Você está na página 1de 93

© 1989 – Antônio Vera Ramirez

“Próxima Mumanidad”
Tradução de Izabel Xrisô Baroni
Ilustração de Benicio
Colaboração de
Sérgio Bellebone
® 540911
551208
CAPÍTULO PRIMEIRO
O poeta filósofo

Todo o bairro chinês sentia-se consternado com a morte


de Wo Peng. O velho poeta fora uma pessoa agradável,
simpática que sempre tinha palavras apropriadas para
aconselhar ou consolar os amigos. Alguns falavam que
talvez ele fosse a última reencarnação de Confúcio, porém
muitos outros discordavam, dizendo que isso não passava de
um grande exagero.
No entanto, todos concordavam em um ponto: sem
dúvida alguma Wo Peng fora um grande filósofo. Viveu
vários anos no bairro chinês de Nova Iorque e naquele
momento, todo Chinatown lhe prestava a última
homenagem.
Nunca se aborrecera com alguém. Tinha dois livros de
poemas editados e um outro livro, ao qual dera o título de
“Eternidade” e que na verdade, nada mais era do que uma
pesquisa estranha a respeito de suas dúvidas sobre a
existência ou não da morte.
Não obstante, a morte existia e naquele dia Wo Peng já
não devia ter mais dúvidas sobre ela, pois de um momento
para o outro fora para seu reino e domínios.
Seu falecimento ocorrera de uma forma nada compatível
com a sensibilidade de um poeta pacífico, delicado, filósofo
e dotado de emotividade.
Fora encontrado morto, crivado de balas em seu próprio
domicílio e agora, um dia mais tarde, seu cadáver estava
exposto na câmara ardente, a fim de todos os amigos
velarem-no silenciosa e reverentemente.
— Não sei o que nós dois estamos fazendo aqui —
reclamou Frank Minello. — Repare, só nós não somos
chineses.
Brigitte Montfort, a colunista do “Morning News”,
famosa internacionalmente, olhou para o amigo com seus
olhos azuis que encantavam a todos que dela se
aproximavam e sussurrou:
— Estou aqui porque sei que pessoas de outras raças
vieram prestar-lhe suas últimas homenagens.
— Podem ter vindo, mas neste momento só vejo chineses
a minha volta e não gosto como nos olham.
— Frankie, pare de ficar procurando problemas.
— Tenho a impressão que todos nos olham como se nos
achassem culpados por esse assassinato horroroso. Parece
que todos nos estão acusando pela morte desse macaco
velho.
— Frankie, por favor, para de falar tantas besteiras.
Todos nos olham com naturalidade e Wo Peng não pode ser
chamado de macaco velho.
— Ele já estava velho, não estava? E para mim todos os
velhos se parecem com macacos, especialmente os velhos
chineses. Eu também já estou ficando velho e muitas vezes
quando me observo no espelho, murmuro: “coitadinho do
Frankie, ontem era um galã que incendiava corações e hoje
está ficando igualzinho a um macaco velho!”
— Você me poderia fazer um grande favor?
— Deusa de minha vida, estou velho, mas sempre pronto
para servi-la!
— Muito bem, por ora, só desejo que feche essa boca e
fique calado.
Frankie sorriu e se calou. Estavam quase chegando ao
cadafalso branco onde colocaram o ataúde do velho poeta
assassinado. A fila estava longa e os chineses
silenciosamente iam despedindo-se do amigo que os
abandonava.
O velório estava acontecendo na maior loja de
antiguidades e objetos de arte dentre as muitas que a família
Peng tinha em Nova Iorque, exatamente naquela onde o
poeta passara seus últimos anos simulando trabalhar, mas na
realidade, dedicando-se exclusivamente a sua grande paixão:
à literatura filosófica.
Aquela reclusão espontânea do velho patriarca não
surpreendeu ninguém. Todos os filósofos apreciam a solidão.
E talvez por saberem disso, alguém chegara sorrateiramente
ao apartamento de Wo Peng, que ficava exatamente sobre a
loja em que estava sendo velado, para crivá-lo de balas.
Finalmente Brigitte chegou junto ao cadáver e o
contemplou: mais parecia um espantalho de palha seca
vestido inteiramente de branco e repousando em um caixão
também revestido de babados de filó branco. O poeta morto
mantinha o rosto sereno e naquele instante, seu cavanhaque
parecia mais grisalho do que quando vivo e as sobrancelhas
se assemelhavam a dois montinhos de neve sobre as
pálpebras sem vida.
A senhorita Montfort parou e ficou contemplando
detidamente o rosto do posta chinês, que mais parecia uma
máscara apergaminhada. Como todos também se sentia
surpresa com aquele fim trágico do velho Peng. Estava
surpresa com o crime, mas não tanto como muitas pessoas
que o homenageavam consternadamente naquela manhã.
Seu raciocínio era direto e simples. Nunca encontrara um
caso no qual alguém matasse por simples capricho. Para cada
crime sempre há uma causa e quem matara Wo Peng
também devia ter “seus” motivos.
“Quais seriam estes motivos?” — se perguntava a
senhorita Montfort. — “Seriam literários ou filosóficos?
Claro que nem um ou outro, pois ninguém mataria alguém
somente por dedicar-se a pesquisas dessa natureza, pelo
menos, neste final do século XX”.
Chegou a estremecer quando sentiu a pressão da mão de
Frankie em seu ombro e só então, notou que parara junto do
féretro contemplando o cadáver e que as outras pessoas da
fila já começavam a demonstrar irritação. Afastou-se
lentamente e o desfile foi reiniciado por entre estantes
repletas de objetos delicados, todos feitos de jade, marfim,
cristal...
Possivelmente, os filhos de Wo Peng o estavam velando
naquela loja de antiguidades por estarem convencidos que
desse modo, estariam realizando os desejos do pai que
adorava ficar entre seus objetos de arte e rodeado de amigos.
Muitos poderiam pensar que tudo não passava de tolices e
pieguices orientais, mas ela discordava, sobretudo ao pensar
que muitos “grandes” personagens fizeram questão de se
despedirem do mundo sob salvas de canhões. E o que
determinava a diferença entre as duas despedidas? Algo
muito simples para ser respondido porque enquanto esses
“grandes” senhores atravessaram a vida organizando guerras
e exterminando homens, mulheres e crianças, um poeta
como Wo Peng gastara seus dias escrevendo versos, poemas
e tratados filosóficos que geravam ilusões e incrementavam
sonhos...
— Senhorita Montfort.
Brigitte olhou para o jovem chinês que estava a seu lado.
Era um dos netos de Wo Peng, mas não conseguia lembrar-
se de seu nome.
— Sou Dick Peng. Poderia acompanhar-me somente por
alguns segundos?
Ela sorriu mais uma vez e seguiu o jovem que quase em
seguida, depois de atravessar um corredor com muitas
portas, levantou uma cortina para lhe dar passagem. Frankie
que os acompanhara, naquele instante não se conteve mais e
exclamou com fúria:
— Eu vou com ela, não pense que vou ficar!
— Por favor, senhor Minello — sorriu o chinês
afastando-se para que ele entrasse.
— Como?... De onde?... Como sabe meu nome?
— E quem não sabe o nome do maior repórter esportivo?
De todos é o meu preferido e também sei que é um grande
amigo da senhorita Montfort.
Frankie não soube o que responder, entrou num escritório
onde estavam mais de doze chineses desconhecidos para ele,
mas não para sua colega que rapidamente os identificou
como filhos e netos do poeta morto.
O mais velho deste grupo se levantou, ofereceu duas
poltronas aos visitantes e apresentou-lhes os parentes.
Brigitte também apresentou o amigo que todos já conheciam.
— Perdoe-nos por retê-la aqui, senhorita Montfort —
começou o filho mais velho do poeta morto. — Não
podíamos deixar de agradecer-lhe pessoalmente o apoio que
nos propiciou.
— O que eu fiz não tem importância — atalhou Brigitte.
— Se não tivesse interferido, talvez o corpo de meu pai
ainda continuasse no necrotério. Afinal de contas, ele foi
assassinado e dificilmente a polícia teria liberado o corpo em
questão de algumas horas. Só podemos agradecer-lhe por ter
utilizado seus amigos em nosso favor.
— Wo Peng era uma pessoa inteligente e honesta. Nada
me custou mobilizar alguns amigos. No entanto, desejo que
saibam que sinceramente lamento o ocorrido. Já têm ideia de
quem poderia ter cometido o homicídio e por quê o realizou?
O silêncio se fez. Todos os homens que se encontravam
na sala a fitaram fixamente e de repente, o filho mais velho
indicou Dick.
— Ele a acompanhará, senhorita Montfort. Pedimos sua
permissão para de novo voltarmos a loja e atendermos aos
amigos que vieram despedir-se de nosso ser querido. Mais
uma vez, muito obrigado por tudo.
Todos saíram e só Dick permaneceu no escritório. Este
mostrou a porta e os três saíram. Percorreram um outro
corredor que ia desembocar numa escada. Subiram e
chegaram a um patamar pequeno. Dick abriu uma porta e
disse:
— Este é o apartamento do avô Peng.
Constava de uma sala, dois quartos, banheiro e cozinha.
A sala mais parecia um prolongamento da loja, decorada
com objetos de arte de valor inestimável, mas nem por isso,
podia-se dizer que fosse um museu de antiguidades, pois
havia vários detalhes modernos, como o inevitável televisor
colorido, um toca-discos de alta fidelidade e o que mais
surpreendeu Brigitte, um computador1.
Dick se dirigiu precisamente para este último aparelho.
Sentou-se diante do monitor e o acendeu. Só então se virou
para seus acompanhantes.
— Aproximem-se, por favor. Eu e meu avô
costumávamos trabalhar com este computador.
1
Só para lembrar, em 1980 os computadores de mesa ainda eram uma
raridade nas residências. Muito mais pela pouca utilidade que tinha, pois a internet
não era tão popularizada e os preços eram elevados. Algo como o equivalente a
um carro novo. (Nota do revisor)
— Não esperava ver nada parecido com ele neste
apartamento — disse Frank Minello, realmente admirado.
— Bem, meu avô era velho, mas nem por isso era um
homem pré-histórico. Na verdade, a maior parte de seus
poemas estão escritos em chinês e naturalmente a mão. No
entanto, utilizava este aparelho para escrever os textos mais
longos ou manipular suas ideias. Um processador de textos é
de muita utilidade àqueles que têm o hábito de escrever
muito. Os senhores devem saber disso.
— E como... — concordou Brigitte. — Já faz tempo que
abandonei a máquina de escrever para usar um computador
portátil. Acho que ninguém deve desdenhar as facilidades
que lhe são oferecidas pela tecnologia.
— É como também penso. Bem, aqui temos o programa...
Meu avô me permitia utilizá-lo e me ensinava muitas coisas
sobre literatura, poesia e arte em geral e eu lhe ensinava
como utilizar este aparelho que lhe dava tantas facilidades.
Era inteligente e rapidamente aprendeu a manuseá-lo. Este
aparelho facilita a criação de milhares de ideias e as grava
como se se tratasse de um arquivo comum. Quando se quer
conferir o conteúdo de alguma dessas ideias, assunto ou obra
que estejam arquivados, basta impulsionar a tecla “X” e
imediatamente surgirá na tela o que estamos procurando
saber. Pois bem, eu e meu avô temos aqui dentro, arquivados
na memória deste aparelho, uma imensidão de escritos,
sejam estes poemas, cartas, dados eletrônicos ou o inventário
sempre em dia de tudo que há nesta loja e... mais algumas
coisas que não vêm ao caso.
— Sei como tudo se processa em seu interior — disse
Brigitte. — Conheço o sistema.
— Como pode imaginar, meu avô tem vários códigos
arquivados. Cada um deles relacionado a um assunto e todos
codificados sob o nome de “Atualidades”. Neles, meu avô ia
anotando as experiências de cada dia. Cada mês repassava
fichário e as coisas que já não o interessavam, apagava-as
simplesmente, enquanto as outras continuavam vigentes na
memória do aparelho e em certas ocasiões, consultava o que
estava gravado para incluí-lo em seus poemas ou
dissertações filosóficas.
— Eu também costumo usar sistema semelhante
— Bem, agora vou mostrar-lhes um pouco do que está
gravado no fichário de “Atualidades”.
Dick Peng manipulou certas teclas do aparelho e na tela
foram aparecendo algumas indicações e finalmente, o texto.
Este continha comentários sobre temas filosóficos, alguns
poemas, frases que deveriam ser buriladas quando
aproveitadas em outros textos.
De repente, uma parte de texto ficou fixo na tela e o
jovem chinês murmurou:
— Muitas vezes, eu manuseava este aparelho que
pertencia ao meu avô. Eu o admirava e tinha curiosidade de
descobrir todos os pensamentos que passassem por sua
mente, mas sinceramente jamais compreendi este texto que
está à nossa frente. Pensei que talvez a senhorita Montfort
pudesse interpretá-lo com toda sua vivência e experiência.
O rapaz se levantou e ofereceu sua cadeira a Brigitte.
Minello, como bem se podia prever, colocou-se a seu lado,
inclinando-se para também ler o que estava gravado. E
leram:
Suas ideias estão indo longe demais e na
minha opinião as mesmas me parecem um
tanto incoerentes.
Não é que eu negue a possibilidade de
alcançá-las, mas certas questões não são tão
facilmente manipuláveis. Uma coisa é a
manipulação científica sobre tipos genéticos
que hoje está a pleno vapor e outra, é
pretender êxito total quanto ao controle da
“próxima humanidade” que está sendo
tramada. Esse negro maldito não está
pensando quais as consequências que poderão
advir com a chegada da “próxima
humanidade”, isso se realmente conseguir
concretizá-la.
Está tão obcecado com a ideia que começo
a temer que de um momento para o outro,
decida prosseguir sozinho sem me dar outras
explicações. Reconheço que é audaz, valente e
muito inteligente. Na verdade, eu gostaria de
unir-me a ele, mas não me atrevo. Não
somente pelo temor de um fracasso, como
também pelo imprevisível do plano.
Talvez fosse aconselhável marcar uma
entrevista com ela, mas se deve ter muito
cuidado, não propriamente por ela, mas pelos
que estão atrás dela. Afirmo-lhe sinceramente
que não é seu respaldo de jornalista que me
preocupa, embora saiba que a senhorita
Montfort pertence ao primeiro escalão de sua
profissão. O que me atemoriza é a parte
negativa de sua vida e talvez esta acabe
prevalecendo sobre a outra que todos nós
conhecemos.
O negro está louco completamente. Perdeu
o juízo e vai perder também a alma. O pior é
que além de perder sua alma também fará com
que todos que o acompanham, terminem tão
desalmados como ele próprio.
Vou conceder-me três dias de reflexão e se
neste prazo não encontrar algo que me
convença sobre o problema, dar-lhe-ei um
outro ultimatum.
Infelizmente o primeiro ultimatum foi
recusado e eu não sei o que fazer. Creio que
deveria chamá-la porque qualquer coisa que
possa acontecer, de forma alguma, poderá ser
pior do que aquilo que ele está arquitetando.

Brigitte terminou a leitura do texto que aparecia no visor


e murmurou:
— Não entendi.
— A senhorita gostaria de ter uma cópia?
— Sim, por favor — retrucou, levantando-se.
Dick Peng ligou a impressora que estava colocada à
esquerda do computador e se sentou novamente na cadeira
que Brigitte deixara.
— Afinal o que significa isso? — perguntou Minello.
— Não sei, Frankie. E me parece que Dick tampouco
sabe o que é.
— Não sei mesmo — murmurou o chinês. — É verdade
que eu e meu avô muitas vezes falávamos sobre a senhorita
Montfort, a colunista mais famosa do mundo, mas realmente
fiquei surpreso quando vi que a incluíam nesta mensagem
que não consigo entender absolutamente. Tampouco entendi
a alusão feita à parte negativa de sua vida e muito menos,
sobre o que falaram a respeito da “próxima humanidade”.
— Por quê não pediu explicações a seu avô?
— Nunca tive coragem de perguntar-lhe o significado das
coisas, pois sabia que ele sempre acabava esclarecendo todas
as minhas dúvidas no seu devido tempo. Se meu avô
estivesse vivo, eu jamais iria mostrar-lhe este texto, mas
agora, penso que talvez ele esteja relacionado com sua mente
brutal.
— Talvez tudo ficasse mais claro se descobríssemos
quem é o “negro maldito”. Desconfia de alguém?
— Não.
— E o que sabe sobre essas manipulações de tipos
genéticos que seu avô mencionou? E o que é a “próxima
humanidade”?
— Também nada sei sobre este assunto. Hoje me
arrependo de nunca ter feito perguntas mais diretas a meu
avô, mas era ele quem sempre escolhia os temas de nossas
conversas, de nossas confidências e até mesmo das
explicações que me dava.
Dick Peng imprimiu o texto, arrancou a página e a
entregou a espiã. Brigitte dobrou-a e a guardou na bolsa.
— Agora preciso ir, Dick, mas se eu encontrar alguma
explicação para o que acabamos de ler, entrarei em
comunicação direta com você. Sinceramente, lamento por
tudo que a família Peng está passando.
CAPÍTULO SEGUNDO
Charles Alan Pitzer entrou na saleta do apartamento de
Brigitte com ar triunfal, como se estivesse convencido que
iam ficar pasmos com a notícia que trazia.
— Adivinhem o que conseguimos levantar sobre o
chinês?
— Não me diga que ele foi um agente secreto da velha
China comunista, tio Charlie... — respondeu Brigitte com
muita candura.
Pitzer teve ímpeto de sair imediatamente, mas ficou
olhando para ela como quando era jovem e a iniciara na
espionagem.
Frank Minello soltou uma gargalhada estrondosa.
— Esse velho nunca pensou que fosse, ser rebaixado
dessa maneira. Quis surpreender-nos e acabou sendo
surpreendido.
— Quem pensa que é para estar envolvendo-se em um
caso de tal envergadura? — exclamou Pitzer rubro de raiva.
— Sou um homem livre e posso fazer o que tiver vontade
e tudo que interessa a Brigitte também me interessa,
entendeu, velho? Não tenho culpa se nossa amiga é meio
fada, bruxa ou adivinha. Concorda?
Charles Alan Pitzer sorriu, pois não poderia negar o que
Frankie falara com tanta empolgação. Sentou-se em uma
cadeira e suspirou.
— Tio Charlie, por favor não fique chateado, você
sempre dizia que sua menina devia ser bastante esperta para
nunca ser jogada para escanteio. Assim que li o texto que
apareceu no visor, compreendi que Wo Peng sabia quem era
a agente Baby. Não importa como obteve esta informação,
mas gostaria de saber por que nunca me delatou à Lien Lo
Pou ou a qualquer outro serviço secreto que lhe teriam pago
o que pedisse pela informação. Depois de muitas reflexões,
cheguei a uma conclusão que acabou envaidecendo-me:
Descobri que o poeta Wo Peng se sentia identificado comigo
e com o serviço que agente Baby realiza.
— Não vão querer que eu acredite que aquele macaco
velho era um espião de fato? — assombrou-se Frankie.
— Sim, sabidão, ele era um espião, mas já fazia mais de
sete anos que estava levando uma vida calma, dedicando-se
exclusivamente à sua loja, família e à literatura que adorava.
— Como a CIA permitiu que vivesse com tanta
tranquilidade?
— O caso não foi bem esse, meu amigo. Pensamos que
estivesse tramando algo muito importante e só por isso,
permitimos que se instalasse no Chinatown. Viveu alguns
anos sob vigilância acirrada, mas com o tempo nos cansamos
e deixamos o barco correr livremente. Wo Peng nunca havia
realizado qualquer ação semeada por violência, sangue ou
que atentasse contra a soberania dos Estados Unidos. Para
falar a verdade, os anos foram passando e ele acabou caindo
no esquecimento.
— Tudo errado! — exclamou Frankie. — Vocês o
deixaram navegar e ele se aproveitou da liberdade para se
envolver com um assunto por demais esquisito. O que são as
“manipulações genéticas” nas quais também há o
envolvimento de um “negro maldito” que nem desconfiamos
quem seja?
Pitzer se sentiu apanhado na rede, mas Peggy apareceu na
porta com uma bandeja, copos e um balde de prata cheio de
gelo picado.
— Querem o que eu trouxe? — perguntou com um
sorriso.
O velho Alan Pitzer foi o primeiro que apanhou um copo.
Provou a bebida, estalou a língua com prazer.
— A melhor coisa do mundo é champanha “Don
Perignon”!
— Especialmente quando chega a sua boca totalmente
grátis — disse Frankie.
Brigitte trocou um olhar com sua governanta e amiga. Já
estava farta daquelas brigas inúteis que certamente, só
acabariam quando um deles morresse.
— Homens de deus, por que não param com essa
discussão? Sei que os dois me amam e eu também os amo.
Por quê esse ciúme tolo?
— Você tem razão, garota. Agora só devemos pensar no
velho que conseguiu enganar-nos com toda sua paciência de
poeta e filósofo chinês — retrucou o velho Pitzer. — Agiu
com a máxima liberdade para poder preparar um prato
suculento que no final nem pôde provar, pois acabou sendo
assassinado brutalmente. Só não consigo compreender por
que pensou em se comunicar com a agente Baby? Talvez
fosse fazer isso quando alguém decidiu eliminá-lo...
— O senhor se lembra do homem morto na estação do
metrô do Canal Street? — cortou Simon-Florista. — Foi
apanhado nas linhas do trem, nas depois se comprovou que
tinha três balas no corpo?
— Um homem branco, de quarenta anos presumíveis —
lembrou Brigitte. — Pelo menos, foi isso que puderam
deduzir pelos destroços humanos que foram recolhidos na
estação do metrô. A vítima estava irreconhecível e até foi
recomendado que as imagens não fossem apresentadas na
televisão. O cadáver nem pôde ser identificado.
— Tudo certo, mas agora já está identificado — falou
Simon.
— E quem é ele?
— Fedor Ilyef, adjunto da embaixada russa e talvez um
agente da KGB.
— Droga, já estamos com um caso complicado e você me
vem com um outro, Simon? — queixou-se o velho espião. —
Estamos metidos no assassinato do velho Wo Peng e agora...
— Perdoe-me, senhor — interrompeu o Simon. — A
morte de Fedor Ilyef não se trata de um outro caso
complicado, mas faz parte da mesma complicação.
Acabamos de receber o laudo do Laboratório de Balística da
Polícia de Nova Iorque. As balas encontradas no cadáver do
metrô e as do corpo de Wo Peng foram disparadas pelas
mesmas armas. Só com uma diferença: o chinês tinha seis
orifícios no peito. Estes correspondiam a três armas distintas
e duas balas para cada pistola. O russo tinha três balaços nas
costas, disparados pelas mesmas pistolas que foram usadas
no assassinato do chinês.
Simon-Florista se calou e o silêncio reinou por alguns
segundos, até Brigitte perguntar:
— Como puderam identificar o cadáver do russo?
— Outro adjunto da embaixada russa acaba de chegar a
Nova Iorque, certo Basili Chelkunvenko. Apresentou-se e se
identificou ao pessoal de plantão no necrotério e foi ele
quem pouco depois também identificou o cadáver de Fedor
Ilyef. Tudo feito com muita facilidade e certamente esse
Chelkunvenko é outro agente da KGB.
— Que outras notícias você tem, Simon?
— Por ora, nada mais. Pensei que gostariam de saber que
dois homens foram mortos com as mesmas armas, um chinês
e um russo.
— Claro que isso poderá ser um passo importante,
Simon. Obrigado. Se surgir outra novidade, entre em contato
comigo.
— Tchau, senhor.
O velho agente fechou o rádio. Brigitte acendeu um
cigarro. Frankie acabou de tomar o champanha que estava
em seu copo e disse:
— Eta ferro, esse caso está parecendo misterioso! Um
chinês e um russo assassinados com as mesmas armas, pelos
mesmos homens e um “negro maldito” elaborando um plano
para poder controlar a próxima humanidade. Se entenderam
alguma coisa, expliquem-me porque eu não compreendi o
significado dessa “próxima humanidade” que já está
provocando mortes.
— Nem faço ideia — disse Brigitte. — Agora tem uma
coisa, até que eu aprovaria algumas mudanças radicais na
humanidade. Juro que isso não me desgostaria.
— Que horror, como você pode dizer isso! — exclamou
Frankie.
— Raciocine e me responda: Acredita que em uma
“próxima humanidade” possa existir mais desamor e mais
violência do que está grassando na atual? Na minha opinião,
por muito más que sejam as próximas mudanças jamais
poderão ser piores do que a realidade que estamos vivendo
hoje.
— O que pode significar essa “próxima humanidade” que
será controlada inteiramente por um negro? — resmungou
Alan Pitzer. — Não sei, mas muitas vezes desconfio que
talvez não estejamos interpretando acertadamente o que ela
pode significar. Talvez, quem sabe, vocês não tenham
interpretado o texto adequadamente?
— Velho, só me responda uma coisa, está querendo
insinuar que eu e Brigitte não sabemos interpretar o que
lemos?
— Evidentemente Wo Peng foi surpreendido em seu
apartamento — disse Brigitte, alheia à inimizade dos dois.
— Talvez estivesse na loja e os assassinos o obrigaram subir
a seu apartamento. Lá, o obrigaram a sentar-se em uma
poltrona e lhe meteram seis balas no corpo.
— Bem, não se pode negar que os matadores eram gentis.
Primeiro, fizeram a vítima sentar-se confortavelmente para
em seguida, dispararem — comentou Frankie.
— Não, obrigaram-no a subir porque queriam conversar
com ele. Talvez pensavam arrancar-lhe alguma informação
antes de matá-lo ou então, quisessem dar algumas ordens que
Wo Peng não aceitou. Só gostaria de saber qual dos dois foi
assassinado primeiro, Wo Peng ou o russo? Este foi baleado
na estação do metrô e depois, o derrubaram nos trilhos dos
trens, já morto — comentou Brigitte, pensativamente.
— Será que alguém não assistiu ao assassinato?
— Se até agora ninguém se apresentou para prestar
declarações à polícia, acredito que o crime não tivesse tido
testemunhas salvo se quem o assistiu preferiu permanecer
calado. E de mais a mais, tudo aconteceu tarde da noite
quando o movimento era quase nulo. Creio que somente o
russo e seus assassinos estivessem na estação.
— Como você pôde determinar a hora do crime? —
indagou Frankie.
— Baseando-me na hora em que o cadáver foi encontrado
sobre os trilhos. Quando isso aconteceu devia fazer pouco
tempo que tinham atirado em Fedor Ilyef. Tudo devia ter
acontecido entre a saída de um trem e a chegada de outro na
estação do Canal Street. Não podemos saber com exatidão a
hora que o mataram, mas se fosse mais cedo o tráfego teria
ficado interrompido durante o dia e não foi que aconteceu.
Em minha opinião os dois assassinatos foram cometidos
quase a mesma hora, um atrás do outro. Tio Charlie, se for
possível, eu gostaria que os rapazes sindicassem a respeito
do caso.
— Providenciarei isso imediatamente — concordou
Pitzer. — Eu também estou interessado para destrinchar este
fato. Quero saber qual o tipo de relação que havia entre o
adjunto russo e o poeta chinês. Também quero saber quem é
o “negro maldito”. Será que os filhos e netos de Wo Peng
não sabem quem ele é?
— Acredito que não — refutou Brigitte — mas não custa
amanhã em ligar para Dick perguntando o que ele sabe.
Talvez os familiares do velho poeta já tenham reunido dados
que poderão nos ajudar. De qualquer modo, até agora não
temos motivo para supor que o tal negro esteja envolvido
com a morte de Wo Peng. Talvez o poeta filósofo também
estivesse ligado à máfia chinesa ou algo parecido.
— Desde que li o texto que Dick Peng entregou-lhe,
comecei a desconfiar que o negro tem muito a ver com tudo
que aconteceu nestas últimas horas — comentou Pitzer.
— Um russo, um chinês e um negro — murmurou
Frankie. — Agora só está faltando a intervenção de um índio
americano no assunto. Seria a união das quatro raças básicas
da humanidade: branca, negra, amarela e vermelha.
— Tio Charlie, às vezes fico cansada de escutar as
besteiras que Frankie vive falando.
— Até que desta vez ele pode estar certo — o espião
terminou de beber o champanha e se levantou. — Vou
providenciar tudo e assim que as investigações derem frutos,
entrarei em contato com você.
— Tio Charlie, se fosse viável, eu gostaria de me
entrevistar com Basili Chelkunvenko. Evidentemente em
local aberto onde se pudesse controlar a situação. Se estamos
cercados de mistérios perigosos não devemos nos expor
demasiadamente, não acha?
— Claro, garota, verei o que posso fazer para satisfazer
seu pedido.
O chefe do Setor Nova Iorque da CIA se despediu dos
amigos e Peggy acompanhou-o à porta do apartamento
luxuosíssimo de Baby.
Brigitte e Frank ficaram sozinhos.
— Você não está sentindo saudades da “Villa
Tartaruga”?
— Quando não sinto saudades daquele paraíso?
— Se tivesse me atendido, teria ficado lá e agora não
estaria envolvida com a próxima humanidade, sua teimosa!
— Frankie, adoro roeu serviço e fico ainda mais satisfeita
quando os casos são bem difíceis e embrulhados.
— Não, sua teimosa impertinente, este não é seu serviço.
Seu trabalho é escrever reportagens interessantes que
encantam seus leitores.
— Frankie, você sabe que sempre fui mais espiã do que
jornalista!
— Estive pensando que já é hora de ir diminuindo a
velocidade do carro. Não acredita que já está chegando o
momento da agente Baby descansar para Brigitte Montfort
pensar um pouco em sua felicidade?
— Não lhe tiro a razão, querido, mas me responda com
toda sinceridade: O que mais sei fazer em minha vida senão
ser a agente Baby? Se eu a aposentasse conforme seus
desejos, o que Brigitte Montfort ia fazer para encher suas
horas vazias?
— Não sei, mas podemos pensar em algo.
— Bem, já pensei em uma coisa essencial para esta noite.
— O quê? — perguntou Frankie todo animado. — Você
vai fazer o que tio Charlie já fez. Dê-me um beijo e me
deseje uma boa-noite. Estou muito cansada e preciso
descansar.
— Talvez você estivesse certa ao dizer que a próxima
humanidade de forma alguma poderia ser pior do que a atual.
De dia-a-dia, a humanidade vai se degradando. Até hoje,
você não me tinha posto na rua!
— Pare de falar mentiras, meu querido! Já fiz isso muitas
vezes e continuarei fazendo sempre que estiver cansada,
entende? Agora, vá embora porque preciso esticar-me na
cama.
— Certo, mais uma vez curvo-me diante da vontade de
minha deusa. Amanhã de manhã virei apanhá-la quando for
para a redação.
— Não, meus planos são outros. Estou querendo dar um
pulo na Rachel’s, estou desejando comprar algumas roupas
íntimas, mais modernas e sensuais.
— Eta, ferro! Posso ir com você porque sou um
especialista no assunto! Chegarei cedinho e posso servir seu
café na cama e...
— Frankie, chega de bancar o palhaço! Vá embora
porque já estou perdendo o restinho de paciência que ainda
me resta!
Frank Minello se levantou cabisbaixo, deu-lhe um beijo
na boca e murmurou:
— Malvada!
Saiu em seguida. Brigitte continuou na saleta, totalmente
absorta. Não entendia o que estava acontecendo, mas seu
sexto sentido a alertava, mandava que se preparasse para
enfrentar um caso perigoso com um russo, um chinês e um
negro. O russo e o chinês já estavam mortos, mas por onde
andava o negro?

CAPÍTULO TERCEIRO
Negros, negros, negros...

Brigitte realmente foi à Rachel’s, uma loja não muito


grande que estava localizada na Fifth Avenue, a fim de
comprar algumas roupas íntimas, depois esteve no banco
onde conversou com o gerente a respeito de algumas
aplicações que estava pensando fazer.
Em seguida, apanhou um táxi e deu o endereço do
“Morning News” e durante todo o trajeto continuou com a
sensação que a acompanhava desde quando saíra de casa:
Tinha a impressão de estar sendo vigiada por alguém.
Não obstante, chegou ao edifício do “Morning News”
sem tropeçar com qualquer dificuldade. Pagou ao motorista,
atravessou a calçada e entrou no amplo vestíbulo que como
sempre mais parecia um pequeno formigueiro, cheio de
gente que entrava, saía ou conversava ali mesmo. Brigitte
sempre repetia que o vestíbulo daquele edifício era uma
verdadeira agência clandestina de um canal especial que
procurava dar os maiores “furos” de cada dia, tais eram as
variedades de notícias verídicas e boatos que circulavam de
boca em boca.
Alguns colegas a cumprimentaram alegremente e de viva
voz, enquanto outros apenas acenaram-lhe em gestos de
grande camaradagem. Ela também os cumprimentou
sorrindo, sem parar, pois tinha pressa de chegar a seu
escritório. Quando chegou ao local onde estavam instalados
os elevadores reservados a diretoria, apertou o botão e ficou
aguardando.
Estes elevadores somente paravam na garagem
subterrânea, vestíbulo principal e nós dois últimos andares
reservados aos mais altos executivos do jornal e de forma
alguma, paravam nos outros andares.
O elevador chegou ao térreo. A cabine se abriu, ela
entrou distraidamente e quando ia marcar o andar, não teve
tempo para apertar o botão porque naquele instante chegou
um negro correndo.
O homem também entrou no elevador e sorriu para ela.
— Se eu não tivesse sido rápido teria perdido esta
viagem! — exclamou, levantando a mão direita para marcar
o andar que queria. — Eu vou para o vinte e três e a
senhorita para qual vai?
A senhorita Montfort gastou alguns segundos
examinando-o. Era um negro forte, alto, bonito, de olhar
franco e direto. Trajava um terno de qualidade e com um
bom corte. Enquanto o exame prosseguia, ele continuou
contemplando-a com surpresa, sem entender o motivo de seu
silêncio.
— Este elevador não para no andar vinte e três — falou
Brigitte finalmente.
Ele não deixou de sorrir e sem desviar o olhar do dela,
apertou o botão correspondente ao último andar. As portas se
fecharam e a cabine iniciou a ascensão. O negro sacou uma
navalha, acionou a mola e a lâmina longa e afiada reluziu em
sua mão.
— Trate de levantar sua saia! — ordenou.
Brigitte obedeceu lentamente. O negro com um só puxão
rasgou sua calcinha e arrancou com violência com a mão
esquerda. A seguir, meteu os dedos nos cabelos da repórter e
a empurrou para o chão.
— Ajoelhe-se e comece a estimular os meus desejos de
homem! Vamos, depressa!
A espiã mais perigosa do mundo sorriu como se tivesse
vontade de obedecer. Cravou seus olhos nos do negro
atlético e podia ler neles todos os pensamentos que passavam
por sua mente: estava pensando em matá-la, mas antes queria
forçá-la sexualmente para que a ação tivesse cunho de um
ato de violência praticada por um tarado comum que antes
cometia a agressão sexual, para depois, exterminar suas
vítimas, a fim de mais tarde não ser reconhecido por
nenhumas delas.
Porém, naquele momento e dentro do tempo exíguo que
dispunha dificilmente ficaria em condições adequadas para
realizar o plano engendrado e só por isso, queria que ela o
excitasse, para mais rapidamente acelerar sua ereção.
Não sabia por que ele a tinha seguido, mas intuía que
estivesse agindo daquele modo por causa do assassinato do
velho filósofo chinês.
— Ande depressa! — exigiu o negro. — Faça o que
mandei!
Apoiou a ponta da navalha na garganta de Brigitte. Esta
rapidamente ergueu sua mão esquerda e segurou o pulso do
homem, torcendo-o com força. A dor que ele sentiu foi
violenta e inesperada. Quase em seguida, recebeu um murro
na fronte que fez seu corpo balançar.
Porém sua reação foi imediata e quando ia novamente
atacá-la, recebeu outro direto no estômago. A dor foi intensa,
ele gemeu, curvou o corpo e deixou a arma branca
escorregar por entre os dedos. E foi nesse instante que quase
berrou com todas as forças do pulmão quando o salto do
sapato da belíssima senhorita Montfort se enterrou em seu
ventre.
Caiu ao chão e a espiã rapidamente bateu com o joelho
em seu queixo. Os olhos do negro se velaram, ele sentiu
como se tivesse recebido uma tremenda carga elétrica por
todo o corpo. Rolou pelo chão do elevador e Brigitte naquele
momento não teve comiseração alguma e praticamente
sapateou por cima de seu peito, até ter certeza que o safado
estava morto.
O elevador parou. As portas se abriram automaticamente
no último andar do prédio. Felizmente não havia ninguém no
saguão e ela apertou o botão correlato com a garagem
subterrânea. As portas se fecharam e a descida foi veloz e
direta. A espiã se abaixou para examinar o negro, pôs as
pontas dos dedos sobre as carótidas e sorriu.
Não tinha passado os melhores anos da vida treinando
artes marciais, caratê e defesa pessoal, para deixar-se matar
com facilidade.
O elevador parou e as portas se abriram.
Respirou aliviada ao verificar que não havia pessoas no
estacionamento. Agarrou o morto pela gola do casaco e o
arrastou para fora do elevador e... naquele instante, teve
certeza absoluta que não estava sozinha, que alguém a
espreitava de novo.
A revelação não chegou a ser uma surpresa porque
através dos anos que vinha dedicando-se à espionagem,
nunca encontrara um espião que agisse sozinho. Sempre
trabalhavam em par, um procurando proteger o outro, caso o
companheiro necessitasse de ajuda.
Sim, era o que sempre acontecia, portanto, outro negro
deveria estar rondando por perto. Talvez ambos tivessem
atravessado a madrugada passeando pela Fith Avenue,
esperando que a senhorita Montfort aparecesse na rua.
Poderiam identificá-la facilmente porque seus retratos
costumavam aparecer em todos os jornais e revistas do país.
Receberam ordem para matá-la e pensavam fazer isso
com rapidez.
Brigitte cortou aquele encadeamento de reflexões e
arrastou o cadáver pela garagem. Felizmente não havia
ninguém chegando, estacionando carro ou saindo naquele
momento. Ouviu o leve rangido do elevador que começava a
subir de novo. Arrastou o cadáver mais depressa e o colocou
entre dois automóveis, escondendo-se atrás deles.
Pouco depois um empregado de uma das firmas
localizadas nos andares intermediários entrou na garagem.
Abriu um carro, sentou-se ao volante e esperou alguns
instantes para sair.
Brigitte levantou o negro com facilidade e o carregou no
ombro. Só o pôs no chão quando chegou perto do carro de
Miky Grogan, o gerente do jornal.
Deixou o cadáver escondido sob o automóvel de modo
que ninguém pudesse vê-lo. Depois, passou as mãos pelos
cabelos despenteados, alisou o vestido no corpo e novamente
apanhou o elevador.
Dois minutos mais tarde aparecia no escritório do chefe.
A secretária de Miky Grogan cumprimentou-a sorrindo e ela
entrou na sala privativa do gerente do “Morning News”, pois
há muitos anos recebera passe-livre para entrar ou sair
daquele escritório sempre que quisesse.
Grogan já estava com aspecto envelhecido, mas seus
olhos brilharam ao vê-la.
— Bom-dia, minha querida; Pitzer acabou de chamar,
perguntando por você. Parece que tem urgência em lhe falar.
— Miky, nunca supus que fosse tão teimoso como é —
sorriu a espiã, carinhosamente. — Você é tão cabeça-dura
como tio Charlie, vocês dois já deviam estar aposentados há
muito tempo.
— Aposentadoria é coisa de velho cansado e eu ainda me
sinto em forma, entendeu? Por que Frankie ainda não
apareceu por aqui?
— Hoje não viemos juntos, precisei fazer algumas coisas
antes de vir para a redação. Miky, você é muito bonzinho e
talvez não se importasse... Será que me pode emprestar seu
carro?
— Claro que sim. Só não entendo por que quer o meu
quando tem três na garagem de seu edifício.
— Prometo que ele lhe será restituído dentro de duas
horas.
— Não sei o que está acontecendo, mas há algo no ar —
disse Grogan ao entregar-lhe a chave do carro. — Agora
ninguém mais conta as coisas a este pobre velho.
— Amanhã você terá a melhor reportagem do século,
intitulada “A próxima humanidade”. O que achou desse
título, aprova?
— Parece-me bastante sugestivo. Já pensou se alguém
tivesse poderes para varrer toda a escória que existe no
mundo e criar uma nova humanidade?
— Até que se fosse possível, seria o maior avanço, a
melhor vitória de todos os séculos. Afinal, o que tio Charlie
queria comigo?
— Como sempre não disse nada claro, só usa palavras
retorcidas. Mandou você ligar para a floricultura porque já
preparou a entrevista.
***
Basili Chelkuvenko observou a loura que se aproximava.
Era uma mulher alta, elegante e muito bem vestida.
Lamentou que estivesse usando óculos escuros que
escondiam seus olhos, mas como o dia estava ensolarado, os
óculos estavam justificados.
O que não lhe parecia tão justificado era a vigilância dos
homens da CIA que se encontravam espalhados por todo o
Central Park. De manhã cedo recebera um telefonema de
uma agente da CIA que lhe propusera um encontro que
deveria ocorrer naquele parque, às onze horas da manhã e
nas proximidades do lago.
E agora estava sentado no banco que lhe indicaram,
esperando por alguém que não sabia ainda quem era.
Além desse primeiro mistério, também estava preocupado
por ver tantos agentes distribuídos pelo Central Park. Por que
o vigiavam daquele modo? Por que faziam questão de não
perdê-lo de vista?
Para se falar a verdade, Basili Chelkuvenko estava com
humor de cão e tinha motivos para se sentir tão mal-
humorado.
Já fazia quatro dias que assassinaram seu camarada Fedor
Ilyef e até agora, ninguém descobrira os culpados ou uma
explicação plausível sobre o assassinato. O telefonema que
recebera de um dos agentes da CIA mostrava claramente que
ele ficara em evidência e isso significava que teria de
abandonar sua área de trabalho e se transferir para qualquer
outro rincão do mundo. E isso ia acontecer antes que
soubesse quem tinha matado seu colega Ilyef.
A loura fascinante parou perto dele e o cumprimentou em
russo:
— Bom-dia, camarada Chelkuvenko. Tenho a impressão
que está tenso e preocupado.
Ele se surpreendeu com aquela abordagem direta e em
seguida, olhou para os homens da CIA que continuavam
vigilantes. Só então se voltou para a loura que já estava
sentada a seu lado, sorrindo, muito satisfeita.
A reação do russo foi rápida, demonstrando que possuía
muita presença de espírito.
— Eu estava realmente, mas já não estou — admitiu.
Através das lentes escuras e espelhadas a loura
contemplava o agente da KGB à vontade. Tinha uma boa
estatura, ombros largos, cabelos ruivos e olhos bem escuros.
Sinceramente uma boa amostragem dos exemplares que
povoavam a Rússia.
— Ótimo — sorriu ela. — Certamente está se
perguntando quem sou.
— Estava, porém agora fiquei mais tranquilo porque
quando você intervém, os casos sempre acabam sendo
esclarecidos. E também só agora tive a certeza de que a CIA
nada teve a ver com a morte de Fedor Ilyef.
— É evidente que não. É sobre isso que vim conversar
com você... Em que caso o camarada Ilyef estava
trabalhando?
— Não está pensando que eu vá responder essa pergunta,
não é?
— Por que não quer respondê-la?
— Se a situação fosse inversa o que faria? Imagine-se em
Moscou e meus camaradas solicitam um encontro sem lhe
dar maiores explicações, mas lhe dando a entender que será
vigiada o tempo todo. Depois, aparece o nosso melhor
agente e lhe pergunta o quê está fazendo em nossa pátria e a
que se dedicava um de seus Simons que morrera assassinado,
dias antes em uma das estações do metrô de Moscou... Você
passaria essa informação à KGB?
— Não estou pedindo que me informe a respeito dos
planos da KGB. Só pedi que dissesse em que Fedor Ilyef
estava trabalhando. Fiz a pergunta por que tenho esperança
de poder esclarecer o homicídio que sacrificou sua vida. Por
acaso ele estava trabalhando com algo relacionado com
negros ou com um negro em especial?
— Que eu saiba, não.
— O que você sabe?
— Bem que dizem que você sempre consegue o que quer,
Baby!
— Basili, se colaborar comigo nunca será prejudicado.
Esqueça-se de todas as coisas que têm acontecido entre a
Rússia e os Estados Unidos, das velhas inimizades que
existiram entre os nossos países e pense que a agente Baby
jamais o trairá ou o prejudicará, a menos que descubra que
você é um criminoso, mas esse não é o seu caso.
Basili Chelkuvenko passou a mão pelos cabelos, acertou
a gravata e disse:
— Meu companheiro estava vigiando um chinês.
— O velho Wo Peng?
— Como pôde saber? — exclamou o russo. — Quero que
me explique tudo porque não temos vontade de morrer nas
mãos daqueles chineses!
— Não foram os chineses que mataram Fedor Ilyef.
— Não? — sussurrou o russo.
— Não, embora isso até fosse compreensível em parte:
Alguém matou Wo Peng e como Fedor Ilyef o estava
vigiando, os chineses poderiam ter desconfiado dele e
decidiram vingar a morte do velho filósofo.
— Meu colega jamais mataria um ancião como o poeta
morto.
— Concordo, mas tampouco pense que foram os chineses
que mataram seu companheiro. Por que vigiavam Wo Peng?
— Era um velho oportunista que no passado tinha
complicado a vida de muita gente na fronteira da China.
Depois ele desapareceu e quando o localizamos era um
conceituado negociante em Nova Iorque.
— Já fazia anos que não se interessava pelo comércio.
Vivia para escrever poesia e pesquisar filosofia. Seu tempo
de espião estava no passado, agora só se interessava por um
computador onde gravava tudo que escrevia. Esqueça-se dos
chineses.
— Então está pensando que foi um negro... ou vários
negros? Um absurdo que não aceito!
— Observe a sua volta e me diga quando viu tantos
negros no Central Park? — murmurou Baby. — Eu pelo
menos, sinto-me surpresa porque isso nunca tinha acontecido
antes.
— De fato — respondeu o russo com perplexidade. —
Nesta cidade há muitos negros, mas todos se restringem ao
Harlem, geralmente. Por acaso nunca vêm ao Central Park?
— Claro que sim, mas eu nunca tinha visto tantas pessoas
de cor em um mesmo dia por aqui. Famílias inteiras
resolveram passear hoje.
— E o que isso pode significar?
Baby abriu a bolsa, apanhou um rádio e o estendeu ao
russo.
— Volte a sua embaixada ou onde achar melhor e
procure averiguar se seu colega manteve contato com
negros, ou melhor, com um negro especial. Se descobrir
alguma coisa, chame-me imediatamente.
— E se eu decidisse não colaborar com você e resolvesse
trabalhar sozinho, sem a colaboração da CIA?
Baby olhou o relógio-pulseira e sorriu.
— São doze e vinte e um minutos da manhã. Se até as
dezoito horas você não me chamar pelo rádio, tenha certeza
que as vinte horas estará dentro de um avião, voando para
Moscou e amanhã seu retrato sairá na primeira página de
todos os jornais dos Estados Unidos. Entendeu?
— Sim.
Baby se levantou e disse, sorrindo:
— Desejo-lhe um almoço bastante agradável, camarada
Chelkuvenko.

CAPÍTULO QUARTO
Mande entregar no “Margherite”

Pouco depois, uma loura sensacional saía do Central Park


pela Fifth Avenue. Quase em seguida, um automóvel
apareceu e parou perto dela. Alguém abriu a porta traseira.
Brigitte entrou e se sentou ao lado de um homem que já
devia ter mais de quarenta anos. Era um sujeito forte e
elegante que a fitou fixamente.
— Alguma contrariedade? — perguntou.
— Nenhuma — sorriu Baby. — Podemos ficar tranquilos
porque na vida tudo muda, inclusive a espionagem.
— Não é bem assim, mudam os recursos e os sistemas da
espionagem, mas não as pessoas que a exercem.
— É, até que você está certo. Um espião sempre é e será
um espião.
— De fato, sempre seremos o que somos — riu o chefe
do Serviço de Segurança da CIA. no Setor de Nova Iorque.
— Eu pessoalmente nunca fui um grande admirador de
russos, principalmente se tratando de espiões.
— Agora não vamos discutir se gostamos ou não
gostamos deles... Frankie e Peggy estão em lugar seguro?
— Evidente. Não se preocupe com eles, salvo se você
costuma ficar preocupada quando vê seu amigo Frank
Minello zangado e chateado — disse sorrindo. — Agora
falando sério: O que está acontecendo no Central Park, por
que há tantos negros passando por lá?
— Também observei que havia muitos negros —
concordou Baby, sorrindo para o motorista que a fitava pelo
retrovisor.
Depois ficou calada e absorta.
Sentia-se preocupada, sem saber o que poderia encontrar
no instante seguinte. A sensação de insegurança já a
acompanhava desde quando trocara meia-dúzia de palavras
truncadas pelo telefone com Alan Pitzer. Se alguém
escutasse aquela conversa até poderia pensar que a senhorita
Montfort se preparava para também lançar uma coluna de
“charadas” que serviriam para distrair seus leitores.
Assim que desligou o telefone se embarafustou por um
dos banheiros. Respirou aliviada quando viu que este estava
vazio. Abriu a maleta que jamais abandonava, vermelha
estampada com florezinhas azuis e apanhou uma peruca
loura e óculos escuros de lentes espelhadas. Arrumou-se,
mudou de aspecto e sorriu para a mulher que lhe sorria do
espelho.
Apanhou o elevador e desceu à portaria do prédio que
continuava tão movimentado como quando chegara naquela
manhã. Porém, dessa vez, ninguém lhe sorria, fazia-lhe
acenos ou a cumprimentava, prova que não a reconheceram.
Olhou à volta com naturalidade, mas não viu negro algum
que pudesse estar de tocaia para matar a senhorita Montfort.
Saiu à rua. Em seguida, viu um rapagão louro, com porte de
atleta. Aproximou-se deste e lhe entregou as chaves do carro
de Miky Grogan, também lhe disse qual o número da chapa e
o local onde estava estacionado. O rapaz só pareceu surpreso
quando ela comentou sobre o cadáver que estava embaixo do
veículo.
Depois foi caminhando para o Central Park, a fim de
entrevistar-se com Basili Chelkuvenko e agora, dois
companheiros a levavam para um dos vários pontos
operacionais que a CIA tinha dentro da cidade de Nova
Iorque. Não saberia para qual deles, porém tinha certeza que
deveria ser para um dos mais seguros e protegidos.
Pouco depois, o carro descia por uma rampa até chegar a
uma garagem subterrânea pequena. Apanharam o elevador e
subiram até o décimo-quinto andar. Quando saíram da
cabine, Brigitte pôde ver o cais por uma das janelas do
corredor e quando começava a preocupar-se, querendo saber
onde estavam, uma porta ficou escancarada e Pitzer apareceu
no umbral.
O velho e querido tio Charlie levou sua garota e os dois
agentes a uma sala mobiliada com muito bom gosto e
conforto.
— Tudo foi bem com você, minha querida?
Antes de responder, ela tirou a peruca que lhe esquentava
a cabeça e os óculos que escondiam seus olhos maravilhosos.
— Melhor não poderia ter sido, tio Charlie, mas fiquei
curiosa ao ver a quantidade de negros que está perambulando
pelo Central Park.
Depois acendeu um cigarro e reproduziu toda a conversa
que tivera com Basile Chelkuvenko, enquanto Pitzer ia
fumando seu inseparável cachimbo. Todos a escutaram com
muita atenção.
— Só não entendi a presença dos negros no parque —
terminou a divina. — Pelo jeito aqui não há champanha, não
é?
— Por que pergunta se sabe que aqui só temos uísque? —
respondeu Pitzer.
— Muito bem, tio Charlie, satisfaço-me mesmo com
uísque. O que significará aquela concentração de negros?
— Ela não está exagerando — confirmou o chefe de
segurança. — Eu nunca tinha visto nada parecido com
aquela concentração.
— Algum motivo deve existir — confirmou, preparando
os uísques. — Felizmente não encontramos negro algum
rondando o “Morning News” esta manhã.
— Ainda bem. Para onde levaram o corpo do outro?
— Ao necrotério. A remoção foi realizada discretamente.
Ele está em um departamento especial. Os peritos tiraram
suas impressões digitais para enviá-las à Central. Por ora, o
desgraçado continua congelando-se em uma das geladeiras e
deverá ficar lá até decidirmos o que faremos.
— Nem procurei saber quem ele era. Já descobriram
alguma coisa sobre sua identidade?
— De acordo com os documentos que trazia na carteira,
seu nome era Henry Flower, mas isso só comprovaremos
depois que suas impressões digitais forem estudadas.
Encontramos ainda uma pistola provida de silenciador em
seu bolso. Também já a remetemos a Balística. As outras
coisas estão aí — disse Pitzer mostrando alguns objetos que
estavam em cima da mesa. — Você se quiser poderá
examiná-las.
Brigitte levantou-se da poltrona e se aproximou da mesa.
A navalha estava bem à mostra. Depois examinou a carteira
onde estavam os documentos, todos com o nome de Henry
Flower. O restante era bobagens como: maços de cigarros,
um isqueiro, chaves que deviam ser da porta de algum
apartamento, dois lenços, duas abotoaduras, um relógio...
Nada que pudesse ser útil para obterem uma pista sobre o
negro Henry Flower.
— Em algum lugar de Nova Iorque deve haver outros
negros procurando a senhorita Montfort — sussurrou
Brigitte. — Devem estar ansiosos para liquidá-la, porém,
antes tentarão fazer-lhe uma série de perguntas a respeito do
paradeiro de seu companheiro que desapareceu durante uma
viagem de elevador.
— É verdade, querida, sem dúvida alguma você deve
estar na mira dos desgraçados — disse o velho espião com
um tom de ansiedade na voz. — Eu só queria saber por que
eles andam atrás de você?
— Porque me viram no velório de Wo Peng.
— Eu aceitaria esse motivo se não houvesse tanta gente
reunida naquela loja para velar o defunto — teimou Pitzer.
— Só havia chineses e nenhum negro. Praticamente o
velho filósofo só tinha seus amigos chineses à volta do
caixão. Eu e Frank éramos os únicos brancos que estávamos
naquela sala e por isso, chamamos tanta atenção. A maioria
dos presentes se interessou por nós e queria saber quem
éramos.
— Entendo, todos se interessaram por vocês, mas
ninguém tentou matar Frank — objetou Alan Pitzer.
— Claro que não, Frank é um repórter esportivo por
excelência e nunca trata de assuntos sociais e políticos.
— E daí?
— Estou tentado explicar que não me tentaram matar por
ser a agente Baby, mas por que sou a repórter Brigitte
Montfort. Alguém deve ter desconfiado que o poeta Wo
Peng me tivesse feito alguma confidência sobre o “negro
maldito”. Tenho certeza que ele nunca comentou com quem
quer que fosse sobre minha “outra” identidade. Baby era um
segredo que guardava sigilosamente, era uma chave-mestra
que somente usaria para garantir o bem-estar da família ou
quando este segredo pudesse ajudá-lo de uma forma ou
outra. Se só estivéssemos no lugar do “negro maldito”, o que
faríamos se soubéssemos que Wo Peng ultimamente andava
discordando de nossos planos e que por isso, talvez nos
tivesse ameaçado, dizendo que iria denunciar-nos? Talvez
por isso, o negro resolveu eliminar o filósofo e chegou a
contratar três sicários para executarem o serviço.
Conseguiram matá-lo e durante as cerimônias fúnebres entre
tanta gente importante que compareceu, estava a repórter do
“Morning News”. Diga-me, o que nós teríamos feito se
estivéssemos no lugar deles?
— Eu pensaria que Wo Peng teria comentado meus
planos com você — respondeu Pitzer de má vontade. — Mas
antes de contratar os assassinos para matá-la, eu procuraria
verificar se minhas suspeitas eram reais. Isso deveria ter feito
o negro que subiu com você no elevador. Antes, poderia ter-
lhe feito algumas perguntas, mas pelo que me contou, apenas
apanhou a navalha, certamente para degolá-la.
— E isso nos mostra que o negro misterioso não está a
fim de perder tempo. Só está interessado em resultados
positivos — sorriu Baby. — Desconfiou que a senhorita
Montfort soubesse algo sobre seus planos referentes à
“próxima humanidade” e resolveu eliminá-la.
— Esse seu raciocínio me parece muito rudimentar,
querida.
— Talvez seja, mas é bastante eficaz. Qual é a opinião
dos analistas da Central? O que estão achando dessa ideia
estapafúrdia sobre a “próxima humanidade” — perguntou
Brigitte.
— Até agora nada falaram. Talvez possam formar um
conceito relativo ao assunto depois que souberem o resultado
do exame datiloscópico do tipo que se congela em uma das
geladeiras no necrotério. Vou ligar à Balística. Talvez eles já
tenham alguma novidade. Se você quiser trocar de roupa,
suba ao quarto grande, porque é lá que está a mala que
Peggy preparou antes de a levarem para longe do
apartamento, a fim de ficar em segurança.
Brigitte entrou no quarto, abriu a mala de couro vermelho
e pensou que jamais poderia ter encontrado uma pessoa tão
dedicada como Peggy que já a acompanhava há tantos anos.
Despira-se de toda a roupa que estava vestindo e remexia
as que Peggy havia posto na mala quando Pitzer abriu a
porta e entrou no quarto.
O velho espião parou extasiado e a moça soltou uma
gargalhada por demais maliciosa e cínica.
— Pare com isso, tio Charles e deixe de bancar o
fanfarrão. Agora você não tem mais fôlego para fazer o que
está pensando!
— Não me atice, garota, porque posso mostrar-lhe que
ainda sou dos bons.
— Você é um velho convencido — respondeu Brigitte
vestindo o sutiã. — O que lhe disseram sobre o exame da
pistola de Flower?
— É uma das três que foram utilizadas no assassinato de
Wo Peng e Fedor Ilyef.
— Nós já prevíamos coisa semelhante, portanto também
não nos é difícil imaginar a cena. Três negros surpreendendo
Ilyef na gare da estação do metrô do Canal Street. Mataram-
no relas costas e quando o atiraram nos trilhos do trem, ele já
devia estar morto. Quanto ao velho chinês, as coisas já
aconteceram de forma diferente. Posso imaginá-lo sentado
em uma poltrona contemplando os três homens que o
ameaçaram de norte. Agora de nada adianta a gente ficar
imaginando e pensando no que aconteceu. O que precisamos
fazer é procurar o negro maldito que contratou os matadores
profissionais para executarem suas ordens.
— Só saberemos se Flower era realmente um matador
profissional depois que recebermos informações da Central.
Aqui temos um freezer muito bem sortido. O que você
gostaria de comer no almoço, minha querida?
— Qualquer coisa está bem para mim, tio Charlie. Quero
que mande dois dos nossos ao Central Park. Deverão indagar
o motivo porque há tantos negros espalhados por lá. Mas não
envie agentes brancos para sondarem o ambiente. É melhor
mandar dois negros.
— Farei o que me pede. Ligarei para Simon-florista e
pedirei que localize em nossos arquivos dois agentes da raça
negra. Você acredita que Basile Chelkuvenko a chamará
pelo rádio?
— Que vai chamar não tenho dúvidas, mas não posso
garantir que suas informações nos serão úteis ou verdadeiras.
Estamos metidos nuic jogo perigoso e precisamos estar
preparados para aguentar tudo que possa surgir em nosso
caminho.
***
Já eram mais de quatro horas da tarde quando receberam
as primeiras informações da Central.
— Os analistas ainda não chegaram a nenhuma conclusão
sobre o possível significado de “próxima humanidade” —
disse Pitzer, depois de desligar o rádio. — Quanto a Henry
Flower: este era seu nome verdadeiro, serviu na Marinha e
não tinha antecedentes criminais.
— Ou seja, não era um profissional de assassinato.
— Não. Podia usar uma arma com maestria. Podia saber
lutar, mas não era um assassino profissional.
— Se não tinha antecedentes, tudo começa a se encaixar.
— Tudo, o quê? Do que está falando?
— Do homem que entrou no elevador. Parecia bastante
nervoso e era natural que estivesse. Tinha recebido ordem
para matar-me, mas devia agir com rapidez e executá-la de
forma tal que o crime pudesse ser confundido com os
praticados pelos tarados sexuais. No entanto, todo o trabalho
deveria ser realizado no tempo que o elevador gastasse para
subir até o último andar. Na Marinha, os homens aprendem a
defender-se e matar quando são atacados, porém nada sabem
sobre os métodos mais eficazes para a realização de um
estupro. Percebi que ele estava querendo cumprir a ordem
que recebera, até empenhou-se e tudo teria acontecido
conforme seus planos se suas reações estimulantes não
fossem um tanto retardadas. Agora compreendo porque me
mandou ajoelhar e acariciá-lo... Estava querendo ser
estimulado.
— Sendo assim, talvez os outros dois também não sejam
assassinos profissionais.
— Exatamente. São eficazes com as armas, valentes e
decididos, mas não assassinos, embora muitas vezes matem
para obedecer ordens. O que isso lhe sugere, tio Charlie?
— Fanatismo?
— Exatamente. O tal “negro maldito” os está
manipulando a seu bel-prazer, de acordo com sua vontade.
— Isso pode significar que a “próxima humanidade” será
composta por pessoas que tenham sofrido lavagem cerebral?
A espiã mais linda do mundo soltou uma risada cristalina.
— Tio Charlie, já faz muitos séculos que os homens têm
sofrido verdadeiras lavagens cerebrais! — exclamou. — As
pessoas não vêm sendo manipuladas pelos vários sistemas
políticos, religiosos, culturais e sexuais que não passam de
métodos cuidadosamente estudados e preparado para manter
a humanidade inteira submetida ao interesses dos grupos
dirigentes? Vamos, fale sinceramente, não é isso que vem
acontecendo através de séculos?
— Infelizmente, assim e nem posso prever como será
essa “próxima humanidade” — resmungou Pitzer.
— Pois eu começo a acreditar que ela tenha alguma
ligação com as filosofias de Wo Peng. Peng. Vou telefonar
para seu neto Dick e lhe pedir um exemplar do “Eternidade”,
o livro editado há pouco tempo e escrito pelo velho chinês,
no qual se aprofundou sobre dúvidas pessoais a respeito da
morte. O que você acha desta minha ideia descabelada?
— Filhinha, mais descabelado seria se eu por acaso
discordasse de suas ideias e intuições — suspirou o velho
agente.
— As chaves que foram encontradas no bolso do negro
só podem ser de um apartamento. Suponho que nossos
rapazes o possam localizar com alguma facilidade, porque eu
gostaria de visitá-lo. Talvez lá encontremos algo que possa
interessar-nos.
***
Eram cinco e dez quando Basili Chelkuvenko chamou-a
pelo rádio.
— Sim?
— Sou eu — foi a única resposta do russo. — Sabe quem
sou, não sabe?
— Claro, reconheci sua voz e só você está conectado a
esta onda.
— Gostaria de conversar novamente com você.
— Muito bem. Escolha o local mais apropriado, Basili.
— Eu posso fazer isso? — retrucou surpreso.— Gostaria
que fosse em um bar, compreende? Porém não conheço a
cidade muito bem.
— Certo. Às seis horas em um bar próximo de Times
Square. Seu nome é “Margherite”. Até lá.
Desligou o rádio e a chamada de Pitzer soou no mesmo
instante. A espiã o atendeu, enquanto recolocava a peruca
loura que tinha usado naquela manhã e as lentes de contato
verdes que mudavam a coloração de seus olhos azuis.
— Avisam da Central que há um pacote para lhe ser
entregue, querida.
— Poderão entregá-lo no bar “Margherite”, próximo do
Times Square, a uma loura elegante, bonita e de olhos verdes
que deverá estar acompanhada por um indivíduo alto, forte e
de cabelos ruivos. Adeus.
Não falou mais nada e desligou o rádio.
CAPÍTULO QUINTO
Flores da Sibéria

Às seis horas em ponto, uma loura muito elegante parou


na porta do “Margherite” e Basile Chelkuvenko levantou-se
da mesa que estava ocupando para recebê-la.
A moça sorriu para ele e atravessou o salão do bar que
estava repleto naquele final de tarde. Todas as mesas
ocupadas por homens sobriamente vestidos, mulheres
luxuosamente trajadas e jovens com suas calças jeans
desbotadas.
O espião russo afastou uma cadeira para Baby sentar-se.
— Então, gostou deste bar? — perguntou-lhe em russo.
— Sim, mas não entendo esta mistura do elegante com a
falta de gosto dos jovens da atualidade — respondeu
Chelkuvenko sorrindo,
— A mocidade de hoje só quer gozar seus melhores anos
de vida numa “boa” e com muito conforto — riu a espiã. —
A elegância nada mais vale para os jovens atualmente. Se
quiser tomar uma taça de champanha, basta fazer um sinal ao
camareiro.
Basili Chelkuvenko aproveitou a sugestão e depois fitou a
colega com seu olhar penetrante.
— Percebo que está usando peruca e lentes de contato,
bem como alguns enchimentos que modificam sua
fisionomia. Contudo, você ainda me parece uma pessoa
conhecida, mas não consigo lembrar-me quem é.
— Menos mal.
— Os tempos mudam e mesmo que eu a reconhecesse, se
conseguisse identificá-la, preferiria tê-la como uma amiga do
que vendê-la por um punhado de moedas, tal como Judas fez
com Cristo.
— Estas foram as palavras mais certas que escutei em
toda a vida. O que soube a respeito de seu camarada Ilyef?
— Ele estava vigiando Wo Peng, cumprindo uma de
nossas atividades de rotina. O chinês já vivia sob vigilância
há algum tempo. Esta foi iniciada logo depois que ele
abandonou a Lien Lo Pou e reapareceu como um negociante
de arte em Nova Iorque. Fedor Ilyef estava cumprindo suas
atividades diárias quando foi morto. Conforme as
informações que nos remetia periodicamente, o espião chinês
se transformara em um estudioso da Filosofia. Atualmente
interessava-se mais pelo lado religioso e filosófico da vida
humana do que por qualquer outra atividade.
Basili Chelkuvenko abriu o paletó, apanhou um envelope
do bolso interno e o entregou à Baby que o abriu em seguida.
Só viu algumas fotografias e todas eram de um único
homem. Um negro que devia ter cinquenta anos e com os
cabelos crespos quase inteiramente grisalhos. Seu rosto era
largo, simpático e afetuoso, enquanto os olhos tinham uma
expressão bondosa e maliciosa ao mesmo tempo.
— Ele tem aparência de cantor de blues. Quem é?
O camareiro chegou com o champanha mergulhado em
um balde prateado cheio de gelo picado. Serviu a bebida e se
afastou em seguida. Chelkuvenko olhou para Baby e
murmurou:
— Quando eu era bem jovem ficava furioso quando via
alguém bebendo champanha. Achava que ninguém tinha
direito de gastar seu dinheiro de forma tão desbaratada.
— E o que pensa agora?
— Que todo mundo tem direito de beber champanha,
inclusive aqueles que nem têm pão para comer. Hoje penso
que todos deveriam ter pão para matar a fome e champanha
para terem prazer.
— E sonhos também, isso independente dos anos que
tenham às costas — sorriu Baby. — Timtim, Basile.
O russo acompanhou a brincadeira com um sorriso
amistoso, tomou um sorvo da bebida e murmurou:
— O negro que aparece nessas fotos é Jason
Chesterhimes, pastor de uma igreja protestante do Harlem.
Para ser mais claro, da que está na 135th Street. Segundo as
informações rotineiras que Fedor nos remetia, ele e Wo Peng
costumavam encontrar-se algumas vezes e por casualidade,
sempre em locais públicos e abertos, mas estes encontros
nunca se davam no Chinatown ou no Harlem.
— Aconteceriam casualmente? — perguntou Brigitte.
— Não sei e Fedor nunca demonstrou interesse especial
por eles. Em sua opinião poderiam ser casuais?
— Não, de forma alguma — asseverou Baby.
— Na verdade, foi você quem me chamou atenção para
os negros, porque até aquele momento estes nos tinham
passado desapercebidos, embora figurassem nos relatórios
que recebíamos quinzenalmente. O que poderia unir dois
homens tão diferentes como Wo Peng e o reverendo
Chesterhimes?
— Talvez os mesmos interesses filosóficos?
O russo fitou a colega americana que lhe sorria. Depois
notou que a moça fizera um sinal para a porta. Rapidamente
um tipo atlético aproximou-se, entregou-lhe um pacote e se
afastou sem dizer palavra.
Basili Chelkuvenko olhava para ela como hipnotizado.
Não lhe fez perguntas enquanto desfazia o pacote, deixando
dois livros descobertos. Estendeu um destes ao homem que a
continuava fitando com interesse.
O livro se intitulava “Eternidade”, estava editado em
inglês e o nome do autor era Wo Peng.
— Nunca vi pessoas tão estranhas como nós. Os espiões
são realmente diferentes de todos: Tanto podem matar como
dedicar-se a pesquisas filosóficas.
— O reverendo Chesterhimes também deve ser um
filósofo.
— É provável, mas não creio que no passado tivesse sido
um espião conforme foi Wo Peng. E tem mais, olhando-se
para ele dificilmente se pode acreditar que seja o “negro
maldito” como muitos o chamam.
— Do que está falando? — perguntou Chelkuvenko.
— Wo Peng foi assassinado por três homens negros e
foram estes homens que mataram Ilyef na gare da estação do
metrô.
Rapidamente contou-lhe o que sabia sem especificar
detalhes que pudessem comprometer sua identidade,
procurando só esclarecer o que fosse estritamente
informativo. E terminou sua explanação deste modo:
— Creio que primeiro mataram Wo Peng e quando os
assassinos saíam da loja de antiguidades, viram Fedor Ilyef
que cumpria seu dever. Perceberam que ele começou a
segui-los. Quando os negros notaram isso, entraram na
estação dó metrô do Canal Street. Fedor Ilyef não desistiu e
também entrou na estação. Não nos esqueçamos de que ele
já havia posto nos relatórios que Wo Peng, às vezes,
encontrava-se casualmente ou não com um negro e desse
modo, tudo ia ganhando um sentido. Já era tarde e não havia
ninguém ou quase ninguém naquela estação. Os três negros
se esconderam atrás de pilastras ou de outra coisa qualquer e
puderam surpreender seu colega pelas costas. Deram-lhe três
balaços nas costelas e pulmões. Quando o jogaram nos
trilhos do trem, Fedor Ilyef já estava morto.
Chelkuvenko serviu mais champanha para ambos e o
bebeu avidamente.
— Pelo jeito somente uma pessoa nos poderia dar
maiores esclarecimentos a respeito de tudo que aconteceu e
sobre o que significa a “próxima humanidade”. E esta pessoa
é o reverendo Chesterhimes — murmurou.
— Sabe o que me tem deixado mais assustada e
preocupada?
— O quê?
— O afastamento do pessoal da Lien Lo Pou. Afinal de
contas, Wo Peng era um de seus antigos agentes e apareceu
assassinado. Acho estranho que os negros se fixem em mim
ao invés de observarem o movimento e atividade do pessoal
daquela corporação.
— A menos que os negros nada tenham a ver com o
reverendo e estejam ligados à Lien Lo Pou. Ou então,
também existe a hipótese do reverendo Chesterhimes estar
ligado àquela corporação e isso justifica seus encontros com
Wo Peng.
Os dois ficaram calados, imóveis se olhando. Por fim, ela
sorriu.
— Já observou como são tortuosos os pensamentos de
um espião?
— Vou confessar-lhe uma coisa e espero que não se
surpreenda. Há algum tempo venho tendo mais medo dos
pensamentos das pessoas que socialmente são consideradas
normais e bondosas do que de nosso raciocínio frio e
impessoal.
— Fez esse comentário baseando-se em algo concreto?
O russo novamente fitou-a nos olhos como se quisesse
penetrar em seu cérebro.
— Muitas vezes me pergunto por que, qual a verdadeira
razão que forçou os dirigentes do Politburo2 à derrubada do
muro de Berlim e o que pretendem mudar em nosso sistema
sócio-político da Rússia.
— Não fique tão preocupado, Basili. Tudo não passa de
uma questão de interesses.
— Você sabe realmente o que estão tramando?
— O que hoje estão planejando para mudar a vida dos
soviéticos, nós só saberemos no futuro. Quero fazer um trato
com você: Agora poderíamos ir ao apartamento de Fedor
Ilyef e quando meus rapazes localizarem o domicílio de
Henry Flower você também irá comigo. Concorda?
— Já estive no apartamento de Fedor, em Village. Ali
não encontrei nada, apenas quadros lindos, pintados por ele.
— Está aí! Até hoje eu não tinha encontrado um espião
que gostasse de pintar. O que ele mais pintava?
— Flores.
***
De fato, as paredes do apartamento de Fedor Ilyef eram
recobertas de quadros. O apartamento era pequenino e estava
localizado em uma zona muita tranquila no Village nova-
iorquino, não muito distante do Washington Square Park.
Todos os quadros representavam flores. Flores belíssimas
de todas as cores e formas. Brigitte ficou impressionada com
a beleza dos quadros e comentou isso com Basili.
— São flores da Sibéria — explicou este.
— Foi o que imaginei porque me lembrei das paisagens
siberianas que aparecem no filme “O doutor Jivago”. São
lindas!

2
Politburo, abreviatura russa de Politítcheskoe Byurô, se refere ao órgão
máximo e executivo de distintos partidos políticos, especialmente de partidos
comunistas. (NR)
— Você me deu um livro de presente e eu lhe trouxe para
que escolhesse dois quadros. Aqueles que quiser. Meu amigo
ficaria satisfeito se soubesse que seus quadros estão
enfeitando a casa da agente Baby.
— Quero estes dois — disse a espiã, mostrando-os. —
Antes de sairmos daqui, gostaria de passar os olhos pelo
apartamento.
— Pode fazer o que tiver vontade, colega. Faça tudo
enquanto eu embrulho seus quadros.
O exame foi mais rápido do que a feitura do embrulho.
Aproximou-se do russo com ar decepcionado.
— Aqui não há nada que possa nos ajudar.
— Eu já sabia disso, mas pelo menos você escolheu dois
quadros de meu colega e amigo. Agora já podemos ir.
Brigitte apanhou os livros sem dizer uma palavra e Basili
pegou o pacote que tinha acabado de fazer. Ela abriu a porta
e ficou parada, olhando para o cano do silenciador de uma
pistola que estava apontada para seu estômago. Ao lado
dessa havia uma outra arma, virada na direção de Basili
Chelkuvenko e atrás dos revólveres, dois chineses mal-
encarados.
— Retrocedam lentamente — disse um destes.
Os dois obedeceram.
— Agora joguem as armas no chão — falou o outro
chinês. — Não façam movimentos bruscos porque eu não
gostaria de matá-los.
Mais uma vez, Baby e Chelkuvenko obedeceram.
Soltaram os livros e os quadros em cima da mesa e ao lado
destes Brigitte colocou sua bolsa vermelha estampada com
florezinhas azuis. A pistola nacarada de madrepérola estava
dentro dela, mas como poderia apanhá-la?
— Eu não estou carregando arma — disse o russo.
— E a minha está dentro da bolsa. Se estão procurando os
assassinos de Wo Peng, nós nada temos a ver com o caso.
— Não? Então nos digam, quem o assassinou?
— Foram três negros. Evidentemente vocês eram amigos
de Peng e por isso, já deviam saber que ele estava mantendo
uma relação muito estranha com alguns negros,
especialmente com um em particular. Vocês desconheciam
as atividades do antigo companheiro?
— Atividade? Peng ultimamente dedicava todo seu
tempo às coisas que apreciava. Primeiro o mantínhamos sob
vigilância, mas ele nada fazia fora do comum do dia-a-dia e
acabamos esquecendo-o. Só nos preocupamos novamente
quando soubemos que um russo parecia estar muito
interessado por ele. Passamos a vigiar o tal russo e um dia o
seguimos até aqui. Depois, compreendemos que ele apenas
fazia seu trabalho de rotina e que estava perdendo seu tempo
com Wo Peng. Tudo ia muito bem, até quando soubemos
que o velho fora assassinado e desde então, estamos aqui
aguardando a vinda do russo.
— Ele também foi morto pelos mesmos negros.
Os chineses ficaram olhando para ambos com olhares
inexpressivos. Depois um deles ficou alguns segundos
observando os quadros e só então, perguntou à Baby:
— Não foram vocês quem mataram o velho Wo Peng?
Ele não foi assassinado pelos russos?
— Não — respondeu com firmeza sem retificar o erro,
pois a julgavam também soviética. — Já lhe disse que ele foi
morto por três negros e estes mesmos homens também
mataram Fedor Ilyef, horas mais tarde. Vocês não tomaram
conhecimento da morte do russo porque este não foi
identificado publicamente... Alguém está me chamando pelo
rádio.
— Que rádio?
— O rádio que está em minha bolsa. Vocês não o estão
ouvindo porque não têm uma audição aprimorada como a
minha. Creio que deveriam deixar-me atender a chamada.
Um dos chineses apanhou a bolsa vermelha, abriu-a e viu
o rádio minúsculo emitindo sinal de chamada. Olhou para
Baby fixamente.
— Quem a está chamando?
— Companheiros que também estão trabalhando em
várias pistas procurando elucidar este assunto.
O chinês encolheu os ombros e estendeu o rádio a
Brigitte. Em seguida, levantou a pistola quase encostando
seu cano no rosto da moça.
— Sim?
— Você está bem?
— Não se preocupe comigo. Há alguma novidade?
— Sim, já localizamos o endereço de Henry Flower e sua
casa já se encontra cercada por vários de nossos rapazes. Se
você nos autorizar, faremos uma busca. Já sei que recebeu
dois exemplares do “Eternidade” e que tomou champanha
com Chelkuvenko. Como foi a entrevista?
— Tudo bem. Nós ainda continuamos juntos, no
apartamento de Fedor Ilyef. Era um pintor de categoria.
— Quem, Fedor Ilyef?
— Sim. Basili me presentou com dois quadros.
Houve uma pausa mais ou menos prolongada e a voz
agora parecia mais tensa:
— Tudo está bem, não está acontecendo nada?
— Nada que eu não possa resolver.
— Muito bem. Outra coisa, todos os negros estão
abandonando o Central Park. Milhares de negros estão
tomando o metrô para o Harlem. Foi esta a informação que
recebemos dos dois agentes negros que estiveram no Central
Park.
— E o que fazem quando chegam ao Harlem?
— Nada. Sentam-se no solo em grupos e firam
esperando. E há outra novidade: mais negros estão chegando
de todas as partes e desembarcam em Nova Iorque. Alguns
chegam de trem, e outros em carro particular. Também estão
chegando em motos e bicicletas. Até caminhões cheios de
negros estão vindo para cá. Disseram-me que já devem ter
chegado esta noite a Nova Iorque mais de duzentos mil
negros. Não sei o que estão tramando, mas algo muito sério
deve ser.
— Tio Charlie, quero todos os dados que puder obter
sobre um indivíduo chamado Jason Chesterhimes. É pastor
da Riverton Church, cuja casa de reunião está localizada na
135th Street. Não façam nada, só levantem a vida pregressa
do sujeito. Quero todas as informações possíveis sobre ele.
Quanto aos negros, também não façam nada, deixe-os
tranquilos. Apenas avise os altos comandos da polícia para
que distribuam ordens neste sentido a seus agentes. Tanto o
FBI, como qualquer outro órgão de fiscalização não deverão
agir de modo algum. Entendido?
— Claro.
— Deixei minha mala no quarto, mas vou necessitar dela.
— Um agente poderá levá-la até onde está.
— Não, nada de Simons envolvidos neste caso. Contrate
um táxi. O motorista do mesmo deverá entregar-me a mala
no cruzamento da Broadway e Houston, justamente na
entrada do metrô. Apanharei a mala e lhe mandarei algumas
fotos do reverendo Chesterhimes que já consegui. Assim que
você receber as fotografias desapareça da raia, tanto você
como os rapazes que colaboram aí. Apenas deverão reunir
dados sobre Jason Chesterhimes. Nenhum agente deve ficar
circulando pelas ruas em todo o Estado. Você me entendeu
bem, tio Charlie?
— Sim, mas o apartamento de Henry Flower...
— Esqueça-se dele. Os outros assassinos já devem estar
no Harlem, como todos os negros que estão chegando à
cidade. Tio Charlie, não teime e siga todas minhas
orientações.
— Farei tudo como disse, mas você o que vai fazer?
— Apanhar o metrô.
Baby cortou a ligação e devolveu o rádio ao chinês. Os
dois agora pareciam mais tensos e preocupados, enquanto
Basili Chelkuvenko parecia divertir-se diante daquela
situação inusitada.
De repente, um dos chineses a fitou demoradamente e
perguntou:
— Você é Baby, não é?
— Sim. E ele é Basili Chelkuvenko da KGB, encarregado
das investigações pela morte do companheiro Fedor Ilyef.
A perplexidade dos chineses continuava aumentando.
— O que está acontecendo com os negros?
— Pelo que sei estão reunindo-se no Harlem, atraídos
pela promessa de uma “próxima humanidade”.
— O quê, de que você está falando?
— Vou propor-lhes algo um pouco estranho — sorriu
Baby. — Os dois ficarão aqui conversando com Basili que
poderá explicar-lhe tudo que desejam saber e eu vou tomar o
metrô para ir ao Harlem.
— Você não vai! — exclamou Basile Chelkuvenko. —
Se os negros virem uma moça branca...
— Sou eu quem resolve meus problemas, camarada —
respondeu, sorrindo.
Depois olhou para os dois agentes da Lien Lo Pou e
continuou:
— O que vamos fazer? Agiremos com inteligência e
camaradagem ou vamos portar-nos como verdadeiras feras
selvagens?
Os dois chineses se entreolharam, respiraram fundo e um
deles respondeu:
— Baby é a mulher mais famosa da espionagem e sempre
faz o que deseja. Vá em paz e boa sorte.

CAPÍTULO SEXTO
Encontro com o reverendo

Há pessoas que sabem aproveitar todas as situações que


surgem em suas vidas e naquela tarde, a negra maravilhosa
que chamava a atenção dos passageiros do metrô demonstrou
que isso poderia ser uma grande verdade.
Ela era linda e estava viajando para o Harlem.
O vagão ia abarrotado de gente e a moça praticamente se,
sentia imprensada entre vários homens que a tinham cercado
estrategicamente.
A situação não devia ser muito confortável, pois eles
além de se apertarem contra seu corpo, praticamente a
comiam com os olhos.
Até certo ponto isso poderia ser encarado como natural,
porque poucas mulheres chegam a ser tão bonitas. E a sua
pele enegrecida a fazia ser extremamente bela aos olhos de
todos aqueles homens. Talvez não estivesse acostumado a ter
uma mulher tão linda assim, e tão perto deles. Tanto que
podiam tocá-la e se aproveitavam disso.
Aquela moça tinha uma pele luzidia, olhos negros,
grandes e expressivos. Tinha uma boa altura e porte
elegante, além de curvas sinuosas que chamavam a atenção
dos homens desde o primeiro instante. Não existia um macho
no trem que não olhasse para ela com olhar de gula,
observando seus lábios bem delineados, rosados, sensuais
que não paravam de sorrir.
Sorriam como se ela estivesse se sentindo muito
confortável, apesar dos sem-vergonhas estarem se
esfregando em seu corpo, mas não podia reclamar porque o
ambiente estava por demais denso.
Todos viajavam em silêncio. Ela notava que aquele
silêncio era pesado como se nele houvesse muita tristeza e
esperança.
Olhava para aquelas pessoas e notava que todas pareciam
mortificadas e que a maioria dos passageiros era composta
por negros. Não por negros, adultos somente; mas por
famílias inteiras: velhos, adultos, jovens e crianças pequenas.
Não sabia o por quê, mas tinha impressão de estar
assistindo um êxodo estranho, incompreensível neste final de
milênio.
Só de vez em quando uma criancinha chorava ou pedia
um pouco de água.
A moça negra continuou observando as coisas que seus
olhos abrangiam e de repente, uma ideia brotou em sua
mente: estava assistindo uma peregrinação. Era isso
exatamente, uma peregrinação ao Harlem.
— Avise-me quando vai descer — disse um homem em
sussurros a seu ouvido.
Ela o olhou e continuou calada, enquanto sentia seus
dedos apertando-lhe as coxas, mas nem assim reclamou. O
negro era um gigante musculoso e aos poucos, ia
conseguindo encurralá-la de encontro à parede de forma que
somente seu corpo encostasse ao dela. Já estavam tão
colados que quando ele respirava, ela sentia seu alento.
A vida não muda e nem tampouco as pessoas.
Havia no ar um quê de tragédia, de temor e ela podia
captar essas sensações perfeitamente... Não sabia o que
provocava aquela inquietação e insegurança coletiva, mas
alguém devia ser o responsável pelo que estava acontecendo.
O homem continuava apalpando suas coxas quando ela
disse:
— Agora na próxima.
— Em Brooks Square é onde há mais gente. Foi-nos
recomendado que saltássemos duas estações mais adiante.
Próximo de Harlem Houses há tanta gente que não
podemos...
— Eu vou descer aqui — cortou ela.
O negro não falou mais nada e começou a abrir passagem
entre o povo que se aglomerava no vagão. Quando o trem
parou, ele já estava perto da porta e a negra bonitona a seu
lado.
As portas se abriram e os dois desceram com poucos
passageiros e esse detalhe não passou desapercebido para a
moça: realmente tinham recebido instruções para só
descerem em um local determinado.
Harlem estava repleto de negros. Parecia que sua
população havia aumentado em questão de dias ou horas.
O gigante negro não disse uma palavra, colocou as mãos
em seus ombros e forçou-a a se virar de frente para ele.
Contemplou-a de cima abaixo, observando detidamente toda
a exuberância de seu corpo que ainda não tinha tido chance
de admirar. Por instantes seus olhos pousaram na maletinha
vermelha com flores azuis que ela segurava na mão
esquerda, mas logo em seguida se ergueram até os seios
firmes e ousados que o tinham atraído desde quando a viu no
metrô.
Sorriu antegozando os momentos de prazer que se
aproximavam velozmente e introduziu a mão pelo decote
amplo que ela estava usando.
— Vou levá-la para uma pensão acolhedora...
A negra se deixou acariciar, continuou sorrindo e
levantou o joelho direito com força. O homem quase gritou
de dor quando recebeu o golpe em pleno ventre e retrocedeu
alguns passos. Ela não titubeou e aproveitou o momento para
lhe desferir um pontapé nas virilhas. Dessa vez, ele berrou de
dor e levou ambas as mãos à região agredida, enquanto os
joelhos se dobravam sem forças para suster o corpo.
Porém os golpes não tinham acabado e ele recebeu mais
três pontapés na boca do estômago que o deixou sem ar, sem
forças e quando tentava reerguer-se, recebeu outra patada no
queixo que o fez cair desmaiado no chão da gare.
A negra nem se importou. Simplesmente se dirigiu para
as escadas sem fazer caso das pessoas que a contemplavam
com perplexidade. Apareceu na saída de Saint Nichols e
West 135th Street. Seguiu por esta via em direção ao Harlem
River. Passou pela Eighth Seventh Avenue...
Não era fácil caminhar por aquelas artérias que estavam
com as calçadas cheias de gente, o meio da rua abarrotado de
carros parados. Dentro dos mesmos havia pessoas
gesticulando e reclamando. Todas pareciam nervosas e com
a aproximação da noite aquela massa humana parecia ir
ficando ainda mais negra pela ausência da luz solar. Muitas
crianças dormiam deitadas em mantas coloridas que serviam
também para ornar as calçadas.
O silêncio prosseguia, o mesmo silêncio denso e
enervante.
A jovem passou por um grupo de velhas negras que
estavam ajoelhadas no chão e olhando o céu com muita
reverência. Um pouco mais adiante, viu um velho negro com
a cabeça branca como algodão tocando uma música delicada
em um banjo. Milhares de olhos olhavam para o céu ou
deixavam o olhar se perder por espaços insondáveis.
Conforme ia aproximando-se da Riverton Church a massa
humana se tornava mais densa e cada vez era mais difícil
andar por entre o povo que se aglomerava em todas as partes.
Em várias ocasiões, ela teve que pedir passagem com as
seguintes palavras:
— O reverendo Chesterhimes está me aguardando.
Palavras mágicas que apenas pronunciadas abriam espaço
para permitir sua passagem. A igreja estava inteiramente
cercada por pessoas de todas as idades. Algumas
continuavam de pé, porém outras já se encontravam sentadas
ou deitodas no chão. Só a maioria rezava, mas também como
não deveria deixar de ser, o calor habitualmente suportável
em maio, estava sufocante e os corpos exalavam um cheiro
meio nauseabundo.
Finalmente pôde chegar à igreja. Quis entrar, mas a porta
estava fechada. Bateu e segundos mais tarde, um homem
ainda jovem abriu uma janela pequena e disse:
— Ninguém pode entrar.
— Preciso ver o reverendo Chesterhimes.
— O reverendo agora está muito ocupado e ninguém
pode vê-lo.
— Alguém precisa dar notícias de meu irmão. Ele me
disse que se algo acontecesse, eu viesse a esta igreja e
procurasse o reverendo Chesterhimes.
— Quem á seu irmão?
— Henry Flower.
O negro olhou-a mais fixamente e disse:
— Espere aqui.
Fechou a portinhola. Poucos segundos mais tarde, abriu a
porta para ela entrar na igreja. O silêncio agora se
assemelhava ao que existe em um cemitério. Tudo estava às
escuras, com exceção da casa do reverendo que tinha as
janelas acesas.
Os canteiros do jardim estavam floridos na casa do
oficiante. Ela olhou para o céu e viu que agora já estava
coberto de estrelas cintilantes.
Chegaram perto da porta da igreja e o acompanhante lhe
disse:
— Espere-me aqui.
A negra se sentou em um banco, abriu a bolsa vermelha,
apanhou um cigarro, acendeu-o e quando ia começar a fumar
teve a impressão de que de um momento para o outro, ia
desprender-se uma grande lágrima vermelha do céu. Este
pensamento assustou-a. Não entendia por que as ideias
surgiam de forma tão repentina.
A porta da igreja se abriu e o reverendo Chesterhimes
saiu ao jardim. Viu a moça e sorriu. Aproximou-se dela. A
negra jogou o cigarro no chão e o esmagou com o sapato, em
seguida, levantou-se.
Os olhos de ambos se entrechocaram em um exame
mútuo.
Jason Chesterhimes tinha um rosto simpático e a mesma
expressão bondosa que se refletia nas fotos que ela vira.
Vestia calça, camisa e paletó em três tons de azul. Sua
aparência era agradável, elegante e seu olhar, sagaz e
inteligente.
— Eu sou o reverendo Chesterhimes — apresentou-se. —
Entendi que foi seu irmão quem a enviou?
— Não exatamente. Ele me disse que se algo estranho
ocorresse, eu viesse procurá-lo.
— E o que aconteceu de estranho?
— Não sei... Primeiro, ele me disse que viesse a Nova
Iorque porque algo extraordinário estava prestes a acontecer.
Combinamos que me apanharia na Estação Central, mas eu
não o vi ali. Liguei para seu apartamento e ele também não
atendeu o telefone. Então, apanhei um táxi e fui para lá.
— Ele também não estava em casa?
— Não sei... Havia três chineses nas proximidades do
prédio e eu nem me aproximei... Eram uns homens com tipo
esquisito.
— Onde estavam os chineses afinal de contas?
— Na rua e pareciam estar esperando alguém. Não sei
por quê, mas senti medo deles.
— Seu irmão havia comentado alguma coisa a respeito de
chineses com você?
— Não, não. Eu não sei o que aconteceu, mas preferi não
me aproximar deles!
Chesterhimes mostrou o banco, a negra se sentou e ele se
sentou a seu lado.
— Como você se chama? — perguntou.
— Rita.
— Seu irmão nunca me tinha falado de você, Rita.
Ela esboçou um sorriso malicioso e simpático.
— Entendo que não quisesse falar de mim. Henry nunca
se conformou com minha profissão.
— Que profissão?
— Por favor, reverendo... Não vamos falar sobre minhas
atividades — respondeu com malícia.
— Onde você atua?
— Em Atlantic City. É uma cidade ótima para se ganhar
dinheiro.
— Certamente — sorriu o reverendo. — Só não entendo
porque deixou aquele paraíso para vir a uma cidade feia
como a nossa.
Rita Flower olhou fixamente para ele e murmurou:
— Realmente Nova Iorque é muito feia, mas Harlem
ainda é mais. Viajei em um metrô repleto de gente e todos
eram negros. Permaneceram silenciosos como se estivessem
assustados. Saltei do trem e vi as ruas cheias de gente e
carros estacionados... O que está acontecendo, reverendo?
— Seu irmão não contou nada para você?
— Não, nós não nos encontramos.
— Tampouco ele tem passado por aqui. É verdade que
nada comentou sobre chineses ou sobre algum chinês com
você?
— Henry apenas me disse que viesse porque não queria
que eu perdesse algo verdadeiramente maravilhoso. No
momento em que falava, tive a impressão que estava me
oferecendo... um pedacinho do céu.
Chesterhimes soltou uma rápida gargalhada... Quase em
seguida, seu olhar mudou de expressão e contemplou o corpo
de Rita com o mesmo ar de gula que ela tinha notado nos
passageiros do metrô.
— Mais tarde falaremos do céu, Rita. Neste momento só
posso oferecer-lhe minha casa. Não é uma maravilha, mas lá
ficará melhor do que na rua.
— Não, eu posso ir para um hotel.
— É inútil porque hoje não encontraria vaga aqui se
pediu que viesse procurar-me.
— Foi isso que ele me recomendou, mas não entendo
qual a relação que pode existir entre o senhor e Henry. São
duas pessoas diametralmente opostas, totalmente diferentes.
Meu irmão não é uma má pessoa, mas nunca se interessou
por qualquer igreja, enquanto o senhor...
O reverendo riu de novo, mas ficou sério em seguida.
— Rita, tenho a impressão que você é uma mulher muito
inteligente. Não gostaria de tomar parte da “próxima
humanidade”?
— Do quê? — perguntou surpreendida.
— De uma nova humanidade que todos nós teremos... e
nela também vamos ter as coisas mais maravilhosas que o
mundo e a vida nos poderão conceder..
— Todos nós? Está dizendo que todos os homens que
vivem no mundo terão essa mesma oportunidade?
— Não — sorriu Chesterhimes de forma enigmática. —
Essa oportunidade só será concedida aos negros, às pessoas
da raça negra, mas de uma forma muito especial. Somente
alguns serão afortunados a participar desse evento. Você não
gostaria de ser uma dessas pessoas, Rita?
— Claro que sim... Ainda não sei do que se trata, mas é
claro que eu gostaria de pertencer a esse grupo de
afortunados. O que devo fazer para conseguir a felicidade
completa e fazer parte dessa “próxima humanidade”?
— Morrer. Só morrer, minha querida.
CAPÍTULO SETIMO
Uma reunião muito importante

Rita olhou para Jason Chesterhimes como se nada tivesse


compreendido e exclamou assustada:
— Morrer! Eu não quero morrer!
— Ninguém quer morrer — respondeu o reverendo com
muita calma. — Eu também não quero morrer, mas a morte
sempre pode ser proveitosa.
— Desconfio que esteja pilheriando, reverendo.
— Claro que não. A morte é apenas mais um passo para a
evolução do progresso. A cada morte que passamos, mais
nos aproximamos da perfeição, minha querida. Você
compreende o que estou lhe explicando?
— Não... Não!
— Digamos que à medida que vamos penetrando na
eternidade, vamos sabendo mais a respeito da vida do
homem. Hoje sabemos mais do que ontem e amanhã
saberemos mais do que hoje. A cada reencarnação que
passarmos mais saberemos sobre as anteriores. O raciocínio
parece lógico, não parece?
— Reencarnação não existe! Quando um homem morre,
morre para sempre.
— Claro que não, querida! Venha comigo, vou permitir
que assista a uma reunião de alto nível à qual eu não
permitiria acesso de nenhuma outra pessoa. Quando você
chegou já estávamos em reunião. Acompanhe-me.
Chesterhimes levantou-se e estendeu a mão para ela. Rita
também se levantou, segurou a mão que ele oferecia e
começou a andar a seu lado.
— Não se surpreenda por nada — advertiu — e se tiver
que dar uma explicação sobre sua presença à reunião, não
fale que é irmã de Flower, diga-lhes simplesmente que é
minha amante.
— Sim.
— Mais uma coisa esta noite você dormirá comigo.
Combinado?
— Dormir com o senhor, reverendo? Está falando em
fazermos amor?
— Exatamente — sussurrou Chesterhimes. — Há muito
tempo ando tão preocupado com meus projetos para a
“próxima humanidade” que nem mais me recordava dos
prazeres do sexo. E para recordá-los nada melhor do que
uma expert... que pode fazê-lo de formas várias e excitantes.
— Para uma pessoa que fala tanto em morte e de uma
“próxima humanidade” parece-me muito apegado às coisas
materiais.
Ele soltou uma gargalhada bem-humorada, deu uma
palmada nas nádegas rijas e bem contornadas da negra. Rita
sorriu.
Entraram na casa que era ampla e bastante desarrumada.
Chesterhimes abriu uma porta e ela viu uma sala enorme
com uma mesa grande cheia de cinzeiros, copos, garrafas de
água, refrigerante e uísque.
Sentados ao redor dessa mesa estavam mais de dez
homens negros. Todos se calaram e ficaram com os olhos
cravados na mulher que estava chegando com o reverendo.
Chesterhimes não parecia disposto a dar explicações.
Simplesmente fechou a porta, aproximou uma cadeira à que
estava vazia à cabeceira. Com um gesto pediu que Rita se
sentasse nela e depois, ele também se sentou na outra que
estava à cabeceira da mesa.
— Senhores, peço desculpas pela interrupção, mas o
assunto era importante para mim. Por favor, prossigamos,
Leroy.
Um homem magro, de rosto enrugado e olhar mortiço
concordou.
— Eu estava dizendo que a partilha de posições quando
estivermos na próxima eternidade não será tarefa muito fácil
para ser determinada. Todos sabemos perfeitamente que
ninguém quando nascer de novo vai recordar-se de sua vida
anterior. Portanto, como vamos nos lembrar da distribuição
que estamos determinando hoje?
— Sugiro que se deixe tudo escrito — disse outro
homem. — Sei que nenhum de nós poderá lembrar-se do que
está acontecendo nesta reunião, mas se tudo for registrado
por escrito, creio que ficará mais fácil de ser recordado no
futuro. O que você pensa sobre isso, Jason?
Chesterhimes concordou com a cabeça, levou o indicador
aos lábios pedindo silêncio e Leroy continuou:
— Em minhas conversas com Wo Peng...
— Aquele chinês era um maldito! Só espero que o
tenham eliminado antes dele ter tido tempo para prejudicar
nosso plano! — disse outro.
— Não creio que tivesse tido tempo — interveio o
reverendo. — Assim que nos deu aquele ultimato, agi com
rapidez. Contratei os homens e seu único comentário sobre
nossa “próxima humanidade” ficou gravado em seu livro
“Eternidade”, mas o assunto foi tratado de forma vaga e
imprecisa, tal como está comentado em vários livros. Wo
Peng não estava a par de nosso projeto quando escreveu o
“Eternidade” e neste livro nem chegou a mencionar as
enormes possibilidades de uma “próxima humanidade” sem
a raça negra. Nós...
— Sem a raça negra? Como isso será possível? —
exclamou Rita Flower com assombro.
Todos os olhos se voltaram para ela e o reverendo
Chesterhimes sorriu carinhosamente.
— Como eu estava falando, durante minhas conversas
com Wo Peng, chegamos à conclusão que não é necessário
estabelecer-se nada de forma explícita porque quando
chegarmos à vida futura, continuaremos tendo as mesmas
tendências naturais que nos farão prosseguir com as mesmas
ideias que já nos acompanham hoje, ou melhor, com as
ideias que deixarmos programadas em nossas almas. Por
isso, não precisamos nos manter rígidos aos acordos que
fizermos nesta vida e nem preocupar-nos sobre quem poderá
ser o escalado para ser um líder. O mais importante é que
todos alimentemos os mesmos ideais e nos será indiferente
quem dentre nós estiver na Casa Branca.
— Quem vai estar na Casa Branca? — perguntou Rita.
O reverendo fez um gesto de desalento.
— Apresento-lhes Rita com quem mantenho relações
bastante... gratificantes. Como veem, ela é uma mulher
inteligente e curiosa que quer saber mais do que a maioria.
Todos os negros estão aceitando nossa convocação e vindo
para o Harlem, sem fazer perguntas sobre o que é realmente
a “próxima eternidade”. Apenas foi-lhes dito que esta seria
uma porta pela qual poderiam ter uma vida melhor do que a
atual e que todos deviam reunir-se aqui no Harlem. E o
resultado pode-se ver aí fora. A cada minuto, está chegando
mais gente desejosa de alcançar a “próxima eternidade”. E
depois que ocorrer o Grande Êxodo aqui no Harlem, o
mesmo se repetirá em todos os Estados Unidos. E em
seguida, em todo o hemisfério americano... Um pouco mais
tarde, o mesmo acontecera em todas as regiões do mundo. E
quando isso acontecer, não haverá mais nenhum negro em
todo o planeta Terra!
— Do que está falando? Quero que me explique tudo! E
não pense que sou ingênua como muitos que estão lá fora!
— Claro, eu sei que você é mulher inteligente, meu amor.
Infelizmente nem todas as pessoas têm o mesmo grau de
inteligência. Tenho certeza de que a maioria das pessoas que
estão reunidas lá fora não tem capacidade para entender o
que está prestes a acontecer com a aproximação dessa “nova
humanidade” que está ao alcance de todos. Você é diferente!
— Pois então me explique o que é na realidade a
“próxima humanidade”.
— Eu pensava explicar-lhe tudo, mas não agora.
Falaremos sobre isso quando estivermos sozinhos. Agora
precisamos acabar esta reunião.
— Está bem — murmurou Rita.
— Leroy, você entendeu meu plano?
— Penso que sim. A coisa mais importante para a
realização do plano será a extinção total da raça negra em
menor prazo de tempo. Depois que os negros desaparecerem
da Terra, tudo irá acontecendo automaticamente.
— Exato. O problema não consiste em qual cargo
mundial ou nacional cada um de nós será aproveitado. O
importante é saber-se que o mundo estará cheio de pessoas
com almas negras. A alma será negra, mas não o corpo e
dessa forma, todos nós nos encaminharemos para formar
uma humanidade melhor, sem racismos ou agressões de
qualquer espécie.
— Começo a entender o plano. A população branca
continuará, mas os negros desaparecerão do planeta. Agora
entendo porque o velho chinês discordou das ideias iniciais.
Teve medo que os chineses também se unissem a esse
movimento da “próxima humanidade” — opinou Rita.
— Não havia necessidade de Wo Peng discordar porque
os chineses continuarão sendo chineses, mas nós jamais
seremos negros nas outras reencarnações. Nunca mais os
negros sofrerão apenas por serem negros... Seremos brancos
eternamente.
— Ou chineses — arriscou Rita.
Todos os olhares se pousaram nela e durante alguns
segundos a perplexidade foi geral até quando um dos negros
mais idosos da mesa, perguntou:
— Como?
— Bem, não sei se entendi perfeitamente, mas... —
começou Rita.
— A reunião está terminada — cortou Jason
Chesterhimes. — Já estamos conversando há horas e está
ficando tarde. Precisamos descansar, preparar-nos para
enfrentar o amanhã que será um dia muito importante.
— Eu gostaria de saber o que ela quis dizer — insistiu
outro.
— Elmer, conversaremos sobre isso na próxima reunião.
Agora estou muito cansado. Sabem que podem dispor
inteiramente de minha casa como se fosse de todos. Rita,
você vem comigo.
O reverendo se levantou e abriu uma porta que estava do
outro lado da sala. Ele e Rita saíram, atravessaram um
patamar e chegaram perto da escada. Subiram em silêncio
até um corredor que tinha várias portas. Chesterhimes abriu
uma destas e ambos entraram em um quarto cuja janela dava
para o jardim. A noite estava linda e a lua brilhava no céu.
Rita afastou-se da janela e se virava para ele com
intenção de fazer-lhe mais perguntas, queria compreender
perfeitamente as intenções daquele recrutador de almas que
evidentemente também era um gozador do sexo, porém não
teve tempo de virar-se completamente porque recebeu um
golpe na nuca. A dor foi intensa e ela caiu desmaiada.
***
Abriu os olhos e levou alguns segundos para se recordar
do que havia acontecido. O quarto estava iluminado, apenas
por uma lamparina colocada em cima da mesa de cabeceira.
Quase em seguida se apercebeu que estava completamente
nua, sem uma peça de roupa ou um lençol cobrindo seu
corpo e tinha os pés e mãos amarrados com pedaços de
arame à guarda da cama.
Perto da parede estava uma poltrona e em cima desta sua
maleta vermelha, evidentemente desprezada por
Chesterhimes. Se pudesse chegar até ela, tudo poderia ser
resolvido em minutos!
Fechou os olhos e tentou relaxar os músculos e nervos
tensos. De nada adiantaria gritar, jamais havia feito isso e
nem pensava fazer naquele momento. O importante é uma
pessoa conservar sua dignidade, embora esteja perdendo sua
vida. O que resta de importante numa vida onde não há mais
a verdadeira dignidade, a dignidade íntima que existe no
interior de cada ser vivo?
Fechou os olhos de novo e só os abriu quando ouviu o
rangido da fechadura ao ser aberta. Jason Chesterhimes
entrou e fechou a porta. Aproximou-se da cama, sorrindo.
— Como está se sentindo, senhorita Montfort?
— Mal.
— Perdoe-me, mas não podia agir de forma diferente
quando tive certeza que você era você mesma. Uma pessoa
muito querida e especial principalmente para mim.
Sinceramente, assim que a vi no jardim pensei que fosse a
jornalista Brigitte Montfort. Analisei-a demoradamente,
tinha os mesmos traços fisionômicos, o mesmo formato de
lábios e essa covinha no queixo que lhe dá um encanto
irresistível. De fato, era parecida demais com meu ídolo, mas
não podia ser a pessoa que eu adorava. Brigitte Montfort é
branca e você, uma mulher negra. Eu sempre vejo a mulher
que adoro quando aparece em programas de televisão,
também tenho vários vídeos da senhorita Montfort, sou seu
admirador irrestrito e o que mais desejo é tê-la todinha para
mim. Não posso descrever a surpresa que senti quando vi a
mulher de meus sonhos no velório de Wo Peng.
— Nós éramos amigos.
— Só amigos? Não estava lá por algo relacionado com a
“próxima humanidade”?
— Absolutamente. Só soube alguma coisa sobre isso
quando recebi uma carta que evidentemente Wo Peng me
havia escrito antes de ser assassinado — mentiu Baby para
não mencionar Dick Peng e o computador que estivera a seu
dispor. — Nela meu velho amigo me pedia que eu fosse
procurá-lo para conversarmos sobre a “próxima
humanidade”. Infelizmente quando recebi essa carta ele já
estava morto.
— No entanto conseguiu localizar-me. Como me
encontrou?
— Através de Henry Flower.
— Chegamos a outro ponto que me interessa muito. O
que aconteceu com ele? Senti muito pesar por ter feito o que
fiz, mas fui eu quem o enviou para matá-la. Não podia
permitir que mesmo depois de morto Wo Peng interferisse
em meus planos. A partir daquela data, Flower sumiu e você
vem procurar-me. Como me explica isso?
— Ele tentou matar-me dentro de um elevador. Chegou a
sacar uma navalha, mas antes queria violar-me. Estava muito
nervoso e eu lhe propus um acordo. Ofereci-lhe dez milhões
de dólares. Custei, mas consegui convencê-lo. Aceitou
minha oferta e combinamos que ficaria escondido até quando
eu acabasse de investigar o caso e lhe pagasse a quantia
estipulada, quando então receberia seus documentos já
prontos para poder viajar a qualquer parte do mundo.
— Como pôde oferecer-lhe tantas vantagens, senhorita
Montfort?
— Tenho amigos em todas as partes, inclusive na Casa
Branca.
— Claro. Não posso esquecer-me que estou falando com
a jornalista mais famosa do mundo. A mulher que conhece
certos segredos desconhecidos por todos. Como pôde tingir
sua pele de negro?
— É um velho truque que venho usando há algum tempo.
Um amigo inventou um soro que chamamos de Blackcolor.
Quando injetado sob a pele, tinge-a por mais de doze horas.
Este soro me tem ajudado bastante.
— Compreendo agora porque é a jornalista aclamada por
todos: tem amigos influentes e farto recurso econômico, fora
o valor pessoal que também tem bastante peso. Flower
afortunadamente não a matou e eu poderei satisfazer um de
meus mais ardentes desejos: Vou possui-la!
— Esse ato não me parece muito espiritual, reverendo.
— É verdade — riu o negro. — Porém hoje vou fazer o
que desejo há muito tempo. Por que não abandonar esta vida
com recordações gratas?
— Reverendo, o senhor está ficando louco. Não
compreende que seu projeto de uma “próxima humanidade”
é uma coisa irrealizável?
— Você não entendeu ainda a profundidade de meu
projeto.
— Entendi, sim. O senhor está desejando exterminar a
raça negra da face da Terra. Exterminá-la em sua forma
física, porque os espíritos dos negros continuariam sendo
reencarnados em corpo de pessoas da raça branca. Desse
modo, os negros desapareceriam do planeta, mas suas almas
prosseguiriam na trajetória eterna. Esses descendentes de
negros ocupariam os maiores cargos de autoridade que
surgissem no mundo. Seriam as pessoas mais importantes
tanto no campo material como no espiritual. Seriam as
maiores inteligências de uma geração e o que realizassem,
fariam conforme os desejos e a vontade que os negros têm
atualmente. Só dessa forma iriam desaparecer todas as
discriminações raciais. Não é esse o plano?
— Exatamente. Não o achou maravilhoso?
— Seria maravilhoso se fosse realizável, mas é algo
impossível, reverendo. Explique-me uma coisa: por que
supõe que as almas dos negros somente reencarnarão em
corpos de raça branca? Por que não poderão ser
reencarnados em corpos de chineses, mestiços ou esquimós?
— Cale-se! Eu serei um dos primeiros a morrer para
poder orientar as almas dos negros em sua nova
reencarnação! Todos reencarnarão onde eu decidir e nas
raças que eu permitir! Desde o momento da morte, minha
alma orientará as almas dos negros que forem morrendo até
o tempo em que novamente serão reencarnadas em corpos de
raça branca! Na próxima humanidade não existirão negros,
só brancos, mas as almas de todos os brancos serão negras!
Esse é o meu plano e ninguém irá arruiná-lo, muito menos
você!
Seus gestos se tornaram mais rápidos. O homem parecia
completamente transtornado quando começou a desabotoar a
camisa e em poucos segundos, ficou nu na frente da espiã.
Aproximou-se da cama e se jogou sobre Brigitte.
— Hoje vou realizar um de meus maiores sonhos que
julgava impossível. Prepare-se porque vou possuí-la e
depois, poderei morrer — murmurou.
Rita Flower suportou o ato brutal em silêncio. Era uma
prisioneira e não tinha meios para reagir contra seu
carcereiro.

CAPÍTULO OITAVO
Ela me mata e eu serei o herói

O reverendo fez o que bem quis com Rita Flower, mas a


mulher se manteve impassível o tempo todo, sem fazer um
só movimento, assemelhando-se a uma estátua de pedra que
ele tivesse a seu lado.
Depois o negro se vestiu e saiu do quarto e ela continuou
estendida em cima da cama, com os pés e mãos ainda
imobilizados.
Na vida acontecem coisas verdadeiramente absurdas e
inexplicáveis: Vivera uma vida inteira expondo-se a perigos
e se arriscando. Viajara pelo mundo todo, geralmente sendo
perseguida por adversários difíceis e sempre tinha
conseguido esquivar-se do perigo maior que era a Morte. E
agora, no Harlem, tudo indicava que fosse morrer depois de
ser violada por um negro nova-iorquino.
Não entendia como certas coisas aconteciam subitamente,
mudando totalmente o rumo de uma vida.
Repentinamente, sentiu um calafrio correr pelo corpo e
começou a sentir frio, mas nada podia fazer enquanto
estivesse amarrada às guardas da cama. E se não conseguisse
soltar-se, continuaria condenada à morte.
Tentou várias vezes e chegou à conclusão que nunca ia
conseguir romper aqueles pedaços de arame. Tudo tem um
limite na vida, inclusive a sorte. Esta também tem um tempo
limitado de duração e um dia acaba...
Foi então...
Um sujeito entrou sorrateiramente como se temesse por
estar ali e a famosa Brigitte Montfort também se atemorizou
sem entender por quê. Os mistérios da vida são insondáveis.
Todos a consideravam como a repórter mais famosa do
mundo. Tinha amigos influentes em todos os continentes e
no entanto, naquele momento nenhum deles poderia
interceder a seu favor.
Elmer se aproximou da cama e ficou olhando para ela.
Sacudiu a cabeça dando a entender que bem podia imaginar
o que havia acontecido, mas o motivo de sua presença
naquele quarto era outro. Desde que a suspeita se infiltrara
em sua mente, não tinha tido mais sossego.
— Não posso esquecer-me do que falou — foram suas
primeiras palavras. — Quanto mais penso no que disse,
menos estou entendendo a “próxima humanidade”, quero
que me explique como a interpreta. Em minha opinião você
está certa, pois ninguém tem poderes na mão para garantir
que alguém na próxima reencarnação nascerá em corpos
diferentes à raça branca. Estive pensando e acho que também
podemos nascer chineses ou de qualquer outra raça. Não
estou raciocinando certo?
— Perfeitamente — murmurou Brigitte. — Tanto
poderão nascer chineses como índios, negros ou brancos.
— Essas dúvidas me transformaram porque eu antes
nunca tinha pensado nesta possibilidade... E se agora meu
raciocínio está correto, acho que o sacrifício da massa
humana negra é totalmente inútil.
— Isso é evidente, Elmer. Agora me escute com atenção
e desamarre meus pés e mãos. Solte-me. Nós precisamos sair
daqui e evitar que esse projeto maluco prossiga. A “próxima
humanidade” não passa de um absurdo!
— Já não há mais tempo para interceptá-lo. O tempo já
está na fase regressiva! Todos sabem que amanhã vão morrer
e o pior é que aceitaram a imposição da morte com muita
resignação. Alguns até estão pensando em acelerar o
processo. Já me disseram que só estão esperando a meia-
noite para se suicidarem.
— Que os céus se compadeçam de todos — sussurrou
Brigitte. — Solte-me, depressa!
— Já nada mais se pode fazer — disse o negro jogando-
se na poltrona onde estava a bolsa vermelha. — Os minutos
estão se acelerando!
Rita Flower olhou para seu relógio-pulseira. Eram vinte e
duas horas e trinta e dois minutos. Tinha que fazer alguma
coisa!
— Elmer, tire esses arames que me estão prendendo!
— O helicóptero chegará ao amanhecer. Nós não
podemos fazer nada porque nem sabemos de que direção
vem. Tudo foi combinado com Jason.
De que helicóptero está falando?
— Do que chegará com uma carga de gás mortal que é
fabricado em um dos laboratórios secretos dos Estados
Unidos. Laboratórios que só fabricam gases e outros
elementos usados em guerras químicas. Jason subornou um
funcionário que trabalha nesses laboratórios e foi este quem
conseguiu subtrair uma boa quantidade de gases mortíferos
que deve ser lançado sobre o Harlem quando o dia estiver
amanhecendo. Nem gosto de pensar. Milhares de pessoas
que se encontram nas ruas deste bairro vão morrer vítimas da
loucura de um homem! Como não percebi antes, que tudo
não passava de um pesadelo doido! Se não se tem meios para
garantir essa “próxima humanidade” sem negros habitando a
Terra, de que adianta causar uma carnificina como a que está
prestes a acontecer?
— Elmer, por quê não me solta logo? — disse Baby,
procurando aparentar serenidade. — Eu talvez dê um jeito.
— Como? Como vai sustar esse plano tão bem
elaborado?
— Dentro dessa maleta vermelha há um rádio, aí juntinho
de você. Posso utilizá-lo para dar instruções a fim de que o
helicóptero seja interceptado em pleno voo e jamais chegue
aqui. O homem que estiver dirigindo o aparelho será preso...
O pior que pode acontecer nesta operação é derrubá-lo, mas
isso só fariam em último caso, quando o aparelho já
estivesse desviado e sobrevoando o alto-mar. Nada do que
possa acontecer com o piloto que o reverendo subornou, será
pior do que ele despejar as cargas de gás sobre a multidão
que se aglomera nas ruas do Harlem!
— Afinal, quem é você e por quê está presa nessa cama?
— Elmer, não podemos continuar perdendo tempo!
O negro olhou para ela, mas seu olhar estava distante,
pensando na catástrofe que aconteceria se o helicóptero
chegasse ao Harlem antes do amanhecer. De repente,
levantou-se e começou a soltar os arames que imobilizavam
as mãos de Brigitte. Em poucos segundos, a espiã mais
perigosa do mundo estava livre. Pulou da cama e se sentou
na poltrona. Apanhou sua maleta vermelha, abriu-a e retirou
o maço de cigarros que tinha o rádio adaptado.
— Sim? — atendeu a voz de Charles Alan Pitzer.
— Tio Charlie, precisa mandar gente especializada para
vigiar o voo de um helicóptero que não poderá ser
interrompido no perímetro de Nova Iorque!
Calou-se quando a porta foi aberta com brusquidão. Jason
Chesterhimes surgiu de repente, empunhando uma arma e
suas feições estavam alteradas pelo ódio.
— Elmer, eu falei que não viesse procurá-la! Não queria
que viesse conversar com ela! Esta mulher não passa de
uma...
A frase foi interrompida quando reparou que Brigitte o
fitava com raiva. Chesterhimes apontou a arma em sua
direção e disparou. Errou o alvo porque Baby se jogou em
cima da poltrona que estava a seu lado. Rapidamente,
apanhou a pistola nacarada de madrepérola que estava na
bolsa, ao lado do rádio conectado com a onda de Alan Pitzer.
Quando se levantava para poder disparar, Chesterhimes
atirou novamente e esta segunda bala apanhou Elmer, que
ficou com um orifício na testa e com o rosto transformado
em uma máscara sanguinolenta.
Plof.
Brigitte disparou em seguida e o diminuto projétil foi
incrustar-se no ombro direito do reverendo. Este se sentiu
momentaneamente atordoado, mas não chegou a cair. Ao
contrário, deu meia-volta e saiu correndo pelo corredor.
Quase em seguida, Baby pôde escutar seus passos descendo
a escada quase correndo.
Depois tudo retornou àquele silêncio opressivo. Ela olhou
para o cadáver de Elmer estendido junto à cama e com os
olhos escancarados como que olhando o teto.
Só então lembrou-se do rádio que continuava ligado.
— Tio Charlie, continua na escuta?
— Sim.
— Creio que não estou passando pelos meus melhores
momentos.
— Por quê não fala logo o que está acontecendo, garota?
Quer que eu mande reforço?
— Não, não mande ninguém. Estou tentando controlar a
situação e se alguém chegasse, poderia provocar um
desastre. Este negro é um louco, mau e ambicioso. Agora
entendo porque Wo Peng o chamava somente de “negro
maldito”. Ele não passa de um doido!
— Em que sentido?
— É louco de ambição, de vaidade e talvez seja o
criminoso mais perigoso que já encontrei na vida. Fala com a
doçura do mel e prejudica os outros com a acidez do fel.
Imagine que ele está programando uma “próxima
humanidade” na qual não existirá uma só pessoa da raça
negra!
— Essa ideia é absurda!
— Sei disso, mas ele com seu entusiasmo doentio
conseguiu convencer todo o Harlem e há uma verdadeira
multidão parada pelas ruas. Toda aquela gente está
esperando a meia-noite para iniciar uma sessão de suicídios
coletivos.
— O quê? Suicídios coletivos?
— Vamos deixar isso para mais tarde, tio Charlie.
Primeiro, quero que você prepare uma frota de helicópteros
que deverá sobrevoar Nova Iorque. Depois, lhe direi como
vamos tentar salvar todo o povo que se encontra no Harlem.
Espere um instante, tio Charlie.
Deixou de falar e ficou atenta, pois parecia ter ouvido um
ruído perto da porta. Soltou o rádio no chão empunhou a
pistola e ia abrir a porta, mas antes apagou a lamparina que
iluminava o quarto.
Abriu-a lentamente e ficou estática por segundos quando
viu Chesterhimes andando pelo corredor com o peito da
camisa vermelho de sangue. Carregava uma arma na mão
direita e suas feições naquele momento em nada se pareciam
com as de um cantor de blues. Estavam crispadas com uma
expressão de desespero no olhar.
E dessa vez, ele não vinha sozinho, atrás dele vinham
mais de dez homens empunhando facas e outros objetos
afiados que sem dúvida alguma tinham apanhado entre os
objetos que geralmente são guardados na cozinha.
Mais de dez homens estavam chegando preparados para
matá-la, sem se preocuparem em morrer porque esse era
exatamente o objetivo de todos — ansiavam a morte para
serem os primeiros a liberarem suas almas e desse modo, se
tornarem os fundadores da “próxima humanidade”. No
entanto, todos os fanáticos que estavam naquele corredor
estreito e escuro desejavam mais uma coisa: queriam ver a
amante do reverendo morta, a fim dela não ter oportunidade
de semear dúvidas entre as pessoas que estavam desejando
integrar-se à “próxima humanidade”.
— O quê vou fazer? — pensou Baby. — De forma
alguma poderei enfrentá-los e nem tampouco tenho balas
para todos! Eu poderia matar Jason Chesterhimes somente,
mas se eu fizesse isso, ele se tornaria o primeiro mártir de
todo o movimento. Não, não vou desperdiçar bala alguma
com ele!
Arrastou-se pelo chão até onde tinha deixado o rádio
ligado e sussurrou:
— Tio Charlie, não posso continuar falando. Faça tudo
como achar melhor.
Desligou e meteu o rádio na bolsa. Fechou-a, mas
continuou empunhando a pistola com a mão esquerda.
Rapidamente aproximou-se da janela e só então se lembrou
de que estava sem roupa alguma.
O quê podia fazer para cobrir sua nudez? Nada e nem
podia ficar perdendo tempo com assuntos de somenos
importância.
Subiu no parapeito da janela que estava situado no
segundo andar e se jogou no espaço. Felizmente a casa era
cercada de relva que amorteceu o impacto da queda.
Deslizou de gatinhas sobre ela e primeiramente se escondeu
atrás do tronco de um pinheiro.
Sorriu, pensando que a sorte ainda não a havia
abandonado completamente porque naquele exato momento
a janela do quarto onde estivera clareou. Um dos homens já
acendera a lamparina.
Quase em seguida ouviu a voz de um deles:
— Ela não está aqui e a janela está aberta!
— Não pode estar muito longe! Vamos procurá-la no
pátio! — identificou a voz de Chesterhimes imediatamente,
pois esta ficara gravada em sua mente.
— Talvez esteja escondida em outro quarto — sugeriu
outra voz. — Nenhuma mulher poderia saltar desta altura, só
se quisesse acabar com vários ossos quebrados!
— Vocês não sabem quem é aquela harpia. Nós vamos
descer e procurá-la pelo pátio, mas alguns fiquem aqui em
cima e revistem todos os quartos! — decidiu Jason
Chesterhimes.
Brigitte percebeu que tinha de agir com rapidez ou eles a
encontrariam. Segurou a maleta vermelha com força,
pensando que só havia três meios possíveis para afastar-se
do pinheiro, que a protegia:
O primeiro seria sair voando, mas esta hipótese já estava
descartada desde o início. Poderia entrar novamente na casa
e se encaminhar para a porta principal e sair à rua, porém se
fizesse isso poderia encontrar-se com os homens que a
procuravam e com outros que vigiavam os jardins. O melhor
e o mais viável seria voltar à igreja e ficar escondida lá
dentro, sem sair à rua que estava abarrotada de homens,
mulheres e crianças que aguardavam a chegada da “próxima
humanidade” que o reverendo Chesterhimes lhes havia
prometido.
A espiã mais perigosa do mundo levantou a cabeça, olhou
para cima e sorriu.
Pouco depois, os homens chegavam ao pátio e o
reverendo o percorreu em várias direções, procurando-a
inutilmente e quando falou o fez quase gritando, com uma
voz que parecia bastante excitada:
— Não, não acredito que tenha podido fugir! É
impossível sair-se daqui se não for pela porta da casa ou da
igreja e ela não se atreveria a passar por nenhuma das duas!
Principalmente sabendo que se aparecesse na rua, meus
homens a matariam!
Ninguém respondeu e todos se entreolhavam como se
quisessem ler nos olhos do companheiro onde a negra Rita
Flower poderia estar escondida.
— Vocês já examinaram os pinheiros? — perguntou
Chesterhimes, depois de já estar perdendo as esperanças de
encontrar Brigitte Montfort, a mulher que vinha admirando
em silêncio por longos anos.
— Nos pinheiros, Jason? — perguntou um dos homens.
— O que ela ia fazer lá?
— Bolas, esconder-se em seus ramos copados!
Houve uma troca de olhares e vários se aproximaram das
árvores, mas a noite estava escura, sem lua e só as estrelas
continuavam cintilando.
— Seria bom se tivéssemos uma lanterna, Jason! —
gritou alguém.
— Vou buscar logo três — respondeu outro.
Os homens agora ultrapassavam a vinte e todos estavam
aglomerados sob os dois pinheiros frondosos que havia no
jardim da igreja, olhando para cima e tentando descobrir Rita
Flower. Alguém chegou a sugerir que disparassem para as
copas porque se ela estivesse escondida entre os ramos, seria
alvejada e cairia ferida ou morta, mas outros opinaram o
contrário e no final, a maioria acabou concordando que
melhor seria esperar pelas lanternas.
Jason Chesterhimes escutava a discussão sem tomar parte
da mesma. Há muito tempo vinha acompanhando a vida da
senhorita Montfort e sabia que era uma mulher superior que
sempre fazia o que queria e de forma perfeita. Sabia que ela
saltara da janela do segundo andar para o pátio, pois não
havia outra saída fora a porta do quarto, mas todos eles
estavam no corredor.
Olhou para a janela e estremeceu. Se uma mulher era
capaz de saltar daquela altura sem romper vários ossos... o
que mais podia fazer?
“O que mais?” — perguntou-se. — “Se ela não havia
saído pela porta do quarto, tinha pulado para o pátio. E se
não havia saído pela porta da casa nem pela porta da igreja,
não devia estar escondida nos ramos dos pinheiros, pois só
poderia imaginar que fossem procurá-la ali... Não, não era
uma tolinha ingênua para estar nos pinheiros e se não havia
saído pelas portas que davam para a rua e se não estava
dentro de casa e nem dentro da igreja, só poderia estar no
telhado da igreja que era o mais inclinado e o mais fácil de
ser escalado! Ela só podia estar lá em cima, sozinha e nua,
esperando... Esperando o quê?
O reverendo Chesterhimes deixou seus amigos
procurando a negra nos ramos dos pinheiros e entrou na
igreja. Foi direto para um quarto pequeno que estava
entulhado de bancos e cadeiras, onde havia uma mesa cheia
de lampiões e algumas estufas de gás. Não se interessou por
nada e se aproximou da escada estreita e encaracolada que
subia para o primeiro andar da igreja. Ali havia outra escada
ainda mais estreita que ia dar num patamar coberto e no teto
deste ainda havia um alçapão pelo qual se podia chegar ao
telhado.
“A peste só poderia ter subido por aqui” — pensou. —
“Aproveitou o momento quando os vigias se afastaram da
porta para vir auxiliar-nos e entrou na igreja e depois, o resto
ficou muito fácil para ela. Realmente a senhorita Montfort é
uma mulher muito inteligente e... linda! Agora deve estar
sentindo muito frio, pois eu escondi suas roupas dentro do
armário e ela não teve tempo para procurá-las. Nunca vi
mulher mais linda! Agora deve estar atenta como uma gata
furiosa, armada com uma pistola, pronta para atacar quem
dela se aproximar! Não queria fazer isso, mas me sinto na
obrigação da matá-la!”
Jason Chesterhimes sorriu largamente e por momentos,
novamente pareceu um rapaz agradável e simpático.
— Vou subir, talvez a senhorita Montfort seja mais
rápida no gatilho do que eu. Se for, por que não deixar-me
matar por ela? Ela pode me matar facilmente. Meu cadáver
rolará pelo telhado e cairá na rua, entre as milhares de
pessoas que estão aguardando a meia-noite para ingressarem
na “próxima humanidade”. Se ela me matar, serei o herói
assassinado e o primeiro negro a ingressar nessa nova vida
que tanto apregoei.
O reverendo soltou uma risada e começou a subir a
escada que o levaria diretamente aos céus.

CAPÍTULO NONO
Cada homem morre como merece

A noite de primavera estava linda com o céu mais


parecendo um manto negro rebordado de brilhantes, mas
nem por isso muito aconchegante à mulher que estava
escondida atrás da torre da igreja, sem um trapo para cobrir-
lhe a nudez.
Baby já estava tiritando de frio e percebia que sua pele
começava a retomar o tom branco-dourado que todos diziam
ser um de seus maiores charmes.
O frio continuava aumentando, mas ela nada podia fazer
senão esperar pacientemente e isso era o que mais tinha e
mais usava na espionagem. Sua paciência era quase infinita e
seus nervos bem controlados. Jamais se alarmava diante de
uma dificuldade e naquele momento só podia esperar
pacientemente o desenrolar dos fatos. No entanto, sabia que
a espera não seria longa, pois tio Charlie era dos que sempre
agiam com rapidez e eficiência.
Sorriu ao ouvir a voz do reverendo não muito longe de
onde estava.
— Não adianta continuar escondida porque eu vou matá-
la!
Não se moveu, mas ouvia seus passos trôpegos pelo
telhado que era bastante inclinado e escorregadio.
— Sei que você está aqui em cima e eu só vou descansar
depois de encontrá-la! Faço questão de matá-la
pessoalmente!
Brigitte continuou parada e mais parecia uma pantera se
preparando para atacar o caçador incauto.
De repente, percebeu que Chesterhimes tropeçara e caíra,
mas logo em seguida, escutou sua risada bestial.
— Senhorita Montfort, pode ficar certa de uma coisa, sua
vida de aventuras está chegando ao fim! Eu vou matá-la, mas
se não puder fazer isso e se você me matar, fique certa que
será linchada pelo povo que está esperando a “próxima
humanidade”!
Notou que sua voz estava bem mais perto e se
movimentou com a leveza de uma gazela ágil e silenciosa.
Jason Chesterhimes levou um susto quando a viu à sua
frente com a pistola apontando em sua direção. O susto foi
tão grande que quase escorregou pelo telhado abaixo,
enquanto procurava firmar a arma entre os dedos que
tremiam.
Baby não perdeu aquela oportunidade. Aproximou-se
mais, um pouco e lhe deu um soco. Foi apanhado de surpresa
e soltou a arma que rolou pelas telhas. Ainda não tinha se
refeito do primeiro golpe quando recebeu um pontapé no
ventre e logo em seguida, outro no estômago.
Chesterhimes ia gritar, mas sentiu o canto da pistola
encostado em sua têmpora.
— Se o povo que está na rua perceber o que está
acontecendo aqui em cima, estoura seus miolos!
Ele sorriu satisfeito, porém o sorriso da senhorita
Montfort o fez estremecer.
— Desista porque eu não vou matá-lo, reverendo — falou
por entredentes.
O sangue ferveu nas veias do negro. Resolveu atacar a
atrevida, mas recebeu uma coronhada no ombro ferido que o
fez gemer e foi naquele momento que ouviram os primeiros
ruídos dos motores dos helicópteros.
Era um verdadeiro esquadrão, suas luzes ainda brilhavam
ao longe, mas já começavam a se aproximar com rapidez.
Baby teve a impressão que aqueles focos luminosos
esquadrinhavam todo Harlem.
O reverendo se sentiu atemorizado quando escutou uma
voz grave e profunda dirigindo-se à multidão e procurando
explicar que somente um homem demente teria planejado a
exterminação de uma raça inteira, a fim de uma nova
humanidade ser iniciada.
— Gente, não acreditem em ideias vãs! Ninguém tem
autoridade para promover uma nova vida, uma nova
humanidade e muito menos pode afirmar que uma raça
inteira desaparecerá em questão de horas, anos ou séculos!
Essas promessas se assemelham às daquele homem que
prometia que se alguém cortasse três dedos de sua mão
direita estaria dando chance para os outros dois ganharem
mais força, uma força demolidora! Não creio que os
moradores do Harlem fossem acreditar nesta promessa,
como também não acredito que estejam realmente confiando
em Jason Chesterhimes que se propõe a matar milhares de
vida, inclusive de criancinhas inocentes!
Enquanto a voz falava, focos de luz vasculhavam todo o
bairro do Harlem e de repente, um deles clareou o telhado da
Riverton Church, focalizando um negro ajoelhado aos pés de
uma mulher que mais parecia uma antiga esfinge grega de
mármore. Porém essa esfinge fazia acenos, tentando chamar
a atenção dos pilotos que dirigiam os helicópteros. Estes
eram vários e o ruído que faziam eram ensurdecedor.
Chesterhimes reuniu o resto de força que ainda tinha e se
lançou contra Brigitte, Desejava que ambos rolassem pelas
telhas e fossem cair no meio da multidão. Certamente
morreriam na queda e ele passaria a ser o novo herói de uma
raça, o mártir que dera a vida para que uma nova
humanidade pudesse surgir em um futuro próximo. Um
negro que preferia morrer a se entregar aos prazeres da
carne, pois a mulher que estava morta a seu lado, até a roupa
havia tirado para atraí-lo mais facilmente...
Porém, os planos da senhorita Montfort eram outros.
Esquivou-se do golpe e lhe deu um murro no nariz. O negro
desequilibrou-se e já principiava a rolar pelas telhas quando
ela o segurou pelo colarinho.
Um dos aparelhos aproximou-se o máximo que podia e
ela reconheceu Alan Pitzer em uma das janelas.
Acenou para ele e gritou:
— Tio Charlie, você tem uma suéter comprida para eu
vestir? Não posso sair daqui como Eva andava no Paraíso!
Horas mais tarde a situação do Harlem já estava quase
normalizada, embora houvesse muitos corpos espalhados
pelas ruas: suicidas que ansiavam a “próxima humanidade”.
Os Simons que tomavam parte naquela operação sentiam-
se satisfeitos por saberem que Baby já estava fora de perigo e
que naquele momento estava voando ao lado de seu amigo
Alan Pitzer, o agente veterano que organizara a ação que
tivera sucesso total.
Um pouco mais tarde, receberam uma mensagem pelo
rádio comunicando que o helicóptero que transportava o gás
mortal já fora localizado e forçado a pousar. O piloto
identificado como Ernest Coventry, realmente era
funcionário de um dos laboratórios secretos dos Estados
Unidos e não reagira à voz de prisão. Quando interrogado
por autoridades do alto escalão da polícia, apenas declarou
que colaborara no plano da “próxima humanidade” porque
também era negro e estava cansado de ser discriminado
aonde chegava.
Quando souberam que Coventry fora detido, Baby sorriu
aliviada e perguntou a Pitzer:
— Tio Charlie para onde vamos agora?
— Para onde nossa garota quiser!
— Peça para Simon seguir mar adentro!
Ninguém mais falou no helicóptero e o piloto sorriu
satisfeito por ter oportunidade de receber uma ordem de
Baby, a chefe e colega adorada por todos.
Depois ela olhou para o reverendo negro e disse:
— Além de ser responsável pelas mortes de Wo Peng e
Fedor Ilyef, também tentou matar-me...
— Eu tinha medo que a senhorita Montfort tornasse
público alguma confidência que Wo Peng lhe tivesse feito!
— Entre nós nunca houve confidências e eu também não
lhe guardo rancor, reverendo. Até mesmo sua “paixão
ardente” já está perdoada. Porém não posso esquecer-me das
pessoas que serão enterradas nos próximos dias por terem
confiado em seu plano. Lamento, mas não posso permitir
que continue vivo. Vou matá-lo e enterrarei seu corpo bem
longe, no mar aberto, para não se transformar no mais novo
mártir deste final de milênio.
— Lutei por algo muito aproveitável para os negros —
respondeu com entusiasmo. — Por acaso vai negar que as
almas dos negros ficariam muito melhor em corpos brancos?
— Reverendo, cada alma está no corpo certo e cada
homem tem a morte que merece.
— Você! Só você impediu o aparecimento da nova
humanidade! Não sei por que não colaborou comigo?
— Sua ideia foi a coisa mais maluca que já vi, embora
concorde em um ponto: Algo precisa ser feito para a
humanidade tornar-se mais humanizada do que a atual, mas
eu nada posso fazer nesse sentido e nem vou permitir que o
senhor ou quem quer que seja, tente experiências infundadas
e erradas que só poderão gerar mais violência, revolta e ódio.
Lamento, mas seu fim chegou.
Plof.
Apertou o gatilho da pistolinha encastoada de
madrepérola e o negro dobrou o corpo para frente até sua
cabeça ensanguentada ficar encostada nos joelhos.
— É, tio Charlie, cada um tem a morte que merece e eu
só posso sentir-me grata por você ter chegado a tempo de
salvar-me das mãos desse maluco.

ESTE É O FINAL
Peggy entrou na sala de estar do apartamento de Brigitte
e Pitzer foi o primeiro a tirar um copo de champanha da
bandeja.
— Puxa vida, pensei que nunca mais fôssemos nos reunir
nesta saleta aconchegante para bebermos de novo.
— Você não nos faria falta alguma, orangotango velho —
disse Frankie.
— Por favor, parem de brigar. Acho que já é hora de
procurarem ou pelo menos se esforçarem para serem amigos
— interveio Brigitte, tentando apaziguar a discussão que
parecia toldar o horizonte. — Adoro vocês dois, mas se tio
Charlie não tivesse atendido meu SOS com urgência,
desconfio que ambos estariam bebendo champanha sozinhos.
Durante minha vida de espionagem já enfrentei muitos casos
difíceis e me defrontei com loucos arrematados, mas por
mais que pense, não encontro em meu fichário mental
alguém tão perigoso como foi Jason Chesterhimes. Um
negro muito agradável, simpático e atraente que pregava um
projeto inconcebível. Qual é o homem que pode determinar o
destino de alguém?
— Eu posso — disse Frankie, rapidamente.
— Quem é você para fazer tal afirmação? — rebateu
Charles Alan Pitzer.
— Agora, por exemplo, vou demonstrar todo meu poder.
Brigitte, despeça-se desse velho cansativo e de Peggy,
porque nós dois iremos passar alguns dias na “Vila
Tartaruga”.
— Não posso fazer isso, Frankie. Nada comuniquei ao
“Morning News”. Miky Grogan colaborou na conservação
de minha vida, não se esqueça que ele me emprestou o carro
quando o corpo do negro do elevador devia desaparecer e
agora, deve estar esperando um “furo” de reportagem.
— Coitado do Frankie, possui uma deusa que tem vários
deuses à sua volta! — lamentou-se, tomando todo o
champanha que estava no copo de uma só vez.
— Não reclame tanto, Frankie. Você já esqueceu que
estive fazendo algumas compras na “Rachel’s”? Só para
aguçar sua curiosidade, querido... Comprei um biquíni
alucinante que só vou estrear quando estiver gozando do
meu paraíso terrestre.
Pitzer levantou-se e falou:
— Amigos, tchau! Pressinto que os mal-entendidos estão
sendo suavizados e eu já me sinto sobrando neste recinto.
— Tchau, tio Charlie — disse Brigitte, abraçando-o e o
beijando com carinho. — Amanhã, vou lhe fazer uma
visitinha, tá?
Peggy abriu a porta para o velho espião sair e o
acompanhou ao vestíbulo.
Os dois amigos de alma ficaram sozinhos e Frankie
comentou:
— Minha querida, já estou cansado de ficar batendo na
mesma chapa, mas nós dois começamos a envelhecer e é
tempo de pensarmos em nossa felicidade.
— Frankie, por favor, você é um homem inteligente e
deve saber que depois do Número Um, é da CIA que eu mais
gosto.

Você também pode gostar