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carregava uma garrafa como se fosse uma arma em punho. andava pelas ruas e
lembrava que isaura uma vez lhe disse: "se você soubesse como é feio andar com
qualquer garrafa de bebida a mostra, jamais repetiria tal ato." o que isaura esqueceu
ou sequer sabia era que aquela era mesmo uma mulher que prezava pela repetição em
tudo o que fazia. nesse mesmo dia afirmou com todas as letras que a lógica mais fácil
para se aprender uma língua era a da repetição. era assim que as crianças faziam. era
assim que os adultos teimosos também forjavam suas vidas. operar pela repetição. além
de tudo era uma mulher teimosa. repetitiva e teimosa. algumas vezes se perguntava se
tal teimosia poderia levar-lhe a falência mas logo concluía que de certa maneira, já era
uma mulher falida apenas pela insistência na repetição.
caminhava com a garrafa em punho. mirava os olhos de quem fosse como se fosse ela:
in ven cí vel.
intransponível.
para uma mulher uma garrafa é uma arma. e por mais que se diga, armas carregam
poder. no caminho do trabalho até sua casa, pensava em como escoar tal sentimento. era
injusto. era raivoso. era tudo o que ela não queria ser. por entre ruas, pensava em seu
ódio como uma garrafa prestes a explodir. essa estava em suas mãos, cada vez mais
apertadas. lembrou que nesse mesmo dia ouviu que parecia uma guerrilheira sentada
com as pernas abertas e a bota de salto que herdara de sua amiga. "você parece uma
guerrilheira russa prestes a explodir um cocktail molotov." inundada pela raiva.
controlando palavras e corpo.
ela sabia.
pensava nos rumos que explodir o coquetel molotov de seu interior acarretaria. queria
ser corajosa mas os adjetivos atribuídos a sua pessoa somente eram sinônimos de
teimosia. queria poder ascender o pavio e jogar-se para longe. atirar contra todos
aqueles que contribuíram para que um dia a raiva se mantivesse viva e lampejante
dentro dela. era em síntese, uma mulher alta. grande. nunca coube bem em lugar algum.
quando finalmente chegou a sua rua, estava exausta. não soube bem onde escondeu o
cocktail. dentro de algumas entranhas ele havia se perdido. aceso. havia afinal um longo
caminho até a saída mais próxima. chegou, por fim, exausta. não houve tempo para abrir
nenhuma garrafa.
Acólitos
II
Apregoam racismo
Ao Corpus Pretus
Entre estações os penitentes
N.e.c.r.o.p.o.l.i.t.i.c.a
Metamolduras orgânicas
Da religião e da nação
Só
Choro sepultado
Profundeza do ser
Dor contida
Espelha monólogo
Relação abusiva
Invisibilidade
Servidão emocional
Refeição solitária
Padece sangra
Desarticula os desejos
Poetizando
Renascer
Peregrinei
Cinquenta e duas
Voltas solares
Sonhei poetizando
Vivências germinando
Minha alma florescendo
Depois do longo período invernal
Atravessei meus desertos
Arei as inquietações infinitas
Fiz das dores solitária adubagem
Os canteiros em solos quilombolas
Revirei com ferramentas de orixás
Demarquei portais passados e presentes
Recolhi lágrimas para rega as sementes
Os versos outonais reverberaram
Visitei outras jardineiras
Universidade das quebradas
Trocei mudas de dadivas e caroços fantasias
Estaquias brotam dons sufocados
Na dormência da pandemia
Fez eclosão os encontros virtuais
Morte fez-se vida
Pulsação verteu em escrita
Amargor e opressão em criação
Tirei o entrave da garganta
Reencontrei outras criações
Neta contemplar a avó
Cegas reconduz as entorpecidas
Mudas apreendem a cantar
Fugitivas ensinam sobre ficar
Vivas mortas falar de
Renascimento
Kátia Surreal é carioca, canceriana, cura o coração com cat, criações e catarses. Como
conhecê-la? Fugere ad Fictem (blog), Gradações hiperbólicas (livro) e ig:
@kátiasurreal_
3 gritos pro alto
I.
A revolução
da vulva
que pulsa
É silenciosa
pacífica e
contínua
Mas finca
as raízes
e espalha
Na terra
impura
avulsa
e repulsiva
O caminho
de gritos
sangue e
alforria.
II.
A rua é pública
A praça é pública
A travessia é pública
Mas o corpo dela não
Porém
III.
Nos jornais
estampado
está o sangue
que jorrou
há pouco
debaixo do
parapeito
daquela sacada
trepidante.
Mulher, se tu rasgar essa roupa que tá usando, vai ver que dentro do corpo tem
uma corda. Exala a gravidade no mundo dos homens. Eles trepam eles agarram eles
roçam eles chacoalham para ver qual é. Lançam nas janelas dos carros para desfilar
pelas praças, enrolam entre os braços que dizem viris, viris! Há tantas coisas que
amarram os quadris, eles puxam com força, por esporte, tração nas quatro rodas, tem
coisas que só sabe se viver, favor dizer aos outros o que vai acontecer, o que vai
acontecer, eles dizem te amo tanto, tanto, você é especial, quero você linda, amor, que
coisa brutal, se estica mais pra mim.
Quando a cor da corda de dentro começa a desbotar, eles, ocupados demais para
enxergar, resolvem num beijo simples, a corda não lamenta, o nó na garganta não deixa.
Nó frouxo, nó cego, nó de correr, nó em oito, nó de argola, nó de sapato, nó de café
coado, nó no sofá desgastado, nó de toalha molhada, nó de pão mofado.
Um dia eles chegam com um olhar indiferente, faz alguma coisa corda, essa já
não produz contentamento. Eles precisam sair, espairecer o pensamento, ouvir o som do
piano e da moto, cervejar num canto, cheirar uma hortelã, mijar num poste de rua, ir nas
praças de perfume no pescoço que maravilhoso, quinquilharias desafiam os desejos e
saem fazendo súbitos laços por aí. Outras cordas caem das casas, arrebentando todos os
andares. Umas chegam a serem resgatadas, depois de estateladas na lama do chão, indo
parar em outros lares. Lugar de corda é em casa, diz o ditado sagrado, isso é um absurdo
nenhuma corda precisa amarrar uma casa inteira, tem as que sustentam tudo isso e ainda
resistem a fase aventureira deles esperando ganhar o selo de pau para toda obra.
Quando a corda vira pau, o espaço do trançado de dentro aumenta até o meio
a parte de fora chega na boca esgarçada explode. Uns homens olham e riem da corda
esbeiçada, chegam a montar nela para ver se ainda pega no tranco, diversão, distraída,
todos pulam na corda, ela ganha muito tempo de sol. Nada pior que corda esturricada,
essa, tá estragada, com cheiro de palha velha. Não há shampoo hidratação total que dê
jeito.
Eles trocam de corda porque dizem que tá bem pesada, emperrada, não presta. A
corda ouve acorda menina! na televisão, refaz os entrelaçados de dentro, aprende a
respirar o sisal, toda a força que carrega dentro de si, se exila no farol do próprio
umbigo, um pouco mais endurecida, se ajeita aqui, ali, acolá, enquanto eles pulam de
corda em corda, é possível ouvir outros estalos. Primeiro, das roupas, depois, das cordas
que rasgam. Todo dia tem umas arrebentadas por aí.
masculino feminino
? ?
Para viver uma grande dor, é preciso um engano de amor eterno. Ser beijada na ilusão
envolta em lençóis floridos.
Tudo começa abruptamente. Na obrigação em fazer sexo todos os dias. Para viver uma
grande dor, é devaneio pensar no roçar de pernas com cheiro de gozo, haverá muito suor
e pouco, muito pouco amor.
Para
viver
uma
grande
Dor.
Um empurrão, dois, quatro, era uma vez os desenhos com lápis de cor, fez-se de triste
em cada resto, pedaços de mulher antes contente. Para viver uma grande dor, gritos em
pensamento com bafo cheio de medos. Quando de repente, ele diz desculpas, e são
tantos os pedidos, e a vida segue... A mulher sem o siso, risos quebrados se espatifam.
É preciso fugir, é preciso contar tudo, mas um medo invade o espelho, para viver uma
grande dor. Às vezes o motivo é louça mal lavada, compras de batons, contatos de
amigas. Eis que na noite crua, no vazio espaço, para viver uma grande dor, espanca-se
sempre. Para viver uma grande dor, é inútil chorar alto, pisar manso, trazer dentro de si
os risos de uma garotinha dos tempos do all star.
Ela vê pela janela, os próprios ângulos de outrora diante do romper do sol. Silêncio. Um
homem calou a boca de mais uma.
Flores enfeitam uma enorme caixa na cerimônia da despedida final. O buraco é tão
inerte, tão profundo, e um corpo é jogado história abaixo.
Sandra Modesto tem 61 anos. Nasceu e mora em Ituiutaba, MG. Graduada em Letras,
pós-graduada em Educação, professora aposentada. Três livros publicados: ERA
SÁBADO, Kotter Editorial, 2022. ―Tudo em mim é prosa e rima‖ (Editora Autografia,
2019). ―Acenda a Luz‖, prosa poética (Editora Kazuá, 2015). Publicou textos nas
antologias: Elas e as letras- editora Versejar, 2019. Ruínas- Editora Patuá, 2020. Parem
as máquinas- Selo Off Flip, 2020 Prêmio Selo Off Flip, 2021 Corvo Literário, 2021.
Cronista do site ―Crônica Do Dia‖ Publicou textos em várias revistas.
Antes que tudo seja demolido
É de todo saber
não saber.
Querer sem por quê.
Vagar
sem razão maior
que um grão de areia não envergue.
De páginas viradas,
um momento.
Um vento que estagnou,
e as raízes esperam esquecidas,
Os sonhos, ressecados.
Um recado do tempo
de que tudo pode,
sem quando.
Então,
Escrever como quem compreende o todo,
quem poderia dizer qualquer coisa,
Ainda que tenha tudo nas mãos
por um fio.
Beatriz Helena é uma cearense perdida no Rio, advogada familista e arteira nas horas
vagas. Seus trabalhos visuais e literários estão disponíveis no
instagram @helenaporumtriz e no medium @beatrizhelenaa.
as panteras
mesmo no escuro
chegamos
e sabemos
o fim do mundo
ainda não é aqui
com jeito
pisar os galhos
com afinco
afiar as garras
pegada felina
botinha preta
olhos de jabuti
caba agata é braba
não teme água
mergulha fundo
mesmo na caligem
desvaneço porque
é descomedido
desarmada eu
pantera fera
mansa só no
espelho do
teu vácuo
botinha de veludo
escalando rochas
vemos
ainda tem chão
mesmo no breu
pelagem brilha que só
presas
colar de mar
fim
me dá tua pata
guardamos os
barulhos os rodopios
sabemos inv
estigar
mesmo no turvo
o salto
nósgatas
negras luzeiro
olhos que tudo veem
videntes
as donas do mundo
(Valeska Brinkmann)
Nayana Ferreira mora em São Luís do Maranhão. Recém formada no Ensino Médio
pelo IFMA como técnica em Artes Visuais, e também estudante do NAAH/S (Núcleo
de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação), na área de Literatura e Poesia.
Classificada no Prêmio Literário AMEI 2020 e tendo sua primeira poesia publicada na
coletânea Poetas Maranhenses, em 2021. Também classificada nas categorias Conto e
Crônica do I Concurso Literário Maria Firmina dos Reis, promovido pela
CEMULHER/TJMA, com e-book publicado. Divulgação de trechos de poesias e contos
em seu Instagram: @nayana_ferr
INFÂNCIA
Usada
Intimidada
Abusada
Violentada
Calada
Ameaçada
Coagida
Constrangida
Exaltada
Explorada
Espancada
Ridicularizada
Enganada
Violentada
Perseguida
Comprometida
Envergonhada
Amedrontada
Idealizada
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COMEÇO
Até agora,
SONHO LEVE
Um tecido,
Os invejo
Fecho os olhos
Ouço a conversa
dos passarinhos
sinto a maresia
Nos rasantes,
Como em sonho,
sou leve.
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TEMPLO
nem cruz.
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GÊNERO
e vai.
Eu digo "vou"
e arrumo cama
e acordo as crianças
e faço leite
e lavo louça
e separo briga
e separo briga
e faço almoço
e sirvo o almoço
e lavo louça
e separo briga
e espero ficarem prontos
e vamos.
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LABUTA
se apoia no divã.
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MULHERES
a desobedecer a um homem
era deus.
moralidade mundana
de ter um corpo
gordo ou grosso.
comida predileta
aos seus.
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FILHOS
Fábrica de sonhos
Façanha humana
Faceiros inventores
Fachada assumida
Facultativos?
Fadiga certa
Faísca acesa
Família formada
Farmácia em casa
Farofa na praia
Febre da maturidade
Feitiço encomendado
Felicidade intermitente
Filantropia total
Filhotes delicados
Filme de ação
Flácida barriga
Flecha no coração
Flores no tempo
Fluxo da vida
FODA.
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SEM RAZÃO
Não há racionalidade
a maternidade.
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MARIEVA
É mãe, mas quer mesmo é ser puta. Devoção ao sexo em vez de devoção aos
filhos. Fidelidade apenas ao cartão de crédito.
Toma a iniciativa. Muda de nome. Fantasia ser quem quiser. Maquiada, se sente
bonita. Com o corpete, se sente magra. Depois do sexo, se sente rica.
Pela manhã, volta pro ninho depois de comprar bananas para a vitamina do
caçula.
Lua. A conheci quando me mudei para a casa rosa em João Pessoa. Alta, magra,
corpo violão, morena clara de pele aveludada. Uma das mulheres mais lindas que já vi.
Ela morava no mundo e passava tempos em casa. Com quem compartilhava o mesmo
ambiente com a mãe, a avó, a irmã e o irmão. Lua é a mais velha dos filhos de Célia.
Uma mulher considerada louca pelas pessoas da rua e por quem a conhecia. Dançar
pelada na frente da casa, chamar homens para transar, pedir carona sem sentido na rua e
mostrar a todos a sua cicatriz de cesária inflamada e cheia de pus, faz dela, alguém
inesquecível.
Fazia poucos dias que eu havia me mudado e de repente, a avó de lua que
também, aparentemente, não tinha os pensamentos regulados. Não péra, isso todos não
possuímos. Tinha problemas mentais. Chegou me chamando á porta. Estava
desesperada, pedindo ajuda para Célia. Dizia ela está sangrando muito e não querer ir ao
hospital. Corri e fui falar com ela. Ela lavava roupas na frente da casa, e de lá em diante,
o sangue deixava rastros até onde o segui e a vi deitada em uma cama, só de calcinha e
gemendo.
Não demorou, escutei Célia batendo a porta e expulsando a mãe, que passou o
resto do dia sentada na calçada esperando que a filha lhe permitisse entrar em casa.
Respirei fundo e continuei minha vida.
Lua se tornou minha cliente no salão de beleza. E como sempre acontece, por
muitas vezes, fomos terapeuta uma da outra. Lua foi criada, construída, sem amor e
carinho. Em meio á brigas, drogas e prostituição. Quando o pai faleceu, foi surpreendida
pela vida, que ficou ainda pior. Sempre só se envolveu com homens e mulheres do
tráfico. Chegou a dormir e se esconder da polícia e de bandidos em matagais. Dormir e
fazer amor com uma bazuca ao lado, para muitos, pode parecer algo terrível, mas para
ela, era sua realidade.
Em algumas vezes, Lua foi presa. Por assalto, tráfico de drogas... Entre outras
aventuras, como diz ela. E isto fez com que ela perdesse a guarda das filhas para os avós
das meninas. Não sei dizer se foi o melhor para elas.
Um dia, eu trabalhava quando Lua chegou ao meu salão. Palerma era um senhor
muito assediador, este tipo de homem, existe em todos os lugares. Ele se tornou meu
cliente através da minha tia Liss. Ela tinha uma lanchonete, onde ele era cliente e onde
ficava próximo do meu salão da época em que eu morava em outro bairro. Bem,
Palerma estava lá. E quando se olharam, percebi eles reconhecerem a traquinagem
particular deles um no outro. Palerma vivia me assediando. O dia que ele ia até o salão
era um dia de tormento para mim. Principalmente quando era o único cliente. Ficava o
tempo todo tentando me tocar, me beijar e eu mal conseguia controlar minha
coordenação motora tentando não cortá-lo com a navalha, mesmo querendo bastante ter
coragem de fazer isto.
Mãe solo, morando de aluguel, devendo a agiotas... Eu não tinha muitas escolhas.
Ao Lua sair do salão, Palerma logo perguntou quem era e pediu o número de
telefone. Disse que era minha vizinha e iria perguntar se ela autorizaria a transmissão de
contato. Lua permitiu. Na mesma semana, Lua chegou com ele de carro cheias de
sacolas de compras de supermercado com sua filha mais nova muito feliz.
Sair com Lua não era o bastante para Palerma, que continuava me assediando e
fazendo propostas do tipo que me daria o que eu quisesse para sair com ele, ou com ele
e Lua. Ás vezes, ele chegava com sacolas de comida, frutas e verduras. Me ajudava
muito, porém, eu tinha que agüentar suas importunações até ele decidir ir embora. Um
dia, me ajoelhei e briguei com Deus. Disse que eu acreditava e vivia crente na
existência dele. E me recusava, continuar vivendo daquela forma para criar meu filho.
Me recusei a atender homens, e nunca mais, vi Palerma.
Lua nunca falava sobre a família. Cheguei a perguntar como era ficar com
homens iguais Palerma. Como era ficar com homens por bens materiais. Ela sorriu triste
e olhou para o chão. Disse que sempre pedia para eles serem rápidos, e quase sempre,
fazia essas coisas drogada para não lembrar depois. Lua conheceu outro traficante com
quem teve mais um filho, um menino. Depois me mudei da rua, mas não perdemos o
contato. Ela foi até meu novo salão. Estava dando mechas em seu cabelo pintado de
Alerquina, quando seu novo marido ligou xingando-a. Ele a ameaçava. Dizia atirar nela
caso ela aparecesse no bairro. Eu acredito muito em energia, e fiquei atordoada
escutando aquilo. Ela revidava as grosserias e dizia ele não ser homem o bastante pra
matar ela. Era como se ele estivesse apenas mandando ela se lascar. Ela fez um curso de
manicure e estava trabalhando em um salão chique de um bairro em João Pessoa. Ela
desejava ser diferente. Eu via esperança na morte dos olhos dela. Depois ela se mudou
para o bairro do namorado, e nunca mais a vi. Sorte minha querida Lua.
em certa medida.
os dedos estranhos
dedilhadores de estômago.
um após outro
de adultos-criança
da carne podre
Meu nome é Julia Magnoni Roque, sou de São Bernardo do Campo, SP, sou redatora
de conteúdo e estudante de Letras, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Ainda não tenho nenhum livro publicado, apenas alguns poemas na revista Ruído
Manifesto e na Revista La Loba Magazine. Porém, escrever é o que me move e o que
me faz querer enfrentar o mundo todos os dias.
O coice das palavras
Lorraine Ramos. Publicada em 14 revistas digitais ao longo de dois anos e meio, tais
como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio, Lorraine Ramos Assis,
em seus 25 anos, é uma artesã do caos. É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a
antologia Ruínas, da editora Patuá, e a antologia LiteraturaBr. Concedeu duas
entrevistas no canal "como eu escrevo". Colabora com o portal Faziapoesia.
Eufemis(nis)mos
Até que não ligo para pés de galinha e para as manchas senis nas mãos e nas canelas.
Em breve serei uma carijó orgulhosa, parecida com mamãe. Envelhecer não pode ser
apenas ruim. A gente pode achar bacana ver a mãe em si mesma. Aqueles dentões
seguem aqui.
Mas as pequenas erosões no colo, ah, que angústia! São feias e inevitáveis.
A não ser que pretenda pernoitar numa câmara hiperbárica ou num caixote de vidro em
sono profundo e estático de Branca de Neve antes das agruras da maternidade.
Dormir de barriga para cima não é uma opção. O marido reclama do ronco e a recíproca
é verdadeira.
Aos 5.1 ainda sou virgem em intervenções de rejuvenescimento, fora os cremes básicos
(caros, Vichi Maria!), filtros solares e tratamentos contínuos anti-rosáceas.
Não tô disposta a envenenar, amaldiçoar, mandar matar uma linda beldade de 20 para
retornar à juventude perdida.
Liberdade
Psicoanálise
Fogo
queima
mulheres
elas que incomodam
por serem elas
por terem vulva
por mostrarem os peitos
por protestarem
andarem nas ruas
o medo as provoca
o homem quando
contrariado
se apavora
apagando
o fogo
a mulher
a vida
Se escute
Mulher
que carrega
seus conhecimentos
abraça-os
assim se faz uma revolução
entendendo seu poder
compartilhe com o mundo
os conservadores tremem de medo
ela sorri ao dizer cliente
como uma relação de troca
onde um oferece
outro recebe
é sobre o tratamento
de cura
enquanto corpo
adoece
o ser se enriquece
Eme de mulher
O corpo da mulher
Com m maiúsculo
Não é livre
Não é dela
E quem foi que disse isso?
Um homem branco hetero
Há séculos contando
Essa ladainha
Já virou lei
Desconstrua isso
Aceite
O corpo da mulher não é público
O meu corpo
O seu corpo, mulher
Não é de deles
É nosso
O corpo da mulher é dela
Não da sociedade
Portanto deixe ela decidir
Deixe ela dizer não
Respeite suas roupas
Ou pelada que seja
Não é da sua conta
Respeite
A mulher
Com m de mudança
Sociedade me escute!
Livre de si
Desnude-se
de você
das suas versões
todas elas
pelado se veja
se saía
se livre
a amarra
que te prende
arrebente
nem pense
tire
puxe
desnude-se
do jeito que veio ao mundo
só sobraram memórias
e alma
o corpo é camada
Apressada a vida corre
A vida
parece
um trem
o ritmo apressado
as pessoas
são emoções
a estação é
divisão do ser
os bolsinhos que se prendem na alma
que se morrem
com o morrer do outro
apressado
o coração bate
o corpo reage
o pé não anda
para
eu falo
comigo mesma
a vida é um trem
a cada estação
caio no chão
com seu ritmo sem parar
parece gritar
a vida não para
e você
pode parar?
Andar sem pé
No segundo que eu escutei que minha avó tinha morrido eu perdi a confiança
que eu tinha, eu perdi a fé, o amor, a segurança, e mal sabia que meu pai ainda iria
morrer logo em seguida, os dois morreram no mesmo dia, com uma diferença de poucas
horas, nesta sexta feira, o meu eu desmoronou, pense no vidro quando cai no chão, que
se estilhaça para todos os lados, foi assim que eu me senti, quebrada em pedaços, e até
hoje, há mais de 9 meses, eu ainda não me consertei
O que aconteceu comigo foi uma guerra, com o medo, a espera pelo ataque do
inimigo, a contrapartida e por fim o ápice, a morte, me vejo em um campo minado, com
as sobras do que restou de mim, do que ainda tem no meu ser, pouco, tenho medo de
não ter sobrado nada de bom, e se a morte deles roubou a minha vida?
Por mais que eu tente, não consigo evitar de pensar no que eu poderia ter feito, a cada
susto ou desafio que eu levo da vida, agora me vem o medo de perder, de ficar perdida,
sozinha,, dentro de um buraco sem ninguém para ouvir o meu grito desesperado por
ajuda
Dizeres de mãe
Minha mãe tem alguns dizeres, mas ela sempre repetia que ―quem vê cara, não
vê coração‖, no sentido de me deixar alerta para com as pessoas ao meu redor, mas e se
pensarmos que esse dizer pode ser colocado na seguinte situação: um sorriso na cara,
mas o coração quebrado, segurado por uma fina e curta linha.
É por isso que não se pode olhar precipitadamente, sem ao menos conversar com
alguém, porque o mais fascinante da vida é tentar conhecer o outro ou a si mesmo, mas
nunca terá o conhecimento completo, é nessa caminhada, onde a cara esconde a alma, o
corpo serve de escudo para o que realmente importa, o interior do ser, a essência
Num dia desses, eu aprendi que tudo tem a sua, e que ela é como uma marca que
guarda outras cicatrizes, e vai se costurando nesse emaranhado de sofrimentos que pode
ser bagunçado ou desfeito ao longo do tempo, depende de cada um, e de como eu e você
lidamos com o que a vida joga no nosso colo, é sobre aprender com as piores dores, sem
romantizar, e sim aprender
Não ter controle sobre si mesmo é péssimo, assim como não poder controlar os
sentimentos dos outros, não poder ajudar, simplesmente algo que não está ao meu
alcance me incomoda, pior ainda me dá raiva.
Sentimento esse tem me visitado com frequência, não me lembro mais da vida
sem ela, nem de um momento que eu tive o mínimo de controle sobre algo, porque
afinal eu posso ter pensado ao contrário, mas foi uma ilusão, das grandes, daquelas que
são cutucadas no momento mais dolorido da vida, como agora, que estou passando pelo
luto, de duas pessoas, e cada minuto me foge, como água que escorre pelos dedos.
O controle é isso, é essa coisa que enquanto eu escrevo, tento pensar em como
descrevê-lo, aqui vai: o controle, ou a falta dele gera raiva, angústia, tristeza,
impotência, mas como uma vontade que se transforma em necessidade pode provocar
tudo isso? Sei que na sexta feira, a noite que fui visitar meu pai no hospital, que no fim
das contas, foi a última vez que o vi, ele respirava tão mal, precisando de tantos
aparelhos e a força que ele fazia não sai da minha cabeça até hoje, e eu me via ali,
parada segurando sua mão e sem controle algum, não podia fazer nada, só me restava
chorar, rezar e agora tornar a minha raiva tangível, que ela vire algo real fora de mim,
antes que todo o sofrimento me engula
Homem não cresce?
Eu, como mulher, não me lembro de uma vida sem olhares de homem querendo me
comer, não sei o que eles tanto veem ou imaginam, mas quero deixar claro que a roupa
não me define, nem quem eu sou, ou nem mesmo serve de desculpa para olhos alheios,
exijo respeito, parem homens, parem de nos calar, de aos poucos nos matar, uma por
uma, cresçam e enfrentem seus medos, não joguem em nós, o que é seu, aprenda de uma
vez por todas que eu tenho peito sim, vulva sim, e daí?
Acordem e aqueles que estão acordados continuem, sigam nesse caminho de pouca luz,
abram suas cabeças e vejam que nós mulheres, não somos teu objeto, somos pessoas,
ainda mais que vocês, que agem como animais, que não controlam seus desejos carnais
Ana Amorim Fontana, tenho 15 anos, nascida e criada em São Paulo, uso a arte como
forma de ressignificar tudo o que sinto de mais pesado e sombrio, e me identifico
bastante com o trecho do poema "Motivo", de Cecilia Meirelles,‖ não sou triste, nem
alegre, sou poeta‖
CACTO
Enquanto me racham,
Não sangrarei
Enquanto te espeto,
Me protegerei
Te sangrarei
Me resguardarei
05/01/2022
Meu nome é Deiziane Oliveira Santos, sou mulher negra pertencente à religião do
Candomblé, artesã e desenhista. Sou graduanda 8º semestre da Língua Francesa da
Uneb Campus ll. A escrita poética apareceu em minha vida junto aos desenhos, num
complemento. Meu objetivo é ressaltar a escrita periférica de um povo não reconhecido,
do negro, do pobre, principalmente das mulheres negras. O conhecimento da vida
advém das vivências, o estudo aprimora este feito.
Sou eu dessa vez?
- ...
- ...
- Quem somos?
- ...
- ?..., (o silêncio é estático por fora, mas nos mata pouco a pouco por dentro. Não se
deixe morrer...), ...!
Karolaynne Nunes é poetisa e discente do curso de Letras Língua Portuguesa e
Literaturas da Universidade Federal de Mato Grosso. Sua influência no mundo
literário se deu nos livros de filosofia, durante o ensino fundamental; e no ensino
médio, teve um contato mais íntimo com outras obras da literatura brasileira e
estrangeira, em que se descobriu um ser intenso e apaixonado por todas as literaturas.
Ali, nascera o encanto pela silenciosa obra do escritor Álvares de Azevedo, que a fez
escrever diversos poemas e textos, com o objetivo futuro de lecionar e lançar um
livro, assim, espalhando a literatura pelo mundo. Primeira colocada na categoria
―Conto‖ do I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura do estado de Mato Grosso,
concurso promovido no ano de 2021, pela Ruído Manifesto.
AS CHAVES
Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante. Autora de 35 livros, entre eles, “Os Corvos
de Van Gogh” (poemas). É criadora do Projeto Poetizar o Mundo; recebeu Comenda
Ordem de Figueiró, no Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra pela
Fundação César Egido Serrano (Espanha, 2017); Seus poemas foram premiados no Brasil,
Espanha e Portugal, Palestrou sobre a arte de escrever em diversas Férias do Livro.
Perspectiva
Ha olhares desbotados
De derramar lágrimas
Olhares perdidos na caminhada
Mesmo com a vista bela
Das árvores retorcidas emaranhadas
Olhares destoados
Acumuladores
Amontoado de entulhos
na sua casa
Tornando difícil a locomoção
Pelos labirintos de papéis, trecos e geringonças
Mas o que fazer se
Olhar aquela coleção
de guarda-chuvas coloridos
o faz bem, apesar de quebrados?
Olhares de sorrisos
Trocados no ônibus
A caminho do trabalho
Conexões breves
Eternas duradouras
Olhares apaixonados
De quem foi fisgado
Pelo amor do vizinho
Morando bem ao lado
No apartamento 204
Olhares curiosos
Da senhora fofoqueira
Sentada na porta de casa
Vigilante e muito acordada
Ela sabe do ladrão
Da grávida
E do cafetão
Fazem um círculo ao seu redor
Ouvidos atentos
Ao próximo capítulo
Da novela
Olhares irritados
Pelo dedo
Batido na quina da cama
Berrando palavrões
Olhares sonhadores
De poetas amadores
Enxergando o melhor que pode
No caos
Na violência
Na dor
Ou Apenas
Denunciando o injusto
O escondido
E por fim
Olhares mortos
Mesmo respirando
Está preso pela terra
Que cobre seu túmulo
Olhar de quem já desistiu
Há muito
Beirando a exaustão
Sou Iasmim Lucena, nasci em Imperatriz do Maranhão e moro na Paraíba desde que
me conheço por gente. Apaixonada por todo tipo de texto, pois encontrei nas palavras o
meu lar, o meu refúgio. Criada com todo amor do mundo por Denise, devo a ela tudo,
inclusive quem me tornei: uma mulher forte e sonhadora.
Intraduzibilidade
Depois de uma certa idade, viver é uma exigência muito grande, é mais fácil só
existir e esperar. Essa foi a última coisa que Maura ouviu sua avó dizer ao telefone, com
seu tom de voz alto. Duas semanas depois, ela viria a falecer em função de uma série de
complicações do diabetes. Essas palavras a atravessaram completamente, como um
punhal, e permaneceram com ela durante muito tempo como um sussurro.
Após a morte da avó, com quem ela sempre tivera uma relação muito próxima,
Maura tentava traduzir tudo aquilo o que aquela figura tão complexa havia significado
em sua vida. No entanto, era difícil achar as palavras corretas naquela língua: a do
coração. Deparava-se com uma espécie de intraduzibilidade. Tentava recuperar na
memória os momentos felizes e afetuosos que tiveram, estes foram muitos, é verdade, e
talvez por isso mesmo fosse difícil escolher apenas um para se agarrar. A princípio o
que lhe vinha à mente, de forma involuntária, era o início de surdez que acometera a
avó, assim como as feridas nas pernas, causadas pela doença, das quais ela costumava
se queixar. Lembrou de quando ela pedia para que Maura massageasse suas juntas
sensíveis e inchadas. A resistência da avó em seguir o tratamento indicado pelo médico
também emergiu: como era teimosa dona Isaura. Não queria se privar de nada que
agravasse sua condição, sobretudo, os doces, a Coca-Cola e as frituras.
A imagem da avó, sentada na cadeira de balanço, surgiu rasgando seu peito e se
converteu numa imensidão de lágrimas, que de modo incessante, transbordavam de seus
olhos. Naquela fotografia eidética, ela podia ver os cabelos finos de Isaura, tão ralos que
era possível testemunhar através deles seu pálido couro cabeludo. Também era possível
ver sua pinta no queixo, sua bermuda bege e a blusa de estampa floral. Por um instante,
pareceu sentir até o cheiro de loção corporal com talco que a avó exalava.
Agora, aquela memória olfativa parecia transportá-la para sua infância, para a
época em que passava as férias na casa da avó. Foi assaltada pela lembrança de como
ela costumava encher o armário com as guloseimas preferidas de Maura, permitindo que
a pequena criança se empanturrasse de doces — era o pacto de cumplicidade entre avó e
neta. Recordou do pudim e do pavê de pêssego, que sempre estavam à sua espera na
geladeira. Era um tipo de memória adocicada, mas também amarga. Conseguia
visualizar ainda a senilidade que, com o tempo, passou a apossar-se de sua Isaura,
fazendo com que vez ou outra ela dissesse coisas incompreensíveis; que a levava a
desconfiar de que estava sendo envenenada pela irmã; que a fazia acreditar que seu
banheiro ainda precisava ser limpo, mesmo quando este havia acabado de ser lavado.
Foi o irmão de Maura quem ocupou-se da difícil tarefa de contar a ela sobre a
morte da avó. No momento em que ele bateu à porta e seus olhares colidiram, ela sabia
que tinha acabado. Era como se tudo ao seu redor se desfizesse, como se as coisas à sua
volta desmoronassem, mas em verdade, era ela quem desabava por dentro, em silêncio.
Isaura faleceu numa madrugada chuvosa, enquanto dormia, na véspera do aniversário de
Maura, que naquele ano completava 32 anos.
Sentada no sofá, Maura imaginou a Isaura feliz, empanturrando-se de doces e
frituras, numa espécie de paraíso. Chegou a rir de seu pensamento fantasioso, mas de
alguma forma a ideia lhe dava certo conforto. Perdida entre monólogos interiores,
memórias e uma caixa de fotografias da avó, ela demorou a se dar conta de que já
amanhecia. E ainda a questão da intraduzibilidade. Mas, ela supôs que precisasse de
tempo para encontrar as palavras certas, as mais apropriadas. Sabia também que era
difícil ser completamente fiel naquela tradução devido ao que ela denominou, naquele
momento, como a "complexidade semântica dos sentimentos''. Ali mesmo, no sofá,
adormeceu e sonhou com a matriarca mexendo o creme branco do pavê na panela em
fogo alto. Acordou com uma angústia sufocante, como se aquela chama do sonho a
queimasse em seu interior. Seus olhos estavam secos e ela sentia que já não era mais
capaz de chorar.
Olhando para a caixa de fotografia deixada sobre a mesa de centro, pinçou uma
foto na qual a avó carregava um sorriso leve ao lado da irmã. Observava aquele registro,
ainda em preto e branco, pensando que sua Isaura não precisava mais só existir e nem
tinha mais pelo que esperar. No verso da fotografia, Maura se arriscou a escrever aquilo
que não teve tempo de traduzir para a avó, ao menos, não em palavras: “Te amo,
obrigada!”.
Assim, as palavras de Maura também descansaram com Isaura sob a terra.
Natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Yoná Souza é bacharel em psicologia
pela UFMS (2015) e discente do curso de Letras na UTFPR. Em meio ao caos, escreve.
Entre seus interesses estão a literatura produzida por mulheres, estudos feministas,
linguagens e artes.
Resenha do livro: ROSA, Gabriele; MOTTA, Carla. Lavínia é mais rosa que espinho.
São Paulo: Editora Libertinagem, 2022.
Os femininos de Lavínia
Artesão de palavras
Costura
Recorta
Cola
Molda
Veste em si
Remodela
Ajusta
Remenda
Palavras soltas
Que sozinhas
são solidão
Mas juntas
são poema
***
Pouco
***
Raízes
***
Sábado
Dia de faxina
Na casa
Na alma
Na vida
Sai tudo que é velho
Limpa os armários
Arruma espaço pro novo
Guarda tudo limpo
Vai pra caixa o que é tesouro
Joga fora o que é lixo
Deixa exposto o que é belo
Esconde o que é secredo
Dou adeus
Aos ácaros e à pele morta
Que se acumulam
Entopem meu nariz
E cobrem a casa
De passado e poeira
Previsão de chuva
Acordo
Abro os olhos
E logo vejo
Poesia no espelho
Café na xícara
Saio cedo
Dou um tapa no visual
Lendo poesia no cabeleireiro
E no trabalho
Com o público
Sigo sendo o dia todo
Poesia em ação
Fim do expediente
Sento em paz no sofá
O corpo relaxando
As palavras vêm de dentro
É a poesia no comando
Não escrevo porque quero
Mas porque não tenho escolha
Tudo que me permeia
Não me esqueço, como outros
Me transbordo num poema
Viro água
Viro rio
Evaporo
E depois chovo
***
Alalaô
Sem alalaô, ainda resta o calor do Saara. Lara sai para o trabalho. Paetês e plumas se
foram, mas vários glitters ainda resistiam na pele. Só quem já pulou um Carnaval de rua
sabe como é difícil se livrar deles. Passa a Semana Santa e ainda é possível achar glitter
pela casa. Em uma roupa ou tapete. Na rua, restos da folia, confetes e cheiro de urina. A
cabeça doendo, o corpo moído, a alma lavada. As pessoas, ainda no ritmo lento do
feriado, começam a se despedir do verão. Vem chuva aí, diz o porteiro. O sol de rachar
desmente. Mas o guarda-chuva vai mesmo assim. E não dá outra. Temporal de fim de
tarde lava o brilho da Sapucaí e fragmentos de fantasia. Agora sim. O ano começa
depois do Carnaval.
***
Glaucia Ank é mãe, feminista, bióloga marinha, artesã e, atualmente, trabalha com
vendas online. Inquieta, leitora voraz, escreve desde que se lembra, mas só pra si
mesma. Seus textos refletem sentimentos e cotidiano, com uma visão feminista e
―desromantizadora‖ da posição da mulher na sociedade atual, especialmente no campo
da maternidade.
de nome saudade
eu sou quebrada
não me quebraram
eu não estava bem e de repente quebrei
eu sempre fui assim
nada me conserta
nem eu me conserto
não consigo
a única coisa que consigo é sentir
sou tomada por esse sentimento
tem dias que ele não me domina
mas está sempre lá
esperando a menor oportunidade
pra aumentar a ferida
daquelas que nunca cicatrizam
e quando eu penso que estou bem
quando me iludo de que está tudo bem
de que tudo vai ficar bem
ela vem de novo
a dor
dilacerante
vem cortando
destruindo
derrubando
massacrando
e quando percebo
já é tarde demais
estou jogada no chão
dolorida
exaurida
um temporal desagua através de meus olhos
estou
quase desmaiada
de tanto sentir
dor...
Sam Nina é mulher, lésbica, feminista, poeta, designer, manauara e nortista, leva para a
sua escrita reflexões, sensações e vivências. acredita na importância do continuum
lésbico como um convite para que as mulheres se aliem no combate à todas as situações
que ferem suas existências. @_samnina
UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE O TUMULTO DA BOCA E O BEM-ESTAR DOS
CABELOS
I
O tumulto: flertando com o corpo
Por mais fácil que pareça escrever sobre uma parte do corpo,
Qualquer que seja ela,
Nuncaserá uma parte qualquer.
É inevitável:
Sempre vai partir de nós.
Do nosso.
Da nossa experiência com a possível parte escolhida.
Neste exato momento, percebo a parte de mim que eles não conseguiram levar.
Aquele sopro que sobra.
Assim, a escolha se determina.
O por quê?
Não quero revelar.
Um conselho:
Busquem possíveis significados em minhas linhas.
A graça das palavras está em criar supostos sentidos para elas.
Só não esqueçam:
O que criarem a partir daqui,
Terá haver com vocês que.
Este é o poder que compartilho.
O poder dos apaixonados por ler e escrever.
O poder de ser autor e leitor,
O poder de sermos prolongamentos dos dizeres uns dos outros.
II
A Boca: falando do silêncio
Paradoxal!
Pois a boca simboliza a fala.
A enunciação.
CERTEZA?
Não me parece tão evidente assim.
Raça.
Gênero.
Classe.
Negra.
Mulher.
Pobre.
BRASIL,
Onde estão essas bocas?
Onde está tal enunciação?
Aaah, verdade!!!
Como pude esquecer.
Outro dia ouvi uma dessas gritando por seu filho morto pelo sistema.
―Eles não viram a farda da escola?‖
A boca expõe a ferida.
Fratura convicções.
Manifesta nossas subjetividades.
Pena que muitas vezes esquecemo-nos de falar.
Pena que nos fazem esquecer de falar.
Benção para o sistema você não falar.
E o que fazemos com os silêncios impostos?
Rebelamo-nos!
Como?
Com as bocas!
Com a enunciação do que não quer ser ouvido.
Com gritos que estremeção privilégios.
Gritos como o de Marielle.
III
Os cabelos: escrevendo minha história
Vida.
Novelo de lã.
Pontas.
Assim tenho definido os desdobramentos que venho acompanhando.
Eu mesma.
Em mim mesma.
Descobrindo-me através dos processos de escrita.
Agarrada as pontas do novelo,
Uma por vez.
Sem pressa,
Risos.
Com pressa para desatar o nó.
Percebi que a infância deixa pontas soltas.
Uma gastrite,
Uma gagueira,
A mão tremula...
No meu caso, os cabelos.
Tratei de destruir tudo que as pessoas elogiavam.
E comecei pelos cabelos.
Nem de longe parecia aquela criança que amava os cabelos longos.
Nem de longe se parecia com a aquela criança.
Comecei a cortar.
Uma vez,
Duas,
Três,
Trinta vezes por mês.
Comecei a pintar.
Uma vez,
Duas,
Três,
Trinta vezes por mês.
Nunca era suficiente.
Nunca era bom o bastante.
Segunda semana de março de 2018.
Sem perceber.
Última vez que cortei.
Mudei.
Segunda semana de janeiro de 2019.
Uma esperança.
Voltar a ter cabelo da infância,
Ouvi.
Gostei.
Era a chance de recuperar a inocência que eu tinha lá trás.
A chance de não ter nó.
IV
O bem-estar: navegando pela liberdade
Maria Luana Caminha Valois é doutoranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-
graduação em Letras UFPE.
Isso
De tentar e tentar e tentar
(leia-se em ritmo de
―O que é, O que é?‖
do Gonzaguinha)
--―Alô, Jô?‖
Lara linda e sorridente em seu vestido de noiva era a imagem viva da Felicidade
!
A ultima vez que nos vimos foi no meu casamento, Lara veio com o marido e
filhote de 3 aninhos.
No restaurante Lara me acenou de uma mesa. Corri, nos abraçamos sem querer
desatar!
Só então notei a jovem loura ao seu lado, que Lara me apresentou como
―companheira‖ .
--―Não se espante querida , estou mais feliz do que nunca. Maria mudou minha
vida. Tâo intensamente, que tive forças pra sair do casulo sufocante e depressivo em q
vivia !..Estava muito infeliz, carente e solitária!
Com o tempo e aproximação mais frequente fui sentindo mudanças nos meus
sentimentos e muita confusão intima.
Bom , daî pra esse final foi um pulo, dada a fragilidade e carencia em q me
encontrava!
—―Pois é Jô, estamos muito felizes vivendo a plenitude desse amor de almas
gemeas! Desde criança senti que eu era diferente , sempre preferi a companhia de
garotas. Assumir tambem foi pra mim um caminho dificil e espinhoso! Jô, vc năo tem
ideia como a sociedade é cruel e preconceituosa, não perdoa! Felizmente encontrei Lara
e juntas nos fortalecemos! Hoje caminhamos confiantes nesse horizonte de
companheirismo, sem cobranças e egoismos em busca apenas DE SER FELIZ ! Lara
estava ansiosa pra te encontrar e mostrar essa reviravolta toda em sua vida, afinal vc é a
amiga q ela ama e nunca esqueceu‖!
Meu nome é Gloria Scanavino, moro em S.Paulo, não gosto de cidades grandes,
prefiro as pequenas onde todo o mundo se conhece, se cumprimenta. Sou bisavò, tenho
três filhos, seis netos, seis bisnetos. Família linda, íntegra , do BEM, que me enche de
orgulho e gratidão! Gosto de escrever, pintar, decoração, gastronomia.
Camadas
Desnudar-te as entranhas
Olhos-desejo
Geovanna Fernandes nasceu em São Paulo, no ano de 2001. Vive desde criança no
Vale do São Francisco. Completamente apaixonada pelo universo da escrita, cursa
Letras na Universidade de Pernambuco-Campus Petrolina. Sendo o amor e suas nuances
a sua maior fonte de inspiração!
CASA ÚTERO