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ÍNDICE

__________________________________

Amanda Amaral .......................................................................... p. 11


Luana Góes .................................................................................. p. 14
Gilda Portella .............................................................................. p. 21
Gabriela Lages Veloso ................................................................ p. 26
Kátia Surreal ............................................................................... p. 28
Alice Silva .................................................................................... p. 30
Salma Soria .................................................................................. p. 33
Karla Fontoura ............................................................................ p. 36
Sandra Modesto ........................................................................... p. 39
Beatriz Helena .............................................................................. p. 43
Valeska Brinkmann ..................................................................... p. 46
Nayana Ferreira ........................................................................... p. 49
Carolina Esteves ........................................................................... p. 52
Liliana da Silva Firmino .............................................................. p. 60
Julia Magnoni Roque ................................................................... p. 64
Lorraine Ramos ............................................................................ p. 67
Luciana de Assunção .................................................................... p. 70
Ana Amorim Fontana ................................................................... p. 74
Deiziane Oliveira Santos ............................................................... p. 82
Nathália Aguiar ............................................................................. p. 84
Daniela Rezende ............................................................................ p. 88
Karolaynne Nunes ......................................................................... p. 90
Isabel Furini ................................................................................... p. 94
Iasmim Lucena ............................................................................... p. 96
Yoná Souza ..................................................................................... p. 100
Karenina do Nascimento Rodrigues ............................................ p. 103
Glaucia Ank .................................................................................... p. 107
Sam Nina ......................................................................................... p. 113
Maria Luana Caminha Valois ....................................................... p. 117
Clarisse Nascimento ....................................................................... p. 123
Gloria Scanavino ............................................................................. p. 125
Geovanna Fernandes ...................................................................... p. 129
Letícia Negrão .................................................................................. p. 131
DEDICADA A

Marielle Carolina Conceição Clarice Dandara Aqualtune Njinga


Catarina Isabel Maria Madalena Ana Cristina Silvia Tarsila Artemisia
Anita Pagu Iara Clara Lygia Gilka Wislawa Anna Marina Olga
Mirella Emily Sônia Ruth Flávia Jéssica Júlia Julie Diana Marta Zuzu
Carmen Chiquinha Leila Xica Dulce Fernanda Helena Bertha Enedina
Zilda Raimunda Daiane Penha Elza Roberta Violeta Leopoldina
Tânia Priscila Rute Judite Lia Raquel Daniela Iasmim Glaucia Gloria
Karla Kátia Gilda Liliana Sandra Luana Clarisse Amanda Samanta
Yoná Nayara Gabriela Rita Lili Joyce Helenice Margarida Eva Gorete
Cristiane Lucélia Tatianne Neudenis Vanessa Isabella Beatriz Karina
Mércia Clotildes Pâmela Glauce Natália Ifigênia Patrícia Poliana
Alice Vitória e tantas outras Mulheres Mulheres
MULHERES
M
U
L
H
E
R
E
S
?
cocktail — m-o-l-o-t-o-v

carregava uma garrafa como se fosse uma arma em punho. andava pelas ruas e
lembrava que isaura uma vez lhe disse: "se você soubesse como é feio andar com
qualquer garrafa de bebida a mostra, jamais repetiria tal ato." o que isaura esqueceu
ou sequer sabia era que aquela era mesmo uma mulher que prezava pela repetição em
tudo o que fazia. nesse mesmo dia afirmou com todas as letras que a lógica mais fácil
para se aprender uma língua era a da repetição. era assim que as crianças faziam. era
assim que os adultos teimosos também forjavam suas vidas. operar pela repetição. além
de tudo era uma mulher teimosa. repetitiva e teimosa. algumas vezes se perguntava se
tal teimosia poderia levar-lhe a falência mas logo concluía que de certa maneira, já era
uma mulher falida apenas pela insistência na repetição.

caminhava com a garrafa em punho. mirava os olhos de quem fosse como se fosse ela:
in ven cí vel.

intransponível.

para uma mulher uma garrafa é uma arma. e por mais que se diga, armas carregam
poder. no caminho do trabalho até sua casa, pensava em como escoar tal sentimento. era
injusto. era raivoso. era tudo o que ela não queria ser. por entre ruas, pensava em seu
ódio como uma garrafa prestes a explodir. essa estava em suas mãos, cada vez mais
apertadas. lembrou que nesse mesmo dia ouviu que parecia uma guerrilheira sentada
com as pernas abertas e a bota de salto que herdara de sua amiga. "você parece uma
guerrilheira russa prestes a explodir um cocktail molotov." inundada pela raiva.
controlando palavras e corpo.

não é de bom tom uma mulher se mostrar raivosa.

ela sabia.

pensava nos rumos que explodir o coquetel molotov de seu interior acarretaria. queria
ser corajosa mas os adjetivos atribuídos a sua pessoa somente eram sinônimos de
teimosia. queria poder ascender o pavio e jogar-se para longe. atirar contra todos
aqueles que contribuíram para que um dia a raiva se mantivesse viva e lampejante
dentro dela. era em síntese, uma mulher alta. grande. nunca coube bem em lugar algum.

ela sabia. e estava cansada.

quando finalmente chegou a sua rua, estava exausta. não soube bem onde escondeu o
cocktail. dentro de algumas entranhas ele havia se perdido. aceso. havia afinal um longo
caminho até a saída mais próxima. chegou, por fim, exausta. não houve tempo para abrir
nenhuma garrafa.

Amanda Amaral [1994, Vitória, Brasil] é graduada em Artes Visuais pela


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), artista visual, pesquisadora
independente e arte educadora. Vive e trabalha entre Vitória/ES e São Paulo/SP.
Pesquisa as noções de ruína em suas instâncias e aparições imagéticas, históricas e
conceituais. Utiliza o vídeo, a fotografia e a palavra como campo de investigação
considerando tipologias e contra-tipologias para criar narrativas fabuladas.
Luana Góes é uma artista multimídia do Amapá, norte do Brasil. Ela mistura diversos
estilos e materiais para criar artes únicas, seja no tradicional ou no digital. Você pode
encontrá-la no Instagram em @luana.g.m.
Cartografia

Mão que segura rosário

Impunha relho e chibata

Dedos que contam mistérios

Atam mordaças Lábios da louvação

Mandam fechar grilhões

Mistérios gozosos são dolorosos

As contas escorregam Fluviam sangue

Entre ladainha e terço

Ouço tambores lamentando

Os gemidos dos Preto-Velhos

Carto (grafia) dores

Acólitos

II

Mãos carregam andor

Dedos sinalizam veneração

Talham artes castradoras

Lábios entoam cânticos sagrados

Proliferam sentenças de segregação

Apregoam racismo

Procissão de dores e padecimentos

Ao Corpus Pretus
Entre estações os penitentes

Vestidos com pele negra

Que Deus lhe deu Sangram

Morrem Esvaem vidas negras

Costuradas com fios brilhantes

N.e.c.r.o.p.o.l.i.t.i.c.a

Performance litúrgica da cor

Metamolduras orgânicas

Tingidos sangues, pus e lágrimas

Espectros aos pés

Da religião e da nação

Choro sepultado

Profundeza do ser

Dor contida

Olhar sem brilho

Espelha monólogo

Relação abusiva

Invisibilidade

Servidão emocional

Refeição solitária

Par voo solo

Conto de hora esvaziada


Companheira sem amante

Padece sangra

Peregrina não ouve confidencia

Espera a beira do caminho

Fita a sombra fragmentada

Ruptura ser e ter

Desarticula os desejos

Poetizando

Renascer

Peregrinei
Cinquenta e duas
Voltas solares
Sonhei poetizando
Vivências germinando
Minha alma florescendo
Depois do longo período invernal
Atravessei meus desertos
Arei as inquietações infinitas
Fiz das dores solitária adubagem
Os canteiros em solos quilombolas
Revirei com ferramentas de orixás
Demarquei portais passados e presentes
Recolhi lágrimas para rega as sementes
Os versos outonais reverberaram
Visitei outras jardineiras
Universidade das quebradas
Trocei mudas de dadivas e caroços fantasias
Estaquias brotam dons sufocados
Na dormência da pandemia
Fez eclosão os encontros virtuais
Morte fez-se vida
Pulsação verteu em escrita
Amargor e opressão em criação
Tirei o entrave da garganta
Reencontrei outras criações
Neta contemplar a avó
Cegas reconduz as entorpecidas
Mudas apreendem a cantar
Fugitivas ensinam sobre ficar
Vivas mortas falar de
Renascimento

Gilda Portella – Yalorixá, multiartista, pós-graduada em História pela Universidade


Federal de Mato Grosso. Nascida em 1969 Barra do Garças – MT, há trinta e cinco anos
em Cuiabá- MT. Durante a pandemia redescobre-se poetisa, deseja que a escrita seja
ferramenta para promover justiça social, igualdade gênero e raça. Em processo de busca
e autoconhecimento da escritora que pulsa tem participado de coletâneas.
Macabéa

Com quantas Macabéas se faz

o mundo? Mulheres pacatas,

desajeitadas, silenciadas, que

quase não deixam marcadas

suas imagens no espelho.

Macabéa, até quando aceitarás

o destino que te impuseram?

Até quando permanecerás, invisível?

Gabriela Lages Veloso é contista, cronista, poetisa e ensaísta. Atualmente, é colunista


da Revista Sucuru. Em 2020, estreou no mundo das letras com a publicação do conto O
Relicário, na Revista Intransitiva (UFRJ). E, em 2021, foi colunista da Revista
Literatura Errante; participou de Coletâneas e Antologias poéticas, bem como colaborou
com revistas nacionais e internacionais.
Máquina-mulher

Ela se mantém cheia durante a semana. Às vezes, se derrama. Esvaziam-na, e


logo já está cheia de novo com uma baita sujeira até o topo.
Sexta-feira, sempre só labuta. Faz-se a pilha, que gira, gira, gira, rodando no
mesmo ritmo o ciclo infinito. Na casa, claro, é onde se lava a roupa suja. Mas essa
máquina deveria estar do lado de fora, exposta na rua. Só que entre paredes fica melhor.
Sem luta. Ninguém vê, nem ouve ou sente o ruído. O escapismo, quando lhe consentem,
é a TV e seus programas démodés.
Qual não se imagina é que a máquina do dia, à noite, fica parada, estagnada, com
a suas águas reservadas a receber, duma só vez, toda a sujeira das cuecas e outras
monstruosidades alheias. A vida inteira na vida partida.
É, a máquina-mulher precisa se libertar. Quebremos a grande máquina...
(Kátia Surreal)

Kátia Surreal é carioca, canceriana, cura o coração com cat, criações e catarses. Como
conhecê-la? Fugere ad Fictem (blog), Gradações hiperbólicas (livro) e ig:
@kátiasurreal_
3 gritos pro alto

I.
A revolução
da vulva
que pulsa

É silenciosa
pacífica e
contínua

Mas finca
as raízes
e espalha

Na terra
impura
avulsa
e repulsiva

O caminho
de gritos
sangue e
alforria.

II.
A rua é pública
A praça é pública
A travessia é pública
Mas o corpo dela não
Porém

A buzina que apita


Toda vez
Que ela passa
Anuncia
Que o corpo dela
É público também

III.
Nos jornais
estampado
está o sangue
que jorrou
há pouco
debaixo do
parapeito
daquela sacada
trepidante.

Alice Silva é nortista, manauara, 26 anos, licenciada em Letras pela Universidade do


Estado do Amazonas (UEA) e mestranda em Letras e Artes na UEA. Tem contos e
poemas publicados nos e-books Palavras do Norte, Mulheres do Mundo (2021), Dossiê
Literamazônicas (2021) e A Beleza do Partir (2021). Acredita no poder da escrita e na
importância de reivindicar espaços enquanto mulher, feminista, bissexual e
pesquisadora.
Rasga para ver

Mulher, se tu rasgar essa roupa que tá usando, vai ver que dentro do corpo tem
uma corda. Exala a gravidade no mundo dos homens. Eles trepam eles agarram eles
roçam eles chacoalham para ver qual é. Lançam nas janelas dos carros para desfilar
pelas praças, enrolam entre os braços que dizem viris, viris! Há tantas coisas que
amarram os quadris, eles puxam com força, por esporte, tração nas quatro rodas, tem
coisas que só sabe se viver, favor dizer aos outros o que vai acontecer, o que vai
acontecer, eles dizem te amo tanto, tanto, você é especial, quero você linda, amor, que
coisa brutal, se estica mais pra mim.

Corda quente, o dia tem a cor da


noite, a paixão é urgente, levam num topo da cidade onde a corda se estende para eles
treparem, depois assistem ao nascer do sol, eles querem morar na corda, dizem que
nunca se sentiram assim e a anelam em dourado hemorrágico para que ninguém mais a
toque. A corda é dele. Amarram em suas casas para que o trançado sustente tudo o que
tem dentro. Eles esfregam a corda para limpar os cantos, aparar a mesa da cozinha, a
corda ergue as compras do mercado, se enrola na coleira do cachorro, leva o bicho, lava
as coisas, as crianças, as plantas, as jantas. A corda se esgueira entre os trabalhos de
dentro e de fora, eles têm inseguranças emocionais e dizem vamos ver se dá para te
botar num guindaste enquanto faço a barba. A corda aguenta.

Quando a cor da corda de dentro começa a desbotar, eles, ocupados demais para
enxergar, resolvem num beijo simples, a corda não lamenta, o nó na garganta não deixa.
Nó frouxo, nó cego, nó de correr, nó em oito, nó de argola, nó de sapato, nó de café
coado, nó no sofá desgastado, nó de toalha molhada, nó de pão mofado.

Um dia eles chegam com um olhar indiferente, faz alguma coisa corda, essa já
não produz contentamento. Eles precisam sair, espairecer o pensamento, ouvir o som do
piano e da moto, cervejar num canto, cheirar uma hortelã, mijar num poste de rua, ir nas
praças de perfume no pescoço que maravilhoso, quinquilharias desafiam os desejos e
saem fazendo súbitos laços por aí. Outras cordas caem das casas, arrebentando todos os
andares. Umas chegam a serem resgatadas, depois de estateladas na lama do chão, indo
parar em outros lares. Lugar de corda é em casa, diz o ditado sagrado, isso é um absurdo
nenhuma corda precisa amarrar uma casa inteira, tem as que sustentam tudo isso e ainda
resistem a fase aventureira deles esperando ganhar o selo de pau para toda obra.
Quando a corda vira pau, o espaço do trançado de dentro aumenta até o meio
a parte de fora chega na boca esgarçada explode. Uns homens olham e riem da corda
esbeiçada, chegam a montar nela para ver se ainda pega no tranco, diversão, distraída,
todos pulam na corda, ela ganha muito tempo de sol. Nada pior que corda esturricada,
essa, tá estragada, com cheiro de palha velha. Não há shampoo hidratação total que dê
jeito.

Eles trocam de corda porque dizem que tá bem pesada, emperrada, não presta. A
corda ouve acorda menina! na televisão, refaz os entrelaçados de dentro, aprende a
respirar o sisal, toda a força que carrega dentro de si, se exila no farol do próprio
umbigo, um pouco mais endurecida, se ajeita aqui, ali, acolá, enquanto eles pulam de
corda em corda, é possível ouvir outros estalos. Primeiro, das roupas, depois, das cordas
que rasgam. Todo dia tem umas arrebentadas por aí.

Salma Soria é estilista e escritora. Autora de ―Vestindo a roupa ouvindo a máquina‖ e


―Muitas roupas aqui‖ (Penalux).
Função: mulher

Deslizo pelos picotados papéis da minha escrivaninha


Em bagunça e enredo
eles fazem todo o sentido e estão ali me lembrando
que as horas não são minhas
Sou delas
- como cada mulher que encontro -
Sempre arrastadas pela amargura tirania do endireitamento:
Arruma esse jeito
Arruma um marido
Arruma a casa, a pia, o chão, o leito!

E aproveita para arrumar os peitos.

Ajusta cada milímetro do tudo


e quando ninguém mais souber onde começa e onde termina,
ouça as perguntas,
desenhe as respostas.

E talvez você não saiba


nem um milímetro da certeza
que as pessoas esperam.

Pautas e pautas se retroalimentando


na infinitude dos pensamentos.

Mas acho que um dia eu vou acordar sem elas


Serei mais nua do que as tardes sem nuvens
e nem vou saber como cheguei a elas

Lisa, limpa e sem explicações.


Dois já foi

Entregam-me um caminho retilíneo


onde cada parte do meu corpo
é espaço público de deduções e suposições
sobre o ponto que me aproximo:

masculino feminino
? ?

Se como menina, nascem pelos


virei mulher
mas para ser feminina
preciso tirá-los

Se a bunda e curvas aparecem


já não sou mais menina
mas só feminina
se isso pertencer ao meu esposo

Se meus seios despontam


sou mulher de novo
mas se não grandes suficientes, posso ser menino
por isso: ―use sutiãs de bojo‖

Do que me deram fiz bagunça


Deixei os pelos, casei com brincos
masculinei as calças, feminizei os cintos

E no lugar de duas pontas, eu fiz tranças


O gênero que era binário
virou pura mistura, pintura e bordados
um lugar extraordinário
para re-existir.
Serventia

Meu corpo sempre foi esse enigma louco sobre si.


A quem pertence?
A quem eu dou?
De dor, ele sempre foi feito:
peitos que nunca crescem
pele que nunca amacia
barriga que não se olha

Mosaico coletivo de mulheres antes de mim


eu viajo nesse corpo

Cartão de visitas por onde quer que vá


essa forma ambulante é alvo de todo olhar e espera
Espera-se curvaturas
espera-se menor espessura
espera-se vagina pura

E assim ele caminha estrada afora


aceitando as trocas de salivas mais vis
só pra sentir aquele arrepio sombrio que diz:
‗Eu sou só minha, sabia?‘

Karla Fontoura. Comunicóloga e escritora baiana de textos informativos e poemas,


palestrante, tradutora, mãe feminista de Kabir. Colunista dos blogs Não me Kahlo e
Mães que escrevem. Pessoa não-binária (ela, ele, elu) e pansexual. Luto pelas mulheres
e as crianças e busco conectar informações relevantes para mudanças de consciência e
comportamento. Instagram: @karla.expansiva.dilacerante
PARA VIVER UMA GRANDE DOR

Para viver uma grande dor, é preciso um engano de amor eterno. Ser beijada na ilusão
envolta em lençóis floridos.

Tudo começa abruptamente. Na obrigação em fazer sexo todos os dias. Para viver uma
grande dor, é devaneio pensar no roçar de pernas com cheiro de gozo, haverá muito suor
e pouco, muito pouco amor.

Para

viver

uma

grande

Dor.
Um empurrão, dois, quatro, era uma vez os desenhos com lápis de cor, fez-se de triste
em cada resto, pedaços de mulher antes contente. Para viver uma grande dor, gritos em
pensamento com bafo cheio de medos. Quando de repente, ele diz desculpas, e são
tantos os pedidos, e a vida segue... A mulher sem o siso, risos quebrados se espatifam.
É preciso fugir, é preciso contar tudo, mas um medo invade o espelho, para viver uma
grande dor. Às vezes o motivo é louça mal lavada, compras de batons, contatos de
amigas. Eis que na noite crua, no vazio espaço, para viver uma grande dor, espanca-se
sempre. Para viver uma grande dor, é inútil chorar alto, pisar manso, trazer dentro de si
os risos de uma garotinha dos tempos do all star.

Ela vê pela janela, os próprios ângulos de outrora diante do romper do sol. Silêncio. Um
homem calou a boca de mais uma.

Flores enfeitam uma enorme caixa na cerimônia da despedida final. O buraco é tão
inerte, tão profundo, e um corpo é jogado história abaixo.

Para não viver uma grande dor, denuncie. Ligue 180


À ALMA

Minha alma tem jeito e corpo de mulher


Costuma arranhar as paredes rabiscando alguns desenhos sem fim
Tem costas largas pra suportar a dor surrada vida a fora
Minha alma tem cheiro e olhar de mulher
Anda seguindo meus sonhos
Atreve-se a cuidar dos meus pesadelos
Grita, sussurra, canta, geme.
Treme quando vem o amanhecer
Gosta de me acalmar, mas às vezes me esquece.
Minha alma tem pele e pelo que se arrepiam ao meio dia
Que me faz acordar em meio a tantos goles de cafés amargos
De cigarros tragados à meia noite
Bagunça minha cama até vazia
Estoura-me com lembranças essa minha alma
Balança numa gana intempestiva
Convida-me a atravessar os meus porquês
Dizendo que o passado é o presente
Embrulha - me feito agulha
Destrói meu caminhar no desafio
Canta na sala e toca piano e bate o pandeiro deixando no meu travesseiro um ser
qualquer
Descobre que o assedio, o estupro, o mundo estúpido.
Precisam urgente de denúncias
Ah, minha alma não é só minha.
Tem força
E é nossa!

Sandra Modesto tem 61 anos. Nasceu e mora em Ituiutaba, MG. Graduada em Letras,
pós-graduada em Educação, professora aposentada. Três livros publicados: ERA
SÁBADO, Kotter Editorial, 2022. ―Tudo em mim é prosa e rima‖ (Editora Autografia,
2019). ―Acenda a Luz‖, prosa poética (Editora Kazuá, 2015). Publicou textos nas
antologias: Elas e as letras- editora Versejar, 2019. Ruínas- Editora Patuá, 2020. Parem
as máquinas- Selo Off Flip, 2020 Prêmio Selo Off Flip, 2021 Corvo Literário, 2021.
Cronista do site ―Crônica Do Dia‖ Publicou textos em várias revistas.
Antes que tudo seja demolido

Quem me dera escrever

como quem gerencia a desordem.


Ligar o som da voz
à lógica,
perpetuando a ira,
a lágrima,
o riso.

Entabular o espectro dos desejos,


de raízes sólidas
Desconhecidas,
debaixo desta terra de gente emaranhada.

É de todo saber
não saber.
Querer sem por quê.
Vagar
sem razão maior
que um grão de areia não envergue.

Quem nunca caiu


do trono,
do altar,
da cama,
dentro do buraco.
Ou elevou-se
aos céus,
aos mares,
às escadas.

De páginas viradas,
um momento.
Um vento que estagnou,
e as raízes esperam esquecidas,
Os sonhos, ressecados.
Um recado do tempo
de que tudo pode,
sem quando.

Dispo-me da sede que maltrata os instintos:


existo.
Pois não há dor maior do que o peito indeciso.
Grave é perder-se de vista,
não ter-se enquadrado num diário,
ponte para a realidade.

Então,
Escrever como quem compreende o todo,
quem poderia dizer qualquer coisa,
Ainda que tenha tudo nas mãos
por um fio.

Beatriz Helena é uma cearense perdida no Rio, advogada familista e arteira nas horas
vagas. Seus trabalhos visuais e literários estão disponíveis no
instagram @helenaporumtriz e no medium @beatrizhelenaa.
as panteras

mesmo no escuro
chegamos
e sabemos
o fim do mundo
ainda não é aqui
com jeito
pisar os galhos
com afinco
afiar as garras
pegada felina
botinha preta
olhos de jabuti
caba agata é braba
não teme água
mergulha fundo

mesmo na caligem
desvaneço porque
é descomedido
desarmada eu
pantera fera
mansa só no
espelho do
teu vácuo
botinha de veludo
escalando rochas
vemos
ainda tem chão

mesmo no breu
pelagem brilha que só
presas
colar de mar
fim
me dá tua pata
guardamos os
barulhos os rodopios
sabemos inv
estigar

mesmo no turvo
o salto
nósgatas
negras luzeiro
olhos que tudo veem
videntes
as donas do mundo

(Valeska Brinkmann)

Valeska Brinkmann, santista, estudou Rádio e TV em São Paulo. Tem poemas


publicados em revistas literárias online e impressas e em diversas antologias
(Alemanha, Brasil, Portugal). Traduz esporadicamente poesia alemã (escamandro,
revista Cult, revista Intempestiva). Em 2021 foi aluna do curso livre de preparação do
escritor -Clipe- da Casa das Rosas. Em Berlim, onde mora, integra o coletivo Glense -
guerrilha literária espontânea na sala de estar.
Nossa história escrita em sangue

Nossa história foi escrita em sangue


E em sangue vai acabar
Todos fingem que não
Mas ninguém pode escapar
O ciclo se repete,
Voltaremos ao mesmo lugar
Essa paz que tanto prezam
A qualquer momento irá desmoronar

A guerra não acabou


O ódio não morreu
A ferida não curou
O erro é seu, é meu
Culpe seus avós
Mas está caminhando sob o mesmo céu

Nossa história escrita em sangue


Até nossa fé manchou
Espada no ar
Por paz a cantar
"O que é melhor pra todos
Eu vou falar"
Uma raça unida,
Por si mesma extinta
Quebrada, arrependida
Carregando a mesma sina

Nossa história escrita em sangue


Não importa o seu Deus
Alguém sacrificado,
Seu valor mereceu
Alguém admirado,
Tem que pensar como eu
Alguém oprimido,
É lei que o homem escreveu
E se eu disser mais um "a"
A fogueira é destino meu

Nossa história escrita em sangue


E apenas em sangue pode acabar
Cometendo os mesmos erros
Só somos melhores por não nos importar

Estamos cansados de lutar


Então por que não ignorar?
Por que não sonhar?
Por que não tentar?

Nossa maldição é pensar


Nosso dom é transformar
Nosso desejo é melhorar
Nosso destino é falhar

Porque nossa história foi escrita em sangue


E só com ele vai terminar...

Nayana Ferreira mora em São Luís do Maranhão. Recém formada no Ensino Médio
pelo IFMA como técnica em Artes Visuais, e também estudante do NAAH/S (Núcleo
de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação), na área de Literatura e Poesia.
Classificada no Prêmio Literário AMEI 2020 e tendo sua primeira poesia publicada na
coletânea Poetas Maranhenses, em 2021. Também classificada nas categorias Conto e
Crônica do I Concurso Literário Maria Firmina dos Reis, promovido pela
CEMULHER/TJMA, com e-book publicado. Divulgação de trechos de poesias e contos
em seu Instagram: @nayana_ferr
INFÂNCIA

Usada

Intimidada

Abusada

Violentada

Calada

Ameaçada

Coagida

Constrangida

Exaltada

Explorada

Espancada

Ridicularizada

Enganada

Violentada

Perseguida

Comprometida

Envergonhada

Amedrontada

Idealizada

Dizem que também era criança.

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COMEÇO

Nasci aos 38 anos.

Até agora,

tudo foi gestação.


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SONHO LEVE

Aqui não há paredes

posso fugir, se quiser.

Um tecido,

preso a dois pontos,

sustentam meu corpo

Os invejo

me suportar não é tarefa simples.

Fecho os olhos

para ver melhor

Ouço a conversa

dos passarinhos

Falam sobre o vento

que acaricia meu corpo

e os leva para longe.

Sigo com eles

sinto a maresia

Nos rasantes,

gotas de água salgada

molham a minha pele

Voo rumo ao horizonte

Como em sonho,

sou leve.
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TEMPLO

Minha casa não tem flores,

não tem incenso,

não tem velas,

não tem sino,

não tem água benta,

nem cruz.

Minha casa não tem santo,

mas é daqui que falo com Deus.

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GÊNERO

Você diz "vou"

e vai.

Eu digo "vou"

e arrumo cama

e acordo as crianças

e faço leite

e lavo louça

e separo briga

e mando escovar os dentes

e mando arrumar o quarto

e separo briga

e faço almoço

e sirvo o almoço

e lavo louça

e separo briga
e espero ficarem prontos

e vamos.

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LABUTA

A mão que escreve este poema

tem unhas roídas e mal pintadas

a cutícula foi comida pela manhã.

É mão de uma mulher transtornada

que vive fingindo ser sã.

Mão que prepara o alimento

que leva a aliança do casamento

e que por tudo isto

se apoia no divã.

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MULHERES

Eva foi a primeira mulher

a desobedecer a um homem

que não era um qualquer

era deus.

Assim que se percebeu humana,

foi capturada pela costumeira

moralidade mundana

e se cobriu com folha de figueira.

Ela, que nascera de um osso


não podia dar o desgosto

de ter um corpo

gordo ou grosso.

Vanguardista das dietas

como não tinha

comida predileta

comeu uma maçã.

Eva hoje é respeitada

magra, alta, padronizada

pecadora de fazer inveja

aos seus.

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FILHOS

Fábrica de sonhos

Fábula que contam

Faca de dois gumes

Façanha humana

Faceiros inventores

Fachada assumida

Facultativos?

Fadiga certa

Faina não remunerada

Faísca acesa

Família formada

Fantoche dos pais


Fardo pesado

Farmácia em casa

Farofa na praia

Febre da maturidade

Feitiço encomendado

Felicidade intermitente

Filantropia total

Filhotes delicados

Filharada (nem pensar!)

Filme de ação

Flácida barriga

Flamengo, por favor

Flecha no coração

Flores no tempo

Fluxo da vida

FODA.

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SEM RAZÃO

Sou mãe. Ponto.

Não tem explicação.

Se tivesse, mãe não seria.

Não há racionalidade

que dê conta do que é

a maternidade.

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MARIEVA

É mãe, mas quer mesmo é ser puta. Devoção ao sexo em vez de devoção aos
filhos. Fidelidade apenas ao cartão de crédito.

Antes de trabalhar, deixa os pratos prontos no forno para ninguém se queimar.


Não pode contar com o marido.

Sempre no contrafluxo, vai rápido da zona oeste a Copacabana. Local de


trabalho perfeito para quem gosta do mar.

Os seios caídos da amamentação ficam lindos no decote profundo. Nunca tira o


sutiã. Garante seu segredo e faz mistério. Sem cicatriz, sustenta o discurso de que nunca
foi mãe, escapando dos assuntos sobre a maternidade. No segundo turno, ela esquece da
primeira jornada. Agora ela é remunerada, elogiada, recomendada.

Toma a iniciativa. Muda de nome. Fantasia ser quem quiser. Maquiada, se sente
bonita. Com o corpete, se sente magra. Depois do sexo, se sente rica.

Pela manhã, volta pro ninho depois de comprar bananas para a vitamina do
caçula.

Carolina Esteves é bióloga marinha, estudante de psicologia, mãe, filha, esposa e


aprendiz de escritora. Instagram: @poemasemfiltro
SOBREVIVENDO NO MUNDO QUE ME DERAM

Lua. A conheci quando me mudei para a casa rosa em João Pessoa. Alta, magra,
corpo violão, morena clara de pele aveludada. Uma das mulheres mais lindas que já vi.
Ela morava no mundo e passava tempos em casa. Com quem compartilhava o mesmo
ambiente com a mãe, a avó, a irmã e o irmão. Lua é a mais velha dos filhos de Célia.
Uma mulher considerada louca pelas pessoas da rua e por quem a conhecia. Dançar
pelada na frente da casa, chamar homens para transar, pedir carona sem sentido na rua e
mostrar a todos a sua cicatriz de cesária inflamada e cheia de pus, faz dela, alguém
inesquecível.

Fazia poucos dias que eu havia me mudado e de repente, a avó de lua que
também, aparentemente, não tinha os pensamentos regulados. Não péra, isso todos não
possuímos. Tinha problemas mentais. Chegou me chamando á porta. Estava
desesperada, pedindo ajuda para Célia. Dizia ela está sangrando muito e não querer ir ao
hospital. Corri e fui falar com ela. Ela lavava roupas na frente da casa, e de lá em diante,
o sangue deixava rastros até onde o segui e a vi deitada em uma cama, só de calcinha e
gemendo.

Perguntei o que havia acontecido e ela respondeu que tinha machucado a


cirurgia cesária dela. Eu disse que ela precisava ir até ao hospital, que não era normal a
cirurgia dela está daquela forma, até mesmo porque, o filho mais novo dela, já tinha
dezesseis anos. Ela se recusava e ao mesmo tempo, me atordoava com gemidos. A casa
embora nova, tinha aspecto de abandonada e não havia nada á meu ver, que estivesse
limpo. Na rua, havia poucas casas. Á frente, havia vilas e todos pareciam não se
importar com ela. Cheguei a ligar para o Samu, mas me informaram que não poderiam
levar ninguém para o hospital contra a vontade.

Não demorou, escutei Célia batendo a porta e expulsando a mãe, que passou o
resto do dia sentada na calçada esperando que a filha lhe permitisse entrar em casa.
Respirei fundo e continuei minha vida.

Lua se tornou minha cliente no salão de beleza. E como sempre acontece, por
muitas vezes, fomos terapeuta uma da outra. Lua foi criada, construída, sem amor e
carinho. Em meio á brigas, drogas e prostituição. Quando o pai faleceu, foi surpreendida
pela vida, que ficou ainda pior. Sempre só se envolveu com homens e mulheres do
tráfico. Chegou a dormir e se esconder da polícia e de bandidos em matagais. Dormir e
fazer amor com uma bazuca ao lado, para muitos, pode parecer algo terrível, mas para
ela, era sua realidade.

Em algumas vezes, Lua foi presa. Por assalto, tráfico de drogas... Entre outras
aventuras, como diz ela. E isto fez com que ela perdesse a guarda das filhas para os avós
das meninas. Não sei dizer se foi o melhor para elas.

Um dia, eu trabalhava quando Lua chegou ao meu salão. Palerma era um senhor
muito assediador, este tipo de homem, existe em todos os lugares. Ele se tornou meu
cliente através da minha tia Liss. Ela tinha uma lanchonete, onde ele era cliente e onde
ficava próximo do meu salão da época em que eu morava em outro bairro. Bem,
Palerma estava lá. E quando se olharam, percebi eles reconhecerem a traquinagem
particular deles um no outro. Palerma vivia me assediando. O dia que ele ia até o salão
era um dia de tormento para mim. Principalmente quando era o único cliente. Ficava o
tempo todo tentando me tocar, me beijar e eu mal conseguia controlar minha
coordenação motora tentando não cortá-lo com a navalha, mesmo querendo bastante ter
coragem de fazer isto.

- Por que eu ainda o atendia?

Mãe solo, morando de aluguel, devendo a agiotas... Eu não tinha muitas escolhas.

Ao Lua sair do salão, Palerma logo perguntou quem era e pediu o número de
telefone. Disse que era minha vizinha e iria perguntar se ela autorizaria a transmissão de
contato. Lua permitiu. Na mesma semana, Lua chegou com ele de carro cheias de
sacolas de compras de supermercado com sua filha mais nova muito feliz.

Sair com Lua não era o bastante para Palerma, que continuava me assediando e
fazendo propostas do tipo que me daria o que eu quisesse para sair com ele, ou com ele
e Lua. Ás vezes, ele chegava com sacolas de comida, frutas e verduras. Me ajudava
muito, porém, eu tinha que agüentar suas importunações até ele decidir ir embora. Um
dia, me ajoelhei e briguei com Deus. Disse que eu acreditava e vivia crente na
existência dele. E me recusava, continuar vivendo daquela forma para criar meu filho.
Me recusei a atender homens, e nunca mais, vi Palerma.

Lua nunca falava sobre a família. Cheguei a perguntar como era ficar com
homens iguais Palerma. Como era ficar com homens por bens materiais. Ela sorriu triste
e olhou para o chão. Disse que sempre pedia para eles serem rápidos, e quase sempre,
fazia essas coisas drogada para não lembrar depois. Lua conheceu outro traficante com
quem teve mais um filho, um menino. Depois me mudei da rua, mas não perdemos o
contato. Ela foi até meu novo salão. Estava dando mechas em seu cabelo pintado de
Alerquina, quando seu novo marido ligou xingando-a. Ele a ameaçava. Dizia atirar nela
caso ela aparecesse no bairro. Eu acredito muito em energia, e fiquei atordoada
escutando aquilo. Ela revidava as grosserias e dizia ele não ser homem o bastante pra
matar ela. Era como se ele estivesse apenas mandando ela se lascar. Ela fez um curso de
manicure e estava trabalhando em um salão chique de um bairro em João Pessoa. Ela
desejava ser diferente. Eu via esperança na morte dos olhos dela. Depois ela se mudou
para o bairro do namorado, e nunca mais a vi. Sorte minha querida Lua.

Liliana da Silva Firmino. Natural de Campina Grande, morei muito tempo em


Boqueirão, onde trabalhei de muita coisa, entre professora, garçonete, secretária,
vendedora de rua, etc. Ao me tornar mãe solo, me mudei para Queimadas ainda grávida,
onde morei sozinha em um loteamento com meu filho até os quatro anos de idade.
Depois, decidi dar um futuro diferente para ele e me mudei para João Pessoa, onde
continuamos só nós dois.
compostagem

eu gosto de cutucar a natureza humana

tudo que é e que se impõe

em certa medida.

fazer buraquinhos de diversos tamanhos

arrancar com a pinça

os dedos estranhos

dedilhadores de estômago.

todos nós temos os pés de alguém no peito

você pode mirá-los

se olhar para cima.

um após outro

copiam como nado sincronizado

cantam e dançam sob cercas de aço.

não quero que saibam que prestei queixa

que criei punições para me intimidar.

golpes cheios de pais exaustos

resquícios de amores problemáticos

de adultos-criança

nova espécie de peixe palhaço.

que gosto terrível sai

da carne podre

destes seres tão animalescos.

gosto de trauma de infância

loucuras aprendidas nos livros da avó.


é como bolo

tem que mexer bastante.

uma xícara de farinha

para duas de bicarbonato de sódio.

Meu nome é Julia Magnoni Roque, sou de São Bernardo do Campo, SP, sou redatora
de conteúdo e estudante de Letras, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Ainda não tenho nenhum livro publicado, apenas alguns poemas na revista Ruído
Manifesto e na Revista La Loba Magazine. Porém, escrever é o que me move e o que
me faz querer enfrentar o mundo todos os dias.
O coice das palavras

Coice. Substantivo masculino.


―Um coice é um movimento de defesa próprio dos quadrúpedes, sobretudo dos equinos,
que consiste num golpe desferido com as patas traseiras, depois de firmadas as
dianteiras. Devido à força do animal, tais golpes têm a capacidade de matar um ser
humano‖ No significado literal da palavra e ação de um animal, a contemplação
descritiva converge com a narratividade poética na composição do livro ―O coice da
égua‖ (7Letras, 2019) da carioca Valeska Torres.
No que tange à forma, a linguagem desapossada de um padrão uniforme ilustra as
interrupções e continuidades reflexivas do eu lírico não somente com seus sentimentos
intempestivos, mas de uma estabilidade da consciência crítica do sujeito ativo. A cada
página pode-se constatar construções de uma pluralidade métrica e sonora, formatos
arquitetados especialmente para a literatura contemporânea na qual a poeta entrega-se
em seus diversificados pontos de humor.
O movimento descontínuo é o meio pelo qual o leitor depara-se com o fôlego do fluxo
textual quase hiperventilante em seu cotidiano a ser debruçado. A proliferação das
palavras torna-se persecutória, uma vez que sua narratividade aumenta dada a
montagem em excesso dos caracteres.

minha mandíbula range quando masco chicletes meus dentes


arranham o esmalte de meus dentes já não são mais os mesmos desde quando eu era
criança quando criança um menino cuspiu no meu rosto e disse que eu deveria lavar a
louça rasgou meus desenhos e me chamou de imunda

Tendo não somente as imagens recortadas e musicalizadas, os poemas de Valeska são


canalizados e despidos para um público-mundo, mas também localizado. Como um
manifesto delineando formas para se matar um fascista.
Falando em termos de público, o da região é uma fonte a ser reiterada, pois as histórias
aqui agrupadas são para serem lidas em uma voz unificadora de sua localidade.
Em confronto com a tese de Mikhail Bakhtin, o cronotopo literário, o conceito
transporta-se para a poética de Valeska. Um dimensionamento do tempo-espaço
arraigado em noções da constituição do indivíduo e sociedade.
As linhas traçadas são posicionadas como arcos e flexas e fuzis que já foram e são
constantemente utilizadas como poder da imagem e da linguagem.
“Miro o arco e a flecha cai sobre o peito daquilo que já foi um índio e que agora
segura o fuzil”.
Um (re)arranjo realizável até mesmo em tons mais dramaturgos, as divisões da autora
suburbana acentuam a internalidade e sua realidade exterior, seja a da personagem que
habita Irajá, Penha, Bonsucesso, mas que depara-se com a estigmatização de um modal
da zona sul, a estação General Osório.
Caberia, aqui, portanto, um jogo de Búzios para a alteridade das vivências adentrando
nas composições urbanas? Talvez, sim, talvez, não. Porém, não é necessário do místico
para uma leitura àqueles com estômago forte para depurar e apreciar a ―escrita do ódio‖
Em tempos pandêmicos e de uma flexão contraditória para o ser tornar-se mais
individualista, por que não nos jogarmos nas zonas trans fronteiriças das palavras
relinchando, mas com um grau de seu pertencimento e luta intragável para os
acomodados?

Lorraine Ramos. Publicada em 14 revistas digitais ao longo de dois anos e meio, tais
como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Vício Velho e Aboio, Lorraine Ramos Assis,
em seus 25 anos, é uma artesã do caos. É estudante de Sociologia, na UFF. Integrou a
antologia Ruínas, da editora Patuá, e a antologia LiteraturaBr. Concedeu duas
entrevistas no canal "como eu escrevo". Colabora com o portal Faziapoesia.
Eufemis(nis)mos

Dois anos de mordaça, burca nasolabial: sem batom, sem frisson.

De repente, o espelho revela o que estava disfarçado: as bochechas de bulldog, o bigode


chinês e a boca de ventrículo. Eufemismos para a ação devastadora da menopausa no
rosto da mulher.

Até que não ligo para pés de galinha e para as manchas senis nas mãos e nas canelas.

Em breve serei uma carijó orgulhosa, parecida com mamãe. Envelhecer não pode ser
apenas ruim. A gente pode achar bacana ver a mãe em si mesma. Aqueles dentões
seguem aqui.

Mas as pequenas erosões no colo, ah, que angústia! São feias e inevitáveis.

A não ser que pretenda pernoitar numa câmara hiperbárica ou num caixote de vidro em
sono profundo e estático de Branca de Neve antes das agruras da maternidade.

Dormir de barriga para cima não é uma opção. O marido reclama do ronco e a recíproca
é verdadeira.

Restam-me os pequenos truques; trapacinhas contra a decadência do colágeno. Então


me dei conta de que estou atrasada nos tais procedimentos faciais.

Aos 5.1 ainda sou virgem em intervenções de rejuvenescimento, fora os cremes básicos
(caros, Vichi Maria!), filtros solares e tratamentos contínuos anti-rosáceas.

Botox - Fios de Sustentação - Lipo de Papada - Toxina Botulínica - Bioestimuladores -


Preenchimento - Enzimas Skinbooster - Limpeza de pele - Peeling.

O cardápio é farto; as promessas, muitas e a conta bancária mixa.

As amigas, maravilhadas, comentam suas mais recentes diabruras nas clínicas


dermatológicas enquanto me sinto aquela bruxa carcomida do Gretel & Hansel assistido
dias atrás. É o futuro à minha frente, despido de maquiagem.
Os contos de fada são, de fato, histórias de bruxas tingidas de frescor juvenil pela
Disney.

Não tô disposta a envenenar, amaldiçoar, mandar matar uma linda beldade de 20 para
retornar à juventude perdida.

Pero que dá vontade, dá.

Liberdade

Na praça fazem pose:


pousam os passarinhos
os anjos da infância
e os flashes da natureza.
Deambulam pombos e pessoas,
beijos e bate-papos de porta-retratos.
Na praça a noiva ensaia a lua de mel
as fontes sorriem com úmida juventude
as rosas não falam, mas posam em primeiro plano.
Os cães merecem e estão no céu
amigos dizem xis
os livros são bem-vindos.
Na praça há liberdade de ir, vir e contornar no sentido do relógio imaginário
Quem tem horas?
Quer pipoca?
Os sonhos em praça pública ganham a amplidão da coletividade.

Psicoanálise

Poderia fazer uma coleção interminável de canecas e xícaras.


Descobri que não gosto de quadros sem título.
O minimalismo não me afeta.
Prefiro os paradoxos da arquitetura
bruta
brocada de pensamento barroco.
Mesa posta com delicadeza é luxo.
A civilidade me sedu½z
Teria gavetas de brincos e de anéis que não comprei.
Ainda não me sinto natural de tênis com saia.
Vitrais e santos me abençoam.
Chá gelado e vodca com gengibre são boas pedidas no verão.
As tentações da noite não me atraem tanto quanto os vestígios do dia.
Dúvida: devoro arte ou sou devorada por ela?

Luciana de Assunção, jornalista e publicitária formada pela Universidade de Brasília


(UnB), com pós-graduação em Comunicação com o Mercado pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Nasci em Brasília e não escapei à sina de ser
servidora pública federal. Pisciana com ascendente em Leão, vivi em Sampa e em Nova
Iorque. Autora do blog de crônicas e afins ―Pisciana de Juba‖: lulupisces.blogspot.com
Tem textos publicados nas revistas eletrônicas: revistaphilo.com; portal
Ruído Manifesto.org, e Revista Sucuru @revistasucuru- Revista Nordestina de
Literatura e Arte Contemporânea. Selecionada via concurso cultural. em 2021, para a
coletânea ―Contos de Halloween‖, da Arkanus Editora, publicação virtual à venda
na Amazon.com.br Meu livro de estreia, ―As desventuras de uma mulher que levou um
susto em sobreviveu‖, foi lançado pela editora carioca Confraria do Vento, em 2019.
A chama se apagou

Fogo
queima
mulheres
elas que incomodam
por serem elas
por terem vulva
por mostrarem os peitos
por protestarem
andarem nas ruas
o medo as provoca
o homem quando
contrariado
se apavora
apagando
o fogo
a mulher
a vida

Se escute
Mulher
que carrega
seus conhecimentos
abraça-os
assim se faz uma revolução
entendendo seu poder
compartilhe com o mundo
os conservadores tremem de medo
ela sorri ao dizer cliente
como uma relação de troca
onde um oferece
outro recebe
é sobre o tratamento
de cura
enquanto corpo
adoece
o ser se enriquece

Eme de mulher

O corpo da mulher
Com m maiúsculo
Não é livre
Não é dela
E quem foi que disse isso?
Um homem branco hetero
Há séculos contando
Essa ladainha
Já virou lei
Desconstrua isso
Aceite
O corpo da mulher não é público
O meu corpo
O seu corpo, mulher
Não é de deles
É nosso
O corpo da mulher é dela
Não da sociedade
Portanto deixe ela decidir
Deixe ela dizer não
Respeite suas roupas
Ou pelada que seja
Não é da sua conta
Respeite
A mulher
Com m de mudança

Sociedade me escute!

Nós fomos e somos


criadas como
objeto
de homem
de seus desejo
como produto de despejo
pensa assim
a mulher
na visão da sociedade
não passa de
uma carne
que tanto querem comer
cuidado
porque somos seres
como poderes de cura
não vamos nos calar
quem se incomodar
com a liberdade
que se lasque

Livre de si

Desnude-se
de você
das suas versões
todas elas
pelado se veja
se saía
se livre
a amarra
que te prende
arrebente
nem pense
tire
puxe
desnude-se
do jeito que veio ao mundo
só sobraram memórias
e alma
o corpo é camada
Apressada a vida corre

A vida
parece
um trem
o ritmo apressado
as pessoas
são emoções
a estação é
divisão do ser
os bolsinhos que se prendem na alma
que se morrem
com o morrer do outro
apressado
o coração bate
o corpo reage
o pé não anda
para
eu falo
comigo mesma
a vida é um trem
a cada estação
caio no chão
com seu ritmo sem parar
parece gritar
a vida não para
e você
pode parar?

Andar sem pé

como que eu vivo


se parte de mim morreu?
é como se tivessem me cortado
e os fios se embaraçam dentro
e fora de mim
tudo é exposto
quando alguém morre
os seus pontos mais fracos
as feridas mais escancaradas
cada dedo sujo
infecciona
mais
machuca mais
piora
até que para de sangrar
porque uma hora
tudo escassa
até cair o último pingo de sangue
dessa ferida
eu imploro
caia
mas levante

Nos escombros da morte

No segundo que eu escutei que minha avó tinha morrido eu perdi a confiança
que eu tinha, eu perdi a fé, o amor, a segurança, e mal sabia que meu pai ainda iria
morrer logo em seguida, os dois morreram no mesmo dia, com uma diferença de poucas
horas, nesta sexta feira, o meu eu desmoronou, pense no vidro quando cai no chão, que
se estilhaça para todos os lados, foi assim que eu me senti, quebrada em pedaços, e até
hoje, há mais de 9 meses, eu ainda não me consertei
O que aconteceu comigo foi uma guerra, com o medo, a espera pelo ataque do
inimigo, a contrapartida e por fim o ápice, a morte, me vejo em um campo minado, com
as sobras do que restou de mim, do que ainda tem no meu ser, pouco, tenho medo de
não ter sobrado nada de bom, e se a morte deles roubou a minha vida?
Por mais que eu tente, não consigo evitar de pensar no que eu poderia ter feito, a cada
susto ou desafio que eu levo da vida, agora me vem o medo de perder, de ficar perdida,
sozinha,, dentro de um buraco sem ninguém para ouvir o meu grito desesperado por
ajuda
Dizeres de mãe

Minha mãe tem alguns dizeres, mas ela sempre repetia que ―quem vê cara, não
vê coração‖, no sentido de me deixar alerta para com as pessoas ao meu redor, mas e se
pensarmos que esse dizer pode ser colocado na seguinte situação: um sorriso na cara,
mas o coração quebrado, segurado por uma fina e curta linha.
É por isso que não se pode olhar precipitadamente, sem ao menos conversar com
alguém, porque o mais fascinante da vida é tentar conhecer o outro ou a si mesmo, mas
nunca terá o conhecimento completo, é nessa caminhada, onde a cara esconde a alma, o
corpo serve de escudo para o que realmente importa, o interior do ser, a essência
Num dia desses, eu aprendi que tudo tem a sua, e que ela é como uma marca que
guarda outras cicatrizes, e vai se costurando nesse emaranhado de sofrimentos que pode
ser bagunçado ou desfeito ao longo do tempo, depende de cada um, e de como eu e você
lidamos com o que a vida joga no nosso colo, é sobre aprender com as piores dores, sem
romantizar, e sim aprender

A raiva de não controlar nada

Não ter controle sobre si mesmo é péssimo, assim como não poder controlar os
sentimentos dos outros, não poder ajudar, simplesmente algo que não está ao meu
alcance me incomoda, pior ainda me dá raiva.
Sentimento esse tem me visitado com frequência, não me lembro mais da vida
sem ela, nem de um momento que eu tive o mínimo de controle sobre algo, porque
afinal eu posso ter pensado ao contrário, mas foi uma ilusão, das grandes, daquelas que
são cutucadas no momento mais dolorido da vida, como agora, que estou passando pelo
luto, de duas pessoas, e cada minuto me foge, como água que escorre pelos dedos.
O controle é isso, é essa coisa que enquanto eu escrevo, tento pensar em como
descrevê-lo, aqui vai: o controle, ou a falta dele gera raiva, angústia, tristeza,
impotência, mas como uma vontade que se transforma em necessidade pode provocar
tudo isso? Sei que na sexta feira, a noite que fui visitar meu pai no hospital, que no fim
das contas, foi a última vez que o vi, ele respirava tão mal, precisando de tantos
aparelhos e a força que ele fazia não sai da minha cabeça até hoje, e eu me via ali,
parada segurando sua mão e sem controle algum, não podia fazer nada, só me restava
chorar, rezar e agora tornar a minha raiva tangível, que ela vire algo real fora de mim,
antes que todo o sofrimento me engula
Homem não cresce?

Eu, como mulher, não me lembro de uma vida sem olhares de homem querendo me
comer, não sei o que eles tanto veem ou imaginam, mas quero deixar claro que a roupa
não me define, nem quem eu sou, ou nem mesmo serve de desculpa para olhos alheios,
exijo respeito, parem homens, parem de nos calar, de aos poucos nos matar, uma por
uma, cresçam e enfrentem seus medos, não joguem em nós, o que é seu, aprenda de uma
vez por todas que eu tenho peito sim, vulva sim, e daí?
Acordem e aqueles que estão acordados continuem, sigam nesse caminho de pouca luz,
abram suas cabeças e vejam que nós mulheres, não somos teu objeto, somos pessoas,
ainda mais que vocês, que agem como animais, que não controlam seus desejos carnais

Ana Amorim Fontana, tenho 15 anos, nascida e criada em São Paulo, uso a arte como
forma de ressignificar tudo o que sinto de mais pesado e sombrio, e me identifico
bastante com o trecho do poema "Motivo", de Cecilia Meirelles,‖ não sou triste, nem
alegre, sou poeta‖
CACTO

Enquanto me racham,

Não sangrarei

Enquanto te espeto,

Me protegerei

Não há quem me faça secar

O sol pode brilhar

O solo pode rachar

Sua pele pode queimar

Enquanto água puder de mim tirar

Ainda assim te espetarei

Te sangrarei

Me resguardarei

Mas nunca deixarei de te alimentar.

Deiziane Oliveira Santos

05/01/2022

Meu nome é Deiziane Oliveira Santos, sou mulher negra pertencente à religião do
Candomblé, artesã e desenhista. Sou graduanda 8º semestre da Língua Francesa da
Uneb Campus ll. A escrita poética apareceu em minha vida junto aos desenhos, num
complemento. Meu objetivo é ressaltar a escrita periférica de um povo não reconhecido,
do negro, do pobre, principalmente das mulheres negras. O conhecimento da vida
advém das vivências, o estudo aprimora este feito.
Sou eu dessa vez?

Às 5h o despertador toca e acorda Joana. A melodia agradável e acolhedora é


desligada, mas é repassada diversas vezes na mente da menina durante as horas que
sucedem o resto do dia: agradável, como queria que fosse a vida; acolhedora, como
queria que fossem as pessoas que passam e olham, mas não a enxergam. Apesar do
ritmo suave do alarme que escolheu na noite anterior com a esperança de despertar em
si um ímpeto de viver, Joana não se sente gloriosa e muito menos renovada. Na
verdade, com o cabelo todo para o alto e o rosto amassado do travesseiro, ela parecia
tudo, menos feliz e pronta para um novo dia.
Às 6h, ela dá o último retoque no batom cereja que pinta seus lábios e confere
mais uma vez se os seus cachos amendoados estão comportados. Não estavam, mas era
o que ela tinha naquele dia. Às 7h, pega sua bolsa preta de sempre, que custou três reais
no bazar da igreja há um pouco mais de tempo que sua memória consegue alcançar, se
despede de Malu e Ruth, suas gatas, e com um último olhar pesaroso em direção a
cama, se vira para a porta do apartamento 43B, apertado e úmido, mas que seu dinheiro
pode pagar. Abre a porta e com um último suspiro de cansaço, deixa o local.
São cerca de 7h15min quando a jovem desce as escadas do seu prédio, que
rangem a cada passo que ela dá em direção ao próximo degrau. ―É, eu te entendo,
também estou nas últimas. Mas eles não entendem isso, não é, companheira?‖, murmura
para a madeira gasta, em um tom de voz baixo e rouco, mas que ecoa por alguns
segundos no local. ―Talvez eu esteja enlouquecendo de vez‖, diz, se dando conta de que
estava esperando uma resposta da construção.
Às 7h30, Joana está 'espremida' na condução 333, famosa por estar sempre
cheia. Na verdade, ela está quase certa de que o senhor de camisa amarela atrás dela está
cheirando seu cabelo, mas não tinha espaço suficiente para reclamar ou se afastar.
Então, rezou para que seu ponto chegasse logo. Como uma piada interna dos deuses
com o universo, que pareciam se divertir em complicar a vida da moça, ela passa mais
de 50 minutos sentindo o velho ‗fungando‘ em seus cachos até que chegue ao local
desejado.
São 8h20 quando ela desce do ônibus e corre para a sala de aula, implorando
para que a professora do primeiro horário ainda não tenha chegado. Bem, talvez na
próxima ela desse sorte, mas naquele dia, não. Com um olhar de repreensão da
professora de História da Comunicação, Joana toma sua cadeira ao lado da parede,
enquanto sussurra um pedido de desculpas pelo atraso.
Às 14h, a jovem anda apressada pelas ruas da cidade para chegar a tempo no
trabalho de meio período que conseguiu ―as duras penas‖ após passar meses espalhando
currículos em todos os estabelecimentos da pequena metrópole. Lá, eles não pagavam
bem, sobrecarregavam os funcionários e Joana tinha quase certeza que Felipe, o gerente,
passava mais tempo olhando para ela do que o normal, mas foi o emprego que
conseguiu.
Já são 20h quando a jovem de estatura baixa e pele bronzeada pelo sol que toma
a contragosto durante o caminho que percorre diariamente até chegar ao trabalho, é
liberada do serviço. A rua ainda movimentada sossega o coração de Joana que estava
nervosa com a possibilidade de ficar sozinha no ponto de ônibus. Uma mulher de cabelo
volumoso e pele escura lhe deseja uma boa noite quando Joana senta no banco para
esperar a condução, se distraindo logo depois com um cachorro caramelo que andava
por perto. ―Boa noite, moça!‖, responde.
Apenas às 21h30 o ônibus pára em frente ao ponto. Nele, além de Joana, entram
mais três pessoas: a moça que lhe desejou boa noite, que descobriu se chamar Luísa;
outra mulher, que não conversou com Joana, mas que lhe deu um sorriso de lado
quando chegou no ponto e dois homens, para quem ela preferiu não olhar muito,
temendo que entendessem errado.
No ônibus, mais uma vez, Joana não consegue um lugar para sentar e estaria
satisfeita se não fosse pelo homem perto demais do seu corpo e que, vira e mexe,
esbarrava na sua bunda. ―Deus, por favor‖, clama.
Às 22:30, Joana desce da condução e anda apressada para sua casa, que fica há
pouco mais de cinco minutos de distância do ponto. Durante esse tempo, a jovem reza
para todos os deuses que conhece e jura que se nada lhe acontecer ela seria melhor no
dia seguinte e colocaria sempre um pouco mais de ração para Ruth e Malu.
Às 22:36, ela está a salvo. Subindo as escadas que levam até o seu pequeno,
porém seguro apartamento, ela suspira de alívio por ter seu primeiro pedido do dia
atendido e no fim, o único que importava de fato: ela chegou a salvo. Por mais um dia,
ela fugiu das estatísticas.
Quando são 22:38, Joana abre a porta do seu apartamento de paredes recém-
pintadas de azul e rosa bebê, larga a bolsa no chão e tira o sapato que lhe apertava os
dedos, enquanto dá ‗oi‘ as gatas que miam em saudação. Para não esquecer da
promessa, vai direto ao prato de Ruth e Malu, colocando um pouquinho mais de comida
do que o costume. ―Não, hoje não foi o meu dia‖, conta às gatas, recebendo um miado
que ela pensou ser ―E amanhã?‖. Joana suspira, ―Com sorte, amanhã, vocês receberão
um pouquinho mais de ração‖.
Foto: UTOPIA

Nathália Aguiar, 17 anos, estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual da


Paraíba e pessoa em processo de construção.
em Paris

o último amante se fora.


restara o líquido amarelo
entre as coxas
a geladeira jazia aberta
ele dissera que seria fácil
desafivelando o cinto
recitando o poeta: ―penetra
surdamente no reino das palavras‖.
as mãos abriam caminho
pela lambança das carnes
no quinto arrondissement, no assoalho
de um apartamento emprestado
um homem cavalgara uma pedra
a pedra por sua vez vomitara
no ar o cheiro doce da manteiga

Daniela Rezende (SP, 1990) é escritora e artista educadora. Bacharela em história da


arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestra em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP), nasceu e mora em São Paulo, SP. Publicou textos em
diversas revistas virtuais e zines. Teve um videopoema apresentado no 4º Concurso de
Videopoesia da Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo (2020). Participou do CLIPE
– Poesia, pela Casa das Rosas, também em SP (2021). Em 2022, publicará o seu
primeiro livro, Uma mulher só não faz verão, pela Editora Urutau. Instagram:
@rezende.danielaa Medium: medium.com/@rezende.dna
O Que Você É...?!

A inércia transfigurada diante de um corpo que não se move pode se perpetuar


diante de uma boca que não gesticula, não por não querer, mas, por não poder, uma vez
que não há som para ser emitido diante da usurpação de sua própria carne que, quanto
mais sangra, mais persiste rumo ao seu decaimento, pois quando se deixa este mesmo
sangue correr diante de sua dor, o que se espera é a imagem de um corpo frio e sem vida
em meio há tudo que ele jamais imaginou ser e se tornar.
O que encontrei quando pensei estar no caminho certo foi uma trilha de sangue
que me levaria à morte certeira de minha própria alma que, todo este tempo, esteve
guardada para florescer em união àqueles que dizem amar-me..., não precisa ser
profundo..., não precisa ser intenso..., não precisa ser ruim..., apenas basta ser para que
se possa existir. Todavia, o poço que me mirava era negro e de olhos fundos, sua pele
era rústica como a de uma criatura sem nome e codinome; sua gentileza era frívola e
sem sentido diante de sua própria não identidade; o carrasco se passa por amigo, por
companheiro, por parente, até nos consumir e estar dentro de nós. O carrasco não sente
privações, pois o seu prazer é nos privar em conversações que nos cabem aceitar como
lisonjeiras, pois ele sabe como conduzir a sua vítima para o abatedouro, ele sabe
conduzir a sua vítima para o seu trilhar solo, solto, leve e feito, e, quando se acorda, não
se reconhece mais, porque agora não existe mais alma e nem essência, só há seus
destroços – corpo e pele que dançam quando jogados fora – em dedos que se
complementam na integração de mãos imundas e nojentas e que, um dia, não passaram
de mãos amigas; a maldade se disfarça de educação e cavalheirismo; a maldade possui
pele negra e pele clara; a maldade possui olhos castanhos, azuis e verdes; a maldade
pega todas as letras do alfabeto; e a maldade vai atrás de você sem se importar com
sentimentos e laços, pois tudo o que importa é apenas o que ela busca proporcionar, e
esse é o preço de uma vida vazia e desonesta perante uma sociedade que se mascara dia
após dia em torno de suas feições rubras e destiladas de sangue..., mas, esse sangue não
tem cheiro, não tem cor e não tem gosto, pois não é o seu sangue, é o sangue de outrem.
Tentei calar-me em torno da dor e da agonia de viver uma vida miserável
quanto àqueles que diziam me acompanhar – a certeza era de que os demônios de minha
alma se apoderavam de mim – quanto mais corria, mais próximos se mantiveram; não
tinha pra onde correr e pelo que correr quando se está presa; pedidos se socorro ecoam
com o vento e você está como toda a natureza se mostra: invisível, pois o peso que
carrega nas costas por ser mulher sempre irá cair em cima de você como balas de fuzis,
como pólvoras, flechas e facadas – a mulher sempre será bombardeada verbalmente e
fisicamente por todas as infantarias, sejam elas dentro ou fora de casa – sua existência é
inútil, sua idade e inteligência são insignificantes quando seu valor não se mostra a vista
nem para aqueles que dizem amá-la; se recatada, mal vista; se desonesta, sem valor; se
correta, interesseira; você é uma criança imatura e desprezível; se não for capaz de
carregar um filho em seu ventre, deixa de se tornar mulher, pois já nasceste travada e
defeituosa – o peso vem, o peso cai, esmaga e mata a cada cinco segundos, e a
existência de uma mulher se cria no vazio de sua mente que se transborda no calor de
seu coração, não deixa rastros, não deixa pegadas, apenas a dor e as marcas daquilo que
se é para si e para o mundo: alguém sem voz, um ser ilusório e objetificado..., alguém
sem valor.

- Você diante de mim é alguém?


- Você diante de mim tem voz?
- Você diante de mim existe?

- ...

- Quem é você diante de mim?


- Quem sou diante de você?

- ...

- Quem somos?

- ...

- Existimos, sobrevivemos, vagamos, o que fazemos aqui?


- Isso importa (agora)?

- ?..., (o silêncio é estático por fora, mas nos mata pouco a pouco por dentro. Não se
deixe morrer...), ...!
Karolaynne Nunes é poetisa e discente do curso de Letras Língua Portuguesa e
Literaturas da Universidade Federal de Mato Grosso. Sua influência no mundo
literário se deu nos livros de filosofia, durante o ensino fundamental; e no ensino
médio, teve um contato mais íntimo com outras obras da literatura brasileira e
estrangeira, em que se descobriu um ser intenso e apaixonado por todas as literaturas.
Ali, nascera o encanto pela silenciosa obra do escritor Álvares de Azevedo, que a fez
escrever diversos poemas e textos, com o objetivo futuro de lecionar e lançar um
livro, assim, espalhando a literatura pelo mundo. Primeira colocada na categoria
―Conto‖ do I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura do estado de Mato Grosso,
concurso promovido no ano de 2021, pela Ruído Manifesto.
AS CHAVES

Tal vez eu seja só um diamante não polido


jogado no caminho

tal vez eu seja alguém sem sensatez


alguém que foi abduzido pela poesia
e não consegue sair da estrada
nem encontrar o final desse caminho
que se alonga
entre as letras dos poemas
e as pedras refletidas nos espelhos

triste é ter as chaves dos portais


e chegar
e ver que estão abertos

porque a vida tem suas ironias


e é triste perceber que foi perdido o tempo usado
em percorrer o caminho
e o tempo dedicado a cuidar das grandes chaves obsoletas
e que o rugido do tigre que pode ser ouvido da estrada
originou-se no ruidoso coaxar de sapos imprudentes
amarrados e sacudidos na inclemente roda do destino.

Isabel Furini é escritora, poeta e palestrante. Autora de 35 livros, entre eles, “Os Corvos
de Van Gogh” (poemas). É criadora do Projeto Poetizar o Mundo; recebeu Comenda
Ordem de Figueiró, no Rio de Janeiro; foi nomeada Embaixadora da Palavra pela
Fundação César Egido Serrano (Espanha, 2017); Seus poemas foram premiados no Brasil,
Espanha e Portugal, Palestrou sobre a arte de escrever em diversas Férias do Livro.
Perspectiva

Ha olhares desbotados
De derramar lágrimas
Olhares perdidos na caminhada
Mesmo com a vista bela
Das árvores retorcidas emaranhadas

Olhares destoados
Acumuladores
Amontoado de entulhos
na sua casa
Tornando difícil a locomoção
Pelos labirintos de papéis, trecos e geringonças
Mas o que fazer se
Olhar aquela coleção
de guarda-chuvas coloridos
o faz bem, apesar de quebrados?

Olhares de sorrisos
Trocados no ônibus
A caminho do trabalho
Conexões breves
Eternas duradouras

Olhares apaixonados
De quem foi fisgado
Pelo amor do vizinho
Morando bem ao lado
No apartamento 204

Olhares rancorosos com o passado


Imperdoáveis com os pecados
Sangrando aos bocados
Ferida aberta ao léu
Sem curativo
Sem proteção
Sem nenhum abraço quentinho
Apenas parado ali
A remoer a si mesmo

Olhares curiosos
Da senhora fofoqueira
Sentada na porta de casa
Vigilante e muito acordada
Ela sabe do ladrão
Da grávida
E do cafetão
Fazem um círculo ao seu redor
Ouvidos atentos
Ao próximo capítulo
Da novela

Olhares irritados
Pelo dedo
Batido na quina da cama
Berrando palavrões

Olhares sonhadores
De poetas amadores
Enxergando o melhor que pode
No caos
Na violência
Na dor
Ou Apenas
Denunciando o injusto
O escondido
E por fim
Olhares mortos
Mesmo respirando
Está preso pela terra
Que cobre seu túmulo
Olhar de quem já desistiu
Há muito
Beirando a exaustão

Sou Iasmim Lucena, nasci em Imperatriz do Maranhão e moro na Paraíba desde que
me conheço por gente. Apaixonada por todo tipo de texto, pois encontrei nas palavras o
meu lar, o meu refúgio. Criada com todo amor do mundo por Denise, devo a ela tudo,
inclusive quem me tornei: uma mulher forte e sonhadora.
Intraduzibilidade

Depois de uma certa idade, viver é uma exigência muito grande, é mais fácil só
existir e esperar. Essa foi a última coisa que Maura ouviu sua avó dizer ao telefone, com
seu tom de voz alto. Duas semanas depois, ela viria a falecer em função de uma série de
complicações do diabetes. Essas palavras a atravessaram completamente, como um
punhal, e permaneceram com ela durante muito tempo como um sussurro.
Após a morte da avó, com quem ela sempre tivera uma relação muito próxima,
Maura tentava traduzir tudo aquilo o que aquela figura tão complexa havia significado
em sua vida. No entanto, era difícil achar as palavras corretas naquela língua: a do
coração. Deparava-se com uma espécie de intraduzibilidade. Tentava recuperar na
memória os momentos felizes e afetuosos que tiveram, estes foram muitos, é verdade, e
talvez por isso mesmo fosse difícil escolher apenas um para se agarrar. A princípio o
que lhe vinha à mente, de forma involuntária, era o início de surdez que acometera a
avó, assim como as feridas nas pernas, causadas pela doença, das quais ela costumava
se queixar. Lembrou de quando ela pedia para que Maura massageasse suas juntas
sensíveis e inchadas. A resistência da avó em seguir o tratamento indicado pelo médico
também emergiu: como era teimosa dona Isaura. Não queria se privar de nada que
agravasse sua condição, sobretudo, os doces, a Coca-Cola e as frituras.
A imagem da avó, sentada na cadeira de balanço, surgiu rasgando seu peito e se
converteu numa imensidão de lágrimas, que de modo incessante, transbordavam de seus
olhos. Naquela fotografia eidética, ela podia ver os cabelos finos de Isaura, tão ralos que
era possível testemunhar através deles seu pálido couro cabeludo. Também era possível
ver sua pinta no queixo, sua bermuda bege e a blusa de estampa floral. Por um instante,
pareceu sentir até o cheiro de loção corporal com talco que a avó exalava.
Agora, aquela memória olfativa parecia transportá-la para sua infância, para a
época em que passava as férias na casa da avó. Foi assaltada pela lembrança de como
ela costumava encher o armário com as guloseimas preferidas de Maura, permitindo que
a pequena criança se empanturrasse de doces — era o pacto de cumplicidade entre avó e
neta. Recordou do pudim e do pavê de pêssego, que sempre estavam à sua espera na
geladeira. Era um tipo de memória adocicada, mas também amarga. Conseguia
visualizar ainda a senilidade que, com o tempo, passou a apossar-se de sua Isaura,
fazendo com que vez ou outra ela dissesse coisas incompreensíveis; que a levava a
desconfiar de que estava sendo envenenada pela irmã; que a fazia acreditar que seu
banheiro ainda precisava ser limpo, mesmo quando este havia acabado de ser lavado.
Foi o irmão de Maura quem ocupou-se da difícil tarefa de contar a ela sobre a
morte da avó. No momento em que ele bateu à porta e seus olhares colidiram, ela sabia
que tinha acabado. Era como se tudo ao seu redor se desfizesse, como se as coisas à sua
volta desmoronassem, mas em verdade, era ela quem desabava por dentro, em silêncio.
Isaura faleceu numa madrugada chuvosa, enquanto dormia, na véspera do aniversário de
Maura, que naquele ano completava 32 anos.
Sentada no sofá, Maura imaginou a Isaura feliz, empanturrando-se de doces e
frituras, numa espécie de paraíso. Chegou a rir de seu pensamento fantasioso, mas de
alguma forma a ideia lhe dava certo conforto. Perdida entre monólogos interiores,
memórias e uma caixa de fotografias da avó, ela demorou a se dar conta de que já
amanhecia. E ainda a questão da intraduzibilidade. Mas, ela supôs que precisasse de
tempo para encontrar as palavras certas, as mais apropriadas. Sabia também que era
difícil ser completamente fiel naquela tradução devido ao que ela denominou, naquele
momento, como a "complexidade semântica dos sentimentos''. Ali mesmo, no sofá,
adormeceu e sonhou com a matriarca mexendo o creme branco do pavê na panela em
fogo alto. Acordou com uma angústia sufocante, como se aquela chama do sonho a
queimasse em seu interior. Seus olhos estavam secos e ela sentia que já não era mais
capaz de chorar.
Olhando para a caixa de fotografia deixada sobre a mesa de centro, pinçou uma
foto na qual a avó carregava um sorriso leve ao lado da irmã. Observava aquele registro,
ainda em preto e branco, pensando que sua Isaura não precisava mais só existir e nem
tinha mais pelo que esperar. No verso da fotografia, Maura se arriscou a escrever aquilo
que não teve tempo de traduzir para a avó, ao menos, não em palavras: “Te amo,
obrigada!”.
Assim, as palavras de Maura também descansaram com Isaura sob a terra.

Natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Yoná Souza é bacharel em psicologia
pela UFMS (2015) e discente do curso de Letras na UTFPR. Em meio ao caos, escreve.
Entre seus interesses estão a literatura produzida por mulheres, estudos feministas,
linguagens e artes.
Resenha do livro: ROSA, Gabriele; MOTTA, Carla. Lavínia é mais rosa que espinho.
São Paulo: Editora Libertinagem, 2022.

Os femininos de Lavínia

Lavínia é mais rosa que espinho é um desdobramento de duas instalações


artísticas de performance. A primeira ocorreu em 2017, numa ocupação criativa do
espaço público da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, no
ICHS (Instituto de Ciências Humanas e Sociais). ―ShakespeareNAVALHA‖ foi o nome
da instalação, realizada pelo coletivo ―CuidadoPoema‖. O coletivo e a instalação saíram
das disciplinas optativas sobre Shakespeare do professor de História Moderna
Alexander Martins Vianna, especialista em estudos sobre peças teatrais
shakespearianas.
Como não é comum que uma instituição como a UFRRJ ofereça a possibilidade
de tais trabalhos criativos, podemos imaginar os efeitos dos deslocamentos e
desdobramentos da precedência desta ação, os incômodos, as hostilidades, o desprezo e
as tentativas de silenciamento de pessoas bem acostumadas e conformadas com o seu
lugar familiar de conforto e engessamento. A instalação ―ShakespeareNAVALHA‖
chegou a ser acusada de estar depredando o patrimônio público. No entanto, Lavínia
enfrentou esses percalços. Se, por um lado, expôs as violências contra os femininos no
campus, as violências estruturais sentidas e praticadas na academia por pessoas letradas,
por outro, abriu precedentes para outras intervenções artísticas e se deslocou para outros
lugares.
A instalação performática tomou outra dimensão quando foi recebida pela
―Exposição Coletiva Suburbanidades: O Lugar da Periferia na Arte Contemporânea‖,
em 2019, no Centro Cultural Phábrika, em Coelho Neto, bairro da Zona Norte do Rio de
Janeiro, agora como ―Lavínia é mais Rosa que Espinho‖. Mantendo-se intencionalmente
na periferia, Lavínia foi tão afetada pelo acolhimento de jovens e adultos do ensino
público do Estado e Município do Rio de Janeiro (EJA) que se transformou em oficina,
a ―Oficina de Escrita Criativa‖. Ficou claro que tal público estava mais interessado por
Lavínia do que o público daquela academia, onde se esperava uma recepção menos
tacanha de doutos(as) acadêmicos(as), cujo interesse parece estar mais ligado à
conservação de fórmulas do que a processos de descobertas criativas.
A partir dessas interfaces nasceu o livro Lavínia é mais rosa que espinho, de
Gabriele Rosa e Carla Motta, pela Editora Libertinagem, que ficou pronto em
14/03/2022, exatamente no dia em que se completam quatro anos do assassinado e
morte política de Marielle Franco, um crime que permanece impune: Quem mandou
matar Marielle? O ano em si já seria significativo... Foram 13 tiros contra a ―mulher
negra e favelada‖, defensora dos direitos humanos. Lavínia revive a ideia de que ―eu
sou porque nós somos‖. Marielle é Lavínia.
A Lavínia do mais rosa que espinho não é uma, não é pessoal, nem
individualizada. Lavínia é várias, fragmentos de femininos, corpos que sofrem
violências cotidianas e que também colabora com elas, “Vítima, não inocente”. É uma
persona que tenta fugir do uso que se costuma fazer de pessoa dentro do modo de vida
burguês capitalista, surgido recentemente na história do processo civilizador. Nesse
sentido, a persona Lavínia se aproxima das personas não psicológicas e não processuais
das peças shakespearianas. Lavínia é máscara social e genética que nos remete a uma
sociedade patriarcal, cujas violências são estruturais e, portanto, não reduzidas a um
problema de cunho individual.
O fato de Lavínia é mais rosa que espinho ter saído da Lavínia shakespeariana
pode nos colocar algumas questões: Por que a sociedade patriarcal se alimenta de
violências contra femininos? De que formas essas violências sobrevivem em uma
sociedade ancorada no sucesso individual? Avançamos? O que é progresso? A que e a
quem serve o ódio à vulva ou ao que possa remetê-la? Por que existem pressupostos
sobre o que é feminino e quais papeis devem reduzi-lo? Essas são apenas algumas
perguntas suscitadas por uma leitura do livro, o qual pode suscitar outras interrogações
a partir de quem lê. Deixar em aberto é um processo ensinado por Lavínia, que ainda
pode se transformar em outras tantas e tantos outros processos.
A Lavínia de Shakespeare é vitima das vinganças generalizadas entre godos e o
general romano Tito Andrônico, sendo estuprada e tendo suas mãos e língua cortadas
pelos inimigos do pai Tito Andrônico. Desonrada, Lavínia é morta pelo pai, incapaz de
carregar o peso de uma filha que não carrega mais o código moral da virtude feminina.
Esse paradoxo é impresso no corpo de Lavínia, expondo a brutalidade de uma sociedade
patriarcal que diferencia o bárbaro do civilizado. Mas, afinal, quem é o civilizado? O
corpo de Lavínia se torna o corpo feminino contemporâneo em Lavínia é mais rosa que
espinho. Em sua memória, perguntamos: Somos mais civilizados? Que épocas são essas
que categorizamos como atrasadas? Há pessoas à frente de seu tempo ou são margens às
normas sociais? O que cria as margens? Que leituras liberais e/ou marxistas nos levam
ao equívoco sobre o desenvolvimento? Qual desenvolvimento? Para que e para quem?
Lavínia é mais rosa que espinho traz a brutalidade das violências sofridas pelos
femininos no mundo contemporâneo, sem hierarquizar se sofremos ou não mais
violências no passado. Ao participar da série engasgos, leituras gravadas das prosas
poéticas do livro, DESPUPILADA me levou para as vértebras, os ossos, crânio e coluna
do corpo de Lavínia, quebrados em oito segundos pela violência masculina presente no
cotidiano feminino contemporâneo. Essas violências e abusos que costumam ser
tratados em chave melodramática e moralista pelos jornais são tratados no livro com
uma prosa poética que nos faz pensar em outro mundo, um mundo em que se reconheça
a potência da vulva e de femininos plurais. Não é o fim do mundo na forma
colaboracionista dos jornais. É a luta para que o SOCORRO seja garantido e, quem sabe
um dia, tornado inusual, porque desnecessário. Um sonho de libertação. Enquanto isso,
deixem ressoar as vozes de Lavínia.
O livro apresenta tons vermelhos, MARSALA, CINÁBRIO, GRENÁ,
TERRACOTA, ESCARLATE, BORDÔ, OCRE, CARDEAL, CARMESIM-
CORNALINA, sem nos afastar de seus formatos e consistência, do CHUMBO, da
BORRALHA, da NUVEM. Rosa, sangue, carne, sexualidade e amor são alguns dos
sentidos da poética de Lavínia é mais rosa que espinho, cujas frases curtas, logo
pontuadas, infundem imagens quase fotográficas dos momentos relatados no livro,
momentos de estupro, abusos, violência doméstica, maternidade, solidão, medo, corpo
feminino como objeto, desemprego, desvalorização do trabalho doméstico, precarização
do trabalho, traição, violências geracionais, relação assimétrica entre gêneros, IML.
Ao final de Lavínia é mais rosa que espinho, surpreende-nos as cartas das
escritoras Gabriele Rosa e Carla Motta para Lavínia. Uma troca de experiências,
narrativas e aprendizados mútuos, muitas vezes desvalorizados como algo do campo da
subjetividade feminina. Somos AMADAs com “Faca, foice, canivete. arma de fogo.
tesoura, machado, enxada. Perfurações diversas! Rostos esfacelados, estrangulamento,
estupro, agressões, abusos, assédios, torturas, mutilações, espancamentos... Morte.
Crime. De ódio?! Corpos destituídos de dor. Desenlutados. A cada dois minutos uma de
nós é AGREDIDA. A cada duas horas MORREMOS. ENGRENAGEM PERVERSA.
Corpos fraturados. Engasgo COTIDIANO”. O posfácio é de Graziela Brum. O design
gráfico da capa, feito por Denise Ramos Gonçalves, traz rosas, cujo caule é feito de
tecido, que se funde ao vestido branco de Lavínia. As rosas não têm espinhos.

Karenina do Nascimento Rodrigues é atualmente doutoranda em Teoria e História


Literária pela Unicamp.
O alfaiate

Artesão de palavras
Costura
Recorta
Cola
Molda
Veste em si
Remodela
Ajusta
Remenda
Palavras soltas
Que sozinhas
são solidão
Mas juntas
são poema

***

Pouco

O eco que faz


O grito rouco
Que ouço
No louco
Sufoco
Do oco
Silêncio
Um sopro
Tão pouco
Perto do todo

***
Raízes

finco meus pés no solo fofo


que a chuva molha
sinto a água penetrar nos poros
da argila e da minha pele
vejo as gotas nas folhas
sinto o cheiro que emana
do subsolo povoado
enquanto percebo a vida
em correria
acontecer sob meus pés parados

***

Sábado

Dia de faxina
Na casa
Na alma
Na vida
Sai tudo que é velho
Limpa os armários
Arruma espaço pro novo
Guarda tudo limpo
Vai pra caixa o que é tesouro
Joga fora o que é lixo
Deixa exposto o que é belo
Esconde o que é secredo
Dou adeus
Aos ácaros e à pele morta
Que se acumulam
Entopem meu nariz
E cobrem a casa
De passado e poeira
Previsão de chuva

Acordo
Abro os olhos
E logo vejo
Poesia no espelho
Café na xícara
Saio cedo
Dou um tapa no visual
Lendo poesia no cabeleireiro
E no trabalho
Com o público
Sigo sendo o dia todo
Poesia em ação
Fim do expediente
Sento em paz no sofá
O corpo relaxando
As palavras vêm de dentro
É a poesia no comando
Não escrevo porque quero
Mas porque não tenho escolha
Tudo que me permeia
Não me esqueço, como outros
Me transbordo num poema
Viro água
Viro rio
Evaporo
E depois chovo

***
Alalaô

Sem alalaô, ainda resta o calor do Saara. Lara sai para o trabalho. Paetês e plumas se
foram, mas vários glitters ainda resistiam na pele. Só quem já pulou um Carnaval de rua
sabe como é difícil se livrar deles. Passa a Semana Santa e ainda é possível achar glitter
pela casa. Em uma roupa ou tapete. Na rua, restos da folia, confetes e cheiro de urina. A
cabeça doendo, o corpo moído, a alma lavada. As pessoas, ainda no ritmo lento do
feriado, começam a se despedir do verão. Vem chuva aí, diz o porteiro. O sol de rachar
desmente. Mas o guarda-chuva vai mesmo assim. E não dá outra. Temporal de fim de
tarde lava o brilho da Sapucaí e fragmentos de fantasia. Agora sim. O ano começa
depois do Carnaval.

***

Glaucia Ank é mãe, feminista, bióloga marinha, artesã e, atualmente, trabalha com
vendas online. Inquieta, leitora voraz, escreve desde que se lembra, mas só pra si
mesma. Seus textos refletem sentimentos e cotidiano, com uma visão feminista e
―desromantizadora‖ da posição da mulher na sociedade atual, especialmente no campo
da maternidade.
de nome saudade

era fim de tarde,


em breve a encontraria na praça,
aquela que carregava
o mesmo nome do sentimento partilhado por nós

ela andava rápido em minha direção


mas parecia em câmera lenta
ou a praça ficara maior?
não sei ao certo, só sei que a queria

não aguentei esperar


cansei de esperar sentada
não fazia sentido estar em uma mesa de bar sem ela
era uma coisa nossa, beber, comer, conversar
rir
gargalhar

não aguentei mais


levantei
andei
atravessei
corri
eu a queria, nada mais!
quem sou eu?

já não sei mais…


quer dizer…
antes eu sabia, então te conheci…
você me transformou, me fez melhor, foi incrível…
pude ser uma pessoa melhor…
diferente…
foi tão bom…
mas acabou…
não sei agora o que sou…
quem sou…
é tudo tão confuso…
está tudo tão errado…
nada mais faz sentido…
não ter você aqui faz isso…
ou não faz, já que não há nada a ser feito…
você…
o que você fez comigo?
traga-me de volta…
sinto falta de quem eu fui…
a dor

eu sou quebrada
não me quebraram
eu não estava bem e de repente quebrei
eu sempre fui assim
nada me conserta
nem eu me conserto
não consigo
a única coisa que consigo é sentir
sou tomada por esse sentimento
tem dias que ele não me domina
mas está sempre lá
esperando a menor oportunidade
pra aumentar a ferida
daquelas que nunca cicatrizam
e quando eu penso que estou bem
quando me iludo de que está tudo bem
de que tudo vai ficar bem
ela vem de novo
a dor
dilacerante
vem cortando
destruindo
derrubando
massacrando
e quando percebo
já é tarde demais
estou jogada no chão
dolorida
exaurida
um temporal desagua através de meus olhos
estou
quase desmaiada
de tanto sentir
dor...

Sam Nina é mulher, lésbica, feminista, poeta, designer, manauara e nortista, leva para a
sua escrita reflexões, sensações e vivências. acredita na importância do continuum
lésbico como um convite para que as mulheres se aliem no combate à todas as situações
que ferem suas existências. @_samnina
UMA BREVE HISTÓRIA SOBRE O TUMULTO DA BOCA E O BEM-ESTAR DOS
CABELOS

I
O tumulto: flertando com o corpo

A breve historia de uma parte do corpo.


Exótico.
Criativo.
Vai ser fácil...
(algum tempo depois)
Atesto: Ledo engano
(risos).
Uma professora propõe.
O tumulto começa.
Então concluo: Não estamos acostumados à liberdade.
Nossas mentes, outrora tão massacradas (coitadas) pelas regras desde os
primeiros anos de vida:
Faz assim!
Pinta aqui!
Não passe da linha!
Mutilam lentamente nossas criatividades.
Aprisionam nossos corpos em poucas possibilidades.
Mas existe algo de curioso em tudo isso;
É que sempre irá nos restar aquele sopro de nós.
Por vezes imperceptível à consciência
(em termos freudianos).
Até que:
Uma professora nos pede para refletir sobre uma parte do corpo.

Por mais fácil que pareça escrever sobre uma parte do corpo,
Qualquer que seja ela,
Nuncaserá uma parte qualquer.
É inevitável:
Sempre vai partir de nós.
Do nosso.
Da nossa experiência com a possível parte escolhida.
Neste exato momento, percebo a parte de mim que eles não conseguiram levar.
Aquele sopro que sobra.
Assim, a escolha se determina.
O por quê?
Não quero revelar.
Um conselho:
Busquem possíveis significados em minhas linhas.
A graça das palavras está em criar supostos sentidos para elas.
Só não esqueçam:
O que criarem a partir daqui,
Terá haver com vocês que.
Este é o poder que compartilho.
O poder dos apaixonados por ler e escrever.
O poder de ser autor e leitor,
O poder de sermos prolongamentos dos dizeres uns dos outros.

II
A Boca: falando do silêncio

Paradoxal!
Pois a boca simboliza a fala.
A enunciação.
CERTEZA?
Não me parece tão evidente assim.
Raça.
Gênero.
Classe.
Negra.
Mulher.
Pobre.
BRASIL,
Onde estão essas bocas?
Onde está tal enunciação?
Aaah, verdade!!!
Como pude esquecer.
Outro dia ouvi uma dessas gritando por seu filho morto pelo sistema.
―Eles não viram a farda da escola?‖
A boca expõe a ferida.
Fratura convicções.
Manifesta nossas subjetividades.
Pena que muitas vezes esquecemo-nos de falar.
Pena que nos fazem esquecer de falar.
Benção para o sistema você não falar.
E o que fazemos com os silêncios impostos?
Rebelamo-nos!
Como?
Com as bocas!
Com a enunciação do que não quer ser ouvido.
Com gritos que estremeção privilégios.
Gritos como o de Marielle.

III
Os cabelos: escrevendo minha história

Vida.
Novelo de lã.
Pontas.
Assim tenho definido os desdobramentos que venho acompanhando.
Eu mesma.
Em mim mesma.
Descobrindo-me através dos processos de escrita.
Agarrada as pontas do novelo,
Uma por vez.
Sem pressa,
Risos.
Com pressa para desatar o nó.
Percebi que a infância deixa pontas soltas.
Uma gastrite,
Uma gagueira,
A mão tremula...
No meu caso, os cabelos.
Tratei de destruir tudo que as pessoas elogiavam.
E comecei pelos cabelos.
Nem de longe parecia aquela criança que amava os cabelos longos.
Nem de longe se parecia com a aquela criança.
Comecei a cortar.
Uma vez,
Duas,
Três,
Trinta vezes por mês.
Comecei a pintar.
Uma vez,
Duas,
Três,
Trinta vezes por mês.
Nunca era suficiente.
Nunca era bom o bastante.
Segunda semana de março de 2018.
Sem perceber.
Última vez que cortei.
Mudei.
Segunda semana de janeiro de 2019.
Uma esperança.
Voltar a ter cabelo da infância,
Ouvi.
Gostei.
Era a chance de recuperar a inocência que eu tinha lá trás.
A chance de não ter nó.

IV
O bem-estar: navegando pela liberdade

Tenho costume de fazer relações impensadas, é o que dizem.


Estou de acordo.
O que se considera normalidade muda ao longo do tempo.
Aprendi!
Talvez a leitura deste documento não faça sentido para você.
E é justa esta reivindicação.
Mas preciso dizer,
Nessas linhas estão o que de mais meu restou de todos os processos que vivi.
Quem sabe, eu esteja deslocada do meu tempo.
Ou, eu realmente seja isso que você está pensando...
Confusa?
Propositalmente.
Para que ninguém queira ou possa se aproximar.
Para que ninguém ouse atrapalhar.
Para que eu possa navegar
No que eu apendi a chamar de liberdade.

Maria Luana Caminha Valois é doutoranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-
graduação em Letras UFPE.
Isso
De tentar e tentar e tentar
(leia-se em ritmo de
―O que é, O que é?‖
do Gonzaguinha)

...Fazer ―a coisa certa―


(E isso existe, mulher?!)
É cansativo, né?

Nossa! Tou exausta


Queria dizer que não aguento mais
Mas sei que amanhã vou tentar de novo

Ah! Desgraça de esperança equilibrista


Faz meu coração viver em samba
E isso nem sempre é bom

Clarisse Nascimento tem 23 anos, é pedagoga em formação, terapeuta holística, poeta


e fotógrafa.
Encruzilhadas...

--―Alô, Jô?‖

--―Alô‖.. respirei fundo...ela? será? a voz grave e o jeito de dizer ―Jô‖eram


inconfundiveis

--―Lara? Meu Deus, não acredito! Onde vc está‖?

--―Aqui em S Paulo e quero te ver‖

--―Claro! Que saudade! Venha almoçar comigo‖

--―Obrigada querida, prefiro um restaurante. Aquele onde iamos existe ainda‖?

-- ―Sim, reformado e bonito, te encontro lá então‖.

Tantos anos separadas, lembranças vivas vieram à tona..Lara linda , morena de


risadas em cascata era minha melhor amiga desde os tempos de escola. Inseparaveis,
compartilhavamos o dia a dia entre risos,choros, segredinhos, namoricos inocentes...

Nos fins de semana, cinema e bailinhos no Clube da cidade. Ao som de musicas


romanticas, casais dançavam juntinho de rosto colado. Ås vezes um beijo roubado, e o
coração disparava! ...Que tempo bom!

E assim, no redemoinho de emoçôes juvenis sonhando com principes


encantados, vivemos os incriveis e inesqueciveis anos dourados!

No fim do curso Lara conheceu um engenheiro de Maceió que veio trabalhar em S


Paulo. Começaram um namoro sério, as familias se conheceram, noivaram.

Tudo certinho, casaram.

Lara linda e sorridente em seu vestido de noiva era a imagem viva da Felicidade
!

Depois de algum tempo mudaram pra Maceió, Lara gravida. Trocávamos


mensagens que com o tempo foram rareando..

A ultima vez que nos vimos foi no meu casamento, Lara veio com o marido e
filhote de 3 aninhos.

Nós continuamos em S Paulo entre a familia e amigos. Vida harmoniosa apesar do


corre corre da cidade grande!
Com 3 filhos adolescentes mudamos pra um bairro novo e agradavel!

E hoje depois de tanto tempo vamos nos encontrar...mal podia conter a


ansiedade!

No restaurante Lara me acenou de uma mesa. Corri, nos abraçamos sem querer
desatar!

Só então notei a jovem loura ao seu lado, que Lara me apresentou como
―companheira‖ .

--―Maria‖disse, e eu não consegui esconder o espanto !

--―Não se espante querida , estou mais feliz do que nunca. Maria mudou minha
vida. Tâo intensamente, que tive forças pra sair do casulo sufocante e depressivo em q
vivia !..Estava muito infeliz, carente e solitária!

Queria desesperadamente SAIR, VOAR mas não sabia pra ONDE..

Maria é arquiteta e vc sabe q sempre gostei de decoração,fiz um curso intensivo e


nos conhecemos no planejamento de uma casa...a sintonia de ideias nos dava prazer no
trabalho. Sabia de sua opção sexual e do relacionamento complicado que teve com uma
amiga de juventude terminado no ano anterior.

Com o tempo e aproximação mais frequente fui sentindo mudanças nos meus
sentimentos e muita confusão intima.

O que estava acontecendo comigo ?

Bom , daî pra esse final foi um pulo, dada a fragilidade e carencia em q me
encontrava!

O maior desafio foi ASSUMIR .

Nossa! Enfrentar a familia, a sociedade..

E os filhos? Felizmente entenderam que era impossivel continuar no inferno em


que viviamos, eram testemunhas e vitimas do ambiente destrutivo e das brigas
continuas. Sofriam muito, não se opuseram.

Daí, enfrentar o mundo foi fichinha l

Maria entäo começou a falar...olhou carinhosamente pra Lara ,segurou sua


mão...

—―Pois é Jô, estamos muito felizes vivendo a plenitude desse amor de almas
gemeas! Desde criança senti que eu era diferente , sempre preferi a companhia de
garotas. Assumir tambem foi pra mim um caminho dificil e espinhoso! Jô, vc năo tem
ideia como a sociedade é cruel e preconceituosa, não perdoa! Felizmente encontrei Lara
e juntas nos fortalecemos! Hoje caminhamos confiantes nesse horizonte de
companheirismo, sem cobranças e egoismos em busca apenas DE SER FELIZ ! Lara
estava ansiosa pra te encontrar e mostrar essa reviravolta toda em sua vida, afinal vc é a
amiga q ela ama e nunca esqueceu‖!

Eu ouvia em silencio, emocionada demais !

--― Lara e Maria, sem palavras, só quero um abraço‖! AMO VCS !

Ficamos as trěs abraçadas , rostos colados na mais intensa comunhão de almas,


segurando as lagrimas que acabaram explodindo em risadas alegres de pura leveza !

--―Gente, disse eu, vamos pedir o almoço‖?

Meu nome é Gloria Scanavino, moro em S.Paulo, não gosto de cidades grandes,
prefiro as pequenas onde todo o mundo se conhece, se cumprimenta. Sou bisavò, tenho
três filhos, seis netos, seis bisnetos. Família linda, íntegra , do BEM, que me enche de
orgulho e gratidão! Gosto de escrever, pintar, decoração, gastronomia.
Camadas

Anseio tirar-lhe a pele,

Desnudar-te as entranhas

E sentir a súplica consciente

Do teu corpo sólido,

Derretendo em meus braços.

Anseio remover as camadas,

E tocar a rigidez da sua fraqueza

Com olhos atentos

(De quem te vê pela primeira vez.)

Olhos-desejo

Que te prendem em mim.

Geovanna Fernandes nasceu em São Paulo, no ano de 2001. Vive desde criança no
Vale do São Francisco. Completamente apaixonada pelo universo da escrita, cursa
Letras na Universidade de Pernambuco-Campus Petrolina. Sendo o amor e suas nuances
a sua maior fonte de inspiração!
CASA ÚTERO

Um dia, recebi uma visita e achei que ela pudesse ficar,


Ficar para morar,
Ficar para amar.

Eu sei, talvez fosse muita pretensão,


Mas arrumei com capricho toda a mansão,
Até acendi a lareira,
Tentando ser a melhor hospedeira...

Sonhava com seus sorrisos enchendo a casa,


Podia até ouvir sua voz de madrugada.
Mas no afã de deixar tudo o mais aconchegante possível,
Não percebi que sua presença era invisível.

Te procurei em todos os cantos,


Mas não te encontrei,
Entendi que você era apenas um dos sonhos,
Que eu sempre sonhei.

Percebi que sou só uma casa vazia,


Nunca existiu a sua companhia
Agora choro enquanto rasgo as cortinas, carpetes e tapetes escarlate
Que cobriam as paredes...

Destruo tudo o que preparei pra sua visita,


Abaixo toda decoração da pousada!
Entendo que não foi culpa sua,
E espero algum dia, ser por ti, escolhida como morada.

Letícia Negrão, advogada e escritora, 26 anos, de Macapá - AP. Escreve poemas e


contos desde a adolescência e atualmente, tem arriscado expor suas criações ao mundo.

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