hora do flagrante.'0 esforço, no Uma das testemunhas,um investigador de polícia, diz:

$l g$$$ i nlinãlêl
A categoria .manifestação, por exemplo, significando possessãopelo espíri-
to, é igualmenteusadapor todos nos processos.Juízes,advogados,testemu-
nhas, peritos, promotores, falam nela semestranhamente.No discursode poli- determinados
ciais, delegados,juízes e especialistasdo processo,há traduçãode manifestada
por mediunizado, ou vice-versa. Na tradução não fica claro qual é a expressão
do vulgo. Há pessoas
transe.
que falam no estadode mediunidade
referindo-se
ao

Há categorias e expressões,no entanto, que parecem ser menos antigas.


As categorias caboclo e protetor, baixar e macumbeiro começam a aparecer
com mais freqüência a partir dos anos 30. Caboclo oxalá ou caboclo muçul-
mano tambémaparecemmaio a partir do final da décadade 20 início de 30.
assim como a tradução de trabalho por serviço das acusações de feitiçaria. .
As categorias desenvolvido e desenvolver, categorias-chave no universo
da umbanda, hoje, aparecemcom frequência, e semaspas.
: :l:l \lÍ=H':2$Hl:HUEUFÊH
::$ $11
B U::;a:=.çsl
: : n:
A expressãoumbanda só aparece uma vez no processo de Iracema Bran-
dão e JoséTavaresFilho.(IÓÓ}A acusadadiz que seuprotetor é o caboclo Rei
Congo, da linha de umbanda. O fato do termo umbanda só ter aparecido uma
vez pode significar que seusadeptos conseguiram ficar a salvo da polícia. e onde o consenso?
Mas há incongruênciaentre as diversaslinguagens.Se, de um lado, todos
(168)
identificam e podem falar nos termos da crença, há diferenças entre a fala do
policial que persegueo macumbeiroe a do macumbeiro. f
O processo de Rubem José de Souza e Carmem Pereira(IÓ7)exemnljfica a +

questão. Os acusadosdizem nos depoimentos que ' 'r"''b« « 4

lló6) Processon' 172, caixa 1.897, ano 1930, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
(167) Processo n' 247, caixa 1.853. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
+

;
yvonne Maggíe Med

Pelas descriçõesdos capítulos iniciais, vê-se uma discussãoem torno da Os peritos e a polícia usam aí a categoria mistificação no .sentidode falso,
concepção de espírito. Debate e divergência quanto à definição do verdadeiro o-verdadeiro. Mistificar é também usado nos centros e terreiros para se refe-
ou falso espiritismo ou transe. Discussão intensa sobre os mistificadores e rir a pessoasque fingem, que falsificam. Pode-seperguntar quem vem antes, o
charlatães. Há processos em que policiais respondem ao interrogatório em mistificador como categoria jurídica ou o mistificador como categoria religio-
juízo dizendo: sa
entrando a seguir na prática de tais cerimoniais geralmente usa. Em torno dessacategoriaao mesmotempo se dá a divergênciae se instau-
dos nas macumbas, que o acusado... estando manifestado. isto é. ra o consenso.
Há médiunsverdadeiros
e falsos.Há mistificadores.
Não há
em estado de mediunidade... possuído pelo espírito de São Paulo. possibilidade de fugir da idéia de fraude. Nessesentido, estabelece-seo consen-
estava 'realmente em estado de mediunidade' e não representando so entre os vários personagens-- juízes, médicos, acusadose testemunhas.No
uma comédia...(iÓ9) entanto. a acusaçãoao mistificador é função da relação acusadore acusado.A
Outros dizem que o acusadoestava medíunizadocom o espírito de Nossa divergência se instaura na definição de quem é o mistificador. (A categoria
SenhoraDolorosa, com o espírito de São Jorge, com o espírito do caboclo. e charlatanismo é usada também com o sentido de mistificação. Charlatãese
sabem disso porque conhecem a linguagem do caboclo mistificadores são sinónimos de fa/sos espírffas).
O debate ou a divergência maior parece se localizar na noção do verda- A quem interessa essahierarquização?
deiro espírito. Quem é o verdadeiro, o espírito superior. Nessedebate se posi- A literatura sociológicafala na vitória da umbanda. A partir dos anos30,
cionam diferentemente os diversos amoresdo processo. É a discussãomais im- ela se legitima no Rio, em oposição ao candomblé e à macumba, que se apro-
portante do campo religioso mediúnico e do campo da feitiçaria. Juízesse refe- ximam de uma tradição africana (Brown, 1986). Essedebateaparecenos p.ro'
rem em suas sentençasa espíritos superiores, distinção feita também por poli- cestos criminais em torno da idéia de verdadeiro e falso espiritismo, na defini-
ciais. O caso é definir quem está com os espíritossuperioresou inferiores. ção de quem é o charlatão, o mistificador. À medida.que se adentra os anos
quem são os altos e baixos espíritos. A discussãose desdobra em torno do ver- 30 fica mais claro''o que se considera feitiçaria é a prática do candomblé e da
dadeiro ou falso espiritismo. Quem são os falsos? macumba. Os peritos se pronunciam a respeito a partir de 1927. Há aí vitorio-
O consenso, por outro lado, se estabelece em torno de uma mesma ques- sos e derrotados. A macumba e o candomblé, definidos como lugar de magia,
tão: há espíritos verdadeiros e falsos, superiores e inferiores. Há mistificadores charlatanismo, loucura e crime pelo discurso acusatório não conseguema legi-
e médiuns verdadeiros timidade do espiritismo e da umbanda
O processode Olavo Alves da Salva(i70),
intitulado {.O místificadop}.es- A crença nos espíritos se universalizou entre nós, confirmando a hipótese
clarece o núc]eo, o lugar do consenso. de que a repressãonão barrou o desenvolvimentodessascrençasno Rio. Nos
A categoria mistificação aparece nesseprocesso exemplificando essa idéia processos,como no campo religioso, é possível haver debate porque todos são
de palavras comuns e língua diferente. Os peritos, no processo, respondemao capazesde formular a noção de espírito.
segundo quesito do formulário -- Se Laura Bohannan viesse fazer no Brasil o trabalho de campo que. fez

©ÜiBZ='!::u:lilB8ia ü:i:
em se tratando de mistificação, podem os mesmos(objetos) serem
utilizados para fascinar e iludir os incautos?
Dizendo:
kespearepara seu grupo porque, logo de início, viu-se às voltas com o proble-
A mistificação depende da credulidade ou pobreza de espírito ma de passara idéia de espírito, de espectro.Para os Tiv, um.morto só pode
de quem é mistificado e da maior ou menor habilidade do mistifica.
dor. No caso os diversos aparelhos examinados dada sua forma bi- reaparecerpelas mãos dos bruxos, pois não concebemas idéiasde corpo e
espírito tão comuns para os ingleses e para nós, brasileiros. Essa enorme difi-
zarra certamente agiríam como poderosos auxiliares na mistificação. culdade fez com que Laura Bohannanpassassea relativizar Shakespearee co-
Os aparelhos serviam para dar passe. nhecessemelhor os Tív, sua cosmologia e visão de mundo.
Na trilha de Laura Bohannan, não houve a menor dificuldade ao se con-
}

tar o Hamlet para os alunos de uma faculdade carioca. lcA quem devemos ser-
(169) vrocesso Antanho Amorim Machado e Elvira de Jesus,Processon' 273, caixa 1.987. Arqui-
Ç
vir, impressõessobre a novela das oito)} (Maggie. 1983), relata essa experiên'
(170) Processon' 2.379, ano 1940, caixa 1.816, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. cia
b

]84 e e ]85
t
Medo do
yvonne Maggie

Os alunos acharama história de Hamlet triste, até entediante.No entan- sim. em vez de suprimir a crença na feitiçaria, a lei aqui funda um sistemade
to. a relacionaramcom uma das telenovelasde maior índice de audiênçiada crençascompartilhado por todos. O sistemacognitivo compartilhado p.or to-
TV Brasileira. O Ásfro. No artigo fica claro que a idéia de espírito está abso- dos é baseado na crença nos espíritos e nos poderes ocultos de produzir ma-
lutamente presente na nossa cultura de massa, a ponto de açor e personagem lefícios. Não há nos processosanalisados quase nenhuma referência ao diabo.
serem vistos como uma mesma pessoa e muitos atores conceberemseu traba- O que se vê' mais freqüentemente
é a associaçãodo espíritocom a mal-
dade.(172)
a
lho como uma espéciede transe. A idéia de espírito é tão comum para nos que
não há possibilidadede estranha-la. Pode-senão acreditar em espíritos, mas as duas vertentesda concepçãode feitiçaria estão associadasà idéia de
todos sabemo que são. falso e de fraude. A versão que sociologiza a magia vê a possessãocomo frau-
Os processos criminais confirmam a universalidade dessa concepção na de e a fraude como meio propício para a produção da loucura. A fraude por
Brasil Neles ninguém estranha que um médium possareceberespírito, fazer sua vez é produzida pela anemia. A versão que vê a feitiçaria associadaa ma-
trabalhos de macumba, estar aluado, manifestado, mediunizado, incorporado. lefícios produzidos magicamentetambém pensa a possibilidade da fraude.
A mistificação, na versão sociológica ou na versão sobrenatural da magia,
Todos discutem em torno de uma crença comum: a existência de espíritos
é o ponto de concordânciaque fez todos serem cúmplicesda pers.eguição aos
que incorporam e da possibilidadede alguns desses. espíritos produzirem ma- fraudulentos. A idéia de mistificação também é assumida pela sociologia, não
lefícios. A dúvida parece se instaurar na definição de quem incorpora ou não só com relação à opção dos intelectuais pelos grupos considerados autênticos
o verdadeiroespírito e jamais se detém na existênciaou não.de tais puros,(173)como com a visão dos cultos como lugar de engodo, para conseguir
agentes.(171)Todos querem saber quem utiliza os poderespara o mal, mas a votos e vencer eleições.{iZ4)
propria crença nos espíritos jamais é colocada em questãol Como nos preces'
Fica evidente que a hierarquia que se criou -- e que se baseia na .idéia de
sos europeus de acusação de feitiçaria (Mandrou, 1979),. juízes, magistrados,
acusadose testemunhas participam da crença. O que se deseja enfatizar é que falsos e verdadeiros espíritos, rituais e crenças -- fundou um sistemade domi-
essesprocessosmostram que aqui todos participam das mesmaspremissascul- nação, com a cumplicidade dos muitos segmentosda crença. Aqui, como em
turais isto é participam das concepçõesque nós todos tentamos em vão colo- qualquer sistema social onde a feitiçaria exista enquanto sistemacognitivo e de
car como crençasdo passado, dos pobres, dos negros. comportamento, a hierarquia construída favorece certos grupos e disciplina o
a
campo
SÓassim se pode entender uma lei que não suprime a feitiçaria e baseia-se
numa lógica de delação e acusação para buscar feiticeiros e agentesanta-sociais
(Evans-Pritchard, 1978). Evans-Pritchard desvendou a lógica das acusaçõesde
feitiçaria e o próprio sistema de crença na feitiçaria, descobrindo que essesis- 20 Cronologia da crença. A macumba e o candomblé
tema cognitivo é um sistema de explicação ultradeterminístico, que visa dar as marcas da feitiçaria no Rio de Janeiro
sentido a, ou explicar, o imponderável. Os processosanalisados.apontam uma
crença que segue o modelo zande, um sistemade acusaçãofechado, do qual Discutidas as noçõescentrais do sistema de feitiçaria, resta entender o
participam acusados e acusadores. campo onde essesistema atua
A antropologia social inglesa, seguindo essapista, elabora uma explicação Todos os personagensparticipam da crença não só no plano das idéias
da lógica das acusaçõesde bruxaria e feitiçaria. Douglas (1970),entre outros, porque, como dizem os peritos plagiando João do Rio, {<poressescorredores
pensaessalógica a partir de seuviés político. As acusaçõesfazem parte de um
sistemade delimitaçãode fronteiras políticas.
Os processosrevelam que essetipo de crença em espíritos é compartilhada
todos os envolvidos nos processos.Os nossosmagistrados,como os juízes
do séculoXV] e XV]] na Europa, perseguemfazedoresde magianegrae.feiti-
ceiros, e os distinguem dos falsos feiticeiros e magos. Ao contrário dos domi-
recenão ter surtido um efeito sincrético
nadores ingleses nas colónias, que perseguiam os acusadores da feitiçaria As-
1173) Ver [)antas, 1983
1174) Liseas Nogueira (1985) opta francamente por essa interpretação numa versão sociologizada
(171) Os médicos e a versão sociologizada da magia desacreditam os espíritos, mas são capazes de aue vê as classescínicas se utilizando dos ingénuos
formular essa noção e traduzi-la psicologicamente
yvonne Maggíe Medo do fS

fetossão usadospara fins maldososou perversos.Os peritos respondemainda

;!:?J il:TE:l::l:lÜIB=;,F=1:=1;
mentos são classificados e constituídos.
sobre o significado de macumba e candomblé. Candomblé e macumba são reu-
niões de baixo espiritismo realizadas clandestinamente(177) por pais-de-santo
que trabalham com espíritos africanos e caboclos, atraídos por pontos riscados
ou cânticos. As manifestaçõesde caboclos, africanos ou santos são feitas espe'
Nos processosanalisadosse vislumbra a complexidadeda crençana feiti- taculosamente.(17Õ)
Como se disseno capítulo anterior, o laudo pericial hierarquizaos seg-
mentos da crença ao defina-los através das expressões baixo espiritismo ou alta
espiritismo. Produz também uma narrativa convincente da crença. Por esses
laudos se passa a saber o que é macumba, candomblé, espiritismo, espírito,
pai-de-santo, falso médico, charlatão e mistificador.
pelo espiritismo.
Como demonstra a literatura sobre o assunto,(179)se dá uma hierarquiza-
Os curandeiros, em geral, eram os que usavam poderessobrenaturais para
a cura. Grandeparte das acusaçõesse'referia aos poderesde produzir ma- ção. No Rio, o candomblé e a macumba trazem marcas deslegitimadoras por'
que reivindicam sinais de aproximação com a Africa.
lefícios, constituindo acusaçõesde feitiçaria.
Até 1927, no entanto, eram acusaçõesao espiritismo, de maneira geral. Os peritos definem as categorias classificatórias de modo relacional.
Não apareciam definições como macumba, candomblé e espiritismo científico, Assim. macumbaé a reunião espírita do rito africano, onde elosespíritos
que só começam a surgir a partir de 1920. manifestados, a maioria de caboclos e africanos, bebem, fumam, sambam,
cantam efetuando trabalhos». Essa descrição é relacionada com seu contrário,

gH#0rHOHR$:11 o alto espiritismo, consideradomagia branca, onde só se manifestamespíritos


brancos, atraídos por concentração. Na macumba ou magia negra, só se mani-
festam espíritos de caboclos.
arrasa etc.\i:''o/ Há peritos, no entanto, que não consideram a macumba, em si, magia ne-
Antes disso, azeite, pipoca, pés de galinha, velas e castiçais no Castelinho É uma questão de rito, havendo charlatães e exploradores que tanto usam
da Rua do Lavradio foram consideradosobjetosda bruxaria. alto como baixo espiritismo para o mal e pessoasboas, que os usam com)ln'
tuito caridoso. Essaversão dos peritos se aproxima da versão dos juízes.{'õuJ

ÊÜIHERIH8êlT$$i$W Objetos como os de Tio Julgo(i8i)são próprios para despacho:usadospa-


ra fins malévolos. Existem, porém, objetos usados apenasnas sessõesde invo-
cação (ie espantos. Algumas vezes, os objetos apreendidos são definidos tam-
bém como «arsenal dos bruxou}.
A narrativa da crença implica a definição de objetos, como o capacetede
penas usado pelo pai-de-santo, os punhais ou «ponteiros usados para afugen-
}- maus espíritos se plantados nos pontos» <(Todosessesobjetos.são usados
nos rituais bruxos>>.(t82)
Implica também a descrição pelos peritos dos que bus-
cam os rituais -- «um resumo de toda a sociedades,.
fronteiras. i/o/
Até 1927. como sedisse, não apareceno discursodos envolvidos nos pro' (177) Ver Capítulo lll
(178) Ver Capítulo lll
(179) Ver Brown, 1985; Danças, 1983
(180) Ver Capítulo ll
(181) Ver Capítulo lll
(175) Ver Capítulo lll.
(182) Ver Capítulo lll
(176) Ver Capítulo lll
e ]89
fdedo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasil
yvonnel\4aggie

falecimento de seus organismos centralizadores, as federações. Diana Brown


(1985) dá como data da origem da umbanda o ano de 1920. As federaçõesco-
meçam a pressionara polícia, enviando listas de associados,como se vê em
inúmeros processos da época

No processo de Eugenio José Rufino,(Í8Ó) o delegado manda perguntar ao


escrivão se o nome do acusado ou de sua residência consta de uma lista de fi-
liados enviada pela FederaçãoEspírita Brasileira. Nessa época, se tinha estabe-
lecido alguns acordos entre segmentosda crença e a polícia, por intermédio
das federações(Brown, 1985). Não consta do processo a respostado escrivão.
Desde que o delegado Mattos Mendes recebeu a comissão com jurisdição
prorrogada para promover a repressãoao baixo espiritismo e exercícioilegal
da medicina, instituiu-se a prática das listas das federações.Diana Brown
(Brown, 1985)diz que esseprocedimento data dos anos 30, mas o examedos
processos revela entendimentos anteriores.

Em 1934 se dá a criação da I' [)elegacia Auxiliar, especializada na repres-


são ao baixo espiritismo. No ano do golpe que instaurou o EstadoNovo, cria-
se a Seção de Tóxicos e Mistificações dentro da Delegada Auxiliar especial-
mente destinada ao combate a essetipo de delito. Dois anos depois do golpe
de 37, segundoDiana Brown (1985),como respostaà repressão,é criada a
União Espírita da Umbanda do Brasil por Zélio de Moraes, o fundador da um-
banda

repressivas têm história semelhante O primeiro congressode umbandase dá em 1941, ano em que Filinto
Müller, chefe de polícia de Getúlio, exige que os centros espíritas tenham regis-
tro tambémna Delegadade PolíciaPolítica.(i8Z)
A literaturasobreo tema
(Brown, 1986) reforça a hipótese das federações como consequência da repres-
21. O campo religioso e as instituições repressivas são

É a história do ovo ou da galinha. A repressãogera essasinstituições, que

diggHH$VH$HH!$4 1i acabam incriminando a macumba e o candomblé, para vitória da umbanda no


Rio? Ou todas surgem na mesma rede de acontecimentos históricos que con-
correm para a urbanização e as políticas de higienização?

llêü : m! n;n:;::;: são do delegado Maltas Mendes, para a repressão


Talvez essasperguntas não tenham resposta. O certo é que há estreita re-
lação entre o desdobramento da crença, a narrativa da crença e as instituições
jurídico-policiais.As homologiasdo discursojurídico e do discursoda crença
são marcantes. Pode-se dizer que o campo religioso se entrelaça com o
jurídico-burocrático-policial e médico e que essasinstituições são cruciais para
Em 1927, cria-se a comas , itaç dãn início à luta pelo for- o entendimento das chamadasreligiões mediúnicas.
al baixoespiritismo.Ao mesmotempo os espln

(183) Ver Capítulo lll. (186) Processon' 66, ano 1929,caixa 1.766, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
(184) Ver Capítulo ll (187) Ver Introdução à Parte l

C18S)Sobre o Rio de Janeiro da época. ver Carvalho (1987)


e IZ9]
IZ90 e
#

yvonne Maggie
+

Faz-seaqui um paralelo entre as datas de criação das instituições regula-


doras do combate aos feiticeiros e associaçõesque procuravam se diferenciar \

dos feiticeiros. +

TABELA 21- Relação entre instituições repressivas e espiritismo. \

Miríade de práticas de cura e tipos de


1890 -- Decreto que institui o Código Penal
espiritismo. Existe apenas a Federação
Espírita Brasileira como órgão centra-
lizador.
1904 -- Criação do Juízo dos Feitos da Saúde Pública
1920 -- Criação da umbanda por Zélio
1927 --; Criação da comissão do delegado Mantos de Moraes. Criação de federaçõese dis-
Mendes para a repressão ao baixo espiritis- P

mo. puta entre elas (Centro Redentor e


Federação Espírita Brasileira).

egacia Auxiliar especiali- As federações estabelecem acordos para }

livrar os seus associados da prisão.


zada na repressão do baixo espiritismo.
1939 -- Criação da União Espírita da
'1937 -- Criação da Seção de Tóxicos e Mistificação
Umbanda do Brasil. }

dentro da I' Delegada Auxiliar, especial-


mente destinada ao combate da mistificação
Ano do Primeiro Congresso de Umban-
11941-- Filinto Müller exige que os centrossejam re- da no Rio.
gistrados também na Delegada de Polícia
Política
As federações já são organismos fortes,
1942 -- Promulgação do Código Penal que modifica tanto as de umbanda
quantoas de
o artigo 157 do Código Penal de 1890. espiritismo

O quadro reforça o argumento de que tanto um lado quanto o outro sur-


giu e se desenvolveu
dentro de um mesmopanoramahistóricode
urbanização.\'õõ'

Não se pode distinguir da própria crença na feitiçaria o combateaos feiti-


ceiros nessesanos de República. Ele se deu em nome do medo dos malefícios.

(188) Diana Brown (1986) apontou para a relaçãoentre a repressãoe o surgimentoda umbanda
no Rio de Janeiro. Mas aqui se adora outra perspectiva talvez porque se parta de casosdife-
rentesdos tratados pela autora.
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C)brigaçãode um filho-de-santodo llê de Oxalá e Obaluaê. Miguel Couto


1979

C)xaláe Obaluaê. Nova lguaçu 1979

fx4atanca n
casa de ex
llê de Oxalá
e Obaluaê
fvliguel (.outc
1979

Despacho na encruzilhada fvqiguel (.auto, 1979


sua mãe de sangue, D. Helena. Miguel Couto, 1979 -- à esquerda

Migue] Couto llê de Oxalá e Obaluaê. Miguel Couto, 1979


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Medicina versusespiritismo: mancheteno l)iárío da Noite .«
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Pastor tenta exorcizar Mana Padilha na delegada. Foto, O Día 1979


a 8uR liberdade - fuste o quecus
Clndopld,, da F0-SPC; +
bHr8tQ ua .Casa ndrade»-Nla

Qõ n.yõ
e
'\
\

a NOTICIAS DA CEN
ORAL DO BRA$11

TIOSALÚ
celebre hino- írí"', que «'Idem»
como.OQeíe,naBü)ia, Alagoas e Perpambqco:na

a:ã%?Ü'HWh$;gW5U&%tl
Tio Sala: o feiticeiro dos políticos alagoanos./orça! de Á/agoas. Repressão à feitiçaria em 1941
Exu Tiriri Museu da Polícia
Assentamento de exu. Museu da Polícia

CH QU P A N

T UW l NEÀ:.M!.B
A

Consulta8ÊJPa9as

Vestimentas rituais. Museu da Polícia


Conclusão

cam as causas.dos a ieoclass oc..lhos de produzir o mal, outra sociologiza a


magia. vend r©rcie d t'io como causa e consequênciada anomia social, das re-

::=:=H;n==;=nut:n:;

8 ]93
yvonne Maggie Medo dg

que fazem o mal e por isso usam abusivamente os preceitos. A discordância se


instaura quando se tenta estabelecer quem é acusado de produzir malefícios e
usa mal os preceitos. Há divergências ainda com relação às determinações das
causasque levam alguém a ser vítima dessesmalefícios.Há quem acredite em
que o mal é de origem sobrenatural e há quem sociologize sua origem,
colocando-a na desordem social e moral
Desvendou-setambém como a crença foi convincentementenarrada pela
perícia com base nos fragmentos que transbordavam do depoimento de teste-
munhas, do auto do flagrante e do auto de apreensão.
Considerou-se que a narrativa da crença feita pelos peritos revela catego-
rias e expressõespartilhadas por todos, sincretizadascom categoriasjurídicas
como despacho, trabalho, sessãoe consulta. Levantou-se a hipótese de que es-
se sincretismo faz parte da estrutura dessesrituais, que operam na ordem da
metonímia, por contigüidade e aproximação.
le frisar que não se trata de Fazer a BIStQiia ut:Doca'.u-'va '- -" . ,..\
Fez-seainda a cronologia da crençaque, ao final dos anos30, já havia
construído o perfil dos acusados-- os macumbeiros e candomblezeiros.
A crença, nessa perspectiva, é sempre construída a partir de uma exterio-
ridade, e o feitiço é o elemento que põe coisas e pessoasna relação umas com
as outras.
Viu-se finalmente, que há um paralelo entre o aperfeiçoamento e as insti-
tuições repressivas mais complexas e o desenvolvimento do campo religioso
onde se inserem os rituais e práticas cujos participantes sofreram acusações.
Na Parte 11,como conclusão geral do trabalho, se analisa o feitiço como
n::HgiH 1; \li gU.ln;lgE
operadorlógico da ordem da metonímia, que coloca pessoase grupos em rela-
ção hierárquica, e como mecanismo, é atualizado ainda hoje na sociedadebra-
sileira. [)iscute-se também o significado desse tipo de mecanismo acusatório
que insere companheirosde crença num jogo onde nunca fica claro de que la-
do estão os discursosdos dominados e dos dominadores;em outras palavras,
onde cada um pode ser ora acusado, ora acusador
De alguma forma se aponta para a relativização da idéia de uma ideologia
dominadoraou dominantena arenapolítica. Em nova comparaçãocom Zim- congêneres>>. . . . ',.,.... .J.n''\Hâ
bábue, se mostra as diferenças dos desdobramentos políticos lá e cá. Os mé-
díuns em Zimbábue foram considerados símbolos da africanidade, em oposi-
ção aos dominadores brancos. Parece que aqui, o poder de convencimento foi
maior; os médiunsparecemter, como dizia Nana Rodrigues,africanizadoo
HU8;11:1::
:1ÊH ã,H$H;E
ljrasil.
Para fazer a comparação e verificar a hipótese de que o que se passa na
instância dos processos também se verifica em situaçõese instâncias mais am-
plas, ou seja, para verificar se «o que está nos autos está também no
H
mundo»,(189)toma-se alguns casos para análise intensiva.
(190) Ver sobre a história das drogas, Adiada. 1987, 1984
(189) Com licença da paráfrase do ditado jurídico
e ]95
yvonne A4aggie

Tais estatísticas, comparadas ao material policial referente ao período de


1912 a 1940 (Figura 1.4, Capítulo l)(tÇt) mostram que há diminuição de casos.
Os números revelam pouco porque não falam dos crimes como se disse
acima. Mas apontam para um mesmo sentido dos dados referentesao primeiro
período (1890-1940)pois continuam a apareceranos com maior número de
processos.Isso talvez signifique uma necessidadeintermitente, sujeita a picos
em que se usa mais intensamente o mecanismo das acusaçõesde feitiçaria.
Na segunda parte, o leitor percorre caminhos mais conhecidos, casos mais
públicos, como o do famoso Seu Sete da Lira e a conhecida perseguição aos
xangâs de Euclides Malta, em Alagoas (aliás, único caso tomado fora do Rio,
para efeito de comparação).

PARTEll
Casos e feitiços ou o que está
nos autos está Lambem no mundouça

(191) Eis os números de processos por ano no Distrito Federal, e depois dos anos 60, Guanabara
(obtidos na publicação Crimes e contravenções de 1942 a 1965, Ministério da Justiça e Negó-
ciosInteriores, Serviço de EstatísticaDemográfica,Moral e Política, DF). 1942-- 8; 1943 --
17; 1944 -- 0; 1945 --- 0; 1946 -- 3; 1947 -- 2; 1948 -- 2; 1949 -- 20; 1950 -- 21; 1951 --
129; 1952 -- 15; 1953 -- 4; 1954 -- 1; 1955 -- 22; 1956 -- 3; 1957 -- 1; 1958 -- 3; 1959 --
(192)Com licençada paráfrasedo ditado jurídico «O que não estános autosnão estáno mun
3; 1960 -- 2; 1962 -- 8; 1963 -- 6; 1964 -- 3; 1965 -- 3; 1966/7 -- 37. do».
Introdução

' l=Ç=,=:':' .:n=É;=;'==i:;::=.ç==::iâ/=':;,J':J:i


e ]99
yvonne A4aggie Med

nua atuante até hoje, usando-seexemplosque sepassamnos anos40, 70. 80 e O Capítulo VI descrevequatro casos, em que as acusaçõesde feitiçaria re-
em nossos dias. lacionam e hierarquizam grupos: Seu Sete. a pombagira, a macumbeirae o
Como essescasosforam descritosa partir de uma maior gama de material
(entrevistas, diários, jornais, histórias de vida, observação participante etc.) Lula Vll, eCOsobjetos da feitiçarin}, discute a contemporaneidade
se pode, em segundo lugar, discutir mais a hierarquia que se construiu na ação da noção de feitiçaria e faz análisedo significado simbólico do feitiço
e, portanto, as diferenças de posição e de comportamento dos envolvidos no O material analisadona segundaparte do trabalho foi recolhido em épo-
sistema de crença e de acusação cas diversas, sendo preciso discorrer sobre as condições em que foi coletado.
Não seencontrou na hierarquia da crençasegmentossociaisespecíficosre- O Centro Redentor foi objeto de observação participante durante um ano.
feridos a cada posição (por exemplo, espíritas de classealta, umbandistas de De 1985 a 1986, sessões,entrevistas e visitas ao temo/o e à biblioteca consti-
classemédia e macumbeiros da classetrabalhadora) tuíram grande fonte de material. . .. .

e
Espiritismo, umbanda, macumba e candomblésão categoriasconstruídas
na luta e através do feitiço, o operador lógico da classificaçãohierárquica, re-
gidas pelos princípios de alto e baixo espiritismo
Espíritas, umbandistas, macumbeiros, quimbandeiros e as pessoasdo can-
domblé são sujeitos sociais concretos, mas não estão referidos à classe social
ou à estratificação social mais ampla, como abelhas na colméia. O Centro Re-
dentor descrito no Capítulo V é um centro dirigido por portuguesesabastados.
No casodo Seu Seleda l.ira, descritono CapítuloVI, ao lado de trabalhado-
res, aparecem pessoasque pertencem a um grupo de intelectuais e artistas de
camadas médias. O caso da pombagira também descrito no Capítulo VI,
refere-sea um grupo que pertence a setoresda classetrabalhadora urbana e a
setoresmédios suburbanos. Isso não significa que todo culto à pombagira seja do século,ver o tão comentadoFerraz.
de pessoas da classe trabalhadora, todo espiritismo racional de portugueses co-
merciantes e toda umbanda de classe média ou setores médios da classe traba-
lhadora.
Não se pode deixar, no entanto, de discutir a questãoda classenesta se-
gundaparte. É claro que, como o sistemaaguano comportamento,tem uma
influência na própria hierarquização e estratificaçãosocial mais ampla. Mais
que traçar relação imediata de idéias e pontos de vista com posições estrutu- mesmo ano. . ..
rais e de classe,tenta-se pensar, em cada caso, como foi possível discutir idéias O caso da pombagira foi basicamenteanalisado a partir do material colhi-
e Impor posiçoes
do por Marcia Contins (1983) e do processo criminal cedido por essa pesquisa-
Pode-seler o trabalho.co.mo descriçãode uma luta incessantepela hege-
monia no campo religioso.(193)Nessatuta há perdedoresde um lado e vitorio- uu-a caso da macumbeira foi escolhido entre as muitas notícias de jornal do
sos de outro. Sobretudo, se busca analisar, de um lado, um estilo de resistên- ano de 1985-1986que faziam referência à relação dessesrituais com o crime.
cia, e de outro, um tipo de dominação.
Foram entrevistados o juiz Eduardo Mayr, em duas longas conversas, e a
A segunda parte está dividida em três capítulos: escrivã da 33' Vara Criminal, que conhecia bem o caso e temia a macumbeira.
O Capítulo V descreve em profundidade o caso do Centro Redentor. Nes

'; #18ügl R
se capítulo se discute as acusaçõesque relacionam formas de cura

1193)Nesta segundaparte. a discussãodos casosé informada pela idéia de um campa religiosa


onde estão inseridos símbolos e grupos sociais, lutando estesúltimos a partir de uma proble-
mática comum. Ver Bourdieu (1974) U
guardava o pari

200
20]
yvonneÀÍaggie

Além de conversascom o pessoalda Vara Criminal algunsmesesdepois da


sentençadessejuiz, em 1985, foram entrevistadas a defensora pública e sua as-
sistente. O processo criminal foi recolhido e reproduzido quasena íntegra gra-
ças à ajuda da escrivã
O material do xangâ de Alagoas foi recolhido em 1979. Pesquisadoso
.forma/de Á/aguas e o jorna] da oligarquiaMa]ta dos anosde 1911-1912.as
notícias referentes ao caso foram recolhidas na íntegra.
Levantou-se ainda o material documental da Coleção Perseverança, do
IHGA
Nesseano, em entrevista, o professor Manuel [)iegues Junior deu informa-
çõesvaliosas, cruciais para a descoberta do material e pistas para análise.
O material do Museu da Polícia foi recolhido em duas fases.Em 1979.
por ocasião da entrevista com o chefe do museu, foi feito o levantamento
exaustivo das peças. Foi levantado também o material documental sobre a
criação do museu, com fotografia de cada peça aí encontrada.
Continua a busca de material em 1985-1986,quando foram encontrados
os documentos relativos ao tombamento do museu pelo Serviço de Património
Histórico e Artístico Nacional
Fato curioso, a funcionária encarregadade refazer o levantamentogeral
dos tombamentostinha lido um artigo da autora mencionandoo museue re- Capítulo V
solveu procura-la. Graças a isso se pede fazer contado com o diretor da Acade O Centro Redentor
mia de Polícia Civil da Secretariade SegurançaPública,que é a guardiãdas
peças tombadas
Nesseano de 1986, de volta ao museu,foi feita longa entrevista com o di-
!etor da Acadepol (Academia da Polícia Civil), que tinha sido perito do Carlos
aboli. Ele contou como fazia os laudos dos objetos de magia Falou do medo
que provocavam nos peritos, que nem sempre aceitavam o encargo. Antigos
professoresda Acadepol, entrevistados, descreveramcomo se fazia batidas po-
liciais em centros e terreiros no tempo da repressão.
Ê nesseCentro e seusfiliados que sepratica o
Espiritismo Racional e Científico (cristão), que
normaliza e cura /ouros (obsedados) feffos pe/os
congêneres,feiticeiros e kardecistas que fazem es-
piritismo em família, desdeas baixas bajucasaos
salões atapetados da alta sociedade
apud Ribeiro, (193:90)

do
Naqueledia de maio, toquei a campanhiae um senhoridoso veio abrir a

$liÊiiã=!.i ün u:!!:
questão da repressão. Os dois senhores riram e um deles disse:
Foi o Juliana N4oreira.O Dr. Cortas queria curar .os obseda-
dos, mas Juliano Moreira ficou com medo. Curávamosde graça.O
governonão queria perseguia.. aí, o Dr. Cottasfechouo hospital,
e depoisabriu o asilo para velhos.
Fala com desenvolturae intimidade do Dr. Juliana Moreira. Disseque es-
tava no Centro {edesdea idade de 13 anou> e que agora trabalhava no asilo.
O Centro é fundadoem 1912, no Rio de Janeiro,por um negociantede
CÁ portugu
café, .a,.a. ,hn.fado T.uizde Mantos, que mais tarde recebeo título de
e 205
rvonne ÀÍaggfe Medo do fS

comendador. Tem-se notícia de processos instaurados contra os dirigentes ou O Centro tem seupróprio jornal diário, A Razão,vendido em bancase
médiuns do Centro Redentor em 1914, 1921, 1929 e 1932. Foi impossível loca- que publica artigos em sua própria defesa, acusando médicos e até citando al-
lizar todos essesprocessos. Encontrou-se apenas a apelação do processo instau guns deles, como o Dr. Juliano Moreira.
rado em 1914 e a íntegra do de 1932. Desde1913 o Centro está presentenos
jornais cariocas, sendo atacado e, algumas vezes, defendido. Certas teses de
Medicina, como a do Dr. Oscar Pimentel (1919)e os trabalhos de Leonídio Ri-
beiro (1967 e 1963, op. cft.), referem-sea essainstituição como exemplo de
charlatanismo e falso espiritismo. Tanto nos processos,como nos jornais e nas
teses de medicina, os médicos aparecem como os principais acusadores do
Centro Redentor. [)esde 1890, os médicos são consideradosinimigos pe]os
espíritas, como no processo de Joaquím JoséFerraz descrito na primeira parte
do trabalho. Neste caso, os inimigos dos médiuns não são só os médicos clíni-
cos e sanitaristas, mas também os psiquiatras.
Os processosinstauradosreferem-seà terapia praticada pelo Centro, à seguiçãoao movimento integralista depoisdo golpe de 37
qual os médicos negam legitimidade. Os médicos tentam entender e diagnosti-
car o mal produzido por essaterapia. A respostadas díretoresdo Centro é a
tentativa de criar um espaçopara sua própria concepçãode cura, de espiritis-
mo e de feitiço. Essedebate revela que médiuns e médicos formulam duas ver-
tentes da concepção de magia maléfica.
O processode 1914é instaurado,segundo
o jornal ,4 Noite, de 30 de
maio de 1914, a partir de denúnciasfeitas por vizinhos e de um inquérito pro-
cedido pelo mesmo jornal. Com o título «Hospital Espírita Redentor é um in-
ferno de suplícios inconcebíveis», o jornal inicia uma série de reportagens con-
tra o espiritismo coar/anão, pedindo providências aos poderes públicos. As au-
toridades policiais ouvem as denúncias e instauram inquérito policial e proces- Boas que viveram no tempo da repressão.
so criminal, que condenaLuiz de Mattos e Virtulina Morteiro Bretãs,mais
tarde absolvidos pela 3' Câmara de Apelação.
A apelaçãoconta que Luiz de Mantosé presona qualidadede diretor da
Hospital Evangélico Redentor, onde se procede «ao tratamento de moléstias
mentaispor meio do espiritismo)>e Virtulina {(por servir de médium nas ses- Centro
sõesrealizadas para tratamentos e, ambos, por infração do artigo 303 do Có- Em larga medida a partir dessasacusaçõesse construíram os argumentos
digo Penal, sendo responsáveispor ofensasfísicasinfringidas a doentesinter- modificaram o Código Penal de 1940 no tocante ao artigo 157.
nados no estabelecimento.}>(195) Como se vê pela transcrição desse trecho da
apelação, ninguém discute o tipo de estabelecimento,que todos definem como 22. As versõesdos médicos
bospíta/. Pareceque os juízes entendemessehospital da mesma forma que o
jornal, os vizinhos e os diretores do Centro.
O Hospital Espírita Redentoraparecenas denúnciasdo jornal Á Noite co-
mo bospifa/ purgafórío, sanatório dantesco. Em 1916, novos artigos no mesmo
jornal denunciam o bospíta/ c/andesffno, o bospífa/ fnferna/. As notícias pros-
seguem em 1921, com o título «Guerra ao charlatanismo>>l

(196) Ver a tese«Em torno do espiritismo», Pimentel(1919)


(195) Ver sentença da 3' Câmara de Apelação fn Revista de Direito, fev 1916, vol. XXXIX. fasc
11 (197) Ver o livro autobiográfico de Leonídío Ribeiro (1967)

e 207
rvonne A4aggie Medo do feitiço: relaçõesçe!!S !!!g!! S.foder no Brasil

Centro na tentativa de definir charlatães e falsos médicos. Lutam por sua des-
truição ideológica e institucional, procurando impedir programas de rádio e fe-
char instituições. Para essesmédicos, o espiritismo produz malefícios.
Os dois tipos de conhecimento, de médiuns e médicos, visam objetivos di- sos(200) (Pimentel, 1919:591
versosmas o debate a que se assisteentre essessegmentosse trava em torno Continua descrevendoo ambiente do Centro, preces,choro de criança, o
de questões de consenso.(198)
salão repleto de crentes
Oscar Pimentel(i99)diz que o espiritismo,a macumba,o candomblée o

iÚB11$;1#RHR$H$$
baixo espiritismo são truques. Segundoele, as pessoassão levadaspela emo-
ção. Nem religião nem ciência, o espiritismo não é nada. Em suas palavras, {(o
espiritismo, quer pelas injunções do espírita inconsciente quer pelas do explo-
rador, transformou-se em grave moléstia que, pode-sedizer, contaminou a co- Cinco homens possanteslevam-no para o estrado onde Ihe
letividade. Somente a ciência saberá vencer! Omnia Vfncif Scíencfa>}(Pimentel, atam os pulsos e tornozelos, amarrados depois a uma cadeira
1919-78). O mal produzido deve ser sanado e deve-se perseguir os malfeitores
porque é nossa moral perseguir feiticeiros, produtores de malefícios. Acusando
(idem,p. 59). ,. , .
o Centro Redentor de produtor de malefícios,através dessetipo de operação
lógica, o médico põe coisase pessoasem relação ao mesmotempo em que as
hierarquiza. Assim aparecem as classificaçõesespiritismo verdadeiro, baixo es.
piritismo, macumba e candomblé, colocadas em relação de desigualdade.
Para o médico psiquiatra, há dois espíritas, o inconsciente e o explorador,
embora o espiritismo como um todo seja um truque. Sua tesede 1919 tem um
experimentador
discurso semelhante ao dos juízes pertencentesà vertente positivista mais radi- É um explorador, um sensualque desbragadamente
se entrega
cal do direito criminal. AÍ, se referetodo o tempoa um «espíritodo espiritis- à prática do espiritismo para mais facilmente encontrar vítimas que
mo)}, negandosua existência. Isso supõe que se possaacreditar na existência satisfaçam seus depravados desejos. Muitos médiuns do Rio de Ja-
de um outro tipo de espírito. Pimentel se aproxima da vertente radical porque neiro são assim (ibidem, p. 60).
acredita em que qualquer espiritismo é produtor de malefício e deve ser extir-
pado (ver o Capítulo ll deste trabalho). Segue-sea estratégia que usou para analisar e desvendar os truques prata'
cados no Centro Redentor.
A sugestão, segundo o Dr. Pimentel, é uma das basesdo espiritismo. Essa
basedifere da ciência, racional. Para discutir a noção de sugestão,toma o
Centro Redentor como exemplo. Mata, assim, dois coelhos com uma cajadada
só. De um lado acusateoricamenteo espiritismo.De outro, o espiritismopro-
fessado por uma instituição específica. l)escreve na tese a experiência de suges-
tão provocada num indivíduo que vai ao Centro Redentor.Em primeiro lugar, existiam (idem, ibidem, p. 91). (Grifo do autor)
fala de um tipo sugestionávelA -- um impressionávelemotivo, que

(198) Zélia Seiblitz e Delma PessanhaNeves (1983) já apontam nessadireção ao analisar a prática
da operaçãofluídica hoje, de uma ótica não subordinadaà medicinadita científica. Ao con- grande xamã?
trário, Mana Andréia Loyola tenta dar conta da proliferação de religiosidade e medicina po-
pular na BaixadaFluminensehoje a partir de uma análisedessesistemaenquantoconcorren- (200) O Centro Redentortem um auditório O ritual sepassanum palco maisalto pouco visível
te do sistema médico oficial por causa da penúria em que vive a população (Loyola. 1984).
Neste trabalho se privilegia os aspectosteóricosdo debateentre médicose médiuns.
colocando-os em um mesmo campo cultural. Para uma análise do campo cultural, ver Gertz
1978

(199) Oscar Pímentel era médico psiquiatra e funcionário da Assembleia Legislativa, não exercen-
do a profissão
Ouesalid qual era o seu truque. Quesalid não responde

208 e e 209
yvonne À4aggfe Medo do f

Oscar Pimentel conta que assistiu a uma conferênciade Luiz de Mantos,


fundador do Centro, na Associação dos Empregadosdo Comércio, onde o
espírita afirmava curar paralisia geral. Já tinha lido no jornal Á Razão artigos
onde Luiz de Mantos acusa a medicina e os psiquiatras,especialmenteo Dr
]='""
"EÚãUEl;:H!:B?iEE
llS :E
um dos suplícios -- um cluster de pimenta. . .
Juliano Moreira. O médico aproximou-se do espírita que <.gentilmente
prontificou-se a dar uma prova de que tudo curava por intermédio do astral
superior>> (fbídem, p. 92).
Pimentel aceitou o desafio. Luiz de Mantos disse que os doentes apresenta-
dos por Pimentel tinham que ser previamenteexaminadospara ver se podiam
ser curados e tratados no Centro. O médico levou três nomes, um deles de um
interno do Pavilhão de Observação do Hospital Nacional de Alienados. Luiz zava seusinquéritos. Em suas palavras;
de Mantos teria dito que dois deles podiam ser curados no Centro. O primeiro,
com certeza.O segundo,em estado grave, ficaria na dependênciada sua von-
tade de se curar. O terceiro não podia ser curado, porque o espiritismo não
faz milagres. Era tudo mentira, um truque de Oscar Pimentel. Os indivíduos
não existiam, os nomes eram fictícios. Portanto, não podiam ser curados com
o <<modernotratamento dos loucos segundo o Espiritismo Racional e Clientífi-
co», (1919-92)como diz sarcasticamente o psiquiatra.Com todo sarcasmo.aí
se vê que os médicos discutiam com o Centro Redentor e com o espiritismo as
concepções da crença sobre a loucura e a cura. Nesse debate, Oscar Pimentel
diz que o que se passa no CoentroRedentor é sugestão, um fenómeno raciona/
cfenfíaco, que os espíritas chamam de sobrenatural por inconsciênciaou explo-
ração. A sugestão provoca alteração no estado psíquico do indivíduo, a qual é
interpretada pelos espíritas como manifestação do espírito. Nessa visão apa-
rentemente materialista e sociologizada, que diz que o indivíduo que pensa no
sobrenatural é explorador ou inconsciente, está implícita uma crença fervorosa
na ciência. Se a sugestão existe, diz o [)r. Pimente], e]a deve ser usada apenas
pelos médicos.Além de relacionar segmentosda crença,as acusaçõescolocam
concepções médicas em relação de desigualdade,
A facilidade de interpretar com termos diferenteso mesmo fenómenosu-
põe um consensoem relaçãoà problemática.Médicose espíritasformulam a
mesma questão: por que os estados de consciência do indivíduo se alteram?
Cada um responde à sua maneira. Alguns médicos acreditam em que essasal-
teraçõessão malefíciosde causasocial. Os espíritaspensamque há poderes
ocultos. No entanto, as diferenças só aparecemporque há uma acusação,onde
se opera a classificação e hierarquização das diferenças.
Também Leonídio Ribeiro,(20Z)identificado com a escola de NanaRodri-
gues e discípulo do mestre, move desde 1920 uma campanha contra o Centro e
;$$$$BHIF::',::';':?:'s;
Antes de terminados os trabalhos daquela noite, pude retirar-
me da sala, ligeiramente decepcionado, e nada satisfeito da maneira
(202) Leonídio Ribeiro, médico legista, ocupou essecargo na polícia do Rio em 1917. [)epois foi
chefe do serviço de identificação, de 1930 a 1946. Até 1930, o médico paulista, diplomado
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1916, ocupou cargos no magistério. Foi (203) Pimentel usa o mesmo termo para descrever os auxiliares de sessão. "e
um dos donos de clínica particular em Niterói. Ver Mariza Correa (1982),sobre Leonídio e (204) Os diretores e médiuns do Centro Redentor
n a em relação a
eram portugueses. Sabe-se que no i\io na, ncDDC
campo intelectual brasileiro . período,
Q n
grande .iscriminação

e 21ZIZ
2]0 e
Medo do feitiço: relaçõesentre magia e podemno Brasil
yvonne À4aggie

por que ali eram tratados os ingênuos estudiososque pretendiam pode existir se a religião não propuser nenhumtipo de tratamento ou cura que
conhecer de perto os fenómenos do espiritismo se oponha à ciência
Informado de que havia naquele Centro sessõesdiurnas de con-
sultas médicas, voltei no dia seguinte na companhia do delegado
Dr. Augusto Mendes e policiais, conseguindo,então, prender, em
flagrante de exercício ilegal da medicina, alguns de seus diretores e
fechar o Centro, principalmente depois de verificar que existia certa
número de quartos para internação de doentes, no porão do prédio, ros e NanaRodrigues, do qual se diz seguidor.
a despeito de não haver aparelhagem nem pessoal para tratamento
médico, nem licença da Saúde Pública para essefim Os médicos, apesar das posições e versões diferenciadas entre si. são os
Foi arbitrada, para os presos,françasde milhares de cruzeiros.
logo satisfeitas, de maneira que todos conseguiramimediatamente a
liberdade, recomeçando o tal Centro a funcionar, normalmente. al
duns dias mais tarde. E tudo continuou como dantes (Ribeiro, 1967:
7

A intervenção de Leonídio Ribeiro não é apenas ideológica. Sua posição


permite que tente extirpar a instituição. Aparentemente,o Centro não fica 29)
muito abalado com a história. Ao contrário, responde violentamente.
defendendo-se nos jornais e enviando cartasanónimasão médico O Centro
precisava defender-se não só institucionalmente como ideologicamente. Pelo
volume de literatura por ele publicada, vê-se que seusdirigentes eram atuan-
tes. A versão deles é dada adiante
Leonídio não agua apenas através da vinculação institucional. Publica li- na e terapêutica por oposição à doutrina e terapêutica médica.
vros, faz inquéritos,constróiuma versãomédicasobreos perigosdo
espiritismo coar/afanesco. [)iz que os centros são perigosos por quatro motivos
principais: primeiro, porque predispõem ao crime; segundo, porque provocam
(!perturbações mentain>,{ZOS) terceiro, porque o espiritismo é uma histeria.
doença contagiosa; e quarto, porque o espiritismo é uma indústria extrema-
mente rendosa, que se aproveita da tendência natural da humanidade de crer
no sobrenatural.
A acusaçãoao Centro produz um divisor de águas,não apenasa nível res, ambos mistificadores.
das representações.A acusação de produzir malefícios, ou seja, de feitiçaria,
intervém na ação. Constrói, portanto, uma história, porqueé claro que, ao in-
tervir na ação, alguém sai ganhando, enquanto outros perdem. A categoria
charlatanismo, que acaba prevalecendo como título do artigo que substitui o
157 (prática da magia) se constitui nessedebate,e servepara definir falsos
:d;lã LFFJilÇ
l#: t: l i
espírita seria uma verdadeira <ccalamidadepúblicn> :
espíritascomo falsos médicos. O charlatanismo espírita vai se organizando no Brasil de tal
Leonídio discute a liberdade profissional seguindo a vertente mais radical forma e com tamanhosrecursos materiais que se tornou rtoJeuma
do direito positivo. Na sua opinião só devepraticar medicinaquem tem di- indústria das mais rendosas... Ribeiro (1931: 75).
ploma científico e dá prova de capacidade.A liberdadereligiosa, para ele, só Diz
Freqüentemente à noite com a presença de centenas de pessoas
dos dois sexos e de várias classes sociais, em perigosas promiscuida-
(205) Segundoo médico legista, os {Cdébeis
psíquicos, são predispostosao espiritismo.
e 2]3
yvonne À4aggfe Medo dg

des com crianças de todas as idades em salas exíguas, mal ventila- detrás do obsedado, bem concentradas, segurando-o fortemente, até
das e quase sempre na penumbra... pobres indivíduos que, por ig- que o trabalho sejaterminado (apud Ribeiro, 1967).
norância ou condições de inferioridade psíquica... (Ribeiro, 1967, O Centro se propunha a limpar os obsedados, enfeitiçados pelos trabalhos
6
P 268) mal feitos nos cangerês,nas baixas baiúcas,nos salõesda alta sociedadee pe-
Em consequência, los feiticeiros kardecistas
dentre os numerosos doentes mentais examinados mensalmente no
IML, antes de sua internação no hospício, em mais de metade deles,
pessoas da família referiam que os males haviam sido agravados,
ou os primeiros sintomas apareceram logo depois que os pacientes
começaram a freqüentar os centros (idem, p. 269).
Na teoria dessavertentemédicaa loucura é fruto da anemiae impureza
desseslocais perigosos, orquestradas por charlatãese mistificadores.
Eis a versão dos teóricos do Centro. Segundo publicações e anúncios em
jornais, o Centro se propõe a
normalizar e curar loucos (obsedados)feitos pelas cangerês,feiticei-
ros kardecistasque fazem o espiritismo em família desdeas baixas
baiúcas aos salões apertados da alta sociedade.
A medicina salvará o Brasil da moléstia do espiritismo, segundo Leonídio
Ribeiro,e o CentroRedentorvai salvara humanidade
do espiritismodas
:d:lEI Êll XÊ
dais desequilibradas.
B:l ;i Çlà $
baixas baiúcas e dos salões da alta sociedade que produzem obsedados (lou
cos). Num ponto médicos e médiuns concordam: o falso espiritismo faz lou-
cos 23. Outras campanhas
Mais tarde fica claro que o Centro Redentor tem uma disputa com a Fede-
ração Espírita Brasileira, por ele definida como espiritismo dos sa/ões.
Num dos panfletosespalhadospelo salãode sessões,o Centro Redentor
explica e descreve(20Ó)assim a sua limpeza psíquica:
E preciso castiga-lo (refere-seao doente) severamente,e
amarra-lo, se for necessário, quando ele se deixar atuar e ficar fe-
roz, isso todas as vezesque i:or preciso,até que se convença,pelo
medo com que fica da pessoaque o disciplina. Qualquer ato do ob-
sedado deve ser reprimido, na mesmaocasião,para assimele ir
dominando seusímpetos animalizados, que são a causa desseestado
raivoso, que é preciso corrigir, seja como for, sem dó nem piedade
para assim mais fácil se tornar a normalização. Junto se colocará
uma mesaforte e a cadeirado obsedado,o qual seránela e no pé
da mesa amarrado, se for preciso, para ali se conservar até findar o
trabalho do dia. O chefe dessetratamento deve arranjar duas ou
três pessoasfortes e calmas, que não se enraiveçam e coloca-las por
(207) E
-.. claro que
- as .duas vertentes
. c.-a..=. aó não pertencem
Franrac tãoÇPamPntos.
nnlrP nq claramente Há
a um ou outro
médicos dos segmentos.
espíritas e médiuns
Há junções e interferênciade cren
que falam na versão sociologizada
(206) No Centro, até hoje se faz limpezas psíquicas, amarrando pessoasàs cadeiras, embora sem
essesoutros <(tratamentou> mais agressivos. (208) Ver Fry e Carrara (1985)

e 215
2]4
Yvonne Maggie Medo do

go Penal de 1940 conversam constantemente com os médicos da Sociedade de As acusaçõesentre as facções, tendo médicos e e.spíri.tasposiçõessimétri-
Medicina e Cirurgia
O caso do Centro Redentor elucida a relação dos médicos com os juristas
e a tentativa de se destruir ideológicae institucionalmenteoutros saberesde
cura. Em 1939, os médicos da Sociedadede Medicina e Cirurgia do Rio de Ja-
neiro elaboraram uma moção pedindo o encerramento de um programa de rá-
dio espírita e <<repressão
às cenas de curandeirismo espírita». Na moção, pede- espiritos produtores de anomia, disfunção, loucura e obsessão.
se ao governo a construção de mais hospitais para pessoassem recursos. Escri- Em 1939, o jornal Diário da Noite abriu ao debate uma coluna diária. Os-
to pelo Ur. (.-arlosFernandes,o documentoexpressa
a idéiade que o espiritis-
mo se expandepor falta de recursosmédicos,por anemia social, disfuncionali-
dade etc.

O jornal Dfárfo de A/oficias descreveuma sessãona Sociedadede Medici-


na e Cirurgia à qual sãoconvidadosmédicose espíritase onde se lê a moção
citada Os médicossentam-sede um lado, espíritasde outro. O clima é tenso
A moção.fala da necessidadede se criar a Ordem dos Médicos,para coibir o ,,(209)
charlatanismo dos fa/sos médicos. Os médicos acusam os espíritas de princi-

:$$1HHH#i : :li#
pais responsáveispeia prática i]ega] da medicina. {(O espiritismo é um rótulo
que disfarça médicos sem diploma». Dois dias depois, o jornal A Arofte publica
matéria intitulada mobilização dos médicos espíritas para uma prova esma-
gadora),. Segundo o autor do artigo, os médicos espmfas deviam se unir em
oposição à campanha movida pelos médicos. O articulista acusa o Dr. Cardos gadoscomo alto e baixo espiritismo.

l: ;i:i
Fernandesde estar «debaixo de obsessãoespiritual evidentu}. Segundo o inte-
lectual espírita, o doutor se contradiz, porque afirma que aceita a liberdade de
cultos, mas quer abolir o espiritismo. O artigo defendeo espiritismo dizendo
ainda que os espíritas sustentam asilos, hospitais e escolas.Os espíritas segun-
idii =i;=il'i ii?='i=;:i;:;ii:
te no Brasil e que aqui campeia o charlatanismo espírita.
do ele, propunham uma reunião, um desafio,para provar que curavam.
No Diário da Noite de 2 de junho de 1939, outro espírita, um capitão do
Exército, figura de relevo nos meios espíritas cariocas, segundoo jornal diz
que a Sociedade de Medicina e Cirurgia mente em nome da ciência. Segundo o
articulista, os médicos sabem que estão mentindo, porque vão aos centros
râmide
espíritascomo clientes. E acrescenta: <Csó
um louco pode relacionar espiritismo
com cocaína,prostituição e amor livre, como diz o autor da moção, Dr. Cár-
ies Fernandes».O capitão afirma que o espiritismo cura, enquanto, na véspe-
ra, o Dr. Carlos Fernandes dizia: <(Eas curas? Nego asl» Segundo o capitão,
os médicoscobramcaro, exploram.Por outro lado' diz ele,nuncaviu um pa-
ciente ficar louco por tratamento espírita, como diziam os médicos.
médicos buscam a legitimação de suas posições.
Os médicos diziam na moção que o espiritismo grassapor falta de hospi-
tais e disfunção social. Os espíritas diziam que os médicos perdem clientes pa- Há Pólos opostos, mas também dissensõesem ambas as facções. Alguns
ra os espíritas porque o espiritismo cura o que a medicina não cura. Desafian- médicos vinham em defesa do espiritismo. Os espíritas se acusavam entre si. A
do a Sociedadede Medicina e Cirurgia a realizar curas diante dos filiados. os (209) Ver diário de Oscar Pimentel (1939)
espíritaslançam um desafio, que foi aceito pelos médicos. Trava-se uma prova
de fogo (210) As acusaçõesse assemelham às dos processos criminais descritos na primeira parte deste tra
balho
yvonne A4aggfe Medo

FederaçãoEspírita Brasileira aparece como oponente do Centro Espírita Reden-


tor, discutindo e discordando de suas práticas terapêuticas.Oscar Pimentel de-
nuncia essadissensãodentro do espiritismo, colocando os dois maiores centros
= E:i:'=:=':1:=:i:E /;e=aerTl:i ;=':':1:1: .:*-"", -.;:.;'
Em 1937, o jornal do Centro Espírita Redentor, A Razão, passa a ser
de cura do Rio um contra o outro. O Centro Redentorseposiciona, afirman- mensal'(antes era diário). Em cartas ao reverendo Regattieri responde às acusa-
do superioridade por ser científico, racional. Os outros espiritismos como o es- ções de que Q racionalismo cristão prega o ateísmo. Nelas, os.padres são, por
piritismo dos salões (referênciaà FederaçãoEspírita Brasileira) são inferiores. suavez, acusadosde «urubusde batina, sempátria e semfamília».
Outros espíritas se consideram verdadeiros por estaremmais próximos das ori-
gens africanas.
O jornal .4 Razão, do Centro Redentor, traz alguns artigos apoiando os
médicosna repressãoao espiritismo que leva à loucura, diferenciando-se
de-
le. Oscar Pimentel usa um dessesartigos para criticar o espiritismo e suas ver-
tentes. Segundo ele, se é o espírito quem dita o espiritismo, por que tanta di-
vergência?A divergência atinge até a facção médica. Alguns médicos conside- Os espíritas do Centro Redentor tentam a conversão dos padres..Seu po-
ram o espiritismo um mal a ser cortado pela raiz, nem discutem suas premissas
filosóficas. Outros estudam o espiritismo cientificamente.
Todas as posições são publicadas. Os jornais no Rio abrem grandes espa-
ços nas primeiras páginas. A questão parece atrair os leitores.
IÜ@ü$8i: gEl#=«:;!nH:ã
o fazia lutar contra o espiritismo.

Num artigo do jornal A Razão,o médicoMaurity dos Santos(1911),ou


melhor, o espírito de Maurity dos Santos,baixou no Centro Redentorperdido
e arrependido de ter atacado o espiritismo. Pedia precese dizia que agora sa-
bia que o espiritismo era verdadeiro. Os espíritasdo Centro Redentoracolhe-
ram as desculpase o espírito ficou liberto. Se os médicos sociologizavama
magia, os médiuns cosmologizavam a sociedade. Centro e o chefe de polícia, Filinto Müller.
A campanha de 1939 representaclaramente a busca de hegemoniano
campo médico e religioso. O Código Penal de 1940 acaba cedendo às posições
positivistas. Os médicos consegueminfluenciar os juristas, que modificam o
artigo 157. Em seu lugar, põem o artigo sobre charlatanismo.(2n) O fato de o
Centro Redentorcontinuar atuante até hoje podia provar que os médicosnão ro no Rio de 1930
venceram. Perto do Centro, existe uma rua. nova, chamada Luiz de Mattos, Como nos outros casos,a acusaçãoao Centro Redentor foi, na verdade
nome do fundador. Porém, em entrevista, o anual diretor do Centro diz que
um elo que permitiu mapear o campo e legitimar posições.
não fazem mais aquele tipo de cura de obsessão:<(adoutrina evoluiu e não fa-
zemos mais por ser curandeirismo». Diz isso como se tivesse decorado a res-
posta
24. Baixo e alto como categorias híerarquizadoras
l)e 1914 a 1940, o Centro é várias vezesfechado e reaberto. As acusações
não conseguemextirpar a crença nem os crentes, fundando-sesua lógica no
sistemafechadoda feitiçaria. O próprio jornal Á Razãodizia sempreque a
campanha dos médicos ajudou na divulgação da doutrina.
Nos jornais e processos,a Igreja Católica não aparececomo acusadora.
Mas nas entrevistascom pessoasdo Centro Redentor,o cardealArcoverde fi-
gura como principal detrator do espiritismo e do Centro. Um entrevistadodiz

(211) Ver sobre isso Fry e Carrara. 1985 (212) A Razão, 15-8-1939

e 219
l
Yvonne Maggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasa

As sessõesparecemesvaziadas,o auditório imensonão fica tão cheio co- dentor, tudo indica que o que estavaem jogo era como definir a hjerarquja do
mo nas descrições de épocas passadas. Segundo o anual diretor, o aparente es- campo. Se hoje os terreiros se organizam internamente.através do equilíbrio
vaziamento se deve à criação de novos templos em outros locais, o que diver- instável entre dois códigos, o código burocrático e.o código do santo, a briga
sificou o atendimento. Os médiuns conservam a memória da perseguiçãomo- na época suscitadacom o Redentorsupunha uma luta na qual estavamsendo
vida pelos médicos,e afirmam que Luiz de Maltas foi perseguidoporque cu- definidos critérios mais amplos de hierarquização
rou internos do Hospital Geral de Alienados. Dizemelesque, na época, o pró- O Centro Redentor, com sua filosofia racionalista, se via no alto da pirâ-
prio Juliano Moreira propôs a criação de hospitais que usariam o racionalismo
como terapêutica. Os dirigentes do Centro recusaram a proposta, por não ser
o racionalismouma doutrina de cura. Segundoo Sr. Humberto, hoje a doutri-
na evoluiu, não fornece mais orientações terapêuticas, {.afastando-seda prática
do curandeirismo porque isso agride a ciência oficial, a lei e o exercício legal
:i$àãi$Üi8Ê.SH:iuHIg ini
hegemonia das curas espirituais
da medicinn>. Através da campanhacontra o Centro, operou'se uma definição da hie-
O Centro não tem mais hospital, mas ali ainda se realizam norma/izações,
limpezas psíquicas. {cNão é propriamente cura, nem milagre, mas está dentro
da concepçãocientífica)}, explica o Sr. Humberto. Nas prelaçõesdas sessõesdo
Centro, o orador muitas vezesdiz que a medicinacura o corpo, maso racio-
nalismo cura o espírito.
O ritual de hoje não difere muito do descritopor Leonídio Ribeiro (1967).
Um cliente é levado para o palco, amarrado numa cadeira. com a boca fecha-
da por muitos panos. E o ritual de desobsessão,
limpeza psíquica. O Centro
tem bebedouros elétricos com água fluídica.
Segundoo diretor do Centro, a doutrina do racionalismodivergeda de reiros também têm sua explicação mágica para as causasda loucura.
Allan Kardec. Este é mais religioso; o racionalismo é um espiritismo científico. No debateque se trava entre a Federação
Espíritae.os médicoscom o
Quando se quis saber por que as edições recentesdo Centro não trazem recei- Centro Redentor, a questão central aparente é a causa da loucura e as formas
tas como as primeiras, responderam; {(Pra quê? Quem quiser pode consultar as de cura.
primeiras edições na bibliotecas .
Pareceque até hoje há medo das acusações.
Nas entrevistas.o assunto
causavasempre mal-estar. Vale lembrar que um dos policiais da Delegada Au-
xiliar se dizia espírita científico. Isso revela o nível de envolvimento nessabri-
:Ú!:lH 8 1l :;i:lUÜSTIT;lfl
atum como divisor de ações, não só de representações
ga entre segmentos da crença. Até hoje Q Centro Redentor se atribui um espiri-
tismo mais evoluído, e não nega a necessidadede se coibir os abusos dos can- O caso Redentor ressaltao significado simbólico e cognitivo do uso das
gerês, casasde espiritismo mistificador e até mesmo dos centros que produzem
loucura.
A segmentaçãodo campo definido como campo da feitiçaria inclui, em al-
guns momentos, os próprios médicos, já que existem médicos espíritas. O
::i#:i8ãi$Rul?EHêg
i
de. O totemismo opõe metaforicamente grupos igualitários.{znP
A discussão que se trava no caso Redentor faz com que os vários espi.ritis-
campoé estruturadoa partir dascategoriasalto e baixo e a luta se trava em
torno da hegemonia no interior do sistema. Aparentemente, há códigos diver- mos. a macumbae o candomblé,a medicinae a jurisprudênciasejamcoloca-
os em re ação e hierarquizados a partir de aproximações e contigüidades.
sosde hierarquizaçãoe organizaçãopolítica, como acontece,por exemplo, no
interior de cada terreiro.(Z13) É o princípio hierarquizador referido ao baixo e alto espiritismo que cons-
O campo se construiu no largo período que vai de 1890 a 1940, pelo me- trói fronteiras e distingue grupos. Essahierarquia é também uma hierarquia
nos, e talvez ainda esteja sendo constantemente reestruturado. No caso do Re-
(214} Para os médiuns do Centro Redentor a loucura era causada por «espíritos obsedados
(213) Ver Maggie (1975)
(215) Ver Lévi-Strauss (1986) sobre essaquestão, que será retomada no final desta parte.

220 e
rvonne Maggfe

ideológica,além de um dos critérios usadosna estratificaçãosocial da socieda


de brasileira.

A classificação de macumbeiro deslegitima no campo religioso e na posi-


ção dentro da estratificação social, por ser sinónima de feiticeiro. A de alto
espírita enobrece, eleva à categoria de religioso, escapadas acusaçõesde feiti-
çaria. Nesse sentido, Diana Brown (1986) tem razão quando diz que a umban-
da é um movimento de busca de legitimação religiosa e de classe.
A análise que Brown faz da história da umbandano Rio de Janeiro tam-
bém pode ser vista a partir desse enquadramento do feitiço, embora a autora
não useessetipo de abordagem. SegundoDiana Brown, a umbanda surge no
Rio na décadade 20. e tem um fundador, Zélio de Moraes. Essesegmentodas
religiões mediúnicas é uma dissensãodo espiritismo kardecista e da macumba,
segundo ela. Seuslíderes tentam desafricanizar e purificar a macumba para se
distinguirem e livrarem-se das acusações.Pela análise das acusações,se vê
que, para produzir essaincorporação de traços da macumba, os umbandistas
usaram o feitiço como operador. Acusaram outros grupos de praticantes de
magia, purificando-se por oposição e através do uso das acusaçõesde feitiça-
ria. (Nos processos criminais analisados aparece apenas uma vez a referência a
uma linha de umbanda,(ZtÓ)que se coloca a salvo de acusaçõesporque acusa Capítulo VI
de feitiço outros segmentos).
Seu Sete, a pombagira Mana Padilha,
Não se toma, nestetrabalho, a umbandacomo caso de análise.Diana
Brown (1986)dá conta de sua história com uma quantidadeexaustiva de.da- a macumbeirae o xangâ
dos. No entanto, o caso da umbanda semdúvida tem sua história construída a
partir do feitiço e das acusaçõesde feitiçaria. Afinal, os líderes umbandistas,
segundo Brown (1986), queriam se distinguir dos baixos espíritas, dos macum-
beiros. e reconstruíram, na luta pela legitimação, os critérios hierarquizadores
do campo. [)canaBrown não chegaexatamentea essasconclusõesporque de
alguma forma reifica essascategorias construídas através do feitiço: macumba,
umbanda pura, espiritismo kardecista, quimbanda.
No próximo capítulo são analisadosoutros casos,em outros momentose
conjunturas, em que o feitiço foi o elo que colocou pessoas,grupos e crenças
em relação de desigualdade.

(216) Ver Processon' 172. caixa 1.897, ano 1930, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, e Capítulo
IV deste trabalho.

222 e
E acrescente-se aos interesses materiais e dire-
mos,a crença supersticiosa nas práticas fetícÀfstas
por parte de pessoas influentes, e poder-se-á fazer
uma ideia do grau de proteção indireta de que hoje
podem dispor os feiticeiros.

Rodrigues (1935:71)

Como conseqüência do sistema de acusações, as segmentaçõesse dão con-


tinuamente. Acusados e acusadores fazem parte de um .campo segmentadoe
hierarquizado e a hierarquização é construída a partir do princípio de alto e
baixo espiritismo. A categoria baixo espiritismo.está relacionada com o que os
juristas chamam de uso abusivo dos princípios do espiritismo. Apesar de haver
diferençasna avaliação da posição dos diversos segmentosno campo, há uma
coisa comum a todos os participantes desse sistema de crença: acusados e acu-
sadores concordam com que existem pessoas ou grupos que usam mal ou abu-
srvamnte os preceitos do espiritismo e que, portanto, são baixos; são feiticei-
ros ou mistificadores. A diferença e o debate parecem centrar-se sempre, desde
a virada do século,nas diferentesformas de explicaçãodo mal. Há os que
acreditam nos poderes sobrenaturais de produzir malefícios e os que sociologi-
zam esse poder
Não só de acusações diretas e legais se dá essa segmentação. No caso do
Centro Redentor, o campo se constrói também a partir de acusaçõesindiretas
e de repressãonão formalizada. No día-a-dia da vida carioca, os jornais rela-
tam grupos que sacrificam crianças, macumbeiros que furtam ossosno cemité-
rio. pais.de-santo que curam mantendo relaçõessexuais com os clientes. Algu-
mas dessas acusações podem levar a processos criminais e .ao fechamento, de
terreiros. mas nem sempre,e em sua maioria, não passamde acusaçõesinfor-
mais.ou não ultrapassama fasede inquérito policial, sendoa denúnciaconsi-
derada improcedente.
Neste capítulo se analisa alguns exemplos e modos de acusação.Algumas
dessasacusações geraram processos formais, outras não. Não foi possível sa-
ber por que em alguns casos recorre-se ao processo formal e em outros não.
e 225
yvonne À4aggie Medo do f

Os casosselecionadospara análisenão têm continuidade histórica. Cada tempo a maneira de se hierarquizar o campo. Após a descrição do caso se ana-
um foi escolhido por ser um caso limite, ou tipo ideal no que tange às acusa- lisa o feitiço como operador lógico que intervém na ação.
ções de feitiçaria e modos de hierarquizar grupos sociais e idéias.
Seu Sete da Lira é o primeiro deles.Ocorreu no Rio de Janeiro em 1971,
quando as umbandas, os espiritismos e outros segmentosdo campo religioso já
seencontravamem outra fasee outro nível de organização.O casorevela em
1971 um mecanismo hierarquizador e classificador comparável ao que foi des- ca de grande sucesso.
crito no caso do Centro Redentor. Tal mecanismo, o feitiço, foi analisado na
primeira parte do trabalho. AÍ se viu como foi possívelregular o combate aos
feiticeiros e como se institucionalizaram as instâncias reguladoras dessecomba-
te
O casoda pombagira,ocorrido em 1979,outro momentoda história do
campo, serve como exemplo de formas mais indiretas de acusação,onde o fei-
tiço aparececomo operador que põe pessoase idéias em relação de desigualda-
de (218)
{<Ocaso da macumbeira>> é outro exemplo, ocorrido em 1985, em que se
pode ver o feitiço como operador lógico.
Essesdois casosrevelam que o mecanismoregulador instituído na Repú-
blica e a partir do Código Penal de 1890 continua atuante quase cem anos de-
pois Lira vermelho com o 7 preto no centro -- as cores de exu.
Finalmente, à guisa de comparação, se usa um caso ocorrido em Alagoas
em 1911, que serve de paradigma. Essecaso contém quase todos os ingredien-
tes da luta que se trava a partir das acusaçõesde feitiçaria.
Todos estes casos, analisados em profundidade, são vistos a partir do
operador geral de hierarquização e classificaçãoque é o feitiço. Assim se rela-
tiviza a idéia de que a luta por interessespolíticos ou económicosse relacione
de forma direta e imediata com o conflito de valores, idéias e crençasde clas-
ses. Aqui, essa relação é mais mediatizada.
mava charutos e usava cartola.
Este trabalho é basicamente uma tentativa de analisar a crença comum
que atravessa classes e perpassa a História. Não se despreza o aspecto pragmá-
tico dessacrença, nem se nega que ela sirva a <linteresses
materiais e diretou>,
no dizer de Nana Rodrigues (1935). Apenas se enfatiza o outro lado da moeda,
levando [)urkheim (1968) às suas ú]timas consequências.Afina], é e]e quem
ensina que a religião ou a crença têm como função primeira a coesãosocial.

25 Seu Sete da Lira ID Nas liras, o clima era de euforia. À meia-noite, a hora grande, todos can-
tavam o hino a Seu Sete -- {'Seu Sete, Rei da Lira, cura a minha dor/ Seu Se-
Um caso excepcionalocorrido em 1971, no Rio, esclarecea forma de se (218)Miceli(1972) faz uma análisedo processode autonomiasimbólicadesses
programase da
estabeleceralianças e de se construir fronteiras entre segmentose ao mesmo pressão da burguesia para dominar o campo Volta-se a essa discussão adiante.

(217) Mânica Mendes recolheu grande parte do material documental referente ao caso de Seu Se- (219)A característica
J--
mais importante dos rituais mediúnicos brasileiros é o médium entrar em
:PFa'.'ac '-..n nrpcpní''iam a transformação e a passagem.
transe diante dos assist
te. Com bolsa do Cepeg acompanhou o trabalho de elaboração deste capítulo, discutindo o
material e revendo o texto. (220) Auxiliares do médium
Yvonne Maggie N4edo

te saracura,cura a minha dor». Carros de luxo estacionavamà frente do ter- de carnaval, <ldeixandoo auditório de ser terreiro para se transformar num lo-
reiro. A revista Rea/idade de junho de 1971 descreve o sítio de Santíssimo com cal onde predomina a alegria)},como diz a reportagemde O Dia, na manhã
o espanto de quem assiste a um fenómeno fantástico. Segundo o artigo, numa seguinte
determinada hora em que já se concentra uma multidão, uma orquestra que fi- Nos dias que se sucederam a esse «acontecimento de massn}, a esse <Cinci-
ca no palco começa a tocar uma música lenta (samba-canção)e as pessoasco- te» a esse«fenómeno»,como diziam os jornais, surgem,atravésda im-
meçam a «ondulam, o corpo de braços entrelaçados e palmas da mão para ci-
prensa, terríveis acusações e estabelece-se uma polémica que tem desdobra-
ma. De repente a orquestra muda o ritmo para uma barulhenta batucada, to- mentos reveladores
do mundo bate palma na mesmacadência e surge então uma mulher travestida
A descrição dessecaso se fez a partir de levantamento de jornais, de en-
de homem. A luz, que se apaga poucos segundos antes, volta a se acender no
exala momento em que Seu Sete aparece, dando a impressão de que ele veio trevistascom pessoasligadas ao Centro de Dona Cacilda e da própria obser-
do ar, do nada, e as pessoasaplaudeme gritam milagresHá gente de todo ti- vação da autora deste trabalho.
po: pobres, ricos, artistas famosos. O material jornalístico utilizado nessadescriçãofoi obtidos em parte, no
[)ona Cacildatinha um programade três horas na rádio Metropolitana,
às segundas-feirase sábados. Já havia aparecido na TV duas vezescomo Dona
Cacilda, num programa de músicasde carnaval e para recebero troféu <lvelho
guerreiro)>, no programa do Chacrinha.(2ZI)
Flávio Cavalcanti e Chacrinha tinham seusprogramasno mesmo dia,
quase no mesmo horário e convidam Seu Sete (o exu) para comparecer. A pre-
sençano vídeo do exu que incorpora numa médiummulher é descritacomo
um acontecimentodelirante. As ruas, nas imediaçõesda TV Globo e da TV
Tupi, ficaram repletasde pessoas,que entravamem transe e gritavam. Era
quase impossível entrar ou sair dos estúdios. Os corredores das emissorasesta-
vam apinhados de gente que queria ver, tocar e ouvir Dona Cacilda -- Seu
Ü IÍIHa::.Z'1:1:
%: :llZI :
Sete Cidade parou para ver Seu Sete
(O Jorna/, 3-8-1971)
As duas emissoraspõem no ar Seu Seteincorporado e o auditório entra Níterói ignora briga e quer a Lira do Delírio
em transe. Muitas pessoastêm que ser atendidas e a confusão se alastra entre (Ültfma flora, 2-9-1971)
os telespectadores.Um jornal noticiou no dia seguinte que, enquanto Seu Sete
aparecia no Flávio Cavalcanti, dois telespectadores discutiam sobre o sexo do As rendas das 7 letras
exu. Um delesmatou o outro na briga. (Diário de Nota'clãs, 2-9-1971)

SeuSete,ainda incorporado,vai até a TV Globo, ao programado Cha- Bisposcondenamo uso da crendicenos showsde TV
crinha. Lá a cena é apoteótica. Algumas «chacretes»entram em transe e Cha- (0 G/obo, 3-9-1971)
crinha chora como criança confortado por amigos. O auditório quase entra em Cacildainventou Seu Seteda Lira
transe coletivo. Seu Sete toma as rédeas do terreiro e começa a cantar músicas (Ü/tema ]'lona, 3-9-1971)
Cacilda só se mostra como Seu Sete
(221) Essamédium com 48 anos, em 1971, cabelos negros e longos, é filha de fazendeiros, tendo
nascido em Valença, no Estado do Rio. Segundo entrevista dada aos jornais em 1971, aos
cinco anos de idade Dona Cacilda já fumava cachimbo. Quando estava excffada pedia ca- (/arma/do Brasa,t3'9a apariçãona TV e a moral duvidosa de D. Cacilda
chaça à mãe, que certo dia deu a ela uma garrafa de álcool, que ela tomou de uma só vez e (Tribuna da Imprensa 4-9-1971)
ficou calma. A primeira manifestação ocorreu aos 7 anos, quando entrou em transe na festa
de seu aniversário. SÓ vo/fou a si com a ajuda de uma benzedeira, depois de assistida por Seu Sete não sabe, mas seu terreiro agora tem um muro (Os-leões-de-chácara
um médico. Desdeos vinte anos de idade recebeSeu Sele. Foi costureira, atriz e composito- expulsam jornalistas)
ra. Casou-secom o Sr. JoséGomes, corretor autónomo de seguros, 46 anos, administrador (Correio da ]b4anhã, 5-9-1971) .
do terreiro e dos negóciosda família. Aparece como autor do LP que a gravadora Equipe
gravou com o hino a Seu Sete,cuja composiçãoé do próprio exu. Segundoa médium, sua Secretário de finanças diz que não pretende fazer nada contra Seu Sete
filha Luzia nasceucega. Foi a primeira cura de Seu Sete dorna/ do Brasa/, 5-9-1971)
e 229
yvonne Maggie Medo do

Como trabalha Cacilda foi uma das mais ferrenhos acusadoras. Apontou todos os espiritismos como
(Ultima .flora, 6 9-1971) macumbeiros. Deputados umbandistas se posicionaram e digladiaram; foi cria-
Tata Gerson: Seteda Lira nunca existiu da a primeira ConfederaçãoEspírita de Umbandistasa nível nacional. Em n.o-
(latina J:fora, 6-9-1971) me da verdadeira cultura. facções da classedominante e setoresmédios conde-
Seu Sete defende-se acusando Silvio Santos naram os programas populares. Seu Sete também foi tema dessa discussão
(O Día 7-9-1971) (Miceli, 1972).

SeuSete declara guerra à imprensa e roga praga As acusaçõesaos macumbeirose sua definição como.produtores de ma-
(Jornal do Brasi1, 7-9-L97L } lefícios continuaram operando na década de 70. A partir do caso de Seu Sete
Vigia não permite ver Cacilda em Copacabana pode-seter uma idéia de como essetipo de acusaçãoperdurou no tempo
(Jornal do Brasii, 7-9 1971}
A década de 70 representa outro contexto histórico. O campo das reli-
Tala: Rio já não tem pais-de-santoquentes
((Utima flora, 8-9-1971) giões mediúnicas já estava mais estruturado, com mais instituições.e mais gru
pos legitimados. A história da umbanda no leio, descrita por. raiana nrown
Umbandistas manifestaram sua repulsa por Seu Sete 1- ój além de trazer muitos dados,é uma reflexãoa .partir da tentativa de
(.4 Nofl'cia, 9-9 1971) um grupo de legitimar-see de fazer valer seuspontosde vista. Diana Brown
Líderesda umbandareunidos, discutindo os delíriosna TV analisa essahistória até 1970. Toma-seo caso de Seu Sete da Lira para pensar
(U7ffma J:fora, 13-9-1971) um outro momento de estruturação interna do campo religioso. Tentando co-
Umbanda acusa Seu Sete de deturpar a religião mo se disse, relativizar a ligação tão direta dos interessesmateriais com a cren-
(Correio da Manhã, 14 9-1971) ça, vê-se que a luta nessecampo, em 1971, teve lógica semelhanteàs do passa-
do
Boemia, boa de corpo e cachaceira
(Correio da Manhã, 15-9-1971) A briga se inicia com uma acusação que parte de pessoasde dentro da
Bem-empregado,o marido de Cacilda, sai em defesada mulher: Tudo que ela crença e de pessoas mais distantes.
tem foi ganho por meios legais
(U7fima flora, 16-9-1971) As categoriasusadasno discurso de todos os personagenssão homólogas
Eu fui a Santíssimo e saí curado e fazem parte de estratégias diferentes bem como de estratégias semelhantes no
(U7fima }Íora. 17-9-1971) campo de correlação de forças.
Babalorixá Dere desafia D. Cacilda para um encontro. Nada de TV Afirma Finalmente, o feitiço é usado como operador lógico, que hierarquiza idéias
que atende milhares de pessoas em três terreiros, sem cobrar nada e grupos sociais.
ÍU7tima flora, 22-9-1971)
Entrevista com D. Cacilda
(Ú/fama flora, 30-9-1971) 26. Briga de santo ou questõesfilosóficas e doutrinárias
D. Cacilda Fala
(Ultima flora, 2-10-1971)
A discussão em torno da aparição de Seu Sete gera muitas versões e posi-
Fala-seem pessoasque se suicidarampossuídaspe/o espírito de Seu Sete
Dona Cacilda é apontada como uma aproveitadora de moral duvidosa. A ma- çõesdoutrinárias. A Igreja Católica tem uma delas; em função de seu ataque
téria de jornal intitulada -- As Sete Rendas das Sete Letras acusa Dona Cacil se constrói um consensoe uma união entre vários segmentosdas religiõesme-
da de ter enriquecido. diúnicas. A Igreja Católica sitia as religiões mediúnicas como Manos fez com
Arenas. Acusando os mediúnicos como um todo de falsos, perigosos e não.ca-
O Secretário de Finanças do Estado mandou fazer uma sindicância no
tequizados, possibilita sua união. Eles sacrificam exu e a macumba de Seu Sete
centrode SeuSete.Alguns adeptosdo movimentointitulado contraculturase para salvaguardar sua crença.
posicionaram dizendo que exu e macumba eram a desrepressão,a contracultu-
ra, enquanto a umbanda branca era a ideologia dominante. A Igreja Católica Seguem-se as diversas versões.

230 e 8 23]
rvonne A4aggíe Medo

26.1 A versão da cúpula da Igreja Na Assembléia Legislativa, dois deputados chaguistas e umbandistas(222)

A Igreja é uma das primeiras a se posicionar contra a aparição de Seu Se-


te na TV. Alguns dias depois do evento sai uma matéria, <IBisposcondenam o
uso da crendice nos shows de TV)}, na qual l)om rosé de Castra Pinto, bispo
da Arquidiocese Carioca, acusaDona Cacilda, e a umbanda como um todo,
nliüigi[üãâ; ;ui7xt;]?]
I' unes Filho é de família umbandista. Seu pai foi o primeiro a lutar pela.legali-
zação (ia umbanda. A mãe, Bambina Bucci, também umbandista, foi a deputa-
de ser amoral, inculcar curas e contribuir para o aumentoda loucura e das da do MDB mais votada nas eleições de 1976. O deputado opositor é Rossine
neuroses na sociedade. Segundo l)om José, tais crendices são alienantes e Lopes da Ponte.(223)
deve-se censurar apresentações públicas dessasmistificações.
A Igreja, ao lançar ataque a todas as seitas, generalizando a acusação
[)om Eugênio Saltes, cardea] da Arquidiocese, dedica ao caso o programa atravésde um caso, dá margem ao aparecimentode uma luta interna que aca-
«A Voz do Paston}, dizendo que é preciso «catequizara arquidiocese». ba dividindo os acusadosem dois grupos. Um sob a liderança de Aula Nunes
Dom Josédefine a questão dizendo que a macumba leva à loucura. Assim Filho e outro meio acéfalo,inicialmentesob a liderança de RossineLopese.dos
a causa do mal é o próprio centro de Seu Sete. E o que é pior, são mistificado- adeptos de Dona Cacilda. Os dois deputados se insurgem contra o bispo. Aula
res os seus adeptos, mentem, falsificam a verdade. A Igreja também tem uma Nunes, porem, concorda com a censura por ele proposta, embora reivindique
visão sociologizada da magia. essaidéia para si e para muitas federações.Compra, portanto, a briga. A dis-
Dom Eugênio parece acreditar também em que a essênciada feitiçaria se puta rola e o deputadoRossinese colocaem defesade SeuSete.Aula Nunes,
cauteloso quanto às críticas a Seu Sete, diz que não conhecebem sua doutrina.
prendeà noçãode diabo. A falta de catequese
leva à atuaçãodo diabo, que
deve ser perseguido. Essaversão, em que a essênciado mal se liga ao diabo, Indignado, Rossine afirma que Aula conhece muito bem [)ona Cacilda, tendo
não está muito presente nos casos aqui descritos. Aparece raramente nos pro- iá freqüentado o que classifica como <(nossacasa» -- o centro de Seu Sete
cessoscriminais da primeira parte. Na verdade, parecemais próxima de um Rossine Lopes, então, apoia as posições de Aula com relação às.acusações de
catolicismo de cúpula da Igreja. É a versão que mais revela distância do caso, Dom rosé de Castro Pinto, mas'discorda de suasposiçõescom relaçãoa [)ona
Cacilda. . . .. .
porque opõe católicos (catequizados)ao povo mistificado, alienado, supersti-
cioso, não catequizado. Os dois deputados também lutavam pela hegemonia na.Assembléia do
Rio de Janeiro.O evento de Seu Sete marca a vitória. de Aula Nunes.,Este,
desdejunho, já vinha se posicionando, pois os jornais daquele período já fala-
26.2 As versões da crença vam no exu e no centro que empolgavacariocasde todas as classes.No dia 7
Pais de santo de todo o Brasil se posicionaram contra ou a favor de Seu Se- de agosto, na Assembleia,Aula lê um ofício do chefede gabineteda Secretaria
te e do evento. Os conflitos e as facçõesem luta aparecemcom toda clareza. de Justiça, comunicando que, atendendo a seu pedido, o Departamento de Fis-
Todos concordam, no entanto, quando se posicionam frente às críticas da calização passara a aduar com mais rigor contra a propaganda e o funciona-
Igreja Católica. No final da história. as facçõesse dividem em torno da apre mento de consultórios de <lcartomantes,quiromantes, adivinhos etc...» Aula
tentação de Seu Setena TV e da própria relaçãocom SeuSete. diz que «essesabusam da boa-fé das pessoasalém de usarem inadequadamente
o nome da umbanda>,já prevendo,talvez, a briga com Rossinee o conflito
As discussõessó ficam mais evidentesdepois da aparição de Seu Sete na gerado mais tarde. Propõe então (depois do evento na TV)..uma,censura pre'
TV e da manifestação da Igreja, pedindo censurae intervindo no caso. via sugerindo que os programas religiosos, antes de serem difundidos, passem
Alguns pais-de-santodizem que Seu Sete não existe, que é um nome de pelo crivo dos religiosos competentes.
«guerra)},que seu verdadeiro nome é Seu Sete Encruzilhada. Outros reclamam, A proposta do deputado é feita poucos dias antes da Censura Federalesta-
dizendoque Dona Cacilda é empulhadora, pois um exu não pode ser filho de lar 'a censura prévia de todos os programas de TV. Os desdobramentos des-
Nanan Buruquê, como teria dito a médium. Outros pais-de-santointimam Do- se caso mostram que o Ministério da Justiça se apropriou de uma sugestão do
na Cacilda a receber Seu Sete numa prova de fogo em seu terreiro. Muitos di- deputadoe da Igreja, que na realidadevisava controlar outro tipo de informa-
zem que ela ganha dinheiro e se aproveita da boa-fé alheia. Mas há vozes que
se colocam a seu lado, falando de suas curas e das graças recebidas. Nessa (222) Os dois deputados são lideranças umbandistas. Embora possam estar defendendo votos, re
mesma ocasião, Dona Cacilda visita uma das Tendas Mirins, grandes centros ' presentamsobretudoposições'doutrinárias e filosóficas da crença, assimcomo os pais-de
de umbanda no Rio. O presidente declara que há anos trabalha com Dona Ca santo citados acima, que também participam dessasposições
cima e que tem por ela muita consideração. (223) Ver sobre isso Pechaman (1982)

232 e e 233
yvonne Maggie Me

ção. O que Aula Nunes desejavaera a hegemonia das informações relativas à Fica demonstrado,com essanarrativa sobre a briga entre os deputados,
umbanda, enquanto os censorespensavam em outro tipo de hegemonia. que o Estado, as federaçõese os terreiros participam.das mesmaspremissas
culturais. São blocos de um mesmo edifício. O caso de Seu Sete mostra que
Na Assembléia,se acirra a luta dos dois deputados.Dizem que chegaram essesdiscursos do Estado, da Igreja, da crença, produzem o seu reverso, as
às vias de fato. Rossine lê notas de apoio a Seu Sete feitas por algumas federa-
alianças, que também usam as categorias com as quais foram definidas. O
ções. Aula Nunes lê outras, de repúdio às representaçõesritualísticas e incor-
própri exu -- Seu Sete -- usa essascategorias e se torna a perversão que vem
poraçõesmediúnicas em público e na TV, que causamdanos. Nesseponto, pa-
rece haver uma concordância de Aula Nunes e das federaçõesa ele ligadas confirmar a crença. Como no caso da sexualidade,conforme examinadapor
Foucault (1985), o discurso dos dominadores e dos dominados não se opõe de
quanto aos abusivos e maus espíritas que devem ser coibidos e perseguidos. forma radical. A apropriação que os dominadoresfazem das crençasdos do-
Do outro lado, as federaçõesligadas a Rossine,mesmo considerando que minadossó é possívelporque há pontos de consenso.É claro que essaapro'
há maus espíritas, querem preservar Dona Cacilda. Aula Nunes apoia a fiscali- priação gera controle e constitui uma tentativa constante de disciplinar o com-
zação feita pela Secretaria de Finanças ao centro de Dona Cacilda mas, em dis- portamento dos dominados.
cursos na Assembléia, afirma que essa fiscalização não deve se institucionali-
zar, pois as associaçõesreligiosassão isentasde imposto. Diz o deputado que O consenso gera o debate que se trava em torno da noção mesma de ma-
a interferência do Secretário de Finanças em qualquer outro terreiro ou centro gia. De onde vem o mal? Quem são os produtores de malefícios?Há os que
seria uma arbitrariedade. A intervenção, no entanto, seria legítima no caso de acreditam nos poderessobrenaturais de Dona Cacilda e Seu Sete da Lira e que
SeuSete. Ou seja, o deputado, para defender a umbanda, acaba tendo que re- crêem que ela faz o mal através de seus poderes ocultos. Há os que acreditam
conhecer a legitimidade da intervenção do Estado naquele caso de abuso. A em que a macumbaé o mal, e faz o mal porqueé fruto da anemia.Há os.que
acusaçãode uso abusivo dos preceitos do espiritismoserve, de um lado, para acreditamque o mal é fruto da atuação do diabo num meio não catequizado.
marcar diferençase fronteiras entre grupos com visõesdoutrinárias diversas, De todos os lados e em todas as versões, o feitiço é o operador lógico que
mas é ao mesmotempo uma faca de dois gumes.Aceito o princípio de que põe as coisas em relação, hierarquizando-as. O caso de Seu Sete aponta para a
existem maus e feiticeiros, abrem-se os flancos e quem for acusado, pode so- necessidade de se ter esse mecanismo classificatório e hierarquizador que opera
frer intervenção. a partir das acusaçõesde feitiçaria.
No dia 12 de setembro, exatamentequinze dias depoisda aparição de Seu A união de todos contra Seu Sete e o debate gerado em torno de sua apa'
Setena TV, é criado o Condu -- ConselhoNacional Deliberativo de Umbanda raçãona TV aponta para o lado do consensoe revelaao mesmotempo o de,
-- sob a liderançade Aula NunesFilho, numa reuniãoque durou 48 horas bate. Todos discutem em torno de uma crença comum; existem bons e maus, é
consecutivas.Esseórgão, de âmbito nacional, reuniu quasetodas as federações preciso controlar os maus. Até a Igreja Clatólica usa a categoria mistificação
e confederaçõese deixou de lado Rossine,as suasduas federações(paulistas) e para definir Seu Sete da Lira. Essacategoria é usada nos processoscriminais
é claro, Dona Cacilda. Alguns dias depois da aparição na TV, houve também analisadose nos terreiros hoje. Todos parecemconcordar com seu significado.
por parte de Dona Cacilda, Rossinee de muitos centros e federaçõeso desejo
de realizar um encontro nacional, que se frustrou. Fica evidente que os debatedorespartem de premissasculturais comuns
pelos desdobramentos culturais mais amplos da discussão. O caso de Seu Sete
As interpretações sociológicas dessa realidade -- a criação de federações foi discutido também nas esferasmais elitizadas da cultura carioca. Um seg-
-- sempre enfatizaram o lado de manipulação política. Como lá se disse, ana- mento da vanguarda estética,o movimento da contracultura, seposicionou no
lisaramas classese a crençade forma pragmáticae direta. Diana Brown debate, apostando no exu
(1985)fez uma análisenessesentido.PatríciaBirman (1985),Zélia Seiblitz
(1985), LíseasNogueira Negrão e Mana Helena V. B. Concone (1985) levaram Na versão sociológica mais consensual, a segmentaçãodos grupos se dá a
tal raciocínio mais longe e pensaram o Estado e as federações como dais con- partir de sua posição de aliança com o Estado. Como dizem Patrícia Barman,
tendores quase desonestos. Zélia Seiblitz e Diana Brown (1985),se faz aliançaspara evitar acusações de
feitiçaria e legitimar como religiosos os grupos que as conseguem.Parece, en-
Segundo Patrícia Barman, as federaçõesaceitam o Código Penal e o com-
bate ao curandeirismo e, para se legitimarem, tentam se diferenciar dessesfeiti- tretanto, qhe a forma de construir aliançasé mais complicada.Viu-se como o
ceiros definindo seus filiados como religiosos. Nessaperspectiva, Estado, fede- princípio de uso abusivo dos preceitos do espiritismo foi construído a partir do
consensocultural entre juízes, promotores, acusadose testemunhasnos proces-
ração e terreiros seriam três vértices de um triângulo. O Estado tem a ideolo-
sos criminais. Viu-se como o maior defensor da umbanda foi também aquele
gia dominante. As federaçõesaceitam essaideologia e tentam mediar a relação
dos terreiros com os dominadores. que propôs a censura e a fiscalização do abuso.
e 235
yvonne Maggíe Med

Viu-se como nesseprocesso de segmentação,o exu e o abuso -- o feitiço uma vertente conhecida como conceptual.As duas posições se opunham e por
são figuras indispensáveispara a criação de alianças. Como diz Foucault sua vez divergiam do movimento tropicalista.
(1985)sobre a sexualidde,a repressãoou o interdito instiga, incita, e a partir O caso de Seu Sete põe grupos em relação não só em termos religiosos,
da repressão se cria um discurso sobre o sexo que discrimina, classifica e cria mas gera também debate e acusaçõesnos movimentos artísticos e posiçoes es'
categoriasde saber.No caso aqui tratado, a repressãoé um lado da moeda e o téticas.
interdito, a regra, é que cria o discurso sobre a verdade dessacrença. Quem é Seu Sete da Lira, no contexto carioca da época, também representa uma
falso e quem é verdadeiro? Quem são os bons e os maus? O nosso interdito, posição estética que foi vítima de intensa repressão.Caetano, Gil e os tropica
no caso, é o feitiço, e o feitiço põe em relação classesque hierarquiza. listas estavam exilados. No Rio, o movimento da contracultura, que contou
Parece,portanto, que a acusaçãoao exu, à macumbae ao baixo espiritis- com a participação destacadado antropólogo MarCO.AurélioLuz, se posiciona
mo -- o feitiço -- não produz uma classificaçãoestática,na qual se possade-
finir um inimigo com característicasfixas, massim um processorelacional, on-
de os contendores se posicionam. Dona Cacilda pode ser acusadade falso espi-
ritismo, de um lado. A mesmaacusação,feita de outro lugar, pode definir
Aula Nunescomo falso. Mas a luta travadase organizaa partir de códigos derançasse colocam a favor de exu, da macumba, que segundoeles, é «rejeita-
gramaticais diversos, como se vê adiante. Por ora, basta dizer que é possível da por todas as instituiçõesporque é especificamenteuma contra-instituiçãoe
que em termos de ação, Dona Cacilda tenha perdido. Seu centro hoje não vive uma contracultura que exprime uma contra-sociedade:}(idem, p..21). Comen-
a glória dos anos 70. Mas nada diz que em outros momentos, no futuro, ela
não possa fazer va.ler e impor seuspontos de vista no campo religioso, e Aula
Nunes venha a perder espaço.
Como se demonstrou na primeira parte deste trabalho, um mecanismode
combateaos feiticeiros, instituído na Repúblicaconstituiu um campo segmen- Segundo essesautores, a desrepressão também se dá de forma .doentia, «atra-
tado e possibilitou a produção de discursos sobre as religiões mediúnicas. Esse ves de uma forma inconsciente: a histerin}. Exu, nessaperspectiva, é a contra-
mecanismo produziu discursos diferentes em cada conjuntura particular. Viu-se cultura. Citando Lévi-Strauss e Reich, falam de eficácia simbólica, que se opõe
à ideia de charlatanismo, e da relação abstinência sexual -- autoritarismo --
como na virada do século, nos anos20 e 30 e nos anos40, seproduziu o saber
sobre a crença. obediência -- hierarquia.(224}
A companhia inglesa de teatro experimental inglês Living Theater, que vi-
O caso do Centro Redentor apontou para um lado da história do campo
religioso que ainda não estava descrito. sitava centros e terreiros nas favelas cariocas, tentando aproximar a experiên-
cia das drogas com o ritual dos terreiros, é expulsa do país. Assim, acusações
O casode Seu Seteda Lira faz parte de outro contexto, mas tambémaqui e dissençõesnão se restringem às igrejas ou centros e terreiros= Há segmentos
se produziu, através das acusações,um novo mapeamentodo campo. Os per- de intelectuais da polida e até da polícia política, como ficou claro no casoda
sonagens são outros, mas se movem com base em premissas culturais comuns. censura prévia, que se posicionam a partir dessecaso de acusação.a uma pes'
soa definida como macumbelra, feiticeira, quimbandeira e causadorade mi-
lefícios
26.3 A briga entre vertentesestéticasou a dominação
simbólica as facções da crença são colocadas em relação e hierarquizadas. O mes-
mo se dá com as vertentesestéticas.Os tropicalistas e a contracultura acusam
Nos dias subseqüentes
ao acontecimentona TV, o jornal O ll)fa publica os conceituais e hierarquizam vertentes. A polícia política hierarquiza progra-
um artigo, comparando as cenasdo ritual de Seu Setecom o curso de expres- mase a elite dominantehierarquizasímbolose mensagens de TV. Todos fa-
são corporal de Klauss Vianna, no Museu de Arte Moderna e com os <(Domin- zem isso através do feitiço, um operador lógico.
gos da Criação>}, realizados naquele mesmo museu, dizendo que Seu Sete da
Lira produz um ritual onde o corpo já estáliderado. Segundoa matéria. Seu A presençade Seu Sete nos programas populares de TV também produz
Sete e as pessoasque frequentam seu terreiro não precisampassarpelo curso um debateem torno da produçãosimbólicana TV. SergioMiceli(1972) faz
de Klauss Vianna para liberar o corpo. Famososna época por suas posições
inovadoras, Klauss Vianna e os artistas ligados aos Domingos da Criação no (224) Ver, sobre essaposição, a entrevista de Marco Aurélio Luz no Correio da Manhã, de 15-11
1971
MAM estavam mais afastados do movimento da contracultura, mais presos a
23Ó +
e 237
yvonne A4aggie Medo d

uma análise do que classifica de «incidenteprovocado pela presençada ma. Não se trata mais de crençasfragmentadas. A FederaçãoEspírita Brasilei-
cumbeiraCacilda na noite do dia 29 de agostode 1971>» (idem, p. 186). Segun- ra e o Centro Redentor deixaram de ser os únicos organismos centralizadores.
do Miceli, A umbanda surge com grande força, e é na décadade 70 que mais se expande.
o incidente propiciou as condiçõesnecessáriasao nível dos meios de Se na primeira Repúblicae nos anos 30, a repressãolegal e jurídica insti-
comunicação de massa, ao processo de encampação que determina- tui ou funda essacrença de rituais e curadores ant.es.isolados,compondo uma
das facçõesda classedominante, aliadas a setoresmédios, vêm mo- miríade de grupos, na décadade 70, as acusaçõesà Dona Cacilda, não forma-
vendo contra aquelesprodutos da indústria cultural e particular- lizadase dentro da lógica da ditadura, com um sistemade controle.muito mais
mente os programas de auditório 'populares', que ainda dispõem de centralizador, fundam o discurso mais complexo sobre a umbanda: Ou me-
um discurso autónomo que escapaaos controlespropriamente sim- lhor, instituem novo discurso sobre as religiões mediúnicas, sempre classifican-
bólicos da ação pedagógicadominante (ibidem, p. 187) do, separando e buscando maus e bons espíritas, sempre.usando o feitiço co-
mo operador lógico que põe grupos em relação de desigualdade.
Miceli diz que a acusação dominante ressalta a ilegitimidade simbólica
dessesprogramas, em nome da verdadeira cultura. O autor diz que: Na primeira República e na década de 30, os inimigos foram delineados
atravésdas acusaçõesde feitiçaria. Nos anos 70, acusa-seum centro, e a partir
Sob o disfarce de se estar discutindo apenas os 'exageros'e dessa acusação, consegue-sea união de quase todos, sob a liderança do depu-
descalabros' a que chegam os programas, coloca-se em questão o
sistema de significações, a legitimidade e o modo de imposição, que tado Aula Nunes Filho. As federaçõestêm, no entanto, um equilíbrio precário,
foram selecionadospelo discurso peculiar aos programas de auditó-
rio 'populares' (ibidem, p. 188)
Miceli discute o monopólio simbólico da indústria cultural e suas verten-
tes e modos de imposição, não analisa diretamente as acusaçõesa Seu Sete.
=:í':=:"«
'"'?1:!'=:1=g=J
u; t :B #
mesmos prmcipios que norteiam a estruturação dos terreiros. Nesse trabalho.,
Vergolino aponta para o conflito e as acusaçõescomo instrumentos de legitima-
No entanto, o que o autor chama de disfarce,no casode Seu Sete, ao que tu- ção de posições.
do indica, são as acusações de feiticeira, de quimbandeira,macumbeira,que No caso acima, mais uma vez, pareceque todos são cúmplices.da repres-
acabamtornando muitos setorespopularescúmplicesda acusação.Em última
são, porque são pares de crença. O. maior defensor da umbanda pede fiscaliza-
instância, o feitiço colocou vertentes ideológicasda indústria cultural em rela-
ção de desigualdade. ção dos que abusam dos preceitos.(22S)Nessa perspectiva, a relação com o Es-
tado fica mais complexa. Rossine e Atola Nunes Filho defendem a ditadura em
várias ocasiões.São deputadoschaguistase lutam por votos. Mas tinham po-
sições religiosas e estéticas diferentes. Rossine apostava na contracultura; Aula
27. As alianças Nunes. na burocratização dos cultos. Aula Nunes queria ser ele mesmo o cen-
sor. retirando do Estadoessepoder. Como conseqüência,a aliança, o reverso
Daí em diante, o centro de Seu Setedecai em termos de público. Outros da acusação, se faz necessáriapara a defesae para o ataque. Ou seja, o Condu
umbandistas,no entanto, conseguemrealizar um sonho de muitos de seusdiri- só pode ser criado porque, sob a ameaçade repressãoda Igreja, todos se unem
gentes.Criam uma ConfederaçãoNacional e se aliam contra dois tipos de ini- contra ele. Dona Cacilda representaa aliança desfeita, a vítima que se tem que
migos: de um lado, contra os acusadores da umbanda, o Estado e a Igreja e, sacrificar para que alguns segmentos vençam. Sem as acusaçõesa Seu Sete, ao
de outro, contra o perigo do exu Seu Sete,malévolo e denegridordo bom no- :xu. a umbanda não poderia ter estabelecido uma alianç? a nível nacional.
me da umbanda. feiticeiro, quimbandeiro. Exu é fundamental para os desdobramentos umbandistas. Ou seja, exu é peça
Assim, a mais de 80 anos da Proclamação da República e 30 anos depois fundamental no discurso que disciplina e instituí essecampo
da decretaçãodo Código Penal de 1940, no início do grandedesenvolvimento
dos canaisde comunicação,o Rio vive um caso de acusaçãode abuso de pre- 28. O significado das acusações
ceitos do espiritismo.
Com os cuidados que merece essacomparação meta-histórica, pode-sedi- Todo sistemaque se apóia na lógica das acusaçõesà feitiçaria delimita as
zer que essecaso limite é um modelo de como se pensar as acusaçõesde mau fronteiras políticas de seusgrupos. Portanto, o significado das acusaçõesaos
ou abusivo uso dos preceitos do espiritismo no Rio de Janeiro contemporâneo, (225) Note-se que o termo preceito aparece desde a virada do século e que a linguagem empregada
ou seja, <lo que está nos autos também está no mundos,. permanece a mesma

238 + e 239
yvonne A4aggíe Medo do

que usam mal os preceitos do espiritismo aponta para a estruturação política nes, por sua vez, aceitou essasacusações,mas procurou legitimar sua crença
dos grupos envolvidos. Ou seja, o feitiço como operadorlógico põe grupos apontando Seu Sete como uma deturpação.
políticos em relação; não é apenasum sistema cognitivo. Os dois tipos de estruturação do conflito baseiam-se,no entanto, nas acu-
Como se viu, em 1971 o campo da feitiçaria passapor nova estruturação.
O princípio hierarquizador baseadonas categoriasalto e baixo continua atuan-
te (o Condu foi a aliança dos altos contra os baixos exus, Dona Cacilda
etc.)
Nesseano, Marco Aurélio Luz insistia em que a umbanda era a ideologia a
çaria
dominante e a macumba, a dos dominados. Apontava o caminho certo. Os al- No Rio de Janeirodos anos70, as acusaçõesproduzem um campo hierar-
tos espíritasprocuram se unir contra os baixos. No entanto, se quer mostrar quizado, onde são relacionadas não só as instituições .religiosas,mas as verten-
que não há um discurso dos dominadores e outro dos dominados. Há discur- q-' osoficas, estéticas, políticas e acadêmicas. O feitiço é o operador lógico
sos sobre umbanda e macumba, e com eles, a antropologia, a justiça, o Esta- dessahierarquia e tudo, ao que parece, se passa na ordem da metonímia.
do, as federações e [)ona Cacilda constroem um campo organizado e discip]i- Pode-sefalar da briga estética do mesmo modo como.da briga religiosa, to-
nado. Nem sempre os mesmos princípios hierarquizam o campo. Do mesmo
modo, os terreiros se organizam internamente a partir de códigos diversos. A
definição dos baixos e altos espíritas dependedo princípio organizador aciona-
do. Em alguns momentos pode predominar o código burocrático, em outros, o
carismático.(226)Dona Cacildarepresentao carisma,a individualidadee o fei- a
çao
tiço, encarnandoo código carismáticode estruturaçãodo campo. Em 1971, no Nos anos 70, no Rio de Janeiro, as acusaçõessofridas por Dona..Cacilda
Rio de Janeiro, aparentemente vence a proposta de estruturação política buro-
crática. As acusaçõesde feitiçaria delimitam as fronteiras entre os grupos e
produzem diferentes concepçõesde ordenação interna do campo, assim como
diferentes tipos de alianças.
Parece também que há dois tipos de acusação,que produzem tipos diver- zações, como se analisa a seguir.
sos de aliança. A acusação pode partir de grupos estrangeiros, de fora, como a
acusaçãoda Igreja; ou pode vir de dentro, de uma dasvertentesideológicasdo
campo. O primeiro tipo de acusação generaliza todo o campo e acusa-o como
um todo. O segundodiferencia segmentosdentro do próprio campo. Para ca- 29 Quando a acusaçãoé indireta O caso da pombagi
da tipo de acusaçãohá diversos tipos de aliançaspossíveise também diversos ra Mana Padilha
tipos de hierarquização. No caso de Seu Sete, por exemplo, a Igreja faz uma
acusaçãodo primeiro tipo. O resultado é uma aliança mais geral entre muitos
segmentosdo campo. Todos os contendores se posicionam contra o ataque da Os jornais diários e as emissorasde rádio e TV falam constantementeem
Igreja, até a própria Dona Cacilda. Aula NunesFilho, no entanto,ao acusar casosem que a umbanda, os cultos, curadores e médiuns se encontram envol-
um dos segmentoscomo feiticeiro, dividiu e hierarquizouo campo interna- vidos em crimes variados: assassinato,roubo, estupro etc. Nessasnotícias, que
e
mente 227
se repetem desde o final do século pelo menos: aparece claramente o lugar cri-
A essesdois tipos de acusação e de alianças agregam-se duas formas de le- minalizado da falsificação, do charlatanismo, da mistificação e da feitiçaria.
gitimação da crença. Primeiro: pode-seacusar a crença como um todo a partir Os casos ocupam lugar nos jornais por dias, semanas e até meses. Fala-se
de um caso isolado, tomado como exemplo. Segundo: pode-sesalvaguardar a em sacrifícios humanos, rituais mágicos, crimes com pais:de-santo como prota-
crençaapontandoum dos segmentoscomo exceçãoà doutrina. A Igreja ten- gonistas ou ainda comelLidos por influência de espíritos. Nessas notícias apare-
tou, através de Seu Sete, deslegitimar todas as religiões mediúnicas. Aula Nu- cem as noções de charlatanismo, mistificação, sacanagem,sujeira e magia ma-
léfica associada ao crime e à macumba.
(226) Ver sobre isso Maggie (1975).
(227) Sobre acusaçõesde feitiçaria e delimitação de fronteiras dos grupos envolvidos, ver Douglas O material discutido nos quatro primeiros capítulos deste .trabalho
(1970) restringiu-se a processosonde os crimes principais se referiam aos três artigos

240 e e 241
yvonnel\4aggíe Medo d

que regulam o combate aos feiticeiros e charlatães.No entanto, sabe-seque méstica é nora de uma senhora, amante do faxineiro. Parece que o faxineiro ti-
muitos outros processos formais sobre assassinatos, estupros, roubo, agressão nha duas amantes, a viúva e essaoutra, que tinha uma nora, e que fez o servi-
etc., foram ou ficaram associados
a espiritismo,umbanda,mediunidadee ma- ço por Cr$50.000,00 (cinqüenta mil.cruzeiros). Até aí, a história é comum.
gia. A associaçãode crime e criminosos com macumba, magia etc. também é Mas o reporter policial de O G/obo descobre que a tal amante do faxineiro. re-
comum.Assassinose bandidostêm <<parte
com exul}, como dizem os cebia uma pombagira Mana Padilha num terreiro de Caxias e que o assassina-
policiais.(228) to teria sido tramado em seu terreiro. Consultada, a pombagira teria fornecido
As categorias macumba, macumbeiro, quimbandeiro, feiticeiro ou bruxa pós mág cos'e prescrito trabalhos para.$ue a vítima morresseatravés de ata-
surgem nos discursos acusatórios. Ninguém se espanta com o aparecimento de ques místicos. O faxineiro era cambono(2at)no terreiro.
categorias do universo religioso em discursos médicos, jurídicos e de policiais. A reportagem descobrea pombagira ou a senhora que recebia a pombagi-
Pombagiras podem depor em delegadas, médiuns podem ser mistificadores e ra e a entrega ao delegado. O delegado intima a acusada que, nos depoimen-
juízes aceitar mensagenspsfcograíadas como elementosde defesade acusados tos dos outros implicados,é citada como médium inconsciente,pessoaboa,
do assassinato de esposas infiéis.(22Ç) que não fazia o mal
Em outros momentos, se reabre um processoporque, numa sessãonum Na delegada. a mãe-de-santo, amante do faxineiro. recebeu a .pombagíra,
centro, revela-se, através de um espírito, o local onde estava escondido o cor- não conseguindoprestar depoimento. O Cava/o (o médium) não falava, só a
po da vítima. Sidney Chaloub (1986)cita um dessescasosnum processode pombagíra xingava e gritava, sendo então filmada pela TV.
1903, onde boa parte do inquérito policial trata de denúnciasde um espírito
que lança suspeitasde assassinatode um menor, em Sepetiba, sobre um habi-
tante da ilha. O processo rola por dois anos. As revelaçõesdas sessõesespíri-
tas são apuradas, até que a denúncia é declaradaimprocedente.
pas-
Discute-se aqui um caso que se passou no Rio de Janeiro em 1979. Esse ta passar oleo no corpo da mulher. Esta grita, xinga e acaba exp.ulsandoo
casofoi objeto de tesede mestradode MarchaConfins (1983)e artigo de Gold- tor da delegada. O psiquiatra diz que o transe era falso e o pai-de-santo, que
mane Confins(1985).Toma-setese,artigoe o processo
criminal(230)
como não era mistificação, que era incontrolado, pouco desenvolvido, mas verdadei-
fonte, para analisar essaacusaçãonão frontal, não direta, ou seja, fora dos ro
mecanismosinstitucionais de combate aos feiticeiros. Tal acusação, portanto, O casovai a juízo e todos os indiciadosvoltam a depor.,.Ojuiz,, porém,
nao resultou na abertura de inquérito sobre charlatanismo ou curandeirismo, não permite que se repita o show dado na delegada, a mistificação(nos ter-
inserindo-se dentro de um processo de crime contra a pessoa. mos do juiz, do promotor e dos policiais).
«O caso da pombagíra»,como é denominadaa dissertaçãode mestrado O advogado dos acusadostenta inocentar a mulher, argumentando que a
de Marcia Contins (1983), ficou notório, ocupou páginasnos jornais e minutos anse a tornava inconsciente, portanto, irresponsável pelos seusaros.
nas TVs. Uma pombagira Mana Padilha foi introduzida numa história comum
de assassinato, ocorrida num subúrbio carioca. O juiz não aceitaesseargumento, nem o parecer médico dos peritos que
classificam a amante do faxineiro como mitomaníaca,. histérica, .mistificado-
A vítima é um senhor branco,50 anos, negociante.Os acusadossãosua ra. A condenaçãoé reveladora. Duas pessoassão condenadas.adezoito anos
esposa,um faxineiro, uma doméstica e uma mulher que recebia uma pombagi-
ra. A viúva do morto afirma, nos depoimentos,que o marido.eraimpotente.
Por isso mandou mata-lo, usando um jovem faxineiro criado por ela. O faxi-
neiro, que segundoa viúva não tinha coragem,era um <(frouxo»,não conse- pena de doze anos.
gue matar o homem, e chama uma domésticapara perpetrar o crime. Essado- O casoficou conhecidona vara criminal em que foi julgado, na.delegada,
e no meio intelectual que participou da discussãoda tesede mestradoe do ar-
(228) Ver Ramalho (1979)
tigo citados, como {lo caso da pombagira>.
(229) Há um caso em Minas Gerais de uma carta psicografadapor ChecoXavíer, o famoso espírí
ta mineiro. Era mensagemde uma vítima de assassinato,defendendoe inocentandoo acusa N4arcio Goldman e Marcha Contins interpretam na posição do juiz a ne.ca-
do, seu marido, que estava sendo julgado. O juiz aceitou a leitura da carta diante do tríbu. da existênciada umbanda,pois não aceitou o depoimentoda pombagira
nal do júri (/arma/ do Brasa/, março de 1986}.
(230) Processo n? 11.097, 1? Vara Criminal, ano 1979. (231) Auxiliar dos médiuns, posto na hierarquia dos terreiros

242 e e 243
Yvonne AÍaggie Medo do f

Ao mesmo tempo, porém, o juiz aceitou o inquérito policial em que a pomba- MarchaContins, em sua dissertação, aponta nessa direção, embora assina-
gira falava, definindo o acontecimentocomo show, mistificação.Como se de- le a versão do juiz como versão diferente da dos acusados. oCAspessoasque se
monstrouna primeira parte do trabalho, esseé um termo usadopelos inte- encontram envolvidas no assassinato(...) participam da crença no candomblé
grantes da crença para definir o falso transe ou falso espiritismo. e nos poderesocultos de produzir malefícios.As duas últimas -- a viúva e
Um assassinatoé cometido. Quatro pessoassão condenadas, sendo uma uma irmã desta -- desconfiam dessaspráticas -- 'inferiores,, mas a procuram
senhora que recebia a pombagira acusada de tramar o assassinato pela magia. quando precisam. A crença na possessãoé uma possibilidade, mesmo para
Tal acusação coloca a pombagira no centro das atenções, servindo de elo(232) aqueles que não se dizem umbandistas, candomblezeiros etc...)} (Contins,
entre os acontecimentos aos 30min. Nessabola dos exus uma mulher <(tomada 1983, P. 114).(2SS)
por uma força estranhn}, a força da pombagira, mata um negociante.A pom- Durante o processo revela-se uma associação entre erotismo, sacanagem,
bagira comandou o assassinato.Ou melhor, a acusaçãode feitiçaria, a acusa- sujeira e essesrituais onde atuava Mana Padilha, quase como se candomblé,
ção à pombagira Mana Padilha, coloca pessoase acontecimentosem relação e exu ou pombagira fossemsinónimos de palavrão, sexo, miséria, imundície. A
possibilita a hierarquização dos acusadosface à pena. vítima é impotente, a viúva quer a herança.Os dois filhos do casalsão conce-
As várias versões sobre o transe, seja a dos médicos, a dos juízes, dos re-
ligiosose até mesmo dos antropólogos, não revelam o segredoque deve ficar
para sempreencoberto; a crença comum na possibilidadeda possessãopelo
espírito e na feitiçaria. Para se saber se o transe é verdadeiro ou falso, se a
Hii IÜ:&BIH:;H/:
me
E l?
i:lilã1:1
médium é pouco desenvolvida ou se não controla o guia que recebe ou ainda, O lugar do feitiço é também o lugar do crime e .a sociedadeparecedar
se o discurso legitima ou deslegitima a umbanda, é necessárioformular a idéia mais atenção à discussãoda possessão,dos espíritos e do feitiço do que do cri-
de espírito. A discussãose dá em torno da possibilidadedesseespírito produzir me comum de uma mulher que mata por dinheiro. Em outras.palavras,mais
malefícios. Os tiv jamais entrariam nessadiscussão.Na cultura deles não exis-
te a noção de espírito.(233)No caso estudado, é a acusaçãode feitiço que per-
mite relacionaras várias versões.
Aqui, pela legislação, o transe não incapacita o acusado. Não serve, por-
Eâü
que o feitiço é acionado.
ll u:i:i3 aElus:
tanto, como atenuanteou prova de inconsciência.Mas a prática forensesu- No casoaqui descrito, como a acusaçãoé indiret.a,produz-sedentro do
porta e aceita processosem que espíritos depõem. O juiz condena a médium a cessocriminal uma situaçãoem parte semelhanteà ocorrida no <Ccaso de
doze anos de cadeia apesar de esta só ter prestado depoimento em juízo, já Seu Sete da Lira», descrito no início do capítulo. O delegado, mesmo tendo a
que na delegada quem fala é a pombagira. O juiz condena a doze anos de pri- crença, participa como acusador mais distante, sua intenção ê apenasapurar
são porque de alguma forma acredita em que a médium ajudou a tramar o cri- um crime de morte. Um jornalista descobreo envolvimento da pombagira e o
me. Os acusados,sobretudo a viúva, dizem que a médium entra na história delegadoprocura apoio fora da polícia, chamandoum pai-de-santo,um pastor
porque foi chamada para fazer um trabalho e matar através desseataque e um parapsicólogo. O delegado acredita na possibilidade de feitiçaria..A asso-
místico; como os ataques místicos não funcionaram, a médium -- a pombagi- ciação da pombagira com a sujeira e a sacanagemé feita por aquelesque que-
ra Mana Padilha(234)-- sugeriu que se matasseo impotente com um revólver.
Na versão do juiz, a médium foi conivente e auxiliou na trama.
Pode-sepensar que o juiz tenha negado a existência de espíritos ao tomar
o depoimento da pombagira como se fosse da médium. É verdade, ele não
glF U X $THI b 'i:l:i:g
acredita no espírito. Mas consegueformular a noção de espírito e seguea nos-
sa prática forense, dizendo que o transe não é atenuante, porque não torna o
réu inconsciente. Ou seja, formula a ideia de possessãopelo espírito Êl$HÜ6ilj31H$HÉR;
processocomo espírito. Para se condenar a médium, era preciso aceitar esseti-
(232) Essaidéia de elo foi formulada por Contins e Goldman (1984} em outro sentido. Não é a
pombagira em si, mas a acusaçãoque coloca a pombagira como elo.
1235} Toma-se essecaso com o fim de pensar a condenação de uma pessoa que usa seus poderes
(233) Ver Bohannan (1967)
sobrenaturais para produzir malefícios. O caso revela muitos outros aspectos,discutidos por
(234) Sobre a origem de Mana Padilha no nosso sistema de crenças,ver Souza (1986). Marcha Confins.

e 245
244 ©
yvonneA4aggie Meda

po de lógica acusatória e aceitar as acusaçõesfeitas durante o inquérito poli- prometendo a eles a sua proteção (apud, Confins e Goldman,
cial. {eOque está nos autos está também no mundo)>. 1984;114)
Mas a magia tem vertentes diversas. O psiquiatra e o juiz sociologizam a A mãe-de-santodescrevesua vida para os peritos médicos psiquiatras que
magia e aceitam a mulher que recebe a pombagira no processo porque acredi- escrevema anamneseda paciente.Uma mulher pobre, que trabalha à noite
tam em que a magia é fruto da desorganizaçãoe da anomia, que produz tam- numa funerária. A descriçãoé feita com realismo. Nesserelato, ela não se de-
bém o crime. O delegado, os envolvidos, o pastor e o pai-de-santo chamados fine como umbandista, mas se defendeda acusaçãode macumbeira. <'Eunão
pelo delegado acreditam na possibilidade de forças sobrenaturais produzirem sei nada disso de centros de macumba)>. E se considera católica.
malefícios Nas considerações finais, os médicos psiquiatras definem a mãe-de-santo
As categoriasda crençaaparecemno processoe, aliás, muitas vezes,no como mitâmana, porque ela nega ser macumbeira e ao mesmo tempo diz que
artigo e na tesedos antropólogos,substantivadase semexplicação,como se dá passes.Dizem que as «forças sobrenaturais... são seusperenes.convidados e
fossemtermos comuns do vernáculo. Quimbanda (ritual para fazer o mal) e parceiros de engodo que está pronta a empurrar para..- os crédulou} (falem, p.
Mana Padilha(que incitou ao crime) são expressõesde uso correntepara to- 114). É uma histérica.
dos. A discussãoe o debate se dão em torno da verdade ou falsidade do transe O discurso psiquiátrico define a versão sociologizada da magia na qual o
e dessasvertentes de noção de magia. O pai-de-santo, presidente da Federação sobrenaturalé parceirodo engodode uma mitâmana. Ê a histeria, não o so-
Nacional das Sociedades Religiosas de Umbanda, na verdade chamado pelo brenatural, que produz o engodo, que faz, por sua vez, o mal.
advogado da mãe-de-santo que recebia Mana Padilha, atesta que o transe é
autêntico. O psiquiatra chamado pelo delegado diz que {caincorporação não é Os antropólogos, falando a partir do casa, refletem sobre.a diversidade
autêntica, pois a paciente responde positivamente aos testes de sensibilidadee dos discursose sobre o controle de práticas umbandistas. É aí que reside o
está com seus sentidos normais>> (Contins e Goldman, 1984, p. 114). problema. As categorias umbanda, macumba e candomblé .parecemestar sem-
rFe fora de lugar quando não estão sendo referidas a.partir das,acusaçõesde
Nos terreiros também é comum se fazer provas de fogo, para verificar se feitiçaria. Re endo os discursos, vê-se que o discurso dos antropólogos e o do
o médium está fingindo, mistificando.(236)O médico acredita numa farsa mal pai-de-santo falam em umbanda. Este último usa essa categoria em relação a
encenada,pois a médium sente cócegasna planta dos pés... O psiquiatra diz acusaçãofeita, de magia negra. Os jornais falam em magia negra,macumbae
que a médium pode perfeitamente em sua psicopatia acreditar em que realmen- candomblé A acusadafala em macumba, se defendendo, negando ser macum-
te recebeuma entidade espiritua/. Para o psiquiatra, <<aspessoasque lidam beira
com essetipo de misticismo são90% desequilibradas>> (idem, p. 114). Ou seja,
o misticismo, o candomblé é produtor de desequilíbrio e é por isso que se ex- No processo, é a acusaçãode magia negra, de feitiçaria= que opera a clas-
plica o crime. sificação, ao mesmo tempo hierarquização. Macumba e candomblé são catego-
rias nessecontexto acusatórias, denotando feitiço, coisa feita: Porque a acusa-
O pastor exorcista, que ninguém sabecomo chegouà delegada, entoa o ção de feitiçaria põe as coisas em relação, a pombagira é o elo que dá sentido
tempo todo cânticos religiosos e tenta inutilmente exorcizar Mana Padilha. O às várias categorias classificatórias. A mãe-de-santo está sempre negando ser
pastor diz que o demónio que atacava era violento demais. O demónio apare- macumbeira, feiticeira; no entanto, não nega dar passes.Para os médicos e
ce pela segundaou terceira vez, apenas, nos vários casosanalisados, na versão talvez os antropólogos, essadiferença não significa muito. Porque pensam tu-
de um pastor que tenta em vão exorcizar Mana Padílha. Para essepastor, os do como coisa perigosa. Na versão de médicos e antropólogos, os termos da
malefícioseram produzidos por um demónio muito violento. acusaçãosão outros. Macumba, umbanda e magia negra se relacionam à coisa
O juiz condena a mãe-de-santo porque foi em sessõesespíritas que ela fez ruim. ao mal.
trabalhos abusando da crendice dos outros denunciados.
Em síntese. o caso revela que os termos classificatórios dessascrenças --
O laudo do examede sanidademental diz que a mãe-de-santo,com sua macumba. candomblé, umbanda, quimbanda -- não podem ser substantiva-
conduta, concorreu eficazmentepara a prática do homicídio pois os. Categoriasrelacionais, só podem ser definidas através do feitiço e das
ante o fanatismo e a crendice dos demais denunciados, realizou, acusaçõesNesse sentido, o significado de cada categoria deve sempre ser rela-
mediante remuneração, algumassessõesnas quais se tramou a mor- cionado com o lugar que ocupa no discurso de quem fala e, além disso, com a
ro 'l : vítima, animandoassimos acusados
à práticado crime e posição de quem está usando o termo e em relação a quem.
Esse processo criminal aponta a mesma conclusão do.caso de Seu Sete. da
(236) Ver Maggie (1975) Lira. A acusaçãode fraude, charlatanismo e feitiço é fundamentalpara a clas-

24Ó e e 247
yvonne A4aggíe Medo d

sificação dos diversos segmentosda crença e dos crentes. Macumba e candom- usemo feitiço como operadore que o classificadornão se autodefinacomo
blé são classesdiferentes da umbanda. As duas primeiras são malévolas, a ter. macumbeiro ou do candomblé. .
ceira é boa, na versão dos acusados; enquanto os acusadorespensam todas co-
mo perigosas.
No cotidiano, o campo aqui tratado tambémse pensae organiza a partir
dessasoperações.Todos concordam com o princípio estruturador da crença. A
própria acusadade mistificação e macumbaacaba se sujeitando ao poder de uva e poluída.
um pai-de-santo.Como relata MarchaContins, ao sair da prisão sob fiança, a
médium passa dias no centro do pai-de-santo que foi chamado à delegada. Es-
te resolveu desenvolvê-la, ou seja, ensina-la a controlar o espírito mau, baixo
30 Quando feiticeiras são acusadassob o rótulo
Talvez se possaafirmar que a médium aceita a acusaçãode feitiçaria co-
mo as feiticeiras levadas à fogueira na Europa. Com certeza, só se pode dizer de estelionatárias ou <<ocaso da macumbeira,
que o tal pai-de-santo explica ao delegado que o transe da médium é verdadei-
ro, embora não controlado, porque esta não tem orientação doutrinária. A
médium não tem.terreiro, só recebe a pombagira e dá consulta
Não importa por que se acusa essamédium, mas o que se disse sobre essa
pombagira já que, na verdade, o caso revela uma incitação ao discurso sobre a
possessão,sobre os poderes de produzir malefícios e sobre o significado de pelo crime de estelionato.{zólo
pombagira e de mal

Aparentemente, o que intriga os participantes da trama -- juiz, promotor,


parapsicólogo, pastor, médium, acusados, pai-de-santo, delegado -- não é o
crime em si, mas as condiçõesem que sedeu. O processoformal, como seviu.
s::BKHgÜ H %$Gã : i
devidada vítima.
não barra o discurso da crença; ao contrário, incita todos essesdiscursossobre
umbanda, macumba, candomblé, falso e verdadeiro transe, mistificação e pos-
sibilidade de produzir o mal através de forças sobrenaturais. A crença na feita
çaria, pelo que se viu, coloca em relação os personagens:não só os acusados.
=:.:Hni==ll;=Ü:lÇãHGEMB
mas os acusadores e os especialistas chamados a depor. A pombagira, o terrei-
ro de candomblé, o transe na delegada são relacionadosatraves'da acusação
de feitiçaria. O feitiço coloca em relação, classifica pessoas,pombagiras, ter.
reiros, candomblé, umbanda, transe e personagensdo crime, hierarquizando-
os

A mãe-de-santo é chamada para matar o marido da senhora por meios


mágicos, através de um trabalho. Mana Padilha, a entidade, aparece na dele-
gada e concretiza essaversão do crime (como as plumas do adolescentezune).
A versão que incrimina Mana Padilha domina o processo e faz juiz, promoto-
res, pastores e psiquiatras classificarem e relacionarem as pessoas. O pai-de- que depois sumiam -- no altar -- Fere/ê
santo concretizao feitiço. Vai dominar e desenvolvera pombagira.Aquele
espírito de pouca /uz, sem controle, pode realmente ter permitido que o assas-
sinato ocorresse. Espíritos maléficos podem produzir doença e morte. Todas as
versõessobre o crime acabam circunscritas à noção de produção de malefícios,
ÚqZIEUHg:LBll:;g
nismo, que são crimes contra a Saúde Pública.
:ml.=
pois a mãe-de-santo é condenada. As categoriasmacumba, candomblé e quim-
banda são categorias colocadas mais abaixo na hierarquia; umbanda e espiri- 33? Vara Criminal do Rio de Janeiro, 1985
tismo, mais acima. Para haver classificaçãodessaforma é preciso que todos (237) Processo n' 1.931

8 249
yvonne À4aggíe Medo do

Viveiros de Castro achava que esta era a atitude correra para se coibir fal-
sos espíritas ou falsificadores que lesassem as vítimas. Eduardo Mayr, o juiz de
1985, não conhecia as posições do famoso jurista que atuou no Rio na virada
do século, segundo disse em entrevista. Talvez uma espécie de mensagem psi-
cografada . . . permitiu essa aproximação de jurisprudência.
No dia da condenação, as pessoasque trabalhavam na 33' Vara Criminal
estavam com medo. Temiam a feiticeira, que tinha poderes para robotizar.
Todas diziam: cela é terrível», «olha só a cara deln}, e apontavam as fotogra-
fias no processo. As fotografias mostravam duas senhoras à mesa de um bar.
A primeira, gorda, com jóias nos pulsose no pescoço;a outra, magra, tam-
bém usando jóias. Eram fotografias de senhoras que tinham algum dinheiro,
numa situação de convívio familiar, num bar, com crianças em volta. A gorda
era a macumbeira, 41 anos, branca, aposentada,solteira, residentena Tijuca.
A segunda, branca, 48 anos, funcionária pública federal (HSE), separada con-
sensualmente, residente na Tijuca.(23a)
beira tinha poderespara robotizar a vítima.
A defensora pública que defendeu a acusada, em entrevista, disse acredi-
tar em que a cliente fosse culpada, porque era charlatã. Quando se quis saber
porque todos tinham essacerteza, a jovem advogada declarou {cestána cara.
Essacoisa de macumbatem sempreesselado de charlatanismo(...) Eu mesma
lá fui vítima». E contou um casono qual teria sido vítima de engodo.
Ao se colocar a possibilidade de um caso de amor entre as duas, que ter-
311%$$11#H$$#il
$É!$
mina com uma tentando reaver as jóias e presentes,a advogada arregalou os
olhos e disse <(nãopensei nisso)}. Dias depois, sua assistentedescobreque a lis-
ta entregue pela enfermeira e anexada ao processodescreviajóias que, pela ra-
ridade e preço, não podiam pertencer a uma enfermeira. A defensora resolveu,
então «fazer a defesa da macumbeira por aí)}. A acusação de homossexualismo
levoua defensora
públicaa desfocar
o charlatanismo.
A acusada,
atravésda sas, incluindo filosofias atéias e protestantismo. . .
defensora, apelou, tentando a absolvição ou reversãoda pena para o crime de
curandeirismo, mas foi condenada em 2' instância e está foragida.
O juiz Eduardo Mayr, em evidência na ocasião, tinha conseguido conde-
nar policiais e detetivespor torturar pessoasacusadasde tráfico de drogas,en-
tre elas uma psicóloga. A psicóloga os acusava mostrando sinais evidentes de
tortura. As provas exigiam a condenação, O juiz condenou.
No meio dessadiscussãomais ampla, sobreviolênciapolicial, o juiz con-
cedeu uma entrevista sobre a macumbeira (categoria usada por ele na senten-
ça). EduardoMayr, branco, 45 anos, presbiteriano,da Igreja de Copacabana, 3] Feitiçaria e fronteiras políticas: <<oxangâ de Ala
morador em Botafogo, casado, reafirmou que não tem preconceitos, mas des-
creveu sua teoria sobre a crença nos espíritos. Segundo Mayr, existem três goas >>(239)
c(gruposde filosofias>>que se posicionam quanto à vida e à morte. A primeira
é a materialista, que não crê na vida depois da morte. A segunda, a que acre- Este capítulo termina com a descrição de um caso ocorrido em Alagoas na
dita na vida depois da morte se você foi bom, justo e trabalhador, ganha a primeira década do século. Apesar da distância geográfica e histórica, caso se-
(239) O material destecaso foi recolhido em 1979juntamentecom Patrícia Monte-Mór e Marcha
(238) Como são identificadas no processo Confins. Ver Maggie et a/. (1979).

e 251
250
Medo
yvonne À4aggie

melhantepoderia ter e talvez até tenha ocorrido no Rio de Janeiro.(240)


A com- jornal descreveos objetos usadosnps rituais pelo governador, como um capa'
paração tem o fim de demonstrar que o feitiço é crença que permeia classese cetede búzios. O Jorna/ de Á/aguas a(:usatambém um tal de Tio Saiu(24Z)(es-
serve de operador lógico que intervém na ação. pecle de <lbispo» da religião deles, muito enganado, que faz viagens à Bahia, ao
Rio e à Ãfrica) que recebia os representantesda.oligarquia Malta.
O feitiço do Rio é diferentedo de lá? Como mostrou Danças(1983),a

:;;:::.:n:::B ill
marca que legitima lá, deslegitima no Sudeste. O xangâ de Alagoas parece ter
hoje status semelhanteao rito nagâ na Bahia. O xangâ de Alagoas reivindicou
%3:,
==iG':EUb:1:
u
e conseguiu legitimar-se como verdadeiro depositário da verdadeira tradição
africana. Mas, em 1911, alguns xangâs de Alagoas foram considerados produ-
tores de malefícios e tiveram a mesma sorte dos feiticeiros.
Em finais de 1911, o governador de Alagoas, EuclidesMalta, último re-
presentanteda oligarquia Malta, popularmente conhecido como Legba (exu),
li$HHlãln:i;n
Jorna/ de A/agoas, aputí Maggie ef a/., 1979).
im
perdeu fragorosamente as eleições para o partido Democrata. A oligarquia Euclides Malta frequentava essa casa onde seu xangâ-bomim (o orixá de
Malta, do partido Republicano,governouAlagoascom mão de ferro, e sua cabeçado oligarca) trabalhava dia e noite para livra-lo dos inimigos.
derrota em 1911 parece ter sido bastante festejada. Roger Bastide, referindo-se A descrição do jornal impressiona, o jornalista parece entender bem do
ao caso, diz que houve uma revolta popular.(241) assunto Fala do nome dos santose das seitascom desenvoltura
e usa
Nessa época, o governador foi acusado pelo /arma/ de .A/aguas, ligado aos palavras-chave como trabalho, sessão, despacho, consulta, sem se preocupar
democratas, de ter «acanalhado» o poder e se juntado a alguns bruxos e ne- com sua tradução.
gros dos xangâs. A acusaçãoera a de que EuclidesMalta tinha/usado os terrei- O caso mostra a relação da política com a feitiçaria de uma forma direta
ros para se manter no poder. Em vista disso, os oposicionistas reunidos na Li-
ga dos Republicanos Combatentes, juntamente com populares e a polícia, in-
vadiram terreiros, queimaram objetos em praça pública, espancarammédiuns
e pais e mães-de-santo. Dizem que alguns dos pais-de-santo morreram em ra-
zão dos espancamentos. Em fevereirode 1912, Malta fugiu pelos fundos do
palácio para o estado vizinho. A revolta, segundo o mesmo /arma/ de A/aguas,
recrudesceu quando se soube que, antes de sair às escondidas, o próprio Eucli- ele se degenerasse e se <<erotizasse>>
des Malta ordenou que se reforçasse a repressãoà bruxaria. A feitiçaria é coisa recorrente no imaginário político. Diz-se que os gover-
<Sabia-se que entre o nefasto governo do Sr. EuclidesMalta e as casasde
feitiçarías baratas, profusamente espalhadaspela cidade, existia a mais estreita
afinidade. Sabia-seque a grande força em que o inepto oligarca apoiava o seu
governo era o xangõ...)} dorna.f de 4Jagoas,apud Maggie ef a/.,1979). Mais de
duas mil pessoas,segundo o jornal, invadiram os terreiros acusadose quebra-
ram tudo, levando os pais-de-santo para a delegada.
[)azia-seque o xangâ traba]hava para que os candidatos democratas mor- cos que vão aos terreiros nas vésperasdas eleições para.buscar votos.
ressemnas eleições.Segundoo jorna], um retrato do coronel Clodoaldo da Patrícia Birman (1985), Zélia Seiblitz (1985) e Llzeas Nogueira (1985)
Fonseca, candidato democrata, tinha sido encontrado virado de cabeça para
baixo, debaixo dasvestesde um legba. Além de citar algunspais-de-santo(Tia
Marcelina, João Catarina, ChecoFoguinho) que apoiavam Euclides Malta, o

1240) Diana Brown (1986) diz que no Rio de Janeiro, durante o Estado Novo, houve perseguiçãoa
111$$U$311:HHUê
(242) Uma novela recente de Dias Games, toque Santeiro, refere-sea um coronel Malta (Sinhozi-
terreiros ligados aos comunistas. Não se encontrou material sobre isso, mas a relação entre nho Malta) e a um beato Sala; qualquer semelhançacom fatos reais deve ser mera coinci-
política e perseguição parece também ser recorrente dência

(241) Ver Bastide (1971:232) (243) Quarto onde há pertencesdos orixás.

B 253
yvonne A4aggie Medo do fe

código religioso dos que usam como clientes. {(E acrescente-se aos interesses cedros.Nessa versão de Bastide e Ramos, a acusaçãoao xangâ é falsa, embora
materiais e diremos,a crença superticiosanas práticas fetichistas», Rodrigues os dois autores não neguem que haja quem pratique a magia. Nesse sentido, o
(1945:71) que Basüde e Ramos discutem, no caso, é a quem deve ser imputada a acusa-
No caso descrito, mais uma vez, as acusaçõesproduzem uma definição de ção de feitiçaria.
fronteiras e permitem estabelecerelos que ligam o xangâ à política. O feitiço é
acionadocomo operadorlógico para pâr política e terreiros em relação.As
acusaçõesconstroem fronteiras entre classes,terreiros e políticos hierarquizan-
do essas classes

32 A corda rói do lado mais fraco


crevem todos os terreiros, mas somente aquelesque faziam feitiçaria.
O caso de 1911 também é exemplar porque, além de Euclides Malta, seus De um lado, há o medo do feitiço dos comunistase legbas,e de outro, há
opositores acreditavam, igualmente, no feitiço. Estesforam queimar, bater nos a necessidadede se preservar a crença, acusando-seapenas alguns xangõs ou
feiticeiros, <<aprisionando>}
os objetos da feitiçaria numa <<coleção>>
na Socieda- terreiros de terem sido deturpados. O feitiço também hierarquiza grupos políti-
de Perseverança e Auxílio dos Empregadosdo Comérciode Maceió. SÓnão cos
foi «aprisionada>>(244}a imagem do exu (legba), que ficou <(aespiar pela janela
do Jornal (de Alagoas) os 'malvados' que passavampela rua com ar de escár-
nio para a sua indiferença de bloco modelado em barro e cimento>p.A imagem 33 Casos bons para se pensar
de legba foi exposta ao ridículo na redação do jornal.
O oligarca fugiu de Alagoas, mas seus opositores tomaram como refém o
símbolo da oligarquia, prendendo os orixás na SociedadePerseverançaé
Auxílio .(245)

A corda rói do lado mais fraco. Nessadisputa,a oligarquiaperdemenos


:dql::li glllHã'1=1.3119::ESZ
e também operam em outras instâncias e situações
que os terreiros a ela !igados, mesmo se os pais-de-santoimplicados não foram
processados (o Jorna/ de Á/agoas não menciona processos)
Essa história é um caso limite por conter quase todos os ingredientes do
sistema em questão. A história da relação entre as religiões mediúnicas e a
política é pontilhada de um ou de algunsdos itens ocorridos na ocasião. sassinose vítimas, em relação de desigualdade.
Arthur Ramos, comentando o caso, é da mesma opinião de Roger Basti-
de: o caso de Alagoas é típico.
sua utilização, interessadapara fins inconfessáveis(sexual,eco-
nómico, político...) e a repressãodesabusadaculminando nas bati-
das policiais... Esta mudança de significação-- de fetichismo em
feitiçaria é, em última análise,obra dos 'brancos'(Ramos,1954:24)
A ideia de manipulação também está presentenesse raciocínio porque os
negros são pessoaspuras e não usam a feitiçaria. O feitiço é coisa deturpada,
de branco. C)s negros do xangâ, principalmente, que na versão dos intelectuais fruto de relações sociais desorganizadas e poluídas
citados são autênticos, fazem parte de uma verdadeira religião e não são feití- Nos casos aqui descritos, essaspremissas culturais comuns estão também
presentes, embora se possa verificar divergências entre os segmentos relaciona-
(244) Segundo versão do Jorna/ de .4/agoas, de 10 de fevereiro de 1912
(245) Hoje esses objetos estão no IHGA. (246) Dantas (1982b) e Brown (1985)

e 255
254 e
yvonne.AÍaggfe

dos -- sendo que a corda acaba roendo do lado mais fraco. Aqui, nessesca-
sos, pode-se ver em atuação essasduas vertentes da noção de magia maléfica.
Como nos processos, tanto no caso de Seu Sete, quanto nos da pombagi-
ra, da macumbeira e do xangâ, as acusaçõese a repressãoou combate aos fei-
ticeiros fundam o próprio campo esquadrinhando grupos, separando falsos de
verdadeiros, charlatães de médiuns autênticos, feiticeiros de praticantes da ma-
gia benéfica. Em outras palavras, a repressãonão barra o desenvolvimento das
crenças;ao contrário, é instrumento de saber que implica em controle, discipli-
na e poder.
Finalmente, os casos aqui descritos revelam que o feitiço é um operador
lógico atuanteno mundo e que pareceinstaurar-sena ordem da metonímia,
hierarquizando e colocando grupos e idéias em relação uns com os outros atra-
vés de aproximações e contigüidades.
Assim, do momento em que em qualquer um dos casosse liga o disjuntor
das acusaçõesde mau uso dos preceitos, opera-sepor aproximação e contingüi-
dade uma classificação e hierarquização das políticas, das filosofias, das juris-
prudências, das estéticas, das mediunidades, dos grupos religiosos e assim su-
cessivamente.
No próximo capítulo seanalisa o significado do feitiço
Capítulo Vll
Os objetosda feitiçaria

25Ó e
Se durante tantos anos, grandes espíritos se
deixaram fascinar por um problema que hoje nos
parece irreal, sem dúvida que apercebiam confusa-
mente. sob uma falsa aparência, problemas arbi-
trariamente agrupados e mal analisados, mas con-
tudo dignos de interesse. Como atingi-los, para
propor uma interpretação diferente, sem recair
nessemesmoitinerário que, emboranão nos con-
duza a lado algum, poderá incitar-nos a procurar
um outro caminho, e talvez ajudar-nos a traça-lo?
Lévi-Strauss (1986:27)

Evans-Pritchardconta, na sua monografia sobre os azande, que apenas


uma vez viu a bruxaria em seu caminho «Eu ficara escrevendoaté tarde em
minha cabana. Por volta da meia-noite, antes de me recolher, tomei de uma
lança e saí para meu costumeiro passeio noturno. Andava pelo jardim atrás de
minha cabana, entre bananeiras,quando avistei uma luz brilhante passando
pelos fundos da cabanade meus criados, em direção à residênciade um ho-
mem chamado Tupoi)}. Achou que aquilo merecia investigação. Seguiu a luz
até quando a relva obscureceu sua visão. Diz ele que correu para ver onde a
luz estava indo, mas não conseguiu mais vê-la. Evans-Pritchard sabia que ape-
nas um de seus criados tinha uma lâmpada capaz de emitir uma luz tão forte.
Perguntou, no dia seguinte, se ele tinha saído àquela hora. O criado respondeu
que não. Seus informantes, porém, disseram a Evans-Pritchard que o que ele
tinha visto era bruxaria. Continua Evans-Pritchard:{.poucodepois,nessames-
ma manhã, um velho parente de Tupoi, agregadoà sua residência,morria. Es-
se acontecimento explicou inteiramente a luz que eu vira. Nunca chegueia des-
cobrir sua origem real; possivelmenteum punhadode relva acesopor alguém
que saía para defecar. Mas a coincidência da direção em que a luz se movia e
a morte subsequente estava bem de acordo com as idéias zande» (Evans-
Pritchard, 1978:49).
Com essaaproximação afetiva, Evans-Pritchard conseguiu demonstrar que
para os azande,a bruxaria é um sistemade explicaçãodo infortúnio. Indepen-
dentementedas razõesnaturais que se pode levantar para esclarecero fenâme-
e 259
Med
rvonne ÀÍaggie

no da luz, a coincidênciaentre a luz e a casada pessoaque morreu só pode


ser explicadapela bruxaria, na concepçãodos azande.
Eu também vi objetos da feitiçaria. Feiticeiros, segundouma das vertentes
da noção de magia descrita neste trabalho, fazem magia negra, trabalhos para
o mal. Segundo essa vertente as pessoas perdem o emprego ou são abandona-
das pelos amantes por intervenção de outra pessoa, que fez um feitiço, um tra-
balho para fechar os caminhos. Essacrençaé tão generalizadaem nossasocie-
dade que durante noventa e seis anos de República, foram aceitas processos
criminais cuja acusaçãobásica era a de feitiçaria e nos quais se distinguiu ver-
dadeiros de falsos médiuns e feiticeiros
Eu vi os objetos da feitiçaria. Segundo essa vertente da noção de magia, a
pessoadeve se proteger dos efeitos místicos fazendo trabalhos de defesa, para
anular os ataques dos inimigos. Deve-seusar médiuns para realizar os ataques ao diretor do SPHAN, livro de tombo n' l).
místicos e para os rituais de defesa.A mediunidadeaparececomo instituição
no nosso campo religioso desde o Brasil Colónia, nos calundus (Souza, 1986).
Mas é no período de vigência do Código Republicano, ou seja, na República,
que ela se torna complexa, com diferenças entre os diversos segmentos. Há vá-
rios tipos de médiuns -- ouvinte, vidente, curador -- e há, é claro, os verda-
deiros e falsos, além daqueles que usam mal ou abusivamente os preceitos --
os feiticeiros.
Os processoscriminais analisadosna primeira parte deste trabalho mos-
tram como essesmédiuns foram sendo definidos e classificados e como foi sen- processo, como é o caso dessa coleção
do construída a idéia de verdadeiros e falsos. Foi visto ainda na segunda parte
do trabalho como essa classificação de verdadeiros e falsos, feiticeiros e cura-
dores, transborda os processose se verifica em outros domínios e situações,de
1890 até hoje.
Eu vi os objetos da feitiçaria usadosem guerras de orixá pelos médiuns
que acionam seus guias e fazem trabalhos para acabar com a demanda.(247)Eu
vi os objetos da feitiçaria recolhidos pela polícia no tempo da repressãoa cen-
tros, curandeiros, médiuns e terreiros do Rio de gane.iro.Eram apetrechos
apreendidos que, examinados pelos peritos, recebiam a classificaçãode objetos
de magia negra, arsenal dos bruxos, objetos próprios para a exploração do fa!-
se espiritismo, objetosde bruxaria, coisasnecessárias à pise-en-scêneda ma-
cumba, objetos de macumba e candomblé, objetos próprios para fazer o mal,
ebó (embó). Os laudos periciais referentesaos objetos apreendidos são analisa- mo Museu Científico.
dos no Capítulo 111deste trabalho.
Eu vi essesobjetos no Museuda PolíciaCivil do Rio de Janeiro.(248) De-
via, como o mestre inglês, investigar o museu; correr atrás de documentos que
(247)Ver Maggie (1975),para a definiçãode guerra de orixá, demandae guia.
(248)Uma primeira descriçãodessematerial foi feita com MarchaConfins e Patrícia Monte-Mór,
resultado de um relatório apresentado à Funarte. Ver Maggie et a/. (1979). Em 1987, Kátia
i
na feitiçaria e diminuem, é claro, sua força, disciplinando-a.
n
A repressãoà magia instituiu o museu e como foi visto até aqui constituiu
Sento Sé Mello recolheu novas informações e documentação. A documentação do SPHAN a crença,que passoua ser disciplinadae organizadaa partir de critériosobti-
foi recolhida com o auxílio de Mana Luiza Bretãs,funcionária do órgão, que gentilmente dos nesseembate entre acusadose acusadores.
coletou o material, não branqueado a pesquisadores.

2ÓO e
yvonne A4aggfe Medo

O atual curador do museu disse que os objetos foram apreendidos no mágica que o determina. Imagens de santos católicos, roupas, cruzes etc., não
tempo da repressão e a coleção foi organizada por ele, procurando definir as são em si objetos de magia negra.
peças a partir de seu significado ritual. Para fazer isso, muitas vezes lançou Houve um momentoem que algum selar do movimento negro tentou te-
mão de explicaçõesdadas pelos antropólogos Edson Carneiro, Reger Bastide e ar como bandeira de luta a devalução das peças a seuslegítimos,donos, os
Arthur Ramos.Parecehaver unanimidadeem torno do significadodos obje- pais.de-santo. É impossível tal operação. Os objetos, segundo os informantes,
tos, embora se discorde quanto à origem geográfica e cultural das peças. Algu- não pertenciam àqueles' proprietários, estavam ,carregados de. feitiço, pesados.
mas delas, segundo certos autores, são peças africanas autênticas (Santos, Estáclaro: eram objetosque tinham sida usadospara o feitiço, e como nin-
1978)
8
guém se autodefine como feiticeiro, ninguém quer ser visto como dono dos ob-
Os objetos da feitiçaria hoje expostos no Museu da Polícia encontram-se fetos
ao lado de objetos de falsificadores,de defraudação,de tóxico, de jogo do bi- Os objetosque vi revelamo significadodo feitiço como uma fotografia
cho, de «fazedorasde anjos», de fotografias de crimesfamososno Rio dos 3 x 4. As pessoas que vão ao museu <lfazem sua fezióha>». Para elas, aqueles
anos 50, como os de Luz del Fuego e Dana de Tefé. Ao lado. também de ban- objetos sãocarregadosde força. Em primeiro lugar porque são objetosda feiti-
deiras integralistas e pertences de comunistas e integralistas célebres, como a
cadeira que pertenceu a Plinto Salgado
çaria; em segundo porque alguihas:vezes,.se errou o alvo e perseguiuverda-
deiros pais.de-santo' Nessesegundo caso, os objetos ganham força dupla,
Os objetos da feitiçaria são associados à falsificação, à sujeira e ao erotis- tornando-se ainda mais perigoso.{zou;
mo. Por isso se encontram ao lado de objetasde pessoascom posiçõespolíti- Os objetos da feitiçaria estão no museu porque são troféus de guerra can-
cas inimigas e derrotadas. Os objetos da feitiçaria estão entre a sujeira, os ini- os feiticeiros que infestavam o Rio, crença da qual participam.policiais,
migos, o erotismo e o crime. Parece que há concordância nesseponto também.
Há algumas pessoasque podem salvaguardaro comunismo dessaacusação,
porque como ficou demonstrado nos capítulos precedentes,a feitiçaria é crime
no Brasil e o crime de prática de malefíciosé um crime que aproxima o crimi-
noso de outros crimes. Além disso, na crença na feitiçaria é necessárioum re- sao duplamente perigosos porque além de contar a história de como n:Tceram
lativo ceticismo, porque há falsos feiticeiros e médiuns, charlatães que devem as tel túnicas no Rio, contam como elas venceram os perseguidores.
também ser diferenciados dos verdadeiros.
A relação dos objetos que compunham o Museu de Magia Negra enviada
A versão sociologizada da magia e a crença na produção do mal através
de forças sobrenaturais se entrelaçam na própria construção do Museu, porque
ele é um Museu Científico, que vê o mal como fruto da anomia. e é concebido
a partir da coleção de magia negra, ou seja, uma coleção composta por objé=
tos da feitiçaria.
cessoucriminais analisados. Os malas estavam associadosà feitiçaria como
Não há museu brasileiro que tenha peçasdo tipo das encontradas no Mu- muito bem descreveuJoãodo Rio (1906).No Rio de Janeiro,comodiz Dantes
seu da..Polícia; embora haja outras coleçõesde objetos da feitiçaria no
rasa

A coleção do Museu da Polícia está disposta como num terreiro, as ima-


gensdos exus separadasdas dos outros orixás, os atabaquesseparadosdas de
imagens e os trabalhos para fechar caminhos em estante separada dos traba- [)iscutiu-se neste trabalho a participação na crença dos personagens envol-
lhos para abrir caminhos. Afinal, se os objetos estivessemdispostos de outra vidos nos processos.criminais. Viu-se que desde a virada do século, juízes clas-
maneira, perderiam seu sentido de objetos da feitiçaria, pois é a ordenação sificavam de falso espiritismo aquele que empregava mal os preceitos. Isso sig

(249) Há pelo menos mais quatro dessascoleções:no IHG de Alagoas, no IHG da Bacia e no Mu-
seu Estácio de Lima, em Salvador e no Museu do Estado de Pernambuco. Todas elas con-
taml à sua maneira, a crença na feitiçaria na República.Sobreas coleções,ver Lody (1983,
1985ae 1985b)e Duarte (1974).Abelardo Duarte é o único pesquisadordessascoleçõesque
faz referênciaaos terreirose pais-de-santoqueforam reprimidose presos.
g$Wnnwngg$HI W
mo mostra a fotografia do catálogo da coleção (Lody, 1985)

2Ó2 e e 2Ó3
yvonne Maggie Medo d

nifica que os juízes deveriam ter idéia de que preceitos eram os verdadeiros. A mostra. com chifres na cabeçae em vez de pés, patas de bode. Uma das em-
mudança do Código em 1940 aponta uma definição mais:clara dos feiticeiros, pregadasdizia que não era despachopara valer. A outra tinha muita fé em
como se viu no Capítulo ll deste trabalho. Candomblés e macumbas eram os Mana Padilha, que já a tinha atendido várias vezes. Segundo essasinforman-
que aplicavam mal os preceitos, por serem seusadeptos ignorantes e incultos. tes, o despachoé feito com a conivência do diretor do museu.
Mas durante os anos 20 e 30, os peritos iniciaram essadefinição de candomblé Nana Rodrigues, conforme relata em O anfmfsmo fefícbísfa (Rodrigues,
e macumba como coisa perigosa. Aliás, essascategorias -T macumba e can- 1935:155),doou um conjunto de peçaspara essemuseu.
domblé-- aparecemna fala dos acusadores, :não na dos acusados,como se Essedespacho no Museu Estácio de Lama materializa também a Crençade
viu na primeiraparte do trabalho.
que é necessáriose proteger dos objetos que carregam o feitiço, que são o pró-
Os objetosda feitiçaria estãoali, no espaçoonde a polícia agua,junto à prio feitiço. A crença materializada é a de que os objetos que servem para,fa-
falsificação,,ao crime, aos tóxicos, ao sexo e junto às forças políticas persegui- zer feitiçaria acabam carregados do feitiço e ninguém deve .mesmo toca,los,
das.Junto ao jogo do bicho, essacontravenção..
Estãocolocados,aolado de para nao ficar enfeitiçado. Dizem que muitas vezeso feitiço vira contra o feiti-
objetos feitos por criminosos.(ZSI) Há também ceticismo em relação aos pode- ceiro (a lei do retorno) e o pedido feito na hora de preparar o feitiço atinge o
res dos feiticeiros pois a possibilidade da fraude e a idéia do charlatanismo são próprio fazedor.
tão fortes quanto a própria crençano feitiço. Evans-Pritchard
(1978)disseque Peter Fry (1976) conta um caso ocorrido durante .o período em que viveu
o ceticismo faz parte da crença na feitiçaria. A idéia de fraude e de falsificação na Africa. com um médium conhecido por descobrir feiticeiros em Zimbábue,
contida no texto e na doutrina da lei aponta também para a crença.
sob a Lei de Supressão da Feitiçaria.(252) Chegou um policial branco, desper-
Os objetos de magia negra ent:ontrados no museu constituem a prova ma- tando medo nas pessoas.Além de saberemque é proibido acusar feiticeiros, os
terial de que o feitiço existe. Persegue-se os feiticeiros, os fazedoresde ma- shona têm medo da polícia. O médium não se assustou.Vestiu suasroupas ne'
lefícios, os que usam mal os preceit.osdo espiritismo e assim se salvaguarda a aras, entrou em transe e se dirigiu ao policial. Diz Peter Fry que
crença na feitiçaria, na mediunidade, nos espíritos e no sobrenatural. Mas o médium, em transe, mostrou ao policial a pilha de objetosde fei-
houve perseguidores desonestos,que perseguiram pais:de-santo:verdadeiros e tiçaria por ele coletada, gabando-sede que, ao remover os meios de
sofreram as consequênciasde seusaros. .O Museu da Polícia conta essahistó- fazer mal aos outros, estava ajudando a polícia no seu esforço para
ria, e não é preciso chegar a noit©, como entre os azande, para se ver essesob- acabar com o crime. O policial ficou impressionado. Disse que sem-
jetos. Em plena luz do dia e quantas vezes se quiser, se pode aprecia-los e dis-
pre pensou que feitiçaria e bruxaria eram puros conceitos imagina
cutir por horas intermináveis queih são os que usam mal os preceitos do espi- rios, mas agora era obrigado a pensar de outro modo. E foi embora
ritismo, o que é o feitiço e a quem estariam sendo destinados àquelesataques. sem fazer mais perguntas. O incidente foi seguido de gargalhada ge-
Como na crença..os objetos carregamo feitiço, ou seja, o próprio objeto ral(Fry, 1976:131)
tem o poder de produzir o mal pretendido pelo feiticeiro. E bom não tocar ne- Lá e cá os objetos da feitiçaria servem para provar que o feitiço existe e
les, pois podem provocar danos incalculáveis. Conta-se que os objetos do IHG os feiticeiros fazem mal a outras pessoase devem ser perseguidos.Os ob-
da Bahia só muito recentementeforam organizados,porque antes,todos os
jetos da feitiçaria provam que a feitiçaria não é imaginária e.sim uma realida-
que tentaram foram vítimas de infortúnio. Diz-se até que alguns antropólogos de. No entanto, em Zimbábue, se persegue os acusadores. Aqui se exige que
se recusaram a empreender a tarefa.
os feiticeiros sejam acusados. A Leí de Supressãoda Feitiçaria classifica de.cri-
No Museu da Polícia, entre crânios humanos, objetos de <lfazedorasde minosa a acusação aos feiticeiros. Isso significa que os ingleses não acredita-
anjos>>e uma imagem de exu tiriri feita com terra de todos os cemitérios, está vam nessafeitiçaria, apesardos esforçose da habilidadedo médiumshonade
oxalá, num grande retrato, em cima das estantes,protegendo os visitantes. provar com objetos que a feitiçaria existia e era real. Aqui o sistemade com
Em Salvador, no Museu Estácio de Lama, as faxineiras da casa montam, bate aos feiticeiros instituído na República fez de dominados e dominadores
logo na entrada do museu, um grande despacho com farinha e azeite-de-den- cúmplices no combate e na crença na feitiçaria.
dê, uma garrafa de cachaça. velas e imagens de variados exus e pombagiras. Peter Fry (1976) mostrou que as instituições e a crença.na mediunidade
Duas dessasimagens, de madeira talhada, são, segundoas faxinei.ras,de Mana em Zimbábue estavam na base das idéias do nacionalismo africano. A.Lei de
Partilha. Parecem imagens antigas porque representam a figura de um demónio Supressãoà Feitiçaria não conseguiu destruir as instituições do povo shona e
feminino. Uma delas representauma mulher com um filho no colo e os seios à
(251) O museu tem uma grande colação de estuques-- facasfeitas pelos presidiários (252} A Lei de Supressãoà Feitiçaria foi analisada no Capítulo l

2Ó4 e e 2Ó5
yvonne Maggíe h4edo do feitiço: relações erltre magia e poder no Brasil

não disciplinou os médiuns e as acusações.Vendo de um outro prisma, pode- É a opinião de João Reis (1986) quando descrevee analisa a invasão do
se pensar que os médiuns de lá não usaram seuspoderes de convencimento tão candomblé de Accú. [)esde 1820, pe]o menos, os terreiros da Bahia eram espa-
bem quanto os de cá. Talvez porque, enquanto instituição já pronta, a mediu- ços de reunião, mas também de negociação com senhores e funcionários do Es-
a
nídade foi acionada para restaurar a fé na tradição e nos costumesafricanos.
Os médiuns assumiram seu papel de símbolos da africanidade contra a euro- Laura Mello e Souza (1986) tem conclusõessemelhantes.Se, no Brasil Co-
peidade. Eles se opunham aos missionários do mesmo modo que os heróis dos lónia, se reprimia calundus como coisa do diabo, os calundeiros acabaram
shona eram opostos a JesusCristo, como esclarece Peter Fry (1976). Nesse sen- conseguindo impor suas crenças. Um personagem como Mana Padilha, que
tido, a crença e a instituição dos chiota se opunham à dos dominadores de for- aparece nas acusações desde o século XVll, acaba povoando os terreiros de
ma frontal e direta. umbanda no Brasil contemporâneo, fazendo feitiço e matando pessoas, sem ser
necessariamenteidentificada com o diabo.
No Brasil, pareceque o Código Penalrepublicano e a relação dos vários
segmentos com a crença apontam outra direção,. As instituições desse .campo O Museu da Polícia com sua coleção de objetos de magia negra, aponta
não se transformaram em pólo de consensocontra os dominadores.Ao con- mais uma vez a necessidadeda mediaçãoda polícia na construçãodo campo
trário, nessesquase cem anos de aplicação do Código Penal e de perseguição religioso.Como faziam os peritosnas décadasde 20, 30 e 40, hoje o museu
aos feiticeiros, disciplinou-se o campo, criando-se hierarquias entre os segmen- narra a crença. No Brasil, é um dos museusmais completos sobre o tema.
tos e incorporando-se as práticas consideradasmalévolas à sociedadee à cren- Mas se a crença na magia é tão universal, por que durante tantos séculos
ça de todos. Os diretores do SPHAN incorporaram à vida social práticas má- se negou essa universalidade no Brasil? Ao se descrever a relação dos juízes,
gicas consideradascriminosas e que passaram,após o tombamento, a existir médicos, promotores, delegados, políticos, movimentos artísticos, governado-
jurídica, iconográfica e legalmente. O Museu da Polícia existe hoje ao mesmo res, psiquiatras etc., com a crença, ficou claro que essarelação era e continua
tempo em que revela a crença contemporâneae o feitiço como um operador sendo encoberta por meio de inúmeras formulações que negam a proximidade
lógico em vigor no Rio de Janeiro da atualidade. dessessegmentosdominantes com os segmentosdominados. A literatura socio-
lógica, com algumas exceções, sempre negou essa proximidade em seu discur-
Os desdobramentos dessa conclusão poderiam ser pessimistas.Aqui, as
so. Nina Rodrigues (1935) e João do Rio (1906), no passado, e Danças(1983),
instituições e a crença mediúnicas não estão na base do sentimento de oposi- Fry e Volt (1982), Malta (1981) e Velho (s/d), no presente, são alguns exem-
ção aos dominadores? Os médiuns são representadoscomo aliados do povo?
plos das exceções,que sugeremuma crença mais universal.
Aqui, eles também freqüentam o palácio. Mas pensando nos casos descritos
neste trabalho, vê-se que, a julgar pelo consenso que conseguiram impor em A resposta à pergunta acima parece caminhar no sentido que Roberto
termos de sua crença, foi grande a capacidade de convencimento dos nossos Schwartz (1978) deu às idéias fora do lugar, ou à ambiguidade na sociedade
médiuns e pais-de-santo. Talvez agora se possa citar novamente Nana Rodri- brasileira do século XIX. Arrisca-se aqui uma comparação entre a negaçãoaci
gues, quando diz que os negros africanizavam o Brasil (Rodrigues, 1935). ma apontada e as paisagenseuropéiasdesenhadascomo janelas nas casasbra-
sileiras do século XIX, tentando apagar a verdadeira paisagem dos trópicos.
Em Zimbábue, os inglesesnão conseguiramse convencerda verdade da-
quela feitiçaria. A Lei de Supressãoà Feitiçaria continuou existindo (talvez te- A ambiguidade das elites brasileiras em relação a essa crença está sinteti-
nha sido abolida depois da Independência),apesardo sucessode alguns mé- zada na descrição hoje clássica de João do Rio.
diuns em co'vencer representantesda burocracia inglesa, como o policial cita- Vivi três mesesno meio dos feiticeiros,cuja vida se 6nge
do desconhecer,mas que se conhece na alucinação de uma dor ou da
A comparação é rica. De um lado, em Zimbábue, a instituição da mediu- ambição e julgo que seria mais interessantecomo patologia social
nidade passou a ser o espaço da rebelião e da revolta, ao passo que aqui a ins- estudar.de preferência,aos mercadoresde paspalhice.os.que lá
tituição da mediunidade passou a ser o símbolo da negociação e do consenso. vão em busca de consolo... (...) Vivemos na dependênciado feiti-
Nessesentido, pode ser interpretada como um outro estilo de resistênciaà do- ço... somos nós que Ihe asseguramosa existência com o carinho de
minação um negociantepor uma amante atroz... (Rio, 1906:35).
Se, no Museu da Polícia, os objetos apreendidos, que lá chegaramatravés A análise feita aqui demonstrou que essa negação faz parte do modelo
de acusações de feitiçaria, acabam sendo tombados pelo SPHAN, podemos ter consciente, que é fundamental conhecer para se poder desvendar o inconscien-
certeza de que os poderes públicos se convenceram da força malévola desses te, que organiza a lógica do sistema.
objetos ou das pessoasque os usaram.
e 2Ó7
Conclusão
O l:eitiço hojeesP

Ficou demonstrado, pelo que foi dito até aqui, que o que era definido co-
mo repressãoaos cultos no Rio de Janeiro não deve ser substantivado. O mo-
delo explicativo foi relativizado, e seguindo as pistas dadas por Danças(1983),
quando analisou o caso de Laranjeiras, foram analisadas as acusações nos pro-
cessos çriminais e nos casos descritos na segunda parte, como representações
construídas de forma relacional.
Esta análisefeita relativiza o feitiço como objeto substantivo. Como o to-
temismo, ele pareceser, mais do que um fato exterior, um mecanismodo pen-
samento, que possibilita a classificação. Esse mecanismo, como o totemis-
(254)opera e relaciona categorias do pensamento. Mas, diferentemente do
totemísmo, aguade forma a hierarquizar as coisas que relaciona. O totemismo
como operador lógico cria classes igualitárias; o feitiço constrói as classes,
colocando-as num sistema desigual, hierárquico.
As próprias oposiçõesfeitas por Lévi-Straussestão aqui incorporadas.
Inteiramente distinto do sistema, das Dominações totêmicas, que é
regido por um princípio de equivalência,o dos 'espíritos', ou mani-
do, apresenta-se
sob forma de Panteãohierarquizado.(...) Pelo
contrário o sistema dos 'espíritos' estava ordenado ostensivamente
em dois eixos; de um lado o dos grandes e dos pequenosespíritos e
dos espíritos bondosos e dos malévolos de outro... (Lévi-Strauss,
1986, P. 35).
Lévi-Strauss faz a distinção clássica entre sociedadestotêmicas e socieda-
des sacrificiais. Sociedadesmetafóricas, no primeiro caso, e metonímicas, no
segundo.

(253) As idéias conclusivas incluem sugestõesde Marco Antonio Teixeira. Ao mesmo tempo em
que agradeçosua generosacontribuição, assumo inteira responsabilidade pelo escrito.
(254) Sobre o totemismo, ver Lévi-Strauss (1986).

e 271
yvonne À4aggíe Medo do feita

Nesse sentido, o feitiço em sua imanência é um conceito. O feitiço é um feitiço é objetivo também porque precisa da materialidade para ser pensado,
elo. Assim, a feitiçaria é usadapara classificare exprime-se,ao contrário do Pensarloucura (o mal) como fruto de anemia social ou de ataquesmísticosé
totemismo, por meio de relações metonímicas. O totemismo é uma teoria par- pensar o mal objetivo nas relações sociais concretas, como foi analisado nos
ticular de classificação, segundo Lévi-Strauss. É uma classificação que une me- Capítulos IV e V.
taforicamente, fazendo a relação entre homens e animais. Então, a feitiçaria é Quando se diz que o feitiço está na ordem da metonímia, não se quer ne-
usada também como elemento classificador, é o denominador da classificação. gar as interpretações que vêem a umbanda, por exemploscomo metáfora (Fry,
Por um processometonímico, une a parte ao todo. O feitiço seria, assim, o 1983).nem tampouco negar que, em termos rituais, pode-sepensarem meca-
outro lado da moeda do totemismo. Por metonímia, distingue os grupos so- nismos de inversão social (Maggie, 1975). Está-seanalisando o elo que põe es-
ciais, hierarquizando-os;e também, ao contrário do totemismo, coloca-sena sesvários rituais na relação uns com os outros e permite a universalizaçãoda
esferada ação, porque é um processode diferenciaçãoque põe coisase pes- crença. O feitiço é o elo que permite construir a história dessesvários segmen
soasem relação. Talvez por isso, também, como se disse no Capítulo 1, sejam tos, cujos rituais podemser metáforasgramaticais
da políticae da
tão poucas as condenaçõesentre os acusadosde feitiçaria. Condenar seria in- sociedade .( 255)
terromper o processo, a cadeia que permite colocar as coisas na relação umas
com as outras. Aqui se pensao elo que, relacionandoa parte ao todo, cria um campo
que foi chamado de campo da feitiçaria, onde os grupos soc.taissão postos em
Dentro da esferada ação, o feitiço sai do plano das representações,
neces- relação e hierarquizados. Nessesentido, aqui se ressalta a situação que carece
sitando da realidade interpretada. Assim, é metonímico em vários sentidos; os sempre de relação com o exterior para ser construída. Há sempre necessidade
peritos narram a crença através da análise dos objetos apreendidos. Interpre- de se colocar segmentose crenças em relação com algo exterior a si próprios
tam: a realidade dando-lhe sentido, como se disse no Capítulo 111.As catego- Assim, médicos pensam a produção de malefícios por oposição à visão magica
rias despacho, sessão, trabalho, consulta estão ligadas por contiguidade, por ou a crençanos poderesocultosde produzir o mal. É nesseembatecom a ex-
metonímia, com as categorias burocráticas. As terapias são classificadase hie- terioridade que se constrói a crença sociologizada da produção de malefícios.
rarquizadas por metonímia, como se viu no caso do Centro Redentor. As posi- Assim se dá com alto e baixo espiritismo,macumbae umbanda,pombagirae
çõesestéticas e filosofias, os médiuns e vertentes religiosas são postos em rela- espírito do bem etc.
ção e hierarquizados, como ficou esclarecido no caso de Seu Sete. Há sempre.a A literatura sociológicaque descrevea história dos terreiros tradicionais
necessidadede coisificar o feitiço, daí os objetos seremfundamentais -- a plu- da Bahía estabelecesua origem nos conflitos de sucessão,nos quais se usa.fei-
ma do menino zune, a cachaça, o capacete de penas, os apetrechos que se con- tiçaria. Segundodizem, o próprio sucessode Mãe Aninha se deveu às feitiça-
cretizam nas coleções dos museus e que, nas décadasde 20 e 40, eram analisa- rias de Martiniano Bonfim (Landes, 1967).
das pelos peritos como vimos no Capítulo lll. Em Guerra de oríxá (Maggie, 1975), se desvenda a história de um terreiro,
O feitiço relaciona a parte -- macumba -- com o todo -- espiritismo ou a partir das acusaçõesentre facções. O feitiço é, nessesentido, operador lógico
crenças mediúnicas. Relaciona cachaça com charuto e baixo espiritismo na es- que põe as coisas na relação fazendo história.
fera da ação,.como foi visto nos laudos periciais. Mas, como um tipo de ope- Aprofundando a idéia, pode-sepensar que o Brasil é representado, como
rador lógico, põe os grupos sociaisna relação,liga-oscomo se.fosseum dis- uma sociedadehierárquica, relacional,(ZSÓ) porque aqui se acredita no feitiço,
juntor. Por isso é preciso haver uma acusaçãoconcreta = Centro Redentor, esseoperador lógico da esferada ação. Haveria sociedadestotêmicas, que clas-
Seu Sete, pombagira, macumbeira e xangâs de Euclides Malta, vizinhos e sificam grupos sociaisigualitários. Como em Roberto DaMatta. a morte ou os
clientesque denunciam feiticeiros,.como foi visto no Capítulo 11. E por isso, mortos nesta sociedade, o feitiço é aqui considerado um bom contraponto pa-
como se disse no Capítulo 1, que se optou por aceitar as acusações a feiticeiros
ra pensar a popularidade (no sentido de universalidade) da maneira de pensar
e curandeiros. Por ser da esferada ação e atuar como disjuntor, em momentos relacionando.
particulares, o feitiço é acionado .com mais intensidade. Talvez por isso se te-
nha falado em épocasde maior ou menor repressão.Por isso, dependendoda (255) Não se estáde acordo, aqui. com as críticas de Marcio Goldman (1987)a esta posição.e in-
rituais.
lugar em que se está no momento da análise pode-setomar a hierarquia do in- terpretação das religiões abro-brasileiras como metáforas gramaticais ou inversões
formante principal como hierarquia substantivae verdadeira. Em parte, é o Aqui se vê feitiço como operador lógico que une por metonímia, mas os rituais continuam
sendoclassificados cama expressãoda visão do grupo sobre a vida social mais ampla e, nes-
que ocorre com a análise de Diana Brown (1986) sobre a umbanda no Rio. se sentido, eles traduzem metáforas, inversões etc
O feitiço necessitaser concretizado.Assim, a feitiçaria é objetiva, tanto (256) Sobre a hierarquia na nossa sociedade e a idéia de sociedadesrelacionais, ver Roberto Da-
na vertente mágica quanto na vertente sociologizada. Em muitos sentidos, o Matta (1987).

272
yvonne A4aggfe

Estas conclusões levam a repensar a concepção de magia na sociedade


brasileira contemporânea e o modo como ela se relaciona com as concepções
de religião. A teoria da feitiçaria implica nessaideia de um sistemade pensar,
de uma forma de conhecimentodiferenteda ciênciae da religião, sobretudo
porque pode correr paralelamente a elas. O feitiço não seria sobrevivência da
arcaísmo na sociedade brasileira. Está no centro mesmo da sua maneira de
pensar contemporânea.

Anexos

274
Anexo l
Relaçãodos processose sentençaspor ates de feitiçaria e prática ilegal da medicina
Cor l q*p"';
Nome(s)do(s) acusado(s) Nacionalidade Acusador(es) Expressõesclassificatórias usadasna
N?processo
Nome do Processo Profissão Sentença/Ano
.no(s)processo(s) flagrante/artigo(s) do Código Penal denúncia/artigo(s) do Código Penal
Referênci!
Brasileiro 1? Denúnciaapurada(Diretor-Geralda Sai 1? Medicina ilegal/157 e 158
N' 571, Cx.
Joaquim Josê Ferraz Pardo. l Carpinteiro cPratica o espiritismo inculcando cu- 1? Absolvido/1898
Ferrazdo Andaraí>> dePública). ra.)>/157. 2.W2
(2 processos) Praticao espiritismo/ 157 S/n?,Cx.
o Juízo dos Feitos da Saúde Pública: Denúncia apurada 2' «Exercer ilegalmente a medicina e praticar
o espiritismo»/156e 157. 2' Absolvido/1904 1.8]7, AN
Juvêncio Seraíim do Nascimel;iil Preto
Brasileiro Não houve flagrante ICurandeiro: Absolvido/1898 N?596,Cx
=Curandeirono Morro de Santo Antõnioi acusado tentava matar a mulher de um tal 1.997,AN
Manoel (que Ihe confidenciava isso). Em seu
depoimento ManDeInegao fato.
Branco. l Cailãiiiéiro Condenado,mas a pe- Nf 691, Cx
Com o diabo no corpo em Madureira» oi Antonio Alces Lopes Portuguê: Denunciado por um amigo da Senhorinha cPrâtica do espiritismo inculcando curas»/
Ozório . 156.Extorsão/362. 1.859,AN
Feiticeiraleva surra com vara-de-guiné>>. 157.{(Extorsão»/362,
g l?. na prescreve/1899
Preto Cozinheiro Brasileiro Segundo a dona do hotel (acusada), a denün- Não houve flagrante. praticava atos de feitiçaria explorando a Absolvidos/1899 N' 756, Cx
Pipocas e azeite de dendê fazem fe içada Luiza Leva Branca Marroquina ia foi feita atravésde uma ex-inquilina (sua
credulidadepública»/157.
1.959,AN
noCastelinho da Rua do Lavradio» Branca Dona de hotel amiga) por intermédio de uma amásia do es-
Mana rosé Cordeiro Portuguesa
Ana Vieira Branca Portuguesa ;rívão da 7: Circunscrição.
Leopoldo deTal Preto
Justina Mana da Concepção Preta
Eletricista Italiano Sindicâncias. ndo a medicina sem estar N? 778, Cx
10 Mão Santa Domingos Ruggiano Branco
com artigo 338. $ 8'. l segundo as leis e regulamentos...)}/156 l ra instância. Absolve 29,AN
do na apelação/1901

Cabo-vcrdiano S/n9,Cx
Manoel Games Preto l Curandeiro O delegado recebia constantes queixas. Praticava o espiritismo, a magia e seus sorti- (Praticava a magia c seus sortilégios..i>/157 Condenado/1904
Cabo-verdiano,profissão curandeiro
légios/157.
1.817,AN
e 251, $ único.
Consulta de espiritismo, o sonambulismo,a cPraticava o espiritismo inculcando cu- Absolvido/ 1906 S/n', Cx.
Pedro Leitão Espírita Brasileiro Anúncio dejorna.
Espírita sonâmbulo, por Evaristo de Morais: magiaou coisa que o valha.../157. ras>>/157. 1.762,AN

Português Praticavaa bruxaria/157 (Praticava atos queinculcava como apto para Absolvido/ 1925 N' 1.005, Cx
FranciscoNogueira da Sirva Branco l Construtor
de muitas pessoascom grandequantidade
curar moléstias... mediante rezas, encanta- 1.974,AN
mentos e bruxaria»/1 57.
de velasacesao>.
Portuguesa Tratava por meio de passese rezas/157. pública...exercen-condenado (prescri-
tExploravaa credulidade N?276,Cx.
Mana da Concepção
Rezava pessoasdesenganadas pelos mêdícop>
do sua ilícita profissão»/ 157. ta)/1927 29,AN
Brasileiro Denunciadopor um vizinho. Tiveram Vinha explorando o falso espiritismo...dando Prescrita a ação pe- N92.313,Cx
Vulgarmenteconhecidocomo Tio Júlio Julgode Araújo Peneira Preto l Cozinheiro (Costumava praticar... a magia e sortilégio
noticia. consulta.../157 e 158. de feitiçaria...»/157. nal/1927 1.775,AN
N?66,Cx
Reuniãoespírita no rito africano para evocar EugênioJosê Rufino Empregado do l Brasileiro Sindicâncias.Era sabido. Praticava o falso espiritismo e o exercício iPraticaRdo o espiritismo e a magia negra da-
va consultas...»/157 e 158.
Condenado(l? inst.)
Absolvido(2? inst.) 1.766,AN
:omerclo ilegal da medicina/157 e 158.
espíritos».
/1928
Absolvido/ 1929 N? 307, Cx
Antonio Josê dos Santos Funcionário Brasileiro lhece c Praticava o falso espiritismo, exercendo cExercício ilegal da medicina, praticando o
Aqui só se reza ilegalmente a medicina/1 56 e 1 57. falso espiritismo...i 1.920,AN
público (após.)
Exercem ilegalmente a medicina por meio do Não há denúncia. Prescrita/1929 N?165,Cx
Brasileiro ihecimento.Era sabido.
:Espírita cientifico e investigador da delegada Joaquim Fernandesde Carval
Chegara a mi
falso espiritismo/157e 158.
30,AN
que persegue o falso espiritismo». AlexandrinaAntonia olaria da Brasileira
Conceição

Praticava atou de magia negra... apetrechos praticava a magia negra... exercia a fun- Condenado/ 1930 N? 193,Cx
Pedreiro Brasileiro Por haver denúnciassegura!
Leopoldo Alve: 1.795, AN
:Guerra de oríxá no Morro de São Carlou utilizadospara a pratica do falso espiritis- çãodecurandeiro...)}/
157c 158.
mo. . ./157

«...sessões de falso '1930 N? 172,Cx.


Rei Congo e falso espiritismo IracemaBrandão Preta l Doméstica Brasileira Onde era sabido Praticava o baixo espiritismo e exercia ilegal
cio de curandeira...»/157 1.897,AN
JoséTavaresFilho Pedreiro Brasileiro tente a medicina/157e 158.
Sindicância Pratica do baixo espiritismo IPrâtica do baixo Arquivado/ 1931 N9247,Cx
Rubcns Josê de Souza Brasileiro
Magia negra, baixo espiritismo>>OI por magianegíu}. 1.853,AN
devoção no rito africano>>
Domêsi
Içando cura l Absolvido 1931 N?273.Cx
Antonio de Amorim Machado Cozinheiro Denúncia à delegada. de moléstias...»/157
Prova de fogo: verdadeiro ou falso credulidadedos incautos.../ 157. 1.987,AN
Praticavauma das modalidadesda magia ne- :Iludia a '1930 N?52-A
CarmemFerreira Soarem
oi Professora Brasileira Denúncia recebida
MadameCarmem gra/157. Cx.59.AN
CarmemArmindo
Conhecido macumoeiro iã sacrificar um car- Não housedenúncia Ny 487, Cx.
Paulo JosêFerrcira Brasile Conhecidomacumbciro.
Conhecido macumbeiro no Morro do Pintor neiro/158(nota de culpa), 157(relatório) I0.861,AN
Praticava o baixo espiritismo ... mediuni- «Pratica\amo baixo espiritismo e prescre- '1937 N91.629.
Mana Antonia Preta ladeira Brasileira Denúnciarecebida
ICentro Espírita São Jogo Batistai Brasileira viam remédios»/157. Cx.1.822,
AN
JoaquinaMana da Concepção Preta Doméstica
Mana da Pecha Santos Preta Costureira Brasileira
cPrática do Condenado obteve Ny 2.022.
JosêCardoso da Luz Salva Preto Marceneiro Brasileiro Por determinaçãoda autoridade. Cx. 1.808,AN
Baixo espiritismo em um prédio: baixo espiritismo... mediunizado... aten- «sursfs»/1939
dia.../157 combinadocom o l S8-
N' 2.379
Omistificador: Olavo Alvos da Sil\ a Branco l Comerciário Brasileiro Apurar denúnci: Davapassesmagnéticos. ..::. m
Práticas de embustes acetinados a fascinar a l Absolvido/1940
mM E M Cx.1.816,AN

iExercia a magia negra. a e seus l Condenada/ 941 N? 369,

:Curavacontusãocom um lápis lilás por Antonieta de Souza Preta l Cozinheira Brasileira Denúncia recebida. sortilégios»/IS7 1? Vara

30$000>>. prati- Nãohá denúncia. 1930


NP]56,AN
Olivia Batista Parda l Domés Brasileira Denúnciarecebida.
Despachona encruzilhada; cavaa magia11Sgra/
157
Anexo ll
Relação dos objetos que compõem o Museu
de Magia Negra da Seçãode Tóxicos,
Entorpecentes e Mistificações da Primeira
Delegada Auxiliar da Polícia
Civil do Distrito Federal.

Quatro bumbos (tabiques), um de ochossi, um de oxu, um de inhassãe um de


ogum;
uma estatueta representando Mefistófeles (eixu), entidade máxima da linha de
malei;
uma estatuetade barro representandoossanha(o gênio da mata), protetora
das árvores medicinais;
três penachos e dois capacetes, usados pelos macumbeiros (cavalos e camba
nos) nos trabalhos de terreiro;
três vidros contendo cobras (trabalho);
uma almofada com uma caveira e duas tíbias desenhadas,representandoumu-
lu (reí dos cemitérios) entidade mais respeitada de todas as leis;
um quadro representandoum caboclo, pintura a óleo;
uma raiz desenhada,representandoeixu-tiriri;
uma vestimenta completa para ogum guerreiro, com duas lanças, uma espada
e um escudo;
uma galinha embalsamada(trabalho);
três pedras de aoxum;
uma pedra de inhassã;
duas velas amarradas e cheias de alfinetes (despacho);
dois bonecos amarrados (canduru) usadas em homenagem a uma entidade
qualquer;

e 277
n

)''vonne .IWaggie Medo do feitiço: relaçõesentre magia e poder no Brasil

quatro velas fantasia (canduru de festa); uma espada(obê ou obelê), vê-se gravada na lâmina a oferta de ogum;
uma pedra (itá de iemanjá); uma imagem pequenade Santo Onofre (umulu), governa tatê-caveira;
seteanéis usadospelos macumbeiros no terreiro; uma garrafa com pólvora (fundangaou tuta), servepara afugentarqualquer
entidade má;
três cujas (cuité) para uso de bebida; aluá (mandioca-puba,milho e frutas) ou
malaia, também conhecida por cutimbá (cachaça); uma imagem de Santa Bárbara (abodolâ), protetora nas horas de tempestades;
19 cachimbos (pita ou catimbaú) serve como defumador; 30 búzios (ifá ou aburi), usados pelos macumbeiros a fim de jogar o ponto, ou
três charutos (pancho) serve também como defumador; para comunicação com uma entidade superior;
setecruzeiros de umbanda (entidade abaixo de umulu, em nagâ é dado coma
três imagensde Santo Antonio (mocindâ) amarradas com fitas, amarração pa-
ra facilitar casamento; abaloaê);

uma flecha de metal (cassiri) serve para firmar ponto; uma palmatória (quibandu), usada no ponto de eixu, a fim de castigarum fi-
lho de terreiro que errou na lei;
três pembas pretas (pembas de eixu);
uma imagemrepresentandovume (rainha de efu) que significa morte sob ação
seispembas de cores (pembas de ochossi); dos raios;
três pembas brancas (pembas de orixá); uma guia (guiame) de oxum e inhassã;
uma vara de guiné preta (usadapara descarregaro corpo); uma guia (guiame)de oxum com oxalá;
nove talismãs; uma guia (guiame) de eixu guerreiro;
um pedaçode fumo de ralo e um cachimbo(catimbá)amarradoscom fita uma guia (guiame) de zambi-japombo (que significa deus supremoconhecido
(ponto de amarração); por baba);
um porta-rapé (usadopara aproximar o espírito da materialidade); uma guia (guiame) de ogum com eixu guerreiro;
um leque de latão (leque de inhassã),«SantaMana Madalena)>,usadopara uma guia (guiame) mestra;
afastar as perseguições;
uma guia (guiame) de inhassã ou Mana Madalena
uma garrafa de Paraty (cutimbá ou malaia), serve de água benta;
uma guia (guiame) de nana-buruquê (Sana'Ana)
dois punhais (obê ou obelê); solto, serve para firmar ponto;
duas imagens de São Jorre a cavalo (ogum guerreiro em luta com satã guerrei-
ro)
dois sapatinhos de chumbo (sapatos oferecidos por uma crente à orixá oxum);
duas imagens, representando Crispím e Chrispiniano
uma estrela de metal branco (estrela guia);
um lequede metal com guisos(leque de oxum), «NossaSenhorada Concei-
ção», usado para afastar as perseguições;
uma imagem pequena de umulu (São Lázaro);
quatro breves usados pelos mussulmis;
uma imagem de São Jerânimo (pai xangâ ogodâ), o homem do machado, do
raio e do trovão;
uma imagem de São João Batista (pai xangâ laca);
uma alfange (obolê de festa) fantasia para festas de terreiro;
uma estrela do mar (calunga), da linha branca, vai de Jurema à linha de caditi;

278 e e 279
Referências bibliográficas
Documentos consultados

1883 Relatório do Dr. Tito Augusto Pereira de Mantos.


1890 -- Livros de Relação n's 22, 23, 24 da Seção Judiciária do Arquivo
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Arquivo Pessoalde Filinto Müller, FundaçãoGetúlio Varias, Carta
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Arquivo do Centro Redentor,Rio de Janeiro.
1891 Artigo 72, $ 24 da Constituição de 1891. Acórdão do Superior Tribu-
nal da Justiçado Estadodo Maranhão.ACC de 14 de outubrode
1898,1n: Revista de Jurisprudência, vo1. 2, 1899
1892 Carta ao Chefe da Polícia, caixa 6, C.21, Arquivo Nacional, Río de
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a do Rio de Janeiro, Centro de Microfilmagem da Secretaria de
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1927 Portaria do Chefe de Polícia Coreolano de A. Goés Filho -- que
prorroga a jurisdição do delegado bacharel Antonío Augusto de Man-
tos Mendes, para promover a repi=bssão aos crimes previstos nos arti-
gos 157 e 158 do Código Penal.

e 28B
'1
yvonne ÀÍaggfe Mledo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil

Relatório da Polícia do Distrito Federal apresentadoao Exmo. Sr. 1893 Lei n' 173, 10 de setembro, que regula a organização de associações
Augusto de Vianna do Castilho, Ministro de Justiça e Negócios Inte- que se fundarem para fins religiosos, científicos, artísticos, políticos
riores, pelo Dr. Coreolano de Araújo GoêsFilho, Chefe de Polícia do ou simplesrecreio nos termos do artigo 72, $ 3' da Constituição.
DF, 81-4-35,Arquivo da Cidade. 1904 [)ecreto n' 11.151, 5 de janeiro, vo]ume ], que reorganiza os Servi-
1928 PAULA, Antonio de <<Direitodo Culto. In; Do l)preito Pena/,Ed A ços de Higiene Administrativa da União.
Noite, Rio de Janeiro 1920 Decreton' 3.987, 2 de janeiro, que reorganiza os Serviçosde Saúde
1929 Relatório do Dr. Coreolano de Araújo Goés Filho. Pública.
1938 Artigo 122 da Constituição de 1937: 1n; Comentários â Consfífuíção 1934 Decreto-Lei n' 24.534, 2 de julho, que aprova o regulamento para
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Pongetti Editores, Rio de Janeiro. 1940 [)ecreto-Lei n' 2.848, de 7 de dezembro de 1940
Livro de Tombo n' l, Inscriçãon' 1, fl. 2, SPHAN, 5 de maio, Rio 1941 Decretos-leis, outubro a dezembro, volume Vll
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-- Decreto de ll de outubro, Rio de Janeiro, ImprensaNacional, Códi- 14 de setembro de 1971
go Penal. 15 de novembro de 1971

284 + e 285
yvonne AÍaggie Medo do feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasii

Diário da Noite 2 dejunho de 1939 Fotografias


(coluna Oscar Pimentel, 1939)
Arquivo fotográfico Luiz Alphonsus
[)iário de Notícias
2 de serembro de 1971 Documentos do Arquivo Nacional consultados
Diário Oficial KJ 1971
Carta anónima: caixa 6, C21
Jorna! de Aiagoas 4, 6. 7, 8 e 10 de fevereiro de 1912 Processo n. 571, cai)Câ 2.002
17 dejunho de 1912 Processo s/n caixa 1 .817
18 de julho de 1912 Processo n. 596, caixa 1.997
8 de agosto de 1912 Processo n. 691, caixa 1.859
Processo n. 756, caixa 1.959
Jornal do Brasil 10 de abril de 1941 Processo n. 778, caixa 29
3 de setembro de 1971 Processo s/n, caixa 1.817
5 de setembro de 1971 Processo s/n, caixa 1.762
7 de setembro de 1971 Processo n. 1.005, caixa 1.974
26 de fevereiro de 1985 Processo n. 276, caixa 29
Processo n. 2.313, caixa 1.775
O Dia 31 de agosto a 5 de outubro de 1971 Processon. 66, caixa 1.766
Processo n. 307, caixa 1.920
0 Globo 3 de setembro de 1971 Processo n. 165, caixa 30
Processo n. 193. caixa 1.795
O Jorna! 18 e 19 de setembro de 1927 Processo n. 172, caixa 1.897
3 de agosto de 1971 Processo n. 247, caixa 1.853
Processo n. 273, caixa 1.987
O Paiz 8 dejunho de 1916 Processo 52 A, caixa 59
Processo n. 487. caixa l0.861
Tribuna da Imprensa 4 de setembro de 1971 Processo n. 1.629, caixa 1.822
Processo n. 2.022 caixa 1.808
Última Hora 2, 3, 6, 8, 16, 17, 22 e 30 de setembro de 1971 Processon. 2.379, caixa 1.816
2 de outubro de 1971 Processo n. 156

Livros e monografias
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1941, 1943, 1944 Revista Forense (ver Documentos Consultados) dos, IUPERJ. n' 52, Rio de Janeiro, 1987
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286 8 287
yvonne Maggíe N4edodo feitiço: relaçõesentre magiae poder no Brasa!

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Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa


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Velho, Yvonne Maggíe Alces


Medo
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Medo do feitiço relaç ões entre magia e
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