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Índice

Editorial ------------------------------------------------------------ p. 05
Nina Camargo ----------------------------------------------------- p. 10
Bruno Ramalho --------------------------------------------------- p. 15
Daniel Rodas ------------------------------------------------------- p. 18
Luciano Lanzillotti ----------------------------------------------- p. 25
Fabiana Carrijo --------------------------------------------------- p. 28
Géssica Menino --------------------------------------------------- p. 31
Benício Gon -------------------------------------------------------- p. 38
Catharina Azevedo ----------------------------------------------- p. 48
Álvaro André Zeini Cruz --------------------------------------- p. 53
Julia Magnoni Roque -------------------------------------------- p. 55
Isabel Furini ------------------------------------------------------- p. 59
Uelson Teixeira ---------------------------------------------------- p. 61
Lorenna Almeida ------------------------------------------------- p. 64
Leandro Costa ----------------------------------------------------- p. 66
Agradecimentos e Contatos ------------------------------------ p. 75
Editorial
Barco que arrasta vela

Vela que flui no mar

Bico que corta a cela

Vento que rasga o ar

Bote que singra a terra

Terra que é vento e mar

Mar que é vento e terra

Água que é rosto e lar

Flui para o tempo novo

Povo que corta o ar

Barco que é vento e povo

Verso que a vida dá

[IMPROVISO MORNO Nº22]

Viver é preciso. Navegar é sim: o dente. Navegar sem o siso. Quebrado no voo:
presente. Corta-mar é preciso. Achar outro rio: sem dente. Recortar o presente. E colar
no futuro: da mente.

Fluir marinheiro. De um ano pro outro: do mar. Amar marinheiro. O verbo que é rio: e
mar. Sorrir por inteiro. O preço do rio: amar. E ser por inteiro. O risco no fio: sem lar.
Pois o lar é a mente. A mente que é corpo: e mar. O mar é a gente. A gente que nada: no
ar. O lar é semente. Do corpo que brinda: nadar. Fluindo à corrente. Do rio que é
serpente: no mar.

E o barco sem vela. Fluindo no sopro: do bum. O bumbo que é vela. No peito que
assombra: o dum! O som que não vela. Revela o que é sopro: Ogum! Espada que é tela.
Que corta e revela: badum!

Batendo no corpo. Que é mente e é corpo: no mar. A deusa da água. Que cura tua
mágoa: o ar. E beija centelha. De fogo na veia: amar. Poema sem verso. Enrola no
lenço: sem ar.

E cria na lida. Da vida vertida. O tempo de lá. / Um canto que é tempo. O riso no vento.
Lembrança do lar.

Que é ser onde estar. Partir onde ficar. Ficar aonde vai. / O tempo se esvai. O novo que
fica. O barco que vai

Fluindo no mundo. No fluxo fundo. Que adentra pro sul. / Pro norte e pra linha. O vento
e a linha. No mar:

SUCURU!

[Paraíba: Dezembro do Ano do Barco de Dois Mil e Vinte e Dois]

Equipe Sucuru
*

* *
sobreviver é histeria

o que é mais feminino do que ser forçada a ficar sozinha

o que é mais feminino do que não ser capaz de se ver sozinha

o que é mais feminino do que ter medo de ficar sozinha

o que é mais feminino do que querer – e não conseguir – estar sozinha

o que é mais feminino do que sobreviver

o que é mais feminino do que não morrer de raiva

porque ensinar já virou rotina

porque cuidar já virou rotina

porque pedir desculpas já virou rotina

o que é mais feminino do que competir por uma vida que não quer

porque nasceu ou se descobriu mulher

porque querer ser mulher é fraqueza

porque não ser mulher, mas acharem que você parece mulher, é fraqueza

o que é mais feminino do que não ser suficientemente mulher

o que é mais feminino do que não ser suficiente

quando penso em quantas vezes mascarei a compulsão com o fumo

quando penso em quantas vezes cobri o seio para não fechar o punho

quando penso em quantos deles se sentaram ao meu lado sem assunto

eu me pergunto

o que é mais feminino do que o silêncio

o que é mais feminino do que gritar e te mandarem fazer silêncio


o que é mais feminino do que não pedir socorro e te perguntarem

mas por que é que você fez silêncio

mãos abanando

nunca toquei as linhas tênues do teu rosto

e as sinto lamber as linhas da minha palma

como se trocassem teorias, gracejos, lágrimas

como se algo nessa troca fosse mais que esboço

entre agonias, subentendidos e pressupostos

encaixei-o em fantasias tolas

como se alguma delas fosse mais que tosca

como se algo nelas fosse um pouco nosso

ouvi as tuas músicas de novo

nunca ouvi tua voz assim tão perto

como se algo aqui fosse concreto

como se nenhum fragmento estivesse solto

ah, meu bem, conte-me: quando, afinal, você vem?

quando, afinal, você vai embora?

quando compreendo que, sem demora,

eu já deveria ter fugido, também?

brinco aqui com esboços de rostos

brinco aqui com linhas tênues de pressupostos


as mesmas músicas velhas de novo

a mesma leveza do que não é nosso

ainda assim, meu bem, eu sufoco

por engrandecer o que não compreendo

por sentir o encontro na passagem do tempo

por sentir o tempo na passagem do encontro

qualquer dia, meu bem, isso passa

dessa vez, quando choro, é sem peso

não sinto medo do depois que desconheço

e o que conheço agora já me transpassa

bons tratos e mariposas

fugir da dor de cabeça três vezes em uma terça,

debruçar-se na mesa torta, odiar o formato da boca.

escrever em silêncio escondida do sol,

odiar o ministro, tentar ser mais boba.

fazer-me de sonsa cinco vezes até quinta,

ter preguiça de justificativas e de moscas.

ter a impressão de não ser tão sensível

por gostar de ser bons tratos e de mariposas.

impor uns limites aqui e acolá, nem todos muito justos,

mas há de se reconhecer a coragem do intento.


ainda não saber o que gosta de si, o que gosta da vida;

ser indecisa, ingênua e não saber abraçar o contentamento.

há um longo caminho até se parecer consigo mesmo;

há camadas impostas o bastante para que se viva abrindo janelas.

antes da segurança e da certeza, portanto,

esqueçamos um pouco o reconhecimento

e passemos a enxergar a beleza das frestas.

Nina Camargo tem 21 anos e é pedagoga, estudante de História da Arte e poeta. É


caiçara de Ilhabela, mas mora em São Paulo. Ama gatinhos, crianças, padarias e livros
de fantasia. Em seu Instagram, @iapoes, compartilha poemas inspirados em obras de
arte e experiências cotidianas.
Texto publicado originalmente na coletânea “Casa Gueto”, durante a FLIP 2022
______________________________________________________________________

Quem

Não se pode dizer que tenha sido um homem. Mulher tampouco e pouco importa.
Quem quer que tenha estado aqui se compôs em tudo o que pôde. As noites em claro
deixam seus rastos. Há pedaços amassados de papel em branco na lixeira. E escritos em
linhas tortas habitam cada canto desse quarto.
Tinha astigmatismo, isso é certo. Talvez, um pouco mais velho, já com
presbiopia, pois a letra, além de tosca, é maior onde a luz não dá bom vulto. Se bem
que, com lágrimas inundando o silêncio notivagante, o garrancho pode ter sido somente
um meio para o grito.
Não é possível saber quanto permaneceu, mas durou muito. Acho que por um
sempre, pois não há tempo que possa com as entrelinhas que ainda se hospedam nessas
brechas. Há vãos bastantes para elas nos rejuntes, entre os pisos, os tijolos e as peças do
gesso suportando um desvão de estrelas. Quem esteve nesse quarto já não contava com
a existência de um telhado.
Nas paredes, até mesmo o que é apenas risco soa poesia. Dessas que a gente não
lê nem vê, nem ouve, mas percebe. Em sua emoção, quis se mostrar assim, como
querem os poetas de passagem. Esses deixam suas paisagens em cada palavra escrita e
nos silêncios entre elas.
Lendo tudo, pode-se dizer que nove em dez canções de Caetano lhe causariam
lágrimas. E que Leminski já esteve em suas prateleiras bagunçando as delicadezas,
violando as verdades e provocando pequenas mortes.
Da cama, o verso da porta de saída parece um mapa. Cada réstia de palavras
aponta um caminho, embora se chegue a um só Norte, o das entranhas desse quem.
Tenho certeza de que seu mundo amanhecia noite todos os dias, mas sem as trevas da
melancolia, apenas para que pudesse vir de si uma nesga de luz.
O amor também se acomodou entre as quinas daqui. Há sinais de luta e manchas
de suor, sem um vestígio de sangue ou dor. E há saudades imensas transbordando
humores e inventando o texto. Será que morreu delas? Às vezes, se morre de uma
saudade só de saber que ela virá. E, por isso, se escrevem bilhetes de despedida.
Enquanto interpreto as personas do hóspede ido, descubro que não estamos sós.
Um mosquito repousa estático sobre uma palavra rabiscada. Tentei outrora entendê-la,
mas não sei se li planos ou li pianos. O inseto, creio, tenta sugá-la o sangue, porque não
pode lê-la, mas, sim, dela se embebedar.
E é nesse instante que percebo que não sei sequer quantos amanhãs passei aqui.
Tenho vivido ontens de outrem, como se o calendário já não me servisse. Eu não sou
páreo para o tempo, mas ora me convenço, derrotado, de que sucumbo docemente ao
que leio e que me lê.
Então, surge um dedo de sol pelo vão da janela. Eis o amanhecer, uma senda para
os poetas outonos e os escritos decíduos. Se enlouqueço? Me parece o destino para onde
me leva o que sopra das letras retribuídas a esse hotel. Mas não. Acho que esse quarto
se engendra em uma parte de mim. E, nele, só muitos estive, tantas vezes quantas,
sóbrio, tenha precisado me encontrar.

Bruno Ramalho, poeta, nasceu no Rio de Janeiro, em 1978. Escreveu livra-me, poesia
(Scortecci, 2019) e uns amores bemóis (Patuá, 2021), e aguarda, ainda para este ano, o
lançamento de o que cabe em quase nada ou quase isso, também pela casa Patuá. É
médico em Brasília.
3 POEMAS DE JOYCE MANSOUR – TRADUZIDOS POR
DANIEL RODAS

A poeta Joyce Mansour (Fonte: Wikipédia)

Conheci a poesia extraordinária de Joyce Mansour a partir da obra da poeta paraibana


Anna Apolinário – uma das vozes mais originais da lírica brasileira contemporânea,
cujo trabalho tive o prazer de pesquisar na universidade. Na poesia de Apolinário,
encontrei o eco de outra voz poética igualmente potente, selvática e feminina, na qual o
surrealismo se insurge enquanto força transbordante e dionisíaca, capaz de romper as
amarras da razão e da dominância sexual/patriarcal.

Joyce Mansour é essa voz. Nascida em Bowden, Inglaterra, em 25 de Julho de 1928 –


com o nome de batismo Joyce Patricia Adés – e falecida em Paris, França, em 27 de
agosto de 1986, Mansour viveu boa parte de sua vida em trânsito: seus pais pertenciam
à colônia britânica do Cairo, estudou na Inglaterra e na Suíça e acabou por se fixar no
Egito, onde se tornou atleta. Dividindo residência entre o Cairo e Paris – após a morte
do primeiro marido e o segundo casamento – acabou por assimilar em sua poética muito
das duas culturas: da árabe, certo tom ―misterioso‖ e narrativo, que remete ao
simbolismo estético das Mil e uma noites; da francesa, a francofonia como expressão
linguística, assim como a forte influência do Surrealismo.

Nas décadas de 1940 e 1950, aproxima-se do movimento surrealista, capitaneado à


época por André Breton, a quem conhece pessoalmente e causa profunda impressão. Em
1953, publica sua primeira coletânea, Cris (Gritos), a qual se segue outras publicações
em poesia e prosa, cobrindo um período de mais de trinta anos de produção. Assumindo
o onirismo estético e a virulência insurgente do surrealismo, Joyce Mansour acaba por
criar uma dicção própria, que comunga a imagética selvagem e o fluxo de ideias à
rebeldia transgressora de um feminino revolto, avesso a qualquer amarra.

Tais aspectos se fazem presentes nos três poemas a seguir, dos quais os dois primeiros,
Chant Arabe e Bleu comme le desert, estão entre os mais conhecidos da autora. Em
Chant Arabe – aqui traduzido como ―Canto Árabe‖ – Mansour estabelece uma teia de
imagens aparentemente desconexas, mas que se atrelam a um contexto simbólico que
remete ao momento da morte e à ambiguidade da ―travessia‖, simbolizada pela tensão
do ―l‘oeil bascule‖ – o que ―olho‖ que balança e tenciona as incertezas momentâneas. O
título parece remeter à força de uma canção tangida ao violão, uma vibração ou
espasmo que transpassa a experiência ao mesmo tempo transcendente e aterradora da
vida-morte.

No segundo poema, Bleu comme le desert (Azul como o deserto), temos o retrato
poético da solidão, transcrita aqui através de imagens que remetem à imensidão, ao
transbordamento e à confluência de simbolismos tão potentes quanto indefiníveis,
como se o eu-lírico buscasse captar as profundezas do insondável. Já o terceiro poema,
Le téléphone sonne (O telefone soa), breve e conciso, traz a apreensão de um instante,
de um impulso: o som do telefone que desperta o desejo sexual, numa lembrança súbita
do/da amante. Nos três poemas, portanto, podemos perceber um desejo de ―abarcar‖ a
complexidade fluida do momento, não para ―prendê-lo‖, mas para expandi-lo, como se
o eu-lírico se fundisse à imagem-sensação, transbordando a si e ao próprio
transbordamento: uma ambição claramente dionisíaca, surrealista.

Na tradução dos presentes poemas, busquei manter, no geral, os sentidos originais dos
textos, ao mesmo tempo em que me permiti certas inserções – sutis – de modo a dar aos
poemas uma cadência rítmica que facilite a leitura, sobretudo em voz alta. Com isso,
pretendi recriar a poesia de Mansour como uma espécie de encantamento, como uma
―música‖ imagético-sensorial que, ao ser lida, vista e ouvida, invade os sentidos e
transborda todas as possibilidades.

A seguir, os três poemas em versão bilíngue, traduzidos do original em francês:

Canto Árabe

O olho balança na noite no momento da morte


Ó a branca fulgurância louca das asas que não conhecemos
Algodões de silêncio roçam o braço sobre o travesseiro
E abrem o olho redondo à noite do insondável
O frio tecelão de tuberosa pateia sobre a minha pupila
E vejo escorrer a cortina móvel do horizonte que rutila
[e que se agita

Como uma pele trêmula sobre um corpo que se esvai


O marulho abafado do meu abdômen se congela de temor insano
Espirro mas não me movo
E o olho que claustra meus sonhos que nada e que pisca
O olho invade as minhas noites
A noite a noite a tempestade
O olho ofuscante das florações estranhas
O olho doente de imagens.

Chant Arabe

L‘œil bascule dans la nuit au moment du trépas


O la blanche fulgurance folie des ailes qu‘on ne connaît pas
Ouatées de silence elles frôlent le bras sur l‘oreiller
Et ouvrent l‘œil rond à la nuit de l‘impalpable
Le froid tisseur de tubéreuse trépigne sur ma pupille
Je vois glisser la tenture mobile de l‘horizon qui rutile
[et qui s‘agite

Telle une peau frémissante sur un corps qui se dérobe


La houle feutrée de mon abdomen se fige de peur démente
J‘éternue mais je ne bouge pas
Et l‘œil qui cloître mes rêves qui nage et qui clignote
L‘œil envahit mes nuits
La nuit la nuit l‘orage
L‘œil éblouissant aux floraisons étranges
L‘œil malade d‘images.

*
Azul como o Deserto

Felizes os solitários.
Aqueles que semeiam o céu na areia ávida
Aqueles que procuram a vida sob as saias do vento
Aqueles que correm arfantes atrás de um sonho evaporado.
Porque eles são o sal da terra.
Felizes os vigias sobre o oceano do deserto
Aqueles que perseguem a raposa para além da miragem.
O sol alado perde suas plumas no horizonte.
O verão eterno ri-se da úmida tumba.
E se um grande grito ressoa nas rochas acamadas
Ninguém ouve ninguém.
O deserto uiva sempre sob um céu impávido.
O olho fixo paira sozinho
Como águia ao nascer do dia.
A morte engole o orvalho.
A serpente sufoca o rato.
O nômade em sua tenda escuta o chiar do tempo.
Sobre o cascalho da insônia
Tudo está à espera de uma palavra anunciada
Em outro lugar.

Bleu Comme le Desert

Heureux les solitaires


Ceux qui sèment le ciel dans le sable avide
Ceux qui cherchent le vivant sous les jupes du vent
Ceux qui courent haletants après un rêve évaporé
Car ils sont le sel de la terre
Heureuses les vigies sur l'océan du désert
Celles qui poursuivent le fennec au-delà du mirage
Le soleil ailé perd ses plumes à l'horizon
L'éternel été rit de la tombe humide
Et si un grand cri résonne dans les rocs alités
Personne ne l'entend personne
Le désert hurle toujours sous un ciel impavide
L'œil fixe plane seul
Comme l'aigle au point du jour
La mort avale la rosée
Le serpent étouffe le rat
Le nomade sous sa tente écoute crisser le temps
Sur le gravier de l'insomnie
Tout est là en attente d'un mot déjà énoncé
Ailleurs.

O Telefone Soa

O telefone soa
E teu sexo responde.
Tua voz rouca de cantor
Faz tremer meus pensamentos
E o ovo duro do meu coração
Frita.

Le Téléphone Sonne

Le téléphone sonne
Et ton sexe répond.
Sa voix rauque de chanteur
Fait frémir mes ennuis
Et l‘œuf dur qu‘est mon cœur
Frit.
Daniel Rodas (Teixeira-PB / 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Graduado em Letras
(UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata,
2021) e do livro Umbuama (Editora Urutau, 2021). Integrou a antologia Poesia fora do
eixo (Toma Aí Um Poema, 2022). Tem textos publicados em vários meios eletrônicos
nacionais e internacionais, a exemplo das revistas Mallarmargens, Ruído Manifesto,
Toró, Subversa, Kuruma´tá, Entreverbo, Trajanos, Aboio, Literarte (Argentina) e
Granuja (México). Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro-PB,
onde colabora como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da
vida.
Livraria

Caminha pelas ruas do bairro


buscando por uma livraria.

As ruas acabam, o bairro finda


e as livrarias desapareceram
em espaço e tempo.

É o produto não natural


mais vital que existe.

Tão vivo e com frutas


como árvores.

Luminoso e vital
como o Sol.

Íntegro e complexo
como mamífero.

Quando livrarias desaparecem


algo finda em um povo.

Pesquisa

Pesquisa confirma:

se lê
se ama
se vive
menos.

Estranhamente
lojas de celulares
estão sempre lotadas.

O que quererá
nos dizer
isso?

Luciano Lanzillotti é Doutor de Literatura Brasileira (UFRJ) autor de Geometria do


Acaso (Dialética) e Fotografia de um minério (Folheando).
Vieste
Com encantos, vieste, com beijos silvestres
Colhidos pra mim
Vieste
Com a Natureza, com as mãos camponesas
Plantadas em mim

(Lenine)

Se era para tirar depois, por que se apresentara feito amoras frescas em ‗beijos
silvestres colhidos pra mim‘? Se era para sair de cena, por que se ofertara como página
literária plena de versos de amor sem fim? Se era para se ausentar, por que se oferecia
feito romã fendida de ‗vermelho-amor‘ em estação de colheita farta?
Se era para ausentar-se, porque se anunciava como promessas de amor em futuro
próximo? Ela acreditara no verbo. Apaixonara-se pelo verbo colhido como beijos
silvestres há tempo resguardados. Realizou sinapses outras. Desejou novas estações. E o
outono a anunciar sempre a despedida...De si, dos outros dentro de si. Daquela pessoa.
E ainda da meninazinha que viria envolvida em prenúncios outros. Ela havia ofertado
amorosamente a morada primeira para a pequena. Que ingenuidade. Havia sido ela
mesma com todos os defeitos e as muitas ternurinhas do viver, ainda que no depois ela
mesma tenha sido um rio seco de si; uma envergadura contida de si; uma promessa tola
de si; um jeito frouxo de ser. Sempre e para sempre se doendo e condoendo pelo
próximo.
Ela queria ter podido ser solo fértil para acolher a semeadura do amor. Ela
ambicionou abrigar o amor como morangos em creme, feito cajuzinhos de mãe em
festas de aniversário salpicados pelo amor de avó como bordados sem avesso nos
bastidores do viver. Mas, eis que ela plantou amor solamente. E solamente não há de
dar frutos e vingar. Vingar-se?
Teceu o bastidor sem a promessa do outro, sem a esperança do outro. Ela era a
linha tecendo o linho em histórias de amor com framboesas frescas colhidas de véspera.
Ela seria sempre rio seco de si, embora ‗carbonara‘ o viver com floreiras na janela, com
ciranda, com maritacas em finais de tarde nos pés de acerola florido. Agora como dar o
ponto atrás. E, no depois, como dar o ponto atrás duplo? Ela só sabia casear amor. Ela
só teria aprendido a pespontar o viver com todos os tons do amor – lichia de ser.
Fabiana Rodrigues Carrijo (Catalão/GO Doutora em Estudos Linguísticos pela
Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é professora no Ensino Superior, na
FAE (Faculdade de Educação) na UFG (Universidade Federal de Goiás/UFCAT – em
transição). É autora de diversos capítulos e artigos científicos na área de
letras/linguística espalhados em revistas e livros especializados.Recentemente prefaciou
três livros Quebra-cabeça essencial, de Miriam Nassif; (Des)caso com a poesia:
inquietações, de Maurício Gomes e Espontânea Clausura, de Elaine Rosa Teixeira,
sendo os dois últimos lançados pela Editora Scortecci. No momento, encontra-se
envolvida com a editoração de seus dois livros de crônicas denominados: Contratos de
amor lacerados e Vento na Roseira. E-mail para contato: facarrijo@gmail.com
Digitalizando a Infância

Seus olhos doces, meigos e precisos.

Gestos sutis de uma infância imaculada, ou talvez,

Perdida nas esferas da existência.

O aprendizado pela primeira vez.

Pela primeira vez, tudo é novo, curioso,

Cobiçado e sadio.

As brincadeiras, os jogos, os filmes, os canais

Das plataformas digitais, permeiam essa era, essa

Geração, em que o ócio torna-se infundido.

Basta deslizar o dedo na tela e logo de imediato,

Aparece outro vídeo, outro reels.

A paciência diminui, assim, como a tolerância de espera.

O que estamos gerando para o futuro?

Adultos frenéticos e frustrados, à beira,

De sua própria solidão enfática.

A Alma

A alma perguntou para o corpo se


Estava tudo bem.

O corpo orgulhoso, respondeu prontamente:

Claro, que sim! A alma diante de tanto entusiasmo

Ficou à deriva de sua solidão!

Afinal, não queria desanimar o corpo, que estava tão sadio e

Tão alegre. Na tentativa de manter o ânimo corporal,

A alma foi repousar-se à procura de descanso, de aconchego.

Até que começou a perturbar a mente.

Esta, também muito vaidosa, logo de cara, ―deu um chega pra lá‖,

Na alma, que à deriva de si mesma, pôs-se a chorar.

Depois, de um tempo cansada e aflita, cansou também o corpo

E causou fadiga na mente que a evitava. Até que os três:

A alma, o corpo e a mente. Decidiram repousar,

Encontraram ali, no menino, que estava passando, brincando,

Distraído e sem compromisso, uma distração para a mente.

A água de coco, natural e bem gelada, refrigerou o corpo. Com o corpo

Saciado e a mente em estado de despedida ou distração, a alma

Finalmente, pode se repousar, nas águas cálidas da represa

Que adornava a cidade. Assim a alma se despiu de todas as suas aflições

Daquele momento e passou a apreciar a vida e o instante que a concretizava.


*

Era uma vez...

Era uma vez, um mundo, em que o faz de conta,

Cessou-se ou alterou-se.

O bosque ou a floresta habita na deep web.

A bruxa, possui, muitos filtros.

O lobo, quase é mal identificado.

O rei, já perdeu seu espaço.

E a Cinderela, achou seu sapato,

Pois o ―Canal Super Hilário‖, ficou com pena,

E compartilhou o inesperado achado, até então, perdido.

Era uma vez, as histórias dos irmãos Grimm,

Que adaptou-se, alterou-se, reencenou-se.

Pois, o lobo, ainda transita, nas suas mais diversas florestas.

A Gula

Após me saciar com a mesa ainda cheia,


Os copos transbordantes, ainda assim,
Quero a sobremesa.

O prato cheio, novamente, sendo repetido.


A sobremesa transbordando no utensílio.
O botão de minha vestimenta implorando para ser expandido.

O limão ou o vinagre, para cortar o mal estar,


O excesso de gordura borbulhante.
Os remédios farmacêuticos ainda a fazerem efeito.

Onde a fome se alastra, aqui não se tem lugar,


Não se tem pressa. Apenas fartura, descanso,
Ócio e mal estar. Mais tarde como mais um pouquinho.

Anil

Sua imensidão está no céu.

Sua imensidão está no mar.

A vida numa perspectiva peculiar.

Azul celeste, azul de suas asas.

Voa e voa sem parar.

Unindo-se a mim e misturando-se aos demais.

A noite de trevas, com seu azul a balbuciar,

Enfeitado de pontos brancos e luminosos.

Traz sossego à minh‘ alma.

Traz beleza no seu olhar.

Azul celeste, azul de suas asas.

Voa e voa sem parar.


Unindo-se a mim e misturando-se aos demais.

Licença Poética

Ao prelúdio deste dia absorto,

as palavras se escondem num calabouço

escuro, úmido e vazio.

Às vezes, ficam à beira de um naufrágio,

até mesmo, no convés de um navio

maltrapilho, esgotado e soterrado.

A inspiração titubeia, ora definitiva, ora incerta,

o medo de que esta nunca mais volte, pois habituara-se

com sua companhia passageira e precisa.

Dentro do baú em meio a esperança,

as palavras se misturam e se colidem na tentativa

de um verso, de uma estrofe, de uma poema.

Eis que nasce o poeta!

O Corpo

Jaz ali o corpo, o objeto de despedida.


O corpo se despede, dos mais íntimos e dos

Mais queridos.

Ali, no caixão, jaz o corpo, que viajará,

Muitas e muitas horas, para encontrar o seu destino.

Para que a terra úmida ou seca lhe cubra por completo.

Enquanto o corpo, ficará ali, retido em seu mistério, ocorrerá a

Sua putrefação. Até que reste apenas os ossos, o esqueleto, por

Completo e assim a matéria se esvai.

Passado um tempo, só me resta: os ossos.

E o restante da matéria? Se esvai com o tempo.

Procurei o meu corpo, mas não o encontrei. E agora?

Géssica Menino, mãe do Christopher, poeta e escritora. Autora de contos e de inúmeros


poemas publicados em revistas e pela Editora ―Toma Aí Um Poema‖, assim como,
autora do livro de contos As Laranjas de Alice Mazela, vencedor na Categoria ―Capa‖
do Primeiro Prêmio Candango de Literatura. Autora de vários poemas da Cemana de 22
(Revista Literária em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna),
podendo ser acessada em: https://www.cemanade22.com/.
SOBRE TUA CABEÇA PESA O VÉU DAS AMARGURAS

Foi um bebum chamado Marlívio, cujo apelido era Chechéco (por uma razão que não
vem ao caso) quem pintou o nome com uma tinta que de vermelha ficou laranja, na
fachada da pensão. Núria, a proprietária do muquifo, a exemplo do marqueteiro local
mencionado tinha poucas letras, o que a fez acreditar piamente que ―Xanadu‖ se
escrevia com ―ch‖ e acento agudo no final da palavra.

– Bom – pensou em sua simplicidade bovina ao descobrir a gafe – se não cobra


imposto nem faz mal à saúde, deixa do jeito que está.

Quando inaugurou o negócio lá pelos idos de 1993 ela jamais imaginaria que iriam se
passar mais vinte anos para que a história registrada aqui ocorresse. A pensão Chanadú
ficava perto da rodoviária daquela cidade mediana em Minas Gerais, onde rapidamente
se consagrou como antro de rameiras, viciados, invejosos e todo o tipo de gente
excluída que se possa conceber.

Haviam dez quartos por ali, onde o banheiro comunitário se transformara num lar eterno
dos membros da família psychodidae. Nesse oceano de tempo percorrido, o local havia
sido palco para uma série de episódios insólitos: desde o parto de uma fugitiva vítima de
violência doméstica até os encontros sexuais de um padre com uma prostituta velha,
pois Núria concebia que toda forma de amor era digna de sua alcovitagem. Até um
duelo de facas aconteceu por ali, fato que merece um maior detalhamento dada a
dramaticidade sheakespeariana do caso: fazia um calor dos infernos naquela tarde, o
ventilador de duas pás girando em câmera lenta no teto servia de carrossel para as
moscas e nada acontecia para reduzir o suor que despencava da testa de Núria que
estava com o bucho encostado na mesa da recepção improvisada.
– Meus respeito minha senhora, quanto é a durmida? – perguntou um
homem alto, forte, moreno, com sotaque de quem vinha do norte.
– É vinte reais a pernoite meu senhor – respondeu descofiada, passando
uma lixa nos cascos.
– Pois eu vou ficar com um por três noites. Pago adiantado. – arrematou
colocando seu dinheiro contado no balcão.
– É a segunda porta à direita no corredor.

Depois de preencher com dificuldade uma ficha de registro manchada de gordura o


nortista fez uma reverência com o chapéu e se dirigiu ao local indicado.
– Caboclo esquisito; tem a morte nos olhos... – mencionou, ausentes os
ouvintes.

Foi coisa de vinte minutos depois um outro homem, clonando o sotaque do primeiro, só
que mais jovem, deu com a dona da pensão:
– Tarde minha senhora.
– Boa tarde moço.
– Só pra dar fim na minha curiosidade: um homem alto, moreno, parrudo
se hospedou aqui, foi?
– Por que o menino quer saber?
– Assunto particular – disse discreto, oferecendo uma nota de cem à
anfitriã.
– Tá sim – disse capturando o dinheiro.
– E tem algum quarto aí que a senhora pode me oferecer?
– Tem sim seu moço, são vinte reais a pernoite.
– Pois eu vou ficar com um. Pago adiantado. – arrematou, somando mais
sessenta à conta de Núria.
– Só preencher a ficha. Seu quarto é o terceiro à direita no corredor.

Aquela situação havia ficado bem esquisita, mas o montante que entrava fazia tudo
caber na normalidade daquela estalajadeira miserável. No outro dia, o homem mais
velho saiu para cuidar de sua vida e quando voltou, deu de cara com o moço curioso que
gritou ameaçador:
– Sabia que ia lhe encontrar, filho de uma égua! – exclamou já
empunhando uma enorme peixeira.
– Pois fique sabendo que não fujo de menino não, fuleragem, vem que o
seu tá guardado! – respondeu com uma faca maior, ainda suja de sangue.

Tudo se deu tão rápido que não deu pra precisar quem atacou primeiro. Os dois se
engalfinharam de forma animalesca, numa dança de cortes e gemidos que deixou o chão
rubro.

Xingamentos entremeavam os golpes e ambos vociferavam ofegantes naquele ímpeto de


destruição mútua. Tentaram chamar por ajuda, mas ninguém tinha peito de apartar dois
animais ferozes como aqueles, ainda mais depois de terem sentido o cheiro da morte um
do outro. Eram dois tubaões assassinos num aquário. O relógio acusou quase uma hora
de engalfinhamento quando en certo momento um olhou para o outro, ambos muito
feridos e cansados. O mais jovem se ajoelhou, jogou a peixeira no chão juntando as
mãos como se estivesse em oração dizendo alto para todo mundo ouvir:
– Eu não lhe traí Dracênio. Você sempre foi o amor da minha vida, o
Anelésio é meu amigo... eu não sei viver sem você homem! – exclamou,
aos prantos, diante da platéia que se acumulava.

Visivelmente emocionado o gigante se aproximou, abandonando a faca e se


aproximando do rapaz:
– Eu também não sei viver sem você, meu menino... eu também não sei...
– Você me perdoa?
– Perdoar de quê? Não tem o que perdoar. Eu te amo...

Quando o beijo aconteceu teve gente que aplaudiu, teve gente que assoviou, teve gente
que protestou. Para Núria foi lindo aquele encontro de sangue e de amor no meio da sua
pensão; antes dois homens se beijando que se matando. Depois daquele capítulo
estrambótico os dois passaram mais de semana em lua de mel, trocando afagos públicos
e juras de amor, para depois viver aquela história que só dos dois entendiam longe dali.

Contadas todas essas coisas já dá para se ter uma noção que a pensão Chanadú era um
local onde coisas inesperadas aconteciam, era uma espécie de ―Triângulo das
Bermudas‖ caipira, um vórtice onde se misturava até água com óleo se duvidassem.
Mas calma, calma... aquele lugar ainda seria palco de dramas ainda mais colossais
porque, só para usar uma expressão popular digna: Em curva de rio se ajunta de um
tudo.

***

A pensão Chanadú não vivia sua melhor fase. Das dez acomodações oferecidas, apenas
quatro estavam ocupadas, sendo que uma delas não entrava na conta pois tinha um
caráter, digamos, assistencial. Explico: um dos quartos era ocupado pela figura mais
icônica do lugar; Dona Líria, a velha silenciosa que estava sempre trajando um vestido
preto cuja gola cobria todo o pescoço. Tinha os cabelos longos como marca registrada,
presos num coque por grampos estratégicamente arranjados, formando uma segunda
cabeça. As unhas sem esmalte fazendo pontas como as de uma coruja não
representavam ameaça, visto que passava grande parte do seu dia – e às vezes, das suas
noites – sentadas numa cadeira de balanço na sala de TV, imóvel. Dona Líria era muda,
contudo, seu olhar de jabuticaba havia aconselhado Núria por diversas vezes,
apontando-lhe o melhor caminho a seguir. Certo é que aquela senhora estava há um
sem-número de anos morando por ali, aos cuidados da proprietária da pensão por conta
de uma dívida moral. Dona Líria acolhera-a quando criança, salvando-lhe da fome
porque seus pais haviam sumido no mundo e deixado a coitadinha na rua da amargura.
A voz lhe sumiu de desgosto pela perda do esposo amado num acidente de trabalho,
quando o infeliz despencou de um andaime. Aquela senhora ignorara a própria dor para
servir de terra firme abaixo de seus pés, ela faria de tudo para devolver todo o bem que
recebera.

Fora a mãe postiça, existia Zepelino ocupando outro quarto. Esse era um imprestável.
Havia sido colocado para fora de casa depois de viver anos às custas da esposa,
gastando o que tinha com o carteado e as putas. A mulher meteu-lhe uns chifres bem
merecidos, para depois tocá-lo de casa.

Talvez seja até exagero dizer que ele morava ali. Na realidade ele passava em seu quarto
quando lembrava do endereço, seu verdadeiro endereço ficava nos bares frequentados
pelos exus; sua estada na pensão era apenas pro forma. De todo esse mar de merda eis
que se deu um encontro cuja poesia estava lá para expulsar o oxigênio pesado de
incongruências que compunha o ambiente da hospedaria.

Elzir era um moço com seus vinte anos, estudante de medicina, sonhador, bonito.
Estava na cidade porque havia passado no vestibular e como o dinheiro escasseava, foi
ao encontro de um lugar que pudesse acolhê-lo com sua parca capacidade de
pagamento. Estava hospedado há uma semana na pensão onde desfilava sua timidez
patente, pois economizava até nos cumprimentos. Era impossível ver Elzir sem seus
livros velhos e montanhas de material xerocopiado a tiracolo, sempre atrasado. Não
criava problemas para ninguém, não reclamava de nada, só vivia sua vida minúscula
deixando a dos outros em paz. Ignorante ainda, desconhecia o fato de que sua própria
tranquilidade estava prestes a escorrer pelo ralo.

Ocorre que, numa quarta-feira como outra qualquer Gélia apareceu na pensão. A moça
era daquelas que os homens gostavam de ficar admirando na rua: uma cinturinha
estreita onde mal cabiam os órgãos, as cadeiras de fêmea ―fazedora‖ de filhos, o rosto
de boneca. Quando chegou, Núria achou até que se tratava de uma prostituta, no
entanto, ao perceber numa segunda análise o vocabulário da menina, descartou a
possibilidade. Gélia era vendedora, representante de uma firma de embalagens. Ficava
alguns dias nas cidades que visitava para ir ao encontro dos clientes e depois partia para
a cidade seguinte à procura de novas vendas, com seu Audi caindo aos pedaços.

A jovem chegou conquistando Núria para toda vida, pois era dada a risadas e isso
agradou bastante a mulher cansada de sofrimentos. No primeiro dia, seguindo o
exemplo que seus pais lhe ensinaram, deu com Dona Líria sentada em seu trono e
disparou:
– Bom dia minha senhora. Meu nome é Gélia.

A velha ofereceu-lhe uma expressão impassível, um olhar de noite onde os corvos


crocitavam. Num gesto lento, típico dos que já percorreram boa parte de sua caminhada
entre os vivos, ela retirou um grampo do coque cujos cabelos despencaram em cascata,
quase até o chão.
– Cabelos lindos a senhora tem! Posso tocar? – perguntou, tentando fazer
daquele encontro algo menos bizarro.

Sem mencionar palavra, Dona Líria apenas fez um sinal de negativo com a cabeça.
– Tudo bem então, até mais. – disse assustada, fugindo em direção ao
quarto.

***

Considerando as condições normais de temperatura e pressão, seria evidente que Elzir e


Gélia se apaixonariam. Assim se deu. Foi questão de segundos respirando o mesmo ar
para que fosse selado um amor platônico digno daqueles livros antigos, de capa dura.
Entretanto, um problema nasceu junto do tal do amor: ambos eram muito tímidos no
que se referia às táticas de guerra necessárias aos relacionamentos, o que arrastaria o
ritual de enamoramento até uma data indefinida.

Depois do primeiro olhar que cruzaram, Elzir ao passar por Dona Líria teve de tomar
cuidado, pois os cabelos da senhorinha – agora sem o coque tradicional – estavam
deitados ao solo e ele por ser educado, não quis pisar em cima. Saiu para rua, foi até a
faculdade onde passou o dia a sanduíche de salsicha vagabunda para retornar às seis
para a estalagem. Ao adentrar à recepção, encontrou com a pretendente. Dessa vez
conseguiu ao menos cumprimentar uma Gélia enrubescida, que devolveu o ―boa noite‖
observando aquele moço bonito sair de perto dela. Depois desse encontro que lhe
acelerou o coração, teve de sair dali pisando nos cabelos de Dona Líria que a essa hora
já chegavam até as barras do balcão sujo de Núria.

***

Havia uma cozinha para preparar refeições na pensão Chanadú. Uma geladeira
Prosdocimo azul bastante barulhenta e equilibrada num tijolo enferrujava num canto,
implorando por uma aposentadoria digna. A pia com uma torneira de gotejamento
infinito tinha uma cortina para esconder o que havia por baixo, onde talvez vivessem
monstros hediondos que seria melhor nem ver mesmo. Um armário velho, faltando
portas ficava vigiando tudo, entulhado de copos de requeijão reaproveitados e potes de
sorvetes sem tampa.
– Bom dia... – cumprimentou um Elzir com rosto inchado a uma Gélia
sentada.
– Bom dia Elzir. – respondeu, denunciando que havia investigado por seu
nome.

O rapaz sem saber o que fazer acomodou-se, não sem antes desvencilhar os pés da
cadeira dos cabelos de Dona Líria, esparramados por toda a cozinha.

Silêncio tumular.

Depois de quase dez minutos, a moça se pronunciou:


– Li ontem que a Terra pesa mais de cinco vírgula nove sextilhões de
toneladas...

O rapaz tomou um gole de café meio que assustado. Balbuciou algo indecifrável
deixando passar mais dez minutos. Num ato heróico de coragem, mencionou:
– Dizem que o exército polonês alistou um urso como soldado na segunda
guerra mundial...
– Hum... – foi a resposta de Gélia ainda sem entender aquele efeito que
Elzir causava nela, em que as palavras saiam correndo da sua boca. Justo
ela que era tão eloquente! Talvez fosse outro sinal de que ali estava o
amor verdadeiro.

Ficaram mais alguns minutos contemplando a mesa esburacada, a briga das cascas de
pão jogadas aleatóriamente na superfície porca, cheia de nóduas sabe-se lá de quê. Foi
quando Elzir resolveu tirar as teias da conversa:
– Você trabalha com vendas?
– Sim.
– É bem quieta para quem vende as coisas.
– E você é bem quieto para quem estuda as coisas...
– Concordo – disse, desconcertado.

Mais alguns minutos de silêncio se passaram. Vez de Gélia:


– Você estuda o quê? - perguntou, como se já não soubesse.
– Medicina.

Vácuo. Tempos depois, Elzir desferiu o golpe mortal:


– A gente podia sair pra fazer alguma coisa, o que acha? - perguntou,
ignorando de onde havia nascido aquela coragem.
– Sim... – retrucou Gélia se escondendo por debaixo de sua franja.
– Cinema?
– Pode ser.
– Hoje?
– Hoje.
– Oito horas?
– Perfeito.
– Combinado.

Ele saiu dali com certa dificuldade, pois os cabelos de Dona Líria já batiam a altura de
suas canelas, contudo, a felicidade era tanta que nem se importou. À noite ele iria ver no
que dava aquela atração de altíssima voltagem hormonal e baixíssima criatividade
dialógica.

***

Desnecessário mencionar que o acanhamento dos dois ditou o roteiro daquele encontro.
Elzir resolveu levar Gélia para assistir ―O Grande Gatsby‖. Logo nos primeiros vinte
minutos de filme ele percebeu a garota sonolenta, entediada com aquela ―história chata‖
segundo sua pouquíssima inclinação à intelectualidade. O que lhe restou foi torcer para
que a película chegasse o mais brevemente ao fim, livrando-os daquela situação
desconfortável em que se meteram. Depois do filme sairam caminhando pois o ar estava
fresco, talvez uma nova lufada de oxigênio desse uma pedalada mais forte para
equilibrar de vez aquela bicicleta sentimental que não engrenava nem a fórceps.
Comunicaram-se em monossílabos, até que Gélia cortou Elzir com essa:
– Sabe, eu não gosto de crente.
– Como assim? Não gosta de crente? - perguntou assustado.
– Evangélico, esse povo que vive lendo a bíblia, tentando dar lição de
moral... pastor malandro que toma dinheiro das pessoas... não gosto...

O rapaz com bastante dificuldade evitou uma resposta automática. Ele sempre deixava
um pouco de vapor sair da panela para impedir a explosão. No entanto, aquela menina
merecia uma lição porque ele não poderia permitir que uma ofensa daquelas passasse in
albis:
– Eu sou evangélico, minha família é evangélica. Eu nunca tentei converter
ninguém. Aliás, meu pastor é a pessoa mais honesta que conheço. Nunca
tentou me extorquir, pelo contrário, se estou aqui hoje estudando foi por
conta de sua ajuda.

Um mal estar se instalou entre os dois, como se um búfalo houvesse entrado na sala de
estar. Caminharam longamente sem trocar mais palavras até chegarem à pensão. Gélia
ainda tentou rascunhar um cumprimento antes de cada um tomar seu rumo, mas deu
n'água. Frustrado, Elzir empurrava a enorme massa de cabelos de Dona Líria que
bloqueava a porta de entrada do seu quarto. Enquanto fazia força, pensou o quanto o
mundo era um lugar de merda, onde um pobre coitado desiludido com as mulheres não
podia nem chegar com facilidade à própria cama para chorar suas mágoas.

***

A noite foi difícil para os dois. Não obstante a atração irresistível que sentiam um pelo
outro, uma frase mal colocada havia edificado um muro difícil de transpor. Ambos
ficaram a noite inteira rolando na cama, perturbados pelos pensamentos e pela sensação
de sufocamento que os cabelos da velha proporcionavam ao aumentar o volume,
causando uma claustrofobia insuportável.

Depois de muita meditação, o casal percebeu que o episódio era insuficiente para
resultar numa separação, ou por outra, para frustrar a inauguração daquele
relacionamento ainda fresco.

Diferenças filosóficas não era monopólio dos dois, o amor é o que faz tudo ficar
administrável – foi o que pensaram em conjunto. Dessa forma, com bastante dificuldade
Gélia abriu caminho por entre as barreiras de cabelos para calçar a cara e pedir
desculpas a um quase-namorado pronto para perdoá-la e esquecer o mal entendido.

Após terminar a maquiagem ela tentou ir ao encontro de Elzir, mas não conseguia
encontrar a porta de saída do quarto naquele labirinto de cabelos. Em seus aposentos,
por sua vez, o amado se perdia em angústias ao constatar que sua força era insuficiente
para transpor aquele mar de fios brancos que chegava assustadoramente ao teto.

Ambos lutaram o tanto que puderam. Gélia foi completamente desmontada de sua
elegância ao lutar contra aquela espécie de horda sufocante, e Elzir, por sua vez, viu
litros de suor minar dele, que em contato de tantos cabelos causavam uma urticária
enlouquecedora.
Ao perceber que a luta era inútil, aquele Romeu embaraçado na escuridão completa
nascida de Dona Líria gritou um ―eu te amo‖ necessário, porém, tardio. Os cabelos já
haviam invadido tudo – inclusive a amada, preenchendo seus pulmões, estômago e
qualquer outro espaço possível em que aqueles tentáculos pudessem se acomodar.

Dessa forma, o mundo não pôde assistir ao amor daqueles dois jovens queimar o rosto
no sol. Naquela noite macabra que pousou na pensão Chanadú não existiam mais Núria
lixando as unhas, Dona Líria do coque, peleja de facas terminadas com beijos ou
mesmo aquela geladeira Prosdocimo barulhenta. A última serventia do local seria fazer
as vezes de túmulo para um amor puro que jamais chegaria às vias de fato.

Tragédias à parte, depois de tanto tempo na rua Zepelino lembrou da pensão Chanadú
pois lá teria um chuveiro para arrancar-lhe as nhacas dos bares. Ao contemplar a
edificação completamente tomada pelos cabelos de Dona Líria, não lhe restou outra
alternativa fora soltar essa, ainda abraçado com uma garrafa de cachaça:

– Puta que pariu... Como é que eu vou chegar no chuveiro agora?!...

Benício Gon é o pseudônimo de Luís Augusto Servo, um paulistano nascido em 1971 e


radicado em Minas Gerais há quase quarenta anos. Foi advogado, ocasião em que
escreveu artigos publicados em sites de renome ligados às ciências jurídicas. Hoje atua
como escritor, revisor de textos e crítico literário; embora se considere apenas um
―enfileirador de palavras pretensioso‖. Em sua extensa carreira na literatura, teve seus
contos publicados em mais de 12 antologias, assim como diversos textos de sua autoria
vieram à luz através de veículos ligados à cultura e educação. Foi vencedor dos
concursos literários ―Cem Anos Da Abolição‖, ―Me Conte Um Conto‖ e recebeu
menção honrosa no 19º Prêmio Literário Paulo Setúbal. Suas influências nas letras vão
de Dostoiévski, Tolstói, Virginia Woof, Júlio Cortázar, Murilo Rubião, Franz Kafka,
Augusto dos Anjos até Dias Gomes, Stephen King e Alan Moore.
(sem título)

Talvez a verdadeira redenção


sejam esses dedos que se estendem
do outro lado da ponte
de uma página em branco.

Uma tela.
Buscamos com candura
e um quê de uma aceitação agridoce
nos tocar.

Esse toque, tão ínfimo e breve,


que nada pede ou explica,
sabe desfazer-se
no branco vão dos segundos.

Esse ínfimo toque:


talvez o verdadeiro roteiro
da peregrinação incessante.

Nele, uma revelação


surgida no escuro útero do mundo.

Desço a Carlos Gomes

Os pés que construíram essa cidade


são os mesmos que agora vejo
de rotos traços,
suor e calor misturados nas pedras.
Eu desço a Carlos Gomes.

É preciso amar também as pedras,


antes ou depois dos homens.
Pensos nos jasmins de Borges:
os bagos de uva devem estourar na língua,
escorrer na língua,
abraçarem-se na língua
e eu desço a Carlos Gomes.

Fazer arte é bobagem, digo


mas, todo o resto,
também bobagem.

A pele que se enruga ao vento,


os livros que carrego,
tudo a salvo e são.

Os 42 degraus da Lapa,
(ausência de
pressa) escrever
rápido
Não querer pensar.

Parece querer dizer algo,


essa multidão dentro de mim.

Op. 69, nº1

Como Leonora Carrington,


extraio minhas cores dos pulsos.

Índigo, viscoso,
retrato de lua e prata.
Sou uma coruja alquimista.

Em alguma curva do tempo,


eu me deito, escondida
Trapezistas, amores perdidos
— meu mundo é repleto
E rico como
aquarela que se dissolve.

Bailarinas, julietas,
olhares trocam carícias

Digo sim ao eterno,


deus não me intimida.

(sem título)

Passar como água sobre as pedras,


seu barulho e seu cristal:
há muito renuncio ao fogo.

Há em mim qualquer coisa


(um véu de prata iridescente)
de nada, seguindo

ao encontro de qualquer terra


que se arrepie ao contato.
Algo de puro, frio e azul.

Se eu sequer tivesse nome —


queria não tê-lo.
O que colore o mar
é só o céu que se espelha.

Catharina Azevedo nasceu em Salvador, em 1997, e é a segunda das três filhas de sua
mãe. Cursa atualmente o Bacharelado Interdisciplinar em Artes, na Universidade
Federal da Bahia. Gosta de ler e de escrever desde sempre, isto é, desde que começou a
entender o que eram as letras e como elas permitiam a contação de histórias. ―deixe o
bando correr selvagem‖ (Mormaço Editorial, 2022) é seu primeiro livro de poemas.
Dezembro

NoÍnterimDasChuvasTorrenciais, dezembro se espreita entre nuvens


balofas, postas nas memórias de arroz sírio e azul-
piscina, que resplandecem um amarelo ardido de
alegria lânguida.
Prenúncio dos pingos petricor sobre os piscas-piscas
e do cheiro de umidade,
Marias fedidas e
damas
da
noite
.
.
.

Álvaro André Zeini Cruz é mestre e doutor em Multimeios, especialista em Roteiro e


bacharel em Cinema e Vídeo. Passeia entre a crítica e o roteiro, mas tem se arriscado
por outros textos. Nas horas vagas, escreve razoavelmente e publica críticas de cinema e
televisão na revista Pós-créditos. Nas horas ocupadas, é professor universitário no
SENAC e na FIB, transitando semanalmente entre Bauru (sua cidade natal) e São Paulo.
É autor do romance ―Caso o país acabe, envie-me a Haruki Murakami‖ (Caravana
Grupo Editoral) e do conto ―O Apanhador do balcão do Hyde Park‖ (publicado pela
Revista Torquato).
um sonho de liberdade

quando o mundo era só


o natal
e o natal era só
o meu mundo
acordava sorrindo
com o cheiro da farofa
no fogo
com o telefonema
da minha avó materna
que estaria
daqui a pouco
em casa
e traria a maionese
com passas
pré-requisito
de final
de ano
a forma
encontrada
por ela
de nos
aliviar.

não me sinto
pronta
para romper
o ciclo
retirar a rosa
da tigela
de vidro
colocá-la
em uma pedra
fria
com o seu
nome
rememorar
as suas piadas
de galinha
a sua risada
estridente
e infernal.

nunca soube
se me amava
de verdade
ou se me
tolerava
por necessidade
de cutucar
a paciência
de minha mãe
que gemia
baixinho
na cozinha
mordendo
os lábios
e sujando
de sangue
o pano de
chão.

ácido
companheiro
inestimável
de nossa família
dono das
melhores histórias
de briga
do primeiro
susto
da primeira
entrada
no hospital.

queria poder
voltar
no tempo
te procurar
entre as costuras
analisando
cada detalhe
com a sua visão
de águia
e o seu coração
de gelo
insistindo
para que não
perdêssemos
o último capítulo
da novela
momento
precioso
em que a mocinha
abandona a casa
da família
para viver em
prisão
domiciliar.

Meu nome é Julia Magnoni Roque, tenho 26 anos, sou de São Bernardo do Campo,
SP, sou estudante de Letras, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sou
técnica em produção audiovisual e contadora de histórias. Sou uma leitora voraz, desde
criança, e faz pouco tempo que comecei a escrever poesia e conto. Tenho alguns
poemas publicados na Revista Ruído Manifesto, na Revista Sucuru, na La Loba
Magazine, mas nenhum livro, por enquanto.
Alimento

Modificam a forma de teu rosto

tentam apagar o teu perfil

enfezados não aceitam

teu caminho

não te entendem

e procuram

fazer-te sucumbir

continua teu caminho

apesar dos que preferem

julgar os outros

em vez de concretizar os próprios sonhos

ou será que eles não tem sonhos

e se alimentam

das migalhas dos sonhos dos outros

e da infame crítica?

Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante. Autora de 35 livros, entre eles, ―Os
Corvos de Van Gogh‖ (poemas). É criadora do Projeto Poetizar o Mundo; recebeu
Comenda Ordem de Figueiró, no Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra
pela Fundação César Egido Serrano (Espanha, 2017); Seus poemas foram premiados no
Brasil, Espanha e Portugal, Palestrou sobre a arte de escrever em diversas Férias do
Livro.
Carolina

Caro leitor... Não sei por onde devo começar.

Não sei se começo pelo meio, pelo fim, ou simplesmente


pelo o início.

Esse humilde escritor, que um dia podes conhecer, tem


fervor para lhe entregar uma história de duras perdas.

Carolina é uma mulher cuja feição não se encontra nas


damas desse tempo. Uma mulher que foge do seu tempo.

Nas ruas, nas praças, parques, Carolina é conhecida.


Maria, Pedro, João, todos filhos dessa “coitada”, de sol a sol ela
trabalha para sustentar seus filhos que só a tem; seu marido
outro coitado morreu sem saber que tinha filhos.

Nas noites quentes Carolina vende suco fresco na praça,


leva consigo seus filhos, Maria é negra, Pedro e João também,
por que seriam de outra cor, se não da cor de seus pais. Nos
sábados nos domingos dias de semana lá está a coitada com seu
suco fresco, que pouco vende, ninguém quer compra de uma
negra.

Assim como saía para a labuta da noite, deixava seus


amados pequeninos com sua vizinha que adora crianças. Às
vésperas da meia noite ela voltava para casa... Seus filhos
dormindo, o choro, o tormento logo vinham, naquela noite não
conseguiu vender nem um copo se quer, potes cheios... Barriga
vazia, seus filhos comeram farrinha e ovo que a vizinha tinha
dado a eles. Pobre Carolina; sua vida era uma tormenta,
levantava cedo, antes mesmo de o sol nascer, catava papelão na
rua ou onde encontrasse, seu pensamento voltava sempre para
os filhos que nada entendiam do lamento de sua mãe.

Em uma noite de sábado Carolina saio para vender seu


refresco, não levou seus filhos. Mais tarde ao retorna para casa
não viu seus pequeninos, gritou fervorosamente, não obteve
resposta...

Chorou...

A vizinha que ela tinha como irmã acaba de matar seus


filhos, como matam os ratos, depois se matou.

Carolina chorou até escorrer sangue por suas entranhas...

Dias passaram... Noites mal dormidas, rosto intragável –


roubaram minha alegria deixaram apenas a minha dor
inesgotável.

Chorei por logos dias, morria a cada segundo que passava


no relógio.

Entregue à agonia, à dor...

Ninguém a me socorrer. Quem virá ao meu auxilio?


NINGUÉM...

Uelson Teixeira. Monteiro - PB, Graduando em Letras Português UEPB| Escrever é


transforma a realidade em ficção.
Mulher volátil

Ora, sou mulher,


Ora, sou anjo.
Sou dois pólos opostos
Que se multiplicam,
Sou yin yang.

Sou volátil como


A força da natureza:
Ora, sou calmaria,
Ora, sou tempestade...
Sou como um abalo sísmico,
Um tsunami, que devasta
E depois passa.

Sou um ser camaleônico,


Que se camufla,
Que se adapta!
Ora, sou boêmia,
Ora, sou recatada,
Ora, sou poeta,
Ora, sou alienada.

Sou um milhão de pessoas


Que coexistem pacificamente
Dentro de uma única morada.
Às vezes, me reduzo em uma,
Mas sem jamais perder
A volatilidade.

Lorenna Almeida. Jornalista/Pós-graduada em Gestão da Educação e Docência do


Ensino Superior/ Graduanda em Letras e Pedagogia/ Coautora da Coletânea de Poéticas
contemporâneas)
A.V.C.

A minha marca proletária


Fedeu na venta do burguês
Não entendi o desagrado
Não é por isso que ele paga?

"Bem azedinho", murmurou


"Que sinestésico", eu pensei
Sem ter direito a um perfume
Somenos tenho ao sabor

Dois comprimidos em mancheia


E a cara azeda ao engolir
"Depois de velho, hipertenso",
Disse de si mais para si

E eu que sofro, penso e luto


Observando, concluí:
"No sangue dele meu sal pesa
duas colunas de mercúrio "

― Pegue a sinapse mais rápida.


Eu pago o dobro ao senhor
― Meu sobrenome é Q.I.
Meu nome é Raio, seu dotô

No necrotério, dos iguais


O protocolo da pergunta
Responde ao destinatário
A causa mortis dos defuntos:

Curto-circuito imprudente
Um acidente vicinal
POEIRA

O leito nômade do rio morto


É desidério que desidratou
E agora busca o suor que corre
No barro vivo do Adão reinol

Qual mar defunto, rio mar que dança,


A dura valsa de um horologium,
Maré desterro, pela carnaúba
Em mão de vento, preamar encontra

Dizia isso, Mareado velho,


Guardei comigo e não esqueci:
A mão de palha não aplaude mais
A mão de palha teme o grão do caos

Nano quimera, besta entanguida


A micro fera quatro rabos tem
Um que recebe, um que acumula,
O que abunda e outro do além

Pulga de vento, pira louca gira


Redemoinho de coceira brava
E a estrada que não traz ninguém
Findou o fausto de um meio-dia

O leito nômade do rio morto


É voz passiva de um pas - de deux
Pascal caminho que se libertou
Do mapa mofo de um reino coalho

Sinhá Leoa, maioral do Cosmo


Olho de lua vê os vicinais
A quimerinha que restar o saiba
Irá direto para o Satanás
E nenhum rato, rei ou ratoeira
Por mais soberba que tivesse pode
Na lei moderna de uma invenção
Chamar de volta farelinho podre

NOTÍCIA PÓS-CONTEMPORÂNEA

Pedra óleo extinta


Perigoso fogo
Queimou a memória
Testemunha fóssil

Sal sem sonho calça


Rua do sem rastro
Por onde pendula
A inteligência
Artificial

Não há Himalaia
Sangue ou suor
Não há Mucuripe
Riso, fé e dor

Virtual moeda
Caminho cristal
Não há mais estrelas
Pra vestir os pés

Anti monumentos
Sem nenhum sentido
Mãe necessidade
Sepultaram viva

Nada mais é velho


Nada mais é novo
Nada se inventa
Que já não exista
E o sabor perdido
Pedra se tornou

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PINACOTECA PARA VER SEM OLHOS


(Iluminuras)

NEFELIBATA

Minha poesia não depena patos

Todo bicho migra em mim

Até a larva

POSTULADO DO PARDAL

Ouça quem tiver ouvidos


Todo livre é ordinário
Nem todo ordinário é livre

POEMINHA PARA QUEM FICOU NA CAVERNA

Que se lapide só
Que faça jus às outras
E se chorar que seja
Fazendo gota a gota
Uma estalactite
PARDAL
(ou a minibio de um ordinário)

Obsceno
Obscuro
Ordinário
Observe
Como é pio
O pardal
Do campanário

Obs:
O pardal também pia no teto da puta
Que um dia impoluta vos precederá

LAMBE - LAMBE

Vinde ver o paraíso


Bem pertinho de onde haviam
Quatro sisos imprestáveis

Para que tanto juízo


Tanta placa de aviso
Onde não existe fardo?

Vem roçar devagarinho


Teu oráculo no meu

PARÁFRASE À CHANEL

Considerai as chananas
As flores pancs da sarjeta
Nem Lagerfeld
Fez desfiles tão bonitos
POSTULADO DA CHANANA

Floresce o resistente
Desafiando
A Normose vigente

RANCOR

Coitadinho
Morreu em dia
Que não sabia
Bebericando
Saudade avessa

WHISKY! GO? GO?!

Algumas pedras depois…


…meus pés sabiam voar…
…sabendo o nome de todas
eu preferi caminhar…
…algumas pedras mais tarde…
…pavimentei o caminho…

Quantos dedos faltam


Para a fuga certa
Acerta
Que eu vou contigo
Quando for o gole.

Leandro Costa é enfermeiro, professor, pesquisador e autor de poemas e contos


permeados de histórias, memórias, mitos e causos, retirados do baú das contações. Nos
textos publicados em diversos periódicos e antologias do Brasil, faz ecoar a luta pela
preservação de patrimônios históricos, culturais e naturais, dando espaço às vozes dos
invisíveis.
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Agradecemos:

A Eva Wilma Rodas Ramalho e Fernando Antônio Ramalho de Amorim – pelo apoio de
sempre;

A todos/as/es os/as/es membro/as/es da Rede AFETIVA de Culturas, da qual fazemos


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A todos/as/es os/as/es nossos/as/es colaboradores/as, leitor/es/as e amigos/as/es – sem


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