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Iniciação ao Incêndio

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Iniciação ao Incêndio
(À beira da linha de ferro fundido um trem
descarrilhou decepando o instante)

Sérgio Ortiz de Inhaúma

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Quando ele caminha, o mundo tromba nos vãos, e com
ele, segue junto o sol, o concreto, as ruas, os becos, esgoto, suor,
mijo, unhas e dentes e cheiros...
O ar elétrico da infância transborda os mundos pelas
brechas.
Quando caminha, ele arrasta consigo as coisas, mas
ninguém vê.
Quem veria?

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Desde que não fui mais lá naquela
vez,
nunca mais fui mais lá e nunca mais
que te encontrei
te telefonei foi
tantas e tantas vezes e não consegui falar
nunca mais outra vez
como câncer em metástase
como gonorreia que não tem cura e
solta sua fúria na implosão do gozo.
Paisagem de plástico queimado,
Osso pendular em forma de sino soltando
As cinzas das horas. Quase um hino. Ou livro.
Sombras riscadas nos parapeitos.
A dimensão do limite tem
Um efeito de borboleta antes do crepúsculo.
A morte da alma que só pende inerte.
O trem descarrilhou em Japeri e perfurou meus olhos.
Em Cavalcanti.
Despachos trepando em postes são os bereguendéns dos
tempos que tão vindo. Iansã metálica girando os ventos.
As cambalhotas e um final de luz. Como ritmo
Mas isso tem tempos que não convém.
Olha, está tudo incerto.
Hoje tem sido o pior dia de minha vida
E não pude te dizer.
Queria soltar a alma, como dizem as crianças, deixá-la
revoando como pipa, dibicada com mãos em fúria, até que a
linha arrebente num cruzo ou com a força do vento, e a leve
embora, avoada.
Não tenho zapp e nem face e essas coisas
Só e-mail
E você não responde e-mail que eu sei que vc que me
disse.
Não tem tempo para essas coisas
Nem eu para outras.

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Eu sou como aquele jovem imigrante do segundo andar do
poema de um Ivanovich qualquer que se vira na cama
perseguido pela miséria de sua vida faminta e
desperdiçada, sem esperança de ter toda aquela beleza
que está fora do seu alcance.
Primavera Negra – Henry Miller

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Ano XI: A Varejeira Luminosa

É tudo tranquilo. Mas o espelho trincado rebate meu


olhar rachado.
Dor na cabeça olhos e fundo
Tem também o dente que não para de latejar.
Cuspo sangue.
não é um bom momento
nem agora que não estou mais por aqui, estou não,
Nem antes quando não me lembro das reviravoltas,
Dos contornos de seus lábios vulva, parte diagonal dos
olhos.
Não me lembro mesmo.
A extinção é o que guardo para mim, do passado que minha idade
não concebe. Lembro de chão inundado, pés descalços
chapinhando água.
Nostalgia amarrada em marimbas.
Estou sem dormir, inundado.
Mas preciso pensar num século qualquer. E de hostes
cavalgando,
o som de metal se encontrando
Esporas açoitando a carne dos bichos que galopam.
O cheiro da palha no paiol, da tulha arruinada, dos bichos
mugindo num curral.
Dois corpos se enroscando nasceram por ali, na lama, entre a
porteira e o Nascente saqueando luminosamente o céu
É tudo por demais sagrado. Como
um totem de madeira
que engolimos.
Ansiamos em novas vidas.
Como se fosse totalmente bom ontem

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Quando chego ao trabalho, ele não me diz muita coisa.
Depois de atravessar meio subúrbio, panelas batendo na lataria
de meu crânio, som de churrasco de gato obstruindo os
Sonhos que caem na gordura entre o meio-fio e a sarjeta,
Ônibus em solavancos, paisagem em tons
pastéis ao fundo, por cima dos quintais escancarados e
coloridos,
Desbotoa um cenário de postes e fios entrecruzados. Em
pane.
Ele me dá um esfregão, me diz para começar nos andares
inferiores, detergente, sabão, panos para enxugar o chão
gorduroso, as paredes espessas, as mesas e cadeiras pichadas.
Não penso em ninguém, mas penso em vc.
Penso em vc todos os dias, com a cabeça engatilhada e
os olhos famintos
E sinto na carne todas as vozes,
as vozes que vc deixou e não me
deixam dormir definitivamente
definitivamente me sinto rompendo com o tempo em que
estou circunscrito
Fragmentos de noite
Cores alçam voos como urubus açoitados
Desenlaçam tranças constroem racham a veia onde
navegam filamentos de sonhos
Espessura de temperatura granulada
Pétalas se estirando ao paladar das borboletas
Assim vc me vem todos os dias, como um vislumbre, um
bando de onças sonhadoras, uma vertigem tatuando minha
carne
Aquela sede sem voz entalhada em meu nome: a Guerra
Penso em vc de todas as maneiras. Mas vc não está lá.
Eu não estou aqui. eu não
Estou aqui. não estou. O dente dói. Algum deles. Lá de
trás.
Fico pensando em sua carne empinada, na quina de
minha cama, entreaberta, parte líquida, cheiro de alfazema, leite
de rosas, úmida, flor lubrificada

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Pensei nela em instantes, quando entrei no banheiro do
trabalho, as fezes moles com cheiro de azedo e cerveja de um dia
anterior boiando na água, a imundície percorrendo todo o lugar,
a sensação asquerosa
Mijei por ali mesmo, dei a descarga, entupida, por favor não dê
a descarga
Transbordou um pouco respingou na minha canela.
Senti o teto rodopiar, a sensação de morrer está em quando?
Mas no meio daquilo tudo que me pedia para morrer
pensei em seu talho quente. Pensei
E como poderia não pensar?
Olhando o espelho do banheiro abri a água da torneira
da pia que caía sem interrupções o ralinho gorgolejando
E me lembro daquele dia que vc foi embora e nunca mais
Lembrei sim. Tenho aqui comigo em algum lugar. Vc não
deixou endereço nem lugar onde ir.
Não deixou nem nome nem rastro nem cor nem nada
Ninguém sabe pra onde tu foi. Pensei cá comigo que vc ao menos
pra mim me diria alguma coisa.
Olha, pensei que teria alguma consideração de sua parte, mas q
tolice a minha.
Não há considerações sei muito bem disso.
Não têm.
Olhando pro espelho não vi nada só seu talho pela
superfície trincada. Como sinto falta de seu talho.
Sinto sim demais muito mesmo
Olha como penso em vc enquanto me masturbo, essa
punheta enfadonha que bato todo dia no banheiro do trabalho
esse trabalho que Deus do céu um inferno, mas silencioso. Só
eu e o outro sujeito todos os dias. Ele me dá o esfregão sabão
detergente e me diz onde começar
Onde estávamos mesmo?: ah, sim, me lembro, tô aqui
numa punheta, daquela ingratas, a mesma todo dia no trabalho,
antes de eu lavar o rosto na pia do banheiro deste lugar em que
passo quase o dia inteiro.
Muitas explicações, isso que mais me aflige.
Não há lugar em qualquer canto.

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Enquanto me masturbo aqui ó, sim sim sim, ó, a cabeça do meu
pau incha, sinto o caralho meu mesmo que aperto na ponta com
as mãos e meu pensamento em vc, em vc sim, meu membro
inchado veiúdo penetrando seu talho quente
Empinado na quina da cama, correndo a face úmida das paredes
de tua boceta, quente, carnuda, com odor gosmento e bom muito
bom, descendo o canto de minha boca enquanto te chupo, lambo
teu clitóris como sino, e meu pau dilatado e soltando porra no
seu útero
Sua calcinha lilás que tanto amo e que beijo em todas as partes
E vc rindo dos poetas infelizes que vc dispensou dia após dia
Posso me sentir privilegiado? Tranquilidade, sei que sim. Sei que
posso sentir isso.
Mas vc não está mais lá. não está não.
E aqui sozinho neste banheiro entupido fedido a fezes eu
gozo na minha própria mão
sem saber por onde vc anda ou foi.
lavo a mão. Lavo o rosto. Sinto a carne frouxa, relaxada,
os olhos voltam a amolecer, a cabeça querendo cama. O odor
volta. Volto ao trabalho.
Tenho de começar pelo andar de cima com o esfregão.
Lavando corredores e escada, limpando as mesas e cadeiras,
tirando o lixo pra fora.
Pensando em como viver mais um dia
E não me suicidar por completo.

A sombra do vendedor de balas perdida


entre os faróis um facho de luz trucidado rebate
Tudo vem exatamente num instante,
A noite quica dentro de si,
em seu ventre negro, na cor da luz de sódio dos
reflexos
Do odor entrincheirado nos antros,
No sorriso das putas se desentocando
Na velocidade larápia dos que não tem nada
Nem quando podemos sentir a carcaça de uma rua qualquer
enchida de
urina beirando à Leopoldina,

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ar bêbado pois estou andando embora pra casa,
sem saber o q lembrarei pela manhã a cabeça chacoalhada pela
ressaca
tentando reaver os instantes beijo
A chuva de sangue beija meu corpo
onde antes q eu saiba onde chegar lá pro Horizonte
Onde percorre a queda dos pedaços de corpos e chego atrasado

novamente em casa
depois de andar e cruzar o subúrbio dentro do ônibus
completamente lotado e carros
açoitados pelas luzes úmidas que caem sobre
suas carapaças metálicas. E dentro dos ônibus aos solavancos
seguimos diariamente até o que chamamos de lar
rumo à extinção santo dia todo dia santo
deixo o trabalho pra trás. Volto pra casa. Três meses de salário
atrasado. Quanto tempo trabalho lá? três meses segundo sei
o chefe não conheço o empregador que me deu o cargo tão digno
de nota é o mesmo
que me dá o esfregão e o balde e os panos e detergente quando
assim que chego no
começo do expediente. E tem a punheta antes de começar o
serviço,
todo dia naquele banheiro do serviço
e depois subo os andares e vou descendo limpando cômodos,
mesas cadeiras, corrimão escada
menos o subsolo, abaixo do térreo onde segue um único corredor
que leva até uma porta de mogno escuro
ainda não fui até lá o sujeito
que me dá os utensílios do serviço disse que ali não, menos ali,
que não precisa de limpeza
ainda não.
]sinto a carne das máquinas deslizando em meu corpo
Rebatendo em cada canto
Das sombras de meu estômago fechado e artérias e limbo feito
de sangue e vísceras
Os Orixás são as cantorias que retumbam na imensidão
De meu ventre, olha, às vezes esqueço que existo

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Assim, quase repentinamente, despojadamente

Perguntei pelo salário dia desses e ele disse, aguarde


Tudo bem

E sento sobre minha cama que fica na sala


Pois no quarto, o único da minha casa apertada que
chamo de cubículo deixo vazio e como um pedaço de alguma
coisa e mergulho num molho de carne que fiz dois dias atrás e
deixei na geladeira e requentei assim que cheguei em casa
E a programação pisca comerciais
Propagandas
Sorrisos demais olhos trancafiados, cores sacolejadas por raios
catódicos permanecendo,
E uma dimensão invertida na contração das imagens,
a repugnância, o nojo, a vida rebaixada ao ridículo e sonhos
paralíticos
Cabeças estufadas na hora de ser decepada
Penso em glórias. Mas consigo ficar sentado. Sofá.
Penso na chuva que se anuncia quilômetros daqui. A
chuva começa pelo leste, pouco depois das bandas de Irajá,
embora eu não saiba bem a localização das paredes e tetos, dos
sorrisos e vidas e tentativas por entre eles.
Começa escandalosa a chuva, arrancando a quentura do
concreto e asfalto
Paredes que
começam a chiar
o insulto de meu andar intacto
sente o correr dos carros
ao atravessar as luzes que
rebobinam o ocaso
o vento desmanchando a paisagem por instantes
desacelera
eu penso em dormir eu sei disso
mas amanhã não haverá o menor sinal
de vida
e sinto lentamente o sereno das ruas
cobrir lentamente os carros e vidraças

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os parapeitos a lentidão da terra que
gira e rodopia ]
e o cheiro constante do amanhecer que
chegará
é por detrás deste longo mundo
eternamente pequeno nas hastes
por todo sempre
que se ajeita uma escuridão ínfima
e os latidos do cão invertido
e tem aqueles dias que vou ao puteiro
daqui sentado penso neles, quando se aproxima meu pagamento
que aliás tá atrasado há três meses
o impulso da carne que transborda e não consigo mas acalmá-
la dia-a-dia no banheiro do serviço
e sem outra maneira de conseguir
mulheres
vou ao puteiro sem-vergonha perto da Estação de Bonsucesso e
assim que chego o funk estourando o cheiro forte de perfume
xereca esperma e álcool e luzes ribombando em nossos olhos
caindo sobre os homens que riem e bebem e
as putas dançando, mostrando a boceta sarrando numa barra
de ferro que vai do chão ao teto no meio do lugar e outras
sentando no colo de seus clientes
oi amorzinho vamos fazer uma fodinha gostosinha
e me achego num canto e me escoro na quina como um
grito que vai perdendo o som e se desfaz em eco
beberico minha lata de cerveja que ganhei de brinde
junto ao preço da entrada
]o som das máquinas de música estourando o ambiente
Retorno no tempo
Mas o passado é outro
Indistinto
Segue meus passos pulverizando as lembranças
]minha imagem refletida nas camadas vítreas que vou
perfurando
Uma das putas se aproxima. Seus dentes reluzem numa camada
de fosforescência. O mundo acabou e nos esquecemos de
morrer. Ela senta ao lado. amorzinho amorzinho. Eu não digo

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nada. vc é de onde? Respondo que moro em Inhaúma, mas me
lembro logo assim que não moro mais lá, mas perto, e digo. Ela
ri. Coitadinho, todo confundidinho. Ai amor, quer fazer um
programinha não? Um amorzinho, só nós dois. Juro te chupar
todinho, dou até o cuzinho.
Onde eu fui parar, Nosso Senhor das Comidas e Esperanças?
Vou naquele puteiro pq é o mais barato segundo minhas contas
de desvalido. Já estive entre os encostados, sim, Senhor. Já tive
mais fodido que mendigo de porta de igreja.
Filas de hospitais, de subempregos, de trens, filas de
reformatórios, nas filas do sopão pra mendigos, nos albergues
para indigentes, pulgueiros...
Etecetera e etecetera. Mas quem nunca teve na pior? Que
cota de miséria é preciso pagar dia-a-dia? Ninguém nos diz, eu
sei.
A puta se aproxima com seus braços e peitos. Ela não
tem bom hálito, seu cabelo é sarará e encaracolado.
Se eu subir pro quarto com ela, vai ser a última. Como
disse, tô com salário atrasado, e segundo meu empregador, que
me dá o esfregão, balde, panos, detergente sabão, sabe-se lá
quando irão me pagar? Aquele puteiro não é dos melhores, mas
não é um pegaprácapar. Depois dali, sem dinheiro, só o pra
barriga e olhe lá, só indo mesmo no Sujão, uma rua grosseira no
fim de Bonsucesso.
É o diabo!
Porra, no Sujão vai ser foda, penso.
Subimos.
Devoro o olhar sobre o corredor que nos leva ao quarto. Sua
bunda balançando à minha frente.
Já tô até de pau duro.
Chegamos no quarto. Ela pede pra eu esperar, claro. Ganhar um
tempo, dizendo que vai lavar a menininha pra ficar cheirosa pra
mim. Que vai pegar a camisinha, essas coisas e outras.
Eu me sento fingindo acreditar e ela sai e fecha a porta. Ouço
outras putas nos quartos ao lado, que não são quartos
especificamente, mas cubículos separados por paredes que nem
chegam ao teto e tem um vão entre elas.
Vai vai vai vai vai vai mete gostosinho, isso isso isso isso isso .

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Rá rá rá ugh ugh ugh ugh ugh... isso sua putinha isso sua
putinha, deixa eu comer essa bucetinha, isso putinha,
Vai amorzinho, isso, mete na sua putinha, me dá leitinho
Me dá leitinho, isso, dá leitinho pra sua putinha
Tento pensar em minha vida, naquela que me deixou.
Nunca mais a vi. Procurei-a de todo jeito e maneira e nada. nada.
Sumiu-se.
Quando voltou, a sarará levantou uma camisola
vermelha, cheia de decotes, e sua pele tinha um óleo, não sei se
de amêndoas. Ou leite de rosas
Chegou faceira, arrebitando os lábios, cheia dos sorrisos,
a boca carnuda, metida num batom roxo como o violeta na caída
do crepúsculo. Veio chupando uma Halls preta, que lhe
melhorou o hálito.
Caí na carne tenra, amaciada, feito louco, tirando com
pressa a roupa e cueca, desequilibrado, quase caindo no chão.
Tudo
por demais do bom e do melhor.
]meti a boca em sua boceta, estufada, os lábios com o mel
descendo, lambi,
(Buceta de puta não se lambe! Boca de puta não se beija!),
pobres amadores, desconhecem a carne desvalida dos antros,
dos inferninhos, das ruas escuras e retorcidas. Ali habita a seiva
do submundo, o matagal espesso das bocas cheirando a álcool,
Do suor e do esperma, do algodão para prender a descida do
sangue sujo da menstruação,
Do pó, da maconha, dos olhos infiltrados pela fúria da noite.
Não chupar boceta de puta é um ato profano. É necessário isso
esse rito sagrado de pomba-gira alucinada no fim de rua, de
terreiro, vergastando a alma, alucinando as moléculas. Fazendo
a carne tremer e tombar, pra um outro dia, pra uma outra vida.
Ela serpenteou a língua em meu caralho, e fomos nos
enroscando feito cobra siamesa, duas cabeças
Dois sexos trespassados um no outro,
Quatro olhos em dois,
Bocamutúa que sente e sopra o ar imortal da noite.

Ao trabalho percorro novamente para um lugar

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Que não me diferencia ao
Que minha volta está e a paisagem através de mim
Espero na fila do ônibus, no ponto final,
As pessoas olhando estafadas umas para as outras esperando o
ar da misericórdia que lhes tirariam do estado em que se
encontram
Nada acontece,
As luzes do amanhecer esbraseia em volta
Varrem as nuvens tingindo as nuvens numa coloração
vermelha-sangue longe de todos nós, impossível alcançá-las
nada além dos olhos e onde a vista alcança.
O tempo morto que roça minha pele
de lava e Vesúvio
estou morrendo junto
com as pedras ricocheteando contra a eternidade
e fico convexo na curvatura do mundo
mas dentro do ônibus, vamos nos espremendo pela roleta, um a
um a adentrá-lo e sentando nos assentos, os primeiros a entrar
ouvindo o som de sacos de biscoito sendo abertos
soluções, espirros, esperneios,
é sexta
e felizes como vacas a serem abatidas, com
seus estrebuchos de cães esfaqueados eles comemoram
rasgando murmúrios
mais uma soltura, daqui a pouco, no fim do expediente,
]trancafiados no tempo que os repete
Dia após dia
Os dias se repetem
Acordei pela manhã junto deles e o mundo permanecia o mesmo
]através dos reflexos que se desenham em meus
Olhos
entretanto
O ônibus percorre os subúrbios coloridos
sonhos encostados nos muros com cacos de vidro
E constelações de granadas caindo sobre os telhados
Chupando a realidade
Para dentro do caldo dos sonhos
e as cores.

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Quando chego no trabalho o sujeito me dá o esfregão, vassoura,
um rodo, panos, um balde e o carrinho onde se encaixa o balde
e o empurro, panos, ah sim, já disse panos, sabão, detergente,
luvas, que não uso.
Antes porém
Vou ao banheiro naquele esquema que já disse. Penso na puta
de algumas noites passada, mas também penso em vc, sabia que
ainda penso, sabia?
Não sei se sabia, mas pensei sim e como que pensei.
E aí entro no banheiro como de sempre imundo, a privada
entupida,
Segundo os místicos contemporâneos o Graal Pútrido,
A Privada, a zona de troca, o lugar de transferência entre nós
e toda imundície que mergulha pra debaixo de onde pisamos,
entre os canos, manilhas, escoadouros, e descem para os rios,
mares, para os valões, as valetas e esgotos a céu aberto, o diabo!
Toda uma complexa e intricada Rede onde
Escoa o líquido escuro, a imundície nossa de cada dia, o Resto
de nossos corpos em dissolução.
Haverá uma dissolução, participaremos todos dela, que
irá nos tragar para eternamente precipitando no infinito.
E perto da pia, cuspo sangue de um dente furado, de
uma cárie do tamanho de uma cratera e que dói quase todo
santo dia e lateja e tomo novalgina para estancar a diaba da dor.
E olho para o espelho trincado, como o lá de casa.
não pode dar a descarga, diz o sujeito que me dá os utensílios
de trabalho, que daqui por diante chamarei de encarregado.
Então o encarregado me diz o que fazer, e tem de começar
pelos andares de cima, varrendo o chão dos corredores e sala,
depois jogando a água com o detergente e sabão e esfregando,
cada parte, cada canto, e descendo as escadas, limpando-as
também, passando um pano úmido nas mesas e cadeiras,
ajeitando o q estiver fora do lugar,
e tirando o
lixo e jogando na cacimba lá embaixo. Mas o andar no subsolo
não, lá não. Não é pra ir lá, não é pra limpá-lo.

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Olho para o espelho trincado e penso na puta, e em vc,
claro. E olho de rebarba, como se eu não estivesse de frente, mas
de banda e fricciono a cabeça da pica e o prepúcio,
o membro duro ponho pra fora que quase encosta na pele
fria da pia.
E assim vou friccionando com mais velocidade à medida
que as coisas se somam e somem de minha cabeça ao mesmo
instante, penso nisso, sim, e vou lembrando dos contornos, da
carne úmida derretendo em minha carne e o sabor de cada curva
e beijo seu e delas e de todas que nunca terei e vão se
misturando feito uma avenida invadida pelo mar e arrastando
tudo, carros, gentes, barracas, vidraças, guardas, sinais de
trânsito, postes, fios desencapados, olhos e cheiros, a canção na
boca de um office-boy apressado, os sonhos dos que nada têm e
escoando pelo mar eu carrego a cidade com o jato quente que se
prenuncia pelo furo da uretra e a glande inchada e esporro sobre
o chão do banheiro com cheiro de merda e mijo. E enfraqueço,
sinto-me bem amigo de todos e tudo, e até quero chorar de tanto
que amo a vida.
Lavo as mãos e vou ao andar lá em cima, o último deles.
começo por lá, ajeitando as mesas e cadeiras no fundo de
cada sala, e enchendo o balde de água no banheiro de cada
andar.
Jogo a água nas salas e corredores e vou passando o
esfregão, limpando em cada canto, enquanto a água com
espuma enegrece com a sujeira e vou jogando água até sair todo
o sabão e com o rodo vou puxando a água para o corredor.
O sol entra pelas vidraças e acende meu cenho. Esquenta
tudo em volta. Vou metendo o braço na frente dos olhos para
não me cegar e olhando o chão continuo meu trabalho
Que diabos fazem ali toda santa noite e madrugada que toda
manhã preciso meter água e mais água pra sair aquela
imundície que desconheço?
Depois ajeito as mesas e cadeiras e as ponho no lugar, depois
cato o lixo e jogo por um fosso que passa pelos andares e termina
por cima de uma cacimba de lixo lá no térreo.
Água
suja

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vai
escorrendo
pelas escadas e vou puxando-a com o rodo até que a
lanço nos ralos que há em cada andar.
Trabalho enfastioso e cansativo.
Pela tarde como alguma coisa junto ao encarregado.
Pergunto pelo salário e ele diz que em breve. Tudo se
ajeitará. Digo a ele que tô com a barriga na miséria. Ele me
empresta qualquer coisa que diz que depois desconta do salário
e tudo certo.
Não digo nada.
Me sinto cansado, as costas doendo, as articulações.

De volta pra casa


Em minha cabeça fervilha um elefante colorido que vejo na fugaz
dimensão de meus olhos correndo por dentro do ônibus
enfeitando uma sacada, alguém Passando luzes refratadas
, o churrasquinho sendo feito em frente a um boteco de péssima
fisionomia, a inchada cara de um Buda grafitado num muro,
A distância poluída acima de mim de um viaduto cheirando a
mijo, as imagens das cores que vão escapulindo em meus olhos,
Uma rua futura e escura onde guardo trechos de sonhos
quebrados e sentimentos banidos
Som ensurdecedor de um rádio ligado em péssimo volume, o
escapamento dos canos de descarga de pesados caminhões
vomitando uma fumaça escura,
A quentura dos motores próximos
A cidade vai encravando seus trechos em cima de mim e minha
carne tremida feito um solavanco que nos estremece e estala o
esqueleto entranhado na carne.

Quando fui à sua casa,


Fazia um sol tinindo esbraseando a tarde. fim de semana, não
que isso fosse sinal de bom tempo.
De todo modo cheguei ao seu apartamento no começo da tarde.
Depois do almoço se não me engano.
Eles já estavam num pé de discussão, que eu não sabia quando
começara e se tinha prazo pra terminar.

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O sujeito era um dos piores que já conheci. Nem
sei pq matinha algum tipo de ligação com ele. Talvez fosse o fato
de não conhecer quase mais ninguém e minha vida esboroar por
aí sem crédito ou coisa que a valha.
Assim que cheguei, como dizia, eles tavam em pé de guerra. Ele
tinha um pouco mais que quarenta
Ela nem vinte, ao menos na aparência. A diaba era bonita que
bonita.
Não sei como ela foi se meter com ele, logo com ele.
O cara era tão devasso que quando cheguei, ela ainda tava ao pé
da cama saboreando esperma a lá bolonhesa de tamanco alto
escorado num canto,
E eu tinha meu dente sangrando na boca,
“essa aí tá chorando e soluçando como uma vadia ingrata que é
conhecida”, ele disse, apontando pra ela, perto da porta aberta
do quarto.
E riu ele, sem camisa, de cueca samba-canção, os peitos
peludos,
Uma calvície lhe comendo os cabelos já a partir da testa,
Ele apontou pra mim e disse:
“sei que tu se amarra num café, né, tem pó ali no armário,
apronta um aí pra gente que vou dar um jeito nessa cadela”
Saí do quarto, e fui para cozinha
Ao lado. peguei o pó, o coador, e pus a água pra esquentar no
fogão imundo que havia. Na curiosidade
Abri uma das panelas em cima do fogão,
e tinha arroz azedo já, devia de tá dias ali.
E outra de feijão estragado. O ar podre dominou a pequena
cozinha.
Tampei logo as panelas. Bateu uma ânsia de vômito indomável.
Fui pra uma janela, que havia na sala e dava pra rua. Abri uma
fresta, respirei o máximo de ar puro fumacento de lá de fora que
podia e voltei pra cozinha.
Os dois continuavam em pé de guerra.
Fiz o café, em meio aos gritos dos dois. Ouvi uns tapas,
uns safanões e o som de um corpo estabacando no chão.
Cheguei com meu café num copo, e outro, que dei a ele.

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Ele me agradeceu sem palavras, apenas com um sorriso
meio torto na cara e bebeu do café.
Ela estava caída. Eu ia ajudar, mas ele me olhou como
se dissesse: “em briga de macho e fêmea não se mete o caralho
da colher”
Eu não disse nada.
Rastejando pelo chão, ela voltou ao pé da cama, apoiou
as mãos sobre o colchão, e os joelhos sobre o chão, e num
esforço de quem precisava voltar à vida, mas não sabia como,
ela sentou-se novamente
Ela estava só de calcinha, os peitos medianos e pontudos
de fora. Quando ela rastejou, sua anca e nádegas empinaram, e
apareceu uma parte dos orifícios de sua vagina e ânus, embaixo
da linha da calcinha preta.
Ela então se sentou
Ao pé da cama. os joelhos vermelhos, a cara vermelha,
efeito dos tapas.
Continuou a chorar
“pare de chorar como uma cachorra sem coração!”, ele
gritou.
“diabo pro inferno sua vadia imunda!” e riu e tomou
outro gole do café. Me aproximei dum pequeno guarda-roupa
que havia ali perto e fiquei olhando a cena. Como num cinema.
Ela desbotou, levantou o rosto para afastar os cabelos do
rosto, mas as mechas caíram novamente no rosto, os olhos
fundos, os lábios intumescidos. Mexeu: “não fale assim comigo”,
esperneou.
Ele se aproximou, levantou mais o rosto dela pro alto, na
direção do rosto dele. Como um gesto de carinho que não existia.
Ela sentada, com a cabeça na altura da cintura dele. Ele a olhou
fixamente, e cuspiu em sua cara.
Ela passou as mãos no rosto, freneticamente, enojada
com sua vida e existência, limpando o cuspe grosso e borbulhoso
de sua cara, enquanto soltava um berro de choro. As lágrimas
caindo sobre seu rosto saturado por uma expressão de
desespero.
“falo sim sua vadia! Uma vadia que minou e corrompeu
meu irmão dia-a-dia. Mas também não me importa, nunca tive

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muita consideração por ele. Não era lá um bom sujeito, confesso,
mas não precisava de uma imprestável como vc”
Dei um gole no café.
“não sou assim, vc tá fazendo um juízo errado de mim”,
ela disse, com a mancha vermelha em sua cara estapeada.
“tô não! Vc, enquanto meu irmão ainda vivia, esfregava
essa sua xoxota quente em minha cara, e se não fosse pela
mínima consideração que tinha por ele, eu poderia ter te
molestado sem nenhuma resistência de sua parte”
“não é bem assim...”, ela choramingou.
“é sim. Vc veio até a mim pedir dinheiro? Foda-se! Pq não
ofereceu essa porra que tem entre as pernas pro primeiro porco
tuberculoso que se arrasta por essas ruas? Vc só serve pra isso
mesmo”, ele riu livremente. “faça como eu...”, continuou, “nunca
pedi nada a ninguém nesta merda de mundo, e cheguei até aqui
do jeito que deu, sobrevivendo nessa fossa que Deus nos
afundou e jamais abri meu cu na direção de ninguém”
Não suportei mais. Falei que ia ao banheiro. Mas não fui,
deixei o copo de café na pia da cozinha.
Dei meia volta, abri a porta da sala na surdina e meti o
pé pra casa

Em algumas noites, eu entrava na net, e mesmo sem


perfil em nenhuma das redes sociais, tinha vezes que eu jogava
o nome de alguma conhecida minha no Google e, por sorte,
algumas delas tinham perfis desbloqueados no Instagram.
Então eu clicava em algumas das fotos, e ficava
visualizando-as o máximo de tempo necessário, para guardar a
maior quantidade de referências possíveis, daquelas mulheres,
e alimentar minha bronha pela manhã.
Toda santa manhã, no banheiro imundo do trabalho.
Claro,
também batia uma ali mesmo, em frente à tela do
computador, pra não perder a viagem.
Eu ficava olhando seus contornos, os detalhes de seus
corpos e rostos, tentava guardar em minha mente tudo que fosse
possível, daquelas imagens que roubava pra mim. Mesmo

26
sabendo que aquelas mulheres, que muitas vezes eu via na rua,
próximas a mim, eram-me inalcançáveis.
Penso em vc também, mas nunca ousei te procurar pela
net e nem por outro qualquer lugar.
Minha
cabeça ia ficando sucateada com aquelas coisas. Queria
mesmo, era dar o troco ao silício, mostrar a ele que quem ainda
tava no páreo era o carbono.
Mas logo em seguida me lembrava que eu não era feito
de carbono, mas de fogo e de ruas. De Subúrbio, de sol
incandescente!
Nada do que eu queria, acontecia. Ainda não. E ficava
ali, com meus olhos perfurados pelas cores e luminosidade
daquela tela, o fluxo de dados por detrás das imagens.
A tal Rede que nos comunica com o mundo.
E depois de sete, oito bronhas, perdido em sites pornôs,
olhando esperma despejando em orifícios, em bocas, seios, cus,
bocetas,
Eu adormecia com a cabeça sobre o tampo da
escrivaninha onde estava o computador.
Cansado, esbodegado, afogado em minha existência
ratuína.

Na maioria dos fins de semana eu não tinha o que fazer.


Eu morava em Cavalcanti, num cubículo que deixaram
pra mim. Havia uma igreja na esquina de minha rua. Católica.
E um bar-padaria, no outro lado da rua, na esquina também,
onde havia um ponto do Jogo do Bicho, e um sujeito de barbas
longas, que fazia os jogos.
Uma avenida cortava o bairro mais à frente, e ao lado
dela, havia a linha de trem, margeada por um extenso muro.
O cubículo em que eu morava ficava num alto de ladeira,
então da janela de minha pequena salinha, eu podia ver as
coisas lá embaixo, inclusive a linha do trem.
De vez em quando eu lembrava de quando era moleque, e via
aquelas varejeiras verdes, paradas no ar. Eu tentava alcançá-
las, dar um tapa nelas, encostar nelas. Mas nunca conseguia,
eram rápidas demais.

27
Eu enchia uma caneca de café, e ficava olhando o trem
passar de quando em vez pela estação, fazendo o metal da linha
férrea chiar.
E perdia os instantes

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Ano XVI: Animais banidos

Sinto a cidade viva, toda vez que percorro suas ruas, e


sinto o cheiro de suas entranhas prenhas.
Penso nos cães revirando os lixos, dos sinais de trânsito
piscando,
Da gíria em compasso de metralhadora gritando as
mercadorias por debaixo dos panos. Eu percorro a Avenida
Presidente Vargas ela se abre pra mim num menstruo,
o cálice do sangue infértil se debruça em meu paladar.
O óvulo não fecundado se infiltra em minha espessura, e
lanço fetos mortos através de meus olhos.
De um lado, a mulher grávida interrompida se ajeita
dependurada em minha mão, do outro, a velocidade de meu
tempo que hesita
Estamos todos na Central do Brasil, e é um dia antes de
todos os outros, antes do primeiro deles.
Todas as caras e bocas beiços e maltrapilhos, os dentes
entranhados na gengiva, o olhar em direção foco persistente, os
mendigos tamborilando latas, cartas arremessadas,
O assobio do trocador destilando um samba,
Duas galinhas arrastadas de asas presas com barbantes
enroladas em jornais,
Funk arremessado sobre os ponteiros,
O delírio de gentes e cheiros,
Cabeça de porco descarnada, pedaços suínos
dependurados
as bancas desfolhadas nos jornais; as cabeças tortas
de pensamentos tortos.
Tenho de aprender novamente, tudo. como voltar a viver,
e fazer o corpo sentir isso. Pois estou morto, instantaneamente
morto.
Não,
creio que não,

29
é que ainda não nasci.
A respirar de novo, a andar de novo, a comer e beber
novamente. Nem comecei a engatinhar, me rastejando no
terreiro
E onde todos estamos, de um lado, discute um homem e
uma mulher, pois ali perpetra o cotidiano. É preciso tbm toda
manhã, mais que qualquer coisa
Do outro lado as costureiras, e nada se passa.
uma lentidão que corre as linhas.
Acordar novamente, com o corpo antes da
vida, e fazê-lo viver. Pq todo dia será apenas um dia, um único
e irremediável dia, e nenhum vínculo com antes e depois. E a
cada um, sensoriar de novo, andar como bebê de pernas moles,
sentir o odor verde das plantas na primeira vez.
Dar ar ao tempo, sangue nas veias, um lugar para sair a
imundície, outro para repuxar em luzes o que dança no mundo.
Eu ainda não sei ver, e nem ouvir. Tampouco andar.
Como um bebê. Já disse, vou engatinhando no chão, tateando
as coisas invisíveis.
É meu primeiro dia nesta cidade.
Penso e olho na cor mogno, um armário,
lá fora a madrugada filtra as mazelas e as
ilusões que deixaram a carne quente e bêbada.
Pedaços de contrabaixo, tufos de lábios leporinos, Nelson
Cavaquinho,
Zeca Pagodinho, Agepê
Schubert, a canção de vidro na cachoeira
bombeada.
Seu olhar expele um requebrado,
E tenho de sonhar os fantasmas depois que a carne
se fora.
Vc jamais esteve aqui. e não podemos sair de onde nós
estamos.
E agora ainda naquele tempo,
Uno com a luz q reverbera
Podemos ter a fuga que desenhamos com nossas escuridões.

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Dia Antes-0

Sou uma criatura sem reservas de qualquer tipo.


Em meu mundo inabitável e sem recursos,
avanço por fora dos limites do tempo.
Mergulho nos subterrâneos da carne,
no caldo primordial, onde pulula os genes,
entre um elo perdido e o sem fundo da antimatéria, atinjo um
passado indescritível.
Possuo em mim o sentimento e as lembranças de todas
as raças perdidas,
de todas as outras ainda existentes.
Minhas veias carreiam sóis diluídos entre as hemácias.
Mas estou retornando.
Estou retornando novamente ao meu quarto ácido,
úmido, cercado de pedaços de sonhos, entranhas de
sentimentos espalhados, de livros desparafusados, ao coração
de aço eu volto.
Volto novamente à
minha rua de que nunca saí batizada pelo sol quente como o
inferno gotejando do bule piando no fogão, a água fervendo o
cheiro de pó de café dissolvido, a eletricidade das estrelas se
raspando,
então troco minha pele e vivo energizado em supernova
os cabelos desentranhados a cabeça em tempestade os olhos
iridescentes topázio em brasas.
Volto novamente ao esqueleto de meus antepassados a carne me
deixada por meu tataravô urinando na terra antes do temporal,
dos açudes transbordando da carne dos pássaros estraçalhados
no vendaval, os animais se escabeceando dentro do curral e por
detrás da cerca. Estou novamente por fora e sinto todas as
coisas novamente e o que é bom e o que é ruim prestes a ser
deixados para trás.
]Estou novamente com meus cinco anos de idade e
sinto o cheiro do cabelo raspado pelo barbeador, das bolas de

31
sangue coagulando nas palmas de minha mão na noite em febre.
Estou novamente com setenta anos ouvindo os gritos gotejarem
sobre os telhados de zinco, das árvores envergadas pelo vento do
cheiro forte do asfalto recém cobrindo as ruas.
Ouço de uma só vez os azulejos se partindo a ardósia fria
sob meus pés enquanto assistia uma prima meter a borracha na
boca e inflá-la de água e depois o sorriso e sinto o resguardo da
vizinha, de uma mulher parindo no filme, da madrugada de rato
moído e do choro desesperado de um corpo ausente ecoando
pelas ruas.
Penso novamente em Cristo tateando as
colunas dos séculos, e sou um homem antes daquele judeu
obrigado pelos romanos a ajudar o nazareno a carregar a cruz.
Era eu um árabe, um egípcio, um persa? O que sei que me
neguei a carregar a cruz e fugi antes das chicotadas. Fui
suprimido do Livro, como um cancro que pusesse em risco o
todo do cânone.
Me sinto bem de não pertencer ao meu século e as
sujeiras que inadvertidamente lhe põe em evidência. Não possuo
evidências nem referências nem limites de vida.
Não luto pela vida.
Mas sobrevivo como filete de água escorrendo entre as pedras.
Todos os dias se encontram dentro de mim, até os que nunca
me passarão, e os que sinto como perdidos. Eu tenho todas as
caras os ossos a cartilagem o desespero a alegria que vi
escorrendo em cada canto de rua, de casa, de prédio, em lugares
em que adentrei sai chorei,
em que ajoelhei diante do nascente como invertebrado
tateando os fragmentos de luzes que rebatem sobre as vidraças
e caem moídos sobre os pavimentos. Eu sinto o cheiro de esterco
escorrer sobre os rios de minha existência, sinto o cheiro
encharcado fecundo da cadela molhada, emagrecida, latindo
contra as sombras dos cajueiros, das goiabeiras em que trepei e
escrevi seu nome na carne que engendra o tronco e galhos. Fui
tachado de escória humana enquanto ela caia bêbada em meus
braços e das sombras sussurravam o gemido e risos dos
vizinhos.

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Fui levado a amá-la como nunca amei ninguém e vejo sua
imagem esvaindo na imensidão de partículas amarelas caindo
pegajosas do infinito. A serração amarela inunda minha vida nos
princípios e o estalo de outro tempo se rearranja até a mim. Tudo
se precipita, e sinto em queda os braços e pernas inarticulados
enquanto caio para dentro do olho do turbilhão.
E acordo de meus escombros numa segunda-feira.
Acordo como se não tivesse dormido demais, e ao mesmo tempo
como se há séculos eu estivesse em torpor. Sou criatura de
outras eras com o rabo de primata ainda prenunciando na altura
do cóccix e os olhos semicerrados procurando as rachaduras no
tempo.
Na rua atravessa uma noite estirada de lua,
de crianças estraçalhando um pedaço de bola de futebol,
algumas adolescentes sorridentes com cabelos esvoaçando,
o latido dos cachorros atravessando as grades enferrujadas.
Sinto a fisionomia do beco encostando no lado onde adormeci
completamente, os terrenos-baldios cheios de miasmas e por
mais que se esforcem, os mendigos em algum canto tamborilam
a demência e nós ouvimos, ou fingimos não ouvir.
Vou sacudido pelas vidas que se esparramam das casas
e janelas e dos barracos sitiados.
Ouço o gatilho varrendo uma rua qualquer longe, e o som dos
tiros avermelhar o céu escuro. Há incêndios num morro ao
longe, onde estou, os Orixás levando o beijo de açude e palha ao
leito das crianças que não conseguem dormir. Sinto todas as
vidas de uma só vez, a comichão na cabeça das putas, o anseio
na dona de casa, o bêbado atravessando um trecho de rua e
caindo no próprio vômito. Me sinto em todo lugar e tempo, na
diferença que se segue nos letreiros e nas placas, um pedaço de
xisto e arenito, uma escotilha se abrindo, uma corda fuzilada
por olhos cansados demais e a vontade de nó.
Precisaremos talvez de um milhão de anos se
ainda quisermos renascermos como deuses, embaixo das
pitombeiras, no melaço escorrendo nos lábios das crianças nos
beiços grossos dos bichos lambendo o fundo do cocho.
Os redemoinhos despenteiam os matos, um rodopio de
notas estremece os andares que se esfacelam do Paraíso. Tudo

33
vem com gosto de ruínas e infanticídios, e assim gargalha o
corcunda de fraque preto como estranheza serpenteando a rua
menstruada. Sua carne aberta e fecunda liberta ovários nos
paralelepípedos, na ponta dos postes soltando faíscas. Os lixos
se acumulam nas calçadas e atingem as nuvens, um abraço
dizima pedaços de morro e alcança o mar.
Trapos,
vertigens,
anonimatos,
velhas descabeladas,
cabeças
latejando,
uma flor em nebulosa, frascos coloridos guardando a
volúpia de outros tempos, quando os impérios se erguiam até os
céus e os homens comiam e trepavam com deuses de duas
cabeças, sete sexos espalhados pelo corpo em constante
movimentos, cabeça-vagina, olhos piscando clitóris úmidos, a
boca se espalhando pela carne. O deus elefante-onça com olhos
de gavião vesgo, dançando untado de dendê e outros óleos,
distribuindo seus cheiros e carne sobre um salão ornamentado
de flores de cinco metros de diâmetros e pétalas como
cartilagens em orgasmo.
Vinho de menstruo da deusa paralítica com a cabeça do
tamanho de um sol. Planícies vermelhas e amarelas, céu de
topázio imperial, mar de fogo gerando pensamento turbulentos,
crina de cavalo com cascos de sonhos e dorso de gerânio.
O amor é nuvem de prata deslizando no futuro
inexprimível. Uma alucinação e a cor das jabuticabas. Tiros
ejaculados enquanto dormíamos nas garras e tetas de onças
engravidadas no alvorecer cintilando nos olhos da mulher que
amamos.
Despertamos então no seio da noite e descobrimos desesperados
que nunca a mais teremos entre os braços e o suor de noites
calorentas e selvagens. Então seu cheiro de seios graúdos e
cabelos espessos se espalha novamente nas fendas de sua alma,
no gosto que principia o espírito. Voltamos a ter uma dúzia de
penas esvoaçando dentro da gente, a leveza das bolhas sopradas
pelas crianças, nos quero-queros pinicando com cantos a

34
curvatura das folhas no orvalho. Pensamos nos ajoelhar
definitivamente dentro do quarto e gesticular o cântico proibido
que guardados desde o ventre e que o rompimento do cordão
umbilical nos fez ouvir pela primeira vez suas notas e choramos.
Não pelo tapa do parteiro, ou por ficar de cabeça para baixo, mas
no laceramento da carne que se rompe e ouvimos o ruído do
girar do mundo na primeira vez. Mesmo que não lembramos,
vamos levando isso em alguma cacimba nas falanges da alma, e
que transborda como quando começamos a esfacelar. Neste
momento estou esfacelando, estou a alguns centímetros de
minha avó morta, seus olhos fechados deitados no caixão e se
abrindo num amanhecer que rasga meus sonhos. Sinto o seu
cheiro de anágua e mãos enrugadas como couro de bode, seus
dedos grossos entrando-me pelos lábios, de seu colo quente e
seu cheiro de terra úmida de várzea. Estou pela primeira vez
vendo um tio meu serrando os alumínios, seu bigode enorme na
cara, seus cabelos puxados para trás, seu riso constante, suas
piadas, suas mãos cheirando a graxa e óleo diesel. Eu alimento
os pombos em algum ponto da Cinelândia, num tempo solto na
atmosfera retumbando no coração da tarde, na lentidão das
árvores balançando, dançando lentamente uma canção que
jamais cessa ou morre.
A vida atravessa um furo no lajedo.
Os cangaceiros se soltam no tempo espetando as lacunas
de fumaça com matadeiras e facões. Dançam em volta do sol
prenhe com as cartucheiras em volta do tronco, os olhos banidos
e caramelados com seca e sangue, a pele escura de raios solares
e fogo no meio da noite, na canção dos sertões, na libertinagem
que traz o espírito dos antigos para girarem na ciranda.
Eu sou Menino novamente vagueando nas entranhas dos
tempos-suburbanos, numa rua de paralelepípedos escancarada
pela quentura do sol e das sombras das amendoeiras. Sinto tal
rua inundando o encaixe de minhas vértebras, o sangue fluindo
através do infinito que me habita. Estou sentindo esta rua
enquanto sinto o coração de farpas retumbar na carnadura de
uma mangueira. Viro Inhaúma convertida em decibéis e cacos
de vidro no talo de todas as línguas. Sinto o Sol esbraseado
cintilando o corpo de meu sangue. Converso com Orixás na água

35
que inunda as ruas, e arrebentam os canos por debaixo do chão.
Dos paralelepípedos espetando os pés como brasas, das
gambiarras de fios embolados no céu entrecortado por lajes e
azul de eterno verão. Em Inhaúma o Sol nunca se põe e a noite
é fêmea do verão que dura o ano inteiro com cães latindo dos
quintais e os murmúrios das casas vizinhas ecoando pela rua
tocada na respiração da tarde.
Todos esses filamentos da infância vão entrando em você
à medida que se respira um novo ar da vida. Mas não como um
torrão de açúcar que se desmancha na ponta da língua, como
fora a primeira vez. Não mais. Agora é sanguíneo, corre através
da gente, ainda que precise do ar da manhã para despertá-los.
Temos então de novo o encontro com o tempo perdido, aquele
mesmo que pensamos nunca mais reencontrar. Este tempo
perdido, ou infância, como queira, volta novamente a nos
habitar, imóvel, como uma pedra em brasa dormindo dentro das
chamas.

36
Dia 0

“Não vou te currar como o resto dos outros animais. Por


mim pode ficar aí, pela casa mesmo, feito uma sombra. Pode
comer e beber também. A comida nunca é demais e a bebida
tampouco. Mas suficientes.”
Eu lhe disse, enquanto ela estava sentada numa cadeira,
no canto da minha salinha. Ela nem chorava e nem emitia
nenhuma expressão.
Ela chegou numa tarde umas semanas atrás e ficou por ali.
Pediu guarda e lar, e só lhe dei lar. O sujeito a expulsou de casa
a base de socos e pontapés, como o animal que era. E ela
apareceu em minha casa cheia de hematomas, e com cara de
esquecida. Ela não sabia pra onde ir, pelo que entendi, e me
procurou. Não recusei estadia, e a acolhi em meu cubículo como
pude.
Nada além disso.
Pra mim era estranho, fazia tanto tempo que não tinha uma
mulher por perto
a mera presença de seu cheiro, me trazia uma
confusão de sentimentos e sensações.
Ela não fazia nada
Exatamente nada para sua própria vida. De todo modo, com sua
chegada, o lugar deu uma melhorada. Ela deixava tudo limpo e
agradável. Uma serenidade tomou conta daquele cubículo
Eu já não estava no meu antigo trabalho de esfregão na mão.
Comecei a trabalhar de contratado numa escola, de inspetor de
andar.
Ganhava ainda menos. Minha situação, neste ponto, piorara.
Ficava o dia inteiro olhando aqueles alunos desprezíveis rindo
quase sempre por qualquer motivo, e chincalhando professores
e outros funcionários.
Nunca soube o que havia atrás da porta, no fim do corredor,
naquele subsolo do antigo trabalho. Me pagaram o que deviam
e meti o pé.

37
Pouco tempo depois ela chegou.
Pouco tempo depois arrumei o emprego de inspetor.

Eu andava pelas ruas sem permissão para viver.


Ando assim mesmo.
Sou desprezado por todos. uma Maria Madalena qualquer,
Xingada de puta e prestes a ser apedrejada.
Lancei um feitiço contra o tempo, na emergência de não morrer.
Retirei o tempo da poeira há muito assentada.
Agora me desloco entre o tempo-morto, e minha origem,
qualquer que seja, não é real.
Estou arruinado, mas ninguém saberá.
Minha carne devora a si mesma como um
câncer, e meus pensamentos se diluem.
Do que lembrar senão
Dessas cortinas paradas?
Deste ventilador que não cessa?
É o cadáver das horas, eu sei.
Tudo volta ao morno, também sei.
Este tempo-morto que eu não
via, pois
eu olhava seus olhos, seus cabelos, o ar saindo de sua boca,
e na majestade de cada instante seu, floria um ventre.
E eu não me apercebia deste tempo-morto.
Mas agora me restou o entre-as-coisas,
O instante entre o tempo e a colisão.
vejo tudo,
e não consigo sentir outra coisa
senão permanecer parado.
já não consigo sair desta estrada,
Nem me desamarrar daquilo que me impele
ao desastre.
e sei que ocorrera, lá na frente
e falta tão pouco!
Eu queria falar das coisas com gosto de enseadas,
De terremotos
queria que meu hálito expelisse fogo e
queimasse todas as ruas

38
eu queria adentrar essa vida pungente que emana desses
lugares sem nome por aí.
Queria essa cumplicidade genuína dos vendedores
ambulantes dos trens.
Preciso me desativar deste mundo pequeno
Onde perambulam os homens
Preciso de imensidões para dissipar meu desespero.
Para ninar meus sentimentos.

Os dias passaram sem eu me dar conta. Um a um, como se eu


não estivesse presente no mundo. Caí ermo numa condição
quase abstrata. Eu era uma linha sem contorno visível, e sem
fundo ou plano onde eu pudesse me condicionar na dimensão.
Alheio a tudo, eu me concentrava em qualquer canto, mas os
sentidos escapuliam, bem como o que eu estivesse vendo.
Era um tremor, que fazia os encaixes de minha mandíbula doer,
os olhos perfurados pelas luzes, mas as pupilas estáticas,
implorando por outras paisagens. De todo modo, eu não sentia
nada, mas uma escuridão soprando minhas ruínas.
Voltava e ia ao trabalho sem fazer questão ou não de saber o que
acontecia ao redor. Podia rebentar mil revoluções, mas pouco se
me dava.
A jovem andava por minha casa, às vezes chorava num canto,
noutro, fumava ou espreguiçava, mas eu nem a notava de fato.
Eu passava os dias olhando a linha de trem lá embaixo, cortado
um trecho da paisagem. Era como se cada instante viesse
descolado um do outro, e em cada um deles, uma redoma de
infinito e vazio sem fundo, reverberava.
Eu ficava sem permanência, no espaço ou no tempo, trêmulo
como uma miragem.
Depois me deitava na cama, olhando as coisas em volta, o teto,
a luz acesa, sem nem ao menos esboçar um gesto. Depois a
desligava e voltava a deitar, com os olhos abertos na escuridão.
Eu engolia a comida e a água, como uma draga, sem sentir coisa
alguma, como se o paladar e os demais sentidos fossem
deletados de meu corpo.

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Tinha vezes que eu queria pensar em algo, em alguma coisa sem
significado ou contexto, uma árvore varrida pela catástrofe, um
fim de mundo tragado pela noite, um samba correndo nu,
Um parapeito escancarado em suicídios.
Mas eu não conseguia. Eu tentava lançar o pensamento para
além de mim, do cubículo, da jovem que quase inexistia (ao
menos para mim), da ida e da volta ao trabalho; queria sentir os
pensamentos queimarem, transbordarem, sitiarem meu corpo
com fios tingidos de pura eletricidade.
Mas nada.
quando eu me apercebia, continuava
deitado na cama, olhando para nada, germinando na escuridão
como um feto que sabe que será abortado.

Todos me abandonaram, creio nisso. Mas o que nunca


desconfiaram, é que não fora eu, quem foi abandonado, mas
uma espécie de outro de mim, pelo menos fora nisso que
acreditei por certo tempo. Alguém que criei para esboçar sorrisos
quando preciso, chorar quando preciso, ignorar quando
necessário. Um duplo. Este outro de mim, criei para ser normal
e necessário, como uma máscara. Me esforcei ao máximo, juro.
Esse outro, feito para coisas cotidianas, era imbuído de muitas
rachaduras. Sou pouco perfeccionista, graças a Deus. Esse
outro, cheio de rachaduras e brechas, como disse, ainda
funcionava ao seu propósito. Esse outro de mim, que criei, ainda
que se ajustasse ao que fora feito, era pouco aceitável. Eu tinha
problemas com ele. Às vezes a desgraça empacava e me deixava
na mão, um suplício. Comecei a criar outros de mim. Isso foi se
tornando um vício, uma obsessão. Os que não serviam eu os
colocava no canto de meu quarto. Eles ficavam lá, largados,
pegando poeira, escangalhados. Quando um não funcionava, eu
substituía, e assim por diante. Descobri também que eu não
existia, apenas. Então não poderiam haver esses outros, já que
eu inexistia. Entramos então num impasse. Havia uma
multidão, povoada de diversos seres, à semelhança de uma
colmeia desregulada, que ora se conectavam, ora entravam em
colapso, rompendo as ligações. Era o que eu podia dizer sobre
mim, caso existisse. Tudo começava a se confundir em meu

40
espírito, agitado por sombras, e eu já não sabia onde um
começava e outro terminava. Nesse meio tempo de
obscuridades, de deserções, exílios e mudanças, fui sendo
abandonado pouco a pouco. Todos me abandonaram. E por lá,
naqueles dias, ficaram alguns outros de mim, permanecidos,
colados no tempo e nas paisagens, cada vez mais fracos e
impotentes, sumindo aos poucos, como lágrimas na imensidão
oceânica.

Um dia, depois de uma manhã e tarde olhando aqueles alunos,


Gritando, afrontando, correndo de lá pra cá, entrei no ônibus
Lotado. As pessoas enfiadas umas nas outras, em mim. O cheiro
de gente que perdeu qualquer encanto, um estrutura embotada
que se fechou na noite.
Me senti sufocado, cheio, vagaroso, os fachos de luz dos faróis
do trânsito parado, entrecortando um dia quente, coberto por
um mormaço.
saí do ônibus, repentinamente, puxando a cigarra como um
lunático.
O piloto abriu a porta detrás.
O ônibus estava parado na Avenida Suburbana, na altura do
Norte Shopping.
Assim que saí,
estourou uma tempestade repentina, encorpada por
estrondos e relâmpagos faiscando.
saltei, pisando o asfalto úmido, soltando fumaça no
resfriamento,
diante das gotas grossas que incidiam contra ele. corri debaixo
da chuva, atravessando os carros quase parados, a água
açoitando minhas roupas e meu rosto.
Parei debaixo de uma marquise com fedor de urina.
Um mendigo se aproximou com a arcada destruída à mostra e
com as mãos estendidas pedindo algum trocado. Ignorei.
Escurecia.
A noite tragava a cidade.
Os postes piscavam.
E me aconteceu de ali, embaixo daquela marquise, eu pensar em
minha vida. Em cada trecho dela em que eu não podia parar

41
nem por um milésimo de segundo, e então cada pedaço dela cair
sobre mim como cascata, e eu tentando em vão abraçá-la, saber
o que se passava, mas nada. eu era apenas levado por aquelas
furiosas águas.
Senti então o desespero plantar seus dentes em minha vida, na
carne titubeada de minha vida.
Tentei pensar em qualquer coisa. E tudo era um gosto do mesmo
e uma ruína no paladar.
E me bateu qualquer coisa de ruim, como acontecera um dia
com Lima Barreto, uma vontade de aniquilamento, um horror à
vida e a tudo que existe.
Senti a carne querendo tremer, mas eu não tremia. Estava
ensopado pela chuva, mas isso nada me dizia.
Ouvi meus olhos derreterem na paisagem entrecruzada de sinais
de trânsito piscando e faróis possessos. As buzinas ressoavam
debaixo da chuva.
Me meti embaixo da chuva e segui pra casa.
Cheguei naquele cubículo, ensopado, cansado.
A jovem via televisão. Não disse nada ao me ver. Foi ao banheiro
e voltou com uma toalha.
Me enxuguei na porta mesmo, e segui para o banheiro.
Sentei-me na privada e caguei.
Depois me meti embaixo do chuveiro e me lavei.
Saí, segui pra cozinha e fiquei olhando em volta.
Sentia uma vontade de dormir, mas não tinha sono.
Caminhei pro meu quarto, quando vi, as coisas dela estavam lá,
em cima da cama. a mesma cama que estava na sala, e que ela,
ou alguém, a pôs no quarto.
Não disse nada. Voltei, sentei ao seu lado no sofá, num pequeno
e medíocre sofá que havia na minúscula sala.
Dormi sentado.

Despertei nos diasseguintes, deitado no sofá.


Comecei a dormir por lá, já que a jovem passou a dormir em
minha cama.ela disse que dormiria no sofá, sem problemas. Eu
disse que ela podia ficar com a cama, que eu me virava. E assim
ficou.

42
Tento lembrar dos tempos em que morei no Bairro
da Posse, em Nova Iguaçu. Baixada Fluminense.
Morei por lá com uma tia. Lugar cercado por ruas sem
calçamento e asfalto, de terra batida, valetas de esgoto a céu
aberto, vira-latas escaveirados latindo no horizonte.
Minha vida por ali estacionara, entregue a um enorme quintal
cheio de cacarias. Por fora do tempo, e sob o sol e ventos, eu me
secava dependurado num varal de roupas.
Vida descalça agitada junto aos moleques retintos como eu
Entre a Posse e este cubículo, vc apareceu. Passou em minha
vida varrendo meus destroços.
Sou agora uma besta arruinada e chacoalhada, que
guincha.
Sou um rato. E um resto.
Vivo tbm um resto de mim. Alguma coisa q se sedimentou.
No trabalho de inspetor, fico olhando os alunos, como
se estivesse fora de mim, num outro lugar, rarefeito e sem corpo.
Tento não pensar em nada, mas como se faz isso?
As alunas são lindas, suaves, cheirosas,
Cínicas, cretinas, mimadas... o que me dá vontade de vomitar.
Elas são recheadas de risinhos e olhares. Ali, naquele
lugar, todos me desprezam. Exceto talvez uma mulher q
trabalha na limpeza.
Ela fala comigo com certa generosidade, e sempre me conta uma
ou outra história de sua vida.
A cada história, vejo como somos todos patéticos. Mas não ligo.
Chega a ser agradável ouvi-la falar.
Quando os alunos estão em sala, e fico sozinho perto da portaria,
ela se aproxima de mim e fala algumas coisas.
A mulher não tem ninguém, assim como eu.
Tinha uma filha q, quando chegou na vida adulta, sumiu-se pelo
mundo.
O marido morto há anos.
Mora em Irajá.
Se fosse mais nova, eu tentaria algo.
Volto a me masturbar no banheiro do trabalho. Um que
fica atrás da sala dos professores, exclusivo para os

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funcionários. Ele não é tão repugnante como o do meu antigo
emprego.
Fico triste, pq toda aquela imundície me excitava, no fim das
contas.
Quase peço a mulher para não limpá-lo de vez em
quando. Mas não peço. Que tipo de coragem eu teria para lhe
pedir algo deste tipo?
Assim que chego no trabalho, vou ao banheiro, tranco a porta, e
coloco meu pau pra fora.
Fricciono a cabeça do pau com satisfação, subindo e descendo o
prepúcio.
Olho pro espelho, e vejo a figura de meu rosto
Contorcida, querendo explodir de excitação.
Penso em todas aquelas alunas nadando em meu mar de porra
à céu aberto. Elas rindo nos limites de minha vida ratuína.
Penso nelas sentada na beira de minha cama, enquanto eu bato
com meu pau no biquinho de selfie delas.
Gozo no chão mesmo, e limpo a porra com o papel higiênico.
Olho pro espelho, e vejo que não tenho saída.
Me sinto satisfeito,
a alma evacuada.
Tudo fora-me subtraído, até mesmo o que eu não tinha.
Quando chegava em casa, a menina às vezes fazia algo para
comermos.
Comíamos em silêncio, sem pronunciar nada.
Então eu me deitava no sofá da sala e adormecia
Pela noite, antes de dormir, eu pensava em vc, em apenas vc,
constantemente.
Pela noite, as coisas eram ainda piores. Eu pensava
numa vida que desejei por anos, mas QUE nunca conquistei.
Pensava em todas as impossibilidades que me eram doces, e
como impossíveis, inalcançáveis.
Eu adormecia sem saber e acordava no dia seguinte ao som do
despertador do celular.
Eu ia ao trabalho, contemplando as ruas que passavam fora do
ônibus. Meus olhos iam ficando silenciados com o fluxo
daquelas ruas e fachadas.

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Com o dinheiro reduzido, comecei a frequentar o
Sujão, um baixo meretrício, dos piores, no fim de Bonsucesso. A
rua, onde ficava o Sujão, fedia a mijo, a vômito de bêbedo, a
boceta mal lavada. Ali tinha um monte de becos, onde ficavam
as putas, se oferecendo ao mundo.
Eu me sentava num canto, pedia uma lata de Itaipava e
fumava um Derby vagabundo.
Algumas daquelas putas chegavam até a mim , e falavam
qualquer bobagem para me convencer a pagar o programa.

Eu penso todo dia nos cavalos da manhã pisoteando as crianças.


Penso no dia em que achaste um feto morto, e ao levá-lo pra
casa, vc o dependurou na parede da cozinha. Quando cheguei,
vc apontou e disse: olha ali, e meus olhos se atiçaram, tu
continuou, impossível: olha ali, um talismã.
Penso em minha vida aberta surtada por toda carne podre que
chega aos lixões. Quando penso nessas coisas,
Há no oco de meu peito um pedaço de ventre, cheio de areia
lunar e frascos de nebulosas.
Eu penso em nossa vida esquecida varrida pelas
imensidões, em todos os nossos péssimos costumes, em nossa
pele deflagrada no horizonte.
Penso nos lugares que ninguém deveria ir, e a vida de joelhos,
arranca um pedaço gordo de meu membro.
Eu já deveria estar morto, entramos em acordo sobre isso,
quando seus globos oculares reverberavam o grito da noite.
Venha, eu lhe peço, venha mais uma vez
Venha pela manhã, quando os cascos partem o crânio das
crianças.
Pode vir com seus destroços, sem problemas.
E assim que chegar, enfiarei a mão em seus olhos,
Antes que pisque,
e arrancarei sua alma com um soco.
Dançaremos nus, antes do outro amanhecer, em jejum, sem
nenhuma alma.
Venha com seu inchaço, sua dor, seus odores, sua mão delgada,
seus olhos de sol, seus ventos, seu cabelo desancorado, a
fuligem crepuscular de seus olhos, sua boca de manhãs

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maltratadas, seu hálito de ventos brejeiros, seus sonhos sem
explicação, sua carne pudenda, sua zona de animais
sacrificados, seu cheiro de acetona e esmalte desmanchando;

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Dia I

Este é o primeiro
de muitos dias que eu não sei o que fazer.
A vida, a diaba da vida, me abocanhou
como uma cadela sem compaixão, eu estou a
metros de desabar de vez.
De todo modo, sinto-me estupidamente morto.
Eu queria morrer de vez, então me deito a todo momento,
buscando um resto de sono no mormaço de mais um verão que
desaba sobre a cidade
O cubículo se tornou um forno.
Em qualquer canto dele sinto calor.
Começo a banhar-me, com o suor escorrendo pela minha carne
dobrada.
Me coço, a unha apanhando o suor empoeirado
Os mosquitos zumbem sobre minha cabeça.
Meu apetite não acorda, mal consigo comer
Bebo água constantemente,
Eu estou morrendo.
A menina anda de lá pra cá só de sutiã e
calcinha,
Não diz nada e não sorri
E aparentemente abre a geladeira
Faz alguma comida, e
Me aparece na sala, de sutiã e calcinha , com as mãos cheirando
a cebola e alho
Eu não digo nada
, o que diria?
Tento ter pensamentos que me tirem de onde estou. Mas volta e
meia volto ao cubículo. De corpo presente, rarefeito
Estou de férias no trabalho, então não tenho o que fazer.
mas muito em breve voltarei a labuta, como se diz. Uma merda
a jovem de vez em quando sai, e quando volta, parece
mais leve, os cabelos jogados na frente dos olhos.

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Nem imagino como consegue dinheiro
Ela se senta na mesinha da cozinha e me olha com um sorriso
no rosto. Mas muito raramente
Eu desolho e fico olhando pra um lugar qualquer.
Me sento na beira do sofá, procurando alguma estratégia de sair
do buraco que minha vida se meteu. Sim, eu sei que insisto
nisso, insistirei mais, pois como poderia não pensar nisso?
Eu me repito na direção em que algum momento a roda se abra,
que uma linha se arrebente e eu possa finalmente
Entrar numa rota mais agradável.
Eu lembro do mato, daquele capim-guiné enorme agitado pelo
vento, como cabelos dançando, e
Ali próximo, quase dentro da dança, meus olhos se projetavam
rabiscando, em verões. Ah, aqueles verões! Sim! Eu pulando de
ponta-cabeça no açude,
Deslizando minha pele entre o barro úmido.
Sinos que dobrem, e procissões de fogo queimando por cima das
cabeças.
Olha, eu preciso de todo este abandono, talvez.
Preciso dessa minha
Carne desesperada, desse gosto ruim passeando dentro de
minha cabeça,
de decibéis estourando minhas vísceras.
Eu não tenho pra onde ir.
Eu não possuo as asas draconianas que me
tirem deste tempo indesejado.
A vontade que tenho é de ir nas ruas morder os postes,
Mordê-los no sopé. Arrancar meus dentes da gengiva e cuspi-los
pelos olhos.
Queria mergulhar nas entranhas de cada vida que me
desprezou;
Ir às ruas e caçoar da polícia, pedir a morte ao
primeiro fardado, e minha cabeça lacerada,
E meus miolos escorrendo no muro, em algum muro por detrás
das ruínas.
De algum muro por detrás de tudo isso.
Queria os cães estraçalhados e suas carnes jogadas para dentro
das casas.

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Eu não quero viver mais.
Não quero viver mais. Tudo chegou ao ápice do absurdo.
O retorno da microcefalia tem a auréola negra

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Dia II

Quero cometer um crime doméstico. Dá um soco na quina da


pia e ver meu sangue borbotar. Faço isso, estilhaço um prato no
chão e mordo os cacos.
A boca sangra.
Quero morrer, mas não consigo.
Regiões de trovões vespertinos.
Não estou na França devastada pela guerra, junto com
Miller pedindo comida em algum moquifo.
Mas estou aqui, em Cavalcanti, e estou morto. Perto de
hoje,
A menina me pediu uns trocados e saiu. Tem horas que
não aparece.
Sinto a falta de sua ausência, dela perto de mim como se
eu não estivesse ali.
De seu sorriso esporádico, das mãos com cheiro de alho
e cebola.
Chove uma chuva de sangue sem deus,
Enquanto o tempo amarrota descortinando a manhã
Meu espírito lateja,
Mordido pelos calcanhares. Eu tenho a calamidade dos olhos
que perfuram as camadas da terra.
E quero que vc me receba alguma vez novamente. Exatamente
aí, onde nunca esteve. Me receba com sua ausência, com suas
dunas,
Seus corações destruídos.
Quero um gole desta tua quintessência, nesta tua esfinge que
chora e que vc carrega na ponta de tua umidade.
Me dê um triunfo, e poderemos avançar por entre as vidraças
que comem a manhã
O calor está insuportável
Nesta terra onde o verão inunda as ruas com seu esperma
escaldante.
E teremos goles de sol, para recitar novamente a vida.

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Dia III

Quero agora que essa chuva caia e salgue minha carne


Preciso de tudo isso, um pedaço de estrela partida em minha
boca,
O brilho dos abismos dançando nos olhos.
Olha, vou te dizer o seguinte, já que jamais me ouvirá,
Quero tudo novamente, toda sorte de misérias e desgraças que
já se abateram sobre mim.
Quero, veja bem, quero que me coloquem em frente ao muro e
me fuzilem, enquanto recito Lorca.
Venha, como já disse, venha como um incêndio e
um vislumbre, e eu vou enterrar minha cabeça em seu ventre.
Eu quero tudo novamente, tudo.
Estarei entre os bastardos de Moisés, para errar no deserto
Mas não para encontrar algum Deus,
Pois Deus é a travessia, e eu preciso novamente me perder
Mais algumas coisas: eu quero que tudo venha
novamente, disso não me canso de dizer, quero
as fábricas dia e noite preparando a demência
que irá nos reduzir, enquanto na beira do parque vc diz que
todas as praças
são pouco solenes, tão pouco solenes, onde amarrar o desespero.
As coisas estão se confluindo num redemoinho,
E a água da chuva açoita as fachadas e o lado errado onde a lua
abortou.
O vento sopra a canção que ninguém esquecerá de ouvir,
tudo somente pra sempre, na mesma erupção que estremeceu
os paraísos.
Somos filhos de Eva, a Banida, que pariu a nós e
a Adão
Eu sou da mesma raça de sertanejos e brutos que desabou em
Canudos diante dos canhões.
Quando acordei havia um pedaço de língua boiando em minha
boca

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Ao sonhar com aquelas vidas de lábios de borboleta
Vc se anunciou como a tempestade que se ergue lá fora
Inchando a atmosfera com seu hálito elétrico
Surgindo no horizonte para mastigar a beira dos barrancos
Mas o crepúsculo se desfolha e lança novamente o vento pelando
as árvores
E o ruído da água gorgolejando nos canos
E bueiros

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Dia V

Então chega mais um domingo a se somar em sua vida,


fechando a semana, e o máximo que
conseguimos exprimir, é: ainda estou vivo...
E a extensão da noite é
um luar embaçado acima da poeira e da emissão
monocromática
dos vapores de sódio dos postes.
E a visão que temos é recém saída de um instante turbulento,
sísmico, e nosso crânio é um ponto de impacto irradiando uma
onda que grassa.
E o corpo estremece
E tudo isso se deve a uma só coisa: do corpo estirado no canto
da rua, o sangue se misturando a pequena valeta d’água
descendo pela sarjeta até o bueiro. E o que vemos não é muito,
nem mesmo na mais alta das lajes: um silêncio vago se
estendendo até os prédios ao longe, os faróis dos carros sumindo
até onde a vista alcança, piscando como vaga-lumes.
Os barracos em volta perscrutados pelo zumbindo das tevês e os
gemidos de súplicas e sexo frenético
E ouvimos um coro de gritos implodir, e não fazemos
outra coisa
Senão em sair e ir em direção dele.
Mas o que haveria antes?

Meu desprezo maior recaia sobre aqueles que estavam à


minha volta. Estavam sempre magnetizados por algo a frente,
por alguma coisa que lhes daria o dia seguinte. Para mim, sendo
sincero, era indiferente.
Eu não entendia, decerto, não conseguia entender,
mas desde o começo, sabia que não era aquele
tempo entre o acordar e o dormir, que me fazia sentido.
O dia seguinte também não me interessava.

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No intervalo, eu contemplava tudo mais. Queria roubar algumas
cenas para a eternidade. De certo modo, consegui.
E comecei de repente a pensar na morte, mas não
esta que todos negam e veem como uma anulação de tudo, a
morte enfim.
Mas outra, uma morte em vida,
como uma passagem,
um estreito caminho,
para através de, eu pudesse renascer para uma nova existência.
E fiquei tardes inteiras pensando nisso, olhando a chuva cair do
céu chumbado, de repente. Uma chuva sobre o chão seco, as
fachadas descascando periodicamente. Os fios desencapados
soltando faíscas das gambiarras emboladas
. Pensei nessa vida desejada, que não a minha. Uma vida
nova, enfim.
E pensei, pensei.
Era tempo de morrer...
Os revoltados me interessavam por muito pouco tempo.
Nunca me interessaram muito. ]
]Eles diziam coisas palatáveis aos nossos ouvidos, suas
posturas diante do mundo, poderiam até nos atrair, mas isso
não durava muito.
A revolta nunca me interessou, ao contrário, ela me cansava.
Era-me enfadonha. Foi por este tempo também que desconfiei
das coisas que ainda não existiam e das gentes que eram
invisíveis ao nosso olhar.
A imperceptibilidade me interessava mais que a revolta.
Quando vi que nada me bastaria, resolvi rachar o tempo
como casca de ovo, e a gema que escorreu era uma
impossibilidade viscosa, cheiro de mato e falésias, sangue vivo
batendo contra lajedos, barrancos.
Todos os desejos vieram a mim, os delírios voavam numa nuvem
ruidosa, queria tudo, e tudo era alcançável.
Minha satisfação e insatisfação não tinham limites.
Minha vida entrou então por um reduto, de que nunca mais saí.

Na rua, lembro de vc num gesto vago, brilhos inóspitos,


e parecia esquecida de alguma coisa no momento em que vi seu

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corpo translúcido sumir ante uma velha sacada virando a
esquina.
Não era miragem, eu sei.
Andei à beira da rua, como de costume, havia um sol-gema no
céu esbraseando o Subúrbio
Ventava destelhando um pouco das casas abandonadas
daquela rua que eu jamais soube o nome.
Umas crianças esparsas difundiam-se lentamente pra escola,
aquela tarde não me sai da cabeça, embora mude toda vez,
quando entro nestes devaneios.
Andei alguns metros e me vi só.
O ônibus parecia impróprio para as pessoas e se encontrava
vazio.
Ah, maquinaria pungente de toda a minha vida!
Era a Praça Cinelândia, senão me engano.
Pombos ensanguentados rastejavam pelo chão
Bicando tudo que cheirava a comida.
A Praça se embaralhava em outros momentos e se confundiam
com cenas mais próximas
. Ainda vejo trechos de coisas, de um
sorriso, de um avião passando, olhos escuros e ensombrados.
Mas bem pode ser que tudo tenha sido inventado pouco depois.
As lembranças são lesmas percorrendo um estado derradeiro.
Ficam as cenas paradas no tempo e no espaço, uma fotografia,
uma bola paralisada no ar e que não cai nunca.
Olho em volta, inadvertido. As coisas em volta me rebatem
desconhecidas. Não me lembro de como cheguei ali

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Dia VII – A matança dos bichos

Há dias de uma meia hora que se agarram à nossa carne,


feito lâmina
Num suicídio. E vc não se atenta ao longo sono
q se derrama em seus olhos
Penso cada vez mais no silêncio de uma bomba desintegrando a
Ausência
Ea
Glande de fumaça dentro da manhã
Toda noite eu me retiro de qualquer santuário, toda noite, me
deito de papo pro ar dentro da escuridão de meu quarto, ouvindo
os gritos de minha vida ressoarem entranhados na carne.
Mas o quequero dizer, é q irei morrer,
completamente,
Agarrado à faca de minha sombra.
Não sou feito para o momento.
Não nasci com a carne pregada numa cruz. Não há um dia que
seja meu.
Vim para viver, ao lastro da vida, o gosto de sangue na
boca.
Preciso acordar antes de ninguém, imediatamente, todas
as vezes, se faz necessário viver. Não me dou ao crédito, nem
ao
perímetro do estado.

Acordei numa manhã, sem saber o que fazer.


Férias, como eu disse.
Sentei num pedaço do sofá. Coei café. Tinha um dinheiro q
recebi das férias.
Passei a noite toda nos mesmo sites de sempre,
Procurando conhecidas e desconhecidas na net, para minhas
bronhas diárias .
Claro. Trouxe o computador e a escrivaninha pra sala, a
Jovem ficou com o quarto.

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Inundado estou,
Enquanto ainda mastigo seu fantasma que não
Se cansa de tanto q presente. Vou mastigando-o com afinco.
Pedaços de sonhos lambendo vidrilhos.
Sonhos q derretem na borda da noite.
Seu âmbito de topázio
enquanto percorro minha língua excitando
sua carne
reaparecemos próximos ao nascer do Sol,
com vc plena e desabitada.
E lembro de minha rua lá em Inhaúma onde abando-
nei há anos e me lembro ainda sim; pois
quando vc me vem à cabeça , eu instantaneamente me
derrubo no paralelepípedo da rua de minha infância e sinto o
joelho ralado, a dor na articulação, o sangue descendo as
canelas finas.
estou de férias.
E metido numa ponta do sofá, bebo café.
Vou quando em vez na janela, mas o trem não passa
É janeiro, um vento quente entra e deixa qualquer
coisa no cubículo.
Vou na padaria, compro pães queijo mortadela, volto, faço
uma mesa pro café de manhã
Horas depois a jovem acorda, o bafo quente, q sinto
delonge, os olhos semicerrados,
Tento não me vislumbrar com a imagem,
mas não consigo.
Ela está com uma camisa velha minha, q nem pediu
emprestado,
E e e e e e a usa sem sutiã ela tbm está
Com um
pequeno short.
Ela come e eu tbm. Ficamos sempre em silêncio.
Ela come e depois vai ao banheiro. Ouço o som do
chuveiro aberto.
Depois ela sai e eu tiro a mesa. Vou pra sala, me recosto no sofá
e não sei o que fazer.
“vou dar umas voltas”, ela diz.

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Aparece arrumada, com uma calça preta apertada, e uma
camisa estampada com duas meninas se beijando.
“fique à vontade”, digo.
“vc devia sair também”, ela diz. “precisa espraiar um pouco a
cabeça” “ficar aqui o dia inteiro trancado, se punhetando nesse
computador, não te faz bem”
“como assim, ‘se punhetando?’”
“vc entendeu” “acha mesmo que não sei o que vc fica fazendo
toda noite na frente desse computador?”
“porra!”, grito, indignado. “e o que caralho vc tem a ver com
isso?!” “a vida é minha” “vai onde vc quiser, eu fico aqui, e depois
me empunheto”
Ela dá de ombros e sai.
Eu fico.
A tarde passa, sem nada que a interfira.
Ouço o trem deslizando lá fora. Ligo a tv, nada.
As propagandas e seus agentes passam e pouco se me dá.
Penso em não fazer nada. desligo a tv.
Vou ao computador, nada me distrai.
Como fui me meter nessa?
Escurece. Olho pela janela, as luzes do bairro beijam
as ruas.
Vou em minha carteira, pego um pouco do dinheiro das
férias.

Vou ao Sujão
Ando sem compromissos por seus becos.
O lugar cheirava a violência desenfreada, daquela mesma velha
maneira que excitava meus músculos e atiçava meus olhos
piscando sangue
Paro num deles, duas putas acossam um sujeito.
Compro uma cerveja que não bebo e fico olhando pras duas;
Pela escada em caracol, desce uma
Jovem, razoavelmente bonita, que pro lugar, tá é bom
demais.
Um funk ressoa pelos becos. Alguns homens riem.
O lugar fedia a nicotina, perfume barato e fracassados. O tipo de
lugar que você finge condenar, mas te excita.

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A cafetina sapatão conversa com um sujeito como
se ele fosse o melhor sujeito do mundo, bom demais pra todo
mundo. E talvez ele seja.
A jovem me convence de qualquer coisa, e logo estamos
no quarto
Subo a escada em caracol olhando pras nádegas dela sorrindo
pra mim
Ela vai lavar sua xana, como ela mesmo diz. Isso
nada quer me dizer.
O andar está vazio. Há poucas putas no recinto.

Quando ela volta, ela ri pra mim e me chama de


amorzinho.
Eu me levanto bruscamente. Ela levanta o braço no susto.
Pego-a pelos braços e tento dizer alguma coisa.
ela grita, não não não faça nada comigo!
“mas não vou fazer nada!”, digo
Saio do quarto.
A cafetina e mais o sujeito aparecem.
A mulher sai do cubículo onde íamos fazer o coito, e a
cafetina pergunta o que está acontecendo?
Esse infeliz ia me bater grita a puta.
Sim eu digo mas não bati.
A cafetina voa em mim, me esquivo, o sujeito me empurra
Caio de bunda no chão, ele mete a mão na cintura,
Mas mais rápido que ele, eu me levanto e dou uma cabeçada na
boca de seu estômago. Ele cai sem ar.
Eu me esquivo da cafetina que tenta embarreirar a passagem e
ela me arranha parte do meu rosto, do lado esquerdo.
Desço a escada em caracol como um bicho
As duas putas estão lá embaixo sem entender nada,
tentando decifrar os gritos lá em cima, que se movem junto com
a música estrondosa que se agita pelos becos de todo Sujão.
Elas tentam me agarrar, dou um safanão numa delas, e traço
um caminho.
Ouço um som de tiro, escapulindo pelo beco afora. Olho
rapidamente por uma abertura, daquele pequeno puteiro, e vejo
o sujeito descer a escada caracol rapidamente,

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E saio correndo pelos becos e ele atrás.
Um sujeito com um quadriculado de madeira, que usa
como bandeja, onde vende cigarros, dropes, isqueiros, está em
minha frente, puxo ele pro meio do caminho,
o sujeito,
Um pouco longe, mira, mas não atira,
Lhe deixo sem espaço
Entro em outro beco, tem duas putas na porta e mais três
sujeitos. A passagem fica estreita
O sujeito grita parem ele!
Antes porém que os sujeitos possam fazer alguma coisa
Eu me esquivo, e passo por entre as putas, que tentam
me segurar também
saio escapulindo de-banda, o sujeito atira
O tiro dá um estrondo que escoiceia no ar entre a
polifonia de todas as músicas graves que retumbam dos
inúmeros puteiros
Ele erra o tiro que acerta uma garrafa de cerveja que se
estilhaça
Câmera lenta em ação, pedaços de vidro se abrindo na atmosfera
como flor densa de pétalas de esperma som alto perfume
exagerado óleo de amêndoas leite de rosas cheiro de mijo comida
podre cigarro churrasquinho cerveja suor cangote cecê cocaína
desolação lágrimas quentura sorrisos gozo feiura dentes
trincados esgoto fúria
O mundo se reinaugura nos subterrâneos da
carne
Saio finalmente dos emaranhados de becos e estou na rua
A noite acena pra mim sem hesitação.
O sujeito continua, e uma das putas que chega ao trabalho, ao
que parece, aparece em minha frente, eu correndo em
ziguezague e o tiro lhe acerta na garganta
Ela cai no chão,
Olho e, correndo, o sujeito vem atrás, feroz,
para um instante para ver a mulher no chão,
entre parar ou continuar, ele hesita
e acelero minha corrida e avanço mais alguns metros depois dele
Há um bar mais à frente lá pra ponta da rua

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E na altura dali, vejo o sujeito cada vez mais para trás.
Sumindo na colisão de imagens que permanece.
Ele atira.
O tiro ecoa na noite, as poucas pessoas no bar se assustam e
entram correndo.
Eu acelero ainda mais no susto e ganho a noite.
Escapo.

Assim que chego em casa com a adrenalina no


topo da cabeça e da língua,
alguma coisa me faz chegar na surdina, caminhando na ponta
dos pés
me aproximo da porta do cubículo devagar,
Mas as mãos tremem como vara verde,
medo medo medo dos tiros
que não me acertaram
Vou levemente até o sofá
Sento e ouço gemidos vindo de meu
quarto, agora dela.
Respiro fundo, pois não morri, ainda
Tiro os sapatos e me aproximo de meu quarto,
descalço,
devagar.
A porta está entreaberta
pela fresta, vejo a jovem e mais um sujeito
aparentemente bem mais novo que eu e quase duas vezes o meu
tamanho. Ela está chupando ele, ele em pé, saboreando o
movimento.
o doce movimento da língua e dos lábios dela, deslizando em sua
glande,
enquanto ele, de olhos fechados, com o
rosto virado pro teto, treme de tanta satisfação
levemente, abro a braguilha, tiro meu pau pra fora e começo a
friccionar
meus olhos cerrados pela fresta veem os dois
e ele coloca ela de quatro sobre a minha cama, abre suas
nádegas bem devagar, como algo a ser saboreado lentamente até

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derreter sobre a língua, e coloca sua pica molhada de saliva
dentro dela.
Ele vai metendo nela, a princípio, lentamente, até ganhar
velocidade.
fricciono meu membro, na moita, tentando ao
máximo não guinchar e ser descoberto
Ela geme alto numa explosão de prazer, enquanto ele
estapeia suas nádegas e
ela geme ainda mais alto pedindo por mais e mais
fricciono ainda com mais velocidade, puxo o
prepúcio com raiva, o suor descendo pelo corpo, empapando a
roupa, as pernas bambeando,
mas mantenho o máximo de silêncio possível
depois ela está por cima e de costas pra mim,
ela senta sobre ele, quicando, dizendo o quanto ele é o melhor
naquilo
e talvez seja mesmo,
e ela balança seus cabelos sobre suas costas
,sua pele lisa e suada,
e a cena banqueteia meus sentidos
sinto as pernas ainda bambas,
suo dentro de minha sauna silenciosa
ela grita, numa explosão úmida e sua carne se contrai
,treme e desliza mole pelo corpo dele,
e sua cabeça com os cabelos desgrenhados se ajeita sobre o peito
dele
e gozo no chão
limpo com as mãos mesmo e passo sobre minha camisa
saiu silenciosamente para não incomodá-los

na manhã seguinte, acordo, ainda vestido


com as roupas do dia anterior, sobre o sofá.
Me levanto, ando sem direção.
Percebo que ainda estão no quarto
Vou ao banheiro, me lavo, me masturbo pensando na cena da
noite passada, ainda fresca no pensamento, e meu sêmen se
lança na água da privada.
Vou à padaria

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o sujeito de barbas longas já está atendendo em seu
ponto do Bicho
Fazendo os jogos
Compro pão, presunto, queijo mussarela,
Faço café.
Faço a mesa do café
Como um sanduíche e bebo um gole quente de café
Me sento em frente à televisão, no noticiário dizem que uma
mulher, indigente, sem seus documentos, fora encontrada
morta ao lado da linha do trem, lá perto do Sujão
Enquanto estou no sofá, a vejo saindo do quarto.
Ela se espreguiça, nebulosa entre o ar da manhã.
Olha para mim, lança um sorriso sem graça.
Nem me dá bom dia e se dirige ao banheiro.
Ouço o chuveiro escorrer.
Depois, sai do banheiro, com a mesma roupa, e entra novamente
no quarto
Meia hora depois saem os dois. O sujeito está acanhado, ainda
com uma cara de ontem
“bom dia”, ele diz.
“tranquilo”, respondo, fingindo estar prestando atenção na tevê
ligada.
Os dois vão para a cozinha. Tomam o café que fiz.
Riem de alguma coisa.
Não digo nada.
Ouço o trem chiando no encontro dos metais.
Vou à janela e assisto ele passar pela linha de ferro.
Ali, desapercebido, penso nas cores de um dia qualquer.
Me lembro de andar por uma rua de cata-ventos,
Olhando as fachadas coloridas das casas,
E uns moleques rodando pião. Compro um sorvete na esquina
E continuo andando
Passo em frente à porta de uma casa de quintal latindo, na frente
do portão, sentada num banquinho de madeira, uma mulher,
gorda, com as pernas varicosas e os braços grossos, degola uma
galinha, pisando com os pés inchados em cima de suas asas.
Está metida numa roupa remendada. Ela ajeita um prato perto
do pescoço do bicho lacerado que esguicha, e o sangue grosso

63
empoça a superfície do prato. Ela levanta a cabeça,
repentinamente, e, ao me ver de passagem, sorri pra mim.
Passa um vento qualquer agitando as árvores daquela rua.
Distraído naqueles pensamentos, sou pego por uma voz
que chega
“valeu cara, desculpa qualquer coisa aí”, me fala o sujeito,
ela ao lado.
“tudo bem” e depois volto a olhar para linha, sem nenhum trem
por lá.
E não consigo mais voltar aos devaneios,
q desaparecem junto aos cata-
ventos.

64
Dia XIX

Sem saber pq, fui procurá-lo em seu apartamento. Me dispus


pra isso.
Quando cheguei, ele abriu a porta com uma cara
péssima.
Vestido só de samba-canção e bebendo uma Skol
Me ofereceu, mas recusei.
Era mais ou menos nove horas da manhã de uma quarta-feira.
Sentei em seu sofá, a casa era uma imundície q só.
O odor de gordura se misturava ao cheiro de merda vindo do
banheiro
Me esforcei para não ir ao banheiro e vomitar, ou vomitar na sala
mesmo, já que se eu fosse ao banheiro, seria pior.
“a vagabunda me deixou cara”
“deixou ou tu expulsou ela?”
“não sei”, ele diz, não muito certo de coisa alguma.
“é foda”, concluí
“pior que ela me faz falta, sabe?”
“acho que sei”
“não sei onde ela deve de tá”
“pois é”
Ele toma um gole da cerveja, chacoalha a lata, vazia, e vai na
cozinha e volta com mais uma. Já está meio tonto, o infeliz.
“meu irmão morreu cara”, ele diz, “têm uns meses”
“mas ele já num tava morto?”
“tava, mas morto em vida. Agora ele se foi, definitivamente” “a
piranha fodeu com a vida dele e agora fodeu com a minha”
“é foda”, digo. Pego a lata em sua mão e dou uma golada
“pô, se quiser, pego uma lá pra tu”
“não, tudo bem”
“tudo bem o q cara” “bebe logo essa porra!”
“blz”
Ele vai à cozinha e volta com uma lata.
Abro, dou um gole, a desgraça tá quente. Dou outro gole.

65
Ele começa a chorar.
O chão está cheio de pêlo de gato, e pensando nisso, como que
atendendo ao meu pensamento,
do nada, aparece um gato enorme e pula pra cima duma cadeira
na sala.
O bichão fica me olhando, e depois começa a passar a língua na
pata.
“de vez em quando trago umas pra cá, mas não é a mesma coisa”
, ele diz, entre soluços e goladas na cerveja.
“imagino”, digo, e bebo tbm um gole.
“sabe, eu não tenho nada”
“quase ninguém tem”, bebo mais um gole, dessa vez bem grande.
A cerveja acaba, vou à cozinha, um lixo. Abro a porta da
geladeira, mais lixo. Pego mais uma lata, volto, sento ao lado
dele. E ainda o pego dizendo:
“é, é verdade mesmo”
Abro a lata, dou um gole. Arroto.
“boa”, ele diz, já sem chorar, mas com os olhos vermelhos.
Depois nos calamos. O tempo colado nas paredes.
Penso em todo trabalho que homens anteriores a
nós tiveram em erguer a cidade como um formigueiro. As pernas
açoitadas os braços tencionados. Em todas as manhãs e noites
perdidas, o som do intestino roncando a cor do nojo empoçada
nos espelhos.
Os dentes comidos pela cárie, a dor ferroando a mandíbula e a
cabeça, com a raiz exposta.
As noites mal dormidas, o trânsito entupindo as ruas varicosas,
As crianças correndo pelas vielas,
A diaba da fome carcomendo as fachadas dos
barracos e dos casebres maltrapilhos,
os loucos retidos nas sarjetas as mulheres loucas gritando
para crianças que não existem, atravessando as ruas sem olhar
para os lados, quase sendo atropeladas pelos veículos que
passam aos solavancos
Deus do céu, penso, pra que diabos tanto trabalho?
Tudo isso empilhado para que a gente continue os mesmos feitos
e morra por aqui mesmo, pouco desconfiados de quaisquer
coisas. Morrendo por ninharias

66
Depois que terminamos as latas, me despeço sem
alardes e tomo o caminho das ruas, quase como um descuido.

67
Ano XXVII: O Enlouquecido de Cafarnaum
*Prólogo para As Cinzas de Erém

Quando resolvi enlouquecer, pensei primeiro em me reduzir ao


fígado, e depois mastigá-lo. De todo modo,
Onde poderia conseguir tal ajuste?
Penso que para renascer em vida, requer um certo
aniquilamento do espírito, sentir o corpo reduzido à escombros.
No mundo tal como ele é e tal como as pessoas são, não poderia
desejar outra coisa senão me tornar as camadas de luzes duma
tarde qualquer
Ou o ar elétrico antes da tempestade.
Não imagino uma mudança na alma que não passe
por isso.
Para despertencer, em corpo e sangue, de uma sociedade
específica, de um estado que nos sobrepõe, é necessário sentir
que todas as convicções foram perdidas, os valores destroçados,
e o conhecimento de si, extinto.
O equilíbrio é o objetivo da turba, para tolerar o
intolerável, se moldar ao vigente. Tal qual um velho código de
honra que não conseguimos nos desemaranhar: que é o de
seguir o rebanho.
Não consigo pensar numa vida que não seja por
fora do tempo em que todos vivem. Para romper o elo que me
ligava ao presente, primeiro era necessário estourar os
tímpanos, perfurar os olhos.
Na órbita vazia, colocar erva daninha, pelos de gato,
fome canina.
Com novos olhos absorver a incerteza de novos tempos,
Extrair as luzes lançadas dos ermos.
Existir sob as sombras das amendoeiras e cajueiros,
e viver de chupar manga entre os galhos.
É como se através do fogo existissem uma lua nova e um deserto.
E essa lua brilha com as insinuações do fogo. E a noite tem a

68
fragrância das folhas amassadas e a seiva extraída. E o suor
daqueles que se perderam.
Existem, tal lua e tal deserto, mas primeiro é
necessário o preparo, o ritual de iniciação, se assim posso dizer.
Colocaria mais: andaria durante todos os conhecidos, e
pediria a eles que me esquecessem, completamente. Bateria em
cada porta, e choraria um choro de lágrimas vermelhas. Pediria
nem consolo e nem amparo, mas pediria esquecimento.
Esquecimento, repito, para além de tudo.
Gritar no seio da vizinhança que a fuga está na iminência,
nada vai nos fazer parar. A nova terra será tecida pelo instinto
felino, pelo gesto de passos de pombo.
Nenhum sentimento será enjaulado, a tristeza e a
alegria comum serão extirpadas.
Deitaremos sobre os campos
Para deixar e deixar os ventos despentearem
nossa alma, para além de tudo.
Mas antes, como um farol que desliga nossa presença,
irradiando-a até se perder,
todo um mundo, construído para esquecermos que estamos
realmente no mundo
...Prédios conexões vestimentas veterinários bichos de
estimação polissacarídeos bonecas infláveis ônibus plataformas
bala de hortelã morfina paracetamol válvulas motores indústrias
químicas família desodorantes pasta de dente usinas
hidrelétricas presídios clínicas lanchonetes mortes a varejo
lentes de contato computadores cigarros eletrônicos cartazes
outdoors vitrines lixões aterros sanitários rios envenenados...
tudo isso passa por mim como uma lufada.
Pois estou ainda nos esgotos de Belém, onde os soldados de
Herodes lançavam os destroços dos infantes ao ar, para rolarem
sobre as ribanceiras
, e toda minha alma formiga, de tanto êxtase e horror.
Então penso em Deus em qualquer momento. Penso nele
vestido no olhar perdido de quem está prestes a ser fuzilado, no
sorriso das crianças,
Na imensidão de um horizonte que curva
E tudo isso me vêm numa música de Beethoven, por exemplo,

69
e com isso, todas as hordas de homens de metal nas mãos
matando suas crianças e mulheres, e os campos dizimados.
Mas pensando em Beethoven,
eu penso exatamente nas tardes de minha infância pelas
bandas de Inhaúma ou na Posse , nos dias de que eu tanto que
delirado, não conseguia pronunciar nem meu nome, mas me
sentia tão livre ao ver o redemoinho agitar a poeira no meio da
rua. No cheiro da tempestade correndo o ar. No sol por detrás
de uma nuvem avançar sua sombra pela rua de paralelepípedos.
E exatamente, só posso pensar em Beethoven, e no
Deus que habita sua música, e
Na voz de um bêbado que conversava com as poças d’águas
naquela rua de minha infância.
Onde mais poderia me encontrar?

Volto ao trabalho, das férias, como inspetor. Começo de


ano, antes do carnaval, o calor empesteia o concreto armado e
deixa a atmosfera encardida e melada como doce fervido num
tacho.
As crianças ficam agitadas, excitadas pelo calor. Umas
meninas se aproximam, com vozes fogosas, cheias de malícia e
querendo alguma coisa, que não é de meu interesse. No entanto,
elas me pedem para sair da escola e comprar alguma coisa,
masdigo que não será possível. Elas insistem, dizem que vai ser
rápido, que logo voltam. Mas não deixo. Uma delas resolve mexer
na gola de minha camisa, ajeitando-a, mas afasto suas mãos e
digo que não pode. Seus olhos semicerrados e um sorriso de
esquecimento branco, quase sugam minha vontade. Mas resisto
e não deixo. Elas saem indignadas, resmungando meu nome
junto a palavras ofensivas, e voltam para um pátio, que há no
primeiro andar do colégio.
Todos gritam.
uns rapazes falam alto, próximos de mim, dizendo o que é
necessário pra levar uma mulher pra cama, um deles fala mais
alto, sobre como um primo seu tem um carrão do caralho, com
som alto, turbinado e que mete mais de 180 numa rodovia. As
mulheres adoram, segundo ele, ou novinhas, como costumam
chamá-las. Elas adoram um carro e uísque com energético. Seu

70
primo, prossegue, é um cara boa pinta, que anda cheio das
mulheres, que faz churrasco homéricos em sua casa que tem
piscina nos fundos. A mulherada se solta depois de tanta bebida,
e é só escolher uma delas que tá no papo, e depois leva pra um
quarto vazio que tem lá e um colchão no chão e é só meter a
vara.
Pego uma bala de hortelã no bolso e coloco na boca. Penso em
café e em dormir. Mesmo que contraditórios. Por ali ninguém me
nota, ou nota muito pouco. Quando precisam, falam alguma
coisa comigo. E só.
Os professores parecem sacos de carne e merda
socadas nos fundos de uma fábrica abandonada. Estão sempre
cabisbaixos e dentes amarelos e as ancas amassadas de tanto
ficarem sentados. Mal dirijo a palavra a eles e vice-versa.
Na sala de professores eles proferem sobre a angústia e
desespero diante de seus alunos incapazes e medíocres. Tudo
isso regado a café e rosquinhas doces e enjoativas.
Eu não digo nada, pego meu café num copo descartável,
e volto ao pátio, para vigiá-los. Penso em meu último emprego,
de vez em quando.
a curiosidade que tinha, sobre o que está do outro lado daquela
porta lá no subsolo, se atiça.
Toda manhã, no trabalho, volto à mesma rotina de sempre.
Vou ao banheiro dos funcionários, detrás da sala de professores,
e antes de começar meu expediente, toco uma bronha, com uma
satisfação de morte, e gozo, lançando o esperma quente sobre a
água da privada. Quase não me arrependo com esse
microgenocídio diário.
Quando os alunos estão em sala, a mulher da limpeza se
aproxima e conta alguma história de sua fatídica vida. Eu ouço,
às vezes até lanço um sorriso. Não fosse tão velha, eu ficaria com
ela.

Em toda volta pra casa, no calor que não cessa, uma


tempestade se aproxima arreganhando o crepúsculo. O
aguaceiro cai sobre as ruas e carros, transbordando o lixo e
esgoto, os tampões dos bueiros possessos, numa erupção de
água imunda.

71
Chego em casa geralmente encharcado. Odeio guarda-
chuvas. Vou ao banheiro, tiro a roupa molhada e jogo num
canto, depois
Me deixo lavar pelo chuveiro e penso em dias melhores.
Saio e mordisco alguma coisa da geladeira. Tomo mais um café,
sentado no sofá.. a jovem aparece, senta ao meu lado no sofá,
lança algumas palavras carinhosas. Depois se cala
Baixo a cabeça, olhando minha barriga, tento não deixar os
olhos umedecerem.
Ela inicia uma conversa
“estou aqui há meses e mal nos conhecemos”, ela diz.
“meses?”, não consigo mensurar o tempo.
“sim, e agradeço aos céus por encontrar vc e esse lugar” “não
fosse vc eu estaria na rua da amargura, como dizem. Realmente
não saberia o que fazer. Quero trabalhar, mas não sei por onde
começar. Sabe, não quero que vc pense que estou me
aproveitando de vc...”
“eu não penso em nada”
“pensa sim, sei que pensa. Vc se faz de difícil, mas não é. Tenta
ser uma coisa que não é. Não imagino alguém que viva como vc.
Exceto o medíocre com que eu morava antes. Aquele traste vivia
pior que um rato.”
“fico feliz por saber que vc me tem em alta conta. Agradeço”
“não é isso que quero dizer, não é isso.”
“não?”
“não”
Ouço o som do trem mordiscando o metal da linha. Me levanto
pra ver o espetáculo, mas é noite, e depois da tempestade, desce
uma neblina que embaça a paisagem.
Me sento ao lado dela novamente. Ela se entretém com a
televisão estacionada num programa qualquer.
Me levanto e vou na cozinha. Faço uma comida para
nós, mas ela diz que depois come. Como na cozinha mesmo.
depois fico olhando pra um lugar qualquer.

Uma professora nova chegou no colégio onde trabalho. Tudo


seguia no mesmo ritmo. Ouvia o cochicho dos professores pelos
corredores, todos queriam uma lasquinha com a novata. De fato

72
era uma mulher bonita, uma exceção, em relação as demais
professoras. Ainda não fora envenenada pelo tempo e a rotina.
Nem por todos aqueles alunos ingratos e a nociva estrutura da
escola, de um modo geral.
Não
Era bonita, jovem, olhos vivos, andar firme, sorriso de
amanhecer limpo.
Ela era simpática para com todos, ao menos parecia ser.
Falava com tranquilidade com os alunos, os professores e os
demais funcionários, inclusive com os da limpeza.
Vira e mexe eu a via estacionando seu carro, em frente à escola,
e ao chegar na portaria, abria um sorriso para comigo, num
radiante “bom-dia”
Eu a cumprimentava de volta e ela seguia para a sala de
professores
Tudo seguia neste ritmo, com nenhuma mudança no ar
Toda manhã
Antes do expediente, como disse, eu seguia ao banheiro por
detrás da sala dos professores e fazia meu ritual diário. Dessa
vez, um de meus alvos era a professora nova. Eu estava convicto,
havia visto umas fotos dela no instagran, depois de procurá-la
insistentemente pela net,
Eu a encontrei, combinando seu nome e sobrenome de várias
formas possíveis.
Vi algumas fotos suas de biquíni, provavelmente ela curtindo
suas férias. Mas uma, em específico, me atraiu.
seu corpo era perfeito, seios nada exagerados, bunda
anatomicamente ligeira e empinada, sorriso dentifrício, cabelos
cacheados caindo pelos ombros.
Ela e a paisagem que havia em volta, a areia, o mar, o sol
escapulindo pela lente fotográfica, faziam uma composição
perfeita.
Mas lembro de sentir um frio na barriga, quando me projetei
para bater a primeira bronha pra ela. Pensei comigo, porra, vai
ser uma punheta e tanto, vou gozar como um touro sentindo o
cio de uma vaca no ar.
Mas nada. não consegui.
Fiquei olhando estático para a foto dela na tela do monitor

73
Bateu um sentimento de qualquer coisa, e meu pau não
endureceu. Fiquei olhando praquele seu sorriso na foto,
inarticulado no tempo, seus cabelos deslizando num vento
congelado no instante, o sol estirado em sua pele, e projetando
uma sombra sobre a areia, pra sempre.
Sound of Silence começou a cavalgar sobre mim como uma visão
que se salga ao se debruçar sobre o mar, deslizando na
curvatura das ondas.
Vi as partículas de poeira dançando através de um facho
de luz projetado por entre uma fresta na cortina.
Me senti num dia qualquer dormindo debaixo de uma
mangueira, na tarde extrapolada pelos pássaros
Senti tudo isso como uma infância que se
revela outra vez, quando acreditamos piamente que nada mais
deveria acontecer, e sentimos isso, com todas as forças, mas nos
enganamos, e o tempo se curva, e a vida toma novas veredas.
Foi isso, cada sentimento que se apossou de mim naquele
momento, de sua foto em minha frente
Mas não queria me render, jurei que no outro dia, no banheiro
do trabalho, faria o serviço, como um assassino que perdeu o
contrato mas sente ainda o desejo de eliminar o alvo.
Mas quando projetei meu membro diante da privada, tentei
pensar nas outras fotos, ou em algo que me fizesse esquecê-la
tal como ela se projetou para mim, e a trouxesse de uma maneira
nova sem todos aqueles sentimentos
Mas nada
Minha pica não endureceu, não moveu um centímetro.
Não consegui.
Coloquei-a pra dentro da cueca e fui para o pátio, desgostoso
comigo mesmo, supervisionar os alunos que chegavam~
Quando ela apareceu, saindo do carro, senti um calafrio, um
pequeno vácuo tomar-me o centro do corpo, e produzir um oco.
Ela chegou
e como das outras vezes me deu bom dia
Respondi e lhe abri um sorriso,
Ela retribuiu, sem nada me cobrar
Quando voltei pra casa naquele dia, vi meu quarto com a porta
fechada. Uns gemidos saíam de lá.

74
Peguei uma lata de cerveja que havia na geladeira, e me sentei
no sofá. Dei uns goles, mas não liguei a televisão.
Depois de uma meia hora, a jovem saiu de lá, e ao se aproximar,
disse:
“olha, não é bem isso o que vc está pensando”
“então o que seria?”, pergunto, dando uma bicada na terceira
lata de cerveja
Ela não diz nada
Dou de ombros e me deito no sofá e continuo bebendo
a cerva.

Chega um vento descontrolado, formando redemoinhos


poeirentos e trazendo a tempestade que deixa o ar elétrico
No céu, se desmancha um sol embaçado entre
as nuvens, que horas antes esquentava os ermos e antros. O
mormaço
Estou voltando novamente do trabalho. Sinto a vida
latejar, retumbar no ar inchando o crânio do mundo, sua
animalidade convexa
Do outro lado da Estação de Coelho Neto, cinza delinquente
escorrendo sobre os contornos. A vida é uma insinuação
cromática desmanchando na velocidade e lonas azuis
balançando ao vento atiçado
Ao chegar no ponto final dos ônibus, me esforço para não
existir entre o que me cerca. As pessoas são devastadas pela
própria existência.
Os ambulantes aquecem as gargantas anunciando suas
mercadorias. Toca, de algum lugar entre as barracas dos
camelôs, Montagem do Mini Game, um funk das antigas que
empesteia o ar junto a um vira-lata que estraçalha um resto de
cebola com as presas.
Um pombo acaricia o chão.
Os ônibus passam frenéticos caindo através dos sonhos,
no horizonte onde as arcadas falecem no reboco que cai, e as
articulações são chumbadas.
As filas imensas esperam os ônibus se atravancarem um
atrás do outro, até que, inchados de gentes,
possam sair dali quase se esbarrando

75
As pessoas sabem seu lugar na fila. Bufam e cospem para
mostrar o quanto estão insatisfeitos, mas nada além disso.
Todos aceitam a vida tal como ela é. É o velho acordo assinado
com o sangue fedido da placenta.
Nessas horas não consigo não pensar num amigo de Inhaúma,
que se foi há anos. Pensar em suas alucinações a céu aberto,
como uma loucura de pó de ferro e querosene,
E de seu sorriso encetado por debaixo das sombras das árvores
que margeavam os paralelepípedos.
Não sei pq penso nestes estrupícios de lembranças, de gente
resguardada e perdida nas entranhas de meu passado, que não
têm nenhuma relação com as pessoas que me cercam agora no
presente
Mas posso pensar em você,
meu amigo, ainda assim. Te pensar pelos ângulos mais
inimagináveis, nas estações que escorrem pro verão,
naquelas tardes em que dibicávamos as pipas. Em todas
aquelas tardes que olhávamos o céu entrecortado por fios
embolados nas gambiarras, os tênis linguarudos asfixiados e
cabeças de bonecas degoladas
olhávamos as ruas fugindo pelas esquinas, e não poucas
vezes corremos pelos becos atrás dos balões caindo cadentes,
riscando o céu azul como safira leitosa.
Por debaixo das amendoeiras esticadas, o chilrear dos
pássaros e cigarras cantando as lonjuras da tarde
E chupávamos sacolés de frutas nos entrecantos por debaixo
das sombras dos galhos
, tu me dizias que quando crescesse alcançaria o topo das
nuvens com um gesto de fogo na ponta das mãos e nenhum
equilíbrio
As revoluções de nenhum tipo chegaram até nós por dentro
daqueles tempos, nem qualquer glória que poderíamos ostentar.
Quando me falaram que você morrera, não acreditei.
Meus olhos não concebiam tal imagem, meus ouvidos não
consentiam tal possibilidade. Você não podia morrer. Aquela
carcaça com a carne podre e escurecida, há dias na geladeira do
IML, e que tanto fedia, não era você. Senti nas entranhas que

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aquilo não era você, não podia. Ninguém podia lhe fazer nenhum
mal, se lembra?
Dentro do ônibus lotado, me espremo entre os demais.
Uma queimada avança sobre um matagal lá fora, às margens da
Avenida Brasil. O trânsito imóvel. As cinzas rodopiando no ar
chamuscado. O cheiro da queimada entra-me pelas narinas. As
cinzas caem sobre mim. Alguém fecha uma das janelas do
ônibus, mas a sensação é de sufocamento.
não adianta, as cinzas continuam a cair sobre nós.

Uma nova diretora adjunta subiu ao cargo. A infeliz era


professora de sociologia, se não me engano, mas depois que a
antiga diretora fora afastada, por um motivo que desconheço, a
professora se viu no cargo.
Pelo que eu soube, ela era inimiga declarada da antiga diretora
adjunta e da geral.
Fizera de tudo para derrubar ambas, que eram duas
megeras, diga-se de passagem. Ao que parece, conseguira.
Ela e outra mulher tomaram o cargo de adjunta e geral,
respectivamente.
Mas essa nova adjunta, era pior ainda que as duas megeras
anteriores. Assim que assumiu o cargo, mostrou suas garras.
A desgraçada tinha a aparência de um sorvete
casquinha derretendo, desses que se vendem em esquina. As
pernas finas e afuniladas, da cintura pra baixo. Pra cima, gorda
e banhenta, com suas banhas se empapando umas sobre as
outras, entranhadas nos ossos, os braços de veias estufadas e
azuis, as rugas engelhando a cara saturada de maquiagem, as
bolsas enormes por debaixo dos olhos. Banhas e banhas e
banhas,
banhas em todo o lugar, sobre os braços, a barriga,
nas costas e nas bandas do corpo.
Andava desajeitada, e com a boca intumescida colada na cara
achatada.
Passei a chamá-la de balofa em meus pensamentos.
A balofa era terrível com os professores. Lhes cobrava até a cor
da caneta com que deveriam escrever os diários.

77
Era chata, sonsa, implicante, birrenta e babenta. Um
horror.
Passei a odiá-la com afinco.
Se era ruim com os professores, com os outros
funcionários, era ainda pior.
Enchia o caralho do saco, exigindo coisas que não importavam
a ninguém, apenas aos olhos fúteis dela.
A balofa.
Vivia sebenta, os cabelos escorridos na cabeça ovalizada. O que
lhe faltava era, para além de tudo, singularidade. Estava
intumescida pela própria miséria. E saracoteava sua bazófia
entre aqueles que ela considerava inferiores, ou seja, todos
abaixo de seu cargo.
Um dia, depois de minha bronha diária no banheiro dos
funcionários, fui até a sala dos professores, pegar uma chave
reserva de meu armário, já que a outra eu tinha esquecido em
casa. era pela manhã, pouco depois de bater o sinal.
Assim que entrei na sala, estava a balofa e a professora
nova. Ela lhe gritava sobre responsabilidades. A balofa se erguia
sobre a segunda, como um elefante empinando, levantando seu
braço pelanquento sobre o rosto da professorinha. A tromba
serpenteando pesadamente num instante inarticulado.
A professora, sem reação, ouvia os
esporros da balofa.
Assim que entrei na sala, como dizia, a balofa desferiu
seu olhar pro meu lado, cheio de bolsas por debaixo dos olhos,
e falou o que que tu quer?
Vim pegar minha chave reserva, disse
Ãh bem, ela continuou. A professorinha, quase encolhida
num canto, pegou seus diários, e se aproveitando daquele
intervalo em meio aos esporros, saiu da sala. A balofa quase que
lhe pegou pelos braços. Mas a professorinha seguiu seu
caminho.
A balofa saiu chutando os cantos, resmungando alguma
coisa.
Peguei minha chave e segui pro corredor das salas de
aula.

78
Um instante olhando para alguns alunos fora de sala de
aula, me deixa enervado. Vou até eles. Eles cinicamente dizem
que estão ali para beber água. Mas sei que não. Saíram dizendo
isso ao professor, mas estavam de troça, gritando, bagunçando
o corredor. As meninas riam, os moleques, atrevidos, faziam
macaquices pro lado delas.
Bando de estrupícios!, gritei, vão pra sala de aula. Está na
hora da aula.
Um deles riu, as meninas soltaram risinhos, outro correu pra
dentro do banheiro masculino.
Quando entrei no banheiro e abri uma das portas, ele estava de
calças arriadas, pulando em cima da privada, balançando a
porra do pinto pro meu lado, rindo como um esganado.
Peguei-o pelo braço e o joguei no chão do banheiro,
que fedia a mijo.
Ele se levantou dizendo que eu não podia fazer aquilo com ele.
Levantou as calças. Eu respondi que se foda, que ele que não
devia estar fazendo aquilo. Aproximei meu rosto do dele Encarei-
o olho no olho, ele desviou o olhar e disse que iria falar com a
diretora.
Fomos para a direção. Ele contou a versão dele e eu a minha. Os
outros serviram de testemunha a favor dele.
O moleque tomou uma advertência. A
diretora me disse que eu não devo ou devia tocar em aluno, em
hipótese nenhuma. Eu disse que tudo bem. Ela disse que mais
uma daquelas, eu iria pra rua, por justa causa, sem direito a
caralho nenhum.
Ela me deixaria de porteiro enquanto isso, um pouco longe
dos corredores. Eu que não podia fazermerda nenhuma, aceitei.
Os outros professores souberam do ocorrido e me
desprezaram ainda mais. Menos a professorinha, de cabelos
cacheados, corpo pequeno e sinuoso. Mas o olhar que me dirigia,
era de pena. O que ainda era pior.
Naquele mesmo dia fui ao banheiro, tentei uma bronha, mas
nada
olhei definitivamente pro espelho, e sentia
minha carne engelhar, o peso dos anos se abater sobre minha
existência.

79
Lembrei da Posse novamente de um dia num campinho de
futebol nas margens de um valão e eu arrumar confusão com
um dos moleques do lugar. Um tal de Cristiano, que morava
num terreiro de macumba. O infeliz pegou um facão dentro de
casa e correu pro meu lado, quando eu disse que uma de suas
inúmeras irmãs tinha maior rabão.
Ele correu atrás de mim que nem excomungado e eu saí pelas
ribeiras, rodeando os monturos à beira do valão, e correndo pra
dentro da casa da minha tia. Ele atrás, catiço, gritando atrás de
mim.
Quando entrei em casa, ele ficou no portão, gritando,
dizendo que ia me esfolar vivo. Minha tia saiu porta afora e
enxotou ele que nem a um vira-lata. Ele baixou a guarda e saiu
chutando poeira, com o facão arriado.
Do canto da janela eu ria, escondido. Já esperando o esporro e
sermão de minha tia. E pensava comigo: “maior rabão do caralho
mesmo” “haja pica pra encarar aquilo ali!”
Minha tia era uma megera. Um estrupício. Chata pra caralho,
carola, vivia na igreja e na porta das fofoqueiras de plantão
falando mal da vida dos outros.
Uma merda. Depois da confusão com Cristiano, me prendeu em
casa, me fazendo estudar a Bíblia. Estudei com afinco. Moisés,
Nabucodonosor, Sansão, Isaías e outros,
foram meus companheiros de noites e dias.
Me pensei no deserto, no Egito, em certa altura do Nilo olhando
suas águas, em seus deuses surgindo da areia e me tocando o
cenho, a luz da lua profunda penetrar as águas daquele rio
imortal e espíritos faiscarem em meus olhos
Minha tia mesmo nem lia, só as passagens
miúdas repetidas constantemente pelo pastor nos dias de culto.
Sem ir pra rua, eu pensava na primeira infância, nos
dias que viviam esfiapados no grosso das lembranças. Eram
lembranças e passagens com gosto de café-com-leite, cheiro de
talco e
Terra molhada pela chuva.
Os moleques daquele lugar eram retintos em sua
maioria, pretos que nem carvão. Eu mesmo era preto, mas de
pele desbotada. Era um mulato, filho de preto com cabocla.

80
Apesar da fome e da miséria, os moleques da Posse
cresceram a ponto de ficarem do tamanho de adultos e com força
de caminhoneiros e estivadores. Eu me misturava entre eles, e
nos dias trancado em casa, ficava pensando neles, na
companhia deles. gostava deles. gostava de me misturar com
eles e falar das vizinhas safadas, de futebol, pipa e bola-de-gude.
Não tínhamos muito o que fazer, então inventávamos
nosso próprio tempo. Estávamos à beira da civilização e a
maioria de nós ou morreria estocada ou baleada numa hora
grosseira qualquer ou nos mataríamos diariamente em
subempregos para sustentar nossos filhos catarrentos e nossas
esposas barrigudas e mal-amadas. De todo resto, éramos felizes
com que tinha chegado até nós. Não à toa que Ficávamos
debaixo do sol, chutando um trapo de bola e rindo com os dentes
grandes e encavalados amarelados pelo café-com-leite.

Ao chegar em casa, deitei no sofá, sem dizer nada. a jovem não


estava em casa, ao que parecia. Era começo de noite, uns cães
latiam lá da rua. A noite descia pelos parapeitos e encostava
seus dedos invertebrados na luz amarela que escorria dos
postes. Pensei na carne futura, no leito em que eu dormiria.
Pensei em vc naquela outra vez que vc talvez tenha esquecido. E
penso num sonho durante a tarde, o calor se projetando através
da parede e aquecendo minha carne até o ponto de uma ereção
e eu ejacular no vazio.
Sinto saudades de sua carne quente e úmida. De
vc girando o quarto e fazendo de minha vida um trapézio. Penso
em vc tem horas do dia escorrendo rio e sua boca arquejando,
pedindo por mais, e tomando a atmosfera com seu hálito de
esperma.
Então colho com a boca a tal eletricidade que incita
meus dentes ao Estilhaçamento na gengiva.
Queria ser aquela volúpia descarnada pra lamber seu corpo com
morte lenta.

Quando chego no trabalho tudo parece sozinho, cheguei um


pouco antes do horário. Abro o colégio. Vou até o banheiro, agora

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porteiro, coloco o uniforme. Penso em ninguém e bato uma
bronha pro vazio.
Sinto novamente minha visão e meu pensamento sobre nada
voltar com força.
Deu olhar pro vazio,
Pros segundos como eternidades flutuarem na poeira que dança,
No azulejo do banheiro rachado conclamando suicídios...
Cristo, penso, onde foi que me enfiei? ]
Na portaria, ainda ninguém chegara. Um carro passa pela rua
apressado, deslizando os pneus pelo asfalto.
O céu da manhã se descortina cinza, e vejo o vento agitar
as árvores no estacionamento
do colégio. O barulho das folhas varrendo o
chão, e volto pra dentro do colégio
Me sento num sofá na sala dos professores. Encosto minha
cabeça e me deixo levar por lembranças que imaginei ter
esquecido.
Nêgo, Dêgo, Cal Maluco, Lambão, Ciriba, Meleca,
Jairo, Miquissagem, Irmãos Morango, Sérgim, Nênem, Mangão,
Pêi Paulada, Cristiano Batuqueiro...
Eram esses os nomes de meus amigos lá na Posse.
Quando crescemos um pouco mais, e estávamos enormes, como
disse, passamos a dominar as ruas.
Uns borra-bostas que diziam ditar as regras do lugar, com uns
trêsoitões enferrujados e vendendo papelote de pó para crianças,
foram logo expulsos por nós.
Cal Maluco nos chefiava. Tinha instinto de gente
que passou fome até não poder mais e só faltava engolir a
gengiva para não morrer.
Cal vivia numa casa velha, sem reboco, de quintal grande,
Onde sua mãe criava meia dúzia de porcos num cercado de
tábuas velhas, e algumas galinhas dentro de enormes gaiolas
improvisadas, com grades feitas de arame.
Havia também uns cachorros e uns gatos, umas tartarugas e
alguns coelhos
A bicharada era criada solta junto das crianças, os
irmãos menores de Cal.

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Era tudo muito emporcalhado, com cheiro forte de
merda de bicho por toda parte. Mas ninguém se importava com
isso, ao que parecia. Estavam todos satisfeitos com a situação
onde se encontravam.
Cal Maluco tinha mais oito irmãos, entre
eles, Nêgo e Dêgo. O resto, eram crianças pequenas, retintas e
catarrentas, que viviam brincando na lama, rindo e em
berreiros, metidos na imundície junto dos bichos.
Os pais das crianças sumiram-se no mundo, e Cal chefiava a
casa.
Diziam, na boca miúda, entre boatos ordinários,
que Cal mesmo engravidara a mãe
umas tantas vezes, já que por ali em sua casa regra alguma se
aplicava.
A anomia reinava.
Pêi Paulada vivia carregando uma perna-de-três pra tudo que é
lado, e quem se intrometesse em seu caminho levava logo uma...
bem, já devem supor o que acontecia...
Sérgim era um sujeito cabisbaixo, que
queria família, mulher e uns filhos pra ter algum prumo. Vivia
entrando e saindo da igreja, um pardieiro evangélico de um
pastor cheio das maracutaias e mancomunado com os poderes
locais.
Quando tava na igreja, seguia os preceitos do pastor. Quando
não estava, momentos que ele chamava de recaída, Sérgim tava
metido em algazarras com as meninas pelas bodegas, ou em
pequenos furtos nas casas da vizinhança
Mas Sérgim era gente boa, apenas um tanto quanto
ingênuo pro lugar.
Jairo, diferente de Sérgim,
era um sujeito esperto, capoeirista, que vivia dando
piruetas no ar. Era bom de bola também, e seu sonho era jogar
no Flamengo, time de seu coração.
Se Achava esperto o suficiente, e que não se deixaria levar pelas
situações que eram impostas ao lugar. Se não fosse um jogador
de futebol, algo difícil de se conseguir, convenhamos, seria
professor de capoeira, daria aulas pras crianças do lugar, e
quem sabe, conseguiria o amor de uma gringa que o levaria pra

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fora dali, como acontecera com um sujeito lá da sua roda de
capoeira.
Tudo era possível, segundo Jairo.
Não conseguiu nem uma coisa nem outra. Fora
morto por outro sujeito, de um bairro vizinho, que segundo
constava, Jairo queria tomar sua namorada.
Morreu pela manhã, indo pro colégio, com uma canivetada nas
costas seguida de uma pedregulhada na têmpora.
Como a polícia não ia por aqueles bairros, já que os
chefes-de-rua locais tinham acordos com eles, nada aconteceu
ao sujeito, que era sobrinho de um deles.
Amávamos Jairo, e não esquecemos o que lhe
aconteceu. anos mais tarde, quando dominamos as ruas por um
breve período, destroçamos o sujeito, e jogamos seus restos num
valão.
Nênem e Mangão eram irmãos. Eram dois crioulos
enormes, ainda maiores que Cal Maluco, embora nem um pouco
tão doidos.
Nênem era o mais novo e fora o meu amigo mais chegado, nos
tempos em que morei na Posse. Mangão era desconfiado de tudo
e de todos, se achava muito bom com a bola (mas não era),
porque chutava bem com as duas pernas. Mas era só isso. Ele e
eu estudávamos no mesmo colégio, no centro de Nova Iguaçu. O
restante estudava numa escola do bairro mesmo.
Mangão era bom de matemática e bom de porrada. Não
poucas vezes ele me protegeu no colégio, derrubando os
moleques maiores que mangavam de mim. Apesar de
desconfiado, Mangão gostava de mim, ao que parecia. Me tinha
em bom lugar. Éramos amigos, segundo constava.
Mangão tinha a cabeça ovalizada, grande, que parecia uma
manga, daí de seu apelido.
Meleca era o mais alto de todos, e também um dos mais
magros. Jogava futebol, mas gostava de basquete, embora
nunca tenha jogado ou chego perto de uma bola de basquete ou
de uma quadra de. O que sabia de basquete, fora o que vira pela
televisão. Pensava isso, ao que parecia, por ser muito alto,
esticado, com os joelhos e cotovelos salientes.

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Era feio de dar dó. Na verdade, tirando Jairo, espécie de galã de
periferia, o resto era um desastre de feio. Meleca era ainda mais.
Feio como o diabo pelo avesso. Quando se encostava na esquina,
dando petelecos no ar, ou atirando pedras num lugar qualquer,
visto de longe, não sabíamos se era ele de fato ou uma entidade
de macumba azucrinando a encruzilhada. Como o bicho era feio,
meu Deus! Pra piorar, ele era gamado numa menina da
Esplanada, um bairro vizinho, pavimentado, de casas com
interfone e fachadas simpáticas e flores em vasinhos
dependurados em correntes enganchadas no teto. A menina era
branca, limpa, olhos e cabelos claros, e de alguma condição
financeira superior, bem melhor que a nossa, diga-se de
passagem. Conhecíamos ela, pq sua mãe e tia, faziam caridade
para algumas famílias de nosso bairro. Famílias que eram ainda
mais miseráveis que as demais, e mal tinham com que forrar o
estômago. Meleca, obviamente, nunca arrumaria alguma coisa
com a tal menina. Mas, segundo nos dizia, isso era coisa de
pouco tempo. Logo estaria num time de basquete lá dos estêites
e as coisas iriam de vento e polpa. Voltaria pra Nova Iguaçu, e
levaria ela consigo.
Nem preciso lhes dizer que nada disso aconteceu, não
é?
Pois bem, tinha Lambão também. Tinha problemas mentais. Um
idiota, como diziam. Tinha a cara mongolizada, o riso
encavalado, a boca enorme e os olhos inexatos. Era o mais
retinto de todos nós. Vivia com fome. Vivia ainda pior que Cal
Maluco e seus irmãos. Num barraco de madeira grosseiro às
margens de um trecho de mangue que restou no lugar. Vivia
rodeado de lama. Estava sempre com fome, como dizia.
Se via algum de nós comendo alguma coisa, vinha logo com os
olhos pedintes e a boca babando. Tinha os dentes enormes e
encavalados, como disse. Sua voz era fanhosa, quase não
entendíamos o que dizia. Então se comunicava com grunhidos,
na maioria das vezes. Vivia sujo, vestido em trapos, as canelas
ruças, as unhas dos dedos encardidas, os tendões dos pés
estufados, cheios de crostas de sujeira. Andava sempre descalço,
sem camisa, os carapinhos amontoados na cabeça. Usava uma
bermuda enorme, larga, sobrando na cintura, possivelmente

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doação de alguém, de algum adulto ou de algum moleque bem
maior que ele. Vivia com aquele trapo de bermuda caindo-lhe
pela cintura, sem cueca, e ele a segurando com uma das mãos.
Era o mais traste de todos.
A maioria não suportava sua presença. exceto quando
queríamos tirar uma casquinha de sua irmã mais velha, Ana.
Ana era taluda, bunduda, peitos volumosos, balançando sem
sutiã por debaixo de uma blusa branca e encardida.
De vez em quando a levávamos para o meio de um matagal
próximo e nos divertíamos. Ana sabia das coisas. Era uma
boqueteira incontestável. Chupava como ninguém os paus dos
moleques da Posse. Era fácil também. Facílima. Lhe desse
qualquer coisa: um alfinete, um pirulito, um saquinho de balas
e ela já se oferecia. E se não tivesse, bastava jurar que lhe daria
algo depois, e estava tudo certo. Qualquer coisa que lhe matasse
a fome, já bastava para ela nos acompanhar até o meio do mato.
Foi eu morar por ali, que ela logo apareceu na frente do quintal
de minha tia, me olhando por entre as grades do pequeno portão,
com os peitarrões erguidos, um sorriso no rosto, a boca carnuda,
os olhos lascivos.
Quando minha tia a viu, a enxotou como a uma cadela danada.
Ana que nem aí, e saiu rindo, com piscadelas pro meu lado,
empinando os peitos, saracoteando aquelas nádegas enormes
pela rua.
Não demorou muito e eu a levei pro meio do mato e
me deliciei. No dia, ela estava tomando conta de Lambão e os
outros irmãos, enquanto a mãe estava não sei onde. Quando ela
saiu de casa, na ponta dos pés, para não ser vista, veio o
estrupício do Lambão grunhindo e expelindo sua voz fanhosa.
Ele ameaçou-a, disse que se deixasse ele e o resto dos irmãos
em casa, sozinhos, ele falaria com a mãe. A mulher, violenta,
como as demais do bairro, daria uma surra de arrancar a pele
de Ana, de deixar o lombo ardendo e com calombos em toda
parte. Tive de gastar meus últimos centavos (estou sempre nos
últimos centavos) que tinha e comprei um sorvete casquinha pro
Lambão. O infeliz ficou se deliciando com a guloseima, no meio
do quintal cheio de cacarias e merda de bicho, e nos deixou
partir.

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Eu era um novato e Ana me ensinou
tudo, graças ao bom Deus. Quando ela empinou aquele rabo
volumoso pro meu lado e apareceu sua vagina quente e estufada
e deliciosamente arroxeada e molhada pro meu lado, eu tive uma
das maiores ereções de minha vida. Penetrei-a com afinco,
estocando aquele buraco úmido como a última coisa a se fazer
na existência, e depois disso, o nada intransponível.
Quando gozei,
gozei como um touro,
espalhando meu sêmen quente sobre suas nádegas taludas. Ela
ria que ria de gozo e satisfação. Eu sentia meu corpo mole, os
joelhos como vidro se partindo,
e sentia que todos e tudo eram meus amigos do peito.
As ruas da Posse não eram asfaltadas, como disse em
outro momento. Havia muitas valas negras a céu aberto.
Manilhas apodrecendo em
terrenos baldios, de obras que nunca eram concretizadas. Havia
muito lixo, e monturos de entulhos e outros restos às margens
dos valões.
As bodegas eram pardieiros tristes, com luzes piongas
caindo dos tetos improvisados e bêbados sentados em cadeiras
ordinárias.
Quase ninguém trabalhava ou fazia muita coisa, a maioria vivia
de bicos, ou ajuntando cacos pelas ruas para vender nos ferros-
velhos do bairro.
Os cacos eram disputados com afinco, e
raro não eram as vezes que houve disputas que levavam à morte.
As disputas eram tão ferrenhas, que em muitas ocasiões,
atravessavam anos, atingindo gerações posteriores e que não
eram nem nascidas quando ocorreu a desavença original.
As mulheres eram em sua maioria um bando de doidas varridas
e histéricas, envelhecidas precocemente, andavam com pouco
ou nenhum adorno, quase sem pintura na cara, e desgrenhadas.
Viviam xingando seus filhos, que eram muitos, de vários pais
diferentes, e os espancavam em surras homéricas por ninharias.
As crianças menores eram sujas, malvestidas, quando muito,
com trapos, de bigulim pra fora, nuas, catarrentas, comendo

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sujeira e os narizes escorrendo. Viviam brincando na lama ou
nos monturos, junto aos bichos.
Pela manhã ficávamos num ponto da esquina, rindo de nossas
troças e piadas.
Não fazíamos nada, não queríamos nada com nada, e sabíamos
que não tínhamos futuro em parte alguma.
Os mais velhos achavam aquilo um absurdo, um
despropósito, mas ninguém dizia nada. ao menos na nossa
frente. quando jovens, fizeram o mesmo que a gente, ou seja,
nada.
Minha tia nessa época estava ainda mais velha e combalida dos
ossos. Vivia sentada numa cadeira na cozinha, desfiando algum
tecido, vendo tevê ou resmungando de alguma coisa. Sentia falta
do marido morto há muito. E dos filhos que nunca iam visitá-la.
Minha tia não era dali da Posse, originalmente. Ela tinha a
melhor casa do bairro, diga-se de passagem. Ela era do centro
de Nova Iguaçu, e depois que se aposentou, com mais a pensão
do marido morto, militar reformado, fora morar na Posse, onde
comprou uma casa.
Só Deus sabe o porquê.
Eu vivia na rua. Tinha abandonado o colégio como a maioria.
Vivia de pequenos furtos, que eu e os demais cometíamos nos
bairros vizinhos. Nessa época, minha tia não tinha mais
autoridade sobre mim. Como seus filhos tinham adquirido uma
vida um pouco melhor que a maioria,
Não se dispunham a ir visitá-la com regularidade.
Não sabiam que eu andava aprontando. Eles eram mais velhos
que eu, e nunca os chamei de primos ou algo do tipo.
Para mim eles não passavam de merda, não eram nada.
No nosso bairro, mantínhamos uma suposta proteção das ruas,
e não cobrávamos nada, apenas o silêncio dos vizinhos.
A polícia de vez em quando chegava com um ou outro camburão,
depois de inúmeras reclamações e ocorrências.
Ninguém lhes dizia nada.
Tínhamos meninas ao nosso dispor. A maioria jovem,
de nossa idade ou um pouco mais novas. Assim como nós, não
faziam nada também.

88
Elas adoravam nossa coragem, nossa vagabundagem,
nossa audácia.
Comíamos elas num quarto minúsculo, que Cal
Maluco alugou pra nós de uma senhora aposentada, que vivia
no fundo do bairro. Arrumamos alguns colchões velhos e
manchados e os deixamos espalhados pelo chão. O teto era
avariado, e quando chovia, o lugar se enchia de goteiras, e
tínhamos que trepar com elas numa atmosfera úmida, com
cheiro de mofo.
Ana, a mais velha delas, as chefiava para nós.
Elas gostavam disso, desse tipo de vida sem amanhã, colada no
presente, cheia de peripécias e com cheiro de morte sempre se
insinuando.
Tínhamos quase nenhuma arma de fogo, apenas uns trêsoitões,
os mesmos enferrujados que tomamos dos traficantes locais de
outrora.
Uma das meninas, Carminha, sem sabermos,
começou a fazer ponto às margens da Rodovia Dutra, e depois
foi recrutada por um cafetão que agia no centro de Nova Iguaçu.
Em pouco tempo, passou a trabalhar numa terma do sujeito.
Quanto a isso, não era de nossa conta, e cada um fazia o
que quisesse com sua vida. Mas passou a ser de nossa conta,
quando numa noite, ela chegou com a cara machucada, e cortes
profundos nas pernas e braços. Disse que o tal sujeito, seu
cafetão, tinha feito isso. Era um sujeito razoavelmente são, pelo
que parecia, mas quando tomava umas doses de uísque e metia
pó no nariz, virara o cão.
Cal Maluco se enfureceu, porque a tal Carminha era uma de
suas preferidas.
Pegamos as coordenadas do lugar, e numa noite, roubamos um
carro na Esplanada e nos dirigimos pro centro de Nova Iguaçu.
Alguns ficaram na Posse, preparando o terreno para darmos
uma coça ferrenha no sujeito.
Assim que chegamos no centro, entramos na terma e
sequestramos o sujeito à força, com os tais trêsoitões
enferrujados que tínhamos.
O levamos pra um terreno-baldio na Posse, e demos uma coça
no infeliz. era para ser só isso, mas Cal Maluco, nosso líder, um

89
negro enorme, forte, embrutecido, como já disse, se endoidou e
com a navalha de um punhal, que ele pegou no centro de
macumba de Cristiano, cortou o lado do rosto do sujeito,
da orelha até a boca.
Apareceu a carne viva, branca, a cartilagem, as camadas de
gordura, tomadas pelo sangue, os tendões, os ossos da
mandíbula e os dentes. Um talho horrível. Depois Cal Maluco
terminou o trabalho, e meteu a navalha na altura do coração do
sujeito, olhando-o dentro de seus olhos, enquanto exalava seu
último suspiro.
O cafetão desabou no chão, com os olhos esbugalhados,
um sorriso rasgado, hediondo, riscado na cara, atravessando
metade de sua cabeça.
Com o sujeito ainda no chão, Cal Maluco, insatisfeito, se
agachou,, meteu o punhal no bucho do sujeito, rasgou de cima
a baixo, as tripas borbulharam e saltaram pra fora. Um cheiro
de merda alcançou nossos narizes. Um dos irmãos Morango, o
mais novo, não aguentou, e vomitou num matagal próximo.
Cal Maluco se levantou, a mão empunhando o punhal
encharcado de sangue grosso, riste para o nosso lado. as guias
dependuradas e batendo sobre o peito largo e negro.
Cal Maluco olhou para todos em volta, parecia incorporado por
algum deus esquecido e sanguinário da Babilônia, que por
algum motivo escapuliu do terreiro de macumba da casa de
Cristiano e invadiu sua carne.
seus grandes olhos embranquecidos, reverberando as
luzes de uma fogueira próxima, bruxuleando dos monturos.
Cal Maluco agitou um sorriso nervoso pra cada um de nós. Os
dentes enormes.
“diabo de vida esganada essa num é?”, disse.
Senti os ossos tremerem por dentro da carne.
Ninguém disse nada.
Deixamos o corpo ali mesmo, exposto, desviscerado, com um
sorriso hediondo cortado no rosto e de papo pro ar.
Fiquei noites sem dormir, vendo o cadáver do
cafetão rindo de orelha a orelha, literalmente, as feridas
corroídas pelos vermes, as tripas despencadas da barriga aberta.

90
Quando pegava no sono, os sonhos se agitavam como
tempestades, mar ressacado destruindo as bordas continentais,
e então eu acordava empapado de suor dentro da madrugada,
os olhos bem abertos, os pernilongos zumbindo em volta.
Eu tentava chorar, mas nada. não pensava em vc,
decerto. Vc não existia em minha vida, até então.
O cafetão era filho de um comerciante importante do centro de
Nova Iguaçu. O sujeito se enfureceu, e em sua sede de sangue,
contratou uns milicianos para nos caçar.
Fomos sendo destruídos um a um.
Pegaram Meleca, na porta de casa, encheram o sujeito de tiro.
Pêi Paulada morreu cheio de madeirada. Triste ironia.
Tentaram fazer ele caguetar o resto do bando, mas ele se
recusou. Disse que preferia morrer a ter que caguetar um dos
seus.
Grande Pêi Paulada!
Os irmãos Morango mataram dentro de casa. aproveitaram e
mataram seus pais também. Sempre bom lembrar que eram os
únicos que tinham pai e mãe dentro de casa.
Sérgim deu linha na pipa e se mandou. Sumiu-se.
Miquissagem também.
Cristiano Batuqueiro foi encontrado com os ossos
moles dentro de um valão. A boca e o ânus, destruídos.
As guias dependuradas no peito.
Cal Maluco tentou resistir, ele e seus irmãos, Dêgo e Nêgo.
Usando os tais trêsoitões velhos que tínhamos, trocaram tiros
com os milicianos, superiormente mais bem armados.
Houve uma caçada pelo bairro. Os três escapuliam e
metiam tiros pra tudo que é lado. corriam descalços pisando o
chão de terra batida.
Os vizinhos metendo-se para dentro de suas pobres casas,
assustados.
os milicianos no rastro dos três, largando tiros de
calibres grossos.
Foram cercados no campo do Carioquinha, onde
costumávamos jogar bola de vez em quando.
Tentaram resistir. Mas as balas estavam no fim. Ainda
conseguiram acertar alguns milicianos.

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Depois de mortos, foram decapitados, feitos em pedacinhos e
queimados em fogueiras nos monturos às margens de um valão.
Jogaram bola com suas cabeças, costume que pegaram com os
traficantes do Complexo do Alemão.
A mãe deles gritava e esperneava pelas ruas, como uma doida,
arrancando os cabelos, babando, abrindo enorme berreiro,
enquanto suas crianças menores, iam em volta dela, puxando
suas roupas, sem nada entenderem do que acontecia com a
mãe.

Me salvei por um triz. Assim que os milicianos iam de casa em


casa procurando pelos culpados da morte do cafetão, Ana se
esgueirou pela rua, chegou-se ao quintal de minha tia e me
chamou, quase num sussurro. Olhei pelo canto da janela,
quando vi que era ela, me aproximei, mais ressabiado que
boneco de judas em sábado de aleluia.
Ela disse para eu sair dali, naquele instante, pois logo
os milicianos chegariam.
Não pensei duas vezes. Peguei uns cacos de dinheiro que tinha,
meti umas roupas numa mochila velha, a mesma que eu não
mais usava, já que não ia mais pra escola.
Me esgueirei pelo quintal, abri o portão e me mandei. Deixei
aquele corpo delicioso de Ana para trás, e todo o resto: os
amigos, as pobres ruas, as bodegas, as tendinhas e seus
bêbados, os postes capengas, os valões...
Não me despedi de minha tia. Soube tempos depois que, quando
seus filhos apareceram – acionados por algum vizinho
desconfiado de que a velha tava abandonada –, encontraram
minha tia toda suja e cagada deitada numa cama e delirando de
fome, já que não comia há dias.
Os filhos dela me caçaram mas nunca me encontraram.
Queriam me responsabilizar por tudo, já que eram incapazes de
quaisquer coisas. Desapareci como uma lufada de vento. Sei
desaparecer quando preciso. Sei fugir. Sempre fui bom em fugir.

Anos depois encontrei Sérgim pelas bandas da Pavuna. Me disse


que tinha melhorado de vida, se casado, finalmente, e era dono
de um depósito de bebidas em Mesquita. Disse que

92
Miquissagem, que também sobrevivera, finalmente se tornara
DJ, lá pelos lados do Espírito Santo. Que ainda usava aqueles
bonés de times de basquete americano, e que sempre estava com
a cabeça calçada com um deles, e que não os tirava por nada,
nem pra tomar banho.
Lembro que um de nós, não lembro quem, numa brincadeira,
tentou tirar o boné de Miquissagem, o negão ficou danado,
correu atrás do infeliz até não poder mais. Se não intervíssemos,
Miquissagem teria matado o sujeito.
Lembro também de ter perguntado à Sérgim por Ana. Ele
disse que ela estava bem melhor, que abrira um salão de beleza,
lá na Posse mesmo, depois de fazer ponto alguns anos nas
margens da Dutra, depois do extermínio. Ela não morrera, nem
de fome nem pelas mãos dos milicianos, porque na época,
seduzira um deles, que tinha influência no próprio bando, e eles
pouparam sua vida e a de Lambão. Lambão continuava sob seus
cuidados, mesmo depois da mãe de ambos ter morrido. Mas
Lambão mesmo não participara de nada. só sentia fome e
vontade de chutar as pedras de canto de rua. Era um estrupício
que não servia pra nada, e todos sabiam disso, até os que não o
conheciam mais diretamente.

Depois que saí da Posse, fui me encostar junto aos


vagabundos e desocupados que incham as ruas. Dormi por
meses pelo banco das praças e embaixo das marquises. Passaria
por qualquer coisa, aceitaria qualquer aviltamento ou privação,
mas não voltaria jamais ao bairro onde principiei minha vida,
Inhaúma, onde nasci e vivi minha primeira infância.
Nunca me senti tão humilhado quanto em Inhaúma, por
suas ruas e pelas gentes que habitam lá. as pessoas que conheci
em minha primeira infância, e que tinha afetos e ternura,
desapareceram. Eram fortes, mas frágeis demais para viver no
mundo tal como ele se tornou.
De todo modo, a Inhaúma que criei em meu peito, como
fruto de minha carne possessa, era completamente diferente da
Inhaúma cotidiana, banal, medíocre, que veio a se tornar, com
o tempo. As gentes encarnadas, de almas pudendas e vidas
flamejantes, que habitavam em Inhaúma em seus primórdios,

93
desapareceram. Ficaram uma gente sem tino, cínica, patética e
lamentável. Lembro-me bem, pq quando ainda estava na Posse,
visitei Inhaúma algumas vezes e vi e senti essa mudança no ar.
Senti uma tristeza sem tamanho. E era essa gente, que veio
depois, que me desprezava, que quando chegava em qualquer
ambiente, me abria um sorriso sem viço e estendia a mão mole
e suada. Todos eles me desprezavam. Preferia comer merda com
caco de vidro a ter que pisar os pés mais uma vez por lá.

Neste tempo de viver entre os desvalidos, na friagem e no


sereno,
peguei uma baita de uma pneumonia e quase
fui de vez. Fui encontrado num canto de praça, gemendo e
tremendo de tanto frio, suando em excesso, até empapar minhas
pobres vestimentas. Fui acudido por um mendigo muito
simpático, que me levou à um hospital, onde fiquei internado
alguns dias.
Depois disso, consegui emprego numa quitanda, comecei
a ganhar uns trocados e fui morar em Brás de Pina, e depois na
Penha Circular, num lugar grosseiro. Um quarto úmido, cheio
de mofo, e gosto de barata e rato entranhado nas coisas.
Me revirava num colchão magro e manchado, estirado no
chão, sentindo que todas as coisas me eram inacessíveis.
Culpava a tudo e a todos pela minha má sorte. Acreditava numa
conspiração de cunho universal, que pelas sombras confabulava
contra mim.
Eu odiava as mulheres, principalmente. Odiava-as, por
não me amarem naquele momento em que eu mais precisava,
por não me aceitarem entre seus seios. Com esse sentimento
brusco na carne, eu frequentava os puteiros que haviam pelas
redondezas, geralmente sujos e degradados, e com meu dinheiro
reduzido, me deitava com aquelas infelizes. Não rara as vezes,
me via entrando por entre aquelas bocetas quentes, dia após dia
puídas pelo treponema. Me via entrando por ali, metendo o topo
de minha cabeça pelo talho aberto, atravessando aquelas
paredes fibrosas, indo dormir novamente num útero. Quente,
úmido, fértil, onde eu não precisaria levantar a cada manhã pra
ganhar o maldito pão de cada dia. E com o dedo dos pés, de lá

94
de dentro, eu remexeria em seus clitóris, dando-lhes um prazer
que os machos diários lhes negavam.
Mas eu não conseguia.
E derrotado por todas essas conquistas inalcançáveis
que me atordoavam, me esmagavam, no fundo de mim, numa
imensidão subatômica, ansiava por nuvens vermelhas e
tempestades de fogo, num sorriso quente, e um olhar vítreo que
atravessa a carne e a faz gemer.
Nada disso acontecia, porém. Nenhuma daquelas
destruições vinham para me amparar, socorrer-me.
Eu me sentia a pior coisa a pisar no mundo então, e
estava certo disso. Sentia minha carne tremer, meus olhos
inchados, cansados, e a pele falida. O mofo e a umidade do
quarto em que me encolhia, me levavam a ter crises horrendas
de espirros. Com o tempo, me adequei.
Pouco depois destes dias inválidos, foi que conheci
Isabella, por entre aqueles tempos. Era uma menina bem mais
nova que eu. No começo era tudo flores, eu dizia amá-la e ela
dizia o mesmo. Vivíamos neste pé e tudo bem então.
De vez enquanto eu frequentava sua casa, tomava café
com seus pais, almoçava, e eles olhavam para mim com um
sorriso dentifrício, fingindo estar satisfeitos com minha
presença. eu sabia que não estavam. A mão mole e suada com
que se despediam de mim, confirmava isso.
Saímos algumas vezes. Íamos às festas organizadas por
seus amigos. Isabella parecia satisfeita com tudo. Era tudo novo
e inimaginável. Eu mesmo não acreditava como uma menina
com aquela juventude e beleza estava estacionada junto a um
traste como eu. Pra mim tudo bem, a vantagem de certo modo
era minha.
Seus amigos eram bem humorados, satisfeitos com a
vida que tinham, e tinham planos e mais planos. Porém, viviam
colados no presente. Não importava como o mundo fosse, eles
arrumavam um jeito de se adequar a ele, arrumar um lugarzinho
feliz, como mesmo diziam.
Todo aquele otimismo e planejamentos me davam
vontade de vomitar. Nunca sequer tracei algum plano em minha
vida. Em boa parte dela vivia entocado, como animal ferido,

95
sempre à espreita para fugir das situações em que me
encontrava, que geralmente eram as piores possíveis. Em
sobrevivência em sobrevivência fui chegando onde estou.
Subtraído durante o trajeto, projetei minha própria existência
nas imaginações que tinha, todas elas frutos de meu ventre
corroído pela fome, e minha cabeça tonteada com as insinuações
da vida. Ter o que comer no outro dia era pra mim mais
importante que os avanços da matemática e da física nuclear,
que o bem-estar social e a paz entre os povos. O mundo, tal como
ele é, não havia nenhum espaço pra mim. E, sendo bem sincero,
nunca procurei por um. De uma coisa parecia que eu tinha
certeza: este mundo, e o depois deste, nada tinham a ver comigo.
Mas eu acreditava numa vida, uma vida diferente de tudo que já
se viveu. E incapaz de ativá-la, ou construí-la, eu ia procurar
nos subterrâneos da carne e do mundo algumas emanações com
sua consistência. Por pouco, por muito pouco, que não morri por
diversas vezes. Por muito pouco. Uma vida por um triz.
Quando ia aos encontros de Isabella mais seus amigos,
eu me espremia num canto, como o rato que sou, e ficava
encolhido, sem projetar nem mesmo uma palavra. Rezava para
que tudo acabasse logo e eu pudesse voltar para casa, e ter
Isabella só pra mim.
Ah, minha querida Isabella, como tenho saudades de sua
carne temperada com mimos e bobagens universitárias! Você e
suas elucubrações políticas, sua revolução, a fraternidade
universal, o amor aos filhos vindouros, aos gritos de militância,
e todas aquelas besteiras que para mim não passavam de merda.
De todo modo, havia você, ali, metida em todo aquele meio. E
você, eu via, e via por demais. Via você destacada das cenas, da
solidez em volta, como uma miragem, uma trêmula miragem
rebatida pela luz.
Minhas roupas sempre foram trapos, desde meus tempos
de moleque em Inhaúma, e mesmo depois, seja na Posse ou em
Cavalcanti, nada mudara. Pra Isabella, isso era um crime, como
alguém poderia andar daquele jeito? É sempre bom sermos
moderados e razoavelmente civilizados, ela dizia. Eu dava de
ombros e saía de perto.

96
Nossas desavenças foram piorando. Até vir a indiferença,
e a insensibilidade de estar perto um do outro. Tudo ocorreu tão
depressa como estes rápidos e minguados relatos.
Quando percebi, Isabella já não me procurava mais e
nem eu a ela. Confesso que senti um vazio crescer dentro de
mim. Um mal-estar vasculhando minhas glândulas. Não sabia o
quanto gostava de Isabella. Como a maioria, só quando ela se
afastou que comecei a perceber isso. Tentei reatar por diversas
vezes nosso namoro, mas ela estava inflexível.
Não consegui.
E ficou mais difícil depois que apareceu um sujeito em
cena, e ela dizendo o quanto estava apaixonada por ele.
Isabella foi se tornando um fantasma dentro de mim,
assim como vc, embora vc seja um fantasma bem mais viscoso
e elétrico q ela. A cada dia lambo a ausência de vocês, a cada dia
percebo a sombra que vou me tornando, crescendo pelas
paredes.
É claro que assim que terminamos, Isabella me
procurou. chegamos a trepar algumas vezes, e pra ela tudo bem
pois não precisava mais passar pelo inconveniente de me levar
nas festinhas preparadas por seus amigos ou na presença de
sua família.
Com o tempo ela foi desaparecendo quase que por
completo, de meus sentimentos e de minha vida. Sua matéria foi
perdendo seu recheio, seus cheiros característicos, e os detalhes
de sua fisionomia. E quase que eu não mais lembrava de seu
rosto, ou de seus seios, ou de suas pernas, de seu rosto,
principalmente de seu rosto.
E logo então saí da Penha, andei por outros lugares, e fui
parar onde agora estou, Cavalcanti.

Nos anos que se seguiram após a minha vinda pra


Cavalcanti, desfiz de uns livros que haviam em Inhaúma e levei
comigo pr’ali. Me desfiz deles, um a um. Depois de lê-los, relê-
los, sorvê-los com sanha, fome esganada e delírio, joguei um a
um os bagaços sobre uma bacia e me desfiz deles. depois disso,
uma estranha sensação acometeu meu

97
Espírito, e tinha tardes e noites – não sabia ao certo, pois estava
fora de meu controle – eu me via diante de Henry Miller, de
Graciliano Ramos, Dostoievski, Guimarães, Barreto, entre
outros. E com eles eu travava uma longa conversa na surdina e
ríamos sobre qualquer besteira, pois bem sabíamos que o tempo
é um involucro onde nada cessa, e basta sangue nos olhos e na
boca, que o útero do mundo germinaria qualquer sonho.
Qualquer imaginação q tivesse o tom e o gosto de ferro q flui.
E penso assim. Toda uma vez
Uma vez, era tudo muito simples, guardei um trovão dentro de
casa, q peguei pelos céus de Inhaúma. Pela noite, luz encorpada,
eu acariciava-o. lembro de meus olhos faiscarem, dos ossos à
carne, impossível havia.
E não tem vezes que não me lembro da Posse, de Inhaúma. Fico
sentindo aqueles mortos ensanguentados vociferando dentro de
minha carne.

Enquanto ninguém chega, saio da sala dos professores.


Outra vontade de bater uma bronha. A punheta é meu
laboratório diário, minha liturgia para diagnosticar o câncer dos
homens.
Sou quase como ninguém. Tenho mil
mandíbulas e mil pés. Mas desloco tudo, me faço unitário e com
isso vago entre os demais. Deixo que percebam apenas o que
precisam. Deixo aos demais este lado vago e imediato,
pequeníssimo trecho das imensidões e continentes que habitam
em mim. Deixo para que me reconheçam, para que vejam um
aspecto e um fundo, para alimentar, como todo o resto, seus
juízos, com o pequeno punhado de ração de entendimento de
que precisam. Eles precisam de compreensão, para além de
tudo. Um fundo e um aspecto, com que possam falar, definir um
diálogo, estirar um ponto de comunicação e assim saber quem
sou. Para apontar e dizer: “ei, olha lá, tá ali fulano, ele tá bem
ali...”
Não vou ao banheiro dos funcionários, para bater minha
outra bronha. Vou não. Preciso de algo novo, inédito, ainda que
talvez pensado, mas não executado.

98
Minha cabeça rodopia, sinto o corpo extravasado. Os
olhos atentos na manhã que se ergue pelo céu, no vento agitando
as árvores, no tempo úmido e frio que se anuncia.
Vou ao banheiro das meninas. Não sei porque fiz isso.
Mas vou. Algo me conduz até ali, e não consigo evitar.
Assim que entro, sinto o cheiro das presenças de todas
elas emanando pelo lugar. O sorriso cínico e debochado de
sempre, suas paixonites pelos molecotes, suas ilusões de papel
crepom e açúcar cristal. De glitter e lápis de olho. Penso em suas
bobagens e no suor escorrendo suas peles depois da aula de
educação física. Penso em suas carnes ainda pouco estreadas,
na umidade de suas virilhas e de seus talhos. Sinto suas
sombras rastejarem pelas paredes maciças do banheiro, do mijo
quente que eu poderia apalpar com olhos e mãos ocupando dia-
a-dia a água das privadas. Penso em suas calcinhas rosas e
vermelhas com gosto da polpa do caju recém colhido do pé,
ainda com o tempero do sol e da chuva, e do barro que o
intumesce.
Naquela vibração inaudita, na procissão de minhas
veias, do sangue bombeado chegando até as periferias do corpo,
vou flutuando. Sinto as nuvens lá fora, em seu desajuste
elétrico, sinto a carne de todas as meninas mijando com
entusiasmo, meu prepúcio cada vez mais friccionado, minha
alma latejando na altura da abóboda do corpo, e o estalo dos
ossos desarticulando meu equilíbrio.
Então a velha da faxina me pega de calças arriadas, literalmente.
Eu a olho, ainda friccionando meu pau. Sem cerimônias. Ela
esbugalha os olhos e sai em disparada, depois de segundos de
congelamento me vendo batendo uma bronha.
Mas ainda não gozara. Então continuo, em desespero, as
cercanias da cidade sendo vaporizadas pelas ondas que
avançam do mar e engolem as moradias.
Fricciono ainda mais a cabeça do pau, e então explode na canção
que torneia o mundo, o esperma quente e viscoso, não
fertilizado, correndo através da uretra até o chão do banheiro.
E me congelo, sinto os instantes do mundo debruçar sobre meus
nervos. Me sinto morto, o corpo estancado, vazio, dormente.
nenhum resquício de tempo perpassando por mim. Estou em

99
queda pelas nuvens. Sereno, mesmo naquela trajetória que
despenca e me estraçalha lá embaixo.
E quando volto, lembro da velha da limpeza me olhando, seu
olhar de censura, de espanto, de indignação. Levanto as calças
subitamente. No desespero, limpo a porra no chão com as mãos
mesmo, e depois limpo minhas mãos na barra das calças. Saio
correndo atrás da velha.
Quando vejo, a infeliz está em frente à sala da diretora, e a
mulher me olha como se eu fosse um fantasma a ser banido
veementemente do mundo.

Na última e única carta q me mandaste (pois é, vc não


gosta mesmo de email), e q guardo como um tesouro encarnado,
vc diz que está com uma fissura anal, e que vai cultivá-la em
nossa memória. Esfreguei o papel em meu rosto, e lambi suas
palavras obsessivamente. E os dias tem sido extremamente
compridos pra vc, me diz, e lhe aperta uma saudade tem horas,
que é o gosto de meu esperma em sua boca. Uma iguaria, vc me
disse. E me vem aquelas nossas troças, nossos suspiros
incomuns dentro da fornicação da noite. Eu e vc naquele comum
acordo de achincalhar o mundo com nossas existências
obscenas. Vc nua com as cinzas de uma tarde maltratada
escorrendo em seus seios de fora, e rodando a calcinha com uma
das mãos. E aos seus pés, ajoelhado, me vejo implorando por
uma cusparada sua em minha boca. Queria mesmo era me
enfiar em seu rosto, na película de seus globos oculares e me
expandir por seu corpo como um tétano.

Paro diante de uma esquina aberta, ao lado de uma grade


com dedos riste pro alto, querendo um dia tatear o céu. O sol se
esfrangalha rebatendo nos contornos de um antigo prédio. Um
trecho do céu aparece, com tons de chumbo. Nuvens esfiapadas
deslizam.
Não há horizonte.
Um mormaço crava suas unhas na atmosfera,
carregando o ar com a eletricidade dos assassinatos.
A noite em breve virá, fazendo de toda carne, o fascínio
que antecede os estrondos.

100
Alguém joga um jornal no lixo. Sinto os rumores da
cidade. A leio de cabo a rabo, e a visão que tenho tonteia o ar,
desliza entre as marquises, morrendo no reflexo das vidraças.
Sou uma sombra rastejando entre os escombros.
E toda noite sou um sonho de carne de luz, trespassada
por um feixe, para renascer corpo em transe na fenda fetal da
manhã.

101
Ano XXXII: Às margens de uma certa manhã
*Outro prólogo para As Cinzas de Erém

Fiquei dias deitado no sofá, olhando pro teto, sem saber o que
fazer. Fui mandado embora por justa causa, sem ganhar uma
migalha sequer. Foi um escândalo. Os pais apareceram no
colégio, após o ocorrido. A coisa toda fora parar na internet, por
um aluno que filmou a diretora me repreendendo no corredor. O
vídeo viralizou, como dizem, e poucas horas depois os pais dos
alunos estavam por lá. outros agitadores também. Só faltaram
levar tochas para me incendiarem. Eles apareceram em grupos
agressivos e quase me lincharam. tiveram que acionar a polícia
para apartá-los.
Na delegacia, fiz uma ocorrência, que não adiantaria de nada,
pois estavam todos contra mim, e ainda havia as evidências
concretas de meu crime.
A delegada, linda por sinal, me disse para esquecer o
caso e ir para casa. que dali por diante eu era um sujeito
marcado, e que possivelmente jamais trabalharia numa escola
novamente.
Ela se recostou belamente na cadeira giratória,
com seus olhos azuis penetrando em mim, e disse palavra por
palavra no conforto de seu assento.
Segui seus conselhos e voltei para casa.
A professorinha e todo resto ficariam para trás. Eu
estaria desempregado daquele dia em diante, e não tinha a
menor ideia de como arrumar outro emprego.
Me humilhei para manter o emprego, implorei. Mas a diretora
estava possessa. A velha da faxina não quis nem saber, ficou ao
lado da diretora, me atacando. Pensei que aquele diabo de
mulher fosse minha amiga. Mas não era. Era uma desvalida,
serviçal, que faria de tudo para manter seu mísero emprego.
A balofa se ajuntou ao coro, banhenta, os olhos
embaçados, cheios de bolsas, uma sapa!

102
Disse a elas que aquilo tudo era um engano, que não era nada
daquilo que pensavam. Eu estava tendo problemas particulares
e eles me fizeram cometer aquela tolice.
E cadê que elas me ouviam?
Tavam nem aí.
Fiquei sendo atacado por aquele trio deprimente. Os professores
chegaram em seguida
O circo estava armado.
Quando olhei em volta, vi que A professorinha me olhava,
Deus, pensei cá comigo, tudo menos isso. Eu a queria tanto...
e precisava de tudo aquilo?
Dela me vendo daquele jeito?
Descrente, aturdida, não acreditando no que me acontecia.
Seu olhar para mim era de pena, pena pena pena pena.
E aquilo me corroía, doía-me lá dentro, fisgando minha
garganta, fazendo meus tímpanos doerem.
Me sentia menor que uma barata, ferroada pelo
inseticida. Me sentia rastejando na imundície como um verme
fugindo das brincadeiras de uma criança com uma navalha
afiadíssima. Não havia como fugir, seria retalhado a qualquer
momento, mas ainda assim, rastejava, num impulso irresistível,
humilhante, deplorável.
Quando a polícia chegou, pensei que atirariam em mim. Aquilo
me reconfortou, morrer com uns balaços na cara, no lombo, me
satisfaria.
Queria que tudo acontecesse da pior maneira possível. Os tiros
de fuzis atravessando minha carne, meu crânio, espatifando
minha cabeça, espirrando meu sangue e miolos pelas paredes.
Eu havia desviado de balas por muito tempo, desde moleque, já
era hora delas me acertarem. E porque não ali, naquele
momento degradante, onde tudo era pavor e estremecimento?
Mas a polícia não atirou. Me pegaram pelos braços e me levaram
até o camburão estacionado na frente da escola. No caminho,
todos gritavam, eufóricos, histéricos, chegaram a me lançar
latinhas de refrigerante, cascas de banana, outros lixos
quaisquer. E em meio aos berros, fui colocado na parte detrás
do camburão como um ladrãozinho medíocre. E todos bateram

103
palmas, em meio aos assobios e vaias. Finalmente se livraram
do traste que eu era.

Resolvi que ficaria na minha até a poeira assentar. Me apegaria


a crença popular de que o brasileiro tem memória curta, e que
logo esqueceriam do ocorrido.
Não tinha nenhuma reserva segura de
dinheiro, o pouco que tinha, logo terminaria. Havia pouca
comida no armário e na geladeira. Quando cheguei naquele dia
fatídico em casa, a menina via tevê.
Não disse nada a ela. Sentei ao seu lado, recostei minha cabeça
no sofá, e tentei pensar em dias mais felizes.

Mangão, meu amigo, onde você está agora que não aqui, para
me proteger?
Penso em você naqueles dias antigos lá na escola em que me
defendia dos moleques maiores.
Você sempre me disse que era um amigo, tenho certeza
disso, nunca duvidei. Se você estivesse aqui, agora, me
defenderia dessa vida ingrata em que me encontro.
Fico sentado no sofá, olhando fixo para algum ponto na parede.
A menina não está em casa.
Não sabia que horas eram, só sei que dormi pela
tarde, e quando acordei, tinha o espírito desfixado, fora da hora
presente. Não sabia se era noite, ou a escuridão anterior a
manhã. Não fazia ideia
Me demorei no sofá, sentado, olhando pras paredes. Depois
coei um café e fiquei a olhar a linha férrea lá fora, mas trem
nenhum passava.
Resolvi que devia caminhar um pouco.
Fui até a rua, o sujeito que fazia o Jogo de Bicho na esquina,
não estava mais lá. a padaria estava aberta, entretanto.
Segui rente à estação.
Era começo de noite
Passei por entre as pessoas, em pontos de ônibus, ou sentados
em algum canto.
Tentei não pensar em nada até porque não tinha muito o
que pensar.

104
Depois saí das margens da linha de trem e segui por algumas
ruas.
Passei em frente à uma oficina mecânica, e homens
sorridentes falavam qualquer coisa engraçada.
Sujos, palavras desengonçadas na boca, risaiada sem motivo
aparente.
Depois vi um sujeito chutando uma garrafa de plástico, e
algumas crianças correndo perto de um terreno-baldio.
Passei diante de ferros-velhos também, e sua
imundície típica.
Depois me enfiei em ruas mais estreitas, ruelas, segui por
uns becos, até que me deparei com uma pracinha, corroída pelo
tempo e pelos mendigos.
Sentei um pouco num banco semidestruído e fiquei olhando
para um canteiro. Depois me fixei numa árvore. Ventava.
Qualquer tempo úmido avançava pelo ar.
Estou perfurado, separado de sangue e veias.
Não vejo fundo, nem o ânimo de que preciso. Olho consternado
as flores precipitando na abóboda.
Mas tudo são ipês florindo na metástase amarela.
Deus almoça as conquistas.

Passaram-se os dias e fiquei acossado dentro de casa,


destituído de qualquer força. Me sentia oco,
retirado de órbita.
A menina ficava mais fora de casa que qualquer outra coisa.
Apesar do pouco espaço naquele cubículo, me sentia numa
vastidão, numa várzea sem fim.
Olhava para os lados e encarava as ausências.
A comida sumira-se. E quase não havia mais dinheiro.
Resolvi que andar por aí seria o melhor.
Senti algo fisgando meu estômago,
A fome já dava seus primeiros sinais.
Coloquei uma roupa qualquer e fui pra rua.
Andei por algumas ruas. Me distanciei como pude de Cavalcanti.
Por algumas vezes, ouvi o trem chiar seu metal nervoso sobre a
linha férrea.

105
Quase podia sentir o cheiro e o impacto das faíscas
subirem-me nos olhos, como tigre.
Me meti em Engenheiro Leal, bairro vizinho. Depois em
Cascadura. Subi e desci algumas ruas sinuosas. Parei diante de
alguns botequins e segui em frente.
Sentei numa praça. Uma senhora bem suja, com um
enorme saco encardido nas costas, catava garrafas pet pelas
lixeiras. Ela estava bem magra, corroída pela sujeira e pela fome.
Fiquei olhando-a por um tempo.
A manhã avançava apressadíssima.
Sem nenhum tostão digno no bolso, só algumas moedas,
resolvi procurá-lo. Fazia um bom tempo que eu não o via.
O que era ótimo. Aquela imundície era melhor assim, afastada.
Mas eu estava na pindaíba, quebrado.
Depois do que acontecera, nem tive coragem de procurar por
emprego.
Resolvi ficar recolhido por um tempo, só não sabia quanto.
Fui andando até seu apartamento.
Sem dinheiro para o ônibus, cheguei ao seu prédio de língua pra
fora, cansado, arfando que nem cão danado
Sem cerimônias, subi ao andar de seu apartamento.
Hesitei umas duas vezes na escada, e outras duas quando
cheguei em frente à porta de seu apartamento.
Mesmo contrariado, bati na porta.
Ele abriu, e logo vi um abscesso acima de seu olho
direito. Uma coisa horrível de se ver, grande, intumescida,
amarelada de tanto pus, um terceiro olho em excrescência no
rosto para farejar extinção.
Com aquele furúnculo, veio o odor infernal do lugar junto com
ele, me aparecendo como respeitáveis anfitriões.
“entre aí cara, como tem ido?”, me disse, sem cerimônias.
“tô como tô, daquele jeito de sempre e indo”
“é foda cara, entra aê”
Eu não lhe perguntei sobre aquele furúnculo dos infernos acima
de seu olho, mas ele disse, como se eu tivesse perguntado
“pois é cara, isso aí é um diabo de uma espinha inflamada,
cravo, furúnculo, sei lá, sabe?” “essas porra aparece e nunca sei
o que fazer”

106
“entendo”
“sim sim, mas senta aê, deseja algo?”
“nada”
O cheiro do lugar estava mais insuportável do que de costume.
Sentei no sofá, olhando para o infeliz como se a morte lhe
enrabasse por trás.
Me disse agora que estava escrevendo, q tinha algumas coisas
escritas em algum lugar. Saiu e depois voltou com um maço de
folhas dizendo que ali havia manuscritos seus.
“cara, nunca mais ouvi falar daquela putinha desprezível, sabe?”
“às vezes sinto falta dela sentando em cima de mim, eu gozando
nos peitos, na cara dela, uma putinha, sim, mas que putinha!”
“pois é”
“po, depois dá uma olhada aí nessas paradas que escrevi”, disse,
apontando o maço de folhas que coloquei ao lado do sofá.
“pode ser, mas diz aí, ainda tem aquelas cervas aí?”
“acho que tem uma ou outra coisa”
Ele saiu, foi até a cozinha. Continuei onde estava, e nem olhei o
diabo daquelas folhas.
Ele voltou, fumando um cigarro e com duas latinhas de cerveja
na mão.
“bebe aí”, disse, me dando uma das latinhas
Abri e dei uma golada. Nada mal, estava bem gelada.
Ele começou a xingar meia dúzia de pessoas, e mais outras
dúzias de situações pelas quais passou e se sentiu vítima de
todas elas.
Segundo ele, um dia, não se sabe quando, ele se levantaria de
sua miséria e atacaria todo mundo, pelas costas mesmo, como
um cão vadio.
Eu não dizia nada, bebia minha cerveja e gesticulava com a
cabeça, assentindo tudo que ele dizia.
Eu sabia que ele não faria nada. nunca reuniria forças para
atacar alguém, não conseguia reunir forças nem para peidar.
Ele era o típico homem de seu tempo, decantado, míope, e
medrosamente agressivo.
“se liga, preciso de um dinheiro”, disse.
“como assim?”

107
“dinheiro cara, grana, bufunfa, essas coisas...” “tô sem nada
cara, liso, não tenho dinheiro nem pra morrer”
“ninguém tem”, ele disse, e deu uma golada na cerva, seguida
de um arroto.
“sei que sim, mas tônem aí pros demais. Farinha pouca, meu
pirão primeiro”
“te entendo, mas também tô sem nada. quebrado!” “se tivesse
alguma coisa, te dava”
“entendi”
Continuamos a beber, como se nada ocorresse de errado. Nem
com nós ou com o resto do mundo.
Todos os meus empreendimentos fracassaram. Todas as minhas
tentativas de sair da fossa em que eu me encontrava desde não
sei quando, tinham sido aniquiladas. Estar ali, naquele
purgatório, pedindo dinheiro a um dos maiores imprestáveis e
imbecis que já passou pela existência, era realmente o cu cagado
do fundo do poço com hemorroida sangrenta e pus.
Dei uma última golada na cerveja e me adiantei. Nem apertei
sua mão. Saí saindo, como dizem.

A tarde avançava lá fora. Fazia um sol, tímido por detrás dos


prédios.
Andei olhando pro chão, na expectativa de algum dinheiro
aparecer pra mim, nem que fosse pra um pastel no china e mais
um refresco.
Mas nada.
Dinheiro nenhum.
As pessoas passavam por mim, invisíveis.
Andei o suficiente para chegar em algum ponto onde não
houvesse ninguém. Tarefa difícil, pq o mundo está cheio, em
todo canto se sente os miasmas da humanidade.
Encontrei uma rua sem saída. Suficiente vazia que me desse um
tempo para respirar.
Por sorte, a rua ainda não havia virado uma vila de portões
fechados, em que só moradores ou conhecidos de moradores
tinham permissão para entrar,

108
Encostado num carro, fico pensando, matutando, buscando
alguma coisa lá no fundo que pudesse me tirar da situação em
que me encontrava.
Sou um homem destroçado. Toda vez que ando sinto meus
frangalhos balançarem fazendo ranger as fendas de minha
carne. Meus tormentos se expandem em minha vida como
terremotos, mal consigo respirar, tudo é muito difícil, até um
gesto muito simples. Não tenho a quem recorrer, pois quem me
ouviria?
Se tinha algo que se aperfeiçoou em minha vida, durante anos e
anos, foi a capacidade de sair das piores situações possíveis,
sem contar com ninguém. Para outras coisas, a boca das
incertezas mordia, mas não isso, essa inviolável certeza de que
estamos sozinhos.
Sozinhos, completamente sozinhos. Toda vez que recorri a
alguém, sempre ouvia os sermões e as frases de sempre,
maquiadas, delineadas, cuspidas automaticamente como óleo
ruim num motor. Não havia de fato nenhuma palavra que nos
reconfortasse, nenhum gesto que nos desse um misero grão de
sossego.
Quando falamos a alguém sobre como nos sentimos, como
estamos a ponto de se desintegrar totalmente, vemos o quanto
estamos fadados a não dizer mais nada a quem quer que seja.
Principalmente àqueles que consideramos amigos. Todo
sofrimento, toda sensação é reduzida a frases de efeito, à
pequenas teorias de melhora ou palavras de incentivo. Ninguém
de fato está aberto para os terremotos que nos fendem.
E quando tudo começa a respingar ou cair de vez sobre mim, é
aí que me recolho, me entoco num buraco da terra como animal
ferido, caçado.
Fico ali por um tempo, me alimentando de seiva e
húmus. Na escuridão úmida, tenho acessos delirantes que
duram uma eternidade. Imagino mundos, paisagens, floras e
faunas estranhas, de bocas e comportamentos estranhos, e a
areia é carmesim, e o sol um topázio que gira.
Naqueles reinos secretos, abertos para mim quando nem consigo
respirar ou calcular uma simples questão, eu me sinto soberano,

109
rei de todo um povo faminto, queimado pelo sol, de olhos
vibrantes e fúria descomedida.
E com essa montoeira de gente, vou errando pelo deserto,
comendo o que tem pra comer, bebendo o que tem para beber.
Todo dia é um dia único, irrepetível na eternidade. Todo dia
morremos, somos triturados, arrasados, para renascer
novamente na manhã seguinte, para mais um dia singular, para
mais um sol rebentando no horizonte, para mais uma aventura
do espírito.
E quando saio desse transe, que pode durar dias, meses, até
anos, não reconheço ninguém. Minha boca está pronta para
novos gostos, meus olhos para novas imagens. Tenho a força de
Sansão derrubando um templo dos filisteus, de Ogum
saqueando e tomando Irê.
Meu melhor amigo é irreconhecível. Me apresento a todo mundo
com uma boa-nova. É um novo dia para a alma. Estou
novamente aberto para o sol.

Saio da rua sem saída. Caminho sem destino, em direção a


qualquer lugar. Me sinto aéreo, com um monte de pensamentos
nas veias, com a boca formigando em busca de algo que jamais
sacia.
Ando pelas ruas como uma assombração, destituída de
fisicalidade. Vou passando pelos lugares sem me reter em canto
algum. Não olho para nada e se olho, não vejo.
Quando percebo, estou pelas bandas de Pilares. A tarde
descamba, já é quase noite.
O crepúsculo enferruja o céu,
As nuvens se condensam e se acendem com os
derradeiros raios de sol
Parei numa estação de trem abandonada, próxima de Pilares.
Subo intranquilamente um viaduto perto, e debruço minha visão
sobre os barracos e casas grosseiras sem reboco, trepando uns
sobre os outros às margens de uma avenida, promíscuos. O
subúrbio cresce diante de mim como continente, sua extensão
se derrama até onde a vista se perde, tão grande quanto a vida.
Vejo uma menina catando piolho de um molequinho na porta de
casa, as pipas rodopiam coloridas no alto, os postes com seus

110
fios embolados por gatos e gambiarras, e sinto uma força
avançando dentro de mim com a idade dos trovões.

Acordo um dia com uma fome de outro mundo. Não há resquício


de comida em qualquer parte. Faz dias que a menina não
aparece. Quando viu que as reservas terminaram, resolveu se
retirar, partir para outros campos.
Me sento no sofá esfomeado, pensando em comida, num bom
bife acebolado, purê de batatas, arroz, feijão, couve frita no
azeite, batata, linguiça calabresa, uma boa e gelada Coca-Cola.
Vou no armário, não tem nada. na geladeira, apenas uma
compota de maionese vazia, uns farelos de cebola e batata, que
cato, junto na mão e lanço à minha boca, e mastigo com
tremedeiras. O encaixe da mandíbula dói.
É um dia fresco. O sol entra pela janela aberta, e arrepia
minha pele.
O monitor desligado reflete a sala sem vida, eu deitado no sofá,
olhando as partículas de poeira dançando num facho de luz.
Devo ter emagrecido alguns quilos, vejo os ossos salientes
no ombro, nos cotovelos, no rosto.
Deixo o computador desligado, sem pagar a mensalidade, fiquei
sem internet, então ele se tornou inválido, como eu.
Resolvo dar umas voltas pelas ruas. Coloco um tênis que
já está em estado de calamidade pública, uma calça velha e uma
camisa sem passar.
Abro a porta e saio daquele cubículo.
Passo pela esquina, a padaria aberta, o sujeito que faz o
Jogo do Bicho, com a barba espichada, recostado numa cadeira,
a cabeça balangando de sono.
Sigo rente ao muro da linha férrea. Pelas grades, vejo algumas
pessoas em pé sobre as plataformas. Os vendedores ambulantes
gritam suas mercadorias, conversam entre si, riem de alguma
coisa.
Sigo. O trem passa chiando, o metal rangendo, a
eletricidade desperta.
Entro numa rua pequena, um atalho entre duas ruas maiores.
Passo em frente uma casa, uma senhora
ajeita a mochila de uma criança nas costas, penteia seus

111
cabelos. Vindo de lá de dentro, o bom cheiro de galinha frita, de
arroz fresquinho, de um feijão encorpado, cheio de miudezas,
preto, forte, suculento.
Sinto um frio na barriga, o encaixe da mandíbula doer. O sol
avança no céu, seus raios atingem meus olhos. Lacrimejo.
Sinto fome fome fome fome fome
Paro na curva de uma esquina, apoio uma das mãos num poste.
Me sinto tonto, a alma deslocada.
Cristo, penso, como fui parar nesse buraco?
Mangão, meu irmão, onde está?
Preciso tanto de você aqui comigo, me defendendo, me dando
apoio, me dando um naco de feijão com arroz para seguir em
frente.
Mais um dia. Outro dia, outro dia...
Respiro fundo e continuo andando. Quase até Madureira.
Quando chego perto, dou meia volta e entro num trecho de sobe
e desce, cheio de ladeiras e ruas sinuosas.
Ando à esmo, sem fagulha de destino.
Me sinto amordaçado, os olhos trancafiados numa
paisagem nula, sem contornos. Vou vasculhando dentro dessa
escuridão em que me meti, e
Não acho nada com que apoiar-me.
Tento me lembrar de dias mais tranquilos, preciso que
minha alma sossegue. Mas onde poderia enfiar meus sentidos,
meus sentimentos?
Vou tentando conter minha tonteira à medida que caminho. A
fome me esmaga. Meto a mão em meus bolsos, alguns centavos.
Vejo um sujeito com uma barraquinha ambulante,
miúda, vendendo doces, balas e outras guloseimas. Não sei bem
em que bairro estou.
A barraquinha está numa rua tranquila, onde não passa ônibus.
Vou até o sujeito, estico minha mão e lhe dou os centavos.
Compro meia dúzia de balas gamadinho, delícias de
amendoim de minha infância. Nem sabia que ainda vendia elas.
Cal Maluco, Pêi Paulada, às vezes me lembro da
brutalidade de vcs, e sinto um aperto em meu coração. Como eu
queria ter sido como vcs, brutos, selvagens, violentos, animados.
Cada vez que a miséria apertava, vcs endureciam, se tornavam

112
ásperos e excitantes como pedras. Cada vez que vcs sentiam
fome e suas mães desesperadas gritavam feito doidas, com os
cabelos desgrenhados, mais vcs cresciam, mais forte ficavam,
com os músculos taludos crescendo em volta do corpo, tomando
contorções de um tronco de árvore. Ninguém podia com vcs, vcs
tinham a qualidade bruta das ruas, a única coisa necessária
para sobreviver onde sobreviviam. Toda vez que me lembro de
vcs, me vem o bairro da Posse em meus pensamentos,
rastejando em meu sangue como jararacas. Lembro de suas
ruas barrentas, sem calçamento, de suas biroscas grosseiras,
luzes piongas deslizando do teto precário. Me lembro de nossos
outros amigos, tão belos e selvagens como vcs: Nêgo, Dêgo,
Lambão, Ciriba, Meleca, Jairo, Miquissagem, Irmãos Morango,
Sérgim, Nênem, Mangão, Cristiano Batuqueiro... me lembro De
seus bêbados largados nos cantos, de suas valas à céu aberto.
De suas várzeas vazias, onde fazíamos campinhos para jogar
bola. Dos valões imundos e encorpados deslizando por suas
entranhas. Dos monturos de lixo pegando fogo e saturando o ar
com cheiro de plástico queimado. De suas crianças retintas
cheias de lombrigas, correndo descalças junto aos cachorros. Eu
passei fome como vcs, mas não o suficiente para me tornar um
genuíno moleque da Posse. Eu sempre tão estrangeiro e exilado
onde quer que fosse. Mas a vida foi generosa com vcs, deu cabo
de suas existências ainda no auge da mocidade. Ainda fortes,
taludos, violentos. Quanto a mim, eu rastejo pela vida como um
inválido, reduzido à um corpo magro e sem vitalidade, andando
que nem molambo por aí, desprezado por todos. continuei vivo,
apenas para poder viver na vergonha. Ah, Cal! Ah, Pêi! Como
minha pobre alma invoca vcs, nestes dias tão ingratos! como eu
queria vcs aqui agora comigo, me protegendo, animando minha
vida! Eu que nunca fui grandes coisa, que nunca tive onde cair
morto. Agora que a fome me ataca impiedosamente, não cresço,
diminuo cada vez mais. E não sei para onde ir.
Não sei se é tarde ou manhã. Sinto que é tarde, então me faz
tarde.
Como as balas gamadinhos com a Posse ainda em mim,
deixando meu corpo aos poucos, me esvaziando.

113
Ando mais algumas ruas, sem permissão. A fome dá uma trégua,
com as balas descendo pela garganta. O açúcar, meu Deus, o
açúcar!
Me sento à sombra de uma amendoeira, cercado pela ausência
de toda uma tarde. penso em coisas que não deveria pensar.
Então me esqueço. Se eu tivesse nascido numa Era mais
digna, de gente digna, sem todo esse cheiro de fibra óptica que
me zumbe nos ouvidos, eu teria um apelido similar ao do
boxeador Jake La Motta, o Touro do Bronx. Eu seria conhecido
como o Tigre de Inhaúma, ou algo de mesma imensidão. Mas
como nasci numa época de medíocres, as pessoas que me
cercam nem me chamam pelo nome, dizem que sou apenas um
bêbado ordinário e irresponsável.
Ao voltar para casa, sento no sofá. Nem sinal da jovem
novamente. Me abandonou por completo, desta vez.
O cubículo tem cheiro de fome, odor de inanição. Deito no sofá,
a cabeça mais zonza que nunca.
Me levanto, vou à cozinha, vasculho cada canto a procura de
comida. Qualquer comida. Mas nada. não encontro nada.
Vou até a bica, bebo um pouco d’água. Sinto náuseas,
vomito na pia da cozinha mesmo. um vômito amarelado,
insosso. Sinto ainda mais tonteira.
Volto para o sofá e me deito.
Vejo a sala girar. Sinto meu corpo girar.
Aos poucos, como tudo que é lamentável, vou me adaptando às
circunstâncias.
A cada dia está mais difícil de viver.
Adormeço.

Acordei no dia seguinte, ou num outro qualquer, não sabia com


precisão, sem sentir tanta fome. Depois de dias sem comer, o
corpo se acostumara a ela, embora me sentisse fraco, e cheio de
náuseas. Respirar era difícil, mas não como nos primeiros dias
em que a fome apareceu como uma cadela sedenta.
Vou ao chuveiro, tomo um banho demorado.
Depois coloco a mesma roupa suja e molambenta e resolvo
seguir até a casa dele. O que eu podia fazer?
Ele era a única pessoa que eu podia recorrer.

114
Saí do cubículo e me dirigi à sua casa.
Desci a rua que me leva à estação de trem de
Cavalcanti, e na esquina, a padaria estava aberta, como de
sempre, e havia algumas pessoas por lá.
Eu não tinha a menor ideia de que horas eram.
O sujeito do Jogo do Bicho também estava por lá, atrás
de uma mesinha improvisada, atendendo uma senhora, com
umas sacolas de feira-livre ao lado.
Fui descendo, a fome mordiscando o estômago, mas eu
quase não sentia. Era como se meu corpo entrasse num torpor
de urgência, antes que a falência viesse com toda força e o
destruísse de uma só vez.
Quando cheguei na avenida principal de Cavalcanti, ouvi o som
dos helicópteros rodeando do alto, agitando suas hélices sobre
nossas cabeças. Vi algumas pessoas em polvorosa perto de um
ponto de ônibus. Diziam que estava tendo uma operação policial
no Juramento, um morro próximo. Dali, podíamos não só ouvir
o ranger dos helicópteros, mas o som dos traçantes assobiando
e rasgando o ar.
Dava para se ouvir os tiros, gargalhando pra todo lado.
Logo haveria ônibus incendiados e sangue escorrendo
pelas vielas. A vida se reduziria à um matadouro.
Ah, Deus, como eu queria ser metralhado!
Com esta estranheza escorrendo através de meu corpo entrando
em colapso, eu segui adiante, deixando os tiros e as hélices para
trás.
Já estava próximo de um largo na altura de
Cascadura, pouco antes de um pequeno terminal de ônibus que
havia por ali. Vi, de longe, uma roda de pessoas, em volta de um
sujeito que fazia alguns números engraçados. Era uma espécie
de bufão que falava algumas besteiras e fazia algumas
estripulias em troca de alguns centavos, para os transeuntes
que às vezes formavam uma plateia em volta dele e da esposa.
Algumas pessoas daquela plateia depositavam uns trocados
num chapéu que era estendido por sua esposa.
Quando cheguei, ouvi-o gritar aos que estavam em volta:
– Levem minha mulher! gritou, abrindo sua boca de dentes
precários, e todos riram.

115
– Levem ela! Dou ela de graça procês! gritou novamente, fazendo
alguns gestos com os braços, e o povo em volta riu ainda mais.
A mulher, ao seu lado, magra, com a cara chupada, esboçava
um sorriso acanhado e amarelado para todos em volta.
Eu não achei nada.
eu nunca achava nada, quando era preciso.
Cheguei novamente em frente ao seu apartamento. O cheiro de
sua imundície já se dava para sentir das escadas, na saída
mesmo pro andar de seu apartamento.
Quando bati e ele abriu a porta, me senti o poeta que
desce ao Inferno, e vê toda sorte de monstruosidades e
blasfêmias gemendo no horizonte de fogo e ruínas.
O furúnculo tinha crescido até formar uma outra cabeça saindo
de sua testa. Era inchada, purulenta, fedida, e com dois olhos
úmidos e inchados de sapo. Tinha uns tufos de cabelo acima do
tampo, e a boca era um pequeno corte na transversal que expelia
uma espuminha branca e sebenta.
“caralho! Que porra de doideira é essa?!”, gritei, impressionado,
abestalhado, tratando aquilo como uma miragem. Uma
deformação na paisagem.
“o quê?” “o quê?”, disse as duas cabeças quase ao mesmo tempo.
O que uma dizia, a outra repetia, numa voz esganiçada.
“entre” “entre” disse as duas cabeças.
Entrei.
O lugar fedia, havia inúmeras moscas zumbindo da
cozinha. Alguma coisa sem nome, úmida, empapada, grudenta,
descia pelas paredes e o teto. Como se fosse lodo, só que de uma
cor fortemente amarelada.
O monstro de duas cabeças apontou pro sofá e disse:
“senta” “senta”
“acho melhor não”, eu disse “vim aqui saber se pode me
emprestar um dinheiro, mas melhor deixar pra lá”
“me pagaria um boquete por isso?” “me pagaria um boquete por
isso?”, disse e riu, as duas cabeças. Uma boca na horizontal, a
outra na vertical.
Dei-lhe um soco na altura do abdômen. Senti as minhas poucas
forças esvaírem, mas não o suficiente para me fazer perder os

116
sentidos de vez. Ao contrário, eu estava excitado, eu lutaria com
um peso-pesado tranquilamente, por quinze assaltos.
Ele se agachou,
dei-lhe uma joelhada na testa, mas não me lembro de que
cabeça. Ele caiu, zonzo. uma das cabeças, acho que a purulenta,
gritou:
“foge” “foge” “foge” “foge” “foge” “foge” “foge” “foge”...
O melado hediondo descendo pelas paredes e teto. As moscas
zumbindo da cozinha, o cheiro de putrefação saindo de lá. as
cabeças se debatendo no chão, acesas, gritando num idioma
impronunciável.
O pavor parecia me abraçar. Não sei se sentia mais fome.
Não sei se estava sob o efeito da inanição e atacado por vertigens.
Sei que saí correndo, abri a porta do apartamento, desci
alvoroçado pelas escadas e, quando me encontrei na rua, fui
vomitar no meio-fio, um vômito amarelo e sem vida.

Em certa manhã
Acordei com o cheiro de frango cozido, batata,
cenoura, alho, cebola, entrando-me pela boca. Eu sentia aquele
cheiro, a saliva se acumulando em minha boca.
Acordei ainda fraco, deitado em minha cama, fazia tempos que
não dormia sobre ela.
A jovem, exuberante, mais viva que nunca, se
aproximou:
“ah, o rapazinho finalmente acordou!” “coma um pouco, vai se
sentir melhor”
Eu não disse nada. não procurei sentido em nenhum canto
ela se aproximou com um prato e me levou comida à boca.
Comi, a mandíbula doendo, o suor descendo pela testa.
Era uma canja, bem cozinhada, macia, suculenta.
Comi pedaço por pedaço, o frango se desfazendo em minha boca.
O gosto de alho pimenta do reino salgando meu sangue,
infeccionando e diluindo a fome.
Me sentia fraco, convalescente. Mas a canja deu-me uns
centímetros de força, de energia. Comecei a me sentir melhor.
Ela estava diferente, a jovem. Os cabelos pintados de vermelho,

117
Estava com o rosto mais corado, mais vivo. As unhas
pintadas. Um perfume adocicado saindo de sua pele.
Quando eu terminei de comer,
Ela se aproximou o rosto do meu, me beijou na testa, um beijo
molhado, macio, vivo.
“continue dormindo, meu bem” “vc está um caco”
Ligou o ventilador, abriu a janela. Um vento fresco veio me
acudir. Em poucos segundos adormeci novamente.
Isso se repetiu durante alguns dias, até eu me restabelecer
novamente.
A comida novamente voltou à cozinha, ao armário, ao fogão.
Ela fez compras volumosas. Ela parecia outra pessoa. Cristo, e
como parecia.

Ela era vc!

E numa certa manhã, levantei-me finalmente da cama e


encontrei-a lixando as unhas, sentada no sofá, espontânea,
despojada.
Tudo parecia remotamente o ar e a alvorada de um Paraíso que
se perdeu,
No momento em que Eva pariu Adão.
Eva, a Banida, que desafiou Deus e lhe mostrou que
poderíamos mais do que Ele supunha. Eva, a inumana, a
involuntária,
A Ímpia, de cabelos encaracolados, a cor da noite na pele
deliciada pelo Sol.
E assim que a vi, sentada em meu sofá, de camisola,
descontraída,
Ela me olhou e lapsos de vulcões soltando fumaça e
enxofre,
A lava expelida se resfriava no mar, beijando o sopé, virando
sopé,

atiçando o Fogo.
E vi as Eras passando sobre meus olhos, e as guerras e
insurreições, o sofrimento dos anônimos, os morros se
levantando do mar,

118
As calotas polares derretendo,
Impérios sendo tragados pelos oceanos para sempre,
Desertos engolindo cidades, a caatinga se alastrando na Pangeia
Impérios de Jade e Safira, Esmeraldas, Topázios, reluzindo nas
profundezas do tempo, e o louco procurando pelo verbo
impronunciável,
E todas as coisas se desmontado na curva da Eternidade
E ouvi o chiado de metal deslizando em metal, entrechocando-
se, e as faíscas reluzindo sobre a linha-férrea
e quando me aproximei da janela, naquela manhã,
Um trem descarrilhando,
e a vi no sofá pulverizando-se lentamente,
Seu corpo se desfazendo em blocos, depois em poeira,
Progredindo lentamente até partículas invisíveis, e tudo em volta
tomando o mesmo trajeto, o cubículo se desfazendo junto com
as cortinas o sofá
O ar, o horizonte onde o sol se anunciava
Tudo foi se desfazendo e desaparecendo
Até uma imensidão branca acontecer em toda parte, eliminando
os lados e ângulos, a altura e a profundidade, e não restar nada
mais que eu, apoiado com os pés sobre o nada.
Não havia ar nem cores para dilatarem a pupila, nem
movimentos para ativar as vertigens.
e de longe, um ponto escuro, que se aproximou
E quando percebi, já estava perto de mim.
E era o sujeito que me dava o esfregão e o detergente e sabão
naquele emprego que tive uma vez:
“e o chefe?”
“nunca houve um chefe”, ele disse “vc foi até a mim de sua
própria vontade. me serviu como um escravo domesticado, que
aprendeu a nunca dizer não aos seus senhores, que no caso, só
havia um, eu”
“e o que você tem para mim?”
“a porta, a mesma porta de mogno escuro” “a que vc nunca
abriu, mas que sempre quis saber o que haveria do outro lado”
E ele caminhou, segurando uma de minhas mãos e me levando
junto, e em dois passos, já que tudo era uma vastidão

119
completamente branca, sem contornos ou ângulos, estávamos
de frente à porta.
E ela aparecia no mesmo tamanho e cor de que eu me lembrava
“basta vc abrir”, ele disse, entre alguma coisa de um sorriso e
um semblante de pavor.]
Antes de mais nada, porém, cortei meus olhos com uma
gillete, e o globo ocular se desmanchou como polpa, líquida,
escorrendo para fora da crisálida rompida. E com a certeza de
estar cego, abri a porta e encetei a viagem.
E ao abrir a porta, estava de um outro lado, e o calor das chamas
vinha direito à minha pele. ]
E tudo parecia um ódio incessante e gritos dementes atiçando
uma paisagem de cinzas e carne putrefata
Senti crânios infantis abaixo de meus pés descalços.
Moles como massinha de modelar entrando por entre meus
dedos.
Quando percebi,
eu estava nu, feto sem rumo, rumo a
descarnação.
E continuei andando numa vereda de precipícios de ambos os
lados.
Andei no que parecia uma eternidade, e sentia o gosto de cinzas
na boca e a solidão me envolver em chamas que cresciam dos
abismos.
E a vereda deteve-se diante de uma penumbra, e sem
sentimentos, atravessei-a. uma planície de pânico se abriu
diante de mim, numa vastidão inviolável.
E do chão, ossos de inúmeros tamanhos progrediam pra
todos os lados e o cheiro de sangue era insuportável
e logo as chamas progrediram ali também, e colossais colunas
saíram de dentro das chamas. Colunas de carne se estendendo
até o Infinito. Em sua superfície membranosa, invertebrada,
bocas furiosas de onde saíam pênis como línguas viscosas.
As bocas se mexiam, hediondas, todas elas diziam a mesma
coisa, num eco estridente, ecoando para todo o sempre. Os fios
de saliva gosmenta cruzavam a boca, se conectando de um lábio
ao outro.
Diziam:

120
“Erém é o último bairro do mundo, antes do Irreconhecível.
Erém é onde bifurca todas as ruas sujas do mundo.”
resolvi voltar.
E na volta, tudo era diferente, se revelando um novo caminho.
Ouvi o som de metal vindo do alto, se entrechocando, e do céu,
Pessoas esfoladas de cabeça para baixo e dependuradas pelos
tornozelos, desciam em grossas correntes com ganchos
afiadíssimos.
não havia nem grito ou murmúrio, apenas sangue escorrendo
E passando entre elas, me sujei com todo aquele sangue. fui
esbarrando em cada corpo e ferida, e me banhei.
E não sentia mais nada, nem se estava vivo ou se estava
morto.
logo passei pela porta novamente
E do outro lado, ele me esperava, o sujeito que me dava o
esfregão o sabão o detergente
“e então, o que lhe foi dito?”, perguntou, com os olhos ansiosos,
desesperado para saber o que se passou.
“não lhe interessa” eu respondi, entre ríspido e sereno “o que foi
me dito, fora apenas para mim e mais ninguém”
“não não não não, eu preciso saber, por isso foste lá, para que
todos saibam, A revelação”
“claro que não” “se fui até lá, era pq fui escolhido, era apenas
para mim, para meus ouvidos, aquilo que tinham para dizer”
Disse, infestado daquela Revelação faiscando em meu sangue
Ele segurou minhas mãos, aflito. Eu as afastei.
Ele ficou imóvel, sem saber o que fazer
”Erém é o último bairro do mundo, antes do Irreconhecível. Erém
é onde bifurca todas as ruas sujas do mundo.” “e lá aparecerão
as Suçuaranas e a Onça Pintada, de dentes de esmeraldas,
reluzindo sob os Sóis incontáveis...”, estas palavras retumbavam
dentro de mim, enquanto me afastava, deixando-o para trás, até
que se tornasse um minúsculo ponto em toda aquela imensidão
branca...
E banhado por todo aquele sangue, sentia meu corpo
vergastado, e minha alma cheirava a Fogo.

Em certa manhã

121
Acordei com o cheiro de frango cozido, batata,
cenoura, alho, cebola, entrando-me pela boca. Eu sentia aquele
cheiro, a saliva se acumulando em minha boca.
Acordei ainda fraco, deitado em minha cama, fazia tempos que
não dormia sobre ela.
A jovem, exuberante, mais viva que nunca, se
aproximou:
“ah, o rapazinho finalmente acordou!” “coma um pouco, vai se
sentir melhor”
Eu não disse nada. não procurei sentido em nenhum canto
ela se aproximou com um prato e me levou comida à boca.
Comi, a mandíbula doendo, o suor descendo pela testa.
Era uma canja, bem cozinhada, macia, suculenta.
Comi pedaço por pedaço, o frango se desfazendo em minha boca.
O gosto de alho pimenta do reino salgando meu sangue,
infeccionando e diluindo a fome.
Me sentia fraco, convalescente. Mas a canja deu-me uns
centímetros de força, de energia. Comecei a me sentir melhor.
Ela estava diferente, a jovem. Os cabelos pintados de vermelho,
Estava com o rosto mais corado, mais vivo. As unhas
pintadas. Um perfume adocicado saindo de sua pele.
Quando eu terminei de comer,
Ela se aproximou o rosto do meu, me beijou na testa, um beijo
molhado, macio, vivo.
“continue dormindo, meu bem” “vc está um caco”
Ligou o ventilador, abriu a janela. Um vento fresco veio me
acudir. Em poucos segundos adormeci novamente.
Isso se repetiu durante alguns dias, até eu me restabelecer
novamente.
A comida novamente voltou à cozinha, ao armário, ao fogão.
Ela fez compras volumosas. Ela parecia outra pessoa. Cristo, e
como parecia.

Ela era vc!

E numa manhã em que me senti restabelecido, fui até a sala,


mas não havia ninguém.

122
E ouvi o som de metal se entrechocando e chiando pela
linha-férrea,
fui até a janela e vi o trem deslizando. A lataria sacolejando na
velocidade ]
Fiz um café que eu mesmo bebi e me sentei diante da janela do
cubículo.
]
Numa tarde qualquer, resolvi pegar um pouco de ar. Fazia dias
que não a via. Ela cuidou de mim e desapareceu novamente.
Ao descer a rua, vi o senhor do Bicho, fazendo o jogo para dois
sujeitos.
A padaria estava aberta, como de sempre
Andei sem direção, e vi uma menininha indo ao colégio,
sorridente, dando a mão para o que parecia ser sua mãe.
Continuei
Andei sem rumo por uns quilômetros
Cheguei até um bairro que não me lembrava
O nome, mas
ainda no subúrbio
Trespassava uma rua, silenciosa, entre a sombra das
árvores, e apenas se ouvia o som de marteladas ecoando pela
tarde.
Era tudo silêncio, como depois do fim do mundo
Pensei em coisas do tipo: quando o mundo estiver para desabar
por completo, eu baterei uma punheta de proporções colossais
/ quente e viscosa vingança contra todas as criaturas que
interromperam meus desejos.
E resolvi, em meio àqueles pensamentos, procurá-lo uma vez
mais. E segui até seu apartamento. Fazia um dia fresco, ótimo
para caminhar.
E quando cheguei, já da rua sentia a imundície de seu
apartamento.
Ainda assim, subi o prédio, pelas escadas
O cheiro no corredor era insuportável.
Quando cheguei e abri a porta
Havia vários dele por ali. Cada um numa posição diferente, em
gestos diferentes, fotografados na precisão de cada momento.

123
Mas eles não estavam paralisados, como estátuas, mas alguma
coisa entre o estático e o que se move.
Um deles me recebe, e com um gesto me pede para entrar.
A imundície era insuportável.
“não posso entrar”, digo.
“como assim?” “como assim?” “como assim?” “como assim?”
“como assim?” “como assim?” “como assim?” “como assim?”
“como assim?” “como assim?” “como assim?” “como assim?”
“como assim?” “como assim?” “como assim?” “como assim?”
“como assim?”..., um dele(s), diz, o que veio abrir a porta, e os
demais repetem.
“há muitos de você aí dentro”
E todos viraram a cabeça em minha direção, e me fuzilaram com
tantos olhos. A polpa amarela e podre já tomava tudo, além das
paredes e teto, o sofá, a televisão, as cadeiras e mesas, os
tapetes, as janelas, a porta... havia moscas por todo lado
também, e elas zumbiam.
“vou me indo”, digo, impressionado com tudo aquilo, mas sem
saber o que fazer.
“não, vai não. Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não,
vai não. Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não, vai
não. Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não, vai não.
Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não, vai não.
Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não, vai não.
Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)” “não, vai não.
Preciso(samos) de você aqui comigo(nosco)”...
“não, não precisa”
vou me afastando, aos poucos, saindo de vez corredor afora.
desço as escada e descambo porta afora do prédio. Nunca mais
voltei ali. Nunca mais o vi.

Certa manhã, acordo, como se não tivesse dormido,


verdadeiramente.
um sono sem sonhos.
Sou levado pelos raios solares que invadem o quarto e
iluminam as partículas de poeira que flutuam.
Me lembro de um dia, que andando por aí à toa, passei em frente
a uma rapaziada de pinote numa esquina, tavam cheio de

124
flagrantes. Alguns com revólveres e pistolas na cintura. Quase
me ajoelhei diante deles e pedi por uma dose qualquer de
violência, de tiros, matanças, crânios espatifando, sangue,
muito sangue grosso descendo as vielas e becos até um bueiro
qualquer.
Quando chego na sala, lá está ela, voluptuosa, só de
calcinha e sutiã.
novamente diante de mim, dentro daquele cubículo que poucas
vezes pude chamar de lar.
Está deitada sobre o sofá, vendo televisão.
Me aproximo, tento beijá-la, mas ela me afasta.
Num gesto brusco, ela se levanta num supetão, e me encara.
“e daí, vc trepou com um monte de caras mesmo...”, digo “até
com aquele traste que te batia e humilhava”
“e?”, ela diz, pouco se importando com o que eu tinha a lhe dizer.
como se nada daquilo tivesse sentido algum
“e daí que vc podia me dar um pouquinho também” “só um
pouquinho, sabe, nem tô exigindo muito”
Ela riu, explodiu uma gargalhada na minha cara.
“e depois...”, continuo, “vc ficou aqui em casa, te amparei, te
sustent...”
“para!!!” ela gritou, me interrompendo, “não seja tão medíocre...”
Volto a si mesmo. me sento no sofá, derrubado.
Olho novamente para ela, só de calcinha e sutiã. Uma
Caipora estremecendo a mata com cheiros, com volúpia
banhada de incêndios. uma onça de pele lustrosa.
Onça sedenta comedora de abismos.
A boca grande, envolvente, os cabelos
encaracolados caindo pelos ombros. Os seios arrebitados,
macios, estufados sob o sutiã.
Então me vem à imagem dela trepando com outro cara,
enquanto eu os via pela fresta da porta
Ela tinha a boceta de lábios carnudos e invertebrados da
maneira que eu sentia e amava a noite e o calor dos postes
saturados de sol durante todo o dia.
Me levanto, num supetão, e tento agarrá-la. Ela se desvencilha.
“por favor”, ela diz, “não se rebaixe mais...”
Me sento novamente no sofá. Vencido.

125
Cristo, penso, onde eu estou com a cabeça? Ela está certa. Ela
não me deve nada, absolutamente nada.
Choro, choro em demasia, como se fosse inundar aquele
cubículo com minhas lágrimas. Depois, com o corpo amolecido,
desabo no chão. Ela me olha. Coloco as mãos sobre a barriga e
choro embriagadamente, se debatendo, como uma criança. Ela
me olha.
A olho, e numa atitude impensada, rastejo até seus pés. Os
beijo, e ela deixa. Banho seus pés com minhas lágrimas.
Sua membrana escorre líquida entre as pernas, fruto da manhã
decepada e sem membros
“Vc é que nem eu, um rebento errado, uma anomalia q quebrou
os próprios padrões genéticos”, lhe digo, quase num sussurro.
me ajoelho diante dela, e abraço sua cintura,
e lhe digo o quanto era fraco.
Ela coloca uma das mãos no topo de minha cabeça e me faz um
cafuné, num carinho indizível.
Digo que sou fraco, em lento declínio, junto aos cortiços.
E também uma das criaturas mais singulares já vista.
E tudo que quisesse, estaria diante de mim, mesmo que não
pudesse tocar. Cada palavra proferida por mim era um talismã.

Sou todas essas coisas que me cercam e, obscuramente, todas


as que meramente percebo. Sou este cubículo escuro
escusamente afastado para que não reste a menor dúvida. Sou
a sombra de uma árvore qualquer lá fora que tomba sobre a
calçada. Sou a gíria agitada em qualquer ponto de ônibus ou
debaixo de um viaduto, o grito de um ambulante, o silêncio de
uma jovem agoniada. Sou os cartazes gemendo e descolando ao
sabor do vento, a carcaça de um carro extinto depois da última
esquina. Sou os gestos ainda não anunciados. Estou colado na
tarde como imagem absoluta, uma paisagem que escurece para
renascer depois do amanhã. Sou a fagulha que se desdobra no
porvir, desfigurando a geometria dos antros. Sou a sombra que
resiste a luz, as explosões solares que transmitem a cadência de
eras sobre o espelho. Sou a lua translúcida no céu azul
observando o meio-dia estourando nas margaridas. Sou o latido
dos cães que penetra nos segundos pairando sobre o

126
amanhecer. Sou o olhar das crianças deslumbradas com o voo
das garças. Sou o aqui e o ontem, e o para além do depois. Sou
um vislumbre, um movimento esquecido e não visto. Acordarei
nas laterais do tempo, na violência indomável do rebento de um
instante. Sou a crocodilagem que salvou o malandro, a esperteza
de um pivete que mais uma vez enganou a morte. Sou as horas
que se agitam invisíveis e carcomem o homem ausente em sua
vida, as horas que também não agem e retiram o homem da
várzea, destemporalizando-o. Sou um silêncio pousado nas
pedras. Sou um esgar de uma formiga.
vc apareceu saindo por detrás das coisas, um vislumbre único
em sua acepção de topázio e não resisti:
– Foi vc, não foi, que vi vindo sobre o lombo de uma onça
castanha? Nós, pobres homens, já quase não mais sonhamos.
E assim, muito depois disso, voltei novamente ao meu sentido
de pedra.

Vejo instantaneamente a porta em pé no horizonte, e o sol se


debruçar por detrás dela, coroa dourada, numa elipse
alaranjada esgarçando a paisagem

ainda ajoelhado diante dela, abraçando sua cintura, senti um


estrondo de relâmpagos e vendavais sair de sua carne.
Seu corpo era uma cadela sedenta, para além de tudo,
embriagado pelo néctar da vida.

127
Caderno dos Cantos Invertebrados
Ou (também)
Alucinações Divinas em Versos e Falas

*
Temos de ver os instantes que passam
Na estranha voz de grito de mato e ausente
O corpo que tarde a carne
O esplendor, um sonho que se anuncia
*
Sou apenas um boxeador do bairro
Como posso querer qualquer coisa?
Todos me desprezam
Sou uma piada em qualquer canto
O som das nuvens beijando a eletricidade
A paz da tarde encolhida entre as sombras das mangueiras
*
Um sopro de Iansã envergada com cheiro de terreiro
E a sedução dos postes saturados de ebó
As ruas de um tempo indeterminado num subúrbio cheirando a
defumador
*
Depois que morrera a vida se apagou em toda parte com que
existência, cheia de galerias e recintos, talvez, pudesse com o
som dos redemoinhos sacolejando os sacos plásticos e a
escuridão em todos os cantos que toma
*
Carne de pedra de Inhaúma
ao som dos retalhos frescos no varal com cheiro de açude
barrento
Feridas de ferro quente
Estopas cozidas
Cruezas santas

128
Tarde acobertada por cimento
Flores de talho quente nos quintais
Tenhamos a idade de todas as luas
Aqui deste tempo sem deuses ou heróis (ou mistério que nos
mova)
Invoco um passado sem
Grandezas ou revoluções (aqui a Terra é por demais anônima)
e o que sobra é uma existência sob as amendoeiras (em extinção)
No pouco espectro entre a sombra e a luz
os antepassados que ainda não houve
e o crânio em frente à luz dos lampiões retintos
devora a sombra dura como maçaneta
e o cheiro satura o ar com querosene
este é o outro dia de que escrever um escrito não precisamos
mais
em que morrer azul e preto enforcado
tiro na boca ou têmpora (acesso gozozo de maracujás e o sangue
entupindo os sonhos de passagem)
É a carne do sonho que daqui por diante ditará
Este novo escrito depois de todos os projetos que anuncie e
valide como os últimos
]
A TERCEIRA FAINA

Eis um novo tiro. Um novo episódio. Uma nova epístola em


direção a ninguém, nem a nome algum que se pronuncie.
Estou novamente diante de um mundo que
se repete novamente a todo momento em mesma hora (nada
mudou desde os
)últimos anos que nem me lembro mais.
Sou depois do último nome que resta. Nem verbo ou autor.
Vibrante na eternidade, sou.
Não possuo casa nem escombros
Tão pouco fortuna dinheiro crítica família o Tempo e a Escória a
Ciência o Uso-Fruto o Capião e as frementes horas
Estou fora do tempo e ouso escrever sem nome ou valia.

Não Ouso Falar

129
Mas Preciso
Que a Carne que chora é fogo de Despacho.
Sou Desta Terra sem Içar sem Bandeiras Sem Homens
Onde se pensa o Impensável
Olhe Bem Sou Brazyl

Cor de Manga e Abacate / Nunca Braganças


(Maracujá)
Preciso
Escrever em Nome da Fome ou Impuros
Mentira
Não escreverei em Nome de Nada
Nem Nunca
Ou Fantasma Algum
Eu queria Mesmo morrer sem Coragem. Não sei e ou não
consigo.
Queria Ela de Volta
Com Sua Carne ou Seus Vícios
Olha, queria era mesmo a Lua de talho quente descabeçada a
noite trazida de vômito de Fogo. O Ar encharcado de sal
vermelho. A Cor do Som sem nome e do Cão latindo em todo
longe.
Não sei escrever nem de Vida ou de Botina
Não sei nada. queria era Estraçalhar as palavras / fazer o que
Não se Deve. Explodir as Entranhas de Tudo
Do meio de uma vida mendiga lançar raios da voz e paralisar o
instante
Olha,
É preciso Construir o Fogo e a Luz
Dançar as Sombras

130
Ano XXXIX: O Santo dos Amaldiçoados

Linhas de Oxagoãm, como uma chave imposta


pelo outono que derruba as folhas das Eras
Sonho entrevado
na boca da noite que escala o
ar das infâncias pelos cajueiros
Sol cristalino
chovendo raios
nas imensidões povoadas por favelas coloridas
o pico do morro futura
a eternidade
com nuvens elétricas
o voo dos urubus sobre os devaneios
esquecidos sobre os monturos
vejo então a torre de olhos e redemoinhos
atravessar o cântico dos vapores
perfurando a pele da terra
sobressaindo-se de dentro de uma fenda
ergue-se até o céu metálico com a extensão de cobre
e dos olhos trepados uns nos outros
,encravados numa massa espessa e vermelha,
saem dragões indistintos com longas caudas
de fios-de-contas
miçangas reluzentes e cromáticas do tamanho de um
punho fechado
e da dança dracônica
luz férrea de sangue escaldante
terra e céu rodopiando nos olhos e corpo
em miragens que embaralham as almas
o calor dos batuques fuzilando a atmosfera
com atabaques caninos
o concreto das casas
o asfalto das ruas

131
desaparecendo
e apenas uma linha-férrea
atravessando o Bairro de Cavalcanti que se perdeu
tudo retrocede anterior aos mundos
nos lançando de vez através e para além das Eras
e num redemoinho gira incessante
o pó vermelho da terra nua
se desprende e flutua
reapareço naquela rua
naquela tarde de sol batendo nas lajes
o vento assobiando as esquinas
na rua vazia emite um chilrear de cigarras
mas vc não está lá
apenas a rua e eu
que somos a mesma coisa
acontecida por fora do tempo
um abalo sísmico na carne da vida
que faz as partículas vibrar infinitamente
até a saturação completa
e a dissolução
não restando nada até eu desaparecer
por completo
em luz vermelha escama da noite tragando o infinito e as
vertigens
numa única implosão
e o desaparecimento

Eu olho o Cão através de seus olhos, mas ele não me caça. Eu


estou do outro lado do tempo, onde a chuva bombardeia a cidade
num redemoinho que não se move.
Tarde extrema fotografada na poça d’água, hidrantes de outros
mundos estilhaçando o sangue que se convulsiona em
esguichos.
estou andarilho, com um pedaço de carne crua na boca. No
ventre me arde um inferno de labaredas atingindo o topo do céu.
Um verbo ronca ecoando em meu crânio. O recheio de meu corpo
se desfaz, nem vejo em que instante perdi as vísceras.

132
[em todo lugar é metade carne e metade sonho. Ambos
se confundem. Onde não vemos, somente há sombras. As ruas
parecem não ter fim, seu chão é uma tessitura canina e
ensanguentada. As luzes da rua advêm de crânios pequeninos
(infantis?), flutuando e girando sobre as sarjetas. O tempo é o
inverso de tudo aquilo já pensado.
[e o céu uma cartilagem rija de olho sangrento que pisca.
Os dias de Inhaúma, Posse, Cavalcanti e os outros bairros
acabaram.
e o que foi bom e o que foi ruim, se esfacelaram, ficando
pra trás.
Vivo agora um dia de cada vez, na mesma
serenidade destes dias que me cercam.
Quem é esse?
Digo: Eu sou a Besta fera q veio derrubar o mundo dos
homens.
e da incerteza de meu sono eu ouço o vento velho como
uma dinastia quebrar a louça na cozinha Eis que se anuncia a
tempestade, um ar elétrico paira lá fora Sinto o vento agitar a
poeira e o lixo, desenroscar os telhados de zinco, que batem
sobre a armação de ferro Acordo suado em cima do sofá e olho
o cinza lá fora se alastrando no céu até o horizonte, um tapete
chumbado sobre a cidade e as construções Sinto um golpe sem
nome atingir meu peito, e qualquer coisa como a tristeza toma
conta de mim Faço e tomo um café pensando em todas as tardes
que me restam, enquanto minha visão atravessa a janela e se
afunda até onde a vista embaça E longe de Cavalcanti,
cerceando o Rio, um maciço de morros emparedando a cidade,
até se debruçar no mar A silhueta do Cristo Redentor se
apresentando aos meus olhos, inespecificamente, lá longe, onde
pode haver o mar, deste oceano sem páginas, onde qualquer
coisa pode rugir ou silenciar, vibrar e permanecer, até que uma
nova história aconteça A menina dorme no quarto, já entardece
precocemente, com a tempestade que se ergue
amanhã, um outro dia, onde me revelarei por
completo na ausência

133
Ano qualquer: Reduto de uma vida por fora

Quando ela acordou,


de sonhos atribulados pela noite, suando e revirando-se sob o
lençol, sentiu qualquer coisa de estranho, sentou-se à beira da
cama, pondo os pés levemente sobre o chão.
Levantou-se, ainda sonolenta, atravessando aquele cubículo.
Ao chegar na minúscula cozinha, viu um pedaço de papel de pão
em cima da mesinha.
Afastou uma cadeira e se sentou nela. Sabia que era um bilhete.
Não ousou tocá-lo. Tampouco lê-lo.
E ficou olhando praquele pequeno pedaço de papel, como um
ponto vibrante entre um nevoeiro de partículas luminescentes.
Viu-se, depois daquela noite turbulenta que se passou,
transformada.
Só não sabia no quê.

Centúria dos Orixás de Inhaúma


Lar dos Sóis Metálicos e
Empedrados
Ano Incomum

134

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