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Guarulhos
2017
ALINE PASQUOTO PERISSINOTTO
Guarulhos
2017
Perissinotto, Aline Pasquoto.
103 f.
Suplente:
Agradeço às pessoas que se colocaram ao meu lado durante esta dura trajetória.
Agradeço minha orientadora Mirhiane Mendes de Abreu pela amizade, carinho e
por me acolher. Especialmente, por me presentear com Ronald de Carvalho.
Agradeço à banca de qualificação. Ao professor Antônio Dimas por sua imensa
atenção e leitura minuciosa, que apontou detalhes importantes e essenciais para a
pesquisa. À professora Lígia, que me acompanhou durante toda essa trajetória, pela
atenção e comentários pertinentes que puderam engrandecer o trabalho.
Às professoras Annie Gisele Fernandes e Ana Cláudia Romano Ribeiro que
aceitaram ler gentilmente meu trabalho para a banca de defesa do mestrado.
Ao programa e à secretaria de pós-graduação em Letras da UNIFESP. Em
especial, à professora Leila Aguiar por seu apoio.
À Ariana por seu companheirismo, conversas e conselhos durante as viagens
para Guarulhos.
Aos meus colegas de turma que compartilharam esse momento comigo: André,
Giovana, Joyce, Jacqueline, especialmente pelas acolhidas em sua casa, e Wellington de
Almeida.
Aos meus amigos de vida: Mariana, Natália, Renan, Carlos, Dani, Leonardo e
Stela.
Ao meu pai Oilson.
Aos meus avós Geraldo e Nair pelo amor e simplicidade na vida.
À minha mãe Sandra, inspiração para os momentos mais difíceis, por me apoiar
independente da circunstância.
À minha irmã Amanda por seu amor e confiança.
Ao Breno, primeiramente, por me incentivar a prestar o processo seletivo.
Sempre por seu amor, apoio, paciência, companheirismo, broncas, conselhos, fatores
que me guiaram, ensinaram e nunca me deixaram desistir da vida acadêmica. Obrigada,
por estar sempre comigo, companheiro de uma vida toda.
Aos meus alunos durante esses anos da Etec Prof. Dr. José Dagnoni,
especialmente os formandos do ano de 2016, pela admiração, paciência e a amizade de
sempre.
O apanhador de desperdícios
Manoel de Barros
RESUMO
O presente trabalho tem como intuito o estudo comparativo das obras Diário de
Viagem, Albert Camus, publicada em 1978, referente à viagem do autor à América do
Norte em 1946 e à América do Sul, 1949; e Toda a América, Ronald de Carvalho, obra
de poemas publicada em 1926, referente à viagem do autor pela América nos anos de
1923 e 1924. Apesar de Camus apresentar um diário de bordo e Ronald um livro de
poemas, as sensações - consequências do deslocamento físico - trazem a necessidade de
apontar as particularidades dos momentos. Os relatos dizem respeito às viagens
realizadas, o modo como encararam o deslocamento físico, o choque cultural e as
opiniões sobre os diferentes acontecimentos. Assim, a invenção poética, reconhecida em
forma de diário ou de poema, pode ser ocasião para múltiplas visões que uma mesma
paisagem possa oferecer à subjetividade, esta também em trânsito. Diante de tantos
aspectos em comum, mas com suas singularidades, pretende-se nesta dissertação
apresentar alguns elementos de análise comparativa, pois são obras literárias com
sensações e impressões vividas durante a viagem, uma construção subjetiva para cada
autor.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
1
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4.ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ática, 2006.
12
2
Nota Sumária à edição brasileira. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
3
QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.11-15.
4
SEIXO, 1998, p. 25: Apud: ABREU, Mendes Mirhiane. Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda
a América. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 2, p. 69-77, abr./jun. 2011.
5
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
13
serviço. Tal perfil pode ser aproximado de cada um dos autores estudados. Ronald de
Carvalho é o modernista, pan-americanista que realiza sua viagem a serviço da
diplomacia, e dela extrai matéria-prima para a composição poética. Albert Camus é o
filósofo do Absurdo e da Revolta, realiza sua viagem à América do Sul como
conferencista e conhecido intelectual francês, com a finalidade de propagar a nova
literatura francesa.
A dissertação estruturou-se em três capítulos. No primeiro, intitulado A
percepção da americanidade em Ronald de Carvalho buscamos aprofundar a obra do
autor brasileiro a partir de dois objetivos: o primeiro é a análise dos ideais de exaltação
existentes na obra, bem como o perfil modernista do autor. Poemas como Brasil,
Advertência e Toda América foram analisados sob esse prisma, pois coadunam com o
próprio objetivo ideológico de Ronald de Carvalho: o pan-americanismo, além de uma
consolidação do perfil do poeta americano definido pelo escritor. Como segundo
propósito, uma análise mais estrutural do texto: as impressões diante dos locais nos
quais o sujeito lírico constrói seus poemas. Essas impressões são reflexo de um deslocar
físico que procurou extrair suas sensações diante do desconhecido, sempre em um
movimento eu/outro que volta para o reconhecimento de si.
Ronald de Carvalho apresenta em sua obra poemas, nos quais o eu-lírico
expressa suas impressões pelo lugar por que passa, particularidades que valem a pena
pela transformação poética. Na “Advertência”, o eu-poético convida o “Europeu” a
conhecer o Continente Americano e suas maravilhas. Dessa forma, veem-se os ideais de
exaltação daquilo que lhe era próprio, devido a sua condição modernista: o pan-
americanismo, em que o autor em conformidade com uma das muitas facetas do
programa modernista, enfatiza a necessidade de voltar-se para o grande problema
americano, qual seja, ver o continente como um todo, suas características e propriedades
e deixar de lado a influência europeia.
Entende-se aqui a obra Toda a América como uma resposta individual do autor a
esse projeto coletivo modernista, visto que há nela um grande empenho em exaltar todo
o continente e os tipos sociais nele presentes. O livro resulta de uma série de viagens do
autor ao continente americano, principalmente o México, lugares que percorreu pelo
serviço diplomático. A participação oficial do autor serviu-lhe como matéria-prima para
reflexão sobre a brasilidade em face do mundo e sobre a própria matéria poética.
Entende-se como motivo de investigação essa exaltação do continente, como a América
é colocada para o autor e quais as sensações viajantes diante dela. No entanto, há uma
14
6
BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC,
2005. 256p.
7
BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In: Céu, inferno. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2003. p. 217.
8
COLLOT. Michel. O sujeito lírico fora de si. Tradução de Alberto Pucheu. In: Revista Terceira
Margem, ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. pp. 165-177.
9
COMBE, Dominique. “L‟épopée à l‟épopée moderne”. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida (Org.).
Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
p.336.
15
daquele mundo antigo, o que leva a um olhar atento para as diversas representações do
povo brasileiro ou mesmo uma presença plural dos diversos locais da América.
No segundo capítulo intitulado A percepção do Brasil em Albert Camus,
apresentamos também, de maneira mais ampla, os ideais de absurdo e revolta de Albert
Camus, como essa teoria estava imbricada em seu modo de ver o mundo e como há o
reflexo dela diante da cultura brasileira. Talvez, decorra daí o entendimento para muitas
das posições que o autor toma no Brasil. Segue-se a isto uma análise estrutural do diário
e os aspectos resultantes dele: como as sensações diante do desconhecido convergem
para o estado de espírito do autor. Além dessas sensações, vemos também a curiosidade
para com uma cultura que não é sua e a forte presença de situações que o agradam e
também o incomodam, de maneira que pode-se dizer que há uma diversidade e
hibridismo em seu diário.
Os principais temas das anotações de viagem de Camus são a curiosidade dele
para com a cultura brasileira, as inquietações em relação ao seu estado de saúde, bem
como as angústias e alegrias diante dos personagens ícones da nossa sociedade, com os
quais convive, como os modernistas Oswald de Andrade e Murilo Mendes. Desta
maneira, faz-se necessária uma análise da viagem do autor, como já dito, com recorte
específico quando ele passa pelo Brasil. Apresentaremos alguns relatos com o intuito de
analisar as impressões do diário de bordo de Camus, como o deslocar físico resultou em
um deslocar subjetivo e, ainda, como tais momentos influenciaram no sentir-se diante
de um solo brasileiro, como a imagem do país aparece para o leitor constituída e
carregada de uma perspectiva camusiana.
No tocante ao escritor francês, mostrou-se pertinente convocar aqui a Teoria do
Absurdo e da Revolta para se pensar a obra de viagem de Camus, principalmente a
maneira como o autor enxerga os fatos, já que muitas vezes sua posição parece estar
permeada desses pensamentos para isso, serão utilizados os ideais descritos por Camus
10
em O Mito de Sísifo e O homem revoltado11. A configuração de diário de bordo é
melhor entendida a partir das ideias de Maurice Blanchot em seu livro intitulado O livro
por vir, precisamente no capítulo O Diário íntimo e a Narrativa12; apesar de se tratar de
um diário de viagem, as anotações apresentam características do diário íntimo, além de
um pacto com o calendário, bem como o desejo de ter suas memórias preservadas.
10
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013.
11
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2011.
12
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270.
16
13
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuis cinq cents ans. pp. 79-97.
14
LIMOGES, J.-M. La Mise en abyme imagée. Textimage n°4, L‟image dans le récit, hiver 2012.
15
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29. out. 2016.
16
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. Gragoatá: Revista do Instituto
de Letras da UFF, Niterói, v.11, p.41-60, 2001, p. 61.
17
17
SANTIAGO, S. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002. p.108-144.
18
CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1923.
18
três capítulos pretendem apresentar uma análise equilibrada dessas sensações viajantes,
que são compostas através de uma relação a partir do contato com o estranho, ainda não
conhecido, e como esse momento único revela impressões específicas de cada um dos
autores.
19
CAPÍTULO 1
19
ABREU, Mirhiane Mendes. Do ensaio à história literária: o percurso intelectual de Ronald de Carvalho.
Remate de Males, v. 27, p. 265-275, 2007. BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação,
modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005. 256p. BOTELHO, André. A Pequena história da
literatura brasileira. Provocação ao modernismo. Tempo Social revista de sociologia da USP, v. 23, n. 2
pp. 135-161. Novembro de 2011.
20
ABREU, Mirhiane Mendes de. Modernismo Brasileiro e Mundo Ibérico em Ronald de Carvalho.
Tempo Brasileiro, v. 184, p. 257-280, 2011. ABREU, Mirhiane Mendes de. Tradição e autonomia na
perspectiva crítica de Ronald de Carvalho. Via Atlântica (USP), v. 14, p. 167-181, 2008. ABREU,
Mirhiane Mendes de. Do ensaio à história literária: o percurso intelectual de Ronald de Carvalho. Remate
de Males, v. 27, p. 265-275, 2007. BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e
rotina intelectual. Bauru: EDUSC, 2005. 256p. PIRES, Antônio Donizeti. O poeta Ronald de Carvalho:
irônico e sentimental? Ciências e Letras (Porto Alegre), Porto Alegre, v. 39, n.39, p. 114-132, 2006.
20
intelectuais do período realizados por André Botelho, Ronald de Carvalho é visto com
menor significado dentre os modernistas brasileiros, seja por sua obra poética não ser
considerada formalmente inovadora o bastante para as perspectivas reputadas ao
momento. Além disso, parte da crítica especializada no período acentua São Paulo como
um locus prioritário das conduções do programa modernista e Ronald de Carvalho,
habitante do Rio de Janeiro, estaria fora desse circuito.21
Apesar de sua produção literária ter sido interrompida pela sua morte trágica em
1935, o estudo do seu pensamento pode trazer novos olhares para os anos em que atuou.
É por isso que aqui se faz uma reflexão sobre o que disse Antonio Dimas no ensaio A
encruzilhada do fim do século. Embora o autor não discuta sobre Ronald de Carvalho, o
que ele fala sobre o tempo que vai da Belle Époque às vanguardas, interessa para tal
reflexão. Diz o crítico sobre o período: “Viveu-se, é verdade, um momento de impasse,
mas dele germinaram opções decisivas que nortearam nossa produção cultural posterior.
”22. Ronald de Carvalho atuou em meio a esses impasses e tomou decisões poéticas e
intelectuais para consolidar uma sociedade literária, de acordo com o que sua época
esperava do homem de letras. Pensando nessas motivações de um conjunto de
intelectuais que buscavam símbolos da modernidade para o país por um contexto mais
amplo, mostra-se importante pensar a obra Toda a América.
Exaltar o continente americano é uma questão que relaciona os poemas de Toda
a América, como uma espécie de linha que costura os temas ali desenrolados. Esse
princípio é o eixo em torno do qual gravita o artigo escrito por Mirhiane Mendes de
Abreu, Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América. Segundo Abreu, o
ano de 1926 aponta para uma obra em coerência com os ideais modernistas daquele
período. Ronald de Carvalho estabeleceu um diálogo com as estéticas inovadoras do
momento, contribuindo com o conhecimento lírico do Brasil no exterior. Enfatizando a
análise na viagem ocorrida entre 1923 e 1924 pelo continente americano, o estudo
mostra como o deslocamento físico e sua consequente absorção sensorial e psicológica
foram ministrados liricamente em Toda a América, de Ronald de Carvalho e, por fim,
conclui que a produção poética existente neste livro: “inclui-se numa dinâmica mais
21
BOTELHO, A. O Brasil e os dias. Estado-nação, modernismo e rotina intelectual. Bauru: EDUSC,
2005. 256p.
22
DIMAS, Antonio. A encruzilhada do fim do século. In: PIZARRO, Ana. América Latina – Palavra,
Literatura e Cultura. Campinas: Unicamp, 1994, p. 536-574.
21
chamamento para o poeta lutar e representar todo esse pensamento no que concerne aos
ideais do autor de exaltação do Brasil e da América.
Em vista disso, quanto ao aspecto viagem, vemos que não há apenas um deslocar
físico, mas também um deslocar psicológico presente no livro. Desta maneira, são
observadas estruturas poéticas em que comparações, descrições e até a construção
imagética dos locais, em sua maioria, convergem para sensações próprias de um eu-
poético. Dessa forma, o autor passa a ser identificado através do outro: são os relatos
intimistas, cotidianos, próprios de cada lugar em que se encontra que constroem essa
identificação, como será mostrado mais adiante nas análises. O resultado seria um
projeto maior, já delimitado, a identificação de um poeta nacional, empenhado em
descrever todo o continente americano, principal fonte de recognição. É fundamental a
decodificação de tal fenômeno para entendimento total da obra estudada.
Diante desse fenômeno de reconhecimento de si diante do outro, o primeiro
poema inaugura a obra, a construção, através da comparação (Europa/América),
minuciosa e plural do que seria para o autor o continente Americano. Advertência tem
como objetivo em suas estrofes alertar o europeu das riquezas da América:
[...]
Europeu!
Nessa maré de massas informes, onde as
raças e as línguas se dissolvem,
o nosso espirito áspero e ingênuo flutua
sobre as coisas,
sobre todas as coisas divinamente rudes,
onde boia a luz selvagem do dia ame-
ricano!25
25
CARVALHO, Ronald. Toda a América. 1. ed. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello&Cia, 1926. p. 15.
Todas as citações do livro estão observadas a partir da primeira edição com a ortografia atualizada
segundo as normas atuais.
23
selvagem americano. O autor faz esse mesmo movimento em outros poemas, em alguns
títulos ele apenas descreve o local em que está, em outros ele constrói a partir da
descrição ou comparação uma exaltação da América, do homem do futuro e do poeta
americano.
Neste contexto e a partir de tal repertório, há a necessidade de um olhar atento
para o aspecto da construção de um Brasil sob o prisma de um viajante, intelectual,
diplomata, convencido de uma teoria de exaltação ao continente americano, com maior
atenção para o próprio país e como ele vai se configurar nos poemas que constituem a
obra. É indispensável um foco específico na viagem e como o autor a relaciona na
construção de uma identidade que lhe seja própria, de sua pátria ou continente, uma vez
que a obra tem sua arquitetura estabelecida a partir de um deslocar físico e, por isso, nos
traz consequentes elaborações poéticas frutos desse deslocar.
Elementos que podem configurar a hibridez do termo viagem são essenciais para
sua configuração. O viajante é o que se desloca em busca desses elementos, que serão
ou não primordiais para expressar impressões e sensações. A viagem para Ronald de
Carvalho baseia-se em “o outro”; “a visibilidade”, “o encontro” e “o saber”, termos
facilmente notados na forma de linguagem poética, configurada em seus poemas.
26
SEIXO, Maria Alzira. Poéticas da viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.p. 25.
24
Toda a América toma por empréstimo de Maria Alzira Seixo. A definição desse
conceito de viagem, que nos cabe perfeitamente nesta análise, é aquela que se
movimenta através do deslocar físico e do psicológico; e leva até as impressões do
viajante e até mesmo a um reconhecimento de si:
[...]
Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos e
27
ABREU, Mendes Mirhiane. Sensações e deslocamentos – a viagem em Toda a América. Letras de
Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 2, p. 75, abr./jun. 2011.
25
latinos,
teus poetas devem ter as mãos sujas de
terra, de seiva e limo,
as mãos da criação!28
28
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 132.
29
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
30
Conforme as designações de Fernando Cristóvão os cinco tipos de viagens e viajantes são: 1) a
peregrinação e o peregrino; 2) as viagens de comércio e o comerciante; 3) as viagens de expansão e o
explorador; 4) a viagem de erudição ou de serviço e o estudioso ou o diplomata; 5) as viagens
imaginárias.
26
31
CRISTÓVÃO, Fernando. Op. Cit. p. 49.
32
BOTELHO, A. Circulação de idéias e construção nacional: Ronald de Carvalho no Itamaraty.
Estudos Históricos (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 35, p. 69-97, 2005.
27
Agosto. 1923.34
No poema México o sujeito lírico apresenta ao leitor uma índia nativa do local
em que está. A partir da caracterização dessa personagem o interlocutor do poema pode
recriar a imagem que o eu-lírico pretendeu reconstruir. Portanto, temos a posição de um
observador que toma como matéria-prima para a composição aquilo que vê e tenta
passar para o leitor suas sensações diante desse fato inusitado, ainda, poderíamos dizer
que a índia vista, observada e minuciosamente descrita seria uma parte representativa de
todo o território Mexicano, ou seja, o reconhecimento do local: “índia da Avenida
Juarez, toda florida de ritmos,/tu és o México, ou Deus não existe!”. Esse fenômeno é
33
CARVALHO, Ricardo de Souza. Ronald de Carvalho: um moderno acadêmico. Graphos. João Pessoa,
v. 8, n. 1, Jan./Jul./2006. p. 75.
34
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 101-102.
28
acentuado pelo artigo definido „o‟, pois, ao utilizá-lo antes do nome México, há a
demarcação entre o território e a índia da Avenida Juarez.
Além disso, o outro se faz presente na expressão das sensações, pois o
reconhecimento do local também faz com que o eu-poético apresente suas impressões
transformadas em linguagem poética. A mistura dessas diferentes sensações caracteriza
a própria índia, mas que também apresentam elementos que estão relacionados aos
sentidos humanos, o tato, a visão e a audição. São, especificamente, a “brasa dos
sarapes”; “o rebozo de seda”; “tacões duros”; a “canção tapatia”; a “toda florida de
ritmos”. Pequenas partes, apresentadas aos poucos, que vão construir metonimicamente
a figura da índia, esta que também é a índia da Avenida Juarez e consequentemente é
ainda todo o México. Portanto, o reconhecimento do outro que resulta em sensações
particulares desse eu-lírico.
Pode-se entender que Ronald de Carvalho, além de exaltar seu país, como seu
continente, pleno de um projeto modernista, também perpassa suas impressões que
chegam ao leitor sob outro prisma: o de um eu-lírico, eu-poético, que se vê na
necessidade de apontar relatos cotidianos, momentos subjetivos que comovem,
impressões particulares que vão construir cada lugar a maneira de ver do autor. Desta
maneira, os poemas passam a construir uma visão grandiosa do continente e do país.
Por conseguinte, entende-se deste modo que o projeto do autor está intrinsecamente
ligado às suas impressões mais pessoais e vice-versa, já que uma constitui a outra. Por
exemplo, na primeira parte do poema Toda a América temos:
1
Do alto dos Andes, América,
do alto das sierras me-
xicanas,
de Laguna del Inca, de
Punta de Ias Vacas, de Orizaba e
Xochimilco,
35
Ibidem. p. 109-110.
29
Esse poema é extenso e possui cinco subdivisões. Na primeira parte, nos versos
iniciais, podemos ver a exposição de alguns locais pelos quais o eu-lírico passou. Mais
uma vez temos o sujeito observador que vê do alto as características da América. Na
estrofe seguinte há o início do detalhamento do continente americano, no entanto, esse
movimento se dá a partir da primeira pessoa: “eu te vejo”. As impressões mais íntimas
diante o desconhecido serão aquelas que vão caracterizá-lo com a finalidade até mesmo
de exaltar a América.
Todavia, esses relatos têm, assim como os traços da composição épica, uma
particularidade de récit. O termo por si assume uma problemática relacionada a seu
conceito, afinal não se define simplesmente como narrativa. Por isso a definição cabida
é a de Jean-Yves Tadié: “Tout récit est une relation d‟événements, que l‟on raconte et
que l‟on relie.”36 Observa-se esse fenômeno na obra estudada, apesar dos poemas
assumirem uma arquitetura textual característica do gênero, apresentam fatos, relatos,
acontecimentos que apresentam características da narratividade, ou seja, fatos que estão
ligados entre si.
Os poemas exprimem uma narratividade, visto que há o decorrer de
acontecimentos, elementos de uma história acontecendo ou a construção de imagem
constante que absorve naturalmente os aspectos da narratividade. Nessa linha de
pensamento, Paula Cristina de Morais Cunha, em seu artigo Apontamentos teóricos
sobre Literatura de Viagens, conclui:
muitos arranjos poéticos presentes no livro. Por esta razão, os poemas intitulam-se com
os nomes dos locais físicos nos quais o sujeito lírico está, mas nem sempre os
substantivos próprios terão essa funcionalidade, a exemplo: “Advertência, Mercado de
Trindad – Ilha de Trindad, 1923; Noturno das Antilhas - Bordo do “Vandyck”;
Barbados – Ilha de Barbados, 1923; Broadway – New- York, 1923; Tonalá – Tonalá,
1923; Puente del Inca – Inca, 1924; entre outros”.
Para exaltar o continente americano, o autor precisa caracterizar, delimitar suas
particularidades, é a comparação entre o europeu e a América que define a
grandiosidade do continente americano, para que o europeu a entenda desta forma:
[...]
Europeu! Filho da obediência, da economia
e do bom-senso,
tu não sabes o que é ser Americano!
Ah! os tumultos do nosso sangue temperado
em saltos e disparadas sobre pampas,
savanas, planaltos, caatingas onde es-
touram boiadas tontas, onde estouram
batuques de cascos, tropel de patas, tor-
velinho de chifres!38
38
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 13-14.
39
ZILBERMAN, R. O Resumo de História Literária, de Ferdinand Denis: história da literatura enquanto
campo de investigação. Revista Veredas, v. 19, p. 121-144, 2013.
31
40
CARVALHO, Ronald de. As vozes da Terra. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário
do Brasil, 1923.p. 302.
32
do caráter oficial do diplomata, pode ser pensada como uma expressão internacionalista
de uma face do projeto modernista, pois, quis captar poeticamente a pluralidade de um
determinado momento. O poeta modernista, da geração de 1922, era aquele que
tencionava conhecer a sua história, era o intelectual que visava como projeto de uma
vanguarda propagar aquilo próprio de um Brasil, ainda desconhecido. Ronald de
Carvalho possui contornos próprios entre os modernistas de seu tempo, uma vez que em
seu propósito busca exaltar o continente americano, não à toa, exalta também o Brasil
em suas composições poéticas.
Configura assim, ao lado de escritores como Oswald de Andrade e Mário de
Andrade, o que Alfredo Bosi chama em seu ensaio Moderno e Modernista na Literatura
Brasileira de o “ângulo de visão” dos próprios intelectuais daquele movimento
fervoroso, para os quais o festejo da Semana de Arte Moderna de 22 teve papel
catalisador decisivo:
41
BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In:______. Céu, inferno. São Paulo:
Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 217.
33
coesão de uma coletividade social como „nação‟. ”42. Por isso, uma atenção aos poemas
que exaltam a nação brasileira, o continente americano e o tipo e função do poeta que
seria considerado ideal pelo autor, elementos que constituem o conjunto de Toda a
América: a comprovação dos ideais de Ronald de Carvalho.
Portanto, é nessa perspectiva que caminha Ronald de Carvalho na constituição
da obra estudada. O autor sai em viagem como diplomata, mas enquanto poeta
modernista brasileiro busca comprovar seus ideais, que para o momento seriam uma
enfática confirmação de sua concepção de nação, na qual se encontra o homem do
futuro, do poeta brasileiro e uma exaltação daquilo que seria representação unificada do
continente americano.
43
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 24-26.
35
canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços”. Descobrimos nesse ponto o
motivo de toda a enumeração anterior dos tipos brasileiros, a intenção é a de demonstrar
os diferentes meios e homens brasileiros para enfim nos apresentar o de maior
significância entre os demais: “onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno,
confiante, /o homem de amanhã! ”. Essa composição se apresenta com o intuito de
demonstrar para o interlocutor o que seria o homem do futuro, do amanhã, ideal de
exaltação para o autor.
Este elemento converge para construir o homem do futuro, brasileiro com as
mais valiosas características desse povo, que será não apenas o homem brasileiro, mas o
homem de amanhã, figura representativa de um país visto à maneira modernista. O
homem de amanhã é o homem do futuro, civilizado, pronto para construção de um país
que para os modernistas era visto, como já dito, com uma organicidade presente. A
busca e a representação de uma emancipação cultural e produção própria literária.
Após uma breve observação sobre alguns poemas de Toda a América o livro
apresenta, em seguida, a sessão Cartas, parte esta que realmente desdobra-se em uma
leitura epistolar. Afinal, seus escritos apresentam uma estrutura de poemas. No entanto,
pode-se desmembrá-la para chegar à conclusão de que o autor os configura como cartas,
que inclusive são direcionados, dedicados, quase que endereçados a pessoas, uma vez
que sempre abre seus poemas com dedicatória e finaliza com a data. Portanto, essa
forma de compor seus poemas resulta em uma estrutura de “crônica de viagem” e
estrutura epistolar, segundo Mirhiane Mendes de Abreu:
44
ABREU, M. M. Op. Cit. p. 71.
36
levantadas a partir delas: “Naquela noite eu amei como nunca o Brasil”; “Aqui nestes
grandes silêncios das cordilheiras é que eu te sinto, América”; “Que águas poderão
agora refletir-me?”45. Essas composições assumem um tom mais particular, como se o
poeta quisesse realmente transmitir aquilo que viveu em suas viagens, com o intuito de
reviver através da escrita as principais percepções do momento. Sobre esse tipo de
escrita que consideramos lírica, Theodor Adorno afirma que a lírica está em diálogo
com o social a sua volta e:
momento. Mercado de Trindad faz uma descrição e uma caracterização do local, o eu-
lírico vê e sente o local, apresenta as sensações a partir de um momento. Noturno das
Antilhas também apresenta a descrição e as impressões sensoriais diante do
desconhecido. Barbados expõe uma cena que é retratada, a construção de uma imagem.
Broadway faz uma reflexão a partir do chão de Nova York, precisamente o chão da
Broadway, há nele, segundo o eu-lírico, todos os sonhos do mundo, em que faz também
uma analogia com diversos outros lugares da América.
Tonalá traz a figura de Nossa Senhora de Guadalupe, há a construção imagética
do local a partir dessa figura. Puente del Inca é o único poema da série que faz uma
exaltação da América, pois o eu-poético a sente diante de uma comparação com outros
diversos espaços físicos do continente. Uma Noite em Los Andes apresenta pela
primeira vez a sensação de exílio por parte do eu-lírico, que sente falta do seu lugar, já
que se vê diante de elementos desconhecidos, mas que trazem uma aproximação daquilo
que lhe é próprio. Cristal Marinho constrói imagens que denotam planos geométricos,
elementos ligados ao mar, como o navio, ainda faz uma descrição do momento e de sua
impressão intrínseca. E por fim a última construção poética da sessão Entre Buenos
Aires e Mendoza na qual os pampas aparecem como sujeito poético, bem como a sua
descrição e seu desdobramento para algo que caminhe para sua purificação com a
diversidade de elementos.
Para tanto, a partir desse aspecto da viagem e de seus desdobramentos, como o
deslocar físico e o deslocar psicológico, resultam em um processo no qual o autor passa
a identificar-se através do outro, são os relatos cotidianos, próprios de cada lugar em
que se encontra: as sensações mais marcantes que são muitas vezes simples
observações. Desses relatos, continuamente elencados de maneira a constituir uma
pluralidade, extraímos desde o que seria mais singular e expressão lírica até o que
constitui um projeto de exaltação do continente e do país. No entanto, há uma
especificidade em Toda a América, o deslocar físico que leva a um reconhecimento.
Michel Collot compreende que o sujeito lírico para se encontrar precisa estar fora de si:
47
COLLOT. Michel. “O sujeito lírico fora de si”. Tradução de Alberto Pucheu. In: Revista Terceira
Margem, ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: 7 Letras. p 224. 2004.
48
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 69-70.
39
Barbados
damente...
Broadway
A Mario de Andrade
e movimentos.
49
Ibidem. p. 43-44.
41
canaviais de Cuba,
juncos de Shangai,
cafezais de Ribeirão Preto,
[...]
Aquele chão é uma paisagem em marcha.
Chão que mistura as poeiras do Universo e
onde se confundem todos os ritmos do
passo humano!
50
Ibidem. p. 46-51.
42
modernistas, logo, havia uma extrema importância do diálogo epistolar entre os autores.
Nele, como observado, podemos analisar dois pontos, o primeiro seria aquele que
permitia aos modernistas um diálogo aberto sobre seus principais ideais, o segundo o
que permitia a Ronald de Carvalho a expressão mais íntima, inclusive a respeito de
novas produções artísticas para o momento.51 Ao consumar esta análise, em Cartas, a
composição lírica e a configuração epistolar, como já apontado acima, demonstram o
conjunto desses dois pontos que levaram à composição de correspondência do autor: de
um lado, as impressões líricas são as mais particulares, singulares que nascem
aparentemente da observação do chão da Broadway; e, por outro, ao elencar a
diversidade ali presente, coaduna-se com o pensamento de exaltação presente em toda a
obra. Sendo assim, a comprovação das diferenças do povo americano e sua assimilação
diante de um único local físico.
Embasado nesta configuração de texto, pode-se entender que Ronald de
Carvalho, por mais que tente uma composição que caminhe para um universal
totalizante do Brasil e da América com a finalidade de exaltação, também sente a
necessidade de expressar as experiências sensoriais de esse deslocar físico,
característica comum em obras resultantes do ato de viajar. Esse fenômeno seria quase
que como inevitável, já que o eu-lírico precisa demonstrar as impressões diante do
desconhecido, mesmo que esse desconhecimento leve ao reconhecimento daquilo que
lhe é único e singular.
A penúltima divisão do livro intitula-se Jornal dos Planaltos e toda a sessão é
dedicada a Carlos Pellicer: escritor, poeta e político mexicano. O trecho apresenta
também os relatos pelos locais em que o eu-lírico encontra-se, além da denominação
“Jornal” remeter ao registro cotidiano dos fatos, o que aponta para duas vertentes: a
primeira, o intuito de se ter registrado o que viveu e a segunda, o desejo de tornar
público as sensações diante do desconhecido. Os poemas dessa parte somam dez e são
relativamente curtos (os versos somam entre dez e vinte), em comparação ao restante do
livro. O essencial é perceber que quase todas as composições denotam para a marcação
de localidade, no caso o México.
Salvo três poemas, os demais não apresentam dedicatória, mas todos aparecem
com marcação de data, mês e ano: Fronteira do Rio Grande – Junho. 1923; Xochimilco
ou o Epigrama da Índia Exilada – Junho. 1923; San Agustin Álcolman – Junho. 1923;
51
ABREU, M. M. De Ronald a Mário: epistolografia literária. In: XI Congresso Internacional da
ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. 13 a 17 de julho de 2008. USP – São Paulo, Brasil.
43
Cholula – Agosto. 1923; Puebla de los Angeles. Junho. 1923; Puebla - Agosto. 1923;
Querétaro – A Diego Rivera. Junho. 1923; México (D. F.) – Agosto. 1923; Guadalajara
– A Roberto Montenegro. Junho. 1923, e Toda a América – a Renato Almeida. Sem
marcação de tempo.
Fronteira do Rio Grande apresenta a descrição do local, no caso o México.
Xochimilco ou o Epigrama da Índia Exilada é um poema curto e introspectivo, com
uma indagação existencial ao fim: “ Que aguas poderão agora refletir-me?”.52 San
Agustin Álcolman traz uma caracterização breve do local. Cholula, com elementos
geométricos, apresenta a observação do espaço físico. Puebla de los Angeles apresenta o
aspecto observatório, o oleiro que observa e pinta diante de uma mistura de sensações,
entre ver e ouvir.
Puebla traz a observação e caracterização do espaço físico. Querétaro apresenta
uma descrição mais detalhada, usa de elementos mais simples e cotidianos. México (D.
F.) traz a figura da Índia da Avenida Juarez, faz a caracterização dessa figura em
conjunto com o local. Guadalajara constrói a descrição da localidade a partir do verbo
dançar, que resulta em uma concepção sensorial intimista do sujeito lírico.
Como exemplo de poema desta sessão:
Guadalajara
A Roberto Monteneqro
Guadalajara, tu és toda
uma dança!
52
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 89.
44
Julho. 1923.53
53
Ibidem.103-104.
54
COMBE, Dominique. L‟épopée à l‟épopée moderne. In: PEDROSA, Célia; ALVES, Ida (Org.).
Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
p.336.
45
55
Ibidem. p. 52.
56
Ibidem. p. 56.
46
[...]
Oh! América, o teu poeta será
um construtor,
e qual o que lança n'agua o
barco migrador,
e qual o que projeta o dinamismo da
máquina,
e qual o que calcula os alicerces e as
paredes,
e qual o que domina a massa pelo número,
ele terá a rude imaginação do inventor.
Mais uma vez notamos que a ideia da obra é sempre a de exaltação, por isso,
pode ser vista como um récit de combate, uma vez que a obra comprova o pensamento
do autor, daquilo que deveria ser o poeta americano. O sujeito lírico apresenta esse
poeta a partir da caracterização e enumeração caótica58, ou seja, o ato de enumerar,
listar ideias que estabelecem uma semelhança entre si, como por exemplo: “Oh!
América, o teu poeta será / um construtor,/e qual o que lança n'agua /o barco
migrador,/e qual o que projeta o dinamismo da máquina,/e qual o que calcula os
alicerces e as /paredes,/e qual o que domina a massa pelo numero,/ele terá a rude
imaginação do inventor.”. Há ainda um paralelismo no início dos versos que estabelece
semelhança e converge para uma mesma ideia, a caracterização do que seria o poeta
americano, ou seja, aquele que, apesar de todos os atributos, será o inventor de uma
poesia própria.
O autor utiliza artifícios que servem sempre para a descrição e ampliação dos
elementos propostos, como no caso o poeta americano. A ideia de exaltação está até
mesmo na grandeza do poema, como se tivesse o comprimento da América e suas
passagens servissem para caracterizá-la. No entanto, não podemos deixar de olhar para a
57
CARVALHO, Ronald. Op.cit. p.145-146.
58
A exemplo de uso de enumeração caótica tem-se Macunaíma Mário de Andrade. Nesta obra também há
a listagem de ideias que assumem semelhança entre si. Atributo, este, que pode ser admitido em obras que
pertencem ao modernismo e, ainda, tencionam a plurificação de um único elemento.
47
obra como um todo, que a partir das impressões mais intimistas volta-se para o todo da
América, o que faz dela singular com desdobramentos dos locais em que o eu-poético se
desloca. A obra analisada tem muitas das características do que consideraríamos épico,
no entanto, não se pode analisar de maneira que a obra poética tente abranger todos os
elementos que configuram esse tipo de composição. Toda a América é uma obra
moderna que, nostalgicamente, pretende retomar esse mundo totalizante. Assim
configura Ronald de Carvalho em poemas como Brasil e Toda a América, poemas
longos que a partir de uma enumeração da diversidade do povo brasileiro e americano
elevam os heróis da América e da nação a mitos modernos.
48
CAPÍTULO 2
59
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuis cinq cents ans. pp. 79-97.
60
ARONSON, Ronald. Camus e Sartre: O polêmico fim de uma amizade. Tradução de Caio Liudvik.
Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2007; BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José
Álvaro Editor S.A., 1971; BORRALHO, Maria Luiza. Camus. Porto: Rés, 1984; BRISVILLE, Jean-
49
Claude. Albert Camus. Trad. Rui Guedes da Silva. Lisboa: Editorial Presença, 1962; GUIMARÃES,
Carlos Eduardo. As dimensões do homem: mundo, absurdo, revolta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971;
QUILLIOT, Roger. L’homme révolté: commentaires. In: CAMUS, Albert. Textes complémentaires.
Essais. Paris: Gallimard, 1965; REY, Pierre-Louis. Camus: une morale de la beauté. Liège: Sedes, 2000.
61
CAMUS, Albert – O Estrangeiro. Tradução Antônio Quadros – São Paulo: Abril Cultural, 1982.
62
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013.
63
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2011.
64
CAMUS, Albert – O Estrangeiro. Op. Cit.
65
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Op. Cit.
.
50
Sentir o máximo possível sua vida, sua revolta, sua liberdade, é viver
máximo possível. Onde reina a lucidez, a escala de valores torna-se
inútil. Sejamos ainda mais simplistas. Digamos que o único obstáculo,
o único "lucro cessante" é constituído pela morte prematura. O
universo aqui sugerido vive somente por oposição a essa constante
exceção que é a morte.66
66
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: BestBolso,
2013. p. 67.
67
Idem. p. 60-61.
68
RESENDE, Otto Lara. Prefácio. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
51
Camus muitas vezes se choca com a cultura brasileira, o que lhe causa certa
antipatia, já que estava diante de um território distinto. Apesar da sua curiosidade, o
autor talvez visse o mundo sob um prisma muito particular do momento, pois,
recorrentemente, não compreendia os atos desse povo que considerava bárbaro.
Importante notar que são as impressões de um estrangeiro diante do desconhecido e
como a maioria dos viajantes os acontecimentos podem tanto agradar como o contrário.
No entanto, diante de alguns acontecimentos que o desagrava o autor apresenta uma
postura muito peculiar, por isso tentou-se nesta análise aproximar alguns aspectos que
seriam próprios da teoria principal de Camus: Absurdo e Revolta.
Essas anotações são recorrentes, principalmente quando os momentos de contato
com a cultura brasileira o incomodam. Como molde as anotações sobre o trânsito
brasileiro. A primeira impressão sobre é do primeiro dia em que chega ao Brasil, e faz
parte da configuração dos sete tópicos anotados ao acaso pelo autor francês. Então, o
fato parece ser chocante desde o primeiro contato com a cultura estrangeira. Outro caso
em que o autor não se sente confortável aparece em 18 de julho, quando Camus vai com
Barleto69 visitar o subúrbio operário do Rio de Janeiro e presencia na volta outro
acidente de trânsito. Dessa vez um senhor negro é arremessado longe e não há, como no
caso anterior, quaisquer manifestações de ajuda à vítima. O motorista que o atinge foge
para evitar a punição de flagrante delito, jogam um lençol sobre o morto e o trânsito
continua desviando desse novo obstáculo. As anotações no diário demonstram grande
descontentamento diante da situação e Camus não compreende essa atitude de enorme
indiferença, em uma circunstância tão violenta:
69
“Assim, o jornalista que recebe Camus no porto do Rio de Janeiro, e a quem o autor se refere
alternadamente como B. ou Barleto, é João Batista Barreto Leite Filho, que fora correspondente dos
Diários Associados na Europa durante a Segunda Guerra Mundial”. Nota Sumária à edição brasileira.
In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
70
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 79-80.
52
71
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 80.
72
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 94.
53
73
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 87.
54
trechos distante dessa sociedade desconhecida na qual está. Mas também pode ser
interpretado como simplesmente uma breve reflexão melancólica do momento. No
entanto, a questão apresenta-se de maneira complexa, já que o sujeito é aquele que não
compreende os hábitos da civilização que busca conhecer, assim deixa de entender esse
momento delicado e constrói uma aversão ao meio social que o cerca.
Logo em seguida, ainda no mesmo dia, após a conferência para uma plateia que
o escritor definiu como “paciente”, o cônsul o acompanha até o hotel e oferece uma
quantia referente a 45 mil francos, que Camus nega. Seria o pagamento da Universidade
da Bahia pela sua apresentação. Obviamente, o homem que lhe oferece o dinheiro fica
surpreso quando o autor não aceita e alega ser este o valor que outros conferencistas
cobram. Depois de alguma insistência, desiste. Camus ainda prevê que o cônsul não
poderia deixar de pensar que a sua recusa estaria ligada a falta da necessidade do
dinheiro. No entanto, deixa subentendido o contrário: precisa do dinheiro.
Mais uma vez um costume relacionado ao social o desagrada. A oferta do
dinheiro diante de uma atividade que para ele não deveria ser paga o incomoda, e o
escritor recusa mesmo até perante uma necessidade subentendida no diário. Camus nega
participar do esquema presente, afinal outros cobram o mesmo valor que não aceitou, e
mantém sua posição mesmo com uma insistência do cônsul. Novamente, a tomada de
consciência se faz presente e há a semelhança com o absurdo. Não aceitar o cachê
significa não compactuar com os esquemas sociais: é o resultado de uma revolta
solitária diante de uma sociedade que assume certas condutas que podem ser expressas
de maneira singular e representativa em uma civilização, mas que podem ser vistas a
maneira universal, uma vez que tais atitudes são concebidas mesmo em outros planos
civilizatórios.
Essa presença do choque de diferenças aparece quase em toda a obra, no
entanto, o olhar atento é necessário, pois o autor passa a configurar seu estado de
espírito a partir desse contato com a diferença, já que muitas vezes provoca uma
aproximação com a própria cultura do autor, como o enorme esforço para a
comunicação em francês ou, por exemplo, demonstrações de conhecimento da
civilização e cultura francesa. Esses elementos vão causar tédio e desconforto no
escritor. Pretende-se analisar como os relatos são frutos dessa vivência de Camus no
Brasil e como o trajeto que percorre influencia em seus relatos sensoriais e impressões
íntimas.
A análise é a de um diário de viagem que narra as principais circunstâncias
55
desse trajeto em território brasileiro, mas também uma narrativa que volta para si o
tempo todo. O movimento é sempre reconhecer o outro para voltar a si. O modo como o
diário de Camus é escrito favorece esse pensamento, pois há nas páginas o escritor que
tenciona reviver os acontecimentos através da lembrança registrada por meio dos
escritos cotidianos. Assim sendo, uma escrita que tem Camus protagonista, também será
aquela que refletirá seus principais pensamentos e meios de encarar o mundo.
Anos antes ao escrever seu ensaio filosófico O Mito de Sísifo, no qual há a
definição de absurdo, Camus reflete logo no começo sobre o que seria o sentimento do
absurdo para o homem:
74
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Op. Cit., p. 20.
56
O próprio editor do diário nos adverte dessa peculiaridade quanto aos escritos
referentes à América do Sul, e enfatiza, ainda, a diferença entre Camus e as terras
visitadas, além de nos apontar a importância dessas viagens realizadas, afinal foram
quase as únicas concluídas pelo autor. Diário de Viagem merece atenção por suas
singularidades, exatamente por ser um homem com atitudes distintas e singulares
durante o momento da viagem. Autor viajante que poderíamos aproximar àquele
homem do absurdo diante de território brasileiro. Ainda desse périplo fez-se matéria
prima que constituiu uma obra literária. Pretende-se, a seguir, analisar mais
detalhadamente o gênero diário e como esse tipo de escrita constrói uma escrita de si
mesmo diante do desconhecido.
77
BLANCHOT, Maurice. O Diário íntimo e a Narrativa. In: O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 270.
78
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 48
58
Mesmo com uma acentuada despreocupação em relação a uma escrita que volte
para si, muitas vezes vamos reconhecer no diário, que deveria manter os relatos
referentes à viagem, expressões de um Camus se autoconhecendo. A forma é híbrida,
conforme afirma Maurice Blanchot, porque seu conteúdo caminha nessa fusão de
intenções: os relatos imagéticos, descritivos de uma área desconhecida, as sensações
diante de pessoas e territórios também distintos, até suas percepções mais íntimas.
Nessas últimas linhas da data já referida, o autor configura espontaneamente o
que seria o ideal de diário para Maurice Blanchot. O cotidiano é quem vai reger as
perspectivas de escrita de um diário. Desse modo, o que é dito deve manter um pacto
com a verdade, o escritor do diário deve ser sincero, uma vez que se mantém fiel aos
aspectos do dia a dia. No caso da viagem, essa sinceridade torna-se primordial, pois as
impressões de um determinado território que serão configuradas em linhas cuja a
veracidade é essencial. Maurice Blanchot para confirmar tal argumento vai ainda
concluir que “Cada dia anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação.
Assim vivemos duas vezes”80.
79
BLANCHOT, Maurice. Op. Cit. p. 275.
80
BLANCHOT, Maurice. Idem. p. 273.
59
Nessa perspectiva, essa ideia de dupla e vantajosa operação que Blanchot nos
apresenta serve para a obra estudada, porque se trata de um diário de viagem, um diário
de bordo que pretende preservar seus principais acontecimentos, pois, como aponta a
intenção, Camus gostaria de reviver as memórias anotadas e protegidas. No entanto, é
uma obra de cunho intimista que volta para a construção do próprio escritor, mesmo que
ele não pretendesse essa configuração. Tem-se uma obra que reflete Camus e seu estado
de espírito durante a sua viagem, além de anotações sensoriais referentes a um
deslocamento físico.
Para Camus parece essencial as anotações de suas experiências no Brasil,
principalmente pelo fato de que muitas delas convergem para uma construção de seu
estado de espírito em determinados momentos, uma escrita que determina duplamente
uma construção de si, um reconhecimento que leva o leitor a um maior contato intimista
com Camus. E dessa maneira tem-se o que vai compor esse diário de bordo: as
principais anedotas, o estado de espírito, a relação com personas intelectuais brasileiras
e principalmente a imagem descritiva de um Brasil visto através do prisma peculiar
camusiano.
Para compreender a obra estudada, o entendimento da viagem realizada é
essencial. Como movimento natural desse tipo de autor viajante, o deslocamento físico
resulta em um outro psicológico: há uma identificação diante do outro, alteridade que
caminha para um reconhecimento contínuo de si. Conforme o pensamento de Maria
Alzira Seixo em Poéticas da Viagem na literatura, há nesse tipo de obra uma questão
de identidade, um reconhecimento de si, através do outro. Seria, então, o conhecimento
daquilo que lhe é exterior e diferente para o reconhecimento de si.81
O autor constrói essa identificação através dos relatos intimistas, cotidianos,
próprios de cada lugar em que está, assim consolida essa identificação que resultará em
um projeto maior, já delimitado, a identificação de um autor fora de si e que necessita se
encontrar, seja por meio do exílio, pelo choque de cultura ou ainda por sua maneira
peculiar de ver o mundo.
Para melhor compreensão desse fenômeno, nos valemos novamente o
pensamento de Fernando Cristóvão em Para uma Teoria da Literatura de Viagens, em
que, dentre os cinco tipos de viajantes apresentados pelo autor, recorremos aqui ao que
mais se adequa para essa análise, o viajante-erudito. Para Cristóvão são os viajantes que
81
SEIXO, Maria Alzira. Poéticas da viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.p.25.
60
têm como objetivo adquirir conhecimento que buscam novas ideias e hipóteses. Como
perfil de viajantes são catalogados diferentemente dos outros, já que não demonstram
uma necessidade de aventura, atos corajosos, são na verdade pessoas que não se
acomodam com o conhecimento já conquistado em seus países, desejam encontrar fora
de seus lugares algo que lhes falta no interior e seus escritos vão contribuir e enriquecer
para uma “renovação cultural dos seus concidadãos.”82
Depois da Segunda Guerra Mundial muitos escritores franceses se interessaram
pela América Latina, afinal, ainda havia sobre ela uma visão muito pitoresca em
território europeu. Camus procurou quebrar tal paradigma, já que demonstrou grande
curiosidade sobre o continente latino-americano. No entanto, as perspectivas falharam e
o encontro entre o escritor e o continente deu-se de maneira frustrada. Conforme afirma
Andreu em seu artigo intitulado Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en
Amérique du Sud (1949) :
Andreu relata em seu artigo a vontade que Camus tinha de conhecer o território
latino-americano, no entanto, há uma forte frustração: sua condição enquanto pessoa
intelectual favorecia um olhar com simpatia para o continente; que podemos reconhecer
a partir da leitura de seu diário. Esse “desencontro” pode ser analisado através de
diversos olhares, mas sem deixar de notar as questões pessoais do autor, bem como o
choque cultural e político. Camus vem para América Latina a serviço do governo
francês, com o intuito de promover, através de conferências, a “nova” literatura
francesa.84 No entanto, os acontecimentos decorrentes da viagem vão desagradar o autor
e elevar o profundo estado de melancolia, visto nas últimas páginas do diário. O próprio
Roger Quilliot nos adverte em sua introdução as consequências dessas duas viagens
para a América: “Duas viagens, com dois anos de intervalo. Nos doze anos que se
82
CRISTÓVÃO, Fernando. Para uma teoria da literatura de viagens. In: CRISTÓVÃO, Fernando (Org.)
Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 13-52.
83
ANDREU, Jean-L. Un rendez-vous manqué: le voyage d'Albert Camus en Amérique du Sud (1949). In:
Caravelle, n°58, 1992. L'image de l'Amérique latine en France depuiscinqcentsans. pp. 79-97. p. 80.
84
ANDREU, Jean-L. Op. Cit. p. 80.
61
Trabalho pouco, ando à toa. Dou-me conta de que não estou anotando
as conversas dos passageiros. [...] Mas é também porque meu interesse
neste momento não está realmente voltado para os seres e sim na
direção do mar e dessa profunda tristeza em mim, à qual não estou
habituado.86
85
QUILLIOT, R. Introdução. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek
Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.15.
86
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004. p. 56.
62
a sociedade fica dura de suportar. ”87. Na maioria das vezes prefere observar o mar, o
céu e descrever seu estado de espírito que estabelecer relações com as pessoas presentes
no navio. Na verdade, o autor mostra apreensão quando o desembarque se aproxima. A
ideia de deixar o camarote e conviver em sociedade não lhe agrada. Sensação esta que
antecipa as demais anotações do diário até seu regresso para a França.
Diário de viagem traduz as noções do autor sobre a viagem, consequentemente
seu estado de espírito aparece nos relatos cotidianos, são os compromissos como
palestrante, as relações sociais obrigatórias e o convívio com um povo que o recebia de
forma calorosa e curiosa: “Todo o Brasil me aguarda febrilmente. Minha vinda a este
país é a coisa mais importante que já ocorreu há um número considerável de anos. Aqui
sou tão famoso quanto Proust...”88. Albert Camus tem consciência de sua importância
no Brasil, mas não parece entender toda a bajulação que o cerca, fato que pede uma
profunda compreensão para que se possa examinar os escritos do diário.
Apesar de sua consciência enquanto conferencista e intelectual mundialmente
conhecido, o autor, muitas vezes, se incomoda com seus contatos sociais estabelecidos
no país, afinal, a comitiva que o recebeu no país apresentou certa erudição e alto
conhecimento da cultura e língua francesa. Sabendo de sua posição, o autor teria uma
concepção de viagem realizada a fim do conhecimento da cultura e território
estrangeiro, por isso o enorme esforço em ter contato com manifestações consideradas
próprias da civilização brasileira e aversão a influências culturais estrangeiras.
Tais anotações são feitas no primeiro dia em que o escritor chega ao Rio de
Janeiro. Se antes, enquanto realizava sua viagem de navio, as anotações denotavam uma
forte ligação com a natureza e as impressões sensoriais apontadas estão presentes,
agora, o lugar tomado como protagonista é o da cidade do Rio de Janeiro e as personas
sociais aqui encontradas. Camus elenca já em um primeiro contato sete acontecimentos,
entre eles o encontro com o poeta brasileiro apontado como S. ou Federico e que
conhecemos por Augusto Frederico Schimidt89. Personagem que muito desagrada o
autor francês, ora por suas atitudes grotescas, ora pela obrigação de um jantar em que o
principal falante é o poeta, o qual demonstra conhecer toda a literatura francesa. Tais
fatos o obrigam ter paciência com o Brasil, logo em um primeiro contato.
87
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 57.
88
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 64.
89
Poeta modernista pertenceu à segunda geração do movimento. Dono da Livraria Schmidt Editora, no
Rio de Janeiro. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix,
1994.
63
São áreas imensas sem habitação, sem cultura. A terrível solidão dessa
natureza desmedida explica muitas coisas nesse país. [...] tenho tempo
de ver de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura
desse mar vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo
inexplorado. 90
90
CAMUS, Albert. Op. Cit. p.101.
64
91
CAMUS, Albert. A pedra que cresce. In: O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record. 1997.
92
CAMUS, Albert. Do Mar Bem Perto. In: Núpcias, O Verão. Tradução Vera Queiroz da Costa e Silva.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1979.
65
O trajeto da França ao Brasil dura cerca de quinze dias, pode-se perceber nas
anotações muitas características singulares, que se repetem como, por exemplo, a
relação com a natureza que Camus estabelece o tempo todo e como ela reflete em seu
estado de espírito. Além de o autor apontar algumas vezes a necessidade que sente de
registrar os momentos em seu diário, o desejo de transcrever as sensações é cotidiano.
Além das anotações que nos levam a descobrir as sensações de Camus, temos
também a apresentação das pessoas que o acompanham durante o período: G. é
professor de história e filosofia da Sorbonne e pretende encontrar sua família na
Argentina; Sra. C. vai ao encontro do marido e diz tudo o que lhe passa a cabeça, outras
figuras são um professor brasileiro e sua mulher. Esses são os principais personagens
que estarão presentes nas anedotas dessa quinzena. Mas o que é interessante é o olhar do
autor para os emigrantes da quarta classe, como muitas vezes observa esses viajantes, já
que aparecem com maior significância que seus companheiros com situação financeira
favorecida. Além da comparação estabelecida entre as duas realidades, pois, segundo o
escritor, no salão de música caberia metade desses transeuntes.93
93
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 48.
66
o navio passa pelo estreito de Gibraltar, o autor despede-se da Europa: “Não paro de
olhar para essa terra, o coração apertado”94. A partir de então, os relatos de solidão e
monotonia estarão cada vez mais frequentes no diário. Já nas primeiras páginas o autor
apresenta um fato interessante, a leitura do diário de Vigny, poeta romântico francês. O
leitor toma conhecimento dessa leitura, pois Camus faz anotações e apontamentos no
diário. Assim, tem-se além do reflexo e uma mise en abyme presente, um forte
reconhecimento, já que Camus vê em Vigny uma aproximação com seu estado de
espírito, o que dá a abertura para as manifestações com intenções de suicídio.
O conceito de mise en abyme é interessante para o diário, pois neste gênero o
autor tem uma maior liberdade ao escrever. Conforme a breve explicação de Jean-Marc
Limoges em seu texto intitulado La Mise en abyme imagée temos:
94
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 50.
95
LIMOGES, J.-M. La Mise en abyme imagée. Textimage n°4, L‟image dans le récit, hiver 2012.
96
CAMUS, Albert. Do Mar Bem Perto. In: Núpcias, O Verão. Tradução Vera Queiroz da Costa e Silva.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1979.
97
CAMUS, Albert. A pedra que cresce. In: O exílio e o reino. Rio de Janeiro: Record. 1997.
67
98
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
99
Camus, A. Calígula. Paris: Seuil, 1970.
100
“ „Abdias, o ator negro‟, é o escritor, jornalista, e político Abdias do Nascimento, à época diretor do
Teatro Experimental do Negro, que encenara a peça Calígula, de Camus, com um elenco só de negro
[...]”. Nota Sumária à edição brasileira. In: CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie
Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
101
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 91
102
Foi encenado o segundo ato da peça Aruanda de Joaquim Ribeiro. Informações do próprio Abdias do
Nascimento. NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29out.2016.
68
brasileira, o que leva Camus a generalizar que: “o Brasil seja o único país de população
negra que produz canções sem parar.”103
Abdias do Nascimento foi economista e ator, em 1944 fundou o Teatro
Experimental Negro para maior representatividade do negro na sociedade brasileira da
época, segundo o ator sua intenção era:
Alguns anos depois, quando Camus vem para o Brasil assiste ao ensaio de
Calígula realizado pelo TEN. Sobre o episódio em que se deu o encontro, Camus faz
notas, já apontadas aqui. Mas, o que demonstra tamanha curiosidade é que Abdias do
Nascimento também torna pública sua impressão sobre o momento:
103
Idem. p. 91.
104
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos
Avançados. São Paulo, USP, vol.18, n.50, jan.-br. 2004. pp. 209-224. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100019 >. Acesso em: 29
out. 2016.
105
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29out.2016.
69
106
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29.out.2016.
107
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 61.
70
entre luxo e miséria, a descrição das favelas e uma comparação com aquilo que lhe é
próprio: os Bidonvilles, configurações espaciais que se aproximam de favelas e dos
kabyles, povo típico da Argélia.
O quarto apontamento fala das pessoas: o escritor almoça com a senhora Mineur
e Barleto, além de conhecer Aníbal Machado. Conhece, no quinto tópico, o navio
“Terror del Mondo”, um pouco ultrapassado, mas que fez várias revoluções. No sexto
tópico, as pessoas novamente: após o almoço, uma recepção na casa da senhora Mineur,
narra a presença de muitas pessoas, dentre elas um tradutor de Molière, um filósofo
polonês, um biólogo francês, pelo qual Camus simpatiza, e a companhia teatral de
negros que pretende encenar Calígula.
Em 16 de julho, Camus demonstra a vontade de ver uma partida de futebol, os
presentes ficam espantados por essa vontade, o autor francês sente-se bem em descobrir
a paixão nacional do brasileiro, mas logo afirma: “A dona da casa traduz Proust, e a
cultura francesa de todos é realmente profunda. ”108 Há uma intensa aproximação da
cultura do outro, no entanto o autor já nota que a cultura francesa é algo muito presente
entre os brasileiros.
Sobre essa influência cultural francesa Leyla Perrone-Moisés afirma no artigo
Galofilia e galofobia na cultura brasileira:
A maioria das pessoas com quem tem contato fala a língua francesa, o que
facilita a comunicação para o escritor, mas também o incomoda em diversas situações,
afinal, há uma imposição de uma cultura que também não é sua. Esse movimento é de
grande importância, afinal está presente desde o começo do diário e exerce forte
108
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 69.
109
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Galofilia e galofobia na cultura brasileira. Gragoatá: Revista do
Instituto de Letras da UFF, Niterói, v.11, p.41-60, 2001, p. 61.
71
110
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 68.
72
No dia seguinte, outro momento prazeroso: passeio de lancha pela baía do Rio
de Janeiro, o tempo está agradável e tem a sensação de poder mergulhar em água pura e
fresca. À tarde tem o primeiro encontro com Murilo Mendes: “Tarde, visita de Murillo
Mendès* poeta e doente. Espírito fino e resistente. Um dos dois ou três que me
chamaram atenção aqui. ”113 Pela noite, antes de sua conferência, encontra-se com um
amigo espanhol refugiado que conheceu em Paris e o pelo qual sente enorme simpatia.
111
Os asteriscos aparecem na edição brasileira como marcação da grafia original do francês que a
tradutora preservou.
112
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 80 – 81.
113
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 81.
114
CAMUS, Albert. Op. Cit. 71.
73
negros115 que vão ver o ritual e pedem para segui-los. Ao chegar a um galpão lotado de
pessoas que assistem e participam da macumba, Camus descreve detalhadamente a
dança e o transe dos dançarinos e ainda declara: “Eu observo: 1) que não se nota nos
dançarinos a mais leve transpiração. 2) um branco e duas brancas que, aliás, dançam
pior que os outros. ”116. Linhas adiante, narra o auge do transe dos participantes
dançarinos: “Levantam-nas, apertam-lhes a testa, e elas recomeçam, até tornarem a cair.
Atinge-se o auge no momento em que todos gritam, com estranhos sons roucos, que
lembram uivos. ”117. E conclui em seguida:
Dizem-me que isto irá continuar até o amanhecer, sem mudanças. São
duas horas da manhã. O calor, a poeira e a fumaça dos charutos, o
cheiro humano tornam o ar irrespirável. Saio trôpego, e respiro afinal
deliciado o ar fresco. Amo a noite e o céu, mais que os deuses dos
homens.118
115
Abdias do Nascimento está entre os negros, pois afirma: “Além desse memorável encontro, tive a
oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem
africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o
privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa,
com aquela doçura dos iluminados. ”
NASCIMENTO, Abdias do. Na gafieira com Camus. Disponível
em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2905201107.htm>. Acesso em: 29.out.2016.
116
CAMUS, Albert. Op. Cit. 74.
117
CAMUS, Albert. Op. Cit. 76.
118
Idem. p. 76.
119
Político e engenheiro agrônomo.
74
uma mesa de comida, realizada por mulheres. O mesmo olhar descritivo, não demonstra
dessemelhança com ritual assistido em Caxias, a diferença está no foco: agora uma das
dançarinas, pela qual expressa grande encantamento:
No entanto, isso não em ensina grande coisa de novo, até que surge
um grupo de jovens negras, que entram em estado semi hipnótico, os
olhos quase fechados, mas eretas e balançando-se da frente para trás.
Uma delas, alta e esguia, me encanta. Está com um chapéu de
caçadora azul, a aba levantada e plumas de mosqueteiro, vestido
verde, e traz na mão um arco verde e amarelo munido de sua flecha,
em cuja ponta está espetado um pássaro multicor. Essa Diana negra é
uma graça infinita.120
Diante dessa mulher, o resto do ritual parece não ter relevância, a descrição da
dançarina é de maneira minuciosa e a partir da comparação: sempre as características,
elementos que são específicos ao autor. No caso, temos o chapéu de caçadora, as
plumas de mosqueteiro e a concretização imagética da figura como uma “Diana negra”.
Isso comprova a mescla cultural relativa à bagagem do autor, de um lado a presença
erudita de uma mitologia romana e de outro a cerimônia de uma manifestação religiosa
própria do país visitado. É importante esse tipo de aspecto no livro: esse hibridismo
analítico resulta sempre em uma nova maneira de se observar os fatos, sejam aqueles
que causam repugnância a Camus, sejam aqueles que causam uma sensação agradável.
Em 2 de agosto Camus vai para São Paulo. O primeiro contato com a cidade
grande causa certo estranhamento, pois se encontra entre o aspecto moderno da cidade,
mas ainda com presença de uma rara natureza: “[...] enquanto das palmeiras-reais que se
elevam entre os edifícios chega um canto ininterrupto, vindo dos milhares de pássaros
que saúdam o fim do dia [...]”121. Logo em seguida, anota o jantar com Oswald de
Andrade, caracterizando-o como: “ [...] personagem notável (desenvolver). Seu ponto
de vista é que o Brasil é povoado de primitivos e que é melhor assim.”122, depois uma
anedota de um programa de rádio que o sensibiliza: um negro procura ajuda para criar
uma criança, outro negro mais idoso aparece para ajudar, a mando de sua mulher.
Outro momento em que a cultura e representação religiosa aparece no diário é a
viagem que realiza para Iguape com Oswald de Andrade. O contato com o interior do
120
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 89.
121
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 97.
122
Idem.
75
estado de São Paulo faz com que o autor aponte as impressões diante dessa natureza
desmedida. É longo o tempo de viagem, trezentos quilômetros percorridos em dez horas
de estrada de terra e mata fechada, sobre as quais Camus expressa:
brasileiro que ele apreende o pensamento sobre o país: prevalecer o primitivo do que o
civilizado. O pensamento exposto coaduna com aquele de Oswald e sua teoria exposta a
Camus a respeito da antropofagia e o matriarcado. A respeito disso, Silviano Santiago
afirma em A permanência do discurso de tradição do modernismo:
125
SANTIAGO, S. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: Nas malhas da letra.
Rio de Janeiro: Rocco, 2002. p.108-144.
126
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 109
77
127
CAMUS, Albert. Op. Cit. p. 121
78
CAPÍTULO 3
Nos capítulos anteriores apresentamos um estudo isolado de cada uma das obras.
A intenção era a de levantar as peculiaridades de cada um dos escritos e assim analisá-
los. No primeiro capítulo, a análise foi de Toda a América de Ronald de Carvalho. O
segundo capítulo foi destinado a Diário de Viagem de Albert Camus. O que aproxima as
duas obras e o que foi objetivo de investigação é a percepção da americanidade nos dois
autores, apesar de serem compostas em época distintas, tratam-se de obras frutos da
viagem por um mesmo território.
O que se pode extrair de semelhante das duas experiências é o ato de viajar.
Como esse deslocar físico aparece de maneira acentuada nas duas obras, uma vez que é
a condição desses dois autores viajantes. No entanto, como percebido, trata-se de um
mesmo território presente nas duas composições, apesar de serem concebidas em
momentos distintos. A América será o cenário dessas viagens, em Ronald notamos uma
maior importância dada à América Hispânica, seus detalhamentos de maneira
plurificada e ainda a sua exaltação, que pretendia abranger todo o continente, mas com
grande ênfase na caracterização da superfície brasileira, bem como os tipos de personas
aqui presentes.
Para Camus o desconhecido é protagonista de seu diário, principalmente pela
relação acentuada do autor com a natureza, esta que funciona ora como meio de
reconhecimento de si, ora como meio de reconhecimento do outro (pretendemos
analisar mais a fundo este aspecto nas páginas seguintes). Tudo o que há de primitivo e
próprio da cultura brasileira é motivo de intenção do conhecimento para o escritor
francês. Dessa maneira, o Brasil, suas peculiaridades territoriais e culturais são
elementos presentes nas anotações íntimas camusianas, inclusive, refletem em um
choque cultural para o autor, que não compreende inteiramente a diferença.
A descrição do território está presente em Toda a América de maneira constante,
a exemplo da primeira parte do poema homônimo da obra:
79
1
Do alto dos Andes, América,
do alto das sierras me-
xicanas,
de Laguna del Inca, de
Punta de Ias Vacas, de Orizaba e
Xochimilco,
128
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. 1. ed. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello&Cia, 1926. p.
109-110.
129
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Tradução Valerie Rumjanek Chaves. 5° ed. Rio de Janeiro:
Record, 2004.p. 60.
80
vínculos que vão agradar e desagradar o autor. No entanto, o espaço parece sempre
ocupar as linhas das notas de viagem: reflexo de um território desconhecido.
Portanto, pretende-se olhar para o território americano conforme as perspectivas
e contexto de cada um dos livros. Para essa análise tomamos como princípio a ideia de
um reconhecimento de si a partir do outro. Essa correlação eu/outro que volta para si é
própria de uma literatura de viagem e como diria Maria Alzira Seixo, esse tipo de
literatura permite esse movimento. Em uma obra de poemas, como a do autor brasileiro,
temos uma escrita que reflete para o outro o tempo todo: seja na comparação com o
europeu, seja nas descrições dos espaços físicos por onde passa, seja nas configurações
de uma teoria própria de ideal do poeta americano. Não obstante, desse olhar externo,
há sempre a extração de um olhar interno que configura o sujeito lírico, por isso a
necessidade de compreensão do espaço físico para a obra.
Desse modo, constatou-se a forma em que o continente está presente em Toda a
América: de maneira constante, a começar pelo título, e isso se repete nos títulos de
outros poemas, que sempre demonstram os locais em que o sujeito lírico está. A
intenção é declarada logo a princípio: pretende-se compor uma obra que cante todo o
continente americano, para isso a valorização do território, bem como a de seu habitante
nativo: o homem do futuro, do amanhã, o homem americano. No entanto, diversas
sensações íntimas são também extraídas nesses poemas, a exemplo disso temos as
observações do desconhecido e o que causam ao sujeito lírico, as manifestações de
saudade do seu local e manifestações do sentimento de exílio.
No diário de bordo do autor francês conhecemos os detalhes desde a sua partida
de Marselha até sua chegada ao porto do Rio de Janeiro em 15 de julho de 1949. Em
seguida, o autor começa suas anotações sobre a cultura, o povo e território
desconhecidos. Muitas apontam para a curiosidade diante desse espaço distante e
desconhecido e que servirá também como atuante no estado de espírito de Albert
Camus. Com esse raciocínio, mesmo como tentativa de compreender a civilização
brasileira, o autor tenta compreender a imensa natureza que por ela é habitada, além das
inúmeras demonstrações de estranhamento cultural.
Para este capítulo, partimos do pressuposto de que há sempre nos dois autores,
por causa da viagem, um movimento entre o eu e o outro. Os sujeitos são colocados
diante desse desconhecido que se entende como o outro, então, seria o viajante diante do
território a ser explorado. Por isso, a presença do reconhecimento, há a exploração do
desconhecido, mas ao mesmo tempo uma exploração de si, que também se faz
81
desconhecido em uma situação nunca antes vivida. Assim sendo, cabe a este tipo de
composição a criação de imagem dos lugares visitados, uma projeção para o leitor
daquilo que se tinha visto, com ela, as sensações causadas a cada um dos autores, e
assim chegamos à necessidade de olhar para o espaço presente nas obras.
[...]
Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara
e grave melodia, Amazonas, a melodia
da tua onda lenta de óleo espesso, que se
avoluma e se avoluma, lambe o barro
das barrancas, morde raízes, puxa ilhas
e empurra o oceano mole como um tou-
ro picado de farpas, varas, galho e
folhagens;131
[...]
130
Ver nota do primeiro capítulo sobre o perfil do viajante.
131
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 21.
82
O poema Brasil aponta para uma longa caracterização do solo, homem e cultura
brasileira. Nesta estrofe o eu-lírico mostra apenas um espaço geográfico específico, o
Amazonas. A partir de uma estrutura repetitiva, presente em todo início de estrofe do
poema: “Eu ouço”, tem-se a apresentação da melodia do Amazonas e de suas
particularidades totalmente relacionadas à natureza: “ [...] a melodia /da tua onda lenta
de óleo espesso, que se/avoluma e se avoluma, lambe o barro/das barrancas, morde
raízes, puxa ilhas [...]”. Esse artifício de composição se repete ao longo do poema com
outros espaços físicos: Iguaçu, Nordeste, Caatinga, etc. A intenção é a de exaltar e
enumerar, apontar as diversidades do território brasileiro de maneira que essa
pluralidade signifique um todo.
Tais aspectos já foram apontados nesta análise. A questão agora levantada é a da
relação que a natureza mostra em poemas que buscam exaltar os territórios do Brasil e
da América como um todo. Ronald de Carvalho, no entanto, não constrói uma obra de
poemas com um elo épico perdido despretensiosamente. A tensão encontra-se quando se
pensa o eixo condutor de nossa pesquisa: a dualidade eu/outro. Se a viagem é antes de
tudo a descoberta de si diante do desconhecido, os autores buscaram o reconhecimento e
as identidades necessárias para os respectivos momentos.
Ronald de Carvalho quis identificar o homem do futuro, brasileiro e poeta
americano. Reconheceu toda a América e sua matéria épica perdida, mas se sabe que
todas as suas concepções ideológicas coadunavam com um modernismo brasileiro que
pretendia apresentar o Brasil para o mundo, rompendo com padrões estéticos já
considerados em desuso pelos intelectuais do momento. Existe, na verdade, a
valorização de uma arte que fosse considerada própria, ideal herdado dos Românticos.
Por isso Ronald de Carvalho não pode ser compreendido de maneira isolada, inclusive
por sua sociabilidade apresentada através das dedicatórias em Toda a América:
Guilherme de Almeida, Mario de Andrade, Fernando Haroldo, etc.
Edward Said em seu livro Cultura e Imperialismo, no capítulo Império,
geografia e cultura diz que não há para o poeta (artista) um significado se o mesmo
assumir uma posição isolada, para comprovar seu pensamento o autor apresenta as
ideias de Eliot:
132
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 31.
133
CARVALHO, Ronald de. Poesia. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil,
1923. p. 227.
84
134
Ibidem.p.227.
85
épicos: “Ao contrário, trata-se de uma espécie de épicalírica, uma sequência geo-
cultural organizada pelo olhar do (s) falante (s) através do tempo–espaço. ”135
Entretanto, os ecos dessas características essenciais a essa produção estão
presentes, inclusive para configurar o que Perrone denomina de “épicalírica”. É uma
obra de poemas, porém não é uma obra com um único poema longo, são vários poemas
com títulos distintos. Esses títulos, em sua maioria, servem como identificação dos
locais apresentados pelo sujeito-lírico. A intenção do conjunto é a de apresentar os
locais pelos quais esse sujeito perpassa, além de exaltar a América e o Brasil.
Levantados os elos dessa matéria épica representados `a maneira modernista,
notou-se que no decorrer da leitura dos poemas há um elemento primordial: a natureza.
O eu-lírico apresenta-se sempre em um ponto alto, para poder observar todo o
continente, então, os andes, planaltos, montanhas e serras americanas vão servir para
colocar esse observador em ponto estratégico. Uma vez que o mesmo pode observar
toda a paisagem americana também pode representar em matéria poética aquilo que vê.
Sendo assim, a natureza apresentada, quase sempre, é como no poema Puente
del Inca:
Puente del Inca
a Rodrigo Mello Franco de Andrade
Aqui nestes grandes silêncios
das cordilheiras é que eu te
sinto, América!
Aqui está a tua virgindade
cheia de promessas excitantes,
[...]
Oh! América, o teu dia será primitivo,
e será fresco e ingênuo, e flutuará sobre as
águas
[...]136
135
PERRONE, Charles A. A poética da criação novo-mundista em Toda a América. Tradução: Sergio B.
F. Tavolaro. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 27, p. 71-83, jul.-dez. p. 76-77.
136
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 61-63.
86
137
CARVALHO, Ronald de. Poesia. In: ______. O espelho de Ariel. Op. Cit. p. 230.
138
Ibidem. p. 230.
139
Ibidem. p.230.
140
CARVALHO, Ronald de. As vozes da Terra. In: ______. O espelho de Ariel. Rio de Janeiro: Anuário
do Brasil, 1923.p. 302.
87
Nesta sessão do poema há uma indagação no início: “Onde estão teus poetas,
América? ” Tal estrutura vai se repetir ao longo de outras estrofes. Aqui, o eu-lírico
coloca a questão de representação da América, o poeta deve cantar as particularidades
do continente. Como construção de identidade do espaço, existe uma ligação direta com
a natureza: canaviais, índios, rebanhos de cabras, matas, etc. A sessão é longa e o
levantamento das particularidades do homem e natureza americana servem como uma
identificação do desconhecido, que passa a desvendar-se com o decorrer da viagem.
O ponto de partida de seus ideais é uma busca para a construção de uma
identidade do homem brasileiro e americano. Entretanto, analisar essa narrativa de
maneira isolada do panorama histórico literário brasileiro seria um equívoco, já que há
nela um plano de exaltação do continente, do poeta e do território americano. Desse
modo, Ronald de Carvalho compõe sua obra provinda de uma viagem, porque ao ser
realizada, funcionou como comprovação de seus ideais teóricos. Em Toda a América,
apresentam-se os ideais de exaltação, tradição de um mito de construção da nação
durante os oitocentos, conforme afirma Sandra Maria Pereira do Sacramento em seu
artigo intitulado Viagem e Turismo Cultural:
141
CARVALHO, Ronald de. Toda a América. Op. Cit. p. 127-128.
142
SACRAMENTO, S. Viagem e Turismo Cultural. Revista Urutágua (Online), Maringá-PR, v. 06, p.
abr/jun/jul, 2005.p. 5.
88
143
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 55.
89
[...]
Europeu! Filho da obediência, da economia
e do bom-senso,
tu não sabes o que é ser Americano!
Ah! os tumultos do nosso sangue temperado
em saltos e disparadas sobre pampas,
savanas, planaltos, caatingas onde es-
touram boiadas tontas, onde estouram
batuques de cascos, tropel de patas, tor-
velinho de chifres!145
144
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. São Paulo: Leya, 2011. v. I, v. II, v. III e
v. IV. Versão digitalizada. p. 2592.
145
CARVALHO, Ronald. Toda a América. Op. Cit. p. 13-14.
90
metáforas relacionadas com a natureza, pois, como já analisado, esta tem um função
crucial de recognição: pampas, savanas, planaltos, boiadas tontas, batuques de cascos,
etc. Características únicas de reconhecimento desse território exaltado em Toda a
América, que de maneira plurificada aos poucos compõe uma totalidade.
146
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 57.
147
Ibidem. p. 56.
91
Depois vou olhar o mar. Uma lua crescente sobe por cima dos
mastros. Até perder de vista, na noite ainda não inteiramente densa, o
mar – e um sentimento de calma, uma poderosa melancolia sobem,
então, das águas. Sempre apaziguei tudo no mar, e essa solidão
infinita me faz bem por um momento, embora tenha a impressão de
que este mar hoje esteja chorando todas as lágrimas do mundo.148
Em seguida, Camus aponta a intenção de sua escrita, anotar aquilo que observa,
sem dizer nada de íntimo. No entanto, há uma contradição gritante, ele observa o mar e
expressa suas sensações diante do momento, sentimento de calma, melancolia, a solidão
que o faz bem (por um momento) e a impressão de que o mar do momento chora todas
as lágrimas do mundo. Observar e anotar o mar, o céu, na verdade dizem muito de
íntimo de Albert Camus. Assim, nos dias seguintes, o que parece ser motivo de
investigação é essa natureza imensa que o cerca, porém, uma natureza que o desvenda
ao mesmo tempo.
Assim sendo, não observar essa imensidão seria quase que impossível para o
escritor. Logo, não há notas diárias que não contenham observações sobre a natureza, e
principalmente, elas sempre aparecem com sensações a ele causadas, impressões que o
outro provoca, levando-o a um reconhecimento de suas sensações próprias. Essas notas
são diárias e para Camus uma observação daquilo que vê durante essa viagem. No
entanto, revelam mais: sensações peculiares.
A partir de tal pensamento pode-se explorar a construção do particular,
intrínseco daquele que compõe a escrita do diário. Portanto, se a escrita de viagem é
composta do desconhecido, mas que reflete em um conhecimento de si, conclui-se que o
texto vai refletir as impressões subjetivas do autor, aquilo de mais particular, íntimo,
relacionado com a viagem, uma vez que se faz notar as impressões marcantes.
No que confere tais escritos entende-se que constroem relatos íntimos, um diário
de viagem que o próprio deslocar físico colabora para a construção. Seriam os relatos,
impressões íntimas, particulares do autor, que configuram para o leitor um Albert
Camus. Não se pode deixar de falar da escrita de si, já que a estrutura de diário
converge para este ponto de partida. Compreende a escrita confessional, quando o autor
constrói seus escritos centrados nele mesmo, o relatar do indivíduo, ou seja, aquilo que
lhe coincide e se faz necessário, suas impressões, estado de espírito. Segundo Michel
148
Ibidem, p. 48.
92
Focault, neste tipo de escrita percebe-se que “o ato de escrever é também um ato de
mostrar-se ao outro.”149
Camus tenciona em sua obra mostrar o outro, as curiosidades culturais, as
pessoas, as anedotas, mas não há nota que não esteja profundamente embebida dessas
sensações viajantes. São, antes de tudo, anotações sobre os locais perpassados, mas
sobressai nessas notas aquilo que vivencia durante o périplo. Uma escrita de si
despretensiosa, com a tentativa de observar, examinar e entender o outro, mas que
anseia por sua compreensão.
Para tanto, as reflexões delineiam-se sobre os acontecimentos a bordo. No
segundo dia Camus inicia a anotação dizendo que amanhece com febre, tem uma breve
melhora e sai da cabine para relacionar-se com as pessoas. Fala sobre Sra. C. e das gafes
que comete, e em seguida aponta para a presença da natureza: uma observação de como
o sol esmaga o mar. Alega sentir-se triste, após o jantar conversa, mas atenta-se para o
mar: “mas olho o mar e tento, uma vez mais, fixar a imagem que procuro há vinte anos
para essas ramagens e esses desenhos que a água lançada pela roda de proa traça no
mar. ”150. Uma reflexão que busca compreender e até mesmo dar significado e
existência a uma imagem que Camus diz não ter conhecimento, e para finalizar diz que
quando encontrar essa imagem tudo estará acabado.
O mar e suas observações ocupam o espaço do outro, reflexos de si diante do
desconhecido, que pretende desvendar um momento único para o autor, atribuído ao
deslocamento físico. Nas próximas linhas a presença do suicídio, sensação que pareceria
inaceitável para a filosofia camusiana. Toda essa confusão de percepções é apresentada
em dois parágrafos, diante do mar. Como conclusão: “O mar é assim, e é por isso que o
amo. Chamado de vida e convite à morte.”151.
Tais reflexões devem ser entendidas à força do momento. As condições da
viagem que realiza só, sem seu círculo social e que o coloca em extrema solidão e
melancolia, a extensão do mar, a presença do sol, da noite, o clima, aspectos
esmagadores do indivíduo. Para Roger Quilliot, organizador do Diário de Viagem, as
condições dessa viagem relacionam-se com as sensações apresentadas de maneira
peculiar pelo autor:
149
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ____. O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e
Edmundo Cordeiro. Lisboa: Editora Vega. 1992. p. 129-160.
150
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 49.
151
Ibidem. p. 50.
93
de abordar o país com “um espírito mais descontraído”. Tentativas que não serão
realizadas. Em quinze de julho, chegada ao Rio de Janeiro, agora o autor assume,
enquanto observador, o papel de explorador de um território desconhecido.
As anotações sobre a natureza perdem força integrante de compreensão do
estado de espírito de Camus. Agora elas dividem espaço com a curiosidade com a
cultura, acontecimento, relações pessoais e exploração de um país desconhecido. O que
ganha força é um outro olhar da natureza: descrição, em um primeiro momento, da
desconhecida flora tropical. Logo quando vê o Rio de Janeiro ainda do navio anota: “A
riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu,
fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as cores parecem as mesmas,
um cartão-postal agora. A natureza tem horror dos milagres longos demais.”155
Apesar de outros assuntos ocuparem as páginas do diário, Camus, de maneira
menos intensa ainda faz anotações sobre a natureza do Brasil. Essas impressões serão de
duas formas, primeiro uma apresentação de uma natureza única, desconhecida e
deslumbrante para o autor, e segundo, uma tentativa de compreender a natureza imensa
que parece sufocar o homem e a civilização brasileira. Os dois processos podem
aparecer de maneira isolada, mas também um pode ser integrante do outro.
Em 17 de julho, após alguns dias no Brasil, Camus fala sobre uma conversa com
dois professores brasileiros, dela surge uma reflexão sobra cultura e natureza nacionais:
“A floresta tropical e seus três níveis. O Brasil é uma terra sem homens. Tudo é criado
aqui à custa de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem. “O espaço basta para
criar a cultura? ”, indaga-me o bom professor brasileiro. É uma pergunta sem
156
sentido.” Para ele a natureza brasileira exerce uma força sobre o homem que nela
habita, sua imensidão tem poder sufocante, o que faz com que ele intensifique os
esforços diante desse sufoco.
É um olhar estrangeiro e predominantemente europeu sobre a natureza dos
trópicos. Nascido na Argélia, mas de educação francesa, o autor certamente já deveria
ter visto essa criação de conhecimento da natureza, imensa, misteriosa, sufocante,
repercutida fortemente entre os europeus desde o século XVI.157 Sobre essa visão dos
viajantes estrangeiro da natureza no Brasil, Ana Beluzzo afirma:
155
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p. 61.
156
Ibidem. p. 77.
157
SAID, Edward W. Camus e a experiência colonial francesa. In:______. Cultura e Imperialismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
95
São áreas imensas sem habitação, sem cultura. A terrível solidão dessa
natureza desmedida explica muitas coisas nesse país. [...] tenho tempo
de ver de ver os primeiros quilômetros de floresta virgem, a espessura
desse mar vegetal; de imaginar a solidão no meio deste mundo
inexplorado. 159
A nota é escrita durante a viagem para o interior de São Paulo, essa mata virgem
faz com que o escritor estabeleça reflexão sobre o país desconhecido, aos poucos
revelado para o autor. Mais uma vez a natureza sufoca o homem, que o deixa sem
cultura. Essa solidão diante dessa natureza gigante é a explicação para muitas coisas no
Brasil. Dessa forma, Camus utiliza de seu forte contato com a natureza para re-conhecer
a si mesmo e para desvendar o desconhecido (natureza, civilização e cultura).
As anotações que revelam essas impressões são construídas e apontam um olhar
estrangeiro. O estrangeiro que não pertence ao lugar que visita, procura desvendar, aos
poucos, as novas sensações que esse estranho, desconhecido lhe causa. Camus também
é o desconhecido, diante de uma situação nunca antes vivida passa a se descobrir,
porque o outro, externo, é fonte balizadora desse processo. Pretendemos, ao longo desta
análise, demonstrar como o outro influi nos pensamentos de Camus, e, ainda, como esse
outro pode apresentar enorme complexidade no auto reconhecimento.
158
BELUZZO, A. M. M. O Brasil dos viajantes. Revista USP, São Paulo. Junho/Agosto: 1996. p. 17.
159
CAMUS, Albert. Diário de Viagem. Op. Cit. p.101.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
grande seja pelas obrigações desnecessárias, seja pelos momentos que deseja passar,
mas que o estado de espírito abalado sobrepõe às boas sensações.
O diário é o espaço em que o autor faz diversas notas. Assume um pacto com o
calendário e as anotações são feitas quase que diariamente. As marcações dos lugares
são precisas e nos revelam sempre as condições das viagens que realiza. A forma textual
do diário não é fechada e molda-se conforme o passar do tempo. São praticamente dois
meses de estadia no continente sul-americano, tempo suficiente para que Camus
apresente ao leitor as nuances de seu estado de espírito. Em certos momentos o autor
expressa sensações nunca antes vividas, como a ideia do suicídio.
A natureza também assume papel importante na obra. Camus quase sempre
demonstra conhecedor e admirador dela. Seu estado de espírito é muitas vezes
construído a partir das sensações que a análise da natureza causa no autor. Por isso ele
serviu como fonte de compreensão e explicação do próprio Albert Camus, mas é a partir
dessa natureza própria do Brasil que ele também tenta desvendar a população brasileira.
Os autores são antes de tudo grandes conhecedores, as viagens são para eles a
fonte do conhecimento. Estar em um território desconhecido desperta sensações novas,
curiosidade e principalmente o desejo de observação. Observar, analisar faz com que
haja a vontade de preservar o momento. Eis o motivo, intenção de composição dessas
obras de viagem: reviver não só o momento, mas as impressões e sensações dele
extraídas.
Tal pensamento objetiva clarear, explicar o modo como os autores seguiram suas
viagens e como tal modo reflete nas impressões que vão compor as obras analisadas. A
teoria desta categoria de viajante elucidou o tipo de escritor de cada uma das obras e, a
partir dessa perspectiva, a necessidade de conhecimento dos lugares para os autores, não
apenas os locais, mas a tentativa de compreensão cultural dos povos, bem como uma
projeção em imagens poéticas ou descritiva daquilo que foi visto. Neste cenário, nota-se
que a preocupação com o outro, o diferente, e como esta diferença chega aos escritores
é primordial, pois, nesta linha analítica, é possível enxergar o movimento de
reconhecimento de si através do outro, do desconhecido.
100
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