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Universal e geral

REFORMAÇÃO
de todo o extenso mundo.

FAMA FRATERNITATIS
da louvável Ordem da Rosacruz/
dirigida a todos os sábios e
cabeças da Europa:

Também uma curta RÉPLICA,


posta pelo Senhor Haselmayer/ pela qual
o mesmo foi encarcerado/ e
aferrado em uma nau:

Agora publicamente acabado em impressão/


e comunicado a todos os
corações leais.

Impresso em Cassel / por Wilhelm Wessel /


Ano M DC XIV
Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Aos Fratres e Sorores da Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, AMORC,


Jurisdição de Língua Portuguesa.

Saudações em todas as pontas do nosso Sagrado Triângulo!

Enquanto a liturgia cristã comemora no dia 06 de janeiro a manifestação da Luz Divina


sobre a Terra através da Festa da Epifania, nós, rosacruzes, reconhecemos esta comemo-
ração, mas temos outras razões para celebrar.
Nossa organização não é uma Ordem comum. Nossa Tradição tem significativo peso
nos destinos das sociedades e, por consequência, na evolução da humanidade.
Na Europa da alta Idade Média (entre os séculos V e XV) o pensamento dominante
era de caráter religioso, causado pela forte influência que o clero da época exercia na
sociedade.
Iniciado no século I e recebendo forte
influência da chamada Patrística a partir do
século IV, a característica religiosa do pensa-
mento se acentuou nos dez séculos seguintes
alcançando seu ápice no século XIII com seus
ilustres doutores, como é o caso de São Tomás
de Aquino durante a Escolástica. Neste pe-
ríodo, a Igreja Romana ungia e coroava reis,
organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à
volta das catedrais, o que hoje chamamos de
universidades. Ou se aprendia nestes locais,
ou nas escolas dos claustros. Neste período, a
igreja centralizava o monopólio da cultura.
Não há adjetivo ou expressão mais ade-
quada para o cenário da época do que aquilo
que costumamos chamar de medieval.
As ideias de criação do mundo, de peca-
São Tomás de Aquino
do original, de Deus como trindade una, de
juízo final, de fim dos tempos e outras foram “transformadas” pela Igreja em verdades
reveladas por Deus ou decretos divinos elevando-se ao status de dogmas. A partir daí,
tornaram-se irrefutáveis e inquestionáveis. Estas imposições vieram gerar a grande dú-
vida que seria o assunto central durante séculos:
– ou a verdade vem por revelação e fé, e portanto de Deus,
– ou vem da razão, da mente, e portanto do homem.
A tentativa de conciliar razão e fé colocava Deus como centro das buscas do homem
medieval. A influência do pensamento de Aristóteles e dos ­filósofos árabes Avicena
e Averróis resgataram as características do período clássico recolocando a atenção de

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Cavaleiros das Cruzadas

Deus no homem e possibilitando o que alguns séculos mais tarde iria culminar com a
Renascença, o pensamento moderno e o Iluminismo.
A tônica medieval resumia-se ao “ora et labora”, que em tradução simples significa
“reza e trabalha”. As mentes mais proeminentes da época, os rosacruzes, trabalhavam
para alterar aquele estado de coisas. A proposta dos rosacruzes era o ideal do homem
como artífice de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, ma-
gia e alquimia), quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina,
arquitetura, engenharia e navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura e teatro).
Dentre essas mentes destacamos Dante Alighieri, Giordano Bruno, Tommaso Campa-
nella, Nicolau Maquiavel, Michel de Montaigne, Erasmo de Roterdam, Tomás Morus,
Johannes Kepler e Nicolau de Cusa.
Naquela fase, nossa Ordem trabalhou com tenacidade em vários países da Europa.
Como sabemos, não se ousava propagar ideias novas que contrariassem o paradigma
vigente.
A despeito da medonha ação combativa a qualquer novo conhecimento, nossa frater-
nidade esteve ativa e atuante no pensamento e nas culturas da época.
Como sabemos, Sir Francis Bacon foi Imperator de nossa Ordem na Inglaterra do
século XVII; contemporâneos de Bacon, tínhamos René Descartes na França, além de
outros rosacruzes famosos em épocas próximas, como Blaise Pascal, Thomas Hobbes,
Gottfried Wilhelm Leibniz, John Locke, George Berkeley e Isaac Newton.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Ouve, filho meu, e recebe minhas palavras;


Assim, os anos de tua vida serão muitos.
Ensinei-te o caminho da sabedoria;
Conduze-te pelas veredas da retidão.
Quando andares, teus passos não necessitarão
serem corrigidos; e quando correres, não
tropeçarás. Agarra a instrução; não a soltes:
guarda-a, pois ela é a tua vida.
Prov. IV.v.10.
Mysterium Magnum

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Com a autorização do autor, Frater Claudio Mazzuco, Grande Mestre para a Jurisdição
de Língua Italiana, incorporo o documento intitulado “Os Manifestos Rosacruzes” para
ilustrar e reforçar o conteúdo deste opúsculo. Em plena concordância com ele reafirmo:
buscamos utopias!

os
Manifestos
Rosacruzes
Claudio Mazzuco,
Grande Mestre da Jurisdição de Língua Italina

N a vida de um estudante rosacruz apare-


cem várias oportunidades de entrar em
contato com o estudo dos Manifestos Rosa-
encontramos uma citação de um pensa-
mento de Platão que nos servirá de guia:
“A Utopia é a forma ideal de sociedade.
cruzes e através destes conhecer um pouco Talvez nunca venha a se realizar na Terra,
mais do período histórico relativo, chamado mas é nela que o sábio deve pôr todas as
pela historiadora Francis Yates de “Ilumi- suas esperanças.”
nismo Rosacruz”.
Abordemos pois a história. Não como
um elenco de datas ou nomes para serem
estudados ou lembrados. Vamos analisar a
história como uma harmonização. Através
dos fatos aqui narrados, experimentare-
mos, com a nossa imaginação, uma harmo-
nização com um ideal ou, melhor ainda,
com uma utopia.
De fato, este é o termo que pode definir
o pensamento filosófico que antecipou a
publicação dos Manifestos Rosacruzes em
1614, 1615 e 1616: uma utopia.
O dicionário filosófico define utopia
como uma palavra que deriva do grego e é
formada por “ou” (negação) e “topos” (lu-
gar): ou seja, o “lugar que não existe”.
Qual relação existe entre o Rosacru-
cianismo e a utopia, ou melhor, “o lugar
que não existe”? É oportuno lembrar que
no manifesto Positio Fraternitatis, recen-
Utopia
temente publicado pela nossa Ordem,

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

O período rosacruz que nos interessa como as guerras de religião, em particular


aqui, em particular os séculos XVI e XVII, a Guerra dos Trinta Anos, destruíram tudo,
caracterizou-se pelo aparecimento das deixando somente morte e miséria. Porque a
grandes utopias e do sonho de grandes guerra faz somente isso: substitui o que exis-
pensadores em realizar uma reforma da te com morte e miséria.
humanidade. No Palatino, região da Ale- Começaremos com o fim do século XV,
manha, por pouco não se concretizou a lembrando como o descobrimento das
Utopia Rosacruz. Américas em 1492 ampliou as fronteiras do
Sob a tutela de Frederico V, príncipe eleitor homem, não somente do ponto de vista geo-
do Sagrado Império Romano, os rosacruzes gráfico, mas sobretudo do ponto de vista dos
tentaram realizar a cidade ideal. Como pode- limites impostos à consciência. Vale lembrar
ríamos chamá-la? A Cidade do Sol? Cristianó- também que o termo “descobrimento das
polis? A Nova Jerusalém? A Nova Atlândida? Américas” é posto em discussão pelos histo-
Não importa qual nome escolhamos, o riadores, visto que não se entende que sig-
que conta é que se tentou realizar na Terra nificado pode ter “descobrir” um lugar onde
um ideal de paz, fraternidade e tolerância já viviam populações. A expressão, como é
entre os homens. Tentou-se realizar um usada, quase indica que antes que a Europa
ideal de convivência harmoniosa entre as “descobrisse” a América, esta não existia.
diversidades para o crescimento e benefício Naquele período também começavam a cir-
de todos, concretizando assim um princípio cular documentos reproduzidos segundo uma
hermético bem conhecido por todos nós. técnica conhecida há algum tempo, mas aper-
Tentou-se realizar na Terra a cidade ideal feiçoada e aplicada por Gutemberg: a imprensa.
que os místicos constroem no próprio cora- O descobrimento das Américas, todavia,
ção. Aquele lugar sagrado - aquele “lugar que deve ser lembrado em todos os seus aspectos
não existe” porque não é visível - onde todas porque foi marcado principalmente pela cul-
as diferenças podem ser diluídas com o sol- tura europeia dominante no período. O ge-
vente alquímico universal: o amor. nocídio das populações americanas (índios),
Mas para entender melhor os aconteci- a destruição das civilizações Asteca e Inca
mentos daquele período é necessário lem- e o saqueamento humano da África negra,
brar alguns fato pelo qual o Papa pediu perdão em uma
fatos que recente visita à Angola, foram infelizmente
funcionaram graves consequências do descobrimento e
como precur- representam fatos de extrema dramaticidade.
sores de gran- No século XV avança também uma cul-
des eventos. tura que é definida como humanista por-
Vejamos então que, pela primeira vez depois de séculos,
brevemente e iniciava-se a recuperação da confiança no
tentemos en- Homem, o qual começa a ser considerado o
tender como ponto de encontro entre o céu e a terra.
chegamos Os intelectuais se reúnem em círculos ou
tão perto da “Academias” e dão início ao estudo crítico
concretização das Sagradas Escrituras, fato absolutamente
Frederico V
deste ideal e inconcebível até aquele momento.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Este é o
período de
Marcílio
Ficino, gran-
de tradutor
dos textos
herméticos
e da obra de
Platão, e do
seu impor-
tante discípu-
Marcílio Ficino
lo, Pico della
Mirandola. A
Ficino devemos atribuir a ideia ou conceito
de tradição primordial. Foi ele o primeiro es-
tudioso que estabeleceu a existência de uma Revolução dos mundos Celestes – 1516
corrente que liga todos os grandes filósofos
da humanidade, empenhados em transmitir
uma forma de conhecimento que continha o homem como habitante de um pequeno
em si mesmo algo de sagrado. planeta entre outros tantos. Não obstante “A
No Humanismo, já começa a se delinear Revolução do Mundo Celeste” tivesse sido
aquela onda que leva a humanidade sempre dedicada ao Papa (por prudência!), a reação
a planos mais elevados de consciência. O sé- da Igreja não tardou e teve como objetivo
culo XV é o século no qual são introduzidos impedir a difusão do texto.
em Florença, na Itália, os textos filosóficos
gregos que serão fundamentais para o perío-
O Processo de Galileu
As vítimas mais ilustres foram Galileu
do da Renascença que veio a seguir.
Galilei, que havia confirmado a teoria
O Século XVI copernicana, observando o céu com o seu
Este é o século em que se põe em discussão telescópio, e Giordano Bruno, que inspirado
a teoria geocêntrica, que colocava a Terra no pelo heliocentrismo afirmou a infinidade do
centro do universo e que era sustentada pela universo e a pluralidade dos mundos.
Igreja com base em uma interpretação do O século XVI será conhecido com o
livro de Josué, no qual o profeta ordenava ao nome que o historiador Jules Michelet lhe
sol que parasse no céu. deu: o Renascimento. De fato, este século
O astrônomo polonês Nicolau Copér- testemunhará uma renovação total na vida,
nico, com a sua “revolução”, muda total- com a criação e a adoção de um conceito re-
mente a posição do homem em relação ao volucionário sobre o Homem e o Universo.
Universo. Ele afirma, recuperando antigas Este renascimento levou ao retorno do mun-
doutrinas pitagóricas, que é a Terra que gira do clássico, aos textos e valores fundamentais
ao redor do sol e não o contrário. Esta teoria da antiguidade grega e latina e à retomada de
é conhecida como teoria heliocêntrica. Não temas filosóficos herméticos e neoplatônicos.
mais o Homem no centro do Universo, mas Portanto, é o século da metafísica neo-

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

platônica com uma fortíssima influência te como um castelo de areia.


de alquimistas e pensadores hebreus, como O conhecimento que funcionava como
Cordovero e Luria. alicerce e no qual baseavam-se todas as
No campo da medicina encontramos escolhas agora não funciona mais e é subs-
Paracelso, que põe em dúvida os tituído. Vemos aparecer no cenário europeu
fundamentos da medicina até então estas mentes iluminadas que trazem a luz de
praticada e que baseava-se no pensamento um novo conhecimento. A imprensa acelera
de Galeno (médico do séc. II d.c.). e amplifica de um modo impensável a co-
Este fato é citado no Fama Fraternitatis. municação intelectual, assim como as desco-
Paracelo introduz uma nova visão na medi- bertas técnicas e a navegação.
cina segundo a qual o homem é visto como Em 1517 acontece a mais profunda rachadura
um microcosmo e a natureza como um livro no mundo da religião: a Reforma Protestante.
que deve ser lido para conhecermos a nos- Este fato mudou completamente a face da
sa verdadeira essência e encontrar assim as Europa e foi motivo de guerras que mergulharam
curas necessárias. Segundo o pensamento de o velho continente na sua “noite negra”.
Paracelso, o médico é um iniciado aos misté- Há muito tempo existia na Igreja Católica
rios do homem e da natureza. Trata-se de uma um forte impulso em direção a uma reforma
revolução que, ao contrário daquela de Copér- espiritual. Muitos almejavam um retorno à
nico, poderíamos chamar de microcósmica. “pureza evangélica” e à releitura dos textos sa-
Como podemos ver, os eventos seguem grados. Já no século XIV, em Flandres, havia
em grande velocidade. Alguma coisa está nascido um movimento chamado “Devotio
fermentando e é espontâneo esperar alguma Moderna”, que encontra difusão graças a um
grande mudança. Aquilo no qual acreditou- livro entitulado “De Imitatione Christi” (A
-se por séculos começa a desabar velozmen- Imitação de Cristo) de Thomas de Kempis.
Este texto influenciou um outro grande uto-
pista da nossa história: Erasmo de Roterdam.
Erasmo tinha um espírito conciliador. Ele
muda completamente o significado comum
da noção de
heresia. Diz
Erasmo: “a he-
resia doutrinal,
a menos que
não esteja em
contradição
completa e em
modo flagrante
com as Sagra-
das Escrituras,
pode ser con-
siderada uma
opinião discu-
Paracelso Erasmo de Roterdam
tível; aliás, a

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

discussão é auspiciosa na busca da verdade.”  1. A reforma abre novas vias para o resgate
Lembrem-se que estamos em 1500! do homem, satisfazendo as exigências de
Em busca deste Cristianismo original, uma fé elementar e acessível a todos.
parte para Roma um monge dominicano  2. Afirma a ideia de que a salvação se obtém

de nome Martinho Lutero. A sua intenção através da fé, graças ao sacrifício do Cristo.
é clara: levar à consideração do Papa a sua  3. Afirma que a verdade está nas escrituras

iniciativa de reforma para que possa ser reveladas por Deus e não na doutrina e
adotada pela Igreja. Na mente de Lutero não nos dogmas elaborados pelos teólogos.
existe a ideia de dividir a Igreja, mas somen-  4. Reconhece como sacramentos somente

te de reformá-la. aqueles introduzidos por Cristo, ou seja, o


Lutero fica irremediavelmente chocado batismo e a eucaristia.
com a cidade que encontra. Roma, na sua  5.Contesta a missa afirmando que na euca-

mente, devia ser a cidade da máxima espiritu- ristia o homem não pode transformar o vi-
alidade cristã, mas aquilo que ele vê muito lhe nho e o pão em sangue e corpo de Cristo.
recorda a presença dos mercadores no Templo. A eucaristia deve voltar a ser a ceia do Se-
Encontra uma cidade corrupta e em- nhor ou “um rito de comunhão com Deus”
pobrecida. Vê uma enorme igreja sendo - uma comunhão muito mais íntima, pois
construída com os fundos provindos da não existe o sacerdote. Lutero sustenta a
venda de indulgências. Como sabemos, as ideia de que cada cristão é um sacerdote
indulgências são, segundo a visão católica, que pode se comunicar diretamente com
formas de perdão especial pelos pecados, Deus. Desta forma, a igreja de Roma via
distribuídas em função de quanto a pessoa minada a teocracia eclesiástica.
estava disposta a doar para poder ir para o  6. Exclui os santos e Maria da estrutura da

paraíso ou para reduzir ao mínimo a per- Igreja, a qual deve se basear somente na
manência no purgatório. comunidade dos crentes.
Lutero vê um clero corrupto e não en-  7. Recusa o celibato eclesiástico.

contra o Cristianismo que tinha em mente. O luteranismo propôs a leitura e a interpre-


Quando volta para a Alemanha, publica as tação das Escrituras aos fiéis, ao passo que an-
suas 95 teses com as quais contesta a vali- tes eram reservadas aos sacerdotes. Para isso,
dade da enésima indulgência proposta pelo Lutero traduz a Bíblia para o alemão e promo-
bispo de sua cidade para arrecadar fundos ve a sua impressão. É curioso notar que desta
para a compra de uma nova propriedade. forma o luteranismo favorece a alfabetização e
O Papa tenta impedir que Lutero divulgue a cultura para poder melhor difundir a doutri-
as teses, mas ele se recusa a obedecer. Tenta na cristã. Em pouco tempo o nível de alfabeti-
explicar que a reforma não é uma tentativa de zação dos países do norte da Europa que ade-
dividir a Igreja, mas sim, como diz o nome, riram às ideias de Lutero é muito maior que o
dar-lhe a forma que possuía no tempo dos nível dos países do sul da Europa, onde a Igreja
Apóstolos. A excomunhão é a única solução de Roma mantém a sua influência.
encontrada pela Igreja para frear este “revolu- A Reforma Protestante é o momento a
cionário”. E o que faz Lutero? Queima o do- partir do qual foram gerados os fatos que
cumento de excomunhão publicamente! produziram os Manifestos Rosacruzes, pois
Quais são as ideias de Lutero? Vejamos estes são publicados no exato momento em
as principais: que se tenta “recatolicizar” a Alemanha.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Não obstante o Rosacrucianismo não te- facilitado pela língua em comum, o latim,
nha um perfil religioso, no sentido comum e pelo recíproco conhecimento das línguas
do termo, é evidente que o ambiente protes- italiana, alemã, francesa, inglesa e espanho-
tante favoreceu o movimento que propunha la. É impressionante verificar a intensidade
“A Nova Reforma” e que desejava a supe- dos intercâmbios culturais e místicos, além
ração dos antagonismos dogmáticos entre das publicações, que ocorrem entre todos
católicos e protestantes, propondo uma “reli- estes personagens cultos da época.
gião natural e universal” purificada dos dog- Mas não podia deixar de ser assim: de fato,
mas e que tivesse como regra a tolerância e a as ideias fundamentais da “união dos doutos”,
liberdade de consciência. do “peregrinar em todos os lugares”, com a
Na verdade, com a “Grande Reforma Univer- finalidade de “conhecer”, para um verdadeiro
sal” o movimento rosacruz desejava a superação “comércio das ideias”, da “busca da universa-
tanto do luteranismo como do calvinismo e do lidade” e o constante chamado em direção à
catolicismo, e esta é uma constante que ligava ciência e à cultura, vistas como um meio de
personagens como John Dee, Giordano Bruno, progresso e de realização do Homem, sempre
Valentin Andreae, Comenius, Hartlib, Tomás foram uma constante no pensamento rosa-
de Campanella e Francis Bacon, todos com as cruz e as utopias assim o revelam.
suas cidades ideais e utópicas. Chegamos agora no período da publica-
O historiador Eugênio Bonvicini afirma ção dos manifestos ou pouco antes. Encon-
que, para alcançar este objetivo, “primeiro tramo-nos no Palatino, na Alemanha, mais
os rosacruzes imaginaram a criação das precisamente na cidade de Heidelberg.
suas cidades ou ilhas utópicas, em seguida O príncipe Frederico V se casa com Eli-
criaram a Fraternidade Rosacruz, depois as sabeth Stuart, filha do rei da Inglaterra.
Uniões Cristãs, depois ainda as Academias É um evento de dimensão histórica:
e por fim a Royal Society e a moderna um país forte como a Inglaterra que se une
Maçonaria”. Nós diremos que como um através deste casamento com uma parte da
potentíssimo instrumento da Tradição, o Alemanha, criando assim um eixo estável,
Rosacrucianismo influenciou e se encontra mesmo militarmente, contra as potências
na origem de todas estas sociedades e ordens ausbúrgicas e católicas. Frederico e Elisabeth.
místico-esotéricas, as quais tiveram e têm Dois jovens
ainda hoje o mesmo objetivo promulgado cultos que
pelos Manifestos Rosacruzes: promover a nutrem no
busca do conhecimento para o benefício de próprio
toda a humanidade. coração ideias
às quais nós
Século XVII chamamos
O ano 1600 inicia de modo dramático com a místicas. Um
tortura e a morte de Giordano Bruno na foguei- casamento que
ra. A dimensão do pensamento deste grande é considerado
filósofo é muito grande para ser tratada aqui. pelos
De qualquer forma, Giordano Bruno principais
estava em contato com todos os sábios e sábios da
filósofos do movimento rosacruz, contato Giordano Bruno
Europa como

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

uma esperança e uma ocasião únicas. As de Praga (católico do qual o rosacruz Mi-
coisas parecem realmente promissoras, ainda chael Mayer era o médico), os súditos da
mais pelo fato de que quando Frederico Boêmia decidiram oferecer o trono a Frede-
encontra Elisabeth os dois se apaixonam rico, considerando-o um ótimo sucessor. E
realmente. Nasce entre os dois um laço de Frederico aceita a proposta.
amor e isto é interpretado como um bom Existem vários estudos hoje em dia que
auspício. Além disso, Elisabeth tem um irmão: visam explicar o porquê de Frederico ter
Eduardo. Ele também é amante da cultura e aceitado a oferta, sabendo que isto seria vis-
possui uma mente aberta. Entre Frederico e to como um reforço do mundo protestante
Eduardo nasce logo uma forte simpatia. e, portanto, uma ameaça ao mundo católico.
Todavia, Eduardo morre alguns dias A reação foi fatal para a Utopia Rosa-
antes do casamento de maneira misteriosa; cruz. Com a batalha chamada “da Monta-
mas esta dor não impede que o casamento nha Branca” e sem receber o apoio espera-
seja celebrado. Entre a Ingla- do da Inglaterra, Frederico
terra e a Alemanha vemos um é obrigado a abandonar o
enorme fluxo de filósofos e Palatino e refugiar-se na Ho-
místicos. Algo de grandioso landa. Heidelberg, com toda
está para se realizar. Nas ce- a sua riqueza cultural e eso-
lebrações que se seguem ao térica, foi totalmente destruí-
casamento, vemos a compa- da. Iniciou assim, em 1618, a
nhia de teatro de Shakespeare Guerra dos Trinta Anos, que
realizar vários espetáculos em reduziu a população europeia
honra do príncipe e da sua a um terço e, como um Cava-
jovem esposa. leiro do Apocalipse, destruiu
Shakespeare e seu teatro são Shakespeare todos os sonhos de tolerância
outro fato para se ter em mente, e felicidade.
pois terão um papel muito importante na divul- O movimento rosacruz retomou vigor vários
gação das ideias rosacruzes. anos depois na Holanda e na Inglaterra, sempre
Com este casamento é vista a possibili- sob o impulso do Imperator Francis Bacon,
dade concreta de realizar na terra a Utopia mesmo este não estando mais presente.
Rosacruz. No Palatino convivem místicos, Christian Rosenkreutz e a sua tumba
cabalistas, protestantes, católicos, astrólogos, foram encontrados outras vezes afirmando
matemáticos e músicos, todos em grande assim que o caminho do ser humano
harmonia e tolerância. A pesquisa é in- conduzirá sempre em direção a estes ideais.
centivada em todos os campos do saber. O Em 1692 partem para a América os
Palatino prospera também em virtude das primeiros rosacruzes que fundariam
trocas comerciais e da grande liberdade de mais tarde a comunidade de Efrata e a
movimento para todos. cidade de Filadélfia.
Além disso, existe a certeza de se poder Alimentemos nós também a nossa uto-
contar com a aliança com a Inglaterra em pia, o nosso ideal rosacruz de tolerância, co-
vista de uma possível reação do mundo ca- nhecimento e felicidade, pois esta é a nossa
tólico. Reação que não tardou a chegar. Com herança. Uma utopia? Talvez, mas para nós a
a morte do alquimista e filósofo Rodolfo II única meta e esperança.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

H istoricamente, as contribuições culturais e intelectuais do século XVIII na Inglaterra, na


França, na Alemanha e nos Estados Unidos foram conhecidas como Iluminismo. Cha-
mado por alguns de “século das luzes”, esse período é caracterizado pela libertação das con-
cepções medievais predominantes nas práticas religiosas. Nos séculos que se seguiram, uma
vez mais os registros históricos comprovam a expressiva contribuição de nossa Ordem para a
elevação do nível de consciência da humanidade. Significa, também, o advento da ciência que,
tendo obtido êxito nas suas explicações sobre os fenômenos da natureza, contribui para a difu-
são de uma consciência crítica, liberta de preconceitos, convenções e, sobretudo, das supersti-
ções que sempre combatemos. A nova ciência experimental foi inaugurada por Francis Bacon,
por Galileu Galilei e pelas descobertas de Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e lsaac Newton.
Observem que o cerne do pensamento iluminista é fundamental para o ponto que che-
gamos hoje, ou seja, manifesta sua crença no progresso posteriormente chamado de posi-
tivismo, e afirma que o ser humano pode aumentar seu conhecimento e melhorar sua vida
dominando a natureza e modificando a sociedade.
A seguinte máxima kantiana, embora cunhada tempos mais tarde, pode ser usada como
referência, pois ilustra um dos pilares do movimento:
“Homem, tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência!”.
A saída era o conhecimento, o uso da inteligência, da mente e, sobretudo, da pro-
posta que apresentamos nos Manifestos, citados por alguns historiadores como “ver-
dadeiras tábuas para náufragos”.
Quem? Que sociedade secreta divulgou em Paris o Manifesto que sabemos tratar-se do
“Fama Fraternitatis”, o qual especialmente influenciou toda a Europa da época?
Este Manifesto aparece no início do século XVII, mais exatamente em 1614. Era um tempo em
que a Europa experimentava uma crise humana existencial, estava politicamente dividida e aviltada
por interesses econômicos conflitantes. Guerras religiosas originaram desespero e infelicidade, mes-
mo dentro das famílias. A ciência se desenvolvia rapidamente e se inclinava para o materialismo.
As condições de vida eram miseráveis para a maioria e apenas a elite podia ler e escrever. Então, os
rosacruzes quebraram seu silêncio a fim de exigir mais humanismo e espiritualidade.
Então, a Europa foi despertada por uma Voz.
A Voz veio precisamente nestes momentos dramáticos para a Europa, mas também para
o mundo.
Os Irmãos da Rosa+Cruz resolveram falar e o fizeram por meio de um Manifesto que en-
trou para a história profana e esotérica e cujo título era: “Reforma Universal e geral do mundo
inteiro; com as notícias da Louvável Fraternidade da Rosa-Cruz, escrita a todos os eruditos e
soberanos da Europa. (...) Hoje publicada e comunicada a todos os corações sinceros.” O texto
central deste documento foi chamado de Fama Fraternitatis Rosae Crucis (Descoberta da
Fraternidade dos Rosacruzes).
Representantes da seção ocidental da mística Fraternidade, aqueles Irmãos estavam ligados
ao “Círculo de Tübingen”, um grupo de profundos místicos integrantes da Universidade de
Tübingen, na Alemanha. Eles formavam uma Domus Sancti Spiritus (Casa do Espírito Santo),
donde elaboraram e emitiram o Fama em 1614, através da gráfica de Cassel, também na
Alemanha. Este manifesto foi dirigido aos governantes, religiosos e cientistas europeus.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Fama Fraternitatis, 1614

Contrapondo-se ao paradigma então reinante, os rosacruzes invocaram uma reforma


universal que possibilitasse ao homem uma vida mais plena, liberto dos dogmas religiosos e
científicos já aludidos. Acusavam aqueles cuja missão era a de guiar os homens (os cientistas
e religiosos) de cegá-los através de postulados não condizentes com a Verdade. Os rosacru-
zes, por outro lado, dispunham dos meios para se acessar esta Verdade através de um conhe-
cimento regenerador e convidavam todos os homens de boa vontade a se unirem a eles. Por
isso apresentavam-se, a si e à sua Fraternidade, através da história simbólica de Christian
Rosenkreutz, desde o périplo que o levara pelo mundo inteiro antes de dar vida à Ordem
Rosacruz, até a descoberta do seu “túmulo”.
Graças à imprensa, fortalecida pela máquina de tipos móveis de Gutenberg, o Fama
circulou por toda a Europa e gerou reação imediata no continente. Centenas de panfletos,
manuscritos e livros foram publicados, alguns para elogiá-lo, outros para criticá-lo. Como
sublinharam historiadores, pensadores e filósofos contemporâneos, a publicação deste ma-
nifesto e de seus dois sucessores - Confessio Fraternitatis (1615) e Núpcias Alquímicas de
Christian Rosenkreutz (1616) - foi significante e oportuna. As reflexões do Fama propiciaram
e incentivaram os leitores a superar o paradigma dominante.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Em 1623, em um novo fôlego os rosacruzes se anunciam para a Reforma que se fa-


zia necessária.

Cartaz afixado nas ruas de Paris em 1623

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Ora, esse panorama parece se reproduzir nos dias de hoje, quando já avançamos mais de
uma década século XXI adentro: a crise humana existencial se reproduz pelo questionamento
e pela negação de valores que eram aparentemente incontestes e perenes. Os interesses políti-
cos saqueiam e aviltam populações inteiras em muitos países, privando-as inclusive de seus di-
reitos mais fundamentais. A intolerância religiosa aumenta e dá margem a excessos e ao terror
imposto pelo fundamentalismo. A ciência nunca esteve tão avançada e, não obstante, ainda é
incapaz de dar ao homem as respostas aos seus questionamentos existenciais mais profundos.
Ao que nos parece, o desenvolvimento tecnológico não está sendo acompanhado pelo
nível de consciência ética que daria condição de uso da ciência com consciência.
Nessa linha de pensamento, o fato de rememorarmos o 400° aniversário da publicação
do Fama Fraternitatis não é algo meramente alegórico ou unicamente simbólico e não deve
ser tampouco tomado simplesmente como um balizador dos 400 anos de “vida pública” da
Ordem Rosacruz. É necessário que os ideais clamados por esse Manifesto e ecoado no ano
seguinte pelo Confessio Fraternitatis – documento dirigido a todos aqueles sequiosos de se
devotar à felicidade da humanidade – ganhem vida a cada dia.
Nesse particular, o fato de sermos rosacruzes, e portanto continuadores da Tradição, nos
lega não apenas o privilégio como também a responsabilidade de mantermos viva a chama
desses ideais. É pelas mãos de cada frater e de cada soror que os clamores para mais espiritua-
lidade e humanismo, renovados pelo Positio Fraternitatis na aurora de nosso século, ganharão
corpo tangível e expressão viva. É pela conduta e pelo exemplo de cada rosacruz que a voz e os
ideais de nossos Irmãos e Irmãs do passado não perecerão num momento tão crucial em que o
misticismo rosacruz é tão necessário a uma humanidade carente de orientação e espiritualidade.
Mas os tempos são outros, embora em muitos aspectos a sociedade contemporânea se asse-
melhe muito àquela de outrora com relação à falta de espiritualidade, às noções erradas sobre a
natureza e à relação do homem com Deus. O momento é de convivência pacífica e respeito com
as religiões, a despeito das dificuldades para se cumprir a Missão de levar a cabo a Grande Obra.
No dia epifânico de 06 de Janeiro de 2014, a AMORC, no mundo todo, celebra os quatro
séculos do lançamento do Fama Fraternitatis.
Espiritualidade, Humanismo e Ecologia são valores urgentes que ainda precisam florescer
nos corações.
O movimento pela Ecologia Espiritual posto em marcha por nosso Imperator, o Frater
Christian Bernard, durante a Convenção Mundial de 2011 e reforçado em rede nacional no
Senado Federal contempla, pela sua amplitude, um convite a uma tomada de consciência
quanto a estes aspectos, ou seja, a Espiritualidade, o Humanismo e, é claro, a Ecologia.

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Fama Fraternitatis – 1614 - 2014

Por tudo isso, a Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, outrora conhecida como
“Os Irmãos da Cruz Rosada”, conclama os amados Fratres e Sorores da Jurisdição de
Língua Portuguesa a reviverem em cada um, com toda a força, o espírito do Fama Fra-
ternitatis - o seu conselho, a sua instrução, o seu alerta e principalmente o seu apelo.
Proponho que se recolham em seus Sanctuns privados e se harmonizem por alguns
minutos com os nossos Mestres do Passado - aqueles que emitiram e inspiraram o
Fama Fraternitatis - na intenção de um mundo melhor. Coloquem-se em comunhão
com a Domus Sancti Spiritus do século XVII, donde fluiu a mensagem do Fama, e
peçam aos Mestres que os inspirem, a vocês, sucessores dos rosacruzes de outrora, na
continuidade do cumprimento da Missão de nossa Ordem: iluminar as mentes e, por
consequência, o planeta, em espírito de liberdade.
Em conclusão, reproduzimos as palavras de Jan Amos Comenius, que é conside-
rado hoje o pai espiritual da UNESCO e cujos ideais contribuíram para nortear os
rosacruzes do século XVII. Essa humanidade visualizava algo utópico, é verdade, mas
que com certeza é um sonho acalentado no coração de todo humanista, seu gérmen
se encontrando nas potencialidades latentes que todos carregamos em nós enquanto
centelhas da Unidade Divina:
“Queremos que todos os seres humanos, juntos ou separados, jovens ou velhos,
ricos ou pobres, nobres ou plebeus, homens ou mulheres, possam receber uma edu-
cação completa e se tornem pessoas bem sucedidas. Queremos que recebam ensina-
mentos perfeitos e que sejam treinados não apenas em um ou outro assunto, mas
também em todas as leis que lhe permitem compreender sua essência, para apren-
der a verdade, para não serem enganados por pretensões, para amarem o bem, não
serem tentados pelo mal, fazerem o que têm de fazer e distingui-los do que devem
evitar, para falar com propriedade de causa sobre tudo com qualquer pessoa e
finalmente a sempre tratar todas as coisas, humanos e Deus, com cuidado e não
precipitadamente e para nunca se desviarem de sua meta de felicidade.”
Pelos rosacruzes de ontem e de hoje, sob a luz benfazeja de nossa Egrégora e na im-
portância do Fama Fraternitatis, nós dizemos:

Assim Seja!
Sincera e fraternalmente,
AMORC/GLP

Hélio de Moraes e Marques


GRANDE MESTRE

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