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Pré-venda do livro de poemas ―Umbuama‖ do nosso editor Daniel Rodas. Link: https://benfeitoria.

com/umbuama
Índice

Editorial ------------------------------------------------------------ p. 6
Duayer -------------------------------------------------------------- p. 9
Clecimara Barbosa ----------------------------------------------- p. 29
Daniel Rodas ------------------------------------------------------- p. 33
Vitor Miranda ----------------------------------------------------- p. 38
Nic Cardeal -------------------------------------------------------- p. 43
Benício Gon -------------------------------------------------------- p. 55
Gyzelle Góes ------------------------------------------------------- p. 64
Leandro Costa ----------------------------------------------------- p. 68
Joyce Nascimento ------------------------------------------------- p. 71
Maria Tepper ------------------------------------------------------ p. 74
Gabriela Lages Veloso ------------------------------------------- p. 80
Andriele Moraes -------------------------------------------------- p. 83
Maria Luiza Franco ---------------------------------------------- p. 88
Solano Guedes ----------------------------------------------------- p. 92
Juliana Toivonen ------------------------------------------------- p. 95
Agradecimentos e Contatos ----------------------------------- p. 107
Editorial
O vento da mudança vem
O vento da mudança vai

Vento vem
Vento vai

Sopra e o tirano sai

O vento da mudança vem


O vento da mudança vai

Vento vem
Vento vai

Sopra e o tirano
Cai

Sopra e o tirano
Cai

SOPRA E O TIRANO
CAI!

(IMPROVISO MORNO Nº5)

Sucuru é dança. Sucuru é o vento da mudança em trança. Sucuru é lança. Sucuru é grito
da lança que dança. Sucuru é rito. Sucuru-agito da dança que entrança. Sucuru-rugido.
Sucuru gemido do tempo que dança.
Sucuru é mistura. Sucuru é tempero no rio da cultura. Sucuru é cura. Para o mal do
fascismo e o medo de altura. Sucuru é fúria. É fúria do vento girando às alturas. Sucuru
é ato. Sucuru é o canto de dentro do mato.
Sucuru-aldeia. Sucuru-cidade. Sucuru-criança. Sucuru-idoso.
Sucuru é o velho que insiste no gozo. Sucuru é o riso dançando na chuva. Sucuru é uva.
Sucuru é mamão. Sucuru é a flecha no peito do irmão. A flecha no amor do irmão.
Sucuru é o rebelde arredio. Sucuru é a menina em desafio.
Sucuru é tudo. E nada.
Tudo o que foi dito até agora. Nada de certeza a essa hora. Serpente antropofágica de
tudo. Comendo o padre e o mulo. Comendo a origem e o fundo.
De tudo. Da Arte e do Todo. De tudo que é ferro Arte e fogo. Arte forjada no fogo. Dos
pés dançantes do povo. Arte da gente. Arte do novo. Quebrando na casca do ovo. Do
tempo rachado no vento. Vento que nasce de novo. Agora: É hora:

SUCURU!

[Paraíba: Julho do Ano do Vento de Dois Mil e Vinte e Um]

Equipe Sucuru
DUAYER

Nasceu em Tombos, na Zona da Mata em Minas Gerais. Reside no Rio de Janeiro desde
os 10 anos de idade, com breves passagens por Teresina (1991) e Vitória (2010-2013).

É jornalista formado pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Iniciou sua carreira
em veículos de comunicação como repórter na Rádio Jornal do Brasil e como fotógrafo
na Revista Manchete.

Após o primeiro lugar em um concurso fotográfico internacional foi contratado como


fotógrafo pelo jornal O Pasquim, na fase de maior sucesso daquela publicação. Ali, após
alguns anos, incentivado por Henfil e Jaguar, tornou-se um dos cartunistas/chargistas do
jornal.

Complementando sua formação com cursos em artes gráficas, percorreu algumas


agências de publicidade e tornou-se um artista multimídia: fotógrafo, cartunista e artista
gráfico. O jornal O Pasquim e sua Editora Codecri lançaram no final da década de 80
um livro com um apanhado de seus trabalhos no jornal: ―No País das Maravilhas‖.

Tem quatro livros infantis publicados e alguns outros em preparação. Em 2020 lançou o
livro ―Salve-se Quem Puder – Cartuns e Fotos de Duayer‖, obra com suas fotografias,
cartuns e breve pincelada de sua biografia, comemorando os 50 anos do Jornal O
Pasquim.

Teve trabalhos publicados nos jornais Última Hora, Diário de Notícias, Jornal do Brasil,
A Crítica, etc; em revistas nacionais como Playboy, Status, Mad, Ficção, Revista do
Faustão, Visão e em revistas internacionais como a World Press Review, nos Estados
Unidos, Free Press na Holanda, Libération, na França; possui algumas premiações em
fotografia e cartuns e seus trabalhos foram expostos em vários países da Europa e
América Latina.

Colaborou com séries fotográficas nos Nº2 e Nº3 da edição mensal da Revista Sucuru.
A LINHA CURVA E A MÃE SANGRADA

Enquanto caminha, surge de si um sangramento de grande poder, a


partir de então essa mulher sem identidade é destinada a sofrer por
toda dor e caos do mundo para que esse se mantenha. Em um
monólogo contado a partir de um eu-lírico desconhecido, tomamos de
conhecimento a função e aflição dessa mulher, destinada a segurar o
mundo com as próprias mãos; um relato breve tal como a linha curva.

Entre aquilo chamado céu, terra, um breve suspiro se sustenta infestado de proporções
maiores que a dor e o desejo; as vidas de pequenos grãos pendiam em uma linha curva,
prestes sempre a cair. Esta, sem itens prescritos, sem uma arca a qual se escorar, era a
única base sobre os pés de tantos. Questionava-se ao seguir seu caminho, o que é essa
tal de vida fundida entre tantas línguas, buscava sentido nas estrelas em queimação há
tanto tempo dali, estranho, pensava, era dizer que a própria resposta se encontrava breve
e fácil, essa mesmo? A própria linha, a própria curva, o próprio escorrego. Na busca
incessante se entremeava o exterior e interior vazio, feito da construção de solidão; com
isso, olhara brevemente para cima, como se caísse, de seu corpo saiu uma essência
avermelhada, vertia no lugar de dor; uma sensação de algo que transborda lhe
acometera, para os leitores, um momento inoportuno de se iniciar um monólogo, o
divino não espera, de fato, assim com permanece a estremecer o mundo. À volta, o
fluxo se volvia em seu corpo, o cheiro das pessoas, os sons ecoando em sua mente, essa
dispersa, parada enquanto o corpo estava agitado para correr, seguia sem mesmo saber
como aprendera a fazer aquilo, um passo e depois outro; ninguém notara que agora um
dos seus era encarregada para amar e por isso sofrer com toda a sujeira e sordidez.
Tornara-me invisível, ou não? Não, estava ainda mais alcançável pelos sentidos, gritar
por socorro, não adiantara, passava e passava sem um único resquício de compaixão,
minutos depois, o chão, havia caído com os olhos dentro do coração, foi pulsando e
pulsando a cada vez que outro, outrem, sorria, chorava, agredia, caía, arrancava e morria
e morria, em uma tênue linha finita. Entendi que a partir daquele momento, a função
que me correspondia, mais sincero que isso, era doer e sofrer pela finitude das coisas,
com o peso do mundo nos braços, para que esse se mantenha. Esse deveria ser o papel
da divindade, mas qual essa seja, se não mais o profundo desejo de salvar esse mundo, o
berço que ergue a pequena linha curva. Assim que algum nascia, sua função era sentir a
profunda tristeza para que tal indivíduo se tornasse capaz de sentir dor e com isso por
fim, amor, quando esse sentisse alegria sua função era tomar para si as impurezas que o
permeavam, fazendo com que esse fosse feliz e capaz de o outro tornar; quando esse
morria sua função era chorar para o todo sempre a ausência do ponto inicial e final na
linha curva, assim superava-se a lacuna. Sua dor, imensidão, fênix, de tão singela
desejava arrancá-la com carne e tudo, a que pecado fora conferida a Eva, para sofrer
com o peso do mundo em si, que escolha tivera a carregar isso por milênios. Mulher,
abrira as pernas para aliviar a linha curva, tornara os seus, momentâneos, uma benção
disfarçada; seu corpo de mulher, era essência, dor e nada, seus gritos e pensamentos se
tornaram ainda mais distantes, era sua pena riscar o papel, a boca salivante, o sangue
escorrido, costas nuas, olhou a frente, beijou, a oração de milhares ouvida, arcou com a
própria fertilidade e com seus pesares. O fim, um pequeno detalhe de quando há tanta
linha, seguiu em profundo agito na dor, seu peso, sua cura, as mágoas da criação.
Chamo-me Clecimara Barbosa, nasci na cidade de Monteiro, Paraíba. Atualmente sou
graduanda em Letras Língua Portuguesa; convivo com o mundo proporcionado pelos
livros desde a primeira experiência a qual me lembro, com ―Quando o sertão virou mar‖
de Caio Porfírio Carneiro, hoje sou apaixonada pela poética de Hilda Hilst e espero
levar minha sensibilidade e imaginação além do que possa chegar à relação entre o
papel e a tinta.
Nota: os dois poemas a seguir fazem parte do livro Umbuama, do poeta, escritor e editor
Daniel Rodas, que será publicado ainda este ano pela Editora Urutau.
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Lições do Umbuzeiro
Arvorar as raízes
Da vida

Fazer-se carne
Mesmo que ao
Vento

Buscar sustento
Nas profundezas
Da terra

Matar a morte
Na teimosia do
Instante

Estar aqui
Agora e amanhã

Mas sem nunca


Esquecer

As tardes do
Ontem.
Andorinha
Não escolho em quem faço
Caca
Só vejo a cabeça
E a camisa alva

O resto é sociologia dos


Fundos.
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Sobre Umbuama

A palavra "Umbuama" – título do meu primeiro livro de poemas – é um


neologismo. Vem da junção do termo "umbu" (que vem de "umbuzeiro", árvore nativa
do sertão nordestino) e da partícula "ma-", que remete tanto ao verbo "amar", quanto à
palavra "mãe".
Resistente e frondosa, mesmo nos períodos de seca, o umbuzeiro é um símbolo da
força da terra; da ancestralidade e da conexão com a Natureza. Junto à sílaba "ma-", traz
consigo a potência do amor e da proteção maternal, a magia do útero da terra, o acalanto
dos tempos-avós.
Umbuama é, portanto, um dos muitos nomes da Mãe-Natureza; da energia
ancestral que cria, constrói e perpassa nossa existência. Os poemas de Umbuama
refletem justamente a necessidade de reconectar-se com essa essência; com esse "eco"
perdido pela modernidade. Trata-se de uma obra sobre o ser humano e o mundo que o
cerca; de uma obra política, de contestação à crueldade e à arrogância; e de reafirmação
da humanidade enquanto parte integrante da Vida.

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Pré-Venda de Umbuama

O livro se encontra atualmente em pré-venda pelo site https://benfeitoria.com/umbuama.


Devido às dificuldades de lançamento na pandemia, a editora abriu uma campanha de
financiamento para viabilizar a publicação do livro. Quem contribuir com qualquer
valor a partir de R$ 20,00 receberá o livro (digital ou impresso), juntamente com vários
brindes (cartaz, exemplar autografado, um combo com outros livros da Editora Urutau,
etc; a depender da contribuição). Quem puder e tiver interesse em adquirir o livro, basta
ir pelo link: https://benfeitoria.com/umbuama.
Daniel Rodas (Teixeira-PB – 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras
(UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata,
2021), tem textos publicados em vários meios eletrônicos, a exemplo das revistas
Mallarmargens, Ruído Manifesto, Toró e Subversa. Faz parte do grupo de teatro
ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como
um fluxo, como o fluir incontrolável da vida. Umbuama é seu livro de estreia.
os ratos vão pro céu?

ouvi um barulho lá embaixo. eram ratos. eles habitavam a sala. viviam no forro da
estante. faziam barulhinhos incomodáveis. porém a gente não deixaria quieto. meus pais
armaram um plano, ou melhor, compraram uma ratoeira. daquelas ratoeiras gaiolas. o
rato entra pra comer o alimento e nunca mais sai dali. acho que foi o que aconteceu
comigo nessa vida. entrei pra comer um queijo e nunca mais saí. adoro queijos. os ratos
nem tanto. o problema é ficar preso neste mundo cruel. naquela época ainda não
entendia a maldade do ser-humano. nem sabia que existia. se bem que na escola, a cada
dia uma pessoa era escolhida pra ser o rato. na verdade os ratos eram sempre os mesmos
e não existia esse negócio de bullying. já fui rato e sei como é. já ouvi histórias de ratos
que se mataram por aí. cansaram de ser cobaias de piadinhas maléficas e desapareceram
do colégio. foram parar num rio sujo feito uma ratazana ou se mataram por causa de um
queijo. como se o queijo fosse a paz que eles procuravam. enquanto existir seres
humanos vivos não haverá paz.

ouvi meu pai caminhar pelo corredor. a luz do corredor estava acesa. tenho medo
do escuro e ela iluminava o quarto. pulei da cama e fui acordar meu irmão. ele falava
enquanto dormia, mas tinha o sono pesado. ele tinha uns treze anos e eu uns nove nessa
época de nossas vidas.

-acorda, acorda!

-que foi? – disse ele com voz sonolenta.

-acho que é um rato!

era o primeiro rato de nossas vidas. ele pulou da cama e corremos seguindo meu
pai que já descia a escada.

-volta pra cama meninos. – disse minha mãe da porta de seu quarto.

-o que aconteceu? – perguntou minha irmã que sofria de insônia infantil.


-O RATO! – gritamos eu e meu irmão.

-deixe os meninos. – disse meu pai.

-ai que nojo. eu não vou lá. – falou minha irmã.

meu pai acendeu a luz da sala e lá estava ele feito um ratinho de laboratório que
acabara de receber um câncer de presente. corria pra todos os lados feito um fugitivo de
filme policial americano quando entra num beco sem saída. e ele não tinha saída. a
morte estava próxima.

-e agora o que a gente faz? – perguntou meu irmão.

-tem que dar um jeito de matar ele. se eu soubesse não tinha usado essa ratoeira.

-e mata como?

-boa pergunta... – disse meu pai.

ficamos pensando enquanto o rato tentava um novo caminho. o alimento dentro da


gaiola estava intacto. ele não deve ter entrado ali por isso. os ratos são inteligentes e
convivem com o ser humano a cerca de dez mil anos. acho que Raul Seixas falava sobre
eles na música ―eu nasci há 10 mil anos atrás‖.

-e se a gente colocasse a gaiola num balde d‘água? – sugeri.

-boa ideia.

levamos a ratoeira até o quintal. era uma bela noite de lua cheia. os lobisomens
estavam em Paris ou em algum lugar da Europa. enchemos um balde d‘água até a boca.
meu pai pegou a ratoeira e a afogou n‘água que começou a jorrar do balde.

-cuidado com essa água, meninos. ratos transmitem doenças. – alertou meu pai.

os ratos transmitem cerca de 55 doenças para o ser humano. resta saber quantas
doenças os seres humanos transmitem para os ratos. mas isso pouco importa. o ser
humano se fez do personagem principal aqui nesse mundo. por isso vivemos contando a
história da humanidade. estamos cagando pras outras espécies em extinção e matar um
rato se torna um ato normal. rato é uma peste e precisa ser exterminada, por isso existem
os dedetizadores. por sorte dos ratos e azar dos seres humanos existem três ratos para
cada um de nós e uma fêmea pode reproduzir cerca de duzentos filhotinhos por ano. se
um rato pudesse escrever um livro sobre a história da ―ratanidade‖ eles seriam os heróis
e não os inimigos. eles venceriam a guerra da peste negra. talvez exista uma grande
guerra mundial entre os ratos que a gente não sabe. são mais de mil e setecentas
espécies espalhadas pelo mundo. quem sabe um dia eu faça um filme sobre ratinhos que
fazem experiências em seres humanos de laboratório chamado ―o planeta dos ratos‖.

enquanto eu lhe falava um pouco sobre a espécie nosso ratinho estava preso à
gaiola submersa. ele nadava desesperadamente sem conseguir sair debaixo d‘água. o
luar iluminava a água e a gente conseguia ver a expressão de desespero do nosso amigo.
a sentença de morte foi dada e ele nem pode se defender. agora ele era tão próximo de
mim. quando vemos o sofrimento de um ser vivo de perto a gente percebe que não há
diferença alguma entre nós. os ratos nascem, crescem, fazem o que tem que ser feito pra
sobreviver e de repente morrem. às vezes são assassinados por outros ratos, ou por
outras espécies de seres vivos. eu sou um homem ou um rato? não passo de um ser
humano de merda que aos nove anos de idade encarou a morte de frente. os ratos duram
cerca de dois minutos respirando dentro d‘água. nesses dois minutos nenhum de nós três
esboçou reação alguma. o ratinho afundava, parecia perder a consciência e depois
voltava a nadar até encontrar as grades. as grades são a repressão dos sonhos. ratos
devem ter sonhos, desejos e devem fazer planos. acabamos com os sonhos desse. ainda
vejo até hoje a imagem dele afundando na água já sem vida. um pouco de nossas vidas
se afundou com ele no fundo daquele balde e a gente sabia disso. meu pai despejou a
água no ralo e deixou a gaiola por ali. fomos dormir sem dizer nada com a luz do
corredor acesa. meu irmão pegou no sono rápido e falou bastante durante a noite. tive
medo de morrer pela primeira vez na vida e chorei. resolvi falar com Deus.

-os ratos vão pro céu?


Vitor Miranda é poeta, escritor e fotógrafo. tem quatro livros publicados, com
destaque para A gente não quer voltar pra casa, semifinalista do Prêmio Oceanos 2019.
é letrista e poeta da Banda da Portaria, projeto que nasceu do seu livro Poemas de amor
deixados na portaria. também é letrista do Margaridáridas. é criador e entrevistador do
podcast Prosa com Poeta. para entrar em contato é só procurá-lo no perfil do instagram
@vitorlmiranda
POEMAS OU OUTROS MODOS DE SOBREVIVÊNCIA À QUARENTENA

1)

QUASE AGORA
Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol

depois a gente corta o fio


afia a navalha
estende o cordão entre as paredes
pendura as fotografias que sobrarem no baú
precisaremos afinar o olhar - o jeito certo de olhar -
para não perder nenhuma palavra desviada
daqueles olhares estancados da vida
como meros ingredientes do nada

depois a gente chora


enxuga o leite derramado
diz o amor engolido a sete chaves
corre o risco de perder a hora, o trem, a viagem depois do fim
e recolhe cada um dos abraços deixados de lado
na cama, na poltrona, na cadeira da cozinha, sobre o armário
empilha um por um, dobrados e cobrados,
nunca dados, os beijos desejados

por ora, resta-nos a máscara


o lábio amargo
a garganta seca
luvas guardando dedos sem anéis
em mãos mil vezes lavadas em água, sabão e desespero

por ora, já é quase agora


essa pobre senhora desconhecida
estendida no varal entre razões escusas
a vida – por um fio.

(13.03.2020)

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2)

LONGA NOITE

Quase eterna, longa a noite


velas acesas, candelabros ou lampiões
perderemos o rumo, o prumo, a razão
cairemos em tentação
buscaremos a voz, o olhar, algum sentido maior
sonharemos mundos inteiros de amplidão
as janelas continuarão abertas, azuis em brancas nuvens
pássaros ensinarão liberdades inteiras, em asas pequenas, à nossa prisão
– asa quebrada de uma quina –

os dias, um a um, passarão


os homens, também, um a um, passarão
– alguns, muitos, passarão –
precisaremos aprender antigas rotas de despedidas

longa noite, imensa e vazia


desejaremos um som, um ruído, uma cantiga,
ventania, passos na escada, paz tão antiga
um grilo, um sabiá, um jorrar de lágrimas
qualquer coisa dos desejos das horas findas
– que nos alcance logo esse outro agora, que já se demora –

longa noite que se anuncia


desesperados, seremos rebeldes, covardes, intempestivos
gritaremos a esmo, a rodo, aos loucos
perderemos a ótica, a lógica, a noção
sentiremos o palpitar - ao longe - de algum outro coração
buscaremos esperanças, certezas, sentidos
ao mundo seremos rendidos
não poderemos apagar os fatos, retroceder os mortos
– passos em falso nos fizeram coautores irresponsáveis do colapso? –

longa noite,
o que será do outro dia com novas auroras?
esperanças-fênix depois das cinzas?

(17.03.2020)

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3)

BIOMA

97 tartarugas-de-pente nascem na praia


borboletas voltam a fazer revoada em azuis
[já não correm risco de congelamento em casamentos hostis]
cisnes deslizam pelos canais de Veneza
golfinhos, felizes, sobem à superfície das águas
peixes recém-nascidos brincam de felicidade na foz do rio
capivaras passeiam destemidas no parque
homens são vistos recolhidos em suas tocas.

(Depois da doença de homem, a Terra respira aliviada).

(28.03.2020)

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4)

SENHA

O crepúsculo é esticado,
nenhuma estrela cadente atravessará os céus realizando desejos,
não é de desejos que se alimenta o broto,
mas de algo tão mais genuíno e íntegro.
Esquece o desejo,
livra-te dos anseios,
o vento segue sua rota independente dos obstáculos,
a água escorre pelos veios, pelas veias, pelos vãos,
porque sua natureza é seguir o curso.
– Qual é teu curso na natureza? –

Lembra daquela casa antiga na colina,


os pássaros fazendo ninhos, despreocupados,
os frutos sabendo quando é hora de tombar ao solo
para a regeneração da semente.
– Ninguém sabe da vida melhor do que a própria –

Depois do agora um futuro não se sabe quando,


o que é demorado nem sempre se alcança,
na pressa gasta os sapatos apertam.
– Aprende o ritmo da espera, da véspera, da partida,
um passo de cada vez no caminho mais estreito –

O crepúsculo é denso – eu também sei –


nada se desfaz antes da hora,
ergue-te acima do horizonte das incertezas,
e não esqueças da abelha buscando o pólen na flor de laranjeira,
nem da formiga carregando o fardo mais pesado,
ou da cigarra que canta sem descanso,
anunciando um tempo logo ali (ou distante) de felicidade.

Os ciclos se repetem, os homens se repetem, os sonhos se repetem,


nunca estranhes o gole amargo da angústia,
ou a falta de notícias dos outros mundos inteiros,
lá longe nas galáxias.
Não percas a rota,
nem arrebentes a porta!

– Esquece a porta: a saída tem outra chave,


nós um dia já soubemos a senha! –

(29.03.2020)

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5)

FAÇA DE CONTA

que hoje é domingo,


que amanhã será domingo,
depois, domingo!

Esqueça que um dia tivemos semanas,


que os meses foram estendidos em calendários insanos,
e os anos, um a um,
passantes despercebidos da nossa pressa vertiginosa!

Domingos são dias de soprar esperanças,


faz-se necessária a alegria inundando a casa inteira,
brinca-se de olhar à janela e observar as nuvens,
estende-se a rede na varanda, no quintal, na sacada, ou mesmo na sala,
e se você quiser, é permitido o balanço!

Pode-se dançar aos domingos,


olhar ao espelho, esquecendo as rugas, os brancos, os ranços,
é permitido os olhos no espelho,
como se adentrassem aos olhos do espelho,
até sumir de vista a face,
até adentrar à casa da alma!

Decretem-se todos os domingos felizes,


com um cochilo depois das doze,
pode-se até pedir aos deuses o melhor dos sonhos,
escolhe-se a música,
sente-se o vento, o sopro, as flores,
um café da tarde na imensidão tão bonita!

Faça de conta que hoje é domingo,


que amanhã será domingo,
depois, domingo!

Em todas as noites, sê permitido olhar para a Lua!


Lua crescendo, cheia, minguada, adormecida na Luz bem guardada,
trazendo à tona a nossa esperança:
proíba-se, assim, morrer aos domingos!

(04.04.2020)

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6)

AO SAIR APAGUE A LUZ

O país em delírio coletivo


o rei insano, proferindo brados loucos,
carregando consigo vassalos ensandecidos,
enquanto nós, parecendo poucos,
nada conseguimos,
estáticos, trancafiados em nossos desesperos tantos.

De que adianta a minha casa guardada


se lá fora tanta gente dando a cara a tapa
da morte - já tão forte -
procurando-nos de porta em porta?

A vida suplicando trégua,


a vida sussurrando rouca:
– haverá melhor caminho para o nada?

(20.04.2020)

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7)

POR ENQUANTO

Enquanto ainda há tempo


percamos tempo sentindo o vento,
as mãos procurando afagos,
os dedos apontando estrelas maduras
na fresta aberta dos dias,
no estreito vesgo das noites,
pés descalços na relva, na calçada,
no chão da sala, na cama desfeita,
nos dias esticados sobre a mesa,
no farfalhar dos galhos avisando
qu'inda umas asas flutuam céu lá fora.

Enquanto ainda há tempo


permitamos uns delírios, uns lírios, uma lira,
acordes dissonantes
brincando de outras vidas em dimensões paralelas,
em que sonhar novos mundos
seja a melhor iguaria no céu da boca
onde aprisionamos nossa ira.

Enquanto ainda há tempo


façamos de conta que restamos todos num mínimo decentes,
guardando futuros quase perfeitos entre os dentes,
entre risadas felizes, estradas oblíquas, caminhos à frente.

(Enquanto ainda há gente).

20.04.2020

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8)

COMPORTAMENTO

Cientistas descobriram que borboletas bebem as lágrimas das tartarugas,


as lagartixas conseguem regenerar a cauda perdida para o predador,
os pinguins são capazes de se consolar uns aos outros, diante da perda dos
companheiros,
humanos não sabem para que serve a empatia.

Tartarugas não têm nenhuma pressa em viver,


lagartixas são hai-cais de jacarés,
pinguins vivem toda a vida com o mesmo amor,
borboletas vivem duas vidas consecutivas,
poetas são colecionadores de esperanças.

Tartarugas gostam tanto de ficar em casa, que carregam a sua nas costas,
Borboletas ficam em sua casa/casulo, quietinhas, durante boa parte da vida, sem
reclamar,
pinguins sabem a importância de um abraço quando perdem o amor/sua casa,
os homens não entendem o que significa ficar em casa.

– Cientistas não sabem dizer se haverá futuro depois de amanhã –

(27.04.2020)

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9)

SUBNOTIFICADO

Onde um corpo se deita não há mais lugar para a esperança,


nem espaço suficiente para a coleção de ontens
lembranças já não servem ao corpo findo,
roupas novas, sapato gasto, gravata apertada,
a rosa, o girassol, o cravo, a margarida
– que serventia têm flores mortas atiradas sobre um corpo que se deita? –

Um corpo é só mais um corpo


deitado na solidão perene,
sem saber do dia ou da noite,
a que horas passa a lua céu acima,
ou se águas caem céu abaixo regando a terra.

Um corpo é mais um corpo,


entre corpos e mais corpos e outros corpos,
sem dizeres, sem lágrimas, nem lápides,
sem a reza, nem o credo ou o poema derradeiro,
um corpo é mais um nu sem a alma
– a quantas saudades de distância fica a história desse 'mais um' corpo que se deita? –

(03.05.2020)

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10)

RECEITA PARA NÃO CHORAR NO DIA DAS MÃES

Outro dia a gente chora.


Hoje não é hora.
Coloca a máscara, escondido o pranto,
diz à mãe que hoje o filho não vem,
nem depois, nunca mais um filho, nunca mais,
– e daí? –

Outra hora a gente reza.


Hoje não tem vez.
Também pudera,
a vida – assim – tropeçando em covas rasas...
Ajeita bem a fala, cuida das palavras,
diz ao filho que hoje a mãe não vai,
nem depois, nunca mais a mãe, nunca mais,
– e daí? –

Noutro tempo a gente grita.


Hoje não é dia.
Goela abaixo toda a dor,
diz aos filhos – não tem mãe!
diz à mãe – filhos...mais ninguém!
nem depois, nunca mais, nunca mais,
– e daí? –

Sejam impedidas todas as agonias!


Busca um sonho bem antigo
(há de ter mais um no baú dos teus guardados),
desembrulha cada uma das presenças,
esfrega bem cada uma das lembranças,
até que vejas
na transparente cortina das retinas,
do outro lado – bem acesa a saudade –
mascarada a utopia dos impossíveis...

Porque toda mãe sabe não chorar (chorando),


toda mãe é exímia bailarina das rotinas,
toda mãe entende bem de precipícios
(e de asas sempre atentas à beira)
– mães não são feitas para alcançar o fundo de nenhum mundo –
mães são rios de beber o mundo nos próprios olhos/enchentes d'água
porque só um rio/mundo sabe desaguar tristezas num coração de profundas águas.

(10.05.2020)
Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba, graduada em Direito, é autora de ‗Sede
de céu‘ (poesia, Penalux/2019). Atualmente tem textos publicados em 39 antologias e
coletâneas: 30 no Brasil, 7 em Portugal e 2 na Alemanha. É integrante do movimento
Mulherio das Letras desde sua criação. Seus escritos estão compilados na página do
Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. Também faz ‗resenhas afetivas‘ na página
do Facebook “Minha lavra do teu livro”. É colaboradora da Revista Feminina de Arte
Contemporânea Ser MulherArte.
NA SOLIDÃO DO MAR PROFUNDO

Ultimamente, Fromilda andava pensando no pai com mais frequência.


Baldênio havia abandonado a ela e a mãe quando tinha apenas seis anos de
idade, sem se comover com seu choro infantil. O genitor era um homem do mar, um
pescador obsecado por tirar das águas salgadas monstros cujos olhos humanos jamais
haviam contemplado. No dia em que saiu de casa ele cumpriu a profecia da sogra que
sempre dizia à filha que aquele marinheiro não era capaz de bancar casamento nem de
constituir família. Ela tinha razão. Baldênio tinha uma natureza oceânica, a terra lhe
fazia mal - sua estabilidade tediosa dava-lhe náuseas.
No entanto, em seu parco arcabouço de lembranças paternais guardava com
carinho os dias em que ele pacienciosamente a colocava no colo para lhe contar
histórias de pescadores, cheias de aventuras épicas que ele protagonizava, derrotando
krakens, baleias assassinas e outros seres que habitavam seu imaginário.
O mar esconde tesouros, assim como esconde os mais terríveis pesadelos minha
filha. – dizia ele com ar professoral, o pingente de sereia brilhando no cordão
pendurado ao pescoço.
Certo é que Fromilda se metamorfoseara numa adulta troncuda, seu pai com toda
a certeza não conseguiria mais sustentá-la por tanto tempo no colo nem teria mais
paciência para contá-la sobre as histórias dos reinos de Poseidon. Ele havia deixado as
duas para trás em busca de novas empreitadas marítimas, firme no propósito de ganhar
fama com seus grandes feitos.
Nada disso fazia sentido para ela. Em que cartilha estava escrito que seu pai, o
herói invencível da sua história seria capaz de ir embora, deixando uma menina órfã de
carinhos e de novas aventuras chorando na soleira da porta? Mundo injusto demais, meu
Deus!...
Longe da atenção de Baldênio, Fromilda seguia seu cotidiano de formiga
trabalhando como cortadora numa modesta fábrica de calçados. Sua atividade laboral se
resumia a fatiar o couro com uma lâmina afiadíssima, contornando a silhueta dos
moldes, o que exigia da moça mãos firmes. Naquela coreografia repetitiva seus
pensamentos saiam dali, visitando lembranças de fatos que se esqueceram de acontecer.
A cadência da sua vida era marcada pela sirene da fabricazinha, que avisava-lhe da hora
de começar a trabalhar, comer ou ir embora para sua miséria existencial. Sempre
passava no supermercado no caminho de casa para comprar o que podia e admirar o que
não podia. Uma vez ficou por quase meia hora bestificada com o preço de um pedaço de
queijo francês que tinha por volta de duzentos gramas e custava metade de seu salário.
Ser rato em Paris está pela hora da morte! – pensou irônica.
Às vezes ficava parada num dos corredores entre as gôndolas, observando as
câmeras de segurança e imaginando se elas estavam mesmo ligadas ou se o responsável
pela segurança a estaria vigiando, pronto para acionar os alarmes caso ela fizesse algum
movimento suspeito que colocasse em risco a segurança nacional. Talvez até estivesse
dormindo, cantando uma colega de trabalho que passasse por ali ou mesmo se
masturbando no banheiro, vai saber. O certo é que ela ficava intrigada com tantos olhos
artificiais lhe dando uma atenção que não recebia das pessoas.
Sempre comprava as mesmas coisas: um pacote de macarrão instantâneo, dois
pães e um bombom para comer depois do jantar, para fechar o dia com chaves de ouro.
Quando passava pelo caixa não conseguia evitar o flerte com a imensa esfera de plástico
transparente que guardava centenas de bombons. Ela se imaginava minúscula ali dentro,
se acabando naquele universo de chocolate. O céu segundo concebia, deveria ser feito
de Sonho de Valsa; lâminas que cortavam até pensamento; câmeras atenciosas; queijos
com preços absurdos e ambições imbecis de chocolate.
Mas calma leitor, mesmo para uma figura desgraçada como a daquela moça o
mundo reservava surpresas e às vezes, das mais intrigantes.

Eu estaria mentindo se dissesse que haviam muitas cortadoras de couro para


sapatos naquela região. O serviço um pouco mais bruto estragava as mãos, quem
prezasse por uma pele decente dispensava a atividade de chofre. Fromilda não ligava
para isso: era pau pra toda obra, não rejeitava serviço e quando ofereceram o desafio de
desgastar o corpo naquele trabalho torturante ela aceitou de imediato. Para ela não
existia dinheiro difícil de ganhar, difícil mesmo era ficar sem dinheiro. Ficou tão boa no
trabalho que colocou todos os demais cortadores no chinelo. Era procurada para dar
consultoria sobre tudo que se referia ao tema na fábrica. Disciplinada, estava sempre a
postos antes que terminasse o grito da sirene, saía só com o apagar das luzes do galpão.
Naquele dia estava especialmente perturbada com as lembranças do pai, o
espectro que assombrava sua vida. Em certo momento podia jurar que havia sentido
cheiro de maresia, de peixe fresco saracoteando na areia seca o que levou-a a acreditar
que estava ficando louca. Mergulhada nesses pensamentos que desenhavam fractais em
sua mente feito um caleidoscópio nostálgico é que, ao contornar uma peça de couro com
a faca afiadíssima, acabou por se cortar.
Machucou aí Fromilda? Precisa de ajuda? - perguntou um colega.
Não, não... tranquilo...
O corte foi superficial, mas doído que só. Estancou o sangue por alguns minutos
debaixo de uma pia suja ali por perto, correndo para fazer um curativo improvisado com
o que tivesse à mão. Tinha de andar rápido com aquilo, não tinha tempo de sentir dor já
que recebia por produtividade e o dinheiro necessário para fazer sua compra diária no
supermercado ainda precisava ser ganho. Acostumada com aquela rotina de barulhos,
cortes e cheiro de cola, Fromilda voltou para sua labuta a todo vapor, vestindo o
escafandro imaginário de seus pensamentos em ebulição.
O restante do dia transcorreu normalmente, salvo um único detalhe: estava com
uma coceira na perna direita que dava gosto - quanto mais coçava, mais a vontade de
escavar a pele com as unhas lhe atormentava. Sentiu até o local inchar, o que a obrigou
a passar pela farmácia para comprar uma lata de pomada Minâncora, que segundo sua
mãe, curava até dor de amor.
Dessa forma ao sair da fábrica passou no supermercado, passou na farmácia e
passou raiva quando um idiota passou de carro por uma poça d'água, ensopando-a da
cintura para baixo.
Ao chegar em casa deixou as compras em cima da mesa e foi direto para o
banheiro com o mote de tomar um banho, pois estava bastante cansada. Além do mais a
urticária na perna estava lhe corroendo as carnes, ela estava louca para deitar remédio
na chaga.
Tirou a roupa rapidamente quando ao olhar para a sua perna se assustou: a área
que coçou estava bastante inchada, formando elevações de textura estranha e com o
formato semelhante a escamas. Passou um tempo alisando o local, tentando entender
aquela condição bizarra até que se acalmou. Após o banho besuntou o local com a
pomada à base de cânfora, seguindo as indicações da mãe que tinha bem mais juízo que
ela.
Como de costume após o jantar elas se acomodaram na sala cada uma no seu
local predeterminado, pois naquela casa não se admitiam violações de conduta de
qualquer natureza. A novela estava morna e como Fromilda se via encharcada de
perguntas sem respostas, resolveu cutucar a mãe:
Mãe...
Fala filha – respondeu Joserlânia sem tirar os olhos da TV.
Posso lhe perguntar uma coisa?
Fala.
A senhora amou meu pai?
Agora Fromilda havia conseguido uma proeza que nenhum ser vivo por cima ou
por baixo da terra havia conseguido até então: tirar a atenção da mulher de sua novela
preferida. Com o semblante mexido como se houvesse levado um tiro a traição ela
respondeu, ríspida:
Que conversa é essa Fromilda? Bebeu?
Queria só saber mãe.
Pergunta de gente enxerida... “Amou”... que conversa é essa meu Deus?!
É normal a gente ter filho com quem ama. Pelo menos eu acho assim.
Acha isso porque é menina boba, inocente, igual eu fui! Vai tirando essas ideias
tolas da cabeça, foi pensando em bobagens iguais a essas que eu vim parar aqui
nessa maloca! Vai arrumar o que fazer!
A moça se remexeu no sofá, escolhendo uma posição mais confortável para um
novo bote:
Vi outro ida uma foto da senhora com ele, uma que está dentro da gaveta do
armário da do seu quarto. Vocês pareciam felizes.
Intrometida.
A senhora não estava feliz?
Até que sim – cedeu Joserlânia, se enrolando feito uma cobra acoada por fogo –
namoro novo, tudo é uma maravilha. Ilusão da desgraça...
O pai era bonito né? Aquela roupa de pescador, tatuado, bronzeado... um
bigodão estiloso...
Pare de bobagens menina! Grandes coisas. De que adiantou aquela beleza
toda? Não estou aqui sozinha? Hum... só me faltava... Pensa bem: bonito
daquele jeito mas preferiu ficar lá no meio daqueles peixes fedidos dele do que
constituir família, viver como Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou. Um canalha,
isso sim.
A tia Libéria disse que eu sou a cara dele.
Sua tia Libéria devia parar de tomar conta da vida dos outros e cuidar daquele
marido cachaceiro dela que vive dando em cima de tudo que é mulher na rua.
Nem parece que é minha irmã aquela. Mexeriqueira. Você sempre pareceu com
sua vó, não herdou nada daquele traste, graças a Deus.
Fromilda sabia que a pergunta que faltava iria causar um rombo no casco do seu
navio, mas ela tinha de tentar. Quem sabe a mãe lhe estendesse generosamente a mão
com uma resposta a contento; isso aliviaria bastante a pressão das suas dúvidas,
levantaria a válvula daquela panela de pressão para o vapor sair, devolvendo-lhe a paz.
Tentou então:
Por que o papai foi embora?
Aí o caldo entornou. A mulher ficou com o rosto enrubescido como se uma calda
grossa de sangue subisse do pescoço para a testa, contrariando as leis da física.
Revoltada com o interrogatório invasivo da filha, deixou as palavras virem à boca em
aluvião:
Aquele inútil foi embora porque não queria viver como homem honesto, com a
responsabilidade que a família trouxe pra ele. Era um egoísta, um inútil, sem
coração. Saiu de casa com você chorando, se agarrando nas calças dele! Ele
nem ligou, se afastou de você igual a gente se afasta de um cachorro sarnento
de rua. Eu nunca vou perdoar aquele desgraçado por ter saído assim, por não
ter assumido a família que Nosso Senhor tinha reservado a ele. Só quero que
Deus me abençoe minha filha com muita saúde para que dê tempo de assistir
aquele maldito comer o pão que o diabo amassou com o rabo. Que ele arda no
fogo do inferno com os exus dançando em volta! Olha, você acabou me tirando
até a vontade de ver minha novela... eu vou dormir porque assunto de Baldênio
aqui em casa já deu. Boa noite!
Foi o tempo de sair a passos largos em direção ao quarto e bater a porta para
Fromilda cair no choro. Não entendia como aquele casal bonito da foto podia ter se
transformado em duas pessoas tão antagônicas, inimigas mortais.
Ódio de gente mal amada não tem fim – pensou.
Mesmo com as observações a respeito do pai ela ainda queria ele por perto.
Sentia falta do bigode, da pele curtida de sol e até mesmo do pingente de sereia.
Resolveu passar a noite por ali mesmo, pois finalmente havia encontrado posição em
que a urticária dava trégua.
Corriam sete dias riscados no calendário sem que Joserlânia lhe dirigisse
palavra. Fromilda entrava e saia de casa como se fosse invisível, a mãe não a perdoava
pela ferida que a filha lhe tinha aberto com aquela perguntação. Fora do roteiro só
mesmo a urticária persistente. O mais engraçado era que ela parecia ficar mais agressiva
quando a garota se feria no trabalho, aquelas bactérias amaldiçoadas pareciam se
alimentar dos taios em seus dedos. As chagas se espalhavam em diversas áreas,
causando-lhe vergonha. Em casa, mesmo em altas temperaturas usava moletom e meias
para cobrir as escaras. O pior era que o calor produzido pelo excesso de roupas parecia
eriçar ainda mais as coceiras, fazendo com que aparecessem novas escamas.
Naquele domingo, Fromilda resolveu que aquele gelo entre as parentes deveria
ser quebrado. No almoço em meio ao silêncio sepulcral ela esclamou, solar:
Sabe mãe, estou com vontade de dar uma volta na praia, vamos?!
Para Fromilda aquela era apenas uma pergunta inocente como outra qualquer,
com a intenção de trazer a mãe para perto de si novamente. Para Joserlânia, não foi bem
assim:
Você é uma cínica mesmo, igual ao seu pai – respondeu raivosa após uma golada
de suco.
Como é?! - Fromilda não entendeu a reação.
Cínica, sem-vergonha, safada igual ao seu pai.
Mãe! Eu só estava tentando fazer as pazes!
Fazer as pazes?! Tá bom... me levando para a beira do mar, onde aquele
demônio mora? Eu prefiro a morte do que chegar perto daquele ambiente.
Não era essa minha intenção!
Não era? Sei... sua tia Libéria além de futriqueira era cega: não é só
fisicamente que vocês dois se parecem, vocês são iguaizinhos também por
dentro. São cruéis, se merecem.
Não fala isso!
Falo sim!
Eu só queria que fizéssemos um passeio para nos distrairmos, conversarmos,
nós...
Eu não quero conversar com você! - interrompeu, transtornada.
A senhora é minha mãe, eu a amo.
Ama... sei... você vai amar é a rua. Pegue suas coisas e saia da minha vista!
O quê?!
É isso mesmo que você ouviu, vá procurar sua turma, me deixe sozinha!
Joserlânia publicou seu decreto, jogando o prato de comida ainda pela metade na
pia para se trancar em seu quarto. Depois de alguns minutos de choro, Fromilda
obedeceu a mãe como uma boa filha faria: juntou suas roupas em duas mochilas velhas
e partiu para longe dali, não sem antes se aproximar da porta do quarto de Joserlânia
para declarar seu amor novamente.
O sol estava bastante forte. Sem ter destino certo resolveu ir até a orla marítima
para pensar no que faria. Se aproximou da água, jogou seus alfarrábios na areia e se
colocou a pensar onde o pai estaria naquela imensurável galáxia salina. Emocionada
com sua condição, ainda sem entender como chegara até ali, ela chorou ainda mais.
Chorou sem data para acabar, compulsivamente, até adormecer.
Horas depois, um pouco atordoada ainda e com o sol a pino, acordou. Demorou
um pouco para adaptar a visão àquela claridade toda; quando as cores entraram em
sintonia ela não conseguia acreditar: Fromilda não tinha mais pernas, todo seu corpo da
cintura para baixo havia se transformado em uma calda de peixe, reescrevendo uma
versão híbrida do que era até então. Bateu a calda, testou seus novos movimentos
quando uma vontade insuportável de mergulhar no mar a tomou. Rapidamente ela foi se
arrastando até as águas, a sensação que experimentou naquele momento foi impossível
descrever. A comichão de cem orgasmos tocaram como uma sinfonia em seu corpo,
clonando um golfinho ela se movimentava num bailado belíssimo, se desviando dos
cardumes de peixes e dos corais cortantes. Não lhe faltava ar, nem felicidade. A
hidrodinâmica do seu corpo fazia com que fatiasse as moléculas com uma delicadeza
ímpar, impulsionando-a em espirais de evoluções ousadíssimas. Se fora humana alguma
vez ela já não se lembrava mais. Quando exauriu seu repertório coreográfico sob o
domínio completo de suas novas habilidades ela percebeu que sua nova condição
serviria para realizar seu sonho: ela poderia encontrar o pai agora, sem maiores
dificuldades. Não via a hora de vê-lo novamente, dizer da saudade que sentiu, dizer que
o perdoava. Iria implorar por resgatá-la da maldade da mãe amargurada, quem sabe até
dizer da sua predileção por macarrão instantâneo. Dessa forma, ziguezagueou por horas
até finalmente encontrar o barco do pai.
Ao longe, apenas com a cabeça para fora da água a filha o viu. Ele estava com a
mesma imponência das fotos, apenas mais belo com o rosto marcado pelos anos nos
conveses das embarcações. Estava com um cachimbo na boca e ao flertar com
Fromilda, se assustou. Ela por sua vez, emocionada, deu um salto para fora da água de
alegria expondo toda a beleza de sua calda mitológica. Tomou impulso para reaparecer
mais perto, subiu novamente para se mostrar a Baldênio, sorrindo.
Naquele exato momento ela percebeu que os cortes nos dedos proporcionados
pela lâmina que usava no trabalho não chegava nem aos pés da dor que sentira no peito.
Ao olhar para baixo viu o arpão transpassar seu corpo, o sangue saindo aos borbotões
trocando o azul do mar pela tinta da sua morte. Aquela dor insuportável foi deixando o
dia cada vez mais enegrecido e a sereia Fromilda antes de perder completamente os
sentidos viu o pai pular de alegria junto de outros marinheiros.
Ao ser arrastada da água Baldênio não acreditava que finalmente havia pescado
o monstro do mar que buscara durante toda sua vida. Os companheiros, incrédulos,
contemplavam a criatura morta sem acreditar nos próprios olhos ao constatarem que as
histórias de marinheiros anteriores a eles era verdadeira.
A ausência do lar durante tantos anos, apagara da memória do homem os traços
parentais que poderiam causar alguma dor ao pescador implacável. Findo o primeiro
impacto, Baldênio colocou o corpo da nereide numa enorme caixa com gelo, fazendo
dela o túmulo improvisado da criatura insólita que capturara. Depois disso, voltou para
o timão, mudou a rota rumo à terra firme e beijou o pingente de sereia, agradecendo aos
deuses do mar por aquela pescaria magnífica.
Benício Gon nasceu na capital paulista em 1971, mas mora há mais de trinta anos no
interior de Minas Gerais. Atua como advogado, mas se autodenomina um ―enfileirador
de palavras‖. Escreve desde sua juventude e teve diversos textos publicados em jornais
ligados à cultura e educação. Além disso, é autor de artigos publicados em sites de
renome ligados às ciências jurídicas. Foi premiado no concurso literário ―Cem Anos Da
Abolição‖ e recentemente foi um dos vencedores do concurso ―Me Conte Um Conto‖
com sua obra intitulada ―Eu Te Odeio, Max Planck!‖. Suas influências na literatura vão
de Dostoiévski, Saramago, Kafka, Augusto dos Anjos até Stephen King e Alan Moore.
a história do beijo

à Ondjaki

pela primeira vez


que fechei os olhos
dois dias antes de eu nascer
trocaram o meu nome

voltei a ser o que eu deveria


ter sido

da segunda vez
apagaram as luzes
o vizinho tinha
o mesmo nome
de guerreiro que o meu

mas na terceira vez


com os olhos fechados
ousei abrir a boca:

a minha língua descobriu


o que era passear sob as águas

___

da partida o gesto de repartir

I.

tenho as mãos
pesadas
no colo
do umbigo

nada mais resisto


além
de afagar
-te

II.

há quem perceba
que nascer
além
de abrir
os olhos
e de cortar
laços

seja descruzar
os braços
na hora
do adeus

___

vertiginoso

o corte da vidraça vigia a tua silhueta

suspeito do teu amor


quando me espia,
fresta ímpar do poente unilateral

te vejo despistando a sombra

no tempo em que frequento


morosa a despedida,
dentro dela me comovo trêmula

a carne o que é se não o vestígio


Gyzelle Góes é poeta, carioca, nascida em 1994. Autora de Amante (Urutau, 2019).
Formou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio). Atualmente pesquisadora do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB),
trabalha com arquivos pessoais e poesia contemporânea.
PRAXEDES
Não sabia definir o que estava sentindo naquele momento em que assistia ao
seu enterro junto com familiares, amigos e colegas de trabalho.
Ao redor do caixão, o rosário de reminiscências era pouco a pouco debulhado
naquela estranha cerimônia.
— Perdeu muito sangue naquela vez em que se feriu feio. O talho que a chuteira fez foi
profundo.
Se o amigo, que era fisioterapeuta, não tivesse dado aqueles pontos falsos e feito aquele
curativo de contenção, teria ido mais cedo ainda - recordou sua mãe, enfermeira
aposentada.
— Competente na grama e uma fraqueza na cama. Toda noite só cuidava de câimbras -
desabafou a esposa magoada.
— Graças àquele chute que acertou no ângulo do gol do adversário, durante disputa de
pênaltis, ganhamos um campeonato brasileiro - lembrou o companheiro de time com
quem fez dupla no meio campo por uns bons anos.
— Cambota mais certeira que eu já vi. Merecia a homenagem de uma réplica de cera -
troçou o amigo piadista.
— Devo-lhe todos os dribles que aprendi. Não chegarei ao nível da sua habilidade - fez
memória a filha mais velha, jogadora da seleção.
— Desconheço um arranque tão veloz do meio do campo até a área do adversário,
ligando passes de maneira tão habilidosa. Esta é uma grande perda - declarou outro
colega jogador do time arquirrival.
— A infecção foi galopante. Não conseguimos debelá-la a tempo porque não cuidou do
diabetes - explicou o médico, também presente no esquisito velório.
No pequeno féretro, um miasma que conseguira escapar por entre uma pequena
fresta, lembrou a todos que o corolário de recordações não podia ter mais louros. A
decomposição adiantava-se ao sepultamento.
Um amigo mais corajoso tomou para si a atitude que todos estavam com medo:
— E você, Praxedes, não vai dizer nada à sua querida perna esquerda que lhe
conquistou tantas glórias?
Erguendo a cabeça, olhou todos os que estavam ao seu redor e, com voz firme e
grave, disparou uma frase que vira certa vez no pórtico de um antigo cemitério:
— Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.
Um a um, desconfortáveis, os amigos, colegas e familiares foram saindo, com
sensação de mal estar, até restar Praxedes, a canhota e o coveiro: único a aplaudir e
elogiar a sua citação.
— O doutor disse uma verdade certa. Eles estão esperando pacientemente por nós. Sorte
a sua já estar sendo preparado para a hora em que o resto for.
Sorrindo sardonicamente do humor maldito do coveiro, disparou a última frase bala
enquanto colocava-se de pé em suas pernas de pau:
— Vai-se a canhota. Fica o Praxedes. Até breve, querida.
Não morreu aos cem anos de idade sem antes ganhar dois campeonatos
paraolímpicos de futebol.
Quando foi feito o translado de seus restos mortais, do cemitério municipal para
o mausoléu dos Praxedes, a família percebeu que a canhota, sepultada posteriormente
com o resto do corpo, não estava no caixão.
Ela havia chegado, antes de todos, ao lugar onde alguns mortais têm sua última
glória!
Leandro Costa é poeta e contista cearense, natural de Santana do Acaraú. Seus textos,
marcados por uma voz narrativa que se inspira nas lendas, folclores, memórias e
histórias de seu povo, estão publicados em diversos periódicos e antologias do país.
Antigos versos

Era, agorinha, tudo meu


Os riscos no papel neon
As bolhas produzidas pelo sabão
O tapete vermelho no canto da sala
As risadas da criança na calçada
Os versos que flutuam em minha mente
As folhas que caem lá fora
O broto de sentimento germinado no quintal
A fogueira de São João
A música tocada inúmeras vezes
O livro lido e relido no porão
A sinfonia de Mozart tocada agora
A leitura da partitura dos sons
O estudo complexo do humano
As particularidades do eu poético
Isso tudo, agorinha, era meu.
Joyce Nascimento é natural do Rio de Janeiro. Formada em Letras e Especialista em
Literatura Brasileira. Dos anos de estudo e grande afeição pelo universo literário
publicou suas poesias em três antologias, jornal, revistas e blog. Em 2020, recebeu
menção honrosa no XXXI Festival Nacional de Poesias Eunice Maria de Oliveira. Além
de escrever, declama/ler textos poéticos e realiza entrevistas no canal Literatura já.
Entre Jujubas e Brigadeiros

Brigadeiro carregava consigo uma vasilha côncava de chocolate, em seu interior


uma mistura de açúcar cristalino e água.
O marechal, alto oficial logístico militar do Reino Caramelado, cruza os
corredores silenciosos da masmorra, o açúcar confeiteiro empoeirando seus sapatos. Os
olhos achocolatados desdenhosos percorreram as balas de diversos sabores, prisioneiras
dos próprios destinos infelizes. Todas tentaram o mesmo que ela; todas falharam,
inevitavelmente. Suas iras transbordavam por calúnias infundadas e fugas
desorganizadas, controladas por seus companheiros de farda em segundos.
Dobrou onde o corredor fazia um ângulo e seguiu na horizontal. Aos fundos, após
dois filetes de luz advindos de uma rachadura na parede de rapadura, uma cela solitária.
Presos ditos influenciadores tendiam a ser separados dos demais em quaisquer
atividades. Caso fosse necessário convívio social, haveria vigilância constante de um
guarda em sua retaguarda. Rebeldes líderes convertem medrosos a sua causa frívola.
O soldado a postos frente a cela enrijeceu os músculos ao vislumbrar o superior.
Eram igualmente negros da cabeça aos pés e seus cabelos, granulados em corte militar.
As armaduras de placa padrão, uma mistura aquecida de chocolate e goma, continham
uma fina película protetora de paçoca reluzente. Pelo título superior, Brigadeiro possuía
um brasão em formato de pudim no centro do peitoral e uma capa de cajuzinho
cobrindo os ombros.
Houve um aceno de cabeça discreto entre os soldados. Brigadeiro iniciou a fala,
apático:
— Como anda a prisioneira?
O homem pigarreou, limpando a garganta inutilizada há um bom tempo. A
posição não requisitava fala, sim furar balas com sua lança, o que fazia com apreço.
— Silenciosa. — Virou o pescoço para o lado, analisando-a com rabo de olho. —
Fora trazida arrastada pelos cabelos, desacordada. Não se mexeu até agora.
Suas mechas de algodão doce não foram feitas para isso.
— Mataram-na? — questionou, disperso nas próprias cogitações.
— Não é de meu conhecimento.
Isso não estava em seus planos.
— Retire-se. — sobrepôs a fala contestadora do empregado, fuzilando-o com os
olhos. — Quem dita as regras sou eu! — fez uma pausa, prostrando sua figura contra o
subordinado. — Precisarei lembrar o porquê me declaram ―Podador de Cabeças‖?
Segurou no cabo de pé de moleque com a mão livre, os cenhos franzidos ao ponto
de doer a região. Houve um desembainhar curto da espada.
— Nã... — incapaz de finalizar a palavra, mudou a frase. — Com sua licença,
senhor.
O homem trêmulo retirou-se a passos apressados, cruzando o ângulo do corredor a
zombarias das balas. Certo de não retornar, Brigadeiro adentrou a cela.
Fungos colonizavam os encontros das paredes e tetos do pequeno cômodo. Havia
um colchão de pamonha disforme o qual a mulher estava sentada, a cabeça tombada
para o lado. Sentando ao seu lado e depositando a concha entre as pernas dobradas,
mergulha um pedaço da capa no líquido.
— Me ajude a te ajudar, Jujuba. Se colaborar, poderei livra-la dessa enrascada.
Comtemplou a pele rosa bebê da moça. Sua boca de tom mais escuro, coberta por
açúcares finíssimos continha um corte em cicatrização. Como sentia saudade desses
lábios cruzando os seus em contato profundo. Passou o líquido na região e logo Jujuba
os retraiu ao interior da boca, abrindo os olhos penosamente.
— Para quem trabalha?
— Usará tal informação contra mim, certamente. — murmurou.
A pergunta deixou a assassina hostil, mais do que quando a salvou da forca. Um
equívoco de sua parte cogitar confiança na intimidade de sua relação. Afastou o
desapontamento e coração partido.
— Quando ameacei fazer algo do gênero? — auxiliou-a pôr a cabeça centralizada.
— Trabalha para meu inimigo. É suficiente para desconfiar de seus passos,
Marechal.
— E você para o meu. — limpou com o polegar direito uma poeira da bochecha
dela — Não pensou nisso quando compartilhou o quarto comigo.
As pérolas rosadas da criminosa fitam-no, perplexa.
— Veio por nostalgia?
Seu cérebro de gelatina o ridiculizava por sacrificar a própria vida por alguns
momentos em seus braços ácidos. Não o culpava, afinal era o milésimo a cair nos
encantos da famosa ―Degoladora de Beijinho‖. Detestava o título, entretanto; fora tão
fácil acabar com a patética existência do primeiro rei da távola que considera o nome
uma afronta a suas capacidades.
Os dedos rosados foram aos granulados, a outra mão por baixo do travesseiro
sonho de doce de leite. Uma amarga carícia, vontade tentadora de se divertir as custas
do homem.
— Teria uma boa vida aqui. Cama do melhor doce de abóbora para descansar,
rocambole para cobrir do frio, creme de Curau de Milho para hidratar seus cabelos, um
belo vestido de chocolate. Proteção. — obteve sua devida atenção. — Tudo que merece.
— Tentador... — divagou a moça, encarando a parede fria ao seu lado.
— Então porque reluta tanto em aceitar?
Ergueu uma sobrancelha para o homem, incrédula por questionar tamanha
estupidez. Ignorar seu histórico era loucura. Uma aposta falha desde o começo. Mas
quem disse que Brigadeiro estava apto a ouvir a razão?
— Depois de amassar Pudim com meus pés.
— Jujuba! — sentiu certo ciúme no seu tom de voz — Esqueça esse homem.
Deixe isso de lado. Pare de ser marionete do mentiroso do Goiabada. Posso te oferecer
algo melhor do que isso que temia em chamar de vida.
Jujuba sentiu pena do quão desesperado se encontrava no momento. No fundo
desejou rir, tão alto que seria possível ouvir das Montanhas Maria Mole ao Norte. O
homem continuou, em tom melancólico:
— Convenço-o poupar-te, só confirmar trabalhar para ele e estar arrependida.
Jujuba suspirou, puxando um objeto debaixo do travesseiro.
— Brigadeiro, — aguardava ansioso um ―sim‖ de sua parte. — quem disse que
trabalho para ele?
O resquício de um pedido urgente de socorro foi abafado. Os braços buscaram
afasta-la de si e obteriam êxito, se os joelhos da jovem não estivessem nos seus pulsos.
Um líquido ardente adentra as veias e mistura ao caramelo sanguíneo, queimando por
onde passa. Buscou algum sinal de afeto em seu semblante, que o mesmo amor sentido
por si fora transmitido a ela. Nada. Um casco vazio, um recipiente de sofrimento alheio
inexpressivo. Por trás do corpo, um pedaço de queijo encharcado por algo. Alternou a
palma da mão por tal objeto. Cobrindo o nariz em sua totalidade, o impedia de respirar
qualquer coisa sem ser a substância salgada. Sentiu tonturas, náuseas e uma vontade
incontrolável de dormir por uma eternidade. Os olhos tendiam a revirar, cansados,
pesados.
Antes dos sentidos esvaecerem, ouviu sua bela voz ao pé do ouvido:
— Me perdoe, foi preciso.

— Comeu como deveria?


Essa foi a primeira pergunta do Rei Quindim após guardas amarrarem Brigadeiro
a cadeira de tapioca doce. Não tinha forças para lutar, os músculos ainda doíam após
dias da batalha.
Mirando-o, dirigiu-lhe a palavra de maneira respeitosa.
— Nunca comi tão bem. — sua voz carregava exaustão mental.
Não era mentira. Uma velha tática de tratar bem inimigos para tornarem-se aliados
fortes.
— Chamei-o para dizer ter bastante sorte, — caminhava de um lado a outro, a
capa do rei morto Goiabada sendo exageradamente grande para seu corpo magro. —
visto que feri uma lei.
A curiosidade o venceu.
— Não infringiu nenhuma até o momento.
— Ora como não? Soube ser esposo de Jujuba. Não ferimos nem destratamos
cônjuges nesse mundo.
Por um momento, pôs-se a pensar. A possibilidade rondou a mente, indo e vindo.
— Sobre isso que o senhor tratava...Sim, sou. — concordou, duvidoso do que
pretendia.
— Desconfiava da afirmação da jovem, contudo se confirma, tenho uma proposta
ao senhor. — Sentou novamente em seu trono, observando os mesmos guardas que o
prenderam, soltando-o — Como lideraria com um exército sem recursos, em território
inimigo?

Jujuba atentou-se ao diálogo. Acompanhada de uma senhora com cabelo de


chuvisco, ouviam a conversa por de trás da porta. A serviçal estranhou o sorriso
genuíno nos lábios da senhora.
— Orgulhosa, minha ama?
Jujuba virou para a mulher amarelada, reprovando-a:
— Cuidado, as paredes têm ouvidos. — Postaram a andar, disfarçando sua
intromissão nos assuntos reais. — Mas, respondendo sua pergunta: contente.
Ganancioso. Inteligente. Objetivo.
— Um par perfeito para senhora. Faltará mais um para ser a Rainha Doce.
Jujuba mordiscou o lábio, excitada pela ideia de controle.
— Tem razão, Chuvisco. Talvez tenha feito a coisa certa em me casar. Ele tem me
sido útil. — Cruzando uma pintura do rei Quindim, imaginou sua lâmina atravessando
seu crânio. — É um ciclo, querida. A queda de um reino começa com um ato de
confiança, e um posto alto.
Maria Tepper é uma autora carioca nascida e vivente do interior. Amante de leitura
desde nova, viu na escrita uma forma de expressar ideias e pensamentos. Estudante de
Arquitetura e Urbanismo do terceiro período foi selecionada na "Antologia Um feliz
Natal, da Rico Produções com o conto "A menina de cabeça para baixo" e Antologia
Lady Plus Size, com o conto "O documento confidencial do Barão", organizado pela
autora Cici Cassi.
Relógio de areia

Nunca se engane com as pequenas coisas,


elas são mais cruciais do que se imagina.
A arte nos faz sentir, ver, ouvir e viver outras vidas,
por isso, tem sido como água nesse deserto sem fim.

No ir e vir das ondas da vida,


nos deparamos com situações
que modificam-nos permanentemente.

Em um dia, tudo seguia o seu curso,


o tempo era cronometrado à conta-gotas,
e todos corriam, perdidos em seus próprios mundos.

No dia seguinte, o mundo parou.


A pandemia desacelerou os relógios,
e, abruptamente, levou vários entes queridos.

Tudo o que antes era ignorado,


ganhou um novo significado.
A vida ganhou uma nova cor.

De repente, percebemos a nossa transitoriedade,


somos apenas passageiros nesse mundo.
Só então, notamos que existe
um universo além de nós.

Mas atravessar desertos exige coragem.


Às vezes, é preciso deslocar a rota
para encontrar o caminho.
Assim, a arte tem sido a nossa bússola.
Gabriela Lages Veloso (São Luís – MA) é contista, cronista, poetisa e ensaísta.
Atualmente, é colunista das Revistas Sucuru e Literatura Errante. Em 2020, publicou o
conto O Relicário na Revista Intransitiva (UFRJ). E, em 2021, colaborou com revistas
nacionais e internacionais, tais como Quatetê, Desvario, Tamarina Literária, Granuja e
Ser MulherArte – Revista Feminina de Arte Contemporânea; assim também como
participou das Antologias poéticas Elas, a poesia, o indescritível e Mulheres de Atenas.
Titiana

A mulher de cabelo preso e corpo gordo tinha pouco a ser mostrado pra homem que
queria mulher feita mulher. Titiana não tinha nem 12 anos quando escutou isso dos
coleguinhas de escola. ―Gorda feito bola merece ser chutada mesmo‖. A frase ecoava
em sua mente em toda aula de educação física. A menina se recusava a praticar algum
esporte. Tome advertência. Reprovada nas aulas por ter um corpo pouco de mulher e
muito de homem, ela pensava. O cabelo, as unhas, a gordura em toda estrutura física de
Titiana faziam dela a ―gorda-baleia‖, a ―menina-macho‖. A coitada tinha em mente que
não seria de ninguém, nem daqueles homens mais feios que a xingavam.
―Ô, mãe, como faço pra emagrecer?‖. ―Tem que fazer dieta‖. ―Eu quero meu cabelo
liso, também, porque não quero mais ficar com ele nesse amarra-amarra‖. ―Solta que a
gente faz progressiva‖. E foi desse jeito que a menina-criança, que muito entendia da
crueldade da vida, começou a se torturar.
De comida, só ingeria a fruta que a mãe mandava pra comer na hora do recreio. Do
cabelo, a aflição era mensal. O estica-estica fazia a menina chorar a noite inteira de dor
de cabeça. Titiana não viu o comportamento dos meninos da sala de aula mudar. Ela
continuava o patinho feio, só que querendo ser arrumada e era nisso que eles achavam
mais graça ainda.
Em Titiana doía tudo. A barriga de fome. A cabeça por causa dos produtos de
alisamento. A rejeição de menino. A feiúra. Até o nome sofria, coitado. ―Titiana, mãe?
Ninguém tem esse nome‖. A menina danava a chorar sozinha no quarto.
Aos 14 anos, ela estava mais magra que vara de cipó. Do cabelo, restavam poucos fios
lisos. Desenvolveu essas doenças que nem Titiana e nem a mãe sabiam o nome. ―Ah,
era anemia‖. Lembrava às vezes. Seguiu a vida, a dieta, o alisamento. Seguiu sofrendo
para não sofrer ainda mais. Sofreu até pelas espinhas que não conseguia esconder.
Os 15 vieram com a dúvida de que nunca iriam querê-la mesmo. Homem, mulher.
Beleza era o que não tinha. Menina-bonita era o que não saia da boca de ninguém.
Nessa fase da vida de Titiana, o que ela mais queria era alguém que a amasse.
Observava feito boba as meninas de sua idade beijando meninos nas grades da escola.
Sonhava com o seu momento que, por vezes, achou que nunca existiria.
Na adolescência lia livros dos homens prontos para amar as mulheres. As mulheres
frágeis que precisavam serem salvas por algum príncipe encantado. Eram nessas
histórias que mulheres eram bibelôs nas mãos de machos que só queriam mesmo
possuir algo. E Titiana queria ser possuída. Queria ser a posse de seja quem fosse.
Ninguém havia ensinado Titiana que ser de alguém é padecer no sofrimento de
aprisionamento. É buscar casa em telhado que falta. Titiana não sabia que, antes mesmo
de querer ser de alguém, tinha que se reconstruir para tirar o amarra-amarra do cabelo, a
figura da gorda-baleia da cabeça.

Encontro do padecimento
Já era tarde. O sol começou a se pôr. No fundo, bem lá no fundo, Titiana ouviu alguém
gritando sua voz. Era o Marcos. Um menino desajeitado. Bonzinho, bonzinho. Ele era
novo na escola e, como via a coitada sozinha, arrumou um jeito de fazer amizade. O
coração de Titiana acelerou. Acelerou tanto que era capaz da menina morrer de infarto
ali mesmo.
Marcos era gentil, assim como Titiana estudava muito. Os dois passaram a ser amigos.
Não se desgrudavam. A menina encontrou alguém a quem poderia pertencer.
Apaixonou-se. Dos livros que lia, imaginava Marcos como um salvador para toda sua
dor. Era desse amor romântico que Titiana encontrava motivo pra deixar o sentimento
da feiura de lado.
Marcos pouco demonstrava interesse por Titiana. Ao menos, a pobre não sentia. E,
mesmo ele não querendo, dentro da cabeça dela, Titiana e Marcos eram um só. E assim
foi. Quando a menina teve coragem de dar uma carta para Marcos, o felizardo
correspondeu. Ele queria Titiana, sim. Ela que poderia ser dele.
Quando terminaram a escola, trataram logo de arranjar um casamento. A mãe de Titiana
ficou surpresa com a felicidade da filha – que nunca antes fora vista. Deixou a menina
ir. Deixou porque destino de mulher é sempre acompanhar o que homem quer, pensava.
Ia ser feliz, mas também ia ser triste. Não se reconheceria. Mas de reconhecimento
mulher nenhuma precisava já que pertencia era a macho bom. E era a masculinidade
desse homem que importava mesmo.
Marcos entendeu tanto que Titiana queria ser dele que, aos poucos, durante o
casamento, a mulher já quase não existia. Era a roupa que o marido queria. Era o cabelo
que o marido queria. Era a saída que o marido queria. A comida também e a casa
arrumada e as coisas todas limpas. Era tudo de Marcos. A mulher desapareceu. Se
transfigurou naquilo que o marido queria.
Titiana pouco se dava conta. Nos livros que leu na adolescência, as mulheres eram
assim mesmo. Mudas, criadas do próprio homem. O amor romântico é assim, pensava a
pobre coitada. Era essa a regra de vida da mulher. A regra de pertencer a alguém. A
regra de querer ser de alguém. A regra de fazer de tudo para ter alguém ao seu lado.
A fragilidade de Titiana foi aumentando enquanto um pouco dela desaparecia.
Transfigurou-se. Foi se transfigurando até a figura do marido ser a figura do homem que
mandava e desmandava.
A pobre mulher queria o corpo do homem que gritava o nome dela na escola para
saírem juntos. Mas teve o corpo do homem que gritava sem razão, por soberba. O grito
do amor virou o grito do sofrimento. Padeceu-se nesse grito e, assim como a
transfiguração que lhe foi dada, ficou calada.
Titiana engravidou. Foi a mãe que não queria ser. Não se reconhecera nem na própria
feição. Temia que a criança nascesse com a cara de Marcos, com o jeito do Marcos. Não
queria mais um Marcos. Da angústia do não querer, Titiana não manteve barriga. A
criança foi embora como a própria Titiana já havia ido há anos.
Do aborto espontâneo, a braveza do macho que tudo podia. Marcos queria ser pai pra
provar que era mais homem que outros homens. O homem bebeu até chegar em casa e
acabar com a pouca figuração da mulher que não existia. Titiana não conseguia reagir,
não conseguia falar que tinha medo. Medo do Marcos de agora. Medo do Marcos que
poderia nascer do seu ventre.
Marcos queria acabar com o corpo de Titiana assim como ela acabou com o corpo da
criança que estava esperando. A menina, que na adolescência fez de tudo pra ser aquilo
que todos aceitariam, agora vivia a batalha pra sua própria estrutura física se manter de
pé.
Não se manteve.
O que era feio em Titiana ficou mais feio ainda com a violência de Marcos. O corpo
roxo. O rosto sangrando. Logo Titiana. Logo a menina que era a ―gorda-baleia‖, que
vivia do sofrimento de feiura. Logo Titiana que estava mais feia ainda com os ataques
do marido.
Quando Marcos parou de bater na mulher já era tarde demais. O rosto de Titiana estava
irreconhecível. O corpo da mulher inchou. Voltou a sentir-se a não-desejada.
Titiana não havia se dado conta, mas o Marcos que conhecera havia ido embora desde o
momento em que fez dela a própria posse. E Titiana havia ido junto. Agora, além de ir à
maior das metáforas, foi também de corpo. Terminou como jamais pensava: morta pelos
livros de amor romântico. Morta que de amor nada tinha.
Morreu. Morreu desfigurada. Morreu porque mulheres morrem nas mãos de homens.
Todos os dias.
Andriele Moraes tem 25 anos, é pernambucana, jornalista e uma das criadoras do
grupo de leitura e podcast "Clube do Livro Feminista".
Coração do Cerrado

Na encosta marrom-barro do barranco


recosto meu coração feminino
repouso meu coração frio de chuva
meus pés sujos de lama
perguntam-me pra quê tanta terra
tanta água
tanta mistura da cor do passado
selvagem de mata e cachoeira
adormeço meu interior
nos caminhos que me esperam
o futuro é uma saudade que tenho
das mulheres que geraram essa semente
sou árvore de galho retorcido
deitado à beira da nascente

Chão Batido

O caminhar cansado
prenuncia o caminho agreste
Chão batido
sol ardente
vida exausta
corpo demente
Fardo pesado
cantil vazio
Nenhuma paisagem
para encher os olhos
poeira cascalho e pó
Alma de sedimento
vontade de chão sedento
e um céu telhando a cabeça
Mundão de meu Deus
caminho de herança
A terra que piso
é o tudo que tenho
alforge cheio de andança
Maria Luiza Franco – Poeta e escritora. É de Sete Lagoas, MG. Escreve desde
criança. Seu livro de estreia Terra Fantasma foi lançado em 2020 e versa sobre
ancestralidade, dentre outros temas. É graduada em Letras e pós-graduada em
Africanidades e Cultura Afro-brasileira. Atua como professora de Língua Portuguesa e
Literatura em Minas Gerais. Já teve poemas publicados nas revistas: Travessa em Três
Tempos, Desvario, Paranhanas Literária, Toró Editorial, dentre outras. Participou das
Coletâneas Enluaradas: Se essa lua fosse nossa e Mulheres Afeto e Liberdade. Mantém
uma página no instagram onde publica séries de poemas, divulga sua arte e fala sobre
literatura.
Foto: Roberta Condeixa
Sobre a obra Pórtico Bipolar para Romeu e Julieta

A obra foi produzida em 2005 nos ateliês do IART/UERJ tendo como o tema o suicídio
e a ideação suicida. É um objeto de madeira com roldanas e ganchos de metal e corda de
sisal. O trabalho nada quer demonstrar, existe para ser contemplado e acontecer na
mente e no sentimento daquele que o observa.
O crédito da foto é de Roberta Condeixa.

Solano Guedes de Miranda (1980-) é um artista visual, poeta, letrista e escritor


carioca. Publicou uma coleção infanto-juvenil, a Trilogia das entrelinhas, pela Vieira &
Lent Casa Editorial — ―A história dos três pontinhos‖ (2009), ―A revolta das vogais‖
(2011) e ―O eu que não sabia ser eu‖ (2016), livros que estão sendo relançados em 2021
pela Editora Zouk de POA. Além de diversos trabalhos de pintura, vídeo, desenho e
performance que estão no seu site: https://solanoguedesartes.wixsite.com/solanoguedes
é vencedor do Prêmio Destaque Vladimir Herzog Continuada 2020 com um roteiro para
a #chargecontinuada. Foi aluno do curso de Artes do IART-UERJ e participou de vários
eventos da cena alternativa de arte no Rio de Janeiro, incluindo o MOLA no Circo
Voador 2006 e o Santa Teresa de Portas Abertas 2010, participou também da
internacional DRIVE-IN RIO por ocasião da RIO+20. Sua mais recente publicação é
―Mu{l}tilado‖ (Mundo Contemporâneo Edições, 2019), seu primeiro livro de prosa
poética voltada para o público adulto, está no Instagram em @solanoguedesart
lacônica

intimidada pelo papel

inscrita e entrecruzada

encoberta em fiapos

de uma linguagem fantasmagórica

nas mariposas de plath

jaziam as pedras

o abismo a escrita

embalsamada e sublime

sem memória, água viva

em sua calça de linho

pelos cabelos de augustina

talismã de ninguém
evocação

nos talheres caídos

na sala de jantar

sinto o teu sangue

quente e pegajoso

da quina da escrivaninha

no quarto ao lado

palavras melódicas

em claustro rígido

dentro de ti

o rumo da imaginação

nada mais romântico

que uma dona quebradiça


papel-manteiga

doroteia estava atrasada

mais um dia, mais uma noite

o cloro que rachava tuas mãos

também a enchia pelas narinas

de fulgor, do alívio e da gordura

o medo da doença já se foi

a dívida da padaria aumentara

a ilustre fragrância no horizonte

no impulso repentino avisava

você já é salgueira impregnada


divindades do mar

do rio de suas pernas

um falo cristalino

do amor, um móvel

labirinto líquido

a perversidade do acatamento

do saque inerente do gênero

um aguaceiro inconsequente

de suas pirâmides imaculadas

herege do nosso tempo

modesta cortesã
o assassinato de medeia

posto que és versada em toda a sorte de malefícios

o creonte moderno chega em casa ao cair da noite

invoca sua lata de cerveja e ratifica os resultados dos jogos da última


quarta-feira

o jasão moderno com sua carona cedida

ceifa as ervas poderosas por um instante

a medeia moderna segue nas fontes dos lares

até o dia em que seu sagrado é invadido e rasgado

assassinada pelo homem do lar


o livro dos fazeres

mais uma mulher

explorada

de pouca relevância

mergulhada no fora de si

de arquétipo heroico

por excelência

mas envolta nos

estereótipos da subexistencia

como eu deveria

me criar como alguém

se sou dona de uma

alma incomensurável?
encenar feminino

fe e

permitido e posição

cutucada machucada

fe e encenado

e desaparecimento

desfazer laços

ensinado vinculado

finitude humana

santa ou bruxa

j a a d’arc e cha a
em amarras

sophia me disse

quando falava de fernando

que era de extrema coragem

o ser ninguém

e ao devo ser de alma valente

constantemente

travando luta

contra mim mesma

nunca me senti alguém

ao mesmo tempo que me sinto

cheia de tudo e farta de ser tanto

também sou impossessiva com o ser

sou várias em uma

indefinida de sentidos e de toque


a poesia da mulher louca

quando não imaculada

santificada

distante de virgem maria

her e tentação

perdição

de comportamento desviante

animalesca

precisa ser domada

quando violentada

ela estava pedindo

ventre corrompido

simulacro de eva

não tocar e não interromper

castigue, mesmo que ainda

crianca

d e e idade das trevas

a d e e mulher
a carpideira

no ar suspenso vejo a ti

e do vapor temperado

o resquício daquilo

que chamei de família

hoje a casa sem teto

se afoga em sonetos

e nas palavras roubadas

de mulheres mortas

a harmonia, a devoção

o abraço, o acolher

fugi das cantigas de lamento

da hóstia vazia e espiritual

meu território virgem de palavras

e de estética familiar

da parede, minhas vírgulas

o teu sofá e o crato

sua lembrança

a carpideira agora vive em mim


Juliana Toivonen, nascida em fevereiro de 2000, descobriu a paixão pela escrita logo
cedo, dentro das histórias de vampiro e bruxaria que foram sucesso na sua pré-
adolescência. Hoje, estudante da Universidade Federal de São Paulo, no curso de Letras,
segue explorando histórias vampirescas - hoje nas obras vitorianas-, mas foi na poesia
que se encontrou como uma possível escritora e pesquisadora. Em meio aos textos
teóricos e conceitos fundamentais dos estudos literários, do corpo poético de Maria
Teresa Horta e desolação de Valter Hugo Mãe, encontrou potencial poético de roubar
palavras de mulheres históricas, colocando-as como voz e presença carnal dentro de
versos desordenados. Publicou o livro de poemas "palavras roubadas de mulheres
mortas" pela Margem Edições em 2021.
Contato: @jstoivonen [instagram]
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