Você está na página 1de 93

© 1989 – Antônio Vera Ramirez

“Liberdad, divino tesoro”


Tradução de Adriana Avelar
Ilustração de Benicio
® 550715
Em um plano filosófico, poderíamos dizer que a
juventude e liberdade têm características semelhantes, pelo
menos no que proporciona prazer à vida. O ruim da
juventude é que mais cedo ou mais tarde, termina e dá lugar
à maturidade, velhice e morte. Liberdade, por outro lado, se
você conseguir, é para sempre, seja jovem ou velho, você
pode aproveitar...
E é aí que, como sempre, a maldade humana intervém,
propondo falsamente a liberdade. Isto é o que oferece o
Novo Libertador das Américas sob o lema “LIBERDADE
DIVINO TESOURO”. Claro, eu não tenho nada contra a
liberdade, muito ao contrário, sou a favor dela em todos os
sentidos, você já sabe. Então, estou muito zangada com o
Novo Libertador, não apenas por suas mentiras e
criminalidade, mas por ousar fazer paródia com versos de
um dos poetas que mais admiro, o inimitável Rubén Darío.
Vamos lembrar:
Juventude, tesouro divino,
Você não vai voltar!
Quando eu quero chorar, eu não choro...
e às vezes eu choro sem querer ...

Beijos, de sua,
Baby.
CAPÍTULO UM
Ela era uma loira simplesmente escultural. E gostava de
tomar sol.
Aparecera por volta das onze horas da manhã na praia
privada do Beach Beach Hotel, em Miami Beach: envolta em
um roupão de banho tonalidade azulada delicada; um azul
diferente dos olhos, cujo tom era muito mais intenso, da cor
do céu... Sim, eles eram olhos celestiais.
E resistente ao sol, porque em momento algum a loira
recorrera a óculos de óculos escuros ou qualquer coisa assim.
Possivelmente alguém chegou a pensar que era uma sereia
encantada que possuía algumas horas ou alguns dias para se
misturar com os seres humanos, com a aparência de tal, e
estar ciente das coisas que os humanos fizeram e disseram...
Embora não. Claro que não. De forma alguma seria
justificável que uma sereia deixar o belo mundo marinho
para perambular por terra firme e total, para descobrir o que
os humanos fazem e o que dizem, que, aliás, não é nada que
mereça ser escrito em letras douradas, por exemplo. Se
acaso, o que os humanos fazem e dizem deve ser escrito com
letras de sangue, porque vamos, o que veio a inventar o
animal humano é explodir em lágrimas, e até se eliminar
desse mundo podre que...
Mas não. Nenhum pensamento negativo. De modo que a
loira ainda estava tomando sol, pensando ou tentando pensar
em coisas agradáveis.
Por exemplo: um jardim silencioso. Por exemplo, um ato
de generosidade, esse alguém deve permanecer na Terra. Por
exemplo, ao fazer amor. Por exemplo, ajudando quem
precisa. Por exemplo...
— Miss Connors?
A loira abriu os olhos, ficou momentaneamente cega pelo
sol e imediatamente protegeu os olhos, colocando uma mão
sobre eles. Uma mão especial: bela, fina, aristocrática,
lindamente laqueada em rosa pálido e que parecia inútil, à
primeira vista, mas o oposto a um segundo olhar, a menos
que o observador fosse um cretino; foi uma mão linda e, ao
mesmo tempo, uma ferramenta sólida de alta utilidade,
características, por sinal, que não abundam. Geralmente,
quem tem mãos bonitas não costuma usá-las muito em coisas
úteis.
— Señor Carrizo? — perguntou a loira, por sua vez.
O homem sorriu. A loira sorriu. A loira era bonita, e
ofereceu o esplendor de seu corpo quase nu, já que, para
desfrutar melhor do sol, removera a parte superior do
biquíni, oferecendo toda a magnificência de um par de seios
túrgido, encantador, bronzeado, cheio de vida. Porque há
seios de mulheres que não são cheios de vida, mas apenas de
carne, que é muito diferente. Pelo menos, foi o que o señor
Leopoldo Carrizo pensou, que ele não conseguia se livrar de
sua fascinação contemplando a bela e loira señorita Connors.
— Sim, eu sou Carrizo — ele disse, — e eu trago de volta
memórias de Capri.
Miss Connors deu uma risada deliciosa, sentou-se na
extensão e apontou para outra à sua esquerda. O olhar de
Carrizo ainda estava preso na contemplação dos seios agora
vibrantes e saltitantes da señorita Connors, que rira
novamente.
— Por favor, sente-se — ela disse. Estava esperando por
ele, naturalmente. — Gracias, muy amable.
Carrizo sentou-se. Carrizo não era bonito nem loiro nem
dono de um porte atlético. E ele nem era jovem, pois já havia
completado cinquenta anos. Não era uma múmia, é claro,
mas não era mais jovem. Coisas da vida: quem vai vivendo
há de se fazer velho. O señor Carrizo, por seu lado, era
moreno, ainda mais do que a señorita Connors, pois sua pele
era escura e natural, enquanto a da señorita Connors (que,
aliás, era um nome tão falso quanto a cor de seus cabelos)
era natural, sendo branco com tons de alabastro, mas por
força de sol era um encanto da vida, de modo bronzeada, tão
suave, tão sedosa... O señor Carrizo, que media apenas um
metro e setenta, não parecia, certamente, o par mais
adequado para a loira señorita Connors, cuja altura não era
inferior a um metro e setenta e cinco. E com esse corpo...! O
señor Carrizo teria feito bem em não aparecer em um traje
de banho na praia, mas, é claro, se houvesse aparecido
completamente vestido teria chamado mais atenção do que
oferecer a imagem de seu pequeno corpo franzino e um
pouco flácida.
— Então você está vindo de Capri — disse señorita
Connors.
— Não, não. Eu venho de outro lugar, mas trago
lembranças de Capri... Você já entendeu.
— Sim, entendo1. E como está meu querido Natan?
Quero dizer, de aspecto. Eu não o vejo há muito tempo e,
embora sua voz soe igual a sempre ao telefone, ele pode ter
envelhecido ou descuidado de sua forma física.
— Não, não, nada disso — disse Carrizo energicamente.
— Nataniel é feito um tigre.
— Um tigre — a loira concordou. — Sim, isso o descreve
bem. Embora eu diria melhor um puma ou um jaguar. Sim,
um jaguar. Você gostaria de tomar uma bebida, señor
Carrizo?

1
Conforme aventura “Leilão em Capri”. Publicada nessa coleção na edição
número 35 — Episodio em Capri.
— Acho que sim, está quente.
— Sim É que estamos praticamente no verão, e para estas
datas em Miami é geralmente um pouco quente. É por isso
que tantas pessoas vêm..., deixando de lado muitas outras
excelências de Miami. Você gosta de Miami?
— Não — rechassou Carizo. — há muito vício e muitas
lutas sociais, racistas e de contrabando.
— Caramba! — quedou-se, por um instante, a perplexa
señorita Connors. — A isso eu chamo descrever uma cidade
com três palavras, señor Carrizo.
— Você pode me chamar de Leo. É como me chama
Natan, e isso me faz sentir apreciado e útil.
— E é um nome muito zodiacal — disse a loira. De
acordo, Leo, vou convidar você para um refresco, e enquanto
nós bebemos e todos pensam que você é um sujeito
formidável por ter conquistado uma loira sensual, nós
dizemos um ao outro nossas coisas. Te parece bem?
— Naturalmente.
Connors sinalizou para um dos garçons que, à sombra do
bar da praia, observava exatamente esse tipo de sinal. Ele
quase correu para a señorita Connors, mais do que feliz por
poder olhá-la atentamente, o que ele fez com satisfação total
enquanto ela fazia o pedido refrescante: duas taças de
champanhe com um pouco de suco natural de abacaxi.
— Mas isso não é propriamente um refresco — disse
Carrizo, enquanto o garçom se afastava.
— Não, mas também não somos propriamente amantes,
mas dois espiões em ação, por isso merecemos coisas
exóticas e caprichosas. Não está de acordo?
— Sim — sorriu Carrizo. — Natan me avisou que eu
passaria alguns momentos encantadores com você. Ele
também me avisou para não ser enganado por isso, já que
você é uma mulher muito perigosa.
— A verdade é sim — concordou ela, com uma
expressão gentil, quase afetuosa, — mas não com os amigos
dos meus amigos. Vamos ver, Leo, o que está acontecendo, o
que é tão importante que levou Natan a me citar aqui e
enviar-lhe em seu nome?
— Desde logo, são coisas que não devem ser ditas por
telefone.
— Muito bem. Eu já entendi isso. Que ocorre?
— Uma frase que é um slogan: Liberdade, Tesouro
Divino, está começando a circular por toda a América
Latina.
A señorita Connors olhou para o homenzinho que, por
sua vez, a contemplava sempre fascinado.
— Que tipo de slogan? — murmurou.
— Natan acredita que a coisa pode acabar muito mal.
Para ele, é um slogan de guerra.
— Nesse caso, parece-me que Rubén Darío não gostaria
que imitassem seus versos.
— Você conhece a poesia de Rubén Darío?
— O suficiente para saber que esta “Liberdade, Tesouro
Divino”, é uma imitação de sua obra “Canção de Outono na
Primavera”:
Juventud, divino tesoro,
¡ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar no lloro...
y a veces lloro sin querer...2

2
Juventude, tesouro divino. Você não vai voltar! Quando eu quero chorar, eu
não choro... e às vezes eu choro sem querer...
Ficou em silêncio. Leopoldo Carrizo estava ficando cada
vez mais fascinado. O garçom chegou com as bebidas, e
señorita Connors provou o conteúdo do copo, aprovou com
um gesto e sorriu para o garçom, que retornou ao seu posto
de observação sentindo-se feliz.
— Talvez alguém procure algum tipo de liberdade por
meio das armas? — perguntou Lili Connors de repente.
— Como você sabe? — exclamou Carrizo.
— Não sei; mas se você fala comigo sobre um slogan que
menciona a liberdade, e ao mesmo tempo me diz que Natan
pensa que é um slogan militar, a coisa não pode ser mais
clara: as palavras armas e liberdade, usadas juntas, só eles
significam revolta, rebelião; Em suma, uma classe como
qualquer outra de guerra.
— Pode ser uma guerra terrível — murmurou Carrizo.
— Ou seja, você concorda com Natan.
— Desde já. Olha, isso de libertar novamente a América
tem que ser algo ... muito complicado.
— Libertar novamente a América? Libertá-la de quê?
— Isso terá de perguntar ao Novo Libertador, ainda que
na realidade ele já deixou bem claro que se trata não apenas
de libertar, mas de limpar. Realmente uma limpeza não iria
mal.
— A limpeza sempre vai bem. E nas pessoas é altamente
higiênico. Mas antes de continuar com a limpeza, me diga: o
que isso significa sobre o Novo Libertador?
— Bem, é isso: um Novo Libertador das Américas.
Digamos ... outro Simón Bolívar?
— Mais ou menos. O fato verdadeiro é que existe alguém
chamado Novo Libertador, que propôs libertar e limpar a
América Latina de todos os seus vícios, misérias e
humilhações.
— Oh vamos...! — protestou Lili. — O que você está
falando? Esse tipo de coisa não acontece mais, Leo. Para tal
coisa, seria necessário ter tanto poder que é simplesmente
inimaginável. Não importa o quão poderoso, um homem não
pode...
— Um homem sozinho? Se você se referir ao Novo
Libertador, ele não estaria sozinho: Nataniel acredita que
praticamente toda a América Latina estaria... ou já está com
ele.
— Você se refere aos governos de toda a América
Latina?
— Governos, não: as pessoas. Precisamente, trata-se de
aniquilar todos aqueles governos corruptos e o serviço do
Mestre do Norte.
— Sim E o Mestre do Norte, é claro, são os Estados
Unidos.
— Sim. O Novo Libertador tem a ideia fixa e imóvel de
que todos os governos da América Latina estão ocupados por
fantoches do imperialismo ianque, isto é, que quem comanda
em toda a América é, portanto, os Estados Unidos, mas
criando tanta corrupção e miséria no povo americano, não o
povo norte americano, que simplesmente recorreu à
liberdade, por mais que seja.
— Leo: se os Estados Unidos governassem na toda
América, não haveria miséria. Os Estados Unidos, isto é, o
governo da Casa Branca, é... ambiciosos e cruel, para dizer o
mínimo, mas se tivesse realmente controlado toda a
América, o padrão de vida de todos os americanos seria
muito melhor.
— Sim? Por quê?
― Entre outras coisas, porque a América iria explorar a
grande riqueza americana, os padrões de vida, assim, a saúde
e a cultura do todo povo americano seria muito superior do
que agora.
— Sempre e quando os Estados Unidos não lhes
interessam para manter a América Latina destituídos de
propósito e com absoluta deliberação.
— Com que objeto? — Lili ergueu as sobrancelhas.
— Vamos apenas dizer que a América Latina é... a
grande reserva de necessidades futuras do colosso do Norte.
Há tanta riqueza na América Latina que, se alguém fosse
capaz de imagina-la, morreria de impressão. E por que não
colocar em marcha as riquezas? Bem, simplesmente porque
o Mestre da Norte não se interessa por isso. Ele prefere que a
riqueza seja mantida em reserva. Se isso requer manter
carentes quinhentas milhões de pessoas à espera que a
exploração desses recursos seja necessário para os Estados
Unidos, uma vez que permanece na miséria os quinhentos
milhões de seres humanos. Ou um ou dois bilhões, se
necessário. Enquanto isso, nos postos de comando de todos
os países latino-americanos há apenas alguns bonecos sem
escrúpulos e traidores de seu povo em troca de amedrontá-
los pessoalmente, sujeita o seu povo ao sacrifício concebido
e imposto pelos Estados Unidos. O que importa para esses
governantes corruptos, traidores vendidos e o que acontece
em seu país se eles estão vivendo como reis sob poder norte
americano?
— E o Novo Libertador quer... eliminar os governantes
corruptos, mesmo pela força das armas.
— Há alguns líderes que não são vendidos ao sinistro
desígnios do Mestre do Norte. A esses governantes que se
dirige o Novo Libertador pedindo apoio direto e formal para
ajudá-lo a obter a verdadeira liberdade de suporte América
Latina.
— E entre esses governantes está Natan, claro.
— Exatamente. Nataniel nunca se deixou ser pressionado,
muito menos liderado pelos Estados Unidos. Há dois outros
com o mesmo caráter forte e honesto... Bem, os três
governantes não sujeitos à corrupção criada pelo Mestre do
Norte foram convidados pelo Novo Libertador para apoiá-lo
com seus exércitos e todos os seus recursos quando chegar o
grande momento.
— E em que consiste o grande momento?
— Depor todos os governantes corruptos, para remover
das casas presidenciais os fantoches do Mestre do Norte e
colocar patriotas honestos e corajosos que estão dispostos a
dar suas vidas por seu país e seu povo.
— Isso soa muito bonito — murmurou Lili, — mas
envolve enorme derramamento de sangue. E também
significa enfrentar todos os países latino-americanos uns
com os outros. Tomemos por exemplo o país de vocês e de
Natan, San Nataniel. Se as forças armadas de San Nataniel
invadissem um país vizinho supostamente submetido ao
Mestre do Norte, é concebível que o país vizinho não
aceitasse tal invasão como tal, mas enfrentaria com armas.
— A coisa não seria tão cruel quanto parece. O Novo
Libertador conta com a ajuda interna de cada país, isto é,
com os patriotas que seguiriam suas instruções de acordo
com um plano geral. Por exemplo, se San Nataniel enviou
suas forças armadas para invadir o país vizinho, este já seria
praticamente dominado por patriotas que teriam pegado em
armas contra o governo. Então, as forças armadas de San
Nataniel chegaram, apoiaram os patriotas e a revolta foi
definitivamente consolidada.
— Mas para organizar uma revolta você deve ter armas e
pessoal militar ou paramilitar bem treinado para liderá-la.
O Novo Libertador está disposto a fornecer armas e
pessoal a todos os patriotas dispostos a se rebelar contra os
governos governados por fantoches a serviço do Mestre do
Norte. O Novo Libertador está oferecendo uma América
Latina única e autenticamente irmanada, onde todos os
americanos podem realmente viver como filhos de Deus e
não como cães subjugados, enganados, escarnecidos. O
Novo Libertador está oferecendo o maior tesouro ao qual o
ser humano pode aspirar.
— A Liberdade — sussurrou Lili Connors.
— A liberdade total e absoluta. A liberdade de um
continente inteiro. Do México para baixo, uma única nação
irmã e liberdade e prosperidade para todos.
— Sim O México não entraria no jogo?
— As negociações secretas estão ocorrendo. Claro. E o
Brasil?
— Brasil é latim, certo? Nada tem que ver que eles falem
uma língua diferente da nossa, da mesma forma que nada
importa que nos Andes eles falem línguas ou dialetos
indígenas diferentes. Não se trata de falar o mesmo, mas de
pensar o mesmo, de pensar no bem-estar de todos os latino-
americanos.
— Sonha bonito. Eu gosto. Mas, Leo, essa ideia é... Eu
nem vou dizer maluca ou irrealizável, mas vou dizer que é...
fantástica demais. E naturalmente, não acredito na
sinceridade desse Novo Libertador.
— É o que Nataniel disse o que você diria. Ele também
desconfia dos verdadeiros planos ou propósitos do Novo
Libertador. Por isso te chamou por telefone para fazer você
me encontrar comigo onde você quisesse, para que eu te
explicasse tudo, começando com o pedido de que o Novo
Libertador fez a Nataniel. Ele foi descobrir através de seus
agentes especiais
— Ou seja, ele ainda está praticando espionagem — disse
Lili.
— Nataniel protege seu país por todos os meios. E a
espionagem é uma delas.
— Sim, é verdade — suspirou a loira — ... Caramba,
terminamos esse delicioso refresco. Foi bom né?
— Muito bom — sorriu Leo.
— Bem, vamos pedir outro — Lili fez novo sinal para o
garçom, que compreendeu e se dispôs a servir diretamente
como antes —... Como esse personagem, o Novo
Libertador... Quem é ele e onde ele está?
— Não sabemos quem ele é ou onde ele está.
— Mas, claro, se Nataniel aceitasse sua proposta, ele teria
que se dar a conhecer, você não concordaria? Apenas
Nataniel está evitando comprometer, mesmo que apenas em
palavras.
— Ele sempre foi muito cauteloso. Então, para nos fazer
dançar... um fabuloso Novo Libertador que ninguém sabe
quem ele é ou onde está, e que está oferecendo ao povo
latino-americano, nada menos do que um continente inteiro,
o maravilhoso tesouro da liberdade, a saúde, prosperidade e
dignidade humana.
— Sim. Não é lindo?
— Muito lindo — Lili olhou maliciosamente para
Carrizo. — Lindo demais, meu amigo Leo, não é isso que os
desconfiados pensam?
— Sim
— Aqui vem o garçom com nossos novos refrescos —
sorriu a loira Lili. — Estamos nos divertindo, certo?
— Admiravelmente — Carrizo sorriu. — Seria ótimo
poder ficar aqui para sempre, absorvendo o sol e os refrescos
com champanhe gelado. Pena que isso não é possível.
— Sempre me perguntei por que isso não deveria ser
possível — Lili Connors franziu o cenho. — Vamos ver, se
uma pessoa faz seu dia de trabalho, porque então ele não
deveria ser capaz de relaxar com alguns óculos e se
bronzear, ou fazer amor, ou pintar, ou dançar, ou, em suma,
livremente e calmamente fazendo o que ele gosta...? Por que
sempre tem que interferir na vida de outras pessoas que
querem usá-lo, manipulá-lo, sacrificá-lo...? O que determina
que o ser humano se dedique a incomodar uns aos outros, em
vez de viver em paz e com alegria?
— A maldade?
— Estupidez, querido Leo, estupidez — suspirou Lili,
sorrindo para o garçom —... Obrigado. E não fique tanto
tempo no sol. Seus cachos podem aquecer.
O homem riu e foi embora. Lili Connors bebeu outro gole
de coquetel, que estava realmente delicioso. Então, ela olhou
placidamente para Leo, que também bebeu, sem perdê-la de
vista. Era uma alegria olhar para a señorita Connors. Tudo
uma alegria.
— Eu entendo perfeitamente, Leo, que você é algo
como... um espião eficaz que trabalha diretamente sob as
ordens de Natan, digamos que sempre atendendo a serviços...
especiais.
— Assim é.
— Que significa que você goza de toda a confiança de
Natan.
— Claro.
— Quantos guarda-costas acompanham você em suas
viagens?
— Nenhum. Eu sempre viajo sozinho.
— Verdade? Então você e eu somos muito parecidos.
— Se você diz...! — riu Carrizo.
— Como chegou a Miami? Por avião?
— Sim, claro... Por que você pergunta?
— Porque me ocorreu que mesmo se você estivesse
tratando apenas desse assunto, você poderia ter chegado em
Miami com um parceiro, em uma lancha, ou em um iate...
— Não Eu viajo sozinho, trabalho sozinho e venho de
avião.
— Entendido. Você me perdoará alguns minutos, por
favor?
— Eu não sentiria mais falta...
Leo levantou-se ao mesmo tempo em que a senhorita
Connors, que sorriu e se afastou para a entrada do hotel,
vestindo o roupão de banho, o que causou mais desencanto...
CAPÍTULO DOIS
Por outro lado, as pessoas que passeavam pela Ocean
Drive se divertiram e se deleitaram quando viram, aparecer
na porta da frente do Ocean Beach Hotel, uma linda loira
vestida com um roupão azul e usando sapatos de praia azuis.
Na verdade, apenas uma pessoa não notou que a señorita
Connors havia saído do hotel: o homem que ela estava
seguindo, um homem vestido com um terno elegante de cor
creme e camisa esportiva de gola aberta e colocada sobre o a
jaqueta. Esse sujeito, que segurava um livro na mão
esquerda, chegou em questão de segundos ao lado de um
Ford estacionado perto do hotel, sentou-se ao volante e
colocou o livro no assento ao lado, sorrindo secamente.
Mas seu sorriso se transformou em um gesto de estupor
quando a porta direita se abriu, e a loira também entrou no
carro, sentada ao seu lado e em cima do livro. O sujeito
piscou, abriu a boca para dizer alguma coisa... e o punho
esquerdo da señorita Connors, com um movimento
alucinatório para a frente e para trás, acertou-o na têmpora,
com a parte externa das juntas dos dedos indicador e médio.
O sujeito emitiu uma espécie de ronco, revirou os olhos e
relaxou, perdendo a consciência instantaneamente.
Com vigor que surpreenderia a qualquer um que visse, a
señorita Connors conseguiu mover rapidamente o homem do
assento do motorista para o que ela ocupava, puxando-o
enquanto saía do carro. Deixando o infeliz desacordado no
assento, a señorita Connors deu a volta no carro e sentou-se
ao volante. As chaves não estavam no slot de ignição, mas
ele as encontrou logo no bolso do sujeito.
Ela ligou o motor, arrancou e dirigiu o carro para o
estacionamento do hotel, descendo para o segundo piso. Ela
parou o carro no canto mais isolado e solitário, saiu e abriu o
porta-malas, onde encontrou, entre outras coisas, um rolo de
corda de plástico, o que pareceu lhe agradar bastante.
Deixando de lado o rolo de corda para abrir a porta do
carro, puxou o sujeito, e arrastou-o sem dificuldade à parte
traseira do carro. Sempre exibindo uma força muscular em
tudo excepcional, a señorita Connors conseguiu colocar o
sujeito no porta-malas, movendo-o como se fosse um
simples boneco. Ele tirou a carteira, a arma que carregava na
axila esquerda e tudo o que encontrou nos bolsos. Enquanto
isso, o homem começou a mostrar sinais de recuperação,
mas a questão foi rapidamente resolvida por Lili Connors
aplicando-lhe outro golpe, agora em um lado do pescoço, o
que novamente mergulhou o desconhecido na inconsciência.
Cinco minutos depois, deixando o homem amarrado e
amordaçado no porta-malas do Ford, a señorita Connors saiu
do estacionamento, levando o livro e os outros pertences que
havia tirado do sujeito.
Outros dois minutos depois, a loira deslumbrante entrou
em sua suíte.
A primeira coisa que ela fez foi abrir o livro, que resultou
ser uma espécie de caixa oculta que continha uma câmera
fotográfica que poderia ser ativada apenas pressionando uma
parte da lombada do livro. Simples, mas engenhoso e
prático. Então a señorita Connors examinou os pertences do
sujeito que dormia no carro, entre as quais poderia destacar a
documentação que o identificava: o nome do homem era
Tadeo Ruiz, de trinta e dois anos, e era natural de Medellín,
na Colômbia.
— Que chocante — Lili disse em voz alta. — Eu nunca
conheci alguém que fosse de Medellín.
Sorrindo de sua própria piada, entrou no quarto, abriu o
armário e tirou a maletinha vermelha com flores azuis
estampadas, de onde tirou o pequeno rádio de bolso. Abriu,
moveu as pequenas placas com a delicada função de ajustar a
sintonia do rádio, e imediatamente seguiu a ligação: se
houvesse ajustado bem as placas, ou seja, se tivesse
sintonizado bem a onda de Miami, deveria receber uma
resposta. A resposta não tardou muito. Foi imediata.
— Sim? — perguntou a voz de um homem.
— Bom dia, Simon.
O momento de silêncio foi muito breve, substituído
imediatamente por uma exclamação de alegria.
— Baby?! Não me diga que você está aqui, em Miami,
que eu vou ser um com olhos de sorte!
— Estou aqui, e você vai ser um daqueles sortudos — riu
Lili. — Podemos contar com outro parceiro?
— Naturalmente... Naturalmente! Mas eu te aviso uma
coisa: quando eu disser que você ligou, que está aqui e que
precisa de nós, ele não vai querer acreditar.
— Porque não?
— Porque esse sempre foi o nosso sonho.
— Bem, acorde, porque eu realmente preciso de vocês.
Nada complicado, mas têm que me prestar um pequeno
serviço. Quanto tempo para chegarem ao Ocean Beach
Hotel?
— Nem vinte minutos.
— Perfeito Eu vou dizer o que você tem que fazer...
Em alguns minutos, as instruções foram mais do que
claras, e a señorita Connors cortou a comunicação. Vestiu-se
na rua, colocou em sua maleta as coisas do homem chamado
Tadeo Ruiz, e depois de olhar seu relógio de pulso, acendeu
um cigarro e foi olhar o mar pela janela.
Quatro minutos depois, ela esmagou o cigarro no
cinzeiro, pegou o telefone e pediu uma ligação para o bar da
praia.
***
Leopoldo Carrizo viu o garçom se aproximar carregando
um telefone, que apoiou sobre a mesa.
— A senhora liga para o senhor — disse o garçom.
Não um pouco surpreso, Carrizo respondeu a chamada...
a poucos metros de distância, sentado em uma das mesas
colocadas sob a lista de toldo do bar, um homem de estatura
média, moreno e vestido com um terno claro e camisa
esportiva, cujo colarinho estava posicionado sobre o paletó,
o observava entre intrigado e inquieto. Ele não se sentia
confortável em ficar sozinho, mas havia entendido a atitude
do parceiro de querer salvaguardar as fotografias tiradas e,
ao mesmo tempo, pedir ajuda. Porque, evidentemente, se
Carrizo tivera contato com uma garota, isso significava que,
na verdade, ela havia viajado para Miami em busca de
alguma coisa, e isso poderia dar origem a muitas atividades
por parte de Carrizo; talvez tantas atividades que apenas dois
homens não pudessem controlá-los...
Carrizo desligou o fone naquele momento, depois se
levantou e se dirigiu para a entrada do hotel, do lado da
praia.
Ele passou a menos de três metros do sujeito semelhante
ao de Medellín, entrando no hotel. O parceiro de Medellín
levantou-se e caminhou atrás de Carrizo. Atravessou o
saguão do hotel e saiu para a avenida, aproximando-se da
beira da calçada, onde parou.
Sua atitude era a de estar esperando por um táxi, e o
parceiro de Medellín começou a amaldiçoar Tadeo por sair
com o Ford que haviam alugado no Aeroporto Internacional
de Miami. Mas, para sua surpresa e alegria, o Ford apareceu
de repente, vindo do estacionamento do hotel.
A surpresa persistiu, mas a alegria desapareceu logo
depois de descobrir que o motorista do Ford não era seu
parceiro Tadeo, mas a bela loira com quem Carrizo havia
feito contato apenas uma hora antes. A surpresa trouxe como
continuação um espanto considerável por parte do sujeito,
que permaneceu como se estivesse pregado ao chão
enquanto Carrizo subia no carro que a loira estava dirigindo.
O carro se afastou, avenida acima.
Muito bem. Ainda que fosse usando um táxi, ele iria
seguir a loira. Ele não tinha ideia do que poderia ter
acontecido ou de onde seu companheiro poderia estar, mas
certamente não queria perder de vista a loira e Carrizo...
— Você gostaria que eu colocasse uma bala nos seus
ovos? —ouviu ao seu lado.
O companheiro de Medellín virou a cabeça, e viu ao lado
dele o rapaz alto, atlético, loiro, de olhos claros e grandes,
com uma expressão que não prenunciava nada de bom. Por
um momento, pensou em recorrer a sua própria pistola para
resolver a situação, mas tinha um palpite de que se eu fizesse
o menor gesto nessa direção era um homem morto, tão
simplesmente olhou com expressão alucinada o belo e
atlético loiro com expressão de poucos amigos.
— Você é um cara inteligente — disse o loiro. — Entre
na parte de trás do carro.
Ele apontou com um simples aceno de cabeça. O parceiro
de Medellín olhou em sua direção e viu, espiando pela
janela, o rosto de outro rapaz com uma expressão ainda mais
perversa que o primeiro.
A revelação foi súbita na mente do sujeito: ali tinha os
malditos agentes da CIA.
Ele recebeu um leve empurrão e percebeu que, no
momento, o menor dos males era obedecer ao loiro. Então
ele foi até o carro, entrou na parte de trás... e então ele viu a
arma com o silenciador com o qual o motorista estava
apontando. O loiro entrou, sentando ao lado dele, e revistou-
o rapidamente, primeiro removendo a arma. O agente
sentado ao volante do carro meteu sua pistola no coldre
subaxilar e fez o carro partir.
O loiro estava examinando a carteira do parceiro de
Medellín, que se verificou chamar-se Fidel Lozano, e não era
de Medellín, na Colômbia, mas de Estelí, Nicarágua. Pois
muito bem. O loiro olhou para Fidel Lozano e sorriu
sarcasticamente.
— Se você se comportar bem, talvez envelheça — ele
disse, — mas se ele for um tolo, mesmo que seja só um
pouquinho, ele está morto. Você me entendeu?
Lozano assentiu e engoliu em seco. O loiro sorriu e
beliscou-o na bochecha de forma ofensiva, dizendo:
— Bom menino, bom menino. Bem, amigo — disse ele,
olhando para o motorista, — acho que você pode seguir
adiante, agora.
— Eu estou indo para lá — assentiu o motorista.
***
— Eu juraria que um carro nos acompanha desde que
saímos do hotel — disse Leopoldo Carrizo, olhando para o
retrovisor externo à direita.
— Está seguro? — exclamou Lili.
— Eu diria que sim.
— Céus! Estamos perdidos... O que se faz em uma
situação semelhante?
— Bem, depende de... Droga! Você está zombando de
mim?
— Um pouco — disse a loira. — Mas fique calmo: nesse
carro estão alguns amigos meus, e agora eles passarão por
nós e nos levarão a um lugar calmo onde poderemos
conversar com alguns colegas.
— Que colegas?
— Aqueles que te seguiram até Miami.
Carrizo ficou espantado por um momento. Então ele
exclamou:
— Ninguém me seguiu!
— Olhe, meu amigo Leo, até os mais espertos são
controlados por inimigos de vez em quando. São coisas que
passam.
— Mas... o que está acontecendo?
— Você percebeu que um cara vestido na rua passou não
muito longe de nós, enquanto nós estávamos bebendo o
refresco e nos fotografou?
— Não... eu não percebi — disse Carrizo. — Tem
certeza?
Lili parou o carro em um semáforo.
O carro que a ruiva estava dirigindo foi colocado ao lado
do Ford. Pela janela da direita, o homem loiro apareceu,
olhando extasiado para Lili, que perguntou; sorrindo:
— Algum problema, Simon?
— Não. Agora vamos para o norte, para um...
— Não me diga. Basta ir em frente, como nós
concordamos. Como se comporta o nosso convidado?
— Bem. Seu nome é Fidel Lozano.
— E é de Medellín, na Colômbia?
— De...? Não. É de Esteli, na Nicarágua.
— Caramba! — impressionou-se a señorita Connors: —
Tampouco havia conhecido alguém que fosse de Esteli, na
Nicarágua! Mas bem, a oportunidade não é para ser
desperdiçada, certo? No mundo existem muitos lugares,
além de Nova York.
O agente da CIA riu. Obviamente, eles não deram maior
importância aos súditos de Medellín e Esteli. Atrás dos dois
carros tocou a buzina de outro. O semáforo mudara para
verde. Os dois carros partiram, tomando imediatamente a um
dos dois Simons a direção da marcha.
Apenas trinta minutos depois, os dois carros pararam em
frente a uma pequena casa charmosa perto da praia, ao norte
de Miami. O mar mostrava um tom brilhante entre verde e
cinza. O dia estava esplêndido. Lili e Carrizo saíram do Ford
e ela abriu o porta-malas... Dentro, contorcido e
congestionado, o sujeito de Medellín olhou para ela com
olhos saltitantes. Lili removeu a mordaça improvisada com
seu próprio lenço e cordão e sorriu para ele gentilmente.
— Eu convido você para uma cerveja, Sr. Ruiz — disse
ela.
Os dois Simons chegaram, com Fidel Lozano, no outro
carro. O loiro empurrou Lozano e disse:
— Vamos, carregue seu amigo e leve-o para casa.
— Não precisa — disse Lili. — Desatem-no e ele vai
sozinho. Ambos vão se comportar de maneira sensata,
espero. Venha, Leo. Bem, acho que não conhece nenhum
desses dois personagens.
— Não — rosnou Carrizo. — E eles vão me explicar
como, de onde e por que eles me seguiram!
— Eles vão explicar isso para nós e muitas outras coisas
— disse a señorita Connors, suavemente. — Porque, se não
o fizerem, parece-me que terão um tempo muito ruim pela
frente.
Cinco minutos mais tarde, a situação era a seguinte: Lili
Connors e Carrizo estavam sentados no sofá da sala de estar
da casa de praia, olhando para Ruiz e Lozano, que, sentados
em poltronas à frente deles, bebiam de bom grado cerveja
fresca. De pé, de frente para os dois latinos, estavam Simon I
e Simon II, calmos, mas sem o menor descuido, embora a
situação deixasse claro quem a estava dominando.
— Tudo vai bem? — perguntou amavelmente a señorita
Connors.
Lozano e Ruiz a olharam. Eles não eram muito espertos,
mas tampouco eram tolos, então entenderam perfeitamente a
situação: se eles colaborassem, seriam tratados com
bondade; mas se eles se negassem a colaborar, aquela loira
com o sorriso de um anjo seria capaz de cortar seus pescoços
ela mesma. A coisa era muito simples.
— E quem é você? — perguntou Lozano.
— A agente Baby, da CIA — disse surpresa Lili. — Não
lhes ocorreu?
Os dois homens estavam agora lívidos. Simão I e Simão
II olhavam para eles com espanto. Eles eram tão estúpidos
que não pensaram que nos Estados Unidos e enfrentando
uma mulher, esta só poderia ser a agente Baby?
— Nós... estávamos apenas vigiando Carrizo —
desengasgou, por fim, Ruiz.
— Todos nós entendemos isso — disse Baby. — De onde
e como o seguiram para Miami?
— Nós não o seguimos: esperamos por isso. Estávamos
em Havana quando nos disseram que deveríamos viajar para
o Aeroporto Internacional de Miami e aguardar a chegada de
Leopoldo Carrizo de San Nataniel.
— Vocês já conheciam Carrizo?
— Não, mas o descreveram para nós. É fácil de
identificar.
— Quem lhes contou sobre a viagem de Carrizo?
— Nosso chefe.
— E quem é seu chefe?
— Seu nome é Onésimo Varela.
— Ele é o Novo Libertador?
— O que? — Lozano e Ruiz ficaram aturdidos.
A loira estreitou as pálpebras. Por alguns segundos ela
esteve contemplando os dois desafortunados aventureiros da
quinta categoria. Então, perguntou:
— E como seu chefe sabia que Carrizo estava viajando?
— Bem, Onésimo conhece alguns dos chefes mais
importantes dos serviços secretos sul-americanos e
ultimamente sabemos que ele está... observando-os de uma
maneira especial. Ele deve ter sabido que Carrizo estava
viajando para Miami, e nos avisou. Ele nos disse que
deveríamos observá-lo bem de perto e tomar nota de todas as
pessoas com quem ele interagia.
― Por quê? Para que?
— Isso não sabemos. Nós obedecemos Onésimo, isso é
tudo.
— Mas vocês não sabem de que se trata o assunto?
— Não
— E não ouviram falar do Novo Libertador?
— Não.
— Vamos lá, não diga coisas estúpidas — enfadou-se a
loira.
— Eu juro que não sabemos nada sobre isso — Ruiz
quase gemeu.
— Ou eles fingem zombar de nós — disse Simon II, —
ou são ainda mais tolos do que pensávamos.
— Nem uma coisa ou outra — Baby murmurou. — Eles
são apenas peões. Parece-me que eles não serão muito úteis
para nós. Para acessar mais informações, teríamos que...
entrevistar Onésimo Varela. Onde está ele? Em havana?
— Não, não — disse Lozano. — Ele nos ligou de
Maracaibo, é claro.
— Por que claro?
— Bem, ele... ele mora em Maracaibo.
— Ela mora em Maracaibo — a senhorita Connors agora
parecia simplesmente fascinada. — Eu tenho a sensação de
que estou entrando em um jogo absurdo com retardados
mentais. Vamos ver: Onésimo Varela é seu chefe, claro,
mas... quem mais é o chefe, ou melhor, o que é o chefe?
— Não sabemos. Ele nos contratou há muito tempo, em
Veracruz, onde passávamos uma temporada. Ele nos disse
que nos pagaria um bom salário todo mês e que, em troca
disso, tínhamos que estar sempre dispostos a ir aonde ele
indicasse e fazer o que ele pedisse. E desde então estamos
fazendo isso.
— Está bem. Vamos supor que tenham ido adiante com
este trabalho, que revelaram as fotos, que sabiam quem eu
era e o que Leopoldo Carrizo e eu estávamos fazendo
juntos... O que teriam feito? Teriam informado Varela,
teriam matado Carrizo sozinho, ou ambos, ou...?
— Nós não tínhamos ordem para matar ninguém. Apenas
para informar sobre o que Carrizo estava fazendo.
— Quem e como teriam informado?
— A Onésimo, claro.
— Claro. Como teriam feito isso?
— No telefone, claro.
— Claro — Baby estava atordoada. — Claro.
— Deixe-os por nossa conta — grunhiu Simon. — E
você verá como eles mudam a história em breve. Nós vamos
ensiná-los a provocar suas mães!
— Não, não, não - Baby balançou a cabeça. — Tenho
certeza que eles estão nos dizendo a verdade. Tão certo
quanto eles vão nos dizer qual é o número de telefone de
Varela em Maracaibo, onde ele mora, o que ele está fazendo,
digamos... oficialmente, e algumas outras coisas. Você não
vai nos dizer tudo isso, colegas?
Lozano e Ruiz passaram alguns segundos olhando os
olhos da loira fixos neles. Eles passaram a língua pelos
lábios, engoliram quase em seco, aparentemente com alguma
dificuldade e, finalmente, ambos ao mesmo tempo,
assentiram.
— Veja isso? — sorriu a señorita Connors. — Com
bondade, você pode obter quase tudo na vida. Caramba,
Maracaibo... Acreditariam em mim se eu lhe dissesse que só
uma vez eu fui a Maracaibo, e foi só de passagem, e...? Mas
não vamos relembrar acontecimentos. Diga-me: como é
Onésimo Varela?
CAPÍTULO TRÊS

Onésimo Varela era gordo.


Rotundamente gordo.
Indiscutivelmente gordo.
Quanto ao resto, ele não parecia um homem especial.
Pelo contrário, ao menos contemplado de longe com
binóculos, ele tinha certo ar de boa índole que inspirava
simpatia. E estava suando muito. Não só porque era gordo,
mas porque, certamente, fazia um calor intenso e úmido em
Maracaibo. Um calor que Onésimo Varela não parecia capaz
de livrar-se de forma alguma. Mesmo mergulhando
caprichosamente na piscina, que ficava ao lado da casa, em
cujas águas azuis nadavam três belas garotas nuas, duas
delas morenas e uma loira como o próprio sol...
O helicóptero voou a uma velocidade reduzida sobre esta
paisagem e espetáculo, indo para o norte, longe do lago. O
homem que o pilotou perguntou:
— Você quer que nós dêmos outra passada?
— Nada disso — a loira señorita Connors se acomodou
melhor no assento, desistindo de olhar com binóculos em
direção à propriedade de Onésimo Varela, nos arredores de
Maracaibo. — Embora eu saiba que um helicóptero aqui não
é nada especial, prefiro não correr riscos. E aquelas meninas
que estavam na piscina?
— Meninas... Ah, sim. Nada interessante. Como sabemos
nestas quarenta horas de investigação apressada, Varela é
tremendo mulherengo: mulher que se vê, mulher que se leva
para a cama.
— Quer dizer para a piscina — rio Lili Connors.
— É onde começa. Ele as convida primeiro a tomar um
drinque, depois dar um mergulho em sua piscina e,
finalmente, leva-as para a cama.
— Ele é um homem que goza de apetite sexual invejável.
— Invejável?
— Bem, fazer amor com a frequência que o caracteriza
não parece ser precisamente uma desgraça da vida. Além
disso, eu não sei como diabos ele consegue, mas tenho
certeza de que suas garotas são sempre de primeira
qualidade. Nada de velhos petardos: meninas sempre jovens,
bonitas e alegres.
— Vamos lá, que há de errado nessa vida.
— Quisera eu. Claro que custa seu dinheiro, mas... quem
não tem que pagar de uma forma ou de outra, mesmo que
apenas por viver? Ele, além de viver, gosta de viver.
— E, além disso, você não conhece nenhuma atividade...
digamos especial. Ele é um rico comerciante de café suspeito
de estar ligado ao tráfico colombiano de cocaína, e isso é
tudo.
— Isso é tudo que pudemos investigar em quarenta horas.
Note que antes disso, a CIA, nem sequer havia reparado em
Onésimo Varela de uma maneira particular. Não é um
personagem que parece nos interessar... No entanto, se você
quiser, continuaremos a investigá-lo. Talvez seja mais
inteligente do que parece e tem muitas coisas para se
esconder... quero dizer, coisas que poderiam ser mais
interessante do que apenas o comércio de coca, se é que
realmente está metido nisso. Você quer que continuemos
com ele?
— Sim, por favor, Simon.
— Estamos encantados em servi-la — sorriu o agente da
CIA, mas de repente ele estava sério, franzindo a testa. —
Você conhece Maracaibo bem?
— Não.
— Tenha cuidado. Eu sei que estou falando com a agente
Baby, mas insisto: tenha cuidado. Maracaibo é um poço de
surpresas... e um ninho de víboras. Quero dizer, um ninho de
víboras de baixa qualidade. Não o tipo de inimigos de alto
nível dignos de você. Por menos do que nada, qualquer um
pode encontrar uma fera que joga um petardo dentro do carro
ou corta o pescoço de alguém, sem importar-se se está em
público ou não.
— Você não está exagerando?
O agente do CIA olhou para Lili Connors e insistiu: —
Tenha cuidado.
— De acordo. Bem, nestas quarenta horas em que estive
aqui, e enquanto vocês estavam investigando Onésimo
Varela, eu me situei, de modo que chegou a hora de agir
diretamente. É estranho que você não tenha ouvido nada
sobre o Novo Libertador, nem sobre aquela bela frase que
diz “Liberdade, Tesouro Divino”.
— Temos contato com colegas de outros lugares. Se
desejar, podemos contatá-los para ver o que eles sabem sobre
esse assunto.
— Não... Por enquanto vamos deixar assim. Sigam com
Varela, mas muito discretamente. E não me ligue: vou ligar
para você quando precisar de mais informações. Agora, por
favor, me deixe onde estacionamos o carro.
Pouco depois, o helicóptero aterrissou em uma estrada
remota e a loira señorita Connors saiu.
O helicóptero subiu novamente, desaparecendo para o
oeste. A señorita Connors foi até onde deixara, sob algumas
árvores, o carro que alugara logo depois de chegar a
Maracaibo. Ela chegara com sua verdadeira identidade, isto
é, como a jornalista nova-iorquina Brigitte Montfort, mas
depois de se comunicar com seus Simons de Maracaibo e
instruí-los sobre a investigação a ser realizada, se instalou
em uma pequena casa no bairro chamado Bellavista e alugou
um carro, ambos usando a documentação e caracterização de
Lili Connors.
Mas logo a personalidade de Lili Connors foi descartada
do repertório de disfarces da agente Baby, a qual, uma vez
dentro do carro, começou a injetar uma dose de Blackcolor,
o soro inventado por seu velho amigo McGee, que dava a
sua epiderme de uma cor de ébano encantadora.

— Mas... ela não disse quem a mandou? — Onésimo


Varela perguntou ao jovem; um jovem mulato magro que
não conseguia tirar os olhos das três beldades nuas que
estavam tomando sol à beira da piscina. Ela vem aqui, de
bom grado, para me ver e nem quis dar seu nome?
— Não senhor. Ela é muito teimosa, senhor. E muito
linda.
— Sim? — Varela sorriu. — O quanto é bonita?
O negro moveu a cabeça para as três garotas que estavam
tomando banho de sol, duas morenas e uma loira.
— Eu diria que, mais que as três juntas, señor.
— Mais que as três juntas? Você está tentando tirar sarro
de mim, seu filho da puta?
— Não, señor — sorriu o negro. — Não estou tirando
sarro do señor, e eu não sou filho da puta. A negra que
espera é melhor que aquelas três juntas; estou lhe dizendo,
señor.
— Está bem... Traga ela aqui. Espere... Ela está
carregando algo suspeito?
— Apenas uma pequena maleta de viagem.
— Bem, dê uma olhada no conteúdo da pasta antes de vir
com ela aqui. Eu não quero sobressaltos.
O criado assentiu e se afastou, caminhando pelo gramado
que rodeava a piscina. A hora do meio-dia se aproximava e
Onésimo Varela não sabia mais o que fazer para se aliviar do
calor. Parecia que ia chover logo, mas isso não era o pior, a
umidade que persistia, dava a impressão de estar dentro de
uma panela de água fervente, fumegando.
Varela olhou para as últimas três odaliscas. Naquela
manhã, claro, antes de começar a sentir-se prostrado pelo
calor, fizera amor com os três, um após a outra. Os quatro
estiveram na cama enorme que fora construída
expressamente para fins amorosos. Por que trapacear? Sexo
não serve apenas para a reprodução de espécies, mas para se
divertir, e Onésimo Varela não repugnava esse prazer.
Qualquer garota bonita que se colocasse em linha de tiro,
acabava em sua cama e ele a possuía até se cansar. Depois a
despedia com uns quantos dólares entre os seios... e partia
em busca de novas carnes... novos sexos...
Quando ele viu aparecer a negra que lhe havia anunciado,
pouco antes, o seu criado de confiança, Onésimo Varela
simplesmente entrou ereção, apesar do maldito calor, de sua
pele estar molhada, pegajosa e quente, e suas intensas
atividades sexuais naquela manhã, h três há pouco mais de
três horas. Foi todo um espetáculo de ereção. Varela, gordo,
usando apenas um short de banho, colado ao quadril largo,
úmido, trazia a ereção tão obvia que ele não teve escolha a
não ser sentar-se em uma posição estratégica para escondê-
la.
Ele não se moveu quando a mulher negra parou diante
dele, a alguns metros de distância, e o encarou ironicamente.
O criado tinha razão, porque a desconhecida negra não
era apenas muito bonita, mas tinha classe, tinha estilo. Alta,
esguia, com seios rotundos, cintura afunilada, pernas longas
e perfeitas; seu rosto, com linhas nítidas e harmoniosas,
mostrava o encanto de uma covinha vertical em seu queixo e
a grandeza de seus brilhantes olhos negros. Era um
monumento envolto em céu azul sedalina.
— Qualquer dia — disse a visitante calmamente, — você
terá um infarto, señor Varela. Deveria mudar a dieta.
Tudo ficou em silêncio. As duas morenas e a loira, que se
sentaram em suas espreguiçadeiras, olharam para ela com
certa hostilidade. Varela parecia hipnotizado, como seu
criado. Finalmente, o gordo murmurou:
— E quem é você?
— Meu nome é Celeste Martínez e sou amiga de Tadeo
Ruiz. Eu trago uma mensagem dele.
— Ah! E qual é a mensagem?
Celeste Martinez franziu a testa, olhou para as três
beldades, o criado, de volta a Varela, e finalmente disse:
— Tadeo me disse claramente que era importante e que
eu deveria ser discreto. Eu não darei minha vida por Tadeo,
mas ele se comportou bem comigo, e não me custa nada
agradá-lo em uma coisa tão fácil. Mas se você quiser, eu lhe
darei a mensagem agora.
Onésimo Varela ainda aguardou alguns segundos, talvez
esperando que sua ereção diminuísse. De repente, ele pegou
o roupão de banho e começou a usá-lo em pé. Celeste
Martinez riu, baixinho, e isso foi tudo. Varela apontou para a
casa e seus pés enormes começaram a bater no gramado.
Celeste andou ao lado dele, olhando-o de entreolho.
Tampouco não havia de se enganar com Onésimo Varela: ele
era gordo, sim, mas também muito forte; com a força de um
touro que pode se desenvolver em um homem de quarenta
anos e cento e cinquenta quilos de peso distribuídos em um
metro e oitenta de estatura.
— Você quer uma bebida? — ofereceu Varela, assim que
ambos estavam na sala sombreada e silenciosa.
— Não, obrigado. Eu só quero dar-lhe a mensagem e sair.
— Sair... de onde?
— Por aí! — sorriu Celeste.
— Você não é venezuelana.
— Não
— Nem colombiana.
— Não.
— Cubana?
— Poderia ser — Celeste Martinez sorriu.
Varela acendeu um charuto e encarou com crescente
interesse a linda mulher negra.
— Qual é a mensagem do Tadeo Ruiz? — indagou.
— Leopoldo Carrizo morreu e eles deixaram Miami na
direção de Maracaibo, mas eles tardarão a chegar. Leopoldo
Carrizo falou sobre o Novo Libertador.
Celeste não disse mais nada. Depois de esperar alguns
segundos, Varela sussurrou: — Isso é tudo?
— Sim Eu o repeti textualmente. Posso sair?
— O que é isso do Novo Libertador?
— É a mim que pergunta? — Celeste ficou espantada. —
Você é quem deveria saber!
— Quem são eles? Quero dizer, aqueles que deixaram
Miami.
— Não tenho nem ideia. Ouça, acabei de lhe dizer que
repeti a mensagem que Tadeo me deu ao telefone e é tudo o
que sei. Ele me ligou, me disse para vir te ver e passar essa
mensagem. Sou grata a Tadeo por um determinado assunto
há alguns anos e gostei de retribuir o favor. Eu sou uma
pessoa grata, então eu nem me importei em ficar sem
dinheiro nessa viagem de avião... mas nada para complicar
minha vida. De acordo?
— Por que você acha que podemos complicar sua vida?
— Eu sei muito bem que Tadeo não é dedicado
precisamente a recitar o rosário. Mas vai lá... cada um faz o
que pode nesta vida imunda.
— Porque acha que a vida é imunda? — Varela sorriu. —
Para mim ela me parece estupenda.
— Sim, eu entendo. Parece-me também, em seu lugar. Eu
tenho olhos no meu rosto, sabe? Você tem dinheiro, compra
meninas bonitas, passa-as pela mosca e... viva a vida! Bastou
dar uma olhada naquelas três lá fora para entender as coisas.
Mas eu não tenho dinheiro para comprar uma casa como
esta, instalar uma piscina e comprar meia dúzia de lindos
negros para me fazer feliz o dia todo.
— Não me diga que você está sentindo falta de homens.
— Não, eu não tenho falta de homens... dependendo do
que você chama de homens. Se se refere aos mortos de fome
que só pensam em me penetrar, desses tenho quantos eu
quiser. E pessoas como você que têm dinheiro e que, por
alguns dólares, acham que podem me foder até se fartar.
Desses eu também tenho os que eu quero. Mas um homem,
na expressão exata da palavra homem, bem não, não señor,
eu não tenho nem conheço nenhum.
— Bem — Varela sorriu, — Esse homem pode aparecer
em sua vida a qualquer momento.
Celeste levantou as sobrancelhas com simpatia, olhou
para cima e para baixo o personagem gordo, pareceu refletir
em algo muito sério, acabou sorrindo e disse:
— Sim, pode ser. Tampouco posso negar que a vida às
vezes nos dá belos prêmios. Posso sair?
Onésimo Varela não só falava sobre ninharias e devorava
Celeste com os olhos, mas também pensava. Se ele tivesse
entendido o que Tadeo Ruiz dissera a Celeste, o que
aconteceu em Miami foi o seguinte: eles fizeram contato
com Leopoldo Carrizo, e se viram forçados a matá-lo, e
agora saíram de Miami rumo a Maracaibo, mas eles
precisavam fazê-lo de maneira indireta, e por isso levariam
mais tempo que o normal...
A situação sugeriu muitas perguntas. Por exemplo, por
que eles fizeram contato com Carrizo, se ele ordenara que
apenas o vigiassem? O que aconteceu para Carrizo falar
sobre o Novo Libertador... e o que ele disse sobre isso?
Teriam sido obrigados a matar Carrizo para se defenderem,
ou teriam sido agredidos quando viram Carrizo fazendo algo
perturbador...?
E ainda outra pergunta: a linda e estranha negra estava
dizendo a verdade?
— Talvez — disse Varela finalmente, — seria melhor
que esperasse aqui a chegada de Tadeo. Considere-se uma
convidada de privilégio.
— Não, obrigado. Eu já sei do que são esses convites e
não estou interessada.
— Está errada. Nada que você pense vai acontecer. Eu só
queria que você estivesse aqui quando Tadeo chegar.
— E isso por quê?
— Eu acho que dois bons amigos deveriam ficar felizes
de se verem, certo?
— Parece-me — Celeste sorriu de repente, — que você
não confia em mim, simplesmente.
— Bem — sorriu Onésimo, — entenda: eu não a
conheço, e a única prova que tenho de que disse a verdade é
o que disse você.
— Sim, sim, eu entendo. Claro, você deve andar em uma
daquelas bagunças que Tadeo se mete. Bem, eu posso ficar
alguns dias, mas, você sabe, tudo isso já me causou muitos
prejuízos econômicos, e quanto mais tempo eu estou longe
de casa, mais dinheiro vou perder.
— Sim Vamos fazer um acordo: você fica até Tadeo
chegar, bem entendido que com todas as despesas pagas, e,
além disso, para cada dia que você ficar aqui eu vou te pagar
cem dólares...
— Duzentos — Celeste disse alegremente.
— Duzentos — concordou Onésimo. — Você quer uma
bebida agora?
— Ouça, não me incomode — Celeste sussurrou. —
Mesmo sendo você muito gordo, é forte e bonito, e talvez em
algum momento vai gostar de mim, mas não me assedie,
você entende?
Onésimo ergueu as mãos, num gesto de paz, e depois
indicou com elas o seu entorno.
— Considere-se em sua casa. O que você precisar,
pergunte a Thomas ou a mim mesmo. Ou qualquer um dos
criados. Avisarei para que lhe preparem um quarto.
— Obrigado
— Vamos almoçar às doze e meia. Você gostaria de se
juntar a nós ou prefere que levem um pouco de comida para
o seu quarto?
— A verdade é que, o que eu realmente quero, é tomar
banho e dormir por três ou quatro horas. Depois disso vou
me sentir como nova. Inclusive — sorriu — é possível que
eu me comporte com um pouco mais de simpatia. Olha,
señor Varela, na verdade, eu já te disse: o que me importuna
é que os homens, assim que me olham, já querem me foder.
Droga, eu gostaria que eles me deixassem em paz, afinal sou
muito mais que um pedaço de carne para consumo.
— Acalme-se — ele sussurrou. — Até logo.
Ele a deixou sozinha na penumbra da sala. Celeste
Martinez ficou quase um minuto imóvel, ouvindo tudo o que
acontecia ao seu redor. Ela tinha um ouvido finíssimo, ao
ponto de poder ouvir o rumor das águas da piscina sendo
removidas pelas três lindas jovens; até ouviu algumas
palavras soltas...
E isso foi tudo. Ela sabia que tinha entrado na boca do
lobo, mas, afinal, era isso que ela queria fazer. Embora ela
não tivesse certeza se estava na boca do lobo, pois se algo
ela era capaz de intuir, de cheirar, era o perigoso. E lá, não
havia perigo algum de se cheirar. Quem sabe, em vez de
entrar na boca do lobo, entrou na boca de um cachorro
doméstico manso.
Porque a verdade era que, algo que não parecia Onésimo
Varela, era um perigoso diretor de espionagem.
Nem mesmo se fossem pequenos, como Tadeo Ruiz e
Fidel Lozano.
CAPÍTULO QUATRO
Às quatro da tarde, depois de dormir pouco mais de três
horas, Celeste Martinez saiu de casa vestindo apenas duas
peças de roupa: o sutiã e a calcinha. Não havia ninguém na
piscina e o sol brilhava vagamente. O céu ameaçava chuva,
mas no momento castigava com aquele calor úmido e
pegajoso.
Celeste tirou o sutiã e mergulhou na piscina, onde ela
esteve nadando languidamente por alguns minutos. Logo
saiu, deitou-se em uma das espreguiçadeiras, e,
simplesmente, pareceu adormecer ao sol... embora já
soubesse que de uma das janelas da casa alguém estava
olhando para ela com binóculos.
Supostamente, devia ser Varela quem a estava
espionando, sem dúvida, apreciando a visão de seus seios
esplêndidos. Mas às vezes as suposições enganam. Como ela
já havia estudado a distribuição da casa, Celeste não
demorou a localizar de onde a observavam com binóculos:
era um dos quartos acima, o segundo da esquerda. Aquele
era o quarto do Onésimo Varela?
Ninguém saiu da casa. Mas cerca de quinze para as cinco,
um carro silencioso apareceu ao longo do curto caminho,
parou na sombra de alguns arbustos e o motorista buzinou.
Ninguém desceu do veículo.
Deitada de bruços sobre a cadeira, aparentemente
esquecida de tudo, até a chegada silenciosa daquele carro,
Celeste Martinez conseguiu olhar para lá, mas não conseguiu
ver o motorista, devido ao reflexo da luz solar no para-brisa;
e também à distância, não menos de sessenta metros...
Depois de um tempo, Varela saiu de casa, aparentemente
vestido às pressas, enquanto colocava a camisa nas calças e
usava chinelos. Ele quase correu em direção ao carro, em
cujo banco da frente ao lado do motorista ele se meteu. O
silêncio persistiu.
Celeste Martínez fez sua comédia; sentou-se na cadeira,
olhou para o céu como se estivesse zangada com isso ou com
o sol por não brilhar como ela queria, e finalmente se
levantou, colocou o sutiã e voltou para casa, sem olhar uma
única vez para o carro. Ela entrou na casa e subiu ao
primeiro andar. Calculou a sala da qual eles estavam olhando
com binóculos e colocou o ouvido na porta. Não havia nada
para ser ouvido lá dentro. Em vez disso, de outro quarto veio
o rumor das vozes das duas morenas e da loira.
Celeste Martinez empurrou a porta daquele quarto e
entrou. Não havia ninguém lá. Em uma poltrona perto da
janela, ele viu o binóculo. Ela os pegou, colocou-se ao lado
da janela, calculando que sua posição não seria delatada pelo
brilho das lentes, como aconteceu com a pessoa que usara
anteriormente os binóculos, e os focalizou no carro.
Ainda levou quase vinte segundos para alcançar a forma
de um rosto humano atrás do para-brisa, no banco do
motorista. E mais vinte segundos para chegar a uma
conclusão que não acreditava: o motorista daquele carro, o
homem que chamara Varela de buzinar, era chinês.
Depois de alguns minutos, os olhos de Celeste se
ajustaram ainda mais à situação, eles estavam percebendo
mais coisas; em parte porque as nuvens estavam se fechando
no céu, e o reflexo solar mal tocava o vidro do para-brisa...
Sim, era um chinês. Um chinês com menos de quarenta anos,
com feições bonitas e inteligentes, com um pescoço rijo, um
atleta... Não. Mais como um ginasta, ou... Sim, talvez um
praticante de alguma arte marcial. Ele era um chinês bonito,
forte e elegante, considerando que vestir terno completo e
gravata naquele lugar e clima era mostrar elegância e até
mesmo seriedade. Os olhos do chinês eram grandes, vivos e
pareciam espelhos enquanto ele conversava com Varela.
Celeste olhou para Varela por um momento. Pareceu-lhe que
ele estava inquieto. Mesmo com medo. Os chineses não
pareciam inquietos nem amedrontados. Ele não parecia nada:
estava exibindo sua impassibilidade racial. A conversa
terminou.
Onésimo Varela saiu do carro e este manobrou, seguindo
o caminho na direção oposta, em direção à saída. Celeste
Martinez se apressou em deixar o binóculo onde os
encontrara, saiu apressada daquele quarto e entrou na quarto
destinado a ela, sorrindo mordazmente ao ouvir o riso das
três garotas no quarto de Varela, sem dúvida.
Celeste tomou um banho rápido, secou-se e, quando se
preparou para se vestir, ouviu a batida na porta do quarto.
Ela foi abrir, envolta com a toalha de banho. Onésimo Varela
sorriu gentilmente para ele.
— Que tal? — disse. — Como foi o banho?
— Bem — Celeste sorriu, — mas eu gosto do sol para me
aquecer, mas não pude ficar tanto tempo quanto eu queria.
— Em Cuba, chove menos.
— Certo? E eu não sei — sorriu ela.
Ele também riu e disse:
— Acabei de receber notícias do Tadeo. Ele não pode vir
a esta casa, nem quer me fazer um telefonema. Mas está me
esperando em um lugar... adequado. Pareceu-me que você
gostaria de me acompanhar.
— Para que? — Celeste ficou surpresa.
— Bons amigos gostam de se encontrar, certo?
— Eu não disse que éramos bons amigos, mas eu lhe
devia um favor e isso... Ah, tudo bem, eu vou com você. E
fico feliz que ele já tenha alcançado Maracaibo, pois assim
poderei partir amanhã mesmo. A menos que — olhou com
desconfiança para Varela, — que você tenha algo a se opor.
— Claro que não. Enquanto você se veste eu vou tirar o
carro da garagem... depois de me vestir também, é claro. Até
breve.
Celeste fechou a porta, mas permaneceu ali por não
menos que um minuto, com o ouvido aplicado na madeira,
convencendo-se de que Varela se afastara e que ninguém
estava ocupando seu lugar espiando-a. Da maletinha, ela
puxou o maço de cigarros contendo o rádio e com a onda de
Maracaibo, e fez a chamada para informar aos Simons da
intervenção de um chinês nesse caso, de modo que eles
tinham mais evidência para sua pesquisa exaustiva em torno
de Onésimo Varela...
Os Simons não responderam.
Temendo algum dano no pequeno dispositivo, ou algum
erro de sua parte, Baby examinou o pequeno rádio, incluindo
a colocação das placas pequenas que determinavam a
frequência das ondas. Ela estava convencida de que tudo
estava correto e funcionando adequadamente, e ligou
novamente.
Sem resposta.
Deixou o rádio de lado e vestiu-se para sair. Quando
estava pronta, ligou novamente. O silêncio persistiu.
Simplesmente, era como se o rádio dele estivesse lançando
sinais para o vácuo absoluto. Como se em Maracaibo não
houvesse agentes da CIA atendendo ao serviço. E se
houvesse, já que apenas quarenta e cinco horas antes, quando
chegou ao aeroporto Grano de Oro em Maracaibo chamara,
obtendo resposta imediata, e vários homens se colocaram
incondicionalmente ao seu serviço, como sempre acontecia
em qualquer parte do mundo, à chegada inesperada da agente
Baby. Houvera os Simons que pilotaram o helicóptero, e
agora, de acordo com a mais recente conversa com um deles,
deviam dispor de mais dados sobre Onésimo Varela para
informá-la.
Ela ainda fez outra ligação antes de aceitar que, por tudo
o que ela era e o que quer que fosse, ela havia sido deixada
sozinha em Maracaibo. Lembrou-se das palavras de Simon
no helicóptero: “Maracaibo é um poço de surpresas... e um
ninho de víboras”.
Muito bem.
Ele colocou o rádio na maletinha, no fundo falso e puxou
a pequena pistola de cabo de madrepérola, que foi afixada do
lado interno da coxa esquerda com uma tira de esparadrapo,
como era habitual nela.
Colocou tudo em ordem dentro da maleta, fechou-a e,
segurando a alça com a mão esquerda, deixou o quarto que
Onésimo Varela lhe atribuíra.
Ela estava pronta para enfrentar qualquer víbora que
aparecesse em seu caminho.
Mas nenhuma apareceu. Ninguém apareceu em seu
caminho, nem mesmo um dos servos. Lá embaixo, em frente
à porta da casa, fumando ao lado do carro, Varela esperava
por ela, e a olhou como se estivesse intrigado.
— Algo aconteceu? — ele perguntou.
— Não — respondeu ela, simulando desconcerto. — Por
quê?
— Pareceu-me que demorou muito tempo.
— Isso foi devido à impaciência de me ver novamente —
disse ela.
Varela sorriu e entrou no carro, ao volante, sem dar o
menor sinal de que abriria a outra porta para sua convidada.
Celeste sentou ao lado dele. Varela começou.
— Aonde vamos? — Celeste perguntou.
— Você conhece Maracaibo?
— Agora, acredito que sim — exclamou ela. — Eu sei
que existe uma bela Plaza de Simón Bolívar, na qual há uma
esplêndida catedral; Eu sei que o nome de Maracaibo vem de
um sujeito chamado Mara, um cacique venezuelano do
século XVI. Eu sei que o aeroporto é chamado Grano de
Oro. Sei que há alguns bonitos bairros com os encantadores
nomes de Milagros, Paraíso, Bellavista... E sei que há uma
ponte formidável que atravessa a cidade por sobre o grande
lago, permitindo aos habitantes de Maracaibo uma viagem
mais fácil ao centro do país. Até me lembro do comprimento
dessa formidável ponte: oito mil setecentos e quarenta
metros. Ah, um momento...! É também o canal que a partir
do lago permite chegar ao golfo e, portanto, ao mar aberto...
— E qual é o nome desse canal? — terminou por rir
Varela.
— El Tablazo.
— Exatamente. Eu vejo que sabe bem onde coloca os
pés... em linhas gerais. Mas parece-me que tudo isso não é
suficiente para entender para onde estamos indo, não importa
o quanto eu explique isso. Para simplificar, direi que estamos
indo para o norte, em direção a Paraguaipoa. Isso lhe diz
algo?
— Vamos ver o mar, já que Paraguaipoa está no golfo.
— Sim, é assim. Temos mais de meia hora de viagem
pela frente. Você quer que eu coloque música?
— Não, que horror. O interior de um carro em
movimento não é lugar para ouvir música.
— Porque não? — Onésimo Varela surpreendeu-se.
— Porque a música não é devidamente apreciada, a
viagem não é apreciada, nem se está suficientemente alerta
para possíveis emergências que possam surgir ao longo do
percurso.
— É verdade — teve que admitir Varela; De repente, ele
apontou para a maletinha. — É preciso levar?
— Ocorreu-me que, uma vez que vimos Tadeo, posso ir
diretamente para o aeroporto... Vai chover e em breve.
— Sim — concordou Varela. — Antes de cinco minutos.
Apenas dois minutos depois, começou a chover, com
efeito, primeiro como timidamente, mas muito em breve de
forma torrencial. Durante quinze minutos de viagem a
intensidade da chuva era tal que era até difícil a conversação
dentro do carro, e Varela estava prestes a parar ao lado da
estrada. Mas, sem dúvida, ele tinha muito boas razões para
enfrentar os inconvenientes e até mesmo as dificuldades que
beiravam o perigo que a condução continuada significava. A
chuva então perdeu a violência, mas não a densidade.
Chegou um momento em que quase parecia que era noite.
Era impossível ver além de cem metros, e isso,
confusamente. Mas Celeste notou o momento em que Varela
saiu da estrada principal para outra secundária, que logo se
tornou uma estrada mal pavimentada.
As luzes da casa apareceram de repente, como olhos
amarelos na penumbra úmida da tarde. Talvez uma hora
depois as nuvens se dissipassem e o sol brilhasse novamente,
mas naquele momento parecia que a luz nunca reapareceria.
— Pare por aqui — Varela ouviu a voz seca de Celeste
Martinez.
Surpreso, ele virou a cabeça... e estremeceu quando viu a
boca da pequena arma a menos de um palmo do rosto. O
olhar assustado de Varela foi para os olhos negros da espiã
americana, que fez um gesto tão expressivo com sua arma
que Varela parou de repente.
— Desligue o motor e as luzes — continuou ela, — Aha!
Muito bem. E agora, me diga: quem está naquela casa?
— Eu te disse que Tadeo está esperando por nós...
— Tadeo não pode esperar por nós, porque Tadeo está
nos Estados Unidos. O que acontece é que os chineses que te
visitou desconfiaram de mim e propuseram a jogada: você
tinha de me dizer que Tadeo esperava por nós, para ver como
eu reagiria, para que você soubesse o que fazer. Se eu me
recusasse a acreditar que Tadeo estava aqui, mal. E se
concordasse em vir, deixava de se comprometer com
possíveis problemas em sua casa, porque aqui você pode me
tratar melhor, para dizer a verdade das coisas que você quer
saber. Em qualquer caso, a verdade é que não confia em
mim, você avisou minha presença para os chineses, e eles
foram à sua casa possivelmente para me capturar ou me
matar; mas você disse a eles que tinha três convidadas, que
possivelmente alguém saberia que eu estava lá, que se
ocorria algo que ia te comprometer e que isso poderia ser
pior para todos... De modo que os chineses, que foram por
mim, desistiram e te ordenaram que me trouxesse aqui. De
acordo?
Onésimo Varela passou a língua pelos lábios, sem
responder. Celeste olhou para ele com inexpressividade fria.
Ela nem se incomodou em perguntar se era ele quem a
espionava com o binóculo da janela, mas havia uma pergunta
que ele tinha que fazer:
— O que aconteceu com os agentes da CIA?
O espanto de Varela foi total e Celeste entendeu
imediatamente que ele também era sincero.
— Os agentes da CIA?! — exclamou.
— Você não sabe que está enfrentando a CIA?
— Claro que não! — quase gritou o venezuelano.
— Tranquilize-se. Quem é esse chinês, qual é o nome
dele e qual é o assunto em questão? O verdadeiro assunto,
você entende?
— Eu... não sei qual é o nome dele...
— Sim E você também não ouviu falar do Novo
Libertador, como você simulou quando eu te dei a falsa
mensagem de Tadeo, certo? Onésimo, você é apenas um boi
estúpido que está sendo utilizado. Acredite: os chineses
nunca fizeram ou farão qualquer coisa que possa beneficiar
alguém que não seja a China. Então, o que quer que tenham
contado, mentiram para você. Qual é o nome daquele
chinês?
— Diz que se chama Sing Tai.
— De acordo. Quantos mais chineses estão lá esperando
por nós naquela casa?
— Não sei.
— Mas você me trouxe para uma armadilha, certo?
— Sim... Em nenhum momento ele me disse que íamos
enfrentar a CIA!
— Você pode ter certeza que ele mentiu para você em
muitas coisas. Na verdade, ele está manipulando você de
acordo com a conveniência da China. Ele contou o que ele
disse, ele só trabalha para a China. Você entendeu?
— Maldita seja...
— Coloque o carro de volta aos trilhos e vire-se. É
melhor nos afastarmos daqui, para conversar com calma.
— Você vai me matar?
— Se você não me obrigar, não.
— Mas você vai me entregar para a CIA!
— Tampouco, se você colaborar comigo. Eu não sou uma
agente... comum da CIA, mas alguém especial. Eu posso
ordenar que ninguém te incomode, e a CIA seguiria minhas
instruções.
— Todos da CIA são filhos da puta — respirou Varela.
— Eu sei que eles nunca consentirão que o Novo Libertador
alcançasse o triunfo que trará liberdade autêntica a todos os
latino-americanos!
— Talvez você esteja certo — admitiu Celeste, — mas a
certeza é que, o que quer que a China queira, não será
melhor do que os Estados Unidos querem.
— A China está disposta a nos ajudar!
— Não seja idiota — se irritou Celeste. — Vire-se e saia
daqui agora mesmo. Faça isso, ou eu vou colocar uma bala
no seu cérebro!
Onésimo Varela olhou para Celeste Martínez com uma
expressão exorbitante.
De repente, ele moveu a mão direita em direção à chave
de contato, mas, com uma velocidade que realmente
surpreendeu a bela mulher negra, considerando o volume do
venezuelano, ele empurrou a porta com o ombro esquerdo, e
se jogou para fora do carro, rolando o asfalto para o solo
encharcado da sarjeta.
— Varela! Volte aqui, cretino! — gritou Celeste.
O personagem gordo levantou-se, já completamente
encharcado pela chuva pesada que continuava a cair e
transformou as luzes da casa em algo parecido com um
relâmpago dourado. Celeste se moveu para o banco do
motorista e deu a ignição. O motor rugiu. Onésimo Varela
começou a correr, como um hipopótamo, em direção à casa.
Celeste começou a alcançá-lo com o carro e tentou dominá-
lo.
De repente, Varela parou, como se tivesse acabado de
bater em uma parede.
Por um instante que pareceu uma eternidade, ele ficou de
pé, petrificado. Então ele estremeceu e colocou as mãos no
peito, caindo lentamente de joelhos. Possivelmente, Onésimo
Varela não sabia exatamente o que estava acontecendo com
ele, mas a agente Baby sabia: eles estavam disparando com
rifles silenciosos, para eliminá-lo. Era muito simples: ele se
colocara em evidência, então eles o usaram para trazer a
negra Celeste para a armadilha, e então foi eliminado. Muito
clássico. E agora eles queriam pegá-la para que ela pudesse
dizer quem ela realmente era, o que ela sabia, quem lhe dera
a pista inicial...
Mas enquanto pensava, Baby também agia. Em um
instante, ele chegou com o carro ao lado de Varela, que
continuava de joelhos, atordoado.
Ela deteve o carro e se virou para abrir a porta de trás.
— Varela! — gritou ela. — Suba!
Onésimo virou a cabeça e olhou para ela. O homem
estava simplesmente entorpecido, o lábio inferior estava
pendurado em um gesto infantil de surpresa inaudível, de
descrença. Seus olhos, bem abertos, olharam para Celeste
com a pressão de uma criança injustamente punida...
E assim estava quando recebeu outra bala e novamente
estremeceu, para dar um estranho salto que o colocou de pé.
E então, ele se jogou dentro do carro através do vão da porta
que Celeste havia aberto. O carro oscilou ao receber o
tremendo peso, mas Celeste não seguiu as indecisões ou
considerações. Simplesmente, começou de novo, iniciando o
retorno para iniciar o retorno à estrada.
Atrás dela, ouviu os gemidos e maldições de Varela. E,
de vez em quando ele sabia que iria ouvir os impactos de
balas no carro, com o consequente risco de algumas das
balas, depois de atravessar a lataria ou um vidro a
alcançasse.
No entanto, nada disso aconteceu. Nem uma única bala
atingiu o carro quando estava prestes a chegar à melhor
estrada pavimentada.
Então, o outro carro apareceu, vindo daquela parte
asfaltada. As luzes do recém-aparecido veículo alcançou em
cheio a frente do carro agora dirigido pela agente Baby. Ela
mal conseguia discernir as silhuetas de dois homens com
rifles saltando rapidamente para fora do veículo...
A reação de Celeste Martinez surpreendeu até a ela: girou
o volante à esquerda, e o carro saiu da estrada pavimentada
para a terra encharcada. Deslizou três ou quatro metros,
produzido jatos de lama ao girar as rodas, e então pareceu
saltar, para circular com normalidade aceitável pela lama,
permanecendo na estrada de asfalto.
O olhar de Celeste foi para o espelho retrovisor. Ela viu
as luzes do outro carro como se fossem foguetes
enlouquecidos, porque o veículo dela pulava toda vez que
tropeçava em alguma coisa ou afundava em algum pequeno
buraco. Atrás dela, Varela gemeu mais e mais fracamente.
Por um momento, Celeste se virou para olhá-lo. Ela viu
apenas a mancha pálida em seu rosto e a brancura de suas
córneas, pois seus olhos estavam bem abertos.
Ela olhou novamente no espelho retrovisor e viu as luzes
do carro inimigo atrás dela. Era quase como navegar na
lama. De tempos em tempos, as rodas deslizavam e,
enquanto jogavam lama para trás, o carro não avançava um
milímetro. Atrás, as luzes do outro carro estavam se
aproximando. A chuva se espessou. A claridade do dia, da
tarde, era como um brocado cinza-escarlate. As cores
ofereciam nuances incomuns. O rumor da chuva era
ensurdecedor agora. O chão estava se transformando em um
pântano...
No espelho retrovisor, Celeste viu o carro dos
perseguidores deslizando e derrapando de lado e indo se
estatelar contra uma das poucas árvores. Dois homens
saíram, provavelmente jogando maldições... Os dois que
saíram antes armados com rifles vieram naquele momento ao
lado do carro que colidira contra a árvore. Havia agora
quatro homens, todos armados com rifles, todos olhando
para o carro que Celeste Martinez estava dirigindo.
Não demorou um segundo ou dois para entender a
verdade: se ela continuasse dirigindo o carro naquele
atoleiro, os quatro chineses a alcançariam pelo simples
procedimento de se mover a pé. Isso, para não mencionar
que a qualquer momento seu carro também poderia ser
incorporado em uma das árvores que por enquanto estava
desenhando.
Ela só tinha uma chance: aproveitar a vantagem que tinha
agora, abandonar o carro e correr à frente de seus
perseguidores para tentar enganá-los. E se não tivesse
sucesso, ela os enfrentaria: uma pistola de balas diminutas
contra quatro rifles manuseados sem dúvida por agentes
chineses especializados. A espiã americana pôs o pé no freio,
pegou a maletinha e se virou para o banco de trás. Seu olhar
pareceu colidir com o de Varela, cujo rosto não parecia mais
cinza.
— Seus próprios amigos eliminaram você — disse
Celeste. — Você não pode ser tão burro que não percebeu
isso. Você não quer se vingar deles dizendo-me quem é o
Novo Libertador?
— Carlos... Carlos Maria... Maria... Lugones...
— Onde está? — exclamou Baby.
— Em... La Havan... La... Havana, ou em... em...
A voz de Onésimo Varela cessou repentinamente. Todo
ele mergulhou na mais completa quietude, no mais completo
silêncio. Sua enorme massa humana parecia espalhada no
banco de trás, seu rosto bonito, bem alimentado, estava
imóvel, os olhos esbugalhados de repente parecia vidro. Uma
vida alegre e de escaramuças sexuais abundantes haviam
chegado ao fim.
Mas Celeste Martinez não teve tempo para mais
considerações filosóficas, ou de qualquer outro tipo. Então,
sem hesitar um momento, ela saiu do carro e correu sob a
chuva tropical feroz parecia querer inundar o mundo inteiro.
Não havia vestígios de seus passos na lama quando os
quatro homens chegaram, ofegantes ao redor do carro e
imediatamente se deram conta de que ali não estava a bela
mulher negra, chamada Celeste. O formoso chinês,
possivelmente praticante de artes marciais e cujo nome
(aparentemente) era Sing Tai, chegou rapidamente junto às
portas abertas, e viu Onésimo Varela na parte de trás, em tal
atitude que deixava claro que estava morto.
— Maldita seja! — ofegou em inglês o chinês Sing Tai.
— Ela se foi!
— Era de se esperar — disse outro dos homens, também
em inglês, se aproximando.
A luz lívida da noite chuvosa iluminou seu rosto o
suficiente para não deixar margem a dúvidas sobre sua
identidade: era Simon-Helicóptero. Isto é, o agente da CIA
que, poucas horas antes, havia conduzido a agente Baby de
helicóptero sobre a vila de Onésimo Varela.
— Bem, nós temos que alcançá-la — disse Sing Tai. —
Não podemos deixá-la escapar!
— Esqueça — disse Simon-Helicóptero. — Nestas
condições, é como seguir uma pantera no escuro. Nós nunca
iremos alcançá-la. Ela é Baby, lembra?
— Maldita seja! — estalou Sing Tai. — Porque ela tinha
que meter seu maldito nariz neste assunto!
— Tranquilize-se. Mesmo ela terá que desistir de ir em
frente, pois sua única pista foi cortada — disse Simon-
Helicóptero apontado Varela. — Vou lhe dizer o que ela vai
fazer agora: ele vai recolher suas coisas, normalizar sua
situação em Maracaibo, e simplesmente quando lhe parecer
apropriado, deixará a Venezuela com seu nome real, sem
complicações de qualquer espécie para ela ou para nós. Em
outras palavras: a agente Baby está fora do jogo.
Sing Tai não disse nada. Os outros dois homens presentes
também não disseram nada. Ainda estava chovendo. A noite
chegou. Em algum lugar, a agente Baby correu, correu,
correu, colocando sujeira e lama e chuva no meio. A agente
Baby fugia.
Mas, certamente não estava fora do jogo.
CAPÍTULO CINCO
Marcos Arévalo tinha trinta anos, era alto, magro e
elegante, e suas feições correspondiam a um desses incríveis
e fascinantes heróis de novelas românticas. Tinha um carro
esportivo, um pequeno apartamento em Havana, e também,
digamos, em usufruto, outro confortável apartamento em
Varadero, ao lado do clube mais conhecido chamado El
Kastillito.
Certamente, pedir mais da vida teria sido pecado. Porque
se uma pessoa, além de ter o que Marcos Arévalo tinha,
vivia em Cuba, era morrer por prazer.
E é assim que as coisas são. Para alguns, a vida é uma
pura miséria cujo prolongamento não tem objeto ou graça.
Para outros, a vida é um acontecimento constante e
interminável de eventos felizes, então, é claro, você quer que
ela nunca termine.
No entanto, na vida tudo acaba. Começa e termina. A
sorte de Marcos Arévalo havia começado há muito tempo,
havia começado. Agora, aparentemente, ia acabar.
Pelo menos, era isso que pensava Carlos Arevalo, cujos
olhos românticos e sonhadores, encarou contemplaram, com
lógico sobressalto, a desacompanhada garota loira que
apareceu diante dele apontando para o seu rosto uma pistola.
O susto foi o tremendo.
As coisas aconteceram assim: Marcos Arévalo havia
chegado ao seu apartamento em Varadero, de frente para o
belo mar, e decidira tomar banho. Fim de semana, prazeres à
frente, tempo disponível, delícias secretas... Tudo em ordem,
tudo bem, tudo perfeito. Então, Marcos se despe, fica na
banheira, toma o seu banho, sai da banheira, começa a secar-
se com a toalha de alegre colorido... e, em seguida, como
uma pantera feita de silêncio e sol, aparecera a garota loira
na porta do banheiro, pistola na mão, apontando para o belo
rosto do feliz cubano.
— Deus abençoado — pode finalmente ofegar Arévalo.
— O que... o que você quer, quem é você...?
— Mantenha a calma — disse a pantera em espanhol
perfeito. — Termine de secar-se, não vá pegar um resfriado.
Marcos engoliu em seco e obedeceu a linda estranha. Ela
falava espanhol divinamente, tudo bem, Marcos sabia
apreciar isso. Mas ele também sabia outras coisas, então ele
entendeu que a garota não era cubana, com certeza. Ela era
ianque. Havia muitas garotas assim em Varadero. Também
em Havana, mas mais em Varadero, onde parecia amontoar-
se o turismo peculiar que significava aquelas mulheres
jovens que chegavam a sensual e formosa Cuba, em busca de
experiências para recordar durante sua vida.
Havia garotas como aquela no prédio onde Marcos
Arévalo tinha seu apartamento. Na verdade, havia mais
garotas loiras do que garotas morenas naquele lugar.
Talvez seja por isso que a loira com a arma era tão loira,
tão sofisticada, tão igual a tantas loiras, que ninguém jamais
a notaria de uma maneira especial. Uma loira? Que loira?
— Quem é você? — Marcos insistiu, se recuperando.
— Você pode me chamar de Margarita?
— Mas... quem você está procurando? Tenho certeza que
está equivocada, porque meu nome...
— Señor Arevalo, eu sei muito bem onde estou e com
quem estou. É você quem não sabe quem você está vendo, e
é por isso que vou lhe dar alguns conselhos: comporte-se
bem, responda a todas as minhas perguntas e possivelmente
continue vivendo. Mas se quiser comportar-se mal, se me
deixar com raiva, eu vou cortar o seu pescoço. Eu me
expliquei?
Marcos Arévalo mal conseguia engolir sua saliva
enquanto balançava a cabeça. Então, interpretando a loira,
ele terminou de secar-se e, quando ela saiu da porta do
banheiro, saiu direto para o quarto. Na cama, ele havia
deixado o pijama curto, que vestiu. A loira apontou para uma
cadeira e o belo cubano sentou-se.
Ela sentou de frente a ele e seu olhar viajou lentamente
pelo quarto. De tempos em tempos, em sua testa uma
pequena ruga de perplexidade aparecia, talvez vendo as
pinturas retratando belos efebos, em cenas pastorais,
paisagens bucólicas que dominaram as flores... Havia uma
penteadeira, e sobre ela várias jarras de perfume. No chão
havia dois tapetes delicados que pareciam (e possivelmente
eram) martas. O sol da tarde refletia na grande janela. No
fundo, tudo parecia tingido de azul.
O olhar da loira Margarita voltou aos belos olhos escuros
de Marcos Arévalo, cujas pupilas estavam dilatadas.
— Na verdade — sussurrou Margarita, — não é você
quem me interessa, é seu chefe. Cheguei a Havana há dois
dias e estava discretamente interessada nele. Descobri muitas
coisas, mas logo entendi que só conheço o que pode ser
conhecido, digamos... normalmente. Isto é, nada que valha a
pena para um investigador. Em circunstâncias normais, eu
disporia de muita ajuda na realização deste trabalho de
pesquisa, mas compreendi que as circunstâncias não são
normais. Eu entendi imediatamente, assim que cheguei em
Cuba, quando eu fiz uma ligação e ninguém me respondeu.
Algo incomum está realmente acontecendo, e eu quero
saber... Você está me entendendo, Señor Arevalo?
— Bem... eu não sei... acho que sim.
— Sim — ela se permitiu um sorriso. — Você é um
jovem muito inteligente. Eu acho que é por isso que Carlos
María Lugones o escolheu como seu secretário pessoal. E é
por isso que eu escolhi você para obter mais e, digamos,
mais... informações completas sobre o señor Lugones. Por
que sair bisbilhotando, com o risco que isso significa, se eu
puder saber tudo tranquilamente sentada diante de um
cavalheiro bonito e inteligente? Então, apenas vinte e quatro
horas depois da minha chegada a Havana, eu sabia o
suficiente sobre Carlos María Lugones para saber que ele
tinha um secretário que tinha um apartamento em Varadero...
Ou este apartamento não é seu?
— Sim — disse Arévalo, — sim, é meu.
— Claro que não — a loira sorriu amplamente. — Não é
sobre você, é sobre seu chefe. Você tem um pequeno
apartamento em Havana, mas este apartamento pertence ao
señor Lugones. No entanto, você veio aqui como se fosse
seu... Talvez o señor Lugones te deixe uma chave, no caso
de você precisar de um lugar... íntimo e calmo para suas
aventuras?
— Sim — Arévalo estava lívido. — Sim, isso é, de fato.
— Sim. Em outras palavras, você traz garotas para cá e se
diverte.
— Sim. Sim.
A loira assentiu. Ela olhava para Arévalo mais e mais
como se o cubano fosse um belo coelhinho branco de olhos
vermelhos. Ela olhou ao redor, sorriu mais uma vez. Um
sorriso gelado, dos tais que provocaram um arrepio na nuca
de Arévalo. Deixando a arma sobre uma mesa, ela acendeu
um cigarro que sacou de sua maletinha, que estava encostada
aos pés da poltrona.
— Seu chefe, o senhor Carlos María Lugones, é um
industrial rico — disse Margarita em voz baixa. — Eu
entendo que, além de várias indústrias, tem uma frota de
pesca. Correto?
— Sim. Sim. Sim.
— Eu já aprendi que ele está muito bem localizado em
Cuba, tanto social quanto politicamente. E não digamos
economicamente. Ele tem uma esposa de alto nível, uma
casa invejável em Havana e outra em Pinar del Rio, muitos
amigos, influências de todos os tipos. Ele também tem dois
filhos encantadores: um menino de quinze anos e uma
menina de treze anos, que, me disseram, será algo como uma
bomba de beleza quando se tornar mulher. Verdadeiramente,
quando uma mulher cubana sai bonita, a coisa é de autêntica
fantasia. Você gosta da filha do señor Lugones, señor
Arevalo?
— Bem, é... é a filha do meu chefe e... Sim, claro, eu... eu
gosto...
— Muito? Por exemplo: você gosta tanto que você seria
capaz de encher sua cabeça com pássaros e sonhos de amor e
privá-la de sua virgindade?
— Não... Não, não, escute, eu não... Não!
— Não se assuste. Afinal, uma cubana de treze anos já é
praticamente uma mulher. Ou não?
— O que você quer? O que você pretende?
— Na verdade, tudo o que estou tentando fazer é
descobrir quem é o Novo Libertador. Você sabe do que estou
falando?
— Não — Arevalo disse em um fio de voz. — Eu não
tenho... nenhuma ideia.
— Não? Você também não ouviu um slogan baseado em
alguns versos de Rubén Darío, e que diz “Libertad, Divino
Tesoro”?
Marcos Arévalo queria conversar, mas não conseguiu. De
sua boca veio algo que parecia o cacarejar de uma galinha.
Apenas para engolir saliva, ele teve que fazer um esforço
terrível, o que era evidente para a loira. Que perguntou:
— O señor Lugones é aquele maravilhoso Novo
Libertador?
— Claro que não! — Arevalo gritou.
— Não? — As pálpebras de Margarita se fecharam. —
Quem é então?
— Não sei!
— Mas você ouviu falar dele, não é verdade?
— Bem, sim... Sim, sim, é verdade...
— Sim Você acha que o señor Lugones sabe quem é o
Novo Liberador?
— Não... Ele não sabe. Ninguém sabe.
— Ninguém? Vamos, vamos lá, señor Arevalo... Veja, as
coisas que existem sempre são conhecidas por alguém. Você
entende o que eu quero dizer? Por exemplo, se você me
contasse sobre um jacaré que voou, eu não acreditaria.
Possivelmente, ninguém no mundo acreditaria nele. Mas
sempre haveria alguém que, se esse jacaré existisse, teria
visto e acreditado nele. Fui clara?
— Sim ... Mas ninguém sabe quem é o Novo Libertador.
— Nem mesmo onde pode estar agora?
— Não. Nem isso.
— Você não está tentando muito ser legal, sabe?
— Garanto-lhe que ninguém conhece o Novo Libertador!
Quero dizer, ninguém que conheço conhece o Novo
Libertador.
— Eu entendo. Você consegue pensar em alguém que
possa saber quem é o Novo Libertador e onde encontrá-lo?
— Não... Não.
— Nem mesmo o señor Lugones? De verdade?
— Não sabemos!
Margarita parecia cada vez mais interessada no cubano,
que agora estava suando de uma maneira incrivelmente
abundante, a ponto de ter que secar com a toalha. Tanto com
medo seria inspirado por ela? A resposta foi não. Não era a
ela diretamente a quem Marcos Arévalo temia com tanto
medo.
Naquele momento, ao fino ouvido de Margarida chegou o
som de uma chave movendo-se na fechadura da porta do
apartamento. Seu olhar era duro para Arévalo, que parecia
mais morto que vivo.
— Se você fizer algum barulho ou gesto que mostre a
minha presença aqui — Margarita sussurrou, — é possível
que eu seja forçada a matar você e sua amiguinha. De modo
que entenda bem: organize-se como desejar, mas diga a ela
para voltar outro momento, que ligará em outra
oportunidade. Você entende?
Arévalo não conseguiu se mexer.
Margarita foi até o armário, abriu uma das portas e
entrou, deixando a boca da arma visível. Como um
autômato, Arévalo se levantou e deu dois passos em direção
à porta do quarto. Do lado de fora, ouvira claramente o som
da porta se fechando e depois os passos pesados se
aproximando do quarto.
Um homem de uns quarenta e cinco anos, alto, elegante,
atraente, apareceu, sorriu ao ver Arévalo, aproximou-se dele,
passou a mão pela nuca e puxou-o, beijando-o suavemente
nos lábios.
Então, ele se endireitou, olhando para ele surpreso.
— O que aconteceu? — ele perguntou, olhando com mais
atenção, viu o corpo dele suando, a expressão tensa e se
alarmou. — Você está se sentindo mal, querido?
Marcos Arévalo não conseguiu reagir. Parecia pedra. O
homem que o beijou na boca estava olhando para ele, cada
vez mais preocupado... De repente, ele se virou para o
armário, sentindo o movimento de uma das portas.
Ele empalideceu intensamente quando viu a loira saindo.
Ele nem parecia ver a arma que ela estava segurando, apenas
encarava com uma fixação terrível os seus grandes olhos
azuis.
— Verdadeiramente — disse a loira, — nenhum de vocês
daria a imagem de um Novo Libertador das Américas.
Honestamente, señor Lugones: Acabei de ter uma das
maiores surpresas da minha vida. É claro que, em tão pouco
tempo, não consegui saber muitas coisas sobre você, mas...
isso foi uma surpresa. Quase poderíamos dizer que foi um
choque.
— Quem é você? — inquiriu Carlos María Lugones.
— Sempre fazem a mesma pergunta, como se conhecer
minha identidade fosse resolver seus problemas. E não é
assim. Mas de qualquer forma, como eu já disse a seu...
secretário, meu nome é Margarita.
— O que você quer? Acaso têm alguma queixa? Estamos
fazendo tudo certo, como estão nos ordenando, não é?!
— O que é que estamos pedindo?
— É sobre as armas, os pesqueiros e... O que você quer?
Ele olhou de repente para Arévalo, que estava puxando
uma manga.
— O que seu amante está tentando lhe dizer é que você
está cometendo um erro — explicou Margarita. — Você me
confunde com outra pessoa. Devo entender, señor Lugones,
que você está usando seus barcos de pesca para transportar
armas? Quem manda você fazer isso, onde você pega as
armas, onde você as carrega, que tipo de armas e em que
quantidade?
Com o rosto vermelho, Lugones olhou para seu belo
secretário, que se sentou na beirada da cama e murmurou:
— Eu não sei quem ela é, de repente apareceu
ameaçando-me com aquela arma, e disse... que o nome dela
é Margarita, ela quer... saber muitas coisas sobre o Novo
Libertador.
— E o que você disse? — a voz de Lugones ficou tensa.
— A verdade: que não sabemos quem ele é ou onde ele
está. Mas parece-me... que seja quem for, não será fácil
convencê-la, Carlos María.
— Não acredite — disse Margarita gentilmente. — Uma
das minhas muitas qualidades é saber ouvir muito
atentamente. Outra, ainda mais desenvolvida, é saber quando
alguém está me contando a verdade e quando alguém está
mentindo para mim. Por que você não tenta, señor Lugones?
— Por que eu tenho que dizer alguma coisa para você?
— Por várias razões. Uma delas, que eu gostaria de
conhecer o Novo Libertador, e talvez suas informações
possam me ajudar a consegui-lo. Outro motivo, que se você
não me agradar, é muito possível que decida castrá-los. Ou
talvez os mate e deixe seus corpos nus na banheira... Você
gostaria que seus amigos e familiares... seus filhos
soubessem que você é homossexual?
— Eu quero que todos se fodam — resmungou Lugones.
— Você também com essa ameaça repugnante!
A rápida compreensão de Margarita foi simplesmente
magnífica.
— Você quer dizer que já está sendo chantageado por
causa de suas... fraquezas sexuais?
— Você não sabe?
— Garanto-lhe que não tenho nada a ver com isso.
— Mas então... quem diabos é você, o que você quer?
— Quero saber quem é o Novo Libertador e o que é
realmente proposto.
— O que é proposto? — Lugones ofegou. — Eu posso te
dizer isso! Esse malvado vilão está tramando nada menos
que limpar toda a América Latina! E para isso, ele está
concentrando armas em vários pontos, bem como pessoal
que estaria encarregado de liderar grupos guerrilheiros
especiais. A ideia...
— Eu já conheço essa ideia, señor Lugones. Eu pergunto
sobre a verdadeira ideia ou intenção do Novo Libertador.
— Oque quer dizer?
— Realmente você crê que pode haver em todo mundo
alguém tão rematadamente louco que acredita ser possível se
apoderar de todos os governos latino-americanos, utilizando
os próprios exércitos nacionais ou os especialistas em
guerrilhas?
— Bem ... isso é o que está sendo preparado, com efeito.
— Sente-se — ordenou Margarida a Lugones. — Vamos
falar de uma maneira sensata e coerente, de acordo? Olha, se
fosse organizacional
Para se revoltar em um país, eu não diria não. Mas o Sr.
Lugones, o pensamento de alguém ser capaz de coordenar a
revolta em toda a América Latina parece simplesmente
fantástico e irrealizável.
— Mas se não é isso que estamos preparando... o que
estamos preparando? — Lugones resmungou.
— Me conte sua versão. Por favor, sem detalhes
excessivos, no momento. Mais tarde, se eu precisar de
esclarecimentos, eu vou fazer as perguntas adequadas. Por
exemplo: como você se meteu nesse assunto?
— Alguém me propôs. Eu disse que não tinha intenção de
intervir em tal loucura coletiva, e então eles me mandaram o
vídeo, para me chantagear. Se não lhes obedecer, a fita, que
aparecemos Marcos e eu, seria enviada para a minha família,
meus amigos e até mesmo várias estações de televisão...
Certamente você entende que o conteúdo do vídeo é de tal
ordem que não admite equívocos.
— Eu entendo. Vamos dizer que você está fazendo amor.
— Sim.
Margarita sacudiu a cabeça com um gesto de rejeição.
— Como conseguiram essa fita? — perguntou.
— Não temos ideia.
— Mas... onde eles a filmaram? Neste apartamento, na
sua casa, no apartamento do señor Arévalo em Havana...?
— Nesse apartamento — Lugones apontou para uma
pintura pendurada na parede. — Só depois de muita procura
encontramos, Marcos e eu, como eles conseguiram. Na nossa
ausência, invadiram o apartamento e usaram o quadro,
deixando tudo muito bem escondido. Uma pequena câmara
acionada por controle remoto, assim que sabiam estarmos
aqui.
— E tudo isso, sem vocês perceberem nada.
— Sim.
— Quem te mandou a fita? A mesma pessoa que o havia
proposto para se juntar ao Novo Libertador para obter a
Liberdade, o Tesouro Divino?
— Sim.
— E quem é essa pessoa?
Carlos María Lugones pegou um lenço e passou-o pelas
mãos e pela testa. Margarita olhou para ele com certa
curiosidade.
— Eu me comprometi muito com isso —finalmente disse
Lugones. — Eu cometi minha frota de pesca, alguns amigos,
eu mesmo...
— Quem é essa pessoa? — insistiu friamente a loira
Margarida.
— Bem, eu... Precisamente, temos que nos ver amanhã...
— Onde?
— Na Jamaica. Ele vai mandar seu avião para me pegar e
me levar lá para... participar de uma reunião.
— Uma reunião... de que?
— Não sei.
— Qual é o nome dessa pessoa?
— Jonathan Lengton.
— É Britânico?
— Sim
Margarita olhou especulativamente para Lugones. Então,
para Arévalo. Esteve mirando-os alternadamente por quase
meio minuto, sem seus olhos expressarem nada. Os dois
homens, por outro lado, estavam evidentemente perturbados
e inquietos.
— Eles vão buscá-lo no aeroporto de Varadero? —
Margarita perguntou rapidamente.
— Sim Esta en...
— Eu sei perfeitamente onde fica o Aeroporto
Internacional de Varadero, señor Lugones. O que eu não sei
é se as pessoas que o recebam naquele avião permitirão que
leve companhia. E eu não quero dizer seu amante, mas eu.
Vamos dizer que seria interessante para nós três viajarmos
para a Jamaica.
— Isso não é possível! — Lugones recomeçou.
— Porque não? É um pequeno avião?
— Não, não. É realmente um pequeno jato, mas...
— Eu vou fazer um acordo: você me leva para a Jamaica
como... acompanhante de confiança, assim como o señor
Arévalo. Se o que eu descubro parece-me ser minimamente
razoável, vou participar com vocês, com o qual seus projetos
alcançarão muito mais possibilidades de serem realizados.
Se, ao contrário, eu descobrir algo prejudicial nessa questão,
prometo resolver isso para que você não fique prejudicado e,
além disso, recupere esse vídeo comprometedor.
— E se eu não aceitar levá-la como companheira?
— Nesse caso — a loira sorriu encantadoramente. — Eu
vou matar vocês dois agora, e eu conseguirei chegar à
Jamaica por conta própria e localizar Jonathan Lengton.

CAPÍTULO SEIS
O jato privado, relativamente pequeno, do britânico
Jonathan Lengton estava esperando no Aeroporto
Internacional de Varadero, na hora marcada no dia seguinte.
Para surpresa de Arévalo e Lugones, o próprio Lengton
esperava no avião, afável e sorridente. Recebeu os dois
homens com um cordial cumprimento e uma especial
atenção à belíssima loira, a qual ajudou a subir a escada do
avião.
— Amigo Lugones, como vai você? — disse ele em
espanhol aceitável. — Eu não sabia que você traria
companhia. Isto é, — ampliou seu sorriso, — já havíamos
calculado que traria seu secretário, mas...
— Ela é a representante de uma indústria americana com
a qual espero em pouco tempo realizar negócios importantes
— disse Lugones secamente. — Senhorita Lili Connors...
Senhor Jonathan Lengton.
— É um prazer, senhorita Connors — o morador da
Jamaica se dirigiu a ela em inglês. — Devo entender que esta
viagem do señor Lugones pode ser de algum interesse para
você?
— Mais do que o señor Lugones pode interessar-lhe —
disse com sorriso irônico a simpática señorita Connors. —
Eu represento um... pequeno consórcio privado americano
que pode vender armas em abundância e a um bom preço.
— Ah!
A atitude de Lengton pareceu mudar radicalmente, seus
olhos claros escrutaram em maior profundidade o azul da
señorita Connors. Esta, por sua vez, analisou o novo
personagem: alto, magro, com cerca de cinquenta e cinco
anos, cabelos grisalhos e barba igualmente agrestes. Vestia-
se de maneira esportiva, mas com certa desenvoltura. A
señorita Connors não gostou em absoluto do señor Lengton,
não só pela sua aparência física e roupas bastante educado,
mas o que viu nas profundezas daqueles olhos como água
estagnada.
— É claro — acrescentou a señorita Connors, — só
fazemos operações de contato, señor Lengton.
— Isso não seria um problema — respondeu o britânico.
— Estupendo! Faz tempo que estou querendo ganhar uma
boa comissão e, francamente, na África, eles geralmente são
uns mortos de fome.
— Esse não é o nosso caso — disse Lengton. — Temos
todo o dinheiro de que precisamos. E em espécie.
— Nesse caso — Lili Connors sorriu novamente, —
minha impaciência para começar esta viagem aumentou.
Lengton sorriu e apontou para o interior do aparelho.
Caminharam pelo centro, deixando o departamento de
suprimentos a ré. Eles apareceram na sala em cujo fundo se
notava a porta que comunicava com a cabine do piloto e o
departamento do pessoal de serviço. A sala, retangular,
seguindo a forma da barriga do aparelho, continha uma dúzia
de assentos, um bar, algumas mesas pequenas e era atapetada
com produtos persas. Nas janelas circulares, o sol parecia
folhas de ouro.
— Acomodem-se ao seu gosto — disse Lengton. — Eu
vou dizer ao piloto que podemos decolar. Você quer tomar
alguma coisa?
— Champanhe — disse Lili.
Lengton olhou para ela genuinamente surpreso, depois
olhou para o relógio de pulso e finalmente soltou uma risada.
— Bem — ele disse alegremente. — Todavia ainda falta
um pouco para o almoço, mas vamos considerar que
tomamos um aperitivo. Meu criado nos servirá champanhe
assim que estivermos no ar.
Ele desapareceu para frente. Lili e os dois cubanos
sentaram-se. Lengton reapareceu e quase imediatamente a
manobra de decolagem começou. Três minutos depois, eles
decolaram. Outros dois minutos depois, a aeronave foi
estabilizada para o sudeste. Abaixo, o mar e a terra cubana
verde brilhavam. Jonathan Lengton apertou uma campainha
e depois ofereceu a Lili um cigarro de uma cigarreira de ouro
ricamente trabalhada.
Lili estava expelindo o primeiro sopro de fumaça quando
a porta dos compartimentos da proa se abriu e o empregado
de Lengton apareceu, vestido com calça preta e jaqueta
branca. Ele carregava uma bandeja na qual havia um balde
de prata contendo uma garrafa de champanhe dentro de um
leito de gelo picado e quatro copos.
O criado era chinês.
A señorita Connors pressionou os lábios quando o viu e
fitou-o firmemente enquanto o chinês servia nos copos.
Finalmente, ele olhou para Lengton, que estava olhando para
ela com uma curiosidade sorridente.
— Certamente, você me considera exótico porque tenho
um empregado chinês, quando vivo em um lugar onde o
trabalho negro é tão barato — disse o britânico.
— Há quanto tempo ele está ao seu serviço?
— Não demasiado, mas é muito eficiente e discreto. Seu
nome é Poi. Naturalmente fala inglês perfeitamente. Não é
assim, Poi?
— Certamente, senhor — concordou o chinês. De
repente, ele olhou para Lili e sorriu simpaticamente... —
Sing Tai recebe você a bordo e deseja uma feliz viagem,
señorita Celeste.
Se o chinês esperava surpreender a loira, ela teve uma
boa decepção, porque ela apenas levantou o copo, sorrindo e
disse:
— Agradeça em meu nome sua atenção a Sing Tai.
Levará muito tempo para chegarmos ao destino?
— Um par de horas — disse Poi.
Os dois cubanos e os ingleses ficaram pura e
simplesmente surpresos. Finalmente, Lengton poderia
exclamar:
— Podemos saber do que estão falando?
— Temo, señor Lengton — disse Lili festivamente, —
que fomos sequestrados. Espero que tenhamos champanhe
suficiente para a viagem... embora não seja precisamente a
qualidade digna do meu paladar.
— O que significa isto? — Lengton insistiu, olhando para
Poi. — O que pensa estar fazendo, chinês do inferno?
— Você realmente não entende? — Lili ficou surpresa.
— Eu vou explicar isso com prazer. Esse homem chamado
Poi trabalha para um homem chamado Sing Tai, que está
viajando por toda a América dirigindo a operação
“Liberdade, Divino Tesouro”. E não me diga que você não
sabia disso, señor Lengton.
— Claro que não! — disse o britânico, ficando de pé.
— Não? Então... com quem você tem lidado com a
operação, de quem você tem recebido ordens?
— Bem...
Plop! Disparou a arma provida de silenciador na mão de
Poi.
Jonathan Lengton recebeu a bala no coração, com forte
impacto que o matou e empurrou-o, sentando-o novamente.
O britânico residente na Jamaica sequer teve tempo de saber
que ia morrer, ou melhor, que estava morto. Ele ficou com a
cabeça torcida para um lado, olhos extraviados, com a boca
torcida em uma careta de raiva...
Poi apressou-se a desviar a sua arma em direção a
señorita Connors, que olhou para ele, bebeu outro gole de
champanhe, e isso foi tudo.
— Deus bendito! — finalmente resmungou Carlos Maria
Lugones.
Tanto ele quanto seu secretário estavam lívidos, meio
mortos de susto e medo, olhando com estranha fascinação
para o cadáver ainda latejante de Lengton.
— Seria gentil a ponto de me entregar sua arma, señorita
Celeste? — perguntou Poi.
A loira assentiu, levantou a saia revelando suas belas
pernas, e de sua coxa esquerda descolou a pistola com cabo
de madrepérola, que entregou ao chinês. Ele colocou na
bandeja, fez um gesto de despedida, com a cabeça e se
retirou, depois de murmurar:
— Tenho certeza que você entende que será melhor para
todos que não procurarem complicações durante a viagem.
— Vou manter isso em mente — disse Lili.
Pouco menos de dez segundos depois que o chinês
assassino desapareceu de cena foi que os cubanos finalmente
conseguiram reagir.
Ambos olharam para Lili exorbitantemente, e Lugones
gaguejou:
— Ma-mas... o que significa isso?
— Vou explicar isso com muito prazer, porque dessa
forma, esclareço minhas próprias ideias... Vejamos, em tudo
isso, intervém um chinês muito atraente e inteligente que
está usando o nome de Sing Tai, com o qual eu já tive um...
pequeno tropeço em Maracaibo. Sing Tai escolheu desde o
início alguns homens da América Central e do Sul, de nível
muito alto, a quem ele confiou, digamos, a direção da
operação de maneira local. Ou seja, para cada país ele
escolheu um homem importante. Esse homem importante,
por sua vez, escolheu outros personagens para apoiá-lo e, por
sua vez, esses personagens estavam escolhendo outros
colaboradores cuja importância social, política e econômica
estava declinando. Desta forma, o inteligente Sing Tai
formou uma espécie de... pirâmide de personagens, em cujo
pico está o Novo Libertador. Todos os outros são
colaboradores. De maior ou menor importância, mas apenas
colaboradores, a quem uma determinada parte da operação é
atribuída. Por exemplo, no caso de você, señor Lugones,
teve que contribuir com sua frota de pesca para transportar
armas. No caso do señor Lengton, ele teve que coordenar a
colaboração de vários colaboradores como você. Vamos
dizer que o señor Lengton estava um pouco mais alto do que
você em direção ao topo da pirâmide. Mas, por sua vez, ele
estava sob o comando de outro personagem de maior
importância que está próximo do Novo Libertador ou talvez
o próprio Novo Libertador. Quer fosse o primeiro ou o
segundo, Sing Tai não podia permitir que Lengton
mencionasse isso, e Poi tinha ordens muito específicas sobre
isso. Assim, morto Lengton, não importa o que seja de
vocês, nada mais preocupa Sing Tai para que eu siga em
frente, porque a pista realmente foi por fim cortada... Sim, é
muito, muito inteligente meu colega Sing Tai. Ele refletiu
sobre quais personagens o pobre Onésimo Varela conhecia e
previu o risco de que, de alguma forma e de uma vez ou
outra, ele os tivesse mencionado em minha presença. Quais
personagens da pirâmide conheciam Onésimo Varela? Bem,
eu conheci o Carlos María Lugones. Portanto, era
conveniente... remover Carlos María Lugones do jogo.
Mas... quem é que o Carlos María Lugones sabia? Bem,
señor Jonathan Lengton. Portanto, seria conveniente...
remover o señor Carlos María Lugones da festa em primeiro
lugar e, no caso de o señor Lugones já ter mencionado o
señor Lengton, removê-lo também. Então, Sing Tai ordena
que o señor Lengton cite o señor Lugones na Jamaica, para
juntá-los e eliminar os dois. Mas logo ele melhora sua ideia:
ele pede que o señor Lengton viaje em seu avião para pegar
pessoalmente o señor Lugones. Desta forma, ele não tem que
correr nenhum risco de se mudar para a Jamaica... Por que
movê-lo em busca de suas vítimas, se ele pode fazer suas
vítimas irem onde ele está esperando por eles? E lá vamos
nós. Eu presumo que este avião, naturalmente pilotado por
pessoas que realmente obedecem ao fantástico Sing Tai,
pousará em um pequeno aeródromo na Venezuela ou na
Colômbia. Sim, nosso amigo Sing Tai se move muito
confortavelmente no continente sul-americano. Sem dúvida,
é por isso que ele foi escolhido para liderar a operação.
— Se eu entendi bem sua explicação — murmurou
Lugones, depois de refletir por alguns segundos, — o que ele
realmente quer é evitar que você continue subindo em
direção ao topo daquela pirâmide e alcance o Novo
Libertador.
— Exatamente
— E não seria mais simples e mais lógico eliminá-lo em
vez de nos eliminar?
— Bem, señor Lugones — disse Lili, — me eliminar não
é tão simples.
— Não? Bem, Poi poderia ter te matado com muita
facilidade, em vez de matar Lengton.
— Sim... Mas olhe, señor Lugones, sem a intenção de
ofender você e seus amigos, acontece que personagens como
você estão em abundância, e ao invés disso, personagens
como eu são muito escassos neste mundo infeliz.
— Não importa quão especial você seja, será para seus
amigos, não para seus inimigos. Quero dizer que se eu fosse
seu inimigo, e precisamente porque você era tão especial, eu
faria todo o possível para tirá-la do caminho. Por que Sing
Tai não deu a ordem para que você fosse eliminada?
— Talvez ele tenha se apaixonado por mim — sugeriu
Lili, com um sorriso malicioso.
— O que não entendo, é que em tudo isso intervém um
chinês — disse Arévalo, como se saísse de um sonho. — O
que um chinês faz nos projetos do Novo Libertador?
— Obviamente — Lili olhou para ele, — quaisquer que
sejam os projetos definitivos do Novo Libertador, a China
não será alheia a eles.
— Você quer dizer que, através do Novo Libertador, da
China ele lideraria todo o continente sul-americano?
— Eles tentaram uma vez — sussurrou Lili. — Eles
queriam transformar a América do Sul em um país chamado
Chinamerica.
— Mas o que você diz — recomeçou Lugones.
— Deus Todo Poderoso — respirou Arévalo. — Então,
estamos trabalhando para fazer a China dominar toda a
América Latina...! Eles estão nos enganando a todos!
— Mais do que você pensa — disse Lili, secamente.
— O que quer dizer?
A espiã mais perigosa do mundo não respondeu.
Aquietou-se, olhando para a janela cheia de sol, taça de
champanhe na mão. Terminou o conteúdo da taça, olhou
para Jonathan Lengton e moveu a cabeça. A insensibilidade
do ser humano está aumentando: ali estava um pobre
homem, recentemente assassinado, e ela bebendo champanhe
e conversando com outros dois pobres homens... Porque
tanto Lengton quanto Lugones e Arévalo eram pobres
homens, simples peões manipulados habilmente.
Em certas esferas e atividades, Lugones e até mesmo
Arévalo, e claro, Lengton, eram de primeira linha, mas lá,
naquele jogo em que a aposta foi sempre a própria vida,
eram como crianças perdidas no bosque...
— Mas eu não sou uma garota perdida na floresta —
disse Lili.
— O que? — se interessou Arévalo.
Lili olhou para ele, depois olhou para Lengton e
finalmente para a taça vazia de champanhe. Ela se levantou e
foi até o compartimento de serviço. Abriu a porta e
imediatamente viu Poi, sentado em uma cadeira de lona e
fumando pensativamente. O chinês olhou para ela
bruscamente, com um brilho de alarme em seus olhos, e se
levantou imediatamente, puxando sua pistola para Baby.
— Ficamos sem champanhe — disse ela. — Você seria
amável em servir-nos um pouco mais?
— Ah, sim, com prazer.
— E, por favor, remova o corpo do señor Lengton.
Poderia colocá-lo na popa, no compartimento de carga.
— Será atendida.
— Obrigada. Existe um piloto ou dois?
— Dois
— Chinos ou latino-americanos?
— Latino-americanos — Poi sorriu. — Esses são
funcionários do señor Lengton, é claro.
— Naturalmente. Mas devidamente subornado pelo
serviço da China, certo?
Poi sorriu e isso foi tudo. Lili Connors olhava para ele
com certa estranha gentileza. De repente, ele perguntou: —
Podemos entrar em contato com Sing Tai por rádio?
— Claro.
— Eu gostaria de te enviar uma mensagem.
— Que mensagem?
— Diga-lhe o seguinte: se ele concordar em falar comigo
e me ajudar a desmascarar a operação “Liberdade, Divino
Tesouro”, tudo terminará bem para ele. Se, pelo contrário,
ele decidir ir em frente, eu o mato.
— Eu vou te dizer — sorriu Poi.
— Mas primeiro me sirva mais champanhe — disse
Baby.
CAPÍTULO SETE
De fato, o pequeno avião aterrissou em certo lugar
discreto e ninguém sabia que país. Tão discreto era o lugar
que nem sequer era um aeródromo, muito menos um
aeroporto. Tratava-se, simplesmente, de uma longa seção
reta de uma larga estrada, cujo piso não estava em boas
condições, mas que resistia ao pouso. A señorita Connors
não pôde deixar de pensar que o local já havia sido usado
como pista de aterrissagem em diversas ocasiões. Tudo ao
redor eram montanhas, e nos picos de alguns deles o brilho
da neve era visível.
— Nos despedimos aqui — disse Poi, quando o avião
parou completamente. — Desejo-lhe um final feliz.
— Obrigado Você enviou minha mensagem para Sing
Tai?
— Sim
— E qual foi sua resposta?
— Não.
— Entendido. Eu me pergunto se você seria tão gentil a
ponto de devolver minha pistola, Poi.
— Não, eu não vou ser tão gentil — sorriu o chinês.
— Claro — sorriu Lili. — Não vou exagerar, certo? Você
tem sido gentil o suficiente em todos os momentos, servindo-
nos champanhe e aquele saboroso e delicioso almoço
baseado em comida chinesa. Eu me encanto com a culinária
chinesa.
Poi sorriu de novo, apertou o botão na porta e moveu-se,
projetando a escada no chão. O primeiro a descer do avião
foi a señorita Connors, seguida por Lugones e Arévalo. A
escada foi recolhida, a porta de acesso ao avião se fechou, e
em poucos segundos rodava de volta pela pista, enquanto o
recém-desembarcado se afastavam... escapando da força de
decolagem. Trezentos metros adiante, o avião decolou do
asfalto, levantou-se e logo começou a manobra para voar
para o norte.
Lugones e Arévalo pararam de olhar para ele, olharam
em volta e depois para a señorita Connors.
— Não há ninguém aqui — disse Arévalo. — Mas
suponho que não pode demorar muito para passar um
veículo.
— Não — disse a loira. — Esta é uma seção de estrada
abandonada. Nenhum carro passará, se é isso que eles
esperam. Na verdade, estamos na selva. É um lugar lindo.
Sabem de uma coisa? Eu nunca vi um condor em toda a
minha vida. E eu gostaria muito...
Mas nenhum condor voou por ali. Nenhum veículo
passou. Nenhum ser humano estava passando. O sol parecia
novo e limpo. O silêncio era absoluto.
Até que começou a ser ouvido o rumor do voo de um
helicóptero. A primeira a ouvir foi, de fato, a señorita
Connors, que logo o localizou à distância. O aparelho
apareceu piscando ao sol e logo estava sobre eles.
Finalmente, ele desceu, aterrissando na estrada.
Dois chineses, vestindo macacões de camuflagem e
empunhando metralhadoras, pularam ao chão, e um deles
sinalizou para os três personagens abandonados em algum
lugar dos Andes.
— Venha cá — disseram os chineses, em espanhol.
Os três se aproximaram. As pás do helicóptero
continuavam girando, com um tom abafado.
— O que é isso aí? — perguntou um dos chineses,
apontando para a maletinha de Lili.
— Minhas coisas pessoais. Nada que os perturbe. Você
quer ver?
— Sim. Abra, deixe-a no chão e entre no aparelho.
Lili obedeceu. O segundo chinês subiu atrás deles,
sempre os controlando com sua submetralhadora. Nos
comandos havia outro chinês. O chinês, ainda no chão,
agachou-se ao lado da pasta, examinando seu conteúdo, mas
sem tocá-lo, com alguma cautela. Finalmente, ele fechou a
maleta, pegou e jogou no helicóptero, subindo novamente. O
piloto ativou os controles e o aparelho subiu. Sentados ao
fundo do helicóptero. Lili, Carlos María e Marcos
permaneceram imóveis. Sentados na frente deles, apontando
para eles suas armas, os dois chineses. Lá embaixo, a
vegetação era infinita.
A viagem de helicóptero durou apenas vinte minutos.
Quando pousou em uma pequena clareira, parecia que tudo
ao redor simplesmente permanecia na selva. Mas, abaixo,
entre as árvores, os três raptados divisaram as pequenas
construções, tão habilmente localizadas que do céu não
podiam ser vistas de forma alguma.
— Vamos lá — disse o chinês mais falante.
Entre a vegetação havia sido feito um caminho estreito
para os edifícios. Eram três cabanas construídas a base de
troncos e barro, e sem dúvida haviam sido construídas há
muito tempo.
Através dos galhos ouviram o granido de alguns pássaros.
— Você sabe onde estamos? — perguntou Lugones.
— Não. Quer dizer, eu sei aproximadamente, mas isso
não resolve nada.
— Onde estamos aproximadamente, de acordo com
você?
— Eu diria que estamos em algum lugar da Serra de
Perijá, entre as fronteiras da Venezuela e da Colômbia e
mais ou menos ao nível de Maracaibo... Sempre voltamos a
Maracaibo.
— Oque quer dizer?
— Nada especial. Se acaso, que nosso anfitrião conhece
muito bem essa área.
— Parece não haver ninguém aqui — disse Arevalo.
Logo se convenceram do contrário, ao alcançar a primeira
cabana. Pela janela viram um chinês sentado diante de uma
emissora. O chinês deu-lhe um olhar indiferente, e voltou
seu olhar indiferente à emissora. Através da janela da
segunda cabana eles viram o que parecia um escritório, com
mapas nas paredes, uma máquina de escrever, um ventilador
no teto (que evidenciou a existência de um gerador), uma
biblioteca caindo aos pedaços... Dois homens, sem dúvida,
sul-americanos, estavam conversando diante de um mapa,
mas emudeceram quando Lili e outros passaram diante da
janela. O chinês apontou a terceira cabana, ordenando que
entrassem ali.
Os três obedeceram. O chinês fechou a porta, e foi isso. A
cabana tinha duas janelas, como as outras, mas elas foram
seladas com fortes taboas e grandes pregos. Entre as taboas,
por pequenas frestas, penetrava luz mais do que suficiente.
Dentro da cabana, havia duas fileiras de camas, colocadas
uma sobre a outra, como beliches. No total, seis camas. Do
lado de fora seguia se ouvindo o grasnar de alguns pássaros
grandes.
— Isto é como um pesadelo — murmurou Arévalo.
— É mais sério — disse Lili, — não acho que aqui tenha
champanhe. Vou reclamar com Poi.
Os dois sul-americanos a olharam, incrédulos, e um
pouco desconcertados. Lili verificou a hora em seu relógio
de pulso. Eram três menos cinco minutos do período da
tarde. Lili acomodou-se em uma das camas-beliches, e, em
segundos, para o espanto de seus companheiros, ela
adormeceu.
Carlos Maria Lugones sentou-se em outro dos beliches,
ficando alguns segundos absorto, e de repente olhou para
Arévalo.
— Eu lamento ter metido você nisso.
— A culpa não é sua. Esse maldito Lengton tramou tudo
— murmurou Marcos. — Deve ter dito a eles que você
estava interessado em fazer parte da operação, ele nos
vigiava, sabia sobre nós, e conseguiu condicionar o
apartamento durante a semana, enquanto nós estávamos em
Havana. Seguramente os chineses ajudaram em tudo.
— De qualquer modo, se você não tivesse aceitado a
minha...
— Maldita seja. Como você poderia saber que enquanto
estávamos no nosso quarto, havia alguém nos filmando? Que
seja. Nada pode mudar as coisas que aconteceram. O que me
preocupa é o que vai acontecer. O que você acha que os
chineses vão fazer com a gente?
Lugones levou um tempo para responder: — Eu não creio
que nos trate melhor do que a Jonathan Lengton.
— Ou seja, eles nos matarão.
— Se matou Lengton também nos matar.
— Lengton foi morto por Poi, não o outro, o chamado
Sing Tai.
— Poi não teria feito nada que não fosse autorizado por
Tai. Marcos, eles vão nos matar, isso é tudo.
Ambos ficaram em silêncio. Arévalo foi se sentar na
frente de Carlos María Lugones e ficaram olhando nos olhos
um do outro. Perto deles, a señorita Connors respirava lenta
e profundamente.
Por volta das cinco da tarde, a señorita Connors estava
acordada, ouviram o som do helicóptero se afastando. Por
volta das seis horas, eles o ouviram voltar. Então, por cerca
de dez minutos, silêncio. Finalmente, a porta da cabana se
abriu e entrou Sing Tai, deixando de fora dois homens
armados Metralhadoras, com a porta aberta, de modo que a
cabana recebeu muito mais luz.
Sentada na beira de um dos beliches, Lili olhou para o
belo e jovem chinês, que agia como se ela não estivesse ali.
Ele se dirigiu aos dois sul-americanos, que, também
sentados, olharam para ele com óbvia surpresa.
— Sinto muito sobre o que aconteceu com Jonathan
Lengton — disse Sing Tai em espanhol perfeito, — mas Poi
tinha instruções muito claras de que nenhum nome deveria
ser pronunciado. Estão bem?
— Sim — Lugones murmurou. — Estamos bem, sim.
— Estou feliz em ouvir isso. Eles vão tirá-los daqui e
espero que em alguns dias estejam de volta a Cuba. Nós
devemos...
— Você não vai nos matar? — quis saber Arévalo.
— Por que supõem isso? — surpreendeu-se Sing Tai.
— Bom não sei. Ela nos conhece — balançou a cabeça
para Lili.
— Sim — Sing Tai sorriu. — Ela conhece você, mas ela
nunca poderá incomodá-lo no futuro. Portanto, não se
preocupe com nada: volte para Cuba e espere novas
instruções. Naturalmente, eu não os culpo em tudo, porque
se ela os localizado não foi culpa de vocês, mas para alguma
indiscrição de outro parceiro... Não é mesmo, señorita
Martinez?
— Sim, está certo — Lili sorriu. — O nome de Carlos
María Lugones me foi dado por Onésimo Varela antes de
morrer.
— Assim eu calculei. Bem, você pode ir agora. E deixe-
se levar pelos meus homens em todos os momentos.
Lugones e Arévalo pareciam não acreditar em sua boa
estrela. Eles olharam para Lili, e então, rapidamente, os dois
saíram da cabana. Sing Tai sentou-se na frente de Lili, a
quem ela contemplou para sua satisfação, muito a sério.
Finalmente, ele balançou a cabeça com admiração e disse:
— Você é uma pessoa muito ativa, señorita Martinez. E
ainda mais surpreendente.
— E você é muito inteligente, señor Tai. Nem todo
mundo seria capaz de obter tantas conclusões e sucesso
quanto você está fazendo. Como poderia ter ocorrido a você
que eu sou a mesma pessoa que usou o nome de Celeste
Martínez? Entre outras pequenas diferenças, ela era negra e
eu sou branca. E não só isso, mas você parece... adivinhar
que meus pensamentos. E, portanto, meus passos e minhas
ações.
— Não foi muito difícil. Eu entendo que você agora usa o
nome de Lili Connors. É bonito. Você é linda também.
Melhor dizendo, é extraordinariamente bella. Quer que
façamos um acordo, señorita Connors?
— Eu já propus um acordo no avião, por meio do rádio, e
você não deu resposta alguma. Pelo menos, foi o que Poi me
contou.
— Esse negócio era inaceitável para mim. Mas tenho
outro que gostaria que merecesse sua aprovação.
— Eu ouço você.
— Eu posso fazer duas coisas com você. Uma delas,
matá-la. É o mais fácil. O outro é usá-la. É mais difícil e
mais comprometido, mas muito mais útil. Este é o meu
acordo: diga-me os nomes de outras pessoas que você
conhece relacionadas a esta operação, e eu vou deixar você ir
livre.
— Você está brincando.
— Não. Se você não me disser esses nomes, terei que dar
a ordem para que mais de sessenta pessoas sejam eliminadas,
porque sem saber quais você descobriu, terei que eliminá-las
todas. Isso implicaria a paralisia do projeto “Liberdade,
Divino Tesouro”...
— O que me satisfaria muito.
— Mesmo em troca de sua vida?
— Isso já não me satisfaria tanto — Lili franziu a testa.
— Olhe, señorita Connors, eu sei que você é a agente
Baby. Depois de Maracaibo, você foi para Cuba. Mas, entre
Maracaibo e Cuba, há três dias no meio. O que você fez
nesses três dias? Ouso supor que, confiando no que Onésimo
Varela lhe disse, tomou certas precauções antes de se
apresentar em Cuba. O que você fez? Quem passou
informações, que tipo de informação, que nomes vieram
conhecer além dos nomes de Arévalo e Lugones? Diga-me
isso e eu a deixo partir.
— Quer dizer, eu trocaria minha vida pelas das pessoas
cujos nomes eu diria.
— Claro.
— Não conheço outro nome.
— Seja sensata. Você está se condenando à morte. E
condenando sessenta pessoas.
— O que eu estou condenando à morte, señor Tai, é a
operação “Liberdade, Divino Tesouro”.
— Mas você vai morrer com ela.
— De acordo.
― Esta louca?
Lili Connors pressionou os lábios e isso foi tudo. Sing
Tai esperou em vão por um minuto para que ela mudasse de
atitude; Finalmente, ele murmurou:
— O que ele está fazendo é impróprio para sua
inteligência.
— Señor Tai, eu vou lhe dar uma amostra da minha
inteligência, já que você está falando sobre isso. Eu posso te
dizer, por exemplo, como eu vejo a operação “Liberdade,
Divino Tesouro”. Você gostaria de ouvir minha versão?
— Claro.
— Muito bem. Bem, eu lhe direi que em nenhum
momento você poderia acreditar que poderia reconquistar a
América do Sul pela força das armas. Ou seja, a ideia de
revoltar as forças armadas de todos os países latino-
americanos de maneira simultânea é simplesmente absurda,
pelo menos no sentido de que essa revolução conjunta
poderia ter sucesso. No entanto, isso pode ser conseguido
mais ou menos ao mesmo tempo, e sob a instigação de
traidores em cada país e mercenários da guerra, todos os sul-
americanos se levantam em armas... Por que não? Afinal de
contas, é certo que alguns bastardos estão massacrando fome
e nojo o povo latino-americano, de modo que ninguém
poderia culpá-los também, se, eventualmente, todos os
irmãos americanos erguessem armas para eliminar esses
bastardos que os estão escravizando e vendendo. Mas isso
não é o que você quer... Eles não querem que a revolução
dos meus irmãos americanos seja um sucesso, mas, pelo
contrário, eles querem que ela fracasse.
— Verdadeiramente você está louca! — disse Sing Tai
ofegante.
— Sim? Você prefere que eu não termine de explicar
minha versão?
— Siga... Siga.
— O que vocês querem não é que essa revolução total
triunfasse, mas apenas que isso continue. Para que? É o que
eu digo: quando a revolução começar, vocês enviaram tropas
para todo o continente sul-americano, a fim de sufocar a
rebelião, ajudando governos estabelecidos e, ao mesmo
tempo, fazendo uma espécie de limpeza... de personagens
que hoje ou no futuro poderiam se opor a seus projetos. Uma
vez que a rebelião tenha diminuído, vocês administrariam
muito bem o comando em todos os governos da América
Latina. E fariam isso desta vez de maneira direta e efetiva,
porque para isso suas forças estariam ocupando todos esses
países. Assim, Señor Tai, o futuro da América do Sul estaria
em suas mãos... o futuro e, claro, a sua grande riqueza de
todo o tipo, a sua terra, as suas culturas... Toda a grande
despensa, toda a grande reserva de mão de obra, todas as
riquezas da América Latina estarão disponíveis para você. E
é isso que você chama de “Liberdade, Divino Tesouro”?
— Realmente, você está louca se acredita que a China
pode conseguir isso...
— Não me insulte — disse Lili friamente. — Eu não
estou falando sobre a China quando falo sobre você. Eu não
disse a qualquer momento que é a China que tramou este
plano, assim como eu não disse a qualquer momento que
você, só porque é de raça chinesa, está trabalhando para o
Lien Lo Pou. Eu não disse isso, Señor Tai?
— Não — Sing Tai engasgou. — Você não disse isso.
— Então, tenha a bondade de não insultar minha
inteligência. E agora, a menos que você tenha algo realmente
interessante para me dizer, você será tão gentil a ponto de me
deixar em paz?
— Você é minha prisioneira.
— Não seja estúpido. Se as coisas fossem como você
queria que parecessem, eu não teria me deixado ser pega,
nem, supondo que você teria conseguido, eu ainda estaria
viva e encararia você. Saia daqui
— Eu vou sair — disse Sing Tai, levantando-se, — mas
você não sairá por pelo menos meio ano.
— Você é quem está louco se pensa que vai permitir que
fique encerrada nesse buraco da floresta a agente Baby por
seis meses. Nem mesmo por seis dias. Eles já sabem que me
inteirei da verdade, mas não me sacrificam, claro que não.
Antes eles sacrificariam a você. E você sabe por que eles
sabem que eu sei a verdade?
— Por que?
— Porque o súbito desaparecimento dos meus Simons em
Maracaibo não era de todo credível. Porque de modo algum
é possível acreditar que a agente Baby chegue a um lugar,
em qualquer lugar do mundo, e nenhum Simon atenda a sua
ligação por rádio. Porque sabem que sei que meus Simons
foram removidos do meu caminho, separados... e até mesmo
possivelmente receberam ordens para tornar as coisas
difíceis para mim, e até mesmo para me confrontar mesmo
que fosse uma simulação na qual eu não corria riscos. E
quando eles fazem algo assim, e eu respondo
adequadamente, eles sabem que descobri a verdade. E se eu
já descobri a verdade, eles sabem que eu não vou ser feliz
com isso, então, na verdade, eles têm que escolher me
eliminar ou continuar contando comigo. Eliminar-me é
absurdo, porque os meus recursos são muito numerosos,
tenho amigos em todo o mundo, amigos a quem talvez já
tenha relatado a operação “Liberdade, Divino Tesouro”, e
eles a denunciariam assim que soubessem de minha morte.
Você entende por que a maldita CIA sempre me prefere
antes de você?
— Então você realmente sabe que tudo isso foi
arquitetado pela CIA, que seriam os Estados Unidos que
invadiriam a América do Sul com suas tropas.
Lili Connors deu ao chinês um olhar de desprezo. Então
ela acendeu um cigarro e pareceu esquecer-se dele... de seu
colega. Porque, por muito chinês que fosse, Sing Tai estava
trabalhando para a CIA, para os Estados Unidos da América
do Norte... para o Mestre do Norte.
— Você — sussurrou Sing Tai de repente, — não vai
destruir meus sonhos pessoais. Por anos, eu tenho a
admirado, e você pode ver que eu nunca a delatei, não só
porque sou uma agente da CIA e americano de nascimento,
mas porque sempre a admirei.
Agora vejo que minha admiração era mais do que
justificada. Você é única, você é a melhor, você é a rainha
indiscutível... mas eu vou continuar com isso. Fui escolhido
justamente no caso de haver dificuldades que todos
pensavam ser uma manobra chinesa, depois da qual tive que
desaparecer. Mas ninguém além de você criou problemas
para a operação “Liberdade, Divino Tesouro”, com a qual eu
alcançaria níveis muito altos dentro do CIA e, mais tarde,
dentro da vida política dos Estados Unidos... Droga, eu não
vou deixar você arruinar todos os meus planos, todos os
meus sonhos!
— Quer dizer, ele vai me matar e tudo vai continuar.
— Sim Quero dizer, não... eu não vou matá-la. Eu vou
simplesmente segurá-la neste lugar até que tudo acabe.
Então... vamos ver o que eu faço com você.
— Isso significa que, para todos os efeitos, a agente Baby
terá desaparecido sem deixar vestígios.
— Sim. Eles vão me perguntar, mas eu direi que a deixei
ir com Lugones e Arévalo, e que se algo aconteceu com
você, será culpa deles.
— O que não seria verdade, já que você ordenou a
execução daqueles dois desafortunados, não é?
— Eu repito — sorriu o belo Sing Tai, — você é única.
Mas até que eu considere minha vida futura no CIA, como
na política, permanecerá aqui.
— E eles não vão dizer nada? — Lili apontou para os
homens de Tai.
— Eles não são da CIA, mas pessoal contratado por mim
em particular, é claro, porque era precisamente disso que se
tratava, que você não sentisse o cheiro da CIA em nenhum
momento, os homens neste lugar trabalham para mim e eles
não têm ideia do que está sendo planejado. Eles são simples
aventureiros dispostos a tudo por dinheiro. Portanto, não
espere considerações especiais. Seja feliz e daqui a pouco
você encontrará um destino... agradável.
— Ou seja, agora a operação é baseada em você.
— Eu nunca terei outra chance de me destacar, e quem
cair na operação continuará. Até a vista.
Sing Tai saiu da cabana, fechando a porta. Lili Connors
ouviu-o falar em chinês com os dois homens com as
metralhadoras. Então, ele ouviu o clique de um cadeado
sendo colocado do lado de fora.
A señorita Connors continuou a fumar em paz. Ele
conhecia a CIA muito bem. E a CIA a conhecia ela. Não foi
a primeira vez que se enfrentaram, que a CIA efetuava
algumas brincadeiras sujas sem ela saber. Mas agora ele
descobrira... E a CIA sabia que, se a agente do Baby se
inteirava de uma operação como “Liberdade, Divino
Tesouro”, faria o possível para desbaratá-la, e que, de fato,
tinha muitos amigos, de toda a classe, em todo o mundo,
alguns dos quais já deviam estar cientes do que o cérebro
privilegiado da senhorita Brigitte Montfort havia descoberto.
A questão era: a CIA a preferiria a Sing Tai... que ainda
poderia oferecer-lhes o triunfo da operação... mesmo que
essa operação pudesse ser denunciada por amigos do agente
Baby?
Trancada na cabana, a senhorita Connors ouviu o som do
helicóptero se afastando.
Algumas horas depois, com a última luz do dia, os dois
atiradores chineses entraram na cabana, um deles com
comida para a prisioneira... que estava muito calma,
penteando o cabelo com a escova que tirara da maleta
vermelha com flores azuis estampadas.
Quando o estilete afiado apareceu de dentro do cabo, o
sol lançou seus últimos raios avermelhados nas montanhas
dos Andes.
ESTE É O FINAL
Ele colocou o carro na garagem e fechou a porta atrás de
si, usando o controle remoto, como sempre. Depois saiu e
olhou pensativo para o veículo. Talvez ele tivesse que se
livrar dele, porque era com ele que costumava visitar
Onésimo Varela em Maracaibo, quando este tinha Baby em
sua casa com o nome de Celeste Martínez e com a pele
enegrecida...
Negra! Que mulher fantástica! Negra, loira, morena,
olhos de qualquer cor, capacidade de se adaptar a tudo, um
valor absolutamente incrível e inabalável...
“Mas eu vou ter que matá-la” — pensou Sing Tai. —
“Não será possível mantê-la viva após a operação
„Liberdade, Divino Tesouro‟. Eu vou ter que matá-la. E
porque não? Todo reinado tem seu fim: o de Baby estará
terminado e o meu começará. Tudo o que nasce morre, tudo
muda, a vida nunca mais é a mesma”.
Por alguns segundos ele pensou novamente na
conveniência de se livrar daquele carro. Era em seu nome, e
ele não gostou depois do que aconteceu. Ele se livraria dele o
mais rápido possível.
Ele entrou na casa pela porta que ligava diretamente à
garagem. Ele morava em uma casinha modesta, mas
agradável no distrito de La Pastora, em Caracas, entre o rio
Catuche e o cemitério Filhos de Deus. Que nome legal para
um cemitério! Mas ele teria que sair de lá. Ele estava no
mesmo lugar há muito tempo, embora fizesse viagens
frequentes por toda a América Latina. Maldita seja! Nunca
teria uma oportunidade como esta para deixar de ser um Don
Nadie e se tornar um herói secreto do CIA e a Casa Branca!
Ele acendeu a luz na sala quando entrou e foi direto para
o bar-armário. Ele não viveu mal em Caracas, mesmo que os
tenha dado aos pobres. Afinal, ele tinha dólares dos ianques
e o dólar dos ianques resolve tudo. Ou quase tudo. Claro,
resolveu a aquisição de um bom uísque. Serviu-se de uma
boa dose, despejou dois cubos de gelo no copo e sentou-se
numa poltrona.
“Liberdade, Divino Tesouro”. Ah, que frase sábia. Falso,
mas bem sucedido. Porque a liberdade é um tesouro, não é?
Tomou um gole de uísque, sorriu... e então viu aparecer na
porta da sala a linda mulher de cabelos negros e ondulados,
grandes olhos azuis celestes, feições pronunciadas, exóticas,
lindas.
Ele identificou isso no ato. Era a senhorita Brigitte
Montfort, a jornalista de Nova York e a mais perigosa espiã
do mundo.
— Não — sussurrou Sing Tai. — Droga, não!
Ela estendeu o braço direito, apontou para o coração do
homem chinês com a pistola silenciosa e puxou o gatilho.

Agradecimentos especiais para


ADRIANA MARCIA AVELAR SILVA
Pelo empenho na tradução desta edição, uma vez que
foi feita direto do original em espanhol.

Você também pode gostar