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© 1989 – Antônio Vera Ramirez

“Celebraremos tu asesinato”
Tradução Adriana M F Avelar
Ilustração de Benicio
® 551110
® 551201
Em Macapinchá, uma aldeia no
pequeno país chamado Perucuador (país
imaginado pelo autor), houve um brutal
assassinato coletivo daqueles que,
infelizmente, não são estranhos na
realidade. Estes são os fatos: um grupo
chamado Los Indios Libertadores
arrasou a aldeia, sem respeitar vidas ou
propriedades de qualquer tipo; como eles
dizem: não deixaram pedra sobre pedra...
nem cabeça sobre cabeça. Cinquenta
pessoas, contando mulheres, crianças e
idosos, foram brutalmente imoladas sem
piedade alguma.
CAPÍTULO UM
Na grande tela de vídeo apareceram cenas filmadas com
uma clareza assustadora, com inegável profissionalismo. Os
eventos que estavam acontecendo na tela ofereciam tal
qualidade de imagem, som, verismo total, que o conjunto
merecia, sem dúvida, um prêmio cinematográfico.
Especialmente porque tudo estava acontecendo durante a
noite.
Mas esses detalhes não importavam agora.
Agora importavam os fatos, as cenas de violência e morte
que se sucediam como um pesadelo terrível. Na realidade, o
fato concreto que estava sendo visto na tela era o que só
pode ser definido como um massacre.
Um grupo de comandos, sem dúvida, bem treinados
tomaram de assalto aquela pequena aldeia nos Andes, e
estava cometendo uma autentica chacina.
— Mas... onde você conseguiu esse vídeo? — foi ouvida
a voz feminina na semiescuridão da sala.
— Espere — disse a voz de um homem. — A “diversão”
ainda não acabou.
Em efeito.
O massacre continuou.
Os homens que compunham o comando se destacavam.
Todos eram altos, fortes e atléticos. Não havia um só com
estatura inferior a um metro oitenta, o que contrastou com as
vítimas do abate, as famílias dos índios andinos que estavam
sendo pulverizados, e cujos gritos de dor, medo e agonia
foram ouvidos com clareza surpreendente entre os disparos o
estrondo das bombas e o rugido do fogo. Grandes plumas de
fumaça negra subiam para o céu em formas sinuosas.
Todos os componentes do comando usavam uniforme de
campanha, todos ousavam capacetes, o rosto sujo e nas mãos
uma metralhadora disparando um modo simplesmente
criminoso contra homens, mulheres e crianças.
Era como se uma manada de elefantes passasse por um
campo semeado.
Tudo foi destruído.
Quando o último membro do comando se voltou para
olhar o trabalho que haviam feito, notou que não havia
ninguém vivo, ou pelo menos parecia. As cabanas caíram
despedaçadas pelo fogo, aquelas com paredes de adobe
foram derrubadas com granadas de mão.
O pequeno lugar tornara-se um inferno e um cemitério ao
mesmo tempo.
O membro do comando que havia voltado para
contemplar a cena avistou, no centro da aldeia, um homem
que estava se levantando, tropeçando. Sem dúvida, o pobre
homem nem percebeu o que estava fazendo, porque, se
estivesse plenamente consciente, teria ficado deitado no
chão, fingindo estar morto.
Mas ele estava vivo e, embora atordoado e sangrando, o
instinto o incitou a ficar de pé. Esse estranho instinto
humano.
Ele conseguiu manter-se de pé, mas seria melhor não ter
tido sucesso, porque não teria acontecido o que aconteceu: o
membro do comando que se virou para contemplar a cena, o
viu.
Aproximou rapidamente dele, e, com o facão que
empunhou de sua bainha, degolou o infeliz aldeão com um
único e brutal golpe.
Então aquele mercenário olhou para a câmera e sorriu.
Ele sorriu divertido e orgulhoso, contente e feliz. Ele sorriu
como a criança que acabou de fazer uma tarefa da escola e a
apresenta à professora dizendo:
— Ficou muito boa? Eu fiz direitinho, senhora?
Seu rosto borrado e sorridente, características sólidas e
viris, permaneceu três segundos com o olhar fixo na tela. Já
era tempo suficiente para que na parte da frente do capacete
a inscrição Chief Unit pudesse ser vista, em letras brancas.
Então o Chefe da Unidade limpou o facão na roupa do
homem recém-abatido, guardou-o na bainha e apressou-se
em seguir os companheiros, desaparecendo por sua vez.
Atrás havia fogo e morte.
A câmera estava atravessando a cena do crime múltiplo,
sem pressa, oferecendo todos os tipos de detalhes macabros.
Finalmente, enfocou a lua, que estava completamente
redonda no céu.
A iluminação tão intensa que até então desaparecia.
Foi só a noite.
A noite, a lua, as cinquenta pessoas mortas de uma
maneira incrível. Finalmente, a tela mostrava apenas a
negritude do nada.
Quase imediatamente as luzes se acenderam na sala onde
o vídeo havia sido projetado em uma tela grande. Havia
vários homens nela, alguns muito pálidos, ainda petrificados.
Um deles suspirou. Outro passou um lenço sobre a testa,
úmida de suor frio.
Finalmente, todos olharam para a última fileira, onde o
homem e a mulher estavam sentados um ao lado do outro. O
homem era o Mr. Cavanagh, o chefe do Grupo de Ação
Global da CIA. A mulher sentada ao lado dele era Brigitte
Montfort, a agente Baby, a grande carta que a CIA sempre
usou quando algum evento mundial estava fora do comum
ou simplesmente escapava das possibilidades normais.
Brigitte acendeu um cigarro, passou alguns segundos
fumando em silêncio e finalmente olhou para Cavanagh.
— Pensando bem — disse ela, calmamente, — deixe-me
supor que é algum tipo de piada.
— Não é brincadeira — disse Cavanagh.
— Ou seja, que as imagens que acabamos de ver
correspondem a uma realidade que aconteceu com alguns
dos seres humanos que vivem no planeta Terra.
— Assim é — rosnou Cavanagh. — Como você vai
entender, antes de chamá-la, eu me certifiquei de que não era
o que você disse, uma piada... que certamente não teria graça
alguma.
— Menos graça ainda por se tratar de uma realidade.
— Em efeito. Bem... é assim que as coisas são.
— Onde isso aconteceu? Eu situo a ação em algum lugar
nos Andes, já que as vítimas são, sem dúvida, índios
andinos, mas não consigo precisar exatamente em que país
isso aconteceu.
— No Perucuador, esse pequeno país localizado entre o
Peru e o Equador, formado com os territórios que até
recentemente estavam em litígio entre esses dois países,
porque ambos os queriam; finalmente, ambas as parcelas do
território receberam independência e formaram uma nova
nação.
— Sim. Que coisa linda, certo?
— A que se refere?
— Para esse novo país. Você e eu sabemos que é mais
uma das manobras perversas dos Estados Unidos. Durante
anos, nosso governo fomentou as tensões entre o Peru e o
Equador em relação a esses territórios. Finalmente dando-
lhes a imagem de bonzinhos, e para evitar que Peru e
Equador se atracasse em uma guerra absurda sobre algumas
montanhas, intervimos sabiamente e que obtivemos, com
esses territórios em litígio, criar um novo estado sul-
americano... que não é mais do que uma filial dos Estados
Unidos.
— Custou-nos milhões de dólares, esse assunto — sorriu
Cavanagh sombriamente.
— Qualquer intervenção na América do Sul é boa,
porque todos sabemos que é o continente do futuro. Mas de
qualquer maneira, vamos deixar isso e vamos falar sobre
esse massacre. Onde exatamente aconteceu?
— A aldeia é chamada Macapinchá, e é no interior, isto é,
longe do mar e quase cinco mil metros de altura. Não há
nada lá, exceto neve e algumas chamas. Esses índios viviam
de quatro campos semeados e da carne das lhamas. Isso é
tudo. Bem, além de um pouco de coca, claro.
— A que chama “um pouco” de coca?
— A nada. Para consumo local apenas.
— Ou seja, que em Macapinchá havia apenas pessoas.
— Sim. Somente três sobreviventes foram encontrados.
Brigitte olhou vivamente para Cavanagh.
— Eu pensei que não havia ninguém vivo!
Deixaram uma mulher e duas crianças, dentro de uma das
casas de adobe que não podiam ser queimadas ou terminar
de ser demolida. Os integrantes do comando do assassino
não se deram conta. Coisas que acontecem. Pura sorte.
Enquanto Brigitte e Cavanagh conversavam, os outros
que assistiam à projeção de vídeo aproximavam-se deles,
sentando-se mais perto, até formarem um grupo apertado.
Havia três especialistas em mídia audiovisual, dois chefes
de grupos analíticos, três diretores de departamento e o vice-
diretor geral da CIA.
O diretor não estava presente pela simples razão de estar
longe de Washington e não ter conseguido viajar para
Langley, para a CIA Central, onde a reunião estava
acontecendo.
— E onde estão esses três sobreviventes?
— Em Nueva Andina, a capital do Perucuador. No
Hospital Geral Nacional. Devidamente protegido por tropas
do exército, é claro.
— Com que finalidade? — se surpreendeu Brigitte.
— Bem, teme-se que o comando assassino decida matar
aqueles três sobreviventes. Poderiam ter visto ou ouvido algo
que não interessa ao comando.
— Pode ser — admitiu a divina espiã, — mas se os
desejos do comando fossem permanecer anônimos, eles não
teriam nos enviado este videoteipe. É claro que eles podem
ter removido as possíveis cenas realmente embaraçosas antes
de enviá-las para nós.
— Sim, é razoável. Mas apenas por caso, o exército de
Perugia está protegendo essas três pessoas.
— Não se perde nada com isso. Se sabe ou suspeita de
alguma razão pela qual essa aldeia foi arrasada?
— Aparentemente, é simplesmente uma demonstração de
força e poder, um... aviso de coisas para continuar
acontecendo em Perucuador se o presidente Juan Lorenzo
Salvatierra não concordar com as reivindicações do
comando, que, aliás, tomou o nome de Los Indios
Libertadores.
— Os Índios Libertadores? — pasmou Brigitte. — Não
havia um único índio andino como parte desse comando!
Todos os seus membros eram da raça não andina: talvez
sejam sul-americanos, não direi que não, mas tenho mais
como americanos ou europeus. Mercenários, em uma
palavra.
— Certamente. Mas, como podemos deduzir, estes
mercenários estariam a serviço dos Índios Libertadores, ou
seja, um grupo de pessoas de Perucuador, que têm certas
intenções ou projetos. E eles não precisam ser índios, mesmo
que usem esse nome.
— Mas se eles se chamam de Libertadores, eles querem
libertar algo... O que é que pode ser libertado em
Perucuador?
— Aparentemente, absolutamente nada. Já foi libertado
ao ser organizado como um novo país. Nada se pode
pretender mais. Presidente Salvatierra foi eleito em massa,
tudo está normal; não é um país rico, não tem inimigos...
Maldito seja, não entendo que alguém sinta o menor
interesse por estas montanhas, onde, hoje, existem apenas
alguns índios e algumas lhamas.
— E condores.
— Eh... Oh, sim, claro, condores.
— Isso, por enquanto — disse ironicamente Brigitte. —
Vamos ver no futuro o que é a verdadeira riqueza ou o
verdadeiro valor do Perucuador... Quais são as pretensões
desse comando assassino, Los Indios Libertadores?
— Para o momento eles querem cinco milhões de dólares
e que o presidente Salvatierra ordene uma parada militar
pelas ruas de Nueva Andina dentro de uma semana. Se estas
ordens de Los Indios Libertadores forem desobedecidas,
Perucuador deve se preparar para receber outro duro golpe.
— Às vezes tenho a impressão de que ainda estou
dormindo no meu apartamento e que tudo isso é um pesadelo
absurdo. Como se pode admitir ou apenas entender que
cinquenta pessoas foram imoladas por cinco miseráveis
milhões de dólares?
— E o desfile militar. O pedido de dinheiro pode ser uma
cortina de fumaça para distrair a atenção das autoridades do
Peru. Quero dizer que talvez o que realmente interesse Los
Indios Libertadores seja o desfile das forças armadas.
— Para bombardeá-los ou matá-los de alguma forma,
uma vez que estejam reunidos em Nueva Andina? Ou talvez
para deixar o quartel desprotegido?
— Poderia ser ambas as coisas.
— Mas vamos ver ... quais são os efetivos totais das
forças armadas do Perucuador?
— Cerca de doze mil homens, entre uma população total
de cerca de dois milhões de pessoas.
— Estamos falando de cifras absolutamente ridículas...
exceto naqueles cinquenta assassinatos. Está certo, no que
me diz respeito, sinto-me motivada o suficiente para intervir.
Eu não gosto de pessoas que matam e que, aparentemente,
poderiam insistir nisso. Isso, deixando de lado, sem dúvida,
planos concretos que poderiam ser muito prejudiciais para
aquele pequeno país... e também para os interesses dos
Estados Unidos, razão real pela qual se recorreu à agente
Baby, não é?
— Foi o próprio Bush quem solicitou sua intervenção.
— George e eu nos conhecemos bem — suspirou
Brigitte, — desde que ele era diretor da CIA. Então ele sabe
muito bem que eu vou intervir, depois de assistir a este
vídeo. A propósito: de onde tiramos isso?
— O vídeo? Nosso homem em Nueva Andina enviou
para nós. Quero dizer, o agente que você chama de Simon-
Nueva Andina. Ele foi entregue em Nueva Andina por um
político peruano de pouca relevância, um Estanislau
Pozuelo. Este Pozuelo, junto com alguns amigos, formaram
um grupo que solicitou nossa ajuda.
— Que tipo de ajuda concretamente?
— Eles estão de acordo em ceder às reivindicações de
Los Indios Libertadores, mas apenas tomando as medidas
apropriadas para liquidar esses criminosos. Nem Pozuelo
nem seus amigos em particular, nem o Perucuador em geral,
estão preparados para uma reação suficientemente forte e
adequadamente organizada. Então, eles entraram em contato
com Simon-Nueva Andina, deram-lhe o vídeo e pediram a
ele que pedisse a Washington que enviasse alguém treinado
para enfrentar e resolver a situação.
— Enfrentar e resolver a situação... Muito razoável. O
que eu não acho que seja razoável é que o vídeo e a
informação provenham do senhor Pozuelo. Você não acha
que deveria ser o Presidente Salvatierra que solicitasse
formalmente a nossa ajuda?
— Foi ameaçado quando o vídeo foi enviado. Enviaram-
lhe uma mensagem em que lhe foi dito claramente que, se
pedisse ajuda a seus senhores, isto é, aos Estados Unidos da
América, ele deveria esperar às terríveis consequências.
— Então há Perucuador quem sabe a verdade. Então, não
é tão difícil entender o que os Índios Libertadores querem
libertar Perucuador: de nós, os Yankees. E eu entendo...
exceto no comportamento criminoso, claro. Bem, então,
devo entender que o senhor Pozuelo e seu grupo recorreram
secretamente a nós.
— Evidentemente. Teremos que fazer as coisas não
apenas bem, mas para que ninguém perceba que as estamos
fazendo. Se Los Indios Libertadores se derem conta da nossa
intervenção, eles podem decidir massacrar outra aldeia, em
represália... ou fazer algo ainda pior.
— Pior do que matar cinquenta pessoas inocentes?
— Eles poderiam matar cinco mil. Ou cinquenta mil.
— Claro. Eu gostaria de tirar algumas cópias dessa fita de
vídeo.
— Vamos gravá-los imediatamente. Quando você planeja
ir para Perucuador?
A agente Baby sorriu encantadoramente.
— Assim que você me der essas duas fitas.
***
Como combinado, Número Um estava esperando por ela
no West Potomac Park, perto do Lincoln Memorial. O céu
tinha um tom cinzento que escurecia as flores cor-de-rosa
das amendoeiras. O rio Potomac parecia chocolate.
Ao vê-la, o Número Um veio encontrá-la e eles se
beijaram suavemente nos lábios.
— Como vê — disse Brigitte, — consegui escapar em
segurança da Central.
— Eu já lhe disse que nunca em minha vida vou colocar
meus pés de volta naquele lugar onde planejaram minha
morte como mais um movimento da CIA. Eu sei muito bem
que atualmente não tenho nada a temer, que tudo pertence ao
passado, mas eu não quero ir para Langley.
— Está bem. Você se divertiu por aqui?
— Estou acostumado com a solidão. Não me divirto nem
fico entediado. Podemos ir à Villa Tartaruga ou tem alguma
coisa para fazer?
— Tenho algo para fazer... e gostaria que você me
acompanhasse. Vamos para o carro.
Brigitte pegou a mão do Número Um, o qual pôs ao
corrente do assunto dos Índios da Libertação enquanto
caminhavam até onde ela havia deixado o carro com o qual
havia ido e retornado da Central da CIA. Quando a
explicação terminou, eles já estavam circulando pela
autopista do aeroporto. O sol voltou a ser visto, timidamente,
quando chegaram ao aeroporto Foster Dulles.
— Em Villa Tartaruga — disse Um, — a primavera é
primavera. Aqui, nem sequer isso é autêntico.
— Você sabe muito bem que há dias nublados em todos
os lugares. Mesmo na zona equatorial, para onde iremos
imediatamente. Isto é, se você quiser me acompanhar.
— Sim
— Bom — riu baixinho Brigitte e beijou-o ao lado de sua
boca. — Eu já sabia que, em um caso assim, você entenderia
perfeitamente que se atrase nossa chegada a casa. Se te
parece bem, podemos viajar juntos para Quito. Então, vamos
ver.
— Entre algumas coisas e outras, tardaremos não menos
de quarenta e oito horas para chegar a Quito.
— Esplêndido. Nem tudo vai ser trabalho: podemos ter
uma lua de mel de quarenta e oito horas. O que você diz
sobre isso?
— Que não está de todo mal... para começar.
CAPÍTULO DOIS
A senhorita Brigitte Montfort chegou ao Aeroporto
Internacional de Nova Andina, cinquenta e duas horas mais
tarde. Fez isso abertamente, como uma jornalista disposta a
escrever um relatório sobre Perucuador e, ao mesmo tempo,
tirar umas férias curtas.
Foi no meio da tarde.
Apenas meia hora depois, ela foi instalada no Hotel
Banderas, de moderna e exuberante construção e sua
amplíssima entrada, onde hasteavam, em tamanho reduzido,
as bandeiras de todos os países americanos, e no centro, em
tamanho maior, a de Perucuador. Entre evidente boa
disposição da gerência do hotel para todos os americanos, e
simpatia pessoal da viajante norte-americana, que falava
espanhol com toda a perfeição, a senhorita Montfort
acomodou-se no hotel como uma convidada de destaque,
como uma autêntica VIP1, ao qual uma das suítes especiais
foi designada.
Dispunha de dois quartos com banheiro, sala de visitas e
escritório privado, com vista para Avenida da Independência
(nome que lhe pareceu nada original) por um lado e os altos
picos dos Andes, por outro. O sol da tarde equatorial caía
quase a prumo sobre os distantes picos nevados.
A gerência do hotel obsequiou à famosa jornalista com
flores e uma linda cesta de frutas. Tudo foi amigável. Parecia
que em Perucuador ninguém ouvidora falar sobre a tragédia
que ocorreu alguns dias antes em uma vila remota chamada
Macapinchá.

1
VIP (da expressão inglesa Very Important Person tradução literal para
"pessoa muito importante"), é uma sigla que designa pessoas importantes,
influentes, de grande destaque na sociedade onde vive.
Quando se viu sozinha, Brigitte recorreu ao rádio de
bolso, que fora previamente sintonizado na onda da área.
— O que? — respondeu a voz de um homem em
espanhol. — Olá
— Simon?
— Graças a Deus que você chegou! — exclamou seu
interlocutor, agora em inglês. — Eles estão me encurralando!
— Quem?
— Esse fodido do Pozuelo e seu grupo. Bem, é
compreensível... Essa pobre gente está desesperada. Se
aproxima o dia em que devem fazer desfilar as tropas, e não
sabem o que fazer.
— Como eles não sabem o que fazer? — surpreendeu-se
a divina espiã. — Pois está bem claro: permitir que o
presidente Salvatierra obedeça as instruções de Los Indios
Libertadores, e em todas as vezes dar a impressão de que
haverá oposição. A reação do senhor Pozuelo e seu grupo
não é secreta?
— Sim... Mas eles esperavam que fosse resolver o
problema antes de chegar o dia do desfile. Eles temem
alguma catástrofe... E faltam apenas três dias.
— A esperança nunca deve ser perdida. As tropas estão
se preparando para o desfile?
— Sim... Sim.
— Os cinco milhões de dólares foram pagos?
— Claro.
— Pois então não se preocupe mais, Simon. Tome
cuidado para marcar uma reunião para esta noite...
secretamente, naturalmente, com o senhor Pozuelo e seu
grupo. Pode conseguir?
— Não creio que haja algum problema.
— Essas pessoas sabem que o agente Baby intervém no
assunto?
— Não contei ainda. Eu lhes disse que a Central estava
tomando suas medidas e que nomearia o pessoal certo, mas
eu não mencionei seu nome.
— Agiu bem. Ligue para mim quando tiver concluído
essa reunião secreta com o grupo do senhor Pozuelo.
***
O carro parou em frente ao pequeno chalé, cuja
iluminação era bastante escassa. A luz da lua minguante, que
parecia congelar nos picos nevados, era muito mais intensa,
e produzia flashes espelhados nos telhados de dois carros
estacionados em um dos lados da casa.
Ao sair do carro, Baby sentiu um sopro de frio que a
sacudiu. Simon-Nueva Andina entregou-lhe um casaco de
pele de lhama, sorrindo.
— Eu lhe disse que estaria com frio. Esta não é a costa,
sabe?
— Estou ciente disso, querido. Mas gostaria de ver algum
condor.
— Não é fácil vê-los. Você quer esperar aqui por um
momento? Vou me certificar de que tudo está em ordem,
porque me surpreende que eles não saiam para nos receber...
Exatamente nesse momento, a porta da cabana foi aberta
e a sombra de um homem foi projetada para o exterior, ao
mesmo tempo em que sua voz:
— Davidson?
A espiã franziu a testa e olhou para o companheiro, que
deu de ombros com um gesto de resignação. Não havia
necessidade de se preocupar em demasia. Afinal, se
comunicava com ele, era porque o conhecia. E nem todo
mundo é tão cauteloso e discreto quanto a agente Baby, que
preferia ignorar nomes.
— Sou eu, senhor Pozuelo — disse Simon. — Tudo está
bem.
Brigitte parou de olhar para o homem da CIA em Nova
Andina: moreno, não muito alto, de olhos escuros... Ele
poderia se passar por sul-americano, embora não por índio
andino, certamente. Quanto a ela, naquele momento, também
parecia uma sul-americana com olhos negros e não muito
graciosa, devido às lentes de contato especiais e aos
enchimentos que deformavam um pouco, mas de forma
suficiente, suas características. Ninguém identificaria a
morena de olhos escuros com a elegante Miss Brigitte
Montfort de olhos azuis como o céu.
Eles caminharam até a casa. O senhor Pozuelo lhes deu o
ingresso. Ele olhava Baby entre perplexo e irritado, mas não
disse nada. Fechou a porta quando os dois entraram e olhou
interrogativamente para Simon, que moveu o queixo na
direção de Brigitte.
— Ela é a pessoa — disse ele.
— Que pessoa? — perguntou Pozuelo.
— A pessoa que Washington enviou para resolver o
problema.
— Como vai você, senhor Pozuelo? — cumprimentou
Brigitte, em espanhol, estendendo a mão.
— Bem — Estanislao Pozuelo parecia aturdido. — Ei,
isso deve ser uma piada, hein? Esperávamos uma ajuda
eficaz e rápida...
— Senhor Pozuelo — interrompeu Simon, — sugiro que
não diga mais nada. Quanto menos você falar agora, menos
tolices terá para se arrepender depois. Acredite em mim:
feche sua boca.
Pozuelo não apenas fechou a boca, mas pressionou os
lábios. Na porta da pequena sala, que dava para o pequeno
corredor, dois outros homens apareceram.
Um deles era curto e grosso, com um tórax largo e, no
conjunto, características inconfundíveis de um índio andino
quase puro. Pozuelo apresentou-o como Luciano Sánchez. O
outro, de estatura mediana e aparência comum, mais do que
poderia ser, chamava-se Críspulo Martos.
— Venha, você conhecerá o último do grupo — disse
Pozuelo, apontando para a sala de estar.
Brigitte assentiu. Por sua parte, Pozuelo não tinha
absolutamente nada de especial. Ele era muito careca, de
aspecto insignificante, vestido com grande discrição; apenas
seus olhos, negros e vivos, expressavam um notável
dinamismo e considerável inteligência. Ele devia ter menos
de cinquenta anos, o que o tornou o mais velho do grupo.
O último membro deste era um sujeito barbudo e cheio de
pelos, gordinho até o impossível, e que tinha que fazer um
esforço visível para se levantar quando Pozuelo o apresentou
à espiã americana. Seu nome era Senén Ologaray, e não
podia ser mais evidente que ele amava a vida e todos os seus
prazeres. Especialmente, sem a menor dúvida, a de boa e
abundante comida. Mas tudo poderia ser perdoado (mesmo o
pequeno olhar libidinoso que ele dirigiu a Baby) graças à sua
cara de boa pessoa, à sua expressão de menino bom e
carinhoso.
— Você quer beber um pouco de pisco? — ofereceu ele.
— Eu agradeço — sorriu Baby.
Ela se sentou em uma poltrona. Estava perfeitamente
ciente de que esses quatro homens estavam desapontados,
mas simplesmente era um problema deles, não dela. Já
sairiam de seu erro.
Ologaray serviu-lhe pisco com limão em um copo e
sentou-se diante dela, recriando-se sem dissimulação em sua
contemplação. Baby bebeu um gole de pisco.
— Como devemos chama-la? — perguntou Ologaray.
— Você pode me chamar de Persona — sorriu a espiã.
— Bom. Vamos ver... isso... quero dizer, você veio como
um observadora especial, ou...
— Senhor Ologaray, vim resolver seus problemas, não
observá-los. Quando dentro de alguns dias eu deixo
Perucuador tudo estará resolvido. Eu me expliquei?
— Sem a menor dúvida — disse Pozuelo, — mas,
francamente, estamos um pouco... desorientados. O que você
planeja fazer... e o que você pode fazer?
— Vamos desenrolar esse assunto com o mínimo de
ordem — disse Baby. — Antes de tudo, eu entendo que o
Presidente Salvatierra não está ciente desta reação de vocês
contra as demandas de Los Indios Libertadores. Isso é
assim?
— Sim. Nós preferimos que ele aja com sinceridade em
seus negócios com o Los Indios Libertadores. Quero dizer,
se o senhor Salvatierra tivesse que fingir a coisa se
complicaria. Ele é um homem também... também...
— Linear — sugeriu Persona.
— Eu prefiro dizer honesto — murmurou Pozuelo. — Ele
não sabe fingir, não tem malícia.
— Talvez seja por isso que as pessoas o escolheram
maciçamente como o primeiro presidente do Perucuador —
sorriu Persona novamente. — Homens honestos não são
abundantes. De qualquer forma, encontrar um político que
não saiba como fingir é um verdadeiro acontecimento. De
quem foi a ideia de recorrer aos Estados Unidos em busca de
ajuda secreta?
— Minha — disse Pozuelo. — Embora mais tarde me
ocorreu que vocês teriam intervindo de qualquer maneira.
Afinal, têm interesses no Perucuador.
— Sim, mas se tivéssemos intervido abertamente,
teríamos causado duas situações inconvenientes. Primeiro,
que Los Indios Libertadores ficariam furiosos e, portanto,
teriam realizado outra atrocidade como a de Macapinchá.
Dois, que teríamos colocado em evidência nossa verdadeira
posição no Peru. Portanto, nossa intervenção teria que ser,
necessariamente, secreta. A única coisa que você conseguiu
com sua iniciativa, o senhor Pozuelo, foi acelerar o processo
e, certamente, nos proporcionar informações muito boas.
— Boa informação? A única coisa que consegui foi a
cópia em vídeo que entreguei a Davidson. E não pense que
foi fácil conseguirmos essa cópia, porque Salvatierra está
disposto a fazer qualquer coisa para evitar outra ação como a
de Macapinchá.
— De qualquer forma — interveio Luciano Sanchez, —
não acho que o vídeo seja “boa informação”.
— Claro que sim — disse gentilmente Persona. —
Através dele, obteremos pistas sucessivas. Por exemplo, é
evidente que para filmar tudo o que aconteceu naquela noite
em Macapinchá, a aldeia teve que ser adequadamente
iluminada. E não com lanternas. Eu quero dizer que a minha
impressão é que uma iluminação completa e perfeita foi
instalada em toda a vila, bem estudada por alguém com
conhecimento de tecnologia de iluminação. Digamos que a
iluminação tivesse que ser a mesma que teria sido usada para
gravar um filme. Estão de acordo?
— Sim, claro.
— E isso não poderia ser feito sem que os habitantes da
aldeia percebessem.
— Você quer dizer que eles foram enganados?
— Obviamente. Inclino-me a acreditar que eles foram
informados de que estavam indo para fazer um filme, e que
os habitantes de Macapinchá deveriam aparecer em algumas
cenas, é claro que devidamente recompensados que isso deve
lhes ter parecido um maná do céu. Também podiam dizer-
lhes que iam filmar um documentário patriótico, ou apenas
um noticiário... Qualquer coisa. Por isso, pergunto: o que
você diz sobre a possível indústria cinematográfica do
Perucuador? Alguma produtora está em condições de
enfrentar este trabalho? Talvez um produtor estrangeiro
tenha vindo?
— Por ora — murmurou Pozuelo, — a indústria
cinematográfica de Perucuador é completamente nula.
— Algo assim. Mas... o que eles me dizem sobre a
televisão?
— Ah, a televisão nós temos. Apenas um canal, por
enquanto, mas logo teremos mais. O canal tem o nome de
TeVePer, mas não há a menor notícia de que ninguém da
estação esteve em Macapinchá naquela noite... nem nunca.
Teria sido conhecido.
— Eu pensei assim. Portanto, toda a equipe de filmagem
teve que vir do exterior, tanto da equipe quanto do material.
Você está em condições de pedir e desenvolver uma
investigação a esse respeito?
— Bem, podemos acessar os registros de entrada no país
desse tipo de material e pessoal...
— Não, não, senhor Pozuelo. Esse pessoal e esse material
não entraram legalmente no Perucuador. Quero dizer uma
investigação longe dos sistemas oficiais. Podem fazer isso?
— Receio que não — Estanislao Pozuelo começou a
parecer desconfortável.
— Então, vamos cuidar disso. Vamos falar agora sobre os
três sobreviventes que são cuidados e vigiados no National
General Hospital. Em que estado eles estão?
— Eles estão evoluindo satisfatoriamente — interveio
Críspulo Martos. — Parece certo que os três preservarão a
vida.
— Eles fizeram alguma declaração de alguma forma?
— No momento, não.
— Então, devemos tentar obter uma versão pessoal do
que aconteceu e como isso aconteceu.
— Eu não sei se você está ciente de que é uma mulher e
dois meninos.
— A mulher devia estar tão assustada que, sem dúvida,
seria incapaz de perceber detalhes. As crianças são outra
coisa, elas sempre olham para tudo. Você acha que eu teria
problemas para chegar até eles?
— Todo do mundo. As ordens são muito rigorosas a esse
respeito: ninguém além do capitão Teófilo Andrade e sua
companhia composta por cento e vinte soldados, que
realizam a guarda no hospital em turnos rotativos, podem se
aproximar da enfermaria onde estão internados.
— O capitão Andrade tem alguma coisa especial sobre
isso? Quero dizer: por que eles o escolheram para essa
tarefa?
— Bem, parece que é a pessoa escolhida para iniciar o
futuro Serviço Secreto Perucuador, então se aproveitou a
oportunidade para colocá-lo em teste e, finalmente, começar
a estruturar esse Serviço Secreto.
— Muito interessante. E quanto a vocês quatro?
Os personagens olhavam para Persona sem entender.
— Nós quatro? — Murmurou finalmente Pozuelo. — O
que quer dizer?
— Eu pergunto o que vocês quatro são na vida política,
militar ou social do Perucuador.
— Ah...! Sim. Bem, vamos ver... Luciano é o secretário
de Assuntos Internos; Críspulo é um componente do Corpo
de Financiamento; Senén dirige a Academia de Artes e eu
sou subsecretário no Ministério das Relações Exteriores.
Persona assentiu e olhou interrogativamente para Simon-
Nova Andina, que mostrava sinais visíveis de desconforto.
— Bem — murmurou ele, — digamos que, de certo
modo, eles pertencem à classe dominante do país.
— Isso está muito bem expresso! — riu Senén Ologaray.
— Vamos, Davidson, vamos parar com bobagens. Olha
senhorita Persona, nós quatro não somos ninguém no
Perucuador, entendeu? Quero dizer, além de quatro
pequenos políticos de pouca importância que estão dispostos
a fazer qualquer coisa para que ninguém chegue aqui para
tocar nossos narizes ou para prejudicar nosso país de
qualquer forma. Não sei se me expressei tão bem quanto
Davidson.
— Não se expressou mal — sorriu mais uma vez Baby.
— Nós — disse Pozuelo, que estava lívido, — nunca
pretendíamos ser grandes personagens. A única coisa que
pretendemos...
— Eu já entendi muito bem o que você quer, senhor
Pozuelo. Muito bom esse pisco.
— Eu vou lhe servir outro copo? — ofereceu Ologaray.
— Não, obrigado. Bem, acho que não podemos fazer
mais nada, nesta primeira reunião...
— Na verdade, não fizemos nada — murmurou Críspulo
Martos.
— Eu acho que sim — Persona olhou para ele. — Nós
nos conhecemos, o que não é pouca coisa. A esse respeito,
gostaria de estabelecer uma condição, que é essencial para
que eu me sinta calma e confiante de que tudo funcionará do
meu agrado.
— O que é essa condição?
— Se, em qualquer lugar e ocasião, qualquer que seja as
circunstâncias, se alguém recorrer a vocês se apresentando
com o nome de Tortuga, devem obedecê-lo sem hesitação ou
argumento, o que quer que seja que essa pessoa indique ou
ordene. Podem se comprometer com isso?
— Claro. É fácil entender que essa pessoa goza de sua
absoluta confiança, por isso seguiremos suas instruções.
— Muito agradecida. Têm alguma pergunta a fazer ou
querem dizer algo que considerem útil?
— Não podemos dizer nada que você ainda não saiba —
disse Pozuelo. — Mas gostaríamos que você correspondesse
à nossa franqueza, dizendo-nos quem... ou o que é.
— Você quer dizer que quer saber da minha importância
na engrenagem dos Estados Unidos?
— Francamente, sim.
Persona assentiu com um gesto gentil.
— Vamos dizer desta maneira — explicou. — Se eu
sugerisse ao presidente dos Estados Unidos que o
Perucuador teria de ser invadido, em vinte e quatro horas seu
país estaria sob nossa bota militar; se, ao contrário, valer a
pena apoiá-los em sua independência e em seu futuro, dentro
de um ano Perucuador seria o país proporcionalmente mais
rico da América Latina. Isso responde a sua pergunta, Sr.
Pozuelo?
— Sem a menor dúvida. Obrigado
— Alguma coisa mais?
— Não, não
— Nesse caso, até breve, senhores. Lhes importa que
meu parceiro e eu fiquemos aqui mais alguns minutos?
— Claro que não.
Os quatro personagens de pouca monta se despediram de
Persona e Davidson e saíram de casa. Em seguida, Baby e
Simon-Nova Andina ouviram o zumbido dos motores
quando foram iniciados. As luzes dos dois pares de faróis
passaram pelas janelas. Então, o silêncio.
— Por que quis que fiquemos? — inquiriu Simon-Nova
Andina.
— Eu tenho minhas razões. O que você sabe sobre o
capitão Andrade?
— Teófilo Andrade pode ser mais ou menos interessante
como soldado — sorriu o agente da CIA, — mas tenha
certeza de que, como espião, eu não perderia o sono.
— Então, por que o escolheram para cuidar de organizar
o Serviço Secreto do país?
— Por uma razão muito simples: ele é o menos tolo
daqueles que podem se dispor do cargo.
Baby também sorriu e estava prestes a responder quando
de repente ele ficou imóvel. Seu olhar se dirigiu vivamente
para a janela... e naquele momento a vidraça explodiu em
inúmeros cristais, e o cano de uma metralhadora foi
introduzido pelo buraco, enquanto a voz soava rouca,
ordenando em espanhol:
— Mantenham-se quietos ou lhes destroço a balaços!
CAPÍTULO TRÊS
Baby nem estremeceu. Simon-Nova Andina assustou-se,
enquanto se voltava rapidamente para a janela.
— Não, Simon...! — gritou Baby.
Mas a ordem não se fez ouvidos, ou não pode chegar a
tempo, pois a reação de Simon-Nova Andina foi instintiva,
incontornável. A reação do homem empunhando
metralhadora não foi menos rápida do que a do agente da
CIA: da boca de fogo do cano veio uma breve corrente de
balas, e Simon-Nova Andina uivou, girou duas vezes sobre
si mesmo e caiu violentamente em seu rosto no chão duro e
áspero, deixando no ar um bico de gotas de sangue que
imediatamente caiu ao seu redor...
— Permaneça quieta! — gritou o homem que havia
disparado. — Ou a mesma coisa vai acontecer com você!
Baby conseguiu controlar-se.
Ela olhou para Simon, que jazia imóvel, com uma das
bochechas descansando no chão, os olhos fechados, suas
feições desequilibradas; suas mãos pareciam querer cavar no
asfalto áspero.
Houve um estampido abafado de tiros e a espiã soube que
a fechadura da porta acabara de ser destroçada por uma bala.
Ela ouviu os passos pesados e três homens apareceram no
pequeno quarto. Três atletas altos, jovens, vestidos de preto,
dois deles empunhando metralhadoras e o outro uma pistola.
A espiã americana não teve a menor dúvida, ao vê-los, que
se tratavam de europeus.
Aquele com a arma apontou a arma para Baby,
ordenando-lhe:
— Coloque as mãos na cabeça e não se mova.
A espiã obedeceu. O sujeito da pistola aproximou-se de
onde estava a maleta vermelha com flores azuis
padronizadas, colocou-a no colo de Persona e disse:
— Abra, mas muito devagar, e me dê qualquer arma que
contenha. Você tem alguma documentação?
Baby assentiu.
Abriu a pasta lentamente e tirou um passaporte que
entregou ao homem. Ele pegou e examinou rapidamente. De
imediato, ele olhou espantado para a espiã americana.
— Você é russa? — exclamou ele.
— Sim. Meu nome é Galina Cherkova. Aí diz isso
claramente.
— Mas, então... o que você faz com o agente da CIA? —
Ele balançou a cabeça para Simon.
— Coisas de espionagem. Eu sou da KGB.
O atleta não conseguia sair de sua perplexidade.
Possivelmente para levar tempo, ele perguntou:
— Não portes armas?
— Sim. Uma arma. Mas não está na maleta.
—Onde está?
— Aqui — Baby tocou a coxa esquerda, perto da virilha.
— Vamos ver. Com muito cuidado.
— Pare de me ameaçar. Eu não sou idiota
Ela levantou a saia lentamente, expondo suas belas coxas
que pareciam seda dourada. Arrancou a pistola com o pedaço
de fita adesiva que a segurava na carne e entregou-a ao
atleta, perguntando:
— E quem é você?
— O que você e o norte-americano estão tramando com
aqueles quatro infelizes? — perguntou por sua vez o outro.
— Vamos fazer um acordo — propôs serenamente Galina
Cherkova. — Vocês me dizem quem é e por que estavam
vigiando a CIA, e, em seguida, respondo a todas suas
perguntas.
— Preciosa — sorriu de repente o homem, — você vai
responder a todas as minhas perguntas mesmo que eu não
responda nenhuma das suas.
— Pelo menos, deixe-me ver se posso fazer algo pelo
ianque.
— Espere.
O atleta se aproximou de Simon, virou-o sob o próprio
corpo, usando um pé e se inclinou sobre ele, tomando-lhe a
arma que ele carregava no coldre axilar. Ele então acenou
com a cabeça para Galina Cherkova, que correu para se
ajoelhar ao lado do homem ferido, deixando a pasta ao lado
dele.
O agenda da CIA recebera cinco tiros, um na coxa, dois
do lado esquerdo, um no ombro do mesmo lado, e outros
roçara o pescoço, onde produzira uma estria superficial,
muito complicada. Nenhuma das feridas, por si só, parecia
trazer perigo para a sobrevivência do ferido, mas Baby pegou
algumas compressas da maletinha, e depois de rasgar as
roupas de Simon, tampou como pode as feridas do ombro e
da lateral.
Os três homens observaram em silêncio, sem dúvida
aproveitando para se recuperar da surpresa da intervenção de
um agente soviético da KGB.
Simon-Nova Andina abriu os olhos e encarou o colega
com uma expressão estupefata. Ele revirou os olhos devagar,
viu os três homens e olhou para Baby, que sorriu para ele
ligeiramente.
— Acalme-se, ianque — murmurou ela em inglês. —
Você não vai morrer desta vez.
— Volte para a cadeira — ordenou o atleta com a pistola,
— e responda à minha pergunta: o que você e o ianque estão
tramando?
— É uma aliança provisória simples para troca de
informações. Os espiões costumam fazer essas coisas...
especialmente quando algo nos chama a atenção de uma
maneira especial.
— Por exemplo?
— Por exemplo, o que aconteceu em Macapinchá. Fiz
uma oferta de troca para o ianque e ele disse que poderia
marcar uma reunião com algumas pessoas que talvez
soubessem algo interessante, mesmo que não fossem
importantes. Então nos encontramos aqui com essas pessoas.
— E o que você conseguiu esclarecer?
— Nada. Essas quatro pessoas sabem menos que nós. E
eles estão com muito medo.
— Mas você é russa. Da KGB.
— Eu já te disse. Por que você está tão surpreso?
O homem hesitou. Nem remotamente ocorreu-lhe que a
falsa agente russa que estava sentada diante dele, nem mais
nem menos, estava lendo seus pensamentos com facilidade:
simplesmente, o homem estava entre perplexo e preocupado
com o fato de que a intervenção soviética nesse caso. Este
ainda tinha isso em uma mente vazia... e cada vez mais
preocupado.
— Mas por que a KGB se mete nisso? — insistiu o atleta.
— Não é a KGB que se meteu nisso, sou eu. Estou
trabalhando na América do Sul e meu trabalho é descobrir o
que está acontecendo e por que isso acontece. Então, eu
informo meu gerente de zona, e ele passa a informação para
o chefe do continente, que passa para Moscou... que é onde
eles decidem. Para quem você trabalha? Participaram do
assalto na aldeia de Macapinchá?
O atleta virou-se para um de seus camaradas armado com
uma submetralhadora e falou com ele em alemão, mas não
lhe ocorreu que Galina Cherkova também falava alemão
perfeitamente.
— Vá até o carro, chame e peça instruções específicas,
porque não fomos avisados em nenhum momento da
intervenção russa.
Baby voltou a se sentar na cadeira e acendeu um cigarro.
No oco da janela, o cano da submetralhadora ainda apontava
para a suposta espiã soviética.
— O que realmente propõem com o massacre de
Macapinchá? — perguntou ela.
— Cale-se Não diga outra palavra até que meu parceiro
retorne.
O rosto da espiã tornou-se inescrutável. Ela continuou
fumando, esperando pelo retorno do homem que fora ao
carro para fazer uma ligação no rádio.
***
O homem chegou ao carro, escondido nas sombras longe
não menos de trezentos metros da casa, e abriu a porta
dianteira direita, pronto para tomar o lugar de onde o
pequeno rádio instalado em um compartimento hermético
manipulado.
Ele não teve tempo de terminar de abrir a porta. Dois
braços protegidos pelo jersey negro de uma camisa
apareceram atrás dele, e as mãos também protegidas com
luvas pretas, efetuaram a terrível presa mortífera: enquanto
uma delas segurou o peito mercenário, a outra agarrou-lhe o
queixo e puxou-o com força em direção ao ombro esquerdo.
As vértebras rangeram e o homem soltou um gemido
baixo e morreu.
Número Um arrastou-o para alguns arbustos, onde o
jogou, deixando o cadáver escondido. Então, começou a
voltar para a casa. Distinguir sem problema algum o homem
que ainda estava diante da janela quebrada, apontando com
sua metralhadora para o interior da casa.
Sem qualquer dissimulação, ele se aproximou dele. O
outro deve tê-lo ouvido em um determinado momento, mas,
assim como Número Um esperava, ele ignorou, acreditando
que aquele que se aproximava dele era seu companheiro, que
estava voltando do carro.
Número Um veio atrás dele, ficou de pé ao lado e, com a
mão esquerda, segurou a submetralhadora contra a moldura
da janela.
O mercenário assassino virou a cabeça para ele. A luz do
pequeno quarto, que iluminava seu rosto, revelou seu gesto
de perplexidade, de questionamento. Ele viu aquelas feições
viris desconhecidas, angulares, herméticas e a aparência
negra do melhor espião do mundo.
Isso foi tudo.
No instante seguinte, a navalha atingiu-o no coração,
penetrando na borda do peitoral esquerdo com força
arrepiante. Ele morreu instantaneamente e caiu para trás
como um poste, deixando a submetralhadora encostada na
janela da mão esquerda de Número Um, que imediatamente
ocupou a posição do mercenário, segurando a arma.
Então, ele fez um som que lembrava a música de uma
coruja.
***
O canto da coruja foi perfeitamente ouvido dentro da
sala.
A suposta espiã soviética terminou o cigarro, esmagou-o
num grande cinzeiro de cerâmica e olhou para os dois
homens que a observavam em silêncio.
Deixou o olhar fixo nos olhos claros do homem com a
arma e disse amavelmente:
— Seu parceiro não retornará. Vamos continuar a
conversa: o que você realmente propõe com o massacre de
Macapinchá? Por que você estava vigiando o espião
americano? — apontou para o inconsciente Simon-Nova
Andina.
Os dois homens olharam para ela com perplexidade e
irritação. Finalmente, aquele com a metralhadora franziu a
testa e deu um passo em direção a ela, ameaçadoramente.
— Eu vou colocar o cano da arma no ...
A metralhadora que permanecia visível na janela rugiu
brevemente, enviando uma rajada de balas no mercenário,
que lançou um rugido, foi girando sobre si mesmo rumo à
parede, chocou-se de rosto contra essa, caiu para trás, de cara
para o teto, com os olhos esbugalhados e o corpo tão
caprichosamente salpicado de tinta vermelha.
O mercenário da pistola, o único sobrevivente — por um
momento — do infeliz grupo de assassinos, estava agora
lívido e imóvel. Possivelmente, ele não era muito esperto,
mas não era tão tolo a ponto de não entender que a situação
havia mudado do lado de fora. Ele foi até inteligente o
suficiente para largar a arma.
Baby não prestou atenção nele. Ela voltou a se ajoelhar ao
lado de Simon, tomou o pulso do lado do pescoço e pôs a
mão na testa, que achou frio.
—Você — disse ela mirando o mercenário, — me ajude a
levá-lo para o carro. Com muito cuidado.
O mercenário olhou para a janela, passou a língua pelos
lábios e se dispôs para obedecer a Galina Cherkova. Eles
levaram Simon-Nueva Andina para fora da casa, e o
colocaram no banco de trás.
Como se o mercenário nem existisse, Baby voltou para a
casa. O mercenário virou-se para olhá-la e estremeceu ao ver
o gigante vestido de escuro que, com quatro passos,
apontava a metralhadora para ele. Ao pé da janela, ele viu
seu companheiro, ainda com a faca em seu corpo. O
mercenário sentiu um frio profundo e terrível que o abalou
fortemente. A mera presença daquele estranho gelava o seu
sangue.
Baby voltou da casa, carregando sua pasta e carregando o
pequeno rádio na mão.
— Algo especial, meu amor? — perguntou ele.
— Não.
Ela assentiu, ligou no rádio e, alguns segundos depois, a
voz de um homem saiu:
— Olá É você chefe?
— Não — disse Baby. — Seu chefe está ferido. Encontre
um médico e espere por mim em vinte minutos na Plaza del
Sol. E não discuta comigo, senão farei com que você se
arrependa. Você me entendeu?
— Sim senhora. Meu chefe já me avisou que uma
mulher...
— Faça o que eu te disse — fechou o rádio e olhou para
Um. — Eu te ligo quando o Simon estiver em boas mãos.
Alguns segundos depois, ele estava deixando o lugar, de
volta a Nova Andina.
Número Um aproximou-se mais do mercenário e, sem
mais explicações ou ameaças, aplicou-lhe em testículos
completos um chute bestial que o fulminou como morto.
Agarrou-o pelas roupas em volta do pescoço e arrastou-o
para a casa.
***
— Não é nada que deva nos preocupar — disse o médico.
— Em alguns dias ele estará em perfeitas condições de
recuperação.
— Ótimo — suspirou Baby. — Cuide bem dele e não
comente com ninguém que tem um homem ferido em casa. E
não se preocupe com nenhum tipo de responsabilidade. Isso
de lado, aqui está algum dinheiro para adicionar à sua
poupança para a velhice.
O médico, que não devia ter menos de sessenta e cinco
anos de idade, olhava confuso para o maço de dólares que a
desconhecida lhe entregara. Ele estimou que não houvesse
nada menos que vinte mil dólares em notas de cem dólares.
Ele não tinha economias, e nunca em sua vida vira toda essa
quantia junta. Ele simplesmente teve medo.
— Olha, senhorita...
— Não se assuste. Nós somos da CIA, e você fará muito
bem a partir de agora se concordar em continuar trabalhando
conosco no futuro. Emilio o escolheu, disse que você era um
bom médico e uma pessoa honesta e inteligente. Se você
preferir não colaborar no futuro, nós concordaremos, mas
agora, por favor, mantenha esse dinheiro e cuide do meu
parceiro. Eu conto com isso? Por favor.
O médico ficou alguns segundos olhando nos olhos da
estranha. Finalmente, ele sorriu, nem mesmo ele sabia por
que, e pegou o dinheiro.
— Vá tranquila.
— Obrigado Venha, Emilio.
Emilio Carlos, o colaborador da CIA em Nova Andina,
quase correu para a porta para abri-la para a jovem. Ela o
recolhera no Plaza del Sol pouco antes, ele havia lhe dito
onde deveria se dirigir para chegar à casa do médico, e
agora, sem dúvida, ela ainda precisa de seus serviços... que
parecia estupendo ao índio andina de olhos muito escuros.
Novamente, ambos no carro, Baby perguntou:
— Você conhece o capitão Andrade?
— Eu acho que sim!
— Você sabe onde podemos encontrá-lo agora?
— Sim. Ele está na frente do Hospital Geral, quase
sempre dentro de um grande caminhão em que há homens
armados que atendem a um sistema de comunicação. Uma
unidade móvel.
— Vamos ver. Dirija você.
Emilio Carlos saiu do carro, rodeando-o pela frente,
enquanto Baby mudava de lugar, indo para a direita. O índio
sentou-se ao volante e arrancou. Baby ligou no rádio.
— Sim? — respondeu Número um, de imediato.
— Como estão as coisas aí?
— O sujeito se chamado Karl Ulrichssen e, de fato,
interveio no massacre de Macapinchá, organizado e liderado
por um veterano especialista em África, chamado Hans
Wonberg. Aparentemente há algum lugar nas montanhas, um
lugar onde os homens de Wonberg permanecem à espera de
uma nova ação, mas Ulrichssen não conhece aquele lugar,
porque ele e seus três companheiros foram enviados
diretamente para Nova Andina, esperando para ser usado em
ações especiais. Então, Wonberg chegou com três outros,
que estão em algum lugar da cidade, mas Ulrichssen não
sabe onde, mas supõe que seja um apartamento. Ele e
Wonberg se conheceram em um café chamado Huacapá, e é
ali que Wonberg o instruiu a vir a esta casa...
— Espere um momento. Que quer dizer? Que esses
quatro mercenários não seguiram Simon e eu, como
consequência de Simon estar sob vigilância por ser um
agente da CIA?
— Assim é.
— Ou seja, eles não foram para a casa nos seguindo, mas
foram diretamente para lá.
— Exatamente
— Deus me livre — suspirou Baby. — O que exatamente
Ulrichssen e seus três companheiros tinham que fazer na
casa?
— Atrapalhar as pessoas que se entrevistaram com
Estanislao Pozuelo e seus amigos e arrancar deles o que
exatamente Pozuelo pretende e com que ajuda conta.
— Quer dizer que, somando todos os dados, chegamos à
conclusão de que alguém sabe o que Pozuelo e seus amigos
estão tentando e os traiu.
— O traidor pode até ser do próprio grupo.
— Esses já sabem o que trama Pozuelo e com que ajuda
conta, meu amor.
— Sim. Mas para mim, em questão de jogadas e traições
sujas, não me surpreendo mais.
— Nem eu — suspirou Baby. — Você acha que pode
conseguir algo de Ulrichssen?
— Não sabe mais nada. Ele é apenas um mercenário de
choque.
— Então não nos serve para mais nada. Eu te ligo de
novo.
A espiã fechou o rádio, guardou-o e olhou para Emilio
Carlos, que estava dirigindo como que espantado, com os
olhos bem abertos. Baby apenas sorriu.
No centro de Nova Andina, as luzes cegavam de modo
que o céu estrelado dos Andes não pudesse ser visto.

CAPÍTULO QUATRO
O capitão Teófilo Andrade media um metro e setenta, era
arredondado, sólido, granítico; todo o seu corpo era como
um bloco contendo a força eterna do mundo. Sua cabeça
também era redonda e seus olhos negros pareciam pequenas
bolas. O cabelo, cortado rente, sugeria esportes, treinos duros
e austeridades militares. Deu a impressão de ser um pequeno
rolo compressor que nada conseguia parar.
Exceto por ele mesmo, por sua própria vontade. E foi o
que ele fez naquela noite, e depois das dez horas, quando,
vestido de civil, parou à mesa daquele reservado em um bar
para o qual seu compatriota Emilio Carlos o levara.
A mulher sentada à mesa olhou para ele e sorriu para ele.
— Fico feliz que Emilio Carlos tenha convencido você a
vir a esta reunião, capitão Andrade. Sente-se por favor.
— Quem é você?
— Para o momento você pode me chamar de Persona.
Posso te convidar para champanhe? Ou você prefere o pisco?
— Pisco eu bebo sempre que quero. Champanhe, não, eu
não posso permitir isso.
— Talvez a sua sorte mude a partir de agora.
Baby derramou champanhe no copo que ela preparara
para o andino e ergueu o dela. Andrade fez o mesmo.
— Saúde — murmurou ele.
Ela sorriu. Eles beberam. Então, Andrade observou o
champanhe que restava no copo e terminou em outro gole.
Baby sorriu e voltou a lhe encher o copo.
— Eu tenho um amigo na espionagem francesa — disse a
divina, — que durante anos me envia de Paris todo o
champanhe Dom Perignon que eu preciso. De graça, claro.
— Eu gostaria de ter um amigo assim.
— É compreensível. E talvez possamos fazer algo sobre
isso. Na realidade, tudo depende se você é ou não uma
pessoa honesta e está disposta a progredir na vida e na sua
nova profissão.
— Minha nova profissão?
— De espião. Ou chefe do Serviço Secreto Perucuador,
ainda teórico.
— Onde você conseguiu essa informação?
— Eu vou fazer uma proposta — sorriu gentilmente
Baby: — posso te enviar para uma escola de espionagem,
onde, em seis meses, você aprenderá tanto que, quando
regressar para Perucuador, não haverá aqui absolutamente
ninguém mais qualificado para dirigir o Serviço Secreto...
— Já recebi este tipo de proposta.
— Eu sei. Mas te faria muito mal. - Baby sorriu
novamente. — Meu curso de treinamento seria muito bom,
acredite em mim.
— Suponhamos que aceito. O que você me pediria em
troca?
— Que me acompanhe para visitar os sobreviventes de
Macapinchá.
— Com que finalidade?
— Tentar obter alguma pista daqueles que não aparecem
no vídeo que Los Indios Libertadores enviaram ao presidente
Salvatierra.
— Você viu esse vídeo?! — sobressaltou-se Andrade.
— Obviamente. - a espiã colocou a maleta na mesa,
abriu-a e, do fundo duplo, tirou algumas fotografias que
passou para o militar, cada vez mais espantado. — Estas
fotografias foram tiradas do vídeo. Eles correspondem a
alguns membros do comando assassino que, em um
determinado momento, estavam de frente para as câmeras de
televisão enquanto as cenas eram filmadas. Desse comando
assassino, quatro homens já morreram, dois dos quais são
estes. — Ela apontou para duas fotografias e colocou a ponta
do dedo em uma delas. — Esse se chamava Karl Ulrichssen.
Para os outros três que eliminamos, nem me interessei. Este
outro homem — ele apontou para outra foto — que, como
você pode ver, está inscrito no capacete com as palavras
Unidade Chefe, possivelmente responde ao nome de Hans
Wonberg, e no momento está em Nova Andina
acompanhado por três outros assassinos. Para tentar localizá-
lo, tenho o nome de uma lanchonete onde Ulrichssen usa
para reuniões. Talvez eu vá até lá. De qualquer forma, o que
podemos temer é que ele esteja tramando algum plano para
assassinar esses três sobreviventes. Eu espero que você os
tenha bem protegidos.
Os olhos de Andrade quase saíram do rosto redondo. De
um gole, a segunda taça de champanhe estava terminada.
— O que você faria com esses comandos assassinos se os
encontrasse? — ofegou ele.
Baby colocou o dedo indicador na garganta e fez o gesto
inconfundível de degola com a ponta. Andrade parecia à
beira do colapso.
— Você é ianque? — quase gritou.
— Sim.
— Por todos os santos da América... Você é a agente
Baby?!
— Sim.
— Tinha que começar me dizendo isso! Peça o que quiser
e eu vou fazer! O que quiser!
— Já lhe pedi: ver aqueles sobreviventes.
***
Efetivamente, eram uma mulher e dois meninos.
A mulher tinha cerca de cinquenta anos, a pele enrugada
e pálida, e as tranças negras pareciam de veludo. Seus olhos,
ainda mais negros, estavam fixos na bela visitante que a
acordara há alguns minutos e que agora, sentado em uma
cadeira ao lado de sua cama, esperava. Ao lado dela, o
capitão Andrade, em pé, parecia fazer tremendos esforços
para aumentar sua estatura.
— Sim, eles disseram que iam fazer um filme, e que nós
apareceríamos e nos dariam dinheiro. Eles haviam chegado à
tarde e estavam preparando tudo até o anoitecer. Então eles
disseram que íamos fazer o filme e que todos nós tínhamos
que sair das casas.
— E foi aí que os “soldados” apareceram.
— Sim.
— Mas até então ninguém os tinha visto.
— Ninguém.
— Ou seja, aqueles que prepararam os holofotes e as
câmeras não eram “soldados”. Eles eram outros homens.
— Sim, eles eram outros.
— Mas... eles eram como “soldados”, isto é, muito altos,
loiros e falantes de línguas estrangeiras?
— Sim
— Tem certeza disso?
— Sim. Sim.
— Não havia ninguém que falava espanhol? Não havia
alguém que fosse como você, um andino?
— Não — disse, por fim, a índia andina. — Não me
lembro de nada do que você diz. Eu só vi homens que
primeiro sorriram e colocaram esses dispositivos, e então
outros chegaram e mataram. Eu me escondi quando os
soldados chegaram.
— E as crianças? — perguntou Baby.
— Não sei. Deles não sei.
Era o que Baby temia. Ela fez à mulher um carinhoso
afago e levantou-se. A poucos passos dela, havia uma grande
tela de hospital, que dividia a enorme sala em duas partes.
No outro, os dois filhos dormiam.
Dentro da sala havia dois homens de Andrade, bem
armados e muito atentos. Lá fora, no corredor, havia quatro.
Havia seis nos pequenos jardins do hospital. Ao redor do
hospital havia treze homens a mais, que, além de armas,
tinham dois jipes com os quais circulavam continuamente ao
redor do Hospital Geral Nacional.
O total era de quatro turnos de seis horas com vinte e
cinco homens em cada turno, e o restante das tropas de
Andrade, até cento e cinquenta homens, permanecia em
postos de controle, pronto para intervir a qualquer momento.
Andrade gesticulou para onde as crianças dormiam.
— Eu te acordo também? — ofereceu ele.
— Não, não é mais necessário.
— Como que não? — reagiu Teófilo intrigado. —
Enquanto estávamos vindo para cá, você mesmo disse que as
crianças percebem tudo e talvez...
— Não vale a pena incomodá-los. Eu já me convenci de
que eles os deixaram vivos de propósito.
— O que quer dizer?
— Eles sabem que tudo o que podemos saber sobre o
comando assassino é nada mais ou menos do que aparece no
vídeo. Mas isso não os incomoda, porque quase todos os
homens não são identificáveis, e aqueles que são
identificáveis não poderão dizer nada que realmente
comprometa os Indios Libertadores, assumindo que
capturemos um. Possivelmente, nem o próprio Hans
Wonberg, que liderou o comando, poderia nos dar pistas
úteis.
— Mas... Eu não entendo porque eles deixaram
sobreviventes de propósito... Por que eles fariam isso?
— Para manter ocupado a única pessoa em Perucuador
capaz de encontrar uma pista, investigar e, em geral, pensar
um pouco e lidar com assuntos realmente importantes.
— Que pessoa? — empalideceu Andrade. — Eu?
— Sim
— Quer dizer que, enquanto estou perdendo meu tempo
aqui, com a esperança de que eles ataquem o hospital para
caçar alguém e obter alguma pista... eles estão fazendo ou
conspirando para fazer outra coisa.
— Eu acho que sim.
— Puta que os pariu! Agora mesmo vou levar meus
homens e...!
— Nada disso. Você vai ficar aqui como esteve até agora,
e se alguém, quem quer que seja, perguntar se você recebeu
alguma pista especial através dos sobreviventes, diga que
sim, mas no momento você não pode revelá-lo.
— Mas isso é mentira.
— Capitão Andrade: tudo é mentira na espionagem.
— Sim, certo, mas neste caso é uma mentira que nem
será útil para nós, parece-me. O que eu quero dizer…
Naquele momento, o leve zumbido do pequeno rádio
tocou no peito de Baby.
— Não fique com a cabeça quente — disse a espiã,
tirando o rádio de seu decote. — Sim?
— Estou na cafeteria Huacapá, e você não vai acreditar
quem eu estou vendo.
— Hans Wonberg?
— Não
— Bem, não consigo pensar em mais ninguém.
— É um dos seus quatro amigos da casa, um do grupo de
Pozuelo: Críspulo Martos.
— Eu vou até aí.
Ela fechou o rádio e ficou pensativa, um pouco sombria.
— O que há de errado? — perguntou Andrade.
— Venha comigo — sorriu a espiã mais implacável do
mundo, — você vai receber sua primeira aula de
espionagem.
***
Críspulo Martos ficou atordoado quando viu Baby
aparecer na elegante cafeteria Huacapá na Avenida de la
Libertad, ou seja, o grande centro comercial, financeiro e
social de Nova Andina e, portanto, todo o Perucuador. Ele
demonstrou que ia se levantar, mas ela o impediu com um
gesto, enquanto vinha rapidamente para a mesa e sentava-se
à sua frente.
— Que coincidência — disse Martos. — Eu não esperava
vê-la novamente hoje!
— O acaso não tem nada a ver com essa reunião — disse
Baby. — O que você está fazendo aqui, senhor Martos?
— Estou esperando por Senén... bem, Ologaray, você
sabe.
— Claro. Por que o está esperando aqui? Acaso já não
disse tudo o que tinha a dizer, enquanto eu esperava no
chalé, ou quando voltaram para a cidade?
— É estranho verdade? — Críspulo Martos piscou. — De
fato, enquanto esperávamos por você tivemos uma longa
conversa, mas não quando voltamos, pois regressei no carro
de Estanislao, enquanto Senén levou Luciano em seu carro.
— Por que não usaram um único carro para os quatro?
— Nós pareceu muito aparatoso. Se alguém nos visse
juntos, os quatro, seria um pouco surpreendente. Nós
preferimos dois carros... Eu não entendo o que está
acontecendo.
— A que se refere?
Martos olhou para o relógio, impaciente e preocupado.
— Faz mais de quinze minutos que Senén deveria ter
chegado — murmurou ele.
— Ele te chamou para aqui?
— Sim... Por que você disse que não está aqui
casualmente? O que está acontecendo?
— No grupo de vocês existe um traidor. A certeza de que
isso é verdade e a presença de você aqui me leva a duas
conclusões. Um, talvez Senén Ologaray tenha descoberto
algo sobre isso e queira discutir com você. Dois, que o
traidor é ele e preparou uma armadilha para você.
— Meu Deus, claro que não — ofegou Martos. — Claro
que não! Senén nunca poderia ser um traidor!
— Porque não?
— Porque não... Não faria sentido. Ele, Estanislao,
Luciano e eu somos a base da independência do Perucuador,
os que mais trabalhamos sofridamente e silenciosamente
para obtê-lo, que apoiamos Juan Lorenzo Salvatierra...
Arriscamos nossas vidas um monte de vezes para conseguir
que Perucuador se tornasse um país independente e em paz.
Nossa pequena pátria livre da ganância e brigas entre
Equador e Peru...!
— Se tem tanta certeza, teremos que pensar na outra
possibilidade, ou seja, que Ologaray ter descoberto alguma
coisa e quer se comunicar. Como entrou em contato com
você?
— No telefone... estava muito nervoso. O que é estranho
nele, garanto-lhe. Eu perguntei a ele insistentemente o que
estava acontecendo, mas ele me pediu para vir e esperar aqui
e desligou.
— Ligue para a casa dele daqui — murmurou Baby. — E
diga-lhe que está esperando por ele... E não mencione a
minha presença.
Críspulo Martos levantou-se e foi para o fundo da sala,
onde havia um telefone. Depois de conversar com um dos
garçons, Martos fez a ligação. Ele tentou durante quase um
minuto, evidentemente sem conseguir a comunicação. Então
voltou para a mesa onde Baby estava esperando por ele.
— Ele não responde — murmurou ele. — Ele deve estar
prestes a chegar aqui.
— Seguramente. Enquanto você espera por ele, vou ao
toalete por um momento.
— De acordo.
A espiã entrou alguns segundos depois, no banheiro
feminino, ela se trancou em um de seus compartimentos e
recorreu ao rádio de bolso. Número Um respondeu de
imediato.
— Eu ia ligar para você agora — disse ele. — Um carro
com quatro homens acabou de chegar. Um deles é Wonberg,
isto é, o chefe da unidade que aparece no vídeo.
— Tem certeza? Você pode identificá-lo totalmente?
— Sim. O que o Críspulo Martos faz aí?
Baby começou a explicar rapidamente, mas Um não a
deixou terminar, interrompendo-a:
— Dois dos homens acabaram de sair do carro e se
dirigiram para a cafeteria... Mas eles não têm intenção de
entrar. Pararam na calçada... acendem cigarros, e falam...
Eles estão esperando Martos sair. Eles querem matá-lo.
Nem por um momento, Baby duvidou da afirmação do
Número Um. Se ele dissesse que aqueles dois homens
estavam se preparando para matar, tinha que ser assim, e não
havia mais nada para falar.
— Meu amor, não os perca de vista — sussurrou ela. —
E se algo acontecer procure por Senén Ologaray e peça
explicações sobre suas razões para chamar Martos aqui. Eu
vou procurar tirá-lo daqui para outra saída.
— Gosto disso — concordou Um. — A prudência nunca
é demais.
— Sabia que você concordaria.
— É gracioso aquele homenzinho.
— Que homenzinho?
— Aquele que trouxe você, esse capitão Andrade.
— Por que você acha engraçado?
— Porque ele está dentro do carro com os olhos fixos na
porta da cafeteria e não percebe nada. Ele parece
hipnotizado... ou é um mau espião de cinema barato. Ele não
me viu, o que é desculpável, não viu os quatro que chegaram
no carro, o que tem menos desculpa, nem está interessado
nos dois sujeitos à espera de Martos, o que não tem nenhuma
classe de desculpas.
— Está aprendendo. Eu ofereci um curso gratuito em
nossa organização.
— Bem, que se apresse em ir para a aula.
Sorrindo, Baby cortou a comunicação, guardou o pequeno
rádio e voltou para a sala da cafeteria. Ela ficou surpreso em
não ver Martos na mesa que ambos haviam ocupado. Ao
olhar à volta em sua busca, ela o viu perto da porta de saída.
Um choque frio correu pelas costas da espiã internacional.
— Senhor Martos! — chamou. — Volte aqui!
Críspulo Martos virou a cabeça, hesitou, e então
rapidamente chegou à porta da rua e abriu-a. Baby correu
atrás dele, ignorando as poucas pessoas na cafeteria a essa
hora da noite.
Quando saiu, ao mesmo tempo em que via Martos se
afastando e segurou a pistola, até então presa em sua coxa,
ela viu os dois homens mencionados pelo Número Um,
apontando suas armas para os Andes.
— Martes! — gritou. — Jogue-se ao chão...!
Críspulo Martos virou a cabeça. Brigitte viu os olhos bem
abertos. Além dele, ela viu os flashes dos tiros disparados
pelos dois assassinos com armas equipadas com um
silenciador.
Ela ouviu o grito de Martos e viu-o virar
espetacularmente sobre si mesmo, enquanto precipitava-se
para o chão, deixando respingos de sangue que pareciam
negros à luz das lâmpadas da iluminação...
No mesmo instante em que apontava a arma para os dois
assassinos, Baby tinha plena consciência de que eles estavam
se afastando de Martos e apontando para ela.
Plof, ela disparou com a pequena arma.
Com quase trinta metros, a bala afundou na testa do
assassino, que estava um pouco mais adiantado, e o homem
deu um estranho passo para trás e caiu sentado no chão duro.
Simultaneamente, Baby caiu de joelhos, de modo que a bala
que a teria alcançado, sem dúvida no centro de seu peito,
passou por cima de sua cabeça deixando uma rachadura seca
e sinistra.
Plof, a espiã disparou novamente.
Mais além, o mercenário que ainda estava de pé, lançou
um bramido mais de raiva do que de dor quando recebeu o
impacto da pequena bala no ombro direito, o que o impediu
de atirar novamente contra Brigitte...
— Espere! — trovejou a voz de Teófilo Andrade. —
Espere, que estou indo!
O mercenário virou a cabeça para Andrade, lançou uma
sonora maldição e correu para o carro, dentro do qual lhe
esperava um camarada e Hans Wonberg.
— Pare! — gritou Andrade.
Claro, o sujeito não deu atenção a isso. Então, Andrade
estendeu a mão e disparou. Seu tiro ecoou alto na Avenida
de la Libertad, alterando a calma da noite. O mercenário
gritou, deu uma volta espetacular sobre si mesmo e caiu
como um peçado de madeira sobre o asfalto.
O carro de Wonberg se pos em marcha. Andrade olhou
para ele e permaneceu imóvel, desnorteado.
Da janela dianteira direita do carro, dispararam contra
ele, e Andrade estremeceu, apoiou-se num dos joelhos e
apontou para o carro em fuga.
Erguendo sua arma, disparou até se convencer de que era
inútil.
Quando ele olhou para o agente Baby, ela já estava
ajoelhada ao lado do corpo reclinado de Críspulo Martos,
que examinou brevemente.
— Andrade! — chamou. — Venha cá com o carro,
rápido!
Teófilo se levantou, foi até o carro e o colocou o mais
perto possível do lugar onde Baby estava.
Ele correu ao lado dela.
— Está morto? — ofegou ele.
— Não. Me ajude... Você está ferido!
— Não é nada. O que fazemos com ele?
— Vamos levá-lo ao Hospital Geral... Depressa!
Na rua, havia agora pessoas que deixaram os vários
lugares elegantes que permaneciam abertos até depois da
meia-noite. Mas ninguém parecia pretender intervir.
Algumas pessoas se aproximaram do homem morto na
calçada com uma bala na testa, e outras corriam na direção
do que estava de bruços no asfalto com uma bala no pescoço.
Brigitte e Andrade colocaram Martos no banco de trás, e
a espiã se acomodou o mais perto possível do homem ferido.
Andrade apontou para um dos mercenários mortos.
— Eu vou dar uma olhada...
— Deixe isso agora! Não valem a pena de forma alguma!
Vamos para o hospital!
Andrade sentou-se ao volante e arrancou o carro. Os
pneus rangeram alto, apesar do que a espiã ouviu algumas
palavras pronunciadas por Martos.
Ela se inclinou para mais perto dele. Os olhos do
perucuatoriano a contemplaram com expressão assustada.
— Eu vou morrer — suspirou ele, — eu vou morrer...
— Claro que não. Senhor Martos: por que você queria
fugir de mim?
— Apenas... eu só queria... avisar... Senén...
— Avisá-lo? De quê?
— Eu... eu não quero... eu não quero que você machuque
ele, ele... ele não pode... ser um traidor... Não...
Críspulo Martos caiu de repente, e isso foi tudo. Andrade
virou a cabeça por um momento.
— Morreu?
— Sim — murmurou Baby.
— O que ele estava dizendo?
A espiã internacional levou quase meio minuto para
responder. Quando o fez, ela não disse o que Martos falara
antes de morrer, não disse suas palavras, mas o que ele quis
dizer:
— Ele disse — murmurou ela, — que eu não podia
acreditar que seu amigo era um traidor, mas que mesmo se
ele fosse, ele queria ajudá-lo... mesmo contra mim. Ele disse
que, para ele, amizade e lealdade não tinham alternativas.
Andrade estava desconcertado.
— E o que exatamente você quer dizer?
— Isso significa que há poucos amigos como Críspulo
Martos... Você sabe onde Senén Ologaray mora?
— Claro.
— Bem, nós estamos indo para lá.
— Mas... se Martos estiver morto, devemos levá-lo para...
— Ele não tem mais pressa para chegar a lugar nenhum,
Teófilo. Nós estamos indo para a casa de Ologaray.
CAPÍTULO CINCO
Teófilo Andrade deteve o carro perto da casa onde vivia
Senén Ologaray, na Avenida Vitória, fora de Nueva Andina,
num pequeno grupo de casas com certas pretensões. Na
frente de algumas delas se via vários carros estacionados.
Em algumas casas ainda havia luz, mesmo que apenas em
uma janela no térreo ou em um dos andares superiores.
Quando Andrade apontou para Ologaray, Baby verificou que
havia luz em uma das janelas do pavimento superior.
A quietude era total na pequena zona que poderia ser
considerada residencial.
— Com quem Ologaray mora? — perguntou a espiã.
— Com sua mãe e uma empregada indiana.
— Isto é, ele não é casado.
— É um homem apaixonado pelos prazeres da vida, mas
acredita que as mulheres não fazem parte deles mais do que
ocasionalmente. Da sua parte, ele sempre diz brincando que
não suporta outra mulher que não a sua mãe. Ele é um desses
solteiros que não gosta de complicar sua vida.
Baby assentiu e saiu, no que Andrade se apressou a imitá-
la. Eles caminharam em direção à casa em silêncio. Nem a
luz da varanda estava acesa, como acontecia com
praticamente todas as casas que podiam ser vistas de lá.
Andrade levantou a mão para o lado da moldura da porta,
onde o sino tocava.
— Parece que está acordado...
— Espere. Não chame.
O perucuatoriano virou-se para olhar sua colega ianque,
que olhava para a esquerda e para a direita da casa. Ela
encontrou o que procurava, isto é, um lugar para escalar a
parede, e então ele murmurou:
— Mantenha-se aqui e não faça nada. Apenas vigie.
— De acordo.
Sem grandes problemas, Brigitte subiu a parede
segurando a planta trepadeira e apoiando os pés nas
separações entre as pedras da fachada. Suas mãos
alcançaram um terraço e, um instante depois, após um breve
balanço, agarrava a grade de proteção. Colocou os pés no
terraço e empurrou a porta dupla do quarto, que estava às
escuras.
Atravessou, evitando os móveis cujos contornos ela via,
graças à luz vinha do exterior, e saiu para o corredor,
iluminado por um aplique na parede à esquerda. Havia três
portas de cada lado do corredor, duas correspondentes aos
quartos e uma ao banheiro. Por debaixo da porta d eum dos
dormitórios se filtrava luz. A espiã deduziu que era o quatro
visto na janela da rua.
Baby pegou a arma com a mão direita e empurrou a porta
com a esquerda.
Quase imediatamente, assim que a porta se abriu, ele viu
a cama e, nela, o corpo de uma mulher obesa com grossos
cabelos grisalhos. Então viu outra mulher, esta mais magra e
com cabelos negros divididos em duas tranças grossas, caída
de bruços junto à cama.
Brigitte se aproximou.
A mulher da cama usava uma camisola branca, e todo o
seu peito estava manchado pelo sangue que havia brotado
dos três buracos de bala, dois dos quais pelo menos
atingiram seu coração. Os olhos da mulher estavam
dexorbitados e seu rosto se crispava em uma careta de dor
intensa, de medo, de sofrimento.
A mulher que estava deitada no chão estava vestida e era
um pouco mais nova do que a que estava na cama. Brigitte
virou-a com cuidado e estremeceu incontrolavelmente
quando viu na garganta o tremendo corte que lhe degolara.
Foi uma visão terrível, que provocou a espiã internacional
como uma maré de náusea que quase a fez vomitar. Ela
conseguiu se controlar, não sem esforço, e recuou alguns
passos, desviando os olhos.
Cerrou os olhos e respirou fundo. Permaneceu imóvel, os
olhos fechados, talvez meio minuto.
Finalmente, mais calma, ela os abriu e olhou em volta.
Achava-se, simplesmente, em um quarto, geralmente
ocupado, por todas as indicações, pela mulher que estava
deitada na cama e que, sem dúvida, era a mãe de Senén
Ologaray. A outra mulher, a indiana com as tranças grossas,
devia ter sido a criada.
Nem sequer valia a pena procurar algo ali.
Ela saiu do quarto e desceu para o andar térreo.
Atravessou o corredor, de amplas dimensões, e parou na
porta branca. À direita encontrou, tateando, o interruptor de
luz. Ele ligou.
Imediatamente viu o pacote explosivo preso à porta por
várias faixas de fita adesiva. A embalagem estava conectada
à campainha da porta, de modo que pressionar a mesma
causaria a explosão da tremenda carga.
Se Andrade tivesse chamado, naquele momento os dois
feitos em pedaços espalhados pela frente da casa.
Depois de um breve exame da conexão entre o pacote e o
fio elétrico da campainha, Brigitte desligou-o. Então,
chamou, levantando a voz:
— Andrade!
— Sim, estou aqui! — respondeu ele imediatamente.
— Eu vou abrir.
Ela abriu a porta. Andrade entrou, desnorteado e curioso.
Baby apontou para o pacote de explosivos e sua conexão
com a campanhia, já desativado. Andrade empalideceu.
— E Ologaray? — perguntou ele.
Brigitte não respondeu. Foi até a porta da direita, abriu-a
e empurrou-a devagar, para o caso de notar alguma
resistência. Não foi assim. Localizou o interruptor de luz e
acionou-o.
Senén Ologaray estava lá, sentado em uma das poltronas
da sala de sua casa relativamente confortável. Teofilo
Andrade soltou uma exclamação, mas Baby nem olhou para
ele. Toda a sua atenção concentrou-se no cadáver de Senén
Ologaray, o homem obeso com rosto de bom menino e a
barriga enorme de um bom vivente.
Usava um roupão azul claro e chinelos. Fora baleado,
pelo menos, seis vezes, praticamente todos com pontaria e
intenções mortais. A maioria das balas atingira-o no peito,
mas uma delas havia perfurado sua garganta, onde um fio de
sangue fluía até o peito sob o roupão ensanguentado.
Houve alguns segundos de silêncio antes que Andrade
pudesse suspirar e depois murmurar:
— Deus abençoado...
Brigitte olhou para o telefone, colocado sobre uma
mesinha ao lado da poltrona onde Ologaray repousava em
seu último sono. Ela apontou para o dispositivo.
— Chame Pozuelo — sussurrou ela. — Diga para sair de
casa imediatamente, que chame Luciano Sánchez de
qualquer lugar e que me esperem por mim, os dois, na
unidade móvel onde você instalou seu posto de comando em
frente ao Hospital Geral. Que não se movam de lá por nada
no mundo.
Andrade assentiu, e Brigitte ficou em tensão até descobrir
que do outro lado do fio Pozuelo atendia a ligação. Enquanto
ouvia Andrade, ele examinou mais de perto o rosto
desgrenhado de Senén Ologaray, no qual lhe pareceu
distinguir os sulcos do copioso choro.
— Está feito — disse Andrade.
Baby olhou para ele.
— Vamos — disse ela.
— Mas... Bem, mas... e a mãe de Ologaray e...?
— Estão mortas.
— Deus
— Isto é coisa de Hans Wonberg e os três homens que o
acompanharam. Antes de ir para a Avenida de la Libertad
para matar Martos, eles vieram para cá. Eles entraram na
casa enganando Ologaray, ameaçaram matar sua mãe se ele
não ligasse Críspulo Martos citando a cafeteria Huacapa, e
depois que lhes obedeceu, subiram para matar sua mãe, e,
finalmente, eles o mataram. Então foram matar Martos.
— Como... como você pode saber... que as coisas
aconteceram desse jeito? — tartamudeou Andrade.
— Faz muitos anos que estou enfrentando a maldade.
— Pois sim... Deus meu, isso é assustador. O que eu não
entendo é a razão pela qual eles o forçaram a chamar Martos
na cafeteria! Poderiam forçá-lo também a chamar Pozuelo e
Luciano Sánchez, você não acha?
Brigitte assentiu, enquanto em seus olhos parecia uma luz
fria que impressionou profundamente Andrade.
— Eles estão se divertindo — sussurrou ela.
— O que?
— Que estão se divertindo? Não só têm determinados
planos ambiciosos e mais ou menos perigosos e,
evidentemente criminosos, mas eles também estão se
divertindo.
— Mas isso... é incrível... É um absurdo! Não
compreendo!
— Posso lhe explicar em poucos segundos: a pessoa ou
pessoas que estão dirigindo tudo isto têm uma mente
criminosa e tremendamente retorcida. Começaram a mostrar
isso com a filmagem da matança de Macapinchá, e então,
enquanto estão cumprindo seus objetivos, desfrutam de sua
impunidade e das atrocidades que ordenam. Em outras
palavras: não só pretendem algo, mas são se divertindo com
assassinatos e ataques... Certamente, eles teriam achado
muita graça se tivéssemos apertado a campainha.
— Aqueles malditos mercenários...!
— Isso não é uma coisa de mercenários, Theophilus.
Quero dizer que eles são, é claro, a mão executora, mas não
são... criadores do programa de televisão, ou outra coisa.
Simplesmente, eles obedecem às ordens que recebem.
— Então, já sei — disse furiosamente Andrade.
— Sim? Que sabe?
— Tudo isso tem que ser uma coisa do Peru ou
Equador... ou os dois juntos, querem vingar-se por nossa
independência.
Por alguns segundos, Brigitte olhou inexpressivamente
para Andrade. Por fim, balançou a cabeça e disse:
— Vá para o carro e traga o cadáver de Martos aqui...
Você consegue fazer isso sozinho?
— Perfeitamente.
— Bom. Vamos deixá-lo ao lado do seu amigo, por
agora. Temos que ir a sua unidade móvel para nos reunirmos
com Pozuelo e Sánchez.
***
Luciano Sanchez e Estanislao Pozuelo havia se
recuperado da primeira impressão, e ouviam aparentemente
calmos, mas abatidos, as últimas explicações da agente
Baby. Eram quase duas da manhã. Dentro do furgão militar,
equipado como unidade móvel de controle e comunicações,
somente ali estavam Brigitte, Pozuelo, Sanchez e Andrade,
pois, por ordem deste último, os três soldados especialistas
em comunicação haviam deixado o veículo.
Um par de luzes esmaecidas iluminava a cena.
Quando Baby terminou o relato do que ocorrera nas
últimas horas, sobreveio um longo silêncio. Finalmente,
Pozuelo moveu negativamente a cabeça.
— Não creio que seja coisa do Peru ou do Equador.
— Nem eu — disse imediatamente a espiã.
— Porque não? — resmungou Andrade.
— Porque não tem sentido. Ambos os países chegaram a
um acordo de desprender-se, cada um de uma parte seu
território disputado para evitar complicações. E não só entre
eles, se levassem a desencadear uma guerra, a inimizade de
ambos poderiam ganhar nada menos do que nos Estados
Unidos como rival. Em vez disso, cedendo gentilmente
algumas montanhas e algumas planícies evitariam uma
guerra, miséria, mortes... e conseguiriam a simpatia dos
Estados Unidos... que sem dúvida, ainda que secretamente,
haveria de... compensar de algum modo o comportamento
sensato dos dois países. Não, eu não creio que isso tenha
algo a ver com o Equador e o Peru.
— Então... — olhou Andrade para Pozuelo.
— Eu não sei — murmurou ele. — Eu posso fazer
algumas deduções razoáveis, Andrade, mas não sou
adivinho.
Os três homens olharam para Baby, que ergueu as
sobrancelhas e forçou um sorriso.
— Eu tampouco sou adivinha... — assegurou ela. —
embora às vezes eu tenha alguma coisa bruxa, ou melhor,
pitonisa. Vejamos: a algum de vocês ocorre quem ou quens
podem estar planejando isso e o que eles realmente querem?
Por todas as respostas, silêncio.
Brigitte assentiu e acendeu um cigarro. Verificou a hora
em seu relógio de pulso. Hesitou
— Eu não gostaria de me entrometer — disse de repente
Pozuelo.
Os três olharam para ele vividamente, e observaram seu
embaraço, sua inquietação.
— A que se refere? — perguntou Brigitte.
— Bem, depois do massacre de Macapinchá,
descobrimos o que estava acontecendo graças às nossas
ligações com o governo, é claro. Na mesma linha, temos a
fita de vídeo que fora enviada ao presidente junto com a
ordem, de que em determinado dia deveria proceder a um
desfile com todas as forças armadas na Avenida de la
Libertad e entregar os primeiros cinco milhões dólares...
— Espere um momento. Como os cinco milhões de
dólares deveriam ser entregues?
— Eles devem estar preparados, em uma bolsa de lona
impermeável, no dia do desfile. O presidente Salvatierra
deve levar a sacola com ele, no palanque que ele
compartilhará com todas as autoridades militares e civis de
Perucuador. Alguém lhe pedirá a bolsa, diretamente ou
usando um intermediário.
— O que exatamente significa “alguém”?
— Não sei. Embora tenha me ocorrido que eles poderiam
usar alguns dos amigos do presidente, que eles previamente
teriam submetido, fazendo de reféns a sua família, ou algo
semelhante.
— Não sei se entendi — murmurou Luciano Sanchez.
— Suponha que eles usassem a Rebollo, que tem uma
esposa e três filhos. Enquanto Rebollo está assistinto ao
desfile, que tem de ser feito com toda a formalidade e
solenidade, alguém rapta sua esposa e três filhos, e iria avisá-
lo que para vê-los vivos novamente teria que cuidar do saco
com o dinheiro, abandonando discretamente o palanque, e
levar o dinheiro para um determinado lugar. É um bom
momento, porque ninguém vai notá-lo, todo mundo vai estar
assistindo ao desfile.
— É claro... Sim, seria uma solução muito inteligente da
parte dessas pessoas.
— Sem dúvida — disse Baby. — Mas afinal, o que
menos deve nos preocupar são esses cinco milhões de
dólares. Siga você, senhor Pozuelo.
— Bem, as ordens do Los Indios Libertadores foram
aceitas, por medo, mas nós quatro decidimos encarar a
situação sem subjugar. Também não queríamos dizer ao
presidente Salvatierra que, sem sua permissão, estávamos
dispostos a recorrer ao governo dos Estados Unidos por
intermédio do agente da CIA que conhecíamos.
Conversamos somente com Salgado.
Baby piscou devagar. Por fim, murmurou:
— Você quer dizer Leocadio Salgado, o vice-presidente
do Perucuador?
— Sim. Precisamente. Luciano e eu fomos responsáveis
por explicar nossas intenções. Ele se recusou a cooperar, e
não apenas nos proibiu de fazer qualquer coisa, mas até
mesmo nos ameaçou se o fizéssemos. Ele nos disse que não
éramos ninguém para tomar decisões, muito menos
iniciativas tão perigosas quanto a que propúnhamos, e que
nos limitássemos ao nosso trabalho... de burocratas.
— Burocratas?
— Bem, evidentemente para ele somos apenas...
assessores insignificantes. Ele está certo, mas... não era
necessário nos humilhar tanto... Você se lembra que
discutimos isso, Luciano?
O índio andino assentiu com raiva.
— Eu lembro perfeitamente — rosnou ele.
Novamente alguns segundos de silêncio. Finalmente,
Brigitte olhou para Andrade.
— O que você acha, Teófilo?
— Não sei. Eu estava me perguntando o que Salgado
poderia querer com tudo isso. Não tem sentido. Além disso,
tudo isso de ordenar o assassinato de Críspulo, de Senén...
não me parece próprio dele.
— Se Persona não nos tivesse advertido — resmungou
Sanchez. — Talvez Estanislao e eu estivéssemos mortos
agora também, porque Salgado...
— Não — disse Baby, de repente. — O vice-presidente
Salgado não tem nada a ver com isso.
— Como você pode ter certeza? — soltou Pozuelo.
— Pelos quatro homens de quem eu lhes falei, os que
vieram ao chalé depois que vocês saíram. Eles queriam saber
o que estávamos fazendo, e Salgado, claro, já sabia, através
de você. Portanto, Salgado não pôde enviá-los.
— Talvez ele tenha feito isso para nos enganar —
murmurou Pozuelo. — Quem age contra nós tem que
justificar que conhecem nossos planos. E ele queria dar a
impressão de que nossos inimigos teriam descoberto através
de você. Mas há uma coisa que Salgado não levou em conta:
por que esses quatro homens, ou seja, quem os dirige, vão se
interessar por nós, que, como o próprio Salgado disse, não
são “ninguém” em Perucuador? Se alguns tipos como
aqueles estavam interessados em quatro personagens
insignificantes como nós, tinha que ser porque alguém nos
apontou... e só Salgado poderia fazê-lo, pois a ninguém mais
comunicamos nossas intenções.
— Também pode ser isso — admitiu Baby. — Embora
pareça muito elaborado, complicado demais. No entanto, as
coisas que acontecem na espionagem são quase sempre
complicadas e elaboradas. De qualquer modo, há algo que
temos muito claro: até que as coisas sejam consertadas,
vocês dois não devem ir para casa. Nem deixarem-se ver em
qualquer lugar, de modo que permanecerão aqui, sob a
custódia direta do capitão Andrade.
— Mas... temos que nos apresentar pela manhã em nosso
posto de trabalho — registrou Sanchez.
— Essa é outra questão que será corrigida no devido
tempo. Por enquanto, eles ficarão aqui e, por favor, não
discutam comigo.
— O que vai fazer? — perguntou Pozuelo.
— Eu tenho que refletir — franziu Baby, — e estou
muito cansada para isso, então vou ao meu hotel dormir por
algumas horas.
— Em que hotel está? — perguntou Andrade. —
Pergunto isso porque se eu tivesse que entrar em contato
com você...
— Não se preocupe com isso — Brigitte se levantou. —
Se algo acontecer por aqui, eu vou saber imediatamente e
fazer o que eu acho que é mais adequado para a situação.
Boa noite.
— Se eu puder levá-la no meu carro...
— Não, obrigada.
Baby pegou sua maletinha e, quando Andrade abriu a
sólida porta dos fundos do furgão, saltou agilmente até o
chão. Ela se afastou pela avenida solitária. Uma brisa fresca
soprava vinda das distantes montanhas nevadas.
O carro apareceu atrás de Baby assim que ela se viu fora
do raio visual d o furgão. Ela parou e esperou por ele.
Quando o carro parou ao seu lado, abriu a porta da frente da
direita e entrou, sentando-se no banco ao lado do motorista,
que não era outro senão Emilio Carlos.
— Algo novo? — perguntou Brigitte.
— Não Senhora. Tudo segue o curso planejado.
— De acordo. Leva-me ao meu hotel porque tenho que
descansar algumas horas. Então você volta para vigiar o
furgão, e qualquer pequena coisa que você achar suspeito ou
perigoso para os ocupantes, me comunique imediatamente
pelo telefone do hotel. Embora eu suponha que você não
perdeu o rádio que eu te entreguei.
O andino sorriu, mostrando o rádio de bolso que Simón-
Nova Andina usara inicialmente. Brigitte assentiu e relaxou
um pouco. Realmente, ela se sentia cansada.
Vinte minutos mais tarde, depois de depositar na mesinha
de cabeceira o rádio de bolso colocado no canal exclusivo
entre ela e o Número Um, a senhorita Montfort se deitava na
confortável cama de sua suíte no Hotel Banderas. Deu uma
última olhada no rádio, mas decidiu não se preocupar mais.
Simplesmente, se ele não ligasse para ela, era porque ele
não tinha nada a dizer ainda.
Ela nem sequer queria pensar que qualquer dia Número
Um não a chamaria simplesmente porque não poderia.
CAPÍTULO SEIS
Bip, bip, beep, o rádio colocado na mesa de cabeceira
emitiu seu leve zumbido. A senhorita Montfort acordou
imediatamente e pegou o rádio, admitindo a ligação no ato.
— Sim? — murmurou.
— Está bem?
Brigitte sentou-se na cama. Na janela do quarto parecia
esta sendo invadida por um espetacular e belíssimo incéndio:
o dia estava chegando.
— Sim. E você?
— Bem, mas quase congelado. Foi uma noite repugnante.
— Estou feliz em ouvir você dizer isso. Isso significa que
você ainda é um ser humano que aprecia o conforto do
inóspito, o agradável do desagradável, o belo do feio... Você
seguiu Wonberg até o fim?
— Sim
— Eu não estou surpresa com você. Onde está?
— Eles têm um acampamento nas montanhas, metido na
neve e perto de uma aldeia ou aldeia transformada em ruínas.
— Macapinchá?
— Sim. É por isso que eles não deixaram vestígios. Eles
atacaram Macapinchá e foram diretamente para as
montanhas próximas, onde instalaram um acampamento bem
equipado e muito bem camuflado. Obviamente, toda a
operação foi bem planejada do começo ao fim, a partir do
momento em que os sujeitos das câmeras de vídeo chegaram
à aldeia até que os comandos a destruírem. Então, todos
juntos, eles se instalaram naquele acampamento, onde estão
esperando por novas instruções... se não me engano.
— Eu não acho que você esteja errado. Como você sabe
que os operadores das câmeras de televisão estão nesse
campo?
— Porque eu vi todos os equipamentos de luz e câmera
que eles usaram.
— Você viu isso? Onde?
— Na tenta de materiais e suprimentos.
— Um! — exclamou Brigitte. — Você não teve que
correr esse risco, você só tinha que saber onde poderíamos
encontrar Wonberg e seus homens!
— Não houve risco. Essas pessoas estão tão convencidas
da qualidade e segurança de seu esconderijo que nem sequer
dispuseram de vigilância, então eu não tive nenhum
problema... exceto o frio. Imagine, com sapatos de passeio e
andando na neve. Para ir lá você tem que se equipar muito
bem.
— Claro. Quantos homens você diria que há nesse
acampamento e que material eles têm?
— Eu estimo que haja cerca de trinta homens, isto é, a
quantidade que atacou Macapinchá, mais cerca de oito ou
dez da equipe de filmagem e material técnico. Dispõem do
carro em que Wonberg e seu companheiro chegaram.
Brigitte esperou alguns segundos e finalmente pediu:
— Siga, continue: eu te escuto.
— Eu já te disse.
— Você quer dizer que eles não têm nenhum veículo,
exceto um carro simples?
— Exatamente E o carro está a alguns quilômetros do
acampamento, bem escondido em uma espécie de gruta.
— Isto é, eles estão a pé, nada menos que nos Andes.
— Sim. Mas de alguma forma eles precisavam chegar a
Macapinchá... e, de alguma forma, planejam sair dali quando
chegar a hora. Três ou quatro helicópteros do exército de
Perucuador seriam suficientes para colocar esses homens
fora de todo risco, seja no Peru ou no Equador. Inclino-me a
acreditar que foram chegando por conta própria e em grupos
muito pequenos, tanto os comandos quanto os técnicos de
filmeagem... Quando se instalaram, reunidos e preparados,
realizaram o ataque e regressaram ao acampamento... e ali
permanecem, à espera de novas ordens... ou para evacuação.
— Isso não pode ter sido preparado por qualquer um,
certo?
— Não.
— Eu quero dizer que não pode ser a coisa de Wonberg.
— Duvido. Wonberg pode ser um bom comandante de
ação, mas não um estrategista. Essas coisas geralmente são
planejadas por pessoas que passam a vida sentadas atrás de
uma mesa. Ou pessoas de alto nível de ação e preparação.
— Isto é, ou um político ou um militar de carreira.
— Sim.
— Você deveria descansar um pouco — murmurou
Brigitte, — e, é claro, em um lugar seguro. Se isso parece
bom, você pode se instalar temporariamente no furgão de
Andrade, com Luciano Sánchez e Estanislao Pozuelo.
— E o que eles estão fazendo lá?
Brigitte explicou concisa e claramente o que aconteceu, e
Número Um não fez o menor comentário sobre isso.
Limitou-se a perguntar:
— O que você vai fazer a seguir?
— Eu vou dormir mais algumas horas, vou tomar café da
manhã, e no meio da manhã vou tentar entrar em contato
com o vice-presidente Salgado me apresentando como
jornalista Brigitte Montfort.
— Tenha muito cuidado.
— Eu vou te dizer o mesmo — a divina riu baixinho. —
E lembre-se que você tem que se apresentar para Andrade e
os outros dois com o nome de Tortuga.
— Eu não pretendo fazer uma coisa dessas.
— Porque não?
— Vou me arranjar de qualquer outra forma. No
momento, quanto menos pessoas me conhecem melhor para
mim e para você.
— Tem razão. Eu não sei por que me preocupo com você.
— Porque me ama?
— Você sabe muito bem o quanto eu te amo — sussurrou
Brigitte. — Tenha muito cuidado, meu amor.
— Onde eu já ouvi isso antes?
— Eu vou deixar o rádio na nossa onda especial. Vou
ligar para você assim que algo novo acontecer. Se eu não lhe
disser nada, é que continuo com o meu plano de visitar o
vice-presidente do Perucuador.
***
O vice-presidente Leocadio Salgado, homem de meia-
idade, muitas vezes nervoso e bastante feio, recebeu a
jornalista americana Brigitte Montfort ao meio-dia em seu
escritório na Casa de Governo, uma velha mansão
remodelada, uma reminiscência de uma fazenda confortável.
Nos pontos considerados estratégicos do grande jardim que
cercava a sede do governo, havia soldados em postos de
guarda, e Brigitte os vigiara de uma janela enquanto
esperava ser recebida.
Chocante. Soldados e flores. Um lindo céu azul, com
aquela inconfundível pureza andina, e armas de todos os
tipos... Chocante? Foi deprimente e absurdo.
— Senhorita Montfort — ao ouvir a voz sonora do
peruquatoriano, a espiã deu um passa à frente para o
comprimentar. — Peço desculpas por a fazer esperar por
mim, mas precisava despachar com o presidente
Salvatierra... Ocorreu-me que talvez fosse com ele que você
queria falar.
— Não. É com você que desejo falar, senhor Salgado.
— Bom. — Salgado segurou a mão do jornalista, então
sorriu simpaticamente. — Caramba, você é encantadora!
— Obrigada — riu Brigitte. — E o senhor é muito gentil.
Mas não se preocupe, procurarei não fazê-lo perder muito
tempo.
— Eu sou um grande admirador seu e do seu talento
jornalístico há muitos anos, de modo que eu adoraria
conversar com você até ser você quem fica entediada
comigo. Você quer tomar uma bebida?
— Não, obrigado. Eu só desejo conversar com o senhor...
e que absolutamente ninguém saiba sobre a nossa conversa.
— Absolutamente ninguém.
— Foi o que eu disse.
Salgado estava contemplando-a com grande atenção por
alguns segundos. Finalmente, ele assentiu, apontou à Brigitte
uma das poltronas colocadas diante de sua mesa e foi ocupar
o assento giratório.
— Eu me permito supor — ele murmurou — que você
veio ao Perucuador para se documentar em profundidade e
escrever um relatório sobre o que aconteceu em Macapinchá.
— Oficialmente sim. Quando eu estava vindo para cá, vi
que a Avenida de la Libertad já está preparando o grande
palanque de onde o senhor e as outras personalidades do
Perucuador assistirão ao desfile. Ou seja, farão o desfile que
foi exigido pelos Los Indios Libertadores.
— Como você sabe disso? Quem te contou sobre Los
Indios Libertadores?
— Eu sei que para fins oficiais o desfile servirá para
celebrar a independência, e que todos os perucuatorianos vão
apreciar com alegria e emoção, diretamente ou através de
TeVePer, ou seja, a televisão nacional. Mas o senhor e eu
sabemos que Los Indios Libertadores estão tramando algo a
respeito esse desfile... E, naturalmente, isso não pode ser
nada bom.
— A verdade é que não esperava que a nossa conversa
tomasse esse rumo — Salgado olhava para ela com os olhos
apertados.
— Alguns assassinatos foram cometidos na noite
passada. Pessoas sem importância, mas pessoas enfim... e
bons patriotas perucuatorianos. Refiro-me a Críspulo Martos
e Senén Ologaray. A mãe de Ologaray e sua empregada
indiana também foram assassinadas.
Leocadio Salgado empalidecera intensamente e parecia
incapaz de reagir, contemplando com olhos esbugalhados a
jornalista americana.
— Bom Deus — falou por fim. — Santo Deus! Senén
morreu...? E Críspulo! Mas como? O que aconteceu?
A espiã mais implacável do mundo mostrou
inexpressividade total.
— Eu entendo — disse calmamente — que o senhor está
ciente de que esses dois, juntamente com Pozuelo e Sanchez
formaram um grupo que queria se opor às demandas de Los
Indios Libertadores.
— Eu disse para não tomarem nenhuma iniciativa! —
quase gritou Salgado. — Eu pedi!
— Isso significa que você e o presidente Salvatierra estão
dispostos a aceitar sem reagir duramente todos os massacres
ou imposições do Los Indios Libertadores?
— Não estamos atualmente em posição de montar um
dispositivo militar capaz de proteger todas as pequenas
cidades existentes em Perucuador. Portanto, até que
tenhamos o Exército perfeitamente organizado e bem
distribuído em todo o território nacional, com efeito,
pretendemos ceder. Não queremos que haja outro
Macapinchá. E para devolver o golpe ou parar o próximo,
queremos estar bem preparados.
— Sem pedir ajuda de ninguém.
— Exatamente: sem pedir ajuda de ninguém. Nem
mesmo para os Estados Unidos.
— Senho Salgado, eu sei que existe um acordo secreto
entre os Estados Unidos e o Perucuador. Além disso, sei que
o Perucuador existe graças à ajuda secreta que os Estados
Unidos forneceram. Por que não pedir ajuda também para
isso?
— Miss Montfort, entre os Estados Unidos e o
Perucuador há um acordo secreto, é verdade. Seria tolice
negar isso a você, que parece saber muitas coisas. Mas uma
coisa é esse acordo, que compromete a Perucuador a certos
tipos de relacionamentos e à concessão de bases, e outra é
que, assim que se fizer, Perucuador terá de permitir que os
Estados Unidos liderem nosso país internamente. Eu me
expliquei?
— Completamente — a divina espiã se levantou. — Bom
dia, senhor Salgado, e obrigada por me receber.
— Isso é tudo? — O vice-presidente também se levantou.
— Sim.
— Tenham a gentileza de voltar a se sentar. Agora sou eu
quem quer fazer algumas perguntas.
— Tenho medo de não ser tão gentil quanto o senhor —
quase tiu a espiã. — Adeus, senhor Salgado.
— Você parece não perceber que eu posso ordenar que a
detenham, senhorita Montfort.
— Acusada de quê?
— Espionagem.
Brigitte Montfort sorriu com carinho.
— Senhor Salgado, eu devo entender que vai deter a
jornalista Brigitte Montfort acusando-a de exercer
espionagem contra o Perucuador? O mundo inteiro riria do
senhor, porque o mundo inteiro sabe que Brigitte Montfort
sempre apoiou em sua coluna do Morning News as causas
como a de Perucuador.
— Eu quero que me diga o que sabe sobre tudo isso e de
onde tirou as informações! E eu quero saber o que pretende
fazer com essas informações!
— Façamos um trato. O senhor concorda em colocar-se
sob as minhas ordens por cinquenta horas, ou seja, até após o
desfile militar, e se nesse tempo eu não lhe explicar
satiafatoriamente minhas pretensões e lhe entregar a Los
Indios Libertadores, pode me encerrar em um calabouço para
o resto da minha vida.
— Você está exagerando em suas funções de jornalista.
Brigitte sorriu. Então se virou e foi para a porta. Sabia o
que precisava saber a respeito de Leocadio Salgado e não
precisava perder mais tempo ali.
Pouco depois, atravessou os jardins da Casa do Governo,
observada com relativa dissimulação pelos soldados em
guarda, tão impressionados com a beleza do visitante quanto
com todos aqueles personagens com os quais ele cruzara o
interior da casa.
Tomou um táxi e deu ao motorista um endereço próximo
ao do médico perucuatoriano em cuja casa estava o ferido
Simón-Nova Andina, sob seus cuidados.
Doze minutos depois, ela saiu do táxi e começou a andar
em direção à casa do doutor Atienza. Sim... Rubén Atienza,
esse era o nome dele. Se interessaria por Simon,
certificando-se de que tudo estava bem, e então chamaria
Número Um para...
Então viu o carro de Emilio Carlos, parado no meio-fio a
uns sessenta metros da casa do doutor Atienza. Aproximou-
se um pouco mais, pensando que o perucuatoriano estaria no
carro, vigiando a casa do médico, mas não havia ninguém no
carro.
Emilio estava visitando Simon?
Por puro instinto, a senhorita Montfort passou em frente à
casa do doutor Atienza. Dobrou a esquina, entrou no
primeiro portal que encontrou e tirou da pequena sacola o
rádio pequeno, cuja mola de chamada ativou, depois de
colocar a minúscula placa de seleção de canal na posição
geral da área, não na posição que a conectava. Direta e
exclusivamente com Número Um para emergências.
— Sim, diga — distinguiu a voz de Emilio Carlos, séria e
opaca.
— Emilio, sou eu. Acabei de passar por um táxi em frente
à casa do médico e vi seu carro... Você está aí?
— Sim senhorita. Eu estou com o senhor Davidson. Eu
estava apenas me preparando para chama-la para pedir que
viesse.
Brigitte empalideceu, mas ela certamente manteve sua
serenidade.
— Davidson piorou? — disse, seguindo o jogo do
andino.
— A verdade é que sim. Atienza diz que não quer se
responsabilizar pelo que possa acontecer. Você deveria vir.
— De acordo. Eu tenho um breve assunto para resolver, e
assim que terminar vou até aí. Não acho que leve mais de
quinze minutos, mas se eu tiver algum contratempo, eu ligo
para você. Até logo.
***
Dentro da casa do doutor Atienza, na sala de cura, Hans
Wonberg retirou a ponta do facão da garganta de Emilio
Carlos, que estava lívido.
— Muito bom, indiano — aprovou o mercenário. —
Fique aqui e prepare o rádio para o caso de ela ligar de volta.
Você fez bem, então continue se não quiser ter a cabeça
cortada e pendurada no teto para nos distrair cuspindo nos
olhos.
Os outros três mercenários riram. Um deles foi colocado
perto da janela, de frente para a rua, e de vez em quando ele
movia a cortina branca um pouco para olhar para fora. Os
outros dois estavam sentados perto da maca da cama, na qual
Simon-Nova Andina estava deitado.
De pé ao lado dele, com o rosto lívido, estava o doutor
Atienza. Simon tinha os olhos abertos, mas ele não parecia
saber de nada. Seu corpo nu e enfaixado parecia cera.
Wonberg olhou para o relógio de pulso e murmurou:
— Claro, somos caprichosos — disse ele. — Como tantas
mulheres no mundo, e El Indio quer exatamente essa para se
desfrutar com ela! Sabemos com certeza que é muito
perigosa, não só por causa da noite passada em frente à
cafeteria Huacapá, mas por causa do chalé: conseguiu
escapar causando quatro vítimas, mesmo com a ajuda desse
índio...
— Não — disse Emilio Carlos. — Eu não sei nada sobre
isso, não fui eu quem a ajudou... eu juro!
Wonberg olhou para ele especulativamente, com seu
olhar frio ofidiano. Ele deu de ombros novamente.
— De qualquer forma, a única coisa que nos interessa são
os cinco milhões de dólares, por enquanto. E como quem
paga manda, temos que levar essa mulher, por muito
perigosa que seja.

CAPÍTULO SETE
— Lá vem ela — disse o homem à janela.
Hans Wonberg correu para ver a mulher. Ele a viu
quando estava bem perto da porta: alta, talvez muito robusta,
áspera, com belos cabelos negros reunidos em um coque...
Ela carregava uma gracioça maleta de viagem.
Do quarto se houviu uma batida na porta da casa.
Wonberg olhou para o relógio: dezessete minutos se
passaram desde que Baby ligou para Emilio Carlos.
Wonberg apontou para seus homens, puxou a pistola do
coldle da axila e saiu da enfermaria improvisada.
Quatro segundos depois, ele abriu a porta da casa. A
mulher conhecida por Persona tinha grandes olhos negros,
que pareciam presos no azulado de Hans Wonberg. Ele
sorriu e apontou para o peito de Persona, que mal fez um
leve gesto de sobressalto.
— Vamos, giganta — disse Wonberg, em inglês. —
Estávamos esperando por você.
Persona olhou para a arma, olhou novamente para os
olhos de Wonberg e entrou na casa, cuja porta o mercenário
fechou, dizendo:
— Para a enfermaria; você sabe onde fica.
Persona foi até lá, seguida pelo muito atencioso Wonberg
atrás dela. Quando entrou na sala, Persona captou o olhar
entre embaraçado e intimidado de Emilio Carlos, que
imediatamente desviou. Ela se aproximou do homem ferido
e colocou uma mão no lado do pescoço dele.
— Ele está bem — murmurou o médico. — Emilio
mentiu para porque eles o forçaram a atrair você.
Ela assentiu e olhou para Wonberg, que apontou para
outra maca, colocada em um canto.
— Deixe a maleta lá e ponha as mãos na cabeça —
ordenou ele.
Persona obedeceu. Wonberg guardou a arma, aproximou-
se e iniciou uma revista, passando as mãos pelo corpo dela,
sorrindo enquanto pressionava as volumosas formas
femininas.
— Caramba — disse ele. — Você tem um corpo
magnífico, embora com essas roupas não pareça... Talvez El
Indio saiba o que faz quando quer essa mulher com ele. Ah!
Mas o que é isso?
Meteu a mão sob a saia dela, muito perto do sexo de
Persona, e retirou a pequena pistola que estava lá presa com
tiras de esparadrapo. Ele olhou com curiosidade e colocou-a
no bolso. Olhou para a maletinha, hesitou, e pelo seu último
gesto entendeu-se que ele estava deixando seu exame para
outra hora.
— Jack, vá pegar o carro — ele ordenou. — E você, fique
aí com as mãos onde você as tem agora.
Um dos que estavam sentados perto da cama se levantou
e foi embora. Logo se ouviu o rangido da porta quando
fechou. O homem da janela olhou para o companheiro,
afastando-se da casa, e voltou a olhar para o prisioneiro.
— Talvez ela carregue mais armas, Hans — ele sugeriu.
— Não, não leva. Eu examinei bem. Vamos preciosa:
quem te ajudou no chalé? Foi esse indiano?
Persona não respondeu Wonberg franziu a testa e deu um
passo ameaçador para ela.
— Talvez possamos chegar a um acordo — disse
Persona.
— Um acordo? — Wonberg se deteve em seco. — Qual
acordo?
— Suponho que esperam receber cinco milhões de
dólares. É assim?
— Sim. Como sabe?
— Eu ofereço vinte milhões. Cinco... para cada um de
vocês.
— Não interessa — o homem da janela riu — porque
quando a segunda fase...
— Feche a boca — resmungou Wonberg. — E você
também, porque o que quer que diga, não faremos um
acordo. Mesmo que me oferecesse...
— Eu não preciso mais disso — interrompeu Persona.
— Tudo o que eu queria saber eu já sei agora.
— Do que está falando? — O mercenário inclinou a
cabeça.
— Eu tinha toda a intenção de negociar com você a
qualquer custo até obter informações suficientes sobre o
assunto. Mas eu já obtive essa informação.
— Conseguiu? Conseguiu aqui e agora?
— Isso mesmo — Persona sorriu com desprezo.
— Você é louca — Wonberg assegurou-lhe. — Uma
louca a quem daremos o merecido quando El Indio terminar
com você.
— Quem é El Indio? O chefe da operação, o chefe do Los
Indios Libertadores?
— É apenas um intermediário entre nós e Los Indios
Libertadores, e portanto é nosso chefe direto. O único que
conhecemos.
— Sim E quem é esse homem?
— Alguém que quer brincar com você — sorriu
Wonberg, como se de repente se divertisse. — Talvez eu
também faça isso.
— Como você entra em contato com El Indio?
— Com sinais de fumaça — disse o homem à janela; e os
três riram — Com sinais de fumaça, claro!
— É uma resposta muito engraçada — disse Persona. —
Vou dizer ao El Indio que você é extremamente engraçado.
Embora ele já deva conhecê-lo muito bem, já que ele os
contratou... Ou não os contratou?
— Claro. Mas veja, não esquentamos nossas cabeças: o
que tem a dizer, diga a ele.
— A ele direi o que já reservei para ele. Também tenho
coisas a dizer para você, Wonberg, depois de assistir a sua
apresentação como chefe de unidade no videoteipe.
— Como você sabe meu nome é Wonberg? — exclamou
este.
— O seu amigo Karl Ulrichssen nos disse antes de
morrer.
Hans Wonberg pressionou os lábios e seu olhar pareceu
querer atravessar Persona, que o suportou com indiferença.
— Quem te contou? — sussurrou. — Para você... e quem
mais?
— Para mim — disse uma voz na porta.
Ao mesmo tempo, o homem alto com as feições pétreas
apareceu, segurando uma pistola com a qual ele apontava
para a cabeça de Wonberg. Este, que tinha a arma no coldre,
ficou imóvel e rígido. O mercenário ao lado da janela deu
uma exclamação e virou-se rapidamente para apontar para
Número Um...
Plop, disparou ele desviando a arma por um momento.
A bala afundou-se com um estalido suave no coração do
sujeito, que recuou, largou a pistola, bateu as costas na
moldura da janela e caiu para a frente, rígido e morto.
O que estava sentado também queria atirar em Número
Um, mas Emilio Carlos pulou contra ele, e ambos rolaram no
chão em um abraço desajeitado.
Emilio se importava somente em segurar o braço armado
do mercenário, mas este, com a esquerda, lhe bateu
furiosamente na cabeça... até que Persona, com movimentos
ágeis, chegou até eles e despejou um chutaço na têmpora
esquerda do mercenário com a ponta aguda de seu sapato.
Simplesmente, este morreu. Emitiu um ronco, revirou os
olhos e morreu.
Emilio agarrou a arma, com a qual se apressou a apontar
para Wonberg. Mas este permaneceu como petrificado baixo
a ameaça da arma de Número Um, momento aproveitado por
Persona para recuperar sua pistola e requisitar a de
Wonberg, bem como a faca.
— O outro não demorará a voltar — disse Persona.
Um assentiu, aproximou-se de Wonberg e, desferiu um
tremendo chute nos testículos, que o fulminou como morto.
Então, ele saiu da sala. O doutor Atienza mal teve tempo de
inteirar-se do que havia acontecido. Emilio, depois de ver
Um sair, virou-se para olhar Persona.
— Quem é? — perguntou, balançando a cabeça em
direção à porta.
— Tortuga. Encontre um fio e amarre as mãos de
Wonberg nas costas.
— Sim. Olhe, eu tive que chamar-lhe por que...
— Esqueça. Eu sei o que acontece nesses casos, Emilio.
E nós vamos dar a Wonberg o mesmo tratamento. — Ela
voltou para a maca e olhou para o rosto de Simon. — Tem
certeza de que está tudo bem?
— Logo estara restaurado, eu garanto. Quer dizer, espero
que todos nós sobrevivamos a esse assunto.
— Todos, não — disse Persona friamente.
Ela se aproximou da janela, de onde esteve assistindo a
chegada do carro mercenário, dirigido por aquele tal de Jack.
Emilio Carlos encontrou arame na cozinha da casa de
Atienza, e amarrou as mãos de Wonberg, que se recuperou
rapidamente, mas fazendo caretas de dor...
— Verifique bem — disse a Perona, de repente. — Não
confie.
Ela saiu do quarto. Número Um, que esperava junto à
porta da casa, olhou para ela e assentiu. Lá fora se ouviu a
batida de uma porta de carro se fechando.
Logo a porta da casa se abriu e Jack entrou. Ficou
olhando para a arma que apareceu diante de seus olhos.
Persona foi até a porta e a fechou. Número Um colocou o
cano de fogo no coração de Jack e puxou o gatilho.
Jack desmoronou como um pacote, como uma massa
repentinamente inerte, olhos quase fora de suas órbitas. Um
agarrou-o pelas roupas em seu pescoço e levou-o para a
enfermaria. Emilio Carlos também tinha os olhos saltados,
olhando para o Número Um. Nunca em sua vida o Andino
ficou tão profundamente impressionado.
— No momento — disse Persona, — deixaremos esses
três corpos aqui. Espero que isso não o incomode, doutor.
— Estou acostumado com os mortos... mas não a tê-los
em casa. De qualquer forma, não se preocupe.
— Emilio vai ficar com você, para lidar com qualquer
imprevisto — olhou gentilmente para o colaborador da CIA.
— Não confie em ninguém, Emilio. Apenas no meu parceiro
e em mim. Você entende o que quero dizer exatamente com
isso?
— Sim senhora.
— Bom — sorriu a espiã.
Ela pegou sua maletinha, deu uma última olhada Simon-
Nova Andina, foi até a porta e desapareceu. Logo, da porta
da casa, se houve um assovio. Número Um agarrou Wonberg
pela gola da roupa e o pôs de pé.
— Vamos dar um passeio em seu próprio carro — disse
ele. — Se você me causar desconforto, vou cortar seu
pescoço.
Empurrou-o para diante dele, guardou a arma e com a
mão direita levantou as mãos amarradas atrás das costas de
Wonberg... De um lado da janela, Emilio Carlos viu o carro
dos mercenários parado em frente da casa. Persona estava ao
volante. Tortuga colocou Wonberg no banco de trás e
sentou-se ao lado dele.
O carro foi embora.
Emilio Carlos virou-se para olhar para Atienza,
alucinado.
— Ajuda-me a lhes tampar as narinas — disse o médico,
apontando para os três cadáveres. — Não precisamos cheirar
a carne podre.
Não muito longe dali, dentro do carro, Persona
conversava com Wonberg, olhando para ele pelo espelho
retrovisor.
— Nós — disse, — não somos melhores que você. Quer
dizer, também sabemos como causar sofrimento às pessoas
antes de matá-las. Tenha em mente de que você caiu nas
piores mãos em que poderia cair. Entendido?
Wonberg não respondeu. Número Um simplesmente
olhou para ele. Wonberg sentiu um frio profundo em seu
corpo, em todos os seus ossos, em seu sangue.
— Sim... — engasgou — eu entendi.
— Bom. Na verdade, acho que já sei, mas quero ter
certeza: quem é El Indio?
— Não sei. Eu não sei o nome dele. Eu sei que é um
homem de aparência insignificante e usando um bigode falso
e óculos escuros grandes.
— Muito original. Onde você o conheceu?
— Em Santiago do Chile, há cerca de um ano. Eu estava
lá esperando que surgisse um bom trabalho com esta
transferência de poder que fez o general Pinochet... Ele se
aproximou de mim, me disse que lhe haviam falado sobre
mim, e, possivelmente, alguns meses adiante teria um bom
trabalho para me oferecer. Eu disse como poderia entrar em
contato comigo. Ele me ligou há um par de meses e
começamos a preparar tudo.
— O que ele te ofereceu pelos seus serviços?
— Cento e cinco milhões de dólares no total. Primeiro,
cinco, pelas despesas que, em princípio, teríamos eu e meus
homens. Um mês depois, ele nos daria os outros cem
milhões. No começo eu não queria acreditar nele, mas ele me
convenceu.
— Ou seja, que primeiro exigiu cinco milhões de dólares,
em seguida, ameaçaria destruir outra, ou várias aldeias se o
presidente Salvatierra não lhes dessem centenas de milhões a
mais.
— Sim... Para onde estamos indo?
— No momento estamos passeando por Nova Andina. É
agradável passear, num dia tão lindo... Quem planejou o
Macapinchá?
— Ele... Ele planejou tudo. Ele disse que tudo foi muito
bem pensado e controlado, e que eu só tinha que seguir suas
instruções e me tornar um milionário.
— Sim. Eu entendo suas razões para intervir nisso, mas...
e dele? O que exatamente El Indio está procurando?
— Eu juro que não sei.
— Também não sabe o propósito de forçar a desfilar o
exército de Perucuador?
— Não... Sobre isso, ele me disse que me daria às
instruções no último momento. E o mesmo para recolhar os
cinco milhões de dólares, entende-se que com todas as
garantias de segurança para nós.
— Como você entra em contato com El Indio?
— Por meio de uma estação de rádio que temos nas
montanhas.
Persona lançou-lhe um olhar irônico e perverso pelo
retrovisor.
— Pelo que entendi, toda vez que tem algo a dizer ao El
Indio você tem que ir até a vizinhança de Macapinchá para
usar esse rádio?
— Bem... tem outra estação aqui em Nova Andina.
— Que surpresa. Talvez seja o que você também usa,
enquanto estiver na cidade, para dar instruções aos seus
homens que permanecem no acampamento.
— Claro — rosnou Wonberg.
— E onde fica essa estação?
— No porão de um prédio antigo, quase em ruínas, onde
havia uma oficina de bicicletas ou algo assim.
— Que rua?
— Alvarado.
— Eu tenho um mapa da cidade na minha maletinha —
disse Persona. Quer buscar por essa rua?
Um assentiu e pegou a maletinha.
Hans Wonberg tinha a sensação de estar preso em fortes
tenazes das quais era impossível sair.
Nunca em sua vida ele teve uma sensação tão profunda e
clara de impotência, de derrota.
— Continue ao longo desta avenida — disse Um, depois
de examinar o mapa. — Te avisarei quando você deve virar à
esquerda. Está quase na periferia da cidade.
Ela assentiu e olhou de novo para Wonberg no espelho
retrovisor.
— Quando foi a última vez que você fez contato com El
Indio? — perguntou ela.
— Ontem. Eu estava no acampamento, esperando o
retorno de Ulrichssen, quando ele me ligou. Ele me disse que
sabia que Ulrichssen e os outros três não voltariam, e que
teria de ir até Nova Andina para fazer um trabalho.
— Um trabalho — repetiu Persona, como admirada. —
Ele te deu ordens para matar certas pessoas, não é isso que
você quer dizer?
— Sim. Também me falou sobre aquele índio que
trabalha com o agente da CIA, e me disse onde ele estava.
Ele me indicou o que teria que fazer hoje se conseguisse
eliminar essas pessoas ou se não saísse bem na primeira vez.
— E o que você tem que fazer?
— Capturar você e matar todas as outras pessoas da casa.
Então teria que levá-la ao acampamento até que me ligasse
para me dar novas instruções. Enquanto isso, ninguém
deveria tocá-la. Aparentemente... ele se apaixonou por você.
— Tem bom gosto. Que pessoas ele ordenou que você
matasse na noite passada?
— Senén Ologaray, Críspulo Martos, Estanislau Pozuelo
e Luciano Sánchez. A cada seis horas tinha que ligar para
informá-lo de como as coisas estavam indo e, em caso
afirmativo, receber novas instruções ou orientações.
— Vire à esquerda — disse Um.
Persona fez isto.
Apenas dez minutos depois eles chegaram ao lugar
indicado por Hans Wonberg, que, dada a suavidade com que
tratava seus captores começaram a esperança de conseguir
um acordo que lhe permitiria preservar a vida.
O prédio antigo tinha uma larga porta de madeira comida
por vermes que Número Um abriu. Persona entrou com o
carro. O lugar era estreito e dilapidado, e só recebia luz
através de altas janelas de um lado. Na parte de trás havia
uma pequena sala que outrora fora um escritório modesto e
um minúsculo pátio cheio de escombros e, especialmente,
fezes de rato.
Ao sotão se descia por uma escada de madeira podre que
ficava em um lado da oficina, e cuja entrada estava oculad
por uma chapa de madeira gordurosa... Na escuridão do
lugar se ouvia o chiar de ratos deslizando por entre caixas e
pilhas de bicicletas deterioradas.
A emissora estava bem instalada em uma mesa colocada
em um buraco na parede de terra pura.
Sem necessidade de ligar a pequena lâmpada de gás que
estava no canto da mesa, Brigitte e Número Um a
identificaram imediatamente como feita nos EUA, um
modelo de vinte anos e, possivelmente, em seu auge, havia
servido ao Exército peruano ou equatoriano.
— Parece-me — disse Persona, — que não nos servirá de
nada descobrir quem é o dono desta casa. Ou é alguém que
morreu ou alguém que a abandonou mesmo
temporariamente.
— Na verdade — disse Um, — este lugar só tem uma
coisa boa: El Indio virá aqui mais cedo ou mais tarde. Mas
eu me pergunto se vale a pena esperar, considerando que
você já sabe quem ele é.
— Eu acho que sei — disse Baby. — E eu quero ter
certeza, é claro. Além disso, se El Indio é apenas um
intermediário nesta... operação cujo objetivo ainda não
entendo, devemos abordar as coisas de modo que por meio
dele e de alguma forma sei que dirigiu a coisa toda.
— Ou seja, localizar Los Indios Libertadores.
— Sim. Enquanto isso, deveríamos controlar os homens
de Wonberg, talvez através do exército. Se eu chamar o vice-
presidente Salgado e pedir-lhe para enviar tropas para o
acampamento, sei que ele aceitará minhas instruções e você
pode guiar essas forças, mas... Temo que a reação de El
Indio, e acima de tudo, de Los Indios Libertadores, de modo
que teremos de agir com muito tato.
— Sem dúvida — admitiu Um. — Precisamos de
Wonberg para alguma coisa?
— Não mais.
Hans Wonberg, mercenário, canalha, criminoso
inescrupuloso, que fez do assassinato seu meio de vida,
sentiu que finalmente encontrara alguém que poderia ser
infinitamente mais cruel e implacável do que ele.
E estava certo.
***
Teofilo Andrade proferiu uma exclamação de
consternação.
— É uma pena que não pudessem capturar nenhum
desses homens vivos! Eles poderiam nos dar pistas para
capturar todos os membros daquele comando assassino!
— Não poderia ser — Baby fez um gesto de resignação.
— O risco era demais para se andar com cuidado: meu
camarada Davidson estava ferido, doutor Atienza, Emilio
estava desarmado... Não podia ser. Tortuga e eu tivemos que
atirar para matar sem contemplação.
— Isso quer dizer que mataram quatro homens do
comando — murmurou Pozuelo.
— Sim. Mas com muito risco, e a prova é que Tortuga
recebeu uma bala no ombro que poderia acertá-lo bem no
coração... Por sorte, tivemos o médico logo ali. Estamos
transformando sua casa em um hospital... e um cemitério.
— Quer dizer que Tortuga ficou na casa do médico?
— Claro. Ele foi inutilizado para continuar me apoiando
nisso. Quando chamei Emilio e ele mencionou Davidson
pelo nome eu percebi que algo estava errado, então foi
quando recorri a Tortuga e ambos fomos para a casa de
Atienza, mas Tortuga entrou por trás dela e do telhado...
Queriamos pegá-los vivos, mas depois vimos que era muito
arriscado.
— No final — Luciano Sanchez balançou a cabeça, está
feito. — E não vamos reclamar que assassinos morreram,
certo?
— Tenho certeza de que eles são os mesmos que
mataram Martos, Ologaray e sua mãe na noite passada...
— Sem dúvida, eles também tinham ordens para matar
nós dois — disse Luciano.
— É muito possível.
— Eles estão seguros aqui — disse Andrade.
— Sim, mas o fato é que preciso de você, Teófilo —
disse Baby preocupada. — E eu não quero que os dois
fiquem no furgão se você não estiver lá. Além disso, estamos
inutilizando esse furgão, e isso é um absurdo... Vocês podem
se esconder em algum lugar seguro? — fitou a Pozuelo e
Sanchez.
— Claro — concordou Sanchez. — Poderiamos ir…
— Não, não. Juntos, não. Eu prefiro que se escondam
separadamente. E sem que um saiba onde o outro está.
— Por quê? — Perguntou Pozuelo.
— Porque se forem juntos, correm mais risco de serem
vistos. E se se separarem, prefiro que ninguém saiba onde o
outro está para que, sob certas circunstâncias, não revele seu
esconderijo.
— Sob certas circunstâncias... significa tortura? —
exclamou Sanchez.
— Francamente, sim. Ou com ameaças muito fortes,
como fizeram com Ologaray. É por isso que eu prefiro que
cada um de vocês se esconda sozinho, sem dizer a ninguém
onde estão. Se precisar de alguma coisa de mim ou do
capitão Andrade, ligue para a casa do doutor Atienza e diga a
Emilio Carlos para me contar o que está acontecendo.
— Me permite um comentário? — murmurou Andrade.
— Claro.
— Você realmente tem a sensação de que está, de alguma
forma, controlando o que acontece? Porque se tenho que ser
honesto, não sei mais onde estou.
— Tal como as coisas estão — murmurou Persona,
depois de alguns segundos de reflexão. — Não tenho certeza
se sei o que fazer também. Se eu tiver que ser tão sincera
quanto você, Teófilo, direi que minha esperança de obter
uma pista é reduzida ao que acontecerá amanhã durante o
desfile. Quero dizer, a coleta do dinheiro, os cinco milhões
de dólares... Alguém vai ter que cuidar deles, certo?
— Sim, claro…
— E você e eu estaremos lá assistindo. Quem estiver
encarregado de tomar conta do dinheiro, vamos ver... e se
pudermos segui-lo, certamente recuperaremos a pista.
— Não é uma má ideia — disse Andrade. — Vou
arranjar vários dos meus homens...!
— Nada disso. O que pode ser feito terá que ser feito por
você e por mim sozinhos. Nós não estamos lidando com
tolos, sabe? Enfim, vamos ver o que acontece amanhã.
— E nós? — perguntou Pozuelo. — Permanecemos
escondidos ou podemos assistir ao desfile amanhã?
— Chame Emilio às oito horas da manhã na casa do
doutor Atienza, e ele lhe dirá o que todos nós devemos fazer.
Lembre-se: não se comunique absolutamente com ninguém,
exceto Emilio Carlos. Alguma duvida?
Pozuelo e Sanchez balançaram a cabeça. Logo depois,
eles saíram do furgão e foram embora rapidamente. Andrade
balançou a cabeça e exclamou:
— Grande confusão!
— Claro que não.
— O que?
— Que não. Sem confusão.
— Mas... mas você... você acabou de dizer...
— Teófilo — suspirou o agente Baby, — acredite em
mim: na verdade, você precisa de um bom curso de
treinamento se pretende ser um espião... e viver para contar.
CAPÍTULO OITO
— Podia ouvir o chiar dos ratos nos cantos, e talvez fosse
por isso que, de vez em quando, Estanislao Pozuelo parava
para ouvir. Permaneceu imóvel por alguns segundos e depois
continuou sua marcha na escuridão malcheirosa. Nas
pequenas janelas da oficina, o sol já não brilhava em seu
esplendor, mas sim no rápido pôr-do-sol.
Ele alcançou a escada de madeira e desceu
cuidadosamente através dela.
Lá embaixo, no porão, tudo ficou em silêncio. Um
silêncio frio e denso, como se pressionado. Apenas os ratos,
também lá embaixo, colocam um som de existência, de
movimento.
Pozuelo chegou à estação e acendeu a pequena lâmpada
de gás. O porão estava cheio de sombras fantasmagóricas.
Era tudo tão irreal que Pozuelo achou que estava alucinando
quando ouviu a voz atrás dele:
— Coloque as mãos na sua cabeça e afaste-se da estação
andando para trás.
Pozuelo estremeceu e empalideceu ao mesmo tempo.
Então, ele apressou-se em colocar as mãos na cabeça e
começou a andar para trás, perguntando:
— Quem é você? É um dos homens de Hans Wonberg?
Ele não recebeu uma resposta Um homem alto, atlético,
esportivamente vestido, com tons escuros, apareceu e se
colocou ao lado da estação, de modo que seu rosto estava na
sombra e em vez disso ele podia ver o rosto iluminado de
Pozuelo, para o qual era apontada uma imponente
automática.
— Você conhece o Hans? — perguntou o atleta, em
espanhol, mas com um claro sotaque alemão.
— Parece-me — disse Pozuelo, — que ambos somos
amigos de Wonberg. Caso contrário, não saberíamos deste
lugar.
— Até onde eu sei, desde que Hans me chamou aqui.
Onde está ele?
— Morreu.
— Não me diga. Eu o vi esta manhã, e lhe disse que
estava procurando por ele, porque outro colega tinha me dito
que estava aqui... Ele me disse que estava feliz em me
conhecer e que, na verdade, tinha algo para mim.
— A que horas você viu?
— Antes das dez.
— Eles o mataram ao meio-dia. Hans lhe ofereceu um
emprego?
— Droga! — murmurou o atleta. — É claro que ele me
ofereceu um emprego! Já fizemos algumas coisas antes,
especialmente na África... Quem teve culhões suficientes
para encarregar-se do Hans?
— Uma mulher.
— Não me diga — sorriu o atleta. — Vamos lá, não diga
coisas estúpidas.
— Ouça, eu sou o chefe de Hans Wonberg, que o
contratou para fazer um trabalho aqui, no Perucuador.
Podemos nos entender... se você tem a categoria que parece.
Como se chama?
— Klaus Plumm. Hans falou de mim?
— Não Mas isso não importa... Posso baixar minhas
mãos?
— Claro — resmungou Plumm, guardando a arma sob a
axila. — Então uma mulher, hein? Quem é essa mudana e
onde posso encontrá-la?
— Fácil! — Stanislao Pozuelo começou a sorrir. —
Como você é como profissional, Plumm? Poderia liderar um
grupo de trinta ou quarenta homens?
— É a única coisa que sei fazer. Mas não me diga que
você não tem o homem certo, porque eu sei que Hans sempre
conseguiu pelo menos dois tenentes capazes de ocupar sua
posição em uma emergência...
— Eles também estão mortos. Ela os matou.
— Você quer dizer... a mesma mulher?
— Sim. Mas não se engane, Klaus: ela é uma espiã
americana bem treinada.
— Você está fazendo algo em que a CIA intervém?
— Sim, mais ou menos.
— Não me interessa. Adeus. Sinto muito por Hans...
— Eu posso te pagar cinco milhões de dólares.
Klaus Plumm ficou pregado no chão após o primeiro
passo de distância. Ele virou a cabeça e olhou
especulativamente para Pozuelo. De repente, sorriu.
— Sim. Cinco milhões de dólares. Dólares americanos,
claro.
— Claro.
— Ei, isso é algum tipo de piada, né? Está brincando com
alguém que não tem muita paciência para brincadeiras...
Quer dizer, não gosto desse tipo de piada.
— Se trabalhar para mim, você pode ter meio milhão de
dólares amanhã e cinco milhões a mais em um mês ou dois.
Klaus Plumm olhou para a emissora, olhou para Pozuelo,
franziu a testa, acariciou o queixo, olhou para as pálpebras
de Pozuelo, olhou novamente para a emissora, para
Pozuelo...
— Droga! — sorriu de repente, como um lobo, — você
começa a parecer-me simpático, senhor... senhor...
— Chame-me El Indio — sorriu Pozuelo. — Mova essa
caixa e vamos sentar em frente à emissora: temos que
conversar você e eu, para nos entender-mos bem antes de
fazer uma chamada para o acampamento onde seus homens
estão.
— Meus homens?
— Aqueles que Wonberg comandava. De agora em
diante, você os comandará... Nós dois tivemos sorte com
essa reunião, Plumm, você pode acreditar em mim. A menos
que você seja um desses sujeitos que, de tempos em tempos,
têm escrúpulos.
— Por quinhentos mil dólares — Klaus Plumm sorriu. —
Eu nem sei o que essa palavra significa. Por cinco milhões
eu acabo com toda a humanidade, começando com a minha
mãe.
— Heh! Heh! — riu El Indio. — Heh, heh, heh! Vamos
falar agora sobre o desfile de amanhã, que será histórico...
Acho que vai ficar na história!
***
No camarote presidencial, havia uma convidada
excepcional: a senhorita Brigitte Montfort, a jornalista norte-
americana que voera ao Perucuador para escrever uma
extensa matéria sobre o massacre de Macapinchá.
Para surpresa de todos, o vice-presidente Leocadio
Salgado convidou-a para assistir ao desfile no camarote onde
todas as personalidades relevantes de Perucuador haviam se
encontrado naquela manhã. Havia um total de vinte e três
pessoas ocupando o grande palco instalado na Avenida de la
Libertad.
Perto da senhorita Montfort estava o capitão Teófilo
Andrade, pálido, mas firme, suportando sua ferida com
integridade digna da causa.
O presidente Salvatierra ficou encantado com a presença
de Brigitte, que, é claro, ele conhecia como jornalista. Os
outros convidados no camarote também ficaram encantados
com a beleza e a simpatia da jornalista. Na verdade, todos
pareciam felizes e contentes... exceto pelo vice-presidente
Salgado.
— Tem certeza de que nada vai falhar? — perguntou
mais uma vez, inclinando-se para Brigitte Montfort.
— Segura.
— E sim...?
— Seja gentil e se acalme de uma vez por todas. O
capitão Andrade e um bom amigo meu fizeram um trabalho
perfeito, garanto.
Leocadio Salgado passou um dedo pelo colarinho da
camisa e respirou fundo. O dia estava lindo, resplandecente.
A Avenida de la Libertad, a principal artéria de Nova
Andina, provavelmente acolhia mais de trezentas mil pessoas
ao longo de todo o percurso que logo fariam as forças
armadas do país.
Brigitte estava agora conversando com o presidente
Salvatierra. Salgado esperou até acabar e voltou à carga com
suas perguntas.
— E onde está Pozuelo agora?
— Não se preocupe com ele. Está controlado. Mas ele
tem que ficar livre, porque se ele realmente está a serviço de
um grupo de pessoas que se chamam Los Indios
Libertadores, ele terá que prestar contas quando seu plano
falhar. E então, quando você se encontrar com essas pessoas,
será a hora da nossa última intervenção.
— Miss Montfort: se algo do que você planejou falhar...
Ela fez um gesto de resignação, levantando os olhos mais
bonitos que o próprio céu andino. No começo da avenida, o
barulho e a música podiam ser ouvidos. O desfile havia
começado. A atmosfera estava cheia de sugestões marciais.
A multidão estava gritando.
Os poucos tanques de batalha fizeram o pavimento ranger...
Por um momento, Brigitte também pensou na
possibilidade de que os planos de El Indio fossem realizados
como ele os planejara, com base no fato de que as tropas de
Perucuador desfilavam com armas, mas não com munição.
Era natural que Salgado estivesse com sua alma em
agonia.
A explicação que Montfort fornecera em relação aos
planos de Pozuelo não foi à toa: quando os tanques
passassem diante do camarote presidencial, um deles (que
carregaria secretamente munição) se desviaria da formação e
da abordagem, para o palco, na frente do qual pararia...
***
Perdido na multidão a cerca de cem metros do camarote
presidencial, El Indio viu as tropas se aproximando e sua
impaciência aumentou.
Ah, não via o momento em que seus planos longos e
cuidadosamente elaborados se realizassem!
Queria presenciá-los. Eu queria estar lá do começo ao
fim.
Primeiro, um dos tanques de batalha, tripulado por
oficiais subornados, se aproximaria do camarote
presidencial, pararia, e o oficial que o comandava apareceria
na torre e exigiria os cinco milhões de dólares...
— Heh, heh, heh — riu Pozuelo. — Heh, heh, heh!
Ninguém o notou. Se tivessem, teriam se interessado por
aquele sujeito insignificante de expressão fanatizada. Mas
ninguém ouviu sua risada, nem olhou para ele. As forças
armadas se aproximavam desde o início da Avenida de la
Libertad.
Sim, o oficial exigiria o dinheiro, o entregariam, e então
ele colocaria dentro do carro de batalha, que recuaria um
pouco. E então, quando todos pensassem que voltaria a
formação ou fugiria, a tripulação de combate dispararia com
o canhão e com as metralhadoras contra todos os ocupantes
do camarote presidencial.
Contra todos.
Seriam despedaçados.
Não só ninguém seria deixado vivo lá, como seria
impossível se juntar todos os pedaços da mesma pessoa...
— Heh, heh, heh!
Seria um belo massacre! Ainda mais bonito que
Macapinchá! Porque no final das contas, em Macapinchá
não se matou ninguém. Ninguém. Acaso cinquenta índios
seriam alguém? Acaso meia centena de índios repugnantes
tem algum valor de alguma forma? Milhares e milhares de
pessoas, indianos ou não, têm algum valor? Bah! Ele sim,
tinha valor, ele era uma pessoa de qualidade...! Sempre o
relegaram a posições insignificantes. Havia colaborado em
tudo, do começo ao fim. E que prêmio lhe concederam
quando, por fim, Perucuador conseguiu sua independência.
Um trabalho burocrático. Um trabalho burocrático, para ele,
que merecia um dos cargos mais altos, por sua dedicação,
por sua inteligência, por sua grande capacidade política que
em nenhum momento ninguém quis reconhecer! Mas logo
todos eles saldariam o seu erro. Todos, não apenas
perucuatorianos. Quando o carro de batalha exterminasse
todos os personagens atualmente úteis ao Governo de
Perucuador, não restaria ninguém vivo que pudesse assumir
o comando da nação.
Então, o mundo inteiro descobriria a existência de
Estanislao Pozuelo Perea.
Quanto aos Estados Unidos, não teria nenhum problema
em continuar a enganá-los. Iria lhes sacando grandes
quantias de dinheiro, sempre fingindo que eram os índios
libertadores que exigiam isso... quando na verdade seriam
seus mercenários, agora dirigidos por Klaus Plumm. Ele teve
sorte de encontrar Plumm, pois era ainda mais duro e acima
de tudo mais inteligente que Wonberg!
Podiam enganar a própria CIA, como até agora. Ele havia
compreendido que a CIA, por força, iria intervir pelo
sucedido em Macapinchá, então ele teve a grande idéia: ser o
único a pedir ajuda dos Estados Unidos.
Isso fora genial! Já que a CIA iria intervir de qualquer
maneira... por que não chama-los, entrar em contato com
eles e saber o tempo todo o que eles estavam planejando, a
fim de prevenir seus futuros movimentos? Genial! Tudo
genial.
Em pouco tempo, ele seria eleito presidente do
Perucuador, porque não haveria ninguém melhor do que ele,
finalmente.
Ele teria o exército de um lado e os mercenários do outro,
com Plumm à frente. Todos dançariam conforme a sua
música. Com o dinheiro que viria para os Estados Unidos
pagaria os mercenários; com os mercenários, massacraria as
pessoas que, enquanto isso, o aclamariam como seu grande
herói providencial...
Ah, como era bom poder se vingar; poder rir de todos os
que, até então, ainda não tinha notado que havia alguém
chamado Estanislao Pozuelo!
O grito da multidão tirou-o de sua gloriosa auto-absorção.
Ele retornou à realidade atual. Ele viu um tanque de guerra
saindo da formação e se aproximando do camarote
presidencial. A grande parada militar se havia detido. O
carro de batalha chegou diante do camarote. O presidente
Salvatierra estava saudando militarmente, com aquela
bravura dele, com aquela elegância, aquela personalidade
que ele tanto odiava...
— Pois bem, agora veremos — disse El Indio em voz
alta. — Heh, heh, heh! Agora você vai ver!
O carro de batalha parou bem em frente ao camarote,
quase tocando-o. A torre foi aberta, e um jovem oficial,
carregando uma bandeira com as cores do país e o emblema,
que a partir daquele momento distinguiriam as forças
armadas do Perucuador. Caminhando sobre o carro de
combate, o jovem oficial se aproximou da borda do
camarote, e entregou a bandeira de Salvatierra, que a agitou,
fazendo-a flamear.
O rugido da multidão nem sequer foi ouvido por El Indio.
O que estava acontecendo lá?
O jovem oficial retornou ao seu veículo de guerra. O
presidente Salvatierra não estava cumprimentando as forças
armadas agora, mas agitando a bandeira à passagem das
forças armadas.
El Indio tinha a mente vazia.
O tanque de batalha havia retornado à formação, o desfile
continuou normalmente. Eles agora passavam em frente ao
próprio Pozuelo, que não conseguia reagir. Ao redor dele, as
pessoas gritavam, rugiam, agitavam bandeiras...
Finalmente, El Indio compreendeu e seu rosto estava sem
sangue. Seu corpo inteiro de repente parecia um pedaço de
gelo. Reagindo, se virou e abriu passagem para deixar a
massa de espectadores. O desfile continuou.
El Indio se afastou da Avenida de la Libertad, quase
correndo pelas ruas solitárias, como só na avenida haviam
pessoas, testemunhando o desfile, o primeiro desfile de sua
primeira força militar.
Usando o carro que havia deixado a uma curta distância,
El Indio moveu-se rapidamente para a antiga loja de
bicicletas, e desceu para o porão onde o rádio estava. Ele
ficou tão ofuscado que nem ouviu os ratos.
Ratos em todos as partes.
Ele acendeu a pequena lâmpada, sentou-se na estação, e
cego para tudo ao seu redor, começou a manipulá-la. Tinha
que entrar em contato com Plumm, tinha que saber o que
acontecera. Ah, possivelmente o próprio Plumm o havia
traído, talvez esse Plumm fosse parte de uma armadilha, de
um complô contra ele...
— Vá em frente — ele ouviu a voz.
— Eu quero falar com Plumm — ele exigiu — eu sou o
El Indio!
— Eu sou Plumm. Eu espero que você reconheça minha
voz.
— Sim... o que aconteceu? Por que meus planos não
foram executados como planejado? Ontem nós
concordamos, e pareceu-me que tudo estava claro, não era?
— Perfeitamente — a voz de Plumm era clara e calma, e
não tinha agora o sotaque alemão, seu espanhol foi perfeito.
— Mas achamos por bem alterar ligeiramente os seus
planos: as forças armadas vão agora se dirigir para o campo,
onde os mercenários estão instalados, sem meios de
transporte, e todos serão julgados imediatamente e filmados
no local, ali mesmo. Para o resto, Perucuador caminha em
direção a seu futuro, sem você, senhor Pozuelo.
— Eu vou fazer você se arrepender disso — El Indio
uivou. — Eu vou fazer você chorar lágrimas de sangue!
— Você sozinho? Ou com a ajuda de Los Indios
Libertadores, seus amigos e chefes que estão por trás de tudo
isso?
— Eu não tenho amigos! Eu não tenho chefes! Eu sou
Los Indios Libertadores! Eu sou tudo, você pode me ouvir?!
Tudo!
— Você é apenas um pobre diabo enlouquecido pela
inveja e vaidade. Ela estava certa quando me disse que era
tudo coisa de você e que era apenas um pobre diabo que se
sentia postergado e louco de raiva. Ela e eu temos tropeçado
com grandes loucos e perigosos ambiciosos, mas mesmo que
a humanidade esteja degenerando, e até mesmo cometendo
truques sujos por bens materiais ou ambições mais ou menos
lógicas, pois são puníveis. Já, simplesmente, a podridão não
tem limites. Você é o patife mais insignificante com quem
tropeçamos, mas sem dúvida faz parte da ralé mais perigosa.
Ela o analisou bem, depois de suspeitar de você.
— Quem é ela? E do que suspeitou?
— Ele suspeitou quando você falou dos primeiros cinco
milhões, o que a fez entender que a intenção do Los Indios
Libertadores era continuar pedindo dinheiro. Então, isso foi
confirmado. E finalmente, ela deixou você e Luciano
Sánchez livres para ver se ambos concordavam ou era
apenas você quem estava envolvido nisso, ou simplesmente,
ela estava errada. Você foi à loja de bicicletas, onde você
está agora, e com isso, tudo foi esclarecido. A última coisa
que tínhamos que saber era se realmente estava a serviço de
Los Indios Libertadores, ou de alguém, ou então era tudo da
sua conta. Agora sabemos que tudo é coisa sua. Adeus,
Indio.
— Espere! Quem é ela? Refere-se a Persona?
— Ela mesma.
— Está com você?
— Não. Ele está no camarote presidencial. Quando o
desfile terminar vamos nos encontrar, celebraremos seu
assassinato e então você será esquecido, esqueceremos o que
aconteceu, e passaremos alguns dias neste pequeno e belo
novo país, visitando seus picos nevados, observando as
llamas e invejando o vôo do condor. A conversa acabou.
A comunicação foi cortada.
El Indio chamou Klaus Plumm a gritou, ameaçou,
exigiu... e finalmente ficou calado, ofegante, sua expressão
exorbitante de raiva, ódio, ressentimento, por tantas coisas
que sua mente podia apodrecer.
De repente, ele percebeu que estava ouvindo os ratos.
Ele se virou e viu à sua direita a grande pilha de ratos. Ele
pegou a lâmpada de gás e se aproximou, ainda atordoado...
Os ratos estavam em cima de algo, mas eles se afastaram
quando ele se aproximou, deixando a descoberto aquele
corpo humano quase completamente devorado. Ainda
demorou quase meio minuto para que El Indio reconhecesse
as feições parcialmente comidas do cadáver: Hans Wonberg.
Ele estremeceu da cabeça aos pés, e virou-se, pronto para
sair de lá com pressa...
Então, ele viu Luciano Sánchez.
Ele estava de frente para ele, olhando para ele com uma
fixação aterrorizante. Suas feições pareciam cera e seus
olhos ardiam. Por um momento, El Indio achou que Luciano
era uma aparição, uma visão, uma alucinação. Mas de
repente, Luciano se moveu, mostrando o grande facão que
segurava sua mão direita.
Então ele entendeu o que Klaus Plumm quis dizer quando
falou em “celebrar seu assassinato”.
— Não — El Indio engasgou. — Não, espere, não, eu
vou explicar...
O índio andino, o verdadeiro índio, aproximou-se de El
Indio e, sem dizer uma única palavra, o matou com um único
e tremendo golpe que quase o decapitou. A lâmpada de gás
caiu no chão, mas, surpreendentemente, não quebrou, nada
aconteceu.
Iluminou o vulto de Luciano quando este saiu do local.
Iluminou os ratos quando eles reapareceram prontos para
se darem outro banquete.

ESTE É O FINAL
Com efeito, por fim descobriram um condor.
Apenas um
Voava majestosamente, dando a impressão de que estava
mais perto do Céu do que da Terra.
Estiveram o observavam em silêncio enquanto descrevia
alguns círculos, como se soubesse que dois seres humanos de
alta qualidade estavam observando-o e queriam agradá-los.
Então, voando como se estivesse flutuando, perdia-se a
distância, em direção aos altos picos andinos.
O sol parecia esplendidamente.
Deitados sobre a manta extendida ao lado da tenda de
campanha, a senhorita Montfort e o cavalheiro cujo
passaporte estava em nome de Carlos Thomas, estiveram
imóveis por mais de um minuto. Finalmente, ela se virou
para ele.
— Bem — suspirou, — nós já vimos um condor, então
podemos sair daqui.
Número Um olhou para os olhos azuis de Brigitte. Então
o céu também ficou azul. Ele olhou para as montanhas, o
Land Rover com o qual haviam chegado àquele lugar
remoto, onde instalaram o solitário e simples acampamento,
a excelente tenda militar que Andrade se empenhara para
fornecer-lhes... Mais uma vez olhou para o céu e as
montanhas... e novamente os olhos da mulher que ele amava
mais do que a sua própria vida.
— Eu não estou com pressa — disse ele finalmente.
— Eu pensei que você estava ansioso para voltar a Villa
Tartaruga.
— Eu não me importo onde estou se estou com você. O
que acontece é que tenho a impressão de que, em Villa
Tartaruga, estou a salvo dos perigos do mundo. Mas eu não
tenho nenhum problema em continuar a nossa lua de mel
neste lugar.
Brigitte abraçou o pescoço e sussurrou:
— Então vamos ficar aqui... até o próximo condor passar.

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