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De Peter Haining:

A CAVERNA DOS MAGOS


Fascinantes Histórias sobre Magia e Magos

O CÍRCULO
DOS MAGOS
Mais Histórias Fascinantes sobre
Magia e Magos

Organização
PETER HAINING

Tradução Maria Alice Capocchi

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Este livro é dedicado a
MATTHEW e JONATHAN,
dois pequenos magos

Se isto for magia, que seja uma arte tão natural quanto
comer.
WILLIAM SHAKESPEARE Conto de inverno
(c.1610-1611)

Envolver-se com uma história é uma sensação mágica.


PHILIP PULLMAN Sunday Times (janeiro de
2002)

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SUMÁRIO

Magia: O Feitiço da Fascinação, por Peter Haining


O Curso de Magia, de E. Nesbit
O Show de Mágicas do Doutor Cadaverezzi,
de Philip Pullman
A Espinha de Peixe Mágica, de Charles Dickens
O Mago de Karakosk, de Peter S. Beagle
Elfino e Doninha, de Sylvia Townsend Warner
A Regra dos Nomes, de Ursula Le Guin
A Loja de Mágicas, de H. G. Wells
Os Bombons Mágicos, de L. Frank Baum
O Menino-Dia e a Menina-Noite, de George MacDonald
A Fórmula Rato-Transformadora no. 86,
de Roald Dahl
A Feiticeira de Abril, de Ray Bradbury
Tia Magi, Supermodelo, de Terence Blacker
Por um Passe de Mágica, de Jacqueline Wilson
Fiquem à Vontade, Amigos!, de Alan Garner
Agradecimentos

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MAGIA: O FEITIÇO
DA FASCINAÇÃO

Harry Potter é, sem sombra de dúvida, o mais


famoso aluno de magia e feitiçaria da atualidade. Mas
por muitos, muitos anos, este título pertenceu ao a-
nônimo “Aprendiz de Feiticeiro”, o herói de um po-
ema clássico do século XVIII, cujo autor é o famoso
escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. Você
não se lembra dele? E se eu disser que esse anônimo
herói inspirou a conhecida seqüência do filme Fantasi-
a, de Walt Disney, na qual Mickey Mouse, um incauto
aluno de artes mágicas, aproveitando-se da ausência
de seu mestre, usa um de seus feitiços para fazer uma
vassoura executar todos os seus afazeres domésticos?
Agora tenho certeza de que você se lembra, apesar de
o aprendiz de Goethe ser um menino e não um rato.
Goethe era um homem fascinante. Na verdade,
a alquimia era seu principal interesse antes de se tor-
nar conhecido por sua peça de teatro Fausto (1832),
cujo personagem principal é um grande estudioso que,
desiludido, invoca poderes das trevas e faz um pacto
com Satanás para conquistar sua amada. Infelizmente,
ela tem uma morte trágica no final. Goethe demonstra
conhecer um bocado sobre magia, como revelam es-
tas linhas do poema “O Aprendiz de Feiticeiro”:
Vamos lá, seu velho cabo de vassoura!
Vista este velho manto
E mostre que você não tem medo da labuta!

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Os poderes da magia em ação no poema
“O Aprendiz de Feiticeiro”

Faça o que ordeno ou senão arrepender-se-á!


Agora, um belo par de pernas;
E, por que não, uma cabeça também!
Com um balde e bastante água,
Vamos lá! Força! Ao trabalho, ligeira,
Mas que seja bem feito!
Trabalhe duro, até tudo ficar bem limpo.
Encha a banheira até transbordar,

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Mais água, um rio levando o balde flutuar!
Sem pestanejar, mais rápido!
Mais água, um rio, um mar,
Xícaras e jarros a carregar!
Um dilúvio!
Agora chega! Vamos, pare! Maldição!
Chega de inundação!
Mas qual é a palavra mágica? Meus Deus,
Foi-se com a água então!

Somente o inesperado retorno de seu mestre, o


sábio mago que consegue pôr um fim ao feitiço, salva
o jovem aprendiz de morrer afogado na inundação
que ele mesmo provocou.
Naturalmente, os alemães muito se orgulham
de seu precursor literário de Harry Potter — fato este
mencionado por diversos críticos literários em seus
comentários sobre os livros de J. K. Rowling e os fil-
mes produzidos sobre eles. No entanto, diversas pes-
soas não se impressionaram nem um pouco com a
versão em brinquedo da Nimbus 2000, a vassoura
voadora do jovem estudante de magia, por ela apre-
sentar vários componentes químicos considerados
perigosos para a saúde, uma verdadeira “bomba-
relógio química”, segundo um especialista. Talvez al-
gum resquício do anônimo aprendiz de feiticeiro de
Goethe, que precisou ser salvo dos inesperados pode-
res mágicos que inadvertidamente libertou.
Os neozelandeses também têm muito que a-
gradecer ao seu moderno “Feiticeiro da Igreja Cristã”.
A Nova Zelândia foi o cenário escolhido, pouco tem-
po atrás, para a filmagem de outro filme sensacional

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sobre feiticeiros e feitiçaria: O senhor dos anéis. Mas
bem antes disto, em 1990, o Primeiro-Ministro neoze-
landês, Michael Moore, ao folhear velhos livros sobre
folclore e lendas, achou que um pouco de magia não
seria nada mal para o país e decidiu nomear um feiti-
ceiro oficial, com as seguintes orientações específicas
para as atribuições de tal profissional:

A idéia que se fazia antigamente de uma bruxa, em um conto


de George MacDonald.

Proteger o governo, abençoar novas empreita-


das, afugentar espíritos malignos, desencorajar os fa-
náticos, trazer esperança à população, atrair turistas e,
acima de tudo, planejar e promover um novo univer-
so, bem melhor, que projete a Nova Zelândia à mais
alta posição em relação a todo o resto do mundo, de

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acordo com as leis da física e da metafísica.
O Primeiro-Ministro Moore declarou que
compreender a cosmologia da magia e acreditar no
bem-estar, diversão e entretenimento eram pré-
requisitos essenciais e ofereceu ao candidato escolhido
a isenção do pagamento de qualquer imposto. Ao fi-
nal, o escolhido foi um inglês, Ian Channel, que havia
estudado sociologia e psicologia em Londres e se tor-
nado um feiticeiro quando foi morar na Austrália na
década de 1960. Ainda hoje, alguns neozelandeses
acreditam que a magia do “Feiticeiro da Igreja Cristã”
ajudou O senhor dos anéis a se tornar um grande suces-
so, pois o filme não só mostrou a todo o mundo as
maravilhosas paisagens da Nova Zelândia, mas tam-
bém “enfeitiçou” turistas dos quatro cantos do plane-
ta a visitarem os locais onde o filme foi rodado.

Já uma bruxa moderna é imaginada como uma mulher linda,


encantadora.

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Estas duas histórias ilustram a fascinação que a
magia há muito exerce sobre nós. E neste livro você,
amigo leitor, encontrará histórias que vão desde os
tempos antigos até os dias de hoje, escritas por alguns
dos melhores autores de ficção. Mas segure um pouco
seu entusiasmo e responda antes esta pergunta: o que
é a magia, essa magia que pode exercer tamanha fasci-
nação sobre nós?
Não é fácil encontrar uma boa definição de
magia, apesar de sabermos que a palavra vem do gre-
go, mageia, e descreve práticas secretas de certos tipos
de sacerdotes. Geralmente, a magia é definida como a
arte de controlar as forças da natureza ou seres de-
moníacos usando artifícios sobrenaturais. Segundo o
Dicionário-padrão de folclore, mitos e lendas (1975), a magia
pode ser tanto positiva quanto negativa. A magia posi-
tiva efetivamente Jaz alguma coisa — um talismã da sor-
te, por exemplo, produz magia positiva, enquanto que a
magia negativa é usada para evitar algo. Imagine um
amuleto que protege as pessoas (faz alguma coisa) con-
tra demônios, encantamentos, bruxas e outros seres.
Este Dicionário ainda diz que:
Existe também a magia branca e a magia negra.
A magia negra é maléfica, pois ao conjurar forças e
seres das trevas sua intenção é causar doenças, a mor-
te e outros males e efeitos imprevisíveis, enquanto que
a magia branca realiza curas ou outros benefícios sem
invocar as forças das trevas. Astrologia, alquimia,
prestidigitação e atividades afins são todas classifica-
das como magia branca.
A partir do momento em que diversos escrito-
res começaram a escrever histórias sobre magia, todos

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partiram da mesma premissa: a magia funciona. Uma
das explicações sobre magia fornecidas pela Enciclopé-
dia da fantasia (1997) diz que sempre que a magia é
mencionada em uma história ela pode realizar qual-
quer coisa se seguirmos certas regras específicas de
sua natureza mágica. Mas ainda não sabemos com
certeza quais são essas regras, especificamente. A Enci-
clopédia diz ainda que:
A premissa primordial é que a magia pode re-
almente acontecer em um mundo de fantasia e que a
natureza específica deste ambiente mágico vai influ-
enciar a narrativa. Podemos mais facilmente compre-
ender como esta influência é exercida ao relembrar-
mos um dos mais conhecidos mundos de magia: o
País das Maravilhas, do livro Alice no País das Maravi-
lhas.
Resumindo, então: quando a magia se faz pre-
sente, ela pode fazer qualquer coisa acontecer. As his-
tórias deste livro mostram a você, leitor, muitas ma-
neiras diferentes de como isto acontece. Aventuras
que remontam a épocas antigas, escritas por George
MacDonald e Sylvia Townsend Warner; viajando no
tempo, chegamos até os dramas históricos de Charles
Dickens e Philip Pullman; e nos aventurando um
pouco mais em direção ao presente, chegamos aos
contos de magia dos dias de hoje, escritos por Jacque-
line Wilson e Roald Dahl. Nestas histórias, você será
apresentado não só a magos e feiticeiros, demônios e
bruxas — antigos e modernos — cujos feitiços são
ora poderosos, ora hilariantes. Algumas histórias vão
fazer você sentir calafrios de cima a baixo em sua es-
pinha, outras vão fazer você se contorcer de tanto rir,

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mas todas, tenho certeza, vão fasciná-lo.

O habilidoso doutor Danti Cadaverezzi, descrito por Philip


Pullman.

Meu amigo, Philip Pullman, que eu conheço


desde a época em que publicou sua primeira história,
me contou certa vez sua fórmula mágica para estimu-
lar jovens a ler. Se você conseguiu ler este livro até
este ponto, provavelmente não precisará de nenhum
outro estímulo ou fórmula mágica, mas vou contar-
lhe, mesmo assim, o que ele me disse.
“Diga para o jovem que este livro é proibido”,
Philip me aconselhou. “Este livro não é para você.
Não toque nele. Estou falando deste livro aqui, nesta
prateleira. Vou sair agora e volto daqui a algum tem-

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po.” A magia também é algo proibido, e há muita ma-
gia a ser descoberta nas páginas a seguir. Então, ren-
da-se à tentação, continue a ler, e tenho certeza de que
você será mais uma vítima do feitiço da fascinação
que pelo menos algumas destas histórias vão lançar
sobre você...

PETER HAINING
Boxford, Suffolk, Inglaterra Abril de 2003

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O CÍRCULO DOS MAGOS

O CURSO DE MAGIA
E. Nesbit

Esta história narra o retorno do mestre dos magos, Pro-


fessor de Lara, que inicialmente lhe foi apresentado em meu
livro anterior, A caverna dos magos. * O engenhoso “Pro-
fessor de Magia e da Arte das Trevas” — como ele se autode-
nomina — está novamente à procura de novos alunos, mas, no
momento, ele espera conseguir um emprego como professor de um
“Curso de Magia” no Seleto Internato para Jovens Princesas
administrado por Miss Fitzroy Robinson. Talvez, por ele ter
uma aparência um tanto assustadora ou por seus brilhantes
olhos negros e sorriso de rapina, Miss Robinson acredite que
seria perigoso permitir a presença de um mago entre suas meni-
nas — principalmente pelo fato de todas pertencerem à nobreza.
Sendo assim, ela lhe nega o emprego — e, num piscar de olhos,
o professor usa seus poderes para fazer todas as suas alunas
desaparecerem! Os acontecimentos desta aventura para encon-
trar as princesas constituem uma verdadeira batalha de perspi-
cácia — sem mencionar o uso de alguns truques de mágica ver-
dadeiramente extraordinários...

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* **

Havia certa feita uma senhora que se viu, em


plena meia-idade, com uma pequena fonte de renda.
Sabendo não possuir formação acadêmica suficiente
para exercer qualquer outra profissão, ela decidiu, sem
qualquer hesitação, abraçar a profissão de professora.
Abriu, então, um seleto Internato para Senhoritas,
cuja matrícula exigia as mais altas referências. E para
manter sua escola o mais seleta possível, Miss Fitzroy
Robinson colocou uma placa de latão na porta com
inscrições em “fina caligrafia” — você provavelmente
já viu essa caligrafia. Muito bem, estes eram os dizeres
gravados na placa colocada na porta:
SELETO ESTABELECIMENTO DE EN-
SINO PARA FILHAS DE MONARCAS RESPEI-
TÁVEIS.
Muitos reis que não eram absolutamente res-
peitáveis teriam dado suas orelhas reais para que suas
filhas fossem admitidas nesta escola, mas Miss Fitzroy
Robinson selecionava as referências com especial cui-
dado; e a conseqüência, como podemos prever, foi
que somente os reis da mais alta nobreza eram esco-
lhidos para pagar as dez mil libras esterlinas por ano
que garantiam a melhor educação possível a suas fi-
lhas. Deste modo, Miss Fitzroy Robinson conseguiu
acumular e investir algumas libras para sua velhice.
Saiba que todo o dinheiro que ela conseguia era inves-
tido em terras.
Somente um rei recusou-se a mandar sua filha
para a escola de Miss Fitzroy Robinson, argumentan-
do que uma escola que cobrava tão pouco não pode-

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ria ser verdadeiramente seleta. Mas, posteriormente,
descobriu-se que suas referências não eram exatamen-
te satisfatórias.
Havia somente seis internas e, naturalmente, os
melhores mestres foram contratados para ensinar às
alunas reais tudo que seus pais gostariam que elas a-
prendessem; naturalmente, não se exigia das meninas
nenhum dever de casa quando estas não estavam dis-
postas a fazê-lo, e todas, sem exceção, diziam que esta
era a melhor escola do mundo, caindo em desolado
choro à menor menção de serem enviadas a qualquer
outra escola. E assim essas seis meninas cresceram e
já haviam se tornado jovens damas quando certos e-
ventos começaram a acontecer. Havia mais uma in-
terna, a Princesa Daisy, filha do Rei Fortunatus, o so-
berano do reino onde a escola se localizava, que era a
única criança na escola nessa época.
Mas, exatamente quando ela estava na escola há
aproximadamente um ano, ouviu-se o toque da cam-
painha e a camareira entrou na sala de aula com um
cartão de visita guardado no bolso de seu avental —
suas mãos estavam molhadas, pois estivera lavando
roupas.
— Um cavalheiro deseja vê-la, Miss — disse
ela.
Miss Fitzroy Robinson sentiu uma leve palpita-
ção e disse baixinho: — Oh, céus! —, uma vez que
era extremamente polida. Se ela fosse vulgar, como
alguns de nós, teria exclamado: “Mas que coisa!”, e, se
fosse ainda mais vulgar, talvez tivesse dito: “Quem,
diabos, pode ser a esta hora?” O cartão de visita era
grande e de papel brilhante, e Miss Fitzroy Robinson

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leu o que estava escrito em letras douradas:
CAVALHEIRO DOLORO DE LARA PROFES-
SOR DE MAGIA (BRANCA) E DA ARTE DAS
TREVAS.
AULAS NAS RESIDÊNCIAS DOS PRÓPRIOS
ALUNOS.
NENHUMA TAXA EXTRA.
CONDIÇÕES ESPECIAIS PARA ESCOLAS.
SERVIÇOS PARA COMEMORAÇÕES NOTUR-
NAS.
Miss Fitzroy Robinson pôs o livro sobre a me-
sa — ela nunca dava aulas sem um livro —, arrumou
sua touca amarela e seus tachos grisalhos e dirigiu-se à
recepção para ter com seu visitante. Este se curvou à
sua entrada. Ele era alto e parecia uma ave de rapina,
com olhos muito negros e uma boca... simplesmente
indescritível.
— É um enorme prazer — disse ele, sorrindo e
mostrando todos os seus trinta e dois dentes, um sor-
riso muito educado, mas um tanto difícil de se inter-
pretar. — E realmente um grande prazer reencontrar
uma antiga aluna.
— O prazer é mútuo, tenha certeza — respon-
deu Miss Fitzroy Robinson. Sabemos que, às vezes, é
um tanto difícil sermos educados e sinceros ao mes-
mo tempo; e isto não é culpa minha nem de Miss Fit-
zroy Robinson.
— Tenho viajado bastante — disse o profes-
sor, ainda com seu amplo sorriso —, aumentando
minha bagagem de conhecimentos. Oh, cara senhora,
vivemos e aprendemos, decerto? E agora considero-
me um professor bem mais competente do que quan-

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do tive a honra de ensinar-lhe. Poderia eu ter alguma
esperança de trabalhar como professor em sua escola?
— Ainda não tive a oportunidade de incluir um
Curso de Magia em nosso currículo — disse a diretora
da escola —, pois esta é uma matéria pela qual a mai-
oria dos pais, especialmente os da nobreza, tem de-
monstrado pouco interesse.
— Mas era a sua matéria favorita — disse o
professor.
— Sim, com certeza; no entanto, quem sabe,
um dia...
— Mas eu gostaria de obter essa posição agora
— disse ele, parecendo ainda mais uma ave de rapina.
— Mil libras esterlinas por treze aulas, um preço es-
pecial para a senhora, minha cara.
— É realmente impossível — respondeu ela,
com voz firme, pois sabia, por experiência, o perigo
que representava a presença de um mago próximo a
uma princesa. Algum dano sempre era causado.
— Muito bem, então! — disse o professor.
— O senhor compreende, todas as minhas alu-
nas são princesas — ela continuou — que conseguem
tudo o que querem sem precisar recorrer à magia.
— Sendo assim, isto é um “Não”? — pergun-
tou ele.
— Isto é um “Não, muitíssimo obrigada” —
disse ela.
Mas antes que Miss Fitzroy Robinson conse-
guisse detê-lo, o professor passou por ela em direção
à porta e ela escutou seus passos sobre a passadeira do
corredor. Miss Fitzroy correu atrás dele, mas a porta
da sala de aula foi sonoramente batida em sua cara.

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— Mas, o que é isso? — indagou Miss Fitzroy
Robinson. Ela correu para o telhado e desceu pela
chaminé da sala de aula, que havia sido construída
com degraus pelo lado de dentro para o caso de um
incêndio ou qualquer outra emergência. Conseguiu
sair pela lareira da sala de aula um segundo tarde de-
mais. Todas as sete princesas haviam desaparecido, e
o Professor de Magia encontrava-se entre as carteiras
manchadas de tinta, ostentando o mais largo sorriso
que Miss Fitzroy Robinson jamais havia visto.
— Oh, homem maligno, sem coração! — disse
ela, balançando ameaçadoramente a régua em sua di-
reção.
O dia seguinte era um sábado, e o rei foi buscar
sua filha, a Princesa Daisy, como de costume, para
passar o dia com ele. A empregada que o recebeu usa-
va um avental de tecido grosseiro e tinha cinzas em
seu cabelo. O rei comentou que ela estava usando um
avental feito de saco de farinha e tinha cinzas no cabe-
lo, mas ela retrucou: — Eu estava limpando a cozi-
nha; de qualquer forma, é melhor o senhor conversar
com Miss Fitzroy.
E, assim, o rei foi levado ao melhor aposento
da casa, uma sala de visitas onde havia flores de cera,
capas para o encosto das poltronas e aquarelas feitas
pelas próprias alunas, além dos graciosos tapetinhos
de lã feitos pela tia de Miss Fitzroy Robinson, que vi-
via acamada. Um aposento encantador, onde se desta-
cava o toque feminino dos trabalhos manuais.
Miss Fitzroy Robinson entrou devagar, cabis-
baixa, trajando um avental caprichosamente feito de
saco de farinha, mas com um delicado acabamento de

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pedacinhos de hulha entrelaçados a fios dourados
bordados — havia também alguns pedaços maiores
de hulha pendendo de fios de seda bordados ao arre-
mate de sua touca de renda.
O rei percebeu imediatamente que ela estava
muitíssimo aborrecida com alguma coisa.
— Espero não ter chegado muito cedo — disse
ele.
— De modo algum, Majestade — respondeu
ela. — Vossa Alteza é sempre pontual, conforme res-
saltam vossas referências. Mas algo grave aconteceu.
Não é meu desejo afligir-vos com detalhes, mas vossa
filha, a Princesa Daisy, o orgulho e o tesouro de nosso
pequeno círculo de alunas, desapareceu, juntamente
com suas seis companheiras de curso. Asseguro-vos
de que todas estão bem no momento, embora não
possamos vê-las.
O rei deixou-se cair pesadamente em uma pol-
trona do belo conjunto de móveis da sala de visitas
(todas as damas e cavalheiros da época possuíam be-
los conjuntos de sofá, poltronas e cadeiras esparsas
feitas de madeira de nogueira) e olhou-a estupefato,
faltando-lhe palavras para expressar sua dor. A direto-
ra da escola, no entanto, havia se preparado para a-
quela reação, escrevendo o que deveria dizer e deco-
rando sua fala, e com isso pôde prosseguir sem titu-
bear:
— Majestade, a culpa não é totalmente minha,
enforcai-me se assim o julgares, mas, antes, permiti-
me a honra de explicar um ou dois detalhes importan-
tes.
E, com estas palavras, sentou-se e contou ao rei

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tudo que havia ocorrido durante a visita do professor,
pausando somente naqueles mesmos pontos em que
eu também pausei ao contar-lhe esta história.
O rei escutou, um tanto impaciente, puxando
nervosamente a franja roxa e carmim de uma capa de
poltrona.
— Nunca apreciei os métodos do professor —
disse Miss Fitzroy Robinson tristemente — e sempre
tive minhas dúvidas sobre seu caráter moral, dúvidas
agora confirmadas. Após terminar meu curso com ele
alguns anos atrás, tomei algumas aulas com um mestre
muito mais competente e, graças a essas aulas — as
quais, devo acrescentar, tiveram um alto custo —,
consegui dar um basta às maleficências desse rufião.
— A senhora então conseguiu salvar as prince-
sas? — perguntou o rei à beira das lágrimas.
— Não, mas conseguirei, se Vossa Majestade e
os outros pais confiarem esta questão inteiramente a
mim.
— Essa é uma questão bastante séria — disse o
Rei. — Minha pequena e indefesa Daisy...
— Ouso pedir-vos — continuou a diretora da
escola, com dignidade — que não deis muita impor-
tância ao ocorrido. Naturalmente é um fato lamentá-
vel, mas incidentes desagradáveis ocorrem em todas
as escolas e suas conseqüências poderão ser evitadas
se agirmos com tato e bom senso.
— A senhora devia ser enforcada — disse o rei
sem muita convicção.
— Sem dúvida — retrucou Miss Fitzroy Ro-
binson —, mas se assim o fizerdes, Majestade, nunca
mais vereis a pequena Daisy novamente. Vosso dever

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como pai e vosso dever como soberano, em relação a
mim, são conflitantes, e entendo vossa dor.
— Mas posso confiar na senhora?
— Devo relembrar-vos — disse ela, erguendo-
se e fazendo os pedacinhos de hulha do avental cho-
calharem — que trocamos altas referências quando do
início de nossa relação profissional.
O rei levantou-se.
— Muito bem, Miss Fitzroy Robinson — disse
ele —, estou amplamente satisfeito com o progresso
de Daisy desde que a confiei à senhora, e, assim, con-
cluo que o melhor no momento seja deixar a questão
inteiramente era suas mãos.
A diretora da escola fez-lhe uma mesura e ele
retornou a seu palácio de mármore com o coração
partido, a coroa pendendo de um lado da cabeça e
fungando seu real nariz.
O seleto estabelecimento fechou suas portas.
O tempo foi passando, mas não trouxe ne-
nhuma notícia sobre as princesas.
O rei tentou conformar-se com o fato de ter-
lhe sobrado outro filho, o Príncipe Denis, um menino
alegre e saudável; mas um menino não é uma menina.
A rainha estava muito mais desolada que o rei,
mas tinha os afazeres domésticos com que se preocu-
par, as compotas de picles e as geléias, as meias do
príncipe a tricotar, e assim não lhe sobrava muito
tempo para chorar. Passado um ano, ela disse ao rei:
— Meu querido, deves fazer algo para distrair-
te. Ficar sentado e chorar o dia todo não é atitude
digna de um rei. Faz um esforço, faz alguma coisa útil,
nem que seja inaugurar uma feira na cidade ou lançar

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a pedra fundamental de alguma construção.
— Tenho medo de feiras — disse o rei. — E-
las são como abelhas, seu zumbido me amedronta;
mas lançar uma pedra fundamental... — E dali em
diante ele permaneceu sentado no trono, pensativo,
mas não chorou mais e começou a fazer anotações no
verso de velhos envelopes. A rainha sentiu, então, que
suas palavras não haviam caído no vazio.
Passado um mês, a sugestão de lançar uma pe-
dra fundamental rendeu frutos.
O rei abriu uma empresa, a Fortunatus Rex &
Cia., que se tornou quase que imediatamente a maior
incorporadora imobiliária do mundo.
Talvez você não saiba o que é uma incorpora-
dora imobiliária. Deixe-me contar-lhe o que o rei e
sua companhia fizeram, e você certamente compreen-
derá.
Eles compraram todas as belas matas e campos
que puderam e dividiram-nos em lotes; arrancaram as
árvores e cortaram o mato; abriram ruas estreitas; ins-
talaram postes com lamparinas e construíram fileiras
de pequenas e feias casas de tijolos amarelos, esperan-
do que alguém quisesse morar nelas. E, não se as-
sombre, várias pessoas quiseram. E assim o rei e sua
companhia ganharam muito dinheiro.
E curioso como as maiores fortunas são feitas
transformando coisas belas em coisas feias, enquanto
que transformar algo feio em belo é um trabalho mui-
to mal-remunerado.
Essas feias ruelas foram se alastrando cada vez
mais em direção ao campo, “comendo” todo o verde
que viam pela frente como gulosas lagartas amarelas,

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mas, ao chegarem ao pé do Monte Clover, tiveram de
parar. A proprietária deste monte não quis vender se-
quer um punhado de terra — independentemente das
altas ofertas feitas pela Fortunatus Rex & Cia. Os ad-
vogados da empresa reuniram-se em vão com os ad-
vogados da proprietária, trajando suas melhores vestes
e levando-os para almoçar, oferecendo-lhes as mais
finas iguarias e bebidas. Mas o Monte Clover sim-
plesmente não estava à venda.
Finalmente, uma pequena senhora de idade, u-
sando um traje totalmente cinza, apareceu diante dos
escritórios de mogno e latão polido da Fortunatus
Rex & Cia. e solicitou uma entrevista particular com o
próprio rei.
— Eu sou a proprietária do Monte Clover —
disse ela — e resolvi dar-vos permissão para construir
em todo o monte, exceto nos sete acres de terreno no
topo e nos quinze acres de terreno ao redor destes
sete. Deveis também construir um alto muro em volta
dos sete acres e um segundo muro em volta dos quin-
ze acres — muros de tijolos vermelhos, prestai atenção,
não desses horrorosos tijolos amarelos baratos! Nes-
ses terrenos plantarei árvores frutíferas. E Vossa Alte-
za deverá fazer uma lei punindo qualquer um que
roube minhas frutas; o ladrão deverá ser enforcado na
árvore da qual roubou as frutas. Estas são as minhas
condições. Qual é a vossa resposta?
O rei disse “Sim”, pois desde a perda de sua fi-
lhinha ele não se importava com mais nada além do
seu negócio, e sua alma real ansiava por ver o verde
do Monte Clover “comido” por lagartas de tijolos
amarelos com telhados de ardósia. Apesar de não gos-

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tar da idéia de construir os dois muros de tijolos ver-
melhos, ele concordou.
A velha senhora queria que os muros e os ter-
renos mencionados tivessem o seguinte formato:

Mas foi tão trabalhoso medir o tamanho e tra-


çar o formato exato dos terrenos nos dois círculos
que os topógrafos já estavam arrancando os cabelos
quando o rei finalmente disse:
— Que transtorno! Esqueçam! Construam os
muros da seguinte forma:

A velha senhora ficou chocada ao descobrir

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que havia somente um muro entre seu pomar e o res-
to do mundo, como podemos ver pelo canto entre os
lotes 1 e I e o 15. Mas o rei disse que não tinha meios
de reconstruir o muro e que, de todo modo, dois mu-
ros haviam sido construídos, conforme ela exigira. E a
velha senhora teve de se conformar. Ela apenas insis-
tiu com o rei para que ele lhe desse um feroz buldo-
gue que atacaria qualquer um que tentasse pular o mu-
ro naquele ponto mais indefeso entre os lotes 1 e I e o
15.E o rei assim fez, dando-lhe uma corpulenta bul-
dogue chamada Martha, com uma coleira de jóias.
— Martha avançará no pescoço de qualquer
um que não tenha sangue real — disse ele. — Natu-
ralmente, ela nem sonharia em atacar uma pessoa real,
pois a realeza jamais roubaria de um pomar.
E, desta forma, a velha senhora teve de se con-
tentar. Ela amarrou Martha junto ao canto mais des-
protegido do pomar e, a seguir, plantou macieiras a-
nãs, construiu uma pequena casa para si, sentou-se e
aguardou.
O rei estava felicíssimo! As lagartas arrastaram-
se, engatinharam e comeram quase todo o Monte
Clover — exceto o pequeno topo verde, onde as ma-
cieiras tinham sido plantadas, os dois muros de tijolos
vermelhos e a casinha da velha senhora. A pobre rai-
nha continuou atarefada com suas geléias, seus picles,
a lavagem dos cobertores e a faxina da primavera.
Somente de vez em quando ela perguntava ao rei:
— Fortunatus, meu querido, realmente conside-
ras Miss Fitzroy Robinson uma pessoa confiável? Será
que algum dia veremos nossa querida Daisy novamen-
te?

27
E o rei, então, passava a mão pelos cabelos lou-
ros, deixando-os eriçados sob a coroa, como queijo
parmesão ralado, e respondia:
— Minha cara, deves ter paciência; sabes que
temos as melhores referências possíveis sobre ela.
E então, um belo dia, na nova cidadezinha de
tijolos amarelos que o rei havia construído, aconteceu
um fato incrível. Seis garbosos príncipes, montados
em seus cavalos brancos, chegaram às ruelas poeiren-
tas da cidade. Suas vestes brilhavam ao sol, pois eram
bordadas em fios de prata e tinham jóias incrustadas;
seus elmos de ouro brilhavam ainda mais gloriosos ao
sol. Todas as crianças batiam palmas à sua passagem.
Os príncipes eram jovens, belos e tinham um olhar
tão bondoso que as velhas senhoras exclamaram:
“Que seus corações sejam abençoados!”
Muito bem, você já deve ter adivinhado que es-
ses seis garbosos príncipes estavam procurando pelas
seis princesas, agora crescidas, que eram as alunas do
Seleto Estabelecimento de Ensino de Miss Fitzroy
Robinson. Seus seis nobres pais, que moravam do
outro lado do planeta, e que ainda não sabiam do de-
saparecimento de suas filhas, haviam dado o endereço
do internato de Miss Fitzroy a esses seis príncipes,
ordenando-lhes que se casassem com as princesas e as
levassem de volta para casa.
Mas quando os príncipes chegaram ao Seleto
Estabelecimento de Ensino para Filhas de Monarcas
Respeitáveis, a escola estava fechada e um cartaz na
janela dizia que a agradável residência poderia ser alu-
gada a preço módico, com ou sem a mobília. As frutas
de cera ainda brilhavam na sala de visitas e atraíam a

28
atenção de quem olhava pelos vidros empoeirados da
janela. Os seis príncipes olharam e ficaram encantados
com a mobília, e o toque refinado dos trabalhos ma-
nuais atraiu-os como um ímã. Resolveram ficar na
casa, mas tomavam suas refeições no palácio do rei,
atendendo a seu insistente convite.
O Rei Fortunatus contou aos príncipes a terrí-
vel história do desaparecimento de todas as alunas do
Seleto Internato e cada um deles jurou por sua espada
e por sua honra que encontraria a princesa a quem
fora destinado casar-se; caso contrário, morreria em
sua missão. Pois, naturalmente, cada um dos príncipes
deveria casar-se com uma princesa específica, cujo
nome lhe havia sido passado em uma carta com ins-
truções. Assim, não havia como cometer qualquer
engano.
A primeira noite que os príncipes passaram na
agradável residência mobiliada transcorreu calmamen-
te, assim como a segunda, a terceira, a quarta, a quinta
e a sexta; mas, na sétima noite, quando os príncipes
estavam jogando pega-varetas na sala de aula — aque-
le jogo em que as varetas verdes valem 5 pontos cada
uma, as azuis, 10 pontos, as amarelas, 15, as verme-
lhas, 20, e a preta, 50 —, repentinamente ouviram
uma voz que não pertencia a nenhum deles. A voz
dizia: — Abram a África!
Os príncipes olharam para todos os cantos e
não viram ninguém. Eles não haviam estudado nada
sobre viagens de exploração e não poderiam “abrir a
África”, mesmo se quisessem.
— Ou então cortem caminho pelo Istmo do
Panamá — disse a voz novamente.

29
Mas nenhum dos seis príncipes havia estudado
engenharia.
— Cortem a China, então! — gritou a voz, de-
sesperada.
— Mais parece o fantasma de um jornal do
Partido Conservador — disse um dos príncipes.
E então, de repente, deram-se conta de que a
voz vinha de um dos dois globos pendurados em
molduras no fundo da sala de aula; a voz vinha de
dentro do globo terrestre.
— Estou aqui dentro — disse a voz. — Não
consigo sair! Por favor, corte o globo em qualquer
lugar e deixe-me sair! Mas insisto que a rota africana é
o melhor lugar para cortar!
O Príncipe Primus cortou a África ao meio
com a sua espada, e de dentro do globo saiu metade
do corpo do Professor de Magia, cambaleante.
— Minha outra metade está no outro globo —
disse ele, apontando para o globo celeste. — Tire mi-
nhas pernas de lá...
Mas o Príncipe Secundus disse: — Espere um
pouco. — A que o Príncipe Tertius acrescentou: —
Por que o senhor está preso aí?
— Fui aprisionado por ter feito nada mais do
que uma pequena e inofensiva magia — disse a meta-
de superior do Professor de Magia.
— Verdade? Bem, talvez não tenha sido tão
inofensiva assim — disse o Príncipe Quartus. — Mas,
de todo modo, não vamos libertar suas pernas ainda.
Estamos procurando um mago competente. Talvez o
senhor possa ser esse mago.
— Mas não estou aqui por inteiro — disse o

30
professor.
— Mas uma porção suficiente está — retrucou
o Príncipe Quintus.
— Preste atenção — disse o Príncipe Sextus —
queremos encontrar nossas seis princesas. Sabemos
exatamente como elas se perderam, não se engane;
mas deixemos o passado no passado. O senhor nos
diz como poderemos encontrá-las e, então, após nos-
sos casamentos, resgataremos suas pernas imediata-
mente.
— Esta minha metade está tão fraca... — disse
a metade do Professor de Magia.
— Nada podemos fazer — retrucaram os prín-
cipes em um tom ameaçador. — Ou o senhor nos
conta onde as princesas estão ou jamais terá sequer
uma perna para apoiar-se!
— Roubem maçãs — disse o professor com
uma voz bem fraca, e, a seguir, desmaiou.
Os príncipes o largaram deitado no chão, entre
as carteiras manchadas de tinta, e foram todos roubar
maçãs. Mas esta não era uma tarefa fácil, pois a For-
tunatus Rex & Cia. havia construído, construído e
construído tantas casas, que macieiras não tinham
simplesmente onde brotar naquelas partes do campo
que haviam sido “comidas” pela incorporadora.
Finalmente, os seis príncipes perguntaram ao
Príncipe Denis onde ele conseguia maçãs quando que-
ria comê-las. E Denis disse:
— A velha senhora que mora no topo do Mon-
te Clover tem macieiras em seu terreno de sete acres e
também em seu terreno de quinze acres; mas vocês
terão de enfrentar uma feroz buldogue nos sete acres

31
de terra, pois eu mesmo já roubei todas as maçãs dos
outros quinze acres de terra.
— Tentaremos, então, os sete acres de terra —
disseram os príncipes.
— Muito bem, mas saibam que serão enforca-
dos se forem pegos. Sendo assim, como eu os estou
envolvendo nisso, vou acompanhá-los, e não aceito
um “não” de modo algum! A caminho!
Como vemos, Denis era um príncipe jovem,
mas com grande noção de honra, pois acreditava que
ninguém devia colocar a vida de outras pessoas em
perigo se não estivesse junto delas, além do quê, ele
nunca teria roubado maçãs se isto não fosse tão peri-
goso quanto liderar bravos soldados numa batalha.
E assim os príncipes tiveram de concordar. Na
noite seguinte, Denis passou pela janela de seu quarto
e desceu às escondidas usando uma corda que impro-
visou amarrando todas as meias que sua mãe havia
tricotado para ele. Os seis príncipes esperavam-no sob
a janela e lá se foram todos para o pomar no topo do
Monte Clover.
Escalaram o muro pelo canto mais fácil, e Mar-
tha, que era uma buldogue muito bem treinada e sabia
reconhecer um príncipe, simplesmente abanou seu
rabo respeitosamente e desejou-lhes boa sorte.
Os príncipes caminharam sorrateiramente so-
bre a grama coberta de sereno e olharam árvore por
árvore, mas não havia maçã alguma em nenhuma das
árvores.
Entretanto, quando se aproximaram do centro
do pomar, viram uma árvore com o tronco feito de
cobre, os galhos de latão e as folhas de prata. E dela

32
pendiam sete lindas maçãs douradas.
E então cada um dos príncipes pegou uma ma-
çã dourada, sem fazer qualquer barulho, e foram-se
todos embora, ansiosos para falar com o meio-
Professor de Magia e saber qual o próximo passo a ser
dado. Nenhum deles duvidava que o meio-professor
havia dito a verdade, pois se para ter suas pernas de
volta seria preciso dizer a verdade, ninguém contaria
uma mentira.
Saíram do pomar o mais silenciosamente que
conseguiram, cada um levando uma maçã dourada em
sua mão, mas, enquanto caminhava, o Príncipe Denis
não conseguiu resistir ao desejo de dar uma mordida
em sua maçã. Abriu bem sua boca para dar uma bela
mordida, mas, no instante seguinte, urrou de dor, pois
sua maçã era dura como pedra e o pobre jovem prín-
cipe havia quebrado todos os seus dentes de leite.
Em um acesso de raiva, ele atirou a maçã para
longe e, um segundo depois, a velha senhora correu
para fora de sua casa, gritando. Martha ladrou, o Prín-
cipe Denis urrou de dor e a cidadezinha toda acordou.
Os seis príncipes foram presos e ficaram na torre sob
forte vigilância. Denis foi posto em liberdade devido à
sua idade e também por ter perdido todos os dentes,
o que já era uma punição severa o suficiente até mes-
mo para quem rouba maçãs.
Na manhã seguinte, o rei estava sentado na
Corte de Justiça, tendo à sua frente a velha senhora e
os príncipes. Após ouvir atentamente toda a narrativa,
ele disse:
— Meus caros rapazes, espero que me perdo-
em. Hospitalidade é uma coisa, mas não posso ignorar

33
as severas leis deste país; simplesmente não posso
cometer um ato inconstitucional por uma ofensa tão
grande como esta. Todos serão enforcados amanhã
pela manhã.
Os príncipes estavam envergonhados, mas
também desesperados. Não querendo tomar nenhuma
atitude impensada, pediram para ver Denis e, assim,
disseram-lhe o que deveria fazer.
Denis foi então até a residência mobiliada que
já havia sido um Seleto Estabelecimento de Ensino
para Filhas de Monarcas Respeitáveis. A porta estava
trancada, mas Denis sabia como entrar na casa, pois
certa vez, durante as férias, sua irmã, a Princesa Daisy,
havia lhe contado todos os segredos da casa. Subiu ao
telhado e desceu pela chaminé da sala de aula.
Ao sair pela lareira da sala de aula, encontrou o
meio-Professor de Magia ainda estatelado no chão,
contorcendo-se e resmungando tristemente.
— O que devemos fazer agora? — perguntou
Denis.
— Roubar maçãs — respondeu o meio-
professor num sussurro fraco. — Por favor, liberte
minhas pernas! Tente abrir o globo celeste cortando a
Ursa Maior; ou talvez a Via Láctea permita que as mi-
nhas pernas saiam mais facilmente.
Mas Denis, apesar de jovem, era um príncipe
esperto.
— Não antes de encontrarmos as princesas
perdidas — disse ele. — E, então, o que deveremos
fazer?
— Roubem maçãs, já disse — respondeu o
meio-professor a contragosto. — Sete maçãs, sete

34
beijos. Cortem as maçãs. Oh, vá-se embora daqui,
deixe-me morrer em paz, menino desalmado! Oh,
como doem os pinos e agulhas em minhas pernas!
Denis saiu correndo em direção ao Pomar de
Sete Acres no topo do Monte Clover. E lá estavam os
seis príncipes pendurados na macieira. O carrasco ha-
via ido para sua casa para jantar e não havia ninguém
mais ali. Mas... os príncipes não estavam mortos!
Denis subiu rapidamente na árvore e cortou
com seu canivete as cordas que prendiam os prínci-
pes. (Lembre-se: várias histórias falam nesses canive-
tes, e agora você percebe a utilidade que eles podem
ter!)
Os príncipes caíram ao chão e, quando reco-
braram os sentidos, Denis contou-lhes o que havia
feito.
— Mas por que cortaste as cordas? — pergun-
taram os príncipes. — Estávamos tendo sonhos tão
felizes!
— Ora — disse Denis, fechando e guardando
o canivete —, nunca vi príncipes mais mal-
agradecidos! — Ele virou-lhes as costas e começou a
afastar-se. Mas os príncipes correram atrás dele, agra-
deceram-lhe pelo que fizera e contaram-lhe sobre o
sonho que haviam tido: todos caminhando de braços
dados com as mais encantadoras e gentis princesas do
mundo.
— Acredito — retrucou Denis — que sonhar
com as princesas não seja o bastante. Precisais encon-
trar as princesas que já vos foram designadas, e o mei-
o-Professor de Magia disse: “Roubem maçãs.”
— Não há mais maçãs para roubar — respon-

35
deram-lhe os príncipes. Mas, quando olharam nova-
mente, havia outras maçãs douradas na árvore de on-
de tinham sido retirados, como antes.
Então, mais uma vez, cada um colheu uma ma-
çã, e Denis escolheu também a sua. Ele imaginou que
aquela maçã poderia ser menos dura que a primeira.
Da última vez, ele havia escolhido a maior maçã, mas,
agora, colhera a menor de todas.
— Sete beijos — gritou ele, e beijou sua pe-
quena maçã dourada.
Cada um dos príncipes beijou sua maçã. O som
dos beijos parecia o vento da noite sussurrando se-
gredos para as folhas das árvores. E, como esperáva-
mos, ao dar o sétimo beijo cada um dos príncipes
descobriu que não mais segurava uma maçã em sua
mão, mas sim os dedos de uma encantadora princesa.
E Denis viu-se segurando a mão de sua irmãzinha, a
Princesa Daisy. Ele ficou tão feliz que imediatamente
prometeu dar-lhe seu porquinho-da-índia e toda a sua
coleção de selos estrangeiros.
— Como te chamas, oh, minha gentil e encan-
tadora dama? — perguntou o Príncipe Primus.
— Sexta — respondeu-lhe sua princesa. E foi
assim que os príncipes perceberam que haviam beija-
do as maçãs erradas, pois cada ura estava com uma
princesa cujo nome era diferente daquele mencionado
em sua carta de instruções. Secundus havia beijado a
maçã que libertara Quinta, e Tertius, a maçã que liber-
tara Quarta... e assim por diante. Todos os casais esta-
vam trocados!
Mas nenhum deles queria trocar de consorte!
Então, a velha senhora saiu de sua casinha, olhou-os

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carinhosamente, riu e disse:
— Presumo que estejais satisfeitos com vossas
consortes.
— E estamos — disseram todos ao mesmo tem-
po —, mas o que farão nossos pais?
— Eles deverão aceitar vossas escolhas — res-
pondeu a velha senhora —, é o que pais sensatos fari-
am.
— Acredito que deveis fazer as combinações
certas — disse Denis. — Eu sou o único que ficou
com a princesa certa, isto porque não fui guloso e co-
lhi a menor das maçãs.
A princesa mais alta mostrou-lhe uma marca
vermelha em seu braço, que seus pequenos dentes
haviam mordido duas noites atrás. Todos riram!
Mas a velha senhora falou, séria:
— Meu querido Denis, eles não podem trocar
de princesas, pois uma vez que um príncipe colhe
uma maçã dourada que tenha uma princesa presa den-
tro de si e beija a maçã até libertá-la, nenhuma outra
princesa no mundo será a escolha certa para ele.
E, enquanto falava, a velha senhora foi se tor-
nando mais jovem, mais jovem e mais jovem, até que,
ao proferir as últimas palavras, ela chegou à idade de
cinqüenta e cinco anos. E, surpresa! Adivinhem: ela
era Miss Fitzroy Robinson!
Todas as alunas fizeram-lhe mesuras respeito-
sas e Miss Fitzroy permitiu-lhes que beijassem seu
rosto.
E, a seguir, todos caminharam felizes até a re-
sidência mobiliada que havia sido um dia um Seleto
Estabelecimento de Ensino. Após o meio-Professor

37
de Magia ter jurado sobre sua honra que jamais prati-
caria magia novamente e que exerceria outra profissão
respeitável, os príncipes libertaram suas pernas do
globo celeste e as devolveram para ele. Após recom-
por suas duas metades, despediu-se e retirou-se, deci-
dido a viver honestamente como um encanador até a
sua morte.
— Meus talentos não serão desperdiçados —
comentou ele. — Um pouco de abracadabra é sempre
útil na maioria das profissões.
Após receber a feliz notícia, o rei indagou de
Miss Fitzroy Robinson qual a recompensa que ela
gostaria de receber por ter trazido as princesas de vol-
ta. E ela disse, simplesmente:
— Faça a terra voltar a ser verde, Majestade.
E, assim, a Fortunatus Rex & Cia. passou a a-
tuar em demolições e reflorestamento, dando um fim
às lagartas amarelas que havia construído. Hoje, aque-
la área toda está quase tão verde e bela como era antes
de a Princesa Daisy e de as seis outras princesas do
Seleto Estabelecimento terem sido transformadas em
maçãs.
— Miss Fitzroy Robinson foi muito engenhosa
em aprisionar aquele professor nos dois globos —
comentou a rainha. — Esta é a verdadeira vantagem
de se ter aulas com os melhores mestres.
— Certamente — disse o rei. — Eu sempre di-
go que nada pode dar muito errado quando se tem as
melhores referências!

* **

38
E. (Edith) NESBIT escreveu diversos contos
de fantasia para literatura juvenil nos primeiros anos
do século XIX. Suas histórias, entrelaçando a magia e
o sobrenatural, exerceram grande influência sobre vá-
rios escritores posteriores. Um exemplo é J. K. Ro-
wling, com seus livros sobre a Escola de Magia e Bru-
xaria Hogwarts e seus mestres, entre eles a Professora
McGonagall e Madame Hooch, que ensinaram Harry
Potter e seus colegas a voar. Assim como Rowling -
que decidiu usar suas iniciais em suas histórias em vez
de seu nome de batismo —, Edith Nesbit também
começou a escrever para sustentar sua filha. Ela partiu
de suas próprias experiências na infância para escrever
a trilogia (entre 1899 e 1904) sobre as crianças da fa-
mília Bastable: Os caçadores de tesouros, O livro dos dragões
e Os caçadores de tesouros em férias. Em seguida, Edith
Nesbit escreveu The Phoenix and the Carpet (1904) e As
crianças do caminho de ferro (1906), que a tornaram famo-
sa e foram transformados em filmes e adaptados para
a televisão. A magia e magos aparecem em diversas
outras histórias desta escritora, principalmente em The
House of Arden ( 1908), quando um feitiço cria uma
maravilhosa criaturinha, Mouldiwarp, que mais parece
um porquinho e ajuda um grupo de crianças a encon-
trar um tesouro enterrado; e também em The Magic
City, publicado em 1910, e sua seqüência, The Magic
World, publicado em 1912.

39
O SHOW DE MÁGICAS DO DOU-
TOR CADAVEREZZI
Philip Pullman

O Doutor Cadaverezzi, com sua esvoaçante capa bor-


dada com os signos do Zodíaco, ou é um mágico muito habilido-
so ou um habilidoso charlatão. Natural da Itália, ele afirma
que é Doutor em Filosofia pela Universidade do Rio de Janeiro
e apregoa que seu “Baú de Maravilhas”, coberto de projeções,
manivelas, oculares e sinais místicos, é uma das dez maravilhas
do mundo. Segundo o Doutor Cadaverezzi, seu baú é capaz de
realizar uma enorme variedade de fenômenos mágicos, espiritu-
ais e artísticos como nunca se viu em qualquer outro lugar do
mundo. Cadaverezzi está Jazendo uma turnê e, no momento,
encontra-se em Karlstein, uma pequena aldeia localizada às
sombras do castelo do maligno Conde Karlstein. O doutor está
para Jazer uma apresentação no Dia de Finados — a noite em
que Zamiel, o aterrorizante Demônio Caçador de Humanos, e
sua matilha de assustadores cães de caça estão à solta, procu-
rando por vítimas — e, convenhamos, uma data em que as
pessoas mais sensatas ficam dentro de suas casas. Esta narrati-
va da apresentação do doutor na estalagem — O Caçador
Jovial — é uma das mais emocionantes, se não das mais en-
graçadas descrições de um show de mágicas que você jamais lerá
em outro livro...

* **

40
A apresentação do Doutor Cadaverezzi fora
marcada para as nove horas. Mas à medida que o
grande relógio de madeira da estalagem apinhada de
gente tiquetaqueava e seus ponteiros se aproximavam
da hora marcada, a atmosfera do local ficava mais e
mais abafada. O excitamento dos presentes havia
formado uma nuvem tão compacta que mal se podia
ver através dela — bem, isto poderia ser também em
conseqüência da fumaça dos lustrosos cachimbos de
porcelana chinesa que muitos dos clientes estavam
pitando. Homens silenciosos com seus rostos averme-
lhados, com ar de enorme satisfação, como se estives-
sem pregando uma peça da qual ninguém mais suspei-
tava; homens vindos de muito longe, com roupas que
mais pareciam fantasias de alguma peça teatral; ho-
mens robustos, que andavam devagar como velhos
ursos; homens com peles morenas e agitados como
macacos; homens que não sabiam falar uma palavra
em alemão e que tinham de apontar e fazer mímicas
para explicar o que queriam; homens com seus rostos
pálidos vindos das grandes florestas do Norte; ho-
mens cora seus rostos bronzeados e brilhantes olhos
estreitos oriundos das montanhas cobertas de neve —
todos eles tinham vindo a Karlstein para o concurso
de tiro ao alvo. E havia também o povo da aldeia: os
garotos roucos, camaradas de Peter, espertos e cheios
de si próprios, flertando com Elise e Hannerl; crianças
com grandes olhos espantados, agarradas às saias de
suas mães; homens de meia-idade que bebiam seu vi-
nho em pequenos goles enquanto conversavam ani-
madamente com seus companheiros; homens mais
velhos que cuidadosamente se recolheram a um canto

41
para fumar seus cachimbos tranqüilamente, reconhe-
cendo neste pequeno prazer a maior de suas ambições
no momento.
E quando toda essa gente se acomodou na es-
talagem — Elise e Hannerl ao fundo, cada qual com
uma toalha de chá sobre um ombro, braços cruzados,
tendo um atencioso caçador postado atrás de si no
caso de precisarem de escolta para o lado de fora du-
rante algum intervalo que o Doutor Cadaverezzi pu-
desse fazer durante a sua apresentação; e, finalmente,
Ma e eu, em pé sobre uma mesa próxima da janela
coberta de vapor —, e se encontrava a postos aguar-
dando o show prestes a começar, foi que tive a pri-
meira das duas surpresas que me aguardavam naquela
noite.
Quando a porta da estalagem se abriu, a pri-
meira figura a aparecer foi Herr Arturo Snivelwurst,
cabelo emplastrado napoleonicamente, espirrando e
assoando seu pequeno nariz, brilhante e vermelho
como uma cereja. Em seguida, veio a sombria, porém
altaneira, figura de meu empregador, o Conde Karls-
tein. Ele dirigiu seu olhar para mim e ficou parado
próximo o bastante para que eu pudesse cuspir em
seu olho, caso quisesse fazê-lo. Mas ele, acreditem,
fez-me uma reverência! Ele tinha esse incômodo ar de
irônico triunfo, tão caracteristicamente seu como o
odor inconfundível de cravo-da-índia. A pequena
multidão ficou repentinamente em silêncio; aqueles
que o conheciam, porque o conheciam, e aqueles que
não o conheciam, porque algo nele lhes dizia que de-
veriam conhecê-lo.
— Boa-noite — disse ele com sua voz ríspida,

42
com aquele tom metálico que imprimia quando estava
tentando parecer genial. — Tenho ouvido maravilhas
sobre esse Doutor Cadaverezzi e aqui estou para pres-
tigiar sua apresentação.
Snivelwurst conseguiu convencer alguém a ce-
der seu lugar e, em menos de dois minutos, o Conde
Karlstein, tendo a seu lado seu secretário, com seu
“funga-espirra-funga”, estava sentado e servido de
vinho.
Então o Doutor Cadaverezzi, que provavel-
mente havia assistido a toda aquela cena por detrás de
uma cortina, começou sua apresentação.
A primeira coisa que se ouviu foi a poderosa
batida de um gongo chinês e a seguir, misturados à
fumaça de ópio, invisíveis dragões dançaram no ar. As
cortinas foram então abertas para os lados, e ali, ao
lado de seu baú, banhado por uma brilhante e sinistra
luz, estava o doutor em pessoa — curvando-se ligei-
ramente em uma mesura e fixando seus olhos brilhan-
tes em todos os presentes, com um único e abrangen-
te olhar. Houve uma explosão de aplausos gratuitos,
que ele nada havia feito para merecer, a não ser ficar
ali parado, imponente e impressionante; mas algumas
pessoas simplesmente são assim — atraem mais aten-
ção se limparem suas próprias botas do que outra pes-
soa que atravesse uma corda esticada por sobre uma
jaula cheia de tigres famintos. Magnetismo — e nada
mais do que isto.
Ele levantou sua mão e os aplausos interrom-
peram-se imediatamente.
— Meus amigos: vocês, sem dúvida alguma,
devem ter visto muitos artistas mambembes canas-

43
trões — cartomantes, atores em trajes surrados fin-
gindo ser Arlequim, Júlio César ou Hamlet —, certa-
mente já os viram. Por favor, não me confundam com
esse tipo de gente! Passei a vida inteira em minha soli-
tária busca do conhecimento e tive o privilégio de
servir a muitos monarcas. Fui o médico pessoal do
Grande Mogul na Índia e o conselheiro pessoal do
nobre Alfonso, rei do Brasil. Tenho arriscado minha
vida explorando regiões distantes da Terra, onde ne-
nhum outro viajante jamais pisou. E os frutos de to-
das as minhas pesquisas, os tesouros que passei reu-
nindo durante toda a minha vida, estão aqui, neste
Baú místico.
O gongo soou novamente; a platéia calou-se.
— Inicialmente — disse o doutor — devo a-
presentar-lhes meu assistente pessoal do mundo dos
espíritos, um demônio da Lapônia. Springer, venha
até mim! — Ele estalou os dedos. Uma nuvem de fu-
maça saiu do Baú acompanhada de um zumbido alto,
e então algo pequeno, vermelho, Chifrudo e ágil voou
para fora por uma das aberturas do Baú e pousou de-
licadamente em sua mão.
E então ele foi bruscamente interrompido.
— Nada além de uma boneca impulsionada
por uma mola! — exclamou com escárnio o Conde
Karlstein. — O homem é uma fraude!
Um ou dois homens na platéia assentiram. O
Doutor Cadaverezzi parecia prestes a explodir de tão
bravo que estava. Pensei, por um momento, que ele
iria perder a atenção do público, pois ele costuma ser
bem difícil de se agradar, como já descobriram vários
artistas a duras penas. Mas eu não conhecia o Doutor

44
Cadaverezzi. Repentinamente, um sorriso de inocên-
cia infantil espalhou-se por seu rosto, como uma ex-
pressão de genuína satisfação.
— A seguir — disse ele — demonstrarei um
truque que tem desconcertado platéias de Paris ao
Peru. Alguém poderia, por gentileza, emprestar-me
um relógio?
— Sim! Sim! — gritou-lhe o Conde Karlstein.
— Use este aqui! O Doutor Cadaverezzi fingiu não
querer pegar o relógio do Conde Karlstein, mas como
ninguém mais lhe ofereceu outro relógio, teve de acei-
tá-lo.
— Vocês verão — disse o conde como que an-
tecipando uma vitória, enquanto o Doutor Cadave-
rezzi voltava para a frente de seu improvisado palco
— que ele fará de conta que esmagou o relógio. Já vi
este truque antes!
O Doutor Cadaverezzi segurou no alto um
grande lenço vermelho e colocou o relógio dentro
dele.
— Seu relógio está aqui, meu lorde — disse ele
embrulhando o relógio com o lenço.
— É claro que está! — retrucou o conde, pare-
cendo estar se divertindo muito.
— Agora pegarei esta maleta bastante pesada
— disse o doutor, levantando-a — e esmagarei o re-
lógio em pedaços.
— Vamos ver, faça isso mesmo — disse o
conde, rindo alto. — Eu sei como esse truque é feito,
Snivelwurst! Vi Goldini fazer isso. Sim, vamos, esma-
gue-o!
— Com sua permissão, então — disse o Dou-

45
tor Cadaverezzi educadamente —, vou bater em seu
relógio com a maleta e quebrá-lo em pedaços.
— Vamos logo, vamos logo! — O Conde Kar-
lstein incitava-o impacientemente. O Doutor Cadave-
rezzi colocou o relógio embrulhado no lenço sobre
uma pequena mesa a seu lado e bateu nele muitas ve-
zes com a pesada maleta.
Enquanto o mágico batia no relógio, o conde
explicava à audiência que o relógio não estava lá afinal
— ele estava escondido na manga de Cadaverezzi, que
logo faria o relógio aparecer do outro lado da sala no
chapéu de alguém. Snivelwurst assentia radiante e es-
fregava suas mãos antecipando a humilhação de Ca-
daverezzi; e Ma, ao meu lado, estava quase perdendo
as estribeiras com o comportamento estraga-prazeres
do Conde Karlstein.
Finalmente, quando o Doutor Cadaverezzi jul-
gou que já havia batido no lenço o suficiente, pegou-o
e quase que humildemente entregou-o ao Conde Kar-
lstein, que estava agora gargalhando.
— Seu relógio, meu lorde — disse ele.
— Há, há! Meu relógio! Você não acha que eu
caí neste truque, acha? — disse o Conde Karlstein,
que pegou o lenço e levou-o ao alto, mostrando-o
para todos. — Vamos dar uma olhada então — disse
ele, desembrulhando o lenço. Sua expressão de triun-
fo, entretanto, foi se esvaindo à medida que começou
a retirar do lenço as engrenagens, molas, pedaços de
vidro quebrado e de prata amassada, e uma longa cor-
rente de relógio.
— O que é isto? — indagou ele.
— Seu relógio, como expliquei — disse o Dou-

46
tor Cadaverezzi. — Eu disse que iria esmagá-lo, e es-
sas damas e cavalheiros são testemunhas de que o se-
nhor me disse para ir em frente e esmagá-lo.
Murmúrios de confirmação e várias cabeças as-
sentindo vieram do público, que não gostava do con-
de.
— Mas... mas...
— Então foi o que fiz, nada além do que o se-
nhor autorizou.
O Doutor Cadaverezzi deu de ombros, com re-
signada educação; mas um certo brilho em seus olhos
me dizia, assim como a todo o público presente, que
ele tinha vencido sua pequena contenda.
Mas o melhor ainda estava por vir. Quando o
Conde Karlstein se sentou, ruborizado pela raiva, e se
virou para olhar Snivelwurst, o doutor mostrou a to-
dos os presentes um outro lenço vermelho, idêntico,
tirando de dentro dele... o relógio do Conde Karlstein!
Cadaverezzi olhou para o relógio com indisfarçado
orgulho e guardou-o no bolso interno de seu paletó,
dando-lhe um tapinha de satisfação. Este gesto levou
apenas um segundo, mas o suficiente para ser perce-
bido por todos, que caíram em estrondosa gargalhada
de aprovação — o que somente contribuiu para irritar
ainda mais o Conde Karlstein, pois este não sabia do
que todos estavam rindo.
E assim o Doutor Cadaverezzi pôde continuar
sua apresentação, após ter decididamente conquistado
o público. Todos sabiam, agora, que ele era um trapa-
ceiro — daqueles que se você der as costas ele rouba-
rá algo de seu bolso; mas isto parecia não fazer qual-
quer diferença agora que todos estavam de ótimo

47
humor. E ele era tão bom no que fazia, deleitando-se
com seus próprios truques, que ninguém conseguia
parar de olhar — todos estavam adorando a apresen-
tação! E assim pudemos descobrir para que serviam
todos aqueles estranhos botões e manivelas do Baú.
Havia um, por exemplo, que fazia o “Cromoeidofusi-
com” funcionar, e, assim, Hans Pfafferl foi literalmen-
te arrancado da primeira fila por seus camaradas e
forçado a colar seu rosto no ocular enquanto o Dou-
tor Cadaverezzi girava uma manivela e um pequeno
moinho de vento no alto do Baú começava a girar,
produzindo estranhos zumbidos e assobios. O doutor
nos assegurou que Hans estava assistindo a uma pro-
jeção da Batalha de Bodelheim com efeitos musicais,
óticos e balísticos — e quando Hans finalmente afas-
tou-se do Baú, cambaleando, seu rosto estava pintado
com um caleidoscópio colorido que lhe dava a apa-
rência de um selvagem vindo diretamente de uma das
terras distantes que o Doutor Cadaverezzi dizia ter
explorado.
Mas Hans não conseguia entender o porquê da
gargalhada geral.

* **

PHILIP PULLMAN tornou-se um dos mais


conhecidos escritores do mundo com seus romances
de fantasia A bússola dourada (1995), A faca sutil (1997)
e A luneta âmbar (2000), que formam a trilogia Frontei-
ras do universo. A história da aventura épica dos jovens
Lyra e Eric é repleta de figuras mágicas -
particularmente as encantadoras bruxas que voam pa-

48
ra além do Norte Ártico - e foi descrita pelo roteirista
de Monty Python, Terry Jones, como “uma daquelas
criações maravilhosas da literatura de fantasia”. Philip
Pullman mora em Oxford, Inglaterra, e durante mui-
tos anos, assim como Roald Dahl, escreveu seus ro-
mances em uma edícula no quintal de sua casa. Já re-
cebeu inúmeros prêmios, incluindo o Whitbread Book
of the Year, e possui uma legião de fãs. Seu sucesso está
muito, muito distante de seus primeiros anos como
professor secundário em Oxford, onde seu prazer na
escrita resumia-se a escrever uma única peça por ano
para a escola. A história do Doutor Cadaverezzi faz
parte de uma dessas peças, intitulada Conde
Karlstein, da qual Philip Pullman se recorda com
carinho - tanto pelo baú mágico construído com bas-
tante engenhosidade quanto pelo entusiasmo de seus
alunos que encenaram a peça. Uma das cenas mais
vividas em sua memória o faz lembrar-se de Ben
Brandon, o garoto que fez o papel de Cadaverezzi:
“A uma certa hora, ele deveria puxar uma cor-
da, e um pequeno demônio sairia voando do Baú de
Maravilhas e atravessaria o palco com um zumbido, a
toda velocidade. Na última apresentação, Ben puxou a
corda - e nada aconteceu. Com uma reação bastante
audaciosa, ele se virou para a platéia e disse: ‘Com cer-
teza, ele é completamente invisível para os tolos de
espírito’.”

49
A ESPINHA DE PEIXE MÁGICA
Charles Dickens

Grandmarina é uma velha senhora de pavio curto e lín-


gua ferina, que sempre usa ricos vestidos de seda e perfume de
alfazema. Gosta de ser chamada de Fada Boa, e ninguém du-
vida de seus poderes mágicos para se tornar invisível e para
conjurar encantamentos que ajudam crianças que realmente
precisam de sua ajuda. A família do Rei Watkins — no mo-
mento são dezenove filhos, mas sempre tem mais um a caminho
— é um bom exemplo das pessoas que ela gosta de ajudar,
principalmente a filha mais velha, Alicia, cuja vida se resume
em cuidar de todos os irmãos. Grandmarina dá um presente a
Alicia: uma espinha de salmão, com a recomendação de sempre
limpá-la até que brilhe como madrepérola. Mas esta espinha de
peixe é mágica e realizará um pedido — um único pedido, e
somente quando feito na hora certa. Esta história é cheia de
surpresas, e quem já leu um outro livro de Charles Dickens,
David Copperfield, provavelmente identificará semelhanças
entre o falante e imprevidente Wilkins Micawber e sua família
e o clã do Rei Watkins.

* **

Era uma vez um rei e sua rainha: ele, o mais vi-


ril dos homens, e ela, a mais adorável das mulheres. O
rei, obviamente, trabalhava para o governo. O pai da
rainha tinha sido um médico em outra cidade.

50
Eles tinham dezenove filhos, e sempre havia
mais um a caminho. Dezessete desses filhos cuidavam
do bebê, e Alicia, a mais velha, cuidava de todos, cujas
idades iam de sete anos a sete meses.
Mas vamos retomar nossa história.
Certo dia, quando o rei estava indo para o seu
gabinete, ele parou na peixaria para comprar um quilo
de salmão para entregar em casa. Mas, note-se, salmão
sem a cauda, conforme a rainha, uma dona de casa
exemplar, havia pedido. O Sr. Pickles, da peixaria, fa-
lava muito rápido:
— Certamente, senhor, alguma coisa a mais?
Tenha um bom dia.
O rei seguiu para o gabinete, preocupado que
estava. Além de minguado, seu pagamento, efetuado a
cada três meses, ainda demoraria muito para chegar e
vários de seus queridos filhos estavam crescendo mui-
to depressa e perdendo suas roupas. Não havia cami-
nhado muito quando o rapaz de entregas do Sr. Pic-
kles o alcançou, correndo, e disse:
— O senhor não viu a velhinha que estava na
peixaria?
— Velhinha? — perguntou o rei. — Não vi
nenhuma velhinha. Mas o rei não poderia ter visto
nenhuma velhinha, pois ela estava invisível para ele.
Mas não para o menino de entregas. Provavelmente
ela havia permanecido invisível para o rei com receio
de que ele estragasse suas roupas, pois ele havia espir-
rado bastante água para cá e para lá enquanto mexia
nos linguados na peixaria.
Neste momento, a velha senhora alcançou-os,
subindo a rua com seus passinhos Saltitantes. Ela usa-

51
va um vestido de tafetá de seda da melhor qualidade e
podia-se sentir seu perfume de alfazema.
— Rei Watkins I, se não estou enganada? —
perguntou a velha senhora.
— Watkins — retrucou o rei —, esse é o meu
nome.
— Se não me engano, pai da linda Princesa A-
licia? — continuou ela.
— E de dezoito outras lindas crianças — res-
pondeu o rei.
— E o senhor está indo para o seu gabinete —
declarou a velha senhora a seguir.
O rei imediatamente imaginou tratar-se de uma
fada, pois como poderia ela saber disso?
— Isso mesmo — disse a velha senhora, pare-
cendo ter lido seus pensamentos. — Eu sou a Fada
Boa Grandmarina. Preste atenção: quando o senhor
voltar para casa, para jantar, ofereça à Princesa Alicia
um pouco do salmão que o senhor acabou de com-
prar.
— Pode não lhe cair bem... — retrucou o rei.
A velha senhora enfureceu-se com a idéia ab-
surda, e o rei, alarmado, humildemente pediu-lhe des-
culpas.
— Falam-se muitas bobagens sobre isso ou a-
quilo não cair bem — disse a velha senhora, com o
maior desprezo que conseguiu expressar. — Não seja
guloso, pois presumo que o senhor queira o salmão
todo para si.
O rei abaixou sua cabeça, envergonhado, e
prometeu não mais usar aquele tipo de desculpa.
— Não mesmo — disse a Fada Grandmarina

52
—, e comporte-se! Quando a linda Princesa Alicia
aceitar um pedaço do salmão, como eu acredito que o
fará, o senhor verá que ela deixará uma espinha de
peixe no prato. Diga-lhe para secar a espinha, esfregá-
la e poli-la até que brilhe como madrepérola, e cuidar
da espinha como sendo um presente meu para ela.
— Isso é tudo? — perguntou o rei.
— Não seja impaciente, senhor! — retrucou a
Fada Grandmarina, novamente chamando sua aten-
ção rispidamente. — Não corte as pessoas antes de
terminarem o que têm a dizer. Isto é típico de vocês,
adultos. Sempre fazendo isso!
O rei novamente abaixou sua cabeça e prome-
teu não mais fazer aquilo.
— Não mesmo — disse a Fada Grandmarina
—, comporte-se! E diga à Princesa Alicia que lhe en-
vio com carinho este presente mágico, que só poderá
ser usado uma vez; mas nessa única vez, esta espinha
de peixe mágica lhe dará o que quer que ela peça,
CONTANTO QUE ELA FAÇA ESSE PEDIDO
NA HORA CERTA. Este é o recado. Não esqueça.
O rei começou a perguntar: — Posso saber a
razão... de por que a Fada ficou absolutamente furio-
sa?
— O senhor vai se comportar, não vai? — per-
guntou ela, batendo com o pé no chão. — A razão
disso, a razão daquilo, ora! Vocês sempre querem sa-
ber a razão! Não tem razão! Haja paciência! Estou
cansada das “razões” dos adultos!
O rei ficou realmente assustado com a explosão
da velha senhora, pediu desculpas por tê-la ofendido e
prometeu não mais perguntar a razão de nada.

53
— Comporte-se então — disse a velha senhora
— e não pergunte mais.
E com estas palavras Grandmarina desapareceu
e o rei andou, andou e andou até seu gabinete. Lá ele
escreveu, escreveu e escreveu até chegar a hora de ir
para casa. No jantar, muito educadamente ele ofere-
ceu um pedaço de salmão à Princesa Alicia, conforme
a fada lhe havia pedido. E depois de realmente apreci-
ar o salmão, a princesa deixou uma espinha do peixe
em seu prato, novamente conforme a fada havia dito.
Então, o rei deu o recado à princesa, que cuidadosa-
mente secou, esfregou e poliu a espinha até ela brilhar
como madrepérola.
Na manhã seguinte, quando a rainha tentou le-
vantar-se, ela disse:
— Oh, meu Deus, meu Deus, a minha cabeça,
a minha cabeça! — E desmaiou.
A Princesa Alicia, que estava entrando no quar-
to naquele instante para perguntar sobre o café da
manhã, ficou muito preocupada quando viu a rainha,
sua mãe, naquele estado, e tocou a sineta para chamar
Peggy — a velha camareira real. Mas, lembrando onde
estava a garrafa de sais, subiu numa cadeira, pegou a
garrafa, subiu novamente na cadeira ao lado do leito
real e fez sua mãe cheirar os sais. A seguir, pulou da
cadeira, pegou um pouco de água, subiu na cadeira
mais uma vez, Umedeceu a testa da rainha e, para en-
curtar a nossa história, quando a velha camareira real
apareceu, ela disse à princesa: “Mas que menina esper-
ta! Eu mesma não teria feito melhor!”
Mas o pior ainda estava por vir. A rainha con-
tinuou muito doente, por um longo tempo. E durante

54
todo esse longo tempo a Princesa Alicia conseguiu
manter os jovens príncipes e princesas entretidos e
quietos, trocou suas roupas, cuidou do bebê real, fer-
veu água para o chá, esquentou sopa, varreu o chão,
medicou e cuidou da rainha; enfim, fez tudo que havia
de ser feito, e estava sempre muito, muito, muito o-
cupada. Infelizmente, não havia mais empregados no
palácio, por três razões: o rei tinha pouco dinheiro,
não havia a menor perspectiva de um aumento em
seus rendimentos, e porque o dia do minguado paga-
mento trimestral estava ainda muito longe, como uma
pequena estrela no céu.
Mas onde estava a espinha de peixe mágica no
dia em que a rainha desmaiara? Ora, no bolso da
Princesa Alicia. Ela quase a usara para reavivar a rai-
nha, mas então pensara melhor, guardara de volta no
bolso e decidira usar a garrafa de sais.
Depois de a rainha ter recobrado os sentidos e
caído num sono reparador, a Princesa Alicia subiu
correndo as escadas para contar um segredo a uma
grande amiga e confidente, que era uma duquesa. To-
dos acreditavam tratar-se de uma boneca, mas somen-
te a Princesa Alicia sabia que ela era uma duquesa de
verdade.
Esse segredo era sobre a espinha de peixe má-
gica. Apesar de a princesa já ter confidenciado seu
segredo à duquesa, novamente se ajoelhou junto à
cama onde ela estava deitada, completamente vestida
e bem acordada, e sussurrou novamente o segredo ao
seu ouvido, que meramente sorriu e assentiu. Outras
pessoas poderiam supor que a duquesa nunca tivesse
sorrido e assentido, mas ela sempre o fazia, embora

55
somente a princesa pudesse ver.
A seguir, a princesa desceu correndo as escadas
para ver sua mãe. Ela sempre ficava de vigília no quar-
to da mãe, mas todas as noites, enquanto sua mãe es-
tivera doente, ela e o rei ficaram em vigília juntos. E
toda noite o rei lhe dirigia aquele olhar reprovador,
pensando por que ela não havia usado a espinha de
peixe mágica. Tão logo a princesa sentia esse olhar do
rei sobre si, ela corria escada acima, sussurrava nova-
mente seu segredo ao ouvido da duquesa, acrescen-
tando: “Eles, os adultos, acham que nós, jovens, nun-
ca temos uma razão ou um sentido para as coisas!” E
a duquesa, a despeito de sua alta posição e fino trato,
dava uma piscadela marota para a princesa.
— Alicia — disse o rei certa noite, quando a
princesa foi desejar-lhe boa noite.
— Sim, papai?
— Onde está a espinha de peixe mágica?
— Em meu bolso, papai.
— Pensei que você a tivesse perdido.
— Oh, não, papai!
— Talvez esquecido dela?
— De maneira alguma, papai.
Um dia, o detestável cachorrinho pug do vizi-
nho — aquele de focinho achatado que famílias aris-
tocráticas gostam de ter — avançou em um dos prín-
cipes quando este voltava da escola, dando-lhe tama-
nho susto que o príncipe passou sua mão pelo vidro
de uma janela e a mão sangrou, sangrou, sangrou.
Quando as outras dezessete crianças reais viram a
mão sangrar, sangrar, sangrar, tomaram tamanho sus-
to também que se puseram a gritar, gritar e gritar ao

56
mesmo tempo. Mas a Princesa Alicia pôs suas mãos
sobre as dezessete bocas reais, uma após a outra, e
convenceu-os a calarem-se para não incomodar a rai-
nha doente. A seguir, a princesa colocou a mão ma-
chucada do príncipe em uma bacia com água fria, en-
quanto os outros, vejamos: dezessete pares de olhos
são trinta e quatro olhos, menos quatro, então, trinta
olhos reais assustados observavam-na procurar cacos
de vidro na mão do príncipe. Satisfeita em não encon-
trar nenhum pedacinho de vidro, ela pediu a dois
príncipes que, apesar da pouca idade, eram corpulen-
tos e tinham pernas gorduchas: “Tragam-me a sacola
de retalhos; eu preciso cortar, costurar e improvisar
uma atadura.” Então, esses dois príncipes, aos puxões
e safanões, trouxeram a sacola de trapos e Alicia sen-
tou-se no chão com uma grande tesoura, uma agulha
e linha, e cortou, costurou e improvisou uma atadura,
e a ajustou à mão machucada do príncipe, vítima do
aristocrático mas mal-educado cãozinho pug. Quando
terminou, viu que o rei a observava da porta.
— Alicia.
— Sim, papai?
— O que você estava fazendo?
— Cortando, costurando e improvisando uma
atadura, papai.
— Onde está a espinha de peixe mágica?
— Em meu bolso, papai.
— Pensei que você a tivesse perdido.
— Oh, não, papai!
— Talvez esquecido dela?
— De maneira alguma, papai!
A princesa, então, correu escada acima, relatou

57
à duquesa o que havia ocorrido, contou seu segredo
novamente, e a duquesa balançou seus cachos e sorriu
com seus lábios rosados.
Em outro dia, o bebê caiu embaixo da grade do
fogão a lenha. Os outros dezessete príncipes e prince-
sas estavam acostumados a cair embaixo da grade ou
das escadas, mas não o bebê, que ficou com o rosto
inchado e ganhou um olho roxo. O bebê caiu ao es-
corregar do colo da Princesa Alicia enquanto ela esta-
va sentava em frente ao fogão, usando um amplo a-
vental de tecido grosseiro, descascando nabos para a
sopa do jantar. E por que será que a princesa estava
fazendo aquilo? Ora, porque a cozinheira havia fugido
naquela manhã com seu amado, um soldado alto mas
que vivia bebendo. Então, os dezessete príncipes e
princesas, que choravam por qualquer coisa que acon-
tecia, choraram e fizeram um estardalhaço. Mas a
Princesa Alicia (que também chorou um pouco) con-
seguiu acalmá-los para que não perturbassem a rainha,
que já estava se recuperando, dizendo:
— Segurem essas línguas, seus macaquinhos
mal-educados, todos vocês, enquanto eu examino o
bebê!
Após ter examinado o bebê e não ter encontra-
do nenhum osso quebrado, a princesa colocou uma
colher fria no olho roxo, acariciou-lhe as faces e ele
dormiu em seus braços.
Então, ela falou para os dezessete príncipes e
princesas:
— Estou com receio de pôr o bebê no berço,
pois, se acordar, ele sentirá dor. Sejam bonzinhos e
deixarei que sejam os cozinheiros de hoje.

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Eles pularam de alegria e começaram a fazer
chapéus de cozinheiro com jornais velhos. Então, pa-
ra um a princesa deu o sal, e para outro, a cevada; para
um terceiro, as ervas, e assim por diante com os na-
bos, as cenouras, as cebolas, a caixa de temperos, até
que todos se sentiram cozinheiros de verdade, atare-
fados, enquanto ela continuava sentada no meio da
cozinha, envolta no amplo e grosseiro avental, ninan-
do o bebê. Finalmente a sopa ficou pronta e, quando
o bebê acordou, sorrindo como um anjo, Alicia pediu
à princesa que era mais calma para segurá-lo e reuniu
todas as outras crianças num canto afastado da cozi-
nha enquanto ela virava a panela com a sopa fervente
em uma tigela. Conhecendo os danadinhos dos seus
irmãos, ela tinha receio de que a sopa espirrasse e eles
se queimassem. Quando viram a sopa e sentiram o
aroma de um manjar dos deuses, todos bateram pal-
mas. Imitando-os, o bebê também bateu palmas; e sua
felicidade e sua carinha gozada, como se estivesse
com dor de dente, fez todos os príncipes e princesas
rirem. Então a Princesa Alicia disse:
— Riam e comportem-se, e depois do jantar
vamos fazer um ninho para o bebê num canto do
chão; ele vai se sentar no ninho e assistir a uma dança
de dezoito príncipes e princesas.
Os príncipes e princesas ficaram tão felizes
com a idéia que tomaram toda a sopa, lavaram toda a
louça e afastaram os móveis. Colocaram seus chapéus
de cozinheiro e, tendo ao centro a Princesa Alicia u-
sando o amplo avental da cozinheira que havia fugido
com seu amado, que era um soldado alto que bebia
muito, todos dançaram a dança dos dezoito cozinhei-

59
ros para o bebê angelical, que assim esqueceu seu ros-
to inchado e seu olho roxo e soltou gritinhos de ale-
gria.
Mais uma vez a Princesa Alicia viu o Rei Wat-
kins I, seu pai, observando-a da porta. Ele perguntou:
— O que você estava fazendo, Alicia?
— Cozinhando e improvisando, papai.
— Que mais você fez?
— Entreti as crianças, papai.
— Onde está a espinha de peixe mágica?
— Em meu bolso, papai.
— Pensei que você a tivesse perdido.
— Oh, não, papai!
— Talvez se esquecido dela?
— De maneira alguma, papai!
O rei suspirou tão profundamente, pareceu tão
triste e sentou-se tão pesadamente, apoiando a cabeça
nas mãos e os cotovelos na mesa da cozinha que havia
sido empurrada para o canto, que os dezessete prínci-
pes e princesas saíram da cozinha, pé ante pé, deixan-
do o rei sozinho com a Princesa Alicia e o bebê ange-
lical.
— Qual é o problema, papai?
— Eu sou um homem muito, muito pobre,
minha filha.
— O senhor não tem dinheiro nenhum, papai?
— Nenhum, minha filha.
— Não há nenhuma maneira de conseguir al-
gum dinheiro, papai?
— Nenhuma — disse o rei. — Tentei todas as
maneiras possíveis, todas.
Ao ouvir estas palavras, a Princesa Alicia levou

60
sua mão ao bolso onde guardava a espinha de peixe
mágica.
— Papai — disse ela —, se tentamos de todas
as maneiras possíveis, isto significa que nos esforça-
mos ao máximo, certo?
— Sem dúvida, Alicia.
— Se nos esforçamos ao máximo, papai, e
mesmo assim isso não deu resultado, então acho que
esta é a hora certa de pedir ajuda. — Este era o segre-
do da espinha de peixe mágica, que Alicia aprendera
pelas palavras da Fada Boa Grandmarina, e as quais
ela tantas vezes havia sussurrado ao ouvido de sua
amiga duquesa.
A seguir, tirou do bolso a espinha de peixe má-
gica que tantas vezes havia secado, esfregado e polido
até brilhar como madrepérola, beijou-a e fez seu pedi-
do: que aquele fosse o dia do pagamento do pai. E
imediatamente aquele dia tornou-se o dia do pagamen-
to, e o dinheiro caiu como chuva pela chaminé, indo
parar no meio do chão da cozinha.
E isto não foi nem metade do que aconteceu,
pois logo a seguir a Fada Boa Grandmarina chegou ao
palácio em sua carruagem puxada por quatro pavões,
com o menino de entregas do Sr. Pickles montado na
parte de trás, seu cabelo penteado, com meias altas
como se usava na época, uma bengala incrustada com
pedras preciosas e um buquê de flores. Ele pulou da
carruagem com seu chapéu de pontas em uma das
mãos, fez uma mesura (totalmente mudado, como
que por um encantamento) e ofereceu sua mão a
Grandmarina para esta descer da carruagem. E lá es-
tava ela, em seu rico vestido de tafetá de seda e seu

61
perfume de alfazema, abanando-se com um leque re-
luzente.
— Alicia, minha querida — disse a elegante fa-
da —, como está você? Espero que muito bem. Dê-
me um beijo.
A Princesa Alicia abraçou-a e, então, Grandma-
rina virou-se para o rei e perguntou, um tanto rispi-
damente:
— O senhor se comportou bem?
O rei respondeu que esperava que sim.
— Eu acredito que agora o senhor saiba a razão
pela qual minha afilhada aqui — disse ela beijando a
princesa novamente — não usou a espinha de peixe
mágica antes — disse a fada.
O rei concordou timidamente, abaixando a ca-
beça.
— Ah! Mas o senhor não sabia antes! — disse a
fada.
O rei concordou timidamente, abaixando ainda
mais a cabeça.
— O senhor precisa de mais alguma razão? —
perguntou a fada.
O rei disse que não, arrependido.
— Comporte-se, então, e seja um bom homem
— disse a fada —, e viva feliz daqui para a frente!
Fazendo um gesto com seu leque, Grandmari-
na fez a rainha aparecer ricamente vestida e os dezes-
sete príncipes e princesas entraram desfilando roupas
novas dos pés à cabeça, ainda com o vinco de roupas
recém-compradas. A seguir, a fada tocou a Princesa
Alicia com seu leque, e o amplo e grosseiro avental
voou longe, revelando um deslumbrante vestido de

62
noiva, com uma coroa de flores de laranjeira e um véu
prateado. No instante seguinte, o rústico armário da
cozinha tornou-se um magnífico guarda-roupa de
madeira nobre, com ferragens em ouro e um espelho,
repleto de vestidos de todos os tipos, todos para Ali-
cia e exatamente do seu tamanho. O bebê angelical
entrou logo depois, andando sozinho, e seu rosto e
seu olho estavam quase sarados. Grandmarina pediu,
então, que fosse apresentada à duquesa, e quando a
duquesa foi trazida para baixo, ambas cumprimenta-
ram-se efusivamente.
A duquesa e a fada conversaram um pouco em
voz baixa, e então Grandmarina disse em alto e bom
som:
— Eu imaginei que ela lhe havia contado.
Grandmarina virou-se para o rei e a rainha, e disse-
lhes:
— Vamos agora procurar pelo Príncipe Certa-
inpersônio. Contamos com a Vossa Presença Real na
igreja, precisamente em meia hora.
Ela e a Princesa Alicia entraram na carruagem,
e o menino de entregas do Sr. Pickles ajudou a duque-
sa a subir e a sentar-se defronte às duas. A seguir, o
menino levantou os degraus dobráveis da carruagem e
aboletou-se na parte traseira, e os pavões levantaram
vôo com suas lindas caudas abertas.
O Príncipe Certainpersônio estava sentado,
comendo calmamente uma barra de cereal, esperando
seus noventa anos chegarem. Quando viu pela janela
os pavões puxando a carruagem se aproximarem, teve
a sensação de que algo muito incomum estava para
acontecer.

63
— Príncipe — disse Grandmarina —, trago-lhe
sua noiva. No momento em que a fada proferiu estas
palavras, o rosto do Príncipe Certainpersônio come-
çou a rejuvenescer, seu cabelo voltou a ser encaraco-
lado e um chapéu com uma pena pousar em sua cabe-
ça com a leveza de um pássaro. A convite da fada, ele
entrou na carruagem e cumprimentou a duquesa, que
já conhecia.
Na igreja, aguardavam os parentes e amigos do
príncipe, assim como os parentes e amigos da Prince-
sa Alicia, os dezessete príncipes e princesas, o bebê e
mais os vizinhos. O casamento foi tão lindo como se
pode imaginar. A duquesa foi a dama de honra e a-
companhou o casamento do púlpito, sentada sobre
uma almofada colocada na cadeira.
Após a cerimônia, Grandmarina ofereceu a to-
dos um maravilhoso banquete, e as mais finas iguarias
e bebidas foram servidas. O bolo de casamento, com
dois metros de diâmetro, estava ricamente decorado
com laços de cetim e caramelados lírios brancos e pra-
teados.
Depois de Grandmarina erguer um brinde ao
amor duradouro do jovem casal e de o Príncipe Certa-
inpersônio proferir seu discurso, todos gritaram “Hip,
hip, hip, urra!”, e Grandmarina anunciou ao rei e à
rainha que, a partir de então, o rei receberia oito pa-
gamentos por ano, exceto nos anos bissextos, quando
receberia dez. Ela voltou-se em seguida para Certain-
persônio e Alicia, e disse:
— Meus queridos, vocês terão trinta e cinco fi-
lhos, todos lindos e saudáveis. Dezessete deles serão
meninos, e dezoito, meninas. Todos terão cabelos en-

64
caracolados. Nenhum terá sarampo ou coqueluche.
Ao escutar estes bons presságios, todos grita-
ram novamente “Hip, hip, hip, urra!”
— Só nos resta agora — continuou Grandma-
rina, concluindo — dar um fim à espinha de peixe.
Ela, então, tomou a espinha das mãos da Prin-
cesa Alicia, e a espinha, como que por encantamento,
foi parar na garganta daquele detestável cachorrinho
pug dos vizinhos. Ele engasgou, sufocou e morreu no
estertor da última convulsão.

* **

CHARLES DICKENS é um dos mais famo-


sos escritores britânicos. Entre seus inúmeros livros -
vários dos quais foram escritos para o público juvenil
-destacam-se muitos em literatura de fantasia, os quais
influenciaram vários escritores modernos, como Phi-
lip Pullman e J. K. Rowling. Várias histórias de fan-
tasmas podem ser encontradas em seu primeiro livro
de sucesso, Pickwick Papers (1836-1837), assim como
em A Christmas Carol, publicado em 1843, que se tor-
nou um dos livros favoritos de várias gerações de lei-
tores. Trata-se de uma narrativa empolgante de um
capítulo em especial da vida de Ebenezes Scrooge,
quando este é assombrado pelos espíritos de Natais
passados, do presente e do futuro. O melhor da litera-
tura de fantasia de Dickens pode ser encontrado na
consagrada antologia Contos c/e Natal, publicada em
1852. “A espinha de peixe mágica” (The Magic Fish-
bone) foi inicialmente publicado em 1853, em uma re-
vista norte-americana, Our Young Folks, tendo Dickens

65
assinado seu trabalho sob o pseudônimo de “Miss
Alice Rainbird, de sete anos de idade”. Acredito que
este conto consegue captar de maneira brilhante como
pensam as mentes jovens. O que nos intriga ainda
mais é o fato de que na época em que escreveu este
conto Dickens era casado, tinha dez filhos, sua esposa
estava doente e ele precisava desesperadamente de
dinheiro.

66
O MAGO DE KARAKOSK
Peter S. Beagle

Lanak não se parece em nada com um mago convencio-


nal, apesar de todos dizerem que é capaz de “jazer mágicas
excepcionais”. De baixa estatura, corpulento e começando a
ficar calvo, seus olhos possuem uma expressão bondosa e suas
mãos dão um caloroso, mas firme, aperto. Lanak é de origem
humilde;filho de um camponês do vilarejo de Karakosk, deu-se
conta ainda criança de seus poderes especiais. Começando por
um simples feitiço para dar um sabor mais forte à cerveja de seu
pai e outro para acalmar um garanhão que tinha sido picado
por uma aranha, ele foi se aperfeiçoando até fazer os cavalos da
fazenda trabalharem duas vezes mais, pomares terem uma co-
lheita duas vezes maior, chegando até afazer parar de nevar
para que a primavera antecipasse sua chegada em seu pequeno
vilarejo. A maioria dos magos e feiticeiros vive sozinha, mas
não Lanak, que morava com sua esposa e usava seus poderes
para ajudar os vizinhos. Mas quando a rainha soube de suas
façanhas e decidiu que ele deveria tornar-se seu mago pessoal,
Lanak percebeu que precisaria utilizar todos os seus poderes
para evitar que sua vida se transformasse para sempre...

* **

Hã? O quê? Já é a minha vez? Não, eu não es-


tava dormindo — eu jamais poderia ser tão indelicado
com alguém que estivesse contando uma história. Só
estava pensando, pensando quanto tempo havia pas-

67
sado desde a última vez em que havia me sentado as-
sim, à luz de velas, para conversar com amigos — ou
com qualquer pessoa, na verdade —, ouvindo alguém
contar sobre feitos maravilhosos ou até mesmo sobre
coisas banais. Minha vida tem sido um tanto monóto-
na e receio que tenha pouco a contar que não entedi-
asse os mais jovens ou provocasse alguma crítica dos
mais velhos — e esta noite certamente não gostaria
que nenhuma dessas duas alternativas acontecesse.
Peço vossa paciência e perdão — prometo que esta
história será curta e deixarei uma boa parte da noite
para que Gri, Chashi e a Senhora Kydra aqui presen-
tes possam contar suas histórias. Estou tão ansioso
quanto qualquer um dos presentes para chegar logo
ao fim de minha pobre narrativa.
Então, vamos lá. Era uma vez, há muito e mui-
to tempo, no vilarejo de onde venho, um mago que
era capaz de realizar magias excepcionais. Surpresos?
E esses olhares irônicos, uns para os outros? Mas é
verdade, alguém pode ter habilidades realmente ex-
cepcionais, principalmente em magia. Aqui vai um
pequeno comentário para aguçar vossa imaginação:
que bem pode fazer um mago que só é capaz de tra-
zer tempestades que inundam nossa imaginação? Se
vós, senhoras, pedísseis somente por um pequeno
feitiço para manter vossos maridos fiéis e atenciosos,
qual a utilidade de um feitiço que tornará vossos ho-
mens capachos, grudados aos vossos calcanhares to-
dos os santos minutos do dia, até que sentísseis von-
tade de gritar, implorando por um único e breve mo-
mento só vosso? Não, se o assunto é magia, prefiro
sempre um feitiço mais simples, mais humilde. Acre-

68
ditai em mim, sei do que estou falando.
Retomando, o mago de quem eu estava falando
era um homem humilde sob todos os aspectos. Nas-
cido em uma família simples, filho de um camponês;
e, apesar das evidências de seus poderes terem se ma-
nifestado quando ainda era criança, como acontece
com a maioria dos magos, não havia a menor possibi-
lidade desse mago ter recebido qualquer treinamento
adequado sobre o uso desses poderes. Mesmo que
tivesse tido acesso aos pergaminhos de Am-Nemil ou
de Kirisinja, como os que estão preservados até hoje
na grande biblioteca de artes mágicas de Cheth
na’Bata, tenho grandes dúvidas se ele teria mesmo
conseguido lê-los. Ele era simplesmente um campo-
nês com um dom nato, e nada mais. Seu nome era
Lanak.
Como ele era? Bem, se vossa idéia de um mago
é de alguém alto, magro e autoritário, com um manto
negro esvoaçante sobre os ombros, sinto muito desa-
pontar-vos com o porte físico de Lanak. Ele era baixo
e corpulento, como todos os homens de sua família,
e, assim como eles, com uma tendência à calvície pre-
coce. Mas seu olhar era bondoso, segundo me disse-
ram, e ele era muito educado, gentil, e tinha mãos
grandes, bronzeadas, mas delicadas.
Insisto neste ponto, pois é muito importante: Lanak
era um homem humilde, sem qualquer grande ambi-
ção — o que é pouco comum entre magos, indepen-
dentemente de sua origem. Ele morava em Karakosk,
vilarejo conhecido por seus cavalos, belos e fortes ga-
ranhões, bons para o trabalho, e conhecido também
pela cerveja preta. Lanak tinha bons conhecimentos

69
sobre cavalos e cerveja, e, na verdade, o primeiro fei-
tiço que realizou com sucesso foi tornar a cerveja a-
guada, que seu pai produzia em casa, em uma cerveja
mais encorpada. O segundo foi acalmar um garanhão
que havia sido picado por uma aranha. Lanak era um
tanto introspectivo e jamais teria pedido a Deus outra
coisa para sua vida além de seu dom mágico. Levava
sua vida exercendo a profissão de mago da cidade,
uma profissão que considerava em nada diferente da
vida do padeiro ou do sapateiro local. Pensando bem,
a profissão de sapateiro também teria sido boa para
ele.
Mas a magia tem essa característica de não dei-
xar um mago viver só para si. A magia está necessari-
amente cercada de alguma ambição, mesmo se essa
ambição não for a do próprio mago. Nosso Lanak
seguiu essa vida simples, mas feliz, por muitos anos,
respeitado por todos que o conheciam — ele até
mesmo se casou com uma mulher do vilarejo, e olhe
que eu posso contar nos dedos os magos que se casa-
ram. Magos e feiticeiros simplesmente não se casam;
vivem muito solitários, é assim que as coisas são. Mas
Lanak nunca se viu como um mago, esse é o ponto
principal. Ele se via como um homem comum de Ka-
rakosk.
E se o seu dom tivesse sido tão modesto quan-
to ele, provavelmente teria vivido toda a sua vida na
mais perfeita tranqüilidade, lançando seus feitiços ca-
seiros sobre pomares e fornos, encontrando crianças
ou gado perdidos sem que considerasse uma coisa
mais importante do que a outra. E por que não seria?
Fazendo chover um pouco aqui e acolá. Mas infeliz-

70
mente essa não era a sua sina.
Ele era, em poucas palavras, bom demais no
que fazia. Começais a perceber o ponto agora? Os
velhos cavalos que ele tocava e para os quais sussurra-
va seus feitiços não somente se recuperavam, mas
também passavam a trabalhar duas vezes mais do que
haviam trabalhado em seus melhores dias. E os poma-
res sobre os quais lançava seus encantamentos produ-
ziam duas vezes mais frutas, tanto que os pequenos
fazendeiros de Karakosk começaram, pela primeira
vez na história do vilarejo, a exportar suas colheitas
para cidades como Bitava, Leishai e até mesmo Fors
na’Shachim. Lembro-me de um inverno em especial,
quando Lanak lançou ura feitiço só para diminuir a
nevasca, para as crianças poderem brincar e para que
seus sapatos durassem mais — e o que aconteceu? A
primavera chegou a Karakosk dois meses antes de os
primeiros brotinhos verdes despontarem no solo de
qualquer outro lugar do país.
E as pessoas começaram a maravilhar-se. O
primeiro foi o senhor feudal local — sempre me es-
queço de seu nome, esperem que, já, já, me lembro —
que desceu de seu castelo para o vilarejo acompanha-
do de toda a sua tropa de soldados. Sabeis do que es-
tou falando, provavelmente vós também tendes um
senhor, seja ele um Visitante Noturno ou um Protetor
de algum tipo, não estou certo? Então podeis imagi-
nar qual foi a reação do povo de Karakosk quando
seu senhor e sua tropa chegaram ruidosamente à pra-
ça do mercado meses antes da época do pagamento
dos impostos. Havia algo em torno de quarenta ho-
mens na tropa, todos falando alto, ignorantes e bru-

71
tos, exceto seu comandante, que não era nada igno-
rante, mas conseguia ser duas vezes mais bruto do que
os outros. Seu nome era Bourjic, lembro-me agora.
Bom, esse tal de Bourjic exigiu ser apresentado
ao grande mago sobre quem todos estavam comen-
tando; mas quando o povo do vilarejo relutou em ir
buscar Lanak, temendo que ele fosse acusado como
um bandido qualquer, Bourjic imediatamente agarrou
o filho do chefe do vilarejo, colocou-o sobre sua sela
e ameaçou cortar seu pescoço na frente de todos se o
mago não fosse trazido à sua presença em cinco mi-
nutos. Nada podia ser feito — Bourjic havia feito a-
meaças semelhantes no passado e havia cumprido to-
das —, e então o próprio chefe do vilarejo atravessou
correndo toda a cidade até a fazenda de Lanak, e en-
controu-o no estábulo, onde este estava mais uma vez
testando as formações dos fogos de artifício que pre-
parava para o festival do “Dia dos Ladrões”. O show
de fogos de artifício de Lanak era motivo de orgulho
da região num raio de quarenta quilômetros, mas La-
nak achava que sempre podia melhorá-lo de alguma
maneira, esforçando-se um pouco mais.
Quando Lanak compreendeu o perigo que o fi-
lho do chefe do vilarejo corria, ficou vermelho como
pimenta diante de tamanho ultraje. Apesar de ter o
rosto sempre corado, ninguém o havia visto ficar tão
vermelho antes. Ele então passou o braço pelo ombro
do chefe do vilarejo, proferiu três palavras, e zapt! —
eles se viram na praça do mercado, cara a cara com
um estupefato Bourjic, que tentava controlar seu ca-
valo, que estava ainda mais assustado do que ele.
Bourjic disse “Eia!”, ao que seu cavalo respondeu

72
com um “Hiiiiiü”, e então Lanak disse o nome do
menino e mais uma outra palavra. O menino imedia-
tamente desapareceu da sela de Bourjic e reapareceu
nos braços de seu pai, sem qualquer arranhão, e nos
seis meses seguintes foi motivo de inveja de todos os
seus colegas de escola. Lanak pôs as mãos nos quadris
e esperou que o cavalo de Bourjic se acalmasse.
Eu já disse que todos os homens de Bourjic e-
ram tão burros como uma porta? Pois bem, um deles
lançou uma flecha em direção a Lanak, a qual voava
perigosamente em direção a seu olho esquerdo. Lanak
estava debruçado sobre o menino, certificando-se de
que este não sofrera qualquer dano, e de repente La-
nak pegou a flecha em pleno vôo, sem sequer virar
sua cabeça para cima. A seguir, beijou a flecha — algo
muito estranho, não achais? — e lançou-a de volta ao
homem de Bourjic. A flecha se enrolou em volta do
pescoço desse homem como um laço de uma corda,
mas não apertado o suficiente para estrangulá-lo, so-
mente para fazê-lo cair de seu cavalo e estatelar-se no
chão, contorcendo-se e gritando. Bourjic olhou para o
homem, uma vez apenas, e a seguir ignorou-o.
— Exatamente o homem que eu queria ver —
disse ele com um grande sorriso, mostrando seus den-
tes bem brancos. Bourjic era um nobre de nascença,
afinal, e sabia ser educado quando lhe convinha.
— Trago grandes notícias, jovem Lanak. Deves
vir imediatamente comigo para o castelo e trabalhar
para mim.
Lanak retrucou-lhe: — Eu não sou jovem, vos-
so castelo é um chiqueiro em ruínas e eu trabalho para
o povo de Karakosk e ninguém mais. Deixai-nos em

73
paz agora.
Bourjic levou a mão à espada, mas conteve-se,
mantendo o amplo sorriso estampado no rosto.
— Vamos conversar — disse ele. — Pois se eu
tivesse de escolher entre viver como o mago pessoal
de um nobre e ver a minha cidade, o meu povo, os
meus amigos arderem até virar cinzas — bem, eu ten-
deria a usar meu bom senso. Mas esta seria a minha
escolha, não é?
Lanak apontou com a cabeça o homem con-
torcendo-se no chão. Bourjic escarneceu do homem:
— Ah, mas isso me faz querer que trabalhes pa-
ra mim ainda mais! E eu consigo tudo que quero, por
isso sou quem sou. Sendo assim, vinde, flutuai até a
garupa do meu cavalo ou usai tua mágica para conse-
guir um cavalo qualquer, e vamos embora.
Lanak balançou a cabeça e rumou para outro
lado. Bourjic novamente manteve-se em silêncio, mas
então ouviu-se um som por detrás dele que fez Lanak
virar-se no mesmo instante. Era o som de quarenta
homens riscando metal, todos ao mesmo tempo, e
acendendo tochas que tinham trazido preparadas, pre-
sas às suas selas. Todos do vilarejo ficaram estarreci-
dos e começaram a gritar. Alguns corajosos, mas sem
qualquer arma a seu dispor, pegaram torrões de terra,
prontos para jogá-los. Mas Lanak manteve seus cal-
mos olhos azuis em Bourjic e disse-lhe apenas:
— Eu disse para deixar-nos em paz.
— E assim o farei — respondeu o senhor feu-
dal com o mesmo sorriso de antes. — Quer me a-
companhes ou não. A decisão é tua, Lanak, mas agora
só tens dez segundos.

74
Lanak manteve-se impassível. Bourjic suspirou,
um ato teatral ostensivo, e disse:
— Que assim seja. — Ele virou-se na sela e
deu um sinal para seus homens.
— Para trás — disse Lanak para o povo do vi-
larejo de Karakosk. Eles se dispersaram para obedecê-
lo enquanto os soldados de Bourjic levantavam suas
tochas, um sorriso maligno a iluminar-lhes as faces.
Lanak cruzou os braços, curvou-se como em uma
saudação respeitosa à terra e começou a entoar uma
canção que mais parecia uma canção de ninar. Bourjic,
repentinamente alarmado, gritou para seus homens:
— Queimem tudo! Agora!
Mas, no mesmo instante em que proferiu estas
palavras, o chão sob seus pés começou a se mexer, a
se esticar e a “resmungar” como um homem velho
que está pondo a coberta de lado para levantar-se da
cama. Fendas abriram-se no chão; alguns pedaços do
solo caíram nas profundezas do abismo que se for-
mou, mas outros pedaços ergueram-se, aumentando
de tamanho, como ondas vindas de um mar tempes-
tuoso que avançam sobre a costa. O cavalo de Bourjic
retrocedeu patinando para afastar-se do abismo que se
abriu entre Bourjic e Lanak, enquanto todos os solda-
dos lutavam para controlar seus cavalos, e as pessoas
do vilarejo agarravam suas crianças, agarravam-se u-
mas às outras ou a qualquer coisa que parecesse sólida
naquele momento. O chão continuou a rachar-se em
todas as direções, como um réptil trocando de pele:
cânions vermelhos, rubros, abriam-se por todo lado e
viam-se labaredas de fogo contorcendo-se nas pro-
fundezas. As casas e lojas em volta da praça desmoro-

75
naram, rachando-se em pedaços, e o som que vinha
das profundezas dos cânions, como o urro de uma
fera em agonia, tornava-se cada vez mais alto. Até o
próprio Lanak levou as mãos aos ouvidos.
Bourjic e sua tropa, antes uma unidade amea-
çadora, também se separaram como peças de um
quebra-cabeças desfeito, incitando seus cavalos para
longe daquela hecatombe a um galope bem mais rápi-
do do que quando chegaram ao vilarejo. Era difícil
dizer quem gritava mais, os homens ou suas montari-
as. E então, à medida que os soldados desapareciam, a
terra pouco a pouco começou a acalmar-se, e as pes-
soas do vilarejo olhavam estupefatas as rachaduras
fecharem-se como cortes que se cicatrizam sem deixar
qualquer marca, as casas e lojas recompondo-se aos
seus aspectos anteriores, magicamente intactas, e a
praça do mercado de Karakosk voltando a ser aquele
querido pedaço de chão poeirento que sempre fora. E
lá estava Lanak, no centro da praça, apagando algu-
mas tochas que restavam, limpando o suor da testa e
assoando seu nariz.
— Pronto — disse ele. — Nada como um bom
truque de ilusionismo para nos manter livres de Bour-
jic por algum tempo. Fico feliz em ter podido ajudar,
mas preciso ir para casa agora. — E virou-se para to-
mar seu caminho; mas, ao ver os rostos admirados de
seus conterrâneos, tornou a explicar:
— Uma ilusão, nada mais do que isso. Mas os
fogos de artifício do festival serão bem reais.
Mas todos os cidadãos de Karakosk tinham vis-
to um dos soldados de Bourjic — aquele cuja flecha
havia se tornado um laço enrolado em seu pescoço —

76
cair direto para as profundezas de um abismo, o qual
se fechou sobre ele segundos depois. E se aquilo tinha
sido uma ilusão, ninguém poderia provar.
Como tenho certeza que podeis imaginar, todo
esse incidente tornou a vida de Lanak bem mais difí-
cil. Apesar de Bourjic provavelmente ter o mesmo
interesse de Lanak em manter o ocorrido em segredo,
a história espalhou-se, sendo contada em vilarejos e
cidades muito distantes da pacata Karakosk. O povo
de Sirit Byar fez uma canção sobre o que aconteceu
no vilarejo, antes conhecido por sua cerveja preta, eu
acho; Lissi Jair tenho certeza que fez, e era uma can-
ção muito boa. E houve outras também.
E a rainha, em seu castelo negro em Fors
na’Shachim, ficou sabendo de todas essas canções.
Algum de vós sabe alguma coisa sobre a rainha
de Fors? Não? Eu já imaginava, não haveria qualquer
razão para que sou-bésseis. Bem, sempre há uma rai-
nha com um poder um pouco maior do que o senhor
herdeiro de Fors na’Shachim e das províncias e cida-
des vizinhas — incluindo Karakosk e outros vilarejos
menores. A maioria das rainhas não prestou qualquer
atenção a Karakosk ao longo dos anos; uma ou duas,
para a surpresa de todos, foram extremamente bon-
dosas e até um tanto visionárias; mas várias provaram
ser realmente malignas. A rainha de que falo, infeliz-
mente, pertencia à última categoria.
O que não quer dizer que ela não fosse inteli-
gente. Pelo contrário, ela, era, sem dúvida, a mais inte-
ligente rainha que Fors na’Shachim jamais tivera, e
notais que Fors na’Shachim era uma cidade realmente
antiga. Ela prestou bastante atenção a essas canções

77
sobre Karakosk, tanta atenção quanto prestava a seus
ministros e espiões; e dizem por aí que ela andava en-
tre seus súditos, ministros e espiões usando os mais
diferentes disfarces para ficar sabendo de coisas que
muitos deles não lhe contavam. Quando a rainha a-
chou que já havia escutado o suficiente sobre o mago
Lanak da pequena Karakosk, ela ordenou a seu mais
corajoso capitão, Lorde Durgh: “Traga-me esse ma-
go.”
Muito bem, esse Lorde Durgh não era nada
bobo e havia escutado as canções também. E ele não
queria que nenhum bufão risse ou cantasse sobre a sua
humilhação como estavam fazendo com Bourjic. En-
tão ele rumou para Karakosk sem qualquer arma, a-
companhado somente por dois de seus mais confiá-
veis e discretos tenentes. Educadamente pediu orien-
tações para chegar até a casa de um homem chamado
Lanak, tocando seu cavalo ao passo mais lento possí-
vel para que os rumores de sua chegada e destino
chegassem a Lanak antes dele. Lorde Durgh tinha
nascido no campo, e assim sabia como as coisas fun-
cionavam.
E quando finalmente estava frente a Lanak no
jardim da casa do mago, ele apeou e curvou-se num
cumprimento formal, obrigando seus homens a faze-
rem o mesmo. E então disse:
— Senhor, venho da parte da rainha em uma
missão de grande urgência para o reino. O senhor te-
ria a bondade de me acompanhar até o castelo?
Obviamente, isso era um truque, e todos nós
aqui percebemos isso claramente. Mas nenhum nobre
havia jamais falado com Lanak nestes termos tão hu-

78
mildes e Lanak simplesmente perguntou:
— Eu poderia saber qual a urgência de Sua Ma-
jestade? — Ao que Lorde Durgh respondeu: — Não
tenho a honra de conhecer tais assuntos —, o que, no
fundo, não deixava de ser verdade. Lanak curvou-se
também em um cumprimento, e foi então avisar sua
esposa, Dwyla, que estava sendo solicitado a prestar
ajuda à rainha, mas que retornaria a tempo para a
“Lua do Sacerdote”, a época em que o povo de Kara-
kosk arava seus campos na primavera. Dwyla colocou
umas poucas roupas em um saco e deu-lhe um beijo
de despedida, fazendo-o prometer que traria alguma
coisa bonita de Fors para sua filhinha.
Uma nova estrada foi aberta naquela região
desde então, mas mesmo assim ainda se levam três
dias a cavalo da praça do mercado de Karakosk até o
castelo negro. Lorde Durgh permitiu-se sugerir a La-
nak que conjurasse um vento que pudesse levá-los
mais rapidamente ao castelo, mas Lanak respondeu
que isso iria assustar os cavalos. Lanak viajou na garu-
pa de Lorde Durgh e, diferentemente dos demais,
gostou muito da viagem.
Deveis lembrar que Lanak jamais havia se afas-
tado de Karakosk mais do que dez quilômetros.
Ao entrarem era Fors na’Shachim e percorre-
rem as ruas calçadas de paralelepípedos, algo que ele
jamais havia visto, Lanak quase ficou com torcicolo
de tanto que virava sua cabeça para olhar em todas as
direções; ele, um desajeitado camponês, que, no en-
tanto, tinha o poder de mandar o inverno embora e
fazer a terra abrir-se sob os pés de bandidos. Ele esta-
va tentando memorizar tudo que via para poder con-

79
tar mais tarde a Dwyla, sua esposa — a praça do mer-
cado, tão grande quanto seu vilarejo inteiro; o lendário
Pomar de Vidro; as divisões dos guardas do castelo da
rainha, com seus uniformes com enfeites de prata, que
passavam e saudavam Lorde Durgh — e só percebeu
que haviam chegado ao castelo negro quando suas
torres já se projetavam sobre sua cabeça. Ele perce-
beu, no entanto, o suspiro de alívio mal disfarçado de
Lorde Durgh quando desmontaram e entregaram seus
cavalos aos cavalariços.
Algum de vós conhece Fors, por acaso? Ah,
vosso pai sim, Senhorita Kydra? Tenho certeza de que
quando vosso pai lá esteve, a cidade não havia muda-
do muito desde a época de Lanak, assim como certa-
mente pouco mudou até hoje. Fors na’Shachim, na
verdade, nunca muda. Todo o seu colorido, todo o
burburinho, os músicos, os acrobatas e as dançarinas
em todas as esquinas, os embusteiros e as moças de
reputação duvidosa dos becos, as carroças onde po-
deis comprar qualquer coisa, desde feno ainda úmido
dos campos até tortas de lampreia saídas do forno —
hum, que delícia! —, mas, mesmo assim, qualquer um
consegue sentir aquele sabor de ferro em tudo, o ferro
do trabalho árduo, o ferro da máscara fria do poder. E
mesmo se esse poder não puder ser percebido fora
dos portões da cidade, garanto-vos que ele é bastante
real em Fors na’Shachim. Já estive lá o suficiente para
senti-lo.
Mas Lanak nunca havia estado em Fors e mos-
trava-se tão encantado com o que via que não conse-
guia perceber que subia obedientemente as escadas,
seu braço esquerdo guiado pela gentil mão de Lorde

80
Durgh, seguido por todos aqueles oficiais com seus
uniformes reluzindo em prata. Ele não foi conduzido
imediatamente à presença da rainha — isso nunca
acontece. Vós entendeis que isso faz parte da aura de
respeito de que toda rainha se cerca. Alguns conse-
guem ter acesso imediato à presença da rainha, mas o
nosso modesto Lanak certamente não era um desses
poucos favorecidos. Não que alguns desses poucos
tenham tido um fim um tanto diferente, eu diria.
Lanak estava bastante satisfeito em ser condu-
zido a seus aposentos na ala que era então chamada
de Torre da Colina, pois das janelas mais altas podia-
se avistar a Serra dos Fantasmas. Mas essa torre foi
rebatizada de Torre do Mago agora. Comida, bebida e
água quente já se encontravam em seus aposentos, e
ele então se lavou, trocou suas modestas roupas de
viagem por algo mais adequado para apresentar-se à
rainha e começou a redigir uma longa carta para envi-
ar a Dwyla. Ele ainda estava escrevendo carta à sua
esposa quando Lorde Durgh veio buscá-lo.
Como é o castelo negro, queres saber, Hrama-
th? Bem, ele é imponente, como podes imaginar, mas
talvez não da maneira que imaginas. Ele foi inicialmen-
te uma fortaleza, na época em que Fors não era mais
do que um posto militar, por isso é negro, pois foi
construído de pedra almuri retirada das pedreiras perto
de Chun. No entanto, todas as rainhas, durante os
últimos quinhentos anos, têm tentado tornar o castelo
mais luxuoso e também mais proibido para seus súdi-
tos. Por isso, há muitas janelas grandes e ricos tapetes,
um sem-número de candelabros, até mesmo em cô-
modos onde não esperaríamos encontrar nada além

81
de uma vela de sebo. Pode-se sempre ouvir música,
como se os músicos estivessem tocando em um cô-
modo um pouco distante — isso é um truque da pe-
dra almurí, nenhuma outra pedra consegue produzir
esse efeito. E, naturalmente, todas as paredes de todos
os cômodos e corredores estão cobertas de pinturas,
mas pinturas de verdade, não só peças de armaduras
enferrujadas — pinturas sobre tela, não sobre casca de
árvore ou madeira virgem, como nós fazemos aqui.
As comidas e bebidas servidas aos convidados da rai-
nha são as melhores que há ao sul das Montanhas
Durli; as damas da corte usam vestidos de seda todos
os dias; as camas são tão macias que podem ser até
macias demais, se puderes imaginar algo assim. Ah,
Hramath, tu darias até o que não conheces para poder
sonhar como é o castelo negro em Fors!
Apesar de todo esse luxo, o castelo, assim co-
mo a cidade, será sempre uma fortaleza de pedra, com
a Guarda de Prata sempre a postos, e o nosso Lanak
não era tão ignorante assim para não perceber isso.
Não que ele estivesse tão alerta quando Lorde Durgh
fê-lo curvar-se diante da rainha — talvez o que eu
queira dizer é que ele estava tentando captar essa a-
ventura maravilhosa através dos olhos de sua esposa,
e Dwyla era uma camponesa bastante esperta, que não
perdia quase nenhum detalhe. Mago ou não, Lanak
fez uma ótima escolha casando-se com Dwyla, ah, fez!
Ah, sim, sim, a Rainha. Ela recebeu Lanak em
seus aposentos privativos, sem qualquer outra pessoa
presente que não Lorde Durgh, a quem ela despachou
sob pretexto de alguma tarefa importante antes mes-
mo de Lanak terminar sua mesura. Contaram-me que

82
ela é uma mulher bem pequena, delicada, com uma
abundante cabeleira negra e olhos tão brilhantes e ne-
gros como as pedras negras e brilhantes dos muros de
seu castelo. Ela parecia ter a mesma idade de Lanak,
mas nunca podemos afirmar a idade de uma rainha.
Muito bem. Ela cumprimentou Lanak com to-
da a pompa e cortesia de uma rainha, dirigindo-se a
ele com dissimulada timidez:
— Senhor, jamais recebi um grande mago nes-
tes aposentos. Por favor, perdoai-me por não saber a
melhor maneira de tratar-vos.
Estas foram suas próprias palavras, segundo
me contaram, mas, naturalmente, ela não poderia ter
escolhido suas palavras de maneira mais calculada pa-
ra chegar ao coração de Lanak, que era verdadeiramente
tímido. Ele engoliu em seco várias vezes, conseguindo
por fim retrucar:
— Majestade, não sou nenhum grande mago,
mas somente um viajante de um vilarejo de viajantes.
Sinto-me imensamente honrado, mas não consigo
imaginar por que Vossa Alteza me chamou, tendo a
seu alcance os mais qualificados mestres que desejar.
Lanak foi sincero ao proferir estas palavras e a
rainha pôde reconhecer sua sinceridade, sorrindo da-
quele jeito que um gato sorri quando dorme.
— Na verdade — disse ela —, reconheço que
investiguei alguns magos. Conheço bem quem são os
mestres em magia em meu reino e quem são os em-
busteiros — todos, sem exceção —, assim como sei
quem se vangloria de ser um mestre em magia, mas
não conseguiria transformar nata em manteiga. E ja-
mais ouvi histórias que se igualam às que escutei sobre

83
o bom Lanak. Mesmo sem sair de seu pequeno povo-
ado, perdoai-me, mas sempre esqueço o nome, vós
vos tornastes a inveja de magos cujos nomes creio que
desconheceis. O que dizeis disso? Eu gostaria de sa-
ber.
Lanak não sabia o que dizer. Ele olhou para su-
as mãos, a seguir olhou para o dossel rosa pálido so-
bre a cama da rainha e finalmente disse em voz baixa:
— Não considero que seja algo bom eu ser in-
vejado por alguém, se o que dizeis é verdade. Isso me
aflige muito e não consigo crer que assim o seja. Co-
mo poderiam Rhyssa, K’Shas e Tombry Dar invejar o
pobre Lanak de Karakosk? Vossa Majestade deve es-
tar enganada, certamente.
— Uma rainha nunca se engana — respondeu
a rainha —, e mesmo grandes magos devem lembrar-
se disso. — Contudo, ela manteve seu sorriso gentil e
atencioso. — Muito bem, testarei vossos poderes, en-
tão, somente para vossa própria certeza, pois eu já a
tenho. Como sabeis, a água do meu reino não é da
melhor qualidade.
Isso Lanak sabia. Talvez até os mais velhos de
vós não o saibam, mas na época sobre a qual vos con-
to, a água de Fors na’Shachim e de suas redondezas
era conhecida por sua cor turvo. Não que não fosse
potável ou que pudesse causar alguma doença ou pra-
ga, mas seu sabor era semelhante ao de moedas de
cobre e de polidor de metais, além de um leve sabor
de cera de vela. Qualquer roupa lavada nos rios ou
riachos da região tornava-se levemente amarelada, o
que facilmente identificava a origem de quem a usasse
e tornava-o motivo de zombaria de cidadãos de outras

84
partes do reino, que, naquela época, chamavam os
cidadãos de Fors de “mijacalças”. Esse nome é ainda
usado de vez em quando, apesar de ninguém de Fors
entender bem o porquê.
A rainha disse então:
— Pedi a vários feiticeiros para melhorar a qua-
lidade das águas de Fors na’Shachim, mas não vou
constranger-vos citando seus nomes. É suficiente di-
zer que nenhum deles conseguiu fazê-lo, apesar de
todos terem provado seus poderes mágicos ao desa-
parecerem quando demonstrei meu descontentamen-
to. — Ela inclinou-se para a frente e tocou a mão ca-
losa e bronzeada de Lanak. — No entanto, tenho cer-
teza de que o resultado será bem diferente desta vez.
Lanak respondeu-lhe sem muito entusiasmo:
— Farei o melhor que puder, Majestade, mas
receio que também vos desapontarei, como aconteceu
com meus colegas.
— Sendo assim, espero que consigueis desapa-
recer tão rapidamente quanto eles — retrucou a rai-
nha. Ela riu, tentando mostrar que seu comentário era
tão-somente jocoso e levantou-se para indicar que a
entrevista havia terminado. Enquanto Lanak curvava-
se e saía do aposento andando para trás, sem dar-lhe
as costas (pois Dwyla havia lido em algum lugar que
esta era a maneira apropriada para despedir-se de
membros da realeza), ela acrescentou:
— Durma bem, meu amigo. Ficarei acordada a
noite toda, imaginando a surpresa e a felicidade de
meus súditos quando prepararem seu chá amanhã.
Mas Lanak não chegou nem a se deitar na
grande e macia cama que havia sido preparada para

85
ele. Ficou andando de cá para lá sob a claridade da
lua, imaginando de todos os modos possíveis quais
magos haviam utilizado seus poderes para melhorar a
água de Fors e quais encantamentos poderiam ter uti-
lizado. Pois, como Sabeis, existe uma linguagem co-
mum a todo tipo de magia, assim como existe uma
linguagem comum a todo tipo de música; mas existe
um cantor, um músico, um mago em especial que
consegue tornar uma canção um encantamento algo
especial. Lanak andou em círculos, murmurando pala-
vras para si mesmo a noite toda, e por fim deixou-se
imobilizar junto à janela, dirigindo um olhar vazio ao
pátio escuro. E, quando a manhã finalmente chegou,
ele serviu-se do lauto café da manhã que o próprio
mordomo da rainha lhe trouxe, tomou a “água de la-
vagem” que é tida como a cerveja de Fors, arrotou,
recostou-se na cadeira e transformou a água do reino
na mais doce que qualquer água do território até che-
gar-se ao oceano. E ela permanece assim até os dias
de hoje, apesar de, não se sabe bem por quê, ele não
ter conseguido melhorar a qualidade da cerveja.
A rainha ficou satisfeitíssima e levou Lanak até
a alta sacada do castelo, deixando-o extremamente
embaraçado ao apresentá-lo a todos os súditos como
o grande mago que havia conseguido o maior benefí-
cio para toda a população, feito esse que os maiores
feiticeiros do reino haviam insistentemente prometido
fazer, mas não haviam conseguido. O povo delirava e,
ao longo do dia, assim como do dia seguinte, quase
ninguém trabalhou e muitos brindes foram levantados
a Lanak, até que a Guarda de Prata, utilizando a força
bruta, conseguiu convencê-los a voltar ao trabalho. A

86
atitude violenta da guarda, apesar de, na maior parte
dos casos, ter-se manifestado longe dos olhos de La-
nak, não lhe passou despercebida.
— Vejais — disse a rainha —, esta não é a cer-
teza que vos faltava para provar ser um mago digno
de servir-me?
Ao que Lanak respondeu:
— Majestade, foi por um mero golpe de sorte,
por eu entender um pouco da natureza da água. A
água alegra-se em ser de boa qualidade, entristecendo-
se quando seu sabor é desagradável ao paladar. Tudo
que fiz foi transformar-me na água de Fors na’Shachim e
percorrer meu caminho até a fonte de sua antiga a-
margura e tornar-me essa amargura também. Seus ou-
tros magos não devem ter vindo do povo como eu,
caso contrário saberiam disso. No coração dos cam-
pos, feitiços e encantamentos são magias de pouca
utilidade — compreender a alma do campo e tornar-
se essa alma é o que realmente importa. Minha rainha,
vós necessitais de um mago que compreenda o mun-
do das rainhas, ministros, capitães e campanhas de
guerra. Perdoai-me, mas eu não sou esse tipo de ho-
mem.
— Como ousais dizer o que eu preciso ou não?
— respondeu rispidamente a rainha, usando esse tom
pela primeira vez. — Falai-me sobre o que eu quero,
vos peço. — Mas ela rapidamente escondeu sua im-
paciência, pegando a mão de Lanak e dizendo: —
Muito bem, muito bem, dar-vos-ei mais um teste,
embora desnecessário. Há provas de que três altos
oficiais da minha incorruptível Guarda de Prata estão
sendo pagos por um lorde estrangeiro, cujo nome não

87
nos interessa no momento. Não tenho como provar
sua deslealdade, o que também não vem ao caso — e
ela sorriu sarcasticamente —, se eu souber quem eles
são. Encontrai esses traidores para mim, meu simpló-
rio Lanak, e eu vos serei eternamente grata.
No entanto, mesmo em Karakosk, Lanak havia
resistido a todas as tentativas de utilizar seus talentos
mágicos para se tornar um xerife, um delegado, um
caçador de ladrões. Ele não queria tomar qualquer
parte nesse plano da rainha; porém, mesmo sendo
simplório, ele sabia que não havia uma maneira cortês
o suficiente de recusar o pedido da rainha sem ofen-
der sua hospitalidade. Então disse, por fim:
— Que seja, mas dai-me uma noite para con-
sultar meus espíritos. E sendo isso exatamente o que a
rainha esperava ouvir, graças aos bons deuses nenhum
resmungo ou lamentação, ela deu-lhe seu mais caloro-
so sorriso e deixou Lanak sozinho com seus pensa-
mentos. Mas também deixou dois guardas de sua con-
fiança marchando do lado de fora do quarto durante
toda a noite, e mais outro sob a janela do quarto, pois
ninguém pode confiar totalmente em magos ou feiti-
ceiros.
E lá sei foi mais uma noite de sono para o nos-
so pobre Lanak, que estava acostumado a aninhar-se à
sua querida Dwyla e ter um sono tranqüilo, passando
seu braço sobre ela e colocando seus pés frios entre
os dela. Como na noite anterior, ele pensou e refletiu,
com pequenos intervalos somente para reprovar a si
mesmo, um tolo incompetente. Mas em algum mo-
mento entre meia-noite e o raiar do dia, como na noi-
te anterior, ele ficou subitamente parado, como so-

88
mente um mago consegue; e começou a traçar estra-
nhas linhas e formas na poeira acumulada sobre o pei-
toril da janela, proferindo ao mesmo tempo algumas
palavras. Essas palavras eram tão estranhas quanto as
linhas e formas que ele traçava, e nada nelas denunci-
ava que algo grandioso estava por acontecer. Pouco a
pouco sua voz foi-se apagando e ele recostou a cabeça
na janela, como uma criança em dia de chuva, fixando
o olhar no pátio abaixo. Acredito que ele até dormiu
um pouco, pois estava realmente exausto.
E o que aconteceu? De repente ouviu-se o som
de pesados cascos de cavalos sobre pedras, e um cava-
leiro com o uniforme da Guarda de Prata passou rá-
pido como uma bala pelo pátio e depois a todo galope
pelo posto da guarda, sem lançar um olhar sequer ao
apalermado sentinela, e continuou a todo galope em
direção ao portão. Nenhum som se ouvia no castelo
negro, muito menos algum som emitido por Lanak.
Passada uma hora ou um pouco menos, juro
por todos os deuses do terrível povo Goro, lá se foi
outro cavaleiro, deixando Fors também a todo galope.
Colado em seus calcanhares, lá se foi um terceiro ca-
valeiro, e nessa hora Lanak olhou para seu reflexo no
vidro, iluminado pelo luar: sua expressão era de medo,
ele estava paralisado pelo medo. Nenhum outro cava-
leiro deixou o castelo naquela noite, mas Lanak per-
maneceu com a cabeça recostada na janela, talvez a-
dormecido, mas talvez não.
Na manhã seguinte, Lanak foi ter com a rainha
na sala do trono e disse-lhe para passar a Guarda de
Prata em revista. Ela fitou-o com uma expressão sur-
presa, pois não costumava fazer isso mais do que uma

89
vez por semana. Mas assim o fez. E quando percebeu
que três dos seus mais altos oficiais não se encontra-
vam no castelo ou em qualquer outro lugar onde or-
denou que fossem procurados, ela virou-se para La-
nak com uma expressão de fúria nos olhos e esbrave-
jou:
— Eles foram avisados! O senhor os ajudou a
escapar de mim!
— Não fiz nada do gênero — respondeu-lhe
Lanak calmamente. Mesmo um inicialmente encanta-
do homem do campo sabe até onde vão os limites da
realeza, e a essa altura Lanak já conhecia bem a rainha.
— Procurando saber quem entre vossos fiéis servido-
res não lhe eram tão fiéis assim, lancei um feitiço de
pavor sobre toda a vossa tropa, um feitiço de culpa e
irracional terror de ser descoberto. Os três homens
que faltam entraram em pânico e fugiram durante a
noite, mas agora não podem mais vos fazer qualquer
mal.
— Mas eu os queria aqui — disse a rainha. Seu
rosto estava pálido agora e ela tentava manter sua voz
tão gentil quanto possível. — Eu queria vê-los com
seus ossos partidos, escalpelados, enforcados na mi-
nha sacada, ainda um pouco vivos para morrerem
queimados ao sol. Estou muito desapontada, Lanak.
— Bem — murmurou Lanak —, eu vos disse
que não era exatamente o tipo de mago para Vossa
Alteza. — Ele manteve seu olhar baixo, humilde, mas
ainda assim digno, tentando não demonstrar a satisfa-
ção que sentia. A rainha talvez dispensasse seus servi-
ços naquele exato minuto e ele voltaria só, sem qual-
quer escolta, para Karakosk, a tempo de chegar em

90
casa para o almoço. Colocaria sua filhinha sobre os
joelhos e brincaria com ela, e contaria a Dwyla como
era a vida no castelo negro, com música tocando o
tempo todo. Mas a rainha tinha outros planos.
— Não, não sois — disse a rainha, sem qual-
quer expressão em sua voz. — Ninguém aqui é bem
vestido, com poses ou não. Mas isso eu já percebi há
muito tempo, assim como percebi o que devo fazer
para realizar meu desejo. — Ela encarava Lanak com
seus olhos escuros e brilhantes; e Lanak, que tinha
medo de poucas coisas na vida, retribuiu-lhe o olhar.
Mas desta vez ele sentiu medo.
— Vais me ensinar — disse a rainha —, vais
me ensinar toda a tua magia. Toda ela, todos os feiti-
ços, todos os gestos, as runas, as rimas do poder. En-
tendes agora?
Lanak tentou falar, mas ela fez um gesto para
que se mantivesse em silêncio, e sorriu, mostrando as
pontas de seus dentes novamente. — Está compreen-
dido? Não poderás deixar este castelo até que eu te-
nha aprendido tudo que sabes. Absolutamente tudo!
— Levareis vossa vida toda — sussurrou La-
nak. — Não se trata de aprender um encantamento
ou uma dezena deles. Um mago está em contínua a-
prendizagem, sempre...
— Contínua aprendizagem — repetiu a rainha
desdenhosamente. — Não ordenei que me ensines a
filosofia da magia — é a tua magia que quero e terei,
tenhas certeza disso. — Ela começou a amenizar seu
tom nessa hora, imitando o mesmo tom que havia
usado quando o conheceu e tratando-o por “vós” no-
vamente. — E tenho certeza de que não levará tanto

91
tempo assim, Lanak. Vereis que sou boa aluna — a-
prendo com rapidez quando o assunto é do meu inte-
resse. Começaremos amanhã, e garanto que ficareis
surpreso ao final do primeiro dia. E, Lanak — e neste
ponto sua voz voltou àquele tom duro e cortante —,
não deixes que um único pensamento sobre a menor
possibilidade de fugires te passe pela mente. Tua es-
posa e filha na pacata e aconchegante Karakosk não te
agradeceriam por isso.
Lanak, que estivera a ponto de fazer exatamen-
te aquilo, sentiu-se transformar em pedra por dentro.
Sua voz soou distante a seus próprios ouvidos:
— Se fizerdes qualquer mal a elas, eu farei este
castelo desmoronar pedra sobre pedra, tornando-o
vosso sepulcro.
— Espero que possas mesmo fazê-lo — retru-
cou a rainha. — Por que quereria eu estudar com um
mago que pudesse fazer menos do que isso? E, além
do mais, poderias ter tua cara família em teus braços
dias antes que minhas ordens chegassem aos homens
que a mantêm sob zelosa vigilância desde que saíste
de casa. E poderias também destruir esses homens
com um simples gesto, caso eles ou mil homens se
levantassem contra ti, e mais outros mil se assim qui-
sésseis — sei disso tudo, acredites. Aquele seu sorriso
de gato adormecido estava se alargando em seu rosto
e ela falava cada vez mais docemente:
— Mas por quanto tempo, Lanak? Por quanto
tempo acreditais que podereis manter vossa família a
salvo? Mesmo se eu enviasse legiões de soldados con-
tra vós, não seria tola o suficiente para colocar todas
as minhas esperanças em lanças e armaduras contra

92
um homem com o vosso poder. Eu me refiro à faca
no mercado, a uma carruagem desgovernada em uma
rua cheia de pessoas, a uma flecha no quintal. Será
vossa magia — ou melhor dizendo, vossa atenção —
tão poderosa assim para proteger a todos que amais
cada minuto pelo resto de suas vidas? Pois é melhor
que seja, Lanak. Tenho meus defeitos, mesmo sendo
uma rainha, mas uma virtude que tenho é a paciência.
Jamais me cansarei de esperar pela oportunidade cer-
ta, assim como jamais me esquecerei. Pensai bem nis-
to, meu caro mago, antes de vos despedires de mim.
Lanak permaneceu em silêncio por um longo
tempo. Ambos estavam em pé, olhando diretamente
um nos olhos do outro, sozinhos na grande e fria sala
do trono adornada com armaduras cerimoniais e ban-
deiras de centenas de rainhas que haviam governado
antes desta rainha. Não poderei jamais descrever com
exatidão o que se passou entre seus olhos. Mas por
fim Lanak disse:
— Que assim seja. Ensinar-vos-ei o que sei.
— Agradeço e sinto-me muito honrada — re-
trucou a rainha, e quase não havia ironia em sua voz.
— Quando tiverdes completado vossa tarefa, pode-
reis voltar para vossa casa em paz, carregado de pre-
sentes da rainha para vossa família. Até amanhã, en-
tão. — E ela inclinou sua cabeça graciosamente para
Lanak, que também se inclinou e deixou o aposento.
Se ninguém se importar, pularei o que Lanak
pensou e fez a noite toda na solidão de seu quarto,
omitindo até mesmo se dormiu ou não — o que espe-
ro que tenha feito. Duvido que qualquer um de nós
teria conseguido dormir em tais circunstâncias, mas

93
magos são pessoas bastante incomuns. E esse foi, de-
certo, o erro da rainha, apesar de tão esperta: não
pensar justamente que os magos são pessoas tão in-
comuns.
De todo modo, a rainha apareceu nos aposen-
tos de Lanak cedo na manhã seguinte, tão ansiosa
como qualquer novo aprendiz por causar uma boa
impressão em seu mestre. E ela não tinha exagerado
nem um pouco quando disse que aprenderia rapida-
mente: ao final da tarde, Lanak já havia lhe ensinado
os Primeiros Princípios de magia, que podem parecer
tão fáceis como uma cantiga de roda, mas são tão es-
corregadios como manteiga. Muitos magos poderão
dizer-vos que nada é tão difícil de se compreender
como os Primeiros Princípios de magia. A própria
Kirisinja levou oito meses para aprendê-los, segundo a
lenda.
E a rainha realmente surpreendeu Lanak na-
quele dia quando, para demonstrar o Sexto Princípio,
conseguiu fazer uma maçã desaparecer e, a seguir, re-
verter seu feitiço e fazê-la aparecer novamente. Um
feitiço elementar, naturalmente, mas uma vez que o
Sexto Princípio envolve trazer de volta não exatamen-
te o objeto, e sim o momento no tempo em que o
objeto existia, podemos entender por que Lanak esta-
va tão surpreso. Muitas pessoas possuem pelo menos
um pequeno dom para a magia, mas a maioria delas
morre sem saber disso. Só que a rainha sabia.
Mas o que mais surpreendeu Lanak foi que ele
estava, na verdade, tendo prazer em ensinar a rainha e
esperava ansiosamente pelas aulas. Ele jamais havia
ensinado sua arte e sequer havia tido a oportunidade

94
de discuti-la com outros magos. Dwyla possuía co-
nhecimentos suficientes para alguém que tem de con-
viver com magia diariamente, mas, assim como a rai-
nha, desconhecia a realidade maior por trás dos círcu-
los feitos com giz e dos pentáculos que esfregava para
tirar do chão várias manhãs. Já a rainha tinha fome de
conhecimento, queria saber cada um dos fatores que
poderia minimamente afetar um feitiço ou o sucesso
do menor dos encantamentos. Lanak sentiu-se culpa-
do muitas vezes por estar apreciando as aulas tanto
quanto ela.
Principalmente porque ele não tinha nenhuma
ilusão quanto aos propósitos para os quais ela estava
desenvolvendo suas habilidades em magia. Ela mesma
os mencionara, mais de uma vez: — Todo este reino
ao sul de Durlis deveria ser realmente um império —
mas o que ele é? Nada além de um punhado de gran-
des propriedades rurais, que não estão preparadas pa-
ra uma guerra decente. Mas quando eu me tornar uma
maga, veremos como as coisas ficarão. Acreditai, as coi-
sas mudarão.
— Vossa Majestade jamais se tornará uma ma-
ga — Lanak sempre lhe respondia com sinceridade.
— Quando terminarmos, tereis as habilidades de um
mago, certamente. Mas isso não é a mesma coisa que
ser um mago.
A rainha ria, então; um riso de criança que
nunca conseguiu esconder o prazer do ferro que esta-
va por detrás dele.
— Mas isso já vai satisfazer as minhas necessi-
dades, meu caro Lanak. Tudo que estou aprendendo
me será muito útil em breve — respondia a rainha.

95
E em breve chegaria mais cedo do que se poderia
imaginar, Lanak conscientizou-se, se a rainha manti-
vesse seu incrível ritmo de estudo. Ela não estava so-
mente aprendendo, mas sim devorando todos os en-
cantamentos que ele lhe ensinava enquanto mental-
mente planejava anexar cada uma das pequenas cida-
des-Estado, províncias e principados que almejava.
Ele não tinha qualquer dúvida de que ela conseguiria;
qualquer mago, por mais incompetente que fosse, já
poderia ter feito isso, caso estivesse querendo obter
esse tipo de poder — o que não era o caso. Mesmo o
mago mais perverso não tem qualquer interesse em
terras ou glórias mundanas. A luta por esse tipo de
poder é um jogo de reis e rainhas — mas, desculpem,
o tipo de poder que os magos almejam, esse não pos-
so contar-vos.
Esta história teria tido um final bem diferente
se Lanak não fosse casado. Como já mencionei, ma-
gos ou feiticeiros — assim como magas e feiticeiras
— raramente se casam e, quando perdem o sono, é
tão-somente porque suas consciências estão refletindo
sobre a ética de suas conjurações, que são a base lógi-
ca de qualquer feitiço de ilusionismo, e sobre a posi-
ção das estrelas e sua influência sobre seus feitiços.
Mas as noites insones de Lanak eram assombradas
por suas preocupações com Dwyla e sua filhinha e as
preocupações de Dwyla para com ele. Ele não ousara
sequer se comunicar com ela já havia semanas, mes-
mo através de magia, com medo de acordar suas pre-
monições e instintos. Mas algo mais o afligia: a ira que
lentamente começava a crescer em seu íntimo, e isso é
algo que assusta qualquer um, seja ele um mago ou

96
não. Mas a rainha jamais houvera de preocupar-se
com tais coisas, assim como Lanak não houvera antes.
E assim a rainha aprendeu mais feitiços do que
qualquer outra pessoa, exceto um mago, jamais sou-
bera. E ela os aprendeu mais rapidamente do que
qualquer outro aprendiz de magia jamais conseguira.
Ela agora andava pelos corredores de seu castelo ater-
rorizando empregados e soldados, que acreditavam
estar vendo seus próprios fantasmas. Ela fazia os be-
los pratos que estavam sendo preparados para seu
próprio jantar flutuarem até a mesa. Por vezes, ela
deixava sua sombra sorridente a conversar com os
ministros e conselheiros enquanto sua verdadeira es-
sência escapava da sala e instalava-se na mais alta torre
do castelo para observar as terras que tencionava go-
vernar. Há uma lenda — nada mais do que uma lenda
— que diz que, à medida que a rainha desenvolvia
suas habilidades, ela passou a assombrar os becos da
cidade à meia-noite sob a forma de um diabo do Vale
da Morte, podendo passar dias e dias sem comer. Eu,
pessoalmente, não acredito em tal lenda e tenho cer-
teza de que Lanak jamais permitiria que tal coisa acon-
tecesse. Finalmente, um dia, Lanak disse à rainha:
— Eu cumpri a minha parte de nosso acordo,
Majestade. Vossa Alteza agora sabe tudo que sei —
todos os feitiços, todos os gestos, todas as runas, to-
das as rimas encantadas. Exceto, talvez... — e ele re-
pentinamente tossiu e olhou para o lado, tentando
disfarçar a palavra que o traíra. Mas já era tarde de-
mais.
— Exceto — repetiu a rainha. Sua voz era clara,
e seu tom, respeitosamente curioso, mas seus olhos

97
brilhavam como as pedras negras de seu castelo. —
Exceto o quê, meu mestre? — Como Lanak não res-
pondesse, ela insistiu com um simples “Lanak”.
Lanak suspirou, ainda evitando seu olhar. —
Despachos — ele murmurou. — Não vos ensinei os
despachos, pois eu mesmo não os uso. Eu jamais usa-
ria um despacho, qualquer que fosse a razão
Mas a rainha retrucou:
— Entretanto, sabes como fazê-lo.
— Oh, sim — respondeu Lanak. Ele torceu as
mãos nervosamente e sentiu um calafrio, apesar do
dia quente e da época do ano. Mas continuou: — Um
despacho representa a morte. Este é seu único propó-
sito — atingindo sua vítima ou não, sua mera conju-
ração causa a morte. Um despacho pode se transfigu-
rar em um homem ou uma mulher comuns, ou era
qualquer animal, de uma cobra a uma ave ou até a um
fungo de rocha — na verdade, a forma de um despa-
cho deriva da essência do próprio mago que o conjura
e o controla — no entanto, o mago não se torna um
despacho. — Sua voz foi adquirindo pouco a pouco
um tom mais veemente e ele não conseguia olhar dire-
tamente nos olhos da rainha. — Majestade, a magia
não é nem boa nem má em sua essência, mas um des-
pacho é maligno por natureza, sempre. Como Vossa
Majestade fará uso do que lhe ensinei até agora, ficará
a vosso próprio critério, mas, por favor, não me per-
guntai mais nada sobre despachos. Eu vos imploro,
esquecei este assunto.
— Oh, mas eu preciso, simplesmente preciso sa-
ber — retrucou a rainha graciosamente —, pois agu-
çastes minha curiosidade. E deveis contar-me, meu

98
bom Lanak. — Eles se encaravam agora, e acredito
que algo nos olhos de Lanak forçou a rainha a acres-
centar: — Naturalmente, não tenho a menor intenção
de usar tal feitiço. Sois meu mestre e seguirei vossas
palavras. Por isso quero ouvir tudo que tiverdes a di-
zer. Tudo, Lanak.
E assim Lanak ensinou-lhe os despachos.
Ele levou mais de duas semanas, o que foi um
tempo muito mais curto do que normalmente seria
necessário se considerarmos tudo que há de ser me-
morizado, todos os rituais de encantamento, todas as
ervas que devem ser colhidas e a seguir preparadas em
uma poção que tem um cheiro simplesmente horrível,
a disciplina mental espartana que o mago deve ter —
tudo isso para se poder conjurar um único despacho!
Mas a rainha a tudo suportou sem qualquer reclama-
ção, como se fosse mais um ensinamento de, por e-
xemplo, prever o sexo de um bebê ou o melhor mês
para o plantio. Ela era, verdadeiramente, uma mulher
memorável, devemos reconhecer.
Ao final, ela disse: — Muito bem, Lanak, man-
tivestes vossa palavra e eu manterei a minha. Podeis
partir para vossa casa e lar agora mesmo, se assim o
desejardes. Entretanto, eu ficaria muito honrada se
ficásseis para cear comigo esta última noite. Não a-
credito que nos encontraremos novamente, mas se
isso acontecer, tenhais certeza de que recebereis meu
mais respeitoso e digno cumprimento. Sei que fui jo-
cosa convosco diversas vezes, mas nunca quando vos
chamei de mestre. — E ela pareceu tão jovem quando
proferiu essas palavras, tão sincera e ansiosa que La-
nak nada pôde fazer a não ser concordar.

99
Naquela noite, a rainha serviu a Lanak uma ceia
como ele jamais havia tido ou ainda teria em sua vida,
e notais que Lanak viveu ainda por muitos e muitos
anos, mais elogiado do que gostaria de ser. Eles bebe-
ram uma grande quantidade de vinho — e tens toda
razão, Chashi, os vinhedos desta região sempre abas-
teceram o castelo negro — e riram mais do que po-
deis imaginar. Lanak chegou até a cantar algumas es-
trofes que o povo de Karakosk cantava sobre seus
soberanos de Fors na’Shachim, o que fez a rainha rir
até derramar seu vinho. No entanto, quando Lanak
recolheu-se a seus aposentos, ele estava mais sóbrio
do que nunca, calculadora e friamente sóbrio, e ele
sabia que a rainha estava igualmente sóbria. Ao sair da
opulenta sala de jantar, ele disse à rainha:
— Acima de tudo, lembrai-vos da última pala-
vra do feitiço. Ela será vossa salvação, caso algo saia
errado.
— Eu a decorei — respondeu a rainha. — Não
que eu vá precisar usá-la.
— E lembrai-vos também — disse Lanak —
de que os despachos são seus próprios mestres. Eles
não obedecem a ninguém.
— Sim, Lanak — disse a rainha. — Eu enten-
do. Boa-noite.
Lanak não se deitou naquela noite. A luz de ve-
las, ele cuidadosamente dobrou e guardou em seu sa-
co de viagem as roupas que Dwyla havia separado
quando ele partira — há tanto tempo — juntamente
com os presentes e os suvenires que havia comprado
para ela e para sua filhinha e os que a rainha lhe havia
dado. Quando terminou, a lua já ia baixa no leste e ele

100
escutou a troca da guarda nos postos ao longo dos
muros do castelo. Ainda assim ele não se deitou.
Se vós estivésseis lá, teríeis visto com surpresa
quando ele cuidadosamente cruzou seus braços abra-
çando seus próprios ombros, tão cuidadosamente
quanto dobrou suas roupas; e mesmo que não tivés-
seis ouvido as palavras que ele murmurou, teríeis visto
quando ele ficou nas pontas dos pés e começou a gi-
rar como um pião, cada vez mais rápido, até levantar-
se no ar e flutuar em direção ao teto arredondado,
dirigindo-se para um canto aonde a luz das velas não
chegava. E como ele conseguiu permanecer lá e por
quanto tempo eu não sei vos dizer.
A medida que o tempo passou e todas as velas,
exceto uma, se apagaram, e quando todos os sons do
castelo foram como que sugados para os cantos, ou-
viu-se então um leve arranhar de garras na pedra do
corredor bem em frente à porta do aposento de La-
nak. Sem que a maçaneta da porta fosse tocada ou a
própria porta forçada — que Lanak havia intencio-
nalmente deixado destrancada —, algo, uma presença,
simplesmente se fez sentir no quarto. As sombras da
porta esconderam a criatura num primeiro momento,
mas podia-se sentir que estava lá, visível ou não.
Essa criatura deu um passo à frente, colocan-
do-se na direção da luz bruxuleante. Ela estava apoia-
da em duas pernas, mas tinha-se a sensação que pode-
ria tombar e ficar de quatro a qualquer momento. As
pernas eram longas demais, e dobravam-se em dire-
ções estranhas, enquanto que os braços — ou pernas
da frente, o que quer que fossem — eram grossas e
sem articulações e as patas faziam-nas parecer curtas

101
demais. Ela tinha escamas de um tom verde-ferrugem
e algo que parecia uma bolsa do abdome até o peito
— algo parecido com um lagarto, isso mesmo, Gri,
mas havia também uma certa doçura nessa criatura,
algo que ninguém jamais sentiu em relação a um lagar-
to. A criatura não estava nem morta nem viva e seu
cheiro era como o de folhas molhadas, apodrecendo.
A criatura deu mais um passo e a luz da vela i-
luminou seu rosto. Era o rosto da rainha.
Não exatamente seu rosto, pois os traços deli-
cados estavam como que cobertos por camadas e ca-
madas de teias de aranha, e a pele em tom de ferru-
gem parecia afastar-se de seus olhos, como um pouco
de água sendo soprada por uma golfada de vento.
Havia lágrimas em seus olhos, que pareciam gotas
douradas à luz da vela.
Em seu canto escuro Lanak falou mansamente:
— Que coisa terrível eu fiz!
A rainha, ou o que restava dela, virou-se lenta-
mente em direção à voz, seus olhos vazios procuran-
do por ele. E Lanak então disse:
— Mas eu não tive outra saída...
A criatura levantou sua cabeça em decomposi-
ção para onde vinha o som e Lanak pôde ver pela
primeira vez o que havia acontecido ao cabelo da rai-
nha. A boca contorcia-se horrendamente, mostrando
dentes marrons também em decomposição, e os olhos
esbugalharam-se e tornaram-se brilhantes ao som da
voz de Lanak.
— Uma coisa terrível — disse Lanak novamen-
te. — Não havia qualquer necessidade de eu mencio-
nar os despachos, conhecendo-vos como eu vos co-

102
nheço. Eu sabia perfeitamente que vós me ordenaríeis
que vos ensinasse como conjurá-los e que conjuraríeis
um despacho tão logo eu me retirasse. Contra quem
lançastes este despacho eu não faço a menor idéia.
Talvez contra o Conselho em Suk’kai, talvez contra o
Jiril de Derridow — talvez até contra mim, por que
não? Mas os despachos não obedecem a ninguém, e
podeis ter acreditado que seria melhor silenciar-me.
Foi isso o que pensastes, Majestade?
A criatura-rainha emitiu um som que poderia
ter derretido os vossos e os meus ossos de terror, ou
talvez partido nossos corações, quem saberá? Mas
Lanak prosseguiu:
— A última palavra da conjuração. Eu não
menti — não exatamente. Ela é realmente uma prote-
ção contra o despacho, mas não uma proteção para
quem conjura o despacho. Ao contrário, ela rebate e
anula o feitiço todo e protege o alvo contra a maldade
de seu inimigo. Assim sendo, lançastes vosso feitiço,
deixastes que ele voasse, mas ele não atingiu seu alvo.
Isso foi obra minha. — Sua voz era lenta e exausta, eu
imagino.
— Mas, como eu disse, despachos não obede-
cem a ninguém. Eu vos avisei. Estando condenado ao
fracasso desde o início, seu despacho virou-se com
fúria contra seu conjurador — contra vós. E quando
ele não conseguiu desfazer-se, não conseguiu unir-se à
alma de onde se originou, ele então preferiu fundir-se
com vosso corpo, da maneira que mais lhe convinha.
E assim aconteceu.
Em algum lugar da cidade um galo cantou, ape-
sar de não haver no céu o menor sinal da manhã. A

103
criatura-rainha contorceu-se, olhando para Lanak em
furiosa súplica. Mas ele disse pesadamente:
— Oh, tudo isso é tão errado, não há a menor
parcela de algo bom em tudo isso. Não creio que con-
seguirei contar para Dwyla sobre isso dia algum de
minha vida. Majestade, não sinto nenhum amor por
vós, mas também não sinto qualquer ódio. Não posso
desfazer o que fizemos juntos, mas o que eu puder
fazer tentarei agora. — Ele pronunciou várias palavras
ríspidas, mas com notado cuidado. Se elas foram a-
companhadas por algum gesto, este não pôde ser per-
cebido.
A criatura-rainha começou a brilhar. Chamas
envolveram-na, primeiro em torno de seus pés e per-
nas, e depois, para dentro dela, até que o próprio La-
nak fechou os olhos por não suportar tamanho clarão.
Mas mesmo assim a imagem manteve-se vivida por
debaixo de suas pálpebras. Ele pôde ver o contorno
do corpo da rainha e seu despacho separados e juntos
ao mesmo tempo: ela, com seu orgulho, beleza e astú-
cia, e o outro — aquela outra coisa — abraçando-a com
suas chamas. E a seguir, a criatura desapareceu. Mas
algo me diz que Lanak ainda a podia ver quando fe-
chava seus olhos.
O quarto começou a se iluminar então, e o galo
que havia cantado cantou novamente, acompanhado
pelo som das preces matutinas de um Nounori. Há
muitos deles em Fors, ou pelo menos havia. O silên-
cio que se seguiu só foi quebrado pelas palavras de
Lanak:
— Ninguém jamais vos verá. Não posso pôr
um fim a vosso sofrimento, mas não tereis de supor-

104
tar a humilhação de outros vendo-vos sofrer. E se eu
souber de algum outro mago com poderes maiores
que os meus, eu o enviarei ao castelo. Perdoai-me,
Majestade, e adeus.
Bem, esta é a minha história. Peço-vos perdão
por ser tão longa. Lanak voltou então para casa, para
sua Dwyla e sua filhinha, para seus campos, sua cerve-
ja preta e seus fogos de artifício. E fez o que pôde
para não ser motivo de qualquer balada ou história.
Não conseguiu seu intento por completo, mas isso é
inevitável quando se é tão bom no que se faz. E não
direi mais nenhuma palavra sobre ele.
Quanto à rainha, da última vez em que estive
em Fors na’Shachim, e não faz tanto tempo assim,
ainda havia ambulantes oferecendo talismãs para
quem quer que fosse se hospedar no castelo negro.
Acredita-se que esses talismãs podem proteger contra
o espírito vingativo que assombra os corredores. Eles
são totalmente ilegais — prestai atenção, pois podeis
perder uma mão se os comprar, e a cabeça se os ven-
der. Pessoalmente já passei algumas noites no castelo
sem tal proteção, e nenhum mal jamais me ocorreu. A
não ser que consideremos os meus sonhos também.

* **

PETER S. BEAGLE começou a escrever his-


tórias ainda na adolescência - seu primeiro conto,
“Telephone Call”, foi publicado quando tinha dezes-
seis anos. Foi aclamado como um grande talento
quando publicou seu primeiro romance, A Fine and
Private Place, em 1960, antes de completar vinte e um

105
anos de idade. A história do recluso Jonathan Rebeck,
que morava num cemitério do Bronx com seu corvo
falante e dois fantasmas, foi um marco na literatura de
fantasia. O último unicórnio (1968) foi também uma his-
tória marcante que narra a vida de Schmendrick, um
mago incompetente que jamais envelhecerá até domi-
nar sua arte. A velha rabugenta, Molly Grue, que vive
em seus calcanhares, é outra personagem inesquecível.
Schmendrick também está presente em The Innkeeper’s
Song (1993), que conta a história de outro mago que
pede ajuda a seus aprendizes para lutar contra demô-
nios do mundo das trevas. Infelizmente, Peter Beagle
escreveu poucos contos, dentre os quais considero “O
mago de Karakosk” o melhor.

106
ELFINO E DONINHA
Sylvia Townsend Warner

Mestre Elisha Blackbone mantém um próspero negócio


em necromancia, adivinhação e magia que o Jaz viajar para
diversos lugares afim de aplicar seus dons, carregando seu livro
de encantamentos, seu alambique, uma caveira e um mapa ce-
leste. Mas quando chega a primavera, ele fica mais ocupado do
que nunca e os pedidos de poções de amor e ungüentos contra
vários tipos de alergia ultrapassam os pedidos de invocação do
Demônio. Em uma de suas viagens a Suffolk, ele se depara
com o jovem Elfino e lhe oferece trabalho como seu assistente. O
rapaz aprende rapidamente seu ofício, o que talvez não devesse
nos surpreender, pois nasceu no Reino de Elphin, onde todos os
habitantes possuem asas e se dedicam a corridas à distância, a
virar mesas de pernas para o ar e a voar para alto-mar com o
intuito de acompanhar o naufrágio de navios. Os negócios pros-
peram, e logo Mestre Blackbone começa a sonhar em abrir um
consultório de magia em Londres. Mas ele não contava com os
poderes mágicos especiais de seu assistente, nem com o que acon-
teceu quando o rapaz conheceu Doninha, uma linda jovem cuja
pele tem um lindo tom verde...

* **

O navio mal havia se afastado três léguas de


IJmuiden quando o vento começou a soprar do leste,
tornando-se logo uma tormenta. Se o capitão fosse

107
mais velho, ele teria retornado imediatamente ao por-
to, mas este capitão tinha uma amante em
Lowestoft e ansiava por chegar lá o mais breve
possível. No entanto, o vendaval e as ondas tempes-
tuosas batendo contra a popa rasgaram o barco como
se este fosse um barquinho de papel, e o desejo do
capitão não pôde ser atendido. Ao cair da noite, o
barco estava completamente à mercê da tormenta, e
seu tombadilho, inundado. Assim que o barco come-
çou a afundar, Elfino guardou dentro de sua camisa a
carta confidencial que lhe havia sido confiada, certifi-
cou-se de que a carteira com dinheiro dos mortais es-
tava bem no fundo de seu bolso e estudou o vento e o
movimento das velas para que nada acontecesse às
suas asas. E, assim, levantou vôo um pouco antes de o
barco ser totalmente engolido pelo mar, uma figura
solitária ao sabor do vento.
Mas suas asas eram insignificantes ante a força
da tormenta, e ele voava ao sabor das correntes do
vento furioso. Se o vento abrandava por alguns minu-
tos, ele descia até quase tocar a espuma das ondas,
para em seguida ser erguido novamente e carregado
mais adiante pela nova fúria da tormenta. Em uma
dessas descidas, ele sentiu a pesada carta cheia de in-
sígnias escorregar de dentro da camisa e cair. Com
isso, ela seria mantida confidencial para todo o sem-
pre, e isto não traria nenhuma mudança ao mundo de
Elphin. Em outra dessas descidas, lá se foi a sua car-
teira. Suas roupas estavam rasgadas, o frio lhe pene-
trava os ossos, e ele se sentia anestesiado pela úmida
friagem. Se o destino decidisse que a sua hora havia
chegado, ele se afogaria de bom grado, dobrando suas

108
asas e admirando as ondas dançarem furiosas sobre
ele. A força do vento era tamanha que mal conseguia
respirar, muito menos fazer esforço para voar; ele na-
da mais era do que o fragmento de uma existência,
jogado e subjugado violentamente pela tormenta. A-
dormeceu uma ou duas vezes, acordando com o odor
da maresia bem próximo. Sentindo-se cada vez mais
fraco, conseguiu vislumbrar uma luzinha fraca no ho-
rizonte e imaginou que talvez um novo dia estivesse
nascendo. Viu também uma gaivota lutando contra o
vento e então teve certeza de que se aproximava de
terra firme.
Como a luminosidade foi aumentando, ele viu,
então, as ondas se erguendo, revolvendo-se e se que-
brando, umas sobre as outras, em uma praia de casca-
lhos. Mas o vento o carregou mais adiante, sobre uma
paisagem plana à luz da aurora. Ele não fazia idéia de
onde se encontrava. Até aquele momento, Elfino não
havia sentido medo, mas quando um vagalhão escuro
se projetou à sua frente e o barulho de árvores agita-
das chegou a seus ouvidos, sentiu pânico pela primei-
ra vez e se agarrou a um galho próximo como alguém
que se agarra a um pedaço de madeira para não se a-
fogar. Acabou aterrissando em um bosque de azevi-
nheiros, plantado como pára-vento, e logo procurou
abrigo no alto de uma árvore, deixando o vento pros-
seguir sem ele.
Provavelmente adormeceu sem perceber,
quando caiu da árvore. Ao acordar, um homem com
longos bigodes o encarava.
— Eu sei quem tu és. És um elfo. Havia mui-
tos elfos na propriedade de meu pai em Suffolk. Pes-

109
tes, ladrõezinhos, ruins como ciganos! Mas eu até que
gostava um pouco deles, pois me faziam companhia,
eu que era filho único. Como chegaste até aqui?
Elfino percebeu que ainda estava visível, uma
medida que havia adotado durante a viagem para evi-
tar ser pisoteado pelos outros. Agora era tarde demais
para se tornar invisível, apesar de poder fazê-lo com
um estalar dos dedos. Controlou a sua indignação por
ter sido comparado a ciganos e explicou ao homem
como o navio que havia saído de IJmuiden naufragara
e ele havia sido carregado pelo vento.
— De IJmuiden, disseste? E onde estão as ou-
tras pessoas do navio?
— Todas se afogaram.
— Afogaram-se? Meu novo assistente estava
naquele navio! Uma desgraça depois da outra! Sim foi
enforcado e Jacob Kats afogou-se. Parece que as es-
trelas têm outros planos para mim.
Mas parecia que as estrelas tinham os mesmos
planos para Elfino. Ele havia estudado inglês como
sua segunda língua, mas estava sem um tostão, famin-
to, além de o vento ter carregado seus sapatos.
— Se eu puder vos ser de alguma ajuda... —
disse ele.
— Mas eu não posso levar-te a Walsham Bore-
alis com estes andrajos. Vamos até a velha Bella e cer-
tamente ela haverá de arranjar-te algo apresentável.
Alimentado e vestindo roupas usadas e grandes
demais para ele, Elfino entrou em Walsham Borealis
na garupa do cavalo de Mestre Elisha Blackbone. El-
fino sabia que seria o assistente de um charlatão em
várias artes, incluindo a medicina, a necromancia, a

110
adivinhação e o arranjo de encontros amorosos.
Até então, Elfino, sobrinho do mestre-de-
cerimônias da Corte de Zuy de Elphin, passara seus
dias como um educado e ornamental membro da Cor-
te. Mas agora ele tinha de ser útil a seu mestre. Con-
tudo, após experimentar prazeres cautelosos em Zuy,
tudo em sua nova vida, desde a observação de plane-
tas até a análise de amostras de urina, resumia-se a
divertimento. Tudo acontecia de maneira pontual:
terminava-se uma tarefa e, logo em seguida, começa-
va-se outra. Quando havia muitos clientes à mesma
hora, Elfino entretinha-os durante a espera, constru-
indo castelos de cartas, tocando a mandora, uma es-
pécie de bandolim medieval e renascentista, ou enta-
bulando uma conversa animada com eles. E justamen-
te por meio dessas conversas ele tomava conhecimen-
to de certas informações que eram de grande valia
para Mestre Blackbone elaborar os horóscopos desses
clientes.
Mestre Blackbone, por outro lado, estava en-
cantado com um assistente que aprendia tão rapida-
mente, que não demonstrava qualquer preconceito em
relação às suas atividades e que era, além do mais, um
elfo. Dar um emprego a um elfo era um passo real-
mente progressista, pois em Londres todo necroman-
te de reputação empregava uma criatura mágica, fosse
uma fada ou outro ser, o que conferia à sua prática
um certo ar de espiritualidade. Tão logo tivesse eco-
nomizado o suficiente, ele se estabeleceria em Lon-
dres, onde sempre havia espaço para mais um prati-
cante das artes mágicas. Não contara a ninguém sobre
a origem de seu assistente; havia dito somente que

111
Elfino era o sétimo filho de um sétimo filho, alguém
que receberia sempre de bom grado qualquer gentile-
za ou gorjeta de um cliente. Mestre Blackbone não lhe
pagava qualquer salário, pois, sendo um aprendiz, o
treinamento e a alimentação que recebia já eram pa-
gamento suficiente. Um mestre mais exigente poderia
ficar com as gorjetas que seu assistente recebia dos
clientes, mas Mestre Blackbone tinha sempre um olho
no futuro e não desejava, de modo algum, arriscar
seus planos adotando uma atitude mesquinha.
Tendo um elfo por assistente, Blackbone aven-
turou-se por outros caminhos da necromancia e co-
meçou, então, a invocar o Demônio, atendendo a pe-
didos de clientes especiais. Mas isto precisava ser feito
sempre à meia-noite e, preferivelmente, em um cam-
po sagrado, sobretudo um campo sagrado que não
estivesse sendo usado, tal como ruínas de igrejas ou
fundações de construções religiosas desabitadas. O
necromante e os clientes especiais dirigiam-se, às es-
condidas, a lugares como Bromholm ou St. Benet.
Elfino, voando invisível e devidamente fantasiado pa-
ra a ocasião, acompanhava-os sem ser identificado.
Ao ser proferida a Palavra de Poder, ele se tornava
visível e lançava imprecações, ameaças, e chicoteava
seu rabinho até que o necromante lhe ordenava que
voltasse às trevas. Esse era o “espetáculo” para as noi-
tes enluaradas, pois quando a lua não aparecia ele so-
brevoava o grupo invisível, sussurrando blasfêmias e
segredos inconfessos. Elfino não tinha qualquer re-
ceio ou pudor em blasfemar, pois sendo um elfo não
acreditava em Deus. Mas os segredos inconfessos cer-
tamente fizeram o sangue de vários homens congelar

112
em suas veias. E então, quando um mercador de rou-
pas masculinas, após uma crise de consciência, come-
çou a espalhar escândalos sobre as atividades desen-
volvidas em Walsham Borealis, Mestre Blackbone re-
solveu que seria mais prudente que ele e Elfino desa-
parecessem antes de serem jogados nas masmorras.
Guardaram todo o equipamento — o alambi-
que, o mapa celeste, o livro de encantamentos e a ca-
veira — e foram embora antes dos primeiros raios de
uma calma manhã de abril. A medida que viajavam
para o sul, Elfino começou a contar os moinhos de
vento e as torres de igreja que via, e percebeu um nú-
mero consideravelmente maior de moinhos. Mestre
Blackbone havia dito que as torres de igreja traziam
mais lucros. Moleiros eram espertos e trapaceiros, mas
onde houvesse uma igreja podia-se contar cora tolos
crédulos. Se Elfino não fosse um elfo e conhecesse as
Sagradas Escrituras, ele saberia que os tolos são os
que cabem aos sábios. Mas, por ora, Mestre Blackbo-
ne resolvera lidar com encantamentos mais leves, co-
mo poções de amor e ungüentos contra as alergias da
primavera. Informou a Elfino quais as ervas de que
necessitaria, principalmente de henbane, uma erva me-
dieval considerada afrodisíaca, que crescia natural-
mente nos arredores de Needham, no condado de
Suffolk, onde o mestre havia nascido e brincara com
fadas durante sua infância.
— Como eram essas fadas? — indagou Elfino,
não imaginando que Mestre Blackbone soubesse que
elas eram seres resplandecentes. Mestre Blackbone
respondeu que elas eram verdes, moravam nas colinas
e, buscando na memória, tinham cheiro de flor de sa-

113
bugueiro. Em Zuy, essas flores eram usadas para dar
sabor à geléia de groselha preparada pela população
mais pobre — considerada uma conserva muito vul-
gar.
A esta época, em Zuy, os jardineiros estariam
juntando os tufos de murta, seu tio estaria levando as
damas da Corte a passear pelas alamedas arenosas pa-
ra admirar os jacintos e ele estaria longe de suas men-
tes, pois, em sociedade, esquecer os fracassados era
simplesmente a coisa correta a ser feita. Ninguém da-
ria importância a mais um de seus fracassos, o de não
ter conseguido entregar aquela carta confidencial, mas
ele jamais poderia voltar a Zuy. E não queria realmen-
te voltar, pois o mundo dos mortais era muito mais
divertido. Os mortais não tinham vidas monótonas,
sempre arranjavam coisas novas e diferentes para fa-
zer, talvez por saberem que a sua existência neste
mundo seria muito breve. Amor, ódio, ambição, pla-
nos, medos, tudo era sempre diferente. Mesmo como
mero assistente de um charlatão, ele tinha mais poder
do que jamais conseguiria em Zuy. E esta era a vida
que ele queria: muito poder e nenhuma preocupação.
Mas banha de porco foi algo que ele não previ-
ra que queria ter nesta vida. Todos os ungüentos de
Mestre Blackbone tinham por base banha de porco, e
o mestre a comprava em seu estado bruto dos açou-
gueiros das cidades por onde passavam. Elfino rece-
beu a tarefa de tornar a banha mais diluída, para ser
usada em tinturas junto com extratos de ervas. Porém,
por mais que as lavasse, suas mãos permaneciam en-
gorduradas e o odor da banha subia até as suas nari-
nas. Elfino passou, então, a gostar até daquelas ervas

114
que tinham um odor mais forte, pois qualquer odor
era melhor que o da banha. Menta, então, era o odor
dos deuses! E, além disto, coube-lhe também a tarefa
de colher as flores de sabugueiro.
Não há qualquer base científica de que a flor de
sabugueiro precisa ser colhida exatamente à meia-
noite. A luz do sol potencializa seus efeitos (altamente
eficazes contra dor de dente, insônia e piolhos), mas a
flor fica em seu melhor período para a colheita na
parte da tarde de um dia quente.
Certo dia, Elfino encontrava-se em um peque-
no outeiro colhendo, invisível, flores de sabugueiro,
pois Mestre Blackbone não queria que todos os Joões
e Josés da cidade soubessem quais eram e de onde
vinham os ingredientes de suas poções. Como Elfino
estava invisível, um carneirinho não o viu e chocou-se
contra ele, jogando-o no chão e derrubando o cesto
cheio das flores já colhidas. Ao ver uma chuva de flo-
res de sabugueiro cair do nada, ser agarrado por uma
das orelhas e levar um bom beliscão (dado por Elfi-
no), o carneiro baliu chorosamente, atraindo sua mãe,
que veio logo em seu socorro. Ela também colidiu
contra Elfino e, por estar bem pesada com toda a lã
que ainda seria tosquiada, jogou-o a uma boa distân-
cia. Elfino ainda estava deitado de costas, aturdido,
quando uma menina surgiu do nada, inclinou-se sobre
ele e deu-lhe um forte e certeiro tapa no rosto. Mas
sua dignidade e hombridade não podiam ser ofendi-
das, e então Elfino puxou-a para si de modo que ela
caiu sobre ele. Foi quando percebeu que a menina era
verde.
Era lindo o tom de verde dela, delicado, como

115
uma sombra esverdeada que o sol projeta quando in-
cide sobre uma bela folhagem. Seus cabelos, sobran-
celhas e cílios eram de um tom mais escuro de verde;
seus cílios desciam por suas faces como uma samam-
baia chorona. Seus dentes eram perfeitamente bran-
cos. Sua pele, quase transparente, ao ponto de suas
veias azuladas poderem ser vistas claramente nos pul-
sos e em seu peito, como em um chão de mármore.
Como permaneceram assim deitados por um
bom tempo, a menina começou a acariciar o vergão
que seus dedos haviam deixado no rosto de Elfino
com evidente demonstração de triunfo. O amor não
aumentou nem diminuiu sua cor. Ela permaneceu
com o seu tom verde exatamente como era. O aroma
era, naturalmente, o aroma de flores de sabugueiro.
Era estranho pensar que ela poderia ter sido uma das
fadinhas que haviam brincado com Elisha Blackbone
durante sua infância, uns quarenta ou cinqüenta anos
atrás. Elfino deixou de lado seus pensamentos e co-
meçou a beijá-la, primeiro atrás de uma orelha e de-
pois atrás da outra, tentando identificar qual seria mais
sensível. Mas deste momento em diante, certamente
foi atingido pela flecha do amor.
Finalmente, Elfino perguntou o nome da linda
criatura. “Doninha”, disse ela. “Mas vou chamar-te de
Mustela”, retrucou ele, seguindo a tradicional necessi-
dade dos amantes de atribuir um nome só seu a seus
amados. No entanto, ele continuou a chamá-la de
Doninha. Sentaram-se e perceberam que o tempo ha-
via continuado seu curso sem eles. A noite caía e as
flores de sabugueiro começavam a murchar.
Quando se separaram, as ovelhas andavam em

116
círculos no topo da colina, aquele pequeno pedaço de
terra que era o centro da tribo da menina. Elfino voou
sem pressa de volta para seu mestre, balançando sua
cesta vazia. Tanto melhor, isto seria um pretexto para
sair novamente no dia seguinte para colher flores de
sabugueiro em um lugar onde cresciam com maior
abundância. Ele poderia ter identificado o lugar na-
quela hora mesmo se quisesse, mas já estava ficando
muito tarde para colher as flores, e olhar para outro
lado distraidamente enquanto voava lhe custou um
arranhão em um dos lados do rosto ao bater contra
um arbusto mais baixo. Em Zuy, essa falta de cuidado
sofreria indagações; mas isso poderia acontecer a um
mortal, embora ele precisasse ser esperto ao dar expli-
cações. Mestre Blackbone tinha, por vezes, uma intui-
ção aguçada demais para um mortal.
Mas mesmo tal intuição não se estendia ao res-
peito pela idade e aprendizagem, e assim Elfino foi
alojado do lado de fora, em um colchão de palha, à
mercê do vento. Quando amanheceu, o elfo sonhou
que estava deitado ao pé de um azevinheiro. Mas o
que imaginou ser a sombra da árvore era Doninha
debruçada sobre ele. Elfino se mexeu e acordou rapi-
damente, temendo que ela o esbofeteasse novamente.
Mas Doninha deitou-se a seu lado e, de repente, ele
percebeu que estavam mesmo sob um azevinheiro,
ouvindo o forte ronco de Mestre Blackbone a pouca
distância.
Em Zuy, eles sempre se referiam ao Reino In-
glês dos Elfos com certa censura e ao mesmo tempo
admiração devido à sua opulência, extravagância, falta
de governança, ostentação e excentricidade. Mas a

117
excentricidade de se ter a pele verde e morar sob uma
colina não estavam incluídas nessa admiração. Uma
colina em si, sim. Estudiosos comentavam sobre anti-
gas habitações em colinas, nas quais havia evidência,
em fragmentos de objetos de cerâmica e em contas,
da existência de fadas. Mas nunca, em tempo algum,
de uma criatura verde em sua sociedade. Todas as be-
las jovens de Zuy, todas elas brancas como a neve,
teriam desmaiado só de pensar em tal hipótese. Mas
ignorando tais dogmas de seu passado, Elfino olhou
docemente para Doninha, aconchegada a ele como
uma lagarta sobre uma folha verde, rosada e cheia de
vida como a primavera, e agora uma realidade presen-
te.
Ela se espreguiçou, abriu os olhos e riu.
— Shhh!
Apesar de invisível, talvez pudesse ser ouvida,
pois sua voz era estridente como a de uma cambaxir-
ra. Tinha vindo até ele de maneira tão singela, confi-
ando nele, que Elfino sentiu que não poderia mandá-
la embora. E assim, para não parecer ingrato, ele deci-
diu passear com ela, deixando Mestre Blackbone a
imaginar onde teria ido seu assistente tão cedo de ma-
nhã. Por desjejum, os dois comeram morangos silves-
tres e um pedaço de pão que Elfino tivera a presença
de espírito de pegar antes de saírem. Mas isto não era
suficiente para Doninha, e assim, quando chegaram a
um riacho, ela facilmente pegou alguns peixinhos e
comeu-os crus mesmo. O amor é uma emoção famin-
ta, e lá pelo meio-dia Elfino arrependeu-se de não ter
comido alguns peixinhos também. Com muito tato,
começou a fazer perguntas a Doninha sobre a vida

118
nas colinas: os confortos que tinha, o que comia, co-
mo era a sua rotina. Mas repentinamente Doninha
tornou-se evasiva, dizendo que ele não gostaria da
vida que as fadas levavam, pois era monótona, anti-
quada, e as fadas eram seres anti-sociais.
— Mesmo assim eu gostaria de visitar a colina.
Nunca estive dentro de uma.
— Não! Não podes ir até lá! Isto está fora de
cogitação! Elas se voltariam contra ti e serias expulso
imediatamente! Tu não és verde.
Etiqueta, ah, a etiqueta!
— Compreendes?
— E o que elas fariam se descobrissem que a-
cordaste ao meu lado hoje de manhã?
— Ah, elas teriam de aceitar! Os seres verdes
não são belicosos com os da mesma espécie, mas tu,
tu serias cortado em pedaços!
— O mesmo aconteceria se eu te levasse para
Zuy, de onde venho. Todos seriam muito educados,
mas nunca te perdoariam por ser verde. Mas não que-
ro levá-la para lá, Doninha. Vamos ficar em Suffolk.
E se chover e chover e chover...
— Eu não me importo com a chuva...
— Nós vamos encontrar um abrigo seco e a-
quecido.
E a seguir, brincaram como crianças, de uma
maneira exageradamente feliz, como se quisessem es-
quecer o desespero que por um momento chegaram a
sentir.
O verão foi avançando; as flores de sabugueiro
duraram mais do que as rosas silvestres, mas à medida
que o outono se aproximava, o único cheiro de flores

119
de sabugueiro que Elfino sentia vinha de Doninha, e a
lua cheia seguinte pareceu mais cheia, lançando seu
brilho prateado sobre os montes de feno e os campos,
e os dois amantes entraram em uma fase mais calma
de seu romance, passeando pelos dias como passea-
vam pelas paisagens de Suffolk. Raramente sentiam
fome agora, pois havia cogumelos em abundância e
Elfino planejou seu trabalho de assistência a Mestre
Blackbone de maneira mais sistemática, servindo-se
de lauto café da manhã enquanto passava grandes bo-
cados de comida para uma Doninha invisível. O café
da manhã era a única razão pela qual eles ainda dor-
miam sobre o colchão de palha. Mas como eram jo-
vens e perfeitamente felizes, tendo prometido um ao
outro um amor eterno até o final de seus dias, natu-
ralmente falaram sobre a morte e decidiram que
quando um deles morresse o outro o seguiria. Elfino
preferia ser atingido por um raio enquanto dormiam
abraçados, mas Doninha tinha pavor de trovão, tre-
mendo e tapando seus ouvidos ao menor sinal de al-
gum mais distante. Apesar de Elfino lhe falar de ma-
neira calma e confortadora sobre aquele fluido elétrico
e lhe narrar suas experiências recentes utilizando âm-
bar e duas meias de seda — uma branca e uma preta
—, Doninha recusava-se a morrer atingida por um
raio.
E Mestre Blackbone, que estava atolado em
trabalho graças à sua crescente fama, não conseguia
acreditar no que estava acontecendo, mas continuava
a fazer horóscopos e a invocar a deusa Fortuna para
seus clientes, cada vez mais tolerante com a falta de
atenção de seu assistente, pacientemente compondo

120
suas poções sem ajuda, sorrindo benevolamente ante
os desaparecimentos de Elfino, dia após dia, noite
após noite.
Até que, certa hora, Mestre Blackbone não sa-
bia mais o que fazer; mergulhado em melancolia não
se decidia se continuava trabalhando sozinho ou se
contratava um assistente qualificado e se retirava de
cena, apenas colhendo os frutos de sua fama. Decidiu
escrever uma carta a um velho amigo em Londres,
mas não confiou a Elfino a entrega dessa carta, apesar
de este saber de sua existência. Doninha tinha certeza
de que o velho Mestre estava maquinando algo —
antipatizara com ele no instante em que o conhecera
—, e então ambos decidiram ficar atentos ao que o
mestre fazia. No entanto, isto de nada lhes adiantou,
pois logo um estranho estava sentado à frente de
Mestre Blackbone, conversando com ele, quando de-
cidiram espiar, invisíveis.
O estranho era um homem corpulento, com
uma expressão de alguém que já havia conhecido um
pouco de tudo da vida. Mestre Blackbone conversava
com ele em tom melífluo.
— E uma mina, uma verdadeira mina de ouro!
Duas criaturinhas jovens, em perfeita saúde. Qualquer
agente sonharia em tê-los. Mas tenho mantido absolu-
to sigilo sobre eles, pois gostaria que o senhor tivesse
a primeira opção.
— Obrigado, aprecio sua consideração — res-
pondeu o estranho. — Mas isso significa um risco
considerável.
— Oh, não, de modo algum! O público viria
em multidões para vê-los e o senhor poderia dobrar o

121
preço dos ingressos. Na verdade, o senhor deveria
fazer isso mesmo, pois são criaturas únicas! São uma
raridade científica. E não haveria uma cadeira vazia
em qualquer das apresentações, pode ter certeza! E
também atrairiam estudiosos, acadêmicos, professores
de faculdades, damas da Corte. Ouso dizer, até um
certo patrocínio real!
O estranho disse que não gostava de comprar
no escuro, mercadorias que não pudesse examinar
direito.
— Mas o senhor tem a minha palavra! Um par
de criaturas mágicas — jovens, apaixonadas. Elas lhe
trarão grande fortuna!
— Quanto o senhor está pedindo por eles?
— Dois terços das entradas vendidas. Isto não
é nenhum valor exorbitante, preste atenção, não estou
me referindo a dois terços do lucro. Dois terços das
entradas vendidas e um contrato por escrito.
O estranho repetiu que não gostava de comprar
mercadorias no escuro, ainda mais quando não tinha
qualquer garantia de poder examinar suas mercadori-
as.
— Espere até hoje à noite! Eles costumam vol-
tar toda noite para dormir naquele colchão de palha.
Confiam em mim como se eu fosse seu pai. Espere
até que adormeçam e, então, jogue uma rede sobre
eles, e eles serão seus!
— Mas suponhamos que quando eu os levar
para Londres eles se sintam assustados e resolvam não
colaborar, não fazer as apresentações, permanecendo
invisíveis? Quem irá pagar para ver algo invisível?
Mestre Blackbone assegurou-lhe que havia ma-

122
neiras e maneiras de se conseguir as coisas, assim co-
mo com animais amestrados.
— Vamos embora, Doninha. Precisamos fugir
daqui. A voz de Elfino se fez ouvir em alto e bom
som.
Elfino e Doninha não cabiam em si de tanto
contentamento, brincando livres nos campos aonde
habitualmente iam, molhando seus pés no riacho on-
de pegavam seus peixes. Mas precisavam encarar a
dura realidade: não tinham para onde ir. As fadinhas
jamais aceitariam Elfino e o assassinariam por não ser
verde. Mestre Blackbone pretendia vendê-los por se-
rem criaturas mágicas. Ele poderia ter ainda algum
desígnio maléfico reservado para eles, apesar de seus
poderes como necromante não serem dos melhores.
Mas, de todo modo, eles precisavam se afastar do cír-
culo mágico do Mestre. Elfino, que antes estivera feliz
em ter deixado toda a sua prudência para trás em Zuy,
percebeu então que a prudência lhes havia sido de
grande valia. Como a prudência não apresentava qual-
quer atrativo para Doninha, Elfino precisou conven-
cê-la de que afastar-se daquele lugar lhes traria gran-
des aventuras, e só assim ela foi persuadida a partir.
Tendo o mundo inteiro à sua frente, Elfino
voou bem alto para inspecionar o terreno e avistou o
mar próximo dali. Seguindo a orla marítima, chegaram
a Great Yarmouth, onde permaneceram por várias
semanas. O lugar era perfeito para seus propósitos,
com gente alegre, cheia de vida e comida farta à von-
tade — tortas recém-saídas do forno no mercado,
arenque disponível no cais do porto tão logo os bar-
cos voltavam da pesca. O ar foi se tornando frio e

123
cortante, e Elfino resolveu roubar uma calça de mari-
nheiro tamanho infantil e um cachecol de lã para Do-
ninha de uma loja de roupas perto da alfândega. Ape-
sar de ele não querer ir embora daquela cidadezinha,
Doninha adorava a proximidade do mar e estava se
mostrando muito nas docas com sua nova calça de
marinheiro; com isso, atraía olhares surpresos devido
ao seu rosto verde. Esta notoriedade poderia chegar
aos ouvidos de Mestre Blackbone.
Voaram para o interior, então, guiando-se pelas
torres das igrejas. Onde há torres de igrejas há sempre
tolos crédulos, dizia Mestre Blackbone. Bem que isso
era verdade. Mas Elfino cansou-se de roubar, apesar
de isto ser uma tarefa mais desafiadora nas pequenas
vilas, e resolveu tentar ser um homem honesto e tra-
balhador. Ele estava agora tão curtido do sol e com
um ar tão abatido, que poderia facilmente passar por
um trabalhador. E assim conseguiu primeiro um em-
prego ensacando batatas e depois embalando junco
para ser usado na cobertura de casas. Em um vilarejo
chamado Scottow, onde o capelão tinha reumatismo,
Elfino cavou uma cova. Mas Doninha não via a me-
nor graça em trabalho honesto, e assim passava seu
tempo colhendo amoras por perto, invisível. Nesses
pequenos vilarejos rústicos, onde um circo ou um ín-
dio malabarista jamais havia pisado, seu lindo rosto
verde poderia lhes trazer complicações e até serem
apedrejados.
O inverno chegou mais tarde naquele ano, fur-
tivamente, mas as noites já estavam ficando bem frias.
Isto não acontecia em Suffolk, reclamava Doninha.
Elfino sabia que sob a colina, junto com as outras fa-

124
das, sempre estivera aquecida. Esperando encontrar
um tempo mais ameno, rumaram para o sul. Ele havia
ganhado mais do que o suficiente para poder pagar
uma noite em um quarto de hotel para os dois. Em
Bury St. Edmunds, comprou um lindo manto com
capuz para ela e, pedindo-lhe para cobrir a cabeça,
Elfino dirigiu-se a um hotel respeitável e pediu hos-
pedagem no melhor quarto. Tudo parecia correr bem,
mas indubitavelmente os empregados olharam para
ele com um certo ar de suspeita. Dominado pela ansi-
edade de controlar a situação, ele havia readquirido
suas maneiras educadas, de um autêntico representan-
te da classe alta, o que não condizia de forma alguma
com as roupas que trajava. A cama com dossel era tão
confortável que se hospedaram por mais uma noite
no hotel, e Elfino dispensou a camareira, dizendo-lhe
que sua esposa tinha uma forte dor de cabeça e não
deveria ser perturbada. Tão logo a camareira retirou-
se, Elfino afastou o cortinado e entrou na cama ao
lado de sua amada. Mas, após a segunda noite, suas
economias acabaram.
Deixaram o hotel a pé e continuaram cami-
nhando devido à forte neblina. Se tivessem tentado
voar, poderiam se perder um do outro. Novamente
roubaram seu jantar, mas Elfino sentiu-se tão mal
com aquilo que decidiu mendigar. Estava ensaiando a
cantilena de um mendigo quando viram uma luz a-
vermelhada brilhando no meio da névoa e ouviram
um martelo bater em uma bigorna. Doninha, como de
costume, levou as mãos aos ouvidos, mas, ao se apro-
ximarem, sentiram o calor da lareira e da forja, e isto
foi suficiente para convencê-la a seguir Elfino, que

125
entrou na loja do ferreiro tremendo ostensivamente e
pedindo que o homem os deixasse ficar próximos ao
fogo por algum tempo, pois não incomodariam e logo
iriam embora. O ferreiro, que estava fazendo ferradu-
ras, concordou com um movimento da cabeça e con-
tinuou com seu trabalho. Elfino ia começar sua canti-
lena de mendigo quando o ferreiro comentou que
num dia como aquele ninguém deveria estar ao relen-
to, e convidou Elfino a se aproximar mais do fogo.
— Pobre alma, ela bem que precisava de um
pouco de caridade — disse ele. — Mas hoje não en-
contramos ninguém que fosse caridoso conosco. Pas-
samos por um hotel há pouco — de onde haviam
roubado seu jantar —, mas lá ninguém quis nos dar
um quarto.
Doninha interrompeu-o:
— O que é aquele vulto escuro que aparece e
desaparece?
— Senhora — respondeu o ferreiro —, aquela
é a igreja. Agradeceram e partiram, Elfino sentindo
que precisava ser mais enfático, mais sentimental em
sua maneira de mendigar. O ferreiro permaneceu à
porta, seguindo-os com o olhar. “Nesta mesma época
do ano”, pensou ele, e desejou que não tivesse feito
com aquele casal o que haviam feito com São José e a
Virgem Maria.
Aquele curto dia de dezembro estava termi-
nando quando Elfino e Doninha chegaram à igreja. A
parte sul, ao longo da qual corria uma varanda, estava
protegida do vento frio e lá eles se sentaram, enrola-
dos no manto que Elfino comprara para Doninha.
— Não podemos dormir aqui — disse ele.

126
Elfino tentou abrir a porta da igreja, mas estava
trancada. Decidiu que tentariam entrar por uma das
janelas. Voaram em volta da igreja, tateando nos vi-
dros gelados das janelas, e já estavam quase comple-
tando sua volta quando se depararam com a torre,
projetando-se ameaçadoramente sobre eles. Elfino
ouviu um estalido mais acima, vindo de uma das jane-
las do clerestório, onde o vidro de uma delas havia
sido substituído por uma veneziana. Forçaram-na,
conseguiram abri-la e voaram para dentro, descendo
em círculos no escuro até chegarem a um pavimento
de lajes. Apoiada contra uma janela havia uma estrutu-
ra alta com um pico. Tateando-a com os dedos, per-
ceberam que a estrutura era de madeira entalhada e de
uma parte que parecia uma base que se projetava em
um cálice. Alguns degraus faziam um semicírculo em
volta dessa base. Eles subiram os degraus que davam
na base e viram que esta era, na verdade, um armário
octogonal sem o topo, mas revestido por um tapete.
Se ficassem curvados e abraçados, haveria espaço para
ambos se deitarem. O cheiro de madeira lhes deu uma
sensação de segurança, e assim eles passaram a noite
no púlpito.
Elfino acordou com a risada de Doninha. A luz
do dia entrava entrando pelas janelas e Doninha voa-
va próximo ao telhado, rindo das figuras de madeira
que sustentavam as traves cruzadas — imitações enta-
lhadas de fadas, com quase quatro metros de altura,
com suas asas iguais às asas de perus, os rostos emaci-
ados, cada uma mais feia do que a outra. “Então é
assim que eles nos imaginam”, disse Doninha. “E o-
lhe para essa!” — ela apontou para a fada logo acima

127
do púlpito, que parecia estar tocando um trompete.
Explorando o que estava ao nível do chão, El-
fino leu os Dez Mandamentos e encontrou meia gar-
rafa de vinho e algumas pastilhas de uma massinha
bem fina. Aquilo serviria como café da manhã, e mais
tarde ele iria até a vila e veria o que poderia conseguir
lá. Quando executava seu número de Demônio em
Walsham Borealis, ele havia aprendido algumas coisas
sobre a Igreja da Inglaterra, uma das quais que o mo-
narca, representado simbolicamente como um leão e
um unicórnio, era adorado com pompas e bastante
barulho em um dos dias da semana, mas nos demais
dias as igrejas ficavam vazias. Poderia ser uma boa
idéia passar o inverno ali. A construção os abrigaria
do vento e do mau tempo, Doninha parecia estar gos-
tando do lugar, e ele, particularmente, sentia-se encan-
tado com a amplidão e o pé-direito alto, que lhe lem-
bravam Zuy — mas uma Zuy melhor, sem seus habi-
tantes.
Abriu uma pequena porta e descobriu uma es-
cadaria circular de pedra. Mas neste instante, sua con-
fiança na Igreja da Inglaterra foi abalada pela entrada
de duas mulheres carregando baldes e vassouras. Ele
alertou Doninha, rapidamente pegou seu manto dei-
xado no púlpito e fez com que ela o seguisse, subindo
pela escadaria circular, segurando a garrafa de vinho e
as “pastilhas”. Os degraus estavam gastos e num deles
havia um corvo morto. Foram tateando o caminho na
escuridão, até que chegaram a um local iluminado.
Uma janela mostrava um patamar e uma porta que se
abria para um pequeno aposento onde cordas pendi-
am do teto. Doninha segurou uma das cordas e a pu-

128
xou. Ela teria puxado com mais força ainda se Elfino
não tivesse intervindo, prometendo-lhe que quando as
mulheres tivessem ido embora ela poderia puxá-la
com toda a força que quisesse. Olhando pela janela,
toda coberta de teias de aranha, ele viu o terreno em
volta da igreja e percebeu que se encontravam bem no
alto da torre. Mas os degraus subiam para uma parte
escura, e depois para outro patamar iluminado por
outra janela, do qual também se abria uma porta que
dava em outro aposento, o qual tinha janelas facetadas
bem altas era uma das paredes e a maior parte do
chão mostrava-se ocupada por uma estrutura que sus-
tentava oito sinos, quatro deles virados de cabeça para
baixo, com os badalos como línguas penduradas no
canto de suas bocas de ferro. Este era, então, o cam-
panário, Elfino explicou a Doninha. As cordas pendi-
am dos sinos indo até a sala que se encontrava mais
abaixo. Em Zuy havia uma torre semelhante àquela.
Os mortais tinham grande apreço por aquela torre e
seu tutor o havia levado para conhecê-la.
Doninha tocou o badalo de um dos sinos e,
como que acariciando um animal selvagem adormeci-
do, ele lhe respondeu com um som entre um ronronar
e um leve rosnado. Elfino badalou outro sino, mas
este lhe respondeu cora um tom diferente, mais pro-
fundo e ríspido, como se fosse um animal selvagem.
Porém, os dois estavam ficando com fome e os sinos
poderiam esperar. A luz que entrava pelas janelas fa-
cetadas oscilava, ficando ora mais forte, ora um tanto
sombria, conforme o vento soprava as nuvens. Uma
tempestade começava a se formar do lado de fora.
Mas eles estariam a salvo do vento àquela noite

129
e por muitas outras noites por vir. Janeiro, no hemis-
fério Norte, é um mês de muitas mortes; muitas covas
têm de ser cavadas e, com um pouco de sorte e plane-
jamento, pensou Elfino, ele poderia se tornar amigo
do capelão daquela e de outras igrejas próximas, e as-
sim ganhar seu sustento como coveiro. Doninha
guardaria migalhas do pão que ele ganhasse e com elas
alimentaria pássaros. Então pegariam esses pássaros,
os depenariam e os comeriam. Doninha preferia carne
crua, em que ainda pudesse sentir a vida pulsando.
Aos domingos, disse ela, eles aumentariam suas provi-
sões. Com todos fazendo barulho na igreja, roubar
pareceria uma brincadeira de criança. O púlpito seria
o melhor lugar para dormir, e ela poderia guardar as
penas dos pássaros para fazer um travesseiro, talvez
até um colchão. Seria fácil roubar uma fronha do varal
de alguma casa nas vizinhanças. O vento uivando do
lado de fora proporcionava-lhes idéias, cada um ten-
tando ter uma ainda melhor do que a do outro. Agora
faziam grandes planos de como dormiriam na igreja,
riam um do outro, e a seguir faziam mais planos. Es-
fregariam os narizes das fadas de madeira até que bri-
lhassem. Plantariam pés de agrião na pia batismal; El-
fino contaria toda a história da sua vida, até o dia em
que havia conhecido Doninha. Vamos lá, Elfino, co-
meça então! Quando nascera, porventura ele tinha o
nariz torto e os cabelos vermelhos? Começou sua his-
tória cora todos os detalhes. Doninha tentou manter
seus olhos abertos e segurar os bocejos. Elfino perdeu
o fio da narrativa. Tontos com o vinho, adormeceram.
Elfino acordou assustado, com dois sons en-
surdecedores. Doninha gritava de terror ao ouvir um

130
som cortante de metal. Os tocadores dos sinos tinham
vindo praticar para o Natal e, para se aquecerem, ha-
viam começado a tocar todos os sinos ao mesmo
tempo. O eco preencheu todo o ar quando começa-
ram a executar uma série de escalas, primeiro em tom
descendente, até chegar no sino que tinha o som de
tenor, e depois, seguindo outras escalas que termina-
vam com o mesmo efeito. As escalas se alteravam,
com o sino de tenor chegando até uma finalização
arbitrária de uma oitava. A cada troca de posição, o
sino de tenor parecia acumular uma melodia mais a-
meaçadoramente insistente e os demais pareciam soar
seguindo o tom dado por ele, como um rebanho de
ovelhas balindo, balindo.
Doninha se encolhia mais e mais nos braços de
Elfino. Ela já não tinha mais forças para gritar, e tudo
que conseguia fazer era tremer violentamente, anteci-
pando o impacto da próxima badalada ensurdecedora.
Elfino sentiu como se estivesse perdendo os sentidos.
O eco de cada badalada turvava mais e mais sua visão,
e tudo que conseguia enxergar era um borrão de sinos
virando-se para um lado e para outro, levantando-se e
abaixando-se sob o fundo do céu escuro. As implacá-
veis mudanças de escalas eram como as ondas que
haviam atacado o barco no qual ele saíra de IJmuiden.
Mas nesta câmara não havia saída e ele se sentia como
o barco, despedaçando-se à mercê da tempestade. Já
não conseguia sentir Doninha em seus braços; a pro-
teção c a compaixão que queria lhe oferecer estavam
se esvaindo, e seu amor parecia estar vindo de um
esqueleto, de um ser já quase sem vida. Ela ainda tre-
mia, mas de uma maneira convulsiva, como se estives-

131
se se desintegrando em vários pedaços. Elfino viu o
lindo tom verde sumir do rosto de sua amada. “Meu
amor”, disse ele, “se tivéssemos sido atingidos por um
raio, a morte teria sido mais fácil!” Mas ele mal conse-
guia ouvir suas próprias palavras.
A nevasca continuou até meados de março e
ninguém entrou no campanário. Finalmente, em abril,
um carpinteiro veio consertar as janelas facetadas e
encontrou os dois corpos, um curvado sobre o outro,
já em adiantado estado de decomposição. Ninguém
sabia quem eles eram, aqueles fragmentos leves de
uma substância estranha, que mais parecia uma gelati-
na que o vento havia espalhado pelo chão. Devido a
sua pequena estatura e seus pequenos e leves ossos, a
inscrição feita destes dois seres no Registro de Enter-
ros foi Duas Crianças Desconhecidas.

* **

SYLVIA TOWNSEND WARNER era mu-


sicista por profissão até decidir escrever poesia e his-
tórias, e criar um dos livros mais incomuns da literatu-
ra de fantasia do século passado, Lolly Willowes, publi-
cado em 1926. Este romance conta a história de uma
solteirona de meia-idade que mora em Londres e, can-
sada de sua austera existência, resolve mudar-se para o
interior. Lá, após descobrir possuir poderes insuspei-
tados, ela se toma uma feiticeira. Sylvia Townsend
Warner continuou a explorar seu interesse por magia
no livro The Cats-Cradle Book, publicado em 1940, on-
de gatos contam histórias para crianças, todas elas ba-
seadas em histórias de fadas. Seu último e mais famo-

132
so livro, The Kingdom of Elphin, de 1977, descreve a
vida de fadas que habitam mundos separados da raça
humana e que, embora não possam ser vistas pelos
adultos, podem ser percebidas pelas crianças.

133
A REGRA DOS NOMES
Úrsula Le Guin

O Sr. Monteiro é um homenzinho gordo e alegre; uma


figura quase cômica com suas pernas arqueadas cobertas por
meias pretas. Apesar de sua aparência singular, acreditem, ele é
um feiticeiro — o único na Ilha Sattins, onde é tratado com
uma mistura de afetuoso respeito e desdém. Não é lá muito bom
em magia — os tomates que tenta Jazer crescer nunca ficam
maiores do que melões, e as verrugas sobre as quais lança seus
feitiços sempre voltam depois de três dias. O que o Sr. Monteiro
mais gosta de fazer é cuidar de sua própria vida, ficar em paz
em sua caverna no pequeno monte próximo à aldeia, embora de
vez em quando os meninos mais corajosos tentem espiar lá den-
tro quando ele sai. E tem a estranha mania de desaparecer
sempre que algum barco se aproxima do cais, pois como dizem
as “boas” línguas, ele tem medo de mau-olhado. No entanto, a
vida na pequena Ilha Sattins começa a mudar radicalmente no
dia em que um garboso estrangeiro chega ao porto e encanta a
população — principalmente as mulheres. Num piscar de o-
lhos, o mundo fica de pernas para o ar: terá agora o Sr. Mon-
teiro de enfrentar um outro feiticeiro competindo por seus domí-
nios?

* **

O Sr. Monteiro saiu sorridente e esbaforido de


sua caverna. Cada expiração sua exalava um jato de

134
vapor esbranquiçado ao sol da fria manhã. Ele olhou
para o brilhante céu azul de dezembro e sorriu ainda
mais, mostrando seus dentes brancos como a neve.
Em seguida, desceu a encosta do monte em direção à
aldeia.
“Dia, Sr. Monteiro”, diziam os aldeões que por
ele passavam na estreita rua ladeada de casas com te-
lhados cônicos, idênticos àqueles chapeuzinhos ver-
melhos nas cabeças de sapos dos contos de fantasia.
“Dia, dia”, cumprimentava ele a todos que passavam.
(Os aldeões acreditavam que a Ilha Sattins estava sob
influências mágicas e, supersticiosos como eram, a-
creditavam que dizer bom-dia, usando o adjetivo de
maneira assim rotineira e descuidada, podia trazer azar
e mudar o clima da ilha por uma semana inteira. As-
sim, todos se restringiam à segunda palavra do cum-
primento.) Todos os transeuntes cumprimentavam o
Sr. Monteiro, alguns com verdadeira afeição e outros
com afetado desdém. Ele era o feiticeiro da ilha —
ou, melhor, o feiticeiro que lhes fora dado pelo desti-
no — e por isso merecia respeito. Mas como podiam
alguns dos aldeões sentir qualquer respeito por um
cinqüentão gorducho que andava gingando por causa
de suas pernas tortas, bufando vapor e sorrindo? E
que também não era lá grande coisa em matéria de
magia? Seus fogos de artifício até que eram razoavel-
mente bons, mas seus elixires, muito fracos. As verru-
gas que tentava eliminar geralmente voltavam depois
de três dias; os tomates não ficavam maiores do que
melões; e naqueles raros dias em que um barco des-
conhecido chegava ao cais de Sattins, o Sr. Monteiro
sempre se escondia em sua caverna no monte — com

135
medo de mau-olhado, como ele próprio dizia. Em
outras palavras, ele era um feiticeiro por força do des-
tino, e os aldeões, pelo menos os desta geração, ti-
nham de se contentar com portas quase caindo das
dobradiças e feitiços ineficientes. E por tudo isso tra-
tavam o Sr. Monteiro com a mesma familiaridade com
que se relacionavam com qualquer outro habitante da
aldeia, convidando-o, algumas vezes, até para o jantar.
Certa feita, foi o Sr. Monteiro que convidou alguns
aldeões para o jantar e serviu uma refeição esplêndida:
ganso assado, um vinho Andrades 1639 e pudim de
ameixa com calda caramelada, em uma baixela de pra-
ta acompanhada de copos de cristal e de uma toalha
de linho adamascado. Mas ele estava tão nervoso du-
rante toda a refeição que os aldeões nem puderam
desfrutá-la e, estranhamente, todos ficaram novamen-
te famintos meia hora depois. O Sr. Monteiro não
gostava de receber visitas em sua caverna, nem mes-
mo na ante-sala, e ninguém que o visitava conseguia
passar deste aposento. Quando o Sr. Monteiro via
alguém se aproximando de seu monte, ele ia rapida-
mente ao encontro da pessoa, com seu gingado pecu-
liar e dizendo: “Vamos nos sentar aqui fora, sob os
pinheiros”, e sorria, apontando para as árvores. E se
estivesse chovendo, ele dizia: “Que tal tomarmos um
drinque na estalagem?”, apesar de todos saberem que
ele não tomava nada além da água do poço.
Algumas crianças da aldeia, curiosas para saber
o que havia naquela caverna, iam até lá e tentavam
espiar dentro quando o Sr. Monteiro saía; mas a pe-
quena porta que dava para o aposento interno era
mantida trancada com um feitiço, um dos poucos que

136
parecia eficiente. Certa vez, dois meninos, pensando
que o Sr. Monteiro estivesse fora tratando do burrico
doente da Sra. Ruuna, levaram consigo um pé-de-
cabra e uma machadinha, mas, ao primeiro golpe na
porta, ouviu-se um urro de fúria dentro da caverna e
uma nuvem púrpura surgiu do nada. O Sr. Monteiro
tinha voltado para casa mais cedo e os meninos preci-
saram fugir numa corrida desabalada. Apesar de tudo,
o Sr. Monteiro não saiu de dentro de sua caverna e os
meninos não sofreram um arranhão sequer, mas con-
taram a quem quisesse ouvir que jamais poderiam i-
maginar que o gorducho homenzinho conseguisse
emitir um urro tão assustador e horrendo como o que
tinha sido ouvido.
Hoje o Sr. Monteiro estava indo à aldeia a fim
de comprar três dúzias de ovos frescos e meio quilo
de fígado, além de passar na cabana do Capitão Foge-
no, velho homem do mar, para lançar-lhe mais um
feitiço da visão (algo realmente inútil, pois o velho
homem estava com a retina descolada, embora o Sr.
Monteiro continuasse insistindo). Em seguida, ele pa-
rou para trocar algumas palavras com a Sra. Goody
Guld, a viúva do fabricante de acordeões. A maioria
dos amigos do Sr. Monteiro eram pessoas de idade;
ele se sentia intimidado em companhia dos jovens
fortes da aldeia, assim como as moças, por sua vez,
sentiam-se tímidas em sua companhia. “Ele me deixa
nervosa, ele sorri o tempo todo”, diziam elas, girando
nervosamente os anéis em volta de seus dedos. “Ner-
vosa” era uma palavra exagerada, e as mães das moças
retrucavam sarcasticamente: “Nervosa, ora vejam só!
Isso é pura bobagem! O Sr. Monteiro é um feiticeiro

137
respeitável!”
Depois de falar com Goody Guld, o Sr. Mon-
teiro passou pela escola cujas aulas estavam sendo
dadas na praça da aldeia. Como ninguém na Ilha Sat-
tins sabia ler e escrever, nenhum livro era usado, as-
sim como não havia nenhuma carteira ou lousa. Na
verdade, não havia exatamente uma escola; nos dias
de chuva, as crianças se reuniam no Celeiro Comuni-
tário e suas calças ficavam cheias de feno; e nos dias
de sol, a professora Palani levava-os onde achava me-
lhor. Naquele dia, rodeada por trinta crianças com
menos de doze anos de idade, ela estava ensinando a
trinta rostos bastante interessados uma matéria impor-
tantíssima do currículo: as Regras dos Nomes. O Sr.
Monteiro, sorrindo timidamente, deteve-se um mo-
mento para assistir à aula. Palani, bela jovem, mas um
pouquinho gorducha, de vinte anos de idade, estava
fazendo um lindo desenho sob o sol de inverno, ten-
do ovelhas e crianças à sua volta, os galhos de um
carvalho desfolhado sobre suas cabeças, e atrás dela as
dunas, o mar e um céu pálido e sem nuvens. Ela fala-
va com empolgação, com as faces coradas pelo vento
e pelo assunto:
— Muito bem, vocês já sabem as Regras dos
Nomes, crianças. Como sabem, existem duas regras, e
elas são as mesmas em todas as ilhas do mundo. Qual
é a primeira?
— Num é educadu pergunta o nome de nin-
guém — gritou um menino gordinho, sendo inter-
rompido por uma menininha com voz esganiçada:
— Minha mãe dissi qui a gente num devi di di-
zê u nome da gente pra ninguém!

138
— Muito bem, Suba. Certo, Popi querida, mas
não precisam gritar. Não devemos perguntar o nome
de ninguém, nem dizer o nosso próprio nome. Agora
pensem nisto por um momento e me digam por que
chamamos nosso feiticeiro de Sr. Monteiro.
Ela sorriu, e seu sorriso atravessou aquele lago
de cabeci-nhas encaracoladas e suéteres, chegando até
o Sr. Monteiro, que corou e começou a mexer nervo-
samente no saco de ovos.
— Pur quê ele mora numa caverna nu monte
— metade das crianças respondeu.
— Mas esse é seu nome verdadeiro?
— Não! — gritou o garoto gordinho, seguido
de outro esganiçado “Não!” de Popi.
— Como vocês sabem que não é?
— Pruquê ele veio pra cá sozinho e ninguém
num sabia u nomi deli de verdadi, e ninguém num
pudia conta pra genti e...
— Muito bem, Suba. Popi, por favor, não grite.
Está certo. Mesmo um feiticeiro não pode contar seu
verdadeiro nome. Quando vocês, crianças, termina-
rem a escola e forem para a Passagem, vocês abando-
narão seus nomes de criança e passarão a usar seus
nomes verdadeiros, mas jamais deverão perguntá-los
ou contá-los uns aos outros. Por que existe esta regra?

* **

As crianças ficaram em silêncio. Os carneiros


baliram. O Sr. Monteiro respondeu à pergunta, então:
— Porque o nome representa a “Coisa”, e o
nome verdadeiro é a verdadeira “Coisa”. E quando se

139
fala o nome, controla-se a “Coisa”. Estou certo, pro-
fessora?
Ela sorriu e fez uma mesura, evidentemente
embaraçada com sua súbita participação na aula. E o
Sr. Monteiro, então, se afastou em direção ao seu
monte, segurando o saco de ovos contra o peito. Por
alguma razão, o curto tempo observando Palani e as
crianças o deixara faminto. Ele trancou a pequena
porta que dava para seu aposento proferindo um rá-
pido encantamento, mas ele deve ter-se esquecido de
uma ou duas palavras, pois logo a seguir pôde-se sen-
tir o aroma de ovos e de fígado fritos na ante-sala da
caverna.
Soprava uma brisa suave naquele dia, vinda do
oeste, e este vento fresco trouxe, ao meio-dia, um pe-
queno barco deslizando sobre as ondas até o cais de
Sattins. O barco estava fazendo a curva quando um
menino da ilha, com seu olho sagaz, o viu se aproxi-
mando. Como todos os meninos da aldeia, ele conhe-
cia muito bem todas as velas dos quarenta barcos de
pesca da ilha e, assim, saiu gritando pela rua: “Um
barco estrangeiro! Um barco estrangeiro!” Muito ra-
ramente a ilha era visitada por um barco de alguma
outra também solitária ilha da Ponta leste ou por al-
gum comerciante aventureiro do Arquipélago. Quan-
do o barco chegou ao píer, metade da aldeia já se en-
contrava lá para saudá-lo; os pescadores do mar e os
pescadores de mexilhões no costão também se dirigi-
am ao cais; os pastores e os catadores de ervas desci-
am apressadamente as colinas rochosas; todos se diri-
giam ao cais.
Mas a porta da caverna do Sr. Monteiro per-

140
manecia fechada.
Havia somente um homem no pequeno barco.
Ao saber disto, o velho homem do mar, Capitão Fo-
geno, arqueou suas sobrancelhas brancas e disse:
— Somente um tipo de homem sai de barco
sozinho da Ponta Extrema. Um feiticeiro, um curan-
deiro ou um Mago...
E então os aldeões ficaram alvoroçados, espe-
rando ver, pela primeira vez na vida, um Mago, um
dos poderosos magos das ricas ilhas interiores do Ar-
quipélago, aquelas ilhas que tinham torres e vilas chei-
as de gente. Mas ao ver o homem bastante jovem,
com uma bem-cuidada barba negra saudá-los jovial-
mente do barco, ficaram desapontados. O jovem pu-
lou do barco para o píer, feliz como qualquer mari-
nheiro por chegar em terra firme. Ele se apresentou
como um mascate do mar, mas quando os aldeões
contaram ao Capitão Fogeno que o homem andava
com um cajado feito de madeira de carvalho, o velho
homem do mar assentiu: “Temos agora dois feiticei-
ros na mesma ilha. Isso não é nada bom!” E nada
mais disse.
Como o estrangeiro não pudesse contar seu
nome aos aldeões, eles lhe deram o apelido de Barba
Negra. E lhe deram também muita atenção. Ele havia
trazido consigo uma pequena carga de tecidos e san-
dálias, penas de piswi para adornar as vestes, incenso,
imitações de pedras preciosas e grandes contas de vi-
dro de Venway — as mercadorias que todo mascate
normalmente vende. Todos da Ilha Sattins vieram ter
com o viajante, conversar com ele ou talvez comprar
alguma coisa — “Só pra me lembrar dele!”, disse Go-

141
ody Guld que, como todas as mulheres da ilha jovens
ou não, estava encantada com a aparência do estran-
geiro. Todos os meninos ao seu redor também esta-
vam, ao ouvi-lo contar suas viagens a terras longín-
quas, às ilhas estranhas de além-mar, às ricas ilhas do
Arquipélago, às Terras Interiores, aos ancoradouros
para os grandes barcos e telhados dourados das casas
em Havnor. Os homens também queriam ouvir suas
histórias, apesar de alguns deles considerarem estra-
nho um mascate sair sozinho de barco e portar um
cajado.
Mas durante todo o tempo, o Sr. Monteiro
permaneceu em sua caverna, no monte.
— Esta é a primeira ilha que visito que não tem
um feiticeiro — disse o Barba Negra certa tarde para
Goody Guld, que o havia convidado, juntamente com
seu sobrinho Birt, e Palani para uma xícara de chá. —
O que vocês fazem quando sentem uma dor de dente
ou uma vaca não produz mais leite? — perguntou
Barba Negra.
— Ora, temos o Sr. Monteiro! — disse a velha
senhora.
— E nos viramos com o que ele consegue fa-
zer — murmurou Birt, que a seguir corou, com ver-
gonha, e derramou seu chá Birt era um pescador, um
jovem grande, corajoso, mas ingênuo, que não conse-
guia controlar a língua. Ele estava apaixonado pela
professora, mas o máximo que conseguia fazer para
demonstrar-lhe seu amor era trazer cestos de cavali-
nha para a cozinheira de seu pai prepará-las.
— Ah, mas então vocês têm um feiticeiro? E
ele é invisível?

142
— Não, ele só é muito tímido — respondeu
Palani. — O senhor está aqui há apenas uma semana,
e como nós temos tão poucos estrangeiros aqui... —
Ela também corou um pouco, mas não derramou seu
chá.
O Barba Negra sorriu para ela e disse:
— Ele é um bom homem da ilha então, certo?
— Não — disse Goody Guld —, é tão estran-
geiro quanto o senhor. Mais uma xícara de chá, Birt?
Não vá derramá-lo desta vez! Não, meu caro, ele che-
gou à ilha em um pequeno barco há uns quatro anos,
não foi? Exatamente um dia depois do final da pesca
de savelha, eu me lembro, pois estavam levando as
redes para o Riacho do Leste, e Pondi Pastoreio que-
brou sua perna naquela mesma manhã — cinco anos
atrás, deve ser. Não, quatro. Não, cinco. Foi o ano em
que o alho não brotou. E ele chegou em um barco
carregado de baús e caixas, e o Capitão Fogeno, que
não era cego na época, mas já não enxergava bem,
ouviu-o dizer: “Ouvi falar que vocês não têm nenhum
feiticeiro ou curandeiro na ilha. Gostariam de ter
um?” “Certamente, se for de magia branca!”, respon-
deu o capitão. E, num piscar de olhos, o Sr. Monteiro
estava instalado na caverna do monte e lançando um
feitiço no gato de Goody Beltow para tirar o mau-
olhado. Deu certo, apesar de o pêlo ter crescido cinza
num gato que antes tinha o pêlo alaranjado. Ficou
meio gozado o gato. Morreu no inverno passado,
quando esfriou de repente. Goody Beltow ficou des-
consolada com a morte do gato, coitada, pior do que
quando o marido dela afogou-se nos Bancos de Areia
no ano da pescaria de arenques, quando meu sobri-

143
nho Birt aqui ainda usava fraldas.
Birt derramou seu chá novamente, e o Barba
Negra riu, mas Goody Guld continuou falando sem
parar até cair a noite.
No dia seguinte, o Barba Negra estava no píer
consertando a prancha de seu barco, o que pareceu
levar muito tempo, e atraiu muitos aldeões. O Barba
Negra aproveitou a presença deles e perguntou:
— Qual desses barcos pertence ao seu feiticei-
ro? Ou talvez terá ele um barco encantado como os
grandes Magos, que fica guardado em uma caixa de
madeira quando não está em uso?
— Oh, não! — respondeu um pescador, de i-
mediato. — O barco dele fica guardado na caverna
onde ele mora, no monte.
— Ele levou o barco que usou para chegar aqui
até sua caverna?
— Claro. Eu o ajudei. Pesava como chumbo,
lotado de caixas cheias de livros de feitiços — disse
ele. — Pesado como chumbo. — E o pescador deu-
lhe as costas, suspirando. Birt, o sobrinho de Goody
Guld, que estava consertando sua rede ali perto, le-
vantou a cabeça de seu trabalho e perguntou, sem ro-
deios:
— O senhor gostaria de conhecer o Sr. Mon-
teiro?
O Barba Negra fitou Birt por um momento,
seus olhos negros fixos nos simplórios olhos azuis do
rapaz. A seguir, sorriu e disse:
— Sim, você poderia me levar lá na caverna do
monte, Birt?
— Claro, assim que eu terminar isto — res-

144
pondeu Birt. E quando terminou de remendar sua
rede, ele e o homem vindo do Arquipélago tomaram a
rua da aldeia em direção ao verde monte. Mas, ao cru-
zarem a Praça Comunitária, o Barba Negra disse:
— Espere um pouco, amigo Birt. Quero lhe
contar uma história antes de encontrarmos o seu feiti-
ceiro.
— Pois, então, conte logo — retrucou Birt,
sentando-se à sombra de um carvalho.
— Esta história começou cem anos atrás e ain-
da não terminou... mas logo terminará, logo, logo...
No coração do Arquipélago, onde as ilhas estão tão
próximas como moscas sobre o mel, há uma pequena
ilha chamada Pendor. O soberano de Pendor e seus
homens eram poderosos nos idos dias de guerra antes
da Liga. Pilhagens, resgates e tributos iam se acumu-
lando na ilha e eles acabaram formando um grande
tesouro lá, há muito tempo. Um belo dia, apareceu
um dragão na ilha, vindo de longe, da Ponta Oeste,
onde os dragões fazem seus ninhos nas ilhas de lava
vulcânica. Mas não era um daqueles lagartos enormes
que muitos de vocês nestas paragens chamam de dra-
gão; era um monstro enorme, negro, com asas, astuto,
cheio de sutilezas, mas muito poderoso, e, como to-
dos os dragões, fascinado por ouro. Ele matou o so-
berano de Pendor e seus soldados, e a população fu-
giu em seus navios quando a noite caiu, deixando o
dragão adormecido nas Torres. E lá o dragão ficou
por cem anos, aninhado entre as esmeraldas, safiras,
moedas de ouro, saindo de seu ninho somente uma
ou duas vezes por ano para alimentar-se. Ele atacava
as ilhas vizinhas para obter sua comida. Você sabe o

145
que os dragões comem? Birt assentiu e disse num sus-
surro:
— Virgens.
— Isso mesmo — continuou o Barba Negra.
— Mas essa situação não poderia durar para sempre,
não com o dragão sentado sobre todo aquele tesouro.
E assim, depois que a Liga se fortaleceu e o Arquipé-
lago já não estava mais tão ocupado com as guerras e
com a pirataria, eles decidiram atacar Pendor, expulsar
o dragão e trazer todo o ouro e as jóias para o tesouro
da liga. Esta sempre quer mais e mais dinheiro, sabe?
Eles formaram uma esquadra de navios vindo de cin-
qüenta ilhas e levaram sete Magos, cada um deles o-
cupando a proa de um dos sete navios mais podero-
sos que havia, e então a esquadra rumou para Pendor.
Quando chegaram ao seu destino, eles desembarca-
ram. Não se ouvia um som sequer. Todas as casas
estavam vazias, os pratos sobre as mesas com cem
anos de poeira acumulada. Os esqueletos do velho
soberano e de seus homens encontravam-se espalha-
dos pelo castelo, e nas salas da torre sentia-se um for-
te cheiro de dragão. Mas nem sinal de qualquer tesou-
ro, nenhum diamante, por menor que fosse, nenhuma
conta de prata... Sabendo que não poderia enfrentar
sete Magos, o dragão tinha fugido. Mas eles seguiram
seu rastro e descobriram que ele havia voado para
uma ilha deserta ao norte, chamada Udrath. Foram,
então, até lá, e sabe o que encontraram? Ossos, no-
vamente. Os ossos do dragão. Mas nenhum tesouro.
Um feiticeiro desconhecido, de alguma paragem, deve
ter surpreendido o dragão e acabou vencendo-o — e
então desapareceu com o tesouro, bem debaixo do

146
nariz da Liga!
O jovem pescador ouvia atento e imóvel.
— Convenhamos que esse feiticeiro era muito
poderoso e esperto, primeiro por conseguir matar um
dragão e, segundo, por conseguir fugir sem deixar ne-
nhum vestígio. Os lordes e Magos do Arquipélago
não conseguiram encontrar qualquer sinal dele, nem
descobrir de onde viera e para onde fora. Na última
primavera, eles estavam a ponto de desistir. Foi quan-
do retornei de uma viagem de três anos à Ponta Norte
e então eles me pediram para ajudá-los a encontrar o
feiticeiro desconhecido. Esta foi uma atitude inteli-
gente, pois eu não sou um feiticeiro, como alguns da
aldeia devem ter pensado; sou descendente de um dos
Lordes de Pendor. E aquele tesouro me pertence. Ele
é meu e Deus sabe como é meu! Aqueles tolos da Li-
ga não conseguiram encontrá-lo porque o tesouro não
lhes pertence. Ele pertence, de fato, à Casa de Pendor,
e a grande esmeralda, a estrela maior de todo o tesou-
ro, Inalkil, a Grande Pedra Verde, conhece seu dono.
A Visão! — O Barba Negra ergueu seu cajado de car-
valho e gritou: “Inalkil!” A ponta do cajado começou
a irradiar uma brilhante luz verde, da cor da grama na
primavera, e neste momento o cajado pulou da mão
do Barba Negra e começou a descrever diversos mo-
vimentos no ar, até que por fim ele se imobilizou e
apontou para a encosta do monte para onde se dirigi-
am originariamente.
— Ele nunca teve um brilho tão intenso quan-
do estava em Havnor! — o Barba Negra exclamou.
— Mas este cajado sempre me deu a Visão da verda-
de. Inalkil sempre respondeu quando a invoquei. A

147
pedra conhece seu dono. E eu agora sei quem é o la-
drão, e vou tomar o que é meu de volta! Ele é um fei-
ticeiro poderoso, que conseguiu vencer um dragão.
Mas eu sou ainda mais poderoso! Você quer saber por
quê, seu idiota? Porque eu sei o nome desse feiticeiro!
A medida que o tom do Barba Negra foi se
tornando mais arrogante, Birt parecia mais e mais apa-
lermado, sem entender nada; mas, à menção do nome,
ele tremeu, ficou em silêncio e encarou o homem do
Arquipélago. — Como... você... conseguiu saber o
no... nome dele? — conseguiu tartamudear.
O Barba Negra sorriu com escárnio, mas nada
disse.
— Magia negra?
— De que outra maneira? Birt empalideceu e
silenciou.
— Eu sou o Soberano de Pendor, meu jovem
idiota, e terei o ouro de meus ancestrais, as jóias que
minha mãe e as mães deles usaram, assim como a Pe-
dra Verde! Pois tudo isto é meu! Muito bem. Você
pode contar toda essa história para todos os boba-
lhões da aldeia depois que eu tiver vencido esse feiti-
ceiro e tiver ido embora. Espere um pouco... ou então
você pode me acompanhar e assistir a tudo, se não
tiver medo. Você nunca mais terá a chance de ver um
grande feiticeiro usar todos os seus poderes. — O
Barba Negra virou-se e, sem olhar para trás, encami-
nhou-se para o monte, em direção à entrada da caver-
na.
Bem devagar, Birt o seguiu. A uma boa distân-
cia da caverna, ele sentou-se à sombra de um pilriteiro
e observou. O homem do Arquipélago estava parado;

148
sua figura imóvel destacava-se contra o verde da en-
costa do monte. De repente ele girou seu cajado aci-
ma de sua cabeça, e aquele brilho de esmeralda irra-
diou sobre ele quando gritou: “Ladrão, oh, ladrão do
tesouro de Pendor, apareça!”
Ouviu-se um estalo dentro da caverna, como se
louças tivessem caído e quebrado, e a seguir uma nu-
vem de poeira saiu pela porta da caverna. Amedron-
tado, Birt enterrou a cabeça nos joelhos. Quando le-
vantou sua cabeça novamente, ele viu o Barba Negra
de pé, imóvel, e na entrada da caverna estava o Sr.
Monteiro, descabelado e empoeirado. Ele parecia tão
pequeno e desamparado, com suas pernas arqueadas
naquelas meias pretas, como sempre — Birt nunca
tinha tido meias pretas, ele pensou. O Sr. Monteiro
perguntou, então, com sua voz rouca:
— Quem é você?
— Eu sou o Senhor de Pendor, ladrão, e vim
tomar meu tesouro de volta!
Ao ouvir estas palavras, o Sr. Monteiro corou,
como sempre fazia quando alguém era rude com ele.
Mas, em seguida ficou de outra cor: amarelo. Seu ca-
belo ganhou volume e ele deu um urro — tornou-se
um leão amarelo, saltando sobre a encosta do morro
em direção ao Barba Negra, com seus afiados dentes
brancos brilhando.
Mas o Barba Negra não estava mais no mesmo
lugar. Um gigantesco tigre, com refulgentes listras
brancas e negras, saltou de encontro ao leão...
Mas o leão desaparecera. De repente, mais a-
baixo na encosta, apareceu um grupo denso de árvo-
res negras brilhando ao sol. O tigre congelou seu salto

149
um segundo antes de entrar na sombra das árvores e
tornou-se uma língua de fogo em pleno ar, lançando
labaredas em direção aos galhos negros e secos...
Mas onde segundos antes se encontravam as
árvores via-se agora uma catarata caindo da encosta,
formando um arco de água prateada e caindo direta-
mente sobre o fogo. E então o fogo desapareceu...
Em questão de segundos, o jovem pescador viu
dois montes se erguerem — um, o antigo e conhecido
monte verde onde morava o Sr. Monteiro, e um novo
monte, marrom, sem qualquer vegetação, pronto para
enterrar a catarata. Isto aconteceu tão rapidamente
que Birt piscou seus olhos várias vezes, e quando fi-
nalmente conseguiu enxergar de novo, o que viu dei-
xou-o ainda mais chocado. Onde antes havia a catara-
ta estava agora um dragão. Suas asas negras escurece-
ram todo o monte, suas garras de aço avançavam a-
meaçadoramente, e de um rasgo que era sua boca saí-
am jatos de fogo e vapor.
O Barba Negra estava de pé, imóvel, olhando
para a monstruosa criatura, rindo.
— Transforme-se no que quiser, meu pequeno
Sr. Monteiro — provocou ele. — Eu posso igualá-lo
em poder. Mas este jogo está se tornando cansativo e
agora quero meu tesouro, quero minha Inalkil. Assim
sendo, grande dragão, pequeno lagarto, retorne à sua
forma original. Eu assim ordeno, pelo poder de seu
verdadeiro nome — Yevaud!
Birt não conseguia mover um músculo, nem
mesmo piscar. Ele tremia, tentando decidir se devia se
mexer ou não. Viu o dragão negro pairar no ar acima
do Barba Negra, com múltiplas línguas de fogo saindo

150
de sua boca e jatos de vapor sendo exalados por suas
narinas. Então o Barba Negra começou a empalide-
cer, a ficar branco como giz, e seus lábios tremeram.
— Seu nome é Yevaud! — gritou ele novamen-
te.
— Certamente — disse uma voz grossa e sibi-
lante. — Meu verdadeiro nome é Yevaud e esta é a
minha verdadeira forma!
— Mas o dragão foi morto, eles encontraram
ossos de dragão na Ilha Udrath...
— Aquele era outro dragão — disse o dragão,
imobilizando-se no ar com suas asas bem abertas e
suas afiadas garras preparadas para o ataque. E então
Birt fechou seus olhos.
Quando abriu-os novamente, Birt só viu o céu
límpido e a encosta do monte vazia, exceto por uma
mancha preto-avermelhada e algumas marcas de gar-
ras no chão arranhado.
Birt, o jovem pescador, levantou-se e correu.
Passou pela Praça Comunitária a toda velocidade, as-
sustando e dispersando os carneiros, indo direto para
a rua principal da aldeia e para a casa do pai de Palani.
A professora estava no jardim, cuidando das capuchi-
nhas. — Venha comigo! — exclamou Birt. Ela o en-
carou sem entender, mas ele pegou em seu pulso e a
arrastou com ele. Ela reclamou um pouco, mas não
ofereceu qualquer resistência. Ele correu com ela dire-
tamente para o píer, empurrou-a para dentro de seu
barco de pesca, o Queenie, desamarrou a corda, pegou
nos remos e remou para longe como um pobre-diabo.
A última coisa que a Ilha de Sattins viu deles e do bar-
co foi a vela desaparecendo em direção à ilha mais

151
próxima, a oeste.
Os aldeões acharam que nunca mais iam parar
de falar sobre o assunto, sobre o sobrinho de Goody
Guld, que ficou maluco e remou mar adentro levando
consigo a professora, exatamente no mesmo dia em
que o mascate Barba Negra desaparecera sem deixar
qualquer vestígio, deixando para trás todas as suas
mercadorias. Mas, finalmente, eles pararam de falar
sobre isto três dias depois. Agora tinham outros as-
suntos para comentar, já que o Sr. Monteiro finalmen-
te havia saído de sua caverna.
O Sr. Monteiro tinha concluído que, uma vez
que seu verdadeiro nome não era mais segredo para
ninguém, poderia também abandonar seu disfarce.
Andar era bem mais difícil para ele do que voar, e fa-
zia muito, muito tempo desde que ele tinha tido sua
última refeição decente.

* **

ÚRSULA LE GUIN figura entre os dois ou


três mais importantes escritores norte-americanos
contemporâneos de ficção científica. Sua premiada
série de romances Earthsea, para jovens leitores, cer-
tamente constitui um dos trabalhos de literatura de
fantasia que mais influenciou a literatura do século
XX. Iniciada com O feiticeiro e a sombra, publicado em
1968, a saga narra as aventuras do jovem Ged Spar-
rowhawk, que foi enviado para uma escola de magia
em Roke Island - anos antes de Harry Potter —, tor-
na-se um mago e inicia uma luta de poder com o
“Sombra”. Como nos outros livros da série, Os túmulos

152
de Atuan (1971), O outro lado do mundo (1972), Tehanu
— O nome da estrela (1990), As viagens místicas em Earth-
sea (2001) e Planeta do exílio (2002), Le Guin nos pre-
senteia com uma narrativa empolgante que descreve a
vida em um Arquipélago onde magia e dragões são
elementos reais e há uma constante batalha entre o
bem e o mai. Mas a magia também tem seu custo -
pois, em Earthsea, deve haver equilíbrio em tudo e a
magia pode ser usada para corromper ou para curar
males. Úrsula Le Guin é mais uma escritora de litera-
tura juvenil cujos livros atraem também os leitores
adultos. Sua fascinação por magia pode também ser
apreciada em seus contos, destacando entre estes “A-
pril in Paris”, “Semley’s Necklace” e “The Word of
Unbinding”, todos povoados por magos, feiticeiros e
curandeiros.

153
A LOJA DE MÁGICAS
H. G. Wells

“O Dono da Loja de Mágicas” é um homem estranho e


extraordinariamente alto. Esta figura sombria possui uma ore-
lha maior do que a outra, e um queixo bicudo e quadrado.
Mas por trás de seu sorriso melífluo — “um verdadeiro parque
de diversões de emoções indescritíveis” — esconde-se a mente de
um homem que sabe muito sobre magia. Esta impressão é pron-
tamente confirmada aos clientes quando seus longos dedos mági-
cos entram em ação, produzindo faíscas que a seguir desapare-
cem nas sombras de sua pequena e misteriosa loja localizada na
Regent’s Street, em Londres. O narrador desta história nos
conta que a loja é de tamanho modesto, mas eu, pessoalmente,
nunca consegui encontrá-la. No entanto, o pequeno Gip e seu
pai tiveram mais sorte, e uma vez no interior da loja, percebe-
ram logo que o Dono da Loja de Mágicas era bastante exigente
ao escolher seus clientes — ele recusara um determinado garoto
por ser mimado demais —, pois, conforme informou a Gip, ele
só atendia “o tipo certo de garotos”. Aqueles que correspondes-
sem a seus critérios poderiam esperar surpresas inimagináveis,
dizia ele. Mas quando ele ofereceu-se para fazer Gip desapare-
cer, a magia tornou-se real demais para o pobre pai do garoto...

* **

Eu já tinha visto de longe a Loja de Mágicas vá-


rias vezes. Havia passado por ela uma ou duas vezes,
encantado com a vitrine que mostrava objetos peque-

154
nos e intrigantes, bolas mágicas, galinhas mágicas, co-
nes maravilhosos, bonecos de ventríloquos, a cesta
mágica, jogos de cartas que tinham uma aparência ino-
fensiva, enfim, todo tipo de coisas que se pode espe-
rar encontrar em uma loja de mágicas. No entanto,
jamais havia tido a curiosidade de entrar, até que um
dia, sem qualquer aviso, Gip me conduziu pelo dedo
até a vitrine e insistiu que eu o levasse para conhecer o
interior da loja. Para dizer a verdade, eu não imaginara
que a loja estivesse realmente localizada naquela qua-
dra da Regent’s Street — com sua aparência modesta,
ficava entre uma loja de quadros e um aviário —, mas
era lá mesmo que ela estava. Eu a imaginava mais a-
baixo na rua, perto de Picadilly Circus ou próxima à
esquina com a Oxford Street, ou talvez até em Hol-
born. A loja sempre parecera fora de mão e inacessí-
vel, como se fosse uma miragem. Mas naquele exato
dia, parado em frente à vitrine, lá estava ela, sem
sombra de dúvida. O dedo indicador gordinho de Gip
fez um barulho ao riscar o vidro da vitrine.
— Se eu fosse rico — disse Gip, passando o
dedo no vidro, indicando o Ovo que Desaparecia —,
eu compraria esse ovo. E aquilo também — “aquilo”
sendo o Bebê Chorão, Bastante Humano — “e aquilo
também”, algo realmente misterioso chamado, segun-
do a plaquinha à sua frente, “Compre Um e Deixe
Seus Amigos Arrepiados”.
— Qualquer coisa — disse Gip — que colo-
carmos sob aqueles cones vai desaparecer. Eu li a res-
peito num livro.
— E naquele canto, papai, está o Meio Tostão
que Desaparece, só que eles o colocaram de um jeito

155
que não conseguimos ver como a mágica é feita.
Gip, meu querido filho, herdou o temperamen-
to e a classe da mãe, e por isso sequer mencionou en-
trar na loja; mas você sabe como os garotos fazem: ele
segurou meu dedo como que indicando a porta e dei-
xou seu interesse em entrar bastante evidente.
— E aquela — continuou ele — é a Garrafa
Mágica.
— E se você tivesse aquela garrafa? — inda-
guei eu, em tom bastante promissor, ao que ele me
dirigiu um olhar radiante.
— Eu a mostraria para Jessie — respondeu ele,
que sempre pensava nos outros.
— Falta pouco menos de cem dias para seu a-
niversário, Gibbles — disse eu, pondo a mão na ma-
çaneta da porta.
Gip nada respondeu, mas segurou meu dedo
com mais força e então entramos na loja.
A loja era bastante incomum, e parecia pequena
e mal iluminada. Pude sentir toda a ansiedade e ante-
cipação que Gip sentia através do contato de seu dedo
segurando o meu. Quando fechamos a porta, a cam-
painha soou novamente, com uma nota lamuriosa.
Por um minuto ou dois ficamos sozinhos, olhando ao
nosso redor. Vimos um tigre feito de papier mâché den-
tro do compartimento de vidro que estava sob o bal-
cão — um tigre inteligente, com olhos bondosos, que
mexia sua cabeça de maneira metódica. Havia também
várias esferas de cristal, uma mão de porcelana segu-
rando inúmeras cartas de um baralho mágico, aquá-
rios redondos de diversos tamanhos e um imenso
chapéu de mágico que aparentemente não tinha qual-

156
quer vergonha em mostrar suas molas. No chão, di-
versos espelhos mágicos; um deles refletia nossas i-
magens mais alongadas e magras, outro refletia nossas
cabeças inchadas e fez nossas pernas desaparecerem, e
um terceiro nos mostrava baixos e gordos como ven-
tosas. E enquanto nos divertíamos e ríamos com os
espelhos, não percebemos o dono da loja aparecer.
Lá estava ele atrás do balcão — um homem
bastante incomum, sombrio, com um ar doentio, uma
orelha maior do que a outra e um queixo pontudo e
quadrado. Gip deixou que eu falasse.
— Em que posso servi-los? — perguntou o
homem, abrindo seus longos dedos mágicos sobre o
vidro do balcão. Ele nos pegou de surpresa, pois não
tínhamos percebido sua entrada.
— Eu gostaria de comprar alguns truques para
meu filho — disse eu.
— Prestidigitações? — perguntou ele. — Tru-
ques mecânicos? Brincadeiras domésticas?
— Algo divertido — retruquei eu.
— Hum — disse o dono da loja, coçando sua
cabeça como se estivesse pensando. E a seguir, como
que executando um número, ele retirou uma bola de
vidro de sua cabeça. — Algo como isto? — disse ele,
estendendo a mão.
Apesar de inesperado, o truque era bastante
comum, na verdade. Eu tinha visto mágicos fazerem
este mesmo truque em diversos shows, mas não espe-
rara que fosse acontecer naquele momento. — Muito
bom — disse eu, rindo.
— Bom mesmo, não é? — disse o dono da lo-
ja.

157
Gip estendeu sua mão livre para pegar a bola,
mas encontrou a palma da mão do homem vazia.
— Olhe dentro do seu bolso — disse o ho-
mem. E lá estava a bola de vidro!
— Qual o preço desse truque? — perguntei eu.
— Não cobramos pelas bolas de vidro — re-
trucou o dono da loja, educadamente. — Nós as con-
seguimos — ele então tirou outra bola de seu cotove-
lo — de graça. E retirou uma terceira de trás de seu
pescoço e a colocou ao lado da segunda bola, sobre o
balcão. Gip olhava com carinho para sua bola de vi-
dro, e então dirigiu um olhar inquisidor para as outras
duas. Finalmente, seus olhos fixaram-se no dono da
loja, que sorriu e disse:
— Pode ficar com estas outras também e se
você não se importar, com esta aqui também — e ele
retirou mais uma bola, desta vez de dentro de sua bo-
ca.
Gip me olhou buscando aprovação e depois
guardou as quatro bolas em silêncio. Segurou nova-
mente no meu dedo e se preparou, ansioso, para o
próximo truque que viria.
— Conseguimos todos os nossos pequenos
truques assim — comentou o dono da loja.
Ri como alguém que compreende e apóia uma
brincadeira.
— Melhor do que comprar de um atacadista —
disse eu.
— Bem mais barato, naturalmente.
— De certo modo — retrucou o dono da loja.
— Mas acabamos pagando, no final das contas. Não
um preço tão alto, como a maioria das pessoas supõe.

158
Nossos truques mais elaborados e nossas provisões
diárias, assim como tudo que queremos, tiramos da-
quele chapéu... E como o senhor sabe, e, por favor,
perdoe-me por dizê-lo, não existe nenhum atacadista,
não para Produtos Mágicos Genuínos, meu caro se-
nhor. Não sei se o senhor reparou bem no nome de
nossa loja: “A Genuína Loja de Mágicas”. — Ele pu-
xou um cartão de sua bochecha e o entregou a mim.
— “Genuína” — disse ele, com o dedo apontando
para a palavra no cartão. — Não há absolutamente
truque algum, senhor.
Ele parece estar levando a brincadeira bem a
sério, pensei.
Virou-se para Gip com o mais amável dos sor-
risos em seu rosto. — E você, meu caro rapaz, é o
Tipo Certo de Garoto.
Eu estava surpreso por ele ter conseguido per-
ceber, pois mantínhamos isto como que em segredo,
mesmo em casa. Mas Gip recebeu o comentário do
homem em silêncio, sem sequer piscar os olhos, seu
olhar pousado no homem o tempo todo.
— Somente o Tipo Certo de Garoto passa por
aquela porta. E para provar o que o homem acabara
de dizer, ouviu-se um barulho à porta e uma vozinha
suplicante ao longe. “Arre! Eu quero entrar, papai!
Quero entrar na loja. Arre!”, e este lamento foi segui-
do de reclamações de um pai que estava sendo arras-
tado à força, mas que tentava consolar seu filho a to-
do custo. “Está trancada, Edward”, disse a voz de
adulto.
— Mas... não está — retruquei eu.
— Está sim, meu senhor — disse o dono da

159
loja. — Nossa porta está sempre trancada para aquele
tipo de criança. — E enquanto ele proferia estas pala-
vras, pudemos ver de relance um rosto pequeno e pá-
lido, típico de crianças que comem muitos doces e
outras guloseimas nada saudáveis, as feições distorci-
das pela raiva, um pequeno ser egoísta, forçando a
porta encantada.
— Isso não vai adiantar — disse o dono da lo-
ja, enquanto eu, movido pela minha natural gentileza,
me encaminhava para a porta e o pequeno menino
mimado era carregado para longe dali aos urros.
— Como o senhor consegue fazer isso? —
perguntei eu, respirando mais aliviado.
— Mágica! — respondeu o homem, com um
gesto de pouco-caso, e então... faíscas de fogo colori-
das voaram de seus dedos e desapareceram por entre
as sombras da loja.
— Mas o nosso garoto aqui estava dizendo —
continuou ele, dirigindo-se para Gip —, antes de en-
trar, que gostaria de uma caixa de um de nossos
“Compre Um e Deixe Seus Amigos Arrepiados”?
Gip, após um bravo esforço, respondeu “Sim”.
— Já é seu.
E, debruçando-se sobre o balcão — ele era re-
almente muito alto —, aquele homem surpreendente
mostrou seu artigo a seu cliente da maneira como os
mágicos fazem.
— Papel — disse ele, e retirou uma folha de
papel do chapéu vazio com as molas à mostra. “Bar-
bante”, e logo apareceu um rolo de barbante, de onde
ele começou a puxar um fio infindável, o qual mordeu
quando acabou de amarrar o pacote. E então eu tive a

160
impressão de que ele havia engolido o rolo de barban-
te. E a seguir ele acendeu uma vela no nariz de um
dos bonecos de ventríloquos, pôs um de seus dedos
na chama — um dedo que havia se transformado em
um bastão de cera vermelha de lacre — e lacrou o
embrulho. “Ah, você queria também um Ovo que
Desaparece”, comentou e retirou o dito ovo de den-
tro do bolso interno do meu paletó e o embrulhou. O
mesmo aconteceu com o Bebê Chorão, Bastante
Humano. Eu passei cada um dos embrulhos para Gip
à medida que ficavam prontos, e ele os abraçou, segu-
rando-os bem próximos ao peito. Ele quase nada dis-
se, mas seus olhos eram bastante eloqüentes. Ele era
um parque de diversões de indescritíveis emoções.
Porque o que aconteceu, vocês entendem, foi mágica
de verdade.
E então, com um sobressalto, descobri que al-
go se movia sob meu chapéu — algo macio e que pu-
lava. Tirei o chapéu rapidamente e um pombo orgu-
lhoso pulou da minha cabeça e correu sobre o balcão,
indo diretamente, segundo eu penso ter visto, para
uma caixa de papelão que estava logo atrás do tigre
feito de papier mâché.
— Tsã, tsã — disse o dono da loja, ajudando-
me com o chapéu —, que pássaro mais descuidado,
deixando seus pertences no ninho!
Ele balançou meu chapéu e em sua mão apare-
ceram dois ou três ovos, uma grande conta de vidro,
um relógio, meia dúzia das inevitáveis bolas de vidro e
muitos, muitos pedaços de papel amassado. E ele de-
satou a falar sem parar sobre como as pessoas se es-
quecem de escovar seus chapéus por dentro, muito edu-

161
cadamente, mas com um certo tom de reprimenda. —
Todo tipo de coisas se junta dentro de um chapéu,
senhor... Não do seu chapéu particularmente... Mas
quase todos os clientes... Espantoso o que eles carre-
gam sem saber em seus chapéus... — O papel amas-
sado que havia caído sobre o balcão começou a cres-
cer de tamanho, e a crescer mais ainda, até que acabou
por esconder o homem atrás da montanha de papel
que se formou, mas ele continuava tagarelando sem
parar.
— Nunca sabemos o que a aparência pacata de
um cidadão pode esconder, senhor. Seremos, então,
nós, seres humanos, nada mais que exteriores bem
cuidados, sepulcros bem caiados.
Ele parou de falar de repente — exatamente
como quando atiramos um tijolo certeiro na vitrola
alta de um vizinho. O mesmo silêncio instantâneo. O
barulho do papel também cessou e tudo pareceu ter
parado no tempo...
— O senhor já terminou com meu chapéu? —
perguntei após um breve intervalo.
Nenhuma resposta.
Olhei para Gip e ele olhou para mim. Nossas
imagens distorcidas nos espelhos também nos olha-
vam, com expressões sérias, preocupadas, diferentes
de nossas expressões normais.
— Está na hora de irmos, agora — disse eu. —
O senhor pode me dizer quanto lhe devo por tudo
isso?
Silêncio...
— Senhor, gostaria de saber o valor de minha
compra — disse eu em um tom mais alto. — E meu

162
chapéu também, por favor.
Pensei ter escutado um leve ruído por detrás da
montanha de papéis...
— Vamos olhar atrás do balcão, Gip — disse
eu. — Ele está fazendo troça de nós.
Contornamos o tigre que mexia a cabeça e o
que vocês acham que havia atrás do balcão? Ninguém,
absolutamente ninguém! Meu chapéu estava no chão
e, ao lado dele, um coelho branco, daqueles que os
mágicos usam, com uma expressão parada e estúpida.
Peguei meu chapéu e o coelho deu um salto para o
lado.
— Papai! — disse Gip, num sussurro, soando
bastante sério.
— O que foi, Gip?
— Eu realmente gosto desta loja, papai.
— Eu também gostaria — disse para mim
mesmo —, se o balcão misteriosamente não se esten-
desse de modo a barrar nossa saída. — Mas não quis
chamar a atenção de Gip para isso.
— Bichinho! — disse Gip, estendendo a mão
para o coelho que passou saltitando por nós.
— Bichinho, faça uma mágica para Gip! — E
seus olhos acompanharam o coelho que se espremeu
para passar por uma porta. Eu poderia jurar que aque-
la porta não estava lá um minuto atrás, mas então a
porta se abriu e o homem com uma orelha maior do
que a outra reapareceu. Ele ainda sorria, mas seu olhar
se encontrou com o meu e nele havia um misto de
troça e desafio.
— Talvez o senhor gostasse de ver nosso sho-
wroom, senhor — disse ele com uma suavidade quase

163
inocente.
Gip puxou-me pelo dedo. Olhei para o balcão
e meu olhar encontrou o dele novamente. Eu estava
começando a achar toda aquela magia um tanto genu-
ína demais.
— Nós precisamos ir andando — disse eu, mas
como por um passe de mágica, já estávamos no sho-
wroom antes mesmo que eu terminasse minha frase.
— Todas as mercadorias são da mesma quali-
dade — disse o dono da loja, esfregando suas mãos
—, e isso quer dizer da Melhor Qualidade. Absoluta-
mente tudo nesta sala é Mágica Genuína e Fora do
Comum. Com licença, senhor!
Senti que ele estava puxando alguma coisa que
se agarrava à manga do meu paletó, e então vi um di-
abinho vermelho com seu rabinho a balançar. A cria-
tura lutava e tentava morder a mão do comerciante,
mas ele conseguiu, num piscar de olhos, jogar a cria-
turinha atrás do balcão. Certamente esta criatura era
um boneco de borracha, mas por um momento... E
seu gesto foi exatamente o de alguém que estava ten-
tando jogar longe um verme que queria nos morder!
Olhei para Gip, mas este estava observando um cava-
lo de balanço. Fiquei aliviado por ele não ter visto o
diabinho.
— Diga-me, senhor — falei em voz bem baixa
—, o senhor não possui muitas criaturinhas como aque-
la por aqui, certo?
— Nenhuma delas é nossa! Provavelmente o
senhor a trouxe para dentro da loja, sem perceber —
retrucou o dono da loja, também em voz baixa e com
um sorriso mais carismático do que nunca. É impres-

164
sionante o que as pessoas carregam consigo sem o
saber! — E voltando-se para Gip: — Há algo que o
agrada aqui, meu garoto?
Muitas coisas agradavam a Gip naquela sala.
Ele olhou para aquele fantástico comerciante com um
misto de confiança e respeito, e disse:
— Aquela é uma Espada Mágica?
— Uma Espada Mágica de Brinquedo. Ela não
se dobra, não quebra ou corta os dedos de ninguém.
Ela torna seu dono invencível em uma batalha contra
qualquer pessoa com menos de dezoito anos de idade.
O preço varia de acordo com o tamanho, a partir de
meia coroa até sete libras e seis pence. Estes jogos
completos de cartas são para cavaleiros andantes ju-
venis, muito úteis, eu diria — escudo de segurança,
sandálias de sete léguas e o elmo da invisibilidade.
— Nossa, papai! — exclamou Gip, encantado.
Tentei saber quanto um jogo daqueles custava,
mas o dono da loja não me deu a mínima atenção.
Agora ele tinha Gip em seu poder. Gip não segurava
mais meu dedo, pois havia embarcado em uma longa
investigação de todos os produtos mágicos à vista no
showroom. Sabendo que tinha toda a atenção de Gip, o
comerciante continuou e certamente não se deteria
mais por nada neste mundo. Embasbacado, e também
com uma ponta de inveja, notei que Gip segurava a-
gora o dedo do comerciante e não o meu! Não havia
qualquer dúvida de que o homem sabia se fazer inte-
ressante, e além do mais possuía um farto sortimento
de truques interessantíssimos, realmente muito bem Jei-
tos, mas mesmo assim...
Eu os seguia pelo showroom, dizendo pouco ou

165
nada, mas observando atentamente o comerciante
prestidigitador. Gip estava se divertindo muito, e cer-
tamente, quando fosse a hora de irmos, ele me obede-
ceria como sempre.
O showroom era uma sala comprida e abarrotada
de coisas, uma espécie de galeria com espaços delimi-
tados por pilastras e pilhas de coisas, por arcos que
davam em outros departamentos com pesadas corti-
nas e espelhos mágicos, onde os demais assistentes
com a aparência mais estranha que jamais vi trabalha-
vam morosamente e nos encaravam. Os espelhos má-
gicos me deixaram tão perplexo que eu não conseguia
mais localizar a porta por onde havíamos entrado.
O comerciante mostrou a Gip trens mágicos
que se moviam ao ajuste dos sinais, sem precisar de
vapor ou qualquer mecanismo, e a seguir caixas de
soldadinhos que adquiriam vida ao simples levantar da
tampa. Ao mostrar tais brinquedos, que certamente
eram bem caros, o comerciante disse algumas palavras
estranhas, provavelmente palavras mágicas que não
consegui ouvir direito, mas que Gip, que possui uma
audição perfeita, como sua mãe, pareceu compreender
de imediato.
— Muito bem — disse o homem, e guardou os
soldadinhos de volta na caixa. Passou então a caixa
para Gip, dizendo “Sua vez”, e no instante seguinte
Gip havia conseguido dar vida aos soldadinhos no-
vamente.
— Você vai querer os soldadinhos? — pergun-
tou o dono da loja.
— Nós vamos levar os soldadinhos — disse eu
—, caso o senhor possa nos dar um desconto. Caso

166
contrário, precisarei de um avalista de peso...
— Mas de modo algum! E o dono da loja
guardou os soldadinhos de volta na caixa, fechou a
tampa, jogou a caixa para o ar... e lá estava ela embru-
lhada em papel pardo, amarrada e — com o nome comple-
to e o endereço correto de Gip escritos sobre o papel!
O comerciante riu do meu espanto.
— Esta é a mágica genuína, senhor — disse e-
la. — Mágica de verdade.
— Talvez genuína demais, em minha opinião
— comentei novamente.
Depois disto, ele começou a mostrar diversos
truques para Gip, truques estranhos, porém mais es-
tranhas ainda eram as maneiras como esses truques
eram feitos. Ele explicou cada um deles em detalhes,
de trás para a frente e de frente para trás, e lá estava
meu pequeno garoto balançando sua cabeça em as-
sentimento, demonstrando que entendia tudo que o
comerciante lhe explicava.
“Vamos lá, presto!”, dizia o dono da loja, e era
logo seguido de um “Vamos lá, presto!” claro, porém
mais tímido do garoto. Mas não segui as explicações
com tanta atenção, pois estava distraído com outras
considerações. Eu estava pensando em quão tremen-
damente diferente aquele lugar era. Uma sensação de
singularidade, de peculiaridade, podia-se fazer sentir
em toda a loja. Até mesmo os móveis eram singulares;
o teto, o chão, a maneira casual como as cadeiras es-
tavam dispostas, tudo era peculiar. Tive a estranha
sensação de que quando não estava olhando direta-
mente para os dois, eles se moviam mais adiante, co-
mo se estivessem brincando de esconde-esconde co-

167
migo. Até mesmo as sancas, na junção das paredes
com o teto, tinham um estranho desenho de uma ser-
pente com uma máscara, e essa máscara me parecia
expressiva demais para ser feita apenas de gesso.
De repente, um dos estranhos assistentes cha-
mou minha atenção. Ele estava distraído e não me
havia notado, mas eu podia ver três quartos de seu
corpo sobre uma pilha de brinquedos, através de um
arco — e sabem de uma coisa?, ele estava fazendo
caretas horríveis! A coisa mais horrível que o vi fazer
foi algo com seu nariz, como se ele estivesse se diver-
tindo consigo mesmo. Tinha um nariz curto e arre-
dondado, mas, de repente, fez seu nariz projetar-se
para a frente, como um telescópio, cada vez mais para
a frente, mais e mais fino, até que ficou parecendo o
nariz do Pinóquio, só que vermelho e flexível! E assim
o nariz se tornou um chicote, debatendo-se para os
lados, sendo lançado para a frente e para trás, um pe-
sadelo!
A primeira coisa que pensei foi que Gip não
deveria ver tal pesadelo. E me virei, procurando os
dois, e lá estava Gip com sua atenção totalmente vol-
tada para o dono da loja, sem qualquer maldade. Eles
sussurravam algo entre si e olhavam para mim. Gip
estava em pé sobre um banco alto e o dono da loja
segurava algo que se assemelhava a um tambor.
— Vamos brincar de esconde-esconde, papai!
— gritou Gip. — Você agora é Ele!
E antes que eu pudesse fazer qualquer coisa pa-
ra evitá-lo, o dono da loja tinha colocado o tambor
sobre Gip. Compreendi imediatamente o que se pas-
sava.

168
— Tire esse tambor de cima dele, imediata-
mente! — gritei. — Isso vai assustá-lo! Tire já!
O dono da loja obedeceu sem falar nada e me
passou o grande cilindro para me mostrar que ele es-
tava totalmente vazio. E o banquinho onde Gip se
matinha segundos antes estava vazio também! Em um
piscar de olhos, meu filho havia desaparecido literal-
mente!
Espero que vocês compreendam, pois talvez já
tenham vivenciado uma sensação sinistra de que algo
está vindo em sua direção e então lhes toma o cora-
ção. Sabemos que essa sensação mata nosso bom sen-
so, deixando-nos tensos e alertas, mas nossas reações
não são nem rápidas nem lentas; não estamos nem
zangados nem amedrontados, mas simplesmente
pasmos. Foi assim que eu me senti.
Eu me aproximei daquele comerciante risonho
e chutei o banquinho longe.
— Pare imediatamente com esses truques —
disse eu. — Onde está meu filho?
— O senhor mesmo pode ver — retrucou ele.
— Não há qualquer truque de ilusionismo.
Estendi minha mão para segurá-lo, mas ele se
desviou de mim agilmente. Tentei agarrá-lo novamen-
te, mas ele novamente se esquivou e abriu uma porta
por onde pretendia escapar.
—Pare! — gritei, mas ele somente riu, retroce-
dendo. Pulei sobre ele... para cair em plena escuridão.
Tum!
— Deus dos céus! Eu não o vi, senhor!
Eu estava na Regent’s Street e percebi que ha-
via colidido com um trabalhador de aparência digna.

169
E, adivinhem, a um metro de mim estava Gip, com
uma expressão de total perplexidade. Desculpei-me
como pude e Gip veio ao meu encontro, com um sor-
riso radiante, como se por um breve momento tivesse
se perdido de mim.
E ele estava carregando quatro pacotes em seus
braços!
Prontamente pegou meu dedo.
Por um momento, senti-me perdido. Olhei em
volta, tentando encontrar a porta da loja de mágicas.
Pasmem: a porta tinha sumido! Simplesmente não
havia porta alguma, não havia loja alguma, nada abso-
lutamente. Havia somente a coluna que dividia a loja
de quadros e a vitrine do aviário!
E fiz a única coisa possível naquele estado de
absoluto tumulto mental: fui até o meio-fio e estiquei
meu guarda-chuva para chamar um táxi.
— Ansoms — disse Gip com um tom de exul-
tação final.
Eu o ajudei a entrar no táxi, tentei me lembrar,
com algum esforço, do endereço e, a seguir, entrei
também. Mas então senti algo estranho no bolso in-
terno de meu paletó. Apalpando-o, descobri uma bola
de vidro. Com uma expressão petulante, joguei-a na
rua.
Gip nada disse.
Por um bom tempo nenhum de nós disse uma
palavra.
— Papai — ele falou finalmente —, aquela loja
era a loja certa! Comecei a pensar como ele estaria se
sentindo após excêntrica experiência. Ele parecia não
ter sofrido qualquer dano — até aqui, muito bem. Ele

170
não parecia amedrontado ou confuso, mas tremen-
damente satisfeito com todo o divertimento que tivera
naquela tarde e por estar segurando em seus braços os
quatro pacotes.
Perplexo, imaginei o que haveria dentro daque-
les pacotes.
— Hum — disse eu —, meninos não podem ir
a lojas como aquela todos os dias.
Ele recebeu meu comentário com seu usual es-
toicismo. Por um momento ressenti-me de ser seu pai
e não sua mãe, pois caso contrário eu lhe teria dado
um beijo ali mesmo, em público. Apesar de tudo, na-
da de ruim havia acontecido.
Foi somente quando abrimos os pacotes que
consegui me acalmar. Três deles continham soldadi-
nhos de chumbo comuns, mas de excelente qualidade,
o que fez Gip esquecer de pronto que aqueles pacotes
deveriam conter Truques Mágicos Genuínos. O quar-
to pacote continha um gatinho, um gatinho branco,
vivo, em excelente estado de saúde, com muito apetite
e um humor, digamos, tipicamente felino.
Fiquei bastante aliviado após os pacotes terem
sido abertos. No entanto, depois fiquei por um bom
tempo pensando, pensando.
Tudo isto aconteceu há seis meses, e agora
permito-me acreditar que nada de ruim aconteceu. O
gatinho possuía a magia natural de gatinhos e os sol-
dadinhos formavam um pelotão unido, como qual-
quer general poderia desejar. Mas, e Gip?
Qualquer pai inteligente deve compreender mi-
nha apreensão com Gip.
Então, um dia, perguntei a ele:

171
— Você gostaria que seus soldadinhos ganhas-
sem vida e marchassem de verdade?
— Mas eles marcham, papai. Eu só preciso di-
zer uma certa palavra quando abro a tampa da caixa e
eles ganham vida.
— Mesmo?
— Claro, papai. Eu não gostaria tanto deles se
eles não fizessem isso.
Tentei não demonstrar qualquer surpresa, e
desde então, diversas vezes, fico a observá-lo enquan-
to brinca com os soldados. Até hoje não vi os solda-
dos marcharem uma vez sequer, ou fazerem qualquer
coisa que pareça mágica...
Mas isto é difícil de afirmar.
Há também a questão econômica. Tenho o há-
bito incurável de pagar todas as minhas contas. Por
isso estive várias vezes em Regent’s Street, andando
de baixo para cima, procurando aquela loja. Confor-
mo-me em pensar que, neste caso, minha honra não
corre qualquer perigo, pois eles sabiam o nome com-
pleto de Gip e seu endereço, e posso então reservar-
me o direito de esperar que eles me mandem a conta
qualquer dia destes.

***

H. G. WELLS era, na verdade, filho de um


comerciante em Bromley, Kent, e desde pequeno
sempre foi fascinado por ciência e histórias de fantasi-
a. Ele ainda estudava na Escola Normal de Ciências
em Londres quando escreveu sua primeira história,
“The Chronic Argonauts”, sobre viagens no tempo,

172
publicada em 1888. Foi professor durante algum tem-
po, mas sua obsessão por escrever histórias o fez pro-
duzir três romances clássicos em menos de quatro
anos, fazendo assim jus à alcunha de Pai da Ficção
Científica Moderna: A máquina do tempo (1895), uma
reedição completa de sua primeira história; a estranha
história de O homem invisível (1897); e a primeira obra
publicada sobre a invasão da Terra por alienígenas, A
guerra dos mundos (1898). A magia e o sobrenatural po-
dem ser encontrados em vários dos contos escritos
por H. G. Wells, principalmente em “O homem que
fazia milagres” (1898), transformado em um dos pri-
meiros filmes com efeitos especiais, em 1936, assim
como em “A verdade sobre Pyecraft” (1903), que
conta sobre um encantamento que torna um homem
absolutamente sem peso algum. “A loja de mágicas” é
igualmente importante por aliar a magia à ciência, que
tomam forma em uma criatura sobrenatural - o pe-
queno e raivoso diabinho vermelho - e em uma in-
venção que estava à frente do seu tempo - um trem
que se movia sem vapor.

173
OS BOMBONS MÁGICOS
L. Frank Baum

O Doutor Daws é um homem sábio e idoso que tem


sua própria loja de magia em Boston. Lá, pratica o que ele
mesmo chama de “feitiçaria química”, produzindo poções secre-
tas para ajudar seus fregueses no que quer que estes precisem.
No entanto, diferentemente da maioria dos feiticeiros e magos,
cujas pílulas e poções têm um gosto horrível, o bom doutor ga-
rante que seus preparados são sempre agradáveis ao paladar,
especialmente aqueles que devem ser mastigados, chupados ou
bebidos. Um belo dia, um dos fregueses do Doutor Daws aci-
dentalmente deixa um pacote de bombons mágicos sobre o bal-
cão e a pequena Bessie Bostwick leva por engano o dito pacote
para casa, sem imaginar o poder de tais doces. E quando Bessie
coloca os bombons sobre um prato e os serve à sua família, ela e
seus pais logo percebem, maravilhados e surpresos, que seus
desejos tornam-se realidade...

* **

Há muito tempo, morava em Boston um sábio


e antigo farmacêutico que atendia pelo nome de Dou-
tor Daws. Mas ele gostava de ir além de suas qualifi-
cações, combinando seus conhecimentos com um
tanto de magia que conhecia. Morava também em
Boston, nesta época, uma jovem que atendia pelo
nome de Claribel Sudds e cujo sonho era pisar em um

174
palco. No entanto, o que lhe sobrava em posses lhe
faltava em sagacidade e habilidades.
E assim, um dia, Claribel foi ter com o Doutor
Daws e disse-lhe:
— Não sei cantar nem dançar, tampouco sei
recitar versos ou tocar piano; não sei fazer acrobacias
nem saltos ornamentais. Mas meu maior desejo é ser
uma estrela, viver no palco. O que devo fazer, doutor?
— A senhorita está disposta a pagar para con-
seguir seu intento? — perguntou o sábio farmacêuti-
co.
— Certamente — respondeu Claribel, balan-
çando sua bolsa.
— Sendo assim, venha ver-me amanhã, às duas
horas — disse ele.
Durante toda a noite, o doutor praticou o que
chamamos de “feitiçaria química”, e assim, quando
Claribel Sudds voltou no dia seguinte, às duas horas,
ele lhe mostrou uma pequena caixa cheia de confeitos
que, à primeira vista, pareciam-se com bombons fran-
ceses.
— Estamos em uma era progressista — disse o
velho farmacêutico —, e seu querido tio Daws aqui
presente acompanha o progresso da humanidade.
Qualquer outro velho feiticeiro teria preparado algu-
ma poção com um sabor simplesmente horrível, ou
então pílulas difíceis de engolir. Mas refleti sobre seu
bom gosto e o que mais lhe agradaria. E preparei-lhe
então estes bombons mágicos. Se a senhorita comer
este aqui, cor de alfazema, conseguirá dançar com ta-
manha graça e leveza como se tivesse praticado dança
a vida toda. Ao comer o bombom cor-de-rosa, a se-

175
nhorita será capaz de cantar como um rouxinol, e, ao
comer o branco, se tornará a melhor oradora que ja-
mais existiu. Já o bombom de chocolate escuro a fará
tocar piano melhor do que Rubenstein e o bombom
amarelo-limão lhe permitirá dar saltos de três metros
de altura.
— Que maravilha! — exclamou Claribel, en-
cantada. — O senhor é, sem dúvida, o mais inteligen-
te feiticeiro e farmacêutico — disse ela ao pegar a cai-
xa.
— Hã, hã — pigarreou o sábio farmacêutico
—, seu cheque, por favor.
— Oh, sim, certamente! Que estupidez a mi-
nha esquecer do cheque — disse ela.
O Doutor Daws intencionalmente segurou a
caixa enquanto ela preenchia o cheque de vultosa
quantia e só então lhe entregou a caixa.
— O senhor tem certeza de que esses bom-
bons são bastante fortes? — perguntou a jovem ansi-
osamente. — Geralmente só os remédios mais fortes
é que me fazem algum efeito.
— Meu único receio — retrucou o Doutor
Daws — é tê-los feito fortes demais, pois esta é a pri-
meira vez que alguém me pede para preparar tão ma-
ravilhosos confeitos.
— Não se preocupe — disse Claribel. —
Quanto mais forte seu efeito, melhor eu me sairei no
palco.
E com estas palavras ela deixou loja do Doutor
Daws, dirigindo-se ao armazém. Lá, Claribel colocou
a caixa de bombons sobre o balcão de fitas enquanto
olhava com interesse as novas mercadorias. Foi nesta

176
hora que a pequena Bessie Bostwick dirigiu-se ao bal-
cão para comprar fitas para cabelo e colocou seus pa-
cotes de compras ao lado da caixa de bombons. Ao
terminar suas compras, pegou por engano a caixa de
bombons junto com seus outros pacotes e foi-se para
casa.
Bessie só percebeu que estava carregando paco-
tes a mais do que deveria depois de chegar em casa e
pendurar seu casaco no armário. Ao ver a caixa, ela a
abriu e exclamou, deliciada:
— Nossa, uma caixa de doces! Alguém deve ter
esquecido no armazém... Mas não vale a pena voltar lá
e devolver algo tão sem importância, já que são tão
poucos.— E assim ela colocou todos os confeitos em
um prato de doces que estava sobre a mesa, pegou um
deles — ela adorava chocolates — e saboreou-o en-
quanto abria seus outros pacotes de compras.
Eram poucos os pacotes, pois Bessie tinha so-
mente doze anos de idade e seus pais ainda não lhe
confiavam muito dinheiro para as compras. Mas en-
quanto ela colocava em seu cabelo a fita que havia
comprado, sentiu um grande desejo de tocar piano,
desejo este que foi crescendo, crescendo, até que ela
não mais conseguiu controlá-lo. Foi, então, para a sala
e abriu o piano.
A menina havia conseguido, a duríssimas pe-
nas, aprender duas peças para piano, as quais executa-
va com movimentos desajeitados da mão direita en-
quanto a esquerda se “esquecia” de acompanhar a di-
reita, e o resultado era uma total dissonância. Mas, sob
a influência do bombom de chocolate escuro, ela sen-
tou-se na banqueta e seus dedos correram leve e gra-

177
ciosamente pelas teclas, produzindo uma harmonia
tão encantadora que ela mesma estava totalmente sur-
presa com seu desempenho.
Mas isto foi somente o prelúdio. A seguir, ela
encadeou na sétima sonata de Beethoven e a executou
magnificamente.
Sua mãe, ao escutar tal melodia harmoniosa-
mente incomum, desceu as escadas para ver quem era
o visitante que havia chegado e sentara-se ao piano.
Mas quando descobriu que era sua querida filhinha
que tocava tão divinamente, sentiu uma palpitação no
peito (algo que a acometia às vezes) e sentou-se no
sofá, esperando que a palpitação passasse.
Enquanto isso, Bessie continuou tocando uma
peça após outra, com uma energia infindável. Ela a-
mava a música, e só agora descobrira que tudo de que
precisava era sentar-se ao piano e ouvir, enquanto su-
as mãos passeavam pelo teclado.
A tarde caiu, a sala escureceu, o pai de Bessie
voltou do trabalho, pendurou seu chapéu e casaco, e
guardou o guarda-chuva no armário. Então bisbilho-
tou na sala para ver quem estava tocando.
— Valha-me Deus! — exclamou. Mas sua es-
posa veio ter com ele silenciosamente, colocando o
dedo indicador sobre seus lábios e murmurando:
— Não a interrompa, John! Nossa filha parece
estar em transe... Você já a ouviu tocar algo tão mara-
vilhoso?
— Nossa, ela é um prodígio! — balbuciou ele,
atônito. — Ela toca muito melhor que o velho e cego
Tom! Isso... isso é fantástico!
Enquanto escutavam ainda em pé, o senador,

178
que havia sido convidado para jantar com a família
naquela noite, chegou. E antes mesmo de tirar seu
casaco, chegou o professor de Yale, homem de vasto
conhecimento e grandes feitos acadêmicos. Ambos
juntaram-se aos atônitos pais.
Bessie continuou a tocar e os quatro adultos
continuaram a ouvir em silêncio e, todos juntos em
pé, surpresos demais até para lembrarem-se de sentar.
O Sr. Bostwick, que estava com fome, pegou o
prato de bombons que estava sobre a mesa e comeu o
bombom cor-de-rosa. Ofereceu, então, educadamen-
te, um bombom ao professor. Este escolheu o bom-
bom amarelo-limão. Esticando seu braço, o senador
pegou o bombom cor de alfazema. Mas o senador
não comeu seu bombom, pois pensou que poderia
perder a fome e, então, guardou-o no bolso do colete.
A Sra. Bostwick, ainda ouvindo atentamente sua filha
precoce e sem dar-se conta do que fazia, pegou o úl-
timo bombom do prato, o branco, e saboreou-o len-
tamente.
O prato estava vazio agora e os preciosos
bombons de Claribel Sudds haviam desaparecido para
sempre!
De repente, o Sr. Bostwick, que era um homem
grande, começou a cantar em uma voz de soprano
com efeito trêmulo. Não era a mesma música que
Bessie estava tocando, e a discordância foi tão grande
que o professor sorriu, o senador levou as mãos aos
ouvidos e a Sra. Bostwick gritou, ultrajada:
— William!
Mas seu marido continuou a cantar, sem pres-
tar qualquer atenção a sua esposa e convidados.

179
Felizmente, a sineta anunciando o jantar tocou
e a Sra. Bostwick, com alguma dificuldade, tirou Bes-
sie do piano e convidou todos a se dirigirem para a
sala de jantar. O Sr. Bostwick seguiu-os, ainda cantan-
do A última rosa de verão, de Chopin, empolgado como
se estivesse atendendo a pedidos de uma enorme pla-
téia.
A pobre Sra. Bostwick começou a se desespe-
rar com a indigna cena que seu marido interpretava,
imaginando o que poderia fazer para controlá-lo. O
professor parecia mais sério do que nunca, o senador
sustentava uma expressão ofendida, e Bessie continu-
ava a mexer seus dedos como se estes ainda estives-
sem sobre o teclado do piano.
A Sra. Bostwick finalmente conseguiu que to-
dos se sentassem à mesa, apesar de seu marido ter
iniciado outra ária. A empregada entrou então com a
sopa.
Mas quando ela levava um prato de sopa ao
professor, ele gritou, com voz alterada:
— Segure o prato mais alto! Mais para cima,
criatura! — E pulando de sua cadeira, ele deu um re-
pentino chute no prato, mandando-o quase até o teto.
Quando o prato caiu de volta, derramou sopa sobre
Bessie e a empregada e, a seguir, espatifou-se em pe-
daços sobre a cabeça calva do professor.
Ao ver aquele ato inaceitável, o senador levan-
tou-se com uma exclamação de horror e olhou para
sua anfitriã, que por algum tempo mantivera seu olhar
parado, com uma expressão de pura descrença do que
estava acontecendo. Mas ao perceber o olhar do se-
nador, a Sra. Bostwick curvou-se graciosamente e

180
começou a recitar cora vigor A carga da brigada ligeira,
de Lorde Tennyson.
O senador estremeceu. Jamais tivera testemu-
nhado ou ouvira falar de um comportamento tão la-
mentável como aquele em uma família. Sentia que sua
reputação corria perigo e, sendo aparentemente a úni-
ca pessoa sã na sala, não tinha a quem recorrer.
A empregada havia fugido para a cozinha, onde
chorava histericamente; o Sr. Bostwick cantava O
Tromise Me, sucesso de Jessie Bartlett Davis, de 1907;
o professor estava tentando chutar os cristais do lus-
tre; a Sra. Bostwick recitava The Bay Stood on the Burning
Deck, da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, e
Bessie havia saído da sala sorrateiramente, sentando-
se novamente ao piano e iniciando O Holandês Voador.
O senador já não tinha mais tanta certeza se ele
também não ficaria maluco como os outros. Por isso,
saiu sorrateiramente da sala, pegou seu chapéu e casa-
co, e apressou-se para fora.
Naquela noite, ficou acordado até tarde escre-
vendo um discurso político para a sexta-feira seguinte,
mas a bizarra experiência na casa dos Bostwick havia
mexido tanto com seus nervos que ele mal conseguia
ordenar os pensamentos e várias vezes pegou-se ba-
lançando a cabeça em sinal de desaprovação quando
relembrava os estranhos ocorridos em uma casa que
outrora fora sempre respeitável.
No dia seguinte, o senador passou pelo Sr.
Bostwick na rua, mas ignorou-o. Ele sentia que não
podia manter uma relação de amizade com aquele ca-
valheiro no futuro. O Sr. Bostwick ficou indignado
com a reação tão direta; no entanto, bem no fundo de

181
sua mente guardava uma leve lembrança dos fatos
incomuns ocorridos no jantar da noite anterior, e por
isso não sabia se devia ressentir-se da atitude do sena-
dor ou não.
A reunião política na qual o senador discursaria
era o fato mais importante do dia, pois ele era conhe-
cido em Boston por sua eloqüência. O grande hall es-
tava apinhado de gente, e na primeira fila o senador
pôde ver a família Bostwick, com o distinto professor
de Yale ao lado. Todos pareciam pálidos e cansados,
como se tivessem tido uma noite deplorável. O sena-
dor sentiu-se tão nervoso ao vê-los naquele estado
que recusou-se a dirigir-lhes o olhar uma segunda vez.
Enquanto o prefeito o apresentava, o senador
permaneceu sentado em sua cadeira. Mas ao colocar a
mão no bolso do colete, sentiu o bombom que havia
guardado na noite anterior antes do jantar.
“Talvez o bombom suavize minha garganta”,
pensou o senador. E, assim, resolveu comê-lo.
Alguns minutos depois, levantou-se e foi calo-
rosamente aplaudido pela multidão que aguardava
ansiosamente seu discurso.
— Meus amigos — começou ele com sua voz
grave —, esta é uma ocasião extremamente importan-
te.
A seguir, fez uma pausa, equilibrou-se sobre o
pé esquerdo e elevou seu pé direito no ar, como fa-
zem os bailarinos!
Houve um murmúrio de surpresa e horror na
platéia, mas o senador pareceu não notar. Ele rodopi-
ou sobre as pontas dos dedos, elevou a perna direita e
depois a esquerda em movimentos graciosos, e escan-

182
dalizou um senhor calvo sentado na primeira fileira ao
lançar-lhe um olhar lânguido e carinhoso.
De repente, Claribel Sudds, que por acaso esta-
va presente, deu um grito e pulou de pé. Apontando
um dedo acusadoramente para o senador, ela gritou:
— Lá está o homem que roubou meus bom-
bons! Segurem-no! Prendam-no! Não o deixem esca-
par!
Mas enquanto os seguranças a arrastavam para
fora do recinto, imaginando que ela tivesse enlouque-
cido, os amigos do senador seguraram-no firmemente
e o arrastaram para a entrada do prédio, onde o colo-
caram em um táxi e instruíram o motorista para levá-
lo para casa.
O efeito do bombom mágico ainda era forte o
suficiente e o pobre senador ficou em pé no assento
traseiro, dançando com toda a sua energia até chegar
em casa, para deleite da multidão de garotos que se-
guia o táxi e decepção de respeitosos cidadãos que
balançavam suas cabeças tristemente e murmuravam
entre si:
— Mais um bom homem que perdeu o contro-
le.
O senador levou vários meses para recuperar-
se da vergonha e humilhação de sua saída triunfal do
hall e, fato curioso, ele nunca conseguiu entender o
que o havia feito agir de maneira tão incomum.
Talvez tenha sido bom que o último bombom
agora tivesse sido consumido, pois aqueles bombons
poderiam ter causado problemas bem maiores do que
na verdade haviam causado.
Naturalmente, Claribel voltou à loja do sábio

183
farmacêutico e assinou outro cheque de soma igual-
mente vultosa por outra caixa de bombons. Mas desta
vez certamente tomou muito cuidado com a segunda
caixa, pois agora ela era uma famosa atriz de variados
talentos.

***

L. (de Lyman) FRANK BAUM é o famoso


teósofo norte-americano criador da mágica terra de
Oz, o primeiro mundo de fantasia da literatura norte-
americana. Depois de tentar, sem sucesso, realizar seu
sonho de tornar-se um ator ou jornalista, em 1900 ele
teve a idéia de escrever uma história para seus quatro
filhos pequenos, O maravilhoso mágico de Oz, e tal foi o
sucesso da história que conta a busca de uma menina
pelo grande mago e seu reino fantástico, que Baum
escreveu uma série de mais de quarenta livros de uma
mesma coleção, incluindo Dorothy e o mágico de Oz
(1908), a Cidade Esmeralda (1910) e O mágico de Oz
(1919). O primeiro livro da série foi adaptado para um
curta-metragem animado, seguido de várias versões,
até que, em 1933, foi filmado o longa-metragem estre-
lado por Judy Garland. Durante algum tempo, Baum
tentou sem sucesso montar uma “Terra de Oz” em
Hollywood - bem antes da Disneylândia —, assim
como tentou também escrever outra saga popular, “A
série do pequeno mago”. Mágica e magia também po-
dem ser encontradas em várias de suas outras obras,
entre elas The Enchanted Island of Yew, de 1903, e Queen
Zizi of Ix, or The Story of the Magic Cloak, de 1905, e em
diversos outros contos, notadamente “Os bombons

184
mágicos”, filmado em 1915 e estrelado por Violet
Macmillan.

185
O MENINO-DIA E A
MENINA NOITE
George MacDonald

Watho é uma bruxa com grandes poderes, embora em


nada se pareça com uma bruxa tradicional. Fisicamente, ela é
alta e graciosa, tem longos cabelos ruivos e uma pele incrivel-
mente branca. Seus olhos muito negros refletem o Jogo interior
de sua maior ambição: aumentar progressivamente seus conhe-
cimentos. Além disto, podemos dizer que ela personaliza um
velho ditado que diz que “no coração das bruxas, o amor e o
ódio caminham lado a lado, mas freqüentemente entrelaçam-se”.
Ela usou seus poderes mágicos para raptar um menino e uma
menina, e criou-os em seu castelo, sendo que o menino só conhece
a luz do dia, enquanto a menina só conhece a escuridão da noi-
te. A medida que eles foram crescendo, começaram a questionar
o que mais haveria além dos limites de sua prisão, sonhando em
ganhar o mundo e explorá-lo. Quando Watho ficou doente, o
menino e a menina perceberam nisto sua chance — mas acaba-
ram ficando à mercê do ódio da bruxa e de sua capacidade de
engendrar terríveis males contra eles...

1. Watho

Havia certa vez uma bruxa que queria saber ab-


solutamente tudo. Mas quanto mais sábia uma bruxa
se torna, mais teimosa e convencida ela também fica.

186
Esta bruxa chamava-se Watho e tinha a mente de um
lobo. Ela não se importava com nada neste mundo —
somente em saber tudo que havia para saber. Apesar
de não ser cruel por natureza, sua mente de lobo a
havia tornado cruel. Watho era alta e graciosa, ruiva,
com uma pele muito branca e olhos profundamente
negros que brilhavam como fogo.
Ela era direta e tinha uma personalidade forte.
Mas de vez em quando sentia algo estranho, deixava-
se cair sentada, encolhida, começava a tremer e sem-
pre virava a cabeça para olhar para trás, como se o
lobo tivesse saído de sua mente e estivesse agora atrás
dela.

2. Aurora

Duas senhoras foram visitar esta bruxa. Uma


delas pertencia à Corte e seu marido havia sido envia-
do para uma embaixada distante e problemática; a ou-
tra era uma jovem viúva que, desde a morte recente
do marido, havia perdido a visão. Watho acolheu-as
em aposentos distantes, em partes diferentes do caste-
lo, e uma não sabia da existência da outra.
O castelo ficava na encosta de uma colina que
descia suavemente para um vale estreito, onde corria
um rio com um canal cheio de pedregulhos que cons-
tantemente murmuravam uma canção. O jardim do
castelo descia até a margem do rio, limitado por mu-
ros altos que cruzavam o rio e logo a seguir termina-
vam. Cada muro tinha uma dupla amurada e entre as
amuradas havia um caminho estreito.

187
No andar mais alto do castelo, Lady Aurora o-
cupava um grande apartamento com vários aposentos
espaçosos cujas janelas ocupavam todo o pé-direito
dos ambientes e se projetavam para fora em direção
ao sul, descortinando uma linda vista de todo o rio e
do terreno além. O outro lado do vale era bem íngre-
me, mas não muito alto, e picos nevados podiam ser
vistos a distância. Lady Aurora raramente deixava seus
aposentos, que, além de possuírem uma radiante vista
descortinando o imenso céu, eram arejados, sempre
ensolarados e possuíam instrumentos musicais, livros,
quadros e curiosidades. A companhia de Watho, que
sabia fazer-se encantadora, afastava qualquer mono-
tonia de sua vida.

3. Vésper

Atrás do castelo, a colina subia abruptamente, e


a torre norte, na verdade, dava direto para a rocha e
comunicava-se com o interior desta. Dentro da rocha,
havia uma série de aposentos dos quais somente Wa-
tho e uma fiel empregada sua, chamada Falca, tinham
conhecimento. Algum antigo proprietário do castelo
havia construído estes aposentos com a mesma arqui-
tetura da tumba de um faraó, pois no centro de um
deles havia algo que se assemelhava a um sarcófago.
Este aposento e os outros ao seu redor eram total-
mente fechados. As laterais e o teto haviam sido esca-
vados em baixo-relevo e pintados de maneira curiosa.
Lá a bruxa alojara a jovem viúva cega, cujo nome era
Vésper. Ela possuía olhos negros emoldurados por

188
longos cílios e sua pele tinha um tom de prata escure-
cida com manchas granuladas. Seus cabelos eram ne-
gros, lisos e finos; suas feições eram delicadas e finas,
e nem mesmo sua tristeza tornava-a menos bela. Ela
sempre dava a impressão de que gostaria de deitar-se
para nunca mais se levantar. Ela não sabia que estava
alojada em uma tumba, apesar de algumas vezes ques-
tionar o fato de jamais haver tocado em uma janela.
Havia muitos sofás à sua disposição para recostar-se,
todos cobertos pelas mais ricas sedas e macios como
sua própria pele; e os tapetes, combinando com a
tumba, eram tão grossos que ela poderia deitar-se
confortavelmente sobre eles. O aposento era seco e
quente, mas havia aberturas construídas inteligente-
mente para a passagem de ar, de modo que o ambien-
te estava sempre fresco, faltando-lhe somente a luz do
sol. A bruxa a alimentava com leite, um vinho muito
escuro, romãs, uvas roxas e pássaros que habitavam
os brejos vizinhos. E lá Watho lhe contava histórias
tristes acompanhada pelo lúgubre lamento de violinos,
mantendo a viúva assim em uma eterna atmosfera de
doce pesar.

4. Photogen

Watho finalmente teve seu desejo satisfeito,


pois bruxas sempre conseguem o que querem: Lady
Aurora deu à luz um lindo menino, que abriu os olhos
no momento em que o sol nasceu. Watho imediata-
mente separou-o da mãe, convencendo a pobre que o
menino havia chorado somente uma vez e morrido no

189
instante seguinte. Inconformada com a dor, Aurora
partiu tão logo se recuperou do parto e Watho jamais
a convidou para visitar o castelo novamente.
Seguindo seu plano macabro, a bruxa determi-
nou que o menino jamais deveria conhecer a escuri-
dão. Ela o treinou persistentemente para que nunca
dormisse durante o dia e para que jamais acordasse
durante a noite. Ela nunca permitiu que o menino vis-
se qualquer coisa de cor preta ou qualquer cor escura,
assim como sempre que pôde jamais permitiu que
uma sombra se projetasse sobre ele, como se esta pu-
desse feri-lo. Durante o dia todo, ele permanecia sob a
fulgente luz do sol, nos mesmos aposentos que sua
mãe ocupara. Watho o acostumou a ficar sob o sol até
que ele pudesse suportá-lo mais do que qualquer afri-
cano de tez escura. Todos os dias, na hora mais quen-
te do dia, ela o deixava sem roupas sob o sol e o me-
nino refestelava-se e resistia a se vestir novamente.
Ela utilizou todos os seus conhecimentos para tornar
seus músculos fortes, elásticos e prontos a responder
a qualquer estímulo, como se sua alma, ela costumava
dizer rindo, pudesse assentar-se sobre cada fibra, estar
presente em todo o seu corpo e acordar no momento
em que fosse chamada. O menino tinha cabelos ver-
melho-dourados, mas seus olhos se tornaram mais e
mais escuros à medida que crescia até ficarem tão ne-
gros como o de Vésper. Ele era a criatura mais alegre
que alguém podia imaginar, sempre rindo, sempre
amoroso, e mesmo nos momentos de raiva logo recu-
perava seu riso espontâneo. Watho o chamou de Pho-
togen.

190
5. Nycteris

Cinco ou seis meses após o nascimento de


Photogen, Vésper também deu à luz um bebê. Na
tumba sem janelas de sua mãe cega, na escuridão da
noite, sob os fracos raios de uma lâmpada em forma
de um globo de alabastro, uma menina veio ao mun-
do escuro com um gemido. E assim, com o nascimen-
to da menina, Vésper sentiu-se nascer uma segunda
vez, passando para um mundo tão desconhecido para
ela quanto o mundo no qual sua filha havia nascido.
Watho deu-lhe o nome Nycteris, e a menina
cresceu à semelhança de sua mãe em tudo, menos em
um aspecto particular. Ela tinha a mesma pele escura,
os mesmos cílios escuros, cabelos escuros e olhar tris-
te e gentil; mas seus olhos eram exatamente iguais aos
de Aurora, a mãe de Photogen. Apesar de irem escu-
recendo aos poucos à medida que crescia, eles se
mantiveram sempre azuis. Watho, com a ajuda de Fal-
ca, cuidou da menina com todo esmero, seguindo
consistentemente seus planos: que a menina jamais
visse qualquer luz, exceto a luz da lâmpada. Conse-
qüentemente, seus nervos ópticos e todos os compo-
nentes da visão aumentaram em tamanho e tornaram-
se mais sensíveis. Seus olhos, na verdade, eram bem
grandes para o seu rosto. Sob o cabelo e a tez escuros,
seus olhos pareciam duas aberturas em um céu de
uma noite nublada, através dos quais podia-se ver um
paraíso sem estrelas ou nuvens. Ela se tornou uma
pequena criatura triste e delicada.
Ninguém no mundo além de Watho e sua fiel
Falca sabiam da existência da pequena menina-

191
morcego. Watho a treinou para dormir durante o dia e
permanecer acordada durante a noite, e ensinou-lhe
pouco mais do que música.

6. A Infância de Photogen

O vale onde o castelo de Whato se encontrava


era, na verdade, uma fenda em um planalto, pois no
topo de ambas as encostas íngremes, tanto ao norte
como ao sul, havia um grande e amplo chapadão co-
berto por gramíneas, flores e algumas árvores esparsas
antes da borda com a grande floresta. Esse planalto
era uma grande área de caça, onde rebanhos de gado e
cavalos robustos de crina comprida pastavam ao lado
de antílopes, gnus e pequenos roedores. Já a floresta
era habitada por espécies selvagens. A cozinha era
abastecida pelos animais do planalto, abatidos pelos
caçadores do castelo.
O chefe desses caçadores era um bom homem,
chamado Fargu, a quem Watho entregou Photogen
após ter terminado o treinamento que ela podia lhe
dar. Fargu ensinou ao menino tudo que conhecia; fê-
lo cavalgar pôneis e cavalos cada vez maiores à medi-
da que crescia, cada um mais indócil que o anterior,
até que pudesse cavalgar qualquer cavalo daquelas pa-
ragens. Utilizando o mesmo método, Fargu treinou-o
no uso do arco e flecha, dando-lhe a cada três meses
um arco mais forte e flechas mais longas. Photogen
logo se tornou um habilidoso arqueiro, mesmo a ca-
valo, e matou seu primeiro touro quando tinha apenas
catorze anos de idade, tornando-se o orgulho dos ca-

192
çadores e de todos no castelo, onde era o favorito.
Diariamente, tão logo o sol nascia, Photogen saía para
caçar e ficava fora quase o dia todo.
Watho havia dado a Fargu somente uma or-
dem: Photogen não deveria, sob qualquer hipótese,
mesmo o mais ardente dos pedidos, ficar fora até o
sol se pôr, de modo que jamais desenvolvesse o dese-
jo de ver o que aconteceria então. Fargu fez o possível
e o impossível para não contrariar esta ordem, pois
apesar de não ter medo algum de um rebanho de tou-
ros bravios vindo em sua direção e nenhuma flecha
para alvejá-los, ele tinha mais do que medo de sua pa-
troa. Quando ela lhe lançava um certo olhar, ele sentia
seu coração transformar-se em cinzas dentro de seu
peito, e o que corria em suas veias não era mais san-
gue, mas sim leite e água. Por isso, à medida que Pho-
togen crescia, os temores de Fargu aumentaram, pois
estava se tornando cada vez mais difícil segurar as ré-
deas desse jovem tão cheio de vida, como Fargu con-
tou à sua patroa — o que a deixou extremamente sa-
tisfeita — e mais parecido com um raio do que com
um ser humano. O jovem desconhecia o medo, mas
não por que não soubesse o que era o perigo. Ele já
havia sofrido um corte profundo, antes mesmo que
Fargu pudesse fazer qualquer coisa em sua defesa,
causado pela presa afiada de um porco selvagem, o
qual, no entanto, teve sua espinha bastante danificada
em troca com ura golpe certeiro da faca de caça do
rapaz. Quando Photogen incitava seu cavalo para en-
trar no meio de um rebanho de touros bravios, levan-
do consigo somente seu arco e sua espada curta, ou
arremessava uma flecha contra um rebanho e a seguir

193
ia resgatá-la a toda velocidade antes que o animal feri-
do conseguisse compreender de onde a flecha tinha
partido, Fargu se punha a pensar, aterrorizado, como
seria quando o rapaz sucumbisse à tentação de pene-
trar na floresta e caçar um leopardo, ou então um lin-
ce de garras afiadas como facas. Seu temor residia na-
quela atitude de altivez soberana do rapaz; talvez por
ter sido criado sempre sob o sol, ele encarava todos os
perigos como se reinasse absoluto sobre eles com sua
coragem.
E assim, um pouco antes de o rapaz completar
dezesseis anos de idade, Fargu ousou implorar a Wa-
tho que ela assumisse o comando sobre o jovem, re-
dimindo-o de tal responsabilidade. Era difícil contro-
lar um leão com uma juba dourada como a de Photo-
gen, disse ele. Watho, então, chamou o jovem e pe-
rante Fargu ordenou-lhe que jamais permanecesse
fora de seus aposentos a partir do momento em que o
sol começasse a descer sobre o horizonte, acompa-
nhando sua proibição com uma preleção sobre as ter-
ríveis e obscuras conseqüências de tal ousadia. Photo-
gen escutou-a com respeito, mas como não conhecia
nem o sabor do medo nem as tentações da noite, as
palavras de Wathon foram-se com o vento.

7. A Infância de Nycteris

O pouco conhecimento que Watho pretendia


que Nycteris tivesse ela o passou pessoalmente, sem o
auxílio de qualquer livro. Além da ausência da luz,
Watho tinha outras intenções ao decidir jamais apre-

194
sentá-la a um livro. Nycteris, no entanto, conseguia
enxergar muito melhor do que Watho imaginava, e a
pouca luz de que dispunha era mais do que suficiente.
E assim ela conseguiu convencer Falca a ensinar-lhe o
alfabeto, com o que ela conseguia aprender a ler sozi-
nha, e então Falca esporadicamente lhe trazia um livro
infantil.
Mas seu maior prazer estava em seu instrumen-
to. Seus dedos amavam cada uma das teclas que dedi-
lhavam. Nycteris jamais se sentiu triste; ela não co-
nhecia nada do mundo além da tumba onde vivia e
sempre tirava algum prazer de tudo que fazia. No en-
tanto, ela ansiava por alguma coisa mais, ou alguma
coisa diferente. Ela não conseguia definir bem o que
era, e o mais próximo que conseguia chegar para ex-
pressar o que sentia era referir-se a mais espaço. Se
Watho e Falca vinham para a tumba de algum lugar
além da luz e retiravam-se para o mesmo lugar, então
deveria haver mais espaço em outro lugar. Sempre
que estava sozinha ela se debruçava sobre os baixos-
relevos coloridos das paredes. Eles certamente repre-
sentavam várias das forças da Natureza por meio de
semelhanças alegóricas, e como toda representação
sempre se relaciona a algo verdadeiro, Nycteris imagi-
nava que deveria haver alguma relação entre algumas
das pinturas e a realidade. Pouco a pouco, uma pe-
quena sombra da realidade das coisas começou a pe-
netrar nela.
Havia uma coisa, no entanto, que se movia e
que lhe ensinava mais do que todo o resto: a lâmpada
pendurada no teto de seu aposento, que estava sem-
pre acesa, apesar de a menina não conseguir distinguir

195
a chama, somente a iluminação etérea no centro do
globo de alabastro. E além do bruxulear da chama e
dos efeitos da luz, o próprio globo era algo vago e
indefinido. Aliando sua forma ao calmo bruxulear da
luz, ela sentia que seus olhos poderiam penetrar na luz
até o seu centro branco, e tudo isto se associava à i-
déia de espaço e amplitude. Ela conseguia ficar senta-
da por uma hora inteira fitando a lâmpada, e seu cora-
ção se expandia à medida que olhava, olhava. Ela ten-
tava compreender o que a ferira por dentro, sentindo
as lágrimas escorrendo pelo rosto, e então um outro
pensamento a invadia: algo a ferira sem que ela tivesse
percebido. Por isso, ela só olhava para a lâmpada se
estivesse sozinha na tumba.

8. A Lâmpada

Uma vez que havia dado suas ordens, Watho


imaginava que elas fossem obedecidas, ou seja, que
Falca permanecesse durante toda a noite com Nycte-
ris. Mas Falca não conseguia se habituar a dormir du-
rante o dia e freqüentemente deixava Nycteris sozinha
metade da noite. Nycteris tinha, então, a impressão de
que a lâmpada a estava observando. A menina não
tinha permissão para sair e nada sabia sobre a nature-
za da escuridão — exceto quando fechava seus olhos
— ou sobre a luz. Além disto, como a lâmpada esti-
vesse pendurada muito acima de sua cabeça e no cen-
tro do aposento, ela pouco sabia sobre as sombras, já
que as poucas sombras do aposento projetavam-se
sobre o chão ou então sobre a base das paredes.

196
Em uma dessas ocasiões em que se encontrava
sozinha, Nycteris escutou um barulho forte ao longe.
Ela jamais havia escutado qualquer som que não pu-
desse identificar, e este barulho era um sinal de que
havia alguma coisa além de seus aposentos. A seguir,
ela sentiu um tremor e a lâmpada caiu do teto, espati-
fando-se no chão. A menina teve a sensação de que
seus dois olhos haviam se fechado e que suas mãos os
cobriam. Ela concluiu, então, que a escuridão era o
que causara o barulho e o tremor, e que tendo entrado
no aposento, havia jogado a lâmpada ao chão. Ela
permaneceu sentada, tremendo. O barulho e o tremor
cessaram, mas a luz não voltou. A escuridão havia
comido a luz!
Como não havia mais a lâmpada, o desejo de ir
para outro lugar fora de sua prisão cresceu dentro de-
la. Nycteris mal compreendia o sentido de fora; fora de
um aposento para outro, pois não havia qualquer por-
ta em seu aposento: havia somente um arco aberto e
isto era tudo que ela conhecia do início do mundo de
fora. Mas, de repente, a menina lembrou-se de ter ou-
vido Falca dizer um dia que a lâmpada havia se apaga-
do. Então, o que apagava e acendia a lâmpada vinha de
fora! Fora era de onde Falca vinha e para onde volta-
va? Ela não mais podia resistir à vontade de ir para
fora agora, ela precisava ver como era esse fora!
Lembrou-se então da cortina que cobria um
buraco na parede onde alguns de seus brinquedos e
equipamentos de ginástica ficavam guardados; e era
através da cortina que Watho e Falca vinham e saíam.
Como elas conseguiam passar através da parede sólida
ela não fazia a menor idéia, pois todo o espaço até a

197
parede era aberto e atrás da parede só havia... parede!
Mas certamente a primeira coisa a fazer era explorar o
espaço atrás da cortina.
Estava escuro como breu, e apesar de Nycteris
enxergar melhor do que qualquer um, seus olhos não
podiam ajudá-la agora. Ela começou a mover-se, tro-
peçando num pedaço do globo quebrado. Ela nunca
havia usado sapatos ou meias e o pedaço quebrado,
sendo de alabastro macio, não cortou seu pé, mas ma-
chucou-o. Ela não sabia o que era aquilo, mas como
aquilo nunca havia estado ali antes da escuridão, de
algum modo estava relacionado a ela. Então, ajoe-
lhou-se e foi tateando com as mãos; encontrou dois
pedaços e, ao juntá-los, reconheceu o formato da
lâmpada. O que lhe passou pela cabeça foi que, ao
quebrar-se, a lâmpada tinha morrido, ou seja, a escu-
ridão havia matado a lâmpada. Mas quando Falca dis-
se que a lâmpada havia se apagado, esta não havia
morrido, pois para morrer algo tinha de quebrar-se.
Ou seja, o que dava vida à lâmpada era a luz. Então, o
que tinha se apagado não era a lâmpada, mas sim a
luz! Devia ter sido aquilo que Falca havia querido di-
zer! A luz, então, devia estar no buraco na parede!
Nycteris levantou-se e caminhou para a cortina.
Ela nunca havia tentado ir para fora e, por isso,
não sabia como fazê-lo. Instintivamente, foi tateando
com as mãos uma das paredes, como imaginava que
Watho e Falca faziam. A primeira parede repeliu-a
com sua aspereza e ela tentou, então, a outra. Mas
pisou em um cubo de marfim, exatamente no lugar
em que seu pé havia sido machucado pelo globo que-
brado e, com a dor, caiu para a frente. Para proteger-

198
se, esticou seus braços. Ao invés de encontrarem uma
parede, suas mãos tocaram um vazio, e assim ela tro-
peçou para fora da caverna.

9. Fora

Para sua surpresa, fora era muito parecido com


dentro, pois lá encontrou novamente sua inimiga, a es-
curidão. Mas então algo a surpreendeu: um vaga-lume
brilhou na escuridão, vindo do jardim. Ela viu sua lu-
zinha brilhar por um segundo a pouca distância, e a
seguir novamente, flutuando no ar em sua direção. A
luzinha parecia ser a fonte de seu movimento.
— Minha lâmpada! Minha lâmpada! — gritou
Nycteris. — Esta é a luz que a cruel escuridão expul-
sou de minha lâmpada! Ela estava esperando por mim
aqui, o tempo todo, pois sabia que eu viria procurá-la.
Ela me esperou para levar-me para fora!
Nycteris seguiu o vaga-lume que, como ela, es-
tava procurando o caminho para fora. Mesmo não
sabendo o caminho, aquela luzinha a conduziria, tal-
vez, a uma outra luz. Se, porventura, ela se enganara
ao pensar que aquela luz era o Espírito de sua lâmpa-
da, aquela luz deveria possuir o mesmo Espírito que
sua lâmpada — e possuía asas também! O pequeno
ser de luz verde-dourada guiou-a através de uma longa
e estreita passagem. De repente, ele voou para cima e
nesta hora Nycteris caiu sobre uma escada que con-
duzia a um andar acima. Ela nunca tinha visto uma
escada e achou muito estranha a sensação de andar
para cima. No momento em que chegou ao que pare-

199
cia ser o topo, o vaga-lume parou de brilhar e desapa-
receu. Ela estava na mais negra escuridão novamente.
Mas quando estamos seguindo uma luz, mesmo
quando esta desaparece ainda temos algum sentido de
direção. Se o vaga-lume tivesse mostrado sua luz no-
vamente, Nycteris teria visto a escada virar para um
lado e teria dado nos aposentos de Watho; mas como
isto não aconteceu, a menina seguiu em frente e depa-
rou com uma porta trancada. Apesar de todos os seus
esforços, a porta não se abriu, o que a deixou perplexa
e ao mesmo tempo intrigada. O que era aquilo? Era
algo real, acontecendo fora dela, ou algum truque de
sua mente?
A sua frente ela viu uma passagem estreita, que
se dividia, ela não sabia como, em diversas outras pas-
sagens, em outros níveis e para direções diferentes, até
o infinito, como se o espaço estivesse crescendo a
partir de uma depressão qualquer. O ambiente estava
mais bem iluminado do que seu próprio aposento ja-
mais estivera, mais iluminado do que seis lâmpadas de
alabastro acesas ao mesmo tempo. Havia um grande
número de estranhas formas e desenhos coloridos nas
paredes, muito diferentes dos que havia em seu apo-
sento. Ela se sentia como em um sonho de maravi-
lhada perplexidade, de encantadoras surpresas. Ela
não conseguia definir se estava sobre seus próprios
pés ou flutuando no ar como o vaga-lume, movida
por alguma força interna. Inconscientemente, ela deu
mais um passo e se deparou no meio de uma gloriosa
noite, iluminada por uma lâmpada perfeita — a lua
prateada e brilhante era como seu globo de alabastro,
um disco no céu azul-escuro não muito distante, pen-

200
durada a meia-altura, observando tudo ao seu redor.
— Minha lâmpada — sussurrou Nycteris, per-
manecendo imóvel e boquiaberta. Ela teve a sensação
de que ficou parada admirando a lua, em um êxtase
silencioso, por um longo tempo.
— Não, essa não é a minha lâmpada — mur-
murou alguns segundos depois. — Essa é a mãe de
todas as lâmpadas.
E ao proferir estas palavras ela caiu de joelhos e
estendeu suas mãos para a lua. Ela não poderia des-
crever o que se passava em sua mente, mas este ato
era como um pedido à lua para que ela fosse somente
o que era na verdade — aquele disco esplendoroso
pendurado no distante telhado, aquela glória vital para
todas as pobres meninas nascidas e criadas em caver-
nas. O que Nycteris sentia era uma ressurreição, um
renascimento. O que poderia ser aquele vasto veludo
azul-escuro com pequenos brilhos como diamantes?
O que poderia ser a lua, parecendo plenamente satis-
feita em simplesmente brilhar? Como ela sabia tão
pouco! No entanto, o mais importante dos astrôno-
mos poderia até sentir inveja da intensidade da pri-
meira impressão dessa menina de apenas dezesseis
anos de idade, que apesar de sua ignorância conseguiu
apreender o que muitos homens sábios não conse-
guem ver.
Ao ajoelhar-se, algo macio passou por ela, a-
braçou-a e acariciou-a. Ela se levantou, mas não viu
nada e não sabia o que era aquilo. Lembrava-lhe a
respiração de uma mulher, mas ela nada sabia sobre o
ar. Ela nunca havia respirado o silencioso frescor do
mundo de fora, pois o ar vinha até ela em sua caverna

201
através de longas passagens e fendas na rocha. Menos
ainda sabia ela sobre o ar em movimento, aquele a-
bençoado ser, o vento de uma noite de verão. Era al-
go parecido com um vinho celestial, preenchendo to-
do o seu ser com uma intoxicação de pura alegria.
Respirar era simplesmente uma existência perfeita,
algo que para ela parecia-se com a própria luz entran-
do em seus pulmões. Possuída pela força desta es-
plêndida noite, ela se sentia ao mesmo tempo aniqui-
lada e glorificada.
Nycteris se encontrava na galeria que circunda-
va o topo dos muros do jardim, entre as amuradas,
mas ela não olhara para baixo para ver o que lá havia.
Sua alma estava presa ao que estava acima dela, com
sua lâmpada e seu espaço infinito. Finalmente, ela se
pôs a chorar e seu coração ficou mais leve, assim co-
mo o ar da noite fica mais leve após uma tempestade.
Passado o choro, ela se tornou pensativa. Devia
guardar para si o esplendor daquela descoberta! Em
que estado de ignorância havia sido mantida, prisio-
neira em seu cativeiro! A vida era uma bênção divina,
mas esta bênção lhe havia sido roubada! No entanto,
eles não podiam saber que agora ela tomara conheci-
mento desta imensa verdade: devia manter seu conhe-
cimento escondido a sete chaves no fundo de seu co-
ração, feliz em saber que o possuía mesmo não po-
dendo demonstrá-lo ou dele desfrutar em toda a sua
glória. Ela deu as costas à linda visão, com um suspiro
de desalento, e com passos curtos e leves como uma
pena e tateando seu caminho com as mãos retornou à
escuridão da rocha. O que significava a escuridão ou a
lassidão do tempo para alguém que havia deslumbra-

202
do a visão que tivera? Ela se sentia acima de todo can-
saço — acima de qualquer mal.
Quando Falca entrou no aposento sem luz, sol-
tou um grito de susto, mas Nycteris disse-lhe que não
tivesse medo, contando-lhe sobre o tremor e a queda
da lâmpada. Falca então foi ter com sua patroa e em
menos de uma hora um novo globo foi pendurado ao
teto no lugar do anterior. Nycteris achou que o novo
globo não era tão brilhante e límpido quanto o outro,
mas não fez qualquer reclamação sobre a mudança.
Agora tinha algo muito mais importante a dar
atenção, pois, mesmo ciente de sua condição de prisi-
oneira, seu coração estava cheio de alegria e glória e
muitas vezes precisava se conter para não pular, can-
tar e sair dançando pelo quarto. Quando adormecia,
em vez de sonhos obscuros que costumava ter, ela se
deparava com visões esplêndidas. Naturalmente, al-
gumas vezes ela se sentia irrequieta e impaciente para
ter novamente aquela esplendorosa visão; mas então
ela ponderava, dizendo a si mesma: “Que importa se
eu me sentar aqui por anos com minha pobre lâmpa-
da opaca, se sei que lá fora há uma grande lâmpada
que brilha com dez mil pequenas lâmpadas ao seu re-
dor?”
Ela nunca duvidou que tinha visto o dia e o sol,
sobre os quais havia lido; e sempre que lia novamente
sobre o dia e o sol em sua mente aparecia a imagem
da noite e da lua. Por outro lado, sempre que lia algo
sobre a noite e a lua, ela pensava em sua caverna e na
lâmpada pendurada no teto.

203
10. A Grande Lâmpada

Passaram-se vários dias até que Nycteris teve


uma segunda oportunidade de sair da caverna, pois
desde que a primeira lâmpada caíra e se quebrara, Fal-
ca se tornara mais cuidadosa e raramente deixava-a
sozinha por muito tempo. Mas certa noite, sentindo
uma leve dor de cabeça, Nycteris resolveu deitar-se e
fechou seus olhos. Mesmo quando Falca veio vê-la,
Nycteris manteve-se imóvel e com os olhos fechados,
pois não sentia a menor vontade de conversar. Satis-
feita em vê-la adormecida, Falca retirou-se, tendo o
cuidado de mover-se sem qualquer barulho para não
acordar a menina e assim poder sair despercebida —
bem a tempo de Nycteris abrir seus olhos e vê-la sa-
indo. Nycteris, então, pulou da cama, esquecendo-se
de sua dor de cabeça, e correu para a direção oposta.
Ela saiu da caverna, subiu as escadas e chegou à gale-
ria. Mas o que acontecera? A grande sala estava me-
nos iluminada do que sua pobre caverna! Por quê?
Uma dor profunda invadiu-a ao ver que a grande
lâmpada se fora! Teria seu globo caído também e sua
linda luz desaparecido sobre as asas de um vaga-lume,
indo iluminar alguma outra sala ainda maior e mais
bela? Nycteris olhou para baixo, para certificar-se de
que a lâmpada não havia caído sobre o tapete e se
quebrado; mas ela não conseguia enxergar nem o ta-
pete. Tomara não tivesse acontecido nenhuma catás-
trofe — algum tremor ou algo parecido. Mas as outras
pequenas lâmpadas continuavam a brilhar, mais claras
do que antes, e nada nelas indicava que algo incomum
tivesse ocorrido. E se cada uma daquelas pequeninas

204
lâmpadas estivesse crescendo para se tornar uma
grande lâmpada, para então depois de brilhar por al-
gum tempo crescer novamente e se tornar uma lâm-
pada ainda maior, indo brilhar em algum outro lugar
fora dali? Fora daquele outro fora? Mas, ah! Aqui estava
novamente aquele outro ser que não podia ser visto
— e ele era maior esta noite! E dava-lhe beijos cari-
nhosos e acariciava seu rosto, sua testa, mexia com
seus cabelos! Até que ele foi embora e tudo ficou pa-
rado. Teria ele ido para fora? O que aconteceria ago-
ra? Talvez as pequeninas lâmpadas não tivessem de
crescer e tornar-se grandes lâmpadas, mas sim cair
uma a uma e apagar-se? Ao ter este pensamento, ela
sentiu um doce aroma vindo de mais abaixo de onde
se encontrava, e a seguir outra onda desse doce aro-
ma, e mais uma. Ah, que delícia! Talvez todas as pe-
queninas lâmpadas caídas estivessem vindo ao seu
encontro para, logo após, unir-se à grande lâmpada! E
então ela ouviu a música do rio, a qual ela não perce-
bera em sua primeira visita àquela grande sala, tão ab-
sorvida que estivera pela beleza do céu. Minha nossa!
Mais outro doce ser vinha até ela. Todos, todos eles
estavam agora marchando, bem devagar, passando à
sua frente e saudando-a! Uma procissão de sons do-
ces, passando um após o outro, antes de desaparece-
rem para sempre! O fora inteiro estava indo atrás da
grande e maravilhosa lâmpada! E Nycteris seria a úni-
ca criatura ali, no final, naquele dia solitário. Será que
não havia ninguém que pudesse pendurar uma nova
lâmpada e, assim, impedir os outros seres de irem para
fora? Ela retornou à sua caverna sentindo-se imensa-
mente triste. Tentou consolar-se pensando que, de

205
todo modo, havia uma grande sala do lado decora;
mas só em pensar nisto, ela tremeu, pois então a
grande sala estaria sempre vazia.
Na próxima vez em que conseguiu sair da ca-
verna, havia uma meia-lua pendurada no céu, a leste.
Uma nova lâmpada estava lá, ela pensou, e tudo então
ficaria bem.
Jamais terminaríamos de descrever todas as
ondas de sentimentos que invadiram Nycteris, mais
delicadas e em um número maior do que mil luas em
eterna mudança. Uma nova esperança florescia em
sua alma a cada novo aspecto que descobria sobre
uma natureza em infindável mudança. Após algum
tempo, ela começou a suspeitar que a nova lua era a
velha lua que havia partido, mas retornado novamen-
te, assim como ela saía e voltava à sala. Só que, dife-
rentemente dela, esta lua encolhia e então crescia no-
vamente. Esta lua era uma criatura viva, e como ela,
sujeita a cavernas, a solidões, prisioneira que conse-
guia por vezes escapar e que brilhava quando podia.
Estaria a lua confinada a uma prisão como a sua e,
assim como ela, ficaria no escuro quando a lâmpada a
deixasse só? Qual seria o caminho para chegar até ela?
Nycteris então olhou para baixo e depois para cima e
ao seu redor. E pela primeira vez reparou na copa das
árvores acima dela e no chão. Havia palmeiras com
suas pontas avermelhadas cheias de frutos; eucaliptos
com suas folhas pequenas agrupadas em umbelas; es-
pirradeiras com suas flores róseas; e laranjeiras com
suas pequenas nuvens de estrelas prateadas e seus fru-
tos maduros e dourados. Seus olhos podiam distinguir
cores ao luar que, para nós, com nossa visão limitada,

206
são invisíveis, apesar de no início ela tê-las tomado
por sombras e formatos do tapete que cobria aquela
grande sala abaixo dela. Ela adoraria descer e cami-
nhar por entre as árvores, agora que sabia que eram
criaturas de verdade, mas não sabia como fazê-lo.
Percorreu então toda a extensão do muro, mas não
encontrou nenhum caminho que a levasse para baixo.
Ao chegar ao ponto bem acima do rio, ela parou para
admirar com um misto de surpresa e respeito as águas
que corriam. Nada sabia sobre a água, salvo a água
que bebia e na qual se banhava. E com a lua brilhando
na escuridão, o rápido fluxo das águas dava vida ao
rio. Nycteris não tinha qualquer dúvida de que o rio
era um ser vivo, uma serpente de vida, indo — para
foral Para onde? E então ela ficou imaginando se a á-
gua que lhe era trazida na caverna era um ser como
este que tinha sido morto para que ela pudesse bebê-
la e banhar-se nela.
Certa vez em que estava sobre o muro, um
vento forte começou a soprar, balançando as árvores
e provocando reclamações como bramidos. Nuvens
grandes se deslocavam nos céus, encobrindo as pe-
quenas lâmpadas. A grande lâmpada ainda não tinha
aparecido, talvez com medo daquele grande tumulto.
O vento segurou seu cabelo e suas roupas, puxando-
os como se quisesse tomá-los. O que ela teria feito
para enraivecer aquela criatura outrora sempre tão
gentil? Ou seria aquela uma outra criatura, da mesma
espécie, porém maior e com outra personalidade e
outro comportamento? Mas ela notou que todos os
outros seres à sua volta também estavam bravos! Ou
talvez tivessem todos eles, o vento, as árvores, as nu-

207
vens e o rio brigado entre si? Mas, à medida que olha-
va ao seu redor, ao mesmo tempo maravilhada e te-
merosa, a lua, maior do que Nycteris jamais a tivera
visto, levantou-se no horizonte, vermelha e inchada,
talvez de raiva, também, por ter sido acordada por
aquele barulho que seus filhos estavam fazendo du-
rante sua ausência, temerosa de que quebrassem toda
a “casa”. E quanto mais a lua subia no céu, mais quie-
to foi se tornando o vento, mais brando ele soprava,
mais paradas as árvores também ficaram, gemendo
baixinho agora, e as nuvens se moviam no céu mais
lentamente. E como se estivesse satisfeita com a obe-
diência de seus filhos perante sua chegada, a lua foi
diminuindo de tamanho, até que finalmente chegou
ao topo daquela escada celestial. Suas bochechas in-
fladas tornaram-se mais pálidas, ela se tornou mais
clara e um doce sorriso se estampou em seu rosto. No
entanto, ainda havia um resquício de rebelião em seu
reino, pois as nuvens haviam se juntado, como se
conspirassem em silêncio. E lenta e silenciosamente
foram se aproximando dela, até encobri-la e, final-
mente, engoli-la. Do telhado, começaram a cair gotas
de água, mais e mais gotas e mais e mais rapidamente.
Elas molharam o rosto de Nycteris, que então pensou
tratar-se das lágrimas da grande lâmpada, triste com o
comportamento de seus filhos. Nycteris também cho-
rou, e sem saber o que pensar, voltou para a escuridão
de sua caverna, desapontada. Quando saiu novamen-
te, tremia com medo do que a esperava. Encontrou a
lua ainda pendurava a oeste — mas uma lua cansada,
desgastada, como se tivesse sido atacada por todas as
bestas selvagens do céu —, mas ela estava lá, viva,

208
firme e, apesar de tudo, ainda a brilhar.

11. O Pôr-do-Sol

Desconhecendo a escuridão, as estrelas e a lua,


Photogen passava seus dias caçando. Montado em um
robusto cavalo branco, ele galopava pelo tapete de
grama dos campos, glorioso à luz do sol, lutando con-
tra o vento e matando búfalos.
Certa manhã, levantou-se mais cedo do que de
costume e antes de seus serviçais. Vislumbrou, então,
um animal desconhecido para ele saindo de um bura-
co ainda não iluminado pelos raios do sol. Como uma
sombra ágil e ligeira, o animal correu pela grama em
direção à floresta. Photogen pôs-se a persegui-lo de
imediato, passando pelo corpo de um búfalo que o
animal havia comido pela metade, e galopando adian-
te. Mas a criatura ganhou terreno, distanciando-se
mais e mais a grandes saltos e, finalmente, desapare-
ceu de vista. Ao dar meia-volta, sentindo-se derrota-
do, Photogen deparou-se com Fargu, que o havia se-
guido o mais rápido que seu cavalo conseguia galopar.
— Que animal era aquele, Fargu? — perguntou
ele. — Como ele corria!
Fargu respondeu que poderia ser um leopardo,
mas que pela rapidez e tipo de movimento poderia ser
um jovem leão.
— Que covarde ele deve ser! — exclamou
Photogen.
— Não tenha tanta certeza — retrucou Fargu.
— Ele é uma daquelas criaturas que não se sente à

209
vontade sob o sol. Tão logo o sol se ponha, ele se
tornará muito mais corajoso.
Ele mal havia proferido estas palavras quando
se arrependeu do que dissera. Ele se arrependeu ainda
mais ao ver que Photogen nada replicara. Mas o que
estava dito, estava dito.
No entanto, Photogen pensava: “Então, essa
desprezível criatura é um daqueles terrores do pôr-do-
sol de que Madame Watho me falou!”
Photogen caçou o dia todo, mas não com a
mesma disposição de sempre. Ele não cavalgou com o
mesmo entusiasmo, nem mesmo matou um búfalo
sequer. Fargu também reparou que o rapaz usou to-
dos os pretextos possíveis para se aproximar mais e
mais da floresta. Mas, de repente, ao perceber que o
sol começava a se pôr a noroeste, Photogen pareceu
mudar de idéia: puxou as rédeas de seu cavalo em di-
reção ao castelo e para lá se dirigiu a tal galope que
nenhum dos demais conseguiu acompanhá-lo. Quan-
do finalmente lá chegaram, encontraram o cavalo do
rapaz no estábulo, e então concluíram que ele havia
entrado em casa. Mas, na verdade, Photogen tinha
entrado e saído novamente pelos fundos. Ele cruzou
o rio a uma boa distância acima do vale e retornou ao
terreno onde antes se encontravam e, um pouco antes
do pôr-do-sol, chegou à beira da floresta.
Os últimos raios do sol poente incidiam dire-
tamente sobre os troncos nus e, dizendo a si mesmo
que conseguiria encontrar a criatura, Photogen pene-
trou na mata. Porém, logo que entrou, ele virou-se e
olhou para oeste. Conseguiu ver somente o contorno
do sol entrecortado pelas colinas. “Agora”, disse Pho-

210
togen, “é que nós vamos ver.” Mas suas palavras não
levaram em consideração a escuridão, que lhe era to-
talmente desconhecida. Na hora em que o sol baixou
ainda mais por detrás dos morros, o rapaz sentiu um
súbito fraquejar em seu coração e um medo inexplicá-
vel se apossou dele. Como jamais sentira algo pareci-
do, ficou mais amedrontado ainda. Quanto mais o sol
afundava, mais as sombras se agigantavam e mais es-
curo ficava. Photogen não conseguia entender o que
estava acontecendo, ainda mais porque isto parecia
torná-lo mais e mais fraco. Quando a última lumino-
sidade do sol desapareceu, tal qual uma lâmpada que
se apagara, seu terror pareceu transformar-se em lou-
cura. Como num fechar de olhos — pois neste dia
não houve nem o lusco-fusco nem a lua brilhou no
céu —, o terror e a escuridão uniram-se em um sen-
timento único para ele. Photogen não era mais o ho-
mem que pensava ser. Sua coragem se havia desvane-
cido — tinha possuído coragem somente por alguns
momentos, mas não havia sido corajoso. Essa cora-
gem o havia deixado e ele não conseguia nem mesmo
ficar em pé, ereto; suas articulações haviam amolecido
e ele não conseguia parar de tremer. Ele era nada mais
do que uma faísca do sol, mas em si mesmo, um nada.
A criatura estava atrás dele, de tocaia! Ele se vi-
rou. Tudo estava escuro na mata ao seu redor, mas,
para sua surpresa, a escuridão era quebrada aqui e
acolá por pares de olhos verdes. No entanto, Photo-
gen não tinha forças nem mesmo para levantar seu
braço. Apoiando-se na força de seu desespero, ele
lutou para juntar coragem suficiente — não para lutar,
pois ele não tinha a mínima vontade de fazê-lo naque-

211
le momento — para correr. Coragem para fugir, para
casa, isto era tudo em que conseguia pensar, mas essa
coragem não vinha. E, de repente, o que ele não tinha
lhe foi concedido de maneira inglória: algo entre um
urro e um grito penetrante vindo da mata o pôs a cor-
rer como um cão vira-lata atacado por um porco sel-
vagem. Não era exatamente ele que corria; era o medo
que havia ganhado vida em suas pernas. Ele não per-
cebia que elas estavam se movendo. Mas, à medida
que corria, a inércia do movimento o fez correr mais e
mais, e lhe deu a coragem que havia perdido — a co-
ragem, pelo menos, para ser um covarde e correr.
As estrelas lançavam pouca luz sobre a grama
do chapadão, mas ele corria e corria, embora não
houvesse nada ou ninguém em seu encalço. “Que
desgraça! Que transformação!”, pensou ele. Onde es-
tava aquele jovem que havia subido o morro destemi-
do quando o sol se punha? Que desprezo ele sentia de
si mesmo, ele que desprezava qualquer covardia, mas
que se via agora como um covarde! Contornou o cor-
po disforme do búfalo morto que havia visto de ma-
nhã e continuou correndo como uma sombra carre-
gada pelo vento. Pois um vento havia se levantado e
soprava agora por detrás dele, somando-se ao seu ter-
ror. Chegou ao topo do vale e disparou escarpa abai-
xo como uma estrela cadente. No mesmo instante,
todo o chapadão às suas costas pareceu elevar-se ain-
da mais e persegui-lo! O vento uivava atrás dele, tra-
zendo consigo gritos, guinchos, urros, bramidos, chil-
ros, risadas, como se todos os animais da floresta esti-
vessem a persegui-lo. Dentro de seus ouvidos havia o
som pesado de uma turba, o bater dos cascos do gado

212
em disparada pelos quatro cantos dos campos até o
topo dos morros em volta do vale. Ele disparou em
direção ao castelo, quase sem fôlego.
Quando chegou ao fundo do vale, a lua espiou
por cima dos morros. Photogen jamais havia visto a
lua — exceto durante o dia, quando pensara tratar-se
de uma nuvem fina e brilhante. Ela era um novo ter-
ror para ele — fantasmagórica! Apavorante! Como se
soubesse de tudo ao olhar para ele e para o mundo
todo do topo do muro de seu jardim. Isto era a pró-
pria noite! A escuridão viva — e estava atrás dele! O
horror dos horrores descendo do céu para congelar
seu sangue e carbonizar seu cérebro! Ele soluçou e
correu direto para o rio, no ponto em que este corria
entre os dois muros, no final do jardim. Entrou no rio
como uma flecha, lutou contra a correnteza, subiu a
margem oposta e caiu sem sentidos sobre a grama.

12. O Jardim

Apesar de todo o cuidado e das precauções que


sempre tomava para não se demorar fora da caverna,
as saídas noturnas de Nycteris não tardariam a ser
descobertas, ainda mais porque os estranhos ataques
de Watho estavam se tornando mais freqüentes ulti-
mamente, tendo se tornado uma doença que a manti-
nha de cama por um bom tempo. No entanto, tenha
sido por um acesso de cuidado ou por alguma suspei-
ta, Falca, que ficava agora com sua patroa a maior par-
te do dia e da noite, começou a trancar a porta da ca-
verna toda vez que saía.

213
Assim sendo, certa noite, quando tentou sair,
Nycteris percebeu, para sua surpresa e desalento, que
a parede a repelia e não lhe permitia a passagem. Ape-
sar de procurar, ela não conseguia encontrar a razão
da mudança na atitude da parede. Sua primeira sensa-
ção foi de sentir-se pressionada pelas paredes de sua
prisão, sensação esta que a seguir transformou-se em
desespero. A menina lembrou-se, então, do quadro
através do qual havia visto Falca desaparecer certa
vez. Ela logo encontrou o ponto certo sobre o qual
deveria pressionar, e a parede, então, cedeu. A abertu-
ra dava para um certo tipo de adega iluminada por
uma fraca luz vinda de um céu azul empalidecido pelo
luar. Da adega ela passou para um longo corredor,
também iluminado pelo luar, e chegou a uma porta.
Ao abri-la, Nycteris encontrou-se no outro lugar, não
no topo do muro, mas no jardim onde quisera entrar.
Tão silenciosa quanto uma mariposa, ela correu ágil e
sorrateiramente para a cobertura das árvores e dos
arbustos maiores, seus pés recebendo uma conforta-
dora e doce acolhida do mais macio dos tapetes que,
ao mero toque de seus pés, dava-lhe a certeza de ser
outra criatura viva. Uma leve brisa soprava ora aqui
ora acolá por entre as árvores, como uma criança a
brincar de esconde-esconde. Ela começou a dançar
por entre as árvores, sempre olhando para trás para
ver sua sombra projetada. A princípio pensara tratar-
se de uma criatura negra que estava brincando com
ela, mas quando percebeu que essa criatura só apare-
cia quando Nycteris se interpunha entre ela e a lua, e
percebeu também que todas as árvores, independen-
temente do seu tamanho, também tinham esses estra-

214
nhos acompanhantes, Nycteris compreendeu que não
havia nada a temer. E assim sua sombra tornou-se
uma fonte de brincadeiras, assim como um gatinho
brinca com seu próprio rabo.
No entanto, familiarizar-se com as árvores de-
morou um pouco mais, pois no início elas pareceram
não gostar muito dela, para a seguir parecer ignorá-la
e, por fim, ignorar sua presença e continuar com seus
próprios afazeres. De repente, enquanto estava indo
de uma árvore para outra e admirando-se com o mis-
terioso murmúrio de seus galhos e folhas, Nycteris viu
uma pequena árvore um pouco mais além que era
bem diferente das demais. Apesar de ser branca, pare-
cia escura e brilhante e se abria como uma palmeira
— uma palmeira mais esbelta e menor, mas que cres-
cia rapidamente e cantava à medida que crescia. Mas
ela jamais conseguia ultrapassar uma determinada al-
tura, pois independentemente de quão rápido crescia,
essa palmeirinha ia se despedaçando. Quando Nycte-
ris se aproximou dela, descobriu que era uma árvore-
da-água ou, na verdade, uma bananeira-da-terra —
feita da mesma água com que Nycteris se lavava —,
mas que, naturalmente, estava viva, como o rio. Um
tipo diferente de água, certamente, daquela água que
corria rapidamente no chão ou daquela água que se
elevava e esguichava para cima, para cair a seguir e
depois tornar a levantar-se. Nycteris mergulhou seu
pé na bacia de mármore que servia de vaso para a
planta e viu que esta estava cheia de água mesmo, á-
gua viva e fria — mas que delícia nesta noite tão
quente!
E as flores! Ah, as flores! Tornaram-se logo su-

215
as amigas. Que criaturas maravilhosas! Tão gentis e
belas, com suas cores e seus aromas diferentes — a-
romas vermelhos, brancos e amarelos, tão diferentes
das outras criaturas! A criatura invisível e que estava
em todo lugar carregava todos esses aromas consigo,
mas as flores pareciam não se importar com isto. Seus
aromas eram sua maneira de conversar, de mostrar
que estavam vivas e não pintadas como aquelas nas
paredes e nos tapetes dos aposentos de Nycteris.
Nycteris continuou caminhando pelo jardim até
chegar ao rio. Com medo da serpente de água que se
movimentava rapidamente, a jovem foi incapaz de dar
mais um passo e sentou-se na margem coberta de
grama, mergulhando seus pés no rio e sentindo a for-
ça da água a balançar seus pés para cá e para lá. Ela
ficou lá sentada assim por um bom tempo, sentindo-
se completamente abençoada, olhando e sentindo o
movimento do rio, olhando para o quadro quebrado
da grande lâmpada bem acima no céu, que se balança-
va de um lado para outro no teto azul-escuro da noite.

13. Algo Novo Acontece

Uma linda mariposa pairou entre os grandes


olhos azuis de Nycteris. A jovem se pôs em pé de i-
mediato e começou a seguir a mariposa, não com o
espírito de um caçador, mas de um observador encan-
tado. Seu coração — como todo coração que tivesse
suas feridas cicatrizadas — era uma fonte inesgotável
de amor. Ela amava tudo que via ao seu redor. Mas
enquanto seguia a mariposa, viu algo deitado na mar-

216
gem do rio, e como não tinha aprendido a temer
qualquer coisa, correu em sua direção para ver o que
era. Aproximando-se, estancou, absolutamente sur-
presa: outra menina como ela! Mas que menina estra-
nha! E que roupas curiosas ela usava! Por que estaria
imóvel? Estaria ela morta? Sentindo seu coração en-
cher-se de piedade, Nycteris se sentou, ergueu a cabe-
ça de Photogen, colocou-a sobre seu colo e começou
a acariciar-lhe a face. O contato com as mãos cálidas
da jovem fizeram o rapaz acordar. Ele abriu seus o-
lhos negros, dos quais todo o fogo interior havia de-
saparecido, olhou-a e emitiu um grunhido de medo,
algo como um gemido ou uma exclamação de surpre-
sa. Mas quando viu o rosto de Nycteris, ele respirou
profundamente e permaneceu imóvel, fitando-a: aque-
les maravilhosos olhos azuis, como um céu imacula-
do, pareciam encará-lo com coragem, abrandando seu
terror. Finalmente, com um tom surpreso e cora a voz
trêmula, como num sussurro, ele perguntou:
— Quem é você?
— Eu sou Nycteris — respondeu-lhe ela.
— Você é uma criatura da escuridão e mesmo
assim ama a noite — disse ele, sentindo o medo insta-
lar-se novamente.
— Talvez eu seja mesmo uma criatura da escu-
ridão — retrucou ela. — Não entendo exatamente o
que você quer dizer, mas não gosto da noite. Eu amo
o dia, com todo o meu coração. E eu durmo a noite
toda.
— Como isso pode ser? — perguntou-lhe Pho-
togen, erguendo-se sobre um cotovelo, mas deixando
sua cabeça cair novamente sobre o colo da jovem

217
quando viu a lua.
— Como assim — repetiu ele —, se vejo que
seus olhos estão bem abertos?
Ela simplesmente sorriu e acariciou-o, pois não
conseguia entender o que ele dizia e pensou que ele
não sabia realmente o que estava falando.
— Foi tudo um sonho, então? — perguntou
ele, esfregando os olhos. Mas então sua memória vol-
tou-lhe, clara como a água, e ele se encolheu, gritando:
— Oh, que coisa horrível, que horror! Tornar-
se um covarde, um completo, vergonhoso, desprezí-
vel e desgraçado covarde! Estou tão envergonhado,
envergonhado, e tão apavorado! Estou apavorado!
— Mas o que pode ser tão apavorante? — per-
guntou Nycteris com um sorriso como o de uma mãe
que conforta um filho que acordou após um pesadelo.
— Tudo, tudo — respondeu. — Toda esta es-
curidão e esses urros.
— Minha querida — disse Nycteris —, não há
nenhum urro. Você deve ser muito sensível! Escute:
há simplesmente o som do andar da água e do movi-
mento da mais doce de todas as criaturas. Essa criatu-
ra é invisível e eu a chamo de Onipresente, pois ela
pode perpassar todas as outras criaturas e confortá-
las. Ela está agora brincando com todos, balançando-
os, beijando-os e soprando suas faces. Escute: você
acha que isso é um urro? Então você deveria ouvi-la
quando ela está realmente contrariada! Não sei expli-
car por quê, mas às vezes ela fica bem brava e urra
também.
— Mas está tão horrivelmente escuro! — disse
Photogen, que tinha prestado atenção aos sons à sua

218
volta enquanto a jovem falava e se certificava de que
não havia urro algum.
— Escuro! — repetiu ela. — Você deveria ver
como é escuro no meu quarto, e como ficou escuro
quando um terremoto matou minha lâmpada. Não
entendo... Como você pode achar que está escuro? Ve-
jamos: sim, você tem dois olhos, olhos grandes, maio-
res do que os de Madame Watho ou de Falca. Não tão
grandes como os meus, acredito. Mas eu nunca vi
meus próprios olhos... Mas, então... espere! Acho que
sei o que está acontecendo! Você não consegue en-
xergar porque seus olhos são muito pretos! Eles são
escuros, por isso não conseguem enxergar. Mas não
se preocupe: eu serei seus olhos e vou ensinar-lhe
como enxergar. Olhe aqui estas lindas coisinhas bran-
cas na grama, com pontas vermelhas afiadas, todas
juntinhas, formando uma única coisa. Eu gosto tanto
delas! Poderia ficar sentada aqui, admirando-as o dia
todo!
Photogen olhou mais atentamente para as flo-
res e pensou que já havia visto algo parecido com elas
antes, embora não conseguisse identificá-las. Assim
como Nycteris jamais vira uma margarida aberta, ele
jamais vira uma fechada.
E assim, instintivamente, Nycteris tentou des-
viar a atenção do rapaz do medo que ele sentia, mas
sua fala estranha não ajudou muito.
— E você chama isto de escuro! — disse ela
novamente, como se não conseguisse entender essa
idéia absurda. — Mas eu seria capaz de contar todas
as folhinhas verdes do tapete num raio de dois me-
tros! E olhe para a grande lâmpada! Hoje ela está mais

219
brilhante do que geralmente é, por isso não consigo
entender por que você está com tanto medo e chama
tudo isso de escuridão.
Enquanto falava, ela continuava a acariciar o
rosto e o cabelo do jovem, tentando confortá-lo. Mas
ele se sentia desolado, e tinha certeza de que passava
esta impressão. Ele estava a ponto de dizer que a
grande lâmpada da menina era horrorosa para ele, que
parecia uma bruxa sonâmbula em seu sono de morte.
Mas ele não era tão ignorante como Nycteris, e sabia,
mesmo com a pouca claridade da lua, que Nycteris era
uma mulher, apesar de ele nunca ter visto uma mulher
tão jovem ou tão bela antes. Mas enquanto ela tentava
amainar seu medo, sua presença só o fazia sentir-se
mais envergonhado por estar sentindo medo. Além
disto, como não a conhecia bem, ele receava contrari-
á-la e fazê-la ir embora, deixando-o sozinho com seu
desalento. Assim, continuou deitado, em silêncio, i-
móvel, não ousando mexer um músculo sequer, pois
receava que, caso se mexesse, a menina o deixasse
sozinho e ele chorasse como uma criança.
— Como você veio parar aqui? — perguntou-
lhe Nycteris, segurando o rosto do jovem entre suas
mãos.
— Descendo o morro — respondeu ele.
— Onde você costuma dormir?
Ele apontou em direção à casa. Ela deu um ri-
sinho de alegria.
— Quando você aprender a não ter mais me-
do, vai sempre querer estar aqui fora comigo — disse
ela.
Ela pensou que, quando ele recuperasse sua au-

220
toconfiança, perguntaria de onde ela tinha vindo e que
talvez, como ela, ele também vivesse em uma caverna,
onde Watho e Falca cuidavam dele.
— Olhe para todas estas lindas cores — pros-
seguiu ela, apontando para uma roseira, onde Photo-
gen não conseguia ver uma única flor. — Elas são
muito mais bonitas do que qualquer uma das pinturas
nas paredes do seu quarto, não são? E estas estão vi-
vas e têm um perfume tão doce!
Photogen desejou que ela parasse de falar, que
parasse de fazê-lo ter de abrir os olhos para olhar para
coisas que ele não conseguia ver. E além do mais, de
vez em quando, ele se sobres-saltava e a segurava com
força, como se uma repentina sensação de terror to-
masse posse dele.
— Calma, querida, calma — dizia ela nessas
horas. — Faça uma forcinha para se controlar, você
precisa ser uma menina corajosa e...
— Menina? — gritou Photogen, ficando em pé
de imediato, tamanha sua raiva. — Se você fosse um
homem, eu a mataria!
— Um homem? — repetiu Nycteris. — O que
é isso? Como eu poderia ser isso? Nós duas somos
meninas, não somos?
— Não, eu não sou uma menina — respondeu
Photogen. — Apesar de... — ele mudou repentina-
mente seu tom, deitando-se novamente no chão — ...
ter-lhe dado motivos para me chamar assim.
— Ah, entendo! — retrucou Nycteris. — Não,
você com certeza não é uma menina, pois meninas
não têm medo — sem que haja uma boa razão para
isso. Agora eu entendo: é por não ser uma menina

221
que você tem tanto medo.
Photogen se virou, contorcendo-se no chão.
— Não, não é por isso — disse ele melancoli-
camente. — E esta horrível escuridão que me penetra,
me corrói até os ossos, isto é o que faz eu me com-
portar como uma menina. Ah, como eu queria que o
sol se erguesse!
— O sol? O que é isso? — gritou Nycteris,
demonstrando, agora, medo em sua expressão.
Photogen, então, explicou diletantemente o que
era o sol, tentando encontrar em sua narrativa um
pouco de alento para seu medo.
— O sol é a alma, a vida, o coração, a glória do
universo — disse ele. — Os planetas dançam como
átomos à sua volta quando ele brilha. O coração do
homem se torna corajoso e forte com sua luz, e quan-
do o sol se põe, a coragem do homem se desvanece
com o sol. É por isso que você me vê neste estado
agora
— Então... aquele não é o sol? — perguntou
ela, apontando para a lua.
— Aquilo?! — gritou Photogen, com visível
desdém. — Nada sei sobre aquilo, exceto que é algo
feio, horrível! No máximo poderia ser um fantasma de
um sol morto. Sim, é isto que aquilo é! Por isso aquilo
é tão aterrorizante!
— Não — disse Nycteris, após uma longa pau-
sa, pensativa —, você deve estar enganado... Eu acho
que o sol é o fantasma de uma lua morta, e por isso
ele é tão esplêndido como você o descreve. Há, então,
alguma outra grande sala onde o sol vive no teto?
— Eu não entendo o que você quer dizer —

222
retrucou Photogen. — Mas você parece querer ser
gentil, apesar de não dever chamar um pobre homem
sozinho no escuro de uma menina. Se você me deixar
deitar aqui, com a cabeça em seu colo, eu gostaria de
dormir um pouco. Você pode ficar vigiando, tomando
conta de mim?
— Certamente — respondeu Nycteris, esque-
cendo-se de todo o perigo que ela mesma corria se
Falca não a encontrasse em sua caverna.
E, assim, Photogen adormeceu.

14. O Sol

E lá Nycteris permaneceu sentada e Photogen


deitado a noite toda, no coração da grande sombra da
terra, como dois faraós em uma pirâmide. Photogen
dormiu por muito, muito tempo, enquanto Nycteris
permaneceu sentada, imóvel, com receio de acordá-lo
e de trair sua promessa de manter o medo longe dele.
A lua estava pendurada bem no alto da eterni-
dade azul, como um troféu naquela noite gloriosa. O
rio corria calmo, murmurando cada sílaba ao longo de
seu caminho; a fonte continuava a esguichar sua ale-
gria em direção à luz, abrindo-se em uma linda corola
de flores prateadas cujas pétalas caíam a seguir como
flocos de neve, produzindo uma sonata melodiosa em
sua jornada de volta ao coração da terra. E o vento
acordou, deu um longo passeio por entre as árvores
antes de ir dormir e acordar novamente; as margaridas
dormiam aos pés de Nycteris, que não sabia que estas
flores dormiam. As rosas pareciam acordadas, pois

223
seu perfume enchia o ar, mas, na verdade, também
estavam dormindo e o perfume que exalavam era o
perfume de seus sonhos. As laranjas pareciam peque-
nas lâmpadas douradas penduradas nas árvores e suas
flores prateadas eram as almas de seus pequenos fru-
tos ainda por vir; o perfume das acácias enchia o ar,
como se fosse o perfume da própria lua. E Nycteris
permanecia imóvel.
Em determinado momento, a lua mudou de
aparência. Ela se tornou mais redonda e encarou Nyc-
teris pelo oeste. Foi então que a menina reparou que a
face da lua estava mudada; ela estava pálida, como se
também tivesse medo e estivesse espiando, do alto do
céu, algum terror que se aproximava. Sua luminosida-
de parecia estar se dissolvendo, ela estava morrendo
— ela estava indo embora! Mas, estranhamente, tudo
à sua volta parecia mais claro do que antes — como
poderia a lâmpada emitir mais luz se ela própria tinha
menos luz? E ela parecia tão fraca! Talvez a luz esti-
vesse tentando salvá-la, espalhando-se por toda aquela
grande sala, apesar de a lua parecer cada vez mais ma-
gra e pálida. Ela estava desistindo de lutar! Ela estava
se derretendo no teto do céu como um torrão de açú-
car sob a luz intensa.
Nycteris estava ficando com mais e mais medo
e procurou alguma segurança debruçando-se sobre o
rosto em seu colo. Que bela criatura era aquela, apesar
de a menina não saber como deveria chamá-la, uma
vez que a criatura enraivecera-se quando Nycteris a
chamara de menina, como Watho costumava chamar
a própria Nycteris. E, para sua surpresa, apesar de to-
da a mudança da luz, podia-se notar um pouco de cor

224
nas faces da criatura amedrontada. Que lindos cabelos
louros emolduravam-lhe as faces! E que roupas estra-
nhas a criatura usava! Tinha visto algo parecido nas
pinturas das paredes de sua caverna.
E assim Nycteris ficou conversando consigo
mesma enquanto a lua se tornava mais e mais pálida e
tudo ficava estranhamente mais claro. O que significa-
ria aquilo? A lâmpada estava se apagando e movendo-
se para fora, para aquele outro lugar sobre o qual a cri-
atura lhe havia falado, para se tornar um sol! Mas co-
mo tudo a seu redor poderia estar se tornando mais
claro antes mesmo de a lâmpada se tornar um sol?
Era aquilo que ela não conseguia entender. Seria a
causa de tudo aquilo o fato de ela estar se transfor-
mando em um sol? Sim: a lâmpada estava morrendo!
Ela podia sentir que a morte se aproximava! E ela,
Nycteris, sentia o mesmo, ela também estava morren-
do! E no que ela se transformaria então? Em algo be-
lo, como a criatura em seu colo? Talvez! De qualquer
modo, ela deveria estar morrendo, pois sentia toda a
sua força se esvaindo enquanto tudo ao seu redor cla-
reava de tal maneira que não podia suportar. Logo
ficaria cega! O que aconteceria antes, ela ficar cega ou
morrer?
Pois o sol estava nascendo. Photogen acordou,
levantou a cabeça e ficou em pé com um pulo. Seu
rosto ostentava um sorriso radiante. Seu coração en-
chia-se de coragem, como o coração de ura caçador
prestes a entrar na caverna de um tigre.
Nycteris gritou, cobriu o rosto com as mãos e
fechou os olhos com força. E, às cegas, esticou seus
braços para Photogen, gritando:

225
— Oh, eu estou com tanto medo! O que é isto?
Deve ser a morte! Eu não quero morrer! Eu amo esta
sala e a velha lâmpada, não quero ir para a outra sala!
Isto é horrível! Eu quero me esconder, quero ir para a
doce escuridão, junto às criaturas da noite! Oh, o que
será de mim?
— Mas o que está acontecendo com você, me-
nina? — perguntou Photogen, com a arrogância que
todos da espécie masculina têm antes de aprenderem
algo com os do outro sexo. Ele se mantinha em pé,
olhando-a de cima, enquanto examinava seu arco.
— Não há o que temer agora, criança! O dia
está nascendo, o sol está se erguendo. Olhe, ele logo
estará acima do topo dos morros! Adeus! Obrigado
por me acalentar durante a noite. Eu preciso ir. Não
seja uma tola. Se algum dia eu puder fazer algo por
você, para retribuir, bem, você sabe.
— Não me deixe! Por favor, não me deixe! —
chorou Nycteris. — Eu estou morrendo, morrendo!
Não consigo me mexer, a luz suga toda a minha ener-
gia. E eu estou com tanto medo!
Mas Photogen já havia entrado no rio, segu-
rando seu arco acima das águas para que não se mo-
lhasse. Ele correu pelas margens e logo começou a
subir a colina do outro lado. Não ouvindo qualquer
resposta, Nycteris descobriu seus olhos. Photogen
havia chegado ao topo da colina e nesta hora os raios
do sol incidiram sobre ele. A glória do rei do dia ilu-
minou a cabeleira dourada do jovem. Radiante como
o deus Apoio, ele se erguia forte, poderoso, uma for-
ma no meio das chamas. Ele colocou uma radiante
flecha em seu brilhante arco; a flecha disparou e Pho-

226
togen correu ao seu encalço, dando um grito. Ele era
a imagem viva do arqueiro Apoio e suas flechas sim-
bolizavam a exultação da caçada. No entanto, o cére-
bro de Nycteris latejava de dor. Ela caiu na mais
completa escuridão, sentindo tudo a seu redor trans-
formar-se em uma fornalha. Fraca, rastejou em agonia
e desespero, apalpando seu caminho com dificuldade,
mas determinada a voltar à sua prisão. Quando lá
chegou por fim, a familiar escuridão a abraçou, aca-
lentando-a em seu colo fresco, e a menina se jogou
sobre sua cama, caindo imediatamente em um sono
profundo. E assim continuou por muitas horas, viva
dentro de um túmulo, enquanto Photogen, no glorio-
so sol da manhã, perseguia búfalos nos campos, sem
se lembrar uma vez sequer dela, que tinha sido seu
refúgio, seus olhos e mãos, guardando-o durante toda
a noite, mas que agora estava deitada na penumbra.
Ele desfrutava de sua glória e de seu orgulho; a escu-
ridão e a humilhação haviam desaparecido de sua
mente. Por enquanto.

15. O Herói Covarde

Mas assim que o sol alcançou o ponto no céu


onde a lua estivera na noite anterior, Photogen come-
çou a lembrar-se da menina que o confortara na noite
anterior, e esta lembrança encheu-o de vergonha. Ele
provara ser um covarde, tanto para si próprio quanto
para uma menina. Ele, que refulgia durante o dia
quando não havia nada a temer, mas que se transfor-
mara em um medroso, que tremia como um escravo

227
quando a noite chegara. Havia algo muito injusto nis-
to! Algum feitiço havia sido lançado contra ele, certa-
mente! Ela havia comido ou bebido algo que lhe reti-
rara a coragem! E ele havia sido pego de surpresa!
Como poderia ele saber o que acontecia quando o sol
se punha? Não era de se admirar que ficara surpreso e
aterrorizado, provando a natureza terrível da escuri-
dão, sem saber de onde o perigo poderia atacar. Qual-
quer um poderia ser despedaçado, levado ou engolido
sem mesmo saber o que o atacara e de onde viera. Ele
se apegava a todas as desculpas plausíveis, tentando
manter sua auto-estima. Naquele dia, ele surpreendeu
todos os caçadores — na verdade, atemorizando-os
com sua coragem destemida, tentando, assim, provar
a si mesmo que não era um covarde. Nada podia aba-
ter a humilhação que sentia, somente uma promessa
solene que havia feito a si mesmo: confrontar a escu-
ridão, agora que tinha uma idéia do que ela significava.
Essa era uma atitude nobre, confrontar um perigo
conhecido em vez de fugir. No entanto, mais nobre
ainda seria se defrontar com um terror desconhecido.
Aí então ela poderia derrotar o medo e apagar toda
humilhação. Para um arqueiro e hábil atirador como
ele, não havia perigo nem derrota. Ele conhecia a es-
curidão agora e, quando ela chegasse, ele a enfrentaria
sem qualquer medo e com total controle de si, como
sentia agora. E repetiu novamente: “Veremos”.
Ele se encontrava sob os galhos mais largos de
um grande cedro quando o sol começou a se pôr atrás
dos morros ao longe. E antes mesmo de o sol se pôr
por completo, ele já estava tremendo como as folhas
da árvore tocadas pelo vento da noite. No momento

228
em que o grande disco laranja se pôs por detrás do
horizonte, ele disparou aterrorizado em direção ao
vale, seu medo aumentando à medida que corria. Ao
descer a encosta da colina ele se sentia um ser abjeto,
correndo aos tropeços, caindo ao entrar no rio para
depois desmaiar na margem oposta.
Mas ao recobrar os sentidos não viu desta vez
os lindos olhos azuis de uma menina a fitá-lo, somen-
te as estrelas na imensidão daquela noite sem sol, a-
quela inimiga que ele estivera determinado a confron-
tar, mas que não conseguia encontrar forças para fazê-
lo. Talvez a menina ainda não tivesse saído da água!
Ele tentaria dormir um pouco, pois não ousava mo-
ver-se, e talvez quando acordasse sentisse sua cabeça
sobre o colo conhecido e visse aquele lindo rosto es-
curo com grandes olhos azuis a admirá-lo. Mas quan-
do acordou sentiu sua cabeça ainda sobre a grama, e
apesar de ter se levantado de um pulo, com um ar-
roubo de coragem readquirida pelo nascer do dia, não
conseguiu caçar com a mesma fúria determinada do
dia anterior. E a despeito de a glória do sol ter-se ins-
talado novamente em seu coração e em suas veias, ele
comeu pouco e permaneceu pensativo e triste. Ele
havia sido derrotado e humilhado uma segunda vez!
Seria sua coragem, então, nada mais do que um jogo
que a luz do sol, fazia com seu cérebro? Seria ele um
mero joguete entre a luz e a escuridão? Neste caso,
que criatura miserável e indigna ele era! Mas ele se
daria uma terceira chance e, se falhasse pela terceira
vez, oh, não podia nem imaginar que julgamento faria
de si mesmo! Se ele já se sentia um vil covarde agora,
como se sentiria então?

229
Mas que decepção! Em sua terceira tentativa,
tão logo o sol se pôs, ele fugiu como que perseguido
por uma legião de demônios.
Sete vezes ele tentou enfrentar a noite armado
da coragem que sentia durante o dia, e sete vezes ele
falhou, cada tentativa mais infrutífera do que a anteri-
or, sentindo um ser mais ignóbil a cada vez, até que
essa sensação de derrota, comiseração, perda de auto-
estima foi se sobrepondo à glória e à coragem que
sempre sentira à luz do sol fazendo sua coragem tam-
bém desaparecer. Ele passava noite após noite ao re-
lento, na escuridão, se consumindo no medo e na ver-
gonha de sua humilhação. E então, tendo sido aban-
donado por sua coragem e vencido pelo sono, na sé-
tima manhã, em vez de juntar-se aos outros caçado-
res, ele arrastou-se para o castelo e largou-se sobre a
cama. Sua inesgotável saúde, que a bruxa havia cuida-
dosamente desenvolvido, se fora. Em menos de duas
horas, começou a gemer e a gritar, delirando.

16. A Enfermeira Má

Watho havia caído doente, como lhes contei


anteriormente, e seu humor estava pior do que nunca.
Além disto, uma peculiaridade das bruxas é que o que
faz bem a outras pessoas a elas faz um efeito contrá-
rio. Apesar da pouca consciência do que fizera, mes-
mo esse pouco de consciência que lhe restara a inco-
modava terrivelmente, tornando-a ainda mais malva-
da. E assim, ao saber que Photogen estava doente,
Watho foi possuída por uma fúria sem igual! Como

230
poderia ele ter caído doente depois de tudo que ela
havia feito, alimentando-o com toda a luz do dia pos-
sível, com a própria energia e vitalidade do sol? Esse
menino era um fracasso! E como ele era um fracasso
dos planos dela, ela se sentia fracassada também. Ela
começou a odiá-lo, a encará-lo como um pintor ou
um poeta olha para uma obra sua que se tornou irre-
mediavelmente ruim. No coração das bruxas, o amor
e o ódio se assentam lado a lado, e quase sempre se
misturam. E como se o seu fracasso com Photogen se
projetasse sobre seus planos em relação a Nycteris,
Watho transferiu sua ira para a menina também.
Mas Watho não estava doente o suficiente que
a impedisse de ir até o quarto de Photogen e atormen-
tá-lo. Ela lhe disse coisas horríveis: que o odiava com
a mesma força de uma serpente, pronunciando estas
palavras com o mesmo som sibilante, e seu rosto pa-
receu tornar-se triangular como a cabeça de uma ver-
dadeira serpente. Photogen pensou que ela fosse ma-
tá-lo e passou a não mais comer ou beber qualquer
alimento trazido a seu quarto. Watho ordenou que
todas as janelas de seu quarto permanecessem fecha-
das e que nenhum raio de sol ousasse penetrar no a-
posento. E assim Photogen começou a se acostumar à
escuridão. Watho, de vez em quando, pegava urnas
flechas do jovem e primeiro fazia-lhe cócegas com a
pena, para depois picá-lo repetidas vezes com a ponta
até que o sangue escorresse. O que ela pretendia com
isto eu não faço idéia; mas acabou fazendo com que
Photogen pensasse mais e mais era fugir do castelo. O
que ele faria depois, bem, ele pensaria depois. Quem
sabe encontraria sua mãe além da floresta! Exceto pe-

231
los períodos de escuridão que dividiam um dia do ou-
tro, ele não temia mais nada.
Mas agora, deitado na penumbra, de tanto em
tanto lhe vinha à mente o rosto da adorável criatura
que o havia tratado e protegido tão docemente em sua
primeira noite na escuridão. Será que ele a veria no-
vamente? Se ela fosse o que ele havia suposto, uma
ninfa do rio, por que nunca mais tinha aparecido? Ela
poderia lhe ensinar como enfrentar o medo da noite,
pois ela, como havia demonstrado, não tinha o menor
medo da escuridão. Mas, pensando bem, quando o dia
nasceu, ela pareceu muito amedrontada. Como pode-
ria ela se sentir assim, se não havia nada a temer
quando havia a luz do dia? Talvez alguém que tivesse
vivido sempre na escuridão, como ele havia sempre
vivido na luz do dia, tivesse, então, medo da luz do
sol! E ele então compreendeu que sua alegria ao nas-
cer do sol após aquela primeira noite havia sido nada
menos do que uma atitude cruelmente egoísta, e ele
nada havia feito por ela, que estava aterrorizada, em
retorno a tudo que ela havia feito por ele. Ele havia
sido tão cruel quanto Watho era com ele! E a menina
era tão doce, tão linda! Assim como existem criaturas
selvagens que só saem à noite por temerem a luz do
dia, então por que não poderia haver meninas que
também não conseguem aturar a luz, do mesmo mo-
do como ele não conseguia aturar a escuridão? Ah,
como ele ansiava por vê-la novamente! Ele certamen-
te se comportaria de maneira muito diferente! Mas...
teria o sol matado a linda jovem? Derretendo-a, quei-
mando-a e secando-a? Certamente era isto que havia
acontecido, se ela fosse a ninfa do rio!

232
17. O Lobo de Watho

Desde aquela terrível manhã, Nycteris nunca


mais tinha sido a mesma. Aquela luz a raiar repenti-
namente tinha sido como que a morte para ela; e ago-
ra, ela estava deitada no escuro com a terrível lem-
brança de algo pontiagudo penetrando-a, uma lem-
brança que por si só a fazia sentir essa pontada nova-
mente como algo mais forte do que ela podia supor-
tar. Mas essa dor não era nada comparada à lembran-
ça da grosseria da criatura que brilhava ao sol, aquela
criatura que ela havia cuidado e acalentado, cheia de
medo. E o medo da criatura havia passado para ela no
momento em que ele se sentiu livre. E o que fizera
ele? No instante em que sentiu suas forças restaura-
das, ele rira do medo que ela então sentia! Ela pensa-
va, pensava, mas não conseguia entender o porquê
daquela atitude.
Enquanto isso, em seus aposentos, Watho es-
tava armando um maldoso plano contra Nycteris. A
bruxa era como uma criança doente que havia se can-
sado de seu brinquedo. Ela iria reduzir Nycteris a pe-
daços, expondo-a ao sol e regozijando-se com a rea-
ção da menina. Sim, ela a exporia ao sol e acompanha-
ria sua morte, como uma água-viva jogada pelas águas
do mar contra uma rocha escaldante. Esta visão cer-
tamente aplacaria sua dor. Sua dor de lobo ferido,
humilhado.
E assim, certo dia, um pouco antes do meio-
dia, enquanto Nycteris dormia profundamente, Watho
ordenou que dois homens levassem uma liteira cober-
ta até a porta da caverna e carregassem Nycteris para

233
o campo aberto. Eles a levaram até lá e a colocaram
deitada sobre a grama. E foram-se embora.
Watho assistia a tudo através de seu telescópio,
do topo da torre mais alta de seu castelo. E tão logo
Nycteris foi deitada sobre a grama, ela acordou, sen-
tou-se rapidamente, para logo a seguir jogar-se ao
chão com o rosto colado ao solo.
— Ela vai ter uma insolação — disse Watho —
e este será seu fim.
E então, atormentado por uma mosca, um bú-
falo bravio iniciou um galope desenfreado em direção
à menina. Ao ver aquela criatura deitada no solo, ele
se assustou, mudou seu curso e estancou a poucos
metros de distância. Aproximou-se, então, lentamen-
te, com um olhar malicioso. Nycteris permanecia i-
móvel, sem qualquer consciência do animal.
— Ela vai ser pisoteada até a morte! — excla-
mou Watho. — Ê assim que os búfalos tocaiam.
Quando o búfalo chegou até a menina, ele a
cheirou, cheirou todo o seu corpo e então afastou-se.
Voltou, cheirou-a novamente e afastou-se, como se
um diabo o tivesse puxado pelo rabo.
A seguir, um gnu, um animal ainda mais peri-
goso, aproximou-se. Sua reação foi exatamente a
mesma. E depois veio um porco selvagem, que tam-
bém teve a mesma reação. Nenhum dos animais se-
quer a tocou, e Watho, surpresa, ficou furiosa com
aquela mudança em seus planos.
Pouco a pouco, graças à sombra feita por seus
cabelos, os olhos de Nycteris foram se acostumando à
claridade e a primeira coisa que ela conseguiu enxer-
gar deu-lhe um certo conforto. Eu já lhes havia con-

234
tado que ela conhecia as margaridas da noite, com
seus pequenos cones pontudos avermelhados. E ago-
ra, ao ver algumas margaridas e separar suas pétalas
com dedos trêmulos, Nycteris sentiu um misto de cu-
riosidade em saber o que elas escondiam, mas, ao
mesmo tempo, não queria de modo algum machucá-
las. Ela ficou encantada com o coração dourado das
flores. E agora, na penumbra criada pelo véu de seus
negros cabelos, ela conseguiu enxergar perfeitamente
uma margarida com seu cone avermelhado abrindo-se
em um anel de pétalas prateadas em volta do coração
dourado. Apesar de não ter reconhecido imediata-
mente o cone como uma daquelas maravilhosas cria-
turas que acordam e se espreguiçam, ela logo ficou
maravilhada com sua descoberta e começou a indagar-
se qual criatura maligna poderia forçar tão delicada
flor a abrir-se assim, expondo seu coração à terrível
lâmpada escaldante. Quem quer que fosse, deveria ser
a mesma que a havia jogado lá fora para queimar-se até
a morte! Mas ela possuía seu cabelo para protegê-la, e
assim, abaixando sua cabeça, podia fazer dele uma
pequena cortina como uma pequena noite a proteger
seu rosto! Ela tentou dobrar a margarida para que esta
fizesse o mesmo com suas pétalas, mas não conse-
guiu. Nossa! Ela já estava queimada e morta! Nycteris
não poderia saber que a flor estava tentando absorver
a energia da vida daquilo que ela chamava de a lâmpa-
da escaldante. Ela só se sentia triste em ver como a
lâmpada havia queimado a pobre flor!
E a menina continuou a divagar. Como não
havia nenhum teto naquele fora onde o grande fogo se
movia no alto, a pequena margarida noturna deveria

235
ter visto a lâmpada da morte milhares de vezes e de-
veria conhecê-la bem. Mas mesmo assim ela estava lá!
Em seguida, a menina ponderou se aquele estado da
flor não seria, então, a sua condição mais perfeita,
pois agora não somente o todo parecia perfeito, mas
também cada uma de suas partes mostrava uma per-
feição individual que se combinava perfeitamente com
a perfeição maior do todo. A flor era como uma lâm-
pada! O coração dourado era a luz, e as bordas prate-
adas, o globo de alabastro, habilidosamente recortado
e com suas pequenas partes abertas de modo a mos-
trar toda a sua glória. Isto mesmo, aquela forma singe-
la mas radiante era a perfeição em sua simplicidade! E
se foi a lâmpada que a fizera abrir-se neste formato, a
lâmpada não poderia ter-lhe feito qualquer mal, mas
sim de alguma forma contribuído para torná-la perfei-
ta! Por outro lado, observando mais detalhadamente,
não havia qualquer semelhança entre elas. E se a flor
fosse a bisneta da lâmpada, a qual estaria lhe dispen-
sando seu amor todo este tempo? E se a lâmpada não
quisesse, de modo algum, machucá-la, mas não pu-
desse evitar que isto acontecesse? As pontas verme-
lhas indicavam que, em algum momento, a flor teria
sido machucada — mas, e se a lâmpada estivesse fa-
zendo tudo que podia para abrir-se como uma flor?
Ela faria isto com toda a paciência do mundo, aguar-
dando para ver o resultado. E a cor da grama, como
era estranha! Talvez porque seus olhos não tinham
sido feitos para enxergar na claridade, Nycteris não
pudesse ver essas criaturinhas como elas realmente
eram! E então ela se lembrou dos olhos da criatura
que não era uma menina e que tinha tanto medo da

236
escuridão! Ah, como ela gostaria que a escuridão rei-
nasse novamente, abraçando-as com carinho e tor-
nando tudo a seu redor mais terno! Ela decidiu espe-
rar, esperar, tentando suportar a claridade da melhor
maneira que pudesse, com paciência.
Nycteris permaneceu imóvel, o que fez Watho
pensar que a menina tivesse desmaiado. A bruxa tinha
certeza de que Nycteris estaria morta antes que a noite
viesse salvá-la.

18. O Refúgio

Deixando o telescópio apontado para a forma


inerte sobre a grama, Watho desceu da torre para o
quarto de Photogen. Ele já estava bem melhor agora,
pois antes de a bruxa sair ele havia decidido fugir do
castelo naquela mesma noite. A escuridão era terrível
para ele, mas Watho era muito pior que a escuridão e
ele não conseguiria escapar da bruxa durante o dia.
Sendo assim, tão logo a casa pareceu cair no silêncio,
ele prendeu sua faca ao seu cinto, guardou um farnel
de vinho e um pouco de pão em seu bolso e pegou
seu arco e flecha. Saindo da casa silenciosamente, cor-
reu diretamente para o campo aberto. Mas os terrores
da noite e seu pavor das criaturas selvagens somaram-
se à fraqueza decorrente de sua doença, e quando ele
chegou à parte plana não conseguiu avançar um passo
sequer e lá sentou-se, pensando que talvez fosse me-
lhor morrer do que viver. Apesar de seus medos, o
sono tomou conta dele, e ele esticou-se e adormeceu
sobre a grama.

237
Não fazia muito que o jovem havia adormecido
quando acordou sentindo uma estranha sensação de
proteção e segurança, o que o fez pensar que a aurora
se aproximava. Mas tudo permanecia escuro a seu re-
dor e o céu — mas não! Não era o céu que estava so-
bre ele, mas sim os olhos azuis de sua ninfa, debruça-
da sobre ele! Novamente ele deitou sua cabeça no co-
lo da jovem e tudo ficou bem, pois ele sabia que ela
não tinha nenhum medo da escuridão, assim como ele
não temia o dia.
— Obrigado — disse ele. — Você é como uma
armadura viva, protegendo meu coração e mantendo
o medo longe de mim. Eu fiquei muito doente depois
da última vez em que nos vimos. Você resolveu sair
do rio quando me viu vindo nesta direção?
— Eu não vivo nas águas — respondeu ela. —
Eu vivo sob a pálida lâmpada e morro sob a lâmpada
brilhante.
— Ah, sim, agora eu compreendo — retrucou
ele. — Eu não teria reagido de maneira tão vil quando
nos encontramos se compreendesse isso naquela oca-
sião. Pensei que você estava fazendo troça de mim,
mas fui criado de maneira diferente de você e não
consigo evitar sentir tal pavor da escuridão. Peço-lhe
perdão por tê-la abandonado, pois como lhe expli-
quei, eu nada compreendia. Agora entendo que você
estava com muito medo, não estava?
— Estava sim — respondeu Nycteris —, e fi-
carei com medo novamente. Mas eu não consigo
compreender por que você sente medo da doce e gen-
til escuridão, que nos abraça como um manto avelu-
dado! Até pouco tempo atrás, eu estava deitada na

238
grama, fraca e quase morta debaixo de sua lâmpada
quente. Como você a chama?
— O sol — murmurou Photogen. — Como eu
gostaria que ele nascesse logo!
— Oh, não, não faça tal pedido! Não o apresse,
faça isso por mim! Eu posso tomar conta de você na
escuridão, mas não tenho ninguém que me proteja da
luz! Como eu estava dizendo, não conseguia sequer
me levantar quando fiquei sob o sol. E de repente
respirei profundamente e um vento fresco soprou em
meu rosto. Quando levantei os olhos, minha tortura
tinha se acabado, pois a lâmpada da morte havia par-
tido. A terrível dor de cabeça que eu sentira desapare-
ceu e minha visão voltara. Senti como se tivesse re-
nascido. Mas não consegui me levantar de imediato,
pois ainda estava muito cansada. A grama ficou mais
fresca e sua cor menos vibrante. Algo molhado caiu
sobre mim e eu tive uma sensação tão boa em meus
pés que me levantei rapidamente e comecei a correr.
E depois de correr por um bom tempo, encontrei vo-
cê deitado aqui, assim como eu estivera deitada sob o
sol. E então me sentei a seu lado para cuidar de você
até que a sua vida — e a minha morte — comece a
brilhar novamente.
— Como você é boa, minha bela criatura! Você
me perdoou antes mesmo que eu pudesse pedir per-
dão! — lamentou-se Photogen.
E assim eles continuaram a conversar e ele
contou à jovem que havia descoberto sua verdadeira
história, assim como ela lhe disse que havia também
descoberto a dela, e ambos concordaram que precisa-
vam fugir de Watho, para o mais longe possível.

239
— Precisamos partir agora mesmo — disse
Nycteris.
— Tão logo a manhã chegue — retrucou Pho-
togen.
— Não podemos esperar pela manhã — disse
Nycteris —, pois não conseguirei me mexer sob o sol.
Mas, então, o que você fará quando a noite chegar?
Além disto, Watho enxerga melhor durante o dia.
Precisamos partir agora, Photogen! Precisamos!
— Eu não posso, eu não consigo — respondeu
ele. — Não consigo me mexer. Se levantar a cabeça
de seu colo, o pavor tomará conta de mim.
— Estarei a seu lado — disse Nycteris doce-
mente. — Tomarei conta de você até que o seu terrí-
vel sol apareça, e então você poderá me deixar onde
estivermos e fugir o mais rápido possível. Só peço que
você me deixe em um lugar escuro antes de partir, se
encontrar algum.
— Nunca mais a deixarei, Nycteris! —gritou
Photogen. — Só espere o sol nascer e restaurar mi-
nhas energias, e então partiremos juntos e nunca mais
nos separaremos.
— Não, não — insistiu Nycteris. — Precisa-
mos partir agora. Você precisa aprender a ser forte
também na escuridão, caso contrário será sempre só
meio corajoso. Eu já comecei a fazer isso, não tentan-
do lutar contra o seu sol, mas a ficar em paz com ele,
entendendo o que ele realmente é e o que ele quer
fazer comigo — se quer machucar-me ou fazer desa-
brochar o melhor de mim. Você precisa aprender a
fazer o mesmo com a minha escuridão.
— Mas você não faz idéia dos animais selva-

240
gens que existem ao sul — disse Photogen. — Eles
têm grandes olhos verdes e a devorariam de uma só
vez, como se você fosse um pedaço de salsão, minha
bela criatura!
— Pare cora isso, você precisa vir comigo —
disse Nycteris —, ou então vou fingir abandoná-lo
para fazê-lo vir comigo. Já vi esses olhos verdes e vou
protegê-lo deles.
— Você? Como conseguirá fazer isso? Se fosse
dia agora, eu a protegeria dos piores perigos, mas nes-
ta escuridão não consigo nem mesmo vê-los direito.
Não consigo nem enxergar seus olhos, minha doce
criatura, apesar de toda a luz que eles têm e de me
fazerem olhar direto para o céu. Seus olhos são janelas
para o paraíso que há além do céu, talvez até mesmo
o lugar onde as estrelas nascem.
— Pois bem, ou você vem ou fecharei meus
olhos — respondeu-lhe Nycteris —, e você não mais
verá essa luz até se comportar direito. Vamos, mesmo
que você não consiga ver essas criaturas selvagens, eu
consigo.
— E mesmo conseguindo vê-las você me pede
para acompanhá-la!
— Isso mesmo, pois muito antes de elas con-
seguirem nos ver eu consigo vê-las, e por isso posso
protegê-lo.
— Mas como? — insistiu Photogen. — Você
não sabe manejar um arco e flecha ou usar uma faca.
— Não, não sei, mas posso fazer com que fi-
quemos longe de onde essas bestas estão. Você sabia
que pouco antes de encontrá-lo deitado aí eu estava
brincando com duas ou três dessas criaturas? E outra

241
coisa, eu posso sentir o cheiro delas bem antes de se
aproximarem — ou de sentirem o meu cheiro.
— Você consegue ver ou sentir o cheiro de al-
guma criatura dessas agora? — perguntou Photogen,
erguendo-se sobre os cotovelos.
— Não, nenhuma. Mas deixe-me olhar nova-
mente — retrucou Nycteris, pondo-se em pé.
— Não, não me deixe por um segundo sequer!
— gritou Photogen, apertando os olhos para tentar
vê-la na escuridão.
— Fique quieto ou elas ouvirão — retrucou e-
la. — O vento está soprando do sul, e então elas não
podem sentir nosso cheiro. Como disse, eu estava
brincando com elas e estudei o vento para deixar que
uma ou outra pudesse sentir só uma pontinha do meu
cheiro.
— Mas isso é terrível, e espero que você não
insista em fazer novamente. Mas, o que aconteceu
quando sentiram seu cheiro?
— Sempre que um desses animais sentia meu
cheiro, ele se virava na minha direção. Mas como não
podia me ver, e meus olhos sendo muito melhores
que os dele, eu podia vê-lo perfeitamente bem e então
corria em volta dele até sentir seu cheiro, e nessa hora
eu sabia que ele não podia sentir o meu. Se o vento
mudar de direção, teremos um exército de animais
selvagens vindo em nossa direção e não teremos qual-
quer chance contra eles. Por isso é melhor partirmos
agora.
Ela pegou na mão do jovem, que reclamou mas
se levantou, e o guiou. Os passos de Photogen eram
curtos, e quanto mais tempo passava, menor a distân-

242
cia que percorriam, pois sua fraqueza parecia aumen-
tar a cada vez.
— Nossa, como estou cansado! E tenho tanto
medo! — dizia ele vez ou outra.
— Apóie-se em mim — sempre respondia
Nycteris, passando seu braço pelo ombro do rapaz e
acariciando-o no rosto. — Mais alguns passos. Lem-
bre-se de que a cada passo estamos mais longe do cas-
telo e ganhamos mais terreno. Apóie-se mais em mim.
Sou forte e estou me sentindo muito bem desde que a
escuridão chegou.
E assim eles prosseguiram. Nycteris viu muitos
pares de olhos verdes brilhando na escuridão, mas
sempre conseguiu mantê-los longe dos animais, sem
contar nada a Photogen. Guiando-o cuidadosamente,
ela evitou lugares onde o chão não era plano e con-
versou cora ele com muito tato o tempo todo, con-
tando-lhe sobre as estrelas em seu leito azul lá no alto
e as flores em seu lindo leito verde no solo.
Quando a manhã começou a surgir, Photogen
se sentiu melhor, mas ainda estava terrivelmente can-
sado por ter andado tanto em vez de dormido durante
a noite. Nycteris também estava exausta por ter servi-
do de apoio ao peso do rapaz o tempo todo e agora
pelo medo que crescia mais e mais à medida que o sol
se erguia no leste. Quando ambos estavam igualmente
exaustos, sem condições de ajudar um ao outro, con-
cordaram que era hora de parar. Abraçados, eles para-
ram no meio do terreno coberto de grama, cansados
demais para dar sequer mais um passo, cada um apoi-
ando-se na fraqueza do outro, prestes a cair se o outro
movesse um músculo que fosse. Mas enquanto Nyc-

243
teris sentia-se mais e mais fraca, Photogen começava a
recuperar suas forças, revivendo a cada centímetro
que o sol se erguia um pouco mais no horizonte.
Quando o sol por fim atingiu o topo do céu, como o
Pai de Todas as Luzes, Nycteris deu um grito de dor e
escondeu o rosto em suas mãos.
— Oh, coitada de mim! — suspirou. — Estou
com tanto medo! Esta luz terrível fere meus olhos!
Mas nesta hora, a despeito de sua cegueira, ela
escutou Photogen dar uma risada exultante, e a pró-
xima coisa que sentiu foi ser erguida por braços fortes
que agora a carregavam e protegiam como a um bebê,
assim como ela havia protegido o jovem durante toda
a noite. Mesmo sentindo-se fraca e apoiando sua ca-
beça contra o peito do rapaz, Nycteris era a mais forte
dos dois, pois por haver sofrido mais, nada mais temi-
a.

19. O Lobisomem

No instante em que Photogen tomou Nycteris


em seus braços, o telescópio de Watho estava vascu-
lhando todo o terreno plano. Ela empurrou o telescó-
pio com raiva e voltou a seu quarto, onde lá se tran-
cou. Então a bruxa cobriu todo o seu corpo, dos pés à
cabeça, com um ungüento e amarrou seus longos ca-
belos ruivos ao redor de sua cintura. A seguir, come-
çou a dançar, girando cada vez mais rápido e ficando
cada vez mais e mais brava, até que começou a espu-
mar pela boca com fúria. Quando Falca foi procurá-la,
não a encontrou em canto algum. A medida que o sol

244
se erguia, o vento foi mudando lentamente de direção,
até que começou a soprar do norte. Photogen e Nyc-
teris já estavam se aproximando da borda da floresta,
o rapaz carregando a menina em seus braços. Ela se
mexeu um pouco e murmurou em seu ouvido:
— Estou sentindo o cheiro de um animal sel-
vagem vindo daquela direção — a direção do vento.
Photogen olhou em direção ao castelo e viu
uma sombra avançando sobre o campo aberto. En-
quanto olhava, a sombra foi ficando maior e ele per-
cebeu que ela se aproximava com a rapidez do vento.
A sombra chegou mais e mais perto. Ela parecia um
tanto comprida e baixa, mas talvez esta impressão
fosse causada pela rapidez com que se movia. Ele pôs
Nycteris no chão, sob uma árvore, e apoiando-se no
tronco da árvore, pegou seu arco e a flecha mais lon-
ga, pesada e afiada que tinha. Na hora em que a encai-
xava na corda do arco, viu que a criatura era um e-
norme lobo, que vinha diretamente em sua direção.
Ele desembainhou sua faca, puxou uma segunda fle-
cha pela metade para fora da aljava, caso não atingisse
o animal com a primeira, e fez pontaria a uma boa
distância, novamente pensando em ter tempo para
uma segunda tentativa. E atirou. A flecha subiu, voou
em linha reta, desceu, atingiu o animal, mas voltou a
projetar-se para o ar dobrada em “V”. Rapidamente
Photogen pegou a segunda flecha, atirou, jogou o arco
no chão e sacou sua faca. Mas a flecha enterrou-se no
peito da criatura, até a pena. A criatura caiu com
grande ruído, com as pernas para cima, gemeu, tentou
erguer-se uma vez ou duas, e a seguir esticou-se e fi-
cou imóvel.

245
— Eu a matei, Nycteris! — gritou Photogen.
— Era um grande lobo vermelho.
— Oh, obrigada, Photogen — respondeu Nyc-
teris por detrás da árvore, com voz fraca. — Eu tinha
certeza que você conseguiria. Não senti nem um pin-
go de medo.
Photogen aproximou-se do lobo. Ele era
monstruoso! Mas Photogen estava envergonhado e
perplexo com o que acontecera à sua primeira flecha e
não queria perder a segunda que os salvara; e assim,
dando um violento puxão, retirou a flecha do peito do
terrível animal. E então ele não pôde acreditar no que
viu! No solo, deitada, estava Watho, com seu cabelo
ruivo em volta de sua cintura! A tola bruxa havia se
transformado em uma criatura supostamente invulne-
rável, esquecendo-se, no entanto, de que estaria à
mercê de uma das flechas de Photogen, para tormen-
to deste. Photogen virou-se e correu para contar o
ocorrido a Nycteris.
Nycteris tremeu violentamente, chorou muito,
mas não quis olhar.

20. E Tudo Termina Bem

Não havia mais razão para fugir, pois nenhum


dos dois temia qualquer criatura, salvo Watho. Eles a
deixaram onde havia sido abatida e voltaram ao caste-
lo. Uma grande nuvem cobriu o sol e uma chuva co-
meçou a cair pesadamente. Nycteris, refrescada, con-
seguiu então enxergar um pouco mais, e com a ajuda
de Photogen conseguiu andar lentamente até o caste-

246
lo, pisando na grama molhada.
Eles não haviam caminhado muito quando en-
contraram Fargu e os outros caçadores. Photogen lhes
contou que havia matado um grande lobo vermelho,
que era, na verdade, Madame Watho. Apesar da apa-
rência solene dos caçadores, eles não conseguiram
esconder sua felicidade.
— Sendo assim — disse Fargu —, vou enterrar
minha patroa.
Mas quando os caçadores chegaram onde Pho-
togen a havia deixado, eles a encontraram enterrada
— sob aves de rapina e outros animais selvagens que
tinham se servido dela para seu café da manhã.
A seguir, Fargu, sabiamente, aconselhou Pho-
togen a ir ter com o rei e contar-lhe todo o ocorrido.
Mas Photogen, ainda mais sábio do que Fargu, disse
que só faria isso depois de casar-se com Nycteris.
— Pois, assim — disse ele —, nem mesmo o
próprio rei poderá nos separar. Se jamais existiram
duas pessoas que não podiam viver uma sem a outra,
estas pessoas são Nycteris e eu. Ela tem de me ensinar
como ser corajoso na escuridão, e eu tenho de cuidar
dela até ela conseguir suportar o calor do sol e conse-
guir enxergar em sua luz.
E eles se casaram naquele mesmo dia. E juntos,
no dia seguinte, foram ter com o rei e contaram-lhe
toda a história. E quem eles encontraram na Corte? O
pai e a mãe de Photogen, ambos em altas graças com
o rei e a rainha. Aurora quase desmaiou de felicidade e
contou-lhes como Watho havia mentido e feito com
que ela acreditasse que seu filho morrera.
Mas ninguém sabia nada sobre os pais de Nyc-

247
teris. No entanto, quando Aurora viu na linda menina
seus próprios olhos azuis brilhando na noite, ela co-
meçou a ter estranhos pensamentos e a imaginar que
mesmo pessoas más acabam servindo de ligação para
unir pessoas boas. Através de Watho, as mães, que
nunca haviam se visto, tinham trocado seus olhos no
filho uma da outra.
O rei lhes deu o castelo e as terras de Watho, e
lá eles viveram e ensinaram um ao outro durante mui-
tos anos. Mas antes de o primeiro deles morrer, Nyc-
teris já aprendera a amar o dia, pois o dia era como a
coroa e as roupas de Photogen. O dia era também
mais longo do que a noite e o sol era como um lorde
em relação à lua. E Photogen aprendera a amar a noi-
te, pois esta era a mãe e o lar de Nycteris.
— Mas quem sabe — dizia Nycteris sempre a
Photogen —, quando formos para fora desta vida, i-
remos para um dia muito maior do que o seu dia, as-
sim como o seu dia é maior do que a minha noite?

* **

GEORGE MACDONALD é considerado um


dos principais escritores do século XIX, e seus contos
de fantasia influenciaram enormemente J. R. R. Tolki-
en e C. S. Lewis. Este último escreveu: “Eu o conside-
ro meu mestre - suas obras brincam com a nossa ima-
ginação; elas são tão mágicas quanto assustadoras.” A
fascinação de MacDonald pela magia tornou-se evi-
dente em seu primeiro livro, Phantasies, A Faerie Ro-
mance for Men and Women, publicado em 1858, no qual
ele define sua filosofia de escrever “para pessoas que,

248
com medo dos riscos e do sofrimento que a passagem
para a idade adulta apresenta, negam-se a crescer”.
Bruxas e mulheres sábias aparecem em vários de seus
romances, principalmente em At the Back of the North
Wind, publicado em 1871, onde somos apresentados à
“Bruxa que tirava seus poderes da maldade” e que
tinha a voz parecida com o golpe de um “machado
seco”. Devemos também lembrar a encantadora hero-
ína de The Wise Woman, publicado em 1890, e a rabu-
genta Old Mother Wotherwop de The Príncess and the
Curdie (1883). George MacDonald foi um dos primei-
ros escritores a incluir um vampiro em seu romance
Lilith (1895) e certamente o primeiro a usar uma outra
criatura do mundo dos horrores, o lobisomem, neste
conto que aqui publicamos. Este conto era também
um dos favoritos de Lewis Carroll, que pediu a Mac-
Donald sua opinião sobre seu manuscrito de Alice no
País das Maravilhas (1865). Parece que MacDonald leu
o conto para seus filhos e, segundo ele, “vibraram a
cada capítulo da história”.

249
A FÓRMULA RATO-
TRANSFORMADORA N9 86
Roald Dahl

A Grande Bruxa desistiu há muito tempo da idéia an-


tiquada de usar um chapéu e capa pretos e de voar em uma
vassoura. Na verdade, a maioria das pessoas diria que ela vive
como uma mulher comum a maior parte do tempo, usando rou-
pas comuns e fazendo coisas comuns. Mas em segredo ela passa
todo o seu tempo arquitetando planos para atingir o objetivo de
todas as bruxas modernas: eliminar todas as crianças da face
da Terra! Pois se há uma coisa que todas as bruxas odeiam é
meninos e meninas, e elas vivem de acordo com seu próprio dita-
do: “Espremer e torcer, até Jazê-las desaparecer!” Para conse-
guir seu sanguinário intento, as bruxas têm dedos mágicos que
podem transformar qualquer coisa em pedra e fazer línguas de
fogo aparecerem do nada. Todos os anos, elas se encontram na
grande reunião anual para ouvir o que a Grande Bruxa plane-
jou para ajudá-las a alcançar seu objetivo. Este ano parece que
a Grande Bruxa vai usar sua magia para tornar a vida das
crianças mais perigosa do que nunca...

* **

— As crrrianças son rrrevollltantes! Vamos


varrrerrr todas elas da face do planeta! Vamos desa-
parrrecerrr com elas! Vamos jogarr todas elas na vaso
e darrr o descarrrga! — gritou a Grande Bruxa com

250
seu forte sotaque.
— Isso mesmo! — apoiou a platéia. — Varrer
todas elas da face do planeta! Desaparecer com elas!
Jogar todas elas no vaso e dar a descarga!
— Crrrianças son tolas e imundas! — soou a
voz de trovão da Grande Bruxa.
— Isso mesmo! — exclamaram em coro as
bruxas inglesas. — Elas são tolas e imundas!
— Crrrianças son sujas e fedorrrentas! — gri-
tou a Grande Bruxa, mais e mais excitada.
— Crrrianças cheiron como cocô de cachorrro!
— guinchou a Grande Bruxa.
— Cocôôô! — gritaram todas. — Cocôôô! Co-
côôô!
— Elas son piorrres que cocô de cachorrro! —
guinchou a Grande Bruxa. — Cocô de cachorrro
cheirra como djasmim e rrrosas se comparrrarrrmos
com crrrianças!
— Jasmim e rosas! — ecoou a platéia. Todas
batiam palmas e extasiavam-se a cada palavra dita pela
Grande Bruxa. A orado-ra parecia ter enfeitiçado a
todas.
— Só de falarrr em crrrianças já me faz ficarrr
enojada! — gritou a Grande Bruxa. — Ficarrr enojada
só de pensarrr nelas! Trrragam uma bacia, agorrra!
A Grande Bruxa fez uma pausa e olhou para a
multidão de rostos corados à sua frente. Elas espera-
vam, queriam mais.
— E enton! — esbravejou ela. — E enton eu
estou tendo um plano. Eu estou tendo um plano gi-
gantesco para nos livrrrar de todas, todas as crrrianças
de todo o Inglaterrra!

251
As bruxas prenderam a respiração e olharam
umas para as outras dando gritinhos de sádico prazer.
— Sim! — trovejou a Grande Bruxa. — Nós
vamos chuparrr e engolllirrr elas e fazerrr desapare-
cerrr do Inglaterrra todos os muleques, com um só
vitorrrioso golllpe!
— Ehhhh! — gritaram as bruxas, batendo
palmas. — Oh, Grande Bruxa, a senhora é brilhante,
fantástica!
— Quietas e escutem! — reprovou-as a Gran-
de Bruxa. — Escutem com munto cuidado, pois non
podemos cometerrr nenhum errro!
As bruxas aproximaram-se do palco improvi-
sado, loucas para saber como a mágica seria executa-
da.
— Cada uma de vocês — trovejou a Grande
Bruxa — vai vollltar parrra seu cidade e pedirrr de-
misson de seus emprrregos. Demisson! Dêem o aviso
prrrévio! Aposentem-se!
— Sim! — responderam em coro. — Vamos
nos demitir de nossos empregos!
— E depois de pedirrr demisson de seus em-
prrregos — continuou a Grande Bruxa —, cada uma
de vocês, sem excesson, cada uma de vocês, vai sairrr
e comprarrr... — Ela parou, então, fazendo suspense.
— Comprar o quê? — todas gritaram. — Diga-
nos, oh, Brilhante e Grande Bruxa, o que vamos
comprar?
— Cada uma de vocês vai comprrrarr um loja
de doces! — eclodiu a Grande Bruxa.
— Loja de doces! — as bruxas gritaram. —
Vamos comprar lojas de doces! Que plano delicioso!

252
— Cada uma de vocês vai comprrrarr um loja
de doces! Comprrrarrremos os melhorrres e mais rr-
respeitáveis lojas de doces de todo o Inglaterrra!
— As melhores lojas de doces! — responde-
ram elas, e suas vozes horripilantes causavam arrepios,
pois pareciam um coro de várias brocas de dentista.
— Mas atençon, hã? Non vou admitirrr loji-
nhas barratas e imundas, como esses que vendem ci-
garrro, charrruto, jorrrnal e doces! — vociferou a
Grande Bruxa. — Querrro que vocês comprrrem os
melhorrres lojas, com pilas e pilas bem allltas dos do-
ces e chocolates mais gostossos e confeitados!
— Somente as melhores! — gritaram todas. —
Vamos comprar as melhores lojas de todas as cidades!
— E vocês non von terrr qualllquerrr prrro-
blema parrra conseguirrr isso, pois von oferrrecerrr
quatrrro veces mais o que o loja vale! Ninguém vai
resistirrr o oferrrta de vocês! Nós, brrruxas, non te-
mos prrroblema com dinherrro, como todas sabem.
Eu trrroxe comigo seis baús cheios de dinherrro in-
glês, notas novinhas em folha. Todas as notinhas fei-
tas em cassa — completou com uma expressão de
total escárnio.
As bruxas da platéia riram sarcasticamente da
piada.
Mas nessa hora uma bruxa tola ficou tão entu-
siasmada com as possibilidades que uma loja de doces
representava, que ela pulou da cadeira e gritou:
— As crianças virão como moscas à minha loja
e eu vou vender-lhes doces e chocolates envenenados,
vou matá-las como doninhas!
Um pesado silêncio caiu sobre a sala. Eu vi o

253
pequeno corpo da Grande Bruxa retesar-se com a ira
que ela sentia.
— Quem falou isso? — ela crocitou. — Foi vo-
cê! Você aí!
A apontada sentou-se rapidamente e cobriu o
rosto com as mãos.
— Sua abóborrra matrrraca! — crocitou a
Grande Bruxa. — Seu verrrme sem cérrrebrrro! Você
non perrrcebe que se começarrr a envenenarrr crrri-
ancinhas vai serrr prrresa em cinco minutos? Nunca,
em minha vida interrra, ouvi tamanha barrrbarrridade
de uma brrruxa!
Todas as outras bruxas encolheram-se e treme-
ram. Tenho quase certeza de que todas pensaram, as-
sim como eu pensei, que as terríveis faíscas em brasa
iam começar a voar novamente dos dedos da Grande
Bruxa.
Mas, curiosamente, isto não aconteceu.
— Se uma idéia rrridícula como esta é tudo o
que vocês conseguem pensarrr — trovejou a Grande
Bruxa —, enton non me admirrra que o Inglaterrra
ainda tenha tantas crrriancinhas!
Outro profundo silêncio se seguiu. A Grande
Bruxa encarava todas as bruxas da platéia, uma por
uma. — Vocês non sabem — gritou ela — que nós,
brrruxas, só trrrabalhamos com magia?
— Sabemos sim, Grande Bruxa! — todas res-
ponderam. — Certamente sabemos.
A Grande Bruxa esfregou as mãos enluvadas e
continuou:
— Enton cada uma de vocês vai terrr um mag-
nífico loja de doces! O próximo passo é que cada uma

254
de vocês vai anunciarrr com um grrrande carrrtaz na
vitrrrine do loja o dia da aberrr-turrra, uma aberrrturr-
ra em Grrran Gala, com doces e chocolates grrrátis
parrra todas as crrrianças!
— Isso vai atraí-las, esses monstrinhos gulosos!
—gritaram as bruxas. — Elas vão até brigar para en-
trar na loja!
— E a seguirrr — continuou a Grande Bruxa
—, todas vocês von se prrreparrrarrr para esta Aberrr-
tura em Grrran Gala: vocês von encherrr cada doci-
nho e chocolate com minha mais rrrecen-te e fantásti-
ca forrrmula mágica, conhecida como FÓRRR-
MULA RRRATO-TRANSFORRRMADORA NÚ-
MERRO 86 DE AÇON RRRETARRRDADA!
— Fórmula Rato-Transformadora de Ação Re-
tardada! — disseram todas em coro. — Ela conseguiu
novamente! A Grande Bruxa preparou uma poção
eliminadora de crianças ainda mais poderosa! Como
faremos isso, oh, Brilhante Grande Bruxa?
— Ezercitem a paciência — respondeu ela. —
Prrrimeirrra-mente, vou eksplicarrr como funciona a
minha Forrrmula Rrrato-TRRransforrrmadora Nú-
merrro 86 de Açon Rrretarrr-dada. Escutem todas
com munto atençon!
— Estamos escutando — gritaram todas as
bruxas, agora pulando de antecipação em suas cadei-
ras.
— A Fórrrmula Rrrato-Trrransforrrmadorrra
de Açon Rrretarrrdada é um líquido verrrde — ela
continuou —, é uma gotchinha em cada doce e cho-
colate serrrá mais do que suficiente. E o que logo a-
contece é o seguinte: — Crrriança come chocolate

255
que contém líquido da fórrrmula... Crrriança vai prrra
casa se sentindo munto bem... Crrriança vai prrra ca-
ma, ainda se sentindo bem... Crrriança acorrrda de
manha se sentindo norrrmalll... Crrriança vai pro es-
cola ainda se sentindo norrrmalll... Fórrrmula, vocês
entendem, tem açon rrretarrrdada, que ainda non come-
çou a fazerrr efeito.
— Nós entendemos, oh, Sábia Grande Bruxa!
Mas quando ela começa a fazer efeito?
— Fórrrmula começa a fazerrr efeito egzata-
mente às nove horrras, quando crrriança chega no
escola! — gritou a Grande Bruxa, triunfante. — Crrri-
ança chega no escola e Fórrrmula Rrrato-
Trrransforrrmadorrra de Açon Rrretarrrdada começa
a fazerrr efeito. Crrriança começa a diminuirrr de ta-
manho. Crrriança começa a crescerrr pêlo e rrrabinho.
Toda a trrrans-forrrmaçon acontece em egzatos vinte
e seis segundos. Depois de vinte e seis segundos, crr-
riança non é mais crrriança, crrriança é agorrra um
rrrato!
— Um rato! — ecoaram as bruxas. — Que i-
déia mais maquiavélica!
— As classes von ficar rr cheias de rrratos! —
gritou a Grande Bruxa. — Caos e pandemonium von
rrreinarrr em todos os escolas do Inglaterrra! Prrro-
fessorrres von pularr como bolas, prrrofessoras von
subir em cima dos mesas segurrando seus saias e grrri-
tando “Socorrro! Socorrro!”
— Oh, sim, elas vão gritar! — gritaram as bru-
xas.
— E o que vai acontecerrr depois em cada es-
cola do Ingla-terrra? — perguntou a Grande Bruxa.

256
— Conte-nos, oh, Grande e Sábia Bruxa, con-
te-nos!
A Grande Bruxa esticou seu pescoço enrugado
e sorriu maliciosamente para a platéia, mostrando
dentes pontiagudos, azulados. Ela levantou sua voz
ainda mais e berrou:
— Rrratoerras von ser usadas!
— Ratoeiras! — gritou a platéia.
— E queijo! — retrucou a Grande Bruxa. —
Todos os prrro-fessorrres von corrrerrr e pegarrr as
rrratoerras e colocarrr queijo nelas parra atrrrair os
rrratinhos! Os rrratinhos von atrrrás do queijo e...
vupt! Rrratoerras von fecharrr em todo o escola e vup-
tl cabecinhas de rrratinhos von rrrolar! E em todo o
Inglaterrra vomos ovirrr os vupt! das rrratoerras eli-
minando os rrratinhos!
Nesta hora, a maldosa Grande Bruxa começou
a fazer uma espécie de dança de bruxa no palco im-
provisado onde se encontrava, batendo seus pés e ba-
tendo palmas. Logo, todas as outras bruxas imitaram-
na. Elas estavam fazendo tamanho barulho que pensei
que logo o Sr. Stringer ouviria e viria bater na porta.
Mas isto não aconteceu.
E então, encobrindo todo esse barulho, trove-
jou a voz da Grande Bruxa, entoando uma canção
horripilante.
“Abaixo as crrrianças! Vamos eliminá-las!
Cozinhem seus ossos e vamos frrritá-las!
Esprrremam, amassem, espanquem elas!
Quebrrrem, sacudam, corrrtem, acabem com
elas!
Dêem-lhes chocolates com poderrres mágicos!

257
Digam ‘Comam!’ Mas não lhes contem seu fim
trrrágico!
Deixem que se empanturrem e lambam os bei-
ços,
E mandem-nas prrra casa dirreto prrros berrr-
ços!
E de manhã, os tolos patolas
Vão marrrcharrr dirrreto pro escola!
Menininha passa mal e tonto fica o menininho
Ela grrrita: ‘Olhe! Eu agorra tenho um rrrabi-
nho!’
E o menininho, cheio de zelo,
Grita enton: ‘Socorrro! Estou ficando cheio de
pêlo!’
Outro berra: ‘O que está acontecendo?’
Como podem bigodes estar nascendo?
Um menino que erra munto alto, se olhando
Grrrita: ‘O que é isso? Pequeno estou ficando!’
Quatrrro perrrninhas em todos crrrescem
Todos, horrrorrrizados, enton, emudecem!
E, de rrrepente, parrram os grrritinhos
Cadê as crrrianças? Virrraram RRRATINHOS!
Todos corrrendo no chon do escola!
E as prrrofessorrras, dando grrritinhos,
Se perrrguntam: ‘Como aparrrecerrram esses
bichinhos?’
Elas sobem nos carrrteirras e sem demorra
‘Forrra, rrrato sujo! Forra!’
‘Rrrápido! As rrratoerras, rrrápido, palerrrmas!’
‘Ponham o queijo e arrmem todas elas!’
As rrratoerrras eston prrrontinhas
E vupt! vupt! Fazem todinhas!

258
As rrratoerras non perrrdoam
Corrrtam os cabecinhas, como funcionam!
Que som marrravilhoso de se ouvirrr!
Isso alegrrres nos faz sentirrr!
Rrratinhos morrrtos, porrr todo lugarrr,
Duas pilhas enorrrmes de rrratos, que azarrr!
Os prrrofessorrres prrrocurram, aqui e acolá,
‘Mas as crrrianças, onde eston?’ ‘Sei lá!’
Os prrrofessorrres perrguntam: ‘O que está a-
contecendo? Já son nove e meia e as crrrianças non
estou vendo! Nunca se atrrrasam parrra o escola, va-
mos verrr O que, meu Deus, havemos de fazerrr?’
Alguns sentam e lêem, otrrros esperram Distrrraindo-
se com isso, converrrsando nos cantinhos E outrrros
rrrapidamente, se livrrram dos rrratinhos! E TODAS
NÓS, BRRRUXAS, DAMOS ALEGRRRES GRR-
RITINHOS!”

***

ROALD DAHL disse certa vez que possuía


um jardim mágico onde costuma sonhar com histórias
de horror, mas que, apesar disto, eram divertidas. Na
verdade, ele passava horas sentado em uma edícula no
fundo de seu quintal para escrever seus romances e
contos. É também verdade que a idéia que inspirou
seu primeiro livro para jovens, James e o pêssego gigante
(1961) lhe ocorreu após ter plantado um pessegueiro
que, independentemente de todo o seu esmero e aten-
ção, nunca cresceu. Em vez disso, a idéia de um e-
norme pêssego cresceu em sua imaginação e o inspi-
rou a escrever seu primeiro livro. Roald Dahl iniciou

259
sua carreira de escritor escrevendo livros para adultos
e produziu diversas coleções de histórias de fantasia e
horror. Mas após o sucesso de James e o pêssego gigante,
ele decidiu canalizar sua imaginação para livros infan-
tis e produziu vários clássicos, incluindo A fantástica
fábrica de chocolate (1964), e o meu favorito, que já li
para meus filhos diversas vezes, O dedo mágico (1966).

260
A FEITICEIRA DE ABRIL
Ray Bradbury

Cecy Elliott é uma bruxa norte-americana, mas por ser


ainda uma adolescente, é certamente mais inteligente e mais
simpática do que a Grande Bruxa e seu clã de malvadas bru-
xas inglesas. No entanto, Cecy, que se considera um pouco
“comum demais, mas também um tanto estranha”, vem de uma
família também estranha onde todos possuem poderes super-
naturais, que são mantidos em segredo. Os Elliot moram no
meio de pessoas comuns, no estado de Illinois, e como todos os
seres humanos comuns, também têm ambições e emoções. Cecy
tem poderes mágicos realmente fantásticos: ela pode voar, ler os
pensamentos das outras pessoas e transformar-se em qualquer
coisa, desde uma pedrinha até uma folha de açafrão ou um lou-
va-a-deus. Apesar de seus talentos incomuns, a emoção tipica-
mente humana que ela deseja mais ardentemente experimentar é
o amor — mesmo sabendo que ao se casar com um humano
ela perderá todos os seus poderes mágicos. Determinada a conhe-
cer esse sentimento, Cecy decide se transformar em alguém que já
tem um admirador, mas ao escolher transformar-se em Ann
Leary, as complicações que surgem vão muito além do que ela
poderia ter imaginado...

* **

Cortando o ar abaixo das estrelas, mas acima


dos vales, rios, de um riacho aqui e uma estrada acolá,

261
lá ia Cecy, voando feliz e invisível como o vento da
primavera, sentindo-se fresca como o ar do crepúscu-
lo sobre os campos orvalhados. Ela se transformou
em uma pomba, sentindo suas penas macias como
arminho; depois, virou uma árvore e sentiu-se desa-
brochar e perder suas pétalas quando a brisa soprou.
Pousou sobre um sapo verde, sentindo sua pele fria
como menta, e a seguir transformou-se em um ca-
chorro sarnento, latindo e ouvindo o eco de outros
companheiros em fazendas distantes. E viveu na gra-
ma de abril, sentindo a seiva doce subir da terra almis-
carada.
“Estamos na primavera”, pensou Cecy. “Vou
viver cada criatura do mundo esta noite.”
Assim, ela se tornou um grilo à beira de uma
estrada poeirenta e depois sorveu uma gota de orva-
lho sobre um portão de ferro. Sua mente também vo-
ava, adaptando-se rapidamente a qualquer coisa, desli-
zando invisível, levada pelos ventos de Illinois naquela
linda noite de abril quando estava fazendo dezessete
anos.
— Quero me apaixonar — disse Cecy.
Quando disse isto, durante o jantar, seus pais
arregalaram os olhos e se sentaram eretos em suas
cadeiras.
— Tenha paciência — aconselharam eles. —
Lembre-se de que você é diferente dos demais. Toda
a nossa família é diferente e tem poderes excepcio-
nais. Não podemos nos misturar ou casar com pesso-
as comuns, pois perderíamos todos os nossos poderes
mágicos. Temos certeza de que você não ia querer
perder seu poder de “viajar” usando a magia, certo?

262
Então tenha cuidado. Cuidado!
Mas em seu quarto, no sótão, deitada em sua
cama com dossel, Cecy passou perfume em seu pes-
coço e espreguiçou-se, tremendo de apreensão ao ver
uma lua tão branca como leite erguer-se no céu de
Illinois, exatamente a lua que tornava os rios brancos
como creme e as estradas prateadas.
— É verdade — suspirou ela. — Pertenço a
uma família estranha, sou um deles. Nós dormimos
durante o dia e voamos à noite como pipas negras
empinadas ao vento. Se quisermos, podemos dormir
no corpo de uma toupeira durante o inverno, sentin-
do o calor da terra a nossa volta. Posso viver dentro
de qualquer criatura — uma pedrinha, uma folha de
açafrão ou um louva-a-deus. Posso sair deste meu
corpo sem graça, mas estranho, e viajar com minha
mente para lugares distantes, em busca de aventuras.
Agora!
E o vento a carregou sobre campos e planícies.
Ela viu as cálidas luzes de cabanas e fazendas
brilhando no crepúsculo colorido.
“Mas não posso me apaixonar sendo eu mes-
ma, porque sou sem graça e diferente dos demais.
Talvez eu possa me apaixonar me transformando em
alguma outra pessoa”, pensou a menina.
Do lado de fora de uma casa de fazenda, à luz
do crepúsculo de primavera, uma jovem com cabelos
escuros, com não mais do que dezenove anos, cantava
enquanto tirava água de um poço.
Cecy caiu dentro do poço, sob a forma de uma
folha verde. Ela se acomodou no musgo junto à pare-
de, olhando para cima na fria escuridão. A seguir,

263
transformou-se em uma ameba, flutuando na água, e
depois em uma gota d’água. Finalmente, já dentro de
uma xícara, sentiu que estava sendo levantada e viu os
lábios de uma garota aproximarem-se. Ela pôde ouvir
o barulho ao ser engolida.
Cecy olhou o mundo através dos olhos da jo-
vem. Viu suas mãos puxando a corda e escutou todos
os sons ao seu redor através de seus ouvidos. Sentiu
um mundo de cheiros novos subindo pelas narinas
delicadas e sentiu o coração bater, bater. E a sensação
estranha da língua se mexendo enquanto a jovem can-
tava.
“Será que ela sabe que eu estou aqui?”, pensou
Cecy.
A menina sobressaltou-se e olhou para os cam-
pos ainda escuros.
— Quem está aí? Nenhuma resposta.
— E só o vento — sussurrou Cecy.
— É só o vento. — E a garota riu de si mesma,
não conseguindo evitar, no entanto, um certo arrepio.
Cecy havia escolhido um bom corpo, o corpo
daquela garota. Seus ossos eram de puro marfim, en-
cobertos por uma carne firme. Seu cérebro, assentado
em uma cavidade escura, assemelhava-se a uma rosa e
a boca tinha um sabor de vinho de cidra. Os lábios
firmes abriam-se para mostrar dentes brancos; suas
sobrancelhas eram uma bela moldura para o mundo e
seu cabelo macio e fino balançava atrás de seu pesco-
ço branco. Os poros da pele formavam uma tapeçaria
perfeita. O nariz era arrebitado, e as maçãs do rosto,
vermelhas como brasas em chamas. Seu corpo ondu-
lava à medida que se movia e parecia estar sempre

264
cantando, assim como a própria jovem. Estar dentro
daquele corpo era como se sentir acalentada pela larei-
ra na sala de um lar, ouvir o ronronar de um gato
dormindo, flutuar em águas cálidas de um riacho que
flui para o mar sob o luar.
“Gosto daqui”, pensou Cecy.
— O quê?, perguntou a jovem, como se tivesse
ouvido uma voz.
— Qual o seu nome? — perguntou Cecy, cau-
telosamente.
— Ann Leary. — Novamente a jovem sobres-
saltou-se. — Mas por que estou dizendo meu nome
em voz alta?
— Ann, Ann — sussurrou Cecy. — Ann, você
vai se apaixonar por alguém.
Como que em resposta a este pensamento, um
barulho se fez ouvir na estrada, o som de rodas sobre
o cascalho. Um homem alto numa carroça, segurando
firmemente as rédeas com seus braços monstruosos,
aproximou-se e deu um amplo sorriso para a jovem.
— Ann!
— E você, Tom?
— Quem mais podia ser? — Ele pulou da car-
roça e amarrou as rédeas na cerca.
— Eu não estou falando com você! — Ann vi-
rou-lhe as costas, deixando cair o balde que carregava.
— Não! — gritou Cecy.
Ann estancou. Ela olhou para as colinas e as
primeiras estrelas da primavera, e a seguir encarou o
homem chamado Tom.
— Olhe o que você fez! Tom correu para acu-
di-la.

265
— Olhe o que você me fez fazer!
Ele limpou os sapatos dela com um lenço, rin-
do.
— Vá embora! — Ela chutou as mãos dele,
mas ele simplesmente riu novamente. Olhando do
alto, Cecy pôde analisá-lo: o contorno de sua cabeça e
o tamanho de seu cérebro, a largura do nariz, o brilho
de seus olhos, seus ombros largos e a força de suas
mãos, apesar de estarem delicadamente tentando lim-
par os sapatos de Ann com o lenço. Olhando para
baixo, mas por dentro do corpo de Ann, Cecy encon-
trou as cordas vocais, e forçando a linda boca a se a-
brir, ela murmurou: — Obrigada.
— Ah, então você tem bons modos? — O chei-
ro de couro em suas mãos junto com o cheiro de ca-
valo de suas roupas chegou até as delicadas narinas de
Ann, e Cecy sentiu sua mente divagar sobre lindos
campos noturnos, floridos.
— Não com você, oh, não! — disse Ann.
— Vamos lá, seja educada — disse Cecy. Ela
forçou a mão de Ann em direção à cabeça de Tom,
mas Ann rapidamente puxou sua mão de volta.
— Acho que estou ficando louca!
— Acho que sim — concordou ele com a ca-
beça, sorrindo, mas demonstrando sua surpresa. —
Você ia me tocar?
— Eu... eu não sei! Vá embora! — Suas boche-
chas pareciam carvões em brasa.
— Por que você não entra? Eu não a estou im-
pedindo. — Tom levantou-se. — Você não teria mu-
dado de idéia? Você vai ao baile comigo hoje à noite?
É uma ocasião especial. Depois conto por quê.

266
— Não — respondeu Ann.
— Sim! — gritou Cecy. — Eu nunca dancei e
quero dançar. Nunca usei um vestido longo. Quero
dançar a noite toda! Nunca estive dentro de uma mu-
lher, nunca experimentei a sensação de dançar. Meu
pai e minha mãe nunca me deixaram. Cachorros, ga-
tos, gafanhotos, folhas, tudo, tudo o mais no mundo
eu já vivi. Mas uma mulher, na primavera, nunca,
nunca em uma noite linda como esta. Oh, por favor,
nós precisamos ir ao baile!
E seus pensamentos se expandiram, assim co-
mo as mãos se abrem para experimentar luvas novas.
— Sim — disse Ann Leary —, eu vou com vo-
cê. Não me pergunte por quê, mas vou ao baile com
você hoje à noite, Tom.
— Agora corra para dentro de casa, rápido! —
gritou Cecy. — Você tem de tomar banho, contar a
novidade para seus pais, aprontar seu vestido. Pegue o
ferro, rápido, corra para seu quarto!
— Mãe! — gritou Ann. — Mudei de idéia.

* **

A carroça já se afastava a toda velocidade


quando os aposentos da casa de fazenda ganharam
vida. A água fervendo para o banho, o fogão a lenha
aquecendo o ferro para passar o vestido, a mãe cor-
rendo de cá pra lá com vários clipes de cabelo na bo-
ca.
— O que fez você mudar de idéia, Ann? Você
não gosta do Tom! — disse sua mãe.
— É verdade — concordou Ann em meio a

267
toda aquela atividade febril.
— Mas estamos na primavera! — pensou Cecy.
— Acho que é porque estamos na primavera
— disse Ann.
— E vai ser uma linda noite para dançar —
disse Cecy.
— ...uma linda noite para dançar — murmurou
Ann Leary. E a seguir ela estava na banheira, envolta
em espuma, seus ombros brancos ensaboados e seus
braços ensaboando o resto de seu corpo, e Cecy fa-
zendo sua boca abrir-se em um sorriso, forçando-a a
fazer uma coisa após outra. Ela não podia permitir
nenhuma pausa, nenhuma hesitação, caso contrário
seu plano cairia por terra! Ann Leary deveria ser man-
tida sempre em movimento, ensaboando aqui, massa-
geando ali, vamos lá! Agora, pegue a toalha e seque-se
com vigor! Isso! Agora perfume e talco!
— Olhe-se! — E Ann viu-se no espelho, toda
branco e rosa, como um ramalhete de lírios e cravos.
— Quem você é esta noite?
— Eu sou uma garota de dezessete anos. —
Cecy olhou com os olhos cor de violeta. — Você não
pode me ver, mas sabe que eu estou aqui?
Ann balançou a cabeça. — Com certeza, meu
corpo foi possuído por uma bruxa de abril!
— Perto, você chegou bem perto! — riu Cecy. —
Agora, o vestido! A fantástica sensação de sentir rou-
pas boas e belas sobre o corpo! E a seguir, a animação
que ela sentiu por dentro!
— Ann, Tom chegou!
— Peça para ele esperar um pouco! — Ann
sentou-se de repente. — Diga para ele que eu não vou

268
ao baile.
— O quê? — perguntou sua mãe à porta.
Cecy retomou sua atenção. A sensação que sen-
tira com a roupa a havia transportado para fora do
corpo de Ann, um lapso quase fatal. Agora ela ouvia o
som dos cascos de cavalo e da carroça se aproximan-
do. Por um momento pensara em ir encontrar Tom,
entrar em sua mente e experimentar a sensação de ser
um homem de vinte e dois anos em uma linda noite
como aquela. Tinha começado a voar para ele, atra-
vessando um campo de urzes, mas, como um pássaro
preso em uma gaiola, voou rapidamente de volta para
a mente de Ann Leary.
— Ann!
— Fale para ele ir embora!
— Ann! — Cecy havia novamente se instalado
no corpo de Ann e começou a espalhar seus pensa-
mentos por sua mente.
Mas Ann, decidida, insistia:
— Não! Não, eu o odeio!
— Eu não devia tê-la deixado, nem por um
minuto sequer. Cecy fez seus pensamentos descerem
até as mãos da jovem, até seu coração, martelando em
sua mente, gentilmente, gentilmente. “Levante-se”,
Cecy pensou. Ann se levantou.
— Vista seu casaco! Ann vestiu seu casaco.
— Agora, ande!
“Não!”, pensou Ann Leary.
— Ande! — comandou Cecy.
— Ann — disse a mãe. — Não faça Tom espe-
rar. Você vai até a sala agora, e nem pense em ne-
nhum disparate! O que está acontecendo?

269
— Nada, mamãe. Boa-noite. Voltaremos mais
tarde. Ann e Cecy correram juntas para a noite de
primavera.
“Um salão cheio de pombas dançando com su-
as penas macias, faisões mostrando-se, um salão cheio
das luzes e olhos do arco-íris”, pensou Cecy. E no
centro do salão, Ann Leary dançava, rodopiava, dan-
çava e dançava.
— Oh, que noite maravilhosa — disse Cecy.
— Oh, que noite maravilhosa — disse Ann.
— Você está estranha — disse Tom.
A música os envolvia na penumbra, em rios de
canções, e eles flutuavam, afundavam, emergiam, ele-
vavam-se no ar, encantavam-se, abraçavam-se como
duas pessoas com medo de se afogar, para em seguida
rodopiarem novamente, dançando em círculos, sus-
surrando e suspirando ao som de Beautiful Ohio.
Cecy entoava a canção. Os lábios de Ann en-
treabriram-se e ela cantou.
— Tem razão, estou estranha — disse Cecy.
— Você não parece a mesma — retrucou Tom.
— Não, não esta noite.
— Você não parece a Ann Leary que eu co-
nhecia.
— Não, de jeito nenhum mesmo — sussurrou
Cecy, quilômetros e quilômetros distante. — Não, de
jeito nenhum mesmo — repetiram os lábios de Ann.
— Estou com uma sensação estranha — disse
Tom.
— Sobre o quê?
— Sobre você. — Ele a puxou para si e olhou
para seu rosto resplandecente, observando-a atenta-

270
mente. — Seus olhos — disse ele. — Tem alguma
coisa estranha neles, mas não sei o quê.
— Você consegue me ver? — perguntou Cecy.
— Uma parte de você está aqui, Ann, mas ou-
tra parte não. — Tom a fez girar cuidadosamente,
mas parecia pouco à vontade.
— Você tem razão.
— Então por que você quis vir comigo ao bai-
le?
— Eu não queria vir — respondeu Ann.
— Por que então?
— Algo me forçou a vir.
— O quê?
— Não sei! — A voz de Ann soou quase histé-
rica.
— Vamos lá, pare com isso — sussurrou Cecy.
— Girando, girando.
Eles continuaram a cantarolar e a viajar pelo sa-
lão na penumbra, movidos pela música.
— Mas você veio ao baile — disse Tom.
— Sim — disse Cecy.
— Venha comigo. — E ele a levou dançando
por uma porta aberta e calmamente a afastou do sa-
lão, da música e das outras pessoas.
— Ann — disse ele, tomando as mãos da jo-
vem em suas mãos trêmulas. — Ann. — Mas o modo
como ele disse o nome dela era como se estivesse di-
zendo um nome estranho para ele. Ele continuou a
examinar o rosto pálido da jovem, que agora tinha os
olhos bem abertos. — Eu sempre te amei, você sabe
disso.
— Eu sei.

271
— Mas você sempre se esquivou e eu tinha
medo de me magoar.
— Tudo bem, nós somos muito jovens.
— Não, não é isso; eu quero dizer, me descul-
pe — disse Cecy.
— O que você quer dizer com “me desculpe”?
— Tom largou as mãos da moça e ficou tenso.
A noite estava quente e o cheiro da terra subia
até onde eles estavam sentados. As árvores respiravam
através de todas as suas folhas, uma por uma.
— Eu não sei — disse Ann.
— Ah, mas eu sei — disse Cecy. — Você é alto
e é o rapaz mais bonito do mundo. E esta noite está
linda, uma noite que lembrarei para sempre por estar
com você. — Ela fez a mão fria de Ann se mover em
direção à mão relutante de Tom, forçando-a a segurar
a mão do rapaz firmemente.
— Mas — disse Tom, piscando — esta noite,
uma hora você está aqui e outra você está em outro
lugar. Uma hora você se comporta de um modo e, no
minuto seguinte, de outro modo completamente dife-
rente. Quando a convidei, eu queria trazê-la ao baile
para relembrarmos os velhos tempos, mas nada além
disso. Mas hoje cedo, quando estávamos em frente ao
poço, senti que algo havia mudado, algo em você ha-
via mudado muito. Você estava diferente. Havia al-
guma coisa nova, doce em você, alguma coisa... —
Ele tentou encontrar a palavra. — Sei lá, não sei o
quê. Talvez o seu jeito, alguma coisa na sua voz. E
agora sei que estou apaixonado por você.
— Não — disse Cecy. — Você está apaixona-
do por mim.

272
— Mas eu estou com medo de me sentir assim
novamente — disse ele. — Eu sei que você vai me
magoar novamente.
— Talvez — disse Ann.
“Não, não, eu te amaria com toda a força do
meu coração!”, pensou Cecy. — Ann, diga isto a ele,
diga isso por mim. Diga que você o amaria com toda
a força do seu coração.
Mas Ann permaneceu em silêncio.
Tom aproximou-se e segurou o queixo da jo-
vem.
— Eu vou embora daqui. Arranjei um emprego
em outra cidade. Você vai sentir saudades minhas?
— Sim — disseram Ann e Cecy.
— Posso te dar um beijo de despedida?
— Sim! — disse Cecy antes que Ann dissesse
qualquer outra coisa.
Tom colou seus lábios àquela boca estranha.
Ele a beijou, mas estava tremendo.
Ann permanecia sentada como uma estátua.
— Ann! — disse Cecy. — Mexa esses braços,
abrace-o!
Mas Ann permaneceu sentada, como uma bo-
neca entalhada na madeira à luz da lua.
Novamente, Tom beijou seus lábios.
— Eu te amo — sussurrou Cecy. — Eu estou
aqui, é a mim que você vê quando olha nos olhos de-
la! E eu vou te amar, mesmo que ela não te ame!
Tom afastou seus lábios dos de Ann e sua ex-
pressão era a de um homem muito, muito cansado,
como se tivesse corrido quilômetros. Ele sentou-se a
seu lado.

273
— Eu não entendo o que está acontecendo.
Por um momento...
— Sim? — disse Cecy.
— Por um momento eu pensei... — Ele cobriu
os olhos com as mãos. — Não importa. Posso te le-
var para casa?
— Por favor — disse Ann Leary.
Ele incitou o cavalo, segurou as rédeas como se
estivesse realmente cansado, e conduziu a carroça.
Eles sacolejavam a cada movimento da carroça sob o
luar daquela noite linda, ainda cedo, pois eram somen-
te onze horas, com os campos brilhantes de orvalho
exalando o cheiro adocicado de cravo-da-índia ao lado
da estrada.
E Cecy, olhando para os campos, pensou...
“Teria sido bom, eu teria dado tudo no mundo para
ficar com ele desta noite em diante.” Ela escutou a
voz de seus pais novamente, ao longe: “Tenha cuida-
do! Você quer perder todos os seus poderes mágicos
ao se casar com um mero mortal? Tenha cuidado, não
vale a pena.”
Mas, “Sim”, pensou Cecy, “valeria a pena. Eu
abriria mão de todos os meus poderes mágicos, aqui e
agora, se Tom me quisesse. Eu não precisaria vagar
pelas noites, ou viver dentro do corpo de pássaros,
cães, gatos e raposas. Eu só precisaria ficar com ele.
Só com ele.”
Eles continuaram seu caminho, sacolejando.
— Tom — disse Ann finalmente.
— O quê? — respondeu ele, sem tirar os olhos
da estrada, do cavalo, das árvores, do céu e das estre-
las.

274
— Se, em algum momento nos próximos anos,
você for a Green Town, em Illinois, pode me fazer
um favor?
— Talvez...
— Você me faria o favor de visitar uma amiga
minha? — Ann proferiu estas palavras parando após
cada uma delas, hesitante.
— Por quê?
— Ela é uma grande amiga e eu falei de você
para ela. Eu vou lhe dar o endereço, espere um pou-
co. — Quando a carroça finalmente parou na frente
da casa da fazenda, Ann pegou um lápis e um pedaço
de papel de dentro de sua bolsa e escreveu à luz da
lua, apoiando-se em seu joelho. — Aqui está. Você
consegue ler?
Tom olhou para o papel e concordou com a
cabeça, surpreso. “Cecy Elliott, Willow Street, 12,
Green Town, Illinois”, ele leu.
— Promete visitá-la algum dia? — pediu Ann.
— Algum dia, quem sabe.
— Promete?
— O que isso tem a ver com a gente? — disse
ele agressivamente. — Por que eu vou querer um
nome em um papel? — Ele amassou o papel em uma
bola e o enfiou no bolso do casaco.
— Oh, por favor, prometa! — implorou Cecy.
— ...prometa... — disse Ann.
— Está certo, eu prometo, mas, agora, me dei-
xe ir em paz! — ele gritou.
“Eu estou muito cansada”, pensou Cecy. “Não
posso mais ficar aqui. Tenho de ir para casa, pois sin-
to que estou enfraquecendo. Só tenho poderes sufici-

275
entes para ficar fora por algumas horas durante a noi-
te, viajando, viajando. Mas antes de partir...”
— ...antes de partir — disse Ann. Ela beijou os
lábios de Tom.
— E sou eu quem está te beijando — disse
Cecy.
Tom a afastou de si e olhou bem dentro dos
olhos de Ann Leary. Ele nada disse, mas seu rosto
pareceu relaxar, lentamente as linhas de tensão foram
desaparecendo, sua boca também relaxou, e ele olhou
novamente, atentamente, para o rosto iluminado pelo
luar.
Então ele a ajudou a descer da carroça, e sem
ao menos dar boa-noite afastou-se rapidamente.
Cecy deixou o corpo de Ann.
Ann Leary, gritando, sentindo-se como que li-
bertada de uma prisão, correu para casa e bateu a por-
ta.
Cecy ainda passeou um pouco. Através dos o-
lhos de um grilo, ela pôde ver o mundo contido em
uma noite de primavera. Pelos olhos de um sapo, ela
permaneceu sentada em silêncio admirando um lago.
Através dos olhos de um pássaro noturno, ela admi-
rou o mundo abaixo, pousada no alto de um galho de
um elmo, e viu as luzes apagarem-se em duas fazen-
das, uma mais próxima e outra à distância. Ela pensou
em si mesma e em sua família, em seus estranhos po-
deres e no fato de ninguém em sua família poder ca-
sar-se com nenhuma das pessoas deste vasto mundo
além das colinas.
— Tom? — Sua mente enfraquecida voou sob
a forma de um pássaro noturno por entre as árvores e

276
acima dos campos de mostarda selvagem. “Você
guardou o papel, Tom? Você virá me ver algum dia,
algum ano, alguma hora? Você vai me conhecer, en-
tão? Você vai olhar no meu rosto e lembrar quando
foi a última vez em que me viu, e então me amará
como eu te amo, com todo o meu coração, para sem-
pre?”
Ela pairou no frio ar noturno, a milhares de
quilômetros de distância das cidades e das pessoas,
acima das fazendas, continentes, rios e montanhas. —
Tom? — sussurrou ela ternamente.
Tom estava dormindo. Já era tarde da noite;
suas roupas estavam sobre cadeiras e também dobra-
das cuidadosamente aos pés da cama. E ao lado de
uma de suas mãos, sobre o travesseiro, um pequeno
pedaço de papel com algo escrito. Lentamente, bem
lentamente, milímetro após milímetro, seus dedos o
alcançaram e fecharam-se, segurando-o firmemente. E
ele nem se mexeu ou sequer percebeu quando um be-
lo pássaro negro bateu suavemente no vidro da janela,
pousou por um momento e em seguida levantou vôo
para o leste, viajando sobre a terra adormecida.

* **

RAY BRADBURY é hoje um dos mais proe-


minentes escritores de literatura de fantasia em todo o
mundo. Ele freqüentemente usa os cenários de sua
própria infância no Meio Oeste norte-americano co-
mo inspiração para suas histórias mais extraordinárias.
Ainda criança em sua cidade natal, Waukegan, Ray
sempre gostou de ir a shows de magia e ao circo, e

277
nunca esqueceu alguns personagens memoráveis, co-
mo o Mago Blackstone e Mr. Elétrico, um homem
incrível que usava um capuz de veludo preto, sentava
em uma cadeira elétrica e fazia faíscas azuis saírem de
seus dedos, narinas e dentes. Certo dia, Ray encon-
trou-se com Mr. Elétrico e confidenciou-lhe sua am-
bição de se tornar um grande mágico. Mas o jovem
Ray e sua família se mudaram para Los Angeles, onde
ele começou a escrever e a desenhar sobre os eventos
de magia que assistira em sua infância. Publicou con-
tos como “Corpse Carnival”, “The Black Ferris”,
“The Last Circuit” e diversos romances, entre eles O
homem ilustrado, Algo sinistro vem por aí (Bertrand Brasil,
2006); e seus dois livros juvenis: Switch on the Night,
lançado em 1955, e The Halloween Tree, publicado em
1972. Com seu talento, não é de surpreender que al-
guns admiradores seus o considerem “um mágico
com as palavras”.

278
TIA MAGI. SUPERMODELO
Terence Blacker

Tia Magi sempre usa uma camiseta roxa e jeans, e


qualquer pessoa que lhe pergunta sobre seus poderes especiais
recebe a seguinte explicação: “Eu vou a qualquer lugar onde a
magia se Jaz necessária”. Com seus olhos verdes vivos e seus
longos cabelos pretos, sem mencionar sua gata de porcelana
chamada Hécate, um rato mágico e uma coruja mal-educada,
ela causou forte impressão nos alunos da Escola St. Barnabas
quando chegou para assumir o posto de professora da terceira
série. Eles pensaram que ela só poderia ser uma hippie ou
uma bruxa. Aqueles que optaram pela segunda possibilidade
chegaram bem perto da verdade — apesar de Tia Magi, cujo
nome real é Senhorita Sabedoria, insistir que o termo “bruxa”
está muito fora de moda e que ela e, na verdade, uma “Para-
normal Ativa”. Logo ela revelou seu talento em magia Jazendo
um inspetor da escola perder suas calças! Todas as crianças da
terceira série decidiram que a Srta. Esperta era “legal”, especi-
almente quando ela incluiu magia e feitiços em suas aulas. Na-
talie foi uma das que pôde comprovar a verdade sobre os poderes
de sua professora quando ela admitiu estar muito envergonhada
para se fantasiar para a Festa da Páscoa e acabou recebendo
uma visita do extraordinário “Espírito do Coelho da Pás-
coa”...

***

279
— Tímida, Natalie? — A voz do Sr. Bailey, o
professor da terceira série, ecoou na sala de aula.
— Tímida? Por quê?
— Tímida, vamos lá, não chore — disse Jack
do final da sala, quebrando um raro momento de si-
lêncio. O Sr. Bailey fechou seus olhos, sentindo-se
muito, muito cansado. A terceira série era conhecida
como a turma-problema de St. Barnabas e não havia
nenhuma outra época em que as crianças eram mais
problemáticas do que no final do ano letivo.
— Certo! — O Sr. Bailey abriu seus olhos ra-
pidamente. — Eu vou dizer-lhes mais uma vez. — E
olhou em volta da classe, desafiando alguém a falar.
— Na próxima semana, teremos a Festa Anual da
Páscoa de St. Barnabas. Como sempre, haverá um
concurso para eleger as melhores fantasias e, como
sempre, cada turma selecionará três crianças para re-
presentá-la. Este ano os prêmios serão entregues por
uma verdadeira celebridade
— Sr. Brown, o prefeito — resmungou Jack,
baixinho. — Como sempre...
— Alguém realmente famoso — continuou o
Sr. Bailey. — Uma supermodelo misteriosa.
— A Sra. Brown, a esposa do prefeito — disse
Jack.
— Então, aqui estão as três crianças que sele-
cionei para representar a terceira série no desfile —
disse o Sr. Bailey. — Caroline irá como o Coelho da
Páscoa.
— Oba! — disse Caroline, dando um soco no
ar.
— Peter será o Ovo da Páscoa. — O garoto

280
mais gordo da terceira série, conhecido pelos seus a-
migos como Poça, se levantou e fez uma reverência.
— E usando um gorro especial de Páscoa, Na-
talie Sawyer. Que tal Natalie? — A turma toda ficou
em silêncio enquanto Natalie olhava atentamente para
suas mãos.
— Vamos lá, Nat — disse Humphrey, o garoto
que dividia a carteira cora ela e que copiava todo o seu
dever, cutucando-a em suas costelas. — Você é a nos-
sa esperança de vencermos!
Natalie assentiu lentamente.
— Está bem — disse ela.
Mas, é claro, não estava nada bem. Mais tarde
naquele dia, Natalie sentou-se em seu quarto, pensan-
do no que poderia fazer para não representar sua tur-
ma na Festa da Páscoa de St. Barnabas.
— Todos os outros pais vão estar na festa —
disse ela em voz baixa para si mesma. — Mas mamãe
e papai vão estar no trabalho, como sempre.
— Não necessariamente.
— O quê? — Natalie olhou para cima, surpre-
sa. A voz parecia vir de uma pilha de bonecas em ci-
ma do travesseiro de sua cama.
— Não necessariamente — repetiu a voz.
Tremendo, Natalie afastou as bonecas. Embai-
xo da pilha estava um pequeno coelho de lã que nun-
ca tinha visto. Ela estava prestes a pegá-lo quando o
coelho disse:
— Espere um minuto.
Um zumbido encheu o quarto. Perante os o-
lhos esbugalhados de Natalie, o coelho cresceu e mu-
dou de forma, até que, em questão de segundos,

281
transformou-se em uma mulher com cabelos pretos
usando uma camiseta roxa e jeans, sentada na cama de
Natalie.
— Assim é melhor! — disse a mulher, balan-
çando seu cabelo. — Como vai? — Ela esticou sua
mão. — Meu nome é Tia Magi.
Natalie hesitou e então apertou a mão da estra-
nha. A mão estava estranhamente fria. — Prazer, Tia
Magi — disse ela em voz baixa. — Tenho ouvido o
pessoal da terceira série falar de você. Você não é u-
ma... — Ela pausou, não querendo parecer mal-
educada. — ... Bem, você não é uma espécie de bru-
xa?
— Certamente que não — disse Tia Magi, pis-
cando seus olhos verdes. — Bruxas são bobas e fora
de moda. Sou extremamente moderna. Uma para-
normal ativa é o que sou.
— Para que serve exatamente uma paranormal
ativa? — perguntou Natalie.
Tia Magi suspirou impacientemente.
— Tudo tem de servir para algo hoje em dia,
não é? Por que a magia não pode ser apenas magia?
Ah, não! Ela tem de necessariamente servir para al-
guma coisa, fazer alguma coisa.
— Desculpe! — disse Natalie em voz baixa.
— Muito bem, chega de falar sobre mim —
disse Tia Magi. — Estou aqui para resolver os seus
problemas. Eu soube que você não quer ir à Festa da
Páscoa. Por quê?
— Sou tímida. — Falando baixinho, Natalie
explicou a Tia Magi que seus pais trabalhavam até tar-
de e sempre estavam muito ocupados para irem aos

282
eventos da escola. Contou também que todas as babás
que tomavam conta dela estavam mais interessadas
em seus namorados do que em qualquer coisa que ela
estivesse fazendo.
— Eu entendo... — disse Tia Magi. — Então,
se sua mãe e seu pai fossem à festa, você ficaria feliz
em ir e representar sua turma?
— Mas eles não irão. — Lágrimas encheram os
olhos de Natalie. — Mamãe está atuando numa peça e
papai está muito ocupado no escritório.
Tia Magi se levantou. — Deixe isso comigo —
disse ela.
Um novo zumbido se fez ouvir no quarto en-
quanto a figura de cabelos pretos diminuía, diminuía,
até se tornar nada mais do que um borrão, como a
imagem de uma televisão cuja antena está quebrada.
Então ela desapareceu, deixando Natalie sozinha.
— Eu... voltarei — disse uma voz distante. —
Tenho de dar apenas alguns telefonemas.
A mãe de Natalie, Sra. Sawyer, estava em seu
camarim. Os ensaios para a nova peça iam muito
bem, e naquela tarde o diretor a havia chamado de
“maravilhosa” nada menos do que quatro vezes, o
que significava o dobro de vezes que falava para qual-
quer outro ator do elenco.
Enquanto verificava sua maquiagem em frente
ao grande espelho, ela cantarolava em voz baixa para
si mesma: “Nada é igual ao show-business, você sempre
sorri quando...”
Ela parou de repente. Algo refletido num canto
do espelho havia atraído sua atenção. Ela se virou em
sua cadeira, surpresa.

283
Um grande coelho, mais ou menos do tamanho
de uma criança rechonchuda, estava agachado num
dos cantos do camarim.
— Pare de cantar! — ordenou ele com uma es-
tranha voz gutural.
A Sra. Sawyer beliscou a si mesma.
— Devem ser aquelas pílulas antiestresse que
estou tomando... — murmurou ela. — Daqui a pouco
estarei vendo elefantes cor-de-rosa!
— Eu não sou um sonho — disse o coelho. —
Eu sou o Espírito do Coelho da Páscoa.
— Es... espírito? — sussurrou a Sra. Sawyer. —
C... coelho?
— Você entendeu muito bem, minha senhora
— disse o coelho, dando um salto e aproximando-se
dela. — E eu tenho uma mensagem para você. E so-
bre alguém que você parece ter negligenciado muito
ultimamente...
O pai de Natalie, Sr. Sawyer, estava sentado à
sua mesa no seu escritório. Aquele tinha sido um bom
dia. Ele havia trabalhado bastante e o mercado havia
correspondido, fazendo com que ele ganhasse muito
dinheiro. Mas ainda havia tempo suficiente para fazer
mais umas duas transações antes de ir para casa. Ou
até mesmo umas quatro transações mais...
Ele se virou para o computador em sua mesa e
digitou algumas letras. Um zumbido ensurdecedor
encheu a sala.
Na tela de seu computador apareceu uma men-
sagem escrita em letras garrafais: E QUANTO A
SUA FILHA, SR. SAWYER?
— Engraçado... — O Sr. Sawyer apertou algu-

284
mas teclas. — Este computador não está funcionando
direito.
O ÚNICO QUE NÃO ESTÁ FUNCIO-
NANDO DIREITO AQUI É VOCÊ, MEU CHA-
PA!
— O quê? — O Sr. Sawyer sentiu o suor escor-
rendo em seu pescoço. — Quem é você?
AQUI FALA O COELHINHO DA PÁS-
COA. OU PELO MENOS O ESPÍRITO DO COE-
LHINHO DA PÁSCOA.
O Sr. Sawyer olhou por cima de seu ombro. O
que aconteceria se o seu chefe entrasse naquele mo-
mento e descobrisse que ele estava recebendo mensa-
gens de algum estranho “espírito de um coelho”?
A FESTA DA PÁSCOA DE ST. BARNABAS
SERÁ NA PRÓXIMA SEMANA. As letras estavam
aparecendo na tela tão rapidamente que ele mal tinha
tempo de lê-las. VOCÊ VAI À FESTA, NÃO VAI?
— Bem, eu tenho uma reunião urgente com...
VOCÊ... VAI... ESTAR... LÁ..., NÃO... VAI?
— Sim, eu... eu vou.
ÓTIMO, AGORA VÁ PARA CASA.
— Tudo bem, está certo. — O Sr. Sawyer se
levantou e vestiu seu paletó — Eu, hã, boa-noite, coe-
lhinho.
SR. COELHINHO PARA VOCÊ!
— Sr. Coelhinho. — O Sr. Sawyer desligou o
computador e caminhou rapidamente para a porta.
— Oi, querida!
— Olá, meu amor!
Natalie olhou surpresa para a porta de seu
quarto. Lá estavam sua mãe e seu pai, parados. Ela

285
olhou para o relógio ao lado de sua cama. Passava
pouco das seis horas da tarde.
— Oi. — Ela beijou os dois. — Vocês chega-
ram em casa muito cedo hoje.
— Senti saudades suas — disse o Sra. Sawyer.
— Assim, de repente.
— Eu também — disse o Sr. Sawyer. — De
repente me ocorreu que já deve estar na época da Fes-
ta Anual de Páscoa de St. Barnabas.
— Será na próxima semana — disse Natalie.
— Vou usar um Gorro Especial de Páscoa. Poça vai
fantasiado de Ovo de Páscoa e Caroline será um Coe-
lhinho da Páscoa.
— C... c... coelhinho? — disse a Sra. Sawyer.
— Sr. Coelhinho? — disse o Sr. Sawyer.
— Isso mesmo — disse Natalie. — Vocês es-
tão bem?
Uma semana depois, o diretor de St. Barnabas,
Professor Gilbert, estava em pé atrás do microfone no
pátio da escola. Ele parecia preocupado.
— Bem-vindos ao Desfile de Fantasias da Fes-
ta da Páscoa de St. Barnabas — anunciou ele. — Es-
tou muito feliz que tantos pais que normalmente têm
uma agenda lotada tenham conseguido comparecer.
Na fileira da frente, o Sr. e a Sra. Sawyer sorri-
am um para o outro.
Duas fileiras atrás deles, estavam Jack e Katri-
na, que tinham acabado de desejar boa sorte a Poça,
Caroline e Natalie, quando eles saíram para se trocar.
— Eu espero que Poça consiga entrar no Ovo
de Páscoa — disse Katrina.
Jack riu. — Ele é a única pessoa que conheço

286
que teve de fazer uma dieta para ser um Ovo de Pás-
coa...
— Agora eu tenho boas e más notícias — esta-
va dizendo o professor Gilbert ao microfone. — A
má notícia é que infelizmente a misteriosa supermode-
lo que agendamos teve de voar para Paris para uma
urgente première do filme Salvem as baleias! Várias re-
clamações se fizeram ouvir na platéia.
— A boa notícia é que o Sr. Brown, o prefeito,
concordou em ser nosso convidado especial!
O Professor Gilbert sorriu para o homem pe-
queno e gorducho que estava sentado a seu lado.
— Eu não falei? — disse Jack um tanto alto
demais.
— Então vamos dar início ao nosso desfile —
disse o Professor Gilbert. — A primeira pessoa na
passarela é...
Ouviu-se um estrondo vindo do fundo do pá-
tio e em seguida as portas duplas foram abertas. Ilu-
minada pela luz do sol, entrou uma alta e glamourosa
criatura trajando um elegante e justo vestido roxo.
— Olá para todos! — A mulher entrou rebo-
lando suavemente sobre seus sapatos de saltos altos.
— Eu sou a sua supermodelo do dia!
Faz se um silêncio sepulcral enquanto ela subia
os degraus para chegar à passarela. — Minhas senho-
ras e meus senhores, estou aqui para apresentar seus
prêmios. Meu nome é Senhorita Sabe-Tudo.
— Ah... Obrigado, hã, Senhorita Sabe-Tudo —
disse o Sr. Gilbert. — Muito gentil de sua parte.
A mulher alta olhou o diretor de cima abaixo.
— Você até que é bonitinho, sabia? — disse e-

287
la. O prefeito, que estava sentado bem próximo, exi-
bia um olhar de desgosto.
— A senhorita não é um pouco madura demais
para ser uma supermodelo? — perguntou ele em alto
e bom som. — Pensei que modelos fossem sempre
jovens e magricelas...
Os olhos verdes da mulher faiscaram de raiva.
— Quem é madura está com tudo, docinho, e quem é
magricela não está com nada. Ora bolas! Quem quer
se parecer com alguém que tem um sério distúrbio de
alimentação?
— Eu não acho que ela seja realmente uma
modelo... — disse o prefeito, mal-humorado. — A-
cho que ela é a mãe de algum aluno disfarçada.
Jack estava examinando a supermodelo aten-
tamente.
— Senhorita Sabe-Tudo... — murmurou para
Katrina. — Você está pensando o que eu estou pen-
sando?
Katrina sorriu. — Olha só, ela pinta as unhas
com esmalte preto! — retrucou a menina.
— Hum... isso é muito interessante... — disse
Jack.
O Desfile de Fantasias da Festa da Páscoa co-
meçou finalmente. Havia crianças vestidas de Narci-
sos, de Lebres Malucas de Março, de Cordeirinhos da
Primavera e de Cebolas da Primavera. Caroline saltava
por todo o palco vestida de Coelho da Páscoa. Poça
estava se divertindo muito em sua fantasia de Ovo de
Páscoa — particularmente quando a platéia notou que
seu bumbum parecia estar quebrando a casca do ovo.
Quando Natalie entrou, usando seu comprido

288
Gorro de Páscoa coberto de prímulas, o Sr. e a Sra.
Sawyer aplaudiram entusiasticamente. Ela ficou para-
da no meio do palco e, como se por um passe de má-
gica, uma nuvem de borboletas amarelas flutuou junto
às flores.
Depois do desfile, o Professor Gilbert se levan-
tou novamente. — Gostaria agora de convidar a Se-
nhorita Sabe-Tudo para julgar os participantes — a-
nunciou.
— Em terceiro lugar, anuncio o Coelho da
Páscoa — disse a Senhorita Sabe-Tudo.
— Nossa querida Caroline, da terceira série —
disse o Professor Gilbert.
— Em segundo lugar, o magnífico Ovo de
Páscoa! — disse a Senhorita Sabe-Tudo.
O Professor Gilbert pareceu um pouco surpre-
so. — Nosso aluno Peter, também do terceiro ano...
— E o vencedor... — A Senhorita Sabe-Tudo
sorriu para baixo, para a primeira fileira da platéia. —
O Coelhinho de Páscoa!
Todos aplaudiram e comemoraram.
— Mais uma aluna da terceira série! — gritou o
diretor acima da balbúrdia. — Natalie!
Enquanto Natalie, Poça e Caroline voltavam ao
palco, o prefeito de repente se levantou. — Essa mo-
ça não é nenhuma supermodelo! — bradou ele, apon-
tando para a Senhorita Sabe-Tudo. — Essa moça é
uma... quack! — Por mais que tentasse, o único som
que saía de sua boca era um estranho barulho de pato!
— Que pena! O prefeito parece estar falando
uma língua que só os patos entenderiam... — A Se-
nhorita Sabe-Tudo deu um passo à frente. — E eu

289
estava tão ansiosa para ouvir o discurso do nosso que-
rido prefeito e tudo mais! — Ela pegou a taça da Fes-
ta da Páscoa que estava sobre a mesa e a entregou a
Natalie.
O Professor Gilbert estava coçando a cabeça.
— Isto é muito estranho... — comentou. — A tercei-
ra série não ganha tantos prêmios desde que tivemos
aquela estranha professora chamada... — De repente
ele olhou para a Senhorita Sabe-Tudo, que estava des-
cendo do palco para falar com Jack e Katrina. — Eu
sei quem você é! — berrou.
— Muito bem, Tia Magi — disse Jack. - Mas
aquele foi o pior sotaque que eu já ouvi em toda a mi-
nha vida!
— Como soube sobre Natalie? — perguntou
Katrina.
Tia Magi sorriu para Natalie, que estava rece-
bendo os parabéns de seus pais.
— Um Coelhinho da Páscoa me contou...
O Professor Gilbert estava tentando abrir ca-
minho entre a multidão. — Você é aquela Tia Magi
que está sempre causando encrenca! — gritou para
ela.
— Hora de dar um sumiço rápido! — disse Tia
Magi, olhando na direção do diretor enquanto um
zumbido alto enchia o pátio.
— Parem essa mulher! — berrou o prefeito,
cuja voz havia subitamente retornado.
— Eu... voltarei! — disse uma voz distante.
— Onde está aquela mulher? — perguntou o
Professor Gilbert. — Onde está Tia Magi?
— Ela se sentiu um pouco tonta — disse Jack.

290
— Você sabe como são as supermodelos —
disse Katrina.
— Por que ela nunca está aqui quando preciso
falar com ela? — murmurou o diretor, com raiva.
Natalie se juntou ao grupo, seu gorro de Páscoa
em suas mãos.
— Talvez ela seja um pouco tímida — disse e-
la.

* **

TERENCE BLACKER criou uma mágica e


cativante personagem chamada Tia Magi, que aparece
em mais de uma dúzia de aventuras. O autor nasceu
em Suffolk e, depois de ter estudado na Universidade
de Cambridge, teve vários empregos, como jóquei
amador, entregador de encomendas e vendedor de
livros em Paris antes de ingressar na literatura. Em
1983, ele começou a escrever em período integral, e
sua série de livros de futebol Hot Shots teve grande
aceitação entre os leitores jovens. A seguir, em 1987,
escreveu a primeira das histórias com Tia Magi: Tia
Magi ensina o abracadabra. O livro foi indicado para o
Children’s Book Award (Prêmio de Melhor Livro In-
fantil) e selecionado para o Children’s Book of the
Year (Livro Infantil do Ano) em 1989. As histórias
subseqüentes da “antenada” Tia Magi levam-na por
uma variedade de aventuras onde seus poderes mági-
cos mostram ser vitais -especialmente em um roman-
ce com um vampiro em Drácula em apuros, publicado
em 1996.
Há comentários sobre planos para um filme

291
com a Tia Magi, que, na opinião de Terence Blacker,
deveria ser um musical. “Talvez ela seja uma nova
Mary Poppins”, diz ele. “Ela seria um tipo de Mary
Poppins com muita personalidade!”

292
POR UM PASSE DE MÁGICA
Jacqueline Wilson

Rose é uma garota que possui um poder mágico bastan-


te incomum — ela só precisa ter o pensamento certo, fechar sua
mão e apertar seu polegar, que consegue “rebobinar” ou “avan-
çar” sua vida, da mesma maneira que Jazemos quando assisti-
mos a uma fita de vídeo. O primeiro sinal de que algo está pres-
tes a acontecer é quando sua mão começa a brilhar e, depois
disto, por um passe de mágica, ela é transportada a todos os
tipos de situações, tanto àquelas que já aconteceram quanto às
que poderiam acontecer no dia seguinte. Rose descobriu que
possuía este poder mágico no dia em que a televisão da família
quebrou justamente quando ela estava prestes a assistir ao seu
filme favorito, O mágico de Oz, acredito que pela qüingenté-
sima vez. O estranho e pequeno técnico que veio consertar o
aparelho ajudou a dar a Rose o tipo de poder mágico que qual-
quer um simplesmente adoraria ter. Entretanto, quando ela
resolve usar seu poder na escola, durante uma das aulas maçan-
tes da Sra. Mackay, o resultado não é exatamente o que ela
esperava...

* **

A animação que Rose sentia diminuiu ura pou-


co quando entrou em sua sala de aula. Ela não estava
gostando muito da escola, principalmente porque ti-
nha uma professora horrível e muito severa chamada
Sra. Mackay, que batia palmas o tempo todo e vivia

293
dizendo: “Agora chega, Rose. Sente-se e pare de se
exibir para os outros.” A Sra. Mackay não deixava os
alunos falarem muito durante a aula, e eles tinham de
estudar matérias “sérias”, como aritmética e inglês. A
Sra. Mackay conseguia estragar até as aulas mais diver-
tidas, como artes e música e movimento! Rose não
podia deixar sua imaginação correr solta e pintar lin-
dos desenhos com elefantes voadores e bruxas más.
Era obrigada a pintar coisas incrivelmente chatas, co-
mo “Um Dia de Primavera” ou “Um Bosque de Ou-
tono”, e a Sra. Mackay ralhava se ela pintasse fora dos
contornos. Rose não podia inventar suas próprias pi-
ruetas ou danças rodopiantes nas aulas de música e
movimento. A Sra. Mackay queria que eles aprendes-
sem passos especiais; os garotos podiam marchar, mas
as garotas deveriam ficar na ponta dos pés. Rose bu-
fava de raiva.
— Bom-dia, Rose — disse a Sra. Mackay, as
sobrancelhas levantadas. — Você está imitando um
porco?
As crianças riram e Rose corou.
— Não, Sra. Mackay — resmungou a menina.
— Então pare com esse ruído tolo, por favor!
Agora vá se sentar e pegue seu livro de aritmética.
Rose suspirou profundamente e olhou para as
suas mãos. Quem sabe ela não poderia adiantar sua
vida, pular algumas aulas e ir direto para a hora do
recreio? Mas depois do recreio tinha aula de educação
física, e agora, na aula da Sra. Mackay, teriam de jogar
Rounders, um jogo semelhante ao beisebol, mas Rose
nunca conseguia acertar a maldita bola ou pegá-la. Ela
teria de pular educação física também. Na verdade, se

294
ela não tomasse cuidado, iria pular o fundamental to-
do e avançaria direto para o ensino médio antes da
hora de ir para casa.
Rose não sabia bem ao certo se gostaria do en-
sino médio.
Alguns dos amigos de seu irmão Rick já esta-
vam na primeira série. Viviam contando histórias hor-
ríveis sobre roubo de seu lanche, e se ele reclamasse
seria espancado nos banheiros. Rose não estava con-
vencida de que eles diziam a verdade, mas também
não estava muito entusiasmada para descobrir de uma
maneira ou de outra. Trocar de escola certamente se-
ria um grande passo. Passar para a primeira série do
ensino fundamental tinha sido apenas um pequeno
pulo.
Rose havia adorado o jardim de infância, mas
principalmente o maternal, quando era pouco mais
que um bebê. Não havia matérias “sérias” e se podia
falar o quanto quisesse. Ela tivera uma professora a-
dorável, chamada Srta. Flores, que lhe cercava de toda
a atenção porque ela também tinha um nome de flor.
A Srta. Flores pendurava as pinturas de Rose na pare-
de e sempre pedia a Rose que cantasse uma canção,
pois a menina tinha uma voz linda e alta. A Srta. Flo-
res ria e batia palmas quando Rose inventava uma pe-
quena dança para tornar mais interessante a música
que os alunos estavam escutando. A Srta. Flores nunca
dizia: “Agora chega, Rose! Sente-se e pare de se exibir
para os outros!”
“Eu queria estar de volta no maternal”, pensou.
E depois pensou mais um pouco. Olhou para a
sua mão esquerda. Imaginou se haveria algum jeito

295
especial de paralisá-la em uma certa posição na qual
conseguisse voar de volta ao passado em poucos se-
gundos. Atendendo à força de seu pensamento, seu
polegar se dobrou para dentro da palma da mão e ela
sentiu um desejo incontrolável de pressioná-lo, de
estalá-lo. Tinha quase certeza de que havia descoberto
a maneira certa de fazê-lo.
Mas, e se aquilo não funcionasse direito? E se
ela voltasse tão rápido e fosse longe demais, muito
atrás no passado? Ela não queria, de modo algum,
voltar a ser um bebê com fraldas encharcadas que
conseguia apenas dizer “gu-gu, dá-dá” como o peque-
no Robbie. Um bebê não come na hora que quer, e
quando começa a ficar irritadiço com fome tem de
berrar e chorar até que sua mãe entenda a mensagem
e finalmente coloque uma mamadeira em sua boca. E
mesmo com tudo que come, um bebê ainda é peque-
no e cresce muito devagar. Levaria muito tempo até
Rose crescer o bastante para poder enfrentar Rick no-
vamente. Mesmo hoje em dia ela precisava fazer um
enorme esforço quando os dois mediam forças. Tal-
vez fosse melhor ficar firme no presente.
— Agora, vamos resolver alguns problemas de
aritmética — disse a Sra. Mackay. — Rose, venha até
a lousa.
Rose simplesmente não conseguia entender e
resolver problemas. Se seis homens levavam três ho-
ras para cavar um buraco em um campo, uma garota
levaria meio segundo para fechar sua mão com força e
pressionar seu polegar, o que a levaria voando de vol-
ta ao passado.
— Uiiiiiiiiiiiiipi — gritava Rose enquanto rodo-

296
piava em direção ao passado. Ela ia tão rápido desta
vez que mal podia ver o caminho que percorria. Ago-
ra não havia como parar, e ela não poderia mais desis-
tir da idéia. Ela não conseguia nem pensar direito ao
assistir a várias cenas de sua vida passando rapida-
mente à sua frente, até que sua mão se abriu e seu po-
legar se viu livre. Parou de rodopiar e se viu com cin-
co anos de idade.
— O que há de errado, Rose? — perguntou-lhe
uma voz gentil, e uma figura familiar usando um deli-
cado vestido azul ajoelhou-se perto da pequenina ca-
deira.
— Mas é a senhorita mesmo, Srta. Flores! —
exclamou a menina. Ela olhou para baixo e viu seu
próprio vestidinho xadrez e seus sapatos vermelhos
com tiras que usava naquela época, e ao virar sua ca-
beça sentiu suas marias-chiquinhas enroladas balança-
rem à altura dos ombros.
— É claro que sou eu! — disse a Srta. Flores.
— Acho que você deve ter cochilado por um minuto,
Rose! Acorde agora, minha bonequinha...
Rose estava bem acordada agora, e por nada
neste mundo cochilaria.
— Estou mesmo na classe do maternal — dis-
se, olhando em volta da querida e familiar sala, com as
pinturas a dedo em seus cavaletes, os potinhos de á-
gua, a casinha de bonecas no canto e a massinha cor-
de-rosa — ah, ela havia se esquecido de como era di-
vertido brincar com a massinha cor-de-rosa!
Então se ajeitou à mesa da massinha e afundou
seus dedos naquela bola molenga. Seus dedos eram
pequenos e gorduchos, já que tinha apenas cinco a-

297
nos, mas sua mente ainda era a mesma e tinha idéias
mais sofisticadas. Ela não iria fazer salsichas chatas e
antiquadas, cobras ou colares como as outras crianças.
Segurou a massinha rosa, sentindo seu estranho chei-
ro, e decidiu modelar uma rosa. Sim, uma linda rosa
cor-de-rosa, um botão firme entreabrindo-se em péta-
las curvadas. Rose podia sentir a flor desabrochando
sob seus dedos.
Pôr-se a trabalhar em uma pétala. Mas agora
suas mãos se atrapalhavam com a massinha. Quando
tentou enrolá-la em tiras finas, seus dedos se embara-
lharam e destruíram tudo! Quando tentou curvar a
ponta de uma pétala, esta se quebrou completamente,
e quando tentou juntar várias pétalas, ela acabou es-
magando sua rosa, que se tornou uma massa disfor-
me.
Rose gemeu em desespero, e descobriu que ha-
via lágrimas de bebê em seus olhos.
— Qual é o problema, Rose? — perguntou a
Srta. Flores.
— Eu não consigo modelar a massinha — dis-
se ela, fungando.
— E claro que consegue, querida! Mas que coi-
sa linda você fez! Um lindo porquinho!
Um porco! Rose teve a impressão de que não
iria se livrar de porcos naquele dia.
— Que tal pintar com os dedos agora? — su-
geriu delicadamente a Srta. Flores, enquanto Rose
amassava seu porco cor-de-rosa transformando-o em
uma panqueca.
Rose vestiu um avental e travou uma verdadei-
ra batalha com os colchetes até conseguir fechá-los.

298
Postou-se, então, em frente ao cavalete, mergulhou
um dedo no pote de tinta e começou a fazer um auto-
retrato. Ela queria pintar suas marias-chiquinhas com
fitas, seu vestido xadrez e seus sapatos vermelhos com
tiras. Mas seu dedo não pintava o que ela queria. Ela
desenhou uma tola forma redonda com braços e per-
nas iguais aos de uma aranha. Ela não conseguia nem
desenhar uma cabeça, muito menos com cabelo. Dois
borrões foi o que conseguiu fazer como olhos, mas
colocou-os bem no meio do peito, além de uma boca
sorridente atravessada bem no centro do estômago.
Rose bateu seus sapatos vermelhos no chão,
com raiva.
— Qual é o problema, Rose? — perguntou a
Srta. Flores mais uma vez.
— Não consigo usar a tinta também — recla-
mou Rose.
— Oh, querida, você deve estar com algum
problema hoje — disse a Srta. Flores. Aproximou-se e
olhou a pintura de Rose. — Mas você fez uma linda
pintura, sua menina marota!
— O que é que eu pintei? — perguntou Rose.
Ela olhou inquisidoramente para a Srta. Flores.
A Srta. Flores hesitou. Ela olhou para a pintura
por um longo tempo.
— Não é um outro porco... — disse Rose.
— É claro que não é — concordou a Srta. Flo-
res. — É um retrato seu. — Provavelmente foi um
palpite de sorte.
— Eu pintei um retrato meu parecendo um
porco — disse Rose. Ela não sentiu nenhum orgulho
quando a Srta. Flores pendurou sua pintura boba na

299
parede.
Talvez não fosse tão divertido assim estar no
maternal novamente, no final das contas. As mãos de
Rose eram tão desajeitadas! Ela não teve melhor sorte
quando tentou trançar um pequeno tapete de palha.
Apesar de ter conseguido enfiar grandes contas em
um cordão de linha, logo tudo começou a ficar terri-
velmente enfadonho. Tentou conversar cora as outras
crianças de sua classe, mas elas só diziam coisas de
bebês.
Rose adorou quando a Srta. Flores bateu pal-
mas e disse-lhes para se sentarem, pois era hora de
ouvir histórias. Rose reconheceu o menino e a menina
na capa do livro.
— Oh, é a Topsy e o Tim! Eu me lembro! Eu li
esse livro há muito, muito tempo! — disse Rose.
— Leu mesmo, Rose? — perguntou a Srta.
Flores. Suas sobrancelhas estavam arqueadas e seus
olhos azuis piscaram várias vezes. Ela obviamente
pensou que Rose estava inventando aquilo.
— Eu li, verdade, eu li! Eu li todos os livros de
Topsy e Tim — insistiu Rose.
— Bem, talvez você tenha olhado as figuras —
disse a Srta. Flores.
— Não, eu sei ler! É fácil, fácil — disse Rose.
Ela se levantou e ficou ao lado da Srta. Flores, olhan-
do o livro em seu colo.
Ela ia mostrar como sabia ler. Ela ia ler o livro
todo para a classe inteira. Ela podia estar em seu cor-
po de cinco anos, mas ainda conseguia ler, pelo amor
de Deus!
Ou será que não sabia mais? Olhou para os es-

300
tranhos rabiscos pretos na página. Conseguiu distin-
guir um “a” aqui e um “e” ali... mas isto foi tudo! O-
lhava para uma letra grande, que poderia ser um “T”,
mas não sabia nem mesmo se era um “T” para Topsy
ou um T para Tim. Ela se sentiu muito tola parada ali,
na frente de toda a classe. Apertou suas mãos peque-
nas e gorduchas. Ela estava cansada de ser pequena e
tola. Apertou e estalou seu polegar direito com força e
o círculo de crianças pareceu começar a girar. O rosto
gentil da Srta. Flores foi se desfazendo, e Rose de re-
pente disparou, avançando no tempo, rodopiando e
rodopiando tão rápido que, quando de repente parou
bruscamente e se viu em pé em frente à lousa, sentin-
do-se tola novamente, perdeu o equilíbrio e quase ca-
iu, o giz em sua mão arranhando a lousa à medida que
caía.
A Sra. Mackay achou que a menina havia des-
maiado. Rose foi levada às pressas para a enfermaria
da escola. A secretária a acomodou no sofá e lhe deu
um chá doce e um biscoito digestivo. E depois a Por-
quinha Rose foi para casa rindo-se por todo o cami-
nho de volta. Ela havia conseguido, finalmente, não
assistir à aula de aritmética.

* **

JACQUELINE WILSON vende quase tantos


livros quanto J. K. Rowling, e certamente tem milhões
de leitores que apreciam cada detalhe de suas histórias
tanto quanto os livros de Harry Potter. Ela começou a
escrever histórias quando era criança, em Somerset, e
sabia que queria ser uma escritora desde a idade de

301
seis anos! Na verdade, começou a trabalhar em revis-
tas - incluindo a revista semanal para adolescentes Jac-
kie, que recebeu este nome porque todos na editora
concordaram que ela merecia esta homenagem, e só
mais tarde se tornou uma escritora de sucesso, com
suas histórias de valentia e determinação, nas quais
meninas pobres ou vindas de lares desfeitos vencem
através de sua coragem e criatividade. Entre seus li-
vros mais lidos estão The Story of Tracy Beaker, publica-
da em 1991, sobre uma menina carente que deseja ter
uma família de verdade; Bad Girls, publicado em 1997,
que conta as dificuldades encontradas por Mandy para
enfrentar provocações na escola; e The lllustraded Mum,
publicado em 1999, que narra as peripécias de Star e
Dolphin para lidar com uma mãe maníaco-depressivo.
Até o momento, a escritora já escreveu mais de seten-
ta livros e muitos deles ganharam importantes prê-
mios. Em 2002, Jacqueline Wilson foi agraciada com a
OBE — Order of the British Empire (Ordem do Im-
pério Britânico) - por sua contribuição à literatura.
Jacqueline diz que adora conhecer crianças em escolas
e bibliotecas, e também se vestir de preto, com botas
pontudas como as de uma bruxa e vários anéis gros-
sos de prata. “Os anéis causam furor entre as crian-
ças”, diz ela, “e sempre as deixo experimentá-los.”

302
FIQUEM A VONTADE, AMIGOS!
Alan Garner

O planeta Plutão tem um satélite chamado Caronte.


Caronte é um dos mais antigos personagens da literatura do
sobrenatural e, na mitologia grega, vem dos mais antigos deuses.
Por Jazer mal uso de seus poderes mágicos, Caronte foi conde-
nado a tornar-se o barqueiro responsável por levar os mortos até
o outro lado do rio Aqueronte, onde começa o Mundo das Tre-
vas. Caronte, no entanto, tinha permissão para cobrar passa-
gem de cada um dos mortos que transportava, e por isso logo se
tornou uma tradição na Grécia antiga enterrar os mortos com
uma moeda guardada na boca, para que pudessem pagar sua
passagem para o Mundo das Trevas. Mais de 2.000 anos de-
pois, esta lenda fascina um jovem chamado Brian, que, ao de-
parar-se em um museu com um prato de cerâmica com o desenho
de Caronte, decide desenhá-lo para acrescentar a um trabalho
da escola. Durante suas visitas ao museu, Brian faz amizade
com o velho zelador, Tosh. Certo dia, Tosh, um tanto relutan-
temente, permite que Brian segure o prato, mas, quando isto
acontece, Brian se vê, como que por mágica, na mais estranha
situação da sua vida...

* **

O campo de visão que Tosh tem de sua cabine


até onde Brian está desenhando passa por baixo do
Panda Gigante, entre o caixão com ornamentos dou-

303
rados de Bak-en-Mut e o pelourinho de uma cidade
colonial, atravessa o Taj Mahal e passa sobre o traje
tingido de Lady Henrietta Maria. Na primeira manhã
em que Brian veio ao museu, o Taj Mahal tinha blo-
queado a visão de Tosh do jovem a desenhar, mas
quando Brian retornou após o jantar, três portas havi-
am sido abertas para que Tosh tivesse um campo de
visão maior. Assim, toda vez que o jovem levantava
os olhos de seu desenho, ele encontrava o olhar de
Tosh sobre ele.
Quando não estava fazendo a ronda, Tosh fi-
cava em sua cabine a maior parte do tempo e lá pre-
parava seu chá e preenchia seus cupons. Ele fazia a
ronda de hora em hora, sempre na hora cheia, inici-
ando-a pelo corredor lateral, atravessando o corredor
ao fundo e terminando pelo corredor do outro lado
do museu, quando se aproximava de Brian por trás.
No primeiro dia em que Brian veio ao museu, Tosh
nada disse; apenas ficou parado em pé atrás do jovem,
elevando-se e abaixando-se sobre seus calcanhares,
click, click, click, e fazendo um estranho barulho com a
boca, como se estivesse chupando seus dentes. Logo a
seguir, terminou sua ronda e voltou para sua cabine.
Nenhum outro visitante havia estado no museu na-
quele dia ou durante todo o resto da semana.
— O que você está fazendo? — perguntou To-
sh no meio da segunda tarde em que Brian foi ao mu-
seu.
— Olhe só, ele fala! — respondeu Brian.
— Garoto mal-educado! — retrucou Tosh, su-
as medalhas tilintando enquanto se afastava.
Mas no terceiro dia Tosh fez sua ronda carre-

304
gando uma caneca de chá com leite condensado.
— Tome uma caneca de chá — disse Tosh.
— Obrigado, Tosh. — Brian pôs sua prancheta
de desenho no colo.
— Nada...
— Como vai seu trabalho? — perguntou Brian.
— Normal — respondeu Tosh. — Para esta
época do ano.
— Pouco movimento por aqui, né? — disse
Brian. — Desde que construíram o Parque de Diver-
sões, eu quero dizer. Não dá para o museu competir,
né?
— Tem gente que ainda vem sempre aqui —
retrucou Tosh. Principalmente quando tem exposição
nova.
— Hoje é o Dia de Abertura no Parque — dis-
se Brian. — Qualquer um pode entrar de graça.
— Só tem coisa para criança — retrucou Tosh.
— E nada é de graça neste mundo.
— Hoje é — disse Brian. — De todo jeito, vou
conferir.
— Por que você vem sempre aqui? — pergun-
tou Tosh.
— Estou fazendo um trabalho para a escola —
respondeu Brian. — No último semestre, tive de fazer
um trabalho sobre adubos, e neste semestre é sobre
cerâmica.
Em sua ronda seguinte Tosh perguntou:
— O que você tem de fazer com esse troço aí?
— Eu tou tentando desenhar aquele prato gre-
go antigo ali de todos os ângulos, e depois vou ver se
consigo reproduzi-lo.

305
— Pra quê?
— A cerâmica grega é considerada a melhor de
todas; então, pensei em começar pelo melhor.
— Você gosta de cerâmica?
— Gosto — respondeu Brian. — Sei lá por
quê, mas parece que eu levo jeito, apesar de ter come-
çado há pouco tempo. Talvez eu faça um curso à noi-
te.
— Eu também gosto de arte — disse Tosh. —
Mas prefiro pintura. Nada dessas coisas modernas de
hoje; pintura mais tradicional, com cachorros, flores e
coisas desse tipo! Faz você pensar em todo o trabalho
que os homens, os pintores, tinham pra fazer o troço
bem feito. Que nem o cara que fez aquilo ali. — Tosh
apontou para a tumba egípcia. — O tal do “Baque
Muito”, com o acabamento em ouro e aqueles dese-
nhinhos pequenininhos. Isto não foi feito com pressa,
não é, e deu muito trabalho, não acha?
— Este prato aqui também — retrucou Brian.
— Por isso é que estou tendo esta trabalheira toda
para conseguir desenhá-lo. As linhas são simplesmen-
te perfeitas, todas elas.
— Ah, é — disse Tosh. — Mas naquela época
eles tinham todo o tempo do mundo pra fazer as coi-
sas.
O prato estava isolado em sua vitrine, com uma
etiqueta datilografada colada no vidro: “Prata da regi-
ão da Ática, século V a.C, artista desconhecido. A ce-
na mostra Caronte, o barqueiro dos mortos, condu-
zindo uma alma para o Mundo das Trevas, atraves-
sando o rio Aqueronte.”
No início, Brian considerara o desenho muito

306
formal e frio. O velho barqueiro Caronte estava aga-
chado, com os joelhos dobrados, e o homem morto
tinha um olhar vazio como qualquer viajante. As on-
das formavam espirais regulares demais e o resto do
desenho era totalmente geométrico, com quadrados,
cruzes e padrões de folhas sem qualquer vida. Mas, à
medida que fazia seu desenho, Brian descobriu que
havia um certo equilíbrio e ritmo no desenho do pra-
to. Nada estava lá sem uma razão de ser, e a posição de
cada detalhe do desenho era tão precisa que mudar
qualquer coisa era como acrescentar uma nota fora do
tom em uma composição musical. Brian havia desco-
berto tudo isto em apenas dois dias de trabalho sobre
um prato preto e vermelho dentro de uma vitrine.
— Você já acabou? — perguntou Tosh uma
hora depois. Brian estava sentado, com as mãos nos
bolsos, o olhar parado no prato.
— Ainda não, Tosh. Será que não dá para abrir
a vitrine? Eu queria segurar o prato em minhas pró-
prias mãos.
— Ah, não — respondeu Tosh. — Meu em-
prego é mais importante do que a confusão que isso ia
arranjar! Não dá pra você ver tudo o que tem de ver
daqui?
— Ver não é suficiente... É por isso que o meu
desenho não dá certo. Eu estou desenhando no papel,
e o prato é curvado. O padrão e o formato do dese-
nho são muito importantes, não dá pra sentir um sem
o outro. Meu desenho tá sem graça; tá como chupar
bala sem tirar o plástico, entende?
— Mas, e se você quebrar o prato, o que vai
acontecer? — perguntou Tosh.

307
— Claro que eu ia consertar. Olha ali, ele já
quebrou antes. Vamos lá, Tosh, seja meu amigo, me
ajude!
Tosh foi até sua cabine e voltou com uma cha-
ve.
— Eu não sei de nada, entendeu? — disse ele.
Brian deixou seus dedos tatearem toda a super-
fície do prato. — É isso, é isso — ele repetia. — To-
sh, o homem que fez isto fez uma coisa perfeita, ma-
ravilhosamente perfeita! É que nem... sei lá o quê, sei
lá... que nem voar!
— Ei, olha só! Mas uma coisa é certo — disse
Tosh —, o cara te conquistou com todo o trabalho
dele. Só que ele tá morto agora. Quantos anos tem
este troço?
— Pelo menos uns dois mil anos — disse Bri-
an. — Dois mil anos. — Ele sentou e pensou, pensou
sobre que curvas e linhas, cores e padrões usaria, e
então fez esta maravilha. Dois mil anos. Com todos
os diabos! E o resultado foi essa lindeza, pelo menos
pra mim, porque eu acho que sei o que passou pela
cabeça dele. Dois mil anos...
— E isso aí, bem morto depois de todo este
tempo. Brian virou o prato para examinar sua base.
— Ia ser um bom prato de bolo — replicou
Tosh. — Para o bolo do domingo.
— Tosh, olhe! — exclamou Brian, quase dei-
xando o prato cair. Na base, podia-se ver claramente a
marca de um dedo polegar, uma impressão digital.
— Aí tá a marca do homem!
Ao ser tirado da vitrine, uma névoa pareceu
surgir na superfície do prato e Brian pressionou seu

308
polegar contra a base do prato.
— Dois mil anos, Tosh. E isto não é nada se
você pensar bem. Quem era ele?
— Nem vem, garoto! Ele tá bem morto.
Brian ficou olhando as marcas de seus dedos na
cerâmica antiga. — Tosh — disse ele —, olha! A mar-
ca do polegar no prato e a minha marca. São iguais!
Que será que isto quer dizer?
— Não são, não — respondeu Tosh. — Não
existem no mundo duas pessoas com a mesma im-
pressão digital.
— Mas estas são.
— Não podem ser — replicou Tosh. —
Quando era policial, eu fiz uns cursos em Londres
que falavam isso.
— Mas estas são idênticas!
— Você pode até achar isso, mas está errado.
Está comprovado que cada homem, mulher e criança
deste mundo nasceu com uma impressão digital dife-
rente, própria de cada um.
— Como isso foi provado? — indagou Brian.
— Porque nunca foram identificadas duas im-
pressões digitais iguais. Valha-me Deus! Vários ho-
mens foram até enforcados com base nisso. E que
sentido faria se não fosse verdade?
— Veja você mesmo — disse Brian.
Tosh pôs seus óculos e examinou atentamente,
sem dizer uma palavra. E então ele disse: — Ah, mui-
to bem, muito parecidas, eu concordo, mas compare
suas linhas com as linhas do outro homem. Ele tem
uma cicatriz que você não tem.
— Mas uma cicatriz é algo que você ganha de-

309
pois do seu nascimento — disse Brian. — Se ele não
tivesse machucado seu polegar de alguma forma, as
duas impressões seriam idênticas.
— Mas, sendo assim, não são, certo? — disse
Tosh. — E tudo isso aconteceu há muito tempo, en-
tão por que falar nisso?
Brian terminou seus desenhos mais cedo na-
quele dia, pois ia levar Sandra ao parque e queria se
barbear antes. Ele se encontrou com a jovem no pon-
to de ônibus.
— Lá está aquela menina, Beryl Fletcher —
disse Sandra.
— E daí? — indagou Brian.
— Ela já acabou a escola, e também fica sem-
pre se gabando de que é muito chique.
— Deixa pra lá — disse Brian —, você está é
com ciúmes. Dois ônibus passaram e foram embora.
— Você gosta da minha roupa? — perguntou
Sandra.
— Gosto.
— Só “gosto”?
— E legal — disse Brian. — Muito bacana.
— Você nem reparou... — retrucou Sandra.
— Reparei sim. É legal, mais bonita do que a
roupa da Beryl Fletcher — replicou Brian.
Sandra riu.
— Você nunca repara, seu cabeça-de-vento! O
que está acontecendo? Você não disse mais do que
duas palavras até agora.
— Desculpe — disse Brian. — Eu estava pen-
sando sobre aquele prato que estou desenhando a se-
mana toda no museu.

310
— Como se chama?
— Não sei, mas é muito velho.
— Quantos anos ele tem? — perguntou a me-
nina.
— Dois mil e poucos.
Um ônibus parou e eles embarcaram.
— Você conhece Tosh, o policial Parky, que
toma conta do museu? — perguntou Brian.
— Sei quem é. Ele é tio da mulher do garoto
do jornal.
— Ele era policial mesmo antes?
— Ele era sargento — respondeu Sandra.
Três pontos mais adiante, Sandra disse: — Vo-
cê está muito pensativo.
— Tô? Desculpe.
— O que é que esse prato tem a ver? Tem al-
guma coisa errada, Brian?
— Você alguma vez pensou em esconder al-
guma coisa para que essa coisa fosse encontrada mui-
tos anos depois, talvez até depois que você morresse?
— Não — respondeu Sandra.
— Eu sim — respondeu Brian. — Eu enchia
garrafas com lixo e depois as enterrava. Eu punha bi-
lhetes nas garrafas e recortes de jornais. Deste jeito
você pode se comunicar com alguém que nunca viu
ou nunca vai conhecer, mas se alguém encontrar uma
garrafa, esse alguém vai conhecer você. Tem alguma
parte de você na garrafa, esperando todo esse tempo,
compreende?, na escuridão da terra, mas quando a
garrafa é aberta, aí não existe mais nada e...
— Ei, acalme-se, tem gente olhando — disse
Sandra. — Você tem cada idéia, Brian Walton!

311
— É aquele prato no museu — disse Brian. —
Eu achei que era apenas uma vasilha velha, mas quan-
to comecei a desvendar as linhas e formas, descobri
que tem algo dentro dele.
— O quê? Alguma mensagem? — perguntou a
garota.
— Não, algo muito melhor. O homem que fez
esse prato há dois mil anos, ele não sabia nada sobre
mim, mas encontrou um jeito de fazer o desenho e o
formato combinarem de alguma maneira. Quando
você olha o prato, você não percebe como esse cara
foi inteligente, mas quando você toca o prato e tenta
copiá-lo, de repente sente o que o homem sentiu. As-
sim como se você estivesse olhando por cima do om-
bro dele enquanto ele estava desenhando e ele estives-
se falando com você, explicando o que estava fazen-
do. Algo do tipo quando eu for fazer um pote de ce-
râmica ele vai estar comigo, me orientando, e o pote
vai ser como que dele. E ele já morreu há dois mil
anos! O que você acha de tudo isto?
— Muito estranho — disse Sandra.
O ônibus chegou no parque de diversões. San-
dra estava a ponto de descer da plataforma quando
tropeçou e se projetou para a frente. Ela arregalou os
olhos e segurou o corrimão.
— O que foi? — perguntou Brian.
— Meu sapato! — resmungou ela, irritada. —
Ficou preso! — O salto-agulha de seu sapato ficou
preso entre as gradinhas da plataforma e Sandra teve
de tirar o sapato para poder soltá-lo. — Não acredito,
ficou arranhado! É a primeira vez que uso este sapato
para sair!

312
— Deixa pra lá — disse Brian. — Se você quer
ser chique...
— Olá, olá para todos! —gritou o alto-falante.
— Hoje é o Dia de Abertura, meus amigos, então ve-
nham se divertir de graça! De graça! Vamos lá!
— Por onde você quer começar? — perguntou
Brian.
— Não sei, vamos dar uma olhada antes.
— Olá para todos! Hoje é o seu dia no parque!
O parque que é diferente de tudo que vocês já viram,
meus amigos, o parque onde vocês fazem a diferença!
Este é um parque que só tem uma regra: “Fiquem à
vontade, amigos”!
Brian e Sandra dançaram duas das cinco músi-
cas que tocaram na pista, dirigiram um barco a motor
no Lago da Marina, fizeram seus próprios algodões-
doces...
— Olá, olá para todos! Fiquem à vontade, ami-
gos! Este é o parque “deixe-as-coisas-acontecerem”,
um conceito totalmente novo de parque de diversões
para a família, trazendo uma nova dimensão ao lazer.
Aqui as pessoas vêm se divertir, brincar, relaxar, es-
quecer o mundo, como só é possível no parque “dei-
xe-as-coisas-acontecerem!”. E tudo isto de graça!
Comprando o passaporte DACA para reservar seu
chalé, vocês não pagarão nenhum centavo a mais. Es-
te passaporte cobre todo o seu divertimento. Lem-
brem-se, o bilhete DACA é bem mais econômico!
Vamos lá!
— Meus pés estão me matando — reclamou
Sandra.
Eles se sentaram em um banco no Jardim dos

313
Salgueiros. Brian passou a mão pela cabeça de um
dragão chinês de bronze, do qual saía a música que se
ouvia por todo o parque. O sol já tinha baixado, a me-
lhor hora do dia depois do calor da hora do almoço.
— Não é um sonho? Bem melhor do que o ve-
lho parque! — disse Sandra. — Todos estes canteiros
de flores e jardins com pedras, as abelhas zunindo...
— Coitadas das abelhas — comentou Brian. —
Elas vão estar bem mortas amanhã de manhã.
— Você está com um humor hoje! — disse
Sandra. — Por que elas vão estar mortas?
— Inseticida — respondeu Brian. — Eles u-
sam isso para manter o solo limpo, ou algo do gênero.
Eles borrifam inseticida, mas se esquecem de contar
para as abelhas!
— Como é que você sabe disso? — perguntou
Sandra.
— Eu li sobre isso no semestre passado, quan-
do estava estudando sobre adubos. Tem muito inseti-
cida no solo. Pode acreditar, apesar de você não saber
disto.
— Vamos embora — retrucou Sandra.
— Não, olhe — disse Brian, inclinando-se e
pegando um punhado de terra de um canteiro. — O
solo... mas veja só, Sandra. Este solo é de plástico!
Grãos finos e regulares rolaram entre os dedos
do rapaz.
— Tudo é de plástico: a grama, as flores, tudo!
— Isso é o que eu chamo de bom senso — re-
trucou Sandra. — Mantém os custos baixos e não ma-
ta as abelhas.
— Ah, as abelhas. Com certeza elas não são tão

314
estúpidas. Ele subiu em algumas pedras e logo encon-
trou as abelhas.
Elas eram artificiais, cada uma delas montada
sobre um fio de metal bem fino, e seu zunido era um
pequeno artifício controlado por um timer.
— Olá, olá para todos! — disse o dragão de
bronze. Parque “deixe-as-coisas-acontecerem”, o par-
que com um diferencial! Vocês já foram à Terra do
Prazer, meus amigos? A Terra do Prazer do Parque
“deixe-as-coisas-acontecerem” é a única área-de-lazer
do tipo “faça-você-mesmo” que existe. E tudo isto de
graça! Grátis! Vamos lá!
— Vamos dar uma espiada nisso? — propôs
Brian. Eles andaram na roda-gigante, nos carrinhos
bate-bate, na montanha-russa e no polvo. Todos os
equipamentos eram controlados automaticamente. As
luzes piscavam, gravações davam as instruções e cam-
painhas soavam.
No Palácio da Alegria, Sandra lutou contra ja-
tos de ar que brotavam de repente do chão, e segurou
forte em Brian no Ragtime. A noite já caía quando saí-
ram do Palácio, rindo.
— Até que enfim alguma coisa conseguiu me-
lhorar seu humor! — comentou Sandra. — Eu achei
que só ia ouvir falar de cerâmica e adubo a noite toda.
— Aonde vamos agora? — perguntou Brian.
— Que tal o Túnel do Amor, caso você esteja
se sentindo um pouco mais romântico? — sugeriu
Sandra.
— Você só vai saber se experimentar — res-
pondeu Brian.
Subiram na plataforma ao lado do canal de á-

315
gua. Havia um portão para atravessar o canal com
uma placa que dizia: “Passageiros, por favor, aguar-
dem aqui. Segurem o corrimão iluminado para subi-
rem no barco. Não entrem a bordo até que o barco
tenha parado completamente. Não fiquem em pé no
barco. Todos devem estar sentados quando a campai-
nha tocar. Não é permitido fumar.”
— Fiquem à vontade, amigos — imitou Brian.
Passando o portão, podia-se ver uma gruta de
gesso com estalactites e estalagmites, e o canal passava
por entre elas para a seguir entrar em um túnel escuro.
— Que luz verde mais estranha tem lá, não a-
cha? — perguntou Sandra. — Meio fantasmagórica.
— Tinta especial — explicou Brian. — Ela fica
super-iluminada na luz ultravioleta. Lembra daquele
Fundo do Mar Espetacular que vimos no “Cachinhos
no Gelo”, na Ópera no ano passado? A mesma coisa
que nesta gruta.
Brian puxou uma alavanca e um barco se apro-
ximou, saindo da escuridão. Sua proa tinha um forma-
to especial para se encaixar em um espaço do portão,
que assim o mantinha firme.
— Todos os passageiros a bordo, agora — dis-
se uma gravação. — Sentem-se imediatamente. Por
favor, não se levantem.
Brian entrou no barco e virou-se para ajudar
Sandra. Ela pôs um pé sobre o assento e então vol-
tou-se desajeitada.
— Vamos rápido — disse Brian.
— É o salto do meu sapato de novo... Ficou
preso em alguma coisa, aqui na plataforma.
Começaram a rir. Brian tentou levantar Sandra

316
para colocá-la no barco, mas não tinha onde se segu-
rar.
— Chute o sapato longe!
— Não dá!
Tentaram tirar o sapato, mas não conseguiram.
A campainha tocou. — Todos os passageiros senta-
dos. Ninguém mais tente entrar a bordo. Mantenham-
se afastados.
A campainha tocou novamente e o portão se
abriu.
Sandra ainda estava rindo, mas Brian sentiu a
água começar a levar o barco. Ele sabia que nada po-
dia fazer a fim de parar o mecanismo. Ele já estava
ficando sem equilíbrio também.
— Volte para trás e tente entrar novamente.
— Não dá! Estou presa!
— Vou tentar te empurrar — disse Brian. —
Vou te dar um empurrão, está bem? Pronta? Um,
dois, três!
Ele empurrou Sandra com toda a força e ela ca-
iu para trás na plataforma. Brian caiu para trás, dentro
do barco, e segurou-se na popa para não cair também.
Por um momento, o barco ficou na mesma altura que
Sandra, que estava a quase um metro de distância, mas
seca. Ela conseguiu se levantar, rindo.
— Divirta-se! — gritou para Brian. O barco se
afastou em direção ao túnel, Brian em pé olhando pa-
ra ela. Logo depois, o barco entrou na gruta e Sandra
se tornou um vulto ao longe, na luz.
— Sente-se, Brian. Divirta-se, meu amor, e to-
me cuidado! Te vejo quando você voltar!
Ela estava ficando cada vez mais longe, agora

317
uma diminuta figura entre as estalactites. Brian per-
maneceu em pé, olhando, e lentamente retirou sua
mão do prego que estava solto no canto da popa.
Quando se agarrou à popa, ele não havia sentido o
prego pontudo cortando a parte interna de seu pole-
gar, mas agora o corte latejava, e certamente ficaria
uma cicatriz no local. O barco balançou suavemente
em direção ao túnel.

* **

ALAN GARNER ganhou do The Times o títu-


lo de “O Mago de Cheshire” após a publicação de sua
série de romances intitulada “Alderley Edge”, baseada
nas histórias do folclore de Cheshire, no interior da
Inglaterra, sobre o Mago de Alderley Edge. Os livros
A pedra encantada de Brisingamen (1960), A lua de Gomra-
th (1963) e Elidor — um mundo ameaçado pela escuridão
(1965) levam os leitores a um mundo de magos, mági-
cos e lendas celtas em volta do conhecido marco Che-
shire. A fascinação de Alan Garner pela magia teve
início ainda em sua infância, quando sua saúde debili-
tada o forçou a ficar de cama por longos períodos e
ele, então, adorava ficar sonhando com mundos en-
cantados. Após se formar em literatura clássica em
Oxford, Garner começou a escrever contos mesclan-
do o mundo real atual com mitos antigos. Na verdade,
o autor disse certa vez que nunca inventava histórias,
mas as “encontrava” nos cenários e artefatos da histó-
ria antiga. Desde a publicação da trilogia de Alderley
sobre as aventuras de Colin e Susan e o grande mago,
Cadellin Silverbrow, para evitar a todo custo que cen-

318
to e quarenta heróicos cavaleiros fossem acordados de
seu sono eterno, a reputação de Alan Garner firmou-
se mais e mais com a publicação de diversas outras
obras de ficção, incluindo A maldição da coruja (1967) e
Red Shift, publicado em 1973, sem contanto nos es-
quecermos de várias outras coleções de fantásticas
histórias de fadas. Alan sempre fez questão de escre-
ver para leitores com idades entre dez e dezoito anos
que, em sua opinião, são os leitores mais importantes
e constituem o verdadeiro público de livros, pois, se-
gundo ele, “poucos leitores envolvem-se tanto com a
leitura como os jovens”. Esta opinião também é
compartilhada por Philip Pullman, e eu, pessoalmente,
espero ter sido o objetivo alcançado por esta coletâ-
nea de contos.

319
AGRADECIMENTOS

O organizador desta coletânea e a Editora Ber-


trand agradecem aos seguintes autores, editores e a-
gentes pela gentil autorização para a inclusão das se-
guintes histórias nesta coletânea:
“O Show de Mágicas do Dr. Cadaverezzi”, do
original Doctor Cadaverezzi ‘s Magic Show, de Philip Pul-
lman, extraído de Count Karlstein, publicado pela Dou-
bleday. Reimpresso mediante autorização da Random
House Group Ltd.
“O Mago de Karakosk”, do original The Magici-
an of Karakosk, de Peter S. Beagle, extraído de The Ma-
gician of Karakosk, publicado pela Souvenir Press e re-
impresso mediante sua autorização.
“Elfino e Doninha”, do original Elphenor and
Weasel, de Sylvia Townsend Warner, extraído de King-
doms of Elphin, publicado por Chatto & Windus. Re-
impresso mediante autorização da The Random Hou-
se Group Ltd.
“A Regra dos Nomes”, do original The Rulê of
Names, de Úrsula K. Le Guin. Copyright © 1964, 1992,
de Úrsula K. Le Guin. Publicado originalmente em
Fantastic; extraído de The Wind’s Twelve Quarters; reim-
presso mediante autorização da autora e de seus agen-
tes da Virginia Kidd Agency Inc.
“A Loja de Mágicas”, do original The Magic
Shop, de H. G. Wells. Publicado mediante autorização
de A. P Watt Ltd., representantes dos executores lite-
rários do espólio de H. G. Wells.
“A Fórmula Rato-Transformadora n°. 86”, do

320
original The Magic Child-Killer, de Roald Dahl, extraído
de The Witches, publicado por Jonathan Cape Ltd. e
Penguin Books Ltd. Reimpresso mediante autorização
de David Higham Associates Ltd.
“A Feiticeira de Abril”, do original The April
Witch, de Ray Bradbury, extraído de The Golden Apples
of the Sun, publicado por Rupert Hart-Davis. Reim-
presso mediante autorização de Abner Stein.
“Tia Magi, Supermodelo”, do original Ms Wiz
Supermodel, de Terence Blacker, publicado pela Mac-
millan. Reimpresso mediante autorização de Macmil-
lan Children’s Books.
“Por um Passe de Mágica”, do original Works
Like Magic, de Jacqueline Wilson, extraído de Vídeo
Rose, publicado por Blackie Children’s Books. Reim-
presso mediante autorização de David Higham Asso-
ciates Ltd.
“Fiquem à Vontade, Amigos!”, do original Feel
Free, de Alan Garner, Copyright © 1968, extraído de
Ghostly Experiences, publicado pela Armada Lion Bo-
oks, HarperCollins. Reimpresso mediante autorização
de Sheil Land Associates Ltd.
Nossos agradecimentos especiais a Philip Pull-
man, Ray Bradbury, Catherine Trippett e aos funcio-
nários do British Museum e da London Library por
sua contribuição na compilação desta antologia.

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Digitalização/Revisão: Yuna

TOCA DIGITAL

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