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ÍNDICE

__________________________________

Lua Pinkhasovna .......................................................................... p. 11


Neudenis Carvalho ....................................................................... p. 16
Leila Rosa ...................................................................................... p. 19
Clareanna Santana ....................................................................... p. 22
Guadalupe Ferreira ...................................................................... p. 24
Carla Motta ................................................................................... p. 28
Paula Oliveira ................................................................................ p. 30
Clecimara Barbosa ........................................................................ p. 34
Camila Sales ................................................................................... p. 40
Juliana Schneider ........................................................................... p. 42
Laura Redfern Navarro ................................................................. p. 46
Lais Rodrigues dos Santos ............................................................. p. 55
Ana Caroline Ferreira da Silva ..................................................... p. 58
Amanda Amorim ............................................................................ p. 61
Lua Nê .............................................................................................. p. 64
Ana Luiza Tinoco ............................................................................ p. 68
Maria Clara Gomes ......................................................................... p. 71
Fabiana Rodrigues Carrijo ............................................................. p. 74
Igênia Moraes ................................................................................... p. 77
Rachel Leão ...................................................................................... p. 80
Maria Emanuele .............................................................................. p. 83
Sabrina Gesser ................................................................................. p. 89
Thamires P. ...................................................................................... p. 91
Sheina Leoni ..................................................................................... p. 96
Rosana Siqueira ............................................................................... p. 99
Adriana de Freitas ........................................................................... p. 104
Ci Borges .......................................................................................... p. 106
Erika Raylla Marinho Barbosa ...................................................... p. 110
Manoela Maia ................................................................................... p. 113
Sindell Amazonas ............................................................................. p. 116
Maria Antonieta Gonzaga Teixeira ................................................ p. 121
Laila Angelica Moraes ..................................................................... p. 123
Fernanda Ventura ............................................................................ p. 125
Francisca de Paula Sousa Araujo ................................................... p. 128
DEDICADA A

Marielle Carolina Conceição Clarice Dandara Aqualtune Njinga


Catarina Isabel Maria Madalena Ana Cristina Silvia Tarsila Artemisia
Anita Pagu Iara Clara Lygia Gilka Wislawa Anna Marina Olga
Mirella Emily Sônia Ruth Flávia Jéssica Júlia Julie Diana Marta Zuzu
Carmen Chiquinha Leila Xica Dulce Fernanda Helena Bertha Enedina
Zilda Raimunda Daiane Penha Elza Roberta Violeta Leopoldina
Tânia Priscila Rute Judite Lia Raquel Daniela Iasmim Glaucia Gloria
Karla Kátia Gilda Liliana Sandra Luana Clarisse Amanda Samanta
Yoná Nayara Gabriela Rita Lili Joyce Helenice Margarida Eva Gorete
Cristiane Lucélia Tatianne Neudenis Vanessa Isabella Beatriz Karina
Mércia Clotildes Pâmela Glauce Natália Ifigênia Patrícia Poliana
Alice Vitória e tantas outras Mulheres Mulheres
MULHERES
M
U
L
H
E
R
E
S
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Espelho de Afrodite

Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas,


nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao
certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia
corriqueira de uma realidade fantasticamente banal
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que
mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza
sem ser sexy, sendo apenas espécie
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho

A liberdade nas linhas sinuosas das páginas Legais só existe por lá


Lá, lá onde a lei é dos homens e julgada por eles, onde ela morre sem ser usada
enquanto a sociedade ainda não evoluiu ao ponto de efetivá-las nas calçadas, nas pedras
soltas que marcam, dentro de casa, que muitas vezes machuca mais que as ruas
desconhecidas
Há alguma que diga que de fato sente-se livre? Tem certeza? Grite para o mundo! Veja
as mãos lhe tapando a boca

Mas eu nasci sob este manto, eu sou pudica para quem decide que sou, mas sou
promíscua por pouco, pois não nasci com respeito em mim, eu preciso me dar, preciso
me encaixar no que consideram uma mulher correta antes
pois sou espelho de Vênus, Afrodite, com Ártemis escondida na mente
Na beleza estranhamente contraditória dos males do mundo que em meu colo foram
jogados
Sou Eva, Pandora, Lilith
Atiramos fogo nos deuses
Só servimos quando somos santas e não como seres
A causadora não foi a maçã, a caixa, ou a força
Mas a liberdade, que é a verdadeira desgraça causadora de tudo desde os primórdios
para quem não aceita que existimos por nós mesmas
Eu não vim de uma costela, você veio de um útero!
Sou espelho de Afrodite, ensinada desde a infância a ver o outro refletido nele
Que tem dentro do peito contos de fadas, o amor idealizado, as belezas, mas sempre
encontrando pelo caminho tudo aquilo que prefere deixar esquecido no passado
O papel feminino delicado criado socialmente não condiz com a realidade
Ser mulher é violento, feio, pesado!
Não por nós mesmas, mas pelo que nos é ofertado

Que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que, ser forte
não é apenas criar dor, mas também aguentar, ultrapassar, superá-la
Quero ser considerada louca, histérica, desequilibrada
Pois a mudez me rasga e aquelas que a utilizam não personificam-se em ser, elas nunca
vivem suas próprias vidas pois nessa realidade o tom de voz que chega aos tímpanos é
apenas o grito
Quero o luxo de desagradar, de não servir, de não me preocupar com os reveses de
apenas existir
Não quero ser tocada, chamada
Quero passar despercebida nessa jornada
Quero ser o centro do meu problema, quero falar de mim, não do outro
Agora sou eu, fique em silêncio e espere a sua vez!

Desejo não ser considerada complicada, complexa, incompreensível, pois julgam-me a


partir deles mesmos e não a partir de minhas próprias características
Eu existo, eu existo!
Eu possuo vontades
Eu não quero ter filhos, não quero casar, quero liberdade!
Pois sem ela, tudo que eu fizer apenas me aprisionará mais dentro do gênero dessa casca
E a pergunta que nunca quis calar, desde Nietzsche até Freud, ninguém conseguiu nos
entender, será que ao menos tentaram?
Pois respondo
O que quer a mulher? Poder ser ela e dela mesma!

Somos a mater dolorosa que sangra pela vida, sem vontades, que é usada ao bel prazer
alheio, aberta quando necessária, fechada para si mesma, sem nunca dar à luz a sua
própria existência no mundo
Em uma constelação escura de galáxia sem saída ou então, debaixo do mesmo teto, em
plena luz do dia, eu não estou segura
Não interessa a idade
Como de costume, no caminho, olhos maliciosos, boca salivando espreitando coxas,
seios e nádegas. Na mira, a passos rápidos pela rua, ela questionava-se: o que mais
precisaria fazer para demonstrar ser apenas uma criança voltando pra casa?
E aquelas ruas nunca mais a viram passar por lá

Há pouco tempo, a poetisa que vos fala, inundada em preconceito, estaria assinando
esse texto apenas com as iniciais do seu nome ou com um pseudônimo masculino, hoje
em dia bato no peito e digo: — SOU LUA! — em caixa alta
Sou mulher escritora! Escrevo porque quero, escrevo porque acredito que a arte muda a
realidade e embeleza o mundo, escrevo porque sinto e as letras são a minha voz,
escrevo para não ser só mais uma nas estatísticas de um país omisso a nós!
Mas enquanto redijo torto e coloquialmente sobre ser mulher
buscando as palavras necessárias para findar a poesia,
só encontro significados dolorosos em cada linha do dicionário feminino.

Eu Sou Mais

Sobre o leito da manjedoura, eu nasci


tal Maria, Eva, Pandora, pobres místicos bodes expiatórios
desenvolvida pelos entraves em meu caminho, quando meu pé cruzou o destino do
bicho infecundo — o mais covarde — julgando-se ser sublime desfez-se em pó pelo
esboçar da dialética perigosa: não! — e isso já bastou
Da terra seca de sementes sufocadas
vi tantas, tantas, tantas, todas de raízes machucadas
da pluralidade das espécies, que de milhares estipes dão a mesma flor,
mas não se reconhecem
Do cerne do útero aos lábios, à mercê do Estado,
intrincada nas frestas dos dentes do bicho recalcado, padeci.
Larápios de vaginas, aquilatadores de hímens
formadores de tristezas complacentes, que não se rompem
desconhecedores de vulvas, clitóris, sabores
embebidos em egos frígidos que gozam sozinhos
Na gira, aos ritmos do barravento que varrem
levando à anestesia e frenesi implícito dentro do peito,
encontrei-a
―arreda homem, que aí vem a mulher!‖
não havia espaço para espelhos
o outro, outro, outro no reflexo enfim se apagou
No epitáfio, estará escrito e sacramentado:
eu sou mais, muito mais que tudo isso.
Eu sou mulher.

Maria Gabriela Cardoso, 23 anos, gaúcha atualmente morando em Santa Catarina.


Apaixonada por todos os tipos de artes, mas principalmente as que envolvem letras.
Escreve contos, poesias e crônicas com o pseudônimo Lua Pinkhasovna para revistas,
podcasts e antologias, assim como também para seus canais próprios intitulados
Excertos Diários.
ANGULAÇÕES

De cócoras para parir


e sentir
o calor da umidade
da terra
penetrando
as entranhas

Deitada
com pernas em V
vejo tua língua molhada
se deslizando
lambendo-me
ao encontro
da pélvis

De quatro
Como uma loba que uiva
na lua cheia
desbravando a floresta
e em busca do cheiro
das flores da primavera por vir

De pé
Sinto o coração
Pulsando
pernas trêmulas
de desejo
desmaiam na cama
me deito
e vejo a lua
Neudenis Carvalho, atrevida em escrever poeticamente o que me atravessa corpo e
alma. Estudante de Literaturas, Terapeuta, Educadora Popular, Ativista Política
Feminista e Atriz no grupo de Teatro ExperIeus.
De Sua futura personagem
Cidade dos Personagens não Inventados, 15/03/2022

Cara Leila,

Você ainda não me conhece, eu sou, ou melhor, serei sua protagonista em seu
novo texto. Estou sendo criada dentro das sua mente, a partir de seus sentimentos e
angústias, seremos portanto mais que parceiras neste projeto-livro. Você me dará vida e
esta passará a ser minha, tendo eu, portanto, algum direito sobre ela, concorda? Dito
isso, quero aproveitar esse momento que ainda não nasci, para colocar algumas
questões.
O primeiro ponto é que quero nascer mulher. Concordo com você que
personagens femininas são mais interessantes. Em último caso, se eu for um homem,
que seja um homem de poesia, como o Crisóstomo.
Em segundo lugar, peço que me coloque em primeira pessoa. Ninguém merece
viver com uma criatura te vigiando e se apoderando de sua história, de seus
pensamentos. Não me coloque um narrador intruso, ele sempre acha que me conhece
mais que eu mesma, ra ra ra, claro que não. Então deixe que eu fale por mim, imagine se
a Capitu tivesse voz, a sua história seria outra.
Outra coisa importante, não me deixe tão só, por favor. Eu gosto de gente. Aliás,
não entendo porque vocês adoram um personagem solitário? Nos filmes não é assim, há
sempre um best friend pra o protagonista interagir e poder expor suas angústias.
Nós personagens de livro somos geralmente sós e cabeçudos, cheios de dilemas.
Ultimamente, com o tal fluxo de consciência, ainda temos que ficar remoendo as
questões, sem jamais resolvê-las.
Problemas têm que haver, conflitos humanos genuínos, do contrário, o leitor vai
se entediar e, é claro, eu também.
Ah, por falar nisso, me dê certa liberdade na história. Vocês dizem aos quatro
ventos que os personagens têm vida própria, então me deixa viver. Deixa eu aprontar
umas peripécias no meio do livro, pois sei que do final vocês não abrem mão. Mas se eu
puder opinar, gostaria de um fim definitivo, feliz, mas inusitado, ou até mesmo trágico.
Mas pelo amor de Deus, nada de final em aberto. Não posso terminar perdido na
mão do leitor. Leitores não merecem confiança, quando se juntam, então, inventam cada
uma sobre nós, que nem imaginamos, nem nós, nem vocês escritores.
Por favor, cara escritora seja generosa comigo. Quero belas falas, ricas aventuras
cotidianas e um cenário de flores. Gosto de flores, sabe? Se não houver flores, pelo
menos não me jogue em um mundo hostil, como um deserto, ou uma guerra. Você sabe
que no processo padecerá junto comigo, então pega leve. Sororidade, lembra?
Amiga escritora, eu não preciso ser especialmente bela, meu rosto não aparecerá
no livro. Mas se eu puder pedir uma última coisa, me conceda um nome bonito, gosto
de repetição de letras, combinado, é claro, com uma personalidade marcante, pra que eu
seja lembrada por séculos, como Maria Madalena, Anna Kariênina ou Marielle Franco.

Boa sorte em nossa jornada!


Sua protagonista.

Leila Rosa, 50 anos, mãe, nascida no recôncavo baiano, reside em Salvador. Médica de
formação, encantada por histórias de clássicos a causos. Quase ontem assumiu o prazer
de criar e contar, tecendo com palavras.
ode à mulher

agarra-se à algo
como quem perde o juízo:
mulher de natureza fácil,
criatura de tantos desvios.

tenta com sobressalto


viver nesse desafio:
mulher de resistência ágil,
criatura de tantos desvios.

dispensa de punho alto


supérfluos elogios:
mulher de paciência frágil,
criatura de tantos desvios.

supera as dores do parto


como quem navega no rio:
mulher de fortaleza hábil,
criatura de tantos desvios.

Pachamama

nove meses aprendendo


a ceder parte de si à filha
nos seios a seiva
no corpo a vida.

Clareanna Santana (1987), baiana radicada na Paraíba. É poeta, cientista social e


mestre em antropologia. @clareamente
OBRA DE ARTE

Com a obra ELA feita através da gravura entalhada em neolite e impressa manualmente
com a colher-de-pau, pretendo me inscrever nessa seleção de publicação, pensando na
diversidade das mulheres. Eu sempre pensei em como representar a vida em forma de
gravura de carimbo, preocupada em não reproduzir estereótipos, em como evidenciar o
copo humano sem violentar devido à diversidade e as diferenças que permeiam nossas
relações. E assim ELA surgiu, a partir do meu incômodo com um ―sagrado feminino‖
que exclui as pessoas trans, que parte de um biológico que também é forjado, é violento,
aprendi muito nas ciências sociais e antropologia (sem querer ser a dona dos saberes e
respeitando o lugar de fala das pessoas que eu estou gravando, entalhando a matriz e
imprimindo) tanto o gênero quanto o sexo partem de significados culturais, a biologia
pode ser contestada, ela não está para além da cultura, ela é uma cultura que nomeia
fabricada pela ciência branca ocidental. Enfim, fiz uma gravura em homenagem às
mulheres trans, influenciada pelos meus embates que essencializam as mulheres através
de um útero, a minha referência de mulher aqui, com essa arte é de uma mulher trans/ e
ou travesti, ela não tem útero, ela é uma mulher de pau, para essas mulheres, todas essas
mulheres.

Guadalupe do Nascimento Ferreira é mulher, cis, negra, periférica, nascida e criada


na cidade de Arapiraca – AL, é Cientista Social e Mestra em Antropologia pela
Universidade Federal de Alagoas, pesquisadora do Mandacaru - Núcleo de Pesquisas
em Gênero, Saúde e Direitos Humanos, possui a experiência de pesquisa em
Antropologia da saúde, corpo, raça, gênero, sexualidade, arte e direitos humanos. No
mundo das artes, para além de pesquisadora, também é uma praticante, iniciou na
gravura em 2016 de forma autodidata e desde então não para de produzir, criou no
instagram a sua marca @lokaducarimbo com sua arte produz quadros para decoração,
logos de marcas, carimbos manuais e cadernos artesanais, tudo a partir das práticas de
gravuras e impressões manuais e artesanais. Em 2021 ficou entre as 100 melhores
artistas da América Latina com o prêmio da plataforma Latinidades Pretas, através de
sua obra ―Abduzida‖ que é um zine-cordel, todo carimbado a mãos, colorido, divertido
que fala sobre o amor e a diversidade de ser mulher.
Instagram : https://www.instagram.com/lokaducarimbo/?utm_medium=copy_link
MARSALA

Tive um sonho na noite passada. Chaves dançam nas fechaduras. As dobradiças rangem
com a abertura das janelas. Eu debruçava meu corpo e dançava no parapeito. A brisa
movimentava os cachos e, como chicotes, marcavam a pele. Tive um sonho na noite
passada. Dirigia meu carro, sem saber para onde fugir. O desconhecido me isola em tua
sombra. A máscara cobre meu grito e o fôlego embaça a visão. Manteiga no pão. Passei
o café. Os olhos presos no coador, o alarme da conferência apitou. Você chamou meu
nome. Quem? Não reconheço. Você chamou meu nome? Não sabia que aquela... era eu.
Você sacudiu os meus ombros, e dispersa procurei seus olhos, mas só vi os meus...
Arregalados. Teu corpo no chão. A poça brincando no piso. A ponta da faca impediu o
grito. A mão tremia e no reflexo... me vi. Reconheci. Quem? Não sabia que aquela tinha
sido eu. Noite passada tive um sonho. E contigo na beira da mesa, puxo um falso
sorriso. Olho novamente o talher. Os dedos parecem se sentir em casa.

BAGAGEM

olhos na estrada
lágrima em trânsito
aplicativo canta a rota
localização extraviada

Carla Motta é historiadora, escritora e educadora residente no estado do Rio de


Janeiro. Autora da obra ―Lavínia é mais Rosa que Espinho‖, pela editora Libertinagem,
atualmente atua nas áreas de educação e escrita criativa explorando comunicação e
técnicas de abordagem comunicativa, como linguagem corporal. Pesquisa nas áreas de
História da Arte, Teoria da Performance, História e Linguagens, onde desenvolve seu
projeto de interferência de linguagem corporal na leitura de códigos espaço-temporais.
É membro do Coletivo CuidadoPoema, responsável pelos desdobramentos
#CuidadoPoema e #shakespearenavalha.
Mamão Papaia

é isto que acontece


quando se mata a fome
enfia os dedos
ou a colher
arranca o miolo
preenche
e esvazia
o corpo
Enamorada

vestígios
do coração de um homem
na tampa do liquidificador
resíduo amoroso
Paula Oliveira, 31 anos. Residente em Uberaba-MG. Escritora e fotógrafa que produz
poesia visual através da escrita, fotografia do cotidiano, autorretratos e nu artístico.
Cursando Pós-Graduação em arte educação. Integrante do G.A.S (Grupo de Estudos de
Artes Somadas): grupo composto por artistas de diversas áreas destinado à prática e
experimentação coletiva. Dedica-se também ao Teatro, performance, dança, pintura e
desenho. @paulaoliveira.art
Poemas que não nos cabem, os jogamos fora.

Tinha uma foto no meio do caminho e também tinha uma dor perdida,

Tinha uma mulher vestida de idosa,

Uma senhora moça.

Tinha um homem bêbado pelas mentiras.

Vinha cantando e mordendo,

Vinha surdo e meloso.

Promessas e desejos de cumpri-las,

Um medo no caminho e um caminho no meio.

Tinha um Adeus e a triste ideia de morada nele, de tão barato de se conquistar custava
caro. Os poetas se calam nas altas horas, fica o vão do momento súbito em que esses
não sabiam o que dizer.

Fica uma memória e um cheiro, inventadas. Fica a lembrança e mais nada. Fica o nada e
tudo morando dentro dele lentamente se silenciando.

Da porta, carrego momentâneos.

Dos braços seus, colapsos loucos.

A mente o teme.

II

Criança

Não chegue perto da fogueira, você vai se queimar.

Minha pequena jovem controle-se ou será mandada para fogueira.


Cale-se

Agarre minha carne

Estou a jogar-te nas minhas chamas

Vamos pegar fogo, virar fogueira

Assopre, faça acontecer.

Antes de você,

Antes da nossa brincadeira em torno da fogueira,

Era apenas faísca,

Não se encaixava.

Buscando em outras casas o fósforo,

Invadindo a carne e a fantasia alheia,

Toques incendiados

Que causam arrepios e logo se apagavam.

O tempo fez cada lenha ser carregada,

A chama foi acionada em uma besteira de criança

Em uma paixão boba de adolescência

Em um compromisso lascivo de adulto.

No teu ar surgiu chama,

Na cama surge fogueira,

Assoprando para que dure até a partida.

Só os restos das cinzas estarão em nossos eus

Só a fumaça irá até longe lembrar que dentro do seu já existiu um nosso.

Pobre poeta, achou bonita a fogueira e quis colocar a mão,

Saiu ferida e com cicatriz


Daquela que foi chama

Viva

Quente

Perturbada,

Um passado desejo

Uma solidão que resta

Da fogueira que se encaixou

Partiu e hoje queima em outro lugar.

III

Vão tentando nos domesticar,

As cordas que nos prendem, desde ao primeiro furo, as presilhas e tiaras para que não
chegue a nos chamar de Homem, terrível palavra para um bebê.

Ao batizado, promessa para que sejamos castas,

Não abra as pernas, não deixe que vejam.

Menina, não mulher, mulher apenas quando perdido,

Perdido a promessa.

Mulher mesmo só se o homem a fizer, eles costumam dizer,

Na cama, na vida, na alma, só aí.

Homem termo para designar ser humano,

Bicho do princípio desgraça do fim,

Guarde-se, suprima para no fim ser digna.

Não se guarda arte,

Ainda é pouco, enquanto que tantas ainda são mandadas para a fogueira pela mão que
mata, que manipula.
A arte ainda é pouco quando a vontade é de fazer morrer,

Esses vermes que primeiro roem nossas vidas.

Quanta raiva cabe em uma mulher, de quanta raiva uma mulher é feita,

De quantos silêncios se fazem nossa voz na mente deles.

Para onde nos olham quando apontam seus olhos em nossa direção,

Se teus lábios não sugam poesia pelos meus,

Prazer,

Você ainda não me conhece,

Deseja agora?

IV

Estrangeiro sentimento, infiltrado no soar de tudo,

Quanto ao despertar arrisca dizer tão logo que sente, é cedo, cedo e ainda assim se
entende.

Movido por pequenas distrações em uma tela,

Rosto e voz distorcidos se tornam em uma melodia linda demais para se desejar,

Pergunta-se a qual fim de frase foi parar a parte que não se conecta, que não rima ou
concorda com o sujeito e verbo.

A que parte ficou a feiura?

A parte que não é feita de palavras.

Vêm lendo e cantando

Os dois, o mesmo.

Vêm criando e despedaçando.

Vêm chamando e apelando.

Vêm pequena e fina


Depois grande e grossa

Vai tomando por si só uma língua meio tímida de quem fala baixo e ainda assim espera
ser ouvida.

Cheiro de maracujá, cheiro de terra molhada, de folha amarelada

Quer falar português.

Morfe com cheiro de desejo

Sílaba com desejo de amar-te

Palavra fingida que mente

Frase que te engana.

Feita poema para um, para dois ou para dez de você.

Uma versão para a que cala,

A que diz,

A que agarra.

Pequena desgraçada,

Depravada,

Aqui, lá, pra já.

Me olha e vê papel,

Me enganas por ser poeta?

Me chamo Clecimara Barbosa, nasci e tenho vivido na cidade de Monteiro-Paraíba,


sou graduanda do curso Letras Português pela UEPB, e sou amante das literaturas desde
pequena.
ODISSEIA

Despencava o céu negro.


O corpo em chamas ruía.
Um perfume de flores amassadas incendiando todo o ambiente
sacudia o nariz dela.
As irmãs, vazias, posicionavam-se,
criteriosamente
no ar.
Os lábios lambidos, molhados, sorrindo,
lá ficavam.
Parados.
Tristes.
Vazios.
Despencava o céu negro, em júbilo.
Os olhos ressecados da queda,
pintados de preto,
penteados,
os caracóis subindo o barbante fino,
pareciam organizados em plenitude.
Eram uma parte das raízes de um só em mil.
Ninguém e todo mundo.

Meu nome é Camila Sales. Tenho 25 anos e sou graduanda do curso de


Letras/Português, pela Universidade Estadual do Piauí. Atualmente, moro no extremo
norte do Piauí, no município de Ilha Grande, berço do Delta do Parnaíba.
O ser da orla

Fica de olho nele que eu vou pegar o balde pra tirar ele da areia, filha.

Na areia tinha ela, a busca de ar. Eu sabia o que era aquilo. Quis dar uns passos pra trás.
Ter que ver de frente o que já sabia em viver por dentro eu não queria. Mal aguentava.
Ele pulava tão forte que até pensei se tinha mais ganas que eu. Se quem sabe eu estivera
esse tempo todo esperneando amadora enquanto tudo o que faltava era um pulo
daqueles de quem vai morrer no próximo repuxo do ar que não vem. O ar dele era água
o meu era vida. Vida que se foi. Secou. Repuxou. Ele virava e revirava e eu
acompanhava cada busca, cada tentativa feita em vão e sabia que o tempo não era mero
intervalo. Era veredito. Meu pai já tinha desaparecido da minha vista e ainda não
voltara. Não tá nas minhas mãos meu amigo. Nem a minha vida nem a tua. É o tempo
de chegar o balde pra caber a água e esse tempo ninguém controla eu aprendi. Não é
coisa nossa. É todo um flerte de encontro-desencontro e sei lá mais o quê. Sei lá mais o
que te dizer mas to aqui. To aqui. Porque testemunha, ser testemunhada nesse
secamento tem me salvado. Dá pra se salvar na falta do ar então? Sem saber direito que
pergunta fazia eu me movia com ele em cada puxada de ar em vão. As branquias abriam
e fechavam ainda com ganas. Lágrima já era o meu respiro e meu jeito de dizer eu sei
com o corpo. Eu sei. E isso é tudo, pra mim e pra você. Nem tem mais isso - eu e você.
Tem é o querer viver nesse abrir e fechar da branquia-coração. Porque estar vivo mesmo
já é outra coisa. Eu até me perguntei, nessa secura: quero? Tem gente que faz drama -
não querer viver tem nomes e quase um carimbo de fora da vida. Mas eu me perguntei.
Perguntei mesmo porque se a vida seca a gente é colocado de frente com uma coisa que
é pra continuar mas tá sem a matéria. Pegadinha? Meu jeito foi perguntar. A minha
resposta ainda assim talvez foi algo entre a inércia e o gosto pela coisa. A gente nunca
sabe vai que a água chega. Vai que dá tempo. Vai que dá tempo digo enquanto vejo meu
pai no horizonte voltando com o balde e as branquias já sem muito fôlego pra abrir e
fechar. Vai ter água mas a grande questão é o tempo. Ele vem caminhando sem correr
como se o risco não fosse dele. E talvez é assim que a gente morre. O risco é de quem
espera entre o seguir e a falta da matéria. Meu pai já se aproximando tem que andar um
pouco adiante até o mar ali à frente, enchendo o balde de água. Cheio de matéria. Com
mão cuidadosa e paciente tira o anseio de vida da areia quente como quem não soubesse
que tudo até ali fora tortura e larga na amostra de matéria salgada recortada pelo
tamanho do balde. Nada muito resolutivo acontece e as puxadas de ar estão lentas tudo
meio descrente. Agora já não é mais a falta de matéria mas a questão de um corpo que
viveu a secura. Que puxou ar de dentro do vazio. O vazio nos muda. Ele segue o corpo
mais leve assim com menos tônus virando de barriga pra cima como quem tá pronto pra
morrer. Como quem não teve escolha se não ficar pronto pra morrer. Mas não morre. O
corpo vira e revira dança nesse entre. Virou um ser do entre. Eu choro pela desilusão
que a vida tinha tomado ainda sem saber o que ela ganhara. Choro porque o tempo é
dono de si próprio e nisso a gente é dono de pouco. É dono de pouco. É dono de pouco.
E saio caminhar pela orla. Pela orla. Já abrindo mão de qualquer coisa. E deixando o
entre-peixe ser é como me deixar ser entre. E ando pela orla. E volto já separada do
interesse mas talvez ainda interessada sem saber. Pergunto ao meu pai, após ver dois
peixes agora no balde cheio da matéria salgada. Ele responde

aquele mesmo eu devolvi pro mar.

E eu sem entender o critério e me acostumando com a falta de-, e me sentindo agraciada


pela chance, pergunto:

e ele nadou?

olha filha, demorou um pouco, foi trazido de volta pela maré….

meu pai continuou

Parece que foi ainda corpo meio dançante do entre que se virava entre vida e morte até
que virou um corpo vivo balançando junto da água, junto da matéria, e foi.

e viveu.

agora,

um ser da orla.
Enigma (ou Ampulheta?)

Imagino os cientistas e filósofos


pesquisando a relação do amor com a comida
- e rio,
com certa arrogância.
Estudassem eles as minhas compras
os sabores que não conheces e quero te dar
os sabores que já conheces e gostas e quero te dar
os sabores que não gostas e sinto que comigo podes gostar
E de canto de olho vou encarando
- ao abrir e fechar da geladeira -
as marcas se fazendo
as cores desfazendo
os cheiros se perdendo
E aquela pergunta muda

se vai dar.

Juliana Schneider é escritora, poeta e mobilizadora de processos de transformação.


Mestra em Ciências Holísticas, fundou uma escola itinerante que combina ciência, arte e
natureza (@escolaschumacherbrasil). Foi aluna do mestre Marcelino Freire pela Balada
Literária, integrante-selecionada do CLIPE Casa das Rosas 2021 na categoria poesia.
Doutoranda-integrante de um coletivo internacional de pesquisa com abordagem
fenomenológica (Schumacher Society), investiga os processos de organização humana
através de uma atenção ao efêmero, ao fragmento e ao instante a partir do trabalho de
artistas e escritores, incluindo a escritora brasileira Clarice Lispector.
ESTUDO SOBRE PAISAGEM

a melhor forma de se entender o Onde é observando a sua própria agricultura

II

sabe-se que a Terra tem a função de nutrir, de cima a baixo, de dentro a fora;
um terreno fértil é

um Solo possível

III

antigamente, o Solo tinha a função de


alimentar
a Terra

como se fosse Corpo;


cheio de mãos e raízes, um [espaço] do possível
cabe:

*batata milho abóbora chuchu*

o amarelo, o laranja
o cheiro do pomar
a Primavera

cabe

*um arco-íris inteiro*


IV
em seu contraponto, o Solo possível é um Solo nublado,
sem a luz do Sol, a água em excesso
ou em falta

o terreno infértil é um engano;


em suas raízes e arbustos

nada além disso

dos arbustos
e mesmo os arbustos

eles se cansam

VI

o melhor modo de observar o Onde é observar sua agricultura

o que altera
a possibilidade
do Solo;

VII

o Solo possível se nubla:

A) quando se lavra de maneira esporádica


e inconclusiva;

vejamos, se plantarmos milho neste Solo


mas esquecemos de regar
o milho e o Solo
não há milho;

e se regarmos sem atenção,


haverão
ervas daninhas

então continuaremos plantando


o que houver
laranja batata feijão

para expulsar as ervas daninhas

mas esquecemos de regar tantas


as batatas o milho a laranja e o feijão

e logo logo o Solo se torna


um campo de
ervas daninhas e
pedaços

muitos

de vida murcha

VIII

B) quando há água em falta ou em excesso;

um terreno que permite


as nuvens muito próximas

acaba [poluído]
como se estivesse em
estado de aridez

regar é importante, mas


o Solo determina

quanto

IX

um Solo possível quando é terreno fértil


também se reconhece
a partir de sua agricultura;

há um pouco de Tudo por lá


a laranja a batata e o milho
dos olhos de quem observa sempre
a laranja a batata e o milho

a que não falte regadores ou


sol ou chuva

um Solo possível é terreno vivo


DIÁRIO DOS SONHOS - 24.02

I
tenho sonhado excessivamente que há uma grande [perda de tempo].

II
os sonhos são feitos de alguma matéria de água, sempre assim, desde os desfiladeiros de
gelo, os mares, os rios, o sangue e os fluídos. são corpos inteiros de imagens e sons, as
águas e o movimento consequente das águas. você consegue ouvir isso hoje? lembro de
terem me falado; tome cuidado com a água, ela se esvai das suas mãos em menos de um
segundo.

III
tem me aparecido as figuras donas do fleuma, o rosto irônico de clarice lispector
ganhando olheiras cada vez mais profundas. quero escrever diferente, dizia, insatisfeita,
estranha. parecia estatelada, clarice, que ignorava o mundo que regia, soberana, ela & a
sua linguagem, suas manias seus enigmas.. eu preciso aprender a escrever diferente. eu
quero escrever diferente. e, por fim, fornecia uma pista: eu quero escrever de forma
mais [burocrática]

IV
depois de uma semana constatei: minhas ficções noturnas vêm trazendo repetidamente
as narrativas da Criação da Poesia e da Escrita. é dormindo que me recordo: sou
escritora. na vigília, se dedicar à Invenção é perigosíssimo. [perde-se tempo]. Criar diz
muito sobre fertilidade, o que envolve terra e água, passo horas pensando um terreno
fértil. de repente, a imagem da infância de marguerite duras me invade, junto das
barragens do solo e do oceano, a mãe de marguerite que, na inundação, tornou-se ela
também uma fonte de inundação. se não se controla a terra e a água, uma invadirá a
outra.

V
nos sonhos, há a ficcionista - mas há o impedimento da ficcionista. sento-me à mesa
com outras escritoras todos os dias e elas não sabem. lembro que deixei de escrever por
algum motivo e que por isso deixei também outras coisas de lado, como sonhar e viver e
viver como poeta. é vergonhoso. quero voltar a escrever é tudo tão murcho por aqui…
elas me respondem: você está perdendo tempo contando as horas de alguma
outra coisa.

VI
acordar e deixar as informações sublimarem, a água exige isso. eu sinceramente queria
ter permanecido sonhando - este é o meu primeiro pensamento do dia. quando a gente
acorda e percebe que a vivência do corpo é ficcional. quero maternar esta ficção,
colocá-la dentro de um aquário, com peixinhos areia uma paisagem. um caderno ao lado
__

fincar o tempo com palavras → isto é controle ou é narrativa?

Laura Redfern Navarro (2000) é poeta e quase-formada em jornalismo pela


Faculdade Cásper Líbero. Toca a plataforma literária independente @matryoshkabooks,
focada em literatura brasileira contemporânea. Pesquisa o testemunho enquanto
subversão do trauma, do feminino e do corpo em ―O Martelo‖, de Adelaide Ivánova.
Publicou, em 2020, o livro Matryoshka (Desconcertos). Em 2021, participou do Curso
Livre de Formação de Escritores da Casa das Rosas, o CLIPE - Poesia. Integra a equipe
de poetas do portal FaziaPoesia.
Ela, Macabéa
Naquela mesa, a paciência me doía porque a sola do meu sapato estava mais cansada
que eu, - de me carregar-, e além do eu, de me carregar carregando a vida. Mais
cansada que a pia por nela se acumular tanta louça suja, Macabéia não sabia o que
comigo fazia, nem eu.

Por isso disse paciência, nem todo cão de guarda não dorme. Até a sola do sapato
precisa de descanso, então posso te dar abraço? Ela disse que não. Desliguei a torneira
que pingava, uma gota a cada dois segundos em uma constância que não se parecia
comigo. Porque tudo que pinga, me respinga, eu me molho e adoeço.

Naquele silêncio eu ouvia sua verdade, a Béia (assim eu a chamava) dizia muita coisa,
mas só quem tem bons ouvidos, ouve os ruídos do silencio então ela sabia que poderia
dormir em paz porque eu não cobraria respostas.

Um dia cheio de trabalho, os ponteiros de um relógio parado no tempo, um emaranhado


sentimentos, e um cofre de memórias que pesa mais do que consegue carregar. Até
manca, coitadinha...

Ao contrário daquilo que se transforma, a metaforma não chega aqui no bairro onde a
gente mora, porque, além da mesa vazia, a geladeira também está. Por isso o silêncio.

E eu vi que aquilo (ela) estava com fome. Uma sopa de carinho com legumes para
manter a Macabéia viva e sadia. Uma sopa quente para o corpo abarrotado aliviar as
tensões de ter um cérebro gigante. E eu disse: nenhuma sopa sustenta o peso de viver no
mundo e ela consentiu. Macabéia não era tão tola quanto parece, mesmo que parece, ela
não é tão tola, -tão tola quanto eu-.

Depois da janta: um sono, e depois do sono, o amanhã. A Béia odeia o amanhã. Hoje
cedo, ao sair para o trabalho, Béia pisou em um rato. Se não tivesse levantado, não
pisaria em nada, e é assim a sua filosofia. Eu a entendo.

O rato morto me lembrou Clarice, quando disse que estava perdoando Deus, por um
rato morto que também pisara. A diferença é que Clarice estava esperançada, era amada,
amante e parceira da terra, do mundo. Macabéia não. Nunca fomos amadas.

A coitada, (ela) / (eu) não fala muito porque, aos olhos dos outros parece irritante. Nós
conversamos no silêncio porque nele estamos seguras. E quando eu falo dela (a
Macabéia) eu falo de mim, que também é ela. Me coloquei num personagem para me
descrever de longe, e você, deve saber como é se ver de longe quando não consegues se
ver de perto.

Foi com Clarice que aprendi a escrever e, às vezes, eu me sinto Lispector também. Um
pouquinho de todo mundo aqui dentro não pode fazer de todo mal.

- Nunca comi nada além de sopas cozidas por mim. A primeira foi a de letras. Disso
nasceu minha palavra, eu comi ela.

Lais Rodrigues dos Santos é escritora e estudante de Pedagogia pela Universidade


Federal de Uberlândia -MG, onde reside atualmente. No entanto, foi nascida e criada
no interior de São Paulo, Jaboticabal. Lais já teve alguns de seus poemas e contos
publicados pela revista Ruído Manifesto (2019), na revista Entreverbo, (2020) e
recentemente participou de uma antologia poética intitulada como "Poetas Negras
Brasileiras (2021) Tem o sonho de publicar seu primeiro livro de poesias e tem a
palavra como alimento da vida. Lais escreve com a perspectiva de Clarice Lispector,
escreve para se manter viva.
A profundidade de um olhar

Olharam-se ao cruzar a rua, naquele alvoroço da fatídica rotina diária, olhos nos
olhos, nunca viu um olhar tão profundo quanto o que lhe encarava, ficou sem jeito,
aproveitou para planejar o futuro juntos, construiu uma vida em meio aos seus
devaneios… apartamento, decoração, bichos de estimação? Bem, não sabia se ao certo
se ele gostaria! E filhos? Uns dois talvez? Almoço com a família toda reunida, viagens,
planos, podia ser!
Na penúltima parada do ônibus, ele desce, ela desce e a esperança chuta o fundo
do seu âmago, para logo esvair-se.
Seguiram por direções opostas!
Chegou ao seu destino, entrou na recepção do lindo prédio, respirou fundo, estaria ela
preparada para mais um dia? Soltou o ar que estava prendendo, o porteiro
cumprimentou-a,
-Bom dia! ela respondeu, todos os dias, a mesma coisa.
Perdida em pensamentos, entrou no elevador, sentiu os planos feitos mais cedo
escorrer por entre os dedos, seguiu para sua sala marrom sem vida, ocupou-se de suas
tarefas, as mesmas de ontem e da semana passada, iguais às de meses atrás, anos.
Ao fim do dia tinha cumprido suas metas, era uma boa funcionária, fechou o
computador de mesa, apagou as luzes, antes de trancar a porta checou o celular, nada,
como sempre, nenhuma mensagem, nenhuma ligação, não ficou surpresa, despediu-se
do porteiro e seguiu para casa.
No caminho da volta esperou o reencontro, não aconteceu!
Subiu as escadas, destrancou a porta e o silêncio do apartamento vazio lhe
preencheu, tomou-a por inteiro, a falta de som fazia com que ela se sentisse observada,
não que ela ligasse, mas nesse dia ela sentiu algo diferente, como se lhe faltasse algo,
era estranho.
A memória brincou com ela, lhe trazendo recordações da troca de olhares no
início do dia, sacudindo a cabeça em busca de livrar-se de tais pensamentos, sorriu! Mas
desejou que a experiência não passasse apenas de algo da sua cabeça, voltou atrás, não
deveria se prender a bobagens.
Tomou banho no seu banheiro extremamente limpo e vazio, comeu seu jantar
enlatado, preparado no microondas, da janela de seu quarto observou a quietude da rua,
deitou-se na enorme cama macia, antes de pegar no sono rolou o feed do instagram, não
encontrou o que procurava, inquietou-se, algo perturbava sua mente, o olhar de mais
cedo mexeu profundamente com seus pensamentos, novamente o vazio do silêncio
tomou-a.
Um pensamento emergiu, a falta de olhares que arrebatam a alma e que fazem a
vida ter outro sentido, era isso que ela precisava, não iria encontrar, não tinha esperança
alguma de encontrar, a tempos que se sentia confortável com a imensidão do vazio,
dormiu!
Pela manhã estava bem, nada de estranho com sua cabeça e pensamentos,
concluiu os afazeres matinais, preparou-se, caminhou ao ponto de ônibus, sentiu
novamente um chute de esperança, repreendeu-se mentalmente, o que procurava? Seus
olhos buscavam por mais!
Nada!
O ônibus chegou, ela entrou e acomodou-se, abriu um livro, se pôs a ler, parada
por parada seus olhos desgrudavam das páginas e subiam a procura de algo, alguém,
nada! Estava estranha, concentrou-se, mais à frente alguém tocou em seu ombro, ao
desviar os olhos para responder a quem lhe chamava, encontrou, encontrou o que estava
procurando e necessitando, dois pares de olhos que lhe encararam profundamente,
-Oi, posso sentar do seu lado?
-Claro!
Seguiram!
Para ela, a profundidade daquele olhar era como o mar, sem fim.

Ana Caroline Ferreira da Silva, 25 anos, nascida em Campina Grande, Paraíba. Sua
cidade natal é Barra de São Miguel – PB. É graduanda em Letras Português e Francês
pela Universidade Federal de Campina Grande – PB. Atua como professora da rede
estadual de educação da Paraíba. Dedica seus estudos ao campo das práticas de Leitura
e Ensino de Literatura Feminina e Afro-brasileira, no qual possui uma lista de artigos
publicados. Ana Caroline, toma como inspiração literária as obras de Lygia Fagundes
Telles e Jarid Arraes, por quem nutre admiração e respeito. A autora vê na educação a
solução para mudar o futuro e não repetir o passado, sendo esse o motivo que move sua
paixão pela escrita.
Memória viva

Ao escutar músicas em francês lembro da sonora seus quadros

Quando os meus tímpanos apreciam essas músicas a vejo em minha mente dançando
com seu jeito cheio de charme e elegância

Mas recordo das festas em família que ela gostava de organizar, das mesas fartas, da
casa cheia, das vozes altas a conversar

Um misto de sensações me atravessam

A nostalgia bateu em minha porta e a deixei entrar. Então, conversamos sobre as doces
lembranças do passado.

Filosofia

A filosofia tem em sua etimologia o amor à sabedoria. Aos meus 10 anos ou 11 anos
apresentaram-me a filosofia em uma sala de aula. Foi nesse momento que me encantei
por ela. Por essa linda e bela amiga que me auxilia na busca à sabedoria para que eu me
torne a minha própria mestra e ao longo da vida discípulos me encontrarão para
entenderem a caminhada em busca de si mesmos.

Eu estou sempre me buscando.

Emancipação

Cá estou eu deitada em meu quarto

Pensando em mil coisas

Querendo encontrar a mim mesma diante de tantos questionamentos

E prisões mentais

Me libertando dos medos e amarras

E não me deixando enquadrar em padrões que nos é imposto


Ao levantar alçarei voo

O voo da libertação

A ação por meio da liberdade de ser quem se é.

Amanda Amorim. Sou nascida e criada em São Luís/MA. A arte desde criança esteve
presente em minha vida devido a influência de minha vó que era artista plástica. As
recordações dela pincelando seus quadros ainda se fazem viva em minha memória.
Quando criança gostava de ouvir histórias contadas por minha mãe. Então, o apreço
pela leitura nascia. A poesia, por sua vez, surge no final de minha adolescência e
continua a crescer, existir, viver em mim. Tenho a psicologia como área de formação.
Diria que para além de possuir uma formação técnica, sou escritora, poeta, filósofa e
quando digo isso sou aquela aprendiz e que busca pela sabedoria, a sabedoria contida
nos livros antigos e no cotidiano da vida. Estejamos atentos para enxergamos para além
do que se vê.
Ribanceira
Precisava dizer antes que se tornasse inexorável a pressa da vida.
As coisas tem tido outro têxtil e já não escrevo mais entre linhos. O silêncio faz
sua sombra de descanso e mofo sob minhas palavras, que já nem tanto me vem. Veja,
sinto-me à beira da ribanceira, numa mesa, onde trabalho, como, rezo. Daqui, de onde
fico estável entre minhas profissões pouco precisas, mas poeticamente assíduas, não
queixo da vista, horizontal, vasta, montanhosa. Tampouco preciso que me notem ou me
lembrem. Quero o que o peixe que vem dar sua graça em pesca me valha e ainda que o
que cultivo possa dizer que amo quando ainda não é flor nem nada além da
possibilidade improvável de sê-la. De vez em um quando, levanto-me. A cadeira reserva
um vazio, que já não estou no agora e nem mais me pertenço. É uma pressa que vem do
dentro, um impulso desatento. Meus pés vão a beira, a beira de ribanceira e de lá vejo
tudo que não posso ver. A casa que não sei, a viagem que não penso. Os filhos que não
tenho, o emprego do amanhã. Um salário contado pela criatividade das coisas que nem
cabem ao meu nome. Uma vertigem. Um medo da altura. Olhando meus pés, vejo como
é quase queda, vejo o salário que mal ganho, as viagens que cogito em gasolina, a volta
pra casa, o amor que amo. A mesa ali fica, poucos passos atrás do que chamo eu, mas os
pés pregam e não se movem. Paraliso. Entre o que me ribança e entre o que alcanço.
Parece-me não ser possível o salto, muito menos a queda de alguma forma. Não ser
possível também descalçar a vista do que meus pés ali mostram. É um entretempo.
Vertigem. Ali não sou filha. Sou nada. Sou nem eu. Alguma coisa escorre, que nem sei
se tempo, suor, lágrima, gozo, infância. E daí eu sei que uma forma de saltar é escorrer,
ainda que agarrada as paredes, escorrer no abismo. Derreter é vertiginoso, porque o
peito desloca ao chão. Escorrer ou saltar, isso é todo dia. Daí vem alguém. Um rádio
toca. É preciso comprar cebola e ser filha. É lindo amar o amor que amo. Os pés caem
em si. Me caminham à mesa, onde trabalho, como, rezo. A vista me devora, a cadeira
me preenche. Te olho e conto que estive na minha beira, precisava te dizer antes que se
tornasse inexplorável o amanhã.

Vestir Caminho
Me desentender com você é sentir que perdi a carteira com as chaves de casa do
carro ou qualquer outra coisa que signifique a agonia fina que é não achar o mais
importante da banalidade. Ontem não tive muito pra dar. Eu bebi os últimos quatro anos
de amizade por conta do frio. Já que as roupas de todos não cabiam mais, torci o
excesso da nostalgia que me restava em doses e mais doses. As coisas cambiam, trocam
de marcha, os tecidos mancham e ontem não encontrei em lugar algum as memórias que
tinha deixado em meia dúzia de pessoas que já não guardam o conhecido.
O amor complexifica qualquer margem de explicação do porquê as coisas erram.
As coisas erram. As coisas erram pela gente adentro e eu te amando conto como
as coisas eram. Como as coisas erram. As coisas erraram no tempo e isso com certeza
me deixou mais certa das coisas. Como te quero. Como te amo. Como ontem não tive
muito pra dar, devido o teor alcoólico de um tempo que não me veste mais ou até
mesmo a incapacidade de atear fogo nesse museu em meia dúzia de pessoas que é todo
feito de pó, vazio, pó fora, por dentro. E perdão, que ontem não tive como dar mais do
que minha incapacidade de atear, ontem não estive em lugar algum daqueles que sabia
pra onde ir. Não sei, mas os caminhos de trás não existem mais. A tinta que sinalizava
esvaiu, esvaziou. Ontem já é um caminho de tinta gasta. E hoje vaguei as sete versões
da história de cada uma das coisas que não lhe dei.
Pode parecer que não estive, mas estava. Estava buscando esse caminho aqui, o do
erro, que não bonito nem romântico, mas o erro que era uma forma de dizer que erro,
que te quero. Que foi o caminho que consegui encontrar nesse dia específico onde
percebi que a cidade é feita de lembranças e o ser é percorrer uma calçada onde a tinta
gasta com os próprios passos. Que foi esse caminho que dirigi bêbada das coisas que
não sou mais, que não podem mais caber e ainda bem. Ainda bem. Achei. A carteira, as
chaves de casa, do carro ou qualquer coisa que signifique o lado mais sagrado da
banalidade de por um instante e mesmo que breve, feito de punhal enferrujado, por um
instante, perder. Perder os caminhos. As pessoas. Uma cidade. Um ser que já não. É.
Ainda bem. Achei você. De quem não fui, de um caminho que não fiz. Achei. Percorre
essa distância do desespero de perder, mesmo que breve. Percorri as roupas curtas do
que fui, o pó, o museu que enfim ateei fogo. Percorri os anos. Achei. Achei você.
Percorri, peço perdão de um fundo que nem existia antes de te achar. Já não quero
mais a simpatia medíocre de um passado em pessoas onde não sou. Achei. As chaves de
casa, do carro, carteira. Quero amanhecer com você o doce de todas as horas, o
despertar dos caminhos que nos serão e se depender de mim, nos serão juntos. Te dizer
dos erros do que eram. Provar minhas roupas em você que não cabem mais. E cometer o
erro que te percorre em memórias apertadas do que foi. Provar, desculpa, minhas roupas
que não cabem mais. Só pra esquecer as chaves de casa, carteira, carro, cofre, cadeado,
num bolso que nem lembrava o porque gostei tanto dessa calça e decidir mudar de
endereço, documento, mala e mala e mala e cuia só pra morar mais perto de você.
Amanhã. E amanhã e amanhã, ainda mais perto.
Numa forma poema prosado, conto-poema ou outro molde a intitular um eixo pouco
específico, Lua Nê atriz, musicista, professora e escritora latinoamericana, pauta sua
poética no quotidiano afetivo, como mulher, lésbica, amarela e no lugar da palavra do
lúdico ao biográfico. Tem seu primeiro conto publicado em 2021 (Editora Unesp) e sua
primeira obra "O arroz é o maior lugar da casa" em 2022 (Editora Multifoco).
~ acerola

o açude de currais novos sangrando


tem cor de acerola quando chove

cabocla, cerejeira,
sertaneja, rubra, okinawa, apodi
frutacor

fruta cor de pitanga


cor de carne
cor dos flamingos no cio
no sul da itália
fazendo verão

estate

dizem que verão em italiano é estate por ser a estação do


estio
prefiro pensar que verão em italiano é estate porque
das quatro estações
ela é a única que é um estado
a única que é um

verbo

em um dia de verão na paraíba as águas estouraram


trezentos e oito açudes
cabaceiras virou mar
e rendeu um semestre de água em lombo de jumento,
caminhão-pipa, carrinho de mão

o estio do verão italiano virou fartura nordestina


correnteza oferta colheita abundância festa
em um sertão onde choveu e sangrou

todo dia.
Ana Luiza Tinoco é uma poeta potiguar. nascida e criada na cidade do sol, no cu do
elefante do brasil, nas veias da américa latina. re-nascida e descriada em portugal.
produz palavra falada, tendo sido a ganhadora do poetry slam coimbra 2020, finalista do
7° portugal SLAM — festival internacional de poesia e performance e co-fundadora do
coletivo de poesia de mulheres migrantes ―slam das minas coimbra‖, o primeiro
coletivo de batalha de poesia falada só de mulheres em portugal. produz palavra escrita,
com publicações na antologia antirracista/antifacista de poetas estrangeirxs em portugal
―volta pra tua terra‖, da editora urutau ; no livro ―potências feministas: papel e voz‖, da
SESLA: linha editorial e nas zines ―poetizando o feminismo‖ da ONG brasileira ―nāo
me kahlo‖ e ―sutura‖ da produtora potiguar ―anzois‖ autora de ―pororoca‖. (ed. urutau,
2022)
TEMPESTADES DE VERÃO

o estrondo do trovão agita o meu sangue


e relâmpagos acendem o céu acinzentado
anunciando a chuva pesada que cai
desinibida
destemida
torrencial
e sem titubear
ela
c
a
i

o vento cortante lambe minha pele


cheiro de terra molhada toma os meus pulmões
e eu me vejo
d
e
s
p
e
n
c
a
r

uma força inerente à natureza


derrubando barragens
inundando selvas de pedra
sangrando açudes
irrigando plantações

celebrariam a minha queda


e me amaldiçoariam pela ferocidade
pois sou tempestade de verão
chuva rara no sertão
eu caio sem temer a queda

Maria Clara Gomes, nascida em Petrolina, sertão de Pernambuco, é uma estudante de


Letras de 21 anos que encontra tranquilidade em tempestades e uma oportunidade de
desaguar suas inquietações em versos – nada mais poderoso que um vendaval de ideias.
Cecília

(Para Cecília, que resgatou em mim o elo perdido: o amor mais sublime!),

Os olhos que ‗vasculhavam‘ (acho que é este o termo e também não é meu)
penetraram e semearam em meu ser pedaços musicais há muito esquecidos. Foi amor de
desmedidas maneiras: amor na face, amor nos olhos, amor nos ouvidos olvidados de
como seria o amor com amor singelo. Ela tateara o meu ser vasculhando algo dentro.
Meu ser, antes deste singular momento, estava atrapalhado, oco, ‗duvidoso‘ do amor
gratuito – aquele mesmo sem reservas e legítimo, agora encontrara um porto, um
vínculo. Penso que de algum modo seus olhos que tudo vasculham e emolduram
localizaram lá no fundo da minha alma e do meu olhar peregrinando triste um ‗ser‘
pequenino e perdido.

Ela fizera reacender o amor pueril – força nutriz que impele a seguir! Talvez os
olhos que infiltram procuraram e tatearam um ser atrapalhado aqui dentro de mim. Seu
olhar febril fez jorrar do meu ser – lágrimas doces escorrendo pela face espessa: o
tempo – ‗passado‘ do viver. Seus olhinhos infantis fitavam-me e eu entregue ia
recebendo amor – em porções desregradas. Era tanto amor! Tão recente e antigo amor!

Recebi sensações do amor também na pele – dedinhos tateantes percorrendo,


com a leveza das patinhas das borboletas, minha face que acreditei e creio que o amor
está ali: nos dedos pausados contornando meu rosto já cansado. Era impossível olhar e
não amar desmedidamente! Se houver amor – seguramente/genuinamente seus olhos
não me consentiriam dúvidas. Ce – cí – lia deveria ser confundida também com as notas
musicais do viver... Já não seria apenas Dó ré mi fá, sol, lá, si... Cecília é sol ...é dó, é
ré... ressoando acordes outros. Ela me ensinara habilmente a esquadrinhar o ambiente
com o olhar. Seus olhos e seu sorriso são táticas de sobrevivência em um mundo em que
fitar outrem, talvez possa ser estender-lhe uma ponte e dizer: Venha, ‗eu estou aqui‘!
Sei que receber um olhar amoroso seu é como acolher dos céus – rezas para almas
acometidas pela dor. E é como ente adormecido que intento reerguer-me para poder
acolher a semeadura do amor e como a outra Cecília, conhecida do universo literário,
esta também ‗há de morrer de cantar‘. Que a música – pauta sua – lhe permita
experimentar em diversas acepções todas as alegrias possíveis. Cecília (com seus olhos
vibrantes) dedilhou pautas olvidadas em mim e acionou um lugar outro para harmonizar
o existir.
Eu bem que queria explicar-lhe porque chorei na despedida, mas talvez o mais
importante ‗seja, é e fosse‘: como não chorar se recebi amor em porções imensuráveis?
As despedidas são sempre muito solenes, mas o amor – vasculhado e ‗moldado‘ ao meu
ser – este sim é mais solene ainda! Cecília tocou, cantou e encantou meu ser – me
fazendo crer que seus dedos, seus olhos, seus ouvidos e todos os seus sentidos bem
aguçados executam alguma partitura sigilosa que só ‗os muito achegados‘ poderão
quiçá compreender.

Fabiana Rodrigues Carrijo. Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade


Federal de Uberlândia. Atualmente é professora adjunta, do Departamento de Educação,
da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão. É autora de diversos capítulos e
artigos científicos na área de letras/linguística espalhados em revistas e livros
especializados. Recentemente prefaciou três livros Quebra-cabeça essencial, de Miriam
Nassif; (Des)caso com a poesia: inquietações, de Maurício Gomes e Espontânea
Clausura, de Elaine Rosa Teixeira, sendo os dois últimos lançados pela Editora
Scortecci. No momento, encontra-se envolvida com a editoração de seus dois livros de
crônicas denominados: Contratos de amor lacerados e Vento na Roseira. E-mail para
contato: facarrijo@gmail.com
RESPLENDOR

Conduzidos forçadamente
Pelas rédeas do destino impiedoso
Fomos trazidos até aqui,
Aos recônditos de um vale escuro.
Embora amedrontados, tenebrosos,
Com incontáveis incógnitas pairando à mente
Estamos a procurar respostas (em vão?).

Cogitando a possibilidade do retorno,


Relutamos a todo instante.
Vivemos a procurar uma luz, um caminho e um relógio,
Ansiando compreender
O que nos trouxe até aqui,
A quanto tempo nos perdemos
E o que ainda podemos mudar.

O vento que sopra durante a madrugada


Invade a ambiência e as entranhas do meu ser.
Este vendaval permitiu-me ver que o caminho é logo ali,
Apenas não conseguimos vê-lo.

Essa paz,
Tranquiliza-nos à mente,
Deixa-nos outra vez contente,
Ergue-nos, perante à aflição,
Permite conceber sorrisos
E apreciar a imensidão de um coração
Que palpita sem parar,
E nos privilegia com a dádiva de amar.

Despeço-me das rédeas do tempo disperso, pois sei que


Apaziguar-se-ão os ditames desta maldição.
A escuridão, que outrora prevalecia, foi aniquilada pela luz,
Que deslumbrantemente a excedeu
E ela (a luz) permitiu-me enxergar que esse desfecho
Oportunizou um novo começo,
Àqueles nunca deixaram de sonhar...
O sol raiou outra vez.

Sou Igênia Moraes, natural de Caxias, cidade do interior do Maranhão. Atualmente,


sou graduanda do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do
Maranhão e entusiasta das artes visual, literária e poética. Há alguns anos venho me
dedicando à escrita de textos e poesias, sendo este o meu hobby predileto, neles bordo
temáticas relativas à fé e à esperança, contemplando ainda outras áreas da nossa
vivência, como a autoestima e a contemplação da natureza.
Quem sou você

Eu tão tímida

Você tão falante, desinibida

Eu quieta

Você tão dançante, cheia de flertes

Eu desarrumada,

Você de roupa limpa e passada

Eu deprimida,

Você tão positiva e disposta

Eu uma bagunça completa,

Você tão zen e ponderada.

Quem sou você, que habita esse mesmo corpo,

Mas se lembra de cicatrizes diferentes,

Que quebrou os mesmos ossos,

Mas outras cabeças?

Quem sou você, que habita esse mesmo corpo,

Que consegue ser tão outro eu,

Com outros desejos,

Às vezes, nenhum.
A mulher é uma situação
(a partir de Angélica Freitas)

Uma mulher é uma situação

Deve ser

A mulher historicamente se estabelece

Em determinado tempo

Não é fixa

Toda igual

Cisgênera

Heterossexual

A mulher é uma situação

Indivíduo

Cidadão

Com vagina ou não.

Sou Rachel Leão, me formei em Artes Visuais na UFMG, onde atualmente curso o
mestrado (também em Artes - socorro). Jacu que sou, escrevo desde sempre, e nunca,
nunca, nunca, me prontifiquei a mandar nada pra publicação alguma. Custei a tomar
coragem pra escrever esse e-mail, mas antes tarde do que mais tarde! Envio anexo um
poema meu, da primavera de 2017, que só eu e meu caderno conhecemos, e outro que
publiquei junto com um desenho no instagram.
A dríade solitária
Ao som arrebatador da brisa suave que passava por entre as folhas dos pinheiros,
em um final de tarde gélido e sombrio, uma jovem dríade solitária caminhava em meio
aos campos e pradarias. Ela voltava para seu velho carvalho, depois de um dia cansativo
cuidando do bosque. Um carvalho que aos olhos de qualquer outra criatura, era apenas
mais uma árvore ordinária, mas para a dríade, era sua fonte de vida.

As estrelas começavam a aparecer enquanto o céu escurecia, e de repente um clarão


tomou conta do lugar. A jovem dríade, cujo seu nome era Leonor, mal conseguia
enxergar o local à sua volta por alguns segundos.

A medida que a forte luz se esvaia, uma sombra que tinha o formato de uma mulher
se aproximava. Quando sua imagem estava nítida, Leonor pôde enxergar seus cabelos
acobreados que realçavam seu rosto divino. Seus olhos ardiam em chamas, e todos os
animais saíram de seus esconderijos para se curvar perante a mulher.

- Não se assuste, Leonor, filha da natureza, luz dos vales fúnebres – proclamou a
mulher – Vim a teu encontro para dar-te a missão de expulsar os homens de meus
domínios sagrados. Eles devastam tudo o que veem, exploram de minhas criaturas, e
cada último suspiro de cada ninfa que deixa esse mundo por terem suas árvores cortadas
me parte o coração.

Leonor logo soube que aquela era a forma humana que a mãe natureza encontrou de
vim ao seu encontro, então curvou-se.

- Você deve partir e fazê-los irem embora dessa região sagrada. – terminou ela.

- O que devo fazer para me infiltrar entre os homens sem que eles vejam que não
sou uma deles? – questionou Leonor, ela não hesitou em aceitar o que a divindade a
pedia, pois aquela era sua chance de conhecer um pouco dos humanos que ela sempre
ouvira falar.

- Enquanto a lua iluminar o céu, você assumirá a forma humana e deixará de ser
uma dríade – disse ela – Porém, tu deves prestar atenção as nuvens que lhe serão um
obstáculo. Se cobrirem os raios lunares, sua forma humana estará em jogo. Agora vá ao
norte, a constelação da estrela polar lhe guiará.
Novamente o clarão entorpeceu os olhos da jovem, que aos poucos foram
voltando a normalidade, e a mãe natureza não estava mais lá. Então, ao localizar a
constelação, Leonor seguiu seu caminho ao norte, segundo as orientações da divindade.

À distância, ela avistou nuvens negras que pareciam vir do chão e subiam
vagarosamente. Deduziu que fosse fogo, o elemento que fazia dos homens os seres mais
poderosos da Terra. Aquilo sempre a instigava, ela nunca teve a oportunidade de ver os
homens e suas obras tão de perto.

Ao se aproximar das tendas, que estavam do outro lado do rio que a separava dos
homens, seu reflexo na água chamou sua atenção. Sua pele esverdeada assumiu um tom
pálido e agora estava macia, e seus longos cabelos verdes tinha ondulações castanhas e
suaves. Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver como ela seria se fosse uma humana,
mas, os secou e continuou seu caminho.

Escondida atrás de uma moita, Leonor pôde ver uma enorme chama no meio do
acampamento, uma esplêndida fogueira que fizeram seus olhos se iluminarem.

- Então é aquilo que os tornam tão poderosos! – pensou ela, enquanto se


aproximava sem hesitar – A chama que os aquece, os protege e os tornam invencíveis!

Um estalo atrás da dríade fez com que ela se sobressaltasse e esbarrasse com um
humano que tinha uma feição juvenil, cabelos escuros que refletiam a luz da fogueira e
olhos que a fitavam com intensidade.

Antes que se desesperasse e pensasse em correr, veio a sua mente a lembrança de


que aos olhos do humano ela não era uma dríade, mas apenas uma jovem normal, de sua
própria espécie.

- Não me lembro de nenhuma garota ter vindo acompanhada com meus


trabalhadores para a exploração. – sua voz profunda e acolhedora soava como uma
melodia e seu olhar curioso não se desviava dela.

- Pode me chamar de Leonor. – disse ela – Moro em uma tribo aqui nas
proximidades, e... Bem, em nomes de todos os moradores, vim avisá-los que vocês
devem sair deste bosque, é uma área sagrada e não pode ser explorada.

- Não há tribos nesse bosque. – ele riu sarcasticamente – Antes de virmos para cá,
estudamos toda a região e nada encontramos. Mas, seria um prazer conversar com o
chefe de sua tribo, podemos ir embora assim que eu o ver.

Antes que pudesse pensar em alguma resposta, Leonor ficou tensa ao ver que um
conjunto de nuvens cobriam a lua. Suas unhas delicadas assumiram a textura de cascas
de árvores e em sua pele, formavam-se pequenos musgos ao redor dos dedos que se
espalhavam a medida que a lua fosse envolvida. Então, ela saiu em disparada para a
mata e não foi mais vista.

Ao retornar para seu carvalho, ela avistou a mãe natureza repousando em suas
raízes, um lobo prateado dormia em seu colo e uma coruja repousava em seu ombro.

- Vejo que não conseguiu fazer o que eu te pedi – disse ela com uma voz suave,
porém intimidadora.

- Não, minha senhora, os humanos não se compadecem e não são tão manipuláveis
como pensei que fossem, acho que será mais difícil do que eu pensei. O líder não
acreditou em minhas palavras.

- Tu deves voltar amanhã, e agora te darei o poder da persuasão, tente convencê-lo!


– uma súbita névoa envolveu a mulher, e ela desapareceu com o lobo e a coruja.

Na noite seguinte, Leonor voltou ao acampamento e se deparou com o mesmo


jovem contemplando o céu. Ele estava sozinho, então, ela decidiu abordá-lo mesmo
estando com receio.

- Olá! – o rapaz desviou a atenção do céu para ela, ajustando sua postura – Acho
que tenho que explicar porque corri daquela forma ontem à noite, precisei voltar para
casa.

- Tudo bem! – disse ele – Acredito que tenha vindo acompanhada com seu líder.

- Não é necessária a presença dele, vim em nome de todos os moradores, e vocês


precisam sair daqui – ela tentou novamente, agora usando o poder da persuasão, que
com ele parecia ser inútil.

- Sairemos assim que vermos sua tribo - insistiu ele, deixando Leonor cada vez
mais frustrada, pois, nem mesmo seu poder era capaz de fazê-lo ceder.

- Por que não acredita no que eu falo? – protestou ela.

- Essa região é bastante promissora, e não posso sair sem ter certeza de que há
habitantes e de que eu possa fazer uma parceira com eles, se for possível. Eu sinto
muito, minha jovem.

Leonor sentiu seu rosto esquentar por seu poder não conseguir manipulá-lo, e
novamente, a lua estava sendo coberta por uma densa nuvem negra, uma tempestade
estava por vir. Assim, ela correu para a mata, o jovem tentou segui-la, mas não a
alcançou.
Ao chegar em seu carvalho, a mãe natureza a esperava outra vez, o lobo prateado
agora estava sentado e a coruja brincava com os cabelos da mulher.

- O coração dos homens sempre é endurecido e aberto apenas para aquilo que os
convém, não a culpo por não conseguir convencê-lo a mudar. – disse ela.

- O que devo fazer, então? – perguntou Leonor – desistir? – no fundo, Leonor não
queria ceder, aquela seria sua chance de salvar seu dileto bosque.

- Não, você deve voltar amanhã pela última vez, e tente subordiná-lo com algo que
a sua alma mais deseje.

- Como vou saber o que ele deseja?

- Na hora exata você saberá. – afirmou ela.

Determinada, ela foi ao encontro dele como uma última tentativa, não se
importando com a presença dos demais homens, que cochichavam entre si, querendo
saber quem era aquela garota.

- Acho que você ainda não cansou de nos fazer de bobos, hoje mesmo
começaremos nosso trabalho, não atrasaremos mais.

Leonor o olhou friamente, e por um instante o tempo congelou. Um som de risadas


abafadas vieram em sua mente, e a imagem de uma mulher apareceu nos olhos dele, ela
estava feliz, e na mesma visão o próprio rapaz estava junto com ela. Inesperadamente
eles começaram a brigar, o motivo era uma escolha, uma vida tranquila ao lado dela, ou
uma vida complicada de trabalho pesado. Ao escolher a segunda opção, ambos se
separam para sempre.

- Então era esse seu desejo profundo, a sua mulher de volta. – concluiu Leonor –
Não só o dele, mas de todos os humanos. A ganância e o orgulho tiravam tudo de
precioso para eles, tudo aquilo que eles dariam de tudo para ter novamente.

Em um piscar de olhos, o tempo descongelou e os lábios do rapaz estavam nos


seus. Como uma venda, seus olhos estavam cobertos para a razão e tudo que ele pôde
enxergar foi sua antiga mulher como Leonor.

No impulso, Leonor recuou e o bateu no rosto, suas unhas já eram galhos. A lua foi
coberta e ela não havia notado. O desespero tomou conta do lugar, o jovem acordou de
sua transe completamente alterado.
- Meus companheiros, comecem a derrubar tudo! – ele gritou, sua razão não havia
voltado, seus olhos estavam turvos de tanta fúria e decepção.

Leonor tentou para-los, mas foi em vão, tudo que ela precisava fazer era encontrar
a mãe natureza novamente e alertá-la sobre o acontecimento.

Ao chegar no carvalho, não havia ninguém, tudo estava vazio exceto por ela e pelo
jovem que a seguiu, ainda enfurecido.

- O que você fez? Quem é você? – ele gritava como um lunático, e com seu
machado cortava todas as árvores que estavam à sua frente. Leonor tomou a frente do
seu carvalho e foi jogada longe com violência.

Com seu machado, o líder dos homens começou a cortar o carvalho com tanta fúria,
que fez com que a dríade desabasse no primeiro golpe. Sua voz não saia e seus gritos de
agonia se tornaram abafados e cessaram, seu corpo paralisado sentia a dor do carvalho,
a cada golpe seus órgãos internos entravam em colapso, sua visão ficou turva e sua
mente vagou tentando fugir da dor.

Com a queda do carvalho, seu espírito indomável saiu de seu corpo de dríade com
um último suspiro. O bosque inteiro despertou ao sentir que sua protetora se foi, e a
figura feminina da mãe natureza surgiu. Seus cabelos pareciam fogo e seus olhos
assumiram cor de sangue. As árvores e pinheiros agora estavam inquietos e pareciam se
curvar em uma dança fúnebre e uniforme.

Uma ventania violenta trouxe nuvens negras de tempestade que se juntavam acima
do carvalho cortado, e trovões ribombavam incessantemente. A ira da mãe natureza ao
ver sua dríade morta aos pés do seu próprio carvalho fez com que tempestades
surgissem no mundo inteiro.

- Pela ganância e orgulho dos homens, o mundo inteiro sofrerá o castigo. Furacões
destruirão suas plantações, tsunamis alagarão suas cidades e vilarejos e terremotos
soterrarão suas moradas junto com seus moradores. A natureza vingará tudo que vocês
fazem e vingará minha pobre Leonor, a luz dos vales fúnebres, a dríade solitária.

Maria Emanuele nasceu em 2005, no município de Esperança na Paraíba. Desde


criança, é apaixonada por literatura e alimenta o sonho de um dia se tornar uma grande
escritora. Ler e escrever fazem parte de seu ser e a arte das palavras a completa fazendo-
a enxergar novos horizontes através de universos fictícios.
Sonhos de morte

meu sonho
em horizonte além-mar
vive nas verticais
além-mágoa

meu sonho
escondido no esquecimento
simula o genuíno
finge o verdadeiro

meu sonho
– errado por si –
comete fraudes
vive horizontes
pesca aqui e ali
umas poucas estrelas
do mar

meu sonho
parado, carcomido
[todo fodido]
come memórias
tenta encarnar

Sabrina Gesser, catarinense de 29 anos, residente em Navegantes/SC. É advogada,


poeta e escritora integrante do Coletivo Escreviventes, além de fazer parte da equipe de
poetas do Portal Fazia Poesia. Foi suplente na categoria experimentação artística no
Edital Aldir Blanc SC 2021, publica constantemente em sua conta pessoal do Instagram
(@gesser.sabrina), além de participar de Antologias impressas e digitais.
NATURAL

a noite sedutora e serena liberta meus segredos.


as quatro paredes acolhem a intimidade
que se ilumina pela meia-luz

a madrugada generosa me traz


a naturalidade que há no prazer externo:
o quarto aquecido, as luzes apagadas,
as cortinas fechadas e a camisola jogada

minha pele queimada pela luz do sol


percebe minhas mãos tocarem
a ternura de meu corpo

é quase meia-noite.
os prazeres antigos me atingem
e me lembro do apetite saciado naquele cômodo

aqueles quadris agitados


dançam em minhas lembranças
e meus olhos se fecham a reprisar
todas aquelas cenas de luxo

logo sinto a ponta de meus dedos


tocarem a cintura despida de pudor,
as coxas nuas de calor
e a boca vermelha de sede

o lençol cor de café estendido em minha cama


enlaça minhas curvas e meus desejos

minha voz se cala


e o meu silêncio exprime, entre arquejos,
os meus sonhos mais selvagens
minha gentileza adormece sobre mim
se torna submissa às vontades
dominada pelas sensações

os pés se esticam,
as articulações se movem.
a mão esquerda aperta o ar
enquanto a mão direita
mergulha o dedo médio e o anelar

me percebo só minha.
é um minuto tão valioso e raro
que não há mais o que prender

então me esvazio:
me solto, livre; respiro exausta
e repouso o melhor dos sonos

a noite sedutora e serena


acalma meus estímulos.
durmo até que as estrelas apaguem
e acordo realizada

DOIS DE OUTUBRO

não há tiro não há morte

não há balas alojadas na carne

não há projétil esburacando paredes

e furando órgãos todos os dias não há

não houve autoridades destruindo famílias


mães filhos esposas maridos

não houve silêncio sangrando

nem grades soltas nem corpos empilhados

não houve respiração sendo arrancada de dentro para fora

não houve mandato nem fuga do coronel

não houve mortes de homens de porte

nem voz que falasse sobre a sorte

que não veio no dia de julgamento

não houve detento que dissesse por que foi detido

pois foi calado para sempre calado para sempre

por vocês-sabem-quem

não houve mais de quinhentos tiros

nem cento e onze perdidos no meio da guerra

não houve desespero por notícias

agrupados na entrada da rua da guilhotina

não houve mentira que se sustentasse

não houve justificativa que explicasse

não houve chance de pensar

não houve mira incerta

nem falta tempo ao escolher os alvos

não houve tapete cor-de-sangue no corredor da morte

não houve nudez preta nem cenários alterados

não houve mãos na cabeça nem braços pro alto


não há seiscentos anos de cadeia

não houve legítima defesa nem solução

não houve negociação nem proteção

mas houve execução em nome da lei e da ordem

houve vontade de matar e sempre haverá

eles fingem que não ouvem a culpa chiar

mas não houve mil novecentos e noventa e dois

que não fosse massacrado para tanta gente

o que não mais não houve naquele dia?

nem posso imaginar o que mais não houve naquele dia

Thamires P. tem 26 anos, é moradora de Belford Roxo (RJ) e estudante do curso de


Letras no campus de Nova Iguaçu da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Escritora desde os dezoito anos, possui textos publicados em duas antologias:
―Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras‖ (FLUP/Bazar do Tempo,
2021) e ―Poetas negras brasileiras: uma antologia‖ (org. Jarid Arraes/Editora de Cultura,
2021). Além disso, possui cinco poemas publicados na coluna ―Manifesto Periférico‖ da
revista Ruído Manifesto.
La memoria de los árboles.

Altos e indiferentes

los árboles van al cielo,


en esa tarde tranquila,
inundada de silencio,

parecen pajes desnudos,


que ha desvestido el invierno
dejando al aire libre
las arrugas de su cuerpo,

cada año los visita


pues es su amante perpetuo,
suspira al acercarse,
alardeando sus secretos.

La noche está llegando,


va el día palideciendo,
mi corazón suspirando,
quiere saber lo que siento,

esa paz enamorada


transformada en dulces versos,
un paisaje ya vivido,
quizá lo he visto en sueños,

que esos árboles callados,


seguro están escondiendo.
Camino bajo sus ramas,
enredadas por el viento,

la luna brilla gozosa,


al mirarme está sonriendo,
y yo los voy admirando,
tratando de convencerlos,

de que abran su memoria,


relatando sus recuerdos
los que yo guardo celosa
en los túneles del tiempo;

nuevamente serán suyos


cuando regrese el invierno,
y cual libros que se abren
podré leerlos de nuevo.

Sheina Lee Leoni Handel Docente, poeta y novelista uruguaya. Activista LGBT.
Nacida en Montevideo, Uruguay, he publicado varios poemarios y novelas románticas
en Amazon, así como colaborado en numerosas antologías colectivas .También he
obtenido diversas distinciones y premios en destacados concursos literarios en Uruguay
y el extranjero, y participado en importantes instituciones literarias y culturales
nacionales e internacionales. PRESIDENTA ACTUAL DE : Academia Virtual
Internacional de Poesia, Arte e Filosofia – AVIPAF (BRASIL) Integrante de
Pensão Primavera
Em memória à Noeci, a contadora de histórias.

Conto baseado em histórias surreais, todos os nomes são fictícios.

Com o inverno, chegam também as lembranças geladas de uma pequena história.


Brincar de boneca, vestir o uniforme e correr para a escola saltitando na
amarelinha. Esse foi o final da minha infância, quando em um belo dia meu pai
apresentou meu noivo. Eu tinha 15 anos, naquele tempo uma menina dessa idade fazia
uma ideia vaga e romantizada sobre namoros, noivados e casamentos.
Cheguei em casa da escola, havia um homem estranho conversando com meu
pai. Ambos me observaram e conforme eu me aproximava da porta do quarto, minha
mãe me olhava com ternura e preocupação. Ela me explicou, falando baixinho, que eu
iria noivar com aquele homem e fui convidada a sentar na sala com eles.
Falaram e fizeram acordos dos quais eu não entendi. O homem estranho se
chamava Oscar, trabalhava viajando em embarcações federais, era de estatura mediana
(para não dizer que era da minha altura), magro e não muito sorridente. Ele era um
homem bonito, onze anos mais velho do que eu, de Minas Gerais e de família honesta e
trabalhadora. Papai, que era militar, falou que Oscar tinha um bom salário e um
emprego estável. Era tudo que eu precisava.
No ano que se seguiu, trocamos cartas de amor e fotos, mamãe me orientava
para a escrita das mesmas, mas ainda assim fiquei confusa e empolgada com toda a
história de namoro à distância.
Aconteceu nosso casamento, conheci minha sogra e cunhadas. A festa foi
simples, ganhamos louças e toalhas de mesa de presente. Eu era ingênua e infantil,
nunca me disseram nada sobre os deveres matrimoniais. Servir o marido e consentir o
que era imposto por ele. A regra era clara: cuidar do esposo e deixá-lo feliz, mesmo que
isso custasse suor e sangue. Logo nos mudamos para o Rio de Janeiro, distante de
qualquer figura que eu estivesse familiarizada. Morávamos em uma pensão quando
engravidei. Na hora do parto quase morri. Os médicos tiveram que fazer uma cesariana
às pressas porque não tive dilatação e Toninho era muito grande. Tive uma infecção
hospitalar e fiquei meses internada no hospital para cicatrização do corte. Foram dias
difíceis, doloridos e solitários.
Na pensão em que estávamos hospedados, não era permitido crianças, então
minha gravidez toda foi escondendo a barriga e depois do parto, lavava as fraldas e
roupinhas do Toninho e estendia em um canto do quarto para que ninguém visse.
Quando ele chorava, eu logo o acalentava para que ninguém ouvisse. A dona da pensão
possivelmente sabia do nosso segredo e relevou até ser impossível esconder um bebê.
Então precisamos procurar outro lugar para morar.
No ápice da II Guerra Mundial, eu assistia com receio as tropas marchando em
direção aos navios. A crise estava grande, o dinheiro escasso. Em um dos retornos de
viagem de trabalho de Oscar, ele trouxe uma novidade: havia comprado uma pensão em
Porto Alegre. Segundo ele, eu poderia ficar mais próxima dos meus familiares, que
moravam no interior e ao mesmo tempo teríamos outra fonte de renda enquanto ele
estava ausente.
Essa pensão era bem localizada no centro da cidade, próxima ao cais do porto.
Hospedava marinheiros, viajantes e trabalhadores que ancoravam lá. Eis que conheci a
Pensão Primavera.
Oscar viajava praticamente o tempo todo e quando não estava trabalhando,
passeava sozinho pelos arredores com seu terno branco e chapéu panamá.
Nessa época, Toninho estava com dois anos e participava dos meus afazeres na
pensão.
Sem dinheiro para pagar funcionários, eu tomava a frente de praticamente tudo.
Cozinhava três refeições, servíamos café da manhã, almoço e janta, todas elas
preparadas por mim. Consuelo, a única funcionária que havia por lá, lavava louças
praticamente o dia todo. Algumas vezes, minha irmã vinha do interior para ajudar na
organização, também financeira e emocionalmente.
Eu passava dias e noites limpando, cozinhando, passando, lavando. A
fiscalização batia na porta rigorosamente todas as terças-feiras. Observavam a limpeza e
também o estado das louças. Pratos, copos ou xícaras lascados eram recolhidos pela
inspeção e eu deveria repor todos impecavelmente.
Manoellito, um hóspede conhecido da pensão, estava faminto e tinha prazer em
agir violentamente. Como de costume, começou a bater os talheres na borda do prato
branco de porcelana, fazia questão de quebrar sempre onde estava gravado o nome
―Pensão Primavera‖, como se esse movimento repetitivo lhe trouxesse algum acalento.
Toda vez que batia na louça, seus olhos brilhavam maliciosamente.
Foi naquele dia, quando ouvi os sons estridentes, me aproximei da mesa e pedi
que parasse de quebrar a louça. Senti repugnância ao notar suas mangas do casaco
arregaçadas e sujas, seus braços estavam repletos de cicatrizes e algumas feridas
inflamadas.
Manoellito, com seu tom debochado, continuou a bater e o enfrentei de corpo e
alma, ameaçando expulsá-lo dali. Nesse momento, coloquei a mão no meu punhal que
estava escondido embaixo do vestido, presente que recebi do meu amigo Pedro.
Num movimento brusco, Manoellito se levantou abruptamente e ficou na minha
frente de punho cerrado e com o olhar de quem chegaria até as últimas consequências.
Avisei que iria direto para delegacia com intuito de denunciá-lo. Então agarrei
Toninho no colo, tomei o bonde que passava e desembarquei na Praça XV, direto na
delegacia. Pedro Pereira era o delegado e um grande amigo. Sempre me avisava dos
perigos que eu corria recebendo homens estranhos na pensão.
Entrei porta adentro desesperada, com medo de ser agredida e ter meu
estabelecimento depredado. Relatei a Pedro tudo que havia acontecido... não era a
primeira vez que eu reclamava de Manoellito na delegacia.
Logo atrás de mim, entra sorrateiramente o hóspede denunciado, com seu tom
cínico e debochado, afirmando que não passava de um mal entendido, que estava apenas
zombando, porque de onde ele vinha era muito comum esse tipo de brincadeira.
Desesperadamente tentei ter voz para desmenti-lo e Pedro me pediu calma e que
eu retornasse para casa com Toninho, já que eu estava muito nervosa e cansada. Ele
prometeu conversar com Manoellito e o orientou a não se hospedar mais na Pensão
Primavera.
Manoellito chegou na pensão, recolheu seus pertences do quarto, jogou na
recepção a quantia de dinheiro para pagar a sua estadia e saiu sem falar nada. Carregava
uma mala preta desbotada, deixando apenas o rastro de barro que suas botas soltavam
no corredor.
Fiquei confusa, sem saber ao certo como agir. Me senti sozinha, meu marido
estava distante e eu precisava resolver tudo aquilo.
Ao anoitecer, o frio chegou com força. Coloquei Toninho na cama e me
aconcheguei ao lado da lareira para suportar aquele vazio. O silêncio amputava a minha
alma, assim como o punhal afiado corta qualquer superfície.
Enquanto a noite avançava, servi mais uma dose de Vermouth, folheei e tentei
traduzir a revista Les Temps Modernes, que um hóspede francês me deu de presente.
Ouvi um barulho abafado e imediatamente um grito. E esse grito, ecoou
rachando aquela noite gelada e longa, esfriando até a minha espinha. Meu corpo tremeu
por inteiro e suei frio. Corri no quarto para ver Toninho, que dormia tranquilamente.
Passei a noite acordada e preocupada. De manhã, Consuelo trouxe a notícia de
que Manoellito havia sido assassinado no quartinho em que se hospedara a uma quadra
dali. Apesar das investigações, nunca soube o que de fato acontecera com ele.
A polícia encontrou muitas facas, punhais e até mesmo um canivete, todos
ilegais, que Manoellito vendia na região.
Hoje em dia, com meus quase noventa anos, percebo que nunca tive prazeres na
vida. Porém, uma das minhas satisfações é relembrar essas histórias, tomar café com
leite e regar as minhas rosas.

Rosana Siqueira (Camboriú-SC) é professora, escritora e artista independente. É autora


e ilustradora do e-book "Labirintus Femininus - poemas pulsantes", que retrata por meio
de arte e poesia questões que reverberam na alma feminina (2021) e da série de
videopoesias Frenesidelírio, concebidos durante a pandemia em rede sociais, como o
Instagram e YouTube. Participou de algumas coletâneas e exibiu na III Exposição
Internacional de Arte e Gênero o videopoema ―Xeque-Mate‖, que integrou o Seminário
Internacional Fazendo Gênero 12, realizado pela UFSC em 2021.
ALMA LITORÂNEA

Basta um pingo e eu transbordo:


deixo de ser Fogo e viro água.

O olho nem disfarça


o transparente dessa alma
que escorre
e passa lentamente
entre minhas pernas.

As mãos marinheiras sobre mim


navegam sem bússola
a língua encantada
vence os recifes
toma-me ilha
iça velas sobre minh'alma litorânea.

E meu corpo vira porto


até o cais do amanhecer.

Adriana de Freitas nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu e se forjou no sal do mar de
Fortaleza. Gosta de livros, de Beatles, Caetano e Belchior. Escreve desde a
adolescência, participa de coletâneas e concursos literários, recebeu Menção Honrosa no
Prêmio Off Flip de Literatura 2022, e seu primeiro livro, "Cantos de amor livre e outros
pecados", deve vir a público ainda este ano.
DIÁLOGOS NA PANDEMIA

Autores: Ci Borges e Moacyr

Publicação independente de 2021 – Editora Saluz


(Passo Fundo – RS). 154 páginas, formato 16 X 23 cm.

Introdução (pág. 13)

Era uma vez

Dois amigos que levavam uma vida normal.


Ela, Ci Borges, ainda na ativa, exercendo advocacia nas áreas trabalhista e de
família, mediadora de conflitos, professora e palestrante, além de ser mãe e avó por
demais presente, obrigatória, e militante social não menos presente.
Ele, Moacyr Pinto, sociólogo e educador aposentado, autor de livros e até de
algumas obras musicais, essas em parceria, nunca deixou de participar das discussões
culturais, políticas e sociais de interesse, a partir da comuna onde ambos viviam e ainda
vivem.
Nenhum dos dois era alvo fixo e ambos tinham certa notoriedade, gozando de
algum prestígio local. Ela fora Diretora do PROCON, entre 2013 e 2016, ele Secretário
de Educação, no início dos anos 1990, em São José dos Campos, onde se conheceram
no anos 1980, militando no mesmo partido de esquerda, porém em diferentes correntes
políticas. Ambos hoje estão sem militância partidária.

Covid 19 – pandemia – como é que se enfrenta esse bicho? (página 14)

Nas primeiras semanas da pandemia no Brasil os dois amigos cuidaram de se


alinhar com os conceitos relativos à necessidade da manutenção do distanciamento
social e das proteções individuais, como o uso de máscaras; da estruturação e adequação
dos serviços de saúde, sob gerenciamento do SUS; da necessidade da realização de
testes nas pessoas com suspeita da doença, isolando as positivas; e de tirar o máximo de
pessoas das ruas, com estratégias diferenciadas, garantindo com urgência, aos mais
necessitados, a comida na mesa. Que alvoroço!
No meio do caminho tinha uma, duas, três, não se sabia quantas pedras (página 15)

No Brasil, como em mais algumas dezenas de países, alguns de maneira até


surpreendente, como EUA e Itália, para encurtar a lista de exemplos, a condução do
enfrentamento da pandemia estava nas mãos de pessoas e forças políticas que negavam
os mais elementares conhecimentos científicos.
Tais lideranças pregavam e estimulavam todos os tipos de segregações e
preconceitos, além de serem defensores convictos das concepções políticas e
administrativas identificadas com o chamado ―Estado Mínimo‖, cuidando inclusive de
desmontar as estruturas existentes de saúde pública, numa hora que o Estado deveria ser
ágil e máximo e a saúde pública, o SUS, no caso brasileiro, fortalecido também ao
máximo.
No Brasil, pelas condições históricas, vindas de 1500 e agravadas pela
conjuntura política atual, apesar da existência de alguma tentativa de resistência, o
cenário para o enfrentamento da pandemia era dos piores.

Se a dona morte taí e não tem havido piquete com força e engenho para brecar o
seu processo de fabricação e o seu caminho, o negócio é resistir com arte e cultura,
para manter a sanidade física e mental, além de, quem sabe, deixar alguma
contribuição de interesse para as gerações futuras. (página 21)

Cap. 1: Xô corona!

UTI (página 27)

ENGANEI ATÉ OS EXAMES

Mensagem postada por Ci no primeiro diálogo mantido depois da alta no


hospital:

Um pouco assustada com a UTI e com a notícia certeira de que eu


estava infartando!

Enganei até os exames. Fui de emergência, de ambulância apitando e


tudo!

As coisas comigo são sempre assim. Na verdade, sou uma mulher sem
comedimentos. Tudo em mim é intenso. Os sinais, os sintomas, enfim,
minha vida!

Obrigada mesmo. Mil desculpas!

Reprodução da arte distribuída, sem créditos, pela internet, contra as manifestações


partidárias dos militares. Postada nos diálogos e distribuída por ambos.

―Te amo porque sua boca sabe gritar rebeldias!‖ Verso de autoria de Mário
Benedetti, poeta uruguaio.

Ci Borges, 64 anos. Sou advogada, mediadora de conflitos e professora. Desde muito


jovem participo do movimento de mulheres. Mora em SJCAMPOS - SPaulo.
Interlúdio

Sou como o vento


Escuta-se o som
Mas não se sabe
De onde vem
Nem para onde vai

Mas devo aprender a confiar


Confiar no condutor do vento
Confiar no meu pai

Não sei o próximo passo


Nem sei o próximo caminho
Mas sei que será bem feito
Bem cuidado
Venha o futuro
Venham Teus planos

Anamnese

O ser humano falho


E de memória curta
Lembra que caiu
Mas esquece que levantou

O ser humano falho


E de memória curta
Lembra dos cortes
Mas esquece que cicatrizou

O ser humano falho


E de memória curta
Lembra da dor como se a sentisse
Quando ali só marcas ficou
―lembra, pois, de onde caístes‖
Pois ali mesmo levantastes
Oh, ser humano falho
E de memória curta

Entre-lugar

As folhas verdes secam


E ao seu tempo, caem
As cores mudam, o solo seca
Eis o outono
O outono é passagem
Mudança
Mudança dói e deprime
Outono é sacrifício
Que se doa e sente
Prepara o caminho
Deixa tudo pronto
Tudo pronto para a chegada das flores
Das cores
É necessário que o velho saia
Para que o novo chegue

Erika Raylla Marinho Barbosa tem 20 anos, é moradora de Campina Grande- PB e


estudante de licenciatura em Filosofia-UEPB.
A ferida de dona Ana

Dona Ana viveu amargurada. Dos sete filhos só falava com um e dos dez vizinhos
mandava todos tomarem no cu. Fazia um café cheirosíssimo e às vezes — quando
estava de bom humor, me convidava. Mandava-me chamar também minha namorada.
Numa dessas visitas a casa de dona Ana fiquei sabendo que não se tinha nome pro que
eu era — lá no tempo dela. Não precisei de mais nenhuma explicação.
Dona Ana viveu amargurada por algo inominável. Agora entendo a importância
da nomeação. Contou que pediu perdão a deus, mas que deus nunca escutou — porque
senão não teria vivido 75 anos de solidão. Contou também que quase morreu — tentou
fugir, mas a carroça quebrou no meio do caminho. Parecia até destino ficar empacada
sem ter o que comer, o que beber, como sonhar. Ela quis respostas — eu não soube dar.
Seu Carlos chegou da consulta sendo escoltado por dois filhos dos quais ela não
queria saber nada sobre. Amargurada que só, dona Ana preparou um café forte sem
açúcar — do jeito que ele gosta. Sentou-se na sala, amargurada. Me viu ir embora de
mãos dadas, amargurada. O final já se pode prever. Não há socorro pro passado.

DES(EMBOLANDO) NÓS

Peguei sua fantasia pelos cabelos


Agarrei por trás a versão de mim
Que reside nos seus sonhos
Ela é mesmo uma delícia
Diz mais sim que não
[sua vontade é soberana até quando você finge que não é
Finge que eu te irrito com esse meu jeito
De sei-la-o-que
Finge que não gosta dessa mania estranha e finge que acredita quando eu digo chega
[é só mais um pouquinho
Eu finjo que não gosto
Finjo que não gozo
Eu, você e a outra versão de mim deitadas
numa cama
fingindo que ali não tem lugar pra
quatro
Eu, você e os nós imaginários

Manoela Maia, 28 anos, é escritora desde que aprendeu a escrever, poeta, fotógrafa e
graduanda em psicologia. Terá seu primeiro livro de poesias ―Tudo que ancora em
mim‖ publicado em agosto pela editora Urutau.
vida

Devagarinho, acelerado.
No meio de um trem cheio de nada.
O vagão se preenchia de multidões vazias,
Se esvaziava de ninguém preenchido.

O tempo continuava,
mas não andava em frente.
O tempo parava,
mas prosseguia para trás.

Os vagões chegavam às suas estações,


mas não paravam em suas linhas.
No horário de entrada, ele saía.
No horário da saída, ele entrava.

Ouviam-se passos silenciosos,


mas também sussurros barulhentos.

A claridade após os túneis não existia,


Quando atravessava a luz do sol,
a noite chegava.

Aqueles rostos familiares eram desconhecidos, mas aquelas pessoas dos vagões vazios
eram de casa.

Como uma casa quentinha,


saíam sem olhar para trás.
Como uma noite que se passa em um hotel qualquer,
viravam para se despedir até dos sofás.

E o tempo não parava, mas também não seguia em frente.


Ninguém sentia nada, mas as lágrimas transbordavam em suas bochechas quentes.

As pessoas não se olhavam,


Mas se cumprimentavam como velhas amigas.

As pessoas se importavam,
Mas não paravam para olhar multidões perdidas.

As pessoas lamentavam,
Mas não o suficiente para gritar por liberdade.

As pessoas eram livres,


Mas não o suficiente para se soltarem de suas amarras.

As pessoas eram destinadas a seguir em seus vagões vazios de dúvidas, mas cheios de
ignorância.

ressentida

Expressões de dor, posso reconhecê-las


Silêncios de raiva, posso ouvi-los de longe

Gritos silenciosos, ouço dentro do meu coração


Juras sem significado, conheço de cada estação

Lágrimas não escorridas, posso pegá-las como granizos


Falsas verdades, cresci sabendo dizê-las

de nada adianta se em mim só resta o tempo

As veias das minhas mãos são galhos de árvore


Meus olhos são relógios de ponteiro
Minha pele é madeira
Minhas marcas são planetas
Minhas lágrimas são tempestades
Meu sopro é furacão
Meu gemido é o vento uivante de uma montanha no inverno
Eu não sou nada comparado a mim mesma
E o nada não é comparado a mim

O sempre anda ao meu lado, EU ando pelas vidas entre as vidas de outras vidas que
viveram vidas
Eu modelo e desmodelo existências dentro de inexistências
E no espelho, meu reflexo não existe
Porque nada adianta criar significados se o tempo existe em mim e eu existo dentro do
tempo

de cachos a cachinhos em meus dedos

Se alguém como alguém desse alguém existisse


Haveria luz em todas as pontas da Terra
Se alguém como esse alguém existisse
As nuvens chorariam de alegria a cada som do riso dele que ouvissem
E se alguém como esse alguém existisse
De inveja, a mãe natureza criaria caracóis, labirintos e ondas de mar para imitá-lo
Porque se esse alguém que existe mora dentro de mim
Eu criaria versos incompletos para dizer que nada os completaria além dele mesmo
E se as pontas dos meus dedos tocassem cachinhos em cachinhos de seus cabelos
Eu seria feliz a cada segundo do dia
Porque a mãe natureza não te inventou e você não é uma invenção minha

amazona, submundo

de guerreira, a deusa do caos


do caos que semeou a batalha
ela que canta
aplaude em som da batucada
de um pequeno mundo abaixo da terra
implantado para a feminilidade oprimida
a dor plantou sementes, e de sementes se tornaram ira!
o estrondoso passo das anciãs soa
e o baixo se torna alto
elas gritam elevando Amazona!
canta a mãe do corpo!
a deusa do caos liberta as vozes de todas as suas irmãs

se eu soubesse de tudo que me escondem

se eu soubesse de tudo enlouqueceria


mas se eu não souber de nada permaneço em minha boa ignorância
se eu soubesse de tudo não teria significado
mas se eu não souber de nada arranjar razões é como procurar por algo
se eu soubesse de tudo eu não teria nada para encontrar
mas se eu não souber de nada eu continuarei a achar que meu reflexo não é real

se eu soubesse de tudo não acharia que existe outras versões de mim em cada estrela
e que a cada estrela que falece é uma sarda das minhas bochechas

e que na verdade todo o universo é a pele de uma deusa cheia de sardas e enrolados nos
cabelos

Meu nome é Sindell Amazonas. Tenho vinte e um anos e sou de Manaus, Amazonas.
Curso Letras - Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e
trabalho com revisão e preparação de textos. Poetisa, escritora e apreciadora dos
mundos.
Sempre Mulher!

Mulher… Que no dia a dia, trabalha


Para fazer de sua terra uma grande nação.
Mulher exemplo de dignidade e simplicidade
Corajosa, destemida, e de grande coração.

Mulher brasileira, asiática, africana,


Europeia – todas com sua sina.
Mulher mãe… Que traz no rosto
a candura de mulher – menina.

Mulher que gera seu filho


amamenta-o e à felicidade o conduz,
Que o educa, indica o rumo a seguir
A busca de um farol de luz.

Mulher de ternura sem limites


De brilho no olhar… Para acolher,
Que ama, que se doa com alma bendita,
MULHER… Sempre MULHER…

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira (Castro-PR). Professora. Poeta. Escritora e Artista


Plástica. Sete livros publicados e participação em mais de cem Antologias Poéticas.
Membro da Academia Luminescência Brasileira – ALUBRA. Membro correspondente
da Academia de Letras de Teófilo Otoni - ALTO. Academia Virtual Internacional de
Poesia, Arte e Filosofia – AVIPAF.Academia Internacional Mulheres das Letras –
AIML. Participa das exposições de Arte e Poesia organizadas pelo Curador e
especialista em Arte Digital Carlos Zemek no Brasil, Portugal, Argentina, Espanha,
Chile e Colômbia.
Se aprende a ser mulher?

Ser mulher no mundo de hoje,


é muito difícil.

A busca pela igualdade,


é um desafio desde o nosso nascimento.

Ser mulher,
não é simplesmente nascer,
mas é um tornar-se diário.

Aprender a ser mulher,


não é como ler um manual,
é um viver
lutando em prol de um ideal,
de um sonho,
de um querer e poder constantes.

É buscar uma liberdade que


nem mesmo as grandes poetas
e filósofas conseguiram encontrar
por enquanto...

Laila Angelica Moraes nasceu no ano de 1987 em Votuporanga. Graduada em


Letras: Português/Espanhol e Pedagogia na Unifev (Centro Universitário de
Votuporanga). Professora de Língua Portuguesa e Espanhola, Pesquisadora,
Revisora, Pedagoga e Escritora. Textos publicados nas Revistas Mallarmargens,
Ruído Manifesto e Sucuru. Coautora em Antologias pelas Editoras Chiado Books,
Patuá, Editora Expressividade e EHS Edições. Autora do livro de poesias
―Poememórias‖ (2021) pela Editora Expressividade.
O tempo

Ah, o tempo…
O que dizer sobre ele?

Às vezes amigo, aliado.


Ou então sumido, escasso.

Querido. Saudoso.
Não raro queremos pará-lo.

Em outros momentos, melhor é, nem mesmo, lembrá-lo.

Uma baita palavrinha com várias formas de significar!


Já pararam para refletir? Analisar?

Ah, como é bom sentir. Observar.


Como é bom, simplesmente….
… pausar!

―Tudo tem o seu tempo‖,


uma conhecida expressão popular.
E quantas são as mais variadas situações em que ela pode se encaixar?
Já pararam pra pensar?

Ah, o tempo…
Esse mesmo,
que não se pode controlar…

Cada vez mais nos mostra


como é precioso (e preciso),
o valorizar.

Valorizar cada segundo,


E apreciar.
Sim, o tempo também vem para ensinar.
Integra o lindo processo de aprender, apreender, educar e amar.

Tempo tem ligação com evoluir.


Refletir.

Tem o tempo de chegar,


E o tempo de partir.

Então tentemos aproveitar o tempo,


fazendo o que nos há de melhor.
Busquemos aquilo que nos faz sentir. Sorrir. Ser feliz.
Bem assim e por si só.

Está em tempo!!!

Sou Fernanda Ventura Pereira de Oliveira, 37 anos. Ou simplesmente Fernanda


Ventura. Ariana. Carioca. Filha de mineira e português. Caçula. Assistente Social.
Casada. Mãe de uma linda e doce menina de 6 anos. Sempre gostei de escrever e
estudar. Durante o período da faculdade já fui chamada da menina do "vocabulário
acadêmico". Há 3 anos e meio acompanho de perto a luta da minha mãe contra o
câncer. Tarefa difícil. Física e emocionalmente, mas de muito aprendizado, lição.
Evolução. Acredito que seu agravamento e a pandemia tenham aflorado o desabrochar e
meu despertar para escrita que, embora sempre tenha me acompanhado, há pouco mais
de um ano, começou a tomar forma. Tenho um perfil no Instagram, o
@escritaecompanhia, onde compartilhei algumas escritas, mas por uma série de razões,
encontra-se desatualizado. Para mim a escrita traduz em palavras o que vem do coração.
Acredito que esse seja um dos seus grandes propósitos.
Não fiz de você o meu suspense tampouco o meu drama, não espere de mim uma rima,
porque você não é o meu poema.

Espere de mim apenas palavras sem nexo, sem lógica, sem algo que faça sentido.

O que estou tentando dizer é que, embora você não seja o meu romance, eu ainda perco
o meu tempo tecendo um enredo a seu respeito.

Minha novela mexicana, minha música melosa, meu pensamento mais piegas. Será?!

Será mesmo que é isso?! Isso e mais nada?

E quanto a mim? O que eu sou, o que eu significo pra você?

Você me tem como o seu soneto de versos simples, o seu poema de estrofes
decadentes?

O que somos?! Somos ficção, uma comédia sem graça, o que esperar das últimas linhas,
o que esperar das últimas cenas?

Meu nome é Francisca de Paula Sousa Araujo, sou natural de Parnaíba e atualmente
moro em Luís Correia. Sou formada em Turismo e Contabilidade, ambos pelo
Universidade Federal do Piauí, em Parnaíba, e sou graduanda em Letras Português pela
Universidade Estadual do Piauí, também em Parnaíba. Posso dizer que meu gosto pela
Literatura começou no ensino médio, e um modo que tenho de tentar melhor expressar o
que sou é por meio da escrita literária.

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