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Índice

Editorial ------------------------------------------------------------ p. 5
Benício Gon -------------------------------------------------------- p. 7
Duayer -------------------------------------------------------------- p. 12
Íris Ladislau ------------------------------------------------------- p. 19
Maria Isabel Machado ------------------------------------------ p. 25
Gabriele Rosa ----------------------------------------------------- p. 30
Thiago Soares ----------------------------------------------------- p. 34
Daniel Rodas ------------------------------------------------------ p. 39
Miriam Freitas ---------------------------------------------------- p. 45
O Rei Ricardo Coração de Leão ------------------------------ p. 50
Milena Martins Moura ------------------------------------------ p. 56
Luciana Assunção ------------------------------------------------ p. 60
Ivan Nicolau Corrêa --------------------------------------------- p. 67
Vivian Pizzinga --------------------------------------------------- p. 75
Nitiren Queiroz --------------------------------------------------- p. 78
Luciana Moraes -------------------------------------------------- p. 85
Giovani Miguez --------------------------------------------------- p. 97
Nuno Gonçalves ------------------------------------------------- p. 103
Agradecimentos ------------------------------------------------- p. 115
Editorial
Da terceira dentição:

O dente cresceu
Dente agora é onça
O dente cresceu
Dente agora coça
Dente que é dente coça
Dente que é dente onça

O dente ruge – rugido da roça


O dente urge – rugido da onça

Tempo que é tempo ruge. Tempo que é tempo acossa.


Tempo que é tempo urge. Onça que é onça coça.

Onça ruge onça ruge onça ruge onça ruge onça ruge onça
ruge onça ruge onça ruge onça
Raaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuuuuuuu
uuuu!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Voo do Kururu!

[Improviso Morno Nº3]

Sucuru cresceu. Sucuru não tem medo de gente. Sucuru é gente. Sucuru é bicho. Sucuru
é gente que é gente e bicho. É bicho que é bicho e gente. Sucuru é gente. Gente e agente
secreto. Gente e agente concreto. Do hoje. Do agora. Do passado no facão da hora.
Cortando o tempo em fatias.
Sucuru é canto. É o canto da origem do mundo. Canto-origem do mundo. Sempre no
canto. Nunca no mudo. Fritando a origem do fundo. Britando os muros do mundo. Para
além do sol: visagem. Para além do sol: paisagem. Para além da lua: miragem? Não:
Construção. Sucuru constrói no povão. No grito do rio e do cão. Latindo: olhar da roça.
Rugindo: rolar da onça. Engolindo o sol pra nascer a Arte. Engolindo a Arte pra nascer
o sol. Desfiando o sol pra fazer a Arte. Desgolindo a Arte pra nascer o sol.
Arte e sol: faz parte. Quente do mundo-sertão. Mundo de origem. Céu de visão.
Nascendo semente da terra. Crescendo na várzea e na serra. Quer guerra? Parte! Quer
guerra? Arte!

Toda Arte é Arte de guerra. Toda Arte é guerra sem guerra. Toda Arte nasce. Toda Arte
cresce. Do ventre solado da Mãe-Terra. Do corpo gerado da Mãe-Serra. Quem nasceu?
Quem viveu? Quem resiste e nunca morreu. Quem resiste pois nunca morreu. Quem
morreu? Eu. Quem nasceu? Eu.
Quem morreu em nome do povo: Presente! Quem morreu explorando o povo: Ausente!
Quem nasceu como parte do povo: Pressente! Quem nasceu como Arte do povo:
Presente!

Toda Arte toda gente é povo. Toda Arte é parte do novo. Nascer crescer. Morrer nascer.
Ciclo infinito. Ciclo no rito. Ao grito incontido. Nascer infinito. Morrer desmorrido.
Sempre em frente. Sempre enfrente. Nunca ausente:

Sucuru!

[Paraíba – Maio do Ano da Semente de Dois Mil e Vinte e Um]

Equipe Sucuru
OBÁ

Desde menina, sempre gostei de mexer no barro. Gosto de como ele me


obedece, de como se transforma no que eu quero... Essa sensação de controle faz eu me
sentir uma espécie de divindade em meu mundinho feito de banalidades.
Ah, se eu pudesse fazer o mesmo com as pessoas! Pra começar eu reinventaria o
Murilo, transformando-o numa versão mais refinada, apreciador de música clássica e
com uns quinze centímetros a mais para que eu experimentasse a sensação de beijar na
boca na ponta dos pés. Murilo foi o único homem que teve a coragem de se aproximar
de mim, derrubando todas as cercas de arame farpado que eu mesma coloquei ao meu
redor. Enrolei ele por uns tempos porque admiro pessoas corajosas, mesmo que o
objetivo delas seja impossível e elas mesmas não saibam. Coragem de gente sem noção
também tem seu valor, ao meu ver.
Sempre começo minhas esculturas sem saber no que vão dar. Já vi um monte de
barro que ia virar uma mulher tocando viola acabar numa mãe amorosa dando de mamar
ao filho. Acredito que o trabalho de criação é um processo que se aproxima da
mediunidade onde a gente não está na gente, só obedece aos comandos de algo que se
move no invisível. Vai saber. O certo é que essa minha última obra tem sido, desde sua
gênese, marcada por anormalidades.
Registre-se que não gosto de comprar a argila em loja, acho que faz parte do
trabalho bater pernas até o desbarrancado perto do Rio Timbó, se sujar, carregar o peso
daquela massa disforme que logo se metamorfoseará em algo bonito para enfeitar a vida
dos outros.
Como disse, dessa vez as coisas se deram de uma forma especial. Já na cata
percebi que a argila estava mais brilhante, manteigosa; parecia se mostrar satisfeita com
seu destino. Quando a transportei no saco plástico ela aderiu ao desenho das minhas
costas, lembrando o abraço generoso do meu irmão falecido quando queria me animar
diante das pelejas. Quando cheguei em minha casa/ateliê, coloquei o pedaço na mesa e
comecei a manuseá-lo. Tive uma sensação estranha: parecia que ela é quem me
moldava. Durante o processo o barro tentava escapar pelos espaços entre os meus
dedos; depois, voltava brincalhona compondo uma peça única, sorrindo pra mim.
Seu jeito de se comportar, instável como uma gota de mercúrio líquido, me
lembrava minha mãe. Dona Neusa era uma negra bonita, cheia de impáfia; acreditava
que não fora artista porque conheceu meu pai que a havia desviado do seu caminho
estelar na MPB. Tinha humor variável, lembrando aqueles dias em que chove e faz sol
ao mesmo tempo, deixando todo mundo confuso. Além do mais, carregava a mania de
responder às perguntas com outra pergunta, para não ter de revelar os tesouros
escondidos em sua mente.
Esperta a Dona Neusa. Quando saí de casa ela fez um escândalo, dizendo que eu
era uma ingrata que mataria a própria mãe de tristeza com aquelas conversas de gente
doida que eu tinha. Repetiu um milhão de vezes: ―essa história de independência, de
aprender mais, subir de patamar... todas essas bobagens são coisas desses livros que
você lê‖. Hoje eu vejo que ela era uma mulher sábia, pois a redução do meu universo
cerebral talvez me desse de pressente aquela paz que só os ignorantes têm. Fato é que eu
saí de casa, ela chorou, pôs a culpa no meu pai já mencionado como sempre; depois se
conformou. Pouco a pouco a paz voltou para aquela sofredora injustiçada e amada por
mim infinitamente.
E então meu amigo? O que você vai ser?
Melhor você não reparar, eu converso muito com o barro, ele sempre foi meu
melhor conselheiro. Todas as minhas perdas foram choradas em cima desse meu amigo
fiel, muitos dos meus trabalhos foram para os compradores contaminados pelo sódio das
lágrimas que derramei no processo. Talvez seja essa alquimia que emocione tanto as
pessoas quando batem o olho em alguma delas e se sentem imediatamente fascinados,
querendo-as enfeitando suas vidas. Uma vez fiz uma composição um pouco lúgubre:
retratei um homem ao chão, a mão no peito como se sentisse uma dor insuportável.
Larguei a peça num canto do ateliê, já imaginando que ela seria casa de aranhas e
formigas, mas não. Uma senhora alemã ficou encantada com aquele coitado. Antes que
eu lhe perguntasse, ela me confidenciou, com seu sotaque:
Sabe moço arrtista, sua obrra me comoveu. Perrdi minha marrido Joseph há dois
anos, ele enfarrtou. A última memórria que tenho dele é de quando o socorri no chão
da cozinha de nossa casa, ele estava com mão no peito e me disse pelo última vez que
me amáva. Essa esculturra é minha Joseph...
Primeiro fiquei comovida; depois, com inveja. Quantas pessoas nesse mundo de
meu Deus tiveram a sorte de presenciar a pessoa amada sucumbir definitivamente no
chão de uma mansão europeia tendo como último suspiro um ―eu te amo‖ dramático
como aquele? Alemãzinha de sorte... Pra compensar sua felicidade incômoda resolvi
cobrar três vezes o que ela valia. Ela que ficasse com o Joseph apaixonado, eu, do meu
lado, ficaria com o dinheiro para as compras do mês.
Certo é que aqui estou a alguns dias, trabalhando esses grânulos macios e vejo
que a cada momento fica mais difícil dizer aonde essa peça quer chegar. Cada vez que
moldo o barro, lembranças me vêm, mas não como de costume. Antes eu olhava para o
material de forma técnica, fria, agora, estabeleci uma ligação inexplicável com essa
massa disforme. Ela parece cobrar de mim reflexões que nunca havia feito; lembranças
revisitadas, nova interpretações de fatos passados, das pessoas. Não sei o que dizer
sobre um monte de argila que te faz refletir sobre as coisas... E tenho medo de onde isso
possa me levar.
O tempo passou, eu fui ficando cada vez mais entorpecida, mais confusa. Aquela
escultura em eterno processo de construção parecia drenar minhas energias e me levar a
lugares aos quais não tinha certeza se queria ir.
Ontem eu adormeci não me lembro como, e quando dei por mim já era outro dia,
eu deitada em minha cama abraçada à peça úmida, ainda pegajosa. Sonhei com um
personagem da minha infância, a Elda, uma benzedeira raquítica que cheirava a arruda.
Em meu sonho ela repetia a mesma trova de sempre:
Sá menininha, amarra fitinha vermeia no bracim, pra mó di tirá os quebranto!...
Eu tinha medo dela. A lembrança de seu corpo esquelético, ossudo, fazendo
apelos a mim para livrar-me dos maus olhados, me davam calafrios. Levantei
completamente drenada de energias e com muito esforço coloquei a peça em cima da
mesa de trabalho. Àquela altura ela parecia uma árvore, ou uma Durga com seus braços
múltiplos, sei lá. Ela também deveria estar me olhando, julgando-me um bicho
esquisito, cheio de imperfeições.
Eu não estou bem. Olho para um espelho por perto, vejo que estou esquálida
como a Elda do quebranto, eu me assusto com minha própria imagem. Veio uma dor no
peito repentina, semelhante – imagino – à que o alemão romântico sentiu no chão frio
da sua residência bucólica na Alemanha. Estou entrando em pânico.
Ao flertar mais uma vez com a escultura, vejo que ela começa a se despedaçar.
Um dos braços da Durga barrenta se desprendeu e qual não foi minha surpresa quando
meu braço direito também caiu de mim, fazendo um barulho grave ao bater no solo.
Pensei em gritar, mas de que adiantaria? Que explicação plausível eu daria aos
socorristas sobre aquele meu desmonte?...
E assim foi: para cada parte do corpo dela, uma parte do corpo meu. Fui pouco a
pouco sendo quebrada, moldada, até formar um amontoado hediondo de carne morta.
Sei que daí a luz foi sumindo, não sei se escureceu na casa ou em mim.
Transformada nesse não sei o quê, eu inexisto por completo, já que não há descrição
possível para o que me tornei. Ali, esquecida, não há ninguém para pretensiosamente
pensar que tenha chances de formar um casal comigo ou para chorar o drama da minha
ausência. Sou só matéria adormecida, inútil sem um escultor que me dê sentido. Em
meus últimos momentos, um pensamento me cutucou:
- Será que aquela fitinha vermelha da Elda benzedeira espantava o quebranto de
verdade?...
Benício Gon nasceu na capital paulista em 1971, mas mora há mais de trinta anos no
interior de Minas Gerais. Atua como advogado, mas se autodenomina um ―enfileirador
de palavras‖. Escreve desde sua juventude e teve diversos textos publicados em jornais
ligados à cultura e educação. Além disso, é autor de artigos publicados em sites de
renome ligados às ciências jurídicas. Foi premiado no concurso literário ―Cem Anos Da
Abolição‖ e recentemente foi um dos vencedores do concurso ―Me Conte Um Conto‖
com sua obra intitulada ―Eu Te Odeio, Max Planck!‖. Suas influências na literatura vão
de Dostoiévski, Saramago, Kafka, Augusto dos Anjos até Stephen King e Alan Moore.
DUAYER

Nasceu em Tombos, na Zona da Mata em Minas Gerais. Reside no Rio de Janeiro desde
os 10 anos de idade, com breves passagens por Teresina (1991) e Vitória (2010-2013).

É jornalista formado pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Iniciou sua carreira
em veículos de comunicação como repórter na Rádio Jornal do Brasil e como fotógrafo
na Revista Manchete.

Após o primeiro lugar em um concurso fotográfico internacional foi contratado como


fotógrafo pelo jornal O Pasquim, na fase de maior sucesso daquela publicação. Ali, após
alguns anos, incentivado por Henfil e Jaguar, tornou-se um dos cartunistas/chargistas do
jornal.

Complementando sua formação com cursos em artes gráficas, percorreu algumas


agências de publicidade e tornou-se um artista multimídia: fotógrafo, cartunista e artista
gráfico. O jornal O Pasquim e sua Editora Codecri lançaram no final da década de 80
um livro com um apanhado de seus trabalhos no jornal: ―No País das Maravilhas‖.

Tem quatro livros infantis publicados e alguns outros em preparação. Em 2020 lançou o
livro ―Salve-se Quem Puder – Cartuns e Fotos de Duayer‖, obra com suas fotografias,
cartuns e breve pincelada de sua biografia, comemorando os 50 anos do Jornal O
Pasquim.

Teve trabalhos publicados nos jornais Última Hora, Diário de Notícias, Jornal do Brasil,
A Crítica, etc; em revistas nacionais como Playboy, Status, Mad, Ficção, Revista do
Faustão, Visão e em revistas internacionais como a World Press Review, nos Estados
Unidos, Free Press na Holanda, Libération, na França; possui algumas premiações em
fotografia e cartuns e seus trabalhos foram expostos em vários países da Europa e
América Latina.

Na Edição Mensal Nº2 da Revista Sucuru (Abril-2021), publicou a série ―Manequins‖.


Eva

A primeira

A mais amada

Rebeldia involuntária

Não pude controlar

minha tão acusada

paixão malsã

Mesmo com tudo me dizendo

que amar um igual é veneno

eu mordi a maçã
Geena

O fogo sob teus olhos frios

reflete em meus olhos entreabertos

Sua quietude arquitetada

seus delírios sombrios

cantados em voz doce

ao caminho perdido

Escolha aliciada

Delícias sob teus olhos frios

refletem em meus olhos cativos

Tragédia anunciada e eu não soube

distinguir o amargo sob o doce

A fogueira crepitava

e eu vendo-me acesa

joguei-me enlevada

na espera da tua certeza

Mas você não queimou comigo


Madalena

Pedras em minha pele

se eu faço o que fizeste

se não me calo

se muito vejo

se não cedo

ao teu apelo

Se eu faço o que fizeste

não há quem ouça a minha prece

Você me tece no vazio


Mistérios de Elêusis

Estase na noite

liturgias vespertinas

Aninho-me na tua falta

Letargia arquejante

epifania velada

Acendo velas na escada

quebro o realejo

tocando em minha mente

Surdo canto régio

Ver-te, tocar-te

verter sobre ti a verdade

do alarido em meu âmago

O mistério te consagrou

e o mistério te enfraqueceu

Ascendo em setembro que chega

A quietude que por ti velou

A quietude em mim me eleva


Íris Ladislau é poeta, escritora, editora e bacharela em Letras/Edição, com formação
complementar em Teatro, pela UFMG. É a idealizadora da editora independente
Margem e autora dos livros Eu não sou a protetora das coisas frágeis (Penalux, 2021) e
Memória Jovem: livros de memórias da Moradia Universitária da UFMG (Margem,
2020). Publica contos e crônicas em: contosvolateis.wordpress.com.
AS FOLHAS SEMPRE CAEM; AS HASTES VERTEM A TERRA

Eu gostaria de conjurar magia na planície sangrenta da floresta com você


Ungir a cabeça da cabra com aromas e perfumes delicados
E levantar o sangue do sagrado e indizível.

ESFERA CELESTE

Terreno divino que orbita Febo


No centro que ligam os pontos
Diametralmente.
No declínio, a balança
Na aurora, o carneiro.
Aro perpendicular que corta o núcleo
linha imaginária terrestre no espaço
cerco cristalino que promove o ilusório movimento da estrela marcando os solstícios.
Concêntricos.
Culminação
um astro atingiu o seu máximo.

Imagem de <a href="https://pixabay.com/pt/users/gdj-1086657/?utm_source=link-


attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=5660828">Gord
on Johnson</a> por <a href="https://pixabay.com/pt/?utm_source=link-
attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=5660828">Pixa
bay</a>
ELES OUVIRAM VENTOS ESTRANHOS AO SUL

Toda rejeição muda para algo sob nossos colarinhos


É longa a inicial no anel.
O relâmpago é consoante tempestuosa,
O elemento súbito que parte o caos.

Tremendo no colo das coxas da fornalha,


acalmar o movimento do diabo é um pouco tolo.
Eu andei com outros em situações que eram quentes,

essa transição chacoalhou seus avanços


rápidos e ele voou sem tempo.

Nisso vi o tumulto vibrando com sangue, e foi erupção.


Muitos de escolta em torno da data.
O dia do juízo final, o mais antigo dia concreto
de ofertas que desviam de condições sóbrias,
entre seus ventos movem esse dinheiro e reposicionam a prisão.

Situações quentes de poesia


Ao alcance de todo desejo.
Desde que aconteceu o primeiro evento
Meus companheiros de fogo
Espelharam retratando-nos.

Nós vamos vivê-lo de qualquer maneira, o dia de amanhã.


No poder do que na maturidade mais brilhante apenas recuou.

PRONUNCIAMENTO

Senhores da batida, da cabra visionária cujo chifre


entre as ovelhas armava o estrangeiro nascido.
Vocês são livres para confiar no canto silencioso,
e no lugar da luz das estrelas situado sob os prazeres do prazer!
Amando cada grito da nossa dor
Todos os olhos ouviram as declarações.
MINHAS DIVINDADES SÃO ORAÇÕES
deusas serpentinas brilham
a hora é paixão e drama perfeito.
a vida da primadona, o raio, o sol.
se você brilhar para experimentar comigo
mãe e noite de décadas, o mar
sombreado que fez as divindades
vagando entre duas relíquias.
com curiosidades de concha
verá, por debaixo dos meses lunares
minhas dores sagradas se tornam profanas novamente
Maria Isabel Machado mora na periferia de Pedreira, São Paulo-SP, divisa com
Diadema. É multiartista e tem como principais referências o surrealismo, a poesia
mística/religiosa e o goticismo.
ALICATE AMOLADO

setecentos e trinta copinhos de café. agenda da semana cheia. kits devidamente


empilhados. distribuídos. 8h02min. não é obrigação, é prazer. ―ele está fazendo de
tapete o seu coração. promete pra mim que dessa vez você vai falar não. de mulher pra
mulher, supera.‖ a Mirtes cismou com unha stiletto. acho feio. pronto, falei. remove.
lixa. afofa. empurra. cutícula. protege. esmalta. limpa. não fere! finaliza. cinquenta e
quatro horas semanais. durmo e acordo manicure. ―deixe para trás o que não te leva para
frente‖. nas horas livres, danço. equilibro louças no armário. nos vasos de planta,
lembrancinhas de viagens. a pressa é inimiga dos cílios encantados. barbeiragens,
jamais. minha mão é melhor para os salgados. passo longe do adstringente. aceita, meu
amor. responsabilidade afetiva vende na internet? acordou a mulher de madrugada para
pedir a separação? fofoca. não dou conta nem do gato, que não tenho. vai doer, não tem
jeito. essa pele na esquina da unha com o dedão... ih...! credo, que delícia. uma colher
de sopa abriga uma colher de chá, que acomoda meia colher de chá, que acolhe um
quarto de colher chá, que por sua vez abraça um oitavo de colher de chá. medidores, não
usa? a cozinha é o meu lugar favorito. quiche de alho poró, receita de família. aprendi
com a Palmirinha. alevante. abre caminho. macaça. manjericão. tapete de oxalá. sálvia.
banho de folhas. ele realmente acredita que você vive com trezentos reais de pensão?
APÊNDICE

fui pequena numa cidade menor ainda. lembro de correr na rua livremente. girar e girar
e girar com os olhos fechados até cair gargalhando no mato alto e fofinho e cortante.
sozinha e comigo mesma. comer bolo quente da vó no fim de tarde com os pés sujos de
barro. gosto do barro vermelho. carregava o meu agasalho pra todos os lugares.
amarrado na cintura. voltava sempre carregada de frutinhas roubadas nas árvores do
caminho. queria ter tempo. ensinar a vida boa e simples para minha cria. manicure tem
licença-maternidade? a vida é fácil quando se é criança. um dia meu pai não voltou para
casa. só lembro das lágrimas da minha vó me dando uma de suas xícaras, a que eu mais
gosto, a de asinha quebrada. o barulho do motor do ônibus embalava meu sono. o
corredor comprido de muitos assentos ocupados foi minha casa durante quatro dias.
minha mãe brincava comigo durante os dias, sentadas juntinhas no banco quadrado.
sacolejava muito e como eu sorria! foi uma grande aventura. meu casamento é uma
grande aventura. ninguém é perfeito. o ônibus parou. chegamos num lugar
movimentado. muitas luzes. cores. lembro da mamãe dizendo que precisaria de óculos
com tamanha claridade. tudo era grande e cheio e rápido. tia Sandra esperava pela
gente, ela era uma moça alta e muito magrinha, bonita, batom vermelho na boca, eu ri,
mamãe ralhou comigo baixinho. as moças da vizinhança não usavam batom. meu
agasalho, amarrado na cintura, ficou carregado de areia e cheiro de mar.

*Nota: Os dois contos desta edição alimentam a dramaturgia da peça "Memórias de


uma Manicure" em produção pela Bonecas Quebradas Teatro (RJ) e integram o livro
(também em produção) Afetos Postiços.
Gabriele Rosa, nascida no Rio de Janeiro, autora do livro de contos Fendas
extraordinárias (Editora Patuá, 2019). Atua como dramaturgista e dramaturga de
processo na Bonecas Quebradas Teatro. Graduada em História pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Tem contos publicados nas revistas literárias
Subversa, Ruído Manifesto, La Loba e Alagunas.
monólito

o sol de todo dia


mais do que nunca
será legível
e nascerá dentro e fora:
estará ali, um monólito diante de meus olhos,
e aqui, esfinge cínica, prostrada
onde não terei pálpebras para defender-me
mas palavras para dizê-la, tão-somente
tão-somente e ainda.

dívida

Cadáveres dispostos no banquete


às ordens de usura
Ezra Pound, trad José
Lino Grunewald

algo de qualquer canto


para ser menos que meu menos rente ao nós e mais
próprio ao deus
dará dessas mandíbulas
em entusiasmo atentas
sempre aguardando o momento
em que algo lhes será
novamente entregue, plumas que não tenho
que hei de lhes entregar não obstante tudo
um gesto um espólio antes de tudo a ser entregue
uma imagem um tempo antes de tudo a ser entregue
uma carne um leite um povo inteiro
aos filetes e fileiras aguardando
cada qual sua senha a sua
vez de dar-se à morte

bacilo

quase preso ao formato amorfo de todo estilhaço


ruína ou relíquia, caminhante ou sirgado
ou quem sabe
dos dois o resultado
por pouco não caio e não largo num percalço
o fragmento que trago
como se fosse memória
como se fosse milagre
como se fosse uma ave
como se fosse impossível
por pouco, por pouco não alastro
sol

verás aqui e ali


por entre os metais queimados
os restos, o peito
verás o corpo sem coerência calcinado
mas ainda em sua orbita
verás o fato das imagens, que é um trauma,
o couro pendurado ainda arfando sangue
a paz ordenada em torno do abismo claro
a luzir em cada um dos cacos em redor
os escombros de um rosto
que é o próprio rosto real agora
verás que dessas ruínas não se extrai
nem espanto ou mote
e que jamais o anjo da morte
sequer nos desce realmente os olhos
olhos que nos arrematassem
ainda que às claras
um fim ou uma fenda abrupta
que nos revelassem uma voz ou um gesto
que não estes que insistem tanto mas tanto
no mesmo tempo no mesmo verbo
se é mesmo um tempo se é mesmo um verbo
este sol intacto à nossa frente
consumindo-nos empilhando-nos
alargando-se incessantemente

anamorfose

não há palavras
não há silêncio
nem mão nem sopro
contra as fechaduras.
sem ventos e
os corpos ainda
desaparecidos.

no meio do caminho
apenas a vespa
espasmo
torção e cisco
buraco no objeto

a vibrar sino ruído obtuso


nódulo sonoro
a latejar
quase explodindo
as veias instáveis
do canto dos olhos
- mais que pedra, um portal
ante a fatigada retina
retendo
num só ponto, centenas de
milhares de
batimentos cardíacos de

asas, chaves

morte/milagre

ainda que caminhássemos


com a convulsão do tempo
com o rosto involuntário
trarias no bolso aquilo
que é morte para este império
mas um milagre a medrar entre teus lábios
Thiago Soares de Souza, filho de potiguares e de piauienses, nasceu no ano de 1996
em Fortaleza. Formou-se em Psicologia pela Universidade Estadual do Ceará entre
2015 e 2020, período em que descobriu possuir certa obsessão literária por cães, por
gárgulas e pelos leões de pedra da capital cearense. Desde há muito tem o costume de
escrever como quem retira imagens do espelho - ou o contrário.
Gilgamesh XXI

Ele que o abismo viu, o fundamento da terra,


Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo
Epopeia de Gilgamesh (séc. XX A.C.) – tradução de
Jacyntho Lins Brandão

Numa grossa poeira nuvem nasceu


Debaixo de um pátio de ferro luz da
Escadaria
O herói que não era herói que carregava
No rosto a cicatriz de um cometa
Um homem épico
Físico descarnado pelo pensar de um
Tempo que para ele desde o princípio
Era a face de Deus brilhando numa poça
E as gotas caíam uma a uma fluíam no
Rosto
Parecendo dizer a contragosto que o
Destino não lhe amava como amavam as
Górgonas
Pois seu pai não tinha nome
Seu pai era o céu trovejando lágrimas
E sua mãe tinha tantos nomes que sequer
Podia
Mensurar com seus dedos ralos girando
A mosca na sopa
E dali nasceu o herói sem querer
Ser herói sem querer ser gente
Mas era tão gente que tanta gente lhe
Chamava de herói
Ao entregador de marmita nas manhãs de
Segunda: valeu chapa! Meu herói!
Dando-lhe o troco ao custo de uma
Nesga de bunda entrevista da janela
Parecendo a Via-Láctea desnuda
Nas costas de um rato o motoboy
Vibrava com seus vinte centavos
tilintando no bolso
Pelas esquinas esconsas da cidade noturna
Povoada por répteis e semideuses caídos
Do Olimpo
Beijando os pés do Planalto e as
esporas de Esparta

Até que um dia


De saco cheio lotado das fezes do mundo
Sumiu
Sem que lhe restasse vestígio frio ou
Bússola
Cavalgou sua moto preta comprada à
Prestação
Pela jornada do herói na 101
(A mortífera Br-101)
Dos confins do norte aos enfins do sul
Voando sem as bênçãos de Pégaso
Ou o grito de Hades no porão
Passou fome na crise econômica
Viu as bandeiras brigando na rua
Estradas engasgando caminhões
E a peste arrastando rios de morte
Pelos caminhos solitários do sul

Mas o que podia fazer?


Não era Deus era só o herói
O herói de um tempo que Homero não
Cantou
O herói de um mundo pra quem Joyce não
Existe
Sim
Era só o herói para um mundo que se
Descortina como farpa
Pregando no pescoço e rasgando a lisura
de
Todo amor
Todo o amor sucumbido em ódio
E nas fileiras em busca de pão e de
miséria
Nas milhares de fileiras e rostos
esculpidos
De fome
Ele viu
O rosto da mãe dormindo na terra ao lado
Do filho brincando de ladrão
O filho que roubou o tempo
Que brigou com a Medusa sua tia
Que correu nas esquinas do Ramayana
Que buscou Uta-napisti no deserto
Mas só encontrou
Quando lá longe ao sul do velho sul
Para além das cruzes partidas e dos livros
Em chamas
Achou não o amor
Não Eros com suas costas aladas
Mas um pedaço de si
Despontado diamante na praia entre
escarpas brancas
E só lá soube
Ao fim da jornada
Que tudo se conecta e os heróis
Nem mesmo os heróis vivem para sempre.

Nota: Gilgamesh é o personagem principal do poema épico sumério Epopeia de Gilgamesh, escrito em acadiano por volta do século
XX A.C., sendo considerado o texto poético mais antigo de que se tem notícia – antecedendo a obra de Homero em mais de mil anos.
A narrativa acompanha Gilgamesh, o lendário rei de Uruk, em uma série de aventuras que culminam numa busca existencial pelo
segredo da vida e a imortalidade. Inspirado na linguagem da epopeia e em seus elementos simbólicos, este poema parte do arquétipo
do herói mítico e o reconstrói numa narrativa contemporânea, mesclando elementos de diferentes culturas.
Daniel Rodas (Teixeira-PB – 1999) é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras
(UEPB). Editor da Revista Sucuru. Autor da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata,
2021), tem textos publicados em vários meios eletrônicos, a exemplo das revistas
Mallarmargens, Ruído Manifesto, Toró e Subversa. Faz parte do grupo de teatro
ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como
um fluxo, como o fluir incontrolável da vida. Publica seus textos no blog:
www.faroisnoturnos.blogspot.com.br
PESTE

Nos tempos da peste

Pés andam cabisbaixos

Choram ao último gesto de trégua,

Lamentam palavras ditas no rádio:

Apocalipse e morte –

Estes muros de pedra, de repente

Se movem pelos roteiros do silêncio,

Há verbos secretos entre as frestas azuladas

Dos meus braços.

(E até quando estes braços?).

A peste não tem nome.

Derrete com seu maçarico de fogo

Os cabelos das crianças, das mulheres, dos homens,

Das avós.

Põe doentes os cavalos noturnos

Os insetos invisíveis

A paixão de um humano pela água impura.

Que seja breve seu passo aqui,

na terra e entre nuvens.

Que a memória passe

Perdoe esse tempo de bestas e feras

E se transforme em halo de leveza e luz.


SOLIDÃO II

Sozinho vida adentro permaneces

na mudez deste fim de século.

Não tens desejos nem possuis mais a lâmpada da sedução.

O mundo apagou-se por completo.

Enquanto os navios zarpam carregados de medo

o rosto ainda sujo de ausências

queima-se nas labaredas ruivas da mágoa:

− a face junto ao coração

sente a dor de todas as ruas vazias.

Atrás disso, depois de sóis e pedras

ainda escutas o grito dos mortos?

O homem atira dentro do homem.

Aqui agora a solidão é viva.

INOMINÁVEL

O mundo é só labaredas e grãos partidos.

Depois de um tempo, quem acreditar em futuro

às margens da vida

vai perder a noção do júbilo,

nenhum grito irá penetrar o tempo


nem aferir o inominável.

O poema trabalha a morte

como ofício.

Enquanto se morre, o clarão das estrelas

atravessa a carne,

a espada de prata

cravada num corpo de mulher ou pássaro.

UMA CANÇÃO

Como se fossem estrelas ainda

os pássaros cantam cintilantes

sobre as ilhas de papel

transformando em carícias

a manhã banhada de areia

e sal.

O coração é puro orvalho

enquanto a sede rouca

cultiva plantas na garganta

risos infantis, coroas de álamos

mistérios no horizonte

e é a vida que segue atrás do mar.

As cigarras ardem na terra o barro dessa canção.


Mírian Freitas é mineira, doutora em Estudos de literatura (UFF) e professora do
IFSUDESTE/JF. Escreveu Intimidade vasculhada (7Letras), Exílios naufrágios e outras
passagens (Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade -
no Prelo- (CRV). Publicou em antologias no Brasil e Portugal (Leiria e Lisboa) e nas
Revistas CULT, Palavra Comum, Subversa, Mallamargens, Acrobata, Ruído Manifesto,
Desvario, Diversos Afins e outras.
Escrevendo através do pseudônimo "O Rei Ricardo Coração de Leão", o jovem
natural do interior paulista é profundamente influenciado pelo romantismo, de Álvares
de Azevedo a Renato Russo. Provocado pela leitura desde a infância, marcado por
clássicos como "O Pequeno Príncipe" e "A Vida Como Ela É", passou a registrar suas
angústias na escrita - posteriormente publicando seus escritos no blog do Instagram
(@joaolsd98). Lançou seu primeiro livro em março de 2021 - "registros de um casulo
antropofágico", digital e inteiramente gratuito - ao lado da artista visual Maria João
(@amaria.joao).
1.
na minha face
dura feito história longa
jaz um pedaço do que não devia

lateja o que não é bem-vindo


aos olhos frágeis
e se deve recolher
perpétuo
com a vergonha feliz das mulheres inventadas pelos homens

a minha face é imperfeita e tem relevos indevidos


um jeito não temente
de se mostrar como coisa viva
que pulsa
e quebra nos nós dos dedos

é cara de dente em riste


do tipo que não se vê em nu de museu
onde os corpos pendurados
me são tão familiares

na minha face moram olhos muito fracos


e uma boca muito grande
que sorri mais que o adequado

e nos cantos de cada coisa


há uma dobra renovada
que afunda no que é vivo
porque está vivo
como se o tempo não fosse perigo.

2.
as gotas esquecendo no parabrisa
à espera de um calor
que lhes enxugue as formas

que deixe apenas mancha onde houve presença


feito morte recente

em laranja os postes se mostram rápidos


e se despedem

e se refletem
como contas sem colar
acumulando nas quinas

tudo isso me lembra que existe lágrima


foi uma mecha de cabelo seu sobre os olhos na tormenta
comigo nas mãos

meus pés molhados dentro do sapato

esse é o início da vida no singular


um sussurro
venha

eu me lembro das margens muito rápidas no escuro


dessecrando o impublicável
e que havia um medo novo
dos que se sentem sem fugir

de tudo isso eu me visto


nos invernos
quando a lâmina do frio deixa à mostra
a carne triste
e sem certezas
que eu guardo no fundo dos armários

a ponta dura do frio lacrimejando vermelha


todos os fins
possíveis

eu não quero me esquecer das margens rápidas na chuva


e dos meus pés molhados da chuva
que me seguram firme na amurada

tudo isso me lembra que existe lágrima


e que carpimos apenas os que não nos sobrevivem.
Milena Martins Moura é mestre em literatura brasileira e tradutora. É autora dos livros
Promessa Vazia (2011), Os Oráculos dos meus Óculos (2014) e A Orquestra dos
Inocentes Condenados (Primata, 2021, no prelo). Integra a equipe de poetas do portal
Fazia Poesia. Publica suas produções em diversas esferas artísticas no Instagram
@oraculos_dos_oculos. Contato: milenamartinstradutora@gmail.com.
Tatu com cobra

Era quase uma adolescente quando vi uma mesa de café da manhã nordestina pela
primeira vez. Foi uma revelação de que a vida podia ser opulenta e afável. Até então,
todo o meu universo era contido, até áspero, como as histórias de Cora Coralina. Goiás
tem uma alma um pouco avara, de carestia. Ainda que não seja pobre, é simples, básica
e espartana. Uma consciência de que se é possível sobreviver com pouco, para que ter
mais.
Não há espaço para as metáforas no imaginário goiano. Cresci numa família literal. A
vida exige praticidade. Os bolos são de fubá ou, no máximo, o mané pelado (de
mandioca). Bolo de bolo, um café preto. Às vezes, uma broa ou um biscoito frito de
polvilho com queijo. A pamonha só na época da safra de milho.
Acho que as comidas que ofertamos ou cozemos traduzem um bocado do que somos.
Aquelas mesas nordestinas repletas de opções quentes e frias, um banquete diário, são o
próprio cerne hospitaleiro e afetivo dos baianos e piauienses. Provavelmente de todo o
Nordeste, uma região que se forjou à base da doçura da cana-de-açúcar. Não que o
melado escorresse para a senzala, muito pelo contrário. Mas não estou aqui para evocar
Gilberto Freyre.
A vontade de reunir o clã para boas prosas em torno da abundância deixava a menina
surpresa e feliz quando estava de férias nas bandas de lá. Banana da terra e abóbora
cozidas, fruta-pão, bolo de goma, atas, caldinhos diversos, cuscuz, carne de sol matinal,
pão de ―massa fina‖, pão de ―massa grossa‖, mungunzá… Opulência gastronômica lá
em casa somente nas datas especiais: Natal, Páscoa e Dia das Mães. No dia a dia, só a
comida de subsistência mesmo.
Nem no Rio de Janeiro, cidade que sempre visitava com a madrinha, ela experimentava
essa vontade de servir e de ser servido com cores e sabores múltiplos a cada manhã, a
cada almoço e a cada lanche da tarde, como sói ter os nordestinos.
Ontem, meu amigo piauiense afirmou: ―me desculpe, acho que vai ficar chateada, mas
as festas juninas de Brasília são uma bosta!‖. HaHaHa, como comparar com as
verdadeiras festas sertanejas? Claro que são. Ninguém bate o Nordeste em matéria de
calor humano e folia regados a comidinhas confortáveis.
As casas dos goianos, ainda que sejam ―bem de vida‖, são simplórias. A mentalidade de
escassez, de parcimônia, é a tônica. Decoração, pra quê? Mamãe vivia num dos bairros
mais elegantes da capital federal sem quadros e sem aparelho de som. Era algo
completamente inimaginável para mim. Insisti muito para que comprasse umas telas,
coisa que fez sem dar a mínima bola, provavelmente para a caçula parar de lhe encher o
saco.
Sintomático que dois amigos goianos tenham me dito, em ocasiões distintas: ―acho que
minha casa é mais decorada por você do que por mim‖, de tantos presentes que lhes dei
para aplacar o branco excessivo do apê de ambos.
Conjecturo que o espírito goiano não tem paciência para firulas e rapapés. É um pé de
boi. O do nordestino é um vestido de chita, uns bonecos de barro delicados. Deve ser
por isso que a música de raiz do Goiás tem chifres (de todos os tipos), curral, terra
vermelha, botinas e botinadas. É uma música sem adereços, que diz ao que veio. Do
Nordeste, ainda que falem do sofrimento sertanejo, tem flor de mandacaru nos cabelos
das moças. É alegre em sua essência rítmica de xotes, baiões e frevos.
Não pensem que estou renegando minhas origens. Gosto muito da minha parcela
goiana. Me identifico 100% com ela. Aqui são apenas digressões sobre as diferenças na
amálgama de dois povos que, em Brasília, se mesclam e dão o tom dessa mistura de tatu
com cobra. Metade esquiva e caipira a la goianos. Metade matreira e resiliente tal qual
os nordestinos.
P.S.: a expressão popular tatu com cobra faz referência a pessoas sem vontade, sem garra,
porém, sempre ouvi mamãe utilizá-la como ―mistura esquisita ou coisa que não tem nada a ver
uma com a outra". É nesse sentido da memória afetiva que me valho nessa crônica.

Posto que é chama

A vida é a noiva do Frankenstein. Combina coisas e pessoas desconjuntadas num


mesmo tempo-espaço. Um prato de self-service no qual você mistura fricassé de frango
com salada de berinjela. A eterna insistência de unir o que é desunido por natureza.
Murro em ponta de faca. Água mole em pedra dura.
A vida só é possível reinventada. Cabal. Entretanto, viver se desenrola pelas reticências
até o ponto final.
Um e-mail sem descrição do assunto. Um assunto sem o conteúdo da mensagem.
Rotina espantosa. Sustos previsíveis. Opostos que se atraem para se repelirem com
aversão após o décimo desencontro.
Para morrer basta estar vivo. Mas como quantificar o basta: bastante, apenas o
suficiente? Vegetais também são seres vivos. Micro-organismos existem, tal qual
moscas e ratos. Todos vivinhos da Silva. Pior, barata. Lépida, até avoa.
Viver é muito perigoso: dá ideias, ganas. A vida é um sertão árido que abriga o oásis
para quem tem sede de cruzá-lo.
É densa floresta onde se perde o enforcado.
A vida, inesgotável dilema, maior dos temas. Seguida da morte, fiel e indecifrável
companheira.

Boreste

O barco, ainda que ancorado no meio do lago, não se permite a imobilidade. Primeiro,
flutua. Ação estóica e altiva para um ente com tamanho peso.
O barco não se conforma com a âncora que lhe tolhe. Faz rotações em torno de si. A
popa vira proa e vice-versa.
Se o observador fechar os olhos por átimos, captura outro ângulo. Um barco, portanto, é
sempre proparoxítono: átomo e tônico.
Pancetti deve haver enxergado a impermanência quando movia os pincéis de sua arte na
areia das enseadas.
O barco, ainda que domado, não permanece estático. Ele sabe que o único destino é
navegar.
Nem naufragado o barco é morto. Torna-se casa de peixes. Conta uma história de terror.
Por isso, enquanto se revela e se rebela sobre as águas, à espera de singrar no boreste, o
barco emite sons fantasmagóricos.
Seres imperceptíveis a olho nu cutucam o casco. Gnomos de guelras batem os pés na
quilha sob a lâmina aquática.
Tu, qtiz, clim, grum. Barulhos irreproduzíveis no abecedário dos humanos, capaz
apenas de ouvi-los como um mantra de assombrada quietude.
É na tensão entre a custódia e a liberdade do barco, que as sereias ficam alertas: instante
no qual decidem se o encantam ou se o ignoram.
Vórtices

"Agora abria as janelas e portas, escancarando-as para que o ar penetrasse nos aposentos
e tirasse de lá minhas ansiedades mofadas e todas as moléstias possíveis".
(Olga Tokarczuk, em Sobre os Ossos dos Mortos)

Meço a intensidade do frio pelos tímpanos.


É quando percebo que eles existem, estão dentro de mim, cravados num lugar escuro,
úmido e misterioso.
A razão de meus ouvidos médios serem sensíveis às baixas temperaturas, nunca soube.
Desde criança, quando ganhei a primeira bicicleta e imprimia velocidade pelas ruas da
quadra, descobri que o vento gelado ia de encontro ao orifício da orelha como uma nota
aguda do violino a tocar no interior do cérebro.
Enquanto os tímpanos hibernam, ainda não se inaugurou a friagem invernal. É um
indicativo.
Nem sequer os fones são capazes de impedir a conexão do sopro gélido com as
membranas da janela oval. Pensar que não apenas os olhos estão abertos para captar as
nuances da vida. Bonita essa imagem: um ovo, a forma perfeita da natureza, para
sempre escondida em você. Um paradoxo é que, por dentro, tenhamos essa delicadeza,
pois, exteriormente, as orelhas são feiosas, de abano, grandes, amassadas.
Nada há de especial nas minhas, além da possibilidade do adorno. Brincos são
acessórios que estimo. Irresistíveis bugigangas.
Na caminhada de hoje, voltei a sentir que o inverno se aproxima. Será mais rigoroso do
que os dos últimos anos? Espero que sim, com certa culpa pelos tempos de vírus
apocalípticos.
Posicionei as mãos em concha (outra estrutura natural primorosa) sobre os vórtices a
sugar as correntes aeradas sibilantes até o fundo do cone auditivo. A vibração da corda
esticada do instrumento soava dolorosamente, todavia o calor do tato acalmou o
lamento.
Segui revigorada na direção do horizonte gris-alaranjado.

Segredismo

Cavalguei um segredo no domingo. Olhando para ele não parecia tão misterioso ou
indecifrável. Por isso não tive medo. Subi num impulso só, me acomodei em seu lombo
e pronto. Estava domado. Puxei a rédea de sua liberdade com determinação. Não se
pode deixar segredo correr sem direção. Segredo é segredo e sempre pede constrição,
comedimento. Se assim não fosse, era caso de livro aberto e não algo que se esconde.
O sol estava majestoso lá em cima. Derramava amarelo que verdejava profundamente a
pastagem e a plantação de eucaliptos. Queria me afastar o mais longe possível de
qualquer sinal de humanidade para compartilhar aquele segredo só comigo. Um segredo
de mim para mim. Corri. Galopei. Em poucos segundos, o chapéu voou. Não teve
coragem de viver aquela intimidade. Vermelho esquecido no marrom da estrada.
Segui partilhando meu segredo morro acima. A subida num fôlego só, profundo,
bufante. Aos poucos eu não sabia mais onde começava o segredo e terminava a minha
pulsação. Monobloco de artérias e suor. Segredo se revelava para mim uma espécie
orgulhosa, cheia de personalidade, quase selvagem. Mas não é característica de todo
sigilo essa volúpia?
Não é à toa que coça a língua, formiga o corpo, dá tremeliques. Guardar segredo é tarefa
hercúlea. Porque ele quer se soltar no vento, no pasto, na ribanceira. Segredo quer ser
livre de qualquer cabresto. Quer ser ele mesmo, não outro. Não mais um. Não dois.
Segredo que viver sua vida sem dar satisfação e reverência a ninguém. Muito menos aos
que não sabem como cavalgá-lo com altivez.
Então me pus ereta, confiante. Gritei: vamos! E chegamos ao topo do mundo. Pelo
menos daquele mundo. Éramos nós dois e a paisagem lá embaixo. Nossos corações
batiam no mesmo ritmo intenso e confidente. Já nos entendíamos sem palavras ou
gestos bruscos.
O oculto clareou e imperceptivelmente me tornei um centauro. Quimera. Segredo abriu
seus flancos e me absorveu. Fagocitose. Impossível não sorrir como quem conquistava
um império.

Vísceras e gerânios

Ouça a velocidade da manhã


no grito da criança
na conversa entre as espécies
Bem-te-vi, bem-te-vi...
Nos murmúrios que cessam ao badalar do sino.
O ano mal começou e já se finda.
A agenda esquecida na gaveta.
Sexo matinal maquinal
vísceras e gerânios.
Maritacas, arrulhos,
pombais humanos.
O arranque do carro anuncia
mais um dia
na pandemia.

Kafka

A chuva se arma para a batalha contra a terra. Convoca os aliados: ar de trovões e fogo
de relâmpagos, lançados sobre árvores assustadas.
Sementes e folhas alcançam o solo: passos sorrateiros de gnomos invisíveis.
A barata cruza a calçada em busca de outro abrigo,
apressada.
Nuvens grávidas, pesadas, sentem as dores do parto. Movimentam-se furiosas, em
agonia.
A chuva ameaça, se prepara para furar o bloqueio do chão compacto.
Boa parte das vezes, mera bravata.
(sorte da barata e azar o meu)

Faro(lete)

Inspirada (e expirada) em Eva Furnari, escritora de tantas doidices maravilhosas.

Há 38 anos ele suporta a cangalha. Por isso não era de se estranhar que perdesse a noção
de si mesmo, sem o peso do jugo daquele apetrecho que apenas cambiava de cor, de
grau ou de forma, mas mantinha o domínio.
Contudo, bastou um momento de deslize do parasita para, de repente, se perceber digno.
Uma montanha escarpada, sólida, bem desenhada pela combinação de genes. A crista
alongada, despida de relevos perceptíveis. Inexistentes depressões e fraturas.
Alpinistas morreriam para escalar aquela face, um deles, inclusive, ousou afirmar que
seria perfeito. Assim se sentiu ao se tatear desprovido do indefectível adereço opressor.
Liberto, não somente durante o sono, mas ainda lúcido, permitiu-se a alegre solidão de
ser longilíneo e delicado. Às vezes, úmido pelas gotas de orvalho que apareciam de uma
hora para a outra.
Estável e simétrico, sem dúvida. Seus túneis esculpidos com precisão, quase sempre
desimpedidos, rumam para o interior sem pedágios.
Concluiu, então, que ele era, de fato, um monte sagrado de ar respirável. Talvez um
vulcão pacífico a dominar a paisagem do rosto que, ao contrário dele e para lhe dar mais
fidalguia, era impreciso.
Luciana Assunção, Lulupisces, jornalista e publicitária formada pela Universidade de
Brasília (UnB), com pós-graduação em Comunicação com o Mercado pela Escola
Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Nasci em Brasília e não escapei à
sina de ser servidora pública federal, desconsolada como Drummond. Pisciana com
ascendente em Leão, vivi em Sampa e em Nova Iorque. Autora do blog de textos
―Pisciana de Juba‖: lulupisces.blogspot.com
Meu livro de estreia, As desventuras de uma mulher que levou um susto em sobreviveu,
foi lançado pela editora carioca Confraria do Vento, em 2019.
Tempestades

Todas as épocas me pertencem um momento,

Todas as almas um momento tiveram seu lugar em

mim.

Fluído de intuições, rio de supor – mas,

Sempre ondas sucessivas,

Sempre o mar – agora desconhecendo-se

Sempre separando-se de mim, indefinidamente.

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa.

... Penso, sinto, ando, corro,

vago, leio, contemplo, grito...

Falo, calo, gesticulo, abraço,

Estaria eu louco? Ou mais são que nunca?

Ou seria minha loucura minha sanidade?

Bem o acho que sim...

O que teria eu a dizer que já não tenham dito?

Digo o que quero dizer,

O que não quero dizer,

O que não querem que eu diga,

O que eu não quero querendo dizer,

E o que eu quero não querendo dizer.

O que há de poesia nisso?

O que há de filosofia nisso?


Há a multiplicidade das sensações...

A multiplicidade do falar, do ouvir,

Do sentir, do divagar, do querer e não querer,

A própria multiplicidade e infinidade da mesma

sensação...

As formas que vejo nas nuvens...

Os corpos deitados sobre véus... de pureza e

lascívia...

Os animais, os gatos, as mudanças de formas

inefáveis e disformes,

Todas estas e outras formas, vejo na mesma e em

várias nuvens... a forma de um pensamento

pode ser a forma de outro;

a forma de um sentimento

pode ser a forma de outro;

na mesma forma outros podem ver formas de

outros...

... Seria este poema a forma perdida de outro

poema? ...

... Vivo ou morto? ...

os conceitos que surgem,

e que surgiram, e surgirão,

não são mais,

do que simples conceitos,

o que importam a esses conceitos,

eu?, nós?, a arte?, a vida?,

a morte?, as invenções de palavras?,

a própria ideia de um eu?,

o que chamaram/chamam de natureza? ...


... Mas o que é que existe?

E o que é que não existe?

Este papel, esta página, o branco ―vazio‖ dela?

a própria ideia de vazio?; A abertura;

O aparente? ... A árvore no papel? ...

E o que existe não existindo ... A

subjetividade

de certas artes, as formas que vejo nas paredes

Esburacadas, as folhas das árvores que se

movem ...

E se movem... E conversam...

... Consigo mesmas e comigo.

Tudo isso existe e não existe,

É finito e infinito,

É louco e são, é doce e amargo,

Feio e belo,

único em suas várias formas e em sua...

... própria existência e inexistência...

... Existe não tendo existido em outros,

Existe tendo existido em mim,

É real e surreal,

Barroco, simbolista e parnasiano,

Conceitual e não conceitual,

Palavra e não-palavra (o silêncio

anterior/posterior/instantâneo aos nomes...),

Existe não existindo... e... Existe!...

Sim! Existe! ...


... E Deus, existe?;

é um conceito, uma palavra?;

uma energia/força?; uma pessoa?;

uma necessidade humana de saciar a sede

de sentido e de saudade?;

um princípio social e religioso/institucional?;

uma anestesia existencial?;

uma imposição civilizacional?;

ou um nome/forma e imagens

para uma experiência oceânica?...

... As folhas quando caem,

Me dizem que o único princípio imutável,

é a própria ideia de que os princípios são

Imutáveis ...

Mergulham na sede:

O viver... O ser... O estar sendo... A experiência...

O existir... O não existir... A ilusão e a realidade...

... O concreto e o abstrato ...

O concretismo do que é abstrato,

E a abstração do que é concreto,

O único sentido... O que tem vários sentidos

... O que não tem nenhum sentido...

Ah, o sentido!

O sentido do sentir,

E o sentir do próprio sentido,

E o sentido dos sentidos do próprio sentir...

... Imagens da multiplicidade ... submersas,

navegantes e móveis...
as várias faces da mesma face ...

as várias formas da mesma forma ...

que não são/estão as mesmas ...

Tanta vida, tanta morte, tanto sol, tanta lua,

tanta natureza, tanta arte, tanta humanidade,

tantas palavras, tantos silêncios...

e acho um pedaço de mim em cada uma e em

todas essas coisas/pessoas...

Sem perder meus próprios pedaços ...

... E construindo e destruindo/reconstruindo com

todos os fragmentos...

O todo da parte do nada-todo e do todo-nada

infinitos que sou/estou...

Ah, as chuvas ...

elas me lembram dos grãos de sal

e gotículas oceânicas que sou/estou ...

Ah, os mares, ver as ondas se

debatendo, avançando sobre as cidades,

suas espumas e salsugens

se formando e deformando,

se transformando...

como nós mesmos... uniformes...

pluriformes... inacabados...

em processos de mudança...

perfeitamente imperfeitos...

belamente horrendos...
Os mares e a assimetria da simetria ...

A beleza do mar é/está na beleza da poesia, da

vida/morte/transcendência/transformação,

da sobriedade, do encanto, da embriaguez, da

loucura, das tempestades que instigam

a sanidade, do prazer, da satisfação, da atenção,

do som do trovão,

da contemplação, do amor, da dor,

da tristeza, da saudade, das raízes rizomáticas,

do que brota,

escorre, se esvai,

que vive,

pulsa, arde,

respira,

na multiplicidade,

no único vasto,

no todo e no nada ...

... Sempre o Mar ...


Ivan Nicolau Corrêa. Nasceu em Embu-Guaçu-SP em 23/02/1982 e já residiu nos
Estados de São Paulo, Alagoas, Pará, Paraná, Paraíba e Pernambuco, o que lhe
proporcionou vivências interculturais. Mora em Caruaru-PE há 11 anos. Mestre em
Educação Contemporânea pela UFPE e Licenciado em Letras pela FAFICA, é professor
de Língua Portuguesa no Colégio Motivo em Caruaru-PE. Poeta, tem dois livros
prontos (não publicados) chamados: Entre Algas e Corais e Reticências do Mar. Foi
monge-estudante Hare Krishna por 8 anos e é praticante e facilitador de Meditação,
possuindo também formações nas Terapias Holísticas do Reiki e Florais de Bach.
Contato: ivannicolaucorrea@gmail.com
daqui a dois minutos

diáspora de palavras que não cercam o afeto.


círculos, quadrados,
poliedros enfadonhos
nada dá conta do recado.
é dia de circunscrever as emoções em tubos etiquetados,
ensaios clínicos mal elaborados
insanidade de tumultos sincronizados na cabeça rasa
raspada
sem viço.
não se sabe o futuro.
não se sabe o presente.
é daqui a dois minutos,
e só aí,
que a vida acontece.

noite

é que somos todos contradições impossibilidades limites. fajutos recortes. terreno


infértil, dores que galopam o corpo. é que somos todos as lacunas que tapamos com a
mão e alocamos no diâmetro da penumbra. é que somos todos penumbra e caminho
aberto, bocas conversando entre si

(você no escanteio)

bocas discutindo entre si quando o mais certo seria fechar os olhos e dormir, à noite.

é que somos todos noite que não acaba nunca


Vivian Pizzinga é escritora e psicóloga. Lançou os livros de contos Dias Roucos e
Vontades Absurdas (2013) e A primavera entra pelos pés (2015), além do romance
epistolar Extravios, em 2018, este último em co-autoria com o escritor Igor Dias, todos
pela Editora Oito e meio. Participou de algumas coletâneas, como Escriptonita (Patuá,
2016) e Cada um por si e Deus contra todos (Tinta negra, 2016). É carioca e atua em
sua área de formação.
PEQUENOS VOOS NA LAMA

Na praia da pedra
moldam-se
novos corpos de lama

que sobrevoam as croas


na baixa da maré.

Na cheia da lua
habitam sururus,
alimentam-se do sal
das águas:

homens caranguejo que


cagam na boca dos sábios
e caminham no rastro do caracol.
2

Serpente enrolada,
prepara o salto da pedra
à boca do andrógino:
o anoitecer na mata de vidro
acoberta a fumaça
do alecrim.

(a natureza do ferro
me revela o caminho)

Submerso na lama, o
iniciado monta o caranguejo
e oferta
fumo ao pai do mangue —
também se ajoelha para Nanã,
cuja bela face
tão poucos puderam
vislumbrar.

(Pede licença e cala a boca.


Se teus ouvidos
seguem selados
não pergunte.)
3

É no canal
que as águas
copulam

para fecundar
esta terra.

Sou uma palmeira


que chora
no colo de Nã,

peregrino que dança


no ritmo da maré.
4

No silêncio do canal
vi

minha mãe
a cantar o padê.

Ostentava a calunga
fazendo
da água fermento

e com a ponta dos dedos


fecundava a terra —

agora massa
movida
pelo pássaro que
rodeia o mundo.
5

Não me abandone
minha mãe à fúria
dos aratus, fogos
que correm
pelas raízes expostas
dos manguezais.
Salva-me da risada
dos caranguejos.

Nota: Os poemas da série ―Pequenos Voos Na Lama‖ fazem parte do livro Pelos Olhos
do Jaguar que lancei ano passado, e foram escritos quando estava no Quilombo de
Siqueira em Rio Formoso - PE (a família da minha esposa é de lá).
Nitiren Queiroz nasceu em Carapicuíba, SP, em 1980. Atualmente mora em Osasco,
SP, com sua esposa e sua filha. Educador e dançarino. Mestre em Psicologia
Educacional e graduado em Comunicação e Artes do Corpo. Membro do coletivo de
Hip-Hop Guetto Freak desde 1995, foi a partir de suas vivências nas linguagens do
Breaking e do Rap que adentrou o universo da poesia. Foi membro do coletivo Tantas
Letras que organiza o sarau Lapada Poética. É autor dos livros Nêfesh pela Dobra
Editorial (2014) e Pelos Olhos do Jaguar pela Editora Urutau (2020), além de participar
da antologia Nada Mais Parecido a Um Fascista do que Um Burguês Assustado pela
Editora Hecatombe e publicação de poemas na Revista Subversa e no Portal E.M.
Cioran.
"Apartamento", Gonzalo Sicre (1967-)_ diálogo ecfrástico

Virada do mês/ da mesa/ dos meios

,)
Vermos Plêiades no atlas aberto
enquanto o besouro passa na cortina
e no quarto (,

dias asfixiados
informes

destinados, sim
a experiência intrauterina das cores
como na rua deserta
noite iminente
apenas na presença
do
poste e árvore

mundo constelado
submundo dos segundos:
Maria acalentando seu bebê

Joana esperando
ver o lindo Sol
no rosto único /sede/
/assim/ da expressão /qualquer/
interna dança /coisa/
do infinitesimal /serena/
tempo do sopro
E colorir é a raiz da equação que
perdemos
entre a ação da britadeira e a
combustão
dela A floresta

E colorir é raro
morre
E colorir é rápido
sonho
E colorir é a razão
E

E colorir

E colo
Eco

E se

,)
Vermos Plêiades no atlas aberto
hoje (,

"Fastidious man"(2006), Kazuya Akimoto. Diálogo ecfrástico. Versão 2.

Peregrino no PandeMundo

Tu não lês o trabalho deste sangue


corpo catando sonhos reciclados

Tem que abrir a janela para ver


Ar noticiando o fim do começo,
pois só há possibilidade de
início no fim dos
meios-limites

Uma coisa infinita a cada dia


Aqui morre também

O das ossadas, O da carne viva


se faz
Cotidianamente em seu jardim
, cintilante e cariado,

Nosso pranto inoculado do Agora


Corpos jovens ou não
Garranchos e papagaios de toda
c o r

Versão de 5 haicais

A morte é viagem
Carne viva abre a janela:
bebe toda cor

***

O sonho é imagem
Carne viva abre a janela:
arde a madrugada

***

Música da noite
A carne lança a palavra:
som do germe oculto

***
Um corpo com fome
peregrina e olha a lua:
um homem sem nome

***

Um homem sem nome


Amarela cas(c)a podre
um homem com fome
Versão de 2 “haicais contínuos”

Carne viva em transe


esvoaça pela rua:

arde a madrugada
Ás de toda cor
pulsa em cada dor
toca em vários tons
canta com a noite
som do germe oculto
o sonho é miragem
cresce com a noite
som da madrugada
e cai o germe oculto
cresce a madrugada

***

Um homem sem nome


peregrina pela rua:

um corpo com fome


um corpo com sono
um corpo com sonhos

''Abstract Red Meshes" (2006), Kazuya Akimoto _ diálogo ecfrástico.

Lembranças

Luto
entre
a
vida e a morte
Luto
tanto
Luto
***

como
meia
vida
anda
à meia-noite
entre
tanto
luto
sonha

***

ávida
sangue
entre
vista

a morte papapá
luto
entre
vida

e

***

nu e
gozo
plânula
viva
água
de molho luto entre
tanto
somo
veste
à esta
noite

***

vem

hoje
Luto pela
vi(n)da

no

***

Vi
vida
e
morte
geolocalizadas
entre
O
luto
luto

***

este
brinco
cai
sente
esquálido abandono
vida
rara
em
si

***

plano
pano
Luto
Começar a vida
entre
tanto
Luto

***
se
luto
acho
poema
ardo com a vida
entre
raro
ar
ar

***
um
entre
luto
hoje
ontem no jornal
eu e
Nós
ester-
tor
tan-
tos

***

Sim
chove
lembro
Anoto
e teço
Lembro meio sem vida lavo
e com lu-
to na lava
entro sem
morte ra-
ro ar e ar

Da criaçã0 em zer0

Se agrega a0 mapa de pequenas


dimensões : treme se arrepia : ela
se sente se abraça bem

na p0rta d0 últim0 dia c0nhecid0


que h0uve que havia - diz -
quand0 eu sabia a0nde eu ia

ag0ra, grit0 invisível


vence lúdic0 lúcid0 e def0rmad0
a vida na m0rte e vice-versa

não se perde a v0z


estam0s junt0s num temp0 0utr0
mas n0ta este esface-
lad0 vazi0 que n0s cer-

invade e jaz Impress0 n0 papel


nã0 etern0, mesm0 assim
s0lar (( mais que presente
0 áp0r0 )( transmutand0-se
para um dia se ver em v00((
cert0
Poética do muro e acerca do tempo no terminal

Crescendo mais e jogar dominó


com o que chega por querer tantO
Bem, num Forte vivendo
juntos
no limiar de um país outro
bendito___________seria
qual folha de papel tão branca
de longe trazida até esta mesa
com o detalhe agora da pisada
de alguém - caíra no chão -
- ontem - que fora um dia -
quase banal: galinha pondo
o Sol para nascer e Chegar
àquilo que exIste _____:_____
Desconfiando sobre a constituição
das folhas de maçã

Não seriam elas irmãs


dos corais luzentes,
filhas do Mar Vermelho, Indo-
Pacíficas?
E como seria este pé de maçã,
depois, se vivêssemos a
multidão de Um
futurO Tangível sOrrindo?

..____..____._____.____._____\|/.___
A hoje, somamos o aparente-
Mente inevitÁvel:
bolas de
lama na
p r a i a,
n/ã/o/se/mis/tu/ram/
não/se/m/is/tu/ram
a/quase/
nad/a.
Arte de Koen Lybaert (1965-), ''Mirria III''. Watercolor on paper.
Sementes à flor da pele quando nestes anos

Podemos faxinar água-viva


Podemos romper máscaras criadas
Podemos ler o chão molhado
e Pôr clipse na hora
O estojo serve a outros fins
quando queremos
Acendemos o olhar quando
quando deitamos
Abrimos os braços cedinho
no travesseiro
esperando algum abraço
legítimo apoio
carinho
caminho-amigos
Uma palavra e outra
abarcando o mundo e levantar:

Fotografamos o eclipse fechando


os olhos
(A) guardamos, cedemos, à
distância,
nossa maior presença
Estou nas bicicletas que passam
pelas minhas bochechas:
sorriso.
Lágrimas no entorno, educa-
Ação da morte, contudo
[um aprendizado]
Tudo é bonito - Healers
:como somos:
diante do Tempo

Na língua materna ou
visitando o estrangeiro cais.
A surpresa não nasce de ten-
tativas. Exploro este espaço.
Choveu.
"Abstract Spiral Galaxies" (2008), Kazuya Akimoto. Diálogo ecfrástico

Sobre atravessar o horizonte partido

Há fome desde a Antera,


onde se poliniza galáxias
Há flor de ideias na tinta espacial
chegando ao exoesqueleto e
em nosso túnel compacto roçando
claras espirais

Se palavra é gasta, sombra túmida de si


malícias negam desfibrilação de estrelas
demônio-um representante
saturação de cores invertidas num dragão marítimo
branco, pouco comum ao olho nu

Nossos pássaros inquilinos


frementes, em desvio
colisão da vida que pulsa
em nós, sem pergunta

Se o peixe feroz, informe e ilegível à claridade


Leviatã New-artífice do exício
do enredo sem rumo
cria o mundo anônimo
noite em todo o corpo, debalde,
carregando as rédeas do tempo nas compotas
de falácias

As sépalas em preto em branco contraem o passado


e assumem a sustentação de toda a flor até o estigma central
parem borboletas luzentes
mitológico sabor do vento
yvytu em zênite
tu e tal e tal e tu
forma-se tessituras de vida
Entre uma cabeça de serpente e outra
não ponderando termos
carregando em sua jóia ruína
sua mortal comprovação

***

Sinestesia orbital

Palmilha os verbos celestes


caça o letramento da noite

foram cem mil anos de


solidão-luz

Agora, são dois pássaros a Voar


e carregam o mundo do sono

galáxias ouvintes no Eterno


instante do esquecimento

Agora, jaz nas mãos


o diâmetro do tempo gasto

São dois pássaros a Voar


habitando o silente espaço.
Luciana Quintão de Moraes nasceu em 28 de maio de 1993. É poeta carioca da zona
norte e graduanda em Letras pela Unirio. Participou do Coletivo Oficina Experimental
de Poesia (2017-2018). Possui poemas publicados na Revista Digital de Arte
Independente Caminhos Poéticos, Revista Mallarmargens, Revista Capivara e em
Variações: Revista de literatura contemporânea. Participou do Projeto Poético "47:60 -
Beyond words- Lens to Pens'' (2020), além da participação no livro ― 60 dias de
isolamento: uma interpretação sobre o viver e sentir durante a pandemia‖ (Editora Gato
Ed, UFPA, 2021). Está com um livro-projeto sendo editado: "Tentei chegar aqui com
estas mãos". Também se vê como uma aprendiz da vida e do teatro. Publica seus
poemas no blog desdeopeitovida.blogspot.com
RESTAUROS E OUTRAS REVIGORAÇÕES

no céu
Jyotisha

um objeto no céu
corta meus devaneios.

um objeto no céu
cativa-me em meus passeios.

no céu, firmo
minhas devoções.

no céu, confirmo
minhas inspirações.

no céu, a cartografia
de uma ciência.

no céu, uma fotografia


da consciência.

no céu, desenhos
mitológicos se formam.

no céu, sou Teu


ainda assim, sou Eu.

estrela morta

deito no chão
olho a esmo para o céu
busco alguma sensação
algum encanto
naquela escuridão
salpicada de brilho
em todo canto.
lá longe, bem longe
uma estrela não brilha
apagada
uma pequena ilha
negra
porém, destacada
fora da regra.
morta, a estrela
chama minha atenção
dou trela
para aquele ponto
aquela escuridão
não me desaponto.
na estrela morta
encontro uma porta
que me transporta

cosmogônica

a Terra é mãe
fecundada pelo Real
evento sideral
pleno de Criação
emanação
regida por cada constelação
pelos astros
que conformam a psique
do mundo
que por milênios
foi deixando lastros
na consciência
de Gaia.

nossa humanidade
desde a mais tenra idade
exala divindade
por isso essa necessidade
de religar-nos
à realidade.

somos regidos
por deusas e deuses
imaginados
apenas em seus predicados
mas ungidos
no elementais
nas divindades naturais
por isso tão reais
espirituais
ainda assim
materiais.
o kiarô, Oxóssi

o kiarô, Oxóssi
filho de Oxalá e Iemanjá
caçador na noite
meu Orixá.

com teu ofá


faz da caça sustento
fartura e alento
para prover-me
cultura e estatura
para criar.

és vontade de cantar
escrever, pintar, esculpir, dançar
mas, também
plantar, colher, caçar, viver
ah, viver!

sou teu filho


em ti amanheço
absorvo teus encantamentos
teus talentos
conheço
a ti
a mim.

no teu trono
conhecimento
em tua comodidade
ergo meu templo
minha criatividade
admiro e contemplo
desejo ociosidade
para revoar
pensar.

penitência

subiu a escadaria
da igreja
para pagar sua
penitência.
a vela, acesa
seu maior desafio
pois, o pavio
andava bastante
curto.

cada um dos degraus


flamejava
ele, determinado
lacrimejava.

a santa pesava
menos que a consciência
por isso, precisava
da penitência.
Giovani Miguez é escritor, poeta, filosofante e caminhante. De Volta Redonda, RJ.
Atualmente vive na capital fluminense. Sou formado em Gestão Pública (UGB, 2008)
com extensão em jornalismo de políticas públicas (ECO/UFRJ, 2009), especialista em
Sociologia (UGF, 2010) e mestre e doutorando em Ciência da Informação
(IBICT/UFRJ, 2016). Autor de Quase Histórias: Est(éticas) Existenciais (Autografia,
2019); Animal Poético: Diário Est(ético) (Multifoco, 2020); Da Ilha da Poesia (com
Ricardo Garcia, Selin Trovoar, 2020) e, saindo do forno, Um Poema por Dia (Selin
Trovoar, 2020), Nem te conto e outros contos (Selin Trovoar, 2021) e Em terceira
pessoa e outros poemas (Outra Margem, 2021, prelo). Possui também quatro e-books
exclusivos para formato kindle
Os materiais com os quais os filhos do povo de Ar erguem
suas casas

Qué queréis que se haga con estos materiales.

Nada. Sino escribir poesia melancólica.

Stella Díaz Varín

metálicos, arenosos, plásticos, ruidosos

-- silenciosamente ruidosos –

ainda quando sob os efeitos do rugido do sol

ainda quando baixo o fatal encantamento lunar

entre argila e argila, magma obtuso magma

ainda quando em meio ao insondável escárnio e à ironia das hienas

tempo, gás, concreto

óxido, suspiros e ervas aromáticas

ainda quando embriagado de Divindade

ainda quando em êxtase e silêncio

ainda quando ruído em espécie

manuseado por apressados transeuntes

arrastando às coleiras

suas fomes impávidas e colossais

também as células e os órgãos internos e toda uma desnecessária e prolixa

anatomia da burocracia

sêmen, fluxo vaginal, saliva, lágrimas, suor e sangue

e sangue

sangue

as flores secas, ressequidas, esfarinhando no varal

expostas às intempéries insanáveis


recolhidas com um amor indecifrável e pleno

as flores, já sem cor, já sem vida

levadas num cesto de palha trançada

as flores e seus espinhos fálicos

arrastadas numa procissão inclemente

ante os olhos dos cegos / ante os olhos dos cegos

ante a esclerose múltipla de uma manada estúpida

que pisa com desagrado o chão

em seu caminhar trôpego em direção ao cadafalso

as flores, depositadas sobre a roca impenetrável

como uma oferenda ao nada / como uma reverência à tempestade

delimitam a estreita fronteira entre o centro e o centro do mundo

e, certamente, só o olhar mais puro pode tocá-las sem ser incinerado

ante esta terra

calcinada / infértil

ante esta cratera

o deleite de se sentir ainda vivo

e capaz de se camuflar de réptil / de árvore

ou mesmo de ave de rapina ou pequenino e subterrâneo dromedário

ante este espanto que não se desfaz

que não se rende

e que não comove ninguém além

do ébrio que tropeça ou da senhora que estende a cuia

solicitando cuspidas moedas

ante estes edifícios

e seus porcos que se criam como porcos e que se vendem como porcos e

que são em tudo incapazes de amar os porcos como a si mesmo

o que resta? – a túnica, a ética, o fígado


ante esses automóveis e todo esse pânico e essa histeria

ante o fantasma que é senhor e vassalo

ao pagar a si mesmo a corveia

dentro do círculo sacrossanto de urina e fezes

onde repousa o que não pode descansar

onde trabalha o que não pode se negar o atributo de infinito

sem misericórdia / só o louco não se rende

só nele se vê a pupila arder

e a fome e o esterco na mochila e a sede

/ ópera bufa / caminha sorrateiro e contente

e deixa para trás os que não são feras

já / já / já

até que espedaçada sua lucidez torna a devorar asfalto e alpiste

e abandona o picadeiro carmim

entes que sabem que a lógica é só um jogo triste

e que a realidade é só um utensílio doméstico onde não entra

o desdobrável / e toda a fauna e toda a flora que se recusam

a ser ornamento de corredores com cheiro detestável de

detergentes / ações das bolsas de valores / saltos

altos de madames edulcoradas

/ insetos que vivem nas rugas / e a avalanche

de antenas que entre os escombros grita / sussurra / a palidez

inevitável

atrás dos espelhos as acinzentadas e bestiais mais-sombras

e a miserável cumplicidade com a história sentimental da criminalidade

e ainda / atrás dos ombros / a mesquinharia

a torpeza / a finitude / a decrepitude / o sem-sabor


e tudo o que é capaz de se erguer de si e clamar ao leito esturricado do rio

atrás dos espelhos / atrás dos danos irrecuperáveis

só o amalgama do vento da morte ao suor dos hereges

é capaz de fazer nascer asas e asas e asas e asas e asas

nos muros dos becos onde todas as faces se reduzem à face

que tinham antes de nascer

o poema é uma guerra

onde convivem canhões fuzis e ogivas nucleares

onde coabitam todas as esperanças e todos os sofrimentos

de todos os seres da terra

o poema é um homem nu no deserto

andando em direção à uma mulher nua no deserto

que também anda em sua direção

o poema é uma oração

onde convivem nuvens divindades e tudo o que é mais atroz

o poema é uma chuva sobre mãos que se amam

o poema é um feitiço que nos toca os lábios e derrete toda violência

o poema é uma dor

que cava tão fundo quanto um tatu que escapa ao faro do cão

e à enxada do caçador

o poema é uma longa e sedutora madrugada

onde nada se perde e tudo se percebe transtornado

o poema é uma febre / uma conjunção de planetas em desespero

o poema é a paz feérica que se apossa de tudo quanto goza

de tudo quando morre / de tudo que

reencarna

sobre as retinas / e a obsessão peculiar por cílios e sintomas


/ grave / gravíssima / misteriosa e dona de si /

como quem guarda no peito todos os punhais que lhe atravessaram

nas noites de Andrômeda e também todos os soluços

e todos os piolhos e toda verve e toda consumação

escrita em latim no parapeito de fórmica e gelo

onde dorme o felino dependurado como uma estrela um morcego ou

um mamão no cais de um porto / no cais de um rio

num cais chamado Santa Rita / onde navega a cabeça de uma suicida

/ onde navega /

sobre o amor das mãos e a estação das chuvas / a poesia

/ ossos esfarinhados da saudade / breve

lição de anatomia / sem escândalo /

mas com hidrófobos dentes arreganhados /

parindo o amanhã / parindo / parindo / parindo

o uivo azul e impecável com que se veste a sinfonia da morte /

a poesia é uma obsessão à qual não se escapa

a poesia é a arte de extrair da palavra tudo que não é palavra

de sangrar o capote até o entardecer

de amar e em silêncio amar outra vez até que no amor pereça tudo que jamais

poderá ser amor outra vez / a poesia é um indício / um sintoma / um vestígio

um canto que retrata a si mesmo sem vergonha ou pudor

de exibir a poeira junto ao corpo incandescente /

a poesia é uma vagina enorme que me engole / que me vomita / que

transita dentro de cada órgão que trago dentro /

a poesia é a abóbada celeste irrepresentável /

é a carícia é os cabelos desalinhados é o estalar kamikaze da lenha crepitando

/ a poesia é o que está sempre em outro lugar e o mais leve roçar em seus lábios

queima / incendeia / faz cinzas de quem a flerta sem coragem


quem semeia sabe que a carne é feita de estremecimentos

ferrenha tosse entre os eucaliptos / patrulhas rodoviárias e

incensos / aroma de sexo / vertigem de sexo / sexo /

no dorso da cidade inscreve-se o pária que daqui há mil anos

será sua única recordação

/ homens de terno / homens enforcados nas próprias gravatas /

crianças queimando extratos bancários e contas vencidas /

o barulho do ventilador girando e botando em movimento o mar /

o mar que ainda quando azul é verde /

o mar que ainda quando morto é verde /

o mar que vemos nos olhos de quem amamos /

o mar que escrevemos quando abandonamos as âncoras /

o mar que é uma onça de água ou

o mistério da insônia

ou

o pêndulo acrobata e esférico rodopiando como um pião bailarino

nas mãos da infância / no sonho da infância

como um amuleto / como uma figa / como uma jurema ou

um juazeiro que toma de assalto o ar seco e sopra e sopra e

/ hálito / bafo / blues / ou quando a escuridão é ninho e

na recusa se guarda o que é horizonte e não desaba e

/ o pêndulo anti / o pós-arcaico-recusa-e-fertilidade /

mil janelas concêntricas, nenhuma parede de barro

separando os mortos da morte e o amor da traição e a mentira

do amanhã / o poema é sujo / o poema é exílio / o poema é escola

e teia – aranha que arranha os tecidos / os

tapetes e o chão
zumbido fraternal e pequenos insetos domésticos ou

quando

o medo / matéria-prima do êxtase / o medo /

arqueja à sombra de sua própria sombra / alimentando-se

do que não pode ser visto / do que não deve ser visto / do

que é algo à espera contrita de forma e que abraçado à sua mais

insignificante devassidãozinha não se curva / oblíqua / dissimulada /

como uma égua do século XIX puxando uma carroça de fogo saída de um engenho

e os segredos do que não é o medo ou aquilo que ele é quando

já não estamos mais aqui

aqui

o estado de graça /o estado larvar de graça / a graça vulcão em erupção / a

bendição em mim reza / o que não é daqui manifestado / incorporado à

cabeça do cavalo que dança e ao dançar é todo ele oração e seu êxtase é meu na

unidade de todos os versos do mundo reunidos em volta do mesmo

fogo / do mesmo pêndulo sem arestas / sem vértices / sem temor

o estado beatífico se arrasta na ladeira do Horto como serpente em

procissão regada à luz de lamparinas vivas / ao som de rojões e

própolis / e própolis / e própolis / e

a passageira sensação de ver aqui Ernesto sorrindo em seu caminho amarelo /

em seu caminho presépio / em seu caminho-caminho sorriso /

ebó / um prato de comida / farofa / farofa / farofa /

baião-de-dois e um lírio supostamente

branco

sim, é também toda uma cartografia do que é sujo o poema /

é também a travessia de um rio que não pode ser atravessado /


é a travessia de um rio que não se pode deixar de tentar atravessar /

sim, é uma cartografia das esferas inalcançáveis o poema /

é também um inventário das coisas que se dizem / das coisas que se fazem /

das coisas que só podem existir depois da meia-noite /

o poema é a língua obsoleta dos sinos do campanário /

o poema é amor e fardo / é o escuro depois da luz que clareia o túnel /

e quando os anjos se recolhem só o silêncio sem-cor cobre o mundo

/ e essa voz / úmida / abafada / liberta de toda torpeza /

e essa voz de tigresa / insistindo /

vem

dentro da noite veloz / dentro da noite escura / dentro da oxidada noite /

dentro da noite imóvel e imensa / dentro do útero / dentro do óvulo /

dentro da couraça de múltiplas e inúteis habilidades /

dentro do tabuleiro de xadrez / dentro da frieza que se abate sobre o soldado

na trincheira / dentro do fátuo fogo que assassina a primavera /

dentro do grito da poeta que pede ao rio que lhe conceda o asilo da morte /

dentro do que por ser tão opaco se abre repentinamente

como as cortinas de um teatro russo do século XIX

dentro do que é chamado de dentro pelos homens e mulheres e crianças

de fora – hoje, uma flor às águas

e o monopólio do segredo fraturado / roto joelho de javali em festa /

piropo, solidão, descanso

tigela de sombra e neve onde nunca / inferno

/ como se do outro lado o insustentável encontrasse as ferramentas para forjar

alicerce / estável alicerce da impermanência

a senda da justiça / as virtudes de esmeralda / o sorriso dos não-nomeados /

quem pensa quando se forma um pensamento?


até quando balançará a rede na varanda esse vento?

de onde essa voz que não cessa de subir esse rio

como quem perdeu qualquer tino ou bússola?

variações sobre o sal / vasto repertório à disposição do engenheiro /

arbítrio que se distancia de qualquer pragmatismo /

variações sobre o sal / variações / e quando nos meus dedos a memória de

outros dedos se ancoram / mamulengos / insensatos mamulengos transbordando

fúrias e amores intransitivos e que volvem a se reunir após o que os dispersa

ter soado / essas trombetas que alumiam / essas trombetas que /

improviso / é no corpo que a guerra cessa / é na matéria que se assina a trégua /

é na sebe erguida nas várzeas do gozo que serena o orvalho que

apascenta a fera / fera / fera / fera /

ferocidade da fé que o jangadeiro sabe quando se perde olhando as

estrelas na

risca

ainda o tema dos nomes

esses precipícios que os outros colam ao nosso corpo quando nascemos

ainda o tema do amor

essa força que se cola ao nosso corpo quando estamos fora de si

ainda a história da consciência

esses morcegos que gotejam entre as frestas das telhas quando nos abraça a insônia

ainda o corpo ainda

e a estrada assombrada com seus seres andrajosos

carregando às costas feixes de plástico e solidão

ainda a vertigem / ainda /

a vertigem e a dança com que saltamos a floresta de espinhos

ainda / ainda

ainda
o dia amanhece / o sol queima os últimos trapos da noite

desfaço-me das lembranças e caminho em direção ao semblante do Éden no horizonte...

nuno g.

Toróró, 07 de fevereiro 2021.


Nuno Gonçalves Pereira nasceu em Recife, mas é cearense. Publicou os livros Cacos
de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de navegação, Calabouço de reticências ou a
aridez do oceano, Canto das onças, Álbum de família & outros negativos. É professor
de História da América na UFRB e doutor em estudos latino-americanos pela UNAM.
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