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Mas eu nasci sob este manto, eu sou pudica para quem decide que sou, mas sou
promíscua por pouco, pois não nasci com respeito em mim, eu preciso me dar, preciso
me encaixar no que consideram uma mulher correta antes
pois sou espelho de Vênus, Afrodite, com Ártemis escondida na mente
Na beleza estranhamente contraditória dos males do mundo que em meu colo foram
jogados
Sou Eva, Pandora, Lilith
Atiramos fogo nos deuses
Só servimos quando somos santas e não como seres
A causadora não foi a maçã, a caixa, ou a força
Mas a liberdade, que é a verdadeira desgraça causadora de tudo desde os primórdios
para quem não aceita que existimos por nós mesmas
Eu não vim de uma costela, você veio de um útero!
Sou espelho de Afrodite, ensinada desde a infância a ver o outro refletido nele
Que tem dentro do peito contos de fadas, o amor idealizado, as belezas, mas sempre
encontrando pelo caminho tudo aquilo que prefere deixar esquecido no passado
O papel feminino delicado criado socialmente não condiz com a realidade
Ser mulher é violento, feio, pesado!
Não por nós mesmas, mas pelo que nos é ofertado
Que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que, ser forte
não é apenas criar dor, mas também aguentar, ultrapassar, superá-la
Quero ser considerada louca, histérica, desequilibrada
Pois a mudez me rasga e aquelas que a utilizam não personificam-se em ser, elas nunca
vivem suas próprias vidas pois nessa realidade o tom de voz que chega aos tímpanos é
apenas o grito
Quero o luxo de desagradar, de não servir, de não me preocupar com os reveses de
apenas existir
Não quero ser tocada, chamada
Quero passar despercebida nessa jornada
Quero ser o centro do meu problema, quero falar de mim, não do outro
Agora sou eu, fique em silêncio e espere a sua vez!
Somos a mater dolorosa que sangra pela vida, sem vontades, que é usada ao bel prazer
alheio, aberta quando necessária, fechada para si mesma, sem nunca dar à luz a sua
própria existência no mundo
Em uma constelação escura de galáxia sem saída ou então, debaixo do mesmo teto, em
plena luz do dia, eu não estou segura
Não interessa a idade
Como de costume, no caminho, olhos maliciosos, boca salivando espreitando coxas,
seios e nádegas. Na mira, a passos rápidos pela rua, ela questionava-se: o que mais
precisaria fazer para demonstrar ser apenas uma criança voltando pra casa?
E aquelas ruas nunca mais a viram passar por lá
Há pouco tempo, a poetisa que vos fala, inundada em preconceito, estaria assinando
esse texto apenas com as iniciais do seu nome ou com um pseudônimo masculino, hoje
em dia bato no peito e digo: — SOU LUA! — em caixa alta
Sou mulher escritora! Escrevo porque quero, escrevo porque acredito que a arte muda a
realidade e embeleza o mundo, escrevo porque sinto e as letras são a minha voz,
escrevo para não ser só mais uma nas estatísticas de um país omisso a nós!
Mas enquanto redijo torto e coloquialmente sobre ser mulher
buscando as palavras necessárias para findar a poesia,
só encontro significados dolorosos em cada linha do dicionário feminino.
Eu Sou Mais
Deitada
com pernas em V
vejo tua língua molhada
se deslizando
lambendo-me
ao encontro
da pélvis
De quatro
Como uma loba que uiva
na lua cheia
desbravando a floresta
e em busca do cheiro
das flores da primavera por vir
De pé
Sinto o coração
Pulsando
pernas trêmulas
de desejo
desmaiam na cama
me deito
e vejo a lua
Neudenis Carvalho, atrevida em escrever poeticamente o que me atravessa corpo e
alma. Estudante de Literaturas, Terapeuta, Educadora Popular, Ativista Política
Feminista e Atriz no grupo de Teatro ExperIeus.
De Sua futura personagem
Cidade dos Personagens não Inventados, 15/03/2022
Cara Leila,
Você ainda não me conhece, eu sou, ou melhor, serei sua protagonista em seu
novo texto. Estou sendo criada dentro das sua mente, a partir de seus sentimentos e
angústias, seremos portanto mais que parceiras neste projeto-livro. Você me dará vida e
esta passará a ser minha, tendo eu, portanto, algum direito sobre ela, concorda? Dito
isso, quero aproveitar esse momento que ainda não nasci, para colocar algumas
questões.
O primeiro ponto é que quero nascer mulher. Concordo com você que
personagens femininas são mais interessantes. Em último caso, se eu for um homem,
que seja um homem de poesia, como o Crisóstomo.
Em segundo lugar, peço que me coloque em primeira pessoa. Ninguém merece
viver com uma criatura te vigiando e se apoderando de sua história, de seus
pensamentos. Não me coloque um narrador intruso, ele sempre acha que me conhece
mais que eu mesma, ra ra ra, claro que não. Então deixe que eu fale por mim, imagine se
a Capitu tivesse voz, a sua história seria outra.
Outra coisa importante, não me deixe tão só, por favor. Eu gosto de gente. Aliás,
não entendo porque vocês adoram um personagem solitário? Nos filmes não é assim, há
sempre um best friend pra o protagonista interagir e poder expor suas angústias.
Nós personagens de livro somos geralmente sós e cabeçudos, cheios de dilemas.
Ultimamente, com o tal fluxo de consciência, ainda temos que ficar remoendo as
questões, sem jamais resolvê-las.
Problemas têm que haver, conflitos humanos genuínos, do contrário, o leitor vai
se entediar e, é claro, eu também.
Ah, por falar nisso, me dê certa liberdade na história. Vocês dizem aos quatro
ventos que os personagens têm vida própria, então me deixa viver. Deixa eu aprontar
umas peripécias no meio do livro, pois sei que do final vocês não abrem mão. Mas se eu
puder opinar, gostaria de um fim definitivo, feliz, mas inusitado, ou até mesmo trágico.
Mas pelo amor de Deus, nada de final em aberto. Não posso terminar perdido na
mão do leitor. Leitores não merecem confiança, quando se juntam, então, inventam cada
uma sobre nós, que nem imaginamos, nem nós, nem vocês escritores.
Por favor, cara escritora seja generosa comigo. Quero belas falas, ricas aventuras
cotidianas e um cenário de flores. Gosto de flores, sabe? Se não houver flores, pelo
menos não me jogue em um mundo hostil, como um deserto, ou uma guerra. Você sabe
que no processo padecerá junto comigo, então pega leve. Sororidade, lembra?
Amiga escritora, eu não preciso ser especialmente bela, meu rosto não aparecerá
no livro. Mas se eu puder pedir uma última coisa, me conceda um nome bonito, gosto
de repetição de letras, combinado, é claro, com uma personalidade marcante, pra que eu
seja lembrada por séculos, como Maria Madalena, Anna Kariênina ou Marielle Franco.
Leila Rosa, 50 anos, mãe, nascida no recôncavo baiano, reside em Salvador. Médica de
formação, encantada por histórias de clássicos a causos. Quase ontem assumiu o prazer
de criar e contar, tecendo com palavras.
ode à mulher
agarra-se à algo
como quem perde o juízo:
mulher de natureza fácil,
criatura de tantos desvios.
Pachamama
Com a obra ELA feita através da gravura entalhada em neolite e impressa manualmente
com a colher-de-pau, pretendo me inscrever nessa seleção de publicação, pensando na
diversidade das mulheres. Eu sempre pensei em como representar a vida em forma de
gravura de carimbo, preocupada em não reproduzir estereótipos, em como evidenciar o
copo humano sem violentar devido à diversidade e as diferenças que permeiam nossas
relações. E assim ELA surgiu, a partir do meu incômodo com um ―sagrado feminino‖
que exclui as pessoas trans, que parte de um biológico que também é forjado, é violento,
aprendi muito nas ciências sociais e antropologia (sem querer ser a dona dos saberes e
respeitando o lugar de fala das pessoas que eu estou gravando, entalhando a matriz e
imprimindo) tanto o gênero quanto o sexo partem de significados culturais, a biologia
pode ser contestada, ela não está para além da cultura, ela é uma cultura que nomeia
fabricada pela ciência branca ocidental. Enfim, fiz uma gravura em homenagem às
mulheres trans, influenciada pelos meus embates que essencializam as mulheres através
de um útero, a minha referência de mulher aqui, com essa arte é de uma mulher trans/ e
ou travesti, ela não tem útero, ela é uma mulher de pau, para essas mulheres, todas essas
mulheres.
Tive um sonho na noite passada. Chaves dançam nas fechaduras. As dobradiças rangem
com a abertura das janelas. Eu debruçava meu corpo e dançava no parapeito. A brisa
movimentava os cachos e, como chicotes, marcavam a pele. Tive um sonho na noite
passada. Dirigia meu carro, sem saber para onde fugir. O desconhecido me isola em tua
sombra. A máscara cobre meu grito e o fôlego embaça a visão. Manteiga no pão. Passei
o café. Os olhos presos no coador, o alarme da conferência apitou. Você chamou meu
nome. Quem? Não reconheço. Você chamou meu nome? Não sabia que aquela... era eu.
Você sacudiu os meus ombros, e dispersa procurei seus olhos, mas só vi os meus...
Arregalados. Teu corpo no chão. A poça brincando no piso. A ponta da faca impediu o
grito. A mão tremia e no reflexo... me vi. Reconheci. Quem? Não sabia que aquela tinha
sido eu. Noite passada tive um sonho. E contigo na beira da mesa, puxo um falso
sorriso. Olho novamente o talher. Os dedos parecem se sentir em casa.
BAGAGEM
olhos na estrada
lágrima em trânsito
aplicativo canta a rota
localização extraviada
vestígios
do coração de um homem
na tampa do liquidificador
resíduo amoroso
Paula Oliveira, 31 anos. Residente em Uberaba-MG. Escritora e fotógrafa que produz
poesia visual através da escrita, fotografia do cotidiano, autorretratos e nu artístico.
Cursando Pós-Graduação em arte educação. Integrante do G.A.S (Grupo de Estudos de
Artes Somadas): grupo composto por artistas de diversas áreas destinado à prática e
experimentação coletiva. Dedica-se também ao Teatro, performance, dança, pintura e
desenho. @paulaoliveira.art
Poemas que não nos cabem, os jogamos fora.
Tinha uma foto no meio do caminho e também tinha uma dor perdida,
Tinha um Adeus e a triste ideia de morada nele, de tão barato de se conquistar custava
caro. Os poetas se calam nas altas horas, fica o vão do momento súbito em que esses
não sabiam o que dizer.
Fica uma memória e um cheiro, inventadas. Fica a lembrança e mais nada. Fica o nada e
tudo morando dentro dele lentamente se silenciando.
A mente o teme.
II
Criança
Antes de você,
Não se encaixava.
Toques incendiados
Só a fumaça irá até longe lembrar que dentro do seu já existiu um nosso.
Viva
Quente
Perturbada,
Um passado desejo
III
As cordas que nos prendem, desde ao primeiro furo, as presilhas e tiaras para que não
chegue a nos chamar de Homem, terrível palavra para um bebê.
Perdido a promessa.
Ainda é pouco, enquanto que tantas ainda são mandadas para a fogueira pela mão que
mata, que manipula.
A arte ainda é pouco quando a vontade é de fazer morrer,
Quanta raiva cabe em uma mulher, de quanta raiva uma mulher é feita,
Para onde nos olham quando apontam seus olhos em nossa direção,
Prazer,
Deseja agora?
IV
Quanto ao despertar arrisca dizer tão logo que sente, é cedo, cedo e ainda assim se
entende.
Rosto e voz distorcidos se tornam em uma melodia linda demais para se desejar,
Pergunta-se a qual fim de frase foi parar a parte que não se conecta, que não rima ou
concorda com o sujeito e verbo.
Os dois, o mesmo.
Vai tomando por si só uma língua meio tímida de quem fala baixo e ainda assim espera
ser ouvida.
A que diz,
A que agarra.
Pequena desgraçada,
Depravada,
Me olha e vê papel,
Fica de olho nele que eu vou pegar o balde pra tirar ele da areia, filha.
Na areia tinha ela, a busca de ar. Eu sabia o que era aquilo. Quis dar uns passos pra trás.
Ter que ver de frente o que já sabia em viver por dentro eu não queria. Mal aguentava.
Ele pulava tão forte que até pensei se tinha mais ganas que eu. Se quem sabe eu estivera
esse tempo todo esperneando amadora enquanto tudo o que faltava era um pulo
daqueles de quem vai morrer no próximo repuxo do ar que não vem. O ar dele era água
o meu era vida. Vida que se foi. Secou. Repuxou. Ele virava e revirava e eu
acompanhava cada busca, cada tentativa feita em vão e sabia que o tempo não era mero
intervalo. Era veredito. Meu pai já tinha desaparecido da minha vista e ainda não
voltara. Não tá nas minhas mãos meu amigo. Nem a minha vida nem a tua. É o tempo
de chegar o balde pra caber a água e esse tempo ninguém controla eu aprendi. Não é
coisa nossa. É todo um flerte de encontro-desencontro e sei lá mais o quê. Sei lá mais o
que te dizer mas to aqui. To aqui. Porque testemunha, ser testemunhada nesse
secamento tem me salvado. Dá pra se salvar na falta do ar então? Sem saber direito que
pergunta fazia eu me movia com ele em cada puxada de ar em vão. As branquias abriam
e fechavam ainda com ganas. Lágrima já era o meu respiro e meu jeito de dizer eu sei
com o corpo. Eu sei. E isso é tudo, pra mim e pra você. Nem tem mais isso - eu e você.
Tem é o querer viver nesse abrir e fechar da branquia-coração. Porque estar vivo mesmo
já é outra coisa. Eu até me perguntei, nessa secura: quero? Tem gente que faz drama -
não querer viver tem nomes e quase um carimbo de fora da vida. Mas eu me perguntei.
Perguntei mesmo porque se a vida seca a gente é colocado de frente com uma coisa que
é pra continuar mas tá sem a matéria. Pegadinha? Meu jeito foi perguntar. A minha
resposta ainda assim talvez foi algo entre a inércia e o gosto pela coisa. A gente nunca
sabe vai que a água chega. Vai que dá tempo. Vai que dá tempo digo enquanto vejo meu
pai no horizonte voltando com o balde e as branquias já sem muito fôlego pra abrir e
fechar. Vai ter água mas a grande questão é o tempo. Ele vem caminhando sem correr
como se o risco não fosse dele. E talvez é assim que a gente morre. O risco é de quem
espera entre o seguir e a falta da matéria. Meu pai já se aproximando tem que andar um
pouco adiante até o mar ali à frente, enchendo o balde de água. Cheio de matéria. Com
mão cuidadosa e paciente tira o anseio de vida da areia quente como quem não soubesse
que tudo até ali fora tortura e larga na amostra de matéria salgada recortada pelo
tamanho do balde. Nada muito resolutivo acontece e as puxadas de ar estão lentas tudo
meio descrente. Agora já não é mais a falta de matéria mas a questão de um corpo que
viveu a secura. Que puxou ar de dentro do vazio. O vazio nos muda. Ele segue o corpo
mais leve assim com menos tônus virando de barriga pra cima como quem tá pronto pra
morrer. Como quem não teve escolha se não ficar pronto pra morrer. Mas não morre. O
corpo vira e revira dança nesse entre. Virou um ser do entre. Eu choro pela desilusão
que a vida tinha tomado ainda sem saber o que ela ganhara. Choro porque o tempo é
dono de si próprio e nisso a gente é dono de pouco. É dono de pouco. É dono de pouco.
E saio caminhar pela orla. Pela orla. Já abrindo mão de qualquer coisa. E deixando o
entre-peixe ser é como me deixar ser entre. E ando pela orla. E volto já separada do
interesse mas talvez ainda interessada sem saber. Pergunto ao meu pai, após ver dois
peixes agora no balde cheio da matéria salgada. Ele responde
e ele nadou?
Parece que foi ainda corpo meio dançante do entre que se virava entre vida e morte até
que virou um corpo vivo balançando junto da água, junto da matéria, e foi.
e viveu.
agora,
um ser da orla.
Enigma (ou Ampulheta?)
se vai dar.
II
sabe-se que a Terra tem a função de nutrir, de cima a baixo, de dentro a fora;
um terreno fértil é
um Solo possível
III
o amarelo, o laranja
o cheiro do pomar
a Primavera
cabe
dos arbustos
e mesmo os arbustos
eles se cansam
VI
o que altera
a possibilidade
do Solo;
VII
muitos
de vida murcha
VIII
acaba [poluído]
como se estivesse em
estado de aridez
quanto
IX
I
tenho sonhado excessivamente que há uma grande [perda de tempo].
II
os sonhos são feitos de alguma matéria de água, sempre assim, desde os desfiladeiros de
gelo, os mares, os rios, o sangue e os fluídos. são corpos inteiros de imagens e sons, as
águas e o movimento consequente das águas. você consegue ouvir isso hoje? lembro de
terem me falado; tome cuidado com a água, ela se esvai das suas mãos em menos de um
segundo.
III
tem me aparecido as figuras donas do fleuma, o rosto irônico de clarice lispector
ganhando olheiras cada vez mais profundas. quero escrever diferente, dizia, insatisfeita,
estranha. parecia estatelada, clarice, que ignorava o mundo que regia, soberana, ela & a
sua linguagem, suas manias seus enigmas.. eu preciso aprender a escrever diferente. eu
quero escrever diferente. e, por fim, fornecia uma pista: eu quero escrever de forma
mais [burocrática]
IV
depois de uma semana constatei: minhas ficções noturnas vêm trazendo repetidamente
as narrativas da Criação da Poesia e da Escrita. é dormindo que me recordo: sou
escritora. na vigília, se dedicar à Invenção é perigosíssimo. [perde-se tempo]. Criar diz
muito sobre fertilidade, o que envolve terra e água, passo horas pensando um terreno
fértil. de repente, a imagem da infância de marguerite duras me invade, junto das
barragens do solo e do oceano, a mãe de marguerite que, na inundação, tornou-se ela
também uma fonte de inundação. se não se controla a terra e a água, uma invadirá a
outra.
V
nos sonhos, há a ficcionista - mas há o impedimento da ficcionista. sento-me à mesa
com outras escritoras todos os dias e elas não sabem. lembro que deixei de escrever por
algum motivo e que por isso deixei também outras coisas de lado, como sonhar e viver e
viver como poeta. é vergonhoso. quero voltar a escrever é tudo tão murcho por aqui…
elas me respondem: você está perdendo tempo contando as horas de alguma
outra coisa.
VI
acordar e deixar as informações sublimarem, a água exige isso. eu sinceramente queria
ter permanecido sonhando - este é o meu primeiro pensamento do dia. quando a gente
acorda e percebe que a vivência do corpo é ficcional. quero maternar esta ficção,
colocá-la dentro de um aquário, com peixinhos areia uma paisagem. um caderno ao lado
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Por isso disse paciência, nem todo cão de guarda não dorme. Até a sola do sapato
precisa de descanso, então posso te dar abraço? Ela disse que não. Desliguei a torneira
que pingava, uma gota a cada dois segundos em uma constância que não se parecia
comigo. Porque tudo que pinga, me respinga, eu me molho e adoeço.
Naquele silêncio eu ouvia sua verdade, a Béia (assim eu a chamava) dizia muita coisa,
mas só quem tem bons ouvidos, ouve os ruídos do silencio então ela sabia que poderia
dormir em paz porque eu não cobraria respostas.
Ao contrário daquilo que se transforma, a metaforma não chega aqui no bairro onde a
gente mora, porque, além da mesa vazia, a geladeira também está. Por isso o silêncio.
E eu vi que aquilo (ela) estava com fome. Uma sopa de carinho com legumes para
manter a Macabéia viva e sadia. Uma sopa quente para o corpo abarrotado aliviar as
tensões de ter um cérebro gigante. E eu disse: nenhuma sopa sustenta o peso de viver no
mundo e ela consentiu. Macabéia não era tão tola quanto parece, mesmo que parece, ela
não é tão tola, -tão tola quanto eu-.
Depois da janta: um sono, e depois do sono, o amanhã. A Béia odeia o amanhã. Hoje
cedo, ao sair para o trabalho, Béia pisou em um rato. Se não tivesse levantado, não
pisaria em nada, e é assim a sua filosofia. Eu a entendo.
O rato morto me lembrou Clarice, quando disse que estava perdoando Deus, por um
rato morto que também pisara. A diferença é que Clarice estava esperançada, era amada,
amante e parceira da terra, do mundo. Macabéia não. Nunca fomos amadas.
A coitada, (ela) / (eu) não fala muito porque, aos olhos dos outros parece irritante. Nós
conversamos no silêncio porque nele estamos seguras. E quando eu falo dela (a
Macabéia) eu falo de mim, que também é ela. Me coloquei num personagem para me
descrever de longe, e você, deve saber como é se ver de longe quando não consegues se
ver de perto.
Foi com Clarice que aprendi a escrever e, às vezes, eu me sinto Lispector também. Um
pouquinho de todo mundo aqui dentro não pode fazer de todo mal.
- Nunca comi nada além de sopas cozidas por mim. A primeira foi a de letras. Disso
nasceu minha palavra, eu comi ela.
Olharam-se ao cruzar a rua, naquele alvoroço da fatídica rotina diária, olhos nos
olhos, nunca viu um olhar tão profundo quanto o que lhe encarava, ficou sem jeito,
aproveitou para planejar o futuro juntos, construiu uma vida em meio aos seus
devaneios… apartamento, decoração, bichos de estimação? Bem, não sabia se ao certo
se ele gostaria! E filhos? Uns dois talvez? Almoço com a família toda reunida, viagens,
planos, podia ser!
Na penúltima parada do ônibus, ele desce, ela desce e a esperança chuta o fundo
do seu âmago, para logo esvair-se.
Seguiram por direções opostas!
Chegou ao seu destino, entrou na recepção do lindo prédio, respirou fundo, estaria ela
preparada para mais um dia? Soltou o ar que estava prendendo, o porteiro
cumprimentou-a,
-Bom dia! ela respondeu, todos os dias, a mesma coisa.
Perdida em pensamentos, entrou no elevador, sentiu os planos feitos mais cedo
escorrer por entre os dedos, seguiu para sua sala marrom sem vida, ocupou-se de suas
tarefas, as mesmas de ontem e da semana passada, iguais às de meses atrás, anos.
Ao fim do dia tinha cumprido suas metas, era uma boa funcionária, fechou o
computador de mesa, apagou as luzes, antes de trancar a porta checou o celular, nada,
como sempre, nenhuma mensagem, nenhuma ligação, não ficou surpresa, despediu-se
do porteiro e seguiu para casa.
No caminho da volta esperou o reencontro, não aconteceu!
Subiu as escadas, destrancou a porta e o silêncio do apartamento vazio lhe
preencheu, tomou-a por inteiro, a falta de som fazia com que ela se sentisse observada,
não que ela ligasse, mas nesse dia ela sentiu algo diferente, como se lhe faltasse algo,
era estranho.
A memória brincou com ela, lhe trazendo recordações da troca de olhares no
início do dia, sacudindo a cabeça em busca de livrar-se de tais pensamentos, sorriu! Mas
desejou que a experiência não passasse apenas de algo da sua cabeça, voltou atrás, não
deveria se prender a bobagens.
Tomou banho no seu banheiro extremamente limpo e vazio, comeu seu jantar
enlatado, preparado no microondas, da janela de seu quarto observou a quietude da rua,
deitou-se na enorme cama macia, antes de pegar no sono rolou o feed do instagram, não
encontrou o que procurava, inquietou-se, algo perturbava sua mente, o olhar de mais
cedo mexeu profundamente com seus pensamentos, novamente o vazio do silêncio
tomou-a.
Um pensamento emergiu, a falta de olhares que arrebatam a alma e que fazem a
vida ter outro sentido, era isso que ela precisava, não iria encontrar, não tinha esperança
alguma de encontrar, a tempos que se sentia confortável com a imensidão do vazio,
dormiu!
Pela manhã estava bem, nada de estranho com sua cabeça e pensamentos,
concluiu os afazeres matinais, preparou-se, caminhou ao ponto de ônibus, sentiu
novamente um chute de esperança, repreendeu-se mentalmente, o que procurava? Seus
olhos buscavam por mais!
Nada!
O ônibus chegou, ela entrou e acomodou-se, abriu um livro, se pôs a ler, parada
por parada seus olhos desgrudavam das páginas e subiam a procura de algo, alguém,
nada! Estava estranha, concentrou-se, mais à frente alguém tocou em seu ombro, ao
desviar os olhos para responder a quem lhe chamava, encontrou, encontrou o que estava
procurando e necessitando, dois pares de olhos que lhe encararam profundamente,
-Oi, posso sentar do seu lado?
-Claro!
Seguiram!
Para ela, a profundidade daquele olhar era como o mar, sem fim.
Ana Caroline Ferreira da Silva, 25 anos, nascida em Campina Grande, Paraíba. Sua
cidade natal é Barra de São Miguel – PB. É graduanda em Letras Português e Francês
pela Universidade Federal de Campina Grande – PB. Atua como professora da rede
estadual de educação da Paraíba. Dedica seus estudos ao campo das práticas de Leitura
e Ensino de Literatura Feminina e Afro-brasileira, no qual possui uma lista de artigos
publicados. Ana Caroline, toma como inspiração literária as obras de Lygia Fagundes
Telles e Jarid Arraes, por quem nutre admiração e respeito. A autora vê na educação a
solução para mudar o futuro e não repetir o passado, sendo esse o motivo que move sua
paixão pela escrita.
Memória viva
Quando os meus tímpanos apreciam essas músicas a vejo em minha mente dançando
com seu jeito cheio de charme e elegância
Mas recordo das festas em família que ela gostava de organizar, das mesas fartas, da
casa cheia, das vozes altas a conversar
A nostalgia bateu em minha porta e a deixei entrar. Então, conversamos sobre as doces
lembranças do passado.
Filosofia
A filosofia tem em sua etimologia o amor à sabedoria. Aos meus 10 anos ou 11 anos
apresentaram-me a filosofia em uma sala de aula. Foi nesse momento que me encantei
por ela. Por essa linda e bela amiga que me auxilia na busca à sabedoria para que eu me
torne a minha própria mestra e ao longo da vida discípulos me encontrarão para
entenderem a caminhada em busca de si mesmos.
Emancipação
E prisões mentais
O voo da libertação
Amanda Amorim. Sou nascida e criada em São Luís/MA. A arte desde criança esteve
presente em minha vida devido a influência de minha vó que era artista plástica. As
recordações dela pincelando seus quadros ainda se fazem viva em minha memória.
Quando criança gostava de ouvir histórias contadas por minha mãe. Então, o apreço
pela leitura nascia. A poesia, por sua vez, surge no final de minha adolescência e
continua a crescer, existir, viver em mim. Tenho a psicologia como área de formação.
Diria que para além de possuir uma formação técnica, sou escritora, poeta, filósofa e
quando digo isso sou aquela aprendiz e que busca pela sabedoria, a sabedoria contida
nos livros antigos e no cotidiano da vida. Estejamos atentos para enxergamos para além
do que se vê.
Ribanceira
Precisava dizer antes que se tornasse inexorável a pressa da vida.
As coisas tem tido outro têxtil e já não escrevo mais entre linhos. O silêncio faz
sua sombra de descanso e mofo sob minhas palavras, que já nem tanto me vem. Veja,
sinto-me à beira da ribanceira, numa mesa, onde trabalho, como, rezo. Daqui, de onde
fico estável entre minhas profissões pouco precisas, mas poeticamente assíduas, não
queixo da vista, horizontal, vasta, montanhosa. Tampouco preciso que me notem ou me
lembrem. Quero o que o peixe que vem dar sua graça em pesca me valha e ainda que o
que cultivo possa dizer que amo quando ainda não é flor nem nada além da
possibilidade improvável de sê-la. De vez em um quando, levanto-me. A cadeira reserva
um vazio, que já não estou no agora e nem mais me pertenço. É uma pressa que vem do
dentro, um impulso desatento. Meus pés vão a beira, a beira de ribanceira e de lá vejo
tudo que não posso ver. A casa que não sei, a viagem que não penso. Os filhos que não
tenho, o emprego do amanhã. Um salário contado pela criatividade das coisas que nem
cabem ao meu nome. Uma vertigem. Um medo da altura. Olhando meus pés, vejo como
é quase queda, vejo o salário que mal ganho, as viagens que cogito em gasolina, a volta
pra casa, o amor que amo. A mesa ali fica, poucos passos atrás do que chamo eu, mas os
pés pregam e não se movem. Paraliso. Entre o que me ribança e entre o que alcanço.
Parece-me não ser possível o salto, muito menos a queda de alguma forma. Não ser
possível também descalçar a vista do que meus pés ali mostram. É um entretempo.
Vertigem. Ali não sou filha. Sou nada. Sou nem eu. Alguma coisa escorre, que nem sei
se tempo, suor, lágrima, gozo, infância. E daí eu sei que uma forma de saltar é escorrer,
ainda que agarrada as paredes, escorrer no abismo. Derreter é vertiginoso, porque o
peito desloca ao chão. Escorrer ou saltar, isso é todo dia. Daí vem alguém. Um rádio
toca. É preciso comprar cebola e ser filha. É lindo amar o amor que amo. Os pés caem
em si. Me caminham à mesa, onde trabalho, como, rezo. A vista me devora, a cadeira
me preenche. Te olho e conto que estive na minha beira, precisava te dizer antes que se
tornasse inexplorável o amanhã.
Vestir Caminho
Me desentender com você é sentir que perdi a carteira com as chaves de casa do
carro ou qualquer outra coisa que signifique a agonia fina que é não achar o mais
importante da banalidade. Ontem não tive muito pra dar. Eu bebi os últimos quatro anos
de amizade por conta do frio. Já que as roupas de todos não cabiam mais, torci o
excesso da nostalgia que me restava em doses e mais doses. As coisas cambiam, trocam
de marcha, os tecidos mancham e ontem não encontrei em lugar algum as memórias que
tinha deixado em meia dúzia de pessoas que já não guardam o conhecido.
O amor complexifica qualquer margem de explicação do porquê as coisas erram.
As coisas erram. As coisas erram pela gente adentro e eu te amando conto como
as coisas eram. Como as coisas erram. As coisas erraram no tempo e isso com certeza
me deixou mais certa das coisas. Como te quero. Como te amo. Como ontem não tive
muito pra dar, devido o teor alcoólico de um tempo que não me veste mais ou até
mesmo a incapacidade de atear fogo nesse museu em meia dúzia de pessoas que é todo
feito de pó, vazio, pó fora, por dentro. E perdão, que ontem não tive como dar mais do
que minha incapacidade de atear, ontem não estive em lugar algum daqueles que sabia
pra onde ir. Não sei, mas os caminhos de trás não existem mais. A tinta que sinalizava
esvaiu, esvaziou. Ontem já é um caminho de tinta gasta. E hoje vaguei as sete versões
da história de cada uma das coisas que não lhe dei.
Pode parecer que não estive, mas estava. Estava buscando esse caminho aqui, o do
erro, que não bonito nem romântico, mas o erro que era uma forma de dizer que erro,
que te quero. Que foi o caminho que consegui encontrar nesse dia específico onde
percebi que a cidade é feita de lembranças e o ser é percorrer uma calçada onde a tinta
gasta com os próprios passos. Que foi esse caminho que dirigi bêbada das coisas que
não sou mais, que não podem mais caber e ainda bem. Ainda bem. Achei. A carteira, as
chaves de casa, do carro ou qualquer coisa que signifique o lado mais sagrado da
banalidade de por um instante e mesmo que breve, feito de punhal enferrujado, por um
instante, perder. Perder os caminhos. As pessoas. Uma cidade. Um ser que já não. É.
Ainda bem. Achei você. De quem não fui, de um caminho que não fiz. Achei. Percorre
essa distância do desespero de perder, mesmo que breve. Percorri as roupas curtas do
que fui, o pó, o museu que enfim ateei fogo. Percorri os anos. Achei. Achei você.
Percorri, peço perdão de um fundo que nem existia antes de te achar. Já não quero
mais a simpatia medíocre de um passado em pessoas onde não sou. Achei. As chaves de
casa, do carro, carteira. Quero amanhecer com você o doce de todas as horas, o
despertar dos caminhos que nos serão e se depender de mim, nos serão juntos. Te dizer
dos erros do que eram. Provar minhas roupas em você que não cabem mais. E cometer o
erro que te percorre em memórias apertadas do que foi. Provar, desculpa, minhas roupas
que não cabem mais. Só pra esquecer as chaves de casa, carteira, carro, cofre, cadeado,
num bolso que nem lembrava o porque gostei tanto dessa calça e decidir mudar de
endereço, documento, mala e mala e mala e cuia só pra morar mais perto de você.
Amanhã. E amanhã e amanhã, ainda mais perto.
Numa forma poema prosado, conto-poema ou outro molde a intitular um eixo pouco
específico, Lua Nê atriz, musicista, professora e escritora latinoamericana, pauta sua
poética no quotidiano afetivo, como mulher, lésbica, amarela e no lugar da palavra do
lúdico ao biográfico. Tem seu primeiro conto publicado em 2021 (Editora Unesp) e sua
primeira obra "O arroz é o maior lugar da casa" em 2022 (Editora Multifoco).
~ acerola
cabocla, cerejeira,
sertaneja, rubra, okinawa, apodi
frutacor
estate
verbo
todo dia.
Ana Luiza Tinoco é uma poeta potiguar. nascida e criada na cidade do sol, no cu do
elefante do brasil, nas veias da américa latina. re-nascida e descriada em portugal.
produz palavra falada, tendo sido a ganhadora do poetry slam coimbra 2020, finalista do
7° portugal SLAM — festival internacional de poesia e performance e co-fundadora do
coletivo de poesia de mulheres migrantes ―slam das minas coimbra‖, o primeiro
coletivo de batalha de poesia falada só de mulheres em portugal. produz palavra escrita,
com publicações na antologia antirracista/antifacista de poetas estrangeirxs em portugal
―volta pra tua terra‖, da editora urutau ; no livro ―potências feministas: papel e voz‖, da
SESLA: linha editorial e nas zines ―poetizando o feminismo‖ da ONG brasileira ―nāo
me kahlo‖ e ―sutura‖ da produtora potiguar ―anzois‖ autora de ―pororoca‖. (ed. urutau,
2022)
TEMPESTADES DE VERÃO
(Para Cecília, que resgatou em mim o elo perdido: o amor mais sublime!),
Os olhos que ‗vasculhavam‘ (acho que é este o termo e também não é meu)
penetraram e semearam em meu ser pedaços musicais há muito esquecidos. Foi amor de
desmedidas maneiras: amor na face, amor nos olhos, amor nos ouvidos olvidados de
como seria o amor com amor singelo. Ela tateara o meu ser vasculhando algo dentro.
Meu ser, antes deste singular momento, estava atrapalhado, oco, ‗duvidoso‘ do amor
gratuito – aquele mesmo sem reservas e legítimo, agora encontrara um porto, um
vínculo. Penso que de algum modo seus olhos que tudo vasculham e emolduram
localizaram lá no fundo da minha alma e do meu olhar peregrinando triste um ‗ser‘
pequenino e perdido.
Ela fizera reacender o amor pueril – força nutriz que impele a seguir! Talvez os
olhos que infiltram procuraram e tatearam um ser atrapalhado aqui dentro de mim. Seu
olhar febril fez jorrar do meu ser – lágrimas doces escorrendo pela face espessa: o
tempo – ‗passado‘ do viver. Seus olhinhos infantis fitavam-me e eu entregue ia
recebendo amor – em porções desregradas. Era tanto amor! Tão recente e antigo amor!
Conduzidos forçadamente
Pelas rédeas do destino impiedoso
Fomos trazidos até aqui,
Aos recônditos de um vale escuro.
Embora amedrontados, tenebrosos,
Com incontáveis incógnitas pairando à mente
Estamos a procurar respostas (em vão?).
Essa paz,
Tranquiliza-nos à mente,
Deixa-nos outra vez contente,
Ergue-nos, perante à aflição,
Permite conceber sorrisos
E apreciar a imensidão de um coração
Que palpita sem parar,
E nos privilegia com a dádiva de amar.
Eu tão tímida
Eu quieta
Eu desarrumada,
Eu deprimida,
Às vezes, nenhum.
A mulher é uma situação
(a partir de Angélica Freitas)
Deve ser
Em determinado tempo
Não é fixa
Toda igual
Cisgênera
Heterossexual
Indivíduo
Cidadão
Sou Rachel Leão, me formei em Artes Visuais na UFMG, onde atualmente curso o
mestrado (também em Artes - socorro). Jacu que sou, escrevo desde sempre, e nunca,
nunca, nunca, me prontifiquei a mandar nada pra publicação alguma. Custei a tomar
coragem pra escrever esse e-mail, mas antes tarde do que mais tarde! Envio anexo um
poema meu, da primavera de 2017, que só eu e meu caderno conhecemos, e outro que
publiquei junto com um desenho no instagram.
A dríade solitária
Ao som arrebatador da brisa suave que passava por entre as folhas dos pinheiros,
em um final de tarde gélido e sombrio, uma jovem dríade solitária caminhava em meio
aos campos e pradarias. Ela voltava para seu velho carvalho, depois de um dia cansativo
cuidando do bosque. Um carvalho que aos olhos de qualquer outra criatura, era apenas
mais uma árvore ordinária, mas para a dríade, era sua fonte de vida.
A medida que a forte luz se esvaia, uma sombra que tinha o formato de uma mulher
se aproximava. Quando sua imagem estava nítida, Leonor pôde enxergar seus cabelos
acobreados que realçavam seu rosto divino. Seus olhos ardiam em chamas, e todos os
animais saíram de seus esconderijos para se curvar perante a mulher.
- Não se assuste, Leonor, filha da natureza, luz dos vales fúnebres – proclamou a
mulher – Vim a teu encontro para dar-te a missão de expulsar os homens de meus
domínios sagrados. Eles devastam tudo o que veem, exploram de minhas criaturas, e
cada último suspiro de cada ninfa que deixa esse mundo por terem suas árvores cortadas
me parte o coração.
Leonor logo soube que aquela era a forma humana que a mãe natureza encontrou de
vim ao seu encontro, então curvou-se.
- Você deve partir e fazê-los irem embora dessa região sagrada. – terminou ela.
- O que devo fazer para me infiltrar entre os homens sem que eles vejam que não
sou uma deles? – questionou Leonor, ela não hesitou em aceitar o que a divindade a
pedia, pois aquela era sua chance de conhecer um pouco dos humanos que ela sempre
ouvira falar.
- Enquanto a lua iluminar o céu, você assumirá a forma humana e deixará de ser
uma dríade – disse ela – Porém, tu deves prestar atenção as nuvens que lhe serão um
obstáculo. Se cobrirem os raios lunares, sua forma humana estará em jogo. Agora vá ao
norte, a constelação da estrela polar lhe guiará.
Novamente o clarão entorpeceu os olhos da jovem, que aos poucos foram
voltando a normalidade, e a mãe natureza não estava mais lá. Então, ao localizar a
constelação, Leonor seguiu seu caminho ao norte, segundo as orientações da divindade.
À distância, ela avistou nuvens negras que pareciam vir do chão e subiam
vagarosamente. Deduziu que fosse fogo, o elemento que fazia dos homens os seres mais
poderosos da Terra. Aquilo sempre a instigava, ela nunca teve a oportunidade de ver os
homens e suas obras tão de perto.
Ao se aproximar das tendas, que estavam do outro lado do rio que a separava dos
homens, seu reflexo na água chamou sua atenção. Sua pele esverdeada assumiu um tom
pálido e agora estava macia, e seus longos cabelos verdes tinha ondulações castanhas e
suaves. Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver como ela seria se fosse uma humana,
mas, os secou e continuou seu caminho.
Escondida atrás de uma moita, Leonor pôde ver uma enorme chama no meio do
acampamento, uma esplêndida fogueira que fizeram seus olhos se iluminarem.
Um estalo atrás da dríade fez com que ela se sobressaltasse e esbarrasse com um
humano que tinha uma feição juvenil, cabelos escuros que refletiam a luz da fogueira e
olhos que a fitavam com intensidade.
- Pode me chamar de Leonor. – disse ela – Moro em uma tribo aqui nas
proximidades, e... Bem, em nomes de todos os moradores, vim avisá-los que vocês
devem sair deste bosque, é uma área sagrada e não pode ser explorada.
- Não há tribos nesse bosque. – ele riu sarcasticamente – Antes de virmos para cá,
estudamos toda a região e nada encontramos. Mas, seria um prazer conversar com o
chefe de sua tribo, podemos ir embora assim que eu o ver.
Antes que pudesse pensar em alguma resposta, Leonor ficou tensa ao ver que um
conjunto de nuvens cobriam a lua. Suas unhas delicadas assumiram a textura de cascas
de árvores e em sua pele, formavam-se pequenos musgos ao redor dos dedos que se
espalhavam a medida que a lua fosse envolvida. Então, ela saiu em disparada para a
mata e não foi mais vista.
Ao retornar para seu carvalho, ela avistou a mãe natureza repousando em suas
raízes, um lobo prateado dormia em seu colo e uma coruja repousava em seu ombro.
- Vejo que não conseguiu fazer o que eu te pedi – disse ela com uma voz suave,
porém intimidadora.
- Não, minha senhora, os humanos não se compadecem e não são tão manipuláveis
como pensei que fossem, acho que será mais difícil do que eu pensei. O líder não
acreditou em minhas palavras.
- Olá! – o rapaz desviou a atenção do céu para ela, ajustando sua postura – Acho
que tenho que explicar porque corri daquela forma ontem à noite, precisei voltar para
casa.
- Tudo bem! – disse ele – Acredito que tenha vindo acompanhada com seu líder.
- Sairemos assim que vermos sua tribo - insistiu ele, deixando Leonor cada vez
mais frustrada, pois, nem mesmo seu poder era capaz de fazê-lo ceder.
- Essa região é bastante promissora, e não posso sair sem ter certeza de que há
habitantes e de que eu possa fazer uma parceira com eles, se for possível. Eu sinto
muito, minha jovem.
Leonor sentiu seu rosto esquentar por seu poder não conseguir manipulá-lo, e
novamente, a lua estava sendo coberta por uma densa nuvem negra, uma tempestade
estava por vir. Assim, ela correu para a mata, o jovem tentou segui-la, mas não a
alcançou.
Ao chegar em seu carvalho, a mãe natureza a esperava outra vez, o lobo prateado
agora estava sentado e a coruja brincava com os cabelos da mulher.
- O coração dos homens sempre é endurecido e aberto apenas para aquilo que os
convém, não a culpo por não conseguir convencê-lo a mudar. – disse ela.
- O que devo fazer, então? – perguntou Leonor – desistir? – no fundo, Leonor não
queria ceder, aquela seria sua chance de salvar seu dileto bosque.
- Não, você deve voltar amanhã pela última vez, e tente subordiná-lo com algo que
a sua alma mais deseje.
Determinada, ela foi ao encontro dele como uma última tentativa, não se
importando com a presença dos demais homens, que cochichavam entre si, querendo
saber quem era aquela garota.
- Acho que você ainda não cansou de nos fazer de bobos, hoje mesmo
começaremos nosso trabalho, não atrasaremos mais.
- Então era esse seu desejo profundo, a sua mulher de volta. – concluiu Leonor –
Não só o dele, mas de todos os humanos. A ganância e o orgulho tiravam tudo de
precioso para eles, tudo aquilo que eles dariam de tudo para ter novamente.
No impulso, Leonor recuou e o bateu no rosto, suas unhas já eram galhos. A lua foi
coberta e ela não havia notado. O desespero tomou conta do lugar, o jovem acordou de
sua transe completamente alterado.
- Meus companheiros, comecem a derrubar tudo! – ele gritou, sua razão não havia
voltado, seus olhos estavam turvos de tanta fúria e decepção.
Leonor tentou para-los, mas foi em vão, tudo que ela precisava fazer era encontrar
a mãe natureza novamente e alertá-la sobre o acontecimento.
Ao chegar no carvalho, não havia ninguém, tudo estava vazio exceto por ela e pelo
jovem que a seguiu, ainda enfurecido.
- O que você fez? Quem é você? – ele gritava como um lunático, e com seu
machado cortava todas as árvores que estavam à sua frente. Leonor tomou a frente do
seu carvalho e foi jogada longe com violência.
Com seu machado, o líder dos homens começou a cortar o carvalho com tanta fúria,
que fez com que a dríade desabasse no primeiro golpe. Sua voz não saia e seus gritos de
agonia se tornaram abafados e cessaram, seu corpo paralisado sentia a dor do carvalho,
a cada golpe seus órgãos internos entravam em colapso, sua visão ficou turva e sua
mente vagou tentando fugir da dor.
Com a queda do carvalho, seu espírito indomável saiu de seu corpo de dríade com
um último suspiro. O bosque inteiro despertou ao sentir que sua protetora se foi, e a
figura feminina da mãe natureza surgiu. Seus cabelos pareciam fogo e seus olhos
assumiram cor de sangue. As árvores e pinheiros agora estavam inquietos e pareciam se
curvar em uma dança fúnebre e uniforme.
Uma ventania violenta trouxe nuvens negras de tempestade que se juntavam acima
do carvalho cortado, e trovões ribombavam incessantemente. A ira da mãe natureza ao
ver sua dríade morta aos pés do seu próprio carvalho fez com que tempestades
surgissem no mundo inteiro.
- Pela ganância e orgulho dos homens, o mundo inteiro sofrerá o castigo. Furacões
destruirão suas plantações, tsunamis alagarão suas cidades e vilarejos e terremotos
soterrarão suas moradas junto com seus moradores. A natureza vingará tudo que vocês
fazem e vingará minha pobre Leonor, a luz dos vales fúnebres, a dríade solitária.
meu sonho
em horizonte além-mar
vive nas verticais
além-mágoa
meu sonho
escondido no esquecimento
simula o genuíno
finge o verdadeiro
meu sonho
– errado por si –
comete fraudes
vive horizontes
pesca aqui e ali
umas poucas estrelas
do mar
meu sonho
parado, carcomido
[todo fodido]
come memórias
tenta encarnar
é quase meia-noite.
os prazeres antigos me atingem
e me lembro do apetite saciado naquele cômodo
os pés se esticam,
as articulações se movem.
a mão esquerda aperta o ar
enquanto a mão direita
mergulha o dedo médio e o anelar
me percebo só minha.
é um minuto tão valioso e raro
que não há mais o que prender
então me esvazio:
me solto, livre; respiro exausta
e repouso o melhor dos sonos
DOIS DE OUTUBRO
por vocês-sabem-quem
Altos e indiferentes
Sheina Lee Leoni Handel Docente, poeta y novelista uruguaya. Activista LGBT.
Nacida en Montevideo, Uruguay, he publicado varios poemarios y novelas románticas
en Amazon, así como colaborado en numerosas antologías colectivas .También he
obtenido diversas distinciones y premios en destacados concursos literarios en Uruguay
y el extranjero, y participado en importantes instituciones literarias y culturales
nacionales e internacionales. PRESIDENTA ACTUAL DE : Academia Virtual
Internacional de Poesia, Arte e Filosofia – AVIPAF (BRASIL) Integrante de
Pensão Primavera
Em memória à Noeci, a contadora de histórias.
Adriana de Freitas nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu e se forjou no sal do mar de
Fortaleza. Gosta de livros, de Beatles, Caetano e Belchior. Escreve desde a
adolescência, participa de coletâneas e concursos literários, recebeu Menção Honrosa no
Prêmio Off Flip de Literatura 2022, e seu primeiro livro, "Cantos de amor livre e outros
pecados", deve vir a público ainda este ano.
DIÁLOGOS NA PANDEMIA
Se a dona morte taí e não tem havido piquete com força e engenho para brecar o
seu processo de fabricação e o seu caminho, o negócio é resistir com arte e cultura,
para manter a sanidade física e mental, além de, quem sabe, deixar alguma
contribuição de interesse para as gerações futuras. (página 21)
Cap. 1: Xô corona!
As coisas comigo são sempre assim. Na verdade, sou uma mulher sem
comedimentos. Tudo em mim é intenso. Os sinais, os sintomas, enfim,
minha vida!
―Te amo porque sua boca sabe gritar rebeldias!‖ Verso de autoria de Mário
Benedetti, poeta uruguaio.
Anamnese
Entre-lugar
Dona Ana viveu amargurada. Dos sete filhos só falava com um e dos dez vizinhos
mandava todos tomarem no cu. Fazia um café cheirosíssimo e às vezes — quando
estava de bom humor, me convidava. Mandava-me chamar também minha namorada.
Numa dessas visitas a casa de dona Ana fiquei sabendo que não se tinha nome pro que
eu era — lá no tempo dela. Não precisei de mais nenhuma explicação.
Dona Ana viveu amargurada por algo inominável. Agora entendo a importância
da nomeação. Contou que pediu perdão a deus, mas que deus nunca escutou — porque
senão não teria vivido 75 anos de solidão. Contou também que quase morreu — tentou
fugir, mas a carroça quebrou no meio do caminho. Parecia até destino ficar empacada
sem ter o que comer, o que beber, como sonhar. Ela quis respostas — eu não soube dar.
Seu Carlos chegou da consulta sendo escoltado por dois filhos dos quais ela não
queria saber nada sobre. Amargurada que só, dona Ana preparou um café forte sem
açúcar — do jeito que ele gosta. Sentou-se na sala, amargurada. Me viu ir embora de
mãos dadas, amargurada. O final já se pode prever. Não há socorro pro passado.
DES(EMBOLANDO) NÓS
Manoela Maia, 28 anos, é escritora desde que aprendeu a escrever, poeta, fotógrafa e
graduanda em psicologia. Terá seu primeiro livro de poesias ―Tudo que ancora em
mim‖ publicado em agosto pela editora Urutau.
vida
Devagarinho, acelerado.
No meio de um trem cheio de nada.
O vagão se preenchia de multidões vazias,
Se esvaziava de ninguém preenchido.
O tempo continuava,
mas não andava em frente.
O tempo parava,
mas prosseguia para trás.
Aqueles rostos familiares eram desconhecidos, mas aquelas pessoas dos vagões vazios
eram de casa.
As pessoas se importavam,
Mas não paravam para olhar multidões perdidas.
As pessoas lamentavam,
Mas não o suficiente para gritar por liberdade.
As pessoas eram destinadas a seguir em seus vagões vazios de dúvidas, mas cheios de
ignorância.
ressentida
O sempre anda ao meu lado, EU ando pelas vidas entre as vidas de outras vidas que
viveram vidas
Eu modelo e desmodelo existências dentro de inexistências
E no espelho, meu reflexo não existe
Porque nada adianta criar significados se o tempo existe em mim e eu existo dentro do
tempo
amazona, submundo
se eu soubesse de tudo não acharia que existe outras versões de mim em cada estrela
e que a cada estrela que falece é uma sarda das minhas bochechas
e que na verdade todo o universo é a pele de uma deusa cheia de sardas e enrolados nos
cabelos
Meu nome é Sindell Amazonas. Tenho vinte e um anos e sou de Manaus, Amazonas.
Curso Letras - Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e
trabalho com revisão e preparação de textos. Poetisa, escritora e apreciadora dos
mundos.
Sempre Mulher!
Ser mulher,
não é simplesmente nascer,
mas é um tornar-se diário.
Ah, o tempo…
O que dizer sobre ele?
Querido. Saudoso.
Não raro queremos pará-lo.
Ah, o tempo…
Esse mesmo,
que não se pode controlar…
Está em tempo!!!
Espere de mim apenas palavras sem nexo, sem lógica, sem algo que faça sentido.
O que estou tentando dizer é que, embora você não seja o meu romance, eu ainda perco
o meu tempo tecendo um enredo a seu respeito.
Minha novela mexicana, minha música melosa, meu pensamento mais piegas. Será?!
Você me tem como o seu soneto de versos simples, o seu poema de estrofes
decadentes?
O que somos?! Somos ficção, uma comédia sem graça, o que esperar das últimas linhas,
o que esperar das últimas cenas?
Meu nome é Francisca de Paula Sousa Araujo, sou natural de Parnaíba e atualmente
moro em Luís Correia. Sou formada em Turismo e Contabilidade, ambos pelo
Universidade Federal do Piauí, em Parnaíba, e sou graduanda em Letras Português pela
Universidade Estadual do Piauí, também em Parnaíba. Posso dizer que meu gosto pela
Literatura começou no ensino médio, e um modo que tenho de tentar melhor expressar o
que sou é por meio da escrita literária.