Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
com/umbuama
Índice
Editorial ------------------------------------------------------------ p. 6
Duayer -------------------------------------------------------------- p. 9
Clecimara Barbosa ----------------------------------------------- p. 29
Daniel Rodas ------------------------------------------------------- p. 33
Vitor Miranda ----------------------------------------------------- p. 38
Nic Cardeal -------------------------------------------------------- p. 43
Benício Gon -------------------------------------------------------- p. 55
Gyzelle Góes ------------------------------------------------------- p. 64
Leandro Costa ----------------------------------------------------- p. 68
Joyce Nascimento ------------------------------------------------- p. 71
Maria Tepper ------------------------------------------------------ p. 74
Gabriela Lages Veloso ------------------------------------------- p. 80
Andriele Moraes -------------------------------------------------- p. 83
Maria Luiza Franco ---------------------------------------------- p. 88
Solano Guedes ----------------------------------------------------- p. 92
Juliana Toivonen ------------------------------------------------- p. 95
Agradecimentos e Contatos ----------------------------------- p. 107
Editorial
O vento da mudança vem
O vento da mudança vai
Vento vem
Vento vai
Vento vem
Vento vai
Sopra e o tirano
Cai
Sopra e o tirano
Cai
SOPRA E O TIRANO
CAI!
Sucuru é dança. Sucuru é o vento da mudança em trança. Sucuru é lança. Sucuru é grito
da lança que dança. Sucuru é rito. Sucuru-agito da dança que entrança. Sucuru-rugido.
Sucuru gemido do tempo que dança.
Sucuru é mistura. Sucuru é tempero no rio da cultura. Sucuru é cura. Para o mal do
fascismo e o medo de altura. Sucuru é fúria. É fúria do vento girando às alturas. Sucuru
é ato. Sucuru é o canto de dentro do mato.
Sucuru-aldeia. Sucuru-cidade. Sucuru-criança. Sucuru-idoso.
Sucuru é o velho que insiste no gozo. Sucuru é o riso dançando na chuva. Sucuru é uva.
Sucuru é mamão. Sucuru é a flecha no peito do irmão. A flecha no amor do irmão.
Sucuru é o rebelde arredio. Sucuru é a menina em desafio.
Sucuru é tudo. E nada.
Tudo o que foi dito até agora. Nada de certeza a essa hora. Serpente antropofágica de
tudo. Comendo o padre e o mulo. Comendo a origem e o fundo.
De tudo. Da Arte e do Todo. De tudo que é ferro Arte e fogo. Arte forjada no fogo. Dos
pés dançantes do povo. Arte da gente. Arte do novo. Quebrando na casca do ovo. Do
tempo rachado no vento. Vento que nasce de novo. Agora: É hora:
SUCURU!
Equipe Sucuru
DUAYER
Nasceu em Tombos, na Zona da Mata em Minas Gerais. Reside no Rio de Janeiro desde
os 10 anos de idade, com breves passagens por Teresina (1991) e Vitória (2010-2013).
É jornalista formado pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Iniciou sua carreira
em veículos de comunicação como repórter na Rádio Jornal do Brasil e como fotógrafo
na Revista Manchete.
Tem quatro livros infantis publicados e alguns outros em preparação. Em 2020 lançou o
livro ―Salve-se Quem Puder – Cartuns e Fotos de Duayer‖, obra com suas fotografias,
cartuns e breve pincelada de sua biografia, comemorando os 50 anos do Jornal O
Pasquim.
Teve trabalhos publicados nos jornais Última Hora, Diário de Notícias, Jornal do Brasil,
A Crítica, etc; em revistas nacionais como Playboy, Status, Mad, Ficção, Revista do
Faustão, Visão e em revistas internacionais como a World Press Review, nos Estados
Unidos, Free Press na Holanda, Libération, na França; possui algumas premiações em
fotografia e cartuns e seus trabalhos foram expostos em vários países da Europa e
América Latina.
Colaborou com séries fotográficas nos Nº2 e Nº3 da edição mensal da Revista Sucuru.
A LINHA CURVA E A MÃE SANGRADA
Entre aquilo chamado céu, terra, um breve suspiro se sustenta infestado de proporções
maiores que a dor e o desejo; as vidas de pequenos grãos pendiam em uma linha curva,
prestes sempre a cair. Esta, sem itens prescritos, sem uma arca a qual se escorar, era a
única base sobre os pés de tantos. Questionava-se ao seguir seu caminho, o que é essa
tal de vida fundida entre tantas línguas, buscava sentido nas estrelas em queimação há
tanto tempo dali, estranho, pensava, era dizer que a própria resposta se encontrava breve
e fácil, essa mesmo? A própria linha, a própria curva, o próprio escorrego. Na busca
incessante se entremeava o exterior e interior vazio, feito da construção de solidão; com
isso, olhara brevemente para cima, como se caísse, de seu corpo saiu uma essência
avermelhada, vertia no lugar de dor; uma sensação de algo que transborda lhe
acometera, para os leitores, um momento inoportuno de se iniciar um monólogo, o
divino não espera, de fato, assim com permanece a estremecer o mundo. À volta, o
fluxo se volvia em seu corpo, o cheiro das pessoas, os sons ecoando em sua mente, essa
dispersa, parada enquanto o corpo estava agitado para correr, seguia sem mesmo saber
como aprendera a fazer aquilo, um passo e depois outro; ninguém notara que agora um
dos seus era encarregada para amar e por isso sofrer com toda a sujeira e sordidez.
Tornara-me invisível, ou não? Não, estava ainda mais alcançável pelos sentidos, gritar
por socorro, não adiantara, passava e passava sem um único resquício de compaixão,
minutos depois, o chão, havia caído com os olhos dentro do coração, foi pulsando e
pulsando a cada vez que outro, outrem, sorria, chorava, agredia, caía, arrancava e morria
e morria, em uma tênue linha finita. Entendi que a partir daquele momento, a função
que me correspondia, mais sincero que isso, era doer e sofrer pela finitude das coisas,
com o peso do mundo nos braços, para que esse se mantenha. Esse deveria ser o papel
da divindade, mas qual essa seja, se não mais o profundo desejo de salvar esse mundo, o
berço que ergue a pequena linha curva. Assim que algum nascia, sua função era sentir a
profunda tristeza para que tal indivíduo se tornasse capaz de sentir dor e com isso por
fim, amor, quando esse sentisse alegria sua função era tomar para si as impurezas que o
permeavam, fazendo com que esse fosse feliz e capaz de o outro tornar; quando esse
morria sua função era chorar para o todo sempre a ausência do ponto inicial e final na
linha curva, assim superava-se a lacuna. Sua dor, imensidão, fênix, de tão singela
desejava arrancá-la com carne e tudo, a que pecado fora conferida a Eva, para sofrer
com o peso do mundo em si, que escolha tivera a carregar isso por milênios. Mulher,
abrira as pernas para aliviar a linha curva, tornara os seus, momentâneos, uma benção
disfarçada; seu corpo de mulher, era essência, dor e nada, seus gritos e pensamentos se
tornaram ainda mais distantes, era sua pena riscar o papel, a boca salivante, o sangue
escorrido, costas nuas, olhou a frente, beijou, a oração de milhares ouvida, arcou com a
própria fertilidade e com seus pesares. O fim, um pequeno detalhe de quando há tanta
linha, seguiu em profundo agito na dor, seu peso, sua cura, as mágoas da criação.
Chamo-me Clecimara Barbosa, nasci na cidade de Monteiro, Paraíba. Atualmente sou
graduanda em Letras Língua Portuguesa; convivo com o mundo proporcionado pelos
livros desde a primeira experiência a qual me lembro, com ―Quando o sertão virou mar‖
de Caio Porfírio Carneiro, hoje sou apaixonada pela poética de Hilda Hilst e espero
levar minha sensibilidade e imaginação além do que possa chegar à relação entre o
papel e a tinta.
Nota: os dois poemas a seguir fazem parte do livro Umbuama, do poeta, escritor e editor
Daniel Rodas, que será publicado ainda este ano pela Editora Urutau.
___________________________________________________________________________
Lições do Umbuzeiro
Arvorar as raízes
Da vida
Fazer-se carne
Mesmo que ao
Vento
Buscar sustento
Nas profundezas
Da terra
Matar a morte
Na teimosia do
Instante
Estar aqui
Agora e amanhã
As tardes do
Ontem.
Andorinha
Não escolho em quem faço
Caca
Só vejo a cabeça
E a camisa alva
______________________________________________________________________
Pré-Venda de Umbuama
ouvi um barulho lá embaixo. eram ratos. eles habitavam a sala. viviam no forro da
estante. faziam barulhinhos incomodáveis. porém a gente não deixaria quieto. meus pais
armaram um plano, ou melhor, compraram uma ratoeira. daquelas ratoeiras gaiolas. o
rato entra pra comer o alimento e nunca mais sai dali. acho que foi o que aconteceu
comigo nessa vida. entrei pra comer um queijo e nunca mais saí. adoro queijos. os ratos
nem tanto. o problema é ficar preso neste mundo cruel. naquela época ainda não
entendia a maldade do ser-humano. nem sabia que existia. se bem que na escola, a cada
dia uma pessoa era escolhida pra ser o rato. na verdade os ratos eram sempre os mesmos
e não existia esse negócio de bullying. já fui rato e sei como é. já ouvi histórias de ratos
que se mataram por aí. cansaram de ser cobaias de piadinhas maléficas e desapareceram
do colégio. foram parar num rio sujo feito uma ratazana ou se mataram por causa de um
queijo. como se o queijo fosse a paz que eles procuravam. enquanto existir seres
humanos vivos não haverá paz.
ouvi meu pai caminhar pelo corredor. a luz do corredor estava acesa. tenho medo
do escuro e ela iluminava o quarto. pulei da cama e fui acordar meu irmão. ele falava
enquanto dormia, mas tinha o sono pesado. ele tinha uns treze anos e eu uns nove nessa
época de nossas vidas.
-acorda, acorda!
era o primeiro rato de nossas vidas. ele pulou da cama e corremos seguindo meu
pai que já descia a escada.
-volta pra cama meninos. – disse minha mãe da porta de seu quarto.
meu pai acendeu a luz da sala e lá estava ele feito um ratinho de laboratório que
acabara de receber um câncer de presente. corria pra todos os lados feito um fugitivo de
filme policial americano quando entra num beco sem saída. e ele não tinha saída. a
morte estava próxima.
-tem que dar um jeito de matar ele. se eu soubesse não tinha usado essa ratoeira.
-e mata como?
-boa ideia.
levamos a ratoeira até o quintal. era uma bela noite de lua cheia. os lobisomens
estavam em Paris ou em algum lugar da Europa. enchemos um balde d‘água até a boca.
meu pai pegou a ratoeira e a afogou n‘água que começou a jorrar do balde.
-cuidado com essa água, meninos. ratos transmitem doenças. – alertou meu pai.
os ratos transmitem cerca de 55 doenças para o ser humano. resta saber quantas
doenças os seres humanos transmitem para os ratos. mas isso pouco importa. o ser
humano se fez do personagem principal aqui nesse mundo. por isso vivemos contando a
história da humanidade. estamos cagando pras outras espécies em extinção e matar um
rato se torna um ato normal. rato é uma peste e precisa ser exterminada, por isso existem
os dedetizadores. por sorte dos ratos e azar dos seres humanos existem três ratos para
cada um de nós e uma fêmea pode reproduzir cerca de duzentos filhotinhos por ano. se
um rato pudesse escrever um livro sobre a história da ―ratanidade‖ eles seriam os heróis
e não os inimigos. eles venceriam a guerra da peste negra. talvez exista uma grande
guerra mundial entre os ratos que a gente não sabe. são mais de mil e setecentas
espécies espalhadas pelo mundo. quem sabe um dia eu faça um filme sobre ratinhos que
fazem experiências em seres humanos de laboratório chamado ―o planeta dos ratos‖.
enquanto eu lhe falava um pouco sobre a espécie nosso ratinho estava preso à
gaiola submersa. ele nadava desesperadamente sem conseguir sair debaixo d‘água. o
luar iluminava a água e a gente conseguia ver a expressão de desespero do nosso amigo.
a sentença de morte foi dada e ele nem pode se defender. agora ele era tão próximo de
mim. quando vemos o sofrimento de um ser vivo de perto a gente percebe que não há
diferença alguma entre nós. os ratos nascem, crescem, fazem o que tem que ser feito pra
sobreviver e de repente morrem. às vezes são assassinados por outros ratos, ou por
outras espécies de seres vivos. eu sou um homem ou um rato? não passo de um ser
humano de merda que aos nove anos de idade encarou a morte de frente. os ratos duram
cerca de dois minutos respirando dentro d‘água. nesses dois minutos nenhum de nós três
esboçou reação alguma. o ratinho afundava, parecia perder a consciência e depois
voltava a nadar até encontrar as grades. as grades são a repressão dos sonhos. ratos
devem ter sonhos, desejos e devem fazer planos. acabamos com os sonhos desse. ainda
vejo até hoje a imagem dele afundando na água já sem vida. um pouco de nossas vidas
se afundou com ele no fundo daquele balde e a gente sabia disso. meu pai despejou a
água no ralo e deixou a gaiola por ali. fomos dormir sem dizer nada com a luz do
corredor acesa. meu irmão pegou no sono rápido e falou bastante durante a noite. tive
medo de morrer pela primeira vez na vida e chorei. resolvi falar com Deus.
1)
QUASE AGORA
Depois a gente esfrega o chão
recolhe os tapetes
ergue os varais com as toalhas e os lençóis
corta a grama que já extrapolou os limites
abre as persianas e deixa chegar outro sol
(13.03.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
2)
LONGA NOITE
longa noite,
o que será do outro dia com novas auroras?
esperanças-fênix depois das cinzas?
(17.03.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
3)
BIOMA
(28.03.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
4)
SENHA
O crepúsculo é esticado,
nenhuma estrela cadente atravessará os céus realizando desejos,
não é de desejos que se alimenta o broto,
mas de algo tão mais genuíno e íntegro.
Esquece o desejo,
livra-te dos anseios,
o vento segue sua rota independente dos obstáculos,
a água escorre pelos veios, pelas veias, pelos vãos,
porque sua natureza é seguir o curso.
– Qual é teu curso na natureza? –
(29.03.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
5)
FAÇA DE CONTA
(04.04.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
6)
(20.04.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
7)
POR ENQUANTO
20.04.2020
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
8)
COMPORTAMENTO
Tartarugas gostam tanto de ficar em casa, que carregam a sua nas costas,
Borboletas ficam em sua casa/casulo, quietinhas, durante boa parte da vida, sem
reclamar,
pinguins sabem a importância de um abraço quando perdem o amor/sua casa,
os homens não entendem o que significa ficar em casa.
(27.04.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
9)
SUBNOTIFICADO
(03.05.2020)
-*-*-*-*-*-*-*-*-*-
10)
(10.05.2020)
Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba, graduada em Direito, é autora de ‗Sede
de céu‘ (poesia, Penalux/2019). Atualmente tem textos publicados em 39 antologias e
coletâneas: 30 no Brasil, 7 em Portugal e 2 na Alemanha. É integrante do movimento
Mulherio das Letras desde sua criação. Seus escritos estão compilados na página do
Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. Também faz ‗resenhas afetivas‘ na página
do Facebook “Minha lavra do teu livro”. É colaboradora da Revista Feminina de Arte
Contemporânea Ser MulherArte.
NA SOLIDÃO DO MAR PROFUNDO
à Ondjaki
da segunda vez
apagaram as luzes
o vizinho tinha
o mesmo nome
de guerreiro que o meu
___
I.
tenho as mãos
pesadas
no colo
do umbigo
II.
há quem perceba
que nascer
além
de abrir
os olhos
e de cortar
laços
seja descruzar
os braços
na hora
do adeus
___
vertiginoso
A mulher de cabelo preso e corpo gordo tinha pouco a ser mostrado pra homem que
queria mulher feita mulher. Titiana não tinha nem 12 anos quando escutou isso dos
coleguinhas de escola. ―Gorda feito bola merece ser chutada mesmo‖. A frase ecoava
em sua mente em toda aula de educação física. A menina se recusava a praticar algum
esporte. Tome advertência. Reprovada nas aulas por ter um corpo pouco de mulher e
muito de homem, ela pensava. O cabelo, as unhas, a gordura em toda estrutura física de
Titiana faziam dela a ―gorda-baleia‖, a ―menina-macho‖. A coitada tinha em mente que
não seria de ninguém, nem daqueles homens mais feios que a xingavam.
―Ô, mãe, como faço pra emagrecer?‖. ―Tem que fazer dieta‖. ―Eu quero meu cabelo
liso, também, porque não quero mais ficar com ele nesse amarra-amarra‖. ―Solta que a
gente faz progressiva‖. E foi desse jeito que a menina-criança, que muito entendia da
crueldade da vida, começou a se torturar.
De comida, só ingeria a fruta que a mãe mandava pra comer na hora do recreio. Do
cabelo, a aflição era mensal. O estica-estica fazia a menina chorar a noite inteira de dor
de cabeça. Titiana não viu o comportamento dos meninos da sala de aula mudar. Ela
continuava o patinho feio, só que querendo ser arrumada e era nisso que eles achavam
mais graça ainda.
Em Titiana doía tudo. A barriga de fome. A cabeça por causa dos produtos de
alisamento. A rejeição de menino. A feiúra. Até o nome sofria, coitado. ―Titiana, mãe?
Ninguém tem esse nome‖. A menina danava a chorar sozinha no quarto.
Aos 14 anos, ela estava mais magra que vara de cipó. Do cabelo, restavam poucos fios
lisos. Desenvolveu essas doenças que nem Titiana e nem a mãe sabiam o nome. ―Ah,
era anemia‖. Lembrava às vezes. Seguiu a vida, a dieta, o alisamento. Seguiu sofrendo
para não sofrer ainda mais. Sofreu até pelas espinhas que não conseguia esconder.
Os 15 vieram com a dúvida de que nunca iriam querê-la mesmo. Homem, mulher.
Beleza era o que não tinha. Menina-bonita era o que não saia da boca de ninguém.
Nessa fase da vida de Titiana, o que ela mais queria era alguém que a amasse.
Observava feito boba as meninas de sua idade beijando meninos nas grades da escola.
Sonhava com o seu momento que, por vezes, achou que nunca existiria.
Na adolescência lia livros dos homens prontos para amar as mulheres. As mulheres
frágeis que precisavam serem salvas por algum príncipe encantado. Eram nessas
histórias que mulheres eram bibelôs nas mãos de machos que só queriam mesmo
possuir algo. E Titiana queria ser possuída. Queria ser a posse de seja quem fosse.
Ninguém havia ensinado Titiana que ser de alguém é padecer no sofrimento de
aprisionamento. É buscar casa em telhado que falta. Titiana não sabia que, antes mesmo
de querer ser de alguém, tinha que se reconstruir para tirar o amarra-amarra do cabelo, a
figura da gorda-baleia da cabeça.
Encontro do padecimento
Já era tarde. O sol começou a se pôr. No fundo, bem lá no fundo, Titiana ouviu alguém
gritando sua voz. Era o Marcos. Um menino desajeitado. Bonzinho, bonzinho. Ele era
novo na escola e, como via a coitada sozinha, arrumou um jeito de fazer amizade. O
coração de Titiana acelerou. Acelerou tanto que era capaz da menina morrer de infarto
ali mesmo.
Marcos era gentil, assim como Titiana estudava muito. Os dois passaram a ser amigos.
Não se desgrudavam. A menina encontrou alguém a quem poderia pertencer.
Apaixonou-se. Dos livros que lia, imaginava Marcos como um salvador para toda sua
dor. Era desse amor romântico que Titiana encontrava motivo pra deixar o sentimento
da feiura de lado.
Marcos pouco demonstrava interesse por Titiana. Ao menos, a pobre não sentia. E,
mesmo ele não querendo, dentro da cabeça dela, Titiana e Marcos eram um só. E assim
foi. Quando a menina teve coragem de dar uma carta para Marcos, o felizardo
correspondeu. Ele queria Titiana, sim. Ela que poderia ser dele.
Quando terminaram a escola, trataram logo de arranjar um casamento. A mãe de Titiana
ficou surpresa com a felicidade da filha – que nunca antes fora vista. Deixou a menina
ir. Deixou porque destino de mulher é sempre acompanhar o que homem quer, pensava.
Ia ser feliz, mas também ia ser triste. Não se reconheceria. Mas de reconhecimento
mulher nenhuma precisava já que pertencia era a macho bom. E era a masculinidade
desse homem que importava mesmo.
Marcos entendeu tanto que Titiana queria ser dele que, aos poucos, durante o
casamento, a mulher já quase não existia. Era a roupa que o marido queria. Era o cabelo
que o marido queria. Era a saída que o marido queria. A comida também e a casa
arrumada e as coisas todas limpas. Era tudo de Marcos. A mulher desapareceu. Se
transfigurou naquilo que o marido queria.
Titiana pouco se dava conta. Nos livros que leu na adolescência, as mulheres eram
assim mesmo. Mudas, criadas do próprio homem. O amor romântico é assim, pensava a
pobre coitada. Era essa a regra de vida da mulher. A regra de pertencer a alguém. A
regra de querer ser de alguém. A regra de fazer de tudo para ter alguém ao seu lado.
A fragilidade de Titiana foi aumentando enquanto um pouco dela desaparecia.
Transfigurou-se. Foi se transfigurando até a figura do marido ser a figura do homem que
mandava e desmandava.
A pobre mulher queria o corpo do homem que gritava o nome dela na escola para
saírem juntos. Mas teve o corpo do homem que gritava sem razão, por soberba. O grito
do amor virou o grito do sofrimento. Padeceu-se nesse grito e, assim como a
transfiguração que lhe foi dada, ficou calada.
Titiana engravidou. Foi a mãe que não queria ser. Não se reconhecera nem na própria
feição. Temia que a criança nascesse com a cara de Marcos, com o jeito do Marcos. Não
queria mais um Marcos. Da angústia do não querer, Titiana não manteve barriga. A
criança foi embora como a própria Titiana já havia ido há anos.
Do aborto espontâneo, a braveza do macho que tudo podia. Marcos queria ser pai pra
provar que era mais homem que outros homens. O homem bebeu até chegar em casa e
acabar com a pouca figuração da mulher que não existia. Titiana não conseguia reagir,
não conseguia falar que tinha medo. Medo do Marcos de agora. Medo do Marcos que
poderia nascer do seu ventre.
Marcos queria acabar com o corpo de Titiana assim como ela acabou com o corpo da
criança que estava esperando. A menina, que na adolescência fez de tudo pra ser aquilo
que todos aceitariam, agora vivia a batalha pra sua própria estrutura física se manter de
pé.
Não se manteve.
O que era feio em Titiana ficou mais feio ainda com a violência de Marcos. O corpo
roxo. O rosto sangrando. Logo Titiana. Logo a menina que era a ―gorda-baleia‖, que
vivia do sofrimento de feiura. Logo Titiana que estava mais feia ainda com os ataques
do marido.
Quando Marcos parou de bater na mulher já era tarde demais. O rosto de Titiana estava
irreconhecível. O corpo da mulher inchou. Voltou a sentir-se a não-desejada.
Titiana não havia se dado conta, mas o Marcos que conhecera havia ido embora desde o
momento em que fez dela a própria posse. E Titiana havia ido junto. Agora, além de ir à
maior das metáforas, foi também de corpo. Terminou como jamais pensava: morta pelos
livros de amor romântico. Morta que de amor nada tinha.
Morreu. Morreu desfigurada. Morreu porque mulheres morrem nas mãos de homens.
Todos os dias.
Andriele Moraes tem 25 anos, é pernambucana, jornalista e uma das criadoras do
grupo de leitura e podcast "Clube do Livro Feminista".
Coração do Cerrado
Chão Batido
O caminhar cansado
prenuncia o caminho agreste
Chão batido
sol ardente
vida exausta
corpo demente
Fardo pesado
cantil vazio
Nenhuma paisagem
para encher os olhos
poeira cascalho e pó
Alma de sedimento
vontade de chão sedento
e um céu telhando a cabeça
Mundão de meu Deus
caminho de herança
A terra que piso
é o tudo que tenho
alforge cheio de andança
Maria Luiza Franco – Poeta e escritora. É de Sete Lagoas, MG. Escreve desde
criança. Seu livro de estreia Terra Fantasma foi lançado em 2020 e versa sobre
ancestralidade, dentre outros temas. É graduada em Letras e pós-graduada em
Africanidades e Cultura Afro-brasileira. Atua como professora de Língua Portuguesa e
Literatura em Minas Gerais. Já teve poemas publicados nas revistas: Travessa em Três
Tempos, Desvario, Paranhanas Literária, Toró Editorial, dentre outras. Participou das
Coletâneas Enluaradas: Se essa lua fosse nossa e Mulheres Afeto e Liberdade. Mantém
uma página no instagram onde publica séries de poemas, divulga sua arte e fala sobre
literatura.
Foto: Roberta Condeixa
Sobre a obra Pórtico Bipolar para Romeu e Julieta
A obra foi produzida em 2005 nos ateliês do IART/UERJ tendo como o tema o suicídio
e a ideação suicida. É um objeto de madeira com roldanas e ganchos de metal e corda de
sisal. O trabalho nada quer demonstrar, existe para ser contemplado e acontecer na
mente e no sentimento daquele que o observa.
O crédito da foto é de Roberta Condeixa.
inscrita e entrecruzada
encoberta em fiapos
jaziam as pedras
o abismo a escrita
embalsamada e sublime
talismã de ninguém
evocação
na sala de jantar
quente e pegajoso
da quina da escrivaninha
no quarto ao lado
palavras melódicas
em claustro rígido
dentro de ti
o rumo da imaginação
um falo cristalino
do amor, um móvel
labirinto líquido
a perversidade do acatamento
um aguaceiro inconsequente
modesta cortesã
o assassinato de medeia
explorada
de pouca relevância
mergulhada no fora de si
de arquétipo heroico
por excelência
estereótipos da subexistencia
como eu deveria
alma incomensurável?
encenar feminino
fe e
permitido e posição
cutucada machucada
fe e encenado
e desaparecimento
desfazer laços
ensinado vinculado
finitude humana
santa ou bruxa
j a a d’arc e cha a
em amarras
sophia me disse
o ser ninguém
constantemente
travando luta
santificada
her e tentação
perdição
de comportamento desviante
animalesca
quando violentada
ventre corrompido
simulacro de eva
crianca
a d e e mulher
a carpideira
no ar suspenso vejo a ti
e do vapor temperado
o resquício daquilo
se afoga em sonetos
de mulheres mortas
a harmonia, a devoção
o abraço, o acolher
e de estética familiar
sua lembrança
A Benício Gon – nosso colunista, pelo excelente trabalho junto à Sucuru e pela
divulgação nas redes sociais.
A Gabriela Lages – nossa colunista, pelo excelente trabalho junto à Sucuru, pelo
carinho, divulgação e o apoio.
A Eva Wilma Rodas Ramalho e Fernando Antônio Ramalho de Amorim – pelo apoio de
sempre.
A todxs nossxs colaboradorxs, leitorxs e amigxs – sem xs quais a Sucuru não existiria.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Contatos
---------------------------------------------------------------------------------------------------
Envie seu texto em formato word (letra Times 12) para o nosso e-mail:
revistasucuru@gmail.com. Responderemos o mais breve possível.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
VIVA A SUCURU!
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCC
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
RRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR
UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU