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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ALINE PASQUOTO PERISSINOTTO

SENSAÇÕES VIAJANTES: A América para Ronald de


Carvalho e Albert Camus

Guarulhos
2017
ALINE PASQUOTO PERISSINOTTO

SENSAÇÕES VIAJANTES: A América para Ronald de


Carvalho e Albert Camus

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Letras.

Orientadora: Prof.ª Drª Mirhiane Mendes de Abreu

Guarulhos
2017
Perissinotto, Aline Pasquoto.

Sensações Viajantes: A América para Ronald de Carvalho e Albert


Camus. – Guarulhos, 2017.

103 f.

Dissertação de mestrado (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de


São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em Letras, 2017.

Orientadora: Prof.ª Dr. ª Mirhiane Mendes de Abreu.

Título em inglês: Traveling Sensations: America for Ronald de Carvalho


and Albert Camus.
1. Albert Camus. 2. Ronald de Carvalho. 3. Viagem. 4. América. I. Título
ALINE PASQUOTO PERISSINOTTO

SENSAÇÕES VIAJANTES: A América para Ronald de


Carvalho e Albert Camus

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Letras.

Orientadora: Prof.ª Drª Mirhiane Mendes de Abreu

Aprovado em: __/__/__

Prof.ª Drª. Mirhiane Mendes de Abreu


Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP)

Profª. Drª. Annie Gisele Fernandes (FFLCH/USP)


Universidade de São Paulo

Profª. Drª. Ana Cláudia Romano Ribeiro


Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP)

Suplente:

Profª. Drª. Cristiane Rodrigues de Souza


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS – Três Lagoas/IEB-USP)
Aos meus avós Geraldo e Nair por me ensinarem as
simplicidades da vida.

A minha mãe Sandra por me ensinar a lutar sempre.

A minha irmã Amanda pelos bons conselhos.

Ao Breno por nunca me deixar desistir com seus


exemplos e amor.
AGRADECIMENTOS

Agradeço às pessoas que se colocaram ao meu lado durante esta dura trajetória.
Agradeço minha orientadora Mirhiane Mendes de Abreu pela amizade, carinho e
por me acolher. Especialmente, por me presentear com Ronald de Carvalho.
Agradeço à banca de qualificação. Ao professor Antônio Dimas por sua imensa
atenção e leitura minuciosa, que apontou detalhes importantes e essenciais para a
pesquisa. À professora Lígia, que me acompanhou durante toda essa trajetória, pela
atenção e comentários pertinentes que puderam engrandecer o trabalho.
Às professoras Annie Gisele Fernandes e Ana Cláudia Romano Ribeiro que
aceitaram ler gentilmente meu trabalho para a banca de defesa do mestrado.
Ao programa e à secretaria de pós-graduação em Letras da UNIFESP. Em
especial, à professora Leila Aguiar por seu apoio.
À Ariana por seu companheirismo, conversas e conselhos durante as viagens
para Guarulhos.
Aos meus colegas de turma que compartilharam esse momento comigo: André,
Giovana, Joyce, Jacqueline, especialmente pelas acolhidas em sua casa, e Wellington de
Almeida.
Aos meus amigos de vida: Mariana, Natália, Renan, Carlos, Dani, Leonardo e
Stela.
Ao meu pai Oilson.
Aos meus avós Geraldo e Nair pelo amor e simplicidade na vida.
À minha mãe Sandra, inspiração para os momentos mais difíceis, por me apoiar
independente da circunstância.
À minha irmã Amanda por seu amor e confiança.
Ao Breno, primeiramente, por me incentivar a prestar o processo seletivo.
Sempre por seu amor, apoio, paciência, companheirismo, broncas, conselhos, fatores
que me guiaram, ensinaram e nunca me deixaram desistir da vida acadêmica. Obrigada,
por estar sempre comigo, companheiro de uma vida toda.
Aos meus alunos durante esses anos da Etec Prof. Dr. José Dagnoni,
especialmente os formandos do ano de 2016, pela admiração, paciência e a amizade de
sempre.
O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus


silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um
formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus
silêncios.

Manoel de Barros
RESUMO

O presente trabalho tem como intuito o estudo comparativo das obras Diário de
Viagem, Albert Camus, publicada em 1978, referente à viagem do autor à América do
Norte em 1946 e à América do Sul, 1949; e Toda a América, Ronald de Carvalho, obra
de poemas publicada em 1926, referente à viagem do autor pela América nos anos de
1923 e 1924. Apesar de Camus apresentar um diário de bordo e Ronald um livro de
poemas, as sensações - consequências do deslocamento físico - trazem a necessidade de
apontar as particularidades dos momentos. Os relatos dizem respeito às viagens
realizadas, o modo como encararam o deslocamento físico, o choque cultural e as
opiniões sobre os diferentes acontecimentos. Assim, a invenção poética, reconhecida em
forma de diário ou de poema, pode ser ocasião para múltiplas visões que uma mesma
paisagem possa oferecer à subjetividade, esta também em trânsito. Diante de tantos
aspectos em comum, mas com suas singularidades, pretende-se nesta dissertação
apresentar alguns elementos de análise comparativa, pois são obras literárias com
sensações e impressões vividas durante a viagem, uma construção subjetiva para cada
autor.

Palavras-chave: Ronald de Carvalho. Albert Camus. Viagem. Poesia. Diário.


RÉSUMÉ

Ce travail a comme intention étudier comparativement les œuvres Journaux de Voyage,


Albert Camus, publiée en 1978, rélative au voyage de l'auteur en Amérique du Nord,
1946 et en Amérique du Sud, en 1949; et Toda a América, de Ronald de Carvalho,
œuvre de poésies publiée en 1926, rélative au voyage de l'auteur pour l'Amérique dans
les années 1923 et 1924. Quoique Camus présente son œuvre comme un journal de bord
et Ronald, comme un livre de poésies, les sensations - conséquences du déplacement
physique - ils provoquent le besoin de montrer les particularités des moments. Les
rapports concernent les voyages accomplis, la façon dont les auteurs ont fait face au
déplacement physique, le choc culturel et les avis sur de différents événements. Ainsi,
l'invention poétique, reconnue dans le journal ou dans la poésie, peut être l'occasion
pour des visions multiples qu'un même paysage peut offrir à la subjectivité, celle-ci
aussi au transit. Devant tant d'aspects en commun, mais avec leurs singularités, dans
cette dissertation présenter quelques éléments d'analyse comparative, parce que sont
œuvres littéraires avec sensations et impressions vécues pandent le voyage, une
construction subjective pour chaque auteur.
Mots-clés: Ronald de Carvalho. Albert Camus. Voyage. Poésie. Journal.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1: A PERCEPÇÃO DA AMERICANIDADE EM RONALD DE


CARVALHO ................................................................................................................ 19

1.1. Aspectos de Ronald viajante: a obra resultado da viagem ..................................... 23


1.2. Impressões e sensações da América ....................................................................... 33

CAPÍTULO 2: A PERCEPÇÃO DO BRASIL EM ALBERT CAMUS ................. 48

2.1. Camus viajante: o diário de bordo .......................................................................... 56


2.2. Percepção e sensibilidade da América .................................................................... 64
2.2.1. A mise en abyme ........................................................................................... 65
2.2.2. Algumas anotações ....................................................................................... 69
2.2.3. Cultura e religião .......................................................................................... 72
2.2.4. Anotações finais ........................................................................................... 76

CAPÍTULO 3: CONFLUÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS: A AMÉRICA E A


PERSPECTIVA DOS DOIS VIAJANTE S............................................................... 78

3.1. Uma América, duas obras ....................................................................................... 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 96

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 100


11

INTRODUÇÃO

Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um


meio, não um fim.1

A principal dificuldade deu-se no início de composição do projeto: como


aproximar a análise de duas obras a princípio tão distantes? De um lado uma obra de
poemas escrita durante a viagem do modernista brasileiro Ronald de Carvalho pela
América e publicada em 1926. De outro lado, um diário de viagem composto pelo
filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus durante suas viagens pela América do
Norte e América do Sul, escrito no fim da década de 40 e publicado postumamente 38
anos depois. A intenção era elaborar uma dissertação que apresentasse um estudo
comparativo entre elas.
A aproximação foi possível por conta do termo viagem, visto que ambas as
obras são frutos de um deslocamento físico. Não apenas isso, os dois autores
percorreram um mesmo território: o continente americano. Então, eram obras da viagem
pela a América. A distância temporal entre essas viagens era de quase 25 anos, o que
determinava circunstância peculiar a cada espaço-tempo das respectivas viagens. Ainda,
do ato de viajar, surgiu que talvez os autores também possuíssem um mesmo perfil de
viajante, afinal intencionavam conhecer e desbravar durante o périplo. Sendo assim, a
comparação dessas obras foi apenas o meio de construção desta análise, já que
procuramos enfatizar as riquezas que cada uma das narrativas carrega à sua maneira,
mas, ao mesmo tempo, tencionamos apontar semelhanças entre elas.
Esta dissertação tem o intuito do estudo comparativo entre Diário de Viagem
(1978), de Albert Camus (1913-1961) e Toda a América (1926), de Ronald de Carvalho
(1893-1935). A análise tem como ponto de partida três elementos que aproximam as
obras: a viagem; deslocamento – entende-se aqui tanto o físico como o psicológico – e
a impressão levantada pelos autores em suas viagens. Tais elementos construirão o
parâmetro comparativo entre as obras. Todavia, há uma força-motriz que origina os
outros dois componentes. Na análise em andamento, o conceito de viagem é primordial
porque é no deslocamento que as obras são construídas e é também a partir do ato de

1
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4.ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ática, 2006.
12

estar em movimento que se justifica a aproximação realizada neste trabalho. Outra


similaridade se dá no espaço por onde os textos se movimentam: a América.
Para a análise de Toda a América utilizou-se a primeira edição do livro de 1926,
com a intenção de preservar a disposição e a divisão entre as sessões que os poemas
aparecem no original. Vale ressaltar que a princípio utilizou-se a obra original em
francês Journaux de Voyage, mas, por já haver uma tradução brasileira do livro,
decidiu-se pelo cerrado cotejo desta versão em língua portuguesa traduzida sob a
responsabilidade de Valerie Rumjanek Chaves. O livro como um todo estará presente na
análise, uma vez que a Nota Sumária à Edição Brasileira2 foi utilizada para explicar
pessoas, acontecimentos e algumas grafias que Camus fez ao seu modo e se preservou
com a tradução. A Introdução3 de Roger Quilliot também foi essencial para o estudo,
pois há nela informações esclarecedoras que compõem a análise.
Diante do tema viagem, duas bibliografias mostraram-se centrais e serviram
tanto para uma análise da obra de Ronald de Carvalho quanto para a obra de Albert
Camus. Utilizou-se a ideia de Mirhiane Mendes de Abreu exposta em seu artigo
Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América, em que a autora toma por
empréstimo a definição desse conceito de viagem de Maria Alzira Seixo4, que nos cabe
perfeitamente nesta análise e que se movimenta através dos deslocamentos – físico e
psicológico – e leva não somente até as impressões do viajante, mas também a um
reconhecimento de si. Mesmo porque nesse tipo de viagem sobressai o ver e o conhecer
o desconhecido, estabelecendo assim um reconhecimento das próprias sensações diante
da diferença.
Para catalogar esse tipo de viajante, encontra-se uma definição em Fernando
Cristóvão em Para uma Teoria da Literatura de Viagens, artigo publicado em 2002.5 O
autor apresenta cinco tipos de viajantes dos quais o que nos interessa particularmente é
o quarto tipo apresentado: o viajante-erudito. É a viagem realizada com o intuito de
crescimento do conhecimento, seja o diplomata ou aquele intelectual que a realiza como

2
Nota Sumária à edição brasileira. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
3
QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.11-15.
4
SEIXO, 1998, p. 25: Apud: ABREU, Mendes Mirhiane. Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda
a América. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 2, p. 69-77, abr./jun. 2011.
5
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
13

serviço. Tal perfil pode ser aproximado de cada um dos autores estudados. Ronald de
Carvalho é o modernista, pan-americanista que realiza sua viagem a serviço da
diplomacia, e dela extrai matéria-prima para a composição poética. Albert Camus é o
filósofo do Absurdo e da Revolta, realiza sua viagem à América do Sul como
conferencista e conhecido intelectual francês, com a finalidade de propagar a nova
literatura francesa.
A dissertação estruturou-se em três capítulos. No primeiro, intitulado A
percepção da americanidade em Ronald de Carvalho buscamos aprofundar a obra do
autor brasileiro a partir de dois objetivos: o primeiro é a análise dos ideais de exaltação
existentes na obra, bem como o perfil modernista do autor. Poemas como Brasil,
Advertência e Toda América foram analisados sob esse prisma, pois coadunam com o
próprio objetivo ideológico de Ronald de Carvalho: o pan-americanismo, além de uma
consolidação do perfil do poeta americano definido pelo escritor. Como segundo
propósito, uma análise mais estrutural do texto: as impressões diante dos locais nos
quais o sujeito lírico constrói seus poemas. Essas impressões são reflexo de um deslocar
físico que procurou extrair suas sensações diante do desconhecido, sempre em um
movimento eu/outro que volta para o reconhecimento de si.
Ronald de Carvalho apresenta em sua obra poemas, nos quais o eu-lírico
expressa suas impressões pelo lugar por que passa, particularidades que valem a pena
pela transformação poética. Na “Advertência”, o eu-poético convida o “Europeu” a
conhecer o Continente Americano e suas maravilhas. Dessa forma, veem-se os ideais de
exaltação daquilo que lhe era próprio, devido a sua condição modernista: o pan-
americanismo, em que o autor em conformidade com uma das muitas facetas do
programa modernista, enfatiza a necessidade de voltar-se para o grande problema
americano, qual seja, ver o continente como um todo, suas características e propriedades
e deixar de lado a influência europeia.
Entende-se aqui a obra Toda a América como uma resposta individual do autor a
esse projeto coletivo modernista, visto que há nela um grande empenho em exaltar todo
o continente e os tipos sociais nele presentes. O livro resulta de uma série de viagens do
autor ao continente americano, principalmente o México, lugares que percorreu pelo
serviço diplomático. A participação oficial do autor serviu-lhe como matéria-prima para
reflexão sobre a brasilidade em face do mundo e sobre a própria matéria poética.
Entende-se como motivo de investigação essa exaltação do continente, como a América
é colocada para o autor e quais as sensações viajantes diante dela. No entanto, há uma
14

especificidade comparativa: como o território brasileiro é construído por cada um dos


autores, o choque de visão neles presente está no que confere à construção da imagem
de um Brasil para cada um dos escritores.
Para a compreensão de Toda a América, abordamos André Botelho em O Brasil
e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina intelectual6 com o intuito de entender
Ronald de Carvalho diplomata e modernista. Para a análise, tentamos estabelecer uma
relação entre o Ronald de Carvalho intelectual e ensaísta e o autor de poemas, ou seja,
como sua posição e ideologia estão presentes nessa criação poética. Como complemento
desse pensamento utilizamos Alfredo Bosi com seu ensaio Moderno e Modernista na
Literatura Brasileira7 para definir o ângulo de visão dos próprios intelectuais daquele
movimento fervoroso, que se deu início com o marco histórico a Semana de Arte
Moderna de 22. Compreendeu-se que o autor brasileiro dialogava com essa intenção
modernista: a busca e conhecimento do próprio território brasileiro, que Ronald de
Carvalho apresenta como exaltação do Brasil, exaltação e enumeração caótica das
diferentes regiões do território nacional, bem como os diferentes tipos de brasileiros.
Na segunda parte do capítulo, apresenta-se o entendimento e análise das
perspectivas, sensações e impressões do eu-lírico na poesia de Toda a América. Ainda
para a construção de identificação diante do outro, discutiu-se a ideia de O Sujeito
Lírico fora de si de Michel Collot8. Na obra, há uma expressão poética relacionada com
o externo (locais pelos quais o eu-lírico passa), sendo assim, as construções da poesia se
dão de maneira que o sujeito lírico encontra suas sensações e as reconhece sempre em
um espaço externo a ele mesmo. Por isso, uma poesia em que o sujeito poético sempre
se reconhece no desconhecido, de modo que possa expressar suas próprias sensações.
Desse fenômeno, tem-se a tríade eu/outro/que volta para o reconhecimento de si. E por
fim, a análise da presença de características épicas na obra. Dominique Combe em seu
9
artigo “L‟épopée à l‟épopée moderne” apresenta que a poesia moderna pode assumir
alguns aspectos de um elo épico perdido. Em Toda a América há uma matéria épica

6
BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC,
2005. 256p.
7
BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In: Céu, inferno. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2003. p. 217.
8
COLLOT. Michel. O sujeito lírico fora de si. Tradução de Alberto Pucheu. In: Revista Terceira
Margem, ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. pp. 165-177.
9
COMBE, Dominique. “L‟épopée à l‟épopée moderne”. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida (Org.).
Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
p.336.
15

daquele mundo antigo, o que leva a um olhar atento para as diversas representações do
povo brasileiro ou mesmo uma presença plural dos diversos locais da América.
No segundo capítulo intitulado A percepção do Brasil em Albert Camus,
apresentamos também, de maneira mais ampla, os ideais de absurdo e revolta de Albert
Camus, como essa teoria estava imbricada em seu modo de ver o mundo e como há o
reflexo dela diante da cultura brasileira. Talvez, decorra daí o entendimento para muitas
das posições que o autor toma no Brasil. Segue-se a isto uma análise estrutural do diário
e os aspectos resultantes dele: como as sensações diante do desconhecido convergem
para o estado de espírito do autor. Além dessas sensações, vemos também a curiosidade
para com uma cultura que não é sua e a forte presença de situações que o agradam e
também o incomodam, de maneira que pode-se dizer que há uma diversidade e
hibridismo em seu diário.
Os principais temas das anotações de viagem de Camus são a curiosidade dele
para com a cultura brasileira, as inquietações em relação ao seu estado de saúde, bem
como as angústias e alegrias diante dos personagens ícones da nossa sociedade, com os
quais convive, como os modernistas Oswald de Andrade e Murilo Mendes. Desta
maneira, faz-se necessária uma análise da viagem do autor, como já dito, com recorte
específico quando ele passa pelo Brasil. Apresentaremos alguns relatos com o intuito de
analisar as impressões do diário de bordo de Camus, como o deslocar físico resultou em
um deslocar subjetivo e, ainda, como tais momentos influenciaram no sentir-se diante
de um solo brasileiro, como a imagem do país aparece para o leitor constituída e
carregada de uma perspectiva camusiana.
No tocante ao escritor francês, mostrou-se pertinente convocar aqui a Teoria do
Absurdo e da Revolta para se pensar a obra de viagem de Camus, principalmente a
maneira como o autor enxerga os fatos, já que muitas vezes sua posição parece estar
permeada desses pensamentos para isso, serão utilizados os ideais descritos por Camus
10
em O Mito de Sísifo e O homem revoltado11. A configuração de diário de bordo é
melhor entendida a partir das ideias de Maurice Blanchot em seu livro intitulado O livro
por vir, precisamente no capítulo O Diário íntimo e a Narrativa12; apesar de se tratar de
um diário de viagem, as anotações apresentam características do diário íntimo, além de
um pacto com o calendário, bem como o desejo de ter suas memórias preservadas.

10
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013.
11
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2011.
12
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270.
16

Sobre a perspectiva de Camus a respeito do território latino-americano, foi de


grande auxílio teórico o artigo de Jean Andreu intitulado Un rendez-vous manqué: le
voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949)13. A intenção e a posição do autor
diante da viagem aparecem esclarecidas no artigo, além de elucidar o desencontro que
se deu entre Camus e o continente sul-americano. Pelo gênero textual conter esse
aspecto híbrido, no qual cabe toda e qualquer anotação, olhar atentamente para a
composição de mise en abyme foi essencial. Para tanto, o texto que a explica é La Mise
en abyme imagée de Jean-Marc Limoges, no qual o autor, em uma breve elucidação do
significado do termo, diz que mise en abyme é a arte dentro da própria arte, podendo se
complicar, pois diferentes tipos de arte podem se misturar, como literatura e teatro. 14
Dialogando com essa forma complexa que as notas de viagem tomaram, há a
presença de Abdias do Nascimento que fundou o Teatro Experimental Negro (TEN) e
pediu a permissão para encenar Calígula. O mesmo tem contato com Camus e em
seguida escreve e publica suas impressões desse encontro. Esse artigo intitulado Na
gafieira com Camus15 foi publicado pela Folha de São Paulo e serviu para compor a
análise, já que pudemos mostrar tanto a versão de Camus quanto a de Abdias do
Nascimento, o que comprova a presença de mise en abyme: o teatro dentro do diário.
A literatura francesa sempre esteve presente na literatura brasileira. Por isso, o
diário apresenta um povo brasileiro, que recebe e tem contato com Camus, não só
grande conhecedor da literatura francesa, mas também propagador da cultura francesa.
Para entender essa relação, Leyla Perrone-Moisés nos explica em seu artigo Galofilia e
galofobia na cultura brasileira16 a importância da cultura francesa. Para a autora, a
cultura brasileira não pode ser compreendida sem entender, nela a influência da cultura
francesa na mesma.
Buscou-se a compreensão e análise das impressões do autor diante de
manifestações culturais e religiosas próprias do Brasil. Dentro desse quadro, a viagem
que realiza com Oswald de Andrade a Iguape a fim de conhecer as tradições religiosas
do local. Camus, desde o princípio do diário, mostra-se curioso com as manifestações
culturais consideradas próprias do Brasil e Oswald de Andrade demonstra para Camus

13
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuis cinq cents ans. pp. 79-97.
14
LIMOGES, J.-M. La Mise en abyme imagée. Textimage n°4, L‟image dans le récit, hiver 2012.
15
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29. out. 2016.
16
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. Gragoatá: Revista do Instituto
de Letras da UFF, Niterói, v.11, p.41-60, 2001, p. 61.
17

sua teoria sobre a antropofagia e o matriarcado. Para melhor compreensão desse


diálogo, Silviano Santiago afirma em A permanência do discurso de tradição no
modernismo17 a importância para o modernista buscar o futuro no retorno ao
matriarcado, ou seja, a importância do primitivo na evolução da sociedade brasileira. As
impressões e anotações do diário perdem força conforme o estado de saúde de Camus se
agrava, por fim, as anotações são curtas e apresentam forte melancolia, até o dia de sua
partida para a França.
Se os capítulos anteriores apresentavam uma análise isolada de cada uma das
obras, o terceiro capítulo pretende demonstrar no que as obras podem confluir e no que
podem divergir. Confluências e divergências: a América e a perspectiva dos dois
viajantes traz afirmações já consolidadas nos capítulos anteriores. O primeiro fato que
aproxima as obras é que as duas nascem desse ato de viajar, apesar de composição em
épocas distintas, as duas apresentam impressões extraídas do deslocar físico, são,
portanto, obras de viagem.
Diante disso, o pensamento analítico volta para a relação eu, outro e o
reconhecimento de si, evidenciando que há nas obras um eu-poético ou um escritor de
diário que desvenda o desconhecido. Desse modo, o outro é consequente a esse
movimento e o reconhecimento de si, diante desse desconhecido. A análise busca
compreender esse outro, no caso, o continente americano. Por isso, tencionou uma
busca analítica do território América nas duas obras. Enquanto Ronald de Carvalho a
exalta em sua obra de poemas, Camus a conhece aos pouco em seu diário de bordo.
Na presença de um mesmo espaço elencado pelas obras, a natureza obteve
destaque. Ronald de carvalho apresenta essa importância em seu livro O espelho de
Ariel18, no qual o autor reúne vários ensaios que apresentam a maioria de suas
formações ideológicas. Para ele, a natureza deve estabelecer a maneira de compor
poesia para o poeta brasileiro, ou seja, a natureza é vista como fonte de composição
poética. Tal relação pode ser comprovada por meio da análise dos ensaios e uma
compreensão da poesia de Toda a América.
A natureza também aparece para Albert Camus como meio de observação
exterior e compreensão de seu estado de espírito. Nessa mesma linha de pensamento, a
natureza se mostra como uma tentativa de compreensão da própria cultura brasileira. Os

17
SANTIAGO, S. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002. p.108-144.
18
CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1923.
18

três capítulos pretendem apresentar uma análise equilibrada dessas sensações viajantes,
que são compostas através de uma relação a partir do contato com o estranho, ainda não
conhecido, e como esse momento único revela impressões específicas de cada um dos
autores.
19

CAPÍTULO 1

A percepção da americanidade em Ronald de Carvalho

Dos escritos de Ronald de Carvalho destacam-se poemas, ensaios e crítica


literária, realizados entre os anos de formação em Direito (cursado na Faculdade Livre
de Ciências Jurídicas e Sociais, no Rio de Janeiro) até 1935, quando faleceu. Ronald de
Carvalho também estudou em Paris e, quando retornou ao Brasil, em 1914, assumiu o
cargo de diplomata no Itamaraty. Participou do movimento modernista brasileiro,
colaborando como diretor do primeiro número da revista Orpheu (1915), ao lado de
Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro.19
Enquanto partícipe do movimento modernista, Ronald de Carvalho também
atuou no modernismo brasileiro, tanto na Semana de Arte Moderna em 1922, como em
momentos mais polêmicos da construção do movimento. De suas obras, ressaltam-se
Luz Gloriosa (1913); Poemas e Sonetos (1919); Pequena História da Literatura
Brasileira (1919); Epigramas Irônicos e Sentimentais (1922) e Toda a
América (1926).20
Mesmo com participação significativa no movimento modernismo brasileiro,
Ronald de Carvalho não é um autor muito estudado no que concerne aos estudos
literários brasileiros e são poucos pesquisadores que o fazem, principalmente se
considerarmos sua publicação na época. Os poucos estudos sobre o autor estabelecem a
ligação enquanto modernista, diplomata e defensor de um pan-americanismo, como
observou André Botelho em O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina
intelectual. Conforme estudos a respeito do modernismo brasileiro e a respeito dos

19
ABREU, Mirhiane Mendes. Do ensaio à história literária: o percurso intelectual de Ronald de Carvalho.
Remate de Males, v. 27, p. 265-275, 2007. BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação,
modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005. 256p. BOTELHO, André. A Pequena história da
literatura brasileira. Provocação ao modernismo. Tempo Social revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2
pp. 135-161. Novembro de 2011.
20
ABREU, Mirhiane Mendes de. Modernismo Brasileiro e Mundo Ibérico em Ronald de Carvalho.
Tempo Brasileiro, v. 184, p. 257-280, 2011. ABREU, Mirhiane Mendes de. Tradição e autonomia na
perspectiva crítica de Ronald de Carvalho. Via Atlântica (USP), v. 14, p. 167-181, 2008. ABREU,
Mirhiane Mendes de. Do ensaio à história literária: o percurso intelectual de Ronald de Carvalho. Remate
de Males, v. 27, p. 265-275, 2007. BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e
rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005. 256p. PIRES, Antônio Donizeti. O poeta Ronald de Carvalho:
irônico e sentimental? Ciências e Letras (Porto Alegre), Porto Alegre, v. 39, n.39, p. 114-132, 2006.
20

intelectuais do período realizados por André Botelho, Ronald de Carvalho é visto com
menor significado dentre os modernistas brasileiros, seja por sua obra poética não ser
considerada formalmente inovadora o bastante para as perspectivas reputadas ao
momento. Além disso, parte da crítica especializada no período acentua São Paulo como
um locus prioritário das conduções do programa modernista e Ronald de Carvalho,
habitante do Rio de Janeiro, estaria fora desse circuito.21
Apesar de sua produção literária ter sido interrompida pela sua morte trágica em
1935, o estudo do seu pensamento pode trazer novos olhares para os anos em que atuou.
É por isso que aqui se faz uma reflexão sobre o que disse Antonio Dimas no ensaio A
encruzilhada do fim do século. Embora o autor não discuta sobre Ronald de Carvalho, o
que ele fala sobre o tempo que vai da Belle Époque às vanguardas, interessa para tal
reflexão. Diz o crítico sobre o período: “Viveu-se, é verdade, um momento de impasse,
mas dele germinaram opções decisivas que nortearam nossa produção cultural posterior.
”22. Ronald de Carvalho atuou em meio a esses impasses e tomou decisões poéticas e
intelectuais para consolidar uma sociedade literária, de acordo com o que sua época
esperava do homem de letras. Pensando nessas motivações de um conjunto de
intelectuais que buscavam símbolos da modernidade para o país por um contexto mais
amplo, mostra-se importante pensar a obra Toda a América.
Exaltar o continente americano é uma questão que relaciona os poemas de Toda
a América, como uma espécie de linha que costura os temas ali desenrolados. Esse
princípio é o eixo em torno do qual gravita o artigo escrito por Mirhiane Mendes de
Abreu, Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América. Segundo Abreu, o
ano de 1926 aponta para uma obra em coerência com os ideais modernistas daquele
período. Ronald de Carvalho estabeleceu um diálogo com as estéticas inovadoras do
momento, contribuindo com o conhecimento lírico do Brasil no exterior. Enfatizando a
análise na viagem ocorrida entre 1923 e 1924 pelo continente americano, o estudo
mostra como o deslocamento físico e sua consequente absorção sensorial e psicológica
foram ministrados liricamente em Toda a América, de Ronald de Carvalho e, por fim,
conclui que a produção poética existente neste livro: “inclui-se numa dinâmica mais

21
BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC,
2005. 256p.
22
DIMAS, Antonio. A encruzilhada do fim do século. In: PIZARRO, Ana. América Latina – Palavra,
Literatura e Cultura. Campinas: Unicamp, 1994, p. 536-574.
21

abrangente e simbólica, que assinala a compreensão sensorial do Brasil integrado à


americanidade. ”23
O livro Toda a América, é dividido em Advertência, Cartas e Jornal dos
Planaltos em que encontramos o poema homônimo Toda a América. O leitor estará
consciente de que o livro é construído durante a viagem de Ronald de Carvalho pela
América, portanto os países do continente estarão presentes em seus relatos. Além dessa
presença, há também referência ao projeto literário do autor, o qual defende que o poeta
americano se empenha em compreender não só os problemas do Brasil, mas também o
problema do continente americano como um todo, como afirma em Pequena História
da Literatura Brasileira (1919):

Uma arte direta, pura, enraizada profundamente na estrutura nacional,


uma arte que fixe todo o nosso tumulto de povo em gestação, eis o que
deve procurar o homem moderno do Brasil. Para isso, é mister que ele
estude não só os problemas brasileiros, mas o grande problema
americano. O erro primordial das nossas elites, até agora, foi aplicar
ao Brasil, artificialmente, a lição europeia. Estamos no momento da
lição americana. Chegamos, afinal, ao nosso momento.24

Diante de um movimento catalogado como o modernismo brasileiro, Ronald de


Carvalho se empenha para descrever os ideais intelectuais esperados para o momento.
Portanto, eles estariam baseados em um nacionalismo, o qual deveria ter os problemas
estudados. Ainda, sugere ampliar os estudos para o problema americano, sendo esse o
ponto crucial da afirmação, uma vez que os intelectuais devem voltar-se para a “lição
americana” aplicando-a em um contexto próprio e, desta forma, esquecendo-se da “lição
europeia”.
Fundamentado nesse pensamento, pode-se captar o grande esquema de Toda a
América: não só exaltar a nação, mas também consolidar seus pensamentos, esquemas
principais que movimentavam o panorama literário dessa primeira fase modernista, a
chamada de heroica ou, mais apropriadamente, de “primeiro tempo modernista”. No que
confere a obra é notório o deslocar físico da viagem e os sabores sensoriais daí
decorrentes. Além disso, o modo como o autor transforma este ato em reconhecimento
através do eu-poético do livro é singular, uma vez que os escritos oscilam entre
impressões pessoais, particulares, no que toca o íntimo (subjetividade) e este
23
ABREU, Mendes Mirhiane. Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 2, p. 69-77, abr./jun. 2011. p. 69.
24
CARVALHO, Ronald. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Briguiet & Cia.
Editores, 1968.
22

chamamento para o poeta lutar e representar todo esse pensamento no que concerne aos
ideais do autor de exaltação do Brasil e da América.
Em vista disso, quanto ao aspecto viagem, vemos que não há apenas um deslocar
físico, mas também um deslocar psicológico presente no livro. Desta maneira, são
observadas estruturas poéticas em que comparações, descrições e até a construção
imagética dos locais, em sua maioria, convergem para sensações próprias de um eu-
poético. Dessa forma, o autor passa a ser identificado através do outro: são os relatos
intimistas, cotidianos, próprios de cada lugar em que se encontra que constroem essa
identificação, como será mostrado mais adiante nas análises. O resultado seria um
projeto maior, já delimitado, a identificação de um poeta nacional, empenhado em
descrever todo o continente americano, principal fonte de recognição. É fundamental a
decodificação de tal fenômeno para entendimento total da obra estudada.
Diante desse fenômeno de reconhecimento de si diante do outro, o primeiro
poema inaugura a obra, a construção, através da comparação (Europa/América),
minuciosa e plural do que seria para o autor o continente Americano. Advertência tem
como objetivo em suas estrofes alertar o europeu das riquezas da América:

[...]
Europeu!
Nessa maré de massas informes, onde as
raças e as línguas se dissolvem,
o nosso espirito áspero e ingênuo flutua
sobre as coisas,
sobre todas as coisas divinamente rudes,
onde boia a luz selvagem do dia ame-
ricano!25

O movimento é o do diálogo, o sujeito poético que dialoga com o Europeu a fim


de construir, assim, um panorama característico da América. No poema há a
caracterização a partir de configurações que fazem o leitor construir mentalmente uma
imagem que aponte essa diferença entre o europeu e o americano. A partir dessa
imagem temos o desfecho, a exaltação do que é, da perspectiva do poema, tipicamente o

25
CARVALHO, Ronald. Toda a América. 1. ed. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello&Cia, 1926. p. 15.
Todas as citações do livro estão observadas a partir da primeira edição com a ortografia atualizada
segundo as normas atuais.
23

selvagem americano. O autor faz esse mesmo movimento em outros poemas, em alguns
títulos ele apenas descreve o local em que está, em outros ele constrói a partir da
descrição ou comparação uma exaltação da América, do homem do futuro e do poeta
americano.
Neste contexto e a partir de tal repertório, há a necessidade de um olhar atento
para o aspecto da construção de um Brasil sob o prisma de um viajante, intelectual,
diplomata, convencido de uma teoria de exaltação ao continente americano, com maior
atenção para o próprio país e como ele vai se configurar nos poemas que constituem a
obra. É indispensável um foco específico na viagem e como o autor a relaciona na
construção de uma identidade que lhe seja própria, de sua pátria ou continente, uma vez
que a obra tem sua arquitetura estabelecida a partir de um deslocar físico e, por isso, nos
traz consequentes elaborações poéticas frutos desse deslocar.

1.1. Aspectos de Ronald viajante: a obra resultado da viagem

Para a compreensão desta análise, é necessário entender a viagem para o


escritor. Ronald de Carvalho representa um intelectual modernista que parte em viagem
em busca do outro, dos elementos que configuram o continente americano e que vão
compor coerentemente o livro de poemas. Sendo assim, pode-se pensar para a análise da
obra alguns aspectos que Maria Alzira Seixo problematiza em Poéticas da viagem na
literatura. Segundo a autora:

(...) que poderíamos reunir nas seguintes categorias respeitantes a


problemática da viagem, neste seu esboço de hibridez orgânica que
estamos a delinear: o corpo, o desejo, o outro, a visibilidade, o
encontro, o saber e as hipóteses de retorno, para quem chegou a partir
e alcançou o termo.26

Elementos que podem configurar a hibridez do termo viagem são essenciais para
sua configuração. O viajante é o que se desloca em busca desses elementos, que serão
ou não primordiais para expressar impressões e sensações. A viagem para Ronald de
Carvalho baseia-se em “o outro”; “a visibilidade”, “o encontro” e “o saber”, termos
facilmente notados na forma de linguagem poética, configurada em seus poemas.

Diante dessa linha de pensamento, absorve-se neste trabalho a ideia que


Mirhiane Mendes de Abreu, em seu artigo Sensações e deslocamentos – a viagem em

26
SEIXO, Maria Alzira. Poéticas da viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.p. 25.
24

Toda a América toma por empréstimo de Maria Alzira Seixo. A definição desse
conceito de viagem, que nos cabe perfeitamente nesta análise, é aquela que se
movimenta através do deslocar físico e do psicológico; e leva até as impressões do
viajante e até mesmo a um reconhecimento de si:

Empregando raciocínio formulado por Maria Alzira Seixo em


Poéticas da Viagem na literatura, aqui se delineia o tema da viagem
como processo de constituição da identidade, alcançada em relação ao
outro. No entendimento da estudiosa, os termos dominantes em obras
dessa natureza são “visibilidade e saber”, em decorrência dos quais o
conhecimento do mundo recairia sobre o conhecimento de si.27

No que diz respeito ao reconhecimento de si como processo de


constituição da identidade, esse fenômeno encontra-se recorrente no livro Toda a
América, notadamente nos poemas Advertência, Brasil e no homônimo Toda a
América, bem como nos que apontam as impressões particulares de um eu-poético em
movimento físico e psicológico constante, por exemplo, o sentimento de exílio, pois se
encontra distante do seu lugar, o sentimento de visibilidade e reconhecimento da
América, quando pode vê-la do alto dos pampas etc. A intenção é sempre uma
exposição dos locais (Los Angeles, Guadalajara, Buenos Aires, dentre outros), com uma
busca de identificação dos espaços físicos (a exemplo de pampas, céus e ilhas), os quais
o eu-poético se propõe a descrever, portanto, revelando ao leitor o novo conhecimento
de um mundo exterior. Em contrapartida, deparamos com poemas que apontam também
uma notação íntima diante desse mundo até pouco desconhecido (como sensação de
exílio, encantamento e saudade).
Toda a América é uma obra que tem por eixo diretor o deslocar físico e a
exaltação do homem que habita os espaços percorridos. Dizendo de outro modo, o ato
de viajar é a força motriz da composição poética que se configura também por enaltecer
o homem americano, o “homem do futuro”. No poema Toda a América, podemos notar
o que seria o ideal de poeta para Ronald de Carvalho:

[...]
Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos e

27
ABREU, Mendes Mirhiane. Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 2, p. 75, abr./jun. 2011.
25

latinos,
teus poetas devem ter as mãos sujas de
terra, de seiva e limo,
as mãos da criação!28

Da perspectiva do poema, os poetas da América deveriam ser aqueles não


representantes de uma poesia regida por moldes clássicos, conforme os gregos e latinos,
ou seja, uma poesia totalmente baseada em uma tradição clássica, estilo recorrente e
exaltado entre os europeus. A poesia do continente americano deveria ser aquela que
valorizasse suas características, a sua criação deve ser a partir de seus elementos
próprios, o poeta deve então: “ter as mãos sujas de terra, de seiva e limo”. Por isso, a
obra elenca tantos aspectos que sejam considerados particulares aos habitantes da
América. No entanto, não podemos deixar de pensar que essa característica é na verdade
consequência de uma viagem realizada pelo autor enquanto exercia a diplomacia. Assim
sendo, há uma verdadeira pesquisa e exposição das peculiaridades do continente
exaltadas pelo ideal de poeta americano.
Para catalogar esse tipo de viajante, temos uma definição em Fernando
Cristóvão em Para uma Teoria da Literatura de Viagens29, em artigo publicado em
2002. O autor apresenta cinco tipos de viajantes: o primeiro tipo é o peregrino, que em
grupo busca o divino; o segundo é o viajante comerciante que através de suas viagens
entra em contato com diferentes culturas; o terceiro é o viajante com o intuito de
expansão; o quarto tipo é o viajante-erudito e o quinto é o viajante imaginário.30
O que nos interessa, particularmente, é o quarto tipo apresentado: o viajante-
erudito. A viagem, nesse caso, é realizada com o intuito de crescimento do
conhecimento, seja o diplomata, seja o intelectual que a realiza como serviço. Por isso,
o perfil desse viajante é primordial, apresenta quase sempre uma busca constante de
cultura geral ou aspectos que sejam próprios dos locais, o que reflete na construção
imagética daquilo que vê. Para Cristóvão:

28
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 132.
29
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
30
Conforme as designações de Fernando Cristóvão os cinco tipos de viagens e viajantes são: 1) a
peregrinação e o peregrino; 2) as viagens de comércio e o comerciante; 3) as viagens de expansão e o
explorador; 4) a viagem de erudição ou de serviço e o estudioso ou o diplomata; 5) as viagens
imaginárias.
26

São viagens em que a aquisição de conhecimentos é a preocupação


maior, quer se trate de conhecimentos científicos, ou de cultura geral,
capazes de provocarem novas ideias e hipóteses.
E quanto aos viajantes, são diferentes dos outros. Não têm, em geral,
espírito de aventura, nem realizam actos de coragem dignos de serem
recordados. São príncipes, preceptores, artistas, eclesiásticos,
bolseiros de diversos tipos, intelectuais críticos que não se acomodam
à estreiteza política, cultural, religiosa ou artística dos seus países,
desejosos de encontrar fora de fronteiras o que lhes falta dentro. Por
meio de escritos irão contribuir para a renovação cultural dos seus
concidadãos.31

Dentre os tipos de viajantes catalogados por Cristóvão, o perfil de Ronald de


Carvalho se assenta no viajante-erudito. Diplomata e itinerante, através do périplo
imposto pelo exercício da profissão, adquiriu conhecimento transformado em fatura
lírica da obra Toda a América. No entanto, compreendemos a forte ligação entre o
diplomata e o escritor, no que confere suas principais ideologias. Além dessas
características, conforme afirma André Botelho, em Circulação de ideias e construção
nacional: Ronald de Carvalho no Itamaraty, há uma correlação intensificada entre o
exercício da diplomacia e o literato Ronald de Carvalho, uma vez que refletirá os ideais
americanistas estabelecidos em uma política por Rio Branco32, além de Carvalho outros
intelectuais também foram influenciados por um “americanismo diplomático”, são eles
Joaquim Nabuco, Manuel de Oliveira Lima e Oliveira Lima.
Interessa para reflexão a viagem realizada pelo escritor, como dela resulta a obra
estudada, um conjunto de poemas que têm como principal tema os locais nos quais o
viajante está, e as sensações extraídas dessa experiência. Mesmo porque a sua busca
pelo desconhecido comunga com seu exercício de diplomata, não à toa, conforme
afirma Ricardo de Souza Carvalho sobre a trajetória diplomática do autor, em seu artigo
Ronald de Carvalho: um moderno acadêmico:

No espaço de dez anos, depois de ter servido na França e na Holanda,


alcançaria o posto de Ministro Plenipotenciário de segunda classe.
Participava de uma tradição iniciada no século XIX e que prosseguiria
século XX adentro: homens de letras que buscavam a diplomacia não
apenas como uma forma de inserção social e econômica, mas também

31
CRISTÓVÃO, Fernando. Op. Cit. p. 49.
32
BOTELHO, A. Circulação de idéias e construção nacional: Ronald de Carvalho no Itamaraty.
Estudos Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 35, p. 69-97, 2005.
27

como oportunidade de viajar para o Exterior, tendo acesso a diferentes


culturas.33

Sabemos que a obra estudada é construída pós-viagem realizada por Ronald de


Carvalho e que alguns países, além do próprio continente, serão protagonistas para a
composição. Portanto, entende-se de modo analítico que enquanto diplomata, as viagens
foram realizadas com uma intenção de conhecedor de outros espaços físicos e diferentes
culturas. Assim sendo, o eu-poético preza a todo o momento colher matéria-prima para
a sua composição a exemplo o poema abaixo:

México (D. F.)

A índia que passa todas as


manhãs, sob a minha ja-
nela,
a índia da Avenida Juarez,
como é feliz!

Leva nas mãos a brasa dos sarapes,


na cabeça o rebozo de seda "de una niña
muy bien"
nos pés as sandálias de tacões duros, para
riscar o jarabe,
e na boca a última canção tapatia.

índia da Avenida Juarez, toda florida de


ritmos,
tu és o México, ou Deus não existe!

Agosto. 1923.34

No poema México o sujeito lírico apresenta ao leitor uma índia nativa do local
em que está. A partir da caracterização dessa personagem o interlocutor do poema pode
recriar a imagem que o eu-lírico pretendeu reconstruir. Portanto, temos a posição de um
observador que toma como matéria-prima para a composição aquilo que vê e tenta
passar para o leitor suas sensações diante desse fato inusitado, ainda, poderíamos dizer
que a índia vista, observada e minuciosamente descrita seria uma parte representativa de
todo o território Mexicano, ou seja, o reconhecimento do local: “índia da Avenida
Juarez, toda florida de ritmos,/tu és o México, ou Deus não existe!”. Esse fenômeno é

33
CARVALHO, Ricardo de Souza. Ronald de Carvalho: um moderno acadêmico. Graphos. João Pessoa,
v. 8, n. 1, Jan./Jul./2006. p. 75.
34
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 101-102.
28

acentuado pelo artigo definido „o‟, pois, ao utilizá-lo antes do nome México, há a
demarcação entre o território e a índia da Avenida Juarez.
Além disso, o outro se faz presente na expressão das sensações, pois o
reconhecimento do local também faz com que o eu-poético apresente suas impressões
transformadas em linguagem poética. A mistura dessas diferentes sensações caracteriza
a própria índia, mas que também apresentam elementos que estão relacionados aos
sentidos humanos, o tato, a visão e a audição. São, especificamente, a “brasa dos
sarapes”; “o rebozo de seda”; “tacões duros”; a “canção tapatia”; a “toda florida de
ritmos”. Pequenas partes, apresentadas aos poucos, que vão construir metonimicamente
a figura da índia, esta que também é a índia da Avenida Juarez e consequentemente é
ainda todo o México. Portanto, o reconhecimento do outro que resulta em sensações
particulares desse eu-lírico.
Pode-se entender que Ronald de Carvalho, além de exaltar seu país, como seu
continente, pleno de um projeto modernista, também perpassa suas impressões que
chegam ao leitor sob outro prisma: o de um eu-lírico, eu-poético, que se vê na
necessidade de apontar relatos cotidianos, momentos subjetivos que comovem,
impressões particulares que vão construir cada lugar a maneira de ver do autor. Desta
maneira, os poemas passam a construir uma visão grandiosa do continente e do país.
Por conseguinte, entende-se deste modo que o projeto do autor está intrinsecamente
ligado às suas impressões mais pessoais e vice-versa, já que uma constitui a outra. Por
exemplo, na primeira parte do poema Toda a América temos:

1
Do alto dos Andes, América,
do alto das sierras me-
xicanas,
de Laguna del Inca, de
Punta de Ias Vacas, de Orizaba e
Xochimilco,

eu te vejo deitada e intacta no claro


músculo dos teus cristais, no ímpeto
das tuas águas, no frêmito fresco das
tuas folhagens luminosas.
[...]35

35
Ibidem. p. 109-110.
29

Esse poema é extenso e possui cinco subdivisões. Na primeira parte, nos versos
iniciais, podemos ver a exposição de alguns locais pelos quais o eu-lírico passou. Mais
uma vez temos o sujeito observador que vê do alto as características da América. Na
estrofe seguinte há o início do detalhamento do continente americano, no entanto, esse
movimento se dá a partir da primeira pessoa: “eu te vejo”. As impressões mais íntimas
diante o desconhecido serão aquelas que vão caracterizá-lo com a finalidade até mesmo
de exaltar a América.
Todavia, esses relatos têm, assim como os traços da composição épica, uma
particularidade de récit. O termo por si assume uma problemática relacionada a seu
conceito, afinal não se define simplesmente como narrativa. Por isso a definição cabida
é a de Jean-Yves Tadié: “Tout récit est une relation d‟événements, que l‟on raconte et
que l‟on relie.”36 Observa-se esse fenômeno na obra estudada, apesar dos poemas
assumirem uma arquitetura textual característica do gênero, apresentam fatos, relatos,
acontecimentos que apresentam características da narratividade, ou seja, fatos que estão
ligados entre si.
Os poemas exprimem uma narratividade, visto que há o decorrer de
acontecimentos, elementos de uma história acontecendo ou a construção de imagem
constante que absorve naturalmente os aspectos da narratividade. Nessa linha de
pensamento, Paula Cristina de Morais Cunha, em seu artigo Apontamentos teóricos
sobre Literatura de Viagens, conclui:

A compulsação de textos mais recentes deixa perceber que um dos


traços caracterizadores da literatura de viagens contemporânea se
relaciona com o cunho autobiográfico que o narrador-viajante
empresta ao relato, na medida em que a exibição da sua experiência
vivencial e subjetiva imprime um caráter particular ao récit.37

Portanto, apesar do descompasso cronológico, é possível tomar de empréstimo a


observação teórica sobre a literatura contemporânea para tentar compreender os
apontamentos modernistas de Ronald de Carvalho, porque esse choque com o novo faz
com que o eu-poético de Toda a América construa suas percepções: é o deslocar físico
que motiva os poemas, as sensações dele absorvidas que estarão presentes nessa obra
poética. É próprio desse intelectual dar aos poemas um aspecto de relatos, ou seja, a
narratividade se constitui por aquilo que viu pelo o que passou e esse será o tema de
36
TADIÉ, J.-Y. Le récit poétique. Paris: PUF, 1978. p.7.
37
CUNHA, P. C. M. Apontamentos teóricos sobre literatura de viagens. Caracol, v. 3, p. 153, 2012.
30

muitos arranjos poéticos presentes no livro. Por esta razão, os poemas intitulam-se com
os nomes dos locais físicos nos quais o sujeito lírico está, mas nem sempre os
substantivos próprios terão essa funcionalidade, a exemplo: “Advertência, Mercado de
Trindad – Ilha de Trindad, 1923; Noturno das Antilhas - Bordo do “Vandyck”;
Barbados – Ilha de Barbados, 1923; Broadway – New- York, 1923; Tonalá – Tonalá,
1923; Puente del Inca – Inca, 1924; entre outros”.
Para exaltar o continente americano, o autor precisa caracterizar, delimitar suas
particularidades, é a comparação entre o europeu e a América que define a
grandiosidade do continente americano, para que o europeu a entenda desta forma:

[...]
Europeu! Filho da obediência, da economia
e do bom-senso,
tu não sabes o que é ser Americano!
Ah! os tumultos do nosso sangue temperado
em saltos e disparadas sobre pampas,
savanas, planaltos, caatingas onde es-
touram boiadas tontas, onde estouram
batuques de cascos, tropel de patas, tor-
velinho de chifres!38

Em seu poema Advertência, comparativamente, o eu-lírico estabelece um


diálogo, já que primeiro, ao dirigir a palavra ao europeu e caracterizá-lo, bem como o
seu espaço, chama-o para conhecer as vantagens de pertencer ao continente americano:
“tumultos do nosso sangue temperado/ savanas, planaltos, caatingas”. Se a atenção
devida for tomada, percebemos a intenção de uso de palavras locais que não precisam
ser vistas com seu significado cerrado, mas com o intuito de enaltecer a sociedade do
continente americano, bem como sua produção literária. No entanto, há o uso de
palavras que caracterizam bem o que é próprio brasileiro, um vocabulário para exprimir
a cor local, segundo Regina Zilberman:

A cor local atesta o caráter nacional, e a manifestação desse afiança a


qualidade, mesmo quando falham os elementos composicionais.
Assim, não apenas significa possibilidade de ajuizar, mas também de
resgatar obras, incorporando-as à história da literatura, vale dizer, ao
cânone, na terminologia contemporânea.39

38
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 13-14.
39
ZILBERMAN, R. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura enquanto
campo de investigação. Revista Veredas, v. 19, p. 121-144, 2013.
31

A representação do caráter nacional é encontrada em praticamente toda a obra


analisada. O interessante é que esse movimento aparece inclusive com o intuito de
engrandecer também outras localidades, nas quais o eu-lírico estará presente. O modo
como o eu-lírico elenca a comparação caracteriza o europeu como “filho da obediência,
da economia e do bom senso” e o coloca em oposição ao “tumulto do nosso sangue
temperado”. Acrescente-se, ainda, toda uma exaltação da natureza, elemento que nos
traz enorme singularidade, peculiaridade e que com um mesmo intuito esteve presente
desde os escritos dos oitocentos, como no antológico Canção do Exílio, de Gonçalves
Dias.
Encontramos relatos dessa valorização da terra e sua explicação em um ensaio
de autoria do próprio Ronald de Carvalho intitulado As Vozes da Terra, em seu livro O
Espelho de Ariel:

Para exprimir o que somos, é mister uma série de requintes que um


ocidental da Europa não compreenderia facilmente. Estamos em
contato com um ambiente singular. O caráter da civilização que
vamos formando é, por enquanto, contraditório e especioso. Sua
complexidade, contudo, não lhe esconde a marca profunda, que é o
instinto da terra. Nossa arte, nosso pensamento, nossas maneiras,
nossos costumes estão intimamente ligados à terra em que pisamos.
Não somos e nem seremos nunca uma sociedade de salões, de intrigas
amáveis, de solertes disfarces. 40

O parágrafo acima define todo o pensamento encontrado na obra estudada, a


singularidade de uma composição que seja propriamente americana, distinta das
características europeias, como Carvalho afirma, de maneira clara. Uma composição
ligada à terra em que é construída, pois o europeu não entenderia essa singularidade,
uma vez que os espaços físicos de composição determinam características distintas.
Portanto, compreendemos as motivações de um poema advertindo toda a obra, no qual
encontraremos o diálogo entre o europeu e o americano: uma breve projeção de ideias já
notadas três anos antes no ensaio apresentado.
O autor brasileiro assume, desta forma, o papel de conhecedor, pesquisador
daquilo que deseja ideologicamente exaltar. Sua viagem pela América-hispânica, além

40
CARVALHO, Ronald de. As vozes da Terra. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário
do Brasil, 1923.p. 302.
32

do caráter oficial do diplomata, pode ser pensada como uma expressão internacionalista
de uma face do projeto modernista, pois, quis captar poeticamente a pluralidade de um
determinado momento. O poeta modernista, da geração de 1922, era aquele que
tencionava conhecer a sua história, era o intelectual que visava como projeto de uma
vanguarda propagar aquilo próprio de um Brasil, ainda desconhecido. Ronald de
Carvalho possui contornos próprios entre os modernistas de seu tempo, uma vez que em
seu propósito busca exaltar o continente americano, não à toa, exalta também o Brasil
em suas composições poéticas.
Configura assim, ao lado de escritores como Oswald de Andrade e Mário de
Andrade, o que Alfredo Bosi chama em seu ensaio Moderno e Modernista na Literatura
Brasileira de o “ângulo de visão” dos próprios intelectuais daquele movimento
fervoroso, para os quais o festejo da Semana de Arte Moderna de 22 teve papel
catalisador decisivo:

O ângulo de visão era o de intelectuais mais informados e mais


inquietos que se propunham desentranhar a poesia das origens, o
substrato selvagem de uma “raça”; e que desejavam intuir o modo de
ser brasileiro aquém da civilização, ou então surpreendê-lo na hora
fecunda do seu primeiro contato com o colonizador.41

Partindo dessa consideração, poderíamos elencar diversas obras do primeiro


momento modernista brasileiro que nos serviriam de exemplo de criação e pesquisa
histórica daquilo que é próprio do brasileiro, retomando o cunho ideológico com o
objetivo de valorizar e conhecer como tentaram aqueles intelectuais que fizeram parte
da produção literária dos oitocentos no Brasil. Mas, com o modernismo, há um
amadurecimento, um diálogo constante em busca daquilo que Bosi determinaria como
um “enorme mito proteico”.
Assim, a figura de Ronald de Carvalho, percebido como intelectual do seu
tempo, pode problematizar essa ideia. Sobre isso, André Botelho afirma que cultura
para ele assume um papel de política, já que a fundamentação ideológica daquela está
relacionada à nação, ou seja, cultura sintetizada seria a representação de valores que
André Botelho denomina historicamente compartilhados, aqueles “que formariam as
normas sociais compartilhadas, isto é, um tipo de ethos no qual estaria fundamentada a

41
BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In:______. Céu, inferno. São Paulo:
Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 217.
33

coesão de uma coletividade social como „nação‟. ”42. Por isso, uma atenção aos poemas
que exaltam a nação brasileira, o continente americano e o tipo e função do poeta que
seria considerado ideal pelo autor, elementos que constituem o conjunto de Toda a
América: a comprovação dos ideais de Ronald de Carvalho.
Portanto, é nessa perspectiva que caminha Ronald de Carvalho na constituição
da obra estudada. O autor sai em viagem como diplomata, mas enquanto poeta
modernista brasileiro busca comprovar seus ideais, que para o momento seriam uma
enfática confirmação de sua concepção de nação, na qual se encontra o homem do
futuro, do poeta brasileiro e uma exaltação daquilo que seria representação unificada do
continente americano.

1.2. Impressões e Sensações da América

No que confere à estrutura da obra, pode-se perceber que há a marcação dos


locais pelos quais o eu-lírico perpassa. Isso se faz presente nos títulos dos poemas,
como também as demarcações de local e data no fim de cada escrito. São, por exemplo,
Brasil, Nova York, Andes Chilenos, México, entre outros, que nos levam à compreensão
e análise do deslocar físico, dos espaços pelos quais transita, além de estabelecerem
uma relação com a divisão da obra e com o deslocar psicológico que resulta nas
sensações apresentadas nos poemas.
O livro é dividido em Advertência, Cartas e Jornal dos Planaltos. Logo após
Advertência, em que o eu-lírico estabelece um diálogo comparativo com o Europeu e o
convida a conhecer as maravilhas de ser Americano, exaltando desta forma o
continente, o autor apresenta Brasil, dedicado a Fernando Haroldo. Neste poema
consideravelmente longo, o eu-poético faz uma descrição minuciosa dos lugares,
paisagens, pessoas:
[...]
Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.
Todas as tuas conversas, pátria morena,
correm pelo ar. . .
a conversa dos fazendeiros nos cafezais,
a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
a conversa dos operários nos fornos de aço,
a conversa dos garimpeiros, peneirando as
bateias,
a conversa dos coronéis nas varandas das
roças...
42
BOTELHO, André. Op. Cit. p. 35.
34

Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora


de sol puro
palmas paradas
pedras polidas
claridades
brilhos
faíscas
cintilações

é o canto dos teus berços, Brasil, de todos


esses teus berços, onde dorme, com a
boca escorrendo leite, moreno, confiante,
o homem de amanhã!43

Com a intenção de todo o detalhamento que busca abranger os tipos


brasileiros, a construção se dá pelo uso de paralelismo presente no início dos versos: “a
conversa dos fazendeiros, /a conversa dos mineiros, /a conversa dos operários, /a
conversa dos garimpeiros, /a conversa dos coronéis”. Dessa maneira, a fim de
caracterizá-los por suas peculiaridades que se modificam dependendo do lugar onde se
encontram, os personagens definidos pelo eu-lírico, caminham para a pluralidade
(fazendeiros, mineiros, operários, garimpeiros e coronéis). Há nesse trecho uma espécie
de narratividade presente, o eu-poético ao detalhar os tipos brasileiros constrói uma
imagem, a partir dessa enumeração constante: “a conversa dos fazendeiros nos
cafezais,/a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,/a conversa dos operários nos
fornos de aço,/a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias,/a conversa dos
coronéis nas varandas das roças...”. O leitor pode tentar configurar em sua mente uma
imagem do que seria o brasileiro de forma múltipla e panorâmica, pois há para cada
uma das tipificações suas peculiaridades reconhecidas por uma atribuição cognitiva do
mesmo campo semântico. As características são, na verdade, estabelecidas por pares
binários correlacionados à repetição da palavra conversa: Fazendeiros/Cafezais;
Mineiros/Galerias de Ouro; Operários/Fornos de Aço; Garimpeiros/Bateias;
Coronéis/Varandas das roças.
Essa imagem apresenta-se de maneira crescente, com a aparição de elementos de
luminosidade: “Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro/ palmas
paradas/ pedras polidas/ claridades/ brilhos/ faíscas/ cintilações”, constrói, assim, uma
aparente tensão, através da gradação ao utilizar elementos próximos no sentido: “é o

43
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 24-26.
35

canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços”. Descobrimos nesse ponto o
motivo de toda a enumeração anterior dos tipos brasileiros, a intenção é a de demonstrar
os diferentes meios e homens brasileiros para enfim nos apresentar o de maior
significância entre os demais: “onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno,
confiante, /o homem de amanhã! ”. Essa composição se apresenta com o intuito de
demonstrar para o interlocutor o que seria o homem do futuro, do amanhã, ideal de
exaltação para o autor.
Este elemento converge para construir o homem do futuro, brasileiro com as
mais valiosas características desse povo, que será não apenas o homem brasileiro, mas o
homem de amanhã, figura representativa de um país visto à maneira modernista. O
homem de amanhã é o homem do futuro, civilizado, pronto para construção de um país
que para os modernistas era visto, como já dito, com uma organicidade presente. A
busca e a representação de uma emancipação cultural e produção própria literária.
Após uma breve observação sobre alguns poemas de Toda a América o livro
apresenta, em seguida, a sessão Cartas, parte esta que realmente desdobra-se em uma
leitura epistolar. Afinal, seus escritos apresentam uma estrutura de poemas. No entanto,
pode-se desmembrá-la para chegar à conclusão de que o autor os configura como cartas,
que inclusive são direcionados, dedicados, quase que endereçados a pessoas, uma vez
que sempre abre seus poemas com dedicatória e finaliza com a data. Portanto, essa
forma de compor seus poemas resulta em uma estrutura de “crônica de viagem” e
estrutura epistolar, segundo Mirhiane Mendes de Abreu:

Esses traços conferem ao conjunto do livro um ar de “crônica de


viagem”, além de, informalmente, conduzirem-no a uma estrutura
epistolar, por se referir à rede social do escritor. Assim, comparecem
os nomes de Fernando Haroldo, Felipe D‟Oliveira, Ribeiro Couto,
Mário de Andrade, Carlos Obregon Santacilia, Rodrigo Mello Franco
de Andrade, Paulo Silveira, Navarro da Costa, Agrippino Grieco,
Carlos Pellicer, Diego Rivera, Roberto Montenegro e o já mencionado
Renato Almeida.44

Do ponto de vista da construção, a estrutura epistolar transformada em matéria


lírica, que incide sobre a elaboração da narratividade poética, produz efeito também
sobre as sensações do eu-poético, como por exemplo, o cotidiano, as características, a
ampla descrição do tipo brasileiro, dos tipos próprios das localidades e as sensações

44
ABREU, M. M. Op. Cit. p. 71.
36

levantadas a partir delas: “Naquela noite eu amei como nunca o Brasil”; “Aqui nestes
grandes silêncios das cordilheiras é que eu te sinto, América”; “Que águas poderão
agora refletir-me?”45. Essas composições assumem um tom mais particular, como se o
poeta quisesse realmente transmitir aquilo que viveu em suas viagens, com o intuito de
reviver através da escrita as principais percepções do momento. Sobre esse tipo de
escrita que consideramos lírica, Theodor Adorno afirma que a lírica está em diálogo
com o social a sua volta e:

O conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e


experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam
artísticas quando, exatamente em virtude da especificação de seu
tomar-forma estético, adquirem participação no universal.46

Ao lado da elaboração de uma narratividade, os poemas são construídos de


modo a formular uma imagem poética. Quando tomam forma em uma configuração
estética de poemas, as expressões líricas, individuais, as sensações levantadas diante de
cada espaço físico visitado são, na verdade, um diálogo entre o particular e o universal,
que só tem seu devido alcance ao ser exteriorizado em forma de poema.
Cartas contêm nove poemas, na maioria dedicada e datada, com marcação de
local específica. No entanto, além desses aspectos, há alguns elementos em comum
entre as composições: apresentam em todos os poemas construções imagéticas do local
em que o eu-lírico se encontra, como se quisesse construir um retrato daquilo que vê,
mas sempre com certa narratividade presente. Assim, o leitor pode acompanhar um
acontecimento momentâneo que o próprio eu-lírico presencia enquanto observador.

São respectivamente os poemas e marcação de local e data: Mercado de Trindad


– Ilha de Trindad, 1923; Noturno das Antilhas - Bordo do “Vandyck”; Barbados – Ilha
de Barbados, 1923; Broadway – New- York, 1923; Tonalá – Tonalá, 1923; Puente del
Inca – Inca, 1924; Uma Noite em Los Andes – sem marcação; Cristal Marinho –
Antofagasta, 1924 e Entre Buenos Aires e Mendoza – sem marcação.
Como principal elemento, a viagem e seu deslocar físico resultam em sensações
diante do desconhecido, esta é a temática central desses nove poemas, como se o eu-
poético quisesse retratar em uma obra lírica aquilo que vive e presencia em um exato
45
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit.
46
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. In:______. Notas de Literatura I. São Paulo:
Duas Cidades/Ed. 34, 2003.
37

momento. Mercado de Trindad faz uma descrição e uma caracterização do local, o eu-
lírico vê e sente o local, apresenta as sensações a partir de um momento. Noturno das
Antilhas também apresenta a descrição e as impressões sensoriais diante do
desconhecido. Barbados expõe uma cena que é retratada, a construção de uma imagem.
Broadway faz uma reflexão a partir do chão de Nova York, precisamente o chão da
Broadway, há nele, segundo o eu-lírico, todos os sonhos do mundo, em que faz também
uma analogia com diversos outros lugares da América.
Tonalá traz a figura de Nossa Senhora de Guadalupe, há a construção imagética
do local a partir dessa figura. Puente del Inca é o único poema da série que faz uma
exaltação da América, pois o eu-poético a sente diante de uma comparação com outros
diversos espaços físicos do continente. Uma Noite em Los Andes apresenta pela
primeira vez a sensação de exílio por parte do eu-lírico, que sente falta do seu lugar, já
que se vê diante de elementos desconhecidos, mas que trazem uma aproximação daquilo
que lhe é próprio. Cristal Marinho constrói imagens que denotam planos geométricos,
elementos ligados ao mar, como o navio, ainda faz uma descrição do momento e de sua
impressão intrínseca. E por fim a última construção poética da sessão Entre Buenos
Aires e Mendoza na qual os pampas aparecem como sujeito poético, bem como a sua
descrição e seu desdobramento para algo que caminhe para sua purificação com a
diversidade de elementos.
Para tanto, a partir desse aspecto da viagem e de seus desdobramentos, como o
deslocar físico e o deslocar psicológico, resultam em um processo no qual o autor passa
a identificar-se através do outro, são os relatos cotidianos, próprios de cada lugar em
que se encontra: as sensações mais marcantes que são muitas vezes simples
observações. Desses relatos, continuamente elencados de maneira a constituir uma
pluralidade, extraímos desde o que seria mais singular e expressão lírica até o que
constitui um projeto de exaltação do continente e do país. No entanto, há uma
especificidade em Toda a América, o deslocar físico que leva a um reconhecimento.
Michel Collot compreende que o sujeito lírico para se encontrar precisa estar fora de si:

É fora de si que ele a pode encontrar. Talvez, a emoção lírica apenas


prolongue ou reapresente esse movimento que constantemente porta e
deporta o sujeito em direção a seu fora, através do qual ele pode ek-
sistir e se exprimir. É apenas saindo de si que ele coincide consigo
mesmo, não como identidade, mas como uma ipseidade que, ao invés
38

de excluir, inclui a alteridade, […] não para se contemplar em um


narcisismo do eu, mas para realizar-se como um outro.47

Entretanto, todo esse mundo totalizante fora de si, os lugares específicos,


singulares pelos quais passa e que levam à construção do sujeito lírico, estabelecem essa
relação diante do outro que faz parte desse sistema de construção de si, é a partir do
outro, do mundo que o rodeia que se concretiza o próprio sujeito lírico. Talvez essa seja
a motivação de recorrentes construções imagéticas dos espaços físicos, bem como o
desdobramento em descrições que apresentam elementos com extrema diversificação.
Uma busca através de manobras textuais com um alcance do reconhecimento de si
diante do outro.
Em seu poema Uma noite em Los Andes, Ronald de Carvalho compõe esse
processo ao fazer uma ligação com aquilo que lhe é particular, no caso o solo brasileiro
serve de elemento de reconhecimento da falta que o viajante eu-lírico sente do seu
lugar, elevando o mesmo ao plano da universalização:

Uma Noite em Los Andes


A Paulo Silveira

Naquela noite de Los


Andes eu amei como
nunca o Brasil.
De repente,
um cheiro de bogari, um cheiro de varanda
carioca balançou no ar...
Vinha não sei de onde o murmúrio de um
córrego tranquilo,
escorregando como um lagarto pela terra
molhada.
A sombra vertia uma frescura de folhas
húmidas.
Um vagalume grosso correu no mato.
Queimou-se no sereno.
Eu fiquei olhando uma porção de coisas
doces, maternais...
Eu fiquei olhando, longo tempo, no céu da
noite chilena, as quatro estrelas de um
cruzeiro pendurado fora do lugar ...48

47
COLLOT. Michel. “O sujeito lírico fora de si”. Tradução de Alberto Pucheu. In: Revista Terceira
Margem, ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: 7 Letras. p 224. 2004.
48
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 69-70.
39

No poema o eu-lírico apresenta suas principais sensações diante do local, a


começar por sua marcação que se encontra no título do poema, dessa maneira,
concluímos que o mesmo está nos Andes chilenos. Se relacionarmos esse poema com a
ideia de Michel Collot, podemos ver claramente o movimento do “eu” diante do outro
que volta para si. O eu-poético está em um local desconhecido, no qual se depara com
elementos que o aproximam daquilo que lhe é particular, o outro, que por sua vez o faz
se auto reconhecer e existir, ou seja, a diferença assimilada e transformada em aquilo
que é próprio do eu-poético. A partir disso, há um deslocar físico que caminha para um
deslocar psicológico expresso nas impressões intimistas do poema, passagens como:
“Naquela noite de Los Andes eu amei como nunca o Brasil.”.
Essa comparação estabelece o ponto central do poema, a demonstração da falta
que sente de seu país, pois o mesmo nos traz elementos próprios e particulares como
“um cheiro de bogari, um cheiro de varanda carioca balançou no ar...”. Com
informações que lhe são singulares consegue construir uma comparação gradativa,
assim, nos leva à seguinte conclusão: “Eu fiquei olhando uma porção de coisas doces,
maternais. / Eu fiquei olhando, longo tempo, no céu da noite chilena, / as quatro estrelas
de um cruzeiro pendurado fora do lugar...”. Há uma sensação de falta do lugar expressa
pela analogia as estrelas que compõe o Cruzeiro do Sul, isto é, daquilo que é próprio,
constitui-se assim, um jogo de eu/outro que o leva a reconhecimento daquilo que seria
distinto para o eu-lírico, por isso a necessidade da comparação com o outro (território
chileno) para a composição e expressão do sentimento individual (céu brasileiro).
Outro poema dessa sessão é Barbados, em que o eu-poético faz uma descrição
lírica do local:

Barbados

Na ilha toda clara,


lavada pelas águas,
há pregões de missangas e
quinquilharias.
As casas de madeira têm varandas
preguiçosas,
varandas húmidas, de tetos baixos, que
deitam sombras voluptuosas.
O sol brinca nas ruas,
por onde rolam os grandes ventos da maresia!
Súbito,
num escorrer de linhas oleosas,
balançando os quadris, uma miss de ébano,
sorve a luz que lhe lateja nos seios trêmulos
e lhe penetra o ventre, longa e profun-
40

damente...

Ilha de Barbados. 1923.49

Diferentemente de “Uma Noite em Los Andes”, o poema acima apresenta uma


descrição lírica do local sem aproximação com um território considerado pertencente ao
eu-poético, ou seja, aquilo que lhe seria próprio. Há na composição lírica apenas um
tom de observador colocado à distância, e por isso detalha os fatos em uma construção
poética. Com passagens como: “Na ilha toda/clara,/lavada pelas águas,/há pregões de
missangas e/quinquilharias.” pode-se construir uma imagem daquilo que se quis
retratar, aspecto esse, muito recorrente ao longo do livro. Mas, neste poema, o eu-lírico
observa com o intuito de apresentar uma paisagem panorâmica do local visto; portanto,
a intenção é a de uma construção a partir de uma localidade colocada e vista
panoramicamente. São passagens que pretendem a composição imagética daquilo que o
eu-lírico vê, levando, assim, o leitor a uma construção apropriada à sua interpretação.
Outro poema que merece atenção e análise aprofundada é o dedicado a Mário de
Andrade:

Broadway
A Mario de Andrade

Chato, pardo-cinzento, o chão


flutua lento, mole,
o chão escorre vagaroso,
contrai-se em blocos súbitos,
estica-se em flechas longas, trepidantes,
dispara, de repente, em riscos elásticos,
gira,
rodopia,
turbilhona e ferve num vapor sutil de linhas

e movimentos.

Aquele chão carrega todas as imaginações


do mundo!
Aquele chão carrega
isbas da Ucrânia,
vinhas de Bordéus,
parques do Tâmisa,
saveiros do Volga,
âmbar, corais, madrepérolas das Antilhas,
guano de Mollendo,

49
Ibidem. p. 43-44.
41

canaviais de Cuba,
juncos de Shangai,
cafezais de Ribeirão Preto,
[...]
Aquele chão é uma paisagem em marcha.
Chão que mistura as poeiras do Universo e
onde se confundem todos os ritmos do
passo humano!

Chão épico, chão lírico, chão idealista,


chão indiferente de Broadway,
largo, chato, prático e simples como este
roof liso, suspenso no ar, este roof, onde
um saxofone derrama um morno torpor
de senzala debaixo do sol.

New York. 1923 50

O poema traz, a partir de um único elemento, uma definição e um


desdobramento plurificado do que seria o chão: “Chato, pardo-cinzento, o chão/flutua
lento, mole, /o chão escorre vagaroso, /contrai-se em blocos súbitos, /estica-se em
flechas longas, trepidantes, /dispara, de repente, em riscos elásticos, /gira, /rodopia,
/turbilhona e ferve num vapor subtil de linhas/ e movimentos. /Aquele chão carrega
todas as imaginações/do mundo! ”. Há movimento nesses versos, em que os verbos e os
adjetivos descritivos são atributos de uma imagem em uma constante mudança: o chão
que se molda conforme a necessidade: “Chão que mistura as poeiras do Universo e /
onde se confundem todos os ritmos do / passo humano!”.
Após essa descrição o eu-poético incrementa o que seriam as imaginações do
mundo com detalhamento de diversos lugares: Ucrânia, Bordéus, Tâmisa, Volga, Cuba,
Ribeirão Preto etc. Em seguida, na última estrofe faz uma definição: “Chão épico, chão
lírico, chão idealista,/chão indiferente de Broadway,” os adjetivos aqui utilizados são
referentes a uma certa erudição, como exemplo a epopeia e a lírica, relacionada à
indiferença do local que aponta mais uma vez para a diversidade ali presente e por fim,
como conclusão, estabelece ao local uma aproximação com “saxofone derrama um
morno torpor /de senzala debaixo do sol.”
O que parece interessante é a dedicatória de Broadway a Mário de Andrade,
como Mirhiane Mendes de Abreu nota em seu artigo De Ronald a Mário: epistolografia
literária, em que a pesquisadora analisa os escritos correspondentes entre os dois

50
Ibidem. p. 46-51.
42

modernistas, logo, havia uma extrema importância do diálogo epistolar entre os autores.
Nele, como observado, podemos analisar dois pontos, o primeiro seria aquele que
permitia aos modernistas um diálogo aberto sobre seus principais ideais, o segundo o
que permitia a Ronald de Carvalho a expressão mais íntima, inclusive a respeito de
novas produções artísticas para o momento.51 Ao consumar esta análise, em Cartas, a
composição lírica e a configuração epistolar, como já apontado acima, demonstram o
conjunto desses dois pontos que levaram à composição de correspondência do autor: de
um lado, as impressões líricas são as mais particulares, singulares que nascem
aparentemente da observação do chão da Broadway; e, por outro, ao elencar a
diversidade ali presente, coaduna-se com o pensamento de exaltação presente em toda a
obra. Sendo assim, a comprovação das diferenças do povo americano e sua assimilação
diante de um único local físico.
Embasado nesta configuração de texto, pode-se entender que Ronald de
Carvalho, por mais que tente uma composição que caminhe para um universal
totalizante do Brasil e da América com a finalidade de exaltação, também sente a
necessidade de expressar as experiências sensoriais de esse deslocar físico,
característica comum em obras resultantes do ato de viajar. Esse fenômeno seria quase
que como inevitável, já que o eu-lírico precisa demonstrar as impressões diante do
desconhecido, mesmo que esse desconhecimento leve ao reconhecimento daquilo que
lhe é único e singular.
A penúltima divisão do livro intitula-se Jornal dos Planaltos e toda a sessão é
dedicada a Carlos Pellicer: escritor, poeta e político mexicano. O trecho apresenta
também os relatos pelos locais em que o eu-lírico encontra-se, além da denominação
“Jornal” remeter ao registro cotidiano dos fatos, o que aponta para duas vertentes: a
primeira, o intuito de se ter registrado o que viveu e a segunda, o desejo de tornar
público as sensações diante do desconhecido. Os poemas dessa parte somam dez e são
relativamente curtos (os versos somam entre dez e vinte), em comparação ao restante do
livro. O essencial é perceber que quase todas as composições denotam para a marcação
de localidade, no caso o México.
Salvo três poemas, os demais não apresentam dedicatória, mas todos aparecem
com marcação de data, mês e ano: Fronteira do Rio Grande – Junho. 1923; Xochimilco
ou o Epigrama da Índia Exilada – Junho. 1923; San Agustin Álcolman – Junho. 1923;

51
ABREU, M. M. De Ronald a Mário: epistolografia literária. In: XI Congresso Internacional da
ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 13 a 17 de julho de 2008. USP – São Paulo, Brasil.
43

Cholula – Agosto. 1923; Puebla de los Angeles. Junho. 1923; Puebla - Agosto. 1923;
Querétaro – A Diego Rivera. Junho. 1923; México (D. F.) – Agosto. 1923; Guadalajara
– A Roberto Montenegro. Junho. 1923, e Toda a América – a Renato Almeida. Sem
marcação de tempo.
Fronteira do Rio Grande apresenta a descrição do local, no caso o México.
Xochimilco ou o Epigrama da Índia Exilada é um poema curto e introspectivo, com
uma indagação existencial ao fim: “ Que aguas poderão agora refletir-me?”.52 San
Agustin Álcolman traz uma caracterização breve do local. Cholula, com elementos
geométricos, apresenta a observação do espaço físico. Puebla de los Angeles apresenta o
aspecto observatório, o oleiro que observa e pinta diante de uma mistura de sensações,
entre ver e ouvir.
Puebla traz a observação e caracterização do espaço físico. Querétaro apresenta
uma descrição mais detalhada, usa de elementos mais simples e cotidianos. México (D.
F.) traz a figura da Índia da Avenida Juarez, faz a caracterização dessa figura em
conjunto com o local. Guadalajara constrói a descrição da localidade a partir do verbo
dançar, que resulta em uma concepção sensorial intimista do sujeito lírico.
Como exemplo de poema desta sessão:

Guadalajara

A Roberto Monteneqro

Guadalajara, tu és toda
uma dança!

Dançam as estrelas no teu


lago ingênuo
e a lua cheia dança também pretensiosa e
oca.

Dançam nas tuas manhãs os eucaliptos.

Dançam no teu sol as cúpulas macias


e as folhas dançam nos teus ventos iro-
nicos,
nos teus ventos que levantam as saias das
tapatias.
e misturam os perfumes numa dança
aérea...

Tu és toda uma dança, Guadalajara!

52
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 89.
44

Meus pensamentos dançam em ti ...

Julho. 1923.53

Guadalajara é um poema que caracteriza a cidade que o intitula. O eu-poético


constrói essa caracterização a partir da comparação e atribuição do verbo dançar:
“Guadalajara, tu és toda uma dança!/Dançam as estrelas no teu lago ingênuo/e a lua
cheia dança também pretensiosa e / oca.”. Em cima dessa cognição ligada ao verbo
dançar, há a construção imagética do que seria o local com pequenos acontecimentos,
como o vento que levanta as saias das nativas, o que traz também uma atribuição de
linguagem própria tapatias, termo que designa aquele que nasce em Guadalajara. Ao
final do poema o eu-poético retoma o verso inicial e termina com a analogia de seus
pensamentos e a dança: “Tu és toda uma dança, Guadalajara!/ Meus pensamentos
dançam em ti ...”. É um poema que retrata o local através da criação de imagens, mas
também reflete a sensação que o local causa no eu-lírico, pois, há a definição de que o
mesmo seria uma dança. Recorrentemente as composições aparecem como se os
poemas quisessem retratar esses elementos sensoriais de maneira sucinta e com tom
acentuado de lirismo.
Porém, como última composição da obra, tem-se a sessão Toda a América,
poema longo que aponta para a tentativa de descrição unificante de uma América, bem
como para a exaltação do poeta americano e suas principais finalidades. Toda a América
é o último poema da obra, dedicado a Renato Almeida, consideravelmente extenso e
dividido em cinco partes. Na primeira parte há a descrição da América, a fim de exaltá-
la; na segunda, o eu-lírico nos apresenta as raças da América; na terceira parte apresenta
a indagação a respeito dos poetas americanos, convida os poetas a assumirem a América
como fonte para composição; na quarta parte fala dos elementos próprios do continente,
o folclore americano e na última parte conclui com a caracterização do poeta, sendo este
um criador da América.
Segundo Dominique Combe, em seu texto L’épopée à l’épopée moderne os tipos
brasileiros seguem a linha de pensamento que sugere de forma alegórica os heróis
míticos das “cidades enormes”.54 Para melhor definir essa ideia, o autor ainda conclui:

53
Ibidem.103-104.
54
COMBE, Dominique. L‟épopée à l‟épopée moderne. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida (Org.).
Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
p.336.
45

“L‟épopée est désacralisée, tandis que, réciproquement, la banalité du quotidien est


élevée jusqu‟au mythe.”55 O pensamento seria a relação entre a modernidade e as novas
formas de representação totalizantes de uma nação, por isso, para Combe, a epopeia
perde sua sacralização quando as banalidades do cotidiano são elevadas ao mito. Ronald
de Carvalho realiza bem este movimento através de sua pluralização do tipo brasileiro e
tipo americano. O autor define o herói moderno e suas atribuições banais e cotidianas,
no caso o poeta americano, concretizando, desta maneira, a elevação do herói a um tipo
mítico que cabe a epopeia.
Estabelecemos em Toda a América a matéria épica que restou do mundo antigo.
São os relatos, as impressões particulares dos lugares pelos quais passa que totalizam o
povo brasileiro e americano, elementos estes, que coadunam também para o todo da
obra. Para Combe tais aspectos caracterizam o épos primitivo perdido:

La poésie moderne est fatalement du coté de la nostalgie d‟un monde


perdu, celui de l‟epos primitif. Tout le travail poétique consiste à
tenter de retrouver ce monde, à mimer la relation primitive avec les
éléments qui, pour les Grecs, était antérieure à toute représentation.56

Ronald de Carvalho com seu projeto modernista de exaltar a nação brasileira e o


continente americano tenta em suas poesias reencontrar a matéria épica para a sua
composição. O livro tem os poemas que são de exaltação, mas também tem os poemas
que apresentam as sensações que são percebidas em um determinado local. Por isso, sua
significação e relação com a epopeia, uma vez que o movimento tanto de tentativa de
exaltação quanto de apresentação de elementos únicos e singulares exprime toda a
representação presente na relação primitiva do herói com sua nação.
Outra característica, bem presente, é que, para o autor francês, o tema da
epopeia, sua narratividade, o que definiu como seu récit, pode ser um récit de guerra ou
um récit de aventuras, este sob a forma de uma viagem ou uma busca. No que confere a
relação, segundo Combe, eles podem estar separados ou unir-se. Em Toda a América
podemos definir seu récit como aquele de aventura, dado que se trata de uma viagem
em busca daquela totalidade do mundo antigo, mas que também culmina em uma busca
identificatória do próprio sujeito lírico:

55
Ibidem. p. 52.
56
Ibidem. p. 56.
46

[...]
Oh! América, o teu poeta será
um construtor,
e qual o que lança n'agua o
barco migrador,
e qual o que projeta o dinamismo da
máquina,
e qual o que calcula os alicerces e as
paredes,
e qual o que domina a massa pelo número,
ele terá a rude imaginação do inventor.

E diante da sua obra de granito e de ferro,


de madeira e de argila,
diante da sua obra áspera e nova, cheia de
homens e animais, de aguas, plantas e
pedras,
América,
o teu poeta caminhará no milagre da
criação57.

Mais uma vez notamos que a ideia da obra é sempre a de exaltação, por isso,
pode ser vista como um récit de combate, uma vez que a obra comprova o pensamento
do autor, daquilo que deveria ser o poeta americano. O sujeito lírico apresenta esse
poeta a partir da caracterização e enumeração caótica58, ou seja, o ato de enumerar,
listar ideias que estabelecem uma semelhança entre si, como por exemplo: “Oh!
América, o teu poeta será / um construtor,/e qual o que lança n'agua /o barco
migrador,/e qual o que projeta o dinamismo da máquina,/e qual o que calcula os
alicerces e as /paredes,/e qual o que domina a massa pelo numero,/ele terá a rude
imaginação do inventor.”. Há ainda um paralelismo no início dos versos que estabelece
semelhança e converge para uma mesma ideia, a caracterização do que seria o poeta
americano, ou seja, aquele que, apesar de todos os atributos, será o inventor de uma
poesia própria.
O autor utiliza artifícios que servem sempre para a descrição e ampliação dos
elementos propostos, como no caso o poeta americano. A ideia de exaltação está até
mesmo na grandeza do poema, como se tivesse o comprimento da América e suas
passagens servissem para caracterizá-la. No entanto, não podemos deixar de olhar para a

57
CARVALHO, Ronald. Op.cit. p.145-146.
58
A exemplo de uso de enumeração caótica tem-se Macunaíma Mário de Andrade. Nesta obra também há
a listagem de ideias que assumem semelhança entre si. Atributo, este, que pode ser admitido em obras que
pertencem ao modernismo e, ainda, tencionam a plurificação de um único elemento.
47

obra como um todo, que a partir das impressões mais intimistas volta-se para o todo da
América, o que faz dela singular com desdobramentos dos locais em que o eu-poético se
desloca. A obra analisada tem muitas das características do que consideraríamos épico,
no entanto, não se pode analisar de maneira que a obra poética tente abranger todos os
elementos que configuram esse tipo de composição. Toda a América é uma obra
moderna que, nostalgicamente, pretende retomar esse mundo totalizante. Assim
configura Ronald de Carvalho em poemas como Brasil e Toda a América, poemas
longos que a partir de uma enumeração da diversidade do povo brasileiro e americano
elevam os heróis da América e da nação a mitos modernos.
48

CAPÍTULO 2

A percepção do Brasil em Albert Camus

A obra Diário de Viagem, de Albert Camus (1913-1961) publicada em 1978,


configura seu diário pessoal, publicado postumamente. São anotações de suas
impressões a respeito de um cotidiano constituído a partir de duas viagens: a primeira
em 1946 para os Estados Unidos e a segunda em 1949 para a América Latina. Deu-se
ênfase a uma determinada parte da obra, notadamente aquela em que Camus produz
notas muito mais específicas em relação ao Brasil que aos outros países visitados, no
período de 30 de junho a 31 de agosto de 1949.59 A sua curiosidade pelo Brasil reflete
em um estranhamento natural. Consequente a essa sensação, há na obra indícios de
exílio relacionados ao momento delicado de saúde apresentado pelo autor: problemas de
pulmão que se agravam e levam à tuberculose.
Durante os escritos que compõem Diário de Viagem, o autor já havia publicado
suas principais obras. Além disso, sua teoria do Absurdo, já consolidada, seria o
princípio-diretor para a composição das narrativas seguintes. A teoria era o modo como
Camus enxergava o mundo, portanto, é necessário o seu aprofundamento para melhor
compreensão das crônicas que serão analisadas. O principal tema das anotações de
viagem do autor é a curiosidade dele para com a cultura brasileira, o que gerou um
comportamento estranho, manifestações de desconforto, com o decorrer do diário. Tal
fenômeno compõe-se não só pelo deslocamento físico, mas também por um
descontentamento manifestado pelas obrigações de um intelectual: palestras, encontros
com escritores, almoços e conferências, além de outros compromissos. O sentimento de
estranhamento apontado em tom confidencial estará presente com maior intensidade nas
últimas páginas da obra, assim, Camus considera-se um exilado do outro lado do
Atlântico.
Os estudos sobre Albert Camus são numerosos e abrangem diversos aspectos de
sua obra.60. Totalmente engajado para com os acontecimentos da época, em 1942,

59
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuis cinq cents ans. pp. 79-97.
60
ARONSON, Ronald. Camus e Sartre: O polêmico fim de uma amizade. Tradução de Caio Liudvik.
Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2007; BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José
Álvaro Editor S.A., 1971; BORRALHO, Maria Luiza. Camus. Porto: Rés, 1984; BRISVILLE, Jean-
49

durante a Segunda Guerra, publica O Estrangeiro61, em que apresenta o absurdo e a


revolta com seu enredo inovador, o pensamento teórico do autor é complementado com
os ensaios O mito de Sísifo62 e O Homem Revoltado63. Para o autor o absurdo surge por
meio de uma tomada de consciência diante de um dia a dia, cotidiano, mecânico e
consequente a este pensamento, surge a revolta. O autor apresenta tais características em
sua obra O Estrangeiro, através da personagem Meursault que a princípio, de maneira
constante, é colocada indiferente em relação ao meio social, o conviver diário, mas que
a partir dessa tomada de consciência, carrega uma única certeza: a morte. Passa a viver
e a lutar certo desses aspectos com uma revolta eminente.64
Segundo Camus,65 o Absurdo nasce diante de uma tomada de consciência rara
para o homem. Este homem consciente é aquele que se surpreende com a rotina de uma
existência, aquele que segue um mecanismo todos os dias, que vive um quotidiano sem
descobrir um sentido, um porquê ou uma razão para tal, sem nem ao menos reconhecer
no homem um ser humano. É evidente que a certeza da morte coloca o homem em face
do absurdo de sua existência, daí nasce a ideia da inutilidade do esforço humano diante
de uma relação entre vida e morte. Trata-se da inutilidade dos valores sociais, morais e
religiosos: nada pode salvar ou dar sentido a essa existência absurda. O homem sem ter
o que ou a quem recorrer, encontra-se só e deve consigo mesmo encontrar uma saída
para a condição de uma existência absurda. Consolida-se, então, o homem revoltado e
desesperado, ou seja, aquele que deve se deixar levar pelo destino, pois não pode
escapar da única certeza que temos: a morte. Essa revolta proporciona uma consciência
específica diante da vida, ou seja, agora o homem revoltado deve encarar seu destino
sem culpa ou remorso, deve ver a sua existência assim como ela é, tornando-se um
homem livre através dessa tomada de consciência.
Agora, o herói do absurdo desafia a vida, pois deve viver intensamente, deve
ainda aproveitar os momentos bons proporcionados pelo destino, encarando-o com
paixão e intensidade. A propósito disso, afirma Camus:

Claude. Albert Camus. Trad. Rui Guedes da Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1962; GUIMARÃES,
Carlos Eduardo. As dimensões do homem: mundo, absurdo, revolta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971;
QUILLIOT, Roger. L’homme révolté: commentaires. In: CAMUS, Albert. Textes complémentaires.
Essais. Paris: Gallimard, 1965; REY, Pierre-Louis. Camus: une morale de la beauté. Liège: Sedes, 2000.
61
CAMUS, Albert – O Estrangeiro. Tradução Antônio Quadros – São Paulo: Abril Cultural, 1982.
62
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013.
63
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2011.
64
CAMUS, Albert – O Estrangeiro. Op. Cit.
65
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Op. Cit.
.
50

Sentir o máximo possível sua vida, sua revolta, sua liberdade, é viver
máximo possível. Onde reina a lucidez, a escala de valores torna-se
inútil. Sejamos ainda mais simplistas. Digamos que o único obstáculo,
o único "lucro cessante" é constituído pela morte prematura. O
universo aqui sugerido vive somente por oposição a essa constante
exceção que é a morte.66

A partir dessa proposição, a revolta torna-se coerente e consequente para com o


absurdo, o homem revoltado é aquele que enfrenta constantemente seu estado absurdo e
o mundo em que vive, aquele que questiona seu quotidiano sem desejos ou esperança. A
revolta é consolidada diante de uma existência que anestesia o ser humano, que se
encontra face a face com sua única certeza em relação à vida: a morte. Agora, o mesmo
homem deve ter a postura de herói corajoso, carregando consigo a revolta, pois segundo
Camus:

Essa revolta dá o seu valor à vida. Estendida ao longo de toda uma


existência, restaura sua grandeza. Para um homem sem antolhos não
há espetáculo mais belo que o da inteligência às voltas com uma
realidade que o supera. O espetáculo do orgulho humano é
inigualável. Nenhum descrédito o afetará. Essa disciplina que o
espírito impõe a si mesmo, essa vontade armada dos pés à cabeça, esse
cara a cara tem algo de poderoso e singular.67

A revolta está totalmente relacionada à tomada de consciência proposta por


Albert Camus, a vida ganha sentido, para ele, no momento em que acontece a revolta. O
homem do absurdo e da revolta é aquele que procura uma nova existência diante do dia
a dia do mundo absurdo. No entanto, ao longo da pesquisa tentou-se investigar a
conduta do autor em seus relatos de viagem, a partir de suas atitudes e como configuram
as notas que vão compor o diário. Como Otto Lara Rezende aponta em um breve
comentário para a edição brasileira, há a necessidade de olhar para a pessoa Albert
Camus que se consolida como “O filósofo do absurdo diante do Mundo Novo”.68

66
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013. p. 67.
67
Idem. p. 60-61.
68
RESENDE, Otto Lara. Prefácio. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
51

Camus muitas vezes se choca com a cultura brasileira, o que lhe causa certa
antipatia, já que estava diante de um território distinto. Apesar da sua curiosidade, o
autor talvez visse o mundo sob um prisma muito particular do momento, pois,
recorrentemente, não compreendia os atos desse povo que considerava bárbaro.
Importante notar que são as impressões de um estrangeiro diante do desconhecido e
como a maioria dos viajantes os acontecimentos podem tanto agradar como o contrário.
No entanto, diante de alguns acontecimentos que o desagrava o autor apresenta uma
postura muito peculiar, por isso tentou-se nesta análise aproximar alguns aspectos que
seriam próprios da teoria principal de Camus: Absurdo e Revolta.
Essas anotações são recorrentes, principalmente quando os momentos de contato
com a cultura brasileira o incomodam. Como molde as anotações sobre o trânsito
brasileiro. A primeira impressão sobre é do primeiro dia em que chega ao Brasil, e faz
parte da configuração dos sete tópicos anotados ao acaso pelo autor francês. Então, o
fato parece ser chocante desde o primeiro contato com a cultura estrangeira. Outro caso
em que o autor não se sente confortável aparece em 18 de julho, quando Camus vai com
Barleto69 visitar o subúrbio operário do Rio de Janeiro e presencia na volta outro
acidente de trânsito. Dessa vez um senhor negro é arremessado longe e não há, como no
caso anterior, quaisquer manifestações de ajuda à vítima. O motorista que o atinge foge
para evitar a punição de flagrante delito, jogam um lençol sobre o morto e o trânsito
continua desviando desse novo obstáculo. As anotações no diário demonstram grande
descontentamento diante da situação e Camus não compreende essa atitude de enorme
indiferença, em uma circunstância tão violenta:

Na volta, num lotação*, espécie de táxi coletivo, assistimos a um dos


inúmeros acidentes provocados pelo trânsito inverossímil. Um pobre
velho negro mal embrenhado numa avenida rutilante de luzes é
colhido por um ônibus, que o lança dez metros à gente, como uma
bola de tênis, contorna-o e foge. Isto se deve à estupida lei do
flagrante delito, segundo a qual o motorista teria sido levado à prisão.
Portanto, ele foge, não há mais flagrante delito e não será preso. O
velho negro fica lá, sem que ninguém o levante. Mas o impacto teria
matado um boi. 70

69
“Assim, o jornalista que recebe Camus no porto do Rio de Janeiro, e a quem o autor se refere
alternadamente como B. ou Barleto, é João Batista Barreto Leite Filho, que fora correspondente dos
Diários Associados na Europa durante a Segunda Guerra Mundial”. Nota Sumária à edição brasileira.
In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
70
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 79-80.
52

Sempre os relatos relacionados a esse tipo de banalidade são apontados com


detalhes de grande estranhamento, Camus parece não compreender como a população
pode lidar com essa situação de maneira tão trivial. O autor parece ter uma visão
peculiar de um mundo absurdo que o cerca. Ele pode representar nessa passagem uma
tomada de consciência desse homem do absurdo, único diante dessa cultura distinta e
acrescenta o desfecho: “Descubro mais tarde que será colocado sobre ele um lençol
branco, em que o sangue se irá espalhando, com velas acesas ao redor, e o trânsito
continuará a sua volta, contornando-o, até que cheguem as autoridades para a
reconstituição. ”71
Embora o autor francês demonstre intensa vontade de conhecimento do território
estrangeiro, parece não compreender os atos desse povo que considera bárbaro, e mais
uma vez, nos dias 30 e 31 de julho anota, após a viagem a Teresópolis, mais um
acidente nas ruas do Rio de Janeiro:

De novo, uma mulher estendida, sangrando, diante de um ônibus. E


uma multidão que olha, em silêncio, sem prestar-lhe socorro. Esse
costume bárbaro me revolta. Bem mais tarde, ouço a sirene de uma
ambulância. Durante todo esse tempo, deixaram morrer essa infeliz
em meio aos gemidos. Em compensação, dão demonstrações de
adorar crianças.72

O olhar é altamente crítico, afinal, não há compensações para atitude do povo


que não intenciona socorrer a mulher acidentada. Há o reconhecimento da cultura e
costume do outro, por mais de uma vez, a população carioca demonstra suas
características bárbaras ao deixar os moribundos morrerem sem maiores preocupações.
O que seria inaceitável para Camus é o fato de um povo tentar uma compensação em
demonstrar a adoração pelas crianças. Toda a banalidade reflete em um olhar singular
do mundo, essa aversão à banalidade seria como uma tomada de consciência da pessoa
Albert Camus, o próprio homem do absurdo e da revolta diante da sociedade brasileira,
pois não aceita que a situação seja tratada com tamanha irrelevância. Há no autor uma
tomada de consciência eminente. São algumas situações que o levam para uma reflexão
do momento que enfrenta: o dia a dia que influencia seu estado de espírito e como isto

71
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 80.
72
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 94.
53

age para um reconhecimento de si e do outro.


É tocante o modo como tais impressões são configuradas no diário, o
atropelamento para a maioria das pessoas é algo banal, mas para Camus é algo forte que
o impressiona e o fato de as pessoas deixarem a mulher jogada no chão sem socorro, faz
com que ele caracterize a sociedade como selvagem. A multidão que não presta socorro
à mulher estendida ao chão, para o autor, estaria anestesiada, já que vive em um mundo
absurdo: nem os fatos mais chocantes podem comover essa população considerada pelo
próprio autor como brutal. Temos aqui o choque de um europeu “civilizado”,
acostumado a lidar com seu meio e que se depara com o brasileiro, que muitas vezes
para o autor age de maneira bárbara, ausente de qualquer aspecto de “civilização”,
mesmo diante dela.
Para Camus, a sociedade brasileira demonstrava que esse tipo de situação
violenta no trânsito era comum, diante disso há uma enorme indiferença, os fatos são
vistos de maneira mecânica, o cidadão diante do trânsito do Rio de Janeiro não se choca
com fatos que chocariam outras pessoas não habituadas a eles. Camus sente forte
repulsa a essa visão mecânica, poderia ser o homem do absurdo com sua tomada de
consciência diante de uma civilização díspar. São acontecimentos novos com os quais
até então o autor não tinha contato. O escritor, nesse caso, assemelha-se ao homem do
absurdo que não concorda com determinados esquemas presentes na sociedade carioca.
Esse tipo de repulsa diante dos costumes dos brasileiros aparece mais vezes no
diário. Em 23 de julho está na Bahia para conferência, e após a visita da igreja de Bom
Jesus afirma:

É sufocante. Mas esse barroco harmonioso repete-se muito.


Finalmente, é a única coisa a ser vista neste país, e isso se vê depressa.
Resta a vida verdadeira. Mas sobre essa terra imensa, que tem a
tristeza dos grandes espaços, a vida é mesquinha, e seriam necessários
muitos anos para integrar-se nela. Será que sinto vontade de passar
alguns anos no Brasil? Não.73

Nessa passagem há uma compreensão daquilo que configura a outra sociedade


para Camus. A vontade de não passar alguns anos no país é nítida, afinal seriam muitos
anos para conseguir integrar-se a essa vida “mesquinha”. Talvez aqui a explicação para
a construção do estado de espírito do escritor do diário que se coloca em diversos

73
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 87.
54

trechos distante dessa sociedade desconhecida na qual está. Mas também pode ser
interpretado como simplesmente uma breve reflexão melancólica do momento. No
entanto, a questão apresenta-se de maneira complexa, já que o sujeito é aquele que não
compreende os hábitos da civilização que busca conhecer, assim deixa de entender esse
momento delicado e constrói uma aversão ao meio social que o cerca.
Logo em seguida, ainda no mesmo dia, após a conferência para uma plateia que
o escritor definiu como “paciente”, o cônsul o acompanha até o hotel e oferece uma
quantia referente a 45 mil francos, que Camus nega. Seria o pagamento da Universidade
da Bahia pela sua apresentação. Obviamente, o homem que lhe oferece o dinheiro fica
surpreso quando o autor não aceita e alega ser este o valor que outros conferencistas
cobram. Depois de alguma insistência, desiste. Camus ainda prevê que o cônsul não
poderia deixar de pensar que a sua recusa estaria ligada a falta da necessidade do
dinheiro. No entanto, deixa subentendido o contrário: precisa do dinheiro.
Mais uma vez um costume relacionado ao social o desagrada. A oferta do
dinheiro diante de uma atividade que para ele não deveria ser paga o incomoda, e o
escritor recusa mesmo até perante uma necessidade subentendida no diário. Camus nega
participar do esquema presente, afinal outros cobram o mesmo valor que não aceitou, e
mantém sua posição mesmo com uma insistência do cônsul. Novamente, a tomada de
consciência se faz presente e há a semelhança com o absurdo. Não aceitar o cachê
significa não compactuar com os esquemas sociais: é o resultado de uma revolta
solitária diante de uma sociedade que assume certas condutas que podem ser expressas
de maneira singular e representativa em uma civilização, mas que podem ser vistas a
maneira universal, uma vez que tais atitudes são concebidas mesmo em outros planos
civilizatórios.
Essa presença do choque de diferenças aparece quase em toda a obra, no
entanto, o olhar atento é necessário, pois o autor passa a configurar seu estado de
espírito a partir desse contato com a diferença, já que muitas vezes provoca uma
aproximação com a própria cultura do autor, como o enorme esforço para a
comunicação em francês ou, por exemplo, demonstrações de conhecimento da
civilização e cultura francesa. Esses elementos vão causar tédio e desconforto no
escritor. Pretende-se analisar como os relatos são frutos dessa vivência de Camus no
Brasil e como o trajeto que percorre influencia em seus relatos sensoriais e impressões
íntimas.
A análise é a de um diário de viagem que narra as principais circunstâncias
55

desse trajeto em território brasileiro, mas também uma narrativa que volta para si o
tempo todo. O movimento é sempre reconhecer o outro para voltar a si. O modo como o
diário de Camus é escrito favorece esse pensamento, pois há nas páginas o escritor que
tenciona reviver os acontecimentos através da lembrança registrada por meio dos
escritos cotidianos. Assim sendo, uma escrita que tem Camus protagonista, também será
aquela que refletirá seus principais pensamentos e meios de encarar o mundo.
Anos antes ao escrever seu ensaio filosófico O Mito de Sísifo, no qual há a
definição de absurdo, Camus reflete logo no começo sobre o que seria o sentimento do
absurdo para o homem:

Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é


um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de
ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É
um exílio sem solução, porque está privado de lembranças de uma
pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio
entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, é propriamente o
sentimento do absurdo.74

Portanto, os ideais de Camus o acompanham nessa viagem, apresentam-se os


traços de um homem diante do mundo absurdo, de maneira aproximada: o escritor
diante de um mundo novo e desconhecido. Esse divórcio entre o homem e sua vida,
quando o mesmo não se encontra em seu lugar, pode ser percebido nas anotações do
diário muitas vezes. Talvez a aproximação com o homem do absurdo tenha se dado para
o filósofo diversas vezes, inclusive nos momentos em que estava no Brasil. Essa tomada
de consciência é evidente e pode ser vista principalmente na forma como as anotações
se dão ao longo de toda a obra.
Vale lembrar que se trata de uma publicação póstuma, não se sabe se Camus
teria tido a oportunidade de publicar Diário de Viagem, mas ele tinha o hábito de
anotações cotidianas que configuram seus famosos Cahiers, no entanto, o conteúdo do
diário estudado não coube a nenhum deles como propósito de publicação, inclusive
como pretendia Albert Camus, conforme a afirmação Roger Quilliot no prefácio da
obra:

O caderno dedicado à América do Sul não fora reunido com os outros:

74
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Op. Cit., p. 20.
56

o manuscrito também era distinto.75Ele tinha um título: Viagem à


América do Sul. Fica claro que o autor se questionara quanto ao seu
destino. Além disso, em 1954, quando ele me encaminhou o conjunto
datilografado desses Carnets, a viagem à América do Sul constava de
um dossiê especial.76

O próprio editor do diário nos adverte dessa peculiaridade quanto aos escritos
referentes à América do Sul, e enfatiza, ainda, a diferença entre Camus e as terras
visitadas, além de nos apontar a importância dessas viagens realizadas, afinal foram
quase as únicas concluídas pelo autor. Diário de Viagem merece atenção por suas
singularidades, exatamente por ser um homem com atitudes distintas e singulares
durante o momento da viagem. Autor viajante que poderíamos aproximar àquele
homem do absurdo diante de território brasileiro. Ainda desse périplo fez-se matéria
prima que constituiu uma obra literária. Pretende-se, a seguir, analisar mais
detalhadamente o gênero diário e como esse tipo de escrita constrói uma escrita de si
mesmo diante do desconhecido.

2.1. Camus viajante: o diário de bordo

O diário é o espaço em que seu autor tem a liberdade para anotar os


pensamentos, momentos e sensações retiradas de um determinado acontecimento, fato
ou descrições intrínsecas. No caso da viagem, parece que as anotações servem como
memória dos lugares visitados. No entanto, não são memórias colocadas em um
patamar simplista, mas sim as extrações sensoriais deste deslocamento, já que as
impressões mais íntimas passam a ser a composição da obra diante de tal movimento.
Em seu livro intitulado O livro por vir, Maurice Blanchot, precisamente no
capítulo O Diário íntimo e a Narrativa, levanta apontamentos sobre esse tipo de escrita.
No caso, não se trata especificamente de um diário íntimo, mas sim de um diário de
viagem, porém muitas das características estarão presentes pela comunhão do termo
diário: uma escrita que apesar de ser a de um relator de uma viagem, na maioria das
vezes aponta para as marcas mais íntimas do escritor. O cotidiano faz-se protagonista,
nesse caso, e o compromisso que se tem é com a marcação de tempo, segundo Blanchot,
embora haja essa aparente liberdade, o diário: “[...] deve respeitar o calendário. Esse é o
75
Anuncia-se no caderno manuscrito VI, pela indicação: “ver diário América do Sul – junho a agosto de
1949”. QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.11-15.
76
Idem. p. 11.
57

pacto que ele assina. O calendário é seu demônio, o inspirador, o compositor, o


provocador e o vigilante.”77
A partir da leitura de Diário de Viagem, nota-se que o período desse trajeto em
território latino americano toma o tempo de aproximadamente dois meses. As notas são
feitas dia a dia, como o gênero diário exige por sua excelência. Afinal, como Blanchot
afirma, o calendário constitui um pacto eminente com o escritor. No início da viagem as
anotações tomam maior espaço físico em relação às páginas. Essa relação é diminuída
com o passar do tempo e há uma associação com o estado de espírito de Albert Camus,
pois, apesar de ser uma obra referente à viagem, vemos uma correspondência íntima
entre o autor e sua obra.
A intenção para ele é a de preservar os acontecimentos da viagem, assim o pacto
com o cronológico, dia a dia, pois mesmo em um domingo as anotações estarão
presentes. No entanto, o interessante é que a obra dialoga com o estado de espírito de
seu idealizador. Não são anotações vagas, sem a marcação de tempo que ilustram seu
diário. Não se trata de ficção: os registros são pessoais, as pessoas sobre quem anota ou
fazem parte do seu convívio ou são aquelas que observa para construção e
reconhecimento de si. Em vista disso, temos a constituição de um diário íntimo,
necessário para Albert Camus durante a viagem, já que servirá como espaço de
desabafo, exteriorização de sentimentos e de apontamento dos fatos mais singulares.
As anotações do diário vão de 30 de junho até 31 de agosto - praticamente dois
meses em que o autor toma notas quase que diariamente, o intervalo equivale de sua ida,
em um navio, até sua partida em estado depressivo para a França, de avião. Em sua
primeira página do diário, datada de 30 de junho, o autor descreve a preparação e início
de sua viagem, apresenta os passageiros que serão seus companheiros e nos mostra estar
consciente de suas anotações. Começa, assim, a delinear a intenção de sua escrita:

Volto ao meu camarote para escrever isto – como gostaria de fazê-lo


todas as noites, sem dizer nada de íntimo, mas sem nada esquecer dos
acontecimentos do dia. Voltado para aquilo que deixei, com o coração
ansioso, gostaria, contudo, de dormir. 78

77
BLANCHOT, Maurice. O Diário íntimo e a Narrativa. In: O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 270.
78
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 48
58

Há uma motivação de construção do diário: o autor gostaria de configurar suas


anotações sem nada de íntimo, mas sem esquecer os acontecimentos do dia a dia. É uma
comprovação do pacto com o diário, já que as anotações são cotidianas. Portanto, as
poucas linhas finais desse primeiro dia nos resumem bem a sua intenção, apesar de
tencionar o afastamento do que seria íntimo e pessoal, estabelece, em seguida, uma
contradição, pois expressa seus anseios diante do momento. Esse tipo de impressão
intimista aparece ao longo das páginas do diário.
A propósito disso o próprio Blanchot, um pouco mais adiante no mesmo
capítulo, faz um alerta sobre a forma de composição do diário:

O que há de singular nessa forma híbrida, aparentemente tão fácil, tão


complacente e, por vezes, tão irritante pela agradável ruminação de si
mesmo que mantém (como se houvesse o menor interesse em pensar
em si, em voltar-se para si mesmo), é que ela é uma armadilha.79

Mesmo com uma acentuada despreocupação em relação a uma escrita que volte
para si, muitas vezes vamos reconhecer no diário, que deveria manter os relatos
referentes à viagem, expressões de um Camus se autoconhecendo. A forma é híbrida,
conforme afirma Maurice Blanchot, porque seu conteúdo caminha nessa fusão de
intenções: os relatos imagéticos, descritivos de uma área desconhecida, as sensações
diante de pessoas e territórios também distintos, até suas percepções mais íntimas.
Nessas últimas linhas da data já referida, o autor configura espontaneamente o
que seria o ideal de diário para Maurice Blanchot. O cotidiano é quem vai reger as
perspectivas de escrita de um diário. Desse modo, o que é dito deve manter um pacto
com a verdade, o escritor do diário deve ser sincero, uma vez que se mantém fiel aos
aspectos do dia a dia. No caso da viagem, essa sinceridade torna-se primordial, pois as
impressões de um determinado território que serão configuradas em linhas cuja a
veracidade é essencial. Maurice Blanchot para confirmar tal argumento vai ainda
concluir que “Cada dia anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação.
Assim vivemos duas vezes”80.

79
BLANCHOT, Maurice. Op. Cit. p. 275.
80
BLANCHOT, Maurice. Idem. p. 273.
59

Nessa perspectiva, essa ideia de dupla e vantajosa operação que Blanchot nos
apresenta serve para a obra estudada, porque se trata de um diário de viagem, um diário
de bordo que pretende preservar seus principais acontecimentos, pois, como aponta a
intenção, Camus gostaria de reviver as memórias anotadas e protegidas. No entanto, é
uma obra de cunho intimista que volta para a construção do próprio escritor, mesmo que
ele não pretendesse essa configuração. Tem-se uma obra que reflete Camus e seu estado
de espírito durante a sua viagem, além de anotações sensoriais referentes a um
deslocamento físico.
Para Camus parece essencial as anotações de suas experiências no Brasil,
principalmente pelo fato de que muitas delas convergem para uma construção de seu
estado de espírito em determinados momentos, uma escrita que determina duplamente
uma construção de si, um reconhecimento que leva o leitor a um maior contato intimista
com Camus. E dessa maneira tem-se o que vai compor esse diário de bordo: as
principais anedotas, o estado de espírito, a relação com personas intelectuais brasileiras
e principalmente a imagem descritiva de um Brasil visto através do prisma peculiar
camusiano.
Para compreender a obra estudada, o entendimento da viagem realizada é
essencial. Como movimento natural desse tipo de autor viajante, o deslocamento físico
resulta em um outro psicológico: há uma identificação diante do outro, alteridade que
caminha para um reconhecimento contínuo de si. Conforme o pensamento de Maria
Alzira Seixo em Poéticas da Viagem na literatura, há nesse tipo de obra uma questão
de identidade, um reconhecimento de si, através do outro. Seria, então, o conhecimento
daquilo que lhe é exterior e diferente para o reconhecimento de si.81
O autor constrói essa identificação através dos relatos intimistas, cotidianos,
próprios de cada lugar em que está, assim consolida essa identificação que resultará em
um projeto maior, já delimitado, a identificação de um autor fora de si e que necessita se
encontrar, seja por meio do exílio, pelo choque de cultura ou ainda por sua maneira
peculiar de ver o mundo.
Para melhor compreensão desse fenômeno, nos valemos novamente o
pensamento de Fernando Cristóvão em Para uma Teoria da Literatura de Viagens, em
que, dentre os cinco tipos de viajantes apresentados pelo autor, recorremos aqui ao que
mais se adequa para essa análise, o viajante-erudito. Para Cristóvão são os viajantes que

81
SEIXO, Maria Alzira. Poéticas da viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.p.25.
60

têm como objetivo adquirir conhecimento que buscam novas ideias e hipóteses. Como
perfil de viajantes são catalogados diferentemente dos outros, já que não demonstram
uma necessidade de aventura, atos corajosos, são na verdade pessoas que não se
acomodam com o conhecimento já conquistado em seus países, desejam encontrar fora
de seus lugares algo que lhes falta no interior e seus escritos vão contribuir e enriquecer
para uma “renovação cultural dos seus concidadãos.”82
Depois da Segunda Guerra Mundial muitos escritores franceses se interessaram
pela América Latina, afinal, ainda havia sobre ela uma visão muito pitoresca em
território europeu. Camus procurou quebrar tal paradigma, já que demonstrou grande
curiosidade sobre o continente latino-americano. No entanto, as perspectivas falharam e
o encontro entre o escritor e o continente deu-se de maneira frustrada. Conforme afirma
Andreu em seu artigo intitulado Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en
Amérique du Sud (1949) :

Pourtant, force est de reconnaître que la rencontre entre Camus et


l'Amérique a été difficile pour ne pas dire malheureuse. Les raisons de
ce rendez-vous manqué tiennent surtout à des circonstances
personnelles de l'écrivain, mais sont aussi culturelles et peut-être
politiques au sens large du terme.83

Andreu relata em seu artigo a vontade que Camus tinha de conhecer o território
latino-americano, no entanto, há uma forte frustração: sua condição enquanto pessoa
intelectual favorecia um olhar com simpatia para o continente; que podemos reconhecer
a partir da leitura de seu diário. Esse “desencontro” pode ser analisado através de
diversos olhares, mas sem deixar de notar as questões pessoais do autor, bem como o
choque cultural e político. Camus vem para América Latina a serviço do governo
francês, com o intuito de promover, através de conferências, a “nova” literatura
francesa.84 No entanto, os acontecimentos decorrentes da viagem vão desagradar o autor
e elevar o profundo estado de melancolia, visto nas últimas páginas do diário. O próprio
Roger Quilliot nos adverte em sua introdução as consequências dessas duas viagens
para a América: “Duas viagens, com dois anos de intervalo. Nos doze anos que se

82
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
83
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuiscinqcentsans. pp. 79-97. p. 80.
84
ANDREU, Jean-L. Op. Cit. p. 80.
61

seguirão, Camus raramente consentirá em fazer conferências no exterior: recusará uma


soma enorme para ir ao Japão. ”85
A viagem se faz entediante para Camus desde seu princípio, o trajeto para o
Brasil é realizado de navio, o percurso dura cerca de quinze dias e muitas de suas
reflexões são intrínsecas e subjetivas. Apesar de encontrar e estabelecer um contato com
as pessoas, o autor pratica durante esse tempo um certo isolamento em que suas
reflexões se dão diante do céu, do mar e do clima, como na anotação de 9 de julho:

Trabalho pouco, ando à toa. Dou-me conta de que não estou anotando
as conversas dos passageiros. [...] Mas é também porque meu interesse
neste momento não está realmente voltado para os seres e sim na
direção do mar e dessa profunda tristeza em mim, à qual não estou
habituado.86

Embora suas anotações também sejam a respeito da cultura, do social e


descrição daquilo que vê, existe uma relação curiosa entre o escritor e a natureza.
Apesar das passagens como quando o autor tem a curiosidade de conhecer uma
macumba, as pessoas intelectualmente importantes para o Brasil, como Oswald de
Andrade e Murilo Mendes e as descrições dos locais em que passa, há sempre as
impressões que denotam para um estado de espírito de melancolia, tristeza e tédio. Há
no diário do autor francês um constante isolamento social, presente desde o princípio,
mesmo antes de desembarcar no Brasil. Na viagem de navio, muitas vezes, o autor
parece comprovar sua existência com uma relação direta com a natureza, prefere
observar os viajantes da quarta classe que conviver com seus afins, são questões que nos
levam à reflexão desse momento delicado para Camus.
Até o dia em que chega ao Brasil, as anotações são sempre voltadas para uma
rotina já estabelecida dentro do navio. No entanto, com uma fuga eminente: a natureza,
céu, mar, passam a ser elementos de observação e ocupam cada vez mais espaço na
composição, talvez porque fossem mais significativos para o autor que as poucas
pessoas que ocupavam os camarotes do navio: “Para mim, com mais de quatro pessoas

85
QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.15.
86
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004. p. 56.
62

a sociedade fica dura de suportar. ”87. Na maioria das vezes prefere observar o mar, o
céu e descrever seu estado de espírito que estabelecer relações com as pessoas presentes
no navio. Na verdade, o autor mostra apreensão quando o desembarque se aproxima. A
ideia de deixar o camarote e conviver em sociedade não lhe agrada. Sensação esta que
antecipa as demais anotações do diário até seu regresso para a França.
Diário de viagem traduz as noções do autor sobre a viagem, consequentemente
seu estado de espírito aparece nos relatos cotidianos, são os compromissos como
palestrante, as relações sociais obrigatórias e o convívio com um povo que o recebia de
forma calorosa e curiosa: “Todo o Brasil me aguarda febrilmente. Minha vinda a este
país é a coisa mais importante que já ocorreu há um número considerável de anos. Aqui
sou tão famoso quanto Proust...”88. Albert Camus tem consciência de sua importância
no Brasil, mas não parece entender toda a bajulação que o cerca, fato que pede uma
profunda compreensão para que se possa examinar os escritos do diário.
Apesar de sua consciência enquanto conferencista e intelectual mundialmente
conhecido, o autor, muitas vezes, se incomoda com seus contatos sociais estabelecidos
no país, afinal, a comitiva que o recebeu no país apresentou certa erudição e alto
conhecimento da cultura e língua francesa. Sabendo de sua posição, o autor teria uma
concepção de viagem realizada a fim do conhecimento da cultura e território
estrangeiro, por isso o enorme esforço em ter contato com manifestações consideradas
próprias da civilização brasileira e aversão a influências culturais estrangeiras.
Tais anotações são feitas no primeiro dia em que o escritor chega ao Rio de
Janeiro. Se antes, enquanto realizava sua viagem de navio, as anotações denotavam uma
forte ligação com a natureza e as impressões sensoriais apontadas estão presentes,
agora, o lugar tomado como protagonista é o da cidade do Rio de Janeiro e as personas
sociais aqui encontradas. Camus elenca já em um primeiro contato sete acontecimentos,
entre eles o encontro com o poeta brasileiro apontado como S. ou Federico e que
conhecemos por Augusto Frederico Schimidt89. Personagem que muito desagrada o
autor francês, ora por suas atitudes grotescas, ora pela obrigação de um jantar em que o
principal falante é o poeta, o qual demonstra conhecer toda a literatura francesa. Tais
fatos o obrigam ter paciência com o Brasil, logo em um primeiro contato.

87
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 57.
88
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 64.
89
Poeta modernista pertenceu à segunda geração do movimento. Dono da Livraria Schmidt Editora, no
Rio de Janeiro. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix,
1994.
63

Cotidianamente, as anotações aparecem desde a viagem de navio que dura


quinze dias até os episódios mais exóticos, como a viagem a Iguape, incluindo o
episódio da pedra que cresce. Pretendeu-se uma análise aprofundada de todo o trajeto
realizado pelo autor no Brasil, para melhor compreensão da obra. A natureza, o mar e o
sol são elementos cruciais nas anotações camusianas. Trata-se do todo ao seu redor e
também de reflexões subjetivas sobre um “novo mundo”. As dimensões da viagem se
dão conforme os principais choques culturais acontecem: a natureza pode ser muito rica,
mas as culturas, apesar da origem do autor, são diferentes:

São áreas imensas sem habitação, sem cultura. A terrível solidão dessa
natureza desmedida explica muitas coisas nesse país. [...] tenho tempo
de ver de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura
desse mar vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo
inexplorado. 90

Há um forte reconhecimento do outro nessa passagem, principalmente pela


questão do desconhecido, uma vez que a natureza do território brasileiro implica
compreensão para Camus, já que são “áreas imensas sem habitação, sem cultura”,
consequentemente o povo que ali habita também apresentará essa ausência de cultura e
civilização. A natureza sempre aparece como instrumento de discernimento do estado
de espírito do escritor, é natural então que o mesmo a utilize como referência de
identificação de outra civilização.
Portanto, ao aprofundar o processo analítico, tem-se uma obra que denota as
impressões de uma certa localidade, distinta da do escritor do diário. Isso leva a um
olhar atento sobre a questão de alteridade, em que momento a diferença no olhar desse
autor serviu para a construção não só de uma nova perspectiva, mas também de uma
própria identidade momentânea que refletirá em uma conduta para Camus.
Dessa maneira, compreende-se como o autor francês constitui uma identidade
conflituosa consigo mesmo diante de uma cultura tão distinta, característica que ele faz
questão de apontar diversas vezes em sua obra. Ao mesmo tempo em que demonstra
imensa curiosidade diante de uma cultura diferente da sua, o autor parece não
compreender as manifestações que lhe causam maior repulsão. Diário de Viagem é a
confluência de uma transmissão de tradição nacional, no caso a francesa, e a literatura

90
CAMUS, Albert. Op. Cit. p.101.
64

fruto de uma experiência constituída pela alteridade, por aspectos transnacionais,


especificados pela própria persona Albert Camus.
Ainda assim, o olhar está voltado para as sensações que são consequências dessa
experiência. Albert Camus traz consigo um diário, no qual tenciona o registro da
memória daquilo que vivenciou. Os trechos mais peculiares, muitas vezes estarão
refletidos em outras composições do autor, como por exemplo, os contos A pedra que
cresce91, ou Do Mar Bem Perto92 Mas o nosso olhar analítico não estará voltado para as
extensões da obra, mas sim para o que a obra pode nos dizer a respeito do momento em
que Camus realizava sua viagem, as sensações, impressões e configuração da obra
durante as viagens serão, no próximo capítulo, estudadas.

2.2. Percepção e sensibilidade da América

Diário de viagem é uma composição decorrente dos trajetos realizados no ano de


1949 pela América do Sul, todavia o intuito de análise restringe apenas as viagens
realizadas pelo autor em solo brasileiro. A publicação é póstuma e acontece no ano de
1978, reunida e organizada por Roger Quilliot. São quase trinta anos de arquivamento
dos escritos que não se encaixavam nos cahiers, exatamente por terem uma vertente
temática diferenciada de escrita. A escrita está estritamente relacionada à viagem e ao
que configura gênero diário, já analisado.
Para tanto vemos a necessidade de elencar as viagens que serão estudadas:

 30 de junho a 15 de julho- viagem de Marselha para o Rio de janeiro –


viagem realizada de navio.
 15 de julho a 21 de julho - estadia no Rio de Janeiro.
 21 de julho a 23 de julho – viagem e estadia em Recife – viagem realizada de
avião.
 23 de julho a 25 de julho – viagem e estadia na Bahia – viagem realizada de
avião.

91
CAMUS, Albert. A pedra que cresce. In: O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record. 1997.
92
CAMUS, Albert. Do Mar Bem Perto. In: Núpcias, O Verão. Tradução Vera Queiroz da Costa e Silva.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1979.
65

 25 de julho a 2 de agosto – viagem de volta e estadia no Rio de Janeiro –


viagem realizada de avião.
 2 de agosto a 8 de agosto – estadia em São Paulo – viagem realizada de
avião.
 2, 6 e 7 de agosto – viagem para Iguape com Oswald de Andrade – viagem
realizada em um automóvel.
 8 de agosto – viagem para Fortaleza – realizada de avião.
 9 de agosto – viagem para Porto Alegre – viagem realizada de avião.
 De 10 de agosto a 19 de agosto – viajou por outros países da América do Sul.
 21 de agosto – volta para o Rio de janeiro – viagem realizada de avião.
 21 a 31 de agosto – estadia no Rio de Janeiro.
 31 de agosto – retorna à França - viagem realizada de avião.

O trajeto da França ao Brasil dura cerca de quinze dias, pode-se perceber nas
anotações muitas características singulares, que se repetem como, por exemplo, a
relação com a natureza que Camus estabelece o tempo todo e como ela reflete em seu
estado de espírito. Além de o autor apontar algumas vezes a necessidade que sente de
registrar os momentos em seu diário, o desejo de transcrever as sensações é cotidiano.
Além das anotações que nos levam a descobrir as sensações de Camus, temos
também a apresentação das pessoas que o acompanham durante o período: G. é
professor de história e filosofia da Sorbonne e pretende encontrar sua família na
Argentina; Sra. C. vai ao encontro do marido e diz tudo o que lhe passa a cabeça, outras
figuras são um professor brasileiro e sua mulher. Esses são os principais personagens
que estarão presentes nas anedotas dessa quinzena. Mas o que é interessante é o olhar do
autor para os emigrantes da quarta classe, como muitas vezes observa esses viajantes, já
que aparecem com maior significância que seus companheiros com situação financeira
favorecida. Além da comparação estabelecida entre as duas realidades, pois, segundo o
escritor, no salão de música caberia metade desses transeuntes.93

2.2.1. A mise en abyme

As poucas marcações de localidade acontecem logo no início, uma vez que


durante a travessia não há espaços físicos para serem demarcados. No momento em que

93
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 48.
66

o navio passa pelo estreito de Gibraltar, o autor despede-se da Europa: “Não paro de
olhar para essa terra, o coração apertado”94. A partir de então, os relatos de solidão e
monotonia estarão cada vez mais frequentes no diário. Já nas primeiras páginas o autor
apresenta um fato interessante, a leitura do diário de Vigny, poeta romântico francês. O
leitor toma conhecimento dessa leitura, pois Camus faz anotações e apontamentos no
diário. Assim, tem-se além do reflexo e uma mise en abyme presente, um forte
reconhecimento, já que Camus vê em Vigny uma aproximação com seu estado de
espírito, o que dá a abertura para as manifestações com intenções de suicídio.
O conceito de mise en abyme é interessante para o diário, pois neste gênero o
autor tem uma maior liberdade ao escrever. Conforme a breve explicação de Jean-Marc
Limoges em seu texto intitulado La Mise en abyme imagée temos:

La mise en abyme (l‟oeuvre dans l‟oeuvre) est une configuration dont


tous les arts – littérature, théâtre, peinture, photographie, cinéma,
musique, bande dessinée – nous auront fait entrevoir les multiples
visages. Cependant, comme la mise en abyme ne se résume pas au
simple « roman dans le roman », « tableau dans le tableau » ou « film
dans le film » mais qu‟elle peut aussi nous offrir divers métissages –
bande dessinée dans le film, pièce de théâtre dans le roman, tableau
dans la photo –, cette configuration peut vite gagner en complexité.95

A ideia da mise en abyme consiste em poder entrever os múltiplos reflexos de


uma obra dentro da outra, ela tem o intuito de nos mostrar muitas misturas entre as
representações artísticas, o que faz do diário algo mais complexo, e por conta dessa
assimilação híbrida ele pode acumular as diversas mises en abymes.
Portanto, vemos o reflexo de Diário de Viagem em outras obras como Do Mar
Bem Perto, ensaio presente em Núpcias, O Verão96 e A Pedra que cresce, conto que se
encontra em O exílio e o Reino97. São trechos, personagens e anedotas que vão compor
outros textos. Para Camus é como se o diário fosse o motivo de anotações para futuras
composições, por isso enquanto autor, essa escrita de bordo pode ter esse objetivo. O
diário de Vigny também configura mise en abyme, já que há a presença do diário dentro
do próprio diário, além de uma verificação de si através da leitura do outro.

94
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 50.
95
LIMOGES, J.-M. La Mise en abyme imagée. Textimage n°4, L‟image dans le récit, hiver 2012.
96
CAMUS, Albert. Do Mar Bem Perto. In: Núpcias, O Verão. Tradução Vera Queiroz da Costa e Silva.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1979.
97
CAMUS, Albert. A pedra que cresce. In: O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record. 1997.
67

O intuito não é elencar os trechos em que a figura aparece, mas olhar


atentamente para a mesma, pois dentro do diário ela é elemento importante, já que pode
também se voltar para o reconhecimento de si, presente a todo o momento em Camus.
Esse reflexo é olhar para o outro, como, por exemplo, observar o passageiro que: “veste
cinza-chumbo” e bebe com um jovem alemão que não fala francês, dessa maneira
estabelecem uma conversa de surdos-mudos. Ou a mulher da quarta classe que aparenta
ser uma fugitiva, relacionada ao estado de exílio.98 São os observados sempre que vão
construir com Camus um diálogo de aproximação, entendimento para o estado de
espírito do autor, são os personagens dentro do diário, as impressões do cotidiano que se
fazem notar.
As notas de rodapé aparecem como exemplo dessa constituição textual, a fim de
contextualizar as referências que levam à especificação desse reflexo. São recortes de
Diário de Viagem presentes em outros textos, essencialmente os já citados acima. Além
desse tipo de mise en abyme, temos o teatro dentro do diário, pois quando Camus chega
ao Brasil, logo é apresentado a uma companhia teatral de negros que deseja encenar
Calígula99. O representante do grupo e com quem Camus tem contato é Abdias do
Nascimento criador do Teatro Experimental Negro100.
Em 26 de julho, apesar do estado físico abalado por estar com uma gripe forte, o
ator cumpre o compromisso de assistir um ato de Calígula representado pelo grupo de
atores negros, o que lhe causa certo estranhamento e anota: “Estranho ver esses romanos
negros. E depois, o que me parecia um jogo cruel e vivo tornou-se um arrulhar lento e
terno, vagamente sensual.”101 Em seguida o grupo encena uma peça brasileira que o
encanta muito, a peça fala sobre um homem que praticava macumba e é “visitado pelo
espírito do amor” e faz com que sua mulher se apaixone por ele, mas na verdade a
paixão é pela entidade, ao se dar conta mata sua mulher que morre feliz com a certeza
que encontrará o Deus por quem se apaixonara.102 A noite ainda termina com música

98
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
99
Camus, A. Calígula. Paris: Seuil, 1970.
100
“ „Abdias, o ator negro‟, é o escritor, jornalista, e político Abdias do Nascimento, à época diretor do
Teatro Experimental do Negro, que encenara a peça Calígula, de Camus, com um elenco só de negro
[...]”. Nota Sumária à edição brasileira. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie
Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
101
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 91
102
Foi encenado o segundo ato da peça Aruanda de Joaquim Ribeiro. Informações do próprio Abdias do
Nascimento. NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29out.2016.
68

brasileira, o que leva Camus a generalizar que: “o Brasil seja o único país de população
negra que produz canções sem parar.”103
Abdias do Nascimento foi economista e ator, em 1944 fundou o Teatro
Experimental Negro para maior representatividade do negro na sociedade brasileira da
época, segundo o ator sua intenção era:

Engajado a estes propósitos, surgiu, em 1944, no Rio de Janeiro, o


Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar,
no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana,
degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os
tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação
metropolitana européia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre
a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela
valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura
e da arte.104

Para atingir seu propósito buscou encenar obras com significativo


reconhecimento internacional, estabeleceu, desta maneira, relação com intelectuais
mundialmente conhecidos, inclusive Albert Camus. Quando o escritor vem ao Rio de
Janeiro, já havia Abdias lhe solicitado para encenar Calígula:

Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para


encenar sua peça "Calígula", texto denso e complexo como o que
havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: "O Imperador
Jones", de Eugene O'Neill. A resposta de Camus veio rápida e
positiva, como a de O'Neill.105

Alguns anos depois, quando Camus vem para o Brasil assiste ao ensaio de
Calígula realizado pelo TEN. Sobre o episódio em que se deu o encontro, Camus faz
notas, já apontadas aqui. Mas, o que demonstra tamanha curiosidade é que Abdias do
Nascimento também torna pública sua impressão sobre o momento:

103
Idem. p. 91.
104
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos
Avançados. São Paulo, USP, vol.18, n.50, jan.-br. 2004. pp. 209-224. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019 >. Acesso em: 29
out. 2016.
105
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29out.2016.
69

Mas, no caso de "Calígula", não conseguimos os meios para montar a


peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro
Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça
"Aruanda", de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o
trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho,
Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.106

Neste caso, conseguimos ter acesso às duas versões do acontecido, tanto a de


Camus quanto a de Abdias do Nascimento. A versão do ator foi publicada em uma
matéria na folha de São Paulo em 29 de maio de 2011, escrita pelo próprio Abdias do
Nascimento apresenta suas impressões sobre a criação do TEN e sobre a importância do
seu encontro com Albert Camus. Entendemos, também, a necessidade do encontro entre
os intelectuais, uma vez que há interesses para cada uma das partes: a encenação da
peça Calígula, para o representante do TEN, e para o escritor argelino a intenção de
conhecer a cultura brasileira de origem africana.
O episódio é de extrema importância, já que denota essa mistura de artes dentro
da obra, a presença teatral, musical, além dos nomes de obras de autores célebres
aparecem constantemente nas anotações, porém o que nos chama atenção são as
anedotas, as histórias dentro dos apontamentos de Camus. Personagens e
acontecimentos aparecem dispostos não apenas a fim de constituir outras obras externas,
mas também como reconstrução daquilo que seria próximo ao autor, por isso a
necessidade de ressaltar esses momentos.

2.2.2 Algumas anotações

No momento em que desembarca no Brasil, em 15 de julho, Albert Camus logo


aponta sete tópicos que o impressionam, são as marcas de um primeiro contato, que
segundo ele são: “[...] confusões de um primeiro dia”.107 A primeira anotação é sobre a
opção que lhe dão: o autor deve escolher em permanecer sua estadia no Rio de Janeiro
em um hotel de luxo ou em um quarto simples da embaixada, que está deserta. Camus
opta pela simplicidade e isolamento. A segunda é a respeito do trânsito brasileiro,
caracterizado sempre por sua barbaridade e agressividade com o objetivo de chegar
mais rápido custe o que custar. A terceira apresenta o contraste da sociedade brasileira

106
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29.out.2016.
107
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 61.
70

entre luxo e miséria, a descrição das favelas e uma comparação com aquilo que lhe é
próprio: os Bidonvilles, configurações espaciais que se aproximam de favelas e dos
kabyles, povo típico da Argélia.
O quarto apontamento fala das pessoas: o escritor almoça com a senhora Mineur
e Barleto, além de conhecer Aníbal Machado. Conhece, no quinto tópico, o navio
“Terror del Mondo”, um pouco ultrapassado, mas que fez várias revoluções. No sexto
tópico, as pessoas novamente: após o almoço, uma recepção na casa da senhora Mineur,
narra a presença de muitas pessoas, dentre elas um tradutor de Molière, um filósofo
polonês, um biólogo francês, pelo qual Camus simpatiza, e a companhia teatral de
negros que pretende encenar Calígula.
Em 16 de julho, Camus demonstra a vontade de ver uma partida de futebol, os
presentes ficam espantados por essa vontade, o autor francês sente-se bem em descobrir
a paixão nacional do brasileiro, mas logo afirma: “A dona da casa traduz Proust, e a
cultura francesa de todos é realmente profunda. ”108 Há uma intensa aproximação da
cultura do outro, no entanto o autor já nota que a cultura francesa é algo muito presente
entre os brasileiros.
Sobre essa influência cultural francesa Leyla Perrone-Moisés afirma no artigo
Galofilia e galofobia na cultura brasileira:

É fato bem conhecido que, desde o fim do século XVIII, a cultura


brasileira recebeu uma forte influência francesa, e que essa influência
incorporou-se de tal modo à nossa cultura que ela não pode ser
compreendida sem levar em conta tal incorporação. Disso teria
resultado uma “secreta afinidade”, evocada sobretudo nos discursos
diplomáticos. Sabe-se também que, por todas as razões, a relação
França-Brasil sempre foi assimétrica: nessa história de amor, o Brasil
assumiu o papel de parceiro mais apaixonado, frequentemente
admirativo diante da inegável superioridade do objeto amado. [...].109

A maioria das pessoas com quem tem contato fala a língua francesa, o que
facilita a comunicação para o escritor, mas também o incomoda em diversas situações,
afinal, há uma imposição de uma cultura que também não é sua. Esse movimento é de
grande importância, afinal está presente desde o começo do diário e exerce forte

108
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 69.
109
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. Gragoatá: Revista do
Instituto de Letras da UFF, Niterói, v.11, p.41-60, 2001, p. 61.
71

influência em Camus ao decorrer dos acontecidos, mesmo porque o escritor tenciona o


conhecer a cultura e os costumes brasileiros, porém quase sempre esse contato está
permeado de cultura francesa.
No entanto, apesar de seis tópicos apontados o que mais se alonga é o sétimo e
último. Quando Camus acredita que as formalidades acabaram descobre que irá jantar
com um poeta brasileiro. O autor decide cortar tudo o que achar desnecessário e
desagradável a partir do dia seguinte. O acontecimento aparece com grande pesar no
diário, pois ele pede para não irem a um restaurante de luxo, não aceita o prato que
tentam lhe impor, além de S. ou Federico e que sabemos ser Augusto Frederico
Schimidt que muito o desagrada.
Os acontecimentos levam à reprovação já que o poeta impõe seu conhecimento
da cultura e literatura francesa a Camus, além de gestos que poderiam ser vistos de
maneira simples, mas se elevados ao panorama cultural convergem para um
estranhamento: as atitudes grotescas do brasileiro, como por exemplo, não esperar os
demais para começar a refeição ou as cuspidas das espinhas de peixe sem curvar a
cabeça para uma aproximação do prato de comida. O desfecho desse primeiro dia se dá
de maneira curiosa, já que o poeta tenta descobrir um personagem de Camus, porém o
mesmo aponta que, “mas se engana, o personagem é ele”110, portanto mais uma
presença de mise en abyme. Compreendemos, assim, que o diário é também lugar para
salientar e inspirar futuras obras, poderíamos compreendê-lo, inclusive, como uma
tentativa de arquivamento de anedotas que futuramente viriam a inspirar outras
produções.
No dia 16 de julho aparece a conversa com um garçom de Nice que pretende ir
para a América do Norte. Por não obter visto de importação, ele veio para o Brasil com
a intenção de conseguir o visto mais facilmente. O homem pretende ser boxeador. Em
18 de julho, encontra com Barleto para visitar o subúrbio operário, prefere esse cenário
ao de Copacabana: consegue ali melhor compreender o Rio de Janeiro, afinal o lugar
lembra Belcourt, subúrbio da Argélia, mais uma aproximação daquilo que lhe é próprio.
Em 19 de julho Camus se reúne com Manuel Bandeira e Dorival Caymmi em um jantar
e pela primeira vez parece deixar seduzir-se pela cultura brasileira:

110
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 68.
72

Jantar na casa dos Chapass, com o poeta Manuel Bandera*111,


pequeno homem extremamente fino. Depois do jantar, Kaïmi,*um
negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem
cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes.
O mar e o amor, a saudade da Bahia. [...]. Totalmente seduzido. 112

No dia seguinte, outro momento prazeroso: passeio de lancha pela baía do Rio
de Janeiro, o tempo está agradável e tem a sensação de poder mergulhar em água pura e
fresca. À tarde tem o primeiro encontro com Murilo Mendes: “Tarde, visita de Murillo
Mendès* poeta e doente. Espírito fino e resistente. Um dos dois ou três que me
chamaram atenção aqui. ”113 Pela noite, antes de sua conferência, encontra-se com um
amigo espanhol refugiado que conheceu em Paris e o pelo qual sente enorme simpatia.

2.2.3. Cultura e religião

Característica marcante desse intelectual viajante é aquela de conhecedor de uma


realidade diferente da sua, apesar de muitas vezes elencar comparações a partir daquilo
que lhe é próprio. Há uma vontade natural de conhecimento da cultura brasileira, como
o caso de apreciação das manifestações típicas religiosas. Assim, o escritor tem a
oportunidade de presenciar um ritual de macumba nos primeiros dias em que chega ao
Brasil. Dessa maneira, podemos quantificar as vezes que esse contato foi estabelecido:
1) Macumba no Rio de Janeiro, 16 de julho; 2) Candomblé em Itapuã, 24 de julho; 3) A
procissão para Bom Jesus em Iguape, 5, 6, 7 de agosto.
Quando sai para conhecer um ritual de macumba, didaticamente o autor exprime
a explicação que lhe deram do que seria o ritual religioso: “São cerimônias cujo
propósito parece constante: obter a descida do deus ao corpo por meio de danças e
cantos. O objetivo é o transe. O que distingue a macumba das outras cerimônias é a
mistura da religião católica e dos ritos africanos. ”114 Após um pequeno desarranjo, a
comitiva parte para Caxias à procura de uma macumba e encontram um grupo de

111
Os asteriscos aparecem na edição brasileira como marcação da grafia original do francês que a
tradutora preservou.
112
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 80 – 81.
113
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 81.
114
CAMUS, Albert. Op. Cit. 71.
73

negros115 que vão ver o ritual e pedem para segui-los. Ao chegar a um galpão lotado de
pessoas que assistem e participam da macumba, Camus descreve detalhadamente a
dança e o transe dos dançarinos e ainda declara: “Eu observo: 1) que não se nota nos
dançarinos a mais leve transpiração. 2) um branco e duas brancas que, aliás, dançam
pior que os outros. ”116. Linhas adiante, narra o auge do transe dos participantes
dançarinos: “Levantam-nas, apertam-lhes a testa, e elas recomeçam, até tornarem a cair.
Atinge-se o auge no momento em que todos gritam, com estranhos sons roucos, que
lembram uivos. ”117. E conclui em seguida:

Dizem-me que isto irá continuar até o amanhecer, sem mudanças. São
duas horas da manhã. O calor, a poeira e a fumaça dos charutos, o
cheiro humano tornam o ar irrespirável. Saio trôpego, e respiro afinal
deliciado o ar fresco. Amo a noite e o céu, mais que os deuses dos
homens.118

Esse episódio toma cerca de seis páginas no diário, em 16 de julho, e tem


relevância pelos apontamentos detalhados e descritivos do acontecido. No entanto, o
que tem relativa importância é a relação do autor com a cultura brasileira. Primeiro o
interesse em conhecer uma manifestação sociocultural e religiosa própria do Brasil, em
seguida, um olhar descritivo do ritual a fim de compreendê-lo, mas que converge para
um isolamento físico, pois a necessidade ao sair do galpão é a de respirar. Camus
prefere estar próximo a natureza, esta quase sempre age como objeto espacial de
conforto e compreensão de si mesmo. Pretendemos aprofundar mais adiante essa
relação tríade autor/natureza/sociedade.
No dia 24 de julho o escritor está na Bahia e vai com Eduardo Catalão 119 para
Itapuã. Na praia vão ver o candomblé, que Camus caracteriza como a representação de
um catolicismo para os negros. Diferente da macumba a dança é concretizada diante de

115
Abdias do Nascimento está entre os negros, pois afirma: “Além desse memorável encontro, tive a
oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem
africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o
privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa,
com aquela doçura dos iluminados. ”
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29.out.2016.
116
CAMUS, Albert. Op. Cit. 74.
117
CAMUS, Albert. Op. Cit. 76.
118
Idem. p. 76.
119
Político e engenheiro agrônomo.
74

uma mesa de comida, realizada por mulheres. O mesmo olhar descritivo, não demonstra
dessemelhança com ritual assistido em Caxias, a diferença está no foco: agora uma das
dançarinas, pela qual expressa grande encantamento:

No entanto, isso não em ensina grande coisa de novo, até que surge
um grupo de jovens negras, que entram em estado semi hipnótico, os
olhos quase fechados, mas eretas e balançando-se da frente para trás.
Uma delas, alta e esguia, me encanta. Está com um chapéu de
caçadora azul, a aba levantada e plumas de mosqueteiro, vestido
verde, e traz na mão um arco verde e amarelo munido de sua flecha,
em cuja ponta está espetado um pássaro multicor. Essa Diana negra é
uma graça infinita.120

Diante dessa mulher, o resto do ritual parece não ter relevância, a descrição da
dançarina é de maneira minuciosa e a partir da comparação: sempre as características,
elementos que são específicos ao autor. No caso, temos o chapéu de caçadora, as
plumas de mosqueteiro e a concretização imagética da figura como uma “Diana negra”.
Isso comprova a mescla cultural relativa à bagagem do autor, de um lado a presença
erudita de uma mitologia romana e de outro a cerimônia de uma manifestação religiosa
própria do país visitado. É importante esse tipo de aspecto no livro: esse hibridismo
analítico resulta sempre em uma nova maneira de se observar os fatos, sejam aqueles
que causam repugnância a Camus, sejam aqueles que causam uma sensação agradável.
Em 2 de agosto Camus vai para São Paulo. O primeiro contato com a cidade
grande causa certo estranhamento, pois se encontra entre o aspecto moderno da cidade,
mas ainda com presença de uma rara natureza: “[...] enquanto das palmeiras-reais que se
elevam entre os edifícios chega um canto ininterrupto, vindo dos milhares de pássaros
que saúdam o fim do dia [...]”121. Logo em seguida, anota o jantar com Oswald de
Andrade, caracterizando-o como: “ [...] personagem notável (desenvolver). Seu ponto
de vista é que o Brasil é povoado de primitivos e que é melhor assim.”122, depois uma
anedota de um programa de rádio que o sensibiliza: um negro procura ajuda para criar
uma criança, outro negro mais idoso aparece para ajudar, a mando de sua mulher.
Outro momento em que a cultura e representação religiosa aparece no diário é a
viagem que realiza para Iguape com Oswald de Andrade. O contato com o interior do
120
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 89.
121
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 97.
122
Idem.
75

estado de São Paulo faz com que o autor aponte as impressões diante dessa natureza
desmedida. É longo o tempo de viagem, trezentos quilômetros percorridos em dez horas
de estrada de terra e mata fechada, sobre as quais Camus expressa:

Andamos durante horas e sacolejamos por uma estrada estreita, entre


paredes altas de árvores, em meio a um cheiro úmido e adocicado. [...]
A não ser isso, a imobilidade e o mutismo desse mundo apavorante
são absolutos, se bem que Andrade às vezes julgue ouvir uma onça.123

Logo chegam a Iguape, a hospedagem se dá em um hospital, cujo nome é “Boa


Memória”, e aprecia a polidez desmedida dos brasileiros. No dia seguinte assistem à
procissão. Contato com um homem que foi salvo em um naufrágio pelo Bom Jesus e fez
a promessa de carregar na cabeça uma pedra que pesava sessenta quilos durante toda a
cerimônia. Camus nota curiosamente que as pessoas se agrupam de maneira estranha,
não há durante esse momento a distinção de raça ou cor, todos são participantes de
maneira igualitária. Após a observação o autor vai para um local estratégico com a
intenção de verificar que o homem consegue chegar ao fim de toda a peregrinação.
Depois de uma noite mal dormida, a comitiva parte em regresso para São Paulo
no dia sete de agosto, o autor francês anota depois de observar a natureza por muito
tempo:

País em que as estações se confundem umas com as outras; onde a


vegetação inextricável torna-se disforme; onde os sangues misturam-
se a tal ponto que a alma perdeu seus limites [..] é o país da
indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele ainda não
conseguiu vencer o espirito da floresta, a imensidão, a melancolia. São
os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que eu quero
dizer.124

A natureza é, dessa forma, o meio de compreensão daquela civilização distinta


para o escritor francês; compreendemos que a natureza também constitui o papel do
outro como maneira de reconhecimento de si e também do outro. É a partir da
observação daquilo que é primitivo e realmente próprio do espaço físico geográfico
123
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 101.
124
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 107.
76

brasileiro que ele apreende o pensamento sobre o país: prevalecer o primitivo do que o
civilizado. O pensamento exposto coaduna com aquele de Oswald e sua teoria exposta a
Camus a respeito da antropofagia e o matriarcado. A respeito disso, Silviano Santiago
afirma em A permanência do discurso de tradição do modernismo:

Para Oswald o Brasil é por excelência o país da utopia, desde que se


atualizasse pela industrialização. Dessa maneira, Oswald tenta
conciliar a visão linear progressiva em direção ao futuro com o
retorno ao matriarcado. Seria o que se pode chamar de eterno retorno
em diferença.125

Sempre importa para o modernista buscar o que seja primitivo à civilização


brasileira, seja esse o propósito da viagem a Iguape: a busca pelas tradições primitivas
que constituem o processo cultural da sociedade. Essa viagem reflete em outras obras de
Albert Camus, pela sua peculiaridade em relação aos fatos e personagens presentes,
além desse isolamento natural que ajuda em uma permanência dos costumes primitivos.

2.2.4 Anotações finais

A partir de então as anotações do diário perdem força, são curtas e o escritor


francês demonstra cansaço e estado de espírito abalado. Seja pelas obrigações impostas,
como conferências, seja pelos imprevistos causados durante os trajetos. Em dez de
agosto, após a primeira crise de falta de ar, Camus diz: “Obrigado a confessar a mim
mesmo que, pela primeira vez na vida, estou em pleno conflito psicológico. Este duro
126
equilíbrio que a tudo resistiu desmoronou, apesar de todos os meus esforços.” . Fica
claro que seu estado de espírito está fortemente abalado, os dias que se seguem seu
estado físico também é abalado por conta das constantes mudanças climáticas.
Posteriormente, passa por Montevidéu, Buenos Aires e Chile. Em 21 de agosto
volta ao Rio de Janeiro e tem contato com sua correspondência. Até 31 de agosto, dia de
sua partida as anotações são relativas à gripe e ao estado de tristeza e monotonia em que

125
SANTIAGO, S. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra.
Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p.108-144.
126
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 109
77

se encontrava. Parte, enfim, para Paris acompanhado de um médico, pelo qual


demonstra forte reprovação, e um diplomata: “Doente. Bronquite, no mínimo.
Telefonam para avisar que partimos esta tarde. Faz um dia radioso. Médico. Penicilina.
A viagem termina num caixão metálico, entre um médico louco e um diplomata, em
direção a Paris. ”127 Enquanto o autor demonstra a visão peculiar de um homem do
absurdo, não parece lutar como um homem revoltado. Seu estado de espírito parece não
dialogar mesmo com suas principais teorias, afinal o diário aponta para as sensações
íntimas do escritor. O último dia revela um Camus completamente abalado, que
pretende regressar para o seu lugar o mais rápido possível, mesmo se a viagem for
desagradável. Assim o diário cessa suas anotações.
Tencionou-se nesta análise compreender a constituição desse estado de espírito
apresentado por Camus gradualmente até as últimas páginas. A visão que o mesmo
carrega do Brasil e como os fatos sucedidos o impressionam. Daí a extrema
importância, uma vez que em todo o diário há um reconhecimento do novo e um
reconhecimento de si, o que também vem a ser uma expressão singular e diferenciada,
constituída em um determinado contexto, da pessoa Albert Camus, pois essencialmente
as sensações causadas pelo desconhecido e estranho são únicas.

127
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 121
78

CAPÍTULO 3

Confluências e divergências: a América e a perspectiva dos dois


viajantes

Nos capítulos anteriores apresentamos um estudo isolado de cada uma das obras.
A intenção era a de levantar as peculiaridades de cada um dos escritos e assim analisá-
los. No primeiro capítulo, a análise foi de Toda a América de Ronald de Carvalho. O
segundo capítulo foi destinado a Diário de Viagem de Albert Camus. O que aproxima as
duas obras e o que foi objetivo de investigação é a percepção da americanidade nos dois
autores, apesar de serem compostas em época distintas, tratam-se de obras frutos da
viagem por um mesmo território.
O que se pode extrair de semelhante das duas experiências é o ato de viajar.
Como esse deslocar físico aparece de maneira acentuada nas duas obras, uma vez que é
a condição desses dois autores viajantes. No entanto, como percebido, trata-se de um
mesmo território presente nas duas composições, apesar de serem concebidas em
momentos distintos. A América será o cenário dessas viagens, em Ronald notamos uma
maior importância dada à América Hispânica, seus detalhamentos de maneira
plurificada e ainda a sua exaltação, que pretendia abranger todo o continente, mas com
grande ênfase na caracterização da superfície brasileira, bem como os tipos de personas
aqui presentes.
Para Camus o desconhecido é protagonista de seu diário, principalmente pela
relação acentuada do autor com a natureza, esta que funciona ora como meio de
reconhecimento de si, ora como meio de reconhecimento do outro (pretendemos
analisar mais a fundo este aspecto nas páginas seguintes). Tudo o que há de primitivo e
próprio da cultura brasileira é motivo de intenção do conhecimento para o escritor
francês. Dessa maneira, o Brasil, suas peculiaridades territoriais e culturais são
elementos presentes nas anotações íntimas camusianas, inclusive, refletem em um
choque cultural para o autor, que não compreende inteiramente a diferença.
A descrição do território está presente em Toda a América de maneira constante,
a exemplo da primeira parte do poema homônimo da obra:
79

1
Do alto dos Andes, América,
do alto das sierras me-
xicanas,
de Laguna del Inca, de
Punta de Ias Vacas, de Orizaba e
Xochimilco,

eu te vejo deitada e intacta no claro


músculo dos teus cristais, no ímpeto
das tuas águas, no frêmito fresco das
tuas folhagens luminosas.
[...]128

A intenção é clara ao longo da obra: exaltar o continente americano, para isso o


sujeito lírico aponta os locais em que está, além de caracterizá-los de maneira
minimalista e plural. A América como o território desse périplo é também o
desconhecido que passa a desvendar-se ao longo da apresentação dos poemas. Por isso,
molda-se a visão desse sujeito lírico que demonstra a seus leitores um projeto maior
(exaltação), mas que se volta para uma visão peculiar e sensorial extraída de um
momento presente (diante do desconhecido).
Camus não foge à regra, descreve minuciosamente, a princípio, o território
brasileiro:

Às quatro da manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta.


Saio. Ainda está escuro. Mas a costa está muito próxima: serras negras
e regulares, muito recortadas, mas os recortes são redondos – velhos
perfis de uma das mais velhas terras do globo. Ao longe, luzes.129

Essas impressões são primárias e vão moldar-se ao longo da narrativa. A


natureza, sempre muito presente, parece ser tema de anotação favorito de Camus,
inclusive quando tenta compreender a civilização brasileira diante da imensidão de
floresta na qual se encontra. Fato é que no diário haverá também convívio social e

128
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. 1. ed. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello&Cia, 1926. p.
109-110.
129
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.p. 60.
80

vínculos que vão agradar e desagradar o autor. No entanto, o espaço parece sempre
ocupar as linhas das notas de viagem: reflexo de um território desconhecido.
Portanto, pretende-se olhar para o território americano conforme as perspectivas
e contexto de cada um dos livros. Para essa análise tomamos como princípio a ideia de
um reconhecimento de si a partir do outro. Essa correlação eu/outro que volta para si é
própria de uma literatura de viagem e como diria Maria Alzira Seixo, esse tipo de
literatura permite esse movimento. Em uma obra de poemas, como a do autor brasileiro,
temos uma escrita que reflete para o outro o tempo todo: seja na comparação com o
europeu, seja nas descrições dos espaços físicos por onde passa, seja nas configurações
de uma teoria própria de ideal do poeta americano. Não obstante, desse olhar externo,
há sempre a extração de um olhar interno que configura o sujeito lírico, por isso a
necessidade de compreensão do espaço físico para a obra.
Desse modo, constatou-se a forma em que o continente está presente em Toda a
América: de maneira constante, a começar pelo título, e isso se repete nos títulos de
outros poemas, que sempre demonstram os locais em que o sujeito lírico está. A
intenção é declarada logo a princípio: pretende-se compor uma obra que cante todo o
continente americano, para isso a valorização do território, bem como a de seu habitante
nativo: o homem do futuro, do amanhã, o homem americano. No entanto, diversas
sensações íntimas são também extraídas nesses poemas, a exemplo disso temos as
observações do desconhecido e o que causam ao sujeito lírico, as manifestações de
saudade do seu local e manifestações do sentimento de exílio.
No diário de bordo do autor francês conhecemos os detalhes desde a sua partida
de Marselha até sua chegada ao porto do Rio de Janeiro em 15 de julho de 1949. Em
seguida, o autor começa suas anotações sobre a cultura, o povo e território
desconhecidos. Muitas apontam para a curiosidade diante desse espaço distante e
desconhecido e que servirá também como atuante no estado de espírito de Albert
Camus. Com esse raciocínio, mesmo como tentativa de compreender a civilização
brasileira, o autor tenta compreender a imensa natureza que por ela é habitada, além das
inúmeras demonstrações de estranhamento cultural.
Para este capítulo, partimos do pressuposto de que há sempre nos dois autores,
por causa da viagem, um movimento entre o eu e o outro. Os sujeitos são colocados
diante desse desconhecido que se entende como o outro, então, seria o viajante diante do
território a ser explorado. Por isso, a presença do reconhecimento, há a exploração do
desconhecido, mas ao mesmo tempo uma exploração de si, que também se faz
81

desconhecido em uma situação nunca antes vivida. Assim sendo, cabe a este tipo de
composição a criação de imagem dos lugares visitados, uma projeção para o leitor
daquilo que se tinha visto, com ela, as sensações causadas a cada um dos autores, e
assim chegamos à necessidade de olhar para o espaço presente nas obras.

3.1 Uma América, duas obras

Ao analisar duas obras compostas em épocas diferentes, houve uma


aproximação de alguns aspectos. O primeiro e mais objetivo é o fato de surgirem do ato
de viajar, o que levou a uma definição e aproximação do tipo intelectual praticante
dessas viagens, também compositor de obras de viagem, ou seja, o viajante-erudito.130
Outro aspecto comparativo é o território no qual o trajeto acontece: a América. A
intenção é demonstrar como o continente, que foi percorrido pelos dois autores, é
representado em cada uma das obras. Apontaremos para o espaço físico, mas também
para outro elemento que constitui uma forte relação nos escritos: a natureza.
No entanto, ao falar em espaço há uma ligação instantânea com território,
elemento necessário para esse tipo de narrativa. Sabe-se que Toda a América tem um
território específico percorrido, mas não se pode pensar a obra sem analisar a relação
que seu autor assume com a terra. Esse fenômeno decorre de duas afirmações já
apontadas nesta análise. A) A primeira é a exaltação de seu próprio território com suas
intenções ideológicas (modernismo, americanismo); B) A segunda aponta para a
minuciosa e plurificada caracterização que o autor faz de sua terra e também dos locais
pelos quais transita, através do recurso de enumeração caótica.
Como em uma estrofe do poema Brasil:

[...]
Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara
e grave melodia, Amazonas, a melodia
da tua onda lenta de óleo espesso, que se
avoluma e se avoluma, lambe o barro
das barrancas, morde raízes, puxa ilhas
e empurra o oceano mole como um tou-
ro picado de farpas, varas, galho e
folhagens;131
[...]

130
Ver nota do primeiro capítulo sobre o perfil do viajante.
131
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 21.
82

O poema Brasil aponta para uma longa caracterização do solo, homem e cultura
brasileira. Nesta estrofe o eu-lírico mostra apenas um espaço geográfico específico, o
Amazonas. A partir de uma estrutura repetitiva, presente em todo início de estrofe do
poema: “Eu ouço”, tem-se a apresentação da melodia do Amazonas e de suas
particularidades totalmente relacionadas à natureza: “ [...] a melodia /da tua onda lenta
de óleo espesso, que se/avoluma e se avoluma, lambe o barro/das barrancas, morde
raízes, puxa ilhas [...]”. Esse artifício de composição se repete ao longo do poema com
outros espaços físicos: Iguaçu, Nordeste, Caatinga, etc. A intenção é a de exaltar e
enumerar, apontar as diversidades do território brasileiro de maneira que essa
pluralidade signifique um todo.
Tais aspectos já foram apontados nesta análise. A questão agora levantada é a da
relação que a natureza mostra em poemas que buscam exaltar os territórios do Brasil e
da América como um todo. Ronald de Carvalho, no entanto, não constrói uma obra de
poemas com um elo épico perdido despretensiosamente. A tensão encontra-se quando se
pensa o eixo condutor de nossa pesquisa: a dualidade eu/outro. Se a viagem é antes de
tudo a descoberta de si diante do desconhecido, os autores buscaram o reconhecimento e
as identidades necessárias para os respectivos momentos.
Ronald de Carvalho quis identificar o homem do futuro, brasileiro e poeta
americano. Reconheceu toda a América e sua matéria épica perdida, mas se sabe que
todas as suas concepções ideológicas coadunavam com um modernismo brasileiro que
pretendia apresentar o Brasil para o mundo, rompendo com padrões estéticos já
considerados em desuso pelos intelectuais do momento. Existe, na verdade, a
valorização de uma arte que fosse considerada própria, ideal herdado dos Românticos.
Por isso Ronald de Carvalho não pode ser compreendido de maneira isolada, inclusive
por sua sociabilidade apresentada através das dedicatórias em Toda a América:
Guilherme de Almeida, Mario de Andrade, Fernando Haroldo, etc.
Edward Said em seu livro Cultura e Imperialismo, no capítulo Império,
geografia e cultura diz que não há para o poeta (artista) um significado se o mesmo
assumir uma posição isolada, para comprovar seu pensamento o autor apresenta as
ideias de Eliot:

Diz Eliot que o poeta é, evidentemente, um talento individual, mas


trabalha dentro de uma tradição que não pode ser simplesmente
herdada, tendo de ser obtida “com grande esforço”. A tradição,
83

prossegue ele, supõe, em primeiro lugar, o sentido histórico, que


podemos dizer praticamente indispensável a qualquer um que continue
a ser poeta depois dos 25 anos de idade; e o sentido histórico supõe
uma percepção, não apenas do que é passado do passado, como
também daquilo que permanece dele; o sentido histórico leva um
homem a escrever não só com sua própria geração entranhada até a
medula, mas ainda com a sensação de que toda a literatura da Europa
desde Homero, e dentro dela toda a literatura de seu país, possui uma
existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. O sentido
histórico, que é um sentido tanto do intemporal quanto do temporal, e
do intemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor
tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que torna um escritor
profundamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria
contemporaneidade.132

Por isso, nota-se que Ronald de Carvalho se insere em uma determinada


geração. O Modernismo seria a tradição na qual o mesmo estaria inserido, mas, para
além dessa consideração, vale uma interpretação da tradição que leva Ronald de
Carvalho com seu talento individual exaltar o território brasileiro e americano. O seu
sentido histórico se estabeleceu a partir de uma relação com outras tradições de
formação da literatura brasileira, principalmente os intelectuais dos oitocentos. Ronald
de Carvalho era um escritor consciente de seu lugar e tempo, porque construiu
ideologias que serviram para consolidar a sua tradição.
O exemplo desses escritos que comprovam seus pensamentos e ideologias está
nesta análise com excertos dos textos Pequena história da literatura brasileira e O
espelho de Ariel. Significativamente o pensamento do autor passa a ser representado
tanto em seus ensaios quanto em sua obra poética, em específico Toda a América. Notas
de como a natureza estabelece uma forte ligação coma poesia a ser composta em solo
brasileiro e americano compõem o ensaio intitulado Poesia em O espelho de Ariel:

A NATUREZA sempre foi a grande inspiradora da nossa poesia.


Desde Bento Teixeira Pinto, no alvorecer da nacionalidade, até os
árcades, no século XVIII, os românticos, os parnasianos, e os
simbolistas, no século XIX, os poetas contemporâneos, não é difícil
perceber essa influência predominante.133

132
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 31.
133
CARVALHO, Ronald de. Poesia. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil,
1923. p. 227.
84

No ensaio, o autor compromete-se em construir um panorama histórico literário


sobre a poesia no cenário brasileiro. O que concerne essa produção, e é de extrema
importância, é a natureza e como esta inspira as composições líricas desde o princípio
na literatura brasileira. A grande questão é que a natureza não funciona apenas como
inspiradora, mas também como determinante de uma poesia específica, peculiar, afinal a
poesia será composta diante de um cenário naturalista próprio.
Após tal reflexão, Ronald de Carvalho apresenta uma explicação para a
diferença da poesia do solo brasileiro e a poesia do solo europeu. Não há uma poesia
que se equipare à europeia, pois há determinantes de produção diferenciados entre os
continentes:

Não possuímos, como os gregos antigos, os italianos e os franceses da


idade-média, o calor, a imaginação atrevida, a grandiloquência e o
sopro heroico imprescindível à musa épica. Preferimos a epopeia
cantada à epopeia realizada. Quem, até agora, cantou a conquista da
floresta amazônica pelo cearense, a imensidade silenciosa dos sertões,
as lutas contra os usurpadores estrangeiros, o episódio formidável das
bandeiras?134

Quando o autor expõe as características da poesia europeia, que a brasileira não


possui, o mesmo atribui características próprias e peculiares para a poesia de solo
brasileiro, afinal existe um determinante próprio e inspirador dessa produção: a
natureza. Tal relação tenta ser compreendida ao longo do ensaio. Para Carvalho não há
na poesia brasileira uma composição que expresse o “sopro épico” do Novo Mundo,
talvez, na tentativa de alcançar uma matéria épica perdida que o autor publique Toda a
América três anos depois: um ideal de composição poética para comprovação de seus
próprios ideais.
A respeito dessa junção, no que concerne sua produção literária, já foi apontada
a aproximação de Toda a América com a matéria épica, mas a fim de complementar a
ideia que Charles Perrone afirma em seu artigo A poética da criação novo-mundista em
Toda a América que não há uma configuração própria da epopeia na obra, pois ela não
possui uma unidade significativa que expresse elementos cruciais para esta composição
específica: herói, viagem ou mesmo fluxo narrativo. No entanto, compreendem-se elos

134
Ibidem.p.227.
85

épicos: “Ao contrário, trata-se de uma espécie de épicalírica, uma sequência geo-
cultural organizada pelo olhar do (s) falante (s) através do tempo–espaço. ”135
Entretanto, os ecos dessas características essenciais a essa produção estão
presentes, inclusive para configurar o que Perrone denomina de “épicalírica”. É uma
obra de poemas, porém não é uma obra com um único poema longo, são vários poemas
com títulos distintos. Esses títulos, em sua maioria, servem como identificação dos
locais apresentados pelo sujeito-lírico. A intenção do conjunto é a de apresentar os
locais pelos quais esse sujeito perpassa, além de exaltar a América e o Brasil.
Levantados os elos dessa matéria épica representados `a maneira modernista,
notou-se que no decorrer da leitura dos poemas há um elemento primordial: a natureza.
O eu-lírico apresenta-se sempre em um ponto alto, para poder observar todo o
continente, então, os andes, planaltos, montanhas e serras americanas vão servir para
colocar esse observador em ponto estratégico. Uma vez que o mesmo pode observar
toda a paisagem americana também pode representar em matéria poética aquilo que vê.
Sendo assim, a natureza apresentada, quase sempre, é como no poema Puente
del Inca:
Puente del Inca
a Rodrigo Mello Franco de Andrade
Aqui nestes grandes silêncios
das cordilheiras é que eu te
sinto, América!
Aqui está a tua virgindade
cheia de promessas excitantes,
[...]
Oh! América, o teu dia será primitivo,
e será fresco e ingênuo, e flutuará sobre as
águas
[...]136

Nos primeiros versos do poema há uma relação direta entre a natureza e a


sensação apresentada pelo sujeito lírico, para sentir a América ele se posiciona nas
cordilheiras. A natureza é o elemento balizador que faz do continente algo específico e
único, que inclusive serve como principal meio caracterizador deste, afinal seus
caracteres são únicos e peculiares.

135
PERRONE, Charles A. A poética da criação novo-mundista em Toda a América. Tradução: Sergio B.
F. Tavolaro. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 27, p. 71-83, jul.-dez. p. 76-77.
136
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 61-63.
86

Se a natureza é a inspiração para a poesia nas linhas iniciais do ensaio


apresentado, para sua conclusão Ronald de Carvalho diz que: “A natureza, porém está
na base dessa poesia.”137 A poesia moderna tem por sua sustentação de produção a
natureza, essencialmente porque essa natureza atribui o que se tem de mais peculiar e
próprio: a representação de um ideal próprio de identificação da nação, uma natureza,
como complementa o autor, “nostálgica e decorativa”138 que não se apresenta de
maneira clara e objetiva: “mas apenas aparece na moldura de algumas paisagens
esfumadas e distantes”.139
Necessariamente ao se pensar a ligação estabelecida entre a natureza e a obra de
Ronald de Carvalho pode-se chegar a duas conclusões: 1) que esta serve sim como
inspiração e base de sua poesia, e 2) a natureza serve para explicar o modo como
Ronald de Carvalho faz sua poesia. A primeira observação já foi comprovada nas linhas
acima, mas a segunda observação requer um olhar mais atento. Ronald de Carvalho faz
uma indagação em relação a função do poeta brasileiro, para ele o poeta deve cantar a
epopeia do solo americano. No entanto, não poderá executar a mesma como os europeus
fizeram, pois o poeta americano encontra-se em um espaço-tempo distintos dos gregos,
franceses e italianos.
Diante disso, para o escritor a natureza assume um eixo diretor de suas
composições, porque tem uma função de identificadora do espaço geográfico, bem
como do homem que habita em solo americano. Então, pensando nessa ligação Ronald
de Carvalho afirma em seu ensaio As vozes da terra: “Nossa arte, nosso pensamento,
nossas maneiras, nossos costumes estão intimamente ligados à terra em que
pisamos.”140, porque a civilização brasileira/americana assume uma peculiaridade ligada
a terra em que habita. Então, em sua poesia esse pensamento ganha forma lírica, como
na quarta sessão de Toda a América, em que o eu–lírico faz uma construção do que
deve ser o poeta americano:

Onde estão teus poetas,


América?
Onde estão eles que não
compreendem os teus
meio-dias voluptuosos,

137
CARVALHO, Ronald de. Poesia. In: ______. O espelho de Ariel. Op. Cit. p. 230.
138
Ibidem. p. 230.
139
Ibidem. p.230.
140
CARVALHO, Ronald de. As vozes da Terra. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário
do Brasil, 1923.p. 302.
87

as tuas redes pesadas de corpos euritimi-


cos, que se balançam nas sombras
húmidas,
as tuas casas de adobe que dormem
debaixo dos cardos,
os teus canaviais que estalam e se
derretem em pingos de mel,
as tuas solidões, por onde o índio passa,
coberto de couro, entre rebanhos de
cabras,
as tuas matas que chiam, que trilham, que
assobiam e fervem,
[...]141

Nesta sessão do poema há uma indagação no início: “Onde estão teus poetas,
América? ” Tal estrutura vai se repetir ao longo de outras estrofes. Aqui, o eu-lírico
coloca a questão de representação da América, o poeta deve cantar as particularidades
do continente. Como construção de identidade do espaço, existe uma ligação direta com
a natureza: canaviais, índios, rebanhos de cabras, matas, etc. A sessão é longa e o
levantamento das particularidades do homem e natureza americana servem como uma
identificação do desconhecido, que passa a desvendar-se com o decorrer da viagem.
O ponto de partida de seus ideais é uma busca para a construção de uma
identidade do homem brasileiro e americano. Entretanto, analisar essa narrativa de
maneira isolada do panorama histórico literário brasileiro seria um equívoco, já que há
nela um plano de exaltação do continente, do poeta e do território americano. Desse
modo, Ronald de Carvalho compõe sua obra provinda de uma viagem, porque ao ser
realizada, funcionou como comprovação de seus ideais teóricos. Em Toda a América,
apresentam-se os ideais de exaltação, tradição de um mito de construção da nação
durante os oitocentos, conforme afirma Sandra Maria Pereira do Sacramento em seu
artigo intitulado Viagem e Turismo Cultural:

O mito da construção da nação também se faz presente nas


construções discursivas das nações colonizadas, que, em um
determinado momento de suas histórias precisavam balizar suas
culturas e seus territórios e, no caso da Literatura Brasileira, ocorre
durante a Independência política em relação a Portugal.142

141
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 127-128.
142
SACRAMENTO, S. Viagem e Turismo Cultural. Revista Urutágua (Online), Maringá-PR, v. 06, p.
abr/jun/jul, 2005.p. 5.
88

O mito da construção da nação consolidou-se para atender as necessidades de


consciência nacional para determinado grupo de intelectuais brasileiros em um
momento específico. Mais que a construção de uma identidade nacional, neste período
houve uma preocupação de conhecimento do Brasil. Flora Süssekind relacionou a
viagem e a busca do conhecimento, características peculiares do momento, com essa
ideia de desvendamento do país. Tal movimento vem a somar para a construção de um
perfil intelectual viajante:

Percorrer o país, registrar a paisagem, colher tradições: esta é a tarefa


não só dos viajantes estrangeiros que visitam e definem um Brasil nas
primeiras décadas do século passado [isto é, século XIX], este é o
papel que se atribuem também escritores e pesquisadores locais à
época.143

Para Süssekind, nos oitocentos, a construção literária denominada romantismo


deu-se a partir de uma configuração de um narrador-viajante, que contribui para a
identificação de uma nação ainda não estabelecida. No entanto, se esta afirmação de
construção de um mito da nação for usada para a compreensão da produção artístico-
literária das primeiras décadas do século XX, veremos que esta era uma preocupação
comum entre os participantes dessa tradição moderna: a identificação de elementos
próprios nacionais.
Ronald de Carvalho, assim como alguns de seus companheiros, buscou com seu
perfil de narrador-viajante – agora modernista – apresentar, através de suas
composições, características consideradas propriamente nacionais que serviram como
manifestações literárias identificadoras de uma nação. Com uma breve explicação em
sua História da Literatura Ocidental, Otto Maria Carpeaux define a tradição na qual
Carvalho estava inserido:

Não lhe precedeu nenhum “modernismo” à maneira hispano-


americana, pré-simbolista ou simbolista, mas só um parnasianismo
acadêmico, de vida artificialmente prolongada, literatura sem raízes na
vida da nação. Os modernistas brasileiros estavam diante de duas

143
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 55.
89

tarefas diferentes, igualmente importantes e dificilmente compatíveis;


criar uma nova poesia e arte realmente nacionais, brasileiras, e
empregar para tanto os recursos das vanguardas europeias, da França e
Itália. Ajudou-os, no início, a intervenção do acadêmico Graça
Aranha, romancista de uma geração passada, revoltado contra a
Academia; a ele aliou-se Ronald de Carvalho, que, após breve
passagem pelo futurismo português e uma recidiva no parnasianismo,
escolheu o caminho da poesia “americanista”, whitmanianismo
tropicalizado.144

Nesta anotação sobre o surgimento do modernismo Brasileiro, Carpeaux atribui


duas tarefas essenciais para os intelectuais formadores daquela geração: 1) construir
uma poesia e arte nacionais, e 2) usufruir dos recursos das vanguardas europeias para tal
tarefa. Essas atividades eram para o teórico de tom incompatível, e, de certa maneira,
Ronald de Carvalho também mostra essa diferença em seus escritos, afinal ele se coloca
em uma questão peculiar, que o distinguirá da maioria dos modernistas do momento:
Ronald de Carvalho consolida uma poesia americanista:

[...]
Europeu! Filho da obediência, da economia
e do bom-senso,
tu não sabes o que é ser Americano!
Ah! os tumultos do nosso sangue temperado
em saltos e disparadas sobre pampas,
savanas, planaltos, caatingas onde es-
touram boiadas tontas, onde estouram
batuques de cascos, tropel de patas, tor-
velinho de chifres!145

No poema há uma comparação explícita entre Europeu e Americano. Nessa


comparação o Europeu é visto como “filho da obediência, da economia e do bom-
senso” enquanto o Americano caracteriza-se pelos “tumultos do nosso sangue
temperado”, nota-se que o eu-lírico na construção dessa exaltação faz parte do
Americano, por isso o uso de um pronome possessivo na primeira pessoa: “nosso”. O
principal nessa construção de identidade do tumulto, do sangue temperado, está nas

144
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. São Paulo: Leya, 2011. v. I, v. II, v. III e
v. IV. Versão digitalizada. p. 2592.
145
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 13-14.
90

metáforas relacionadas com a natureza, pois, como já analisado, esta tem um função
crucial de recognição: pampas, savanas, planaltos, boiadas tontas, batuques de cascos,
etc. Características únicas de reconhecimento desse território exaltado em Toda a
América, que de maneira plurificada aos poucos compõe uma totalidade.

Os meses de junho, julho e agosto do ano de 1949 contextualizam a viagem de


Albert Camus à América do Sul, com uma estadia representativa no Brasil. O intervalo
de quinze dias configura a viagem realizada de navio que parte de Marselha e
desembarca no Rio de Janeiro em 15 de julho. Portanto, há uma distinção analítica entre
os momentos dessa viagem, primeiramente, essa quinzena a bordo do navio, em
seguida, um olhar para as diversas trajetórias realizadas em algumas cidades brasileiras
e países da América do sul.
A investigação será sobre os dois momentos desse contexto. O primeiro são os
15 dias que configuram a viagem de navio, a ideia é um olhar atento para a relação
estabelecida entre Camus e a natureza: mar, céu e sol. Os dias em alto mar estabelecem
nas notas do diário protagonismo a essa natureza. Valeria uma reflexão dessa atenção,
já que o escritor alega sentir-se melhor sem um contato com as pessoas: “Para mim,
com mais de quatro pessoas a sociedade fica dura de suportar”146, inclusive porque esses
primeiros dias apresentam muito mais características do mar, do céu e do clima que dos
passageiros: “Dou-me conta de que não estou anotando as conversas com os
passageiros. ”147 Assim as observações e descrições sobre a natureza terão um espaço
maior entre suas anotações.
Acontece que apesar de sua rede de sociabilidade estar limitada em um navio
(afinal não há muitos passageiros com quem tem contato) Albert Camus parece se
autocompreender através dessa natureza que o circunda e ganha espaço em seu diário.
Aqui, o movimento eu/outro, o deslocar físico que significa conhecimento de um
território desconhecido, mas que reflete também em um reconhecimento de si. São
elementos balizadores de compreensão de seu próprio estado de espirito. Já no primeiro
dia, o autor anota, após isolar-se na popa com os viajantes da quarta classe, os observa
por pouco tempo e em seguida volta-se para o mar:

146
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 57.
147
Ibidem. p. 56.
91

Depois vou olhar o mar. Uma lua crescente sobe por cima dos
mastros. Até perder de vista, na noite ainda não inteiramente densa, o
mar – e um sentimento de calma, uma poderosa melancolia sobem,
então, das águas. Sempre apaziguei tudo no mar, e essa solidão
infinita me faz bem por um momento, embora tenha a impressão de
que este mar hoje esteja chorando todas as lágrimas do mundo.148

Em seguida, Camus aponta a intenção de sua escrita, anotar aquilo que observa,
sem dizer nada de íntimo. No entanto, há uma contradição gritante, ele observa o mar e
expressa suas sensações diante do momento, sentimento de calma, melancolia, a solidão
que o faz bem (por um momento) e a impressão de que o mar do momento chora todas
as lágrimas do mundo. Observar e anotar o mar, o céu, na verdade dizem muito de
íntimo de Albert Camus. Assim, nos dias seguintes, o que parece ser motivo de
investigação é essa natureza imensa que o cerca, porém, uma natureza que o desvenda
ao mesmo tempo.
Assim sendo, não observar essa imensidão seria quase que impossível para o
escritor. Logo, não há notas diárias que não contenham observações sobre a natureza, e
principalmente, elas sempre aparecem com sensações a ele causadas, impressões que o
outro provoca, levando-o a um reconhecimento de suas sensações próprias. Essas notas
são diárias e para Camus uma observação daquilo que vê durante essa viagem. No
entanto, revelam mais: sensações peculiares.
A partir de tal pensamento pode-se explorar a construção do particular,
intrínseco daquele que compõe a escrita do diário. Portanto, se a escrita de viagem é
composta do desconhecido, mas que reflete em um conhecimento de si, conclui-se que o
texto vai refletir as impressões subjetivas do autor, aquilo de mais particular, íntimo,
relacionado com a viagem, uma vez que se faz notar as impressões marcantes.
No que confere tais escritos entende-se que constroem relatos íntimos, um diário
de viagem que o próprio deslocar físico colabora para a construção. Seriam os relatos,
impressões íntimas, particulares do autor, que configuram para o leitor um Albert
Camus. Não se pode deixar de falar da escrita de si, já que a estrutura de diário
converge para este ponto de partida. Compreende a escrita confessional, quando o autor
constrói seus escritos centrados nele mesmo, o relatar do indivíduo, ou seja, aquilo que
lhe coincide e se faz necessário, suas impressões, estado de espírito. Segundo Michel

148
Ibidem, p. 48.
92

Focault, neste tipo de escrita percebe-se que “o ato de escrever é também um ato de
mostrar-se ao outro.”149
Camus tenciona em sua obra mostrar o outro, as curiosidades culturais, as
pessoas, as anedotas, mas não há nota que não esteja profundamente embebida dessas
sensações viajantes. São, antes de tudo, anotações sobre os locais perpassados, mas
sobressai nessas notas aquilo que vivencia durante o périplo. Uma escrita de si
despretensiosa, com a tentativa de observar, examinar e entender o outro, mas que
anseia por sua compreensão.
Para tanto, as reflexões delineiam-se sobre os acontecimentos a bordo. No
segundo dia Camus inicia a anotação dizendo que amanhece com febre, tem uma breve
melhora e sai da cabine para relacionar-se com as pessoas. Fala sobre Sra. C. e das gafes
que comete, e em seguida aponta para a presença da natureza: uma observação de como
o sol esmaga o mar. Alega sentir-se triste, após o jantar conversa, mas atenta-se para o
mar: “mas olho o mar e tento, uma vez mais, fixar a imagem que procuro há vinte anos
para essas ramagens e esses desenhos que a água lançada pela roda de proa traça no
mar. ”150. Uma reflexão que busca compreender e até mesmo dar significado e
existência a uma imagem que Camus diz não ter conhecimento, e para finalizar diz que
quando encontrar essa imagem tudo estará acabado.
O mar e suas observações ocupam o espaço do outro, reflexos de si diante do
desconhecido, que pretende desvendar um momento único para o autor, atribuído ao
deslocamento físico. Nas próximas linhas a presença do suicídio, sensação que pareceria
inaceitável para a filosofia camusiana. Toda essa confusão de percepções é apresentada
em dois parágrafos, diante do mar. Como conclusão: “O mar é assim, e é por isso que o
amo. Chamado de vida e convite à morte.”151.
Tais reflexões devem ser entendidas à força do momento. As condições da
viagem que realiza só, sem seu círculo social e que o coloca em extrema solidão e
melancolia, a extensão do mar, a presença do sol, da noite, o clima, aspectos
esmagadores do indivíduo. Para Roger Quilliot, organizador do Diário de Viagem, as
condições dessa viagem relacionam-se com as sensações apresentadas de maneira
peculiar pelo autor:

149
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ____. O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e
Edmundo Cordeiro. Lisboa: Editora Vega. 1992. p. 129-160.
150
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 49.
151
Ibidem. p. 50.
93

Sua viagem à América do Sul é de outra natureza. Camus aborda-a de


uma maneira precária: mas é apenas progressivamente que ele
suspeita de uma nova manifestação de tuberculose. Nesse sentido, seu
itinerário é também o da doença redescoberta, da qual O mar ficará
mais impregnado. Camus não se afasta dos que lhe são caros sem
sofrimento; daí o nervosismo com que considera os atrasos do
correio.152

Assim, conforme os sintomas da doença são apresentados durante a travessia, os


estados de melancolia aumentam. Dessa maneira, o mar passa a ser um meio de
observação, e a partir do estado do mar, o reflexo da lua, a escuridão, etc., existe um eco
para uma compreensão de si. Camus estabelece um ritual cotidiano de descrição do mar.
Vez ou outra, seu estado de melancolia intensifica-se e a anotação dá-se, como em 8 de
julho, em poucas linhas: “Noite de insônia. Durante todo o dia, passeio uma cabeça oca
e um coração vazio. O mar está agitado. O céu, fechado. O convés, deserto. Além disso,
desde Dacar não somos mais que uns vinte passageiros. Cansado demais para descrever
o mar hoje.”153
Seu estado de espírito não permite exprimir qualquer sensação. Apresenta-se
com a cabeça oca e o coração vazio, nem mesmo o mar pode ocupar o espaço da solidão
que o cerca, parece para ele muito duro estabelecer relações pessoais a bordo,
principalmente quando a população limita-se a vinte pessoas. Seu estado físico e a noite
mal dormida refletem esse cansaço, estado incompreendido por ele mesmo. As
próximas anotações continuam a refletir esse estado de espírito, sempre relacionadas à
natureza. Angela Binda ao analisar O estrangeiro chega a conclusão: “Nas obras de
Camus, porém, o homem pertence à mesma ordem que a natureza. É parte integrante
dela, contemplando-a e unindo-se a ela. ”154 Por isso, contemplar, observar e descrever a
natureza são partes integrantes desse escritor do diário, essa relação é por ele demarcada
por uma admiração inegável, sendo a natureza parte integrante desse escritor, o mesmo
a coloca como meio de compreensão de si.
No entanto, a proximidade com a chegada ao Rio de Janeiro provoca em Camus
o olhar para a realidade que o cerca. Alguns compromissos realizados em um último dia
fazem com que relações pessoais voltem a ocupar as linhas do diário. Algumas
promessas em vão: tentativa de rever as pessoas que conheceu a bordo e uma tentativa
152
QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 14.
153
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 55.
154
BINDA, Angela. A indiferença e o sol. 1. ed. Vitória: Edufes, 2013. v. 1. p. 41.
94

de abordar o país com “um espírito mais descontraído”. Tentativas que não serão
realizadas. Em quinze de julho, chegada ao Rio de Janeiro, agora o autor assume,
enquanto observador, o papel de explorador de um território desconhecido.
As anotações sobre a natureza perdem força integrante de compreensão do
estado de espírito de Camus. Agora elas dividem espaço com a curiosidade com a
cultura, acontecimento, relações pessoais e exploração de um país desconhecido. O que
ganha força é um outro olhar da natureza: descrição, em um primeiro momento, da
desconhecida flora tropical. Logo quando vê o Rio de Janeiro ainda do navio anota: “A
riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu,
fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as cores parecem as mesmas,
um cartão-postal agora. A natureza tem horror dos milagres longos demais.”155
Apesar de outros assuntos ocuparem as páginas do diário, Camus, de maneira
menos intensa ainda faz anotações sobre a natureza do Brasil. Essas impressões serão de
duas formas, primeiro uma apresentação de uma natureza única, desconhecida e
deslumbrante para o autor, e segundo, uma tentativa de compreender a natureza imensa
que parece sufocar o homem e a civilização brasileira. Os dois processos podem
aparecer de maneira isolada, mas também um pode ser integrante do outro.
Em 17 de julho, após alguns dias no Brasil, Camus fala sobre uma conversa com
dois professores brasileiros, dela surge uma reflexão sobra cultura e natureza nacionais:
“A floresta tropical e seus três níveis. O Brasil é uma terra sem homens. Tudo é criado
aqui à custa de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem. “O espaço basta para
criar a cultura? ”, indaga-me o bom professor brasileiro. É uma pergunta sem
156
sentido.” Para ele a natureza brasileira exerce uma força sobre o homem que nela
habita, sua imensidão tem poder sufocante, o que faz com que ele intensifique os
esforços diante desse sufoco.
É um olhar estrangeiro e predominantemente europeu sobre a natureza dos
trópicos. Nascido na Argélia, mas de educação francesa, o autor certamente já deveria
ter visto essa criação de conhecimento da natureza, imensa, misteriosa, sufocante,
repercutida fortemente entre os europeus desde o século XVI.157 Sobre essa visão dos
viajantes estrangeiro da natureza no Brasil, Ana Beluzzo afirma:

155
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 61.
156
Ibidem. p. 77.
157
SAID, Edward W. Camus e a experiência colonial francesa. In:______. Cultura e Imperialismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
95

O assunto não se restringe à sua dimensão simbólica. O prestígio do


tema natural se deve, principalmente, à reconstrução da ideia de
natureza a partir do século XVI, através da arte e da ciência, quando
tem início o projeto enciclopédico. Ao longo dos séculos XVII e
XVIII, os viajantes buscam agrupar os seres da natureza, em ordens
científicas de conhecimento do universo.158

No entanto, mesmo que essa visão enciclopédica de conhecimento da natureza


pertencesse àquela de Camus, ele ainda tenta compreender a civilização, cultura e
população brasileira através da natureza:

São áreas imensas sem habitação, sem cultura. A terrível solidão dessa
natureza desmedida explica muitas coisas nesse país. [...] tenho tempo
de ver de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura
desse mar vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo
inexplorado. 159

A nota é escrita durante a viagem para o interior de São Paulo, essa mata virgem
faz com que o escritor estabeleça reflexão sobre o país desconhecido, aos poucos
revelado para o autor. Mais uma vez a natureza sufoca o homem, que o deixa sem
cultura. Essa solidão diante dessa natureza gigante é a explicação para muitas coisas no
Brasil. Dessa forma, Camus utiliza de seu forte contato com a natureza para re-conhecer
a si mesmo e para desvendar o desconhecido (natureza, civilização e cultura).
As anotações que revelam essas impressões são construídas e apontam um olhar
estrangeiro. O estrangeiro que não pertence ao lugar que visita, procura desvendar, aos
poucos, as novas sensações que esse estranho, desconhecido lhe causa. Camus também
é o desconhecido, diante de uma situação nunca antes vivida passa a se descobrir,
porque o outro, externo, é fonte balizadora desse processo. Pretendemos, ao longo desta
análise, demonstrar como o outro influi nos pensamentos de Camus, e, ainda, como esse
outro pode apresentar enorme complexidade no auto reconhecimento.

158
BELUZZO, A. M. M. O Brasil dos viajantes. Revista USP, São Paulo. Junho/Agosto: 1996. p. 17.
159
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p.101.
96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, a análise das obras foi apresentada de maneira separada. A ideia


da pesquisa era poder analisá-las de maneira que os principais aspectos de cada uma
delas pudessem ser averiguados com certo cuidado. No entanto, trata-se de uma
pesquisa de literatura comparada, por isso, mantivemos alguns meios de análise em
comum. A viagem é um deles, afinal, ela é o elemento principal das obras, já que se
trata de literatura de viagem. Sendo assim, investigar o perfil de cada um desses
viajantes fez-se necessário, pois os autores, respectivamente, realizaram as viagens com
a finalidade de aumentar sua bagagem de conhecimento.
Outro aspecto comparativo em comum é o espaço que se deu essas viagens.
Ronald de Carvalho realizou nos anos de 1923 e 1924, a serviço da diplomacia, viagens
pelo continente americano. Enquanto modernista e adepto do pan-americanismo,
divulgou seus principais ideias de composição em seus ensaios. Para o autor, o homem
do futuro deveria ser o poeta americano que cantasse as belezas da América. Em 1926,
dois anos depois, durante a fase fervorosa, primeiro momento modernista, que
tencionava a divulgação das ideias do movimento, Ronald de Carvalho publica Toda a
América.
O livro de poemas é a consolidação dos principais ideais do autor: a exaltação da
América e do Brasil. A comparação é apresentada em Advertência, a fim de trazer para
o leitor as maravilhas de ser americano. Nós, leitores da obra, pudemos conhecer as
diferentes adjetivações que o autor atribui ao solo e homem brasileiros. O fenômeno se
repete quando se refere ao solo e homem americanos. Enquanto modernista, a esperança
está no futuro, no homem do amanhã, ou seja, o poeta que vai mostrar ao mundo as
condições de solo, natureza, vivencia desse homem do Novo Mundo.
O sujeito lírico é um visionário, consegue, sempre em pontos estratégicos (nas
alturas), mostrar de maneira plurificada “todas” as características do Brasil e da
América. A exaltação é a mesma do momento romântico. Exagero e excesso estarão
presentes nesses poemas-chave da obra. Porém, o modo como Ronald de Carvalho os
construiu foi uma tentativa de aproximar o homem brasileiro de uma realidade do
momento. Exaltar é sinônimo de seus principais ideais, a obra vem para consolidar os
pensamentos já antes presentes em seus ensaios. Conseguimos, de certa forma, apontar
essa relação, principalmente no último capítulo da dissertação.
97

As impressões líricas também estão presentes na obra. As sensações,


sentimentos e a saudade compõem certos poemas. Desta maneira, observamos que há
dois tipos de poemas na obra: o primeiro tipo engloba aqueles que servem de exaltação
do solo brasileiro e do continente americano. O segundo tipo traz para o leitor as
principais sensações absorvidas dessa viagem, porque o desconhecido reflete e faz com
que o sujeito-lírico se reconheça diante do nunca antes visto ou vivido.
E por fim, uma análise mais precisa do espaço e como exerce importante
influência na composição dos poemas. Nomes de diferentes locais intitulam os poemas:
Brasil, Guadalajara, Uma noite em Los Andes, Toda a América, Jornal dos Planaltos,
etc. Como recurso de enumeração caótica, a caracterização e a apresentação dos
diferentes locais também são recorrentes. Conhecemos no poema Brasil diferentes
localizações do país, assim como em toda a obra conhecemos diversos aspectos da
natureza brasileira e do continente americano: pampas, planaltos, rios, céu, sol puro, etc.
No entanto, essa natureza não era apenas matéria para caracterização do espaço
percorrido. Ela serviu também para explicação da poesia de Ronald de Carvalho.
Segundo o autor, o poeta americano não poderia compor a mesma poesia dos gregos e
romanos, pois seu ambiente natural é outro, ou seja, as condições geográficas e
espaciais são outras. Sendo assim, a produção da poesia americana se faz na ordem
natural: uma poesia que cante as belezas e propriedades do homem americano.
Outro problema foi solucionado de modo que pudemos estabelecer resquícios de
uma generalização épica na obra. Afirmar que Toda a América é uma epopeia
construída em pleno modernismo brasileiro seria um erro, pois há na obra também
expressões líricas, as impressões intrínsecas e plurais do sujeito lírico. A tentativa de
expressão totalizante do continente é eminente, mas dentro disso cabem também as
impressões de um eu-lírico que se depara a todo o momento com locais desconhecidos.
Então, Toda a América é o conjunto de expressão de elos épicos perdidos e a
impressão própria do eu-poético diante de novas descobertas. A obra vem como forma
de comprovação dos ideais de Ronald de Carvalho, mas também como expressões de
um sujeito lírico que se transpõe para fora de si e, desta maneira, volta para si e se auto
reconhece diante do outro, de um espaço físico distinto e de um momento nunca antes
experimentado.
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Camus embarca para o Brasil em 30 de junho de 1949 e passa 15 dias em um


navio, cercado de poucas pessoas que, na maioria das vezes, são evitadas pelo próprio
autor. A importância da viagem e do deslocamento se configuram e se consolidam a
partir do momento em que levam Camus a tomar notas em um diário de bordo, ação
frequente do autor, dada a intensa publicação de seus cadernos de notas. Contudo,
Diário de Viagem não se encaixou em nenhum desses cadernos para ser publicado, por
isso uma publicação póstuma e isolada. Roger Quilliot, editor de Camus, adverte seu
leitor quanto ao conteúdo da obra, já que o autor apresenta estado de espírito abalado e
forte isolamento nas anotações de viagem, principalmente durante o trajeto pela
América do Sul.
Albert Camus faz longas viagens em duas circunstâncias: a primeira para os
Estados Unidos,1946, esta aparece em suas anotações de forma mais agradável e
passiva, são realmente suas impressões, as primeiras, sobre a América; a segunda,
quando vem para a América do Sul, 1949, que expressa outras condições, como os
diversos compromissos que tem: palestras e conferências, como propagador de uma
nova literatura francesa.
Nesta trajetória, o autor coloca sua posição em relação a diversos lugares do
Brasil, de maneira curiosa busca defini-los, caracteriza de modo minucioso os locais por
onde passa, ainda expressa suas sensações diante das pessoas que conhece, são elas
grandes nomes nacionais como Manuel bandeira, Murilo Mendes, Oswald de Andrade e
Abdias do Nascimento. Algumas vezes, demonstra apreço por estas pessoas, mas em
outras se mostra incomodado como no episódio em que sai para jantar com o poeta
Augusto Frederico Schmidt.
Camus também demonstra curiosidade pela cultura brasileira, àquela que
considera primitiva, sem interferência da cultura francesa. O autor logo percebe a forte
influência da cultura francesa no país, o que o desagrada muitas vezes, afinal tenciona
conhecer a uma cultura própria do Brasil. Sai para conhecer uma macumba, vai ao
distrito de operários no subúrbio do Rio de Janeiro e ainda faz uma viagem pelo interior
de São Paulo com Oswald de Andrade.
Vale ressaltar que esta viagem tornou-se para Camus algo indesejado, já que o
mesmo sente-se incomodado com as obrigações cotidianas, com as conferências e as
bajulações, consequência da posição intelectual que ocupava no mundo. O momento de
saúde em que se encontra é delicado, sintomas da tuberculose, adquirida alguns anos
antes, voltam e Camus sente-se doente em diversos momentos da viagem. O desgaste é
99

grande seja pelas obrigações desnecessárias, seja pelos momentos que deseja passar,
mas que o estado de espírito abalado sobrepõe às boas sensações.
O diário é o espaço em que o autor faz diversas notas. Assume um pacto com o
calendário e as anotações são feitas quase que diariamente. As marcações dos lugares
são precisas e nos revelam sempre as condições das viagens que realiza. A forma textual
do diário não é fechada e molda-se conforme o passar do tempo. São praticamente dois
meses de estadia no continente sul-americano, tempo suficiente para que Camus
apresente ao leitor as nuances de seu estado de espírito. Em certos momentos o autor
expressa sensações nunca antes vividas, como a ideia do suicídio.
A natureza também assume papel importante na obra. Camus quase sempre
demonstra conhecedor e admirador dela. Seu estado de espírito é muitas vezes
construído a partir das sensações que a análise da natureza causa no autor. Por isso ele
serviu como fonte de compreensão e explicação do próprio Albert Camus, mas é a partir
dessa natureza própria do Brasil que ele também tenta desvendar a população brasileira.
Os autores são antes de tudo grandes conhecedores, as viagens são para eles a
fonte do conhecimento. Estar em um território desconhecido desperta sensações novas,
curiosidade e principalmente o desejo de observação. Observar, analisar faz com que
haja a vontade de preservar o momento. Eis o motivo, intenção de composição dessas
obras de viagem: reviver não só o momento, mas as impressões e sensações dele
extraídas.
Tal pensamento objetiva clarear, explicar o modo como os autores seguiram suas
viagens e como tal modo reflete nas impressões que vão compor as obras analisadas. A
teoria desta categoria de viajante elucidou o tipo de escritor de cada uma das obras e, a
partir dessa perspectiva, a necessidade de conhecimento dos lugares para os autores, não
apenas os locais, mas a tentativa de compreensão cultural dos povos, bem como uma
projeção em imagens poéticas ou descritiva daquilo que foi visto. Neste cenário, nota-se
que a preocupação com o outro, o diferente, e como esta diferença chega aos escritores
é primordial, pois, nesta linha analítica, é possível enxergar o movimento de
reconhecimento de si através do outro, do desconhecido.
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