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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO (UNIFESP)

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CAMPUS GUARULHOS

DA TERRA AO INFERNO: UMA VIAGEM PELAS NARRATIVAS DE


ALMEIDA GARRETT E ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Lara Silva Perussi Bertão

Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando Prado Telles

GUARULHOS
Março de 2020

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DA TERRA AO INFERNO: UMA VIAGEM PELAS NARRATIVAS DE
ALMEIDA GARRETT E ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Lara Silva Perussi Bertão

Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo,
como um dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando Prado Telles

GUARULHOS

Março de 2020

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DA TERRA AO INFERNO: UMA VIAGEM PELAS NARRATIVAS DE ALMEIDA
GARRETT E ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Lara Silva Perussi Bertão

Orientador: Prof. Dr. Luís Fernando Prado Telles

Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Letras da Universidade Federal de São Paulo, como um dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre.

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Luís Fernando Prado Telles (Orientador)


Universidade Federal de São Paulo

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Leonardo Garcia Santos Gandolfi


Universidade Federal de São Paulo

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Marcos Aparecido Lopes


Universidade Estadual de Campinas

______________________________________________________________________
Profª Drª Cristina Betioli Ribeiro Marques (Suplente)
Pontifícia Universidade Católica de Campinas

3
Agradecimentos

A Deus, presença real, fonte de amor, esperança e força para mim e aos que por
Ele foram enviados para tornarem o processo de elaboração deste trabalho mais viável,
rico e leve:
À minha mãe, Shirley, responsável pela minha paixão por literatura e por todas,
absolutamente todas, as minhas conquistas.
À minha irmã e melhor amiga, Talita, que me inscreveu no SISU há seis anos
acreditando em minha capacidade mais do que eu mesma e tornando todas as realizações
dos últimos anos possíveis.
Ao meu cunhado, Evandro, pelo exemplo e por todo apoio que me dá.
Ao meu sobrinho, Samuel, que mal nasceu e já tira sorrisos que nunca ninguém
conseguiu tirar de mim.
Ao meu noivo, Emerson, pelo incentivo, compreensão, fé e amor ao longo de todo
esse processo.
À minha avó, Jussara, e meu tio, Tadeu (in memoriam), pelas longas conversas
sobre Portugal, que me inspiraram a estudar o que hoje estudo.
Ao meu terapeuta e amigo, Valdir, que me ajudou a lidar com dores intensas que,
não raras vezes, me fizeram sentir incapaz de continuar caminhando e, por conseguinte,
de concluir a pesquisa.
À professora Simone Nacaguma, que além de orientadora de minha iniciação
científica durante a graduação, tornou-se uma estrela guia à minha trajetória acadêmica.
Ao meu orientador, Luís Fernando Prado Telles, por toda competência, paciência,
simplicidade e gentileza, que além de tornarem todo esse processo mais frutuoso, me
inspiraram e continuam me inspirando a ser uma pessoa e profissional melhor.
Aos professores da banca, Leonardo Garcia Santos Gandolfi e Marcos Aparecido
Lopes, por toda atenção e generosidade que demonstraram para comigo.
À professora Ana Paula Arnaut, que tão bem me recebeu na Universidade de
Coimbra, permitindo que eu e a minha pesquisa amadurecessem.
À FAPESP pela bolsa concedida, que me permitiu desenvolver a pesquisa em
questão, viabilizando a minha permanência na pós-graduação e grandes oportunidades de
aperfeiçoamento acadêmico.

4
“Nenhuma viagem é definitiva.”

Viagem a Portugal (1981), José Saramago

5
RESUMO:

A presente pesquisa tem por objetos de análise Viagens na minha terra (1846) de
Almeida Garrett e Conhecimento do inferno (1980) de António Lobo Antunes, detendo-
se, sobretudo, nas viagens que organizam ambas as narrativas, respectivamente, de Lisboa
a Santarém e do Algarve à Praia das Maçãs. O objetivo da investigação é o de
compreender a dimensão simbólica das viagens geográficas empreendidas pelas
personagens, bem como a maneira pela qual parecem reger viagens outras, sendo estas,
autobiográfico-metaliterárias, à medida que apontam para a vida amorosa e para a
atividade literária dos narradores-autores, e histórico-críticas, por proporem leituras
problematizadoras tanto do Portugal oitocentista quanto do pós-colonial.

Palavras-chave: Viagens; Narrativas; Almeida Garrett; António Lobo Antunes.

6
Sumário:

Apresentação: a viagem da autora................................................................................... 9


Introdução: o itinerário da dissertação ......................................................................... 13
1. A viagem, a literatura e o romance..........................................................................16
1.1.1. O nascimento e o princípio da queda do sonho imperial (séculos XV ao
XVIII).......................................................................................................................19
1.1.2. O reconhecimento da queda (século XIX e meados do século XX)...............25
1.1.3. O trabalho de luto do império português (séculos XX e XXI)...................... 29
1.1.4. A representação das viagens na literatura portuguesa: da terra ao inferno ... 32
2. No encalço dos narradores: a dimensão geográfica das viagens ................................ 34
2.1. A viagem do arqueólogo oitocentista .................................................................. 34
2.1.1. A viagem, o viajante e o “dinamismo irreversível do tempo”.........................35
2.1.2. Espaços literários versus espaços reais: viajante quixotesco em terras de
Sancho Pança........................................................................................................... 41
2.1.3. A natureza e a sociedade: uma viagem do jardim de Deus ao inferno dos
homens .................................................................................................................... 53
2.2. As paisagens infernais do Dante antuniano ..................................................... 58
2.2.1. A descrição poética da paisagem ...................................................................62
2.2.2. Os turistas, a superficialidade do homem e a artificialidade do mundo.........72
2.2.3. O esvaziamento de sentido das paisagens e o processo de dessubjetivação do
sujeito: não-lugares e não-pessoas .......................................................................... 76
3.Os homens (autores) de papel: a dimensão autobiográfico-metaliterária das viagens
...... ..................................................................................................................................84
3.1. Almeida Garrett: Entre a realidade vivida e a representada ................................ 84
3.1.1. O homem ficcionalizado ............................................................................... 84
3.1.2. O autor encenado ........................................................................................... 90
3.1.3. Obra despretensiosamente programática ....................................................... 94
3.1.4. O leitor aprendiz ............................................................................................ 98
3.2. António Lobo Antunes e o inferno da indefinição ............................................ 101
3.2.1. Entre o Lobo real e o distorcido .................................................................. 103
3.2.2. O escritor, a literatura e a loucura ............................................................... 111
4. Da queda Edênica ao inferno: dimensão histórico-crítica das viagens ................... 117
4.1. Viagens pela terra dos barões ............................................................................ 118
4.1.1. O oportunismo e o materialismo ................................................................. 119
4.1.2. A maldição de Caim: a guerra civil portuguesa e os seus efeitos .............. 124
7
4.1.3. A luz no fim do túnel: a natureza e o povo ................................................. 127
4.2. Alice, Dante e Virgílio: viagens pelo inferno colonial e pós-colonial ............... 130
4.2.1. A ditadura salazarista e as guerras coloniais ............................................... 132
4.2.2. A não-inscrição histórica do passado e a permanência ditatorial do medo: a
realidade do Hospital Miguel Bombarda .............................................................. 139
5. Conclusão: o destino a que se chega ........................................................................ 155
6. Bibliografia: ............................................................................................................. 157

8
Apresentação: a viagem da autora

“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se


dispõe para a gente é no meio da travessia.” (RIOBALDO
DE ROSA)

Desde o primeiro semestre da graduação, nutri especial interesse pelas disciplinas


voltadas aos Estudos Literários. No quarto semestre, tendo cursado uma disciplina
referente à subárea de Literatura Portuguesa com a Profª Drª Simone Nacaguma, na qual
aprendi, dentre outras coisas, sobre a importância da obra garrettiana à produção literária
lusíada, me propus a pesquisar, sob a orientação da referida docente a peça Frei Luís de
Sousa (1843) do autor. O projeto de pesquisa intitulado A presentificação de um passado
ausente: a evocação do mito sebastianista em Frei Luís de Sousa de Garrett, financiado
pelo CNPq, fez-me investigar, sobretudo, a relação fértil e conflituosa entre Literatura e
História, questão central na pesquisa aqui apresentada. Para além da pesquisa, tive a
oportunidade de, através de uma bolsa concedida pelo Santander, estudar seis meses na
Universidade Nova de Lisboa e de, retornando ao Brasil, atuar como monitora bolsista,
por um ano e seis meses, na subárea de Literatura Portuguesa, sob a supervisão da Profª
Drª Simone Nacaguma e do Prof. Dr. Leonardo Gandolfi. Dessa forma, tanto a pesquisa
quanto o período de mobilidade acadêmica e a monitoria amadureceram em mim o desejo
de prosseguir meus estudos em literatura, investigando, especialmente, as letras
portuguesas.
Ingressei no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
São Paulo no primeiro semestre de 2018, mesma instituição na qual me graduei em 2017.
Como indicado pelo próprio Programa, cumpri cinco disciplinas no primeiro ano do
curso. No primeiro semestre de 2018 tive a oportunidade de cursar Fundamentos Teóricos
em Estudos Literários com o meu orientador, disciplina que foi muito útil à reestruturação
do meu projeto de pesquisa e que deu origem a um trabalho de conclusão que me permitiu
discorrer, pela primeira vez, acerca de questões teóricas mais profundas, as quais teria de
levar em consideração para o desenvolvimento da minha pesquisa, como, por exemplo,
as peculiaridades estruturais que distinguem ambas as obras, produzidas por autores
muitíssimo diferentes em contextos distintos (XIX e XX). Cursei, também, Metodologia
de Pesquisa e Ensino com a Profª Drª Renata Phillipov, disciplina que me motivou,
sobretudo, a pesquisar sobre o estado da arte dos temas que teria de mobilizar ao

9
desenvolvimento da dissertação e da qual se derivou um trabalho final que contribuiu
para a reestruturação da metodologia e das referências bibliográficas do projeto que viria
a submeter à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Como primeira
disciplina eletiva, cursei, ainda no primeiro semestre, Tópicos em Estudos Literários:
Leituras da Modernidade com a Profª Drª Francine Ricieri, matéria que apesar de
apresentar recortes teóricos ao estudo do gênero lírico, foi muito enriquecedora para mim,
do ponto de vista pessoal e acadêmico, por me permitir refletir, sobretudo a partir do
desenvolvimento do trabalho final, sobre o lirismo da prosa antuniana e me proporcionar
a experiência de participar do IV Colóquio de Investigações do Poético da Unifesp,
apresentando um seminário intitulado: Os limites da prosa e os horizontes do inferno
poético, em 13 de novembro de 2018, a convite da docente.
No segundo semestre de 2018, cursei, como uma das disciplinas eletivas restantes,
Tópicos em Estudos Literários: Perspectivas Comparatistas da Literatura com a Profª
Drª Mihriane Mendes de Abreu. Esta disciplina me ajudou muitíssimo, a partir das
leituras, discussões e da elaboração do trabalho final, a construir a percepção do diálogo
que Viagens na minha terra (1846) e Conhecimento do inferno (1980) mantêm com a
tradição literária portuguesa, bem como a redigir um artigo que viria a ser publicado pela
Revista de Estudos de Cultura da Universidade Federal de Sergipe (REVEC)1. Ainda no
segundo semestre de 2018, cursei a disciplina eletiva Literatura, Artes e Representação,
ministrada pelo Prof. Dr. Markus Lasch, que me proporcionou um amadurecimento
pessoal e acadêmico notável e me desafiou a estabelecer pontes teóricas inusitadas, à
medida que as discussões e o trabalho final, convidaram-me a refletir sobre a
representação da barbárie na literatura.
Ressalto, a partir de então, outras atividades, de suma importância, que desenvolvi
no primeiro ano do Mestrado. Em 11 de junho de 2018 apresentei os dados iniciais do
projeto no IV Congresso Acadêmico da Unifesp. Em 27 de junho de 2018, submeti, junto
ao professor orientador da pesquisa, o projeto intitulado Da terra ao inferno: uma viagem
pelas narrativas de Almeida Garrett e António Lobo Antunes à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo, que, tendo aprovado a proposta, concedeu-me a
oportunidade de ser bolsista da instituição de outubro de 2018 a maio de 2020. Em 18 de
outubro de 2018, como fruto de uma aula voluntária que ministrei no Centro Educacional

1
BERTÃO, Lara Silva Perussi. “O mar em Conhecimento do inferno: De coroa à mortalha do Império
Português”. In: Revec: Revista de Estudos de Cultura da Universidade Federal do Sergipe, 2018, v.4, n.12,
p.111-122.

10
e Assistencial Oficina das Meninas, apresentei no III Congresso de educação PET
Pedagogia- Formação docente: O professor no contexto de desmonte da educação,
promovido pela Universidade Estadual Paulista, um relato de experiência intitulado:
Ensino de Literatura Fantástica em espaço de ensino não-formal, junto à mestra em
Educação especial e atual doutoranda em Educação, Talita Vasconcellos, sendo tal
apresentação publicada nos anais do Congresso. Nos dias 8 e 9 de outubro, participei de
um minicurso, organizado pelo professor Markus Lasch, intitulado A dor e o apelo à
forma, o qual me ajudou a refletir sobre a importância da articulação/ correspondência
entre forma-conteúdo nas obras literárias. Em 7 de novembro de 2018, fui convidada a
mediar a mesa de Literatura Portuguesa da IV Jornada Discente de Letras da
Universidade Federal de São Paulo, apresentando, para além da mediação, uma
comunicação intitulada Da viagem narrada ao inferno de não se poder narrar. De 22 de
setembro de 2018 a 8 de dezembro do mesmo ano, participei de um curso de extensão,
intitulado Introdução à Literatura Portuguesa Contemporânea, promovido pelo
Departamento de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo, sob orientação da
Profª Drª Fátima Bueno, tendo conhecimento, a partir de então, do Grupo de Pesquisa
Colonialismo e Pós-Colonialismo em Português, que atualmente acompanho e do qual já
participei de três encontros, todos muito férteis ao desenvolvimento da pesquisa. Ressalto
ainda que, no mesmo ano, como resultado de um trabalho elaborado na graduação,
publiquei junto a uma colega, Nayra Mikie Kikuchi, e um professor da Unifesp, Júlio
Valle Neto, um artigo intitulado Entre margens: Guimarães Rosa na Sala de Aula pela
Revista Dialogia (set/ dez .2018)2.
No segundo ano do Mestrado, por sua vez, apresentei os resultados parciais da
pesquisa no Seminário de Estudos Literários e Linguísticos (SELL), promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da Unifesp, nos dias 8 e 9 de maio. Evento que
me permitiu conversar com dois professores avaliadores e que, por isso, tornou-se
muitíssimo importante ao aperfeiçoamento da pesquisa em desenvolvimento. No dia 5 de
junho, apresentei um recorte dos resultados parciais da pesquisa no V Congresso
Acadêmico da Unifesp e, no dia 16 de julho, apresentei o trabalho intitulado “Contra-
viagens” portuguesas: um estudo sobre Viagens na minha Terra (1846) de Almeida
Garrett e Conhecimento do inferno (1980) de António Lobo Antunes no XVI Congresso
Internacional Abralic: Circulação, Tramas & Sentidos na literatura, na Universidade de

2
NETO, Júlio de Souza Vale; BERTÃO, Lara Silva Perussi; KIKUCHI, Nayra Mikie Dias. “Entre margens:
Guimarães Rosa na sala de aula”. In: Dialogia, 2018, n.30, p.47-58.

11
Brasília (UNB), experiência muito significativa ao meu amadurecimento enquanto
pesquisadora e da qual também derivou-se um artigo.
Ressalto que realizei, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado
de São Paulo, um estágio muito enriquecedor na Universidade de Coimbra, tendo a
oportunidade de não só consultar o acervo da Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra e da Biblioteca Nacional de Portugal em Lisboa ao avanço da pesquisa, como
também de contar com a supervisão da Profª Drª Ana Paula Arnaut, estudiosa de António
Lobo Antunes, que em muito contribuiu ao desenvolvimento do trabalho apresentado.

12
Introdução: o itinerário da dissertação

Consideramos, como ponto de partida, que tanto em Viagens na minha terra


(1846) quanto em Conhecimento do inferno (1980), as viagens geográficas que nos
propõem as narrativas são perpassadas por outras3 de natureza autobiográfico-
metaliterária e histórico-crítica, as quais parecem interligar-se em suas itinerâncias e
desfechos. Visto que ambas as obras ilustram, por meio de seus narradores e enredo, em
tom irônico, não só a máxima lukácsiana, de que o romance seria a “epopeia do mundo
abandonado por deus4”, mas viagens contrárias às marítimas e de descobrimento,
fundacionais na cultura portuguesa, à medida que se dão pelo interior de Portugal.
Viagens na minha terra (1846)5 é o romance mais conhecido daquele que a
historiografia compreende como o fundador do Romantismo português e, ao mesmo
tempo, clássico que dificilmente pode ser lido a partir de lentes “romântico-abastardas6”.
É obra plural, à medida que multigenérica, porque se apresenta como narrativa de viagens;
como relato autobiográfico e romance, compreendendo em si mesma uma novela e uma
longa carta. Ora, a viagem de Lisboa a Santarém, bem como a de retorno, conta com a
presença constante de digressões, que se partimos da etimologia da palavra, podem ser
entendidas como passeios pela própria história do narrador e pela do país7. Dessa forma,
o narrador-viajante da obra garrettiana, seja por meio das deambulações em que organiza,
desorganizando, a sua narrativa, seja por meio de sua argumentação, demonstra convidar-
nos a uma viagem aos mecanismos e supostas motivações pessoais e literárias da sua
própria narração, bem como à revisitação histórica de uma nação que retrata como
hipócrita, infantilizada e fraticida.
Em contrapartida, Conhecimento do inferno (1980) é considerada integrante do
primeiro ciclo de produções de Lobo Antunes, o de aprendizagem, sendo o terceiro livro

3
Sobre Viagens na minha terra (1846), diz Carlos Reis (1993, p.48-49): “Irredutível, pois, ao estatuto da
narrativa de viagens, a obra será, antes de mais, o resultado de um conjunto de viagens que transcendem o
simples trajeto geográfico: viagens pela História, pela Cultura, pela Literatura, pelas Ideologias, também
naturalmente, por um espaço nacional (de Lisboa a Santarém) que de certa forma se pretende redescobrir.
Sobre Conhecimento do inferno (1980), diz Seixo (2006, p.72): “O romance estrutura-se em doze capítulos,
desenvolvendo-se no ritmo lento da viagem solitária e monótona, que dá conta das viagens mentais que as
diversas correntes de pensamento que vão interferindo no espírito do narrador possibilitam, de acordo com
efeitos de montagem e similitude (...).”
4
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Rio de Janeiro: Editora 34, 2007, p. 89.
5
A edição adotada na dissertação, realizada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (2010), respeita a
ortografia oitocentista do autor.
6
Tal qual dito por Reis (1993, p.8), o narrador de Viagens não recusa o Romantismo enquanto bloco, mas
aquele que, “abastardo”, apresentava-se “aparentemente degradado pela vulgarização de temas, situações e
atitudes emocionais tornadas artificiais”, impondo-as como “obrigação da escola.”
7
REIS, Carlos. Introdução à leitura das Viagens na minha terra. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p.50.

13
de uma trilogia que inclui Memória de elefante (1979) e Os cus de Judas (1979). Tal
ciclo, tido como o mais autobiográfico da produção antuniana, traz como principais
elementos temáticos constitutivos as guerras coloniais em África, o exercício da atividade
psiquiátrica e, (traço que nos faz lembrar do Carlos garrettiano), a incapacidade de amar
de quem foi corrompido pela sociedade8. Assim como Viagens na minha terra (1846),
Conhecimento do inferno (1980) pode ser compreendida como narrativa de viagens, à
medida que seu protagonista, ( o qual, por vezes, se nos afigura como sendo o narrador
por meio da alternância de pessoas do discurso no fluxo narrativo), parte do Algarve em
direção à Praia das Maçãs. A voz que nos narra, ora em primeira, ora em terceira pessoa,
nos conduz através da viagem realizada até a Praia das Maçãs, por um labirinto de
memórias referentes à infância, aos relacionamentos pessoais, à profissão e à participação
do protagonista na guerra de Angola. Além dos constantes deslocamentos supostamente
autobiográfico-psicológicos que a viagem geográfica empreendida pelo narrador opera,
pela menção ao seu nome, à atividade de escritor e à de médico, bem como a lembranças
dolorosas acerca da guerra e do que seria o torturar - “sem se deixar marcas”- promovido
pela Psiquiatria (ANTUNES, 2006, p.173), a imagem de Portugal enquanto império,
sobressalente na guerra, bem como a de país pacífico, pós-disputas coloniais e ditadura,
são atacadas veementemente.
Em vista disso, apesar de separadas por mais de um século, as obras estudadas
estabelecem muitos pontos de contato que, ao nos propormos a estudar a partir da temática
da viagem, requerem da dissertação uma organização que permita, senão esgotar as
especificidades de ambos os romances, discorrer com cuidado sobre as suas semelhanças
e diferenças, levando em consideração o diálogo que estabelecem com a tradição literária
ocidental e, sobretudo, com o imaginário cultural português. Para tanto, o trabalho
organizar-se-á em cinco capítulos, sendo o primeiro dedicado a uma reflexão sucinta
sobre a exploração da temática da viagem na literatura ocidental e, mais especificamente,
na literatura portuguesa; o segundo, à análise da forma como os narradores de ambas
obras interagem com a primeira dimensão da viagem que realizam, a geográfica; o
terceiro à compreensão da dimensão autobiográfico-metaliterária que a viagem dos

8
Nas palavras do autor, que apesar de não ser a autoridade máxima acerca do que escreve, se podemos, é
desejável que ouçamos: “Nos três primeiros havia três temas que me interessava tratar. Era o tema da guerra
de África, vivido por mim de uma maneira muito forte. Era o tema do hospital psiquiátrico como universo
concentracionário (...). O terceiro tema era, não o amor, mas a incapacidade de amar, a solidão”.
(ANTUNES apud SEIXO, 2002, p.500).

14
protagonistas assume; o quarto, à reflexão histórico-crítica que ambas as obras suscitam,
e o quinto, à conclusão de todas as hipóteses interpretativas mobilizadas na pesquisa.

15
1. A viagem, a literatura e o romance
A viagem é uma das experiências humanas mais representadas pela literatura, ao
ponto de a própria vida ser tratada, não raras vezes, como uma trajetória, travessia e/ou
peregrinação. O mundo, por sua vez, é representado constantemente como um livro a ser
decodificado pelo homem durante a viagem breve ou longa de sua vida. Em vista disso,
entendemos, assim como Manguel (2017, p.23), que “Viver, então, é viajar através do
livro do mundo” de forma que “ler, abrindo caminho através das páginas de um livro, é
viver, viajar pelo próprio mundo.” Dessa maneira, cabe a nós investigarmos, ainda que
brevemente, sobre a ligação da viagem à natureza do literário, bem como acerca da
representação dessa temática em obras de diferentes períodos.
Desde a Epopeia de Gilgamesh (aproximadamente XX a.C), escritura que,
comumente, concebemos como a mais antiga do mundo, a viagem faz-se presente como
temática e convoca os ouvintes/ leitores a acompanharem o protagonista por onde quer
que ele vá, seja pela Floresta de Cedras junto ao amigo Enkidu, seja ao inferno em busca
da imortalidade. Mais conhecido do que o rei Gilgamesh é o viajante homérico. Ulisses
ou Odisseu, herói de Odisseia (VIII a.C), tendo se tornado, nas palavras de Boitani (2005,
p.14), “um arquétipo mítico na história”, sendo ressignificado por diferentes culturas, é
um dos viajantes mais aclamados e representados literariamente. Sua longa viagem de
retorno a Ítaca, repleta de aventuras e empecilhos, como uma parada na Terra dos mortos,
suscita também a viagem de seu filho Telêmaco, demonstrando-nos o quão simbólico era
o ato de viajar, de negar o conforto do lar em prol de uma espécie de empoderamento
terreno e/ou aperfeiçoamento espiritual, ao imaginário do homem ocidental. Vale a pena
dizer que, outra obra à qual podemos nos atentar, nos mesmos termos, é As Argonáuticas
(III a. C) de Apolônio de Rodes.
Herdeiro da tradição grega, Virgílio, em sua Eneida (I a.C), também nos apresenta a
um herói viajante, que além de atravessar o Mediterrâneo para realizar a fundação de
Roma, vivencia a mesma experiência de Gilgamesh e Odisseu, desce à Terra dos Mortos,
ao inferno. Dante, em sua Divina Comédia (1304-1321), apropria-se da temática da
viagem transcendental já presente na cultura greco-latina, dando-lhe contornos cristãos e,
segundo Manguel (2017, p.51), revestindo-a da dramaticidade que somente um homem
em experiência de exílio seria capaz. Faz-se importante lembrar que o exílio também é
temática recorrente nas tragédias gregas e que, segundo Mildonian (1997), nos mitos
antigos em que ele aparece, já podemos encontrar o simbolismo que a viagem, enquanto

16
deslocamento físico e espiritual, assume em diferentes obras ao longo de toda tradição
literária ocidental:
Il est relativement étonnant d’ observer que tous les thèmes de la
littérature de Voyage sont déjà representes dans la configuration
événementielle de ces mêmes mythes: le voyage em tant que
mouvement dans l’étrangeté, expérience de la superposition de
l’imaginaire sur le réel, méditation philosofique et religieuse et
initiation aux mystères, exploration du monde extérieur ainsi que du
monde intérieur, quête perpétuelle d’une connaissance au delà de la vie,
franchissement des frontières de la mort, et en même temps, voyage
destine à la formation du héros, afin qu’il puisse revenir plus sage, plus
sensible, plus experimente (...). (MILDONIAN, 1997, p.153)9

A concepção da viagem como experiência necessária à formação, amadurecimento


espiritual dos heróis, pode ser encontrada, para além das referências já dadas, na tradição
judaico-cristã, fundamental à compreensão do imaginário ocidental moderno. Segundo
Manguel (2017), a Bíblia é um livro de estradas e peregrinações. A saída do povo de
Israel do Egito e a sua peregrinação no deserto, narrada a partir do livro de Êxodo (1450-
1410 a.C), as viagens dos chamados patriarcas da fé, Abraão e Jacó, as cartas paulinas,
dentre outras histórias, personagens e livros, confirmam que o vaguear por lugares e viver
diferentes experiências dignificam a vocação dos eleitos do Deus Cristão que se apresenta
como10 e é tratado por11 Caminho. Fato que nos permite entender, dentre outras coisas, a
razão de a viagem ser tratada como uma espécie de provação espiritual nas novelas de
cavalaria.
As novelas de cavalaria, das quais podemos destacar A demanda do Santo Graal, em
suas muitas versões (inclusive a portuguesa do século XV), exploram a dimensão sagrada
do trajeto físico de suas personagens. Peregrinos, os heróis medievais, nas muitas
privações que experimentam no decorrer das viagens que realizam, tornam-se, a depender

9
Tradução elaborada com a ajuda da colega Danielle Rocha, também mestranda do programa da instituição
e estudante de língua francesa: “É relativamente surpreendente observar que todos os temas da literatura de
viagem já são representados na configuração do evento destes mesmos mitos: a viagem como um
movimento de estranheza, a experiência da sobreposição do imaginário sobre a meditação real, filosófica e
religiosa, a iniciação ao mistério, a exploração do mundo exterior assim como do mundo interior, a busca
perpétua pelo conhecimento além-vida, o cruzamento das fronteiras da morte , e ao mesmo tempo, a viagem
é destinada à formação dos heróis, afim de que ele possa retornar mais sábio, mais sensível, mais experiente
(...).”
10
Na descrição da última ceia, João relata como sendo uma das frases de Cristo: “Eu sou o caminho, e a
verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” (João 14.6. Grifos meus)
11
Recorrentes vezes no livro bíblico de Atos dos apóstolos, o testemunho acerca de Cristo é traduzido como
“Caminho”: “Por esse tempo, houve grande alvoroço acerca do Caminho.” (Atos 19.23. Grifos meus). //
“Paulo, tendo-lhe o governador feito sinal que falasse, respondeu: Sabendo que há muitos anos és juiz desta
nação, sinto-me à vontade para me defender. (...) confesso-te que, segundo o Caminho, a que chamam
Seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos pais (...).” (Atos 24.10,14. Grifos meus). // “Então, Félix,
conhecendo mais acuradamente as coisas com respeito ao Caminho, adiou a causa (...).” (Atos 24.22.
Grifos meus).

17
da forma como reagem aos infortúnios do trajeto, dignos ou não do “Graal”, isto é, do
favor divino de usufruir, além-vida, do paraíso prometido aos que perseveraram fiéis até
o fim, tal qual ressaltado por Manguel (2017):
Mas, em seu sentido mais louvável, viajar, assim como ler, era uma
peregrinação que espelhava a peregrinação da vida humana. Era uma
jornada de purificação, acossada pela tentação e pelo sofrimento, mas a
recompensa para o viajante íntegro era o ‘melhor lugar’ prometido na
vida após a morte. (MANGUEL, 2017, p.49).
A jornada de purificação dos heróis medievais, por sua vez, é reinterpretada em
Dom Quixote de la Mancha (1605). Na obra cervantina, primeiro romance moderno, o
anti-herói que acompanhamos, enquanto leitor de novelas de cavalaria, viaja por sua terra
nutrido pelos ideais medievos de nobreza, tornando-se hilário por não notar que tais ideais
não se adequam à realidade do mundo em que vive, ilustrando, dessa forma, o dilema que
se instaura entre indivíduo problemático e mundo contingente, o qual Lukács (2007,
p.79),conceberá como matéria-prima de toda produção romanesca, já que entende o herói
do romance como aquele que sai a campo para conhecer-se a si mesmo. Ora, é muito
significativo que Dom Quixote de la Mancha (1605), como já dito, primeiro romance
entendido como moderno, estruture-se a partir de uma narrativa de viagem. Se desde as
narrativas orais, segundo Benjamin (1996, p.198-199), aquele que viaja, o marinheiro
comerciante, é considerado por todos os que ficaram como um sujeito que tem muito a
contar, é notável que no romance, gênero que, segundo o mesmo autor, “nem procede da
tradição oral nem a alimenta12”, possamos encontrar cronotopos13 férteis como o da
estrada, tal qual dito por Bakhtin:
Este é o ponto do enlace e o lugar onde se realizam os acontecimentos.
Parece que o tempo se derrama no espaço e flui por ele (formando os
caminhos); daí a tão rica metaforização do caminho-estrada: ‘o caminho
da vida’, ‘ingressar numa nova estrada’, ‘o caminho histórico’e etc; a
metaforização do caminho é variada e muito planejada, mas o
sustentáculo principal é o transcurso do tempo. (BAKHTIN, 1990,
p.350).

Desde os chamados Romances de Formação (Bildungsroman), como Os anos de


aprendizado de Wilhelm Meister (1795) de Goethe, até Ulisses (1914-1921) de Joyce, o
“caminho-estrada”, a viagem, sendo ela exterior e repleta de intempéries, ou interior e
rotineira, é um tema fértil à literatura, porque dialoga fortemente com lugares-comuns do

12
BENJAMIN, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica:
arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense,1996, p.201.
13
Considerando que os “Cronotopos” (tempo e espaço) são, para Bakhtin (1975), os centros organizadores
dos principais acontecimentos temáticos do romance.

18
nosso imaginário humano e cultural. Se entendermos, como Lukács (1962), que todo
romance se estrutura, em suas particularidades, a partir de uma forma biográfica14, a
viagem afigura-se como metáfora da trajetória de vida do protagonista a que somos
apresentados. Trajetória que, pelo pacto que a própria leitura literária estabelece, faz dos
leitores companheiros de viagem daquele sobre quem se narra. Companheiros que, por
sua vez, também são protagonistas de uma viagem e portadores de uma narrativa.

1.1. Portugal e as viagens literárias

1.1.1. O nascimento e o princípio da queda do sonho imperial (séculos XV ao XVIII)

Tendo discutido, sucintamente, acerca da importância e recorrência da temática da


viagem na literatura ocidental, bem como levado em consideração o fato de que a própria
literatura configura-se como uma espécie de viagem, via palavras, a mundos outros,
convém-nos investigar a relação que Portugal, concebido por muito tempo como país
transcontinental, estabeleceu ao longo da história com as viagens que empreendeu.
Viagens, sobretudo banhadas pelo mar, as quais fizeram e fazem parte do imaginário
cultural português à medida que representadas, dentre outras formas, pela literatura. O
objetivo é que, por meio desta reflexão historiográfico-literária, as obras Viagens na
minha terra (1846) e Conhecimento do inferno (1980) sejam situadas no contexto em que
foram produzidas e que o diálogo que elas mantêm com a tradição literária portuguesa,
tendo em vista que exploram singularmente a temática da viagem, seja evidenciado e
minimamente explorado.
Muitos estudos existem acerca do subgênero de Literatura de viagens, contudo, tal
qual ressaltado por Cristóvão (2002), a diversidade de leituras e classificações faz com
que diferentes textos sejam selecionados como exemplares do subgênero15 e que a
concepção do que seria, de fato, Literatura de viagens, afigure-se paradoxal e, em alguns
casos, limitante. O próprio Cristóvão (2002) dá-nos uma definição que nos veta a
possibilidade de lermos Conhecimento do inferno e outros livros importantes dos séculos
XX e XXI como representantes da Literatura de viagens em Portugal:
Por Literatura de Viagens entendemos o subgênero literário que se
mantém vivo do século XV ao final do século XIX, cujos textos, de
carácter compósito, entrecruzam Literatura com História e
Antropologia, indo buscar à viagem real ou imaginária (por mar, terra
e ar) temas, motivos e formas. E não só à viagem enquanto deslocação,

14
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Rio de Janeiro: Editora 34, 2007, p. 77.
15
CRISTÓVÃO, Fernando(org). Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens: Estudos e
Bibliografias. Coimbra: Almedina, 2002, p.23.

19
percurso mais ou menos longo, também ao que, por ocasião da viagem
pareceu digno de registo: a descrição da terra, fauna, flora, minerais,
usos, costumes e formas de organização dos povos, comércio,
organização militar, ciências e artes, bem como os seus enquadramentos
antropológicos, históricos e sociais, segundo uma mentalidade
predominantemente renascentista, moderna e cristã. (CRISTÓVÃO,
2002, p.35. Grifos meus).
Tanto a “deslocação” quanto a “descrição da terra, fauna, flora, minerais, usos,
costumes” fazem-se presentes na obra antuniana e em outras que desobedecem o recorte
temporal de Cristóvão (2002) à manifestação do gênero - século XV ao final do século
XIX- de forma que nos atentaremos menos ao que se diz acerca do subgênero de
Literatura de Viagens e mais à temática da Viagem na literatura portuguesa, citando não
só textos compreendidos como historiográficos, como também pretensamente ficcionais,
a depender da importância que adquiriram no imaginário cultural da nação lusitana.
A história das itinerâncias do país que tem como capital a cidade supostamente
fundada pelo viajante mais conhecido do Ocidente, Ulisses, é longa e multifacetada. Com
uma posição geográfica privilegiada16, Portugal avançou pelos oceanos Índico e Atlântico
de forma inimaginável17, dominando/ subjugando terras ao reino pátrio e, segundo a
ideologia que o norteava e/ou justificava, ao reino do céu. As viagens para além de suas
fronteiras, contudo, serviram mais à construção da identidade do suposto império que se
erguia do que a qualquer outro fim, tal qual dito por Viladarga:
Os portugueses varreram territórios vastíssimos, contataram povos e
culturas das mais diversas e situadas em diferentes geográficas.
Entretanto, mais construíram sua própria identidade neste
processo do que efetivamente buscaram ‘conhecer objetivamente’
novas realidades. Apropriaram-se de novos territórios, povos e
espaços na extensão de seu próprio reino português, assumindo, diante
destes ‘outros’ a sua missão cristã, de conversão e proveito.
(VILADARGA, 2010, p.199. Grifos meus.).
A missão cristã de “conversão e proveito”, salientada por Viladarga, justificou as
inúmeras guerras da Reconquista, entre as quais destaca-se a conquista de Ceuta (1415)

16
“A geografia favorecia Portugal e suas posses ultramarinas em uma proporção inigualável a qualquer
outra potência europeia. Estuários e baías capazes de abrigar navios oceânicos com portos aptos a manejá-
los eram extensos no Atlântico português. O Rio Tejo e seu estuário privilegiavam Lisboa, assim como o
Sado em relação a Setúbal.” (WOOD, 2014, p.113).
17
“Portugal foi a única nação europeia a ter posses tanto no Atlântico norte quando no sul antes de 1492 e
a primeira, a partir do século XVI, a exercer soberania sobre vastos territórios em ambos os lados do
Atlântico subequatorial; a única potência europeia a ter autoridades da Coroa ocupando a posição do
governador simultaneamente na África continental e na América antes de 1600; e a única nação europeia a
ter uma estrutura eclesiástica completa no Atlântico norte e sul antes de 1600. Portugal era abençoado por
arquipélagos que, já no século XV, possuíam importância estratégia para o comércio, a colonização e a
defesa.” (Idem, p.114).

20
pelo infante D. Henrique, e os empreendimentos arriscados como o da passagem pelo
Cabo Bojador (1434), protagonizado por Gil Eanes de Zurara. Além disso, a viagem
inaugural à Índia (1497-1499), via cabo da Esperança, dirigida por Vasco da Gama, bem
como a descoberta do Brasil, em 1500, tido por muito tempo como a principal fonte de
riquezas do império português, fomentaram além de grandes investimentos por parte da
coroa, uma leitura ufanista da nação crescente:
A coroa portuguesa adquire assim uma nova dimensão. O pequeno
Portugal ibérico transforma-se numa das maiores potências navais e
comerciais da Europa. Ao antigo título de rei de Portugal e dos
Algarves, D. Manuel manda acrescentar novas dignidades: << e senhor
da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e
Índia>>. É por esta altura (1505) que os velhos paços reais da Alcáçova
de Lisboa, residência afortalezada e medieval, são abandonados e
substituídos por um palácio à beira-rio, com galeria de sabor
renascentista, donde se avista o Tejo. (SARAIVA, 1979, p.148).

Dado o novo epíteto de D. Manuel, “senhor da Conquista, Navegação e Comércio


da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”, e a centralidade que Lisboa, enquanto cidade litorânea,
assumiu em seu reinado, não nos é estranho que a arquitetura manuelina tenha como
principais símbolos a esfera armilar, a cruz da Ordem de Cristo e motivos marinhos, bem
como que o Conselho Ultramarino da nação, formado em 164218, tenha sido implantado
em Lisboa, cidade que abrigará, no futuro, um dos mais reconhecidos monumentos
erguidos em memória aos grandes feitos portugueses no mar, o Padrão dos
Descobrimentos (1960)19.
Como interpretação e representação do mundo, a literatura diz-nos muito sobre o
passado de uma nação. Se desde as composições líricas medievais galego-portuguesas
(XII-XIV), o mar e a viagem já são as causas das despedidas tematizadas, sobretudo, nas

18
WOOD, John Russell. Histórias do Atlântico Português. São Paulo: Unesp, 2014, p.115.
19
“Da autoria do arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948) e do escultor Leopoldo de Almeida (1898-1975),
o Padrão dos Descobrimentos foi erguido pela primeira vez em 1940, de forma efêmera e integrado na
Exposição do Mundo Português. Construído com materiais perecíveis, possuía uma leve estrutura de ferro
e cimento, sendo a composição escultórica moldada em estafe (mistura de espécie de gesso e estopa,
consolidada por armação ou gradeamento de madeira ou ferro). Em 1960, por ocasião da comemoração dos
500 anos da morte do Infante D. Henrique, o Padrão é reconstruído em betão e cantaria de pedra rosal de
Leiria e as esculturas em cantaria de calcário de Sintra. Em 1985 é inaugurado como Centro Cultural das
Descobertas (...) Isolado e destacado no paredão à beira do Tejo, o Padrão dos Descobrimentos evoca a
expansão ultramarina portuguesa, sintetiza um passado glorioso e simboliza a grandeza da obra do Infante
D. Henrique, o impulsionador das descobertas. Uma caravela estilizada faz-se ao mar, levando à proa o
Infante D. Henrique e alguns dos protagonistas da gesta ultramarina e da cultura da época, navegadores,
cartógrafos, guerreiros, colonizadores, evangelizadores, cronistas e artistas, são retratados com os símbolos
que os individualizam.” Disponível em: <<https:/padraodosdescobrimentos.pt>>. Acesso em 4 de abril de
2019.

21
cantigas de amigo20, e temas marítimos já se fazem presentes em crônicas, histórias e
memórias como as redigidas por Fernão Lopes (1385-1460)21, é no século XV e XVI, no
auge das grandes navegações, que a literatura portuguesa concentrou-se na representação
da “exploração e no estabelecimento de um império marítimo22.”
História do Descobrimento & Conquista da Índia pelos portugueses (1551) de
Fernão Lopes de Castanheda e Décadas de Ásia (1552) de João de Barros foram duas
obras de literatura de viagem, de grande valor historiográfico, que discorreram sobre o
império que se erguia, servindo de suporte à produção de Os lusíadas (1572) de Camões.
Ambas, profundamente devedoras de uma concepção providencialista da história,
retratavam os grandes feitos dos portugueses não só destacando o poder que a nação
dispunha frente aos territórios dominados, mas, sobretudo, a missão salvadora que
motivava os portugueses: a de apregoar Cristo aos gentios e matar os inimigos da fé, os
mouros23.
Como já dito, Camões bebeu dessa fonte e, em Os lusíadas (1572), livro que viria
a ocupar o centro do imaginário nacional a partir do século XIX24, descreve a viagem de
Vasco da Gama às Índias, em um momento já não tão esplendoroso à nação como o do
passado recente25, visto que “navios portugueses conseguiam impor o seu domínio no

20
“Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo?/ e ai Deus, se verrá cedo?/ Ondas do mar levado,/ se vistes
meu amado?/ e ai Deus, se verrá cedo?/ Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro? e ai Deus, se verrá
cedo?/ Se vistes meu amado,/ o porque hei gram coidado?/ e ai Deus, se verrá cedo?” CODAX, Martim.
Disponível em: << https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1308&pv=sim>>. Acesso em 4 de abril
de 2019.
21
“Nas narrativas sobre os reinados de Pedro I e Fernando I, o cronista Fernão Lopes (ca.1380-ca.1460)
discorre sobre estratégia naval, tipos de embarcação, conflitos navais entre portugueses e castelhanos, a
presença naval inglesa, bloqueios militares, viagens exploratórias pelo Atlântico, apoio da realeza à
construção naval, comércio de longa distância e até mesmo seguro marítimo.” (WOOD, 2014, p.76).
22
Idem, p. 76.
23
VILARDAGA, José Carlos. Lastros de viagem: Expectativas, projeções e descobertas portuguesas no
índico (1498- 1554). São Paulo: Annablume, 2010, p.164.
24
O processo de mitificação da figura histórica de Camões ganhou força com a publicação do poema
Camões (1825) de Garrett, obra que teria fundado o romantismo português. Produzida durante o exílio do
autor em França, a obra em questão tematiza o fim trágico de Camões como prova da pouca valia de seus
contemporâneos, e a saudade, sentimento de alguma forma já intuído em Os lusíadas(1572), que se tornou
recorrente ao longo de toda tradição literária portuguesa como sintoma presente da nação que ressente a
perda de um passado glorioso. Passado este, como vimos, definido sobretudo pelas inúmeras viagens da
nação lusíada. Há de se levar em consideração também, o conjunto escultórico, Monumento a Camões, da
autoria de Victor Bastos, inaugurado no mesmo século, em 1867. Nele, abaixo de Camões encontram-se
representados: Fernão Lopes, Azurara, João de Barros, Castanheda, Pedro Nunes, Quevedo, Corte-Ral e Sá
de Menezes. Em 1880, fez-se outra homenagem ao poeta em comemoração ao centenário de sua morte,
centenário que, segundo Lourenço, funcionou como “máquina de guerra ideológica contra a monarquia”.
(LOURENÇO, 2016, p.183).
25
“Portugal vivia do Oriente e para o Oriente, e se as coisas não andavam muito boas por lá, a auto-estima
portuguesa, bem como sua situação material padeciam muito. Natural, então, que as obras produzidas neste
período viessem marcadas pelo signo de uma decadência que se vislumbrava, mas que ainda se acreditava
reversível. Onde estariam as maiores glórias portuguesas senão em um passado ao mesmo tempo recente,

22
mar, mas a sustentação das fortalezas terrestres era cada vez mais difícil” (SARAIVA,
1979, p.163). A epopeia camoniana, além do forte tom de exaltação nacional pelo qual é
conhecida, sobretudo pela ênfase que se dá ao seu herói, Vasco da Gama, não é apenas
um “resumo metrificado da história de Portugal26”, como também uma obra que , pela
figura emblemática de seu Narrador, discorre sobre a sua própria configuração e, ao
contrário do que muitos dizem, sobre os problemas da realidade portuguesa seiscentista.
Nos chamados “excursos do poeta”, segundo Cleonice Berardinelli (2000), seja pela
introdução de vozes como a do Velho do Restelo27, seja pelos comentários do próprio
narrador, deparamo-nos com um Camões pouco explorado nas salas de aula, um autor
que concilia a exaltação pátria com críticas duríssimas à nação sobre a qual seu eu-lírico
propõe-se a cantar:

A liberdade de juízo que Camões patenteia na epopeia lhe vem, em


parte, de sua qualidade humanista, mas também, e sobretudo, da de
homem inserido numa época de crise, capaz de avaliar a grandeza do
esforço realizado, identificando-se com ele no que encerra de
afirmativo do homem superador da própria condição, mas capaz
também de enxergar-lhe o outro lado, o que irrompe dos relatos da
história trágico-marítima; capaz de sentir que o grande momento de
Portugal já passou, mas existiu, em toda a plenitude da empresa que
utilizou o homem integral - o da ciência, da técnica e da ação. (...) E
aqui está uma das razões da grandeza do poema que, à medida que se
faz, questiona não somente o contexto que utiliza, mas o próprio
enunciado que consagra este contexto. A matéria épica, apesar da
visão crítica do poeta, apesar das tremendas acusações do Velho do
Restelo, permanece válida mas não indiscutida (...).
(BERARDINELLI, 2000, p.55. Grifos meus).

mas distante em termos de honra, heroísmo e dignidade? Virtudes que pelo que percebia andavam muito
distantes fosse da fidalguia portuguesa no reino, fosse do Oriente.” (VILADARGA, 2010, p.147).
26
(...) o poema de Camões pode ser definido como um resumo metrificado da história de Portugal, com
destaque não só para a exaltação eufórica do ideal guerreiro e cristão dos reis medievais (dinastia de
Borgonha: feudalismo), mas também para o elogio hiperbólico da expansão burguesa e cristã dos valores
europeus (dinastia de Avis: mercantilismo). (TEIXEIRA, 2001, 30-32).
27
“Mas um velho, de aspeito venerando, / Que ficava nas praias, entre a gente, / Postos em nós os olhos,
meneando/ Três vezes a cabeça, descontente/ A voz pesada um pouco alevantando,/ Que nós no mar
ouvimos claramente,/ Cum saber só de experiências feito,/ Tais palavras tirou do experto peito:/ ‘Ó, glória
de mandar, ó vã cobiça/ Desta vaidade, a quem chamamos Fama!/ Ó fraudulento gosto, que se atiça/ Cuã
aura popular, que honra se chama!/ Que castigo tamanho e que justiça/ Fazes no peito vão que muito te
ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, / Que crueldades neles exprimentas!/ Dura inquietação d’
alma e da vida,/ Fonte de desemparos e adultérios,/Sagaz consumidora conhecida/ De fazendas, de reinos
e de impérios!/ Chamam-te ilustre, chamam-te subida,/ Sendo dina de infames vitupérios;/ Chamam-te
Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana./ A que novos desastres determinas/
De levar estes Reinos e esta gente?/ Que perigos, que mortes lhe destinas,/ Debaixo dalgum nome
preminente?/ Que promessas de reinos e de minas/ De ouro, que lhe farás tão facilmente?/ Que famas
lhe prometerás? Que histórias?/ Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?” (CAMÕES, 2010, Canto
IV, 94-97. Grifos meus).

23
Além da obra de Camões, que talvez sintetize o imaginário imperial/colonial de
Portugal nos séculos XV e XVI, de forma bastante crítica, é necessário que nos atentemos
a alguns nomes menos conhecidos, mas preciosos à investigação, à medida que testificam
a importância da temática das viagens na literatura lusíada. Um contemporâneo de
Camões foi o açoriano Gaspar Frutuoso (1522-1591) que, segundo WOOD (2014, p.76),
“recorria às lendas, aos manuscritos e à tradição oral da história (Saudades da terra e do
céu) do descobrimento e colonização da Madeira, dos Açores e das ilhas Canárias.” Além
disso, já no século XVII, um livro de suma importância ao subgênero é Peregrinação
(1614) de Fernão Mendes Pinto. A obra mescla realidade e ficção em uma autobiografia
de “incansáveis viagens por mares asiáticos, pirataria e naufrágios associados a descrições
etnográficas e históricas” (WOOD, 2014, p.74). Representantes do Clero como Jerônimo
Lobo (1595-1678), Manuel Godinho (1633-1712), Sebastião Manrique (1580-1669),
Fernão Cardim (1548-1625) e António Vieira (1608-1697) também escreveram relatos
acerca de suas viagens pelos diferentes domínios ultramarinos portugueses.
Por fim, apesar da afirmação de Wood (2014, p.79): “A literatura portuguesa do
século XVIII não é tão marcadamente marítima”; convém-nos destacar o nome de
Bernardo Gomes de Brito, erudito português que reuniu em História trágico-marítima
(1735-1736) diversas narrativas de naufrágios dos séculos XVI e XVII. Sua obra
enriquece em muito a literatura de viagens portuguesa, tendo em vista que tematiza as
próprias em detrimento do destino que visam, bem como, nas palavras de Madeira (1999),
pela possibilidade de atender a diferentes perspectivas de estudo:
O interesse das narrativas ressalta-se, qualquer que seja o viés através
do qual sejam abordadas. Interesse histórico – documental, por
narrar um capítulo da ‘era dos descobrimentos’ por um ângulo
inusitado, tendo sempre a ‘grande história’ como contraponto aos
eventos narrados; interesse etnográfico, permitindo reconstituir
‘cenas’ da vida cotidiana no mar, ampliar o conhecimento sobre a
cultura marítima, a vida a bordo, trazendo algumas vezes interpretações
pouco comuns entre os cronistas e historiadores quinhentistas oficiais.
(MADEIRA, 1999, p.2. Grifos meus)

Pode-se notar que não só História trágico-marítima (1735-1736) de Bernardo Gomes


de Brito, mas todas as obras que tematizavam as viagens portuguesas produzidas entre os
séculos XV, XVI, XVII e até XVIII representavam seja os bastidores, seja a própria
grandeza da era dos descobrimentos. Até o século XVI os destinos das viagens lusitanas
eram longínquos, de forma que a literatura produzida atentava-se à descrição do exotismo

24
dos lugares descobertos - como a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) - e para a
perseverança dos heróis nacionais diante de inúmeros infortúnios naturais e sobrenaturais
- como em Os lusíadas (1579).
Alcácer Quibir, princípio da queda do império português, representaria o que
Lourenço chama de “trauma29” da nação lusíada que, depois do terremoto lisbonense de
1755, é ameaçada pelas tropas napoleônicas, descentrada com a vinda da família real ao
Brasil em 1808, e cindida em 1828 com a guerra civil entre miguelistas e liberais. De
forma que o século XIX, o mais literário dos séculos30, exigirá uma outra postura dos
literatos frente à nação que outrora fora “navio-Europa31”.
1.1.2. O reconhecimento da queda (século XIX e meados do século XX)
Partindo da perspectiva esboçada por Lourenço (1978), de que com Camões
(1825) de Garrett inicia-se o processo de autognose de Portugal que terminará com
Mensagem (1934) de Pessoa, buscaremos compreender as características das viagens
literárias representadas ao longo do século XIX e na primeira metade do XX em Portugal.
Tal qual dito por Wood (2014), a prosa portuguesa do século XIX é rica em
narrativas de viagens. Se em Camões (1825) de Garrett já encontramos o deslocamento
geográfico como temática, visto que a personagem representa a figura histórica do poeta
que viveu cerca de vinte anos no Oriente a serviço do exército português, a obra
paradigmática do subgênero no século e, não por acaso, objeto de estudo da pesquisa em
questão, é Viagens na minha terra (1846) do mesmo autor. Afigurando-se muito diferente
das grandes viagens que serviram de tema a escritos historiográficos e ficcionais nos
séculos anteriores, a viagem que o narrador realiza em sua terra e não em longínquas, não
exalta as virtudes nacionais, antes fundamenta uma série de críticas culturais e políticas à
nação que atrasada em relação aos demais países da Europa, sequer valoriza o passado
impresso na “mais histórica e monumental32” cidade portuguesa, Santarém. A iniciativa
garrettiana de promover uma viagem pelo já conhecido, pela própria terra lusíada sem
interferência do mar, fez do autor, nas palavras de Eduardo Lourenço:
(...) o primeiro de uma longa e ainda não acabada linhagem de Ulisses
intelectuais em busca de uma pátria que todos temos sem poder ajustar

29
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: Psicanálise mítica do destino português. Rio de Janeiro:
Tinta- da-China Brasil, 2016, p.32.
30
Segundo Lourenço em A nau de Ícaro e Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p.86.
31
Idem, p.71.
32
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, p.90.

25
nela o sonho plausível que nos pede e a realidade amarga que nos
decepciona. (LOURENÇO, 2016, p.101).
Ora, contemporâneo de Garrett e um dos “Ulisses intelectuais” de que falou
Lourenço, Alexandre Herculano, em um dos textos compilados em Lendas e narrativas
(1851), intitulado “De Jersey a Granville”, publicado pela primeira vez na revista O
Panorama (1843), também discorre sobre uma viagem supostamente autobiográfica.
Diferente da que nos apresenta Garrett e das representadas nos séculos XV e XVI, a
viagem que realiza é internacional e sem nenhuma grandeza, visto que o narrador foi
exilado da pátria e tem diante de si uma paisagem que não escolheu. Tal viagem teria sido
feita com alguns companheiros e deveria conduzi-los da Inglaterra à costa francesa de
Saint-Malo. Exilado por conta da guerra civil, em 1831, e leitor de Camões (1825), “texto
maior da literatura de exílio escrita em Português33”, Herculano tematiza a dor da
ausência forçada da pátria recorrendo a “temas e tópicos da escrita do exílio34”, como a
tempestade em alto mar e o da pobreza no desterro.
Além dele, o escritor Camilo Castelo Branco também trata do assunto da
emigração forçada, ora em Carlota Ângela (1858), ora em Amor de perdição (1862).
Contudo, em Coração, cabeça e estômago (1862), a passagem de Silvestre Silva por
Lisboa, Porto e Soutelo, num movimento semelhante ao de Viagens, liga as experiências
do protagonista às diferentes cidades portuguesas, havendo, dessa forma, uma espécie de
investigação (ainda que estereotipada) da terra pátria em suas múltiplas formas. Em A
queda dum anjo (1866), o autor tematiza, mais uma vez, o deslocamento de uma
personagem por Portugal. Calisto Elói parte do interior da nação (Caçarelhos) à capital
(Lisboa) e a viagem, em suas consequências, modifica a tal ponto o seu interior que o faz
deixar de lado as tradições e abrir-se à má fé e ao oportunismo da política portuguesa
oitocentista.
Eça de Queirós, em O mandarim (1880), apresenta-nos a uma personagem que
parte de Lisboa a diferentes pontos da Europa e ao Oriente, em busca de aplacar a culpa
que nutre por ter assassinado um mandarim na China em troca de satisfações pouco
nobres. Ora, nessa obra, o eurocentrismo a que estavam condenadas as primeiras
descrições do Oriente pelos portugueses é reavivado a partir das descrições exóticas e
pejorativas que o narrador nos oferece de diferentes lugares da China. Descrições estas

33
ABREU, Maria Fernanda. “Viagem e desterro: De Ovídio a Camões: Filinto, Garrett e Herculano”. In:
Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, vol.8, n° 16, 1° sem., jul. 2016,
p.113.
34
Idem, p.109.

26
que nos dizem, evidentemente, mais sobre Portugal, através da mesquinhez demonstrada
pelo protagonista do romance, do que sobre o Oriente. Em Fradique Mendes encontramos
uma personagem itinerante e em A cidade e as serras (1901), obra queirosiana que lança
um olhar especial ao Portugal rural do século XIX, a viagem de Jacinto, de Paris a Tormes
(do exterior ao interior do país), é o centro da narrativa.
Como pode ser notado, desde o início do século XIX, as viagens representadas
pela literatura, em Portugal, deixam de ser grandiosas e pretendem ora investigar, ora
ironizar a terra pátria que, tornando-se cenário de narrativas diversas, não patrocina
grandes conquistas, mas exila seus filhos, à medida que o abismo entre a grandeza ideal
de seu passado e o seu presente medíocre35, aumenta de forma quixotesca. Uma obra de
grande importância e que, diferentemente das citadas até então, não se pretendia ficcional
e remetia às antigas conquistas portuguesas é Lendas da índia, Livros das Monções e
Cartas de Afonso de Albuquerque (1880), de Gaspar Correia. Segundo Wood (2014,
p.81), a obra teria satisfeito a “efusão nacionalista em Portugal no século XIX”, por ter
discorrido acerca da grandiosa história naval e náutica do país. História esta que, depois
do Ultimato Inglês (1890)36, ocorrido no mesmo ano de publicação da obra, afigurava-se
bastante distante da realidade portuguesa de frustrações, sobretudo se levarmos em
consideração que além de perder a famosa faixa que ligava Angola e Moçambique, a
nação lusíada perdera, no mesmo século, o Brasil (1822).
Antes de discorrermos acerca de textos literários de e sobre viagens da primeira
metade do século XX, vale a pena salientar que, neste século, houve o despontar de uma
literatura repleta de temas marinhos. O mar era associado, “de modo inalienável (à) glória
e (à) tragédia37”, fazendo-se presente na poesia de Teixeira de Pascoaes (1877-1952),
Afonso Lopes Vieira (1878-1946), Mário Gomes Beirão (1890-1965), Guilherme de
Faria (1907-1929) e Fernando Pessoa (1888- 1935).

35
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: Psicanálise mítica do destino português. Rio de Janeiro:
Tinta- da-China Brasil, 2016, p.106.
36
“Na manhã de 11 de Janeiro de 1890, uma nota inglesa exigiu do governo de Lisboa que, até à tarde desse
dia, mandasse retirar as tropas portuguesas que se encontravam no vale do Chire. Um cruzador esperava a
resposta. O governo cedeu. Esse ultimato foi um dos factos verdadeiramente importantes da história
portuguesa dos finais do século XIX. O desenvolvimento da política portuguesa em África, feito em
constante desafio a países poderosos, apaixonara a opinião pública. Era uma política oficial que conseguira
uma enorme base de adesão nacional. Ninguém a contestava e a oposição consistia em dizer que, nesse
sentido, não se fazia tanto quanto era necessário. Por isso, o ultimato teve em Portugal uma repercussão
dolorosa e profunda.” (SARAIVA, 1979, p.337).
37
WOOD, John Russell. Histórias do Atlântico Português. São Paulo: Unesp, 2014, p.82.

27
Considerando que “os oceanos eram condição sine qua non da empreitada
imperial38”, pensar a articulação da temática marinha com a de viagem faz muito sentido,
principalmente em obras como Ilhas desconhecidas (1926) de Raul Brandão e Mensagem
(1934) de Pessoa. Ilhas desconhecidas (1926) pode ser considerado um romance
marítimo, à medida que se detém na descrição dos arquipélagos atlânticos, através da
viagem que o seu narrador/ autor realiza aos Açores e à Madeira. Em sua viagem,
contudo, além das belezas geográficas, o narrador/ autor descreve, criticamente, a
pobreza, nada bela, a que muitas pessoas estariam sujeitas em um ambiente concebido
como paradisíaco. Em contrapartida, Mensagem (1934), obra poética dividida em três
partes, intituladas de “Brasão”, “Mar Português” e “O encoberto”, de autoria daquele que
havia anunciado a si mesmo como “Super-Camões39”, não visa a uma espécie de reescrita
de Os lusíadas, mas antes rasurar, integralmente, o “sentido comum de patriotismo40”:

A Mensagem onde esse patriotismo-outro se encarnará poeticamente


não é Os Lusíadas de um Portugal sem realidade epopeica efetiva, mas
um Anti- Lusíadas, epopeia elegíaca da autodissolução da nossa
particularidade histórica empírica como caminho, ascensão e
transcessão de todas as particularidades, suicídio sublime da
personalidade na era de uma impersonalidade realmente universal e
fraterna. (LOURENÇO, 2016, p.130. Grifos meus.)

A “autodissolução” de Portugal enquanto nação particularmente eleita por Deus a


grandes descobertas geográficas e conquistas, sobre a qual Lourenço discorre, é visível,
sobretudo, nos doze poemas que compõem “Mar Português”. Nos últimos versos do
primeiro deles, intitulado “Infante”, notamos o reconhecimento por parte do eu-lírico de
que o império português faliu e de que a nação, não mais imperial, precisaria se
redescobrir no presente: “Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta
cumprir-se Portugal!”. (PESSOA, 1992, p.61).
Ora, o reconhecimento de que Portugal não é o centro e muito menos o melhor
dos mundos no século XX, em muito distancia-se da imagem outrora apregoada por
poetas e historiadores dos séculos XV e XVI. Dois exemplos de romances interessantes
para a análise deste fenômeno são Emigrantes (1928) e A selva (1930), ambos escritos
por José Maria Ferreira de Castro. No primeiro, deparamo-nos com a história de um
português pobre, Manuel da Boça, que parte de Portugal ao Brasil em busca de melhoria

38
Idem, , p.112.
39
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade: Psicanálise mítica do destino português. Rio de Janeiro:
Tinta- da-China Brasil, 2016, p.127.
40
Idem, p.130.

28
de vida. Em A selva (1930), todavia, o autor tematiza o exílio de um estudante de Direito
que, por conta de seus ideais políticos, tem de sair de Portugal e emigrar para Belém do
Pará, tornando-se, depois de embrenhar-se na floresta amazônica, um seringueiro. Pode-
se observar que em ambas as obras, durante toda a narrativa, a pobreza e injustiça
presentes em Portugal são trazidas à tona e, diferentemente dos antigos ideais heroicos
que moviam as grandes personalidades portuguesas, as personagens de José Maria
Ferreira de Castro viajam à antiga colônia portuguesa para sobreviverem e não para
representarem os interesses da nação lusíada.
Tendo apresentado, sumariamente, algumas obras que nos permitem refletir
acerca da relação que Portugal mantinha com as viagens no século XIX e no início do
século XX, muito diferente da estabelecida nos séculos XVI e XVII, é necessário que
promovamos um salto temporal à reflexão de alguns romances que exploram a temática
das viagens pós-25 de abril de 1974.

1.1.3. O trabalho de luto do império português (séculos XX e XXI)

Segundo Gomes (1993, p.30), surge após 25 de abril de 1974 uma “geração de
romancistas com vozes próprias”, os quais, nas palavras de Ribeiro (2012, p.90),
tematizam “o império e a sua herança”, povoando a literatura portuguesa contemporânea,
“tanto com memórias douradas desse tempo, como com memórias cinzentas da
brutalidade do colonialismo e da Guerra Colonial que pôs fim ao império”. Vejamos, a
partir do que foi dito, algumas das viagens representadas, literariamente, à essa altura.
José Saramago explora, em muitas de suas obras, a temática da viagem, ora como
essencial ao amadurecimento do eu, Manual de pintura e caligrafia (1977), ora como
forma de representar a alienação de Portugal e Espanha em relação ao restante da Europa,
Jangada de pedra (1986). Contudo, uma obra bastante interessante para a reflexão
proposta nesta pesquisa é Viagem a Portugal (1981-1990). Obra que Saramago dedica a
Almeida Garrett, chamando-o de o “mestre de viajantes” na epígrafe, e que dialoga
muitíssimo com o romance oitocentista, diferindo-se dele num quesito fundamental, as
implicações de seu título:
(...) é interessante observar que, enquanto no título das Viagens se
utiliza a preposição em (‘na’), indicativa de espacialização, que faz
de Portugal o espaço de viagem, na Viagem a Portugal, preposição
‘a’, de movimento, situa o viajante em uma posição externa a
Portugal e faz dessa terra espaço de destino. Dessa forma, Portugal,
que, no primeiro título, é tido como um espaço familiar, do qual o
viajante faz parte e com o qual se identifica, estabelecendo com ele uma

29
relação de proximidade e de familiaridade (é a identificação, típica do
Romantismo, do indivíduo e do escritor com sua terra), no segundo
torna-se um espaço ficcionalmente estranho e distante, para o qual
o viajante se dirige, vindo de longe para reencontrá-lo, (re)
descobri-lo. (ALSINA, 2006, p.9. Grifos meus).

Ora, estabelecendo o título da obra saramaguiana uma ideia de estranhamento e


distanciamento da personagem em relação à própria terra, tal qual dito por Alsina,
notamos que o autor é realmente filho de seu século. O século dos desterrados e que têm
diante de si, depois do fim drástico do sonho colonial, o desafio exposto por Lourenço:
O futuro de Portugal foi desde cedo o ‘lá fora’, a distância, nossa ou
alheia. Foi a Índia, o Brasil, a África, recentemente e a vários títulos, a
Europa. Hoje é a primeira vez que Portugal e os portugueses têm de
desenhar, de conceber, de inventar e se dar um futuro a partir de
si mesmos. (LOURENÇO, 2001, p.68. Grifos meus.).

O desafio de superar as perdas oriundas das guerras promovidas “lá fora”,


reconstituindo a própria identidade, é compartilhado pelo narrador-protagonista da
primeira trilogia escrita por António Lobo Antunes. As obras Memória de elefante (1979),
Os cus de judas (1979) e Conhecimento do inferno (1980), a princípio idealizadas,
segundo o autor, como um único livro41, além da problematização identitária do
protagonista pós-guerra, também tratam de viagens direta e indiretamente.
Em Memória de elefante (1979), acompanhamos o narrador por uma viagem de
carro por Lisboa; em Os cus de Judas (1979), apesar do protagonista deter-se ora no bar,
ora em seu apartamento, à medida que narra sobre as experiências que teve em África,
faz-nos viajar com ele para lá; em Conhecimento do inferno (1980), à guisa garrettiana,
o narrador conduz-nos por uma viagem do Algarve à Praia das Maçãs. Viagem esta que,
apesar de se passar no território pátrio, é diferente da realizada por Garrett e Saramago, à
medida que atravessada pelos cenários angolanos nos quais o narrador combateu, bem
como por diferentes espaços do Hospital Miguel Bombarda.
Contudo, não são apenas os primeiros livros de Lobo Antunes que trazem à tona
a temática da viagem. Dentre outras obras, o romance As naus (1988) também o faz. As
naus (1988) apresenta-nos a personagens retornadas de África, vestidas de figuras

41
Em entrevista concedida a Álvaro Cardoso Gomes, Lobo Antunes diz: “Os três primeiros livros eram um
livro só. Nunca tive a pretensão de publicar livros. O aparecimento deles foi um acaso, através do incentivo
de um amigo que leu os manuscritos. Eu escrevia os livros e os atirava fora. E isso aconteceu durante muitos
anos. Portanto, os três primeiros livros formavam um único livro, em que eu queria falar de três temas, que
talvez fossem um só, que eram a guerra colonial, a relação entre um homem e uma mulher, quando não há
amor e o universo concentracionário dos hospitais psiquiátricos, como arquétipo de uma coisa mais geral
que seria o país.” (ANTUNES apud GOMES, 1993, p.138).

30
histórico-míticas de Portugal, promovendo, dessa forma, segundo Gomes (1993), o
entrelaçamento irônico e anacrônico da época das conquistas ultramarinas à da
manutenção do império já fracassado. Ora, expondo-nos a retornados que não são
acolhidos como esperam em sua terra, o autor questiona o lugar dos próprios heróis na
história pátria:
A obra trata de um dos temas fundamentais do autor: a tragédia
dos retornados das colônias e sua desgraça num país que não tem
como acolhê-los. A nota fantástica é dada pelas personagens, que
vestem roupagens das figuras históricas e míticas do Portugal das
conquistas: Pedro Álvares Cabral retorna casado com uma mulata e se
vê desempregado em Portugal, Francisco Xavier é um chulo, dono da
pensão ‘Apóstolo das índias’, Camões anda pela cidade puxando atrás
de si o caixão do pai, D. Manuel e Vasco da Gama são enviados a um
hospício etc. O romance termina com os retornados internos num
hospital de tísicos, a planejarem uma revolução e esperando o retorno
de D. Sebastião. Como que resultante de um delírio, o romance
entrelaça as experiências das figuras míticas com marcos históricos do
passado e com a miséria real dos colonos portugueses, em contato com
a brutalidade da guerra colonial. (GOMES, 1993, p.64. Grifos meus).

Outro autor que também se utiliza de figuras históricas míticas do “Portugal das
conquistas” e que recorre à viagem, enquanto temática, em seus romances, é Almeida
Faria. Em Cavaleiro Andante (1983), último livro da tetralogia lusitana, o viajar de André,
protagonista, tal qual dito por Gomes (1993, p.90) “satisfaz-se com o viajar propriamente
dito”, opondo-se ao ideal de conquistas que norteava as viagens dos séculos XV e XVI.
É digno de nota também que em sua mais famosa obra, O conquistador (1990), a
personagem de Sebastião, muito diferente da histórico-mitológica do Desejado/
Encoberto, não viaja para conquistar terras, mas “em busca da perfeição no amor42”.
Literato de grande prestígio na contemporaneidade, Gonçalo. M. Tavares também
demonstra estar atento à simbologia universal da viagem e à sua forte presença no
imaginário cultural lusitano e isto porque, em Uma viagem à Índia (2010), o autor
promove uma espécie de corrupção genológica da epopeia. Valendo-se do tema articulado
e da segmentação de cantos e estrofes elaboradas por Camões em Os lusíadas (1572),
Tavares subverte a grandiloquência da obra camoniana, visando a demonstrar-nos, dentre
outras coisas, que o passado glorioso português, em suas viagens heroicas, não pode ser
revivido pelo Portugal presente.

42
GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: Ensaio sobre o romance português contemporâneo. São
Paulo: Edusp, 1993, p.43.

31
Ora, a prova mais contundente de que a realidade recém-vivida e o presente de
Portugal não seriam temas dignos de “fazer-se uma epopeia” à guisa camoniana, é o
período das guerras coloniais (1961-1974), em todos os seus efeitos. O longo período de
ditadura e de guerra deixou muitíssimas marcas na literatura portuguesa e em obras
relacionadas, ainda que indiretamente, à temática da viagem. Não só toda a obra antuniana
é forte expressão disso, mas também romances como Partes da África (1991) de Hélder
Macedo e Caderno de memórias coloniais (2009) de Isabela Figueiredo. Em Partes da
África, o autor instabiliza as fronteiras entre as instâncias ficcional e autobiográfica, à
medida que o seu protagonista faz uma espécie de passeio pela história recente (a partir
de meados do século XX) das relações entre Portugal e África” (SOUZA, 2002, p. 108).
Em Caderno de memórias coloniais (2009), a perspectiva biográfica e infantil a partir da
qual a crueldade da realidade colonial é relatada, está ligada à história itinerante da autora
que nasceu em Moçambique em 1963 e teve que se mudar para Portugal nos anos de
1970. A truculência e o racismo dos portugueses, bem como as condições subalternas em
que viviam os negros em sua própria terra, são tematizados por Figueiredo que, segundo
Ribeiro (2012, p.93), não pertence à geração de retornados, mas à geração dos filhos da
Guerra Colonial, à literatura daqueles que “têm uma memória própria, mas de criança,
dos eventos que levaram ao fim do império português.” Império este que, nascido nos
séculos XV e XVI, agoniza desde o XVII, entrando em óbito com o retorno dos que eram
a expressão do domínio português além-mar.
1.1.4. A representação das viagens na literatura portuguesa: da terra ao inferno
Podemos concluir a breve reflexão historiográfico-literária a que nos propusemos,
fadada à incompletude, ressaltando a importância que a temática das viagens assumiu ao
longo dos séculos na literatura portuguesa. Portugal, grande potência europeia dos séculos
XV e XVI, patrocinou viagens longínquas, motivando os literatos a representarem-nas a
partir do ideal político- religioso que impulsionava a nação rumo aos mares.
No século XIX, em meio a todas as perdas já vividas pela nação, as viagens, desde
sempre muito frequentes na literatura lusíada, mudaram seu destino e finalidade. A guerra
civil que cindiu Portugal entre absolutistas e constitucionais foi responsável pelo exílio
de muitos literatos, ao passo que o desterro se tornou lugar-comum na primeira metade
do século. Além da viagem forçosa para fora do país, representações de diferentes cidades
portuguesas tornaram-se presentes na literatura e a viagem garrettiana tornou-se um
exemplo da desenfreada busca pela identidade da nação que, tendo viajado para e
conquistado terras de fora, deixara de e precisava viajar por seus próprios limites,
32
interpretando-se a si mesma. No início do século XX, em contrapartida, a emblemática
simbologia dos mares, intrinsecamente relacionada à temática das viagens, foi
reinterpretada, criticamente, por muitos poetas que, como Teixeira de Pascoaes e
Fernando Pessoa, apropriaram-se do tema visando a uma reconstrução do imaginário
cultural da nação, bastante prejudicado pelas críticas demasiadamente duras da chamada
geração de 7043.
No decorrer do século XX e já no século XXI, a temática da viagem assumiu
perspectivas outras. Portugal, tendo passado por um longo período ditatorial (1933-1974),
e perdido seu domínio em África, viu frustrar-se o sonho de ser império ultramarino. A
literatura acerca do regresso de combatentes a Portugal, retrata, de forma bastante
diferente da vigente nos séculos XV e XVI, e relação entre identidade (portugueses) e
alteridade (africanos), conferindo aos supostos civilizados características antes atribuídas
apenas aos inimigos da fé (mouros). O exótico, o estranho e o distante já não estão fora
de Portugal, mas instaurados dentro do país, o qual já não pode ser aos portugueses do
presente o que era aos do passado, à medida que atravessado pelas consequências de treze
anos de guerra.
Dessa forma, considerando a pertinência do tema da viagem na literatura ocidental
como um todo e, de forma especial, na literatura portuguesa, bem como que “as formas
de representação espacial variam de acordo com a relação que cada época e cada cultura
possuem com o espaço” BRANDÃO (2013, p. 18), investigaremos duas obras que, apesar
de separadas por mais de um século, demonstram, em suas particularidades, dialogar com
a tradição histórico-literária que as precede, subvertendo-a em muitos aspectos.
Primeiramente discorreremos acerca do itinerário geográfico do narrador de Viagens na
minha terra (1846), que atua como uma espécie de arqueólogo do passado de sua nação,
atentando-nos à forma como representa e se relaciona com cada espaço que observa,
atravessa e adentra, em sua viagem de ida e volta de Santarém. Em seguida, deter-nos-
emos no itinerário do narrador antuniano e na relação diferenciada, “pós-moderna”, que
ele mantém com os lugares pelos quais passa rumo à Praia das Maçãs, relação de
“identificação e abstratização44”, de pertencimento e não-pertencimento.

43
“Este Portugal dos fins do século XIX, princípios do XX, medíocre, mendigo político da Europa, assistirá
estupefacto e incrédulo a uma operação de magia poética incomparável destinada a subtraí-lo para sempre
àquele complexo de inferioridade anímico que a Geração de 70 ilustrara com tão negra e fulgurante verve.”
(LOURENÇO, 2016, p.121.Grifos do autor).
44
Segundo Luís Alberto Brandão, a pós-modernidade é marcada por um novo regime espacial que o autor
caracteriza a partir das seguintes palavras: “No novo regime espacial, constata-se o conflito entre, por um
lado, a tentativa de constituir e preservar lugares de identificação e, por outro, a progressiva abstratização

33
2. No encalço dos narradores: a dimensão geográfica das viagens
2.1. A viagem do arqueólogo oitocentista
Viagens na minha terra (1846) de Almeida Garrett, como já dito, dialoga, desde o
seu título, com um dos “mais antigos e generalizados fenômenos da vida humana45”, que
assume dimensão de suma importância para a cultura e a tradição literária portuguesa: o
viajar. Em contraponto às viagens longínquas efetuadas pela companhia de Gama, sobre
as quais se detêm Camões, Garrett tornou-se o mestre dos viajantes no século XIX ao
propor uma viagem pelo interior de Portugal: de Lisboa a Santarém. Viagem esta que
não pode ser reduzida ao deslocamento geográfico que o narrador realiza, já bastante
simbólico, mas que assume dimensões-outras, muitíssimo complexas. Sendo a viagem
do narrador garrettiano multifacetada, a análise proposta neste subcapítulo busca deter-
se sobre a primeira dimensão das viagens do narrador, a geográfica, atentando-se à forma
como ele interage com os espaços e ambientes pelos quais passa a caminho de e em
Santarém.
Vale a pena dizer que, junto à necessidade de um estudo mais específico acerca da
dimensão geográfica da viagem empreendida pelo narrador, a dificuldade em se propor
uma análise, a priori, restrita a esta primeira instância da viagem garrettiana é notória
pela própria estrutura da obra, a qual ressignifica o sentido do verbo viajar, desde o
resumo do primeiro capítulo pelo autor/ narrador, propositalmente digressivo46: “De
como o Autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado
no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens.”
(GARRETT, 2010, p.89. Grifos meus).
Seja em seu quarto até à janela, no Terreiro do Paço, na Vila Nova Rainha, em
Azambuja, em Cartaxo, no Vale de Santarém ou na própria cidade de destino, para melhor
interpretação da importância dos lugares pelos quais o narrador passa e nos quais se detêm
na viagem que realiza, atentar-nos-emos à relação que os espaços atravessados pelo

e virtualização dos espaços, sobretudo os de natureza pública.” (BRANDÃO, 2013, p.18-19). De forma
que podemos compreender que os espaços perdem sua concretude simbólica, sua substancialidade,
tornando-se tão fugazes e indefiníveis à coletividade e ao sujeito, (igualmente fragmentados), como o
próprio conceito de pós-modernidade.
45
ENZENSBERGER, Hans Magnus. “Nós e eles ou: a herança colonial.” In: Com raiva e paciência:
Ensaios sobre Literatura, Política e Colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Instituto Goethe, 1985,
p.210.
46
“Enunciando um discurso que é ele mesmo uma espécie de viagem (porque digressão significa também
‘passeio’, ‘excursão’), o narrador está consciente de que este não é um procedimento inocente: em sintonia
com uma indisfarçável intenção didáctica que preside às Viagens (a mesma que, como se disse, permitirá
ler a novela como obra de tese), as digressões constituem sobretudo, como se verá, instrumentos
preferenciais no processo de representação ideológica que na obra se concretiza.” (REIS, 1998, p.50).

34
protagonista mantêm com o tempo; à não correspondência entre os lugares e motivos
literários à realidade dos espaços e monumentos com os quais o narrador se depara; à
constante comparação que o narrador estabelece entre Portugal e as demais nações
europeias à descrição da geografia e monumentos locais; à novela da Menina dos
Rouxinóis, que parece ilustrar questões espaciais importantes à compreensão da obra
como um todo47.
2.1.1. A viagem, o viajante e o “dinamismo irreversível do tempo48”
Como já destacado, diferentemente das viagens históricas e até mesmo míticas dos
séculos XV e XVI, a viagem do narrador garrettiano não é longínqua ou exótica, ao ponto
da aventura que caracteriza duas vezes como sua “odisseia49”, só se assemelhar à de
Ulisses em um quesito: o destino do narrador é a sua casa, a sua pátria. Pátria na qual,
paradoxalmente, ele já se encontra. O destino preciso da viagem do protagonista, que
parte do Terreiro do Passo em 17 de junho de 1843 às seis da manhã 50, é a cidade de
Santarém, sendo a motivação da viagem muitíssimo clara aos leitores do romance, de
forma que podemos compreender a partir dela a razão do narrador empreender uma
viagem que não visa a desbravar o desconhecido, nem um simples entretenimento:
Era uma idea vaga; mais desejo que tenção, que eu tinha há muito
de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto
cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me
as instâncias de um amigo, decidem-me as tonteiras de um jornal, que
por mexerequice quis incabeçar em desígnio político determinado a
minha visita. Pois por isso mesmo vou: - pronunciei-me. (GARRETT,
2010, p.90. Grifos meus).
O narrador é movido por um desejo pessoal e por uma polêmica jornalística a saudar
a “mais histórica e monumental” das vilas portuguesas, à medida que objetiva efetuar
uma espécie de resgate histórico do passado português, fazendo com que sua viagem
tenha, para além do deslocamento geográfico que prevê, cariz temporal. À guisa de um

47
Visto que, tal qual dito por Reis (1998, p.39): “(...) a novela, os seus incidentes e agora sobretudo as
conclusões que ela permite (conclusões deduzidas sobretudo da leitura, pelo narrador, da carta de Carlos a
Joaninha), vêm convergir no relato da viagem; chegado o seu final, tudo se harmoniza e o que parecia um
relato fragmentário ao sabor das circunstâncias revela-se afinal uma peça importante do todo orgânico que
é a narrativa na sua totalidade.”
48
Expressão usada por Monteiro (2001, p.34) que à sua contextualização afirma: “As obras máximas de
Garrett - Frei Luís de Sousa, O Arco de Sant’Ana, Viagens na minha terra, Folhas Caídas – são criações
tocadas por este amargor, que poderosamente contribui para a <<ironia>> que marca a visão do mundo da
sua maturidade de escritor, incapaz de encontrar uma <<ordem>> no inconsequente e rápido caminhar do
mundo.” (MONTEIRO, 2001, p.33).
49
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda,2010, p.161,
166.
50
Idem, p.90-91.

35
arqueólogo51, o protagonista garrettiano busca, nas ruínas dos monumentos que visita,
reelaborar a identidade da nação presente através do que apreende (ou tenta apreender)
de seu passado. O interesse histórico-passadista que move o narrador a uma cidade como
Santarém fica evidente desde as primeiras observações que ele faz até o desembarcadouro
de Vila Nova Rainha:
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e
pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental, que é, vista de fora, a mais
bela e grandiosa parte da cidade, a mais característica, e onde, aqui
e ali, algumas raras feições se percebem, ou mais exactamente se
adivinham, da nossa velha e boa Lisboa das crónicas. Da Fundição
para baixo tudo é prosaico e burguês, chato, vulgar e sensabor como
um período da Dedução cronológica, aqui e ali assoprado numa
tentativa ao grandioso do mau gosto, como alguma oitava menos
rasteira do Oriente. (...) A um lado a imensa majestade do Tejo em
sua maior extensão e poder, que ali mais parece um pequeno mar
mediterrâneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores,
palácios, mosteiros, sítios consagrados a recordações grandes ou
queridas. Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com
esta? Tirado Belém, nenhuma. E ainda assim, Belém é mais árido.
(GARRETT, 2010, p.92-93. Grifos meus).

A Lisboa Oriental é a “mais bela e grandiosa parte da cidade” ao narrador, porque


preserva as feições da velha e boa “Lisboa das crônicas”. Em contrapartida, do bairro da
Fundição para baixo é tudo “prosaico e burguês” na cidade, características que a todo o
momento o narrador destaca como pertencentes ao seu século. A imensa majestade do
Tejo e os palácios, mosteiros, sítios consagrados, remetem a “recordações grandes e
queridas” do passado, enquanto no restante da capital portuguesa, até mesmo em sua
parte mais bela (Belém), só se encontra a aridez de um presente ordinário.
Em diversas passagens encontramos argumentos semelhantes. Os lugares pelos quais
o narrador passa são valorizados por ele à medida que tem algo a dizer sobre a história
de Portugal, como por exemplo, a Ponte de Asseca52, o Olival de Santarém53, a Porta do

51
O próprio autor/ narrador caracteriza as suas visitas como “estudo arqueológicos”: “Lá voltaremos ao
nosso vale, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a história da menina dos rouxinóis. Por agora
almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos arqueológicos em Marvila de Santarém.”
(GARRETT, 2010, p.389 Grifos meus).
52
“A ponte de Asseca corta uma várzea imensa que há-de ser um vasto paul de inverno: ainda agora está a
dessangrar-se em água por toda a parte. É notável na história moderna este sítio. Aqui, num recontro com
os nossos, foi Junot gravemente ferido na cara. ‘Il ne sera plus beau garçon’, disse o parlamentário francês
que veio, depois da acção, tratar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa similhante. Mas inganou-se
o parlamentário; Junot ainda ficou muito guapo e gentil-homem depois disso.” (Idem, p.152).
53
“Eram as últimas horas do dia quando chegamos ao princípio da calçada que leva ao alto de Santarém.
A pouca frequência do povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo
indicava as vizinhanças de uma grande povoação descaída e desamparada. O mais belo contudo de seus
ornatos e glórias suburbanas, ainda o possui a nobre vila, não lho destruíram de todo: são os seus olivais.
Os olivais de Santarém, cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais

36
Sol54, a Porta de Atamarma55, fato que nos faz entender o porquê do autor/ narrador ter
escolhido Santarém como cidade de destino, dentre tantas outras portuguesas possíveis:
Ao almoço a conversação veio naturalmente a cair no seu objecto
mais óbvio, Santarém. D. Afonso Henriques e os seus bravos; San’
Frei Gil e o Santo-Milagre; o alfageme e o Condestável, el-rei D.
Fernando e a Rainha D. Leonor; Camões desterrado aqui; Frei Luís de
Sousa aqui nascido; Pedr’ Álvares Cabral; os Docems, quási todas as
grandes figuras da nossa história passaram em revista. Por fim veio
Santa Iria também, a madrinha e padroeira desta terra, cujo nome aqui
fez esquecer o de romanos e celtas. (GARRETT, 2010, p.320. Grifos
meus).

Santarém é o que resta, ou a prova de que nada resta, da memória de grandes


personagens da história e da mitologia lusíada ( D. Afonso Henriques, Camões, Pedro
Álvares Cabral, Frei Luís de Sousa), ao passo que, diferentemente do que podemos notar
na prosa poética, gênero híbrido que ascende sobretudo no século XX56 e do qual
Conhecimento do inferno (1980) é um bom exemplar, apesar de o narrador ser afetado
subjetivamente pelo trajeto e por todos os lugares que visita em Santarém, a dimensão
histórico-nacional dos cenários com os quais se depara é predominante em relação a
quaisquer descrições íntimas que o narrador possa fazer dos espaços pelos quais transita:
Cruzámos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear
algum vestígio, confrontar algum sítio onde pudéssemos colocar,
pela mais atrevida suposição que fosse, a tenda do nosso alfageme
com as suas espadas bem ‘corregidas’, as suas armaduras luzentes
e bem postas – e o jovem Nun’ Álvares passeando ali por pé, ao longo
do rio- como diz a crónica- namorado daquela perfeição de trabalho e

e mais queridas; os olivais de Santarém lá estão ainda! Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os
ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga existência.” (GARRETT,2010, p.307-308).
54
“Esta porta do sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos antigos. Foi bem escolhido o
sítio; não o há mais triste e melancólico. Ao pé está um torreão quadrado da muralha, que aí forma canto
para seguir depois na direcção de sul a norte. Deste lado as fortificações e lanços de muro estão todas pouco
estragadas; e do mirante a que subimos pode-se formar perfeita idea do que era uma antiga cidade murada.”
(Idem, p.335).
55
“Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas daquela interessantíssima terra,
em que se não pode dar um passo sem que a reflexão ou a imaginação incontre objeto para se intreter.
Inclinando um pouco à direita, demos na celebrada porta de Atamarma. Por aqui entrou D. Afonso
Henriques, por aqui foi aquela destemida surpresa que lhe intregou Santarém, e acabou para sempre com o
domínio árabe nesta terra. Os ilustrados municipais santarenos têm tido por vezes o nobre e generoso
pensamento de demolir esta porta! o arco de triunfo de Afonso Henriques, o mais nobre monumento de
Portugal! A idea é digna da época.” (Idem, p.366).
56
A relação da chamada prosa lírica com a paisagem é muito mais subjetiva do que notamos em Viagens
na minha terra (1846), tal qual dito por Collot (2013, p.60): “A ascensão da paisagem na literatura dos
séculos XIX e XX não se deveu somente ao sucesso de uma temática, mas está ligada a questões de poética,
e especialmente a uma redefinição dos gêneros literários. O crescimento desse tema em intensidade
coincide historicamente com a emergência de uma prosa poética, na qual se encontra, em particular, uma
prática da descrição irredutível aos modelos teóricos elaborados mais tarde, a partir dos exemplos tomados
de empréstimo ao naturalismo. A qualidade poética dessas descrições está ligada, por um lado, à sua
focalização no ponto de vista de uma personagem, que favorece a interiorização da paisagem, abrindo-a à
expressão lírica e até à confissão autobiográfica.”

37
dando a ‘correger’ a bela espada velha de seu pai ao rústico profeta que
tantos vaticínios de grandeza lhe fez, que o saudou condestável, Conde
d’ Ourém e salvador da sua pátria. Nada pudemos descobrir com que
a imaginação se iludisse siquer, que nos desse, com mais ou menos
anacronismo, uma leve base tão-somente para reconstruirmos a
gótica morada do célebre cutileiro-profeta que a história herdou
das crônicas romanescas, e o hoje o romance outra vez reclama da
história. Em Santarém há poucas casas particulares que se possam
dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. (GARRETT,
2010, p.378-379. Grifos meus).

A procura de vestígios históricos não se dá apenas quando o narrador empreende a


missão de reconstituir mentalmente a tenda do alfageme de Santarém, mas em diversos
momentos da obra, como, por exemplo, diante do palácio de Afonso Henriques57,
personagem importantíssima para a mitologia lusíada; da capela da Nossa Senhora da
Vitória58; do Mosteiro de São Domingos59, da capela de São Frei Gil60, do Convento de
São Francisco61, acarretando inúmeras vezes o sentimento de frustração ao protagonista.
Protagonista que, segundo Mendes (1999), além de se utilizar de todos os sentidos de que
dispõe para a percepção das ruínas que têm diante de si, respondendo ao empirismo

57
“O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio
da antiga origem. Sabe-se que é ali pela bem confrontada e inquestionável topografia dos lugares, por mais
nada... E que me importam a mim agora as antiguidades, as ruínas e as demolições, quando eu sinto demolir-
me cá por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandálica, insaciável!” (GARRETT,
2010, p.314).
58
“(...) e a capela da Senhora da Vitória sobre o arco, não sei também como nem porquê, foi desaforada, e
restituída ao culto popular. Subimos a ver a capela por dentro; é um rifacimento ridículo e miserável, sem
nenhuma da solenidade do antigo, nem elegância moderna alguma. Desapontou-me tristemente. Vamos ao
Santo-Milagre depressa, que me quero reconciliar com Santarém; e já começa a ser difícil.” (Idem, p.368).
59
“Saímos do Colégio, fomos direitos a San’ Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monásticos
do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a inferrujada chave deu a
volta na porta da igreja e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos. Acabara de servir, não imaginam
de quê... de palheiro!” (Idem, p.391).
60
“A capela- oh, desapontamento! - a capela de San’ Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do
lado esquerdo da igreja, sem nenhum vestígio de antiguidade, nenhum ornato característico, pesada,
grosseria, velha sem ser antiga- um verdadeiro non-descriptum de mau gosto e sensaboria. Quem tal
dissera? O túmulo do santo está elevado do altar numa espécie de mau trono. Subi acima da degradada e
profanada credência para o examinar de perto. É de pedra o jazigo; mas ultimamente vê-se que tinham
pintado a pedra; não tem lavor algum- E estava vazio, a loisa levantada e quebrada! ... Quem me roubou o
meu santo? Quem foi o anátema que se atreveu a tal sacrilégio? ...” (Idem, p.393).
61
“Mas em vão interrogo pedra a pedra, laje a laje: o eco morto da solidão responde tristemente às minhas
perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandono, e que se
apagaram todas as lembranças de outro estado (...) Pois também eu me quero partir, me quero ir embora.
Já me infada Santarém, já me cansam estas perpétuas ruínas, estes pardeiros intermináveis, o aspecto
desgracioso destes intulhos, a tristeza destas ruas desertas. Vou-me embora. E contudo San’ Francisco é
uma bela ruína, que merecia ser examinada devagar, com outra paciência que já não tenho. Se tudo me
impacienta aqui! Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora do soldado
quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a baioneta pelo verniz mais polido e mais
respeitado desses jazigos antiquíssimos; os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram
as lajes dos sepulcros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de séculos, cuidando ouvir a
trombeta final...” (Idem, p.403-404).

38
característico do saber arqueológico62, elabora uma espécie de epitáfio aos monumentos
fúnebres que carecem de um, como é o caso do túmulo da D. Maria da Assunção:
Naquele mesmo camarim junto à devota relíquia se conservaram, por
espaço de cinco ou seis anos, se bem me recordo do que o bom do
pároco nos contou, os restos mortais da senhora infanta D. Maria de
Assunção, que falecera em Santarém nos últimos meses da ocupação
daquela vila pelas forças realistas. O cadáver, mal imbalsemado e
com más drogas, foi metido num caixão de folha de Flandres. Em
pouco tempo a corrupção estragou e rompeu a folha, e uma infecção
terrível apestava a igreja. Sofreu-se isto anos, representou-se ao
governo por vezes, mas nenhuma solução se pôde obter. Até que afinal,
declarando o prior que, se não mandavam tomar conta daqueles tristes
restos da pobre princesa, ele se via obrigado a metê-los na terra, foi-lhe
respondido que fizesse como intendesse; e ele intendeu que os devia
sepultar no cruzeiro da igreja, como fez, do lado da epístola, isto é, à
direita. E aí jaz em sepultura rasa, sem mais distinção nem epitáfio,
a muito alta e poderosa princesa D. Maria, filha do muito alto e
poderoso príncipe D. João VI, rei de Portugal, imperador do Brasil,
e da conquista e navegação etc. Assim é o mundo, as suas grandezas
e as suas glórias! (GARRETT, 2010, p. 373-374. Grifos meus).

Ao descrever-nos o esquecimento de que foi vítima a princesa, o narrador faz-nos


lembrar dela – “D. Maria, filha do muito alto e poderoso príncipe D. João VI, rei de
Portugal, imperador do Brasil e a conquista e navegação etc” - de forma que, tal qual dito
por Mendes (1999, p.119), “embora um epitáfio pressuponha a inscrição num
monumento e a sua contiguidade com os restos mortais”, nesse e em outros casos, as
Viagens garrettianas substituem essa forma literária.
Nota-se que, tratada pelo narrador como “museu de antiguidades” e/ ou uma “galeria
de pinturas63”, Santarém, além de ser vítima do tempo é, sobretudo, desvalorizada pelas
autoridades portuguesas, responsáveis pelas “brutas degradações e mais brutas
reparações64” dos monumentos, os quais, ao invés da “expressão tangível da

62
“Uma questão crucial para caracterizar o saber do narrador é o estudo empírico dos monumentos. Vimos
atrás que os <<estudos arqueológicos>> são um momento empírico e de revisão da história. Nesta acepção,
os dados dos sentidos desempenham um papel crucial. Será pois consequente investigar que sentidos estão
prioritariamente envolvidos nos <<estudos arqueológicos>>. Embora em vários dos itens dos <<estudos
arqueológicos>> não possamos ler explicitamente quais são os órgãos dos sentidos envolvidos na relação
com os monumentos, as descrições supõem, em variados casos, o sentido da visão. (...) No item seis dos
<<estudos arqueológicos>>, o Real Convento de São Francisco de Santarém, o de Frei Dinis, a visão é
explicitamente predominante: <<solene vista>>, <<vejamos pelas baixas e aguçadas arcadas dos
claustro>> (cap. XLI, p.300). No item sete, pode ler-se: << Quero ir-me embora daqui! E como? sem ver o
túmulo de el-rei Fernando? Não pode ser, é verdade>> (cap.XLII, p.300). Ainda no mesmo item, num passo
crucial para a leitura dos <<estudos arqueológicos>>, é o tacto o sentido decisivo: << meti o meu braço por
essa abertura bárbara, e achei terra, pó, alguns ossos (...). Na passagem acima, do convento de São
Domingos, podemos ler um conflito entre o olfacto e a visão. Com efeito, é << um forte vapor metífico>>
da palha podre que não me permite ver- <<mal pudemos ver>>- convenientemente<< os túmulos dos
Docens e tantos outros interessantes monumentos>>.” (MENDES, 1999, p. 126-127).
63
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010, p.413.
64
Idem, p.320.

39
permanência65” da história, não indicam senão a ausência e/ou o apagamento do que
outrora existiu.
A decepção do protagonista ao deparar-se com a ausência de vestígios que legitimem
a história portuguesa é predominante na obra, porque atentando-se à identidade coletiva
da nação, que em sua opinião corre perigo, o narrador das Viagens, por mais crises que
tenha, identifica-se como pertencente ao povo iconoclasta que critica e às terras pouco
gloriosas pelas quais passa, demonstrando-nos que a ele, Santarém e, em uma relação
metonímica, Portugal, é um lugar potencialmente “identitário, relacional e histórico66”
que merece ser preservado, apesar da nação viver em dias prosaicos:
Eram mais de dez horas da manhã, quando saímos a começar a longa
via - sacra de relíquias, templos e monumentos, que são hoje toda
Santarém. A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente;
hoje é um livro que só recorda o que foi. Entre a história maravilhosa
do passado, que todas estas pedras memoram, e as profecias tremendas
do futuro, que parecem gravadas nelas em caracteres misteriosos, não
há mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse; tão pequeno,
tão mesquinho, tão insignificante, tão desproporcionado parece a
tudo isto! Da vontade de intoar com o poeta inspirado de Jerusalém:
‘Quomodo sedet sola civitas!’ Portugal é, foi sempre, uma nação de
milagre, de poesia. Desfizeram o prestígio; veremos como ele vive
em prosa. Morrer, não morre a terra, nem a família, nem as raças;
mas as nações deixam de existir. (GARRETT, 2010, p.333-334.
Grifos meus).

Dessa forma, apesar de não ter uma missão bem definida67 para viajar, tal qual os
expansionistas a tinham, o narrador parte “por e para saber68” acerca de tais “relíquias,
templos e monumentos” e, de forma nada despretensiosa, conta, segundo Amaro e
Brandão (2014), como todo viajante, com a provisão, os imprevistos e os improvisos. E
isto porque, respectivamente, o narrador sabe de onde parte, para onde vai e quais
monumentos, igrejas, quer visitar; ele se decepciona com o que vê - ou com o que não
consegue ver- durante a sua viagem; e ele consegue, ora com uma carona69, ora com o
reajuste de planos, seguir a viagem mesmo quando decepcionado:

65
AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus
editora, 2008, p.58.
66
Características que Augé (2008, p.52) atribui aos lugares que intitula “antropológicos”, os quais se opõem
aos chamados “não-lugares”, conceito que será melhor esclarecido na análise da obra Conhecimento do
inferno (1980).
67
“Antes o viajante era apresentado por uma missão que o levava adiante. Era o marinheiro, o mercador,
militante, médico, sábio, colonial, corresponsal, embaixador, emissário ou missionário. Estas profissões
conferiam e ainda conferem um caráter de funcionalismo e utilitarismo nas deambulações.” (AMARO;
BRANDÃO, 2014, p.50).
68
Idem, p. 58.
69
“Lutava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espírito - quando a Providência, que
nos maiores apertos e tentações não nos abandona nunca, me trouxe a generosa oferta de um amigo e

40
Inclinámos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar diante do
arrendado e elegante frontispício gótico da Graça. A ausência de não
sei que regedor, ou insignificante personagem de igual importância,
que tem as chaves da igreja e convento, nos fez perder toda a
esperança de visitar a sepultura de Pedr’ Álvares Cabral, que ali
jaz, assim como outras belas e interessantes antiguidades de não menor
preço. Fomos seguindo até a casa do barão d’A., outro ilegítimo, por
que não pertence aos barões assinalados.
Que, sem passar além da Taprobana
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram. (GARRETT, 2010, p.371-372.
Grifos meus).
Além de ilustrar os três aspectos aos quais se atêm qualquer viajante: provisão,
imprevisto e improviso, o narrador, no trecho citado, atravessado pelo dilema de reviver
o passado português, refere-se à primeira estrofe d’ Os Lusíadas (1572).70 Ao mencionar
abertamente a obra com a qual dialoga temática e textualmente de forma bastante
contundente, o protagonista demonstra que não só a terra e os monumentos sofreram com
os efeitos do tempo, como também os portugueses, que não são mais “barões
assinalados”, mas ilegítimos, pouco nobres como o presente da nação. Além disso, a
menção a’ Os Lusíadas (1572) faz-nos adentrar no próximo campo de reflexão que diz
respeito aos modelos literários dos quais o narrador dispõe e aos quais a situação dos
monumentos e dos lugares com os quais se depara na viagem, não corresponde.

2.1.2. Espaços literários versus espaços reais: viajante quixotesco em terras de


Sancho Pança
Tendo em vista que além de não narrar uma viagem além-mar como fizeram seus
predecessores, nem apresentar-se como uma espécie de Galaaz em busca do Graal71, mas
sim como um viajante que está sujeito aos caprichos de uma mulinha e que não quer senão
conhecer os lugares que supostamente serviram de cenário à história nacional, o narrador
garrettiano recorre à tradição literária portuguesa e ocidental, evidenciando o abismo
existente entre a representação literária da realidade e ela mesma.

companheiro do vapor, o Sr. L.S: era a sua invejada carroça, e nela me deu lugar até à Azambuja.”
(GARRETT, 2010, p. 103).
70
“As armas e os barões assinalados, / Que, da Ocidental praia Lusitana, /Por mares nunca de antes
navegados/ Passaram ainda além da Taprobana, / Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia
a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram.” (CAMÕES, 2010,
p. 9).
71
Referência à Demanda do Santo Graal, novela de origem britânica, que ganha uma versão portuguesa
no século XV.

41
Se as personagens cervantinas são evocadas desde o primeiro capítulo como
ilustração do que o autor/ narrador trata como os dois princípios que regem o mundo72,
não deixa de ser curioso o fato de que em uma viagem semelhante a empreendida por D.
Quixote, visto que ambos desbravam suas próprias terras de forma intercalada a novelas73,
a primeira parada do narrador garrettiano, tal qual a do cavaleiro andante seiscentista, seja
em uma estalagem. Sendo a estalagem um motivo literário fertilíssimo74, ambas as
personagens têm expectativas, fomentadas pelo que leram, que não são atendidas pela
realidade. Enquanto a personagem cervantina espera e acredita que a estalagem na qual
se abriga seja um castelo, as prostitutas com as quais se depara, donzelas, e o porqueiro
que assoprava um corno, um serviçal real, dentre outros disparates75, o narrador
garrettiano não consegue encontrar em seu referencial literário nenhuma descrição que dê
conta da grosseria e mediocridade da estalagem de Azambuja:
Vamos à descrição da estalagem. Não pode ser clássica: assoviam-me
todos esses rapazes de pêra, bigode e charuto, que fazem literatura
cava e funda desde a porta do Marrare até o café de Moscow ... Mas
aqui é que me parece uma incoerência inexplicável. A sociedade é

72
“Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha
da civilização, do intelecto - o que diríamos, para nos intenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele
que há dois princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta
vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstratas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem
personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote; - o materialismo,
que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara
todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho
Pança.” (GARRETT, 2010, p.100).
73
“E apontaríamos, ainda, outras <<afinidades>>. É que também no livro de Cervantes se narra uma
viagem, a de Dom Quixote e Sancho, pelos caminhos da Mancha, e por outros que são sempre da sua terra,
e não de espaços exóticos como eram os dos livros de cavalarias ou serão grande parte das viagens dos
românticos, sendo, também por isto, <<diferentes >> as de Garrett. E que é no decorrer dessa viagem que
ocorrem, ou se contam, ou se lêem, as <<novelas interpoladas>) (como nas Viagens); tal como no livro de
Garrett, também no de Cervantes as <<histórias>> interpoladas se vão entrecruzando com o relato da
viagem, e também ali, repetidamente, as personagens dessas histórias<<existem>>, aparecem no espaço da
viagem de Dom Quixote e Sancho, conversam com eles; também ali, Dom Quixote vai poder comprovar
que <<existem>> e entra em contacto com personagens cuja história já lhe tenha sido contada. Como nas
Viagens na minha terra.” (ABREU, 1994, pp.195-196).
74
Idem, p. 191.
75
“Estavam por acaso à porta duas mulheres moças, dessas a que chamam de frete, as quais seguiam para
Sevilha com uns arrieiros que acertaram aquela noite pernoitar na estalagem; e como a nosso aventureiro
tudo quanto pensava, via ou imaginava, parecia ser feito e passar-se segundo aquilo que lera, logo que viu
a estalagem a si mesmo a representou como sendo um castelo com suas quatro torres e coruchéus de luzente
prata, sem que lhe faltasse a ponte levadiça e o fosso fundo, com todos aqueles adereços mais com que
semelhantes castelos se pintam. Foi-se acercando da estalagem que lhe parecia um castelo, e a pouca
distância dela travou as rédeas a Rocinante, esperando que algum anão se pusesse entre as ameias a dar
sinal com alguma trombeta da chegada do cavaleiro ao castelo. Mas como viu que tardavam, e que
Rocinante dava mostras de ter pressa de chegar à cavalariça, chegou-se à porta da estalagem e viu as duas
distraídas moças que ali estavam, as quais lhe pareceram duas formosas donzelas ou duas graciosas damas
que diante da porta do castelo estivessem folgando. Nisto sucedeu por acaso que um porqueiro que andava
a recolher de uns restolhos uma manada de porcos (que, sem perdão, assim se chamam) soprou um corno,
a cujo sinal eles se recolhem, e no mesmo instante representou-se Dom Quixote o que desejava, que era um
anão dando sinal de sua chegada (...).” (CERVANTES, 2015, p.89).

42
materialista; e a literatura, que é a expressão da sociedade, é toda
excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista!
Sancho, rei de facto; Quixote, rei de direito! (...) Seja romântica -
Também não pode ser. Porque não? É pôr-lhe lá um Chourineur a
amolar um facão de palmo e meio para espatifar rês e homem,
quanto encontrar- uma Fleur-de-Marie para dizer e fazer pieguices
com uma roseirinha pequenininha, bonitinha, que morreu,
coitadinha!- e um príncipe alemão incoberto, forte no soco
britânico; imenso em libras esterlinas, profundo em gíria de cegos
e ladrões... e aí fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que
invejar à mais pintada e da moda neste século elegante, delicado,
verdadeiro, natural! É como eu devia fazer a descrição: bem o sei. Mas
há um impedimento fatal, invencível - igual ao daquela famosa salva
que se não deu ... é que nada disso lá havia. E eu não quero caluniar a
boa gente da Azambuja. (GARRETT, 2010, p. 119-111. Grifos meus).

No trecho citado, o autor/ narrador diz que a estalagem não pode ser clássica devido
ao estilo “europeizante” dos rapazes que lá estão e que não pode ser considerada
romântica por não ter em si nenhum atrativo e/ ou matéria que pudesse servir à inspiração
desse tipo de literatura, isto é, nem uma “Fleur de Marie”, nem um “príncipe alemão”,
nem “cegos”, nem “ladrões”. Dessa forma, desde o início da descrição da estalagem76,
notamos o quão pouco literária ela é, à medida que não se encaixa aos moldes que o
narrador tem em mente, algo que se confirma no final da apreciação que o viajante faz do
local:
Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu
chamei bruxa, porque enfim que havia eu de chamar à velha suja e
maltrapida que estava à porta daquela asquerosa casa? Havia lá esta
velha, com a sua moça mais moça, não menos nojenta de ver que
ela, e um velho meio paralítico, meio demente, que ali estava para um
canto com todo o jeito e traça de quem vem folgar agora na taberna,
porque já bebeu o que havia de beber nela. Matava-nos a sede: mas a
água ali é beber quartãs. O vinho era atroz. Limonada? Não há
limões nem açúcar. (...) Mas misturou-se tudo com a água das sezões,
bebemos, pusemo-nos em marcha, e até agora não nos fez mal, com ser
a mais abominável, antipática e suja beberagem que se pode imaginar.
(GARRETT, 2010, p.111-112. Grifos meus).

A velha, tratada pelo autor/ narrador como bruxa, sua filha nojenta, o velho demente
e bêbado, a água podre e suposta fonte de malária, bem como o vinho atroz, em nada se
assemelham ao luxo de Paris, capital literária por excelência e molde da maioria das

76
“(...) que estalagem deve ser esta, hoje no ano de 1843, às barbas de Victor Hugo, com o Doutor Fausto
a trotar na cabeça da gente, com os Mistérios de Paris nas mãos de todo o mundo?” (GARRETT, 2010,
p.108. Grifos meus).

43
produções portuguesas77, confirmando o argumento que o protagonista já nos expusera
outrora: a representação literária dos espaços não corresponde à sua realidade factual.
Ainda em Azambuja, o narrador vai ao encontro do famoso pinhal supostamente
plantado por D. Dinis e, mais uma vez, as suas expectativas literárias são frustradas:
Este é que é o pinhal da Azambuja?
Não pode ser.
Esta, aquela antiga selva, temida quási religiosamente como um bosque
druídico? E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar história de
Pedro de Malas-Artes que logo, em imaginação, lhe não pusesse a
cena aqui perto! ... Eu que esperava topar a cada passo com a cova
do capitão Roldão e da dama Leonarda! ... Oh! que ainda me faltava
perder mais esta ilusão... Por quantas maldições e infernos adornam
o estilo dum verdadeiro escritor romântico, digam-me, digam-me:
onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta
espessura? Por isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto? ... Eu
que trazia prontos e recortados para os colocar aqui todos os
amáveis salteadores de Schiller, e os elegantes facínoras do Auberge
des Adrets, eu hei-de perder os meus chefes- d’ obra! Que é perdê-
los isto – não ter onde os pôr! ... Sim, leitor benévolo, e por esta
ocasião vou te explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura.
Já me não me importa guardar segredo; depois desta desgraça não me
importa já nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que
te fazemos ler. Trata-se de um romance, de um drama – cuidas que
vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas,
os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta,
senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e
situações do vivo na natureza, colori-los das cores verdadeiras da
história ... isso é trabalho difícil, longo, delicado; exige um estudo, um
talento, e sobretudo um tato! ... Não, senhor: a coisa faz-se muito mais
facilmente. Eu lhe explico. (...) Ora bem; vai-se aos figurinos
franceses de Dumas, de Eugênio de Sue, de Vítor Hugo, e recorta a
gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma
folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul - como fazem as
raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks, forma com elas os
grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou
menos disparatados. (...) E aqui está como nós fazemos a nossa
literatura original. (GARRETT, 2010, p.119-120. Grifos meus).

O autor/ narrador, no trecho citado, descobre que o cenário que sempre deu às
histórias que ouvia, na verdade não existia. A referência a Pedro Malas-Artes, às
personagens de Roldão e Leonarda, bem como à obra de Schiller, a Dumas e Victor Hugo,
apenas confirmam a pouca originalidade dos autores portugueses, os quais o
autor/narrador critica por não fazerem o que ele se propôs a fazer, isto é, por não se
disporem a viajar para os lugares dos quais se apropriam literariamente a fim de desenhar,
de fato, “caracteres e situações do vivo na natureza, colori-los das cores verdadeiras da

77
COELHO, Jacinto do Prado. A originalidade da literatura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1992, p.34-35.

44
história...” (GARRETT, 2010, p.120), por mais decepcionante que o retrato seja. A ironia
de textualmente se incluir no grupo dos autores pouco talentosos que critica, bem como
de dizer que aquilo que vê o faz perder os “chefes de obra”, isto é, os grandes autores, à
medida que a paisagem da qual tem de tratar fica muito aquém das descritas por eles,
continua mais adiante:
O peior é que no meio destes campos onde Troia fora, no meio
destas areias onde se acoitavam dantes os pálidos medos do pinhal
da Azambuja, a minha querida e benfazeja traquitana abandonou-
me; fiquei como o bom Xavier de Maistre quando, a meia jornada de
seu quarto, lhe perdeu a cadeira o equilíbrio, e ele caiu – ou ia caindo,
já me não lembro bem- estatelado no chão. Ao chão estive eu para me
atirar, como criança amuada, quando vi voltar para a Azambuja o
nosso cómodo veículo, e diante de mim a infezada mulinha asneira
que - ai, triste! - tinha de ser o meu transporte dali até Santarém.
(GARRETT, 2010, p.123. Grifos meus).
No trecho destacado, o autor compara Azambuja a Tróia - cenário épico que se
assemelharia ao português medieval - destacando que o medo que o famoso pinhal deveria
despertar em seu peito português, não o invadiu, senão a revolta pelo fato de não poder
utilizar a carroça, da qual se servira até então, para finalizar o trajeto até Santarém, tendo
de seguir viagem em uma “mulinha asneira”. Nota-se que não só o espaço no qual o
protagonista está não corresponde aos ideais literários que ele nutre, como ele próprio
está longe de fazê-lo, visto que ao confessar-nos ter tido o instinto de se atirar
voluntariamente ao chão como criança amuada ao notar tal imprevisto78, não nos afigura
e nem deveria afigurar-se, heroico.
Se até então os trechos destacados nos permitem perceber Portugal, ou pelo menos o
trajeto a Santarém, como um território aquém das grandes representações literárias, o
autor/ narrador faz-nos reconciliar, temporariamente, com sua terra, ao descrever-nos a
Charneca de Cartaxo, que em sua beleza e riqueza natural, estaria além do que as palavras
de Teócrito, Virgílio, Gessner ou Rodrigo Lobo poderiam representar:
Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava; montámos a cavalo, e
cortámos por entre os viçosos pâmpanos que são a glória e a beleza do
Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado e tomado ânimo; breve, nos
achámos em plena charneca. Bela e vasta planície! Desafogada dos
raios do sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente!
(...) A doçura que mete n’alma a vista refrigerante de uma jovem
seara do Ribatejo nos primeiros dias de Abril, ondulando
lascivamente com a brisa temperada da primavera – a amenidade

78
Diferentemente de Xavier de Maistre, escritor francês que tem como obra mais conhecida o romance
Viagem ao redor do meu quarto (1792). Como dito pelo próprio autor/ narrador de Viagens, em
determinado momento da narração a personagem de Maistre perde o equilíbrio e cai da cadeira que lhe
serve de assento.

45
bucólica de um campo minhoto de milho, à hora da rega, por meados
de agosto, a ver-se-lhe pular os caules com a água que lhe anda por pé,
e à roda as cavalheiras classicamente desposadas com a vide coberta de
racimos pretos- são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa
e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores
versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner
ou de Rodrigues Lobo. (GARRETT, 2010, pp.143-144. Grifos meus).
Além de qualquer representação, tal qual a Charneca, estaria também a
personagem de São Frei Gil, o “Doutor Fausto” português, que só careceria, segundo o
autor/ narrador, de um Goethe que estivesse à altura de representá-lo79. Se em alguns
momentos da narrativa o protagonista promove uma espécie de reconciliação com
Portugal e com as suas personagens históricas, mais adiante notamos uma espécie de
tratado de paz com e até uma exaltação da literatura. Apesar de nem sempre os cenários
atuais corresponderem às narrativas de que deles se fizeram, o autor/narrador defende que
“a história lida ou contada nos próprios sítios em que se passou, tem outra graça e outra
força” (GARRETT, 2010, p.306), seja idealizando o fato de que leria Tito Lívio e Tácito
em Roma80, seja defendendo a literatura como uma espécie de memorial geográfico-
temporal que resiste à ditadura materialista:
Mas enfim cá não há doutros nem haverá tão cedo, graças ao muito que
agora, dizem, que se cuida dos interesses materiais do país: e portanto
tome o seu lugar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me a
Santarém, descanse e ponha-se-me a ler a crónica: verá se não é
outra coisa, verá se diante daquelas preciosas relíquias, ainda
mutiladas, deformadas como elas estão por tantos e sucessivos
bárbaros, estragadas enfim pelos peiores e mais vândalos de todos
os vândalos, as autoridades administrativas e municipais do feliz
sistema que nos rege, ainda assim mesmo não vê erguer-se diante
de seus olhos os homens, as cenas dos tempos que foram; se não
ouve falar as pedras, bradar as inscrições, levantar-se as estátuas
dos túmulos; e reviver-lhe a pintura toda, reverdecer-lhe toda a
poesia daquelas idades maravilhosas! Tenho-o experimentado muitas
vezes: é infalível. Nunca tinha intendido Shakespeare enquanto não o li
em Warwick ao pé do Avon, debaixo de um carvalho secular, à luz
daquele sol baço e branco do nublado céu d’Albion... (GARRETT,
2010, p.303. Grifos meus).

A literatura, no trecho citado, é tratada ela mesma como uma viagem capaz de
restituir às relíquias “mutiladas/ deformadas” pelas “autoridades administrativas”, “as

79
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010, p.391-
392.
80
“Se eu for algum dia a Roma, hei-de entrar na cidade eterna com o meu Tito Lívio e o meu Tácito nas
algibeiras do meu paletó de viagem. Ali, sentado naquelas ruínas imortais, sei que hei-de intender melhor
a sua história, que o texto dos grandes escritores se me há-de ilustrar com o monumentos d’arte que os
viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoráveis, o progresso e a decadência
daquela civilização pasmosa.” (Idem, p.301).

46
cenas dos tempos que foram”. Argumento este, reforçado pela experiência que o
autor/narrador supostamente tivera em Lisboa, a partir da leitura de um trecho da épica
camoniana:
Mas aqui têm o que me sucedeu o outro dia. Tinha estado às voltas com
o meu Bentham, que é um grande homem por fim de contas o tal quaker,
e são grandes livros os que ele escreveu: cansou-me a cabeça, peguei
no Camões e fui para a janela. As minhas janelas agora são as
primeiras janelas de Lisboa, dão em cheio por todo esse Tejo. Era
uma destas brilhantes manhãs d’Inverno, como as não há senão em
Lisboa. Abri Os lusíadas à ventura, deparei com o canto IV e pus-
me a ler aquelas belíssimas estâncias:
E já no porto na ínclita Ulissea...
Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as
artérias da fronte ... as letras fugiam-me do livro, levantei os olhos,
dei com eles na pobre nau Vasco da Gama que aí está em
monumento-caricatura da nossa glória naval ... E eu que não vi
nada disso, vi o Tejo, vi a bandeira portuguesa flutuando com a
brisa da manhã, a torre de Belém ao longe ... e sonhei, sonhei que
era português, que Portugal era outra vez Portugal. Tal força deu
o prestígio da cena às imagens que aqueles versos evocavam! Senão
quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam ... Era o ministro
da marinha que ia a bordo. Fechei o livro, acendi o meu charuto, e fui
tratar das minhas camélias. Andei três dias com ódio à letra redonda.
(GARRETT, 2010, p.305. Grifos meus).
De frente ao porto na “ínclita Ulisseia”, apesar do narrador atestar o embate entre
o presente e o passado portugueses, visto que nada tem diante de si além daquilo que
chama de “monumento caricatura”; as letras que o impulsionaram para fora do livro
permitiram que ele visse o Tejo sob outra perspectiva, a antiga, podendo sonhar assim
que “Portugal era outra vez Portugal”. A observação da realidade presente decepciona o
protagonista nas linhas seguintes - “Era o ministro da Marinha que ia a bordo. Fechei o
livro, acendi o meu charuto, e fui tratar das minhas camélias. Andei três dias com ódio à
letra redonda” (GARRETT, 2010, p.305), mas o potencial onírico que o autor/ narrador
atribui, nesse trecho, à literatura, é incontestável.
A literatura popular também é muito valorizada pelo autor do Romanceiro (1851)
e o narrador de Viagens evidencia tal fato ao nos expor a história de Santa Iria, padroeira
de Santarém, e ao mencionar a do Santo Milagre da cidade. Tais histórias reforçariam o
caráter divino e livresco que o autor/ narrador atribui à cidade pouco valorizada por seus
próprios filhos:
Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante e mais
poética parte das nossas crónicas está escrita. Rico de iluminuras, de
recortados, de florões, de imagens, de arabescos e arrendados
primorosos, o livro era o mais belo e o mais precioso de Portugal.
Incadernado em esmalte de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras,

47
fechado a broches de bronze por suas fortes muralhas góticas, o
magnífico livro devia durar sempre enquanto a mão do Criador se
não estendesse para apagar as memórias da criatura. Mas esta
Nínive não foi destruída; esta Pompeia não foi submergida por
nenhuma catástrofe grandiosa. O povo, de cuja história ela é o
livro, ainda existe; mas esse povo caiu em infância; deram-lhe o
livro para brincar; rasgou-o; mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha,
e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com elas. (GARRETT,
2010, p.319. Grifos meus).
O fato de a cidade que escolheu como destino ser concebida, pelo próprio
narrador, como um “livro de pedra”, talvez esclareça a razão pela qual obras e autores da
literatura portuguesa e ocidental sejam evocados à caracterização dos lugares pelos quais
ele passa. Seja para criticar a literatura mentirosa e que por isso não pode ser bela 81, seja
para reconhecer o poder que a leitura literária exerce no imaginário da nação, faz-se
impossível não notar que o viajante a que seguimos, apesar de situar-se num país onde
reina Sancho Pança, é Quixote. Quixote português que ao invés de fazer loucuras parece,
a todo momento, travar não só uma comparação entre as paisagens reais e as literárias,
como também entre as terras portuguesas e as europeias, fato sobre o qual nos atentaremos
no subcapítulo seguinte.
2.1.3.Terras portuguesas na balança da Europa

Autor de Portugal na balança da Europa, texto crítico publicado em 1830, Garrett,


por meio de seu narrador homônimo em Viagens, promove comparações, a partir das
paisagens pátrias com quais se depara, entre Portugal e as demais nações europeias.
Valendo-se do fato de ser um autor/ narrador viajado, o protagonista, ora exalta, de forma
nada ingênua, a riqueza nacional em detrimento à das terras vizinhas; ora critica a
mesquinhez portuguesa, assumindo a inferioridade cultural e tecnológica da nação em
relação ao demais países da Europa, sobretudo a França.
Temos como exemplo da exaltação da paisagem pátria pelo menos dois trechos da
obra. No primeiro, o autor/ narrador chega ao café do Cartaxo:
Voltar à meia-noite do Bois de Boulogne – o bosque por excelência-,
descer, entre as nuvens de poesia, o longo estádio dos Campos Elísios,
entrever, na rápida carreira, o obelisco de Lúxor, as árvores de
Tulherias, a coluna da praça de Vandoma, a magnificência heteróclita
da ‘Madalena’, e enfim sentir parar, de uma sofreada magistral, os dois
possantes ingleses que nos trouxeram quase de um fôlego até o
‘boulevard de Gand’; aí entreabrir molemente os olhos, levantando
meio corpo dos regalados coxins de seda, e dizer: -Ah! estamos em
Tortoni (...) Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa

81
“Já se diz há muito ano que honra e proveito não cabem num saco; eu digo que beleza e mentira também
lá não cabem: e é a mais portuguesa tradução que creio que se possa fazer daquele imortal e evangélico
hemistíquio de Boileau.” (GARRETT, 2010, p.111).

48
dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que
é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquele modo a
Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves
molas que fabricasse arte inglesa do puro aço de Suécia, não
alcança, não se compara ao prazer e consolação da alma e corpo
que eu senti ao apear-me da minha choiteira mula à porta do
grande café do Cartaxo. (GARRETT, 2010, p.133-134. Grifos meus).
No trecho em destaque, apesar do narrador não enaltecer a paisagem portuguesa
em detrimento das francesas que cita - Bois de Bolougne, Campos Elísios, o obelisco de
Lúxor, a praça de Vandoma, bulevar de Gand - ele se confessa muito mais satisfeito ao
ter chegado ao pé do café de Cartaxo do que no café de Tortoni outrora. Dizendo, mais
adiante, que o café é “Uma das feições mais características de uma terra82”, é interessante
que o autor/ narrador confesse ter sentido mais “prazer” e “consolação” na “alma” e
“corpo” ao chegar ao café nacional do que no de Paris. O narrador sente prazer ao estar
diante da possibilidade de “observar”, “examinar” e “estudar83” as características de sua
terra impressas no café de uma das cidades as quais visita. A simplicidade do lugar e, por
metonímia, da nação, não interferem na apreciação positiva do viajante e de seu
companheiro:
Nós entramos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo; e
nunca se incruzou turco em divã de seda do mais esplêndido harém
de Constantinopla com tanto gozo de alma e satisfação de corpo,
como nós nos sentámos nas duras e ásperas tábuas das esguias
banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico
estabelecimento bordalengo. Em poucas linhas se descreve a sua
simplicidade clássica: será um paralelogramo pouco maior que a
minha alcova; à esquerda, duas mesas de pinho, à direita o mostrador
invidraçado onde campeiam as garrafas obrigadas de licor de amêndoa,
de canela, de cravo. Pendem do tecto, laboriosamente arrendados por
não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso
a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admirável naquele
recinto. (GARRETT, 2010, p.135. Grifos meus).
Apesar das tábuas que servem de cadeiras ao narrador e seu acompanhante, serem
duras e ásperas, à medida que conservam o caráter do país - em contraponto às
extravagâncias a que foram submetidos os monumentos pelos processos de restauração -
tornam-se não grosseiras, mas um exemplo de “simplicidade clássica” ao protagonista. A
seda que evoca à caracterização de Constantinopla é substituída por algo que dá mais
prazer ao autor/narrador: uma “frescura admirável” que impera no café de Cartaxo e

82
“O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a
qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu
governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.” (GARRETT, 2010, p.135. Grifos meus).
83
Idem, p.135.

49
também, diga-se de passagem, no Vale de Santarém, sobre o qual o protagonista discorre
sem perder de vista as nações europeias, com as quais Portugal, inevitavelmente, se
compara no século XIX:

Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de


Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas
e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem
terra alguma do ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas,
tantas coisas que nos faltam. (GARRETT, 2010, p.155. Grifos meus).
A beleza do Vale de Santarém é singular, segundo o autor/narrador, isto é, não
pode ser encontrada fora de Portugal. Nesse trecho, contudo, a exaltação da paisagem que
tem diante de si surge junto a uma crítica à nação: a beleza do Vale compensaria tudo
aquilo que falta em Portugal e que sobra nas demais nações as quais não contariam com
tal beleza. Mais adiante, o narrador esclarece a razão pela qual o Vale é considerado tão
belo por ele. Razão muito semelhante a que encontramos na descrição do Café do
Cartaxo:
O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza,
sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está
numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada de grandioso
nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de
disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão a
paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver
ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os
pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem
senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro
homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu
coração. À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que
ali se corta quási a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço
e variedade. (...) Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre
um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga
mas não dilapidada –com certa conforto grosseiro, e carregada na
cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta.
(GARRETT, 2010, p.157-158. Grifos meus).

O Vale de Santarém é belo ao narrador porque, apesar de não ter nada de


“grandioso e sublime”, em sua simplicidade, é harmônico, simétrico como o próprio
Éden. O Éden ou o Jardim de Deus é evocado pelo narrador, à medida que representa, no
imaginário cristão, o espaço de naturalidade máxima da existência, esvaziado das
futilidades terrenas e “vilezas da vida” (pecados presentes, inferimos, nas grandes
metrópoles). Ainda no Vale, realçando a beleza do quadro paisagístico que tem diante de
si, o viajante contempla uma janela muito antiga, rústica, “carregada na cor pelo tempo”,
que tal qual o próprio Vale, torna-se bela em sua simplicidade, isto é, por não contar com
as reparações forçosas do presente as quais o narrador viajante critica com tanta avidez.

50
Em contrapartida, as críticas que o autor/ narrador faz a Portugal, a partir dos
lugares pelos quais passa em sua viagem, também se baseiam no conhecimento que o
viajante tem de outras terras e em sua naturalidade e/ou artificialidade, como notamos no
trecho em destaque:
Depois de muito procurar entre pardieiros e intulhos, achámo-la enfim
a igreja de Santa Maria d’Alcaçova. Achámos, não é exato: ao menos
eu, por mim, nunca a achava, nem queria acreditar que fosse ela quando
ma mostraram. A real colegiada de Afonso Henriques, a quási-catedral
da primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais
históricos templos de Portugal, isto? ... esse igrejório insignificante de
capuchos? Mesquinha e ridícula massa d’alvenaria, sem nenhuma
arquitectura, sem nenhum gosto! risco, execução e trabalho de um
mestre pedreiro d’aldeia e do seu aprendiz! É impossível. Mas era, era
essa. A antiga capela-real, a veneranda igreja da Alcaçova foi
passando por sucessivos reparos e transformações, até que chegou
a esta miséria. Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós, desde o meio
do século passado especialmente, os estragos do terremoto grande
quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da arquitectura
nacional, que na Europa, no mundo todo, talvez se não ache um país
onde, a par de tão belos monumentos antigos como os nossos, se
incontrem tão vilãs, tão ridículas e absurdas construções públicas a
particulares como essas quási todas que há um século se fazem em
Portugal. (GARRETT, 2010, p.311-312. Grifos meus).
A Igreja de Santa Maria de Alcaçova, “quase catedral da primeira vila do reino”,
bem como sua capela, decepcionam o autor/ narrador que espera encontrar vestígios da
história grandiosa de Portugal e que não se depara senão com reparações grotescas,
promovidas pelas autoridades pós-terremoto de 1755, que em nada se assemelham à
arquitetura original das construções. As reparações que tornam “ridícula” e “mesquinha”
a igreja, e miserável a capela, fazem com que o narrador evoque a Europa para, dessa vez,
destacar a singular mediocridade das “construções públicas” portuguesas que caracteriza
como “vilãs”, “ridículas” e “absurdas”.
Mais adiante, quase no fim de sua viagem, o autor/ narrador, ao relatar o encontro
com a Baronesa de Almerim (B. de. A), em Marvila, expõe-nos a crítica mais severa de
todas, a que faz, junto aos amigos, a Lisboa:
Em tão agradável e jovem companhia, todas as ideas arqueológicas se
desvaneceram, apesar de dous ou três fósseis que ali apareciam para se
não perder de todo a cor local talvez. Largamente se conversou, de
Lisboa principalmente, nos nossos mútuos amigos, das festas do
último Inverno, das probabilidades que se deviam esperar do
futuro. Ralhámos muito da sociedade portuguesa; exaltámos Paris
e Londres e não sei de Pequim e Nanquim também, e concluímos
que antes Tumbuctu do que a secante capital do nosso pobre reino.
E contudo estávamos com saudades dela; e concessão daqui,
concessão dali, viemos a que não era tão má terra como isso.
Admirável condição natureza humana, que tudo nos parece melhor

51
e menos feio quando visto de longe! O baile público mais sensabor,
detestável de barulho e confusão em que, para repousar os olhos num
rosto conhecido e agradável, foi preciso furar por entre centenas de
cotovelos bárbaros que se não sabe donde vieram, levar desalmadas
pisadelas do dançante noviço, do deputado recém-chegado, e das botas
novas do novo director da Galocha e- mais horrível que tudo!- ver as
absurdas toiletes, os penteados fabulosos, as caras incríveis e as
antediluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada (...) A soirée
mais maçante, de piano obrigado, com dueto das manas, polca das
primas e cassino das tias velhas, recordada em iguais
circunstâncias, também já não acode à memória senão como uma
reunião escolhida e íntima, de fácil e doce trato... oh! o verdadeiro
prazer da sociedade. (...) A enjoativa tradução de uma comédia da
rua dos Condes, roída de incurável sífilis, figura-se aveludada de todas
as graças do estilo de Scribe. E o destempero original de um drama
plusquam romântico, laureado das imarcessíveis palmas do
Conservatório, para eterno abrimento das nossas bocas! (GARRETT,
2010, p.381-382.Grifos meus)
Tendo, temporariamente, suspendido o interesse pelos monumentos históricos de
Santarém, a conversa que o autor/ narrador mantém com a baronesa e mais alguns amigos,
diz respeito à capital portuguesa. Nota-se que a crítica não se dirige tanto aos espaços
geográficos de Lisboa, mas à burguesia, à “sociedade portuguesa”, que frequenta os bailes
públicos e os teatros. No trecho em destaque, Paris, Londres e, ironicamente, Pequim
(Ásia), Nanquim (Ásia) e Timbuctu (África)84, são exaltados em detrimento da capital
lusitana. Apesar de supostamente redimida em uma das linhas - “viemos a que não era
tão má terra como isso”- , Lisboa continua sendo alvo de críticas do narrador, o qual
declara, logo em seguida “Admirável condição da natureza humana, que tudo nos parece
melhor e menos feio quando visto de longe!” (GARRETT, 2010, p.381), admitindo que
ele e os amigos concordaram que a capital portuguesa não era tão má, porque estavam
com saudades dela, longe de toda a lista de coisas repugnantes, características da capital,
a qual ele elabora em seguida.
Vale destacar que todos os pontos sobre os quais o autor/ narrador detêm-se na
elaboração da crítica a Lisboa, poderiam ser resumidos em uma única palavra:
artificialidade. Isto porque, segundo o narrador, na capital, as mulheres ficam feias em
seus penteados fabulosos; as reuniões maçantes nas quais tocam piano primas e tias velhas
são tratadas como o “verdadeiro prazer da sociedade”; as peças são versões mal traduzidas
do francês; e os dramas representados, em seus exageros ultrarromânticos, não produzem

84
Países, por muitas vezes, representados como exóticos, a partir dos reducionismos recorrentes de uma
perspectiva eurocêntrica de mundo, que guiou a maioria dos diários de viagem até então e da qual, como
homem de seu tempo, parte o narrador.

52
senão o “abrimento das bocas” de seus expectadores, os quais aplaudem a peça mesmo
sem tê-la apreciado.
A artificialidade requintada de Lisboa opõe-se à simplicidade natural de Santarém,
fazendo-nos notar que o presente e o passado nacionais são representados respectiva e
alegoricamente por essas cidades portuguesas, as quais ganham, na novela da “Menina
dos Rouxinóis”, dimensão especial à compreensão de seu desfecho disfórico, fato sobre
o qual discorreremos a seguir.
2.1.4. A natureza e a sociedade: uma viagem do jardim de Deus ao inferno dos homens
Tendo refletido sobre as temporalidades evocadas na viagem geográfica que o
narrador empreende, isto é, no embate entre o presente ( Lisboa) e o passado (Santarém)
nacionais, bem como acerca da não-correspondência entre a representação literária de
certos lugares e a sua realidade factual e sobre a comparação que o narrador estabelece
entre Portugal e as demais nações europeias durante o seu itinerário, convém-nos analisar
a significação que a viagem, enquanto temática, assume na novela da Menina dos
Rouxinóis e a relação que ela estabelece com a obra como um todo.
Ora, Carlos, personagem central da novela entendida como “narrativa de tese” do
romance85, também é uma personagem viajante. Tendo nascido em Santarém, tal qual sua
prima, que em sua simplicidade e harmonia pode ser concebida como um símbolo do
Vale86, o protagonista parte de sua cidade natal a Coimbra e a Lisboa, para estudar Direito
e formar-se enquanto cidadão português. Contudo, a viagem e estadia em tais lugares
modifica a tal ponto o seu ser que ele decide emigrar, definitivamente, de sua terra,
primeiro a Lisboa, depois para Inglaterra e, por fim, à Ilha Terceira:
Passara porém do seu meio o memorável ano de 1830, e Carlos, que se
formara no princípio daquele verão, tinha ficado por Coimbra e por
Lisboa, e só por fins d’ Agosto voltara para a sua família. E veio
triste, melancólico, pensativo, inteiramente outro do que sempre
fora, porque era do génio alegre e naturalmente amigo de folgar, o
mancebo. O dia em que ele chegou era uma sexta-feira, dia de Frei
Dinis vir ao vale. Passaram as primeiras saudações e abraços, ficaram
só os dous, e: - ‘Não gosto de te ver’:disse o frade.
- ‘Pois quê? que tenho eu?’
- ‘Tens que vem outro do que foste, Carlos.’
- ‘Outro venho, é verdade; mas não se enfadem de me ver, que o enfado
há de durar pouco.’
- ‘Que queres tu dizer?’
- ‘Que estou resolvido a emigrar. ‘
- ‘A emigrar, tu! ... Por quê? Para quê? Que loucura é essa? ‘

85
REIS, Carlos. Introdução à leitura das Viagens na minha terra. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p.43.
86
Idem, p. 74.

53
- ‘Nunca estive tanto em meu juízo.’ (GARRETT, 2010, p.208-209.
Grifos meus)
A itinerância do protagonista é muito significativa se considerarmos, primeiramente,
as críticas que o narrador/ autor faz a Lisboa. O artificialismo da capital portuguesa
afrancesada, já discutido no subcapítulo anterior, junta-se a outra crítica exposta pelo
narrador logo no início do romance: Lisboa é uma cidade fechada em si mesma que não
colabora ao processo de reinvenção de Portugal que o romance sugere:
Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova,
ide, que não prestais para nada, meus queridos Lisboetas; ou discuti os
deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assoviado da
‘Porte Saint-Martin’ e veio esconder-se na Rua dos Condes. Também
podeis ir aos Toiros- estão imbolados, não há perigo... Viajar? ... qual
Viajar! até à Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja
cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que
todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas
as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare. Pois
não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum. (GARRETT, 2010,
p.134. Grifos meus).

A capital, longe de estudar-se a si mesma e assumir sua portugalidade, estaria


presa entre algumas ruas e “dramas velhos”, contentando-se com sua mesquinhez e
artificialidade. Além disso, o fato de ser capital e centralizar, por exemplo, o ensino em
si mesma, soa injusto ao narrador que parece exaltar o valor das províncias,
principalmente de Santarém, em relação a Lisboa:
Santarém é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para
um grande estabelecimento de instrução e de educação pública. Por que
não há de estar aqui o Colégio-Militar ou a Casa-pia, ou outra grande
escola, seja qual for? Por que há-de ser esta centralização d’insino em
Lisboa? Em que se funda um privilégio dado à capital em prejuízo e à
custa das províncias? (GARRETT, 2010, p.390).

Lisboa, como já visto, representa não só o presente medíocre da nação portuguesa


diante de seu passado glorioso pouco preservado (Santarém), mas também a
“constelação87” humana dos barões, dos ditadores do materialismo, os quais o narrador
incansavelmente critica, inclusive por meio da novela que nos conta. E isto porque,
Coimbra, capital do saber, e Lisboa, capital do país (cidade mais afetada pelo regime da
matéria a que está submetida a nação), são a causa da perdição de Carlos, Adão decaído

87
Termo usado pelo autor/ narrador para descrever o pesadelo que teve depois de saber o fim de Carlos:
“Mas eu sonhei com o frade, com a velha - e com uma enorme constelação de barões que luzia num céu
de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas,
de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões de milhões... Nunca vi tanto milhão, nem
ouvi falar de tanta riqueza, senão nas Mil e uma noites. Acordei no outro dia e não vi nada...só uns pobres
que pediam esmola à porta.” (GARRETT, 2010, p.460. Grifos meus).

54
que apesar de guardar reminiscências do paraíso, da Portugalidade in natura, corrompeu-
se gradativamente ao trocar a Natureza poética pela Sociedade prosaica, a grande vilã da
narrativa garrettiana:
Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra
pátria mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo
tipo que saíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de
si o pesado aperto das contrições sociais e regenerar-se na santa
liberdade da natureza, como era o nosso Carlos. Demais, cada
tentativa nobre, cada aspiração elevada de sua alma lhe tinha custado
duros castigos, severas e injustas condenações desse grande juiz
hipócrita, mentiroso e venal- o mundo. Carlos estava quási como os
mais homens... ainda era bom e verdadeiro no primeiro impulso de
sua natureza excepcional; mas a reflexão descia-o à vulgaridade da
fraqueza, da hipocrisia, da mentira comum. Dos melhores era, mas
era homem. Os seus pensamentos, as suas considerações em toda
aquela noite, em todo o dia que a seguira, na hora mesma em que ia
encontrar-se com o objecto que mais lhe prendia agora o espírito, senão
é que também o coração, todas participavam daquela flutuação inquieta
e doentia de seu ser d’homem social, em quem o tíbio reflexo do homem
natural apenas relampejava por acaso. Dúvida, incerteza, vaidade,
mentira, deslocavam a anulavam a bela organização daquela alma.
(GARRETT, 2010, p.281-282. Grifos meus).

A corrupção do protagonista é tão profunda que mesmo tendo a oportunidade de


permanecer em Santarém, enxergando-a, sobretudo, a partir dos olhos de Joaninha88, ele
abre mão do paraíso, para viver o “indiferentismo absoluto89” dos barões da capital. O
dilema central da novela revela, portanto, a outra face do conflito entre o Materialismo e
Espiritualismo - ilustrado pelo narrador ao referir-se às personagens de Dom Quixote e
Sancho Pança - revela a crise entre a Natureza divina e harmônica, representada por
Joaninha, e a Sociedade fragmentada pelo pecado, representada por Carlos, que ao comer
do fruto proibido (conhecimento), não pode mais viver no Éden:
Uma crise devida fundamentalmente à diferença entre dois percursos
de vida: o de Joaninha, marcado pela estabilidade que é a fidelidade
imutável ao Vale de Santarém e aos valores que ele evoca (pureza
original, bondade natural, harmonia, etc); o de Carlos,
caracterizado pela mudança, ocorrida desde a sua partida do Vale
de Santarém, partida que corresponde à perda da pureza original
e ao envolvimento na vida social ( quer dizer: nas lutas políticas, no
trajecto do exílio, etc.), fator de divisão do sujeito e de frustração
existencial. (REIS, 1998, p.82. Grifos meus.)

A “frustração existencial” de Carlos passa por pelo menos três fases, fases estas
relacionadas aos lugares aos quais viaja: Lisboa, Inglaterra e Ilha Terceira (Açores).

88
REIS, Carlos. Introdução à leitura das Viagens na minha terra. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p.84.
89
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010. p. 364.

55
Lisboa, capital portuguesa, como já visto, teria sido a responsável pelo início do processo
de degeneração da personagem, degeneração esta que, no exílio do protagonista em
Inglaterra, o país das “conveniências90”, tem como principal fruto a mentira:
Eu vivi poucos meses em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso
dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino- a minha estrela, porque eu
ainda creio nas estrelas, e em pouco mais deste mundo creio já - levou-
me ao interior de uma família elegante, rica de tudo o que pode dar
distinção neste mundo. Estranhei aqueles hábitos de alta civilização,
que me agradavam contudo; moldei-me facilmente por eles, afiz-
me a vegetar docemente na branda atmosfera artificial daquela
estufa sem perder a minha natureza de planta estrangeira.
Agradei: e não o merecia. No fundo d’ alma e de carácter eu não
era aquilo porque me tomavam. Menti: o homem não faz outra
coisa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e todavia
tenho levado a vida a mentir. (GARRETT, 2010, p. 424. Grifos
meus).

Vegetando “docemente” numa “atmosfera artificial”, muito diferente da natural,


característica de Santarém, o protagonista, que mais adiante diz ter sempre amado
Joaninha91, declara amar pelo menos duas das três filhas da família elegante que o acolheu
em terras britânicas e, portanto, mente, não por querer ludibriar as moças, mas por não
ter controle sobre o que sente - “Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e
todavia tenho levado a vida a mentir” (GARRETT, 2010, p.424) - sendo condenado a
fazer o que não quer, tal qual dito por apóstolo Paulo acerca de si e de todos os homens
vendidos ao pecado.
Por fim, na Ilha Terceira, Açores, lugar de identidade conflituosa, à medida que
pertencente e ao mesmo tempo distante dos demais territórios portugueses - “escolho no
meio do mar” - Carlos constata a sua fragmentariedade interior: não pode estar no lugar
em que se encontra porque está em todos aqueles em que estão as suas amadas: Georgina,
Laura e Joaninha. Contudo, adapta-se a este estado de cisão interior - “A que se não afaz
o homem?” - como todo homem fadado a viver em “mundo abandonado por deus92”, sem
sentido:

90
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010, p.443.
91
“Cheguei por fim ao nosso vale; todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não, não é
verdade assim. Conheci, mal que te vi entre aquelas árvores, à luz das estrelas, conheci que era a ti só que
eu tinha amado sempre, que para ti nascera, que teu só devia ser, se eu ainda tivera coração para te dar, se
a minha alma fosse capaz, fosse digna de juntar-se com essa alma d’ anjo que em ti habita.” (Idem, p.455).
92
Segundo Lukács (2000, p.89), “o romance é a epopeia de um mundo abandonado por Deus”, à medida
que os protagonistas romanescos não dispõem de um sentido sólido e unívoco que motive as suas ações, tal
qual os heróis clássicos, antes convivem com a inessencialidade, isto é, com conflitos não só externos, mas
internos, identitários. Carlos é um exemplo disso, segundo Santos (2003, p.98): “Garrett, é indispensável
sublinhá-lo, é por natureza um escritor experimental, alguém em quem a busca da forma literária se
processou em grande parte à margem dos modelos literários já consagrados (e por consequência sempre e

56
Ainda não sei como parti, como cheguei, como vivi os primeiros tempos
da minha estada naquele escolho no meio do mar, chamado a Ilha
Terceira, onde se tinham refugiado as pobres relíquias do partido
constitucional. Habituei-me por fim. A que se não afaz o homem?
Levaram-me uma tarde à grade de um convento de freiras que aí havia.
O meu ar triste, distraído, indiferente, excitou a piedade das boas
monjas. Uma delas, jovem, ardente, apaixonada, quis tomar a empresa
de me consolar. Não o conseguiu, coitada! O meu coração estava em
Shire em Inglaterra, estava na Índia, estava no Vale de Santarém.
(GARRETT, 2010, p. 453-454. Grifos meus).
Nota-se que o narrador, ao expor-nos a história de Carlos e o itinerário que o
protagonista percorreu para tornar-se, ética e psicologicamente, um dos barões tão
satirizados na obra93, não só ilustra a trajetória de um homem que, tendo saído da
Natureza, provou os males da Sociedade à guisa rousseauniana94, mas também propõe
um caminho alternativo ao trilhado pelo protagonista: o de peregrinar em sua própria
terra. O narrador conta-nos a história de um viajante que saiu de sua província para a
capital (Lisboa) e Europa, enquanto ele, em contrapartida, viajante e português, faz o
trajeto oposto. Morando na capital e tendo conhecido diversos países da Europa, o autor/
narrador empreende não uma viagem de negação identitária como a realizada por Carlos
que, no final da novela, recusa-se a conviver com seu pai, mas de busca pela pátria95.
Busca que, se não de todo bem sucedida, assume a dimensão religiosa (religare) de uma
peregrinação por tentar promover, por mais dificultoso que seja, a ligação entre o presente
profano e o passado divino, a literatura e a vida, Portugal e os demais países da Europa,
a Natureza e a Sociedade:
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços e de tristes
pressentimentos. O vapor vinha quási vazio, mas nem por isso andou
mais depressa. Eram boas cinco da tarde quando desimbarcámos no
Terreiro do Paço. Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim
termina este livro. Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado
alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que
mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra. Se
assim pensares, leitor benévolo- quem sabe? pode ser que eu tome

algum modo em oposição a eles). Do mesmo modo, algumas das suas personagens, e o Carlos das Viagens
em particular, são também heróis à procura de si mesmos e de entenderem a ordem e sentido que devem
reger a existência.”
93
REIS, Carlos. Introdução à leitura das Viagens na minha terra. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p.72.
94
Sobre a influência que a filosofia rousseauniana teria exercido sobre Garrett, diz Reis (1998, p.97): “Os
fundamentos filosóficos deste conflito dialéctico vêm, obviamente, de Jean-Jacques Rousseau. Nele e em
especial no Discours sur l’origine de l’’inegalité (1755), já aqui citado, encontra-se aquela que foi uma das
mais divulgadas teorias filosóficas do Pré-Romantismo e do Romantismo: a teoria que afirmava que o
Homem, vivendo solitário e em estado primitivo e natural, era bom e feliz; depois, quando a organização
social começou a insinuar-se, instituiu-se a propriedade como fator de desigualdade entre os homens,
origem de divisão e opressão. E o homem, de bom selvagem que era, fez-se ser social, perverso e
defeituoso.”
95
Etimologicamente ligada à palavra latina “Pater”, pai.

57
outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal
fora, em busca de histórias para te contar. Nos caminhos-de-ferro
dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as
estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de
metal! Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode,
e viajaremos, com muito prazer e com muita utilidade e proveito,
na nossa boa terra. (GARRETT, 2010, p.460-461. Grifos meus)

O narrador que nos indica a possibilidade de outra vez pegar o “bordão de


romeiro” e peregrinar por Portugal para religar tudo que, como Carlos, encontra-se
cindido na nação lusíada, não o faz de forma acrítica. Usando de ironia, ele menciona que
jamais percorrerá tal caminho nas estradas de ferro dos barões, isto é, nas ferrovias que
foram construídas em Portugal com ajuda britânica; diz que, no papel, pela escrita, pode
ser que o faça96, mas que caberia ao governo construir as estradas nacionais de pedra.
Material que honraria, em sua naturalidade, a cidade descrita pelo nosso viajante como
um livro de pedra e exemplo de harmonia.
2.2. As paisagens infernais do Dante antuniano

Como já mencionado, Conhecimento do inferno (1980) integra a primeira trilogia de


obras de António Lobo Antunes. Tendo tematizado os efeitos de um divórcio em
Memória de elefante (1979) e as lembranças das guerras coloniais em Os cus de Judas
(1979), Conhecimento do inferno (1980) encerra a trilogia somando a solidão oriunda do
divórcio do protagonista, os traumas adquiridos na guerra e a realidade dessubjetivadora
do hospital psiquiátrico a uma viagem de retorno das férias do narrador do Algarve à
Lisboa. Viagem que ganha dimensão especial na narrativa, à medida que, durando cerca
de um dia, torna-se iminentemente subjetiva ao promover, pelas paisagens que permite
ao narrador observar de seu carro, o entrelaçamento de diferentes lugares e afetos ligados
às experiências do protagonista.
Diferentemente do romance garrettiano, Conhecimento do inferno (1980) tem como
ponto de partida uma epígrafe que além de denunciar sua ficcionalidade e suposta
inutilidade, não esclarece, nem mesmo indica aos leitores, que a narrativa que lhes será
apresentada detém-se sobre uma viagem geográfica:
We do not believe any good end is to be effected by fictions which fill
the mind with details of imaginary vice and distress and crime, or which
teach it...instead of endeavoring after the fulfillment of simple and
ordinary duty... to aim at the assurance of superiority by creating for
itself fanciful and incomprehensible perplexities. Rather we belive that
the effect of such fictions tends to render those who fall under their

96
Vale a pena ressaltar que, depois de Viagens, Almeida Garrett realmente continua viajando, via escrita,
pelas tradições pátrias, sendo um exemplo frutuoso dessas viagens Cancioneiro geral (1851).

58
influence unfit for practical exertion... by intruding on minds which
ought to be guarded from impurity the unnecessary knowledge of hell.
(ELIOT apud ANTUNES, 2004, p.11).

O romance que se apresenta como ficção capaz de ocupar a “mente com vícios,
aflições e crimes imaginários” não é previamente descrito como de viagem porque, tal
qual indicado em seu título, detêm-se, sobretudo, no conhecimento, (“desnecessário”,
segundo a epígrafe), do inferno subjetivo do narrador. Conhecimento, contudo, que
descobrimos, durante a leitura, derivar-se da viagem geográfica que o narrador
empreende do Algarve à Praia das Maçãs. Viagem que, tal qual a garrettiana, também
apresenta caráter temporal97, mas que diferentemente dessa, ultrapassa não só a fronteira
entre o passado e o presente do protagonista e da nação, mas também, de forma magistral,
os limites que separariam, segundo a tradição, a poesia da prosa.
Assim como o narrador oitocentista, aquele que se apresenta como sendo António
Lobo Antunes, conta com a provisão, os imprevistos e os improvisos, característicos de
todos os viajantes98. Contudo, longe de realizar uma viagem ordinária, o narrador que sai
de Albufeira, passa por Messines, por Aljustrel, por Grândola, por Alcácer, por Setúbal,
Montijo, Sintra, dentre outros lugares, interage/ mistura-se, sinestésica e subjetivamente,
com as paisagens que observa do automóvel, fato que nos permite entender a razão pela
qual Márcio Scheel99, valendo-se da obra de Freedman, considera Conhecimento do
inferno enquanto um romance lírico. O lirismo da obra em questão, intrinsecamente
ligado à percepção subjetivante que o narrador tem da paisagem, é demonstrado, dentre
outras coisas, pelo apelo imagético do romance, que, já em seu título, nos permite evocar
diferentes elementos para sua significação. O inferno, temática muito cara aos literatos100
desde Virgílio e Dante, é atualizado na obra antuniana, que apesar de negar a

97
“(...) Conhecimento do inferno , organizado como uma narrativa de viagens, e por isso centrado num
percurso que é simultaneamente espacial e temporal, confronta a personagem com o mundo de relação
ambiente, em que ganha especial emergência o ambiente profissional e, radicando a personagem numa
posição distanciada e solitária (conduzindo sozinho o seu automóvel pelo sul do país)vai afinal dar conta
da dificuldade de aproximação e de solidariedade, isto é, de uma problemática relação efectiva e empenhada
com os outros.” (SEIXO, 2002, p.68. Grifos meus).
98
AMARO, Fernanda Ribeiro; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Os verbos e nomes do viajar: por uma
geografia do deslocamento”. In: Geograficidade. Rio de Janeiro: UFF, 2014, v.4, n.2, p. 51.
99
SCHEEL, Márcio. “Memória, viagem e angústia em ‘Conhecimento do inferno’ de António Lobo
Antunes”. In: Letras, Santa Maria, v.19, n.1, jan/jun,2009, p.169-193.
100
Sobre a tradição de representação do inferno, diz Minois (1998, p.12): “Ao longo dos séculos, inúmeros
visitantes – deuses, heróis, personagens lendárias ou simples seres humanos ávidos de conhecer a sorte
reservada aos maus: Gilgamesh, Ulisses, Virgílio, Dante e tantos outros – revelarão o conteúdo dos seus
sonhos infernais, povoando a imaginação humana com cena muitas vezes atrozes, mas mesmo assim
preferíveis à insustentável certeza.”

59
transcendentalidade do reino de Lúcifer101, reivindicando-o à descrição do cotidiano de
um homem cindido e à viagem que realiza pelo interior de seu país, dialoga fortemente
com a tradição católico- dantesca.
De acordo com a tradição cristã, o inferno é destinado a pessoas culpadas,
marcadas pelo pecado102, verdade da qual se apropria Dante e também o narrador
antuniano, que enfrenta o inferno existencial por ser culpado, ora pelas cenas pouco
nobres que protagonizou na guerra de Angola103, ora pela degeneração humana que os
seus pacientes experimentam no Hospital Miguel Bombarda. O calor e o frio intensos
fazem-se presentes na descrição dos diferentes círculos infernais pelos quais Dante
atravessa104, não sendo diferente em Conhecimento do inferno, visto que o verão do
Algarve105, o sol forte e o calor notados na viagem, opõem-se à frieza dos que patrocinam
a guerra e à postura dos psiquiatras do Hospital106. A mutilação de órgãos107, a presença

101
Tal qual dito por Minois (1988), no século XX, o inferno laicizou-se, não deixando, por isso, de estar
presente no imaginário do homem moderno: “O recuo do inferno cristão tradicional não é mais do que uma
dissimulação. Depois de ter julgado que o aniquilou, o homem apressa-se em criar e descobrir os seus
próprios infernos. Trata-se de infernos sem Deus e sem Diabo (...).” (MINOIS, 1988, p.403).
102
“Na sua acepção mais geral, o inferno é uma situação de sofrimento vivida por um ser como
consequência de um mal moral de que se tornou culpado.” (Idem, p.11).
103
Como a da tortura dos soldados na Baixa do Cassanje, descrita no capítulo oito.
104
No canto VI, encontramos: “Saraiva grossa, neve, água desciam/ Desse ar pelas alturas tenebrosas:/
No chão caindo infeto odor faziam.” (DANTE, 2017, p. 41. Grifos meus). No VII, em contrapartida: “Os
nossos passos através seguiram/ Do círculo até fonte, que, fervendo,/ As águas brota que torrente abriram,/
A cor mais negra do que persa tendo./ Ao longo do seu curso nós baixamos,/Por caminho diverso nos
movendo.” (DANTE, 2017, p.48. Grifos meus).
105
“Messines surgiu à sua frente, numa curva, desfocado pelo nevoeiro do celofane do calor, e ele
recordou-se da primeira vez que chegara ao Algarve no dia seguinte ao casamento, e da flor de sangue no
lençol do hotel (...)” (ANTUNES, 2004, p.56. Grifos meus).
106
“(...) e agora os meus doentes voavam no pátio contra os vidros, voavam agitando as asas e cotão como
rodas trôpegas contra os vidros, aproximavam-se voando de mim à espera talvez de uma palavra, de um
gesto, de um simples, barato, fácil aceno de simpatia cúmplice, e eu sentia o remorso da minha
indiferença pesar-me na barriga como uma espécie de dor, um pânico de estranhas, um incómodo de
intestinos que se torcem no ventre como lesmas, aproximavam-se a voar de mim e eu escutava o ruído baço
das suas testas nos caixilhos (...)” ( Idem, p.99. Grifos meus).
Sobre a representação do fogo e do frio, Minois (1998, p.182) discorre de uma forma que podemos
compreender melhor a ligação entre o inferno de Dante e o do narrador antuniano “O fogo apenas aparece
no inferno inferior, como elemento de punição dos pecadores por malícia e dos maus em excesso, repartidos
nos quatro últimos círculos. Quanto ao frio, é reservado ao último círculo, no Cocito gelado, como se no
próprio coração do pecado e do mal, o egoísmo frio e cruel paralisasse mesmo as paixões desencadeadas
nos patamares superiores. É esse um mundo silencioso, rígido, imóvel, estádio final do pecado. O horror
alcança o seu cúmulo quando se descobrem esses milhares de cabeças mergulhadas no gelo, congeladas,
violáceas, ainda vivas, mas imóveis num eterno silêncio de morte (...).” A partir dessa perspectiva alegórica,
podemos dizer que o inferno vivido pelo narrador que seguimos é o pior dos possíveis.
107
No canto XXVIII, diz o poeta: “Eu via, e cuido ver na mesma sorte/ Apropinquar-se um corpo sem
cabeça, / Por entre os outros da infeliz coorte, / Caminha, alçando-a pela coma espessa, / De mão pendente
a modo de lanterna:/ Gemendo, os olhos seus nos endereça.” (DANTE, 2017, p.144. Grifos meus).
Em Conhecimento do inferno, a cena de castração é um exemplo do castigo imposto ao protagonista:
“Abaixo o pénis-baliu ela. E de um só golpe, apoiada por uma vingativa e entusiástica salva de palmas,
desembaraçou-me de cem gramas inúteis.” (ANTUNES,2004, p.180. Grifos meus).

60
dos cães e outros animais ferozes108, e, sobretudo, a eternidade do inferno vivido por
aquele que tem como guia Virgílio109 também são evocadas na descrição pouco linear do
narrador antuniano, que menciona e reitera a palavra “inferno” à descrição do que viveria,
pós - guerra, enquanto psiquiatra no cotidiano do Hospital Miguel Bombarda:
Empurrou a porta e sentiu-se como quando Alice cai no poço no
princípio da história: a súbita transição da claridade excessiva, densa,
quase sólida, palpável, do exterior, para a cova de sombra,
vertiginosamente oca, em que tinha a sensação de haver tombado,
produziu nele a sensação de haver tombado, produziu nele um
redemoinho de tontura semelhante ao de anos atrás, ao chegar ao
Hospital de Miguel Bombarda a fim de iniciar a travessia do
inferno. (ANTUNES, 2004, p.32. Grifos meus).

O hospital psiquiátrico, tratado como um lugar do qual se ausenta a esperança110,


tal qual o inferno dantiano111, talvez seja o principal alvo das críticas do narrador, que
atormentado pelo passado enquanto combatente na guerra de Angola, entrelaça a
experiência de matar, a que seria aparentemente oposta, à de curar. Demonstrando-nos,
com esse entrelaçamento, que as descrições alucinantes das paisagens e relatos pouco
verossímeis do que vivencia na viagem que realiza, nada mais fazem do que espelhar a

108
No canto XIII, diz o poeta: “Do javardo e dos cães ouve o estrupido/ E das ramadas o estalar violento.
/ Súbito vejo à esquerda, espavorido, / Fugindo esp’ritos dois nus, lacerados, / Ramos rompendo ao bosque
denegrido.‘ó morte!’ uma clama- ‘acode aos desgraçados !’/ O segundo, que tardo se julgava (....)/ Porém,
de todo já perdido o alento,/ Numa sarça acolheu-se que ali’stava. / Corria, enchendo a selava, em
seguimento/ De famintas cadelas negro bando, / Quais alões da cadeia ao todo isento/ À sombra
homiziada se enviando, / A fez pedaços a matilha brava, / E logo após levou-os ululando.” (DANTE,
2017, p.73. Grifos meus). Em Conhecimento do inferno, destacamos uma das várias menções a cães:
“Deitada na cama do manicómio via, à noite, grandes cães negros pularem na parede, de boca aberta,
entredevorando-se em silêncio, e chamava aos gritos a enfermeira, que surgia do seu cubículo iluminado
armada de uma seringa de calmantes.” (ANTUNES, 2004, p.233. Grifos meus).
109
No canto II, o inferno é descrito como “eternal”: “(...) No existir, ser nenhum a mim se avança, / Não
sendo eterno, e eu eternal perduro(...)” (DANTE, 2017, p.27.). Já em Conhecimento do inferno, a infinitude
digna do inferno é atribuída ao cotidiano no Hospital Miguel Bombarda e à viagem perturbadora que o
narrador realiza: “Entrei no hospital, pensou ele, para uma viagem tão sem fim como esta viagem,
como o mar das oliveiras aproximando-se e afastando-se, cintilante, nas trevas, agitado por ciciados
cortejos e fantasmas. Nunca saí do hospital, pensei, e apesar disso nunca entendi os internados: digo Bom
dia ou Boa tarde, subscrevo diagnósticos, ordeno terapêuticas, mas não compreendo, de facto, o que se
passa por detrás das expressões vociferantes ou opacas, dos olhos apagados, das bocas sem saliva dos
doentes.” (ANTUNES, 2004, p.116. Grifos meus).
110
“O inferno, pensou, são os tratados de Psiquiatria, o inferno é a invenção da loucura pelos médicos, o
inferno é esta estupidez de comprimidos, esta incapacidade de amar, esta ausência de esperança, esta
pulseira japonesa de esconjurar o reumatismo da alma com uma cápsula à noite, uma ampola bebível ao
pequeno almoço e a incompreensão de fora para dentro da amargura e do delírio, e se não vou para dentista
na mecha fico um maluco tão sórdido e tão sem graça como eles.” (Idem, p.56. Grifos meus).
111
No Canto III, no vestíbulo do inferno, o poeta diz-nos o que leu na placa, de letreiro escuro, que descrevia
a realidade do inferno: “Por mim se vai das dores à morada, / Por mim se vai ao padecer eterno, / Por mim
se vai à gente condenada. /Moveu Justiça o Autor meu sempiterno, / Formado fui por divinal possança,/
Sabedoria suma e amor supremo. / No existir, ser nenhum a mim se avança, / Não sendo eterno, e eu eternal
perduro:/ Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança! / Estas palavras, em letreiro escuro, / Eu vi, por
cima de uma porta escrito.” (DANTE, 2017, p.27. Grifos meus).

61
loucura dos “malucos sem graça112”, dos psiquiatras, e, por extensão, a loucura dele
mesmo.
Com a finalidade de acompanharmos parte das paisagens com as quais o narrador
se depara, o teor lírico de que são revestidas, as críticas que desvelam, bem como a postura
do protagonista frente a um mundo que parece ser o prolongamento de si, nos deteremos
respectivamente: na descrição poética que o narrador nos oferece da paisagem; na
artificialidade do mundo notada pelo narrador e representada, sobretudo, pela figura dos
turistas; no esvaziamento de sentido dos lugares antes representativos e em como esse
processo espelha o de dessubjetivação do sujeito.
2.2.1. A descrição poética da paisagem
Concebido por Schell (2009) como narrativa poética113, Conhecimento do inferno
(1980), além de evocar, desde o título, imagens infernais que povoam a literatura
ocidental, demonstra, pela fragmentação e desarticulação da prosa romanesca num
“caleidoscópio de vozes114”, ir à contramão do que poderia ser concebido como o relato
de uma viagem concreta. O narrador, representação perfeita de um homem desfixado115,
transita não só entre um espaço geográfico e outro, mas por diferentes identidades,
memórias e mesmo pesadelos, ao ponto de a descrição paisagística que nos oferece não
ser precisa, antes fortemente inconsequente e impertinente, à medida que subjetiva e
condicionada por sua percepção.
Ora, em Conhecimento do inferno (1980) deparamo-nos com a sobreposição
insana de cenas e imagens que só podem ser interpretadas a partir do olhar do
protagonista, que interiorizando as paisagens com as quais se depara durante a viagem,
traduz o que vê de acordo com seu passado, suas experiências, isto é, a partir de sua

112
“Os psiquiatras são malucos sem graça, repetiu ele, palhaços ricos tiranizando os palhaços pobres dos
pacientes com bofetadas de psicoterapias e pastilhas, palhaços ricos enfarinhados do orgulho dos polícias,
do orgulho sem generosidade nem nobreza dos polícias, dos donos das cabeças alheias, dos etiquetadores
dos sentimentos dos outros (...)” (ANTUNES,2004, p.56. Grifos meus).
113
“O romance é construído, do início ao fim, a partir de um enredo aparentemente simples, cujo fio
condutor é uma viagem de carro que se desdobra desde o sul de Portugal, em Albufeira, até a capital Lisboa.
Trata-se de uma viagem solitária e sem grandes atrativos ou distrações que não as paisagens que vão se
revelando por meio de um registro descritivo altamente lírico, que se estende também sofre as reflexões
mais íntimas do personagem, dando à narrativa um inegável e decisivo caráter poético, já que, contrariando
a suposta simplicidade do enredo, o romance extrai da suspensão do tempo cronológico, da dissolução do
espaço físico e da investigação profunda do caráter humano, características inegáveis da poesia, sua força
narrativa. Conhecimento do inferno é um exemplo bem acabado de narrativa poética, ou como prefere
Ralph Freedman, lyrical novel, como ele o define em The Lyrical Novel.” (SCHEEL, 2009, p.172. Grifos
meus).
114
Idem, . p.170.
115
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.218.

62
subjetividade. Um exemplo de aparente inconsequência, ruptura lógica117, pode ser
encontrado no trecho em que saindo da Quinta da Balaia em direção a Lisboa, o narrador
recorda-se das férias que passara em uma casa por lá e, em seguida, da Baixa do Cassanje,
da quinta de seu avô e da casa de saúde da periferia de Lisboa que visitava com seus pais
todo natal:
Amanhecera algumas vezes no silêncio de uma casa imóvel,
pousada como uma borboleta morta entre as sombras sem corpo da
noite, e olhava, sentado na cama, os contornos difusos dos
armários, a roupa ao acaso nas cadeiras como teias de aranha
cansadas, o rectângulo do espelho que bebia as flores como as
margens do Inferno o perfil aflito dos defuntos. Vinha cá fora
observar os insectos em torno das lâmpadas no silêncio de ventre
secreto do Verão, de ventre morno e secreto de mulher do Verão,
sentia o doce cheiro putrefacto do levante na pele, escutava o rumor
desordenado das acácias e pensava Estou numa lavra de girassol
da Baixa do Cassanje entre os morros de Dala Samba e da
Chiquita, Estou de pé na planície transparente da Baixa do
Cassanje voltado para o mar longínquo de Luanda da cor dos
óleos das traineiras e do riso livre dos negros, pensava Estou na
quinta do avô perto dos bancos de azulejo e dos galinheiros em
repouso, se eu fechar os olhos penas brancas, soltas, descer-me-
ão no interior do crânio numa leveza de neve, e acocorava-se
no alpendre, incrédulo, sob as estrelas de vidro do Algarve,
coladas no cenário do tecto de acordo com uma geometria
misteriosa. E, como sempre acontecia no decurso das insônias,
os malucos da infância, os ternos, humildes, indignados,
esbracejantes malucos da infância principiavam a desfilar um
a um pelas trevas, numa procissão ao mesmo tempo miserável e
sumptuosa de palhaços pobres iluminados de viés pelo foco
oblíquo da memória, ao som da música antiga do gramofone do
sótão, a gemer uma valsa reumática sobre cavalos de pau, cobertos
de lodo baço do pó (...). (ANTUNES, 2004, p.16-17. Grifos meus).
A sobreposição de lugares que aparentemente não têm nenhuma relação entre si,
senão a estabelecida pela memória do narrador, que fazem com que, mais adiante, o
protagonista venha a dizer que o “assento do carro transformou-se no muro baixo, leproso,
derruído do hospital118” devido às lembranças que o acometem; bem como a exploração
de imagens e comparações inusitadas como “a roupa ao acaso nas cadeiras como teias de
aranha cansadas”, “ventre morno e secreto de mulher do Verão”, “valsa reumática”,
(ANTUNES, 2006, p.12), fazem-nos refletir não só sobre a subjetivação das paisagens

117
Pires (2006, p.45) descreve a inconsequência poética como “ruptura do fio lógico do pensamento”, sendo
o seu oposto, a coerência e/ ou coordenação de um texto, exemplificada, a partir de um estudo de Cohen
(1966,p.66), da seguinte forma “(...) duas frases são coordenadas quando a segunda tem por tema a
primeira.” Vale lembrarmo-nos do fato de que a prosa do século XX trabalha com a inconsequência/
incoerência semântica também, ao passo que esta não seria uma característica restrita ao gênero poético.
118
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.118.

63
que o narrador contempla de seu automóvel, mas também sobre a impertinência
semântica119, característica presente não só na poesia, mas nos romances do século XX.
Ora, tendo em vista que um dos principais eixos temáticos de Conhecimento do
inferno (1980), narrativa que defendemos ser poética, é a loucura, talvez a impertinência
semântica seja um dos traços mais abundantes que podemos encontrar em toda a sua
tessitura. E isto porque, raras vezes, as comparações e os predicativos que encontramos
nas sentenças dedicadas à descrição das paisagens não nos afiguram inauditos, absurdos.
A seguir, alguns exemplos:
Saiu da Quinta da Balaia, do verde domesticado e snob da Quinta
da Balaia na qual a sombra das árvores imprime um leve tom
vermelho, quase róseo, como o dos búzios, das conchas, e de tudo
onde o eco do mar se enrola e canta, e dirigiu-se para a Vila de
Albufeira em que as paredes das casas se assemelham a lençóis
lavados, muito brancos, brancos sobre o azul branco do céu.
Operários de bicicleta pedalavam na estrada ao sol, reis magos
transportando a mirra do almoço nas marmitas das lancheiras,
e ele espiou pelo retrovisor as suas feições sérias de retábulo,
lavradas a cinzel na pedra escura dos ossos, pensando que no rosto
moreno dos homens morava algo de cal e do gesso dos muros,
algo das nuvens de Van Gogh sobre os corvos e o trigo,
formadas não pela ausência de cor mas pela tempestuosa
acumulação de todas elas, amarelos violentos, roxos trágicos,
castanhos do sangue coagulado numa ferida aberta, do sangue
que nunca seca numa ferida aberta. (ANTUNES, 2004, p.27.
Grifos meus).

Ao comparar a Quinta da Balaia à Vila de Albufeira, o narrador recorre a imagens


como as do “eco do mar” se enrolando e cantando, diz que as paredes das casas das vilas
se assemelham a lençóis e que no rosto moreno dos homens “morava algo de cal e do
gesso dos muros, algo das nuvens de Van Gogh sobre os corvos e o trigo” (ANTUNES,
2006, p.23), finalizando sua descrição ao aproximar a mistura de cores propostas pela
estética de Van Gogh ao sangue que nunca seca duma ferida aberta. Essa não é a única
descrição peculiar dos lugares e pessoas que o narrador contempla de seu automóvel.
Mais adiante, ao entrar no bar do Harry’s, o protagonista recorda-se de quando chegou ao
Varela, taberna vizinha ao Hospital Miguel Bombarda:
Eram três, quatro horas da tarde, e lá fora o mar de cartolina
aquietava-se na vazante como um cão se estende no capacho para

119
Atentemo-nos ao que nos diz Cohen (1978) acerca da lei da pertinência semântica e de sua infração pela
poesia: “Neste ponto, aparece uma lei geral relativa à combinação das palavras em frases. Tal lei exige que,
em toda frase predicativa, o predicado seja pertinente em relação ao sujeito. (...) Já que toda frase é feita de
termos lexicais dotados de uma função gramatical determinada, a regra em questão exige que todo termo
de uma frase seja semanticamente capaz de exercer sua função. Esta regra nada mais é que a modalidade
que o axioma de inteligibilidade assume, ao nível semântico. A este mesmo nível, tentaremos caracterizar
a linguagem poética pela infração a essa regra do código da fala. (COHEN, 1978, p.90).

64
poder dormir, agitando a pluma azul da cauda. Enquanto
acompanhava o porteiro ao Varela, a dona Alzira, atrás de mim, repetia
assombrada numa voz de pássaro que a espessura da manhã amortecia:
-Tal qual a mãe. Tal qual a mãe. Tal qual a mãe. (ANTUNES,2004,
p.34. Grifos meus).

A comparação do comportamento do mar ao de um cão e da voz da mulher à de


uma ave demonstram a singularidade da descrição do narrador antuniano, que não se
utiliza do óbvio para a representação das paisagens com as quais interage e dos
sentimentos que o assaltam durante a viagem que realiza, antes ressignifica o ordinário a
partir da sua percepção, de sua interpretação do mundo. O mar, elemento caríssimo à
tradição literária portuguesa, evocado, recorrentes vezes, na narrativa, chega a ser
personalizado pelo protagonista, o qual percebe que saiu de Albufeira quando “deixou de
sentir nas narinas” seu cheiro açucarado (não salgado) de doce de chila:
As casas, os restaurantes, as pensões, as agências de automóveis de
aluguer foram ficando para trás, uma após outra, mas só se
apercebeu que abandonara Albufeira quando deixou de sentir nas
narinas o cheiro açucarado, de doce de chila, do mar. (...)
Mesmo em Tavira, mesmo em Faro, mesmo em Lagos, no
aeroporto, nas estações de caminho de ferro, nos cafezitos
suburbanos em que o vinho contém em si, no interior das garrafas,
uma pura claridade matinal, esse odor de pássaro febril e
rebuçado o perseguia, olhando-o com órbitas teimosas dos
bichos. (...) era a primeira vez que se sabia olhado por um
cheiro. Estava, por exemplo, na cama, em Armação de Pêra, no
quarto de hotel tão cintilante de luz que os objectos flutuavam, sem
peso, numa bruma doirada, que eu próprio flutuava nessa bruma
doirada movendo devagar o braço do cigarro entre o cinzeiro e a
boca, os pêlos loiros do cotovelo brilhavam como pestanas
contentes, a pele queimada aparentava-se à das batatas no forno, e
o odor do mar trepava a parede numa espiral de glicínia e
empoleirava-se, azul, no parapeito, sentado nas patas traseiras,
mirando-me com as grandes pupilas humildes de cavalo,
molhadas das lágrimas da espuma. Puxava o lençol sobre a
cabeça para fugir à curiosidade do mar, à triste timidez do seu
soslaio inquieto de homem ferido, buscando-me entre as
almofadas numa pressa ansiosa, voltava-me de barriga para baixo,
dobrava as mãos na nuca, encolhia as pernas, diminuía a barriga e
o peito até reduzir o meu corpo às dimensões de um embrião, de
um insecto, de uma crisálida insignificante perdida num refego de
roupa, mas o cheiro açucarado, suave e brando, do mar, verrumava
as fronhas para fitar-me, silencioso como um queixume tocante
de mulher. (ANTUNES, 2004, p.45-46. Grifos meus).

O fato de sentir-se observado e perseguido por um cheiro é tão impertinente, no


que diz respeito à realidade do mundo, que a própria personagem, depois de confessar
que já se sentira observada por outros objetos, realça tal incongruência: “era a primeira
vez que se sabia olhado por um cheiro” (ANTUNES, 2004, p.46). Discorrendo acerca
65
desse odor marinho, o narrador permite que nos deparemos com uma descrição ainda
mais inusitada. Descrição na qual o odor do mar é animalizado e personalizado, visto que
se empoleira como uma ave, senta como um quadrúpede, apresentando “grandes pupilas
humildes de cavalo”; é tímido como um “homem ferido”, e, silencioso, faz o narrador
lembrar-se de um “queixume tocante de mulher”.
Um dos trechos em que mais fica evidente a relação visceral que o protagonista
mantém com as paisagens que contempla do automóvel, a qual o faz caracterizá-las de
forma singular, é o que, entrando em Messines, o narrador não consegue desfazer-se das
impressões que lhe causam a luz do Algarve, num momento em que a noite desponta fora
e dentro de si:
A luz do Algarve, pelas quatro da tarde, começa a adoçar-se,
melancólica, à vizinhança do crepúsculo, e as casas principiam a
abrir-se lentamente à laia de corolas nocturnas, ao ritmo dos
relógios de parede de que os grandes corações vagarosos pulsam,
pausados, como os dos bois que dormem. (...) O poente é uma
mancha de manteiga, a suspeita de uma mancha de manteiga
semelhante a uma nódoa translúcida de nuvens, ou nem nuvens
sequer e somente uma leve acentuação de cor, uma lágrima diluída
a aguarelar o ar, algo do indefinido, prestes a cristalizar-se e a
crescer. Sentira isso em Lagoa, em Albufeira, em Armação de Pêra, em
Tavira, com uma crispação estranha no peito, uma angústia
inlocalizável, sem nome, no corpo curvo à espera, sentira as suas
veias dilatarem-se do sangue das trevas em pleno dia, ouvira-as
gemer nas têmporas como as madeiras dos sobrados velhos ao peso dos
fantasmas da infância, sentira a semente do escuro no interior do corpo
idêntica às pedras de mica negra da Beira, e pensava Anoitece tão cedo
em mim, pensava. Quando me abrirem a barriga numa mesa
operatória, à procura do fígado, ou da vesícula, ou do estômago,
encontram em lugar de vísceras um silêncio de quintas desertas e o
ladrar longínquo dos cães, a inquietação dos cães chamando,
sobressaltados, a madrugada. A luz do Algarve, a luz de Messines,
pegava-se aos polegares tal um pó de borboletas, se eu tocar numa
casa, ou numa rua, ou num rio, a marca da minha mão fica
impressa nas coisas como no barro húmido da escola, cova da
palma, falanges, unhas, posso roubar um pedaço a esta tarde, leva-
lo ao bolso até Lisboa, tirá-lo da algibeira e ficar a olhar por muito
tempo os campos desdenhados pelas ondas, os cachorros cabisbaixos
que trotam entre as vinhas no passo oblíquo das raposas, a tímida
penumbra dos alpendres, a terra que o mar despreza como um osso
inútil, um osso oco como o das aves assassinadas num voo
interrompido. O enfermeiro introduziu a cabeça pela frincha da
porta na claridade de Messines, afastou com o braço uma nuvem
que se lhe prendia à testa, que se colava ao suor da testa empurrado
pelo sopro do levante, disse
-Bom dia senhor doutor (ANTUNES, 2004, p. 58-59. Grifos meus).

Desde a descrição da luz do Algarve e das casas que se abrem lentamente “à laia
de corolas nocturnas, ao ritmo dos relógios de parede de que os grandes corações
66
vagarosos pulsam, pausados, como os dos bois que dormem” (ANTUNES, 2004, p. 58),
já notamos o teor poético- metafórico de que se revestirá a descrição do início do anoitecer
pela personagem. O poente, enquanto “mancha de manteiga”, incomoda de tal forma o
protagonista pelo que anuncia, “uma angústia inlocalizável, sem nome”, que se torna
fundamental refletirmos sobre a dimensão simbólica do anoitecer ao narrador. Narrador
que chega a fundir-se à paisagem ao dizer que anoitece muito cedo nele e que no lugar de
suas vísceras instalam-se “o silêncio das quintas desertas e o ladrar longínquo dos cães”
(ANTUNES, 2004, p. 59). Segundo Ponty (1999), o anoitecer é perturbador por envolver
todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que nos veta a possibilidade de
distinguirmos perfis, em outras palavras, de contemplarmos a realidade como ela é:
Quando, por exemplo, o mundo dos objetos claros e articulados
encontra-se abolido, nosso ser perceptivo, amputado de seu mundo,
desenha uma espacialidade sem coisas. É isso que acontece à noite. Ela
não é um objeto diante de mim, ela me envolve, penetra por todos os
meus sentidos, sufoca minhas recordações, quase apaga minha
identidade pessoal. Não estou mais entrincheirado em meu posto
perceptivo para dali ver desfilarem, à distância, os perfis dos objetos. A
noite é sem perfis (...).” (PONTY, 1999, p.380- 381).

Ora, tendo todos os sentidos envolvidos, mais claramente, no trecho selecionado,


o da visão e o do tato, “A luz do Algarve, a luz de Messines, pegava-se aos polegares tal
um pó de borboletas” (ANTUNES, 2004, p. 59), o narrador transporta-nos às memórias
infernais que tem do hospital. Memórias que, gradativamente, com o avanço do anoitecer,
chegam mais perto do que podemos conceber como alucinações. Como é o caso da
descrição que o narrador fará, mais adiante, da noite em Aljustrel:
A noite sitiava Aljustrel dos seus mil murmúrios, dos seus mil olhos
agudos, de estrelas cor de opala à deriva nos verdes sobrepostos do céu,
enredadas nos cabelos estirados nas nuvens. As vilas do Alentejo
assemelhavam-se na sua ideia a rostos de palhaços em caixões, com
as bochechas dos muros pintados do alvaiade da cal. A noite sitiava
Aljustrel de ruidosos insectos e de fúnebres véus, uma mancha de
tinta negra, idêntica a uma nódoa de sangue, crescia no cemitério,
dos beiços cheios de terra dos mortos, despedaçando-se no ar em
pétalas escuras de poeira, densas como escamas, como unhas, como
as pálpebras cartilagíneas dos lagartos, as ruas enrolavam-se
translúcidas, à maneira das espirais dos caracóis, babando um
resto pálido de sol pelas fissuras das paredes. Um ramo de glicínia
pendurava-se das hastes de uma grade como uma gravata de um
pescoço enferrujado. A lua viajava de ramo em ramo como um balão à
deriva, um seio inchado, redondo, uma bolha de gás. As primeiras
casas da vila sumiam-se nas trevas, os cães, inquietos e imóveis,
aguardavam o momento de principiarem a uivar. (ANTUNES,2004,
pp.110-111. Grifos meus).

67
Notamos, no trecho destacado, que à descrição da paisagem noturna de Aljustrel,
o narrador vale-se de imagens tenebrosas e mórbidas, pertencentes ao campo semântico
do inferno, ao qual, desde a leitura do título, fomos apresentados. As vilas do Alentejo
são comparadas a “rostos de palhaços em caixões”, a mancha do poente, antes de
manteiga, transforma-se numa de tinta negra “idêntica a uma nódoa de sangue”, e ao dizer
que ela “crescia no cemitério, dos beiços cheios de terra dos mortos, despedaçando-se no
ar em pétalas escuras de poeira, densas como escamas, como unhas, como as pálpebras
cartilagíneas dos lagartos” (ANTUNES,2004, p.111), o narrador expõe-nos parte do
delírio que o acomete. A angústia que começou a dar os seus sinais com o pôr- do- sol, à
medida que a noite avança, cresce no protagonista, e os contornos das paisagens afiguram-
se-nos cada vez mais perturbadores, ou, nas palavras de Ponty (1999), pouco nítidos. O
apelo a animais como os lagartos e cães reforça a dimensão infernal que a viagem assume
ao narrador, que numa relação fenomênica com a paisagem, apesar de estar ciente de sua
objetividade, projeta nela os seus medos mais subjetivos.
Discorrendo sobre o que chama de Poética e Filosofia da paisagem, diz-nos
Collot (2013, p.26):
A paisagem não é apenas vista, mas percebida por outros sentidos, cuja
intervenção não faz senão confirmar e enriquecer a dimensão subjetiva
desse espaço, sentido de múltiplas maneiras e, por conseguinte, também
experimentado. Todas as formas de valores afetivos – impressões,
emoções, sentimentos - se dedicam à paisagem, que se torna, assim,
tanto interior quanto exterior.
Notamos que, de fato, os espaços geográficos, os quais o narrador não só vê como
percebe a partir de seus demais sentidos, assumem, ao longo da narrativa,
predominantemente, a projeção da interioridade do protagonista, a qual Ponty (1999)
conceberia como esquizofrênica120. Esquizofrênica à medida que, recorrentes vezes, o
narrador perde a noção do que é real e fictício e até mesmo de sua própria identidade no
emaranhado de “impressões, emoções, sentimentos” que o acometem na viagem a qual,
segundo Fernandes (2008), destina-se à compreensão do mundo distorcido dos homens
dados como sãos121. Um exemplo máximo da esquizofrenia que seria comum a todos os

120
Diz o autor: “Esse segundo espaço através do espaço visível é aquele que nossa maneira própria de
projetar o mundo compõe a cada momento, e o distúrbio do esquizofrênico consiste apenas no fato de
que este projeto perpétuo se dissocia do mundo objetivo tal como ele ainda é apresentado pela
percepção e, por assim dizer, reflui para si mesmo. O esquizofrênico não vive mais no mundo comum,
mas em um mundo privado, ele não vai mais até o espaço geográfico: ele permanece no ‘espaço de
paisagem’ (...)” (PONTY, 1999, p.385-386. Grifos meus).
121
“Passamos agora a acompanhar a jornada de uma personagem que assumiu voluntariamente a dolorosa
missão de conhecer. Para isso, tentou compreender aqueles a quem chamou ‘os homens distorcidos’, do
modo como procura reconhecer o percurso da impossibilidade do conhecimento devido a uma outra

68
homens e ao protagonista é trazido à tona pelo narrador, através de uma de suas
alucinações, na cena em que se dispõe a jantar no restaurante Canal Caveira. O
protagonista, psiquiatra, enquanto representante da razão, assiste e participa de uma
conversa entre profissionais da saúde mental, “etiquetadores dos sentimentos alheios122”.
O chefe da equipa adverte sobre o perigo de se existir um médico esquizofrênico,
alertando que esse tipo de gente apenas seria útil às artes123. Ironicamente, o narrador que
já se apresentara como um escritor, delira, aglutinando cenas de uma viagem com a filha,
à de uma menina diante do caixão dos pais, de um suposto canibalismo em Angola e, por
fim, à de sua própria carne sendo servida como alimento a todos na mesa124.
Ora, percebe-se, portanto, que, de fato, a loucura tematizada na obra é
representada na própria materialidade da narrativa que opera o que Rosenfeld (1996)
caracteriza como a abolição da perspectiva absolutizante do sujeito125, fazendo com que
sujeito e mundo, inseparáveis em sua constituição, sejam representados em sua
caoticidade. Assim como a incoerência e a impertinência semânticas, buriladas à
representação da esquizofrenia da vida cotidiana, outras marcas que podemos encontrar
na narrativa de viagem que acompanhamos, as quais atravessam a descrição que o
narrador faz das paisagens observadas, são a redundância e a repetição126.

distorção, a profissional. Mais tarde dirá: ‘Observo o mundo distorcido’, transferindo,


metonimicamente, o que era característica exclusiva de alguns homens, os doentes, para o mundo.”
(FERNANDES, 2008, p.51. Grifos meus).
A seguir, os trechos evocados à argumentação da autora:
“Foi nessa altura (pensou) que resolveu ser psiquiatra a fim de morar entre homens distorcidos como
os que visitam nos sonhos e compreender as suas falas lunares e os comovidos ou rancorosos aquários dos
seus cérebros, em que andam, moribundos, os peixes do pavor.” (ANTUNES, 2004, p. 18. Grifos meus).
“(...) a minha mão encontra um pedaço triangular de vidro da janela
- O senhor Valentim vai recitar um poema da sua autoria
ergo-o ao nível dos olhos e observo, através dele, as camas, o candeeiro redondo, o preto estendido no seu
leito, observo o mundo distorcido, o mundo branco e morto do matadouro, o rapaz de madeixas compridas
que se instala ao meu lado sob a chuva, sem falar, e cuja boca envelhecida se aparenta a uma cicatriz pálida
e selada, uma prega de pele, observo através do vidro o meu próprio rosto dissolvido(...).”(Idem, p.201-
202).
122
Idem, p.56.
123
Vocês já pensaram no perigo de um médico desestruturado, de um médico esquizofrénico? Um
psicótico não pode passar, quando muito, de varredor da Câmara. Costura, escultura, pintura, coisas assim,
muito bem. Actividades artísticas, óptimo: para ser artista não é necessário uma cabeça sólida. (Idem,
p.149).
124
Idem, p.157.
125
No romance contemporâneo, segundo o autor: “Como o narrador já não se encontra fora da situação
narrada e sim profundamente envolvido nela não há distância que produz a visão perspectívica. Quanto
mais o narrador se envolve na situação, através da visão microscópica e da voz do presente, tanto mais os
contornos nítidos se confundem: o mundo narrado se torna opaco e caótico. (ROSENFELD, 1996, p.92).
126
Ao se debruçar sobre o trecho no qual nos deteremos mais adiante, diz Seixo (2002, p. 82): “A reiteração
paralelística, sobretudo anafórica, como é aqui maioritariamente o caso (<nunca saí do hospital> é
expressão que se repete por várias vezes ao longo do capítulo, como refrão de ladainha ou insistência de
eco obsessivo) é processo frequente na prosa de António Lobo Antunes, quando nela envereda por um
registro poético-lírico.”

69
Nesse momento da discussão, vale a pena destacar que em alguns trechos de
Conhecimento do inferno (1980) há a retomada “desnecessária”, no que diz respeito à
função comunicativa do texto, isto é, ao avanço do enredo, de algumas expressões
equivalentes: “Deixou Albufeira a caminho de Messines e a cor icterícia, a cor
cancerosa, a cor amarela da terra trouxe-lhe à lembrança a do pátio do Hospital Miguel
Bombarda, diante da 1ª enfermaria de homens” (ANTUNES, 2004, p.48. Grifos meus.).
Ora, a expressão “icterícia” já remete, por definição, à cor amarela, de forma que há
redundância na descrição dessa paisagem. Redundância que visa a ampliar os efeitos de
sentido do que é dito, enfatizando a razão pela qual tal cenário de Albufeira,
aparentemente doentio em sua amarelidão, faria o narrador-protagonista lembrar-se de
suas vivências no Hospital.
A repetição, em contrapartida, talvez evidencie ainda mais a representação
fenomênico-esquizofrênica que o narrador faz da paisagem. E isto porque, as constantes
repetições127 com que nos deparamos no decorrer da narrativa, parecem configurar-se
como refrão dos capítulos nos quais se inserem, remetendo-se às imagens preponderantes
que assaltam o narrador – protagonista durante a viagem, independentemente de quão
longe ele esteja do estímulo que as gerou. Em Aljustrel, “vila concreta, real, quase
geométrica, habitada por pessoas, por vozes, pelas inquietas pagelas dos mortos”
(ANTUNES,2004, p.116), antes de sair da oficina mecânica na qual estacionou, o
narrador emite o seguinte comentário: “Nunca saí do hospital”. A frase que dá início ao
capítulo sexto é repetida quatro vezes e, no paradoxo que estabelece, tendo em vista que
o deslocamento geográfico configura-se como condição de existência a uma narrativa de

No capítulo um, temos como uma espécie de mote as frases: “Amanhecera algumas vezes no silêncio
127

de uma casa imóvel”; “Havia os malucos de Benfica”. No capítulo dois: “A psiquiatria é a mais nobre das
especialidades médicas”; “Tenho saudades do mar”; “Um cigarro um cigarro um cigarro; “O que faço eu
aqui?”. No capítulo três: “Vou para dentista”; “- Vou morrer”; “A psiquiatria é a mais nobre das
especialidades médicas”; “Os psiquiatras são malucos sem graça”. No capítulo quatro: “Não quero entrar
no hospital”; “A solidão é/ são ...”, “A noite/ Anoitecer ...”; “O senhor doutor é o Santo padre”. No capítulo
cinco: “Os doentes que aprendiam a voar (...)”; “Sentado no banco incómodo do carro (...)”; “Ria-me”. No
capítulo seis: “Nunca saí do hospital”; “O médico quer falar contigo”; “Já mexo outras vez nas estrelas,
senhor doutor”; “Uma voz desconhecida, uma voz que não era a minha, uma voz hirsuta de carrasco, soltou-
se-me da boca num sopro azedo de inveja e de raiva”; “Vais voltar comigo para o hospital”; “Não não não
não não”. No capítulo sete: “Podemos comer os mortos?”; “Abre o caixão”; “Não está ninguém lá dentro”;
“Como é que morri?”; “Os psiquiatras são malucos sem graça”. No capítulo oito: “Boa noite, nosso tropa”;
“O que haverá de inquietante no orgasmo?”; “Como está ele, senhor doutor?”. No capítulo nove: “O senhor
Valentim vai recitar um poema de sua autoria”. No capítulo dez: “Porque é que as pessoas se matam?”;
“Pum” (onomatopeia); “Quem se suicida que se apresente”; “Senhor doutor, senhor doutor”; “Tempo de
merda”; “O senhor Valentim vai recitar um poema de sua autoria”. No capítulo onze: “Só à metralhadora”;
“Liga para os bombeiros”; “Sentava-me na esplanada do pequeno café deserto”. No capítulo doze: “Ainda
vais para Benfica, Rui”; “Depois da uma levanta”; “É o melro”; “Não percebo o que se passa não percebo
o que se passa não percebo o que se passa”; “Boa noite”.

70
viagem, reforça o caráter infernal, à medida que perdurável, das experiências vividas pelo
protagonista no Hospital Miguel Bombarda, que traumatizantes, promotoras de cisão e
dessubjetivação do sujeito, o acompanham onde quer que ele esteja:
Nunca saí do hospital, pensou ele no covil de cimento da garagem, em
que o mais insignificante dos ruídos adquirira a desmedida amplidão de
um berro informe de náufrago. Ao crepúsculo, o avesso das coisas
sobressalta-nos de medo como se do nosso rosto aflito e sério nascesse
de súbito a corola imprevista de um sorriso. A aparência dos objectos
modifica-se, os relógios aceleram-se angustiadamente no escuro, o
corpo que se move debaixo dos lençóis ao nosso lado ameaça-nos com
a sua raiva pastosa. Entrei no hospital, pensou ele, para uma viagem
tão sem fim como esta viagem, como o mar das oliveiras
aproximando-se e afastando-se, cintilante, nas trevas, agitado por
ciciados cortejos de fantasmas. Nunca saí do hospital, pensei, e
apesar disso nunca entendi os internados: digo Bom dia ou Boa
tarde, subescrevo diagnósticos, ordeno terapêuticas, mas não
compreendo, de facto, o que se passa por detrás das expressões
vociferantes ou opacas, dos olhos apagados, das bocas sem saliva dos
doentes. (ANTUNES, 2004, p.116. Grifos meus).
No “covil de cimento da garagem”, ou em qualquer outro lugar pelo qual passe,
as repetições emitidas pelo narrador evidenciam um sistema de ecos na narrativa, que
Tadié (1966) descreveria como poético128, por sugerir certa musicalidade, ritmo, à
sequência de significantes empregados. Sistema de ecos que, no romance, testifica a
perturbação do protagonista. Concebendo Otávio Paz (1996), a esfera como melhor forma
geométrica à representação da poesia nos movimentos circulares que promove no interior
de si mesma, podemos dizer que seria a mais adequada para ilustrar o inferno no qual o
narrador antuniano se encontra. Inferno circunvolutivo que flui e reflui a partir de
motivos-base, evidenciados nos refrões dos capítulos, como diz Faria:
Na realidade, o processo narrativo prevalecente na constituição da
história é o que se pode chamar um processo circunvolutivo: a partir de
um motivo-base desenvolvem-se irradiações sucessivas que vão
jogando em fluxo e refluxo sobre os lugares problemáticos da fixação.
(FARIA, 1981, apud ARNAUT, 2009, p.159).

Dessa forma, o narrador que confessa já ter sonhado com as viagens de férias
durante o expediente de trabalho129, demonstra que, na verdade, a sociedade problemática

128
“Si nous reconnaissons, avec Jakobson, que la poésie commence, aux parallélismes, nous trouverons,
dans le récit poétique, un système d’échos, de reprises, de contrastes qui sont l’équivalent, à grande échelle,
des assonances, des allitérations, des rimes: ce qui n'implique, ni n'élimine, la recherche des phrases
musicales; en effet, les parallélismes sémantiques, les confrontations entre des unités de sens qui peuvent
être des paysages ou des personnages, ont autant d'importance que, à l'échelle plus réduite du poème, les
sonorités les unités de mesure peuvent changer, pourvu qu'il s'agisse toujours de mesurer des séquences.”
(TADIÉ, 1966, p.8. Grifos meus.).
129
“Eu ia de férias dentro em pouco. Os membros doíam-me de cansaço, um lento torpor de lassidão, de
indiferença, trepava-me dos tornozelos para o ventre, e espalhava-me na barriga as suas asas moles.

71
refletida no cotidiano do Hospital Miguel Bombarda, não só pelos doentes, mas
principalmente pelos psiquiatras que como ele, não sabem mais o porquê estão onde
estão130, sociedade infernal da qual deseja fugir, o acompanha na viagem porque está
enraizada nele. Em vista disso, podemos associar, no que diz respeito à suposta alienação
do mundo do trabalho, a viagem do narrador à realizada pelos turistas, que sendo
fomentada pela ilusão de que se é possível escapar das imposições sociais, deslocando-se
de um lugar para o outro, na verdade, não está produzindo senão obediência a elas,
retroalimentando uma indústria de produção131.
A indústria de produção do turismo, fortalecida, sobretudo, na Inglaterra132, é alvo
de crítica do narrador que, desde a primeira página do romance, critica os turistas ingleses
que não percebem que o mar do Algarve é feito de cartão133. Sobre essa questão,
importante para a compreensão da superficialidade e hipocrisia humanas denunciadas na
obra, discutiremos no subcapítulo seguinte.

2.2.2. Os turistas, a superficialidade do homem e a artificialidade do mundo


Antes de tudo, convém dizer que assim como a abordagem das descrições
geográfico-espaciais às quais o narrador garrettiano nos apresenta em Viagens na minha
terra (1846), analisar a dimensão paisagística da viagem empreendida pelo narrador
antuniano, sem esbarrar em sua dimensão histórico-crítica, a ser estudada nos capítulos
seguintes, é uma tarefa muito delicada, sobretudo, quando nos propomos a estudar a
superficialidade que o narrador aponta nos turistas, os quais contempla de seu automóvel,
e a artificialidade que nota nas paisagens, claramente correspondente à realidade

Principiava já a desinteressar-me de Lisboa, do hospital, do trabalho, as minhas filhas sorriam no


pinhal da casa na praia, a oeste o sol escorregava, cor de laranja, sobre a água, a mãe colocava os pratos
do jantar na toalha de plástico das ramagens. Eu ia de férias dentro em pouco e cagar-me, durante um mês,
para a miséria, para a decrepitude, para a nojenta hipocrisia do asilo, derramado numa cadeira de lona junto
à porta da garagem, a ver o sol tornar-se branco como a testa dos mortos. (...) Vou para a praia, pensei eu
olhando-os, vou safar-me deste manso Tarrafal, deste inferno patético, do meu monótono ofício de
distribuidor de pílulas.” (ANTUNES, 2004, p.119-120. Grifos meus).
130
“-O que faço eu aqui?
perguntou-se ele olhando um homem que urinava ao sol, a cantar, contra a parede do asilo, contra a parede
que o reflexo dos plátanos tornava de tafetá, do asilo, porque não saio a correr ao portão e me especializo
em dentista, ou pediatra, ou fisioterapeuta, ou clínico geral, ou otorrino, qualquer coisa de concreto com
doenças concretas, tranquilizadoras, sólidas, compactas, reais, cáries, tumores, desvios da coluna (...)”
(Idem, p.41-42. Grifos meus).
131
“Há muito a vitória do turismo provara ser uma vitória de Pirro, há muito a nostalgia de distância e
liberdade fora dominada pela sociedade da qual emanara. A libertação do mundo industrial estabelecera-se
ela mesma como indústria, a viagem para fora do mundo do comércio transformara-se ela própria em
mercadoria.” (ENZENSBERGER, 1985, p.218. Grifos meus)
132
“O avanço do turismo inglês ante as outras nações, em todo o século XIX, prova como é estreita a relação
do turismo com a civilização industrial.” (Idem, p.214).
133
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.13.

72
concentracionária do Hospital Miguel Bombarda, que visa a espelhar, segundo o próprio
autor, a hipocrisia do Portugal pós-colonial134.
De igual forma faz-se necessário ressaltar que o narrador parte de uma casa
localizada no aldeamento turístico Quinta da Balaia, no Algarve, onde passou as férias,
de volta à sua rotina, em Lisboa. As críticas que dirige, portanto, aos turistas e aos que
curtem “as férias de plástico” no “aborrecimento de plástico dos ricos 135”, também e,
principalmente, contemplam-no.
As primeiras palavras de Conhecimento do inferno (1980) são “O mar do Algarve
é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem”, ressaltando-
nos que refletir sobre a artificialidade das paisagens portuguesas não é uma opção, mas
um imperativo à leitura analítica da obra:
O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os
ingleses não percebem: estendem conscienciosamente as toalhas na
serradura da areia, protegem-se com óculos escuros do sol de papel,
passeiam encantados no palco da Albufeira em que os funcionários
públicos, disfarçados de hippies de carnaval, lhes impingem,
acocorados no chão, colares marroquinos fabricados em segredo
pela junta de turismo, e acabam por ancorar ao fim da tarde em
esplanadas postiças, onde servem bebidas inventadas em copos que
não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uísques
fornecidos aos figurantes durante os dramas de televisão. (ANTUNES,
2004, p. 13. Grifos meus).

Notamos, no trecho citado, primeiro parágrafo da narrativa, uma crítica que


perpassará todo o romance. Uma crítica fortíssima à artificialidade que notada
primeiramente no mar, símbolo de origem das glórias portuguesas, estende-se à paisagem
praiana como um todo. O mar é de cartão, o sol de papel, a praia é um palco, os que estão
nela, figurantes, até as bebidas são inventadas e o os copos não existem. Ora, ao que
parece já temos o primeiro indício do que será dito pelo narrador mais adiante: “Em
Portugal quase tudo, de resto, é a fingir, a gente, as avenidas, as casas, os restaurantes, as
lojas, a amizade, o desinteresse, e a raiva.” (ANTUNES, 2004, p.25). Ao passo que
podemos notar que para a elaboração de uma crítica voraz à nação saída de uma guerra
nefasta e de uma ditadura por muito tempo (e até hoje) camuflada136, o narrador recorre

134
GOMES, Álvaro Cardoso. “Entrevista com Antônio Lobo Antunes”. In: A voz itinerante: ensaio sobre
o romance português contemporâneo. São Paulo: Edusp, 1993, p.138.
135
“Saía da Quinta da Balaia na direcção de Lisboa, do aldeamento de amêndoa e clara de ovo da Balaia
onde pessoas de plástico passavam férias de plástico no aborrecimento de plástico dos ricos, sob árvores
semelhantes a grinaldas de papel de seda que a pupila verde da piscina reflectia no azul de metileno da
água.” (ANTUNES, 2004, p.15-16).
136
Sobre a realidade posterior aos anos de ditadura e guerra o autor afirma: “Depois da revolução era como
se a guerra e a polícia política nunca tivessem existido. Foi um fenómeno de amnésia colectiva, não

73
à imagem do mar, subvertendo-a, como se ela fosse a origem ou fonte de todas as mentiras
que Portugal teria contado a si mesmo, enquanto país supostamente predestinado por
Deus a grandes coisas137. Mas não é só isso. No trecho supracitado, a menção aos ingleses
e ao turismo não é gratuita. Responsáveis por um dos traumas mais profundos da nação
lusíada (o do Ultimato em 1890), os ingleses, à medida que representam o avanço cultural
e tecnológico dos demais países da Europa, avanço do qual não participou Portugal e é
convocado a participar quando integra a União Europeia (1985-1986), representam muito
bem o estereótipo negativo daqueles que eles mesmos definiram como “turistas138”, isto
é, daqueles que usufruem das belezas “de cartão” de uma terra, não fazendo questão de
atentar-se aos bastidores do que se afigura como uma espécie de “drama de televisão139”.
Contudo, como já dito, a crítica não se dirige apenas aos turistas de fora que
usufruem das paisagens praianas de Portugal sem considerar os problemas que, em sua
beleza, maquiam, mas também aos que, como o próprio narrador, não se atentam à eterna
e hipócrita diurnidade-artificialidade portuguesa, presente, sobretudo, na capital da nação.
O protagonista, o qual confessará que foi em África, no país dos Luchazes, que descobriu
que em Lisboa não existia a noite, diz ao ouvir os versos de Paul Simon, “Still crazy after
all these years”:
(...) espanta-me este cenário de cartão para férias inventadas, este
Algarve excessivamente claro que afasta os loucos e os espectros
com o néon do sol, reduzindo a penumbra a uma vaga geometria de
linhas escuras acumuladas nos ângulos dos quartos. Como em Lisboa,
verificou a palpar uma espinha infectada no pescoço, a única cidade
do mundo onde a noite não existe: existem manhãs, tardes,
crepúsculos, auroras, as nuvens translúcidas, alaranjadas, roxas, do
poente, que se afilam e estiram como os troncos no orgasmo num júbilo
elástico e tranquilo, existe o revelador brutal da madrugada que faz
surgir nos nossos rostos nos espelhos os contornos dos velhos que
seremos, mas a noite não existe: os turistas, perplexos, fotografam
estátuas idênticas e generais de chocolate, perdem-se, de mapa em

interessava a ninguém recordar o sofrimento dos que foram para Angola, ninguém queria recordar a
repressão sob a qual o país tinha vivido durante tantos anos. Foi um fenómeno parecido ao que ocorreu na
Alemanha, ou talvez como em Espanha depois do franquismo, não sei.” (ANTUNES apud BLANCO, 2002,
p.58).
137
Sobre o imaginário cultural português, Lourenço discorre: “A sacralização das ‘origens’ faz parte da
história dos povos como mitologia. Mas deve ser raro que algum povo tenha tomado tão à letra como
Portugal essa inscrição, não apenas mítica, mas filial e já messiânica do seu destino, numa referência, ao
mesmo tempo lendária e familiar num horizonte transcendente, a do próprio Cristo. (...) O singular no povo
português é viver-se enquanto povo como existência miraculosa, objeto de uma particular predileção
divina.” (LOURENÇO, 2001, p.91-92).
138
“Os dicionários indicam o surgimento dos ‘turistas’ em 1800 e, em 1811, o do ‘turismo’. Esses
neologismos devem-se à língua inglesa e, como se verá, não é por acaso.” (ENZENSBERGER, 1985,
p.207).
139
KIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo: Para uma nova compreensão do lazer e das viagens. Rio
de Janeiro, 1989, p.84.

74
riste, num labirinto de travessas fumegantes como intestinos,
invadem as pequenas pastelarias suburbanas onde cavalheiros
calvos bebem chás de limão defronte dos problemas de damas do
jornal, e acabam por regressar, extenuados, aos hotéis, para
tentarem dormir na claridade ofuscante de um meio-dia perpétuo.
(ANTUNES, 2004, p.21-22. Grifos meus).
A noite não existe em Lisboa, não na Lisboa em que a maioria das pessoas
transitam e que chama a atenção dos turistas pelos monumentos de “generais de
chocolate”, pelos “labirintos de travessas fumegantes” e pelas “pastelarias”. Ao ponto de
o narrador precisar deslocar-se desse cenário encantado à compreensão de que em Lisboa
a noite existe, mas se esconde, assim como no restante da Europa, símbolo máximo de
desenvolvimento, “claridade”. A noite esconde-se, mas os efeitos dela, das guerras
genocidas e mortes que promoveu, podem ser sentidos à medida que as pessoas se
transformam, segundo o narrador, em “pálidos espectros ambulantes, tropeçando nas ruas
à procura de um descanso impossível.” (ANTUNES, 2004, p.25). Onde a noite se esconde
em Lisboa? Para o narrador, em um ambiente no qual não se pensa que é livre sem sê-lo,
que é possível se instaurar a paz, depois de um regime ditatorial pouco revisitado e de
uma guerra de treze anos (Portugal), em que a loucura de se fingir que é são, dá lugar à
insanidade confessada, investigada e institucionalizada: na enfermaria do Hospital
Miguel Bombarda:
E só em 1973, quando cheguei ao Hospital Miguel Bombarda para
iniciar a longa travessia do inferno, verifiquei que a noite
desaparece de facto da cidade, das praças, das ruas, dos jardins e
dos cemitérios da cidade, para se refugiar nos ângulos das
enfermarias, como os morcegos, nos globos do tecto das enfermarias
e nos velhos e esbeiçados armários de medicamentos, nos aparelhos
de electrochoque, nos baldes de pensos nas caixas de seringas, até os
internados regressarem em silêncio do refeitório e ocuparem as camas
de ferro por pintar, o servente rodar o comutador da luz e ela desdobrar
o feltro nojento das asas, o feltro nojento e pegajoso das asas sobre os
homens deitados que a fitam de entre os lençóis numa irreprimível
náusea. (ANTUNES, 2004, p.26. Grifos meus).

Ora, para além da crítica contundente à nação, supostamente feita de painéis,


cartões, ondas de brinquedo, glórias de papelão, madeira, cenários de teatro; revelada,
dentre outros aspectos, pela hipocrisia dos psiquiatras do Hospital Miguel Bombarda ,
podemos notar não só vestígios de uma reflexão sobre a própria representação literária,
como também uma crítica universal à teatralidade da vida, lugar comum da literatura, do
qual se apropriou, dentre outros autores, Shakespeare para a construção de Hamlet:
Estivera uma vez com a Luísa em Armação de Pêra e quase não
conseguira sair do hotel surpreendido por aquela insólita

75
mistificação de bastidores que toda a gente parecia tomar a sério,
lubrificando-se de cremes fingidos sob um holofote cor-de-laranja,
manejado de um buraco de nuvens por um electricista invisível (...).
Deitado na cama, abraçado à Luísa, via as cortinas agitarem-se na
claridade fosforescente de uma aurora de celofane, e perguntava-se a
si próprio, intrigado, se o amor que fazia não passava de um
exercício frenético dedicado a um público inexistente, para quem
articulava as suas réplicas de gemidos numa convicção patética de
actor. (ANTUNES, 2004, p.13-14. Grifos meus).

Em Armação de Pêra, dentro de um hotel, espaço que será um dos objetos de


discussão do próximo subcapítulo, o narrador, enquanto português, sente-se nos
bastidores do grande teatro do Algarve. Junto à ex-mulher, questiona, não só por estar em
um ambiente de férias, mas por ser um sujeito cindido, se o amor que faz não é, assim
como o mar de cartão, apenas uma atração a um público inexistente que pode, inclusive,
ser composto pelas várias versões de si mesmo, visto que, no decorrer da narrativa, por
diversas vezes, o narrador, ora na primeira, ora na terceira pessoa, se condena e se
justifica, se perde e se encontra, fazendo-nos refletir sobre a correspondência que os
espaços pelos quais atravessa, cênicos ou não, estabelecem com o estilhaçamento de sua
interioridade. Eis o próximo tema sobre o qual nos deteremos à compreensão da relação
do narrador com a dimensão geográfico-paisagística da viagem que realiza.

2.2.3. O esvaziamento de sentido das paisagens e o processo de dessubjetivação do


sujeito: não-lugares e não-pessoas

Se de um lado deparamo-nos com descrições muitíssimos subjetivas das paisagens


com as quais o narrador interage durante a viagem, seja pelas janelas do automóvel, seja
nas paradas que realiza, de outro, não podem passar despercebidos certos momentos da
narrativa em que o protagonista pondera sobre o seu não-pertencimento à realidade e aos
lugares aos quais estava ligado antes da guerra e do exercício da psiquiatria no Hospital
Miguel Bombarda. Para discorrermos sobre isso, é enriquecedor recorrermos à obra Não–
lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade (2008) de Marc Augé.
Segundo o autor, a contemporaneidade, em sua dinamicidade, é promotora dos não-
lugares, sendo estes definidos em contraponto aos antropológicos, como lugares não-
identitários, não-relacionais e não-históricos. O teórico diz mais acerca da tese que
defende:
A hipótese aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora
de não-lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares
antropológicos e que, contrariamente à modernidade
baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes,

76
repertoriados, classificados e promovidos a ‘lugares de memória’,
ocupam aí um lugar circunscrito e específico. Um mundo onde se
nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam,
em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de trânsito e as
ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos invadidos,
os clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas
destinadas aos desempregados ou à perenidade que apodrece),
onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que
são também espaços habitados, onde o frequentador das grandes
superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado
com gestos do comércio ‘em surdina’, um mundo assim prometido à
individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero,
propõe ao antropólogo, como aos outros, um objeto novo cujas
dimensões inéditas convém calcular antes de se perguntar a que olhar
ele está sujeito. (AUGÉ, 2008, p.73-74. Grifos meus).

Ora, se pelo que foi dito até então, pode-se ter a impressão de que todos os lugares
pelos quais o narrador antuniano passa são “lugares de memória”, convém dizer que as
paisagens que observa de seu carro o fazem evocar temporalidades e lugares distantes de
seu presente factual. Ao ponto de podermos entender que o processo de subjetivação das
paisagens com as quais o protagonista interage funciona como ponte para que ele conecte
as experiências desencontradas do passado à sua vida-viagem presente. Também não
parece ser por acaso que o narrador, para a representação do desenraizamento do homem
pós ou super-moderno (nas palavras de Augé), ressalte, já no primeiro capítulo, a
impessoalidade que sempre o atraiu nos hotéis, não-lugares por excelência:
A impessoalidade uniforme dos hotéis produzia nele uma exaltante
sensação de liberdade: nenhum objeto seu assinalava os móveis
como a urina dos cachorros a casca das árvores. Os longos
corredores repletos de portas numeradas traziam-lhe à idéia fantasias de
bordel caro, do mesmo modo que as pequenas mercearias da sua
infância se haviam transformado em supermercados gigantescos
semelhantes a estações espaciais, e comprazia-se a imaginar, trotando
pela passadeira, de quarto em quarto, homens mergulhados de bruços a
ofegarem sobre pares de joelhos perfumados de madeiras do Oriente,
antes de se lavarem com sabonete Ach Brito nos jactos contraditórios
do polibã. (ANTUNES, 2004, p.14-15. Grifos meus).

Ora, a princípio, tal qual descrito pelo narrador, a sensação que sente ao estar em
um não-lugar é a de liberdade. O fato de nenhum objeto estar ligado aos seus afetos e
subjetividade, dos quartos serem muitos, lembrando-lhe dos supermercados gigantescos
que substituíram os pequenos de sua infância, bem como o de não conhecer ninguém no
ambiente, reforçam os valores caros e inevitáveis do mundo pós-moderno: a
transitoriedade, o desapego e o individualismo.
Contudo, esse desapego, o não-pertencimento aos lugares nos quais se está, que a
princípio o narrador associa à liberdade, no decorrer da narrativa, o assombra. Como
77
quando se recorda de que ao estar longe do país por conta da guerra, ao deitar-se em
camas desconhecidas, uma espécie de zumbido o fazia rememorar a vivenda dos seus pais
na praia:
Morava dentro dele uma piedade raivosa, uma ternura zangada pelo seu
país descarnado e estranho que recordava, quando longe, não por
intermédio de paisagens, de fragmentos de cidade, de estátuas, de ruas,
de pessoas, mas através de um som, um único som, o sopro de búzio de
vento nas copas dos pinheiros, chamando-o em segredo para
misteriosas aventuras. Em Londres, na Madeira, em Angola, ao
deitar-se em camas desconhecidas nos hotéis que os monta-cargas
percorriam de contínuo do seu assobiozinho de cometas, essa vibração
múltipla, magoada, distraída e dolente obrigava-o a sentar-se,
completamente desperto, nos lençóis, cuidando-se na vivenda dos seus
pais na praia, em Setembro, quando o equinócio faz tremer do leste uma
asma suave de criança. (ANTUNES, 2004, p.48. Grifos meus).
Ora, se as camas dos hotéis nos quais se instala, enquanto combatente das guerras
coloniais, respondem à categorização de não-lugares proposta por Augé (2008), a do
Hospital, ainda que localizado em Lisboa, também o faz:
Eu dormia num quarto impessoal como o das messes da tropa, cujos
lençóis exalavam um odor acre de jazigo, com um frasco de água à
cabeceira idêntico aos das pensões de província, e um telefone que
chora, de quando em quando, gemidos aflitos de bebé. Cerca de mil
pessoas ressonavam à minha volta em uníssono, num vaivém
vagaroso de mar, e sentia-me como que flutuando à superfície do som,
estendido nos cobertores à laia dos cadáveres dos grumetes que se
deixam escorregar para a água envoltos num sudário de lona, e que
mergulham devagar nas ondas como estranhos cilindros rígidos de
chumbo. (ANTUNES, 2004, p.69. Grifos meus).

A conexão entre a realidade da guerra e o cotidiano do Hospital Miguel Bombarda


(repleto de quartos impessoais) atravessa toda a obra. Seja pelas experiências bárbaras
que proporcionaram ao narrador, seja por contarem à sua manutenção com pessoas que
lutam tão somente para sobreviver140, guerra e hospital entrelaçam-se também por
promoverem ao protagonista uma sensação totalmente oposta à de estar no lar, ou num
ambiente personalizado, sensação que diz muito não só sobre os não-lugares da
supermodernidade, mas sobre os não-sujeitos que os ocupam. Fato que fica evidente

140
“Angola, pensou ele no restaurante da serra, diante de uma cerveja morna que sabia a baba de caracol e
a espuma de banho, talvez que a guerra continue, de uma outra forma, dentro de nós, talvez que eu
prossiga unicamente ocupado com a enorme, desesperante, trágica tarefa de durar, de durar sem
protestos, sem revolta, de durar a medo como os doentes da 5ª enfermaria do Hospital Miguel
Bombarda, fitando os psiquiatras num estranho misto de esperança e de terror: quem se portar bem, minhas
meninas, tem direito de fim-de-semana em casa, quem não se portar bem recebe um pronto castigo de
injecções, ó larila, e dorme sonos químicos rodeados de absolutas trevas, de um negro tão completo como
os das noites dos cegos, cujas órbitas se assemelham a pássaros defuntos estendidos nas gaiolas das
pestanas.” (ANTUNES, 2004, p.81.Grifos meus).

78
quando o narrador nos diz sobre do que é necessário abrir mão para que se conclua o
processo de internamento no Hospital:
E agora regressava a Lisboa sem nunca ter saído do hospital, porque
quando alguém entra no asilo cerram o enorme portão à chave nas
nossas costas, despojam-nos da carteira, do bilhete de identidade,
do fato, do relógio, dos anéis, injectam-nos nas nádegas cinco ou
seis centímetros cúbicos de doloroso esquecimento, e na madrugada
imediata o nosso corpo é um puzzle de pedaços espalhados no lençol,
impossíveis de reunir pela moleza incerta das mãos. (ANTUNES, 2004,
p.117. Grifos meus).

A renúncia de todos os objetos pessoais, atitude muito simbólica e que nos permite
recordar, inclusive, do romance testemunhal de Primo Lévi141, está ligada ao processo de
alienação do sujeito, de esquecimento de si mesmo142, sobre o qual, diversas vezes, o
narrador discorre, sobretudo ao destacar o vazio estatuário dos pacientes submetidos a
esse tipo de tratamento. A guerra também é uma forte experiência de dessubjetivação e,
por conseguinte, de animalização dos combatentes, como nos diz o narrador mais adiante:
(...) aqueles meses de guerra haviam-nos transformado em pessoas
que não éramos antes, que nunca tínhamos sido, em pobres animais
acuados repletos de maldade e de terror. No fundo dos nossos olhos
amarelos uivava um medo pânico de infância, um pânico calado,
tímido, embaciado de hesitação e de vergonha. (ANTUNES, 2004,
p.175. Grifos meus).
Talvez o exemplo que ilustre melhor a experiência de dessubjetivação e da
negatividade dos lugares experimentadas pelo narrador seja a história de Margarida,
contada pelo protagonista no penúltimo capítulo da obra. Ex- cabelereira, Margarida foge
do Hospital Miguel Bombarda, onde fora internada, em busca de seu antigo quarto e de
regressar ao salão onde trabalhava. Propositalmente, a sua história é trazida à tona pelo
narrador, quando, tendo chegado a Lisboa, decide ir à Praia das Maçãs pegar alguns livros
antes de voltar à rotina do hospital, dizendo-nos a nós e a Joana (uma de suas filhas): “De
modo, Joana, que saí de Lisboa em direcção à praia como a Margarida do Hospital Miguel
Bombarda para o cabelereiro onde trabalhava.” (ANTUNES, 2004, p.221). Ora,

141
A perda de objetos pessoais, segundo Levi (1988), fez parte do processo de despersonalização e
consequente desumanização dos judeus do campo: “Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os
sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão - e, se nos escutarem, não nos compreenderão.
Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para
tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos.” (LEVI, 1988, p.32. Grifos
meus).
142
Em determinado momento, ao apresentar-se, ele mesmo, como paciente diante de uma equipe de
médicos, o narrador diz: “Querem mudar-me a infância, pensou ele, torná-la asséptica, despovoada,
inabitável. Querem roubar-me os bibelots do passado, a comunhão solene, a primeira masturbação, os Três
Vintes clandestinos das férias grandes, transformar-me a vida num quarto de hotel impessoal e feio, com
flores de pano na mesa de cabeceira apagada do radiador: afasta-se a cortina e a Filipe Folque, lá em baixo,
mira-nos com as inexpressivas, ocas órbitas murchas das estátuas.” (ANTUNES, 2004, p.130-131).

79
Margarida vivencia uma experiência traumática, visto que ao voltar a um ambiente
familiar, não sente o que esperava sentir, mas tem a impressão de que o Hospital
conseguira transformar os lugares em não-lugares:
O hospital, pensou a Margarida, modificou o mundo: expulsou as
pessoas risonhas, cúmplices, amáveis, protectoras de outrora, e
substituiu-as por uma cidade azeda, opaca, inimiga, uma cidade
que não era a sua, que não conhecia, que de toda a parte a escorraçava
numa raiva doente, a escorraçava não sabia para onde por não existir
sítio para ir. Sentia-se emparedada(...). (ANTUNES, 2004, p.236.
Grifos meus).

Tendo a sensação de que não conhecia mais o salão em que trabalhara, vendo as
suas mesas tombadas e os vidros quebrados como “os espelhos ocos como as noites sem
termo do hospital143”, Margarida dá-se conta de que toda ligação afetiva que tinha com
aquele lugar desfez-se, ao ponto de não saber qual será o seu próximo passo na vida144,
assim como o paciente retratado no mesmo capítulo, Hélder, o qual, tendo alta, argumenta
que além do hospital não existe mais lugar a ele no mundo145. O narrador, em
contrapartida, ao chegar ao seu destino, assim como os pacientes sobre os quais discorre,
além de ter um lapso de identidade, confundindo-se ele mesmo com o Rui146, rapaz que
sempre via correndo em torno da praia, surpreende-se ao notar que o ambiente ao qual se
habituara147, ao qual pertencia em sua infância, afigurava-se-lhe estranho:

143
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Lisboa: Dom Quixote, 2004, p.235-236.
144
“A Margarida, no cabelereiro vazio, continuava a olhar em torno sem saber o que fazer: qual é a solução
quando nem os cabeleireiros funcionam? Nos lavatórios a derradeira espuma sumia-se nos ralos, girando
lentamente.” (Idem, p.237).
145
“-Não posso ter alta senhor doutor- disse o Hélder. - Quem é que me recebe lá fora? - Precisamos da tua
cama- disse eu. - Há por aí malta pior do que tu. - Não faça isso senhor doutor- disse o Hélder. – Ninguém
me quer em casa. Olham para mim como se eu fosse um bicho.” (Idem, p.230).
146
“O Rui começou à procura da chave pelos bolsos, da chave atada com um cordel que a mãe lhe
dera para abrir a porta do andar de baixo, sob uma lanterna de ferro forjado, ao pé da arrecadação
das bicicletas e dos triciclos dos sobrinhos. O equinócio aproximava-se e com ele as migrações de patos
rente à costa, em grandes triângulos majestosos, fugindo do calor insidioso, traiçoeiro, cor de tabaco assado,
do Outono, e também da chuva, do granizo, do frio que esse calor transportava escondido no seu bojo, à
maneira de um feto glacial, de um bicho disforme, hostil, de que os relâmpagos mostravam de súbito, entre
cortinas de nuvens, a ramificação oblíqua das veias. Sou médico, cheguei do Algarve, estou na Praia das
Maçãs, volto amanhã ao hospital- disse ele em voz alta para si mesmo a fim de afastar a imagem do
Rui cambaleando aos tropeções no cimento deserto: amanhecia e a camisa em tiras abanava ao vento.
(ANTUNES, 2004, p.245-246. Grifos meus).
147
“Habituara-se à Praia das Maçãs e aos seus cortejos de colónias de férias vestidos de órfãos tristes,
policiados por freiras em cujos gestos se adivinhavam movimentos angulosos de morcego. Habituara-se
a laranjadas lentas na esplanada, fumando o cigarro da melancolia solitária entre um grupo de senhoras
tricotantes e um casal de velhos circunflexos, a aguardarem em silêncio o aneurisma salvador. Habituara-
se à farmácia do senhor Alves e à sapataria do senhor Café como outros se habituam a uma esposa sem
surpresas. Habituara-se, sobretudo, aos ditos sem réplica da mãe, que durante o Verão, no meio do
nevoeiro, da bronquite e do frio, se diria aumentar de tamanho e segurança numa firmeza que o confundia:
algum irmão comparecia ao pequeno almoço com ratés de tosse, pálido de gripe, arrastando no soalho o
cansaço custoso dos pés, e logo ela, desdenhando o termómetro, lhe tocava com dois dedos expeditivos, no
pescoço, decidia -Estás fresquíssimo (...).” (Idem, p.242-243. Grifos meus).

80
Também eu não percebia o que se passava: estava na Praia das
Maçãs, na grande e velha casa dos meus pais que emergia da noite
dos pinheiros como um enorme barco adornado, e qualquer coisa
de diferente, de estranho, de insólito, me perturbava. Era uma
alteração subtil, imperceptível, relacionada talvez com a minha
exaustão, o meu cansaço, com a claridade cerosa e flácida da aurora, a
bizarra febre húmida da manhã, algo de inesperado, de esquisito, de
absurdo que não lograva elucidar, a diferença de um odor, de uma
tonalidade, do balir lamentoso, de cordeiro, do mar. Introduzi a chave
na fechadura, empurrei a porta e dirigi-me, às apalpadelas, para o
quarto: a respiração dos meus sobrinhos elevava-se e baixava,
cadenciada, nas trevas, e eu adivinhava as suas mãos fechadas, os
corpos encolhidos nos lençóis à maneira das lagartas nos casulos, os
cabelos loiros despenteados pelos dedos do sono, as pálpebras cosidas
e rígidas como as pestanas dos mortos. (ANTUNES, 2004, p.247.
Grifos meus).

Notamos que, na verdade, o que torna um lugar familiar ou não é a condição do


próprio sujeito. O protagonista, cindido pela experiência da guerra e pelas atrocidades
que têm de patrocinar no Hospital Miguel Bombarda, deixou de ser o sujeito que residia
no antigo lar da Praia das maçãs. Desassujeitado, o sujeito lê como não-lugares até os
que, por definição, não o são. Fato sobre o qual discorre Seixo, a partir de uma perspectiva
histórica:
O episódio de Margarida, destacado assim para o final do romance
justamente quando o narrador sai de Lisboa, não é apenas um belíssimo
texto sobre a expressão feminina, a loucura e a sua relação com o mundo
dito normal; é uma espécie de alegoria do regresso que dá conta
também do regresso dos militares de África e da sua inadaptação
como de uma outra forma de loucura, e alia o símbolo da gaivota
(presente desde Memória de Elefante ) ao símbolo do pássaro final, o
melro, que preenche a conclusão do romance. (SEIXO, 2002, p.88).

Sendo um dos vários retornados das guerras coloniais, o narrador estranha o Éden
português no qual vivera no início de sua vida, representado pela Praia das Maçãs, porque
tendo provado do fruto do conhecimento relativo ao inferno dos homens148, tendo
experimentado a solitude e crueldade humanas, evidenciadas pelo processo de
dessubjetivação que a guerra e o confinamento acarretam ao ser, não lhe resta como
destino senão a itinerância por não-lugares. Itinerância digna de um pássaro, que expulso
de seu ninho, ainda que não queira, tem de voar:

148
A tradição iconográfica representou, por diversas vezes, o fruto proibido do qual se alimentaram Eva e
Adão como sendo uma maçã, estando a proibição da ingestão do fruto ligada, segundo a própria narrativa
bíblica, ao conhecimento do bem e do mal que não caberia aos homens: “E o Senhor Deus lhe deu esta
ordem: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal
não comerás; porque, no dia em que dela comeres, morrerás.” Gênesis 2.16-17.

81
O caminho da serra enrolava-se para a esquerda numa serpentina de
alambique, até ao ponto onde avistava a lâmina lisa, perpendicular, de
verniz, do mar. Um grande pássaro cinzento passou rente aos
telhados na direcção da manhã. E ele sentia-se estrangeiro em
relação a si próprio como a Margarida ao ultrapassar o portão do
hospital e ao achar-se, de repente, na cidade a que se desabituara, e que
respondia aos seus soslaios ansiosos com a seriedade impenetrável das
fachadas. (ANTUNES, 2004, p.224.Grifos meus).
Estrangeiro em relação a si próprio e acompanhado, ora por um grande pássaro
cinzento, ora por um melro (último capítulo), o viajante antuniano demonstra-nos que a
relação que mantêm com as paisagens é complexa como a sua própria interioridade.
Interioridade devastada ao ponto de, diferentemente de seu pai (alegoria nacional e
divina), as palavras com que nos descreve sua viagem exterior e interior não culminarem
em vida, mas em morte, morte que ele mesmo experimenta. O melro, remetendo a maus
agouros, em sua cor negra, e à transcendência, em seu voar, evocado pela voz do pai do
protagonista, o qual por meio de cada sílaba pronunciada “constituía um elemento (um
lago, um rio, um moinho, montes distantes)” (ANTUNES, 2004, p. 250), sinaliza a morte
do narrador do romance, que não sendo capaz de lidar com as memórias da guerra e com
o cotidiano violento a que está submetido não é senão um morto vivo durante toda a
narrativa, “cadáver adiado que procria149”, que finalmente tem direito a um ritual fúnebre
quando o espectro de seu pai lhe cobre com um lençol como um sudário.
Notamos, dessa forma, que atravessando geograficamente a sua terra, matizada
por cores poético- infernais, o narrador evidencia não só a fragilidade das fronteiras que
separariam a poesia da prosa, como também as que distanciariam a realidade da ficção, o
sujeito da paisagem, o familiar do estranho, o nativo do estrangeiro, a vida da morte e,
supomos, o fantasma imperial da nação lusíada de sua realidade presente pouco gloriosa
e de plástico.
Tendo discutido, brevemente, sobre a forma como os protagonistas da obra de
Garrett e de Lobo Antunes interagem com os espaços geográficos pelos quais se
deslocam, sendo preponderante em Viagens uma descrição arqueológica de tudo aquilo
que o narrador vê e em Conhecimento do inferno, descrições bastante subjetivadas das
paisagens com as quais o narrador se depara, cabe analisarmos as viagens que derivam-

149
Referência aos versos do poema pessoano “D. Sebastião, rei de Portugal” (1934): “Louco, sim, louco,
porque quis grandeza/ Qual a Sorte a não dá/ Não coube em mim minha certeza;/ Por isso onde o areal está/
Ficou meu ser que houve, não o que há/ Minha loucura, outros que me a tomem/ Com o que nela ia/ Sem
a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?” (PESSOA, 1992,
p.45. Grifos meus).

82
se do deslocamento geográfico realizado por ambos: viagens de cariz autobiográfico-
metaliterário e histórico-crítico.

83
3. Os homens (autores) de papel: a dimensão autobiográfico-metaliterária das
viagens
Autores de séculos distintos e homens de biografia muito diversa, faz-se
interessante ressaltar que, Almeida Garrett e António Lobo Antunes, ao explorarem a
temática da viagem por território pátrio, apresentam narradores que se identificam como
sendo eles mesmos e, somada a essa identificação, utilizam-se de forma evidente de
experiências autobiográficas à matéria da narrativa que apresentam, entrelaçando-as a
reflexões acerca de sua atividade literária.
Torna-se ainda mais curioso o estudo das obras em simultâneo se considerarmos
que, seja através das digressões pelas quais nos conduz o narrador oitocentista, seja pela
desarticulação sintática característica da narrativa antuniana, ambos os romances exigem
dos seus leitores que viajem por territórios muito além dos aparentemente definidos no
itinerário de seus narradores, que assistam à interioridade encenada dos protagonistas e
questionem-se não só sobre as tramas que organizam a narrativa, mas também sobre a
legitimidade do narrado. E isto porque, muitíssimo irônicos, nos termos de Lukács (1962),
os narradores que nos guiam por viagens múltiplas, reconhecem a fragilidade das lentes
pelas quais leem e “penas” a partir das quais representam o mundo e, de forma um tanto
quanto trágico-cômica, a arbitrariedade e a fragmentariedade do próprio mundo. Mundo
que, de forma solidária e não pouco pretenciosa, os narradores compartilham com os
leitores, interpelando-os diretamente (Viagens) ou não (Conhecimento do inferno), mas,
sobretudo, demonstrando que o reconhecimento de suas limitações, a ironia, “é a mais
alta liberdade possível150” num mundo com ( Viagens) ou sem Deus (Conhecimento do
inferno) .
3.1. Almeida Garrett: entre a realidade vivida e a representada
3.1.1. O homem ficcionalizado
Ora, o teor supostamente autobiográfico de Viagens na minha terra (1846) é
atestado desde o primeiro capítulo da obra: “Abalam-me as instâncias de um amigo,
decidem-me as tonterias de um jornal, que por mexerequice quis encabeçar em desígnio
político determinado a minha visita. (GARRETT, 2010, p.90). O narrador, expondo as
razões e motivações pelas quais viaja, comprovadamente reais, propõe-se a, depois de ter
aceito o convite de viajar, feito por Passos Manuel, escrever sobre a viagem que fizera,

150
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2009, p.95-96.

84
cedendo ao apelo de Castilho152, diretor da Revista Universal Lisbonense. Contudo, a
viagem ocorrida, tal como a narrativa nos indica, a 17 de julho de 1843, só foi publicada
em sua totalidade em 1846, o que comprova que, de fato, não só as “tonterias de um
jornal” atribuíram desígnios políticos à viagem garrettiana, mas o próprio governo de
Costa Cabral, ao qual o autor se opunha, o fez153.
Além da motivação ser real e da viagem ter ocorrido, muitos outros vestígios
autobiográficos podem ser encontrados na narrativa, como destaca Carlos Reis:
Mas além de peculiar narrativa de viagens, as Viagens comportam
também uma dimensão de relato autobiográfico. Provém essa dimensão
antes de mais do facto de o relato principal das Viagens resultar de uma
experiência pessoal, fragmento de uma vivência em muitos aspectos
importante para o narrador; o registo autodiegético ( quer dizer, de
relato por um narrador que como protagonista viveu o que conta), a
alusão a verdadeiros episódios de dimensão autobiográfica, a
referência a lugares e eventos históricos testemunhados, o modo
como o narrador se sente afectado ( nos planos psicológico, ideológico,
cultural, etc) por esses lugares e eventos tudo isto suscita não
exatamente uma autobiografia, na acepção estrita do termo, mas um
discurso de incidência autobiográfica. (REIS, 1998, p.50. Grifos meus).
Para além da experiência pessoal da viagem, a narrativa é construída na primeira
pessoa (registro autodiegético) e o protagonista, apresentando-se como sendo o próprio
Almeida Garrett, faz-nos questionar as categorias de narrador e autor empírico tão bem
diferidas na narratologia, impedindo-nos de ler o seu relato sem sobrepormos essas duas
instâncias154. O narrador é Almeida Garrett, isto é, ele é a personagem pública já
conhecida pelos leitores da Revista Universal Lisbonense: ex-combatente liberal, político,
jornalista e escritor. A prova disso é que o narrador cita as obras que escreveu, ora para
chamar a atenção à presença de personagens religiosas em suas produções:
Já me disseram que eu tinha o génio frade, que não podia fazer conto,
drama, romance sem lhe meter o meu fradinho. O Camões tem um
frade, Frei José Índio; A Dona Branca, três, Frei Soeiro, Frei Lopo e

152
“A 6 de julho de 1843, recebia Garrett de um companheiro de lides cívicas - Passos Manuel, então
residente em Santarém- um afetuoso e insistente convite epistolar para visitar a cidade, ‘grande crônica de
pedra’, e conhecer também ‘os campos’ circunstantes. Garrett anuiu, levado, segundo depois disse, pelo
desejo antigo de conhecer aquelas terras, mas atiçado também pelas ‘tonterias’ de alguns que, sabedores do
projeto, logo lhe haviam suposto desígnios políticos. A 22 do mesmo mês- já o Escritor estaria em Lisboa,
escrevia-lhe Castilho, diretor da importante Revista Universal Lisbonense: (....) Garrett correspondeu ao
pedido: nos tomos II e III da Revista Universal Lisbonense, saíram, com efeito, de Agosto a Dezembro
desse ano de 1843, seis capítulos-folhetins, assinados ‘A.G’, da obra já intitulada Viagens na minha terra,
que uma nota elogiosa (provavelmente de Castilho), anteposta ao primeiro, apresentava como um ‘exemplar
de género precioso e novo em nossa literatura’, mas abundante ‘em todos os países de adiantada
civilização’- as ‘impressões de viagens’; sublinhando a coloquialidade inovadora do texto garrettiano, mas
também a densidade polifacetada do pensamento que transportava (...).” (MONTEIRO, 2010, p.148).
153
Idem, p.149.
154
MENDES, Victor. Almeida Garrett - crise da representação nas Viagens na minha terra. Lisboa:
Cosmos, 1999, p.20-21.

85
São Frei Gil- faz quatro; A Adozinda tem um ermitão, espécie de frade-
cinco; Gil Vicente tem outro- isto é (...) meio frade, que é André de
Rezende (...) cinco e meio; O Alfageme, três quartos de frade (...)Em
Frei Luís de Sousa, tudo são frades (...) são já doze e quarto; Alguns,
não eu, querem meter nesta conta o Arco de Sant’Anna, em que há bem
dous frades e um leigo; E aqui tenho eu às costas nada menos que quinze
frades e quarto. Com este Frei Dinis é um convento inteiro. Pois,
senhores, não sei que lhes faça: a culpa não é minha. Desde mil cento e
tantos que começou Portugal, até mil oitocentos e trinta e tantos que uns
dizem que ele se restaurou, outros que o levou a breca, não sei o que se
passasse ou pudesse passar nesta terra coisa alguma, pública ou
particular, em que frade não entrasse. (GARRETT, 2010, p.184-185.
Grifos meus).

Ora para destacar a importância de figuras ilustres à história portuguesa, que busca
resgatar em seus escritos:
Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e
depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não
chega à fama e reputação que alcançaram aqueles senhores. Nós
precisamos de quem nos cante as admiráveis lutas- ora cômicas, ora
tremendas- do nosso Frei Gil de Santarém com o diabo. O que eu
fiz na Dona Branca é pouco e mal esboçado à pressa. O grande mago
lusitano não aparece ali senão episodicamente; e é necessário que
apareça como protagonista de uma grande ação, pintado em corpo
inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro. (GARRETT, 2010, p.
391-392 Grifos meus).

Propondo-se a ficcionalizar-se, algo a que todos os que escrevem sobre si estão


fadados155, o narrador garrettiano alude a seus posicionamentos políticos e a muitos
episódios de sua vida, seja por meio dos discursos “intrusos” com que nos deparamos no
decorrer da viagem que realiza, seja por meio da configuração da personagem de Carlos,
uma espécie de alter-ego do escritor.
Nos discursos que atravessam a obra, encontramos, por exemplo, o Garrett
centrista dos anos 40 e 50, aquele que passa a desconfiar dos extremos, os quais chama
de Materialismo (representado pela figura do barão, ligada à revolução liberal) e
Espiritualismo (representado pela figura do frade, ligada ao absolutismo). Podemos notar
também o discurso ressentido do liberal que, religioso empedernido, arrepende-se de ter
apoiado a facção setembrista que se opunha radical e, por vezes, injustamente, à igreja156:

155
“A partir do momento que contamos o que nos ocorreu (ou poderia nos ocorrer), criamos um personagem
com o qual nos identificamos e construímos uma história, um roteiro, uma fábula. É por isso que tantos
escritores se recusaram a fazer uma distinção entre autobiografia e romance.” (GASPARINI, 2009 in
NORONHA, 2014, p.189).
156
Sobre a posição centrista de Garrett em relação ao governo e a igreja, diz Monteiro (2010, p. 33-34):
“Alguns anos mais tarde, no contexto da grande desilusão de assistir, com a ajuda das medidas
drasticamente anticlericais da ditadura de D. Pedro e da facção setembrista, ao surto de filhos espúrios do
liberalismo como a intolerância antirreligiosa ( causadora de verdadeiro ‘cisma’ entre os Portugueses e o

86
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao
nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a
sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade,
uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era
sua amiga, mas o que havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o
não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo não lhe
servia nem o servia. Nós também errámos em não intender o
desculpável erro do frade, em lhe não dar outra direcção social, e evitar
assim os barões, que é muito mais daninho bicho e mais roedor. (...)
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição
dos frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e
aproveitar. O Progresso e a Liberdade perdeu, não ganhou. Quando me
lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os egressos
a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades-
não frades que foram, mas do que podiam ser. (GARRETT, 2010,
p.182 Grifos meus).
Além disso, o narrador, num momento importantíssimo da obra (o de introdução
da novela de Carlos e Joaninha), pergunta às leitoras se pode contar uma história de amor
estando com o coração vazio. É evidente, segundo os estudiosos da vida e obra
garrettianas, que Garrett refere-se ao seu romance com Adelaide Deville, jovem que,
vencendo muitos obstáculos sociais, relacionou-se com o autor, gerando-lhe uma filha
“ilegítima” (Garrett era legalmente casado com Luísa Midosi) e morrendo
precocemente157:
Como hei-de eu então, eu que nesta grave Odissea das minhas viagens
tenho de inserir o mais interessante e misterioso episódio d’ amor que
ainda foi contado ou cantado, como hei-de eu fazê-lo, eu que já não
tenho que amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança-
um filho no berço e uma mulher na cova? ... Será isto bastante? Dizei-
o vós, ó benévolas leitoras, pode com isto só alimentar-se a vida do
coração?
- Pode sim.

‘feudalismo agiota’), esbate-se, porém, em Garrett, sem perder-se, aquela acentuação das práticas
antievangélicas da Igreja e do conluio tirânico de Trono e Altar. Na Câmara dos Deputados a partir de
37, coloca-se frontalmente no ‘centro’; e, nomeado, em meados de 1838, vogal de comissão
encarregada de reetabelecer as relações com a Cúria Romana (...) Tais tomadas de posição,
acompanha-as corajosamente com a defesa de católicos perseguidos pela sua fé, o protesto contra as
misérias que sofriam os egressos (...) Poucos anos após, este mesmo Garrett que, por tal empenho católico,
já alguns acusavam de ‘defensor do miguelismo’ e ‘traidor à causa da liberdade’- via-se, porém, obrigado
a verberar em termos de intensos as más pretensões que ‘a mais perigosa e perniciosa de todas as
oligarquias, a eclesiástica’, vinha mostrando , querendo ‘torcer a direcção’, em ‘sórdido proveito de seus
interesses’, desse reacender da religiosidade e da tolerância para que tanto contribuía...”
157
“(...) a acicatar tal caminho, estiveram nos anos 40, período em que se insere a composição das Viagens
e de outras obras-mestras, como Frei Luís de Sousa e múltiplos poemas de coletâneas Flores sem fruto e
Folhas caídas, circunstâncias difíceis do viver íntimo do Escritor e do contexto português. No plano dos
afetos, Garrett viveu então uma crise intensa, que ecoa na sua criação ficcional. Em 1841, morria na flor da
idade Adelaide Pastor, a quase adolescente que pouco antes se lhe entregara, apaixonada, vencendo a
pesados preconceitos: dessa ligação ficara-lhe uma filha pequena ( e única), cuja condição de ilegitimidade
criara com certeza no pai- e extremoso pai foi Garrett- um sofrimento aumentado pelo provável remorso de
só ter dado à jovem falecida uma correspondência tíbia, de tão imerso andar na dissipação da voragem
social e de amores efêmeros, presos à vertente narcísica e ‘dandy’ da sua índole (...).” (MONTEIRO, 2010,
p.152-153).

87
- Não pode, não.
- Estão divididos os sufrágios: peço votação.
- Nominal?
- Não, não.
- Porquê?
- Porque há muita coisa que a gente pensa, e crê e diz assim a conversar,
mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e
nomeadamente no mundo...
Ah! sim...ele é isso? Bem as intendo, minhas senhoras: reservemos
sempre uma saída para os casos difíceis, para as circunstâncias
extraordinárias. Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para
sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão
celeste que me surpreendeu a alma por um mundo novo e estranho, e
do qual não podia dizer decerto como a rainha Dido à mana Anica:
Reconheço o queimar da chama antiga
Agnosco veteris vestigia flammae;
posto que a visão passou e desapareceu..., mas deixou gravada n’alma
certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não
passará daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou
suficientemente habilitado para cronista da minha história, e a minha
história é esta. (GARRETT, 2010, p.166. Grifos meus).
Estando, então, convicto de que é possível narrar sobre uma história de amor de
forma despretensiosa e não conectada com as próprias experiências, o narrador
garrettiano prossegue, apresentando-nos a uma personagem muitíssimo parecida consigo,
a qual nos revela, no fim da narrativa, conhecer pessoalmente. Tal qual o autor, Carlos
foi criado por um religioso, era estudante de direito, combatente liberal, exilado em
Inglaterra, passou pela Ilha Terceira nos Açores, e, apesar de ter gênio de poeta, tornou-
se prosaico. Ora, obviamente tantas semelhanças não são mera coincidência. A trajetória
de Carlos, jovem idealista que acaba por tornar-se mais um barão da constelação que
atormenta o narrador, representa a decepção política de Garrett que, de liberal convicto,
ao ver os efeitos do liberalismo implantado e se opor a eles, passa a ser acusado de
miguelista por seus antigos pares. Garrett experimenta a frustração na realização do que
pretendia (implantação do liberalismo), assim como Carlos que, não por acaso, perde sua
dignidade ou “morre moralmente158”, no mesmo momento em que se comemora a vitória
dos liberais na narrativa:

158
Sobre a morte simbólica de Carlos, Saraiva (1946-1982) discorre: “(...) Carlos vem efetivamente a
morrer, como desejava. Não morreu de uma bala, como se atreveu a esperar, mas de outra maneira(...)
Morrer é, neste caso, cair no cepticismo, fazer só coisas que não interessam a sério a pessoa que as faz, que
lhe não exijam a alma, porque a alma está fatigada deste esforço sempre renovado para se manter inteira
no meio das contradições e das antinomias. Carlos morre porque desiste de resolver o seu problema e
considera-o insolúvel. Não é geralmente desta maneira que se cai no cepticismo; supõe-se que o cepticismo
é uma atitude intelectual, resultante de uma experiência em que entra em jogo a nossa faculdade de

88
Na montagem tão bem pensada da obra, significativo é notar que a
sua ‘morte’ coincide com o triunfo liberal, a ponto de ser datada de
Évora-Monte, e de Maio de 1834 ( sem indicação de dia) - ou seja,
da localidade e do mês em que ( a 26) se assinou a Convenção que
pôs termo à guerra civil e estabeleceu a vitória dos Constitucionais
– essa carta a Joaninha: com estas coincidências , parece querer dizer-
nos a programada sintaxe da obra que no fim grotesco de Carlos está
paradigmaticamente figurado o de tantos militantes da causa liberal que
iam tornar daninho o triunfo, porque tinham perdido a alma na voragem
social, precipitando-se, como o primo malfadado da Menina dos
Rouxinóis, no ceticismo e na agiotagem. (MONTEIRO, 2010, p.181-
182. Grifos meus).
O destino de Carlos, “ceticismo e agiotagem”, é descortinado no momento em
que, tendo encontrado Frei Dinis, o narrador recebe de suas mãos a carta que o rapaz
enviara a Joaninha. Ora, o fato de o narrador encontrar-se com as personagens da novela
sobre a qual nos narrou reforça ainda mais o conflito, pretensamente insolúvel na obra,
relativo às fronteiras da ficção e da realidade. Se de um lado o narrador nos oferece a
prova de que as personagens sobre as quais se deteve realmente existiram, de outro,
desconfiamos da veracidade da história: Poderia a realidade ser marcada por tão grandes
peripécias? A questão não pode e nem deve ser respondida, porque Viagens na minha
terra pretende-se ser uma obra inclassificável, pretende-se ser um “mito”, isto é, deter-se
sobre uma “realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares” ( ELIADE, 2013, p.5):
Estas minhas interessantes viagens hão-de ser uma obra-prima, erudita,
brilhante de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de
o dizer ao leitor, para que ele esteja previnido; não cuide que são
quaisquer dessas rabiscadoras da moda que, com o título de Impressões
de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem
nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie. Primeiro
que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e
de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica
tudo.... quanto se não sabe explicar. É um mito porque-porque... Já
agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda
ideia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita
que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave,
pensada como um livro novo da feira de Leipzig, não das tais
brochurinhas dos boulevards de Paris. (GARRETT, 2010, p.99-100.
Grifos meus).

Certo é que o “mito” a que nos propomos analisar é construído por um autor de
carne e osso, que, ao representar-se no papel, não visa a esconder os mecanismos de que

conhecimento. Em Garrett, o cepticismo é voluntário, é um suicídio de fadiga, e revela a agudeza do drama


ou do problema em que ele se jogou. Tem um papel comparável ao da morte dos protagonistas nas tragédias
shakespearianas- único desenlace possível das contradições irremediáveis que não podem recuar nem
disfarçar-se.” (SARAIVA, 1982, p.77).

89
se vale à instauração de ambiguidades, antes a desvelá-los com apurada preocupação
estética, como um perfeito ironista: “Expressando a impossibilidade do certo, do
verdadeiro, do absoluto, como dados únicos da realidade, o ironista expressa sobretudo o
conflito, a crise.” (FERRAZ, 1985, p.20). Sobre a dramatização daquele que escreve, da
escrita e do que lê, convém que nos atentemos com mais cautela nos subcapítulos
seguintes.
3.1.2. O autor encenado

Ora, como já mencionado, o narrador com que lidamos, apresentando-se como


sendo o próprio Almeida Garrett e simulando a escrita do livro no momento em que se
nos dirige159, permiti-nos conhecer as suas motivações, as suas opiniões sobre o mundo e
as dificuldades que encontra à produção da obra que nos destina, fomentando o tom
irônico tão importante à compreensão da narrativa:
O narrador ( <<entertainer>>) enquanto joga vai explicando as regras
do jogo ( daí que a ironia incida grande parte das vezes sobre o fazer
literário): tudo se passa como se, num jogo de marionetes, o
encarregado de as movimentar, em vez de no fim nos explicar os
truques que empregou, acendesse de tempos a tempos as luzes,
interrompendo de certo modo o espectáculo, para explicar os
mecanismos que usa, mostrando claramente os cordelinhos que movem
os bonecos com que trabalha. (FERRAZ, 1987, p.162).

Cabe analisarmos em que medida o narrador revela os “cordelinhos” que usa e a


forma como ele se apresenta não só como alguém que escreve, mas também como um
literato. De saída, vale a pena destacar que o narrador se posiciona de forma bastante
crítica em relação aos seus contemporâneos e também ao que produz. Como já
mencionado no capítulo anterior, o narrador de Viagens critica as fórmulas de que se
valem alguns autores à produção dos romances e, por conseguinte, a pouca originalidade
que demonstram160. Além de expor tais fórmulas, reiteradas vezes, o narrador preocupa-
se em negar sua filiação à escola romântica, reconhecida por excessos sentimentais:

159
“Como vemos, o livro autocomenta o seu avançar digressivo, que nem de paragens liberta o relato da
história da casa do Vale; e se esta é dada como assente em fatos reais- ‘hei de contar como ele foi’, diz o
narrador fingindo não conhecer como tudo acaba e estar a escrever o seu livro no momento em que se nos
dirige-, deixa intersticalmente pairando a sugestão de que possa tratar-se de um romance cujo termo lhe
cabe decidir. Um efeito de autorreflexividade, como, aliás, das outras modalidades de intrusão do narrador,
é a quebra da ilusão narrativa, pela qual o leitor imerge na ficção, seduzido pela cadeia dos eventos e pela
índole das personagens e dos seus conflitos.” (MONTEIRO, 2010, p.233).
160
“Trata-se de um romance, de um drama – cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os
monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor,
nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo na natureza, colori-los das cores
verdadeiras da história...isso é trabalho difícil, longo, delicado; exige um estudo, um talento, e sobretudo
um tato!... Não, senhor; a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico. Todo o drama e todo o

90
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno
do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir
positivamente. Há a solidão que é uma ideia negativa... Eu amo a
charneca. Eu não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser-
ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.
Ora a charneca dentre Cartaxo e Santarém, àquela hora a que passamos,
começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse encanto indefinível.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei. Felizmente que
não estava só; e escapei de mais essa caturrice. Mas foi como se os
estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado
poético de distração, de mudez- cessou-me a vida toda de relação, e
não sentia existir senão por dentro. (GARRETT, 2010, 144-145.
Grifos meus).
Ora, além de negar ser romanesco ou romântico, o narrador permite que a
inspiração que lhe invade “estado poético de distração” torne-se motivo de riso ao leitor,
já que fazer versos equivaleria a uma “caturrice” da qual foi salvo. Também é interessante
notar que quando o viajante diz que não sentia existir senão por dentro, ele confirma o
que negou, que compartilha dos ideais românticos, dentre os quais destaca-se o culto à
subjetividade exacerbada. Contudo, ele compartilha do chamado “Zeitgeist”, espírito da
época161, reconhecendo seu potencial ridículo, isto é, desmistificando a concepção de
gênio criador e afastando-se, dessa forma, de qualquer ingenuidade que lhe possa ser
atribuída enquanto escritor.
Ademais, cabe notarmos que, a todo momento, o narrador reforça o seu arcabouço
cultural, a sua erudição. Quando se depara com a janela de Joaninha e ouve o cantar do
rouxinol, além de demonstrar o seu referencial cultural mencionando a lembrança de
Bernadim Ribeiro, o narrador demonstra o quanto a literatura habita a sua mente e o quão
criativo ele pode ser em consequência disso:
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e
desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir. Era ao pé
da dita janela! E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se
entre ambos um desafio tão regular, em estrofes alternadas tão bem
medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu
romance, esqueci-me de tudo mais. Lembrou-me o rouxinol de

romance precisa de: Uma ou duas damas, mais ou menos ingênuas. Um pai- nobre ou ignóbil. Dois ou três
filhos, de dezenove a trinta anos. Um criado velho. Um monstro, encarregado de fazer as maldades. Vários
tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios e centros. Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de
Dumas, de Eugênio de Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa ,
gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul- como fazem as raparigas inglesas
aos seus álbuns e scrapbooks, forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam
mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões
velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se... (estilo de pintor
pintamonos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.” (GARRETT, 2010, p.120-121).
161
Anatol Rosenfeld define “Zeitgeist” como: “um espírito unificador que se comunica a todas as
manifestações de culturas em contato, naturalmente com variações nacionais.” (ROSENFELD, 1996, p.
75).

91
Bernadim Ribeiro, o que se deixou cair n’ água de cansado. O
arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que
faltava para completar o romance? Um vulto feminino que viesse
sentar-se àquele balcão- vestido de branco- oh! branco por força... a
frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos
alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! é
amiudar muito demais a pintura, que deve ser a grandes e largos
traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da
idealidade poética... (GARRETT, 2010, p.159-160. Grifos meus).
Ora, a quebra de expectativa que se dá com a pergunta retórica referente aos olhos
da moça da janela, além de cômica, ressalta a autonomia que o autor tem diante da matéria
que ficcionaliza. A cultura e a autonomia do narrador-escritor também são evidenciadas
quando, elaborando uma lista de grandes nomes da literatura, ele discute sobre a diferença
entre o cismar poético dos escritores que sentem e daqueles que apenas imaginam:
Este sonhar acordado, este cismar poético diante dos sublimes
espetáculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às
almas de certa têmpera. Doce é gozar assim... mas em que doçuras da
vida não predomina sempre o ácido poderoso que estimula! Tirai-lho,
fica a insipidez; deixai-lho, ulcera por fim os órgãos: o gozo é mais
vivo, porque a acção do estímulo é mais sentida...mas a ulceração
cresce, o coração está em carne viva...agora o prazer é martírio. Infeliz
do que chegou a esse estado! Bem-aventurado o que pode graduar,
como Goethe, a dose de anfião que quer tomar, que poupa as sensações
e a vida, e economiza as potências de sua alma! Nesses porém é a
imaginação que domina, não o sentimento. Byron, Schiller, Camões,
o Tasso morreram moços: matou-os o coração. Homero e Goethe,
Sófocles e Voltaire acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação, que
não despende vida porque não gasta sensibilidade. Imaginar é sonhar,
dorme e repousa a vida no entretanto; sentir é viver activamente:
cansa-a e consome-a. Isto é o que eu pensava- porque não pensava em
nada, divagava- enquanto aqueles versos do Fausto me estavam na
memória, e aquela saudosa vista do Tejo e das suas margens diante dos
olhos. Isto pensava, isto escrevo; tinha n’ alma; isto vai no papel,
que doutro modo não sei escrever. (GARRETT, 2010, p.317-318.
Grifos meus).

O narrador, leitor voraz, discorre sobre Homero, Goethe, Sófocles e Voltaire – os


que dependiam da imaginação para escrever - e sobre Byron, Schiller, Camões e Tasso-
os que eram dominados pela emoção, grupo ao qual pertence se levarmos em
consideração a ponderação que faz ao fim de tudo: “Isto pensava, isto escrevo; tinha n’
alma; isto vai no papel, que doutro modo não sei escrever.” O narrador apresenta-se,
então, como um escritor que pensa sobre e sente o que escreve, algo que justifica a razão
pela qual nos expõe que repudia mentiras ou meia verdades:
Por certo, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os
ossos do santo ao seu túmulo, e os vem esconder na clausura das freiras,
por certo, digo, reconheceu já a tua natural perspicácia ao nosso Frei
Dinis, o frade por excelência- frade por teima e acinte. Pois esse era,

92
não há dúvida. Assim se passou aquela cena e assim ma contaram. Do
que mediara entre ela e o acontecido com o frade, Carlos, Joaninha, a
avó e a inglesa, disso é que nada pude saber. É uma grande lacuna na
nossa história; mas antes fique assim do que enchê-la de
imaginação. Oh! eu detesto a imaginação. Onde a crônica se cala e
a tradição não fala, antes quero uma página inteira de pontinhos,
ou toda branca- ou toda preta, como na venerável história do nosso
particular respeitável amigo Tristão Shandy, do que uma só linha da
invenção do croniqueiro. Isso é bom para novelas e romances, livros
insignificantes que todos lêem todavia, ainda os mesmos que o
negam. Eu também me parece que os leio, mas vou sempre dizendo
que não... Enfim, tornemos ao frade, e tornemos às minhas viagens.
(GARRETT, 2010, p.401- 402. Grifos meus).

Mais uma vez, tendo contado sobre o caso do desaparecimento do corpo de São
Frei Gil de seu lugar de origem, o narrador reforça a suposta veracidade da história que
nos narra. Esse reforço se dá quando o narrador se nega a expor sobre informações as
quais não teve acesso “Do que mediara entre ela e o acontecido com o frade, Carlos,
Joaninha, a avó e a inglesa, disso é que nada pude saber” , ressaltando que é contra a
imaginação e o preencher lacunas com dados ficcionais: “Onde a crônica se cala e a
tradição não fala, antes quero uma página inteira de pontinhos, ou toda branca- ou toda
preta”. Ora, além de realçar o seu apreço pela verdade, o narrador, romancista
reconhecido em Portugal, vale-se da ironia em sua mais pura forma, dizendo o contrário
do que diz, ao afirmar que novelas e romances são livros insignificantes. Podemos dizer
que, nesse momento, o narrador deixa transparecer em sua fala um discurso que não é
seu, dizendo não só o contrário do que afirma, mas mais do que fica expresso 162: seus
romances não são insignificantes e nem mentirosos, apesar de ficcionais.
Outra característica que talvez seja importante levarmos em conta a respeito do
narrador-autor que nos guia por caminhos pouco convencionais, é a sua instabilidade, que
também o aproxima, diga-se de passagem, a Carlos. E isto porque, tendo já dito que o
progresso depende do movimento das forças que regem o mundo, Materialismo e
Espiritualismo, o narrador não se posiciona de forma estanque a defender um ou outro
princípio. Na verdade, o que podemos notar naquele que nos narra é a consciência de
reconhecer que não existem verdades absolutas, o que não o torna cético163, mas bastante
desconfiado em relação a quaisquer princípios totalizantes:

162
“(...) pois não é de esquecer que a ironia, dizendo o contrário do que afirma, diz sobretudo mais do que
fica expresso.” (FERRAZ, 1987, p.16).
163
Contra as acusações de ceticismo, no prólogo da segunda edição da obra, consensualmente da autoria
de Garrett, encontramos a seguinte defesa ao escritor: “Tem sido acusado de céptico: é a acusação mais
absurda e que só denuncia, em quem a faz, ou grande ignorância ou grande má fé. Quando o nosso autor
lança mão da cortante e destruidora arma do sarcasmo, que ele maneja com tanta força e dexteridade, e que

93
Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio que num
mundo tão desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa
vida tão absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as
instituições, as conveniências dela, afectar nas palavras a exactidão,
a lógica, a rectidão que não há nas coisas, é a maior e mais
perniciosa de todas as incoerências. Não falemos mais nisto, que faz
mal, e acabemos aqui este capítulo. (GARRETT, 2010, p.385. Grifos
meus).
Ora, desconfiado da filosofia, da racionalidade e da exatidão das palavras, o
narrador-autor a que conhecemos só poderia produzir uma obra como Viagens. Obra
sobre a qual discorre muitas vezes, justificando as digressões que lhe atravessam e
convocando o leitor a atentar-se ao seu fluxo pouco linear. Atentemo-nos, então, às
viagens que o autor realiza aos mecanismos de produção de sua própria obra.
3.1.3. Obra despretensiosamente programática
Viagens na minha terra (1846) é uma obra conhecida, sobretudo, pelas
deambulações de seu narrador. Isto porque o viajante que nos guia de Lisboa a Santarém
e, depois, de Santarém a Lisboa, insistentemente interrompe as considerações sobre a
viagem geográfica que realiza para discorrer sobre diferentes assuntos. O que nos
convém, nesse momento, é nos atentarmos à consciência que o narrador (também autor)
demonstra acerca das particularidades de sua obra. Consciência já evidenciada no título
do romance que indica o substantivo “viagem” no plural e que, recorrentes vezes, torna-
se matéria de discussão do próprio narrador que, num diálogo democrático-impositivo
com o leitor, exige que ele se atente aos movimentos da obra:
Quase logo no início, é o sentido da transgressão que aparece
claramente afirmado, transgressão destinada a surpreender expectativas
viciadas no consumo de narrativas de viagens estereotipadas (...).
Significa isto que as Viagens são totalmente estranhas ao género da
narrativa de viagem? O título mostra que não é assim, mas revela
também, porque se encontra no plural, que esta é uma narrativa de
viagens sensivelmente diversa do habitual. (REIS, 1998, p.47).
Tal qual dito por Reis (1998), desde o início, o narrador nos adverte que o relato
de sua viagem será diverso do habitual. No capítulo cinco, de forma bastante irônica, ele
lamenta se as expectativas do leitor foram frustradas e, logo em seguida, diz que não
saberia compor uma narrativa de viagens linear e descritiva e que, se o soubesse, teria

talvez por isso mesmo, cônscio de seu poder, ele rara vez toma nas mãos- veja-se que é sempre contra a
hipocrisia, contra os sofismas, e contra os hipócritas e sofistas de todas as cores, que ele o faz. Crenças,
opiniões, sentimentos, respeita-os sempre. As mesmas suas ironias que tanto ferem, não as dirige nunca
sobre indivíduos (...).” (GARRETT, 2010, p.85).

94
mais o que fazer. Ora, fica evidente que o narrador considera o seu relato pouco
convencional muito superior ao que se produz em termos de narrativa de viagem:
Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas
VIAGENS; se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse
título, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco
a marco, as léguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos
edifícios? Algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? que te
resumisse a história de cada pedra, de cada ruína? ... Vai-te ao padre
Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o acharás em
amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros; e, quando
soubesse, tenho mais que fazer. Só tenho pena de uma coisa: é de ser
tão desestrado com o lápis na mão, porque em dois traços dele te dizia
muito mais e melhor do que em tanta palavra que por fim tão pouco diz
e tão mal pinta. Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante
e mais poética parte das nossas crônicas está escrita. (GARRETT, 2010,
p.318-319. Grifos meus).

Além de valorizar a sua obra em detrimento das demais que se produzem acerca
de viagens, o narrador destaca uma suposta superioridade da arte pictórica em relação à
literária: “ Só tenho pena de uma coisa: é de ser tão desestrado com o lápis na mão, porque
em dois traços dele te dizia muito mais e melhor do que em tanta palavra que por fim tão
pouco diz e tão mal pinta” ( GARRETT, 2010, p.318-319). Num procedimento bastante
ousado que reforça o caráter metaliterário do romance, ele deixa transparecer os limites
da representação da realidade, chamando a atenção de seus leitores à simulação que a
literatura comporta enquanto trabalho artesanal de um sujeito que pinta por meio de
palavras:
Essa narrativa de Garrett acaba assim por mostrar-se uma
produção em processo, em que há consciência da importância do
emissor e do receptor e em que se valoriza principalmente o lúdico, o
antipragmático, o fingimento, isto é, a arte como arte com que se
preocupa a ironia romântica. Uma voz exibe nela a consciência de
haver ali uma literatura que já não se pretende apenas
representação mas se confessa também simulação, resultado do
trabalho artesanal de um sujeito que produz uma arte de carácter
sabidamente fictício, distanciada e diferente da realidade, embora
elaborada com elementos dela retirados. (DUARTE, 2003, p.152-
153. Grifos meus).

Mais à frente, referindo-se à novela de Joaninha e Carlos, o narrador comenta


novamente sobre as digressões do livro e reafirma mais uma vez a sua autonomia de autor
não-sujeito a nenhuma escola:
Entraremos portanto em novo capítulo, leitor amigo; e agora não
tenhas medo das minhas digressões fatais, nem das interrupções a
que sou sujeito. Irá direita e corrente a história da nossa Joaninha, até
que a terminemos... em bem ou em mal? Dantes um romance, um drama

95
em que não morria ninguém era havido por sensabor; hoje há um certo
horror ao trágico, ao funesto, que perfeitamente quadra ao século das
comodidades materiais em que vivemos. Pois, amigo e benévolo leitor,
eu nem em princípios nem em fins tenho escola a que esteja sujeito,
e hei-de contar o caso como ele foi. Escuta. (GARRETT, 2010, p.336.
Grifos meus).

A obra, no trecho mencionado, assume-se digressiva e fiel aos fatos sobre os quais
se propõe a narrar, apesar de sabermos, por tudo o que o narrador já nos disse, ser
investida de ficcionalidade. Não importando se o final da novela de Joaninha e Carlos é
feliz ou triste, o narrador compromete-se: “hei-de contar como ele foi”. Contudo, logo em
seguida, no início do capítulo posterior, quando o leitor está preparado para adentrar
novamente na estória de amor dos primos, temos mais um comentário do viajante acerca
da obra que produz:
– ‘Escuta!’ disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo.
Mas não basta que escute, é preciso que tenha a bondade de se
recordar do que ouviu no capítulo XXV e da situação em que aí
deixamos os dous primos, Carlos e Joaninha. Neste despropositado e
inclassificável livro das minhas VIAGENS, não é que se quebre,
mas inreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo,
que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar
e seguir em tão imbaraçada meada. Vamos pois com paciência, caro
leitor; farei por ser breve e ir direto quanto eu puder. (GARRETT, 2010,
p.337. Grifos meus).

Ora, é cômico que o narrador-autor advirta aos leitores que eles não devem apenas
escutar, mas lembrar-se do conteúdo do capítulo XXV, estando eles sete capítulos à frente
(XXXII).Tendo total autonomia acerca do que escreve - primeiro em folhetim164- o
narrador ressalta a impossibilidade de classificação de seu livro, que justamente por ser
inclassificável, enreda o fio das histórias exigindo paciência (habilidade) dos leitores que
o têm em mãos. O que de certa forma aparece como sendo de caráter acidental, notamos
ser programático, isto é, as digressões, as “distrações” e o “sonhar acordado165” do
protagonista, constituem o valor da viagem e da obra ao próprio narrador - autor que, no
prólogo à edição livresca do romance, de forma pouco modesta, declara:
De tantas obras de tão variado género com que, em sua vida ainda tão
curta, este fecundo escritor tem inriquecido a nossa língua, é esta

164
“A publicação de uma obra em folhetim envolve problemas de natureza estratégica; os diversos capítulos
foram publicados inicialmente sob o signo da serialidade o qual, por sua vez, envolve o princípio da
fragmentação e estratégias de manipulação do leitor, assim como algumas características jornalísticas que
Garrett transportou para as Viagens na minha terra ( como o tom divagativo e desenvolvo de conversa).”
(DIAS, 1997, p.24-25).
165
“Sou sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe hei-de eu fazer? Andando, escrevendo:
sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de sonâmbulo, de soníloquo, de...”
(GARRETT, 2010, p.117).

96
talvez, tornamos a dizer, a que ele mais descuidadamente escreveu:
mas é também a que , em nossa opinião, mais mostra os seus
imensos poderes intelectuais, a sua erudição vastíssima, a sua
flexibilidade de estilo espantosa, uma filosofia transcendente, e por
fim de tudo, o natural indulgente e bom de um coração recto, puro,
amigo da justiça, adorador da verdade, e inimigo declarado de todo o
sofisma. (GARRETT, 2010, p.85. Grifos meus).

Notamos, pelo comentário do próprio autor a respeito da obra, que a narrativa,


pelas inúmeras digressões que lhe atravessam, cumpre o propósito de parecer descuidada,
mas são justamente as digressões que permitem com que nos deparemos com os imensos
“poderes intelectuais”, a “erudição vastíssima” e a “flexibilidade de estilo espantosa” do
autor, que se nos contasse marco a marco as léguas da estrada, não poderia ficcionalizar
tão abertamente as suas angústias pessoais, sociais e literárias. Ainda sobre a obra que
produz, convém que nos atentemos a um comentário do narrador-autor, que segue a
afirmação de que ele não acredita na lógica, nem na filosofia:
O final do capítulo antecedente é, bem o sei, um terrível documento para
este processo de cepticismo em que me mandaram meter certos
moralista de réquiem de quem tenho a audácia de me rir, deles e da sua
querela e do seu processo, protestando não me agravar nem apelar, nem
por nenhum modo recorrer da mirífica sentença que suas
excelentíssimas hipocrisias se dignarem proferir contra mim. Feita esta
declaração solene, procedamos. E quanto a ti, leitor benévolo, a
quem só desejo dar satisfação, a ti, se ainda te cansas com essas
quimeras, dou-te de conselho que voltes a página obnóxia, porque
essas reflexões do último capítulo são tão deslocadas no meu livro
como tudo o mais neste mundo. Dorme pois, e não despertes do
belo-ideal da tua lógica. É uma descoberta minha de que estou vaidoso
e presumido, esta de ser a lógica e a exacção nas coisas da vida muito
mais sonho e o mais requintado ideal da poesia. É que os filósofos são
muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos; o que
estoutros não são. Voltemos, voltemos a página com efeito, que é
melhor. (GARRETT, 2010, p.387-388. Grifos meus).

Defendendo-se do ceticismo que alguns “moralista(s) de réquiem” lhe


atribuem166, o narrador, num diálogo com o leitor, sugere que este talvez esteja cansado
de suas “quimeras” e que deveria desconsiderar as reflexões do último capítulo. É
importante que nos atentemos ao trecho salientado, sobretudo, quando o narrador nos diz
“porque essas reflexões do último capítulo são tão deslocadas no meu livro como tudo o
mais neste mundo.” Ora, podemos notar que, nesse momento, o narrador-autor legitima
a falta de linearidade de seu livro, destacando que esta, na verdade, espelha a falta de
encadeamento lógico dos fatos do próprio mundo. Seu relato de viagens pouco

166
Ver nota 161.

97
convencional, portanto, nada mais faz do que em sua própria forma, representar a
realidade caótica e pouco coerente que lhe serve de matéria. Além disso, é interessante
notarmos a ironia provocativa de que se vale o narrador para referir-se aos seus leitores.
Quando o narrador diz que o leitor pode voltar ou desconsiderar as páginas destinadas à
reflexão167, chamando-o “benevolente” e tratando-o como digno de se dar satisfação, o
viajante assume a autoridade e controle que tem sobre a própria narrativa. O imperativo:
“Dorme, pois, e não despertes do belo-ideal da tua lógica.”, subtende que os leitores
incomodados não atingiram o nível de reflexão no qual o narrador está. Assim como as
próximas declarações do narrador sugerem que, por mais que os leitores não estejam de
acordo, sua opinião não mudará: “É uma descoberta minha de que estou vaidoso e
presumido, esta de ser a lógica e a exacção nas coisas da vida muito mais sonho e o mais
requintado ideal da poesia.”( GARRETT, 2010, p.388). Ora, sobre a figuração do autor
como autoridade diante da obra que escreve e do leitor como aprendiz das normas que se
lhe impõem, discorreremos no subcapítulo seguinte.
3.1.4. O leitor aprendiz
Convém-nos atentarmo-nos ao fato de que, em Viagens na minha terra (1846), o
leitor (ou a leitora)168 é uma figura textual importantíssima à construção do sentido da
obra, porque o narrador viajante constantemente evoca os seus interlocutores, ora, como
vimos, prevendo-lhe as suas inquietações, ora atendendo as suas supostas solicitações
para, dessa forma, progredir em suas reflexões e/ ou descrições. Como bem dito por
Mendes (1999), apesar de todas as considerações do Garrett de papel acerca de seus
leitores basearem-se na leitura social que faz de seu público, o leitor da obra, dificilmente,
pode ser considerado como o seu receptor sociológico, antes parece afigurar-se como
elemento de orientação hermenêutica que não dispõe de liberdade de transitar pela obra
como bem entende, mas que tem sobre si uma imposição de leitura169:
Apeámo-nos com efeito; sentámo-nos, e eis aqui a história da menina
dos rouxinóis, como ela se contou. É o primeiro episódio da minha
Odisseia: estou com medo de entrar nele, porque dizem as damas e

167
No capítulo IV, ao interromper o relato acerca de sua viagem e refletir sobre a beleza de donzelas
modestas, o narrador-autor sugere aos seus leitores, impacientes, atitude semelhante: “ A minha opinião
sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar estas folhas, e passar ao capítulo seguinte, que é outra
casta de capítulo.” (GARRETT, 2010, p.117).
168
Segundo Reis, o narrador garrettiano faz diferença entre os leitores e leitoras, evocando as mulheres que
supostamente o leem em momentos específicos da narrativa: “Por vezes é a leitora que está em causa;
sintomaticamente as alusões à leitora ocorrem sobretudo quando se processa o relato da novela, susceptível
de ser apreendida como história marcada por traços do romanesco e sentimentalidade que justamente ( e
logo de início) o narrador se apressa a esbater.” (REIS,1998, p.42).
169
MENDES, Victor. Almeida Garrett- crise da representação nas Viagens na minha terra. Lisboa:
Cosmos, 1999, p.55.

98
os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto,
que em francês que há outro não-sei-quê... Eu creio que as damas
que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos;
mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu;
mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não
gostem, é porque não presta. Ainda assim, belas e amáveis leitoras,
intendamo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem
aventuras inredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma
história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu
conto para o seguinte. (GARRETT, 2010, p.161. Grifos meus).

No trecho supracitado, um dos muitos em que o narrador se refere aos leitores de


sua obra, o viajante declara estar com receio de iniciar a narrativa da novela da Menina
dos Rouxinóis devido à expectativa das damas e dos elegantes que dizem “que o
português não é bom para isto”. Numa atitude que a princípio se afigura modesta, o
narrador rapidamente disfere golpes contra às objeções que conjecturou: “Eu creio que as
damas estão mal informadas, e sei que os elegantes são uns tolos”, demonstrando-nos
que, sendo ele um autor nacional, sabe reconhecer os seus próprios méritos. Tendo
assegurado o seu valor, o viajante, ironicamente arrependido, reformula o que disse,
valorizando a opinião das damas em detrimento da dos elegantes “deles (os elegantes) me
rio eu: mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque
não presta”, reforçando, logo em seguida, às leitoras, que a narrativa da Menina dos
Rouxinóis não é um romance, de molde “romântico”, com o qual estejam familiarizadas,
mas apenas uma estória simples e singela sem nenhuma pretensão.
Mais adiante, tendo começado a narrativa da novela da Menina dos Rouxinóis, ao
apresentar-nos a Carlos, novamente o autor chama a atenção de suas leitoras:
O oficial... – Mas certo que as amáveis leitoras querem saber com
quem tratam, e exigem, pelo menos, uma esquissa rápida e a largos
traços do novo actor que lhe vou apresentar em cena. Têm razão as
amáveis leitoras, é um dever de romancista a que se não pode faltar.
O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos; posto que o trato das
armas, o rigor das estações e o selo visível dos cuidados que trazia
estampado no rosto, acentuassem já mais fortemente, em feições de
homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude. A sua estatura
era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa
um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de
homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo
sobretudo militar (...) Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a
nossas recordações- que essas gentes, prostituidoras de quanto
havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do
exército... por muito português demais talvez! deram-lhe baixa
para os beleguins da alfândega, reformaram-no em uniforme da
bicha! Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me

99
perdoem por interromper com ela o meu retrato. (GARRETT, 2010,
p. 245- 246. Grifos meus).
Prevendo, mais uma vez, as expectativas de seu público feminino e,
contradizendo-se ao dizer que descreverá o novo ator da estória sendo este um dever de
romancista com que não faltaria, o narrador o faz, mesmo tendo dito que a estória dos
primos não é um romance. Mas não o faz sem se entreter em considerações extra-
novelísticas, discorrendo sobre as alterações de mau gosto que fizeram no uniforme dos
militares e desculpando-se logo em seguida: “Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis
leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.” Ora, ao referir-se, mais uma
vez, às interlocutoras, pedindo-lhe desculpas pelas digressões que comete, procedimento
muitíssimo comum na obra, o narrador está chamando a atenção para elas. Isto é, está
direcionando olhares mais atentos dos (as) leitores (as) ao seu desvio programático, do
que ao relato da viagem geográfica que realiza ou da estória que se propôs a contar.
Podemos dizer, em outras palavras, que está disciplinando os (as) seus (suas) leitores (as)
a notarem o que torna a sua obra diferente, inclassificável.
Trecho muito interessante e bastante peculiar na obra é o que, tendo exposto a
confusão interior de Carlos, que se viu amando Joaninha e Georgina ao mesmo tempo, o
narrador, prevendo o julgamento negativo que seus leitores fariam do protagonista, toma
a defesa daquele que muitos entendem como seu alter-ego:
O que lhe ela fora, assaz to tenho explicado, leitor amigo e benévolo: o
que lhe ela será...Podes tu, leitor cândido e sincero,- aos hipócritas
não falo eu- podes tu dizer-me o que há-de ser amanhã no teu
coração a mulher que hoje somente achas bela, ou gentil, ou
interessante? Podes responder-me da parte que tomará amanhã na tua
existência a imagem da donzela que hoje contemplas apenas com os
olhos de artista, e lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos
contornos, a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada? E
quando vier, se vier, esse fatal dia de amanhã, responder-me-ás também
da parte que ficará tendo em tua alma essoutra imagem que lá estava
dantes e que, ao reflexo desta agora, daqui observo que vai
impalidecendo, descorando... já lhe não vejo senão os lineamentos
vagos...já é uma sombra do que foi... Ai! o que será ela amanhã? Leitor
amigo e benévolo, caro leitor meu indulgente, não acuses, não
julgues à pressa o meu pobre Carlos; e lembra-te daquela pedra
que o Filho de Deus mandou levantar à primeira mão que se
achasse inocente... A adúltera foi-se em paz, e ninguém a apedrejou.
(GARRETT, 2010, p.266- p.267. Grifos meus).
Direcionando-se aos leitores sinceros e não aos hipócritas (o narrador pressupõe
que existam pelo menos esses dois tipos de leitores acompanhando sua narrativa), o
viajante convoca seus interlocutores à empatia, reforçando a imprevisibilidade da vida e
dos sentimentos humanos. O narrador diz mais: adverte ao leitor que não julgue Carlos,

100
apelando a um exemplo dos evangelhos e, por meio dele, de certa forma, declarando que
o sujeito que lê é tão culpado quanto a personagem que apresenta. A ousadia provocativa
e cômica do narrador-autor reforça a ironia que se faz presente em todos os níveis da
narrativa e faz-nos notar que, se de um lado há a preocupação em agradar o leitor, seja
pelas satisfações dadas, seja pelos adjetivos que lhe são empregados, de outro, o viajante
está muito certo do valor de seu relato, da novela e, sobretudo, de suas digressões,
cabendo ao leitor não só adaptar-se, mas reconhecer a distinção da obra que tem em mãos,
conectando-se a ela.
Por certo, ora posicionando-se como autor e autoridade máxima sobre aquilo que
escreve, ora reafirmando e defendendo o caráter digressivo da obra que nos apresenta, ora
chamando a atenção dos leitores para voltarem e avançarem páginas, recordarem-se e
refletirem sobre a matéria da narrativa; o narrador-autor demonstra que, apesar de
aparentemente despretensiosa, Viagens é uma obra que discursa sobre a necessidade de
reformas culturais. Reformas que dizem respeito à maneira como se escrevem e se leem
os livros em Portugal:
O relato da viagem levado a cabo pelo narrador das Viagens na minha
terra é indissociável de um posicionamento crítico traduzido num
registo estilístico muito hábil: a coloquialidade que domina o discurso,
o tom de conversa amena com o leitor, as observações não raro
persuasivas disseminadas no texto, tudo isso concorre para fazer das
Viagens não exactamente uma obra didáctica, na acepção
pejorativa que a expressão pode encerrar, mas decerto uma obra
com evidentes intuitos de profilaxia e reforma cultural. Deste
modo, o narrador orienta o seu discurso no sentido de corrigir, no
leitor virtual, defeitos e vícios de consumo cultural, tentando
aproximá-lo o mais possível do perfil do leitor modelo. (REIS, 1998,
p.67.Grifos meus).
Dirigindo-se a leitores supostamente viciados em narrativas românticas, no
sentindo pejorativo que o narrador garrettiano lhes atribui, o viajante demonstra estar
consciente de que a obra que produz causará certo estranhamento ao seu público. Mas
propõe-se a, diversas vezes, discorrer sobre os mecanismos de produção dessa obra e a
guiar um leitor capaz de se deixar entreter e formar por aquilo que lê.
3.2. António Lobo Antunes e o inferno da indefinição
É consensual que Conhecimento do inferno (1980) integra a trilogia de obras mais
autobiográfica de António Lobo Antunes, junto à Memória de elefante (1979) e a Os cus
de Judas (1979). Contudo, convém determo-nos não ao estudo das correspondências entre
a realidade biográfica do autor e o romance estudado, mas à forma como o narrador,

101
homônimo do autor, transita entre o verossímil e o absurdo e, num labirinto de memórias
(reais ou não), reflete sobre o ato de escrever e sobre o fato de ser alguém que escreve.
A obra que sugere, desde a epígrafe original em inglês, ser ficcional “We do not
believe any good end is to be effect by fictions which fill the mind with details of
imaginary vice and distress and crime, or which teach it.” (ELIOT, 1860 apud
ANTUNES, 1880), enquadra-se problematicamente no espaço autobiográfico delimitado
por Lejeune (1975)171 e até mesmo, segundo algumas teorias, no espaço da autoficção172,
ao apresentar-nos a um narrador que tem o mesmo nome, formação, profissão e
experiências que o autor. A impossibilidade de ler a obra com lentes ajustadas ao
estritamente autobiográfico ou ficcional é reforçada ainda pela alternância da primeira e
terceira pessoas discursivas. Dessa forma, notamos que o incômodo dos leitores com a
ambiguidade do narrador parece ser compartilhado pela própria entidade que narra: por
vezes sujeito, por vezes objeto da narrativa.
Deslocado, o narrador viajante a que somos apresentados, como já dito, tem uma
biografia bastante semelhante à do nome do autor impresso na capa do romance. Biografia
que se conecta, em muitos aspectos, à realidade de seus leitores, já que o livro foi escrito
em 1980, pouco depois do fim da guerra colonial, e o protagonista é um dos muitos
retornados portugueses que presencia o fim de um ciclo e o início de outro no país. Para
discorrer sobre a conexão da obra com a biografia do autor e, por conseguinte, com a
realidade em que foi produzida, Seixo (2002) vale-se da noção de “sociotexto”. Segundo
a autora, diferentemente do contexto, ao qual se atém toda obra literária direta ou
indiretamente, o sociotexto está implicado numa obra quando notamos um
posicionamento moral implícito que parte do “eu” que narra, caraterística que podemos
destacar em Conhecimento do inferno, tanto pela denúncia social do horror da guerra
como pelo retrato horrendo que nos é pintado do Hospital Miguel Bombarda e do
tratamento a que são expostos os doentes mentais.
Tendo vivenciado a guerra, a frustração amorosa, a desilusão política e o exercício
da escrita tanto quanto Almeida Garrett, António Lobo Antunes produz uma narrativa
que, detendo-se sobre o tema da viagem por território nacional e apresentando também
dimensão autobiográfico-metaficcional, explora de maneira deliberada cenas absurdas.

171
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Publicações Dom Quixote, 2002, p.487.
172
“Admitiremos aqui, nos apoiando no quadro das narrativas construído por Phillipe Lejeune e
aperfeiçoado por Serge Doubrovsky, que a autoficção é inicialmente um dispositivo muito simples: ou seja,
uma narrativa cujo autor, narrador e protagonista compartilham da mesma identidade nominal e cuja
denominação genérica indica que se trata de um romance.” (LECARMÉ, 2014, p.68).

102
Cenas absurdas que dão um tom diferente ao seu romance do que podemos notar em
Viagens na minha terra. Convém que analisemos, portanto, a matéria literária originada
a partir de elementos autobiográficos do autor, bem como à transfiguração e distorção da
realidade anunciadas desde a epígrafe do romance.
3.2.1. Entre o Lobo real e o distorcido
Apesar de ter dito, em uma entrevista, que “No livro que é bom, o autor não está,
não se nota” (BLANCO, 2002, p.29), António Lobo Antunes é, sobretudo em sua
primeira trilogia, o protagonista de seus livros. Chamado de “António Lobo Antunes”
por Zé Manuel173, por um médico, que numa espécie de delírio o protagonista experencia
que o está examinando174, e por si mesmo ao simular a escrita de uma carta175, o narrador
viajante ao qual acompanhamos apresenta ainda outras semelhanças com o autor
empírico.
Divorciado, o narrador relembra constantemente de sua esposa:
Messines surgiu à sua frente, numa curva, desfocado pelo nevoeiro
do celofane do calor, e ele recordou-se da primeira vez que chegara
ao Algarve no dia seguinte ao casamento, e da flor de sangue no
lençol do hotel, pequena papoila aberta que luzia, vermelha contra
o azul liso, bordado de espuma, do mar. Sentados na varanda do
quarto, à noite, cheiravam no pescoço, nos cabelos, nos ombros um
do outro o sal dos músculos, os limos do púbis, a consistência de
peixe das coxas, fazer amor de aliança no dedo e sentir a tua aliança
na mão espalmada nos meus rins, esqueci-me do discurso do padre
mas conheço tão bem o teu sorriso, o latim inocente, a linguagem
de anjo do orgasmo rente ao trigo de um corpo devastado. Chegou
a Messines, nesse Agosto de 1970, no grande carro ronceiro emprestado
pela avó e que bamboleava estrada fora oscilações de berço. Os arbustos
das bermas atravessavam o perfil da mulher ao seu lado como se a
pureza do rosto se houvesse tornado de vidro transparente, cristal de
feições ligeiramente tingidas do tom moreno da pele, concentrando o
sol numa intimidade de fruto. (ANTUNES, 2004, p.56-57. Grifos
meus).

173
“- Este é o António Lobo Antunes- disse o Zé Manel na sua voz afectuosa e doce que transformava as
palavras em ternos bichos de feltro. Trazia Le Monde consigo como os tipos do século XIX as bengalas de
castão de prata, e eu pensava Le Monde é a gravata dele ao olhar-lhe a roupa lançada com descuido sobre
o corpo pequeno, a pulseira de cabedal, o cabelo escorrido sobre a gola da camisa.” (ANTUNES, 2004, p.
65. Grifo meu).
174
“O psiquiatra varreu as considerações dos discípulos com as costas da mão e sorriu: duas florinhas de
saliva surgiram, a espumar, nos cantos dos beiços: - O António não quer dizer o que está a sentir?” (Idem,
p.126. Grifo meu).
175
“Chega para todos, chega para todos o cabo estendeu-lhe o serrote de carpinteiro com que amputávamos
os feridos das minas para que ele trinchasse o defunto, o cadáver desfeito, horrorosamente queimado, do
Pereira, no acidente de unimogue vinte e quatro meses depois do nosso desembarque em Angola, perto do
Belo, a caminho da estrada de Malanje, no princípio de Janeiro de 1973, daqui a um mês ou dois no máximo
estou aí saudades para todos deste que se assina António.” (Idem, p.150.Grifo meu).

103
Esposa que não denominada como Luísa ou Isabel, outras personagens femininas
que o viajante evoca, em sua importância à construção do protagonista desde Memória
de elefante (1979), muito nos faz pensar em Maria José, primeira esposa de Lobo
Antunes. Zé, como ele a chama em muitas entrevistas, foi uma grande incentivadora de
sua carreira literária176 e, para falar sobre a relação que tiveram, coincidentemente o autor
usa uma expressão semelhante a que usou para descrever um dos temas centrais de
Conhecimento do inferno, a “incapacidade de amar177”.
A mim parece-me que a minha história com Zé é uma história de amor
e da impossibilidade do amor. Era um rapaz perdido, que volta da
guerra, que está desorientado e que não sabe o que fazer... Voltei da
guerra em 1973 e, no ano seguinte, foi a Revolução dos Cravos, o 25 de
abril. Nesse momento toda a gente queria ser livre e não se sabia o que
era a liberdade, nunca tinha havido. A liberdade passava pelo divórcio,
pela separação e por tudo isso. (BLANCO, 2002, p. 61. Grifos meus).

Além da presença da ex-esposa, a constante interlocutora do narrador é a sua filha


mais nova, Joana, que segundo Seixo (2010, p.100) é “a Beatriz deste Dante que se perde
nos infernos das memórias militares e clínicas”. Faz-se redundante dizer que esta
informação também corresponde à biografia de António Lobo Antunes, bem como a de
que a esposa e filha mais velha foram viver com ele em África por um período de tempo
durante a guerra. Período no qual Joana foi concebida178 e que é descrito no romance:
(Foi por essa época, Joana, que te fiz, numa cama militar de ferro
branco idêntica aos leitos do asilo, a qual gemia abominavelmente a
cada movimento protestos roucos de ferrugem. Fiz-te na mata, em
Marimba, à hora da sesta, enquanto a minha outra filha dormia sob o
mosquiteiro, e o meu corpo se fundia vegetalmente no da tua mãe do
mesmo modo que as mangueiras junto à administração de posto
misturavam o verde-escuro, sempre carregado de noite, dos seus ramos,
de uma noite espessa como um sumo de sombra, em cujo bojo vibrava
a aflição de crepes dos morcegos.) (ANTUNES, 2004, p.154-155.
Grifos meus).

176
“-Vivia com uma mulher, a minha primeira mulher, com quem partilhava todas as noites o que escrevia.
Maria José (Zé familiarmente), a mãe das minhas filhas. A minha história com ela foi de um entusiasmo
incrível. Ela tinha dezassete anos e eu vinte cinco, éramos duas crianças. Devo a ela a minha perseverança
na escrita. Se não tivesse sido por ela, pela enorme fé que tinha em mim, e que manteve até à morte, talvez
eu tivesse abandonado. Desde os dezassete anos, estava convencida de que eu ia ganhar todos os prémios
do mundo.” (BLANCO, 2002, p.56-57).
177
Ver nota 5.
178
Sobre a ida da esposa à África, diz António Lobo Antunes: “(...) depois de nascer a menina a minha
mulher veio para África comigo. O comandante não queria, mas eu mantive-me firme e consegui que ficasse
na fronteira. De qualquer modo, foi um período horrível porque ela adoeceu de paludismo e quase morreu.
(...) Mas, ao mesmo tempo, foi uma boa etapa, por estranho quer possa parecer, foi uma etapa de felicidade.
Para mim, ela era a única mulher, ali fizemos Joana, a nossa segunda filha, que nasceu a 4 de Dezembro.”
(BLANCO, 2002, p.84-85).

104
Além da evidente referência à família, a própria experiência da guerra e do
trabalho no hospital psiquiátrico remetem à biografia antuniana. E, por isso, apesar de o
objetivo do trabalho não ser o de investigar a vida do autor, alguns detalhes e episódios
biográficos merecem ser mencionados, porque claramente serviram de matéria ao
romance.
Começando pela complexidade estrutural da narrativa, convém que nos atentemos
ao que nos diz António Lobo Antunes quando interpelado a respeito do que aprendeu em
África: “- Para mim, para os meus romances, foi importantíssima a noção de tempo que
aprendi ali. Em África não existe passado nem futuro, só o imenso presente que engloba
tudo.” (BLANCO, 2002, p.96). Ora, a verdade é que a pluralidade da viagem tematizada
no romance, nosso objeto de estudo, enraíza-se justamente nessa temporalidade
abrangente à qual se refere o autor. Atentemo-nos a um dos trechos em que esse presente
totalizante é evidenciado:
Tinha passado os campos de Grândola talhados nas trevas como
órbitas ocas em cujo bojo as árvores e os insectos invisíveis se agitavam
com misterioso furor, e onde o céu se aparentava a um largo, ilimitado
estuário ao mesmo tempo turbulento e imóvel, tinha passado a vila de
cartão que os faróis obrigavam à rigidez de cenário de uma peça
acabada, e achava-se no refeitório do asilo, de pé no meio das mesas,
observando com alheada indulgência o meu rebanho de
condenados, enquanto outros jantares, noutros lugares, noutros anos,
me apareciam e desapareciam, confundidos, na memória, tal a
sobreposição de imagens num filme que houvesse abolido, de
súbito, o tempo e as distâncias: um luxo que os asilados se não podem
consentir porque os amputámos do passado e do futuro e os reduzimos,
por meio de injecções, de electrochoques, de comas de insulina, a
bichos obedientes de expressões trituradas pelo desinteresse e pelo
medo. De pé no meio das mesas aspirava o relento do urinol vizinho,
em que se mijava contra placas de pedra ao longo das quais escorria,
por intermédio de um sistema ferrugento de tubos, uma baba musgosa
de água que arrastava molemente os cagalhões por um veio de cimento,
na direcção de um ralo improvável: e pareceu-me, fitando as fezes que
boiavam devagar, que elas giravam interminavelmente em círculo no
asilo, através dos quatro ou cinco andares do asilo, da horta, da
farmácia, da cozinha, do salão nobre, da capela, giravam em círculo
empestando tudo do seu odor podre, exalando um grosso aroma de cárie
envenenada, idêntico ao dos mortos em África, nos caixões de
chumbo, a decomporem-se na arrecadação como alimentos
estragados. (ANTUNES, 2004, p. 142. Grifos meus).
Passando de automóvel por Grândola (presente) e descrevendo minimamente a
paisagem que contemplava de sua janela, o narrador, inesperadamente, está no refeitório
do Hospital Miguel Bombarda à hora da janta e lá sente que “outros jantares, noutros
lugares, noutros anos, apareciam e desapareciam, confundidos, na memória” como se

105
vivesse num filme em que o transcorrer do tempo e a distância são abolidos. Ora, não
tendo saído do refeitório, de repente está na casa de banho do Hospital e lá, pela força de
sua memória olfativa, sente que está em África. A sobreposição de lugares atinentes à
memória do narrador, durante todo o romance, confirma a noção de tempo a que Lobo
Antunes se referiu, aprendida, segundo o autor, a partir de uma experiência biográfica,
mas que projetada no papel, no romance, corrobora ao efeito alucinante da narrativa que
parece atingir seu ponto máximo na cena já mencionada179, mas ainda não citada na
íntegra, do restaurante Canal Caveira:
Atravessava então Sintra com a minha filha imóvel no banco, e as
pestanas delas faziam descer nas bochechas a mesma sombra oblíqua e
imóvel das árvores de Sintra, que surgem de repente dos lados da
estrada como corais submersos. O cabo desligou o maçarico com o
polegar enegrecido:
-É pecado comer os mortos, senhor doutor.
-Os pretos juram que a gente ganha dessa maneira as qualidades deles-
respondi eu.
-Um instantinho- justificou-se o sujeito dos pratos, cuja testa suada
se aparentava à superfície de uma panela ao lume.
Os médicos, os enfermeiros, as assistentes sociais, os psicólogos, os
terapeutas ocupacionais conversavam uns com os outros cortando
o cadáver do Pereira, sorrindo-se mutuamente a misteriosa e
incompreensível alegria dos carrascos. (...) – Como se sente no
hospital? – perguntou-me a esposa do chefe de equipa, a estender sobre
a carne do soldado morto uma chuva doirada de molho. (...)- Eu cada
vez que lá vou com meu marido penso que é m problema de hábito,
sabe como é? A gente acostuma-se a tudo.
- Não está ninguém lá dentro- dizia a miúda no interior do jazigo de
família, no Dia de Finados, batendo os nós dos dedos na madeira oca.
(ANTUNES, 2004, p.145. Grifos meus).

Ora, dentro do restaurante em Sintra, o narrador, depois de ter perguntado acerca


do bife que pedira à sua refeição, lembra-se de uma viagem que realizara com a filha
pelos arredores; de uma suposta cena de canibalismo em Angola; de uma roda de conversa
de profissionais da saúde mental, também canibais, ao mesmo tempo em que reaviva a
cena de uma garota que diante do caixão dos pais, não tem outra reação se não pensar que
está vazio. As imagens dissonantes às quais somos apresentados têm em comum a
brutalidade da carne, da vida e da morte, contudo só estão conectadas, porque o que está
sendo representado não é o mundo exterior, mas o interior do protagonista que ultrapassa
distâncias espaço-temporais num presente guiado por sua subjetividade adoecida.
Ora, a conjugação do universo bélico ao do hospital, evidente nos dois trechos
analisados e em toda a narrativa, permite que nos atentemos a outro aspecto, na verdade,

179
Página 67 da dissertação.

106
episódio autobiográfico, explorado como matéria de suma importância ao romance: o
suicídio. Tendo reforçado, na entrevista concedida a Maria Luísa Blanco, que os suicídios
durante a guerra eram relativamente comuns180, sobretudo quando os soldados escapavam
de perigos extremos, temos como temática central do capítulo décimo do romance, o
suicídio de um soldado em Mangando, suicídio que, de fato, o autor presenciou enquanto
foi combatente181. A centralidade do episódio é indicada, dentre outros aspectos, pela
primeira frase do capítulo décimo, que seguido de um episódio de suicídio no Hospital
Miguel Bombarda no final do capítulo nono182, inicia-se com o seguinte período, que se
tornará uma espécie de refrão: “- Porque é que as pessoas se matam? – perguntou o
alferes.” (ANTUNES, 2004, p.203). À essa pergunta, uma das respostas mais complexas
talvez seja a do próprio narrador-personagem que, junto aos demais combatentes, divide
o cômodo com o cadáver do suicida: “- Os mortos gostam de morrer - disse eu- , gostam
de tornar a sentir os sobressaltos desesperados da agonia.” (ANTUNES, 2004, p.206)
A crueldade da polícia política (PIDE), sobre a qual Lobo Antunes discorre em
muitas de suas falas públicas183, também é evidenciada na obra, sobretudo no capítulo
oitavo, em que é descrita uma cena de extrema violência, na qual o narrador e outros

180
“É claro que tinha medo de morrer, muito medo, mas isso não tem nada a ver com a coragem. Recebi
louvores na guerra. O problema, penso eu, é não ter medo de ter medo. Recordo quando saímos para detectar
minas: um tinha de ir à frente para as detectar, o rebenta-minas, e nunca ouvi ninguém dizer que não queria
ir ou avançar a desculpa de estar doente (...) Depois do primeiro ano, que foi muito, muito violento,
passámos para um lugar mais tranquilo e então foi muito curioso porque começaram os suicídios. Enquanto
estavam na batalha e corriam o risco de morrer, ninguém se matava, mas quando passavam para uma
situação mais serena, tinham o desejo de atentar contra a vida. Lembro-me de um soldado negro que disse:
<<Boas noites, senhores!>> e <<pum>>, disparou. Conto isso num dos meus livros, e também noutros, há
alguns episódios da guerra que contei nos meus romances.” (BLANCO, 2002, p.81-82).
181
“Na guerra havia um período de intensos combates e quando o batalhão estava cansado e com muitas
baixas, éramos mudados de lugar, e então mandaram-nos para um lugar que aparece em O Esplendor de
Portugal e que se chama Baixa do Cassanje que era de uma beleza extraordinária. Ali não havia guerra, só
a ameaça, e os soldados começaram a suicidar-se. Quando viviam com a presença quotidiana da morte não
se suicidavam e quando a ameaça das bombas e as emboscadas se atenuou começaram a suicidar-se. Contei
isso em Conhecimento do inferno. As condições de vida eram muito más, por vezes bem havia nada para
comer; a única coisa que nunca faltava e o Exército nos proporcionava, eram cigarros. No entanto, os
soldados nunca protestavam.” (Idem, p.155).
182
Tendo assumido a posição de um paciente recém-internado no Hospital Miguel Bombarda, que não vê
sentido ao tratamento a que lhe submetem, o capítulo nono termina com anunciação de que o narrador se
suicidará, algo que é comprovado no capítulo décimo:
“-O senhor Valentim vai recitar um poema da sua autoria
as próprias órbitas com que me fita adquirem o tom baço e rugoso do gesso, o tom liso, unido e cego do
gesso, encosto de leve o vidro ao pulso, aos tendões e às veias salientes e tenras do pulso
-O senhor Valentim vai recitar um poema da sua autoria
sinto o braço dele contra o meu braço, o ombro dele contra o meu ombro, não existe família, não existe
emprego, não existe casa. Dê aqui uma ajuda digo eu a apontar o vidro com o queixo, dê aqui uma ajuda
que isto sozinho não vai lá.” (ANTUNES, 2004, p.202).
183
“A polícia política era terrível, convidavam-nos a presenciar as torturas, faziam barbaridades e, ao
mesmo tempo, ocultavam a informação, não nos passavam informações sobre nada.” (BLANCO, 2002,
p.97-98).

107
combatentes portugueses agridem três negros em Marimba184 e, temendo a punição da
supervisão, tornam-se motivo de piada ao representante da polícia:
-Vocês deviam ter tido mais cuidado- aconselhou amigavelmente o pide
examinando os corpos em úlcera dos negros. – Há maneiras de fazer as
coisas sem deixar marcas.
Sorria da nossa ingenuidade, da nossa inexperiência: há maneiras de se
fazer as coisas sem se deixar marcas. Um electrochoque, por exemplo,
não deixa marcas. Um coma de insulina não deixa marcas. Dez anos de
psicanálise não deixam marcas: são formas educadas de matar as
pessoas, formas decentes, aceitáveis. Nem uma cicatriz e os cadáveres
continuam a falar, a trabalhar, a produzir filhos, definitivamente
assassinados mas completamente bons. (...)
-Para a próxima- sugeriu o pide- arreiem-lhes só na planta dos pés. O
efeito é o mesmo e não se topa. (...)
-Não pensem mais nisso- disse o pide. – Quem é que se importa com
pretos? (ANTUNES, 2004, p.177-178).
Junto ao retrato de uma realidade brutal, em que se busca maltratar pessoas “sem
deixar marcas”, é interessante que o capítulo, que também tematiza memórias afetivas do
narrador, culmine, assim como a cena do restaurante Canal Caveira, num momento de
delírio da personagem. Momento em que ele se sente castrado, como uma espécie de
autopunição185, por um grupo de psicanalistas e no qual as lembranças do hospital e da
guerra conjugam-se, tornando-se um pesadelo só:
– Abaixo o pénis-baliu ela.
E de um só golpe, apoiada por uma vingativa e entusiástica salva de
palmas, desembaraçou-me de cem gramas inúteis.
Acendi o candeeiro: o corpo dobrava-se, gorduroso, numa pasta
pegajosa de suor, como quando a febre desce e os objetos readquirem,
a pouco e pouco, a consistência e a forma habituais. Deviam ter já
transportado o doente para a casa mortuária, e avisado ao telefone
a família.
- Era para lhes comunicar que o vosso pai está curado.
Saí da cama, fui ao quarto de banho, e enrolei uma toalha nas coxas para
estancar o sangue. Grossas gotas mornas escorriam-me dos dedos.

184
A cena da tortura dos três negros nos é descrita dessa forma: “Recebeu o estetoscópio do enfermeiro,
introduziu as olivas nos ouvidos, experimentou o diafragma raspando-o com a unha do indicador, e ao
aplicá-lo no peito do doente veio-lhe de súbito à memória o dia 13 de Outubro de 1972, em Marimba, na
Baixa do Cassanje, Angola, quando os oficiais, empurraram os três negros para o posto de socorros e os
obrigaram a estender-se no chão, lado a lado, no exíguo espaço entre a marquesa e a parede. Eram os três
negros que roubavam a roupa, o dinheiro, os objetos pessoais dos alferes ao longo desse comprido segundo
ano da guerra (...) Os três negros levavam porrada desde há horas por roubarem a roupa, o dinheiro, os
objetos pessoais dos alferes, murros chibatadas, insultos da companhia inteira, exausta por muitos meses
de guerra (...)..Faltava dinheiro, faltavam calças, faltavam camisas, apodrecíamos de parasitas, de
paludismo, de água choca, de medo, e os três negros, com as feições irreconhecíveis pelos inchaços das
pauladas, eram os culpados dos tiros, da angústia, da injustiça, da estupidez da guerra, e como tal desatámos
a deixar tombar sobre os seus peitos, sobre os ventres, sobre as coxas, pontas acesas de cigarro, fósforos a
arder, morrões de cinza, que pregueavam a pele de bolhas translúcidas que se elevavam e estalavam.”
(ANTUNES, 2004, p.172-173).
185
“A descrição da morte dos três negros implica semanticamente, com teor autopunitivo, o episódio de
verificação de um óbito no hospital, pelo narrador, a meio da noite, na sequência do qual tem um sonho de
castração.” (SEIXO, 2002, p.86).

108
-Boa noite, nosso tropa- murmurou um sopro ao meu ouvido.
E tombado sobre o lavatório distingui os três negros de Marimba,
sorrindo-me mansamente na reverberação dos azulejos.
(ANTUNES, 2004, p.180-181. Grifos meus).

A experiência como psiquiatra, sendo o Hospital Miguel Bombarda definido como


o inferno anunciado no título do romance, também é um tema recorrente nas entrevistas
que o autor concede, bem como o poder que os médicos têm sobre os doentes, é objeto
de crítica de Lobo Antunes que ouviu de seu amigo, Daniel Sampaio, uma frase que
aparece reiteradas vezes, com algumas modificações, em Conhecimento do inferno: “Os
psiquiatras são luxos tristes”:
- A psiquiatria serviu-lhe para compreender melhor a natureza humana
ou não acredita nela?
-Não, creio que não serve. A mim, surpreende-me o poder médico.
A psicoterapia dá-me um poder praticamente absoluto sobre os
doentes. O mais estranho para mim foi sempre o conceito de
<<normalidade>>, o que é ser normal. Daniel Sampaio dizia-me:
<<Os psiquiatras são luxos tristes.>> Escrevi todo um romance
sobre esses luxos tristes. Um dos problemas é que os psiquiatras
transformam uma técnica de tratamento, por exemplo, a psicanálise,
numa maneira de explicar o mundo. E a psicanálise está a converter-
se noutra Igreja, da qual fiz parte algum tempo. Uma igreja que parece
que está a morrer por falta de renovação geracional, como o Partido
Comunista, como a Igreja católica. (BLANCO, 2002, p.198. Grifos
meus).

Tanto a presença do amigo quanto a forte crítica aos psiquiatras e psicanalistas


são tematizadas no romance que os apresenta como cadáveres com prestígio, portadores
de uma medicina inútil e mais adoecidos do que os seus próprios pacientes:
- A Psiquiatria é uma treta- afirmou o pai. – Não tem bases científicas,
o diagnóstico não interessa e o tratamento é sempre o mesmo.
- Já reparaste - perguntou o amigo- que os psiquiatras são malucos
sem graça?
Trabalhavam ambos em Santa Maria nessa altura e os psiquiatras
espantavam-nos quotidianamente por fora e por dentro, a maneira de
falar, de andar, de vestir, a profundidade de pacotilha de conceitos, os
pequenos jogos sussurrados pelos corredores, as alianças perversas que
se faziam e se desfaziam, as inimizades, os ódios. As pessoas
cumprimentam-se com um sorriso e esventram-se nas costas umas das
outras destilando a crueldade escura e porca, repugnante dos
cadáveres, enredados nas barbas de Freud numa admiração
pegajosa. Via os psiquiatras, achava os que os consultavam mais
saudáveis do que eles, afligia-o que os vivos se abraçassem por
ignorância aos mortos, na expectativa de um alívio impossível.
(ANTUNES, 2004, p.54-55. Grifos meus).
Ainda sobre a psiquiatria e fazendo-nos perceber que a opinião do narrador
viajante do romance é a mesma do autor, vale a pena nos atentarmos a um comentário

109
bastante radical de António Lobo Antunes acerca de seus colegas de profissão. Segundo
ele, os psiquiatras só seguem tal carreira para esconjurar a sua própria doença mental:
Neste país há uma grande necessidade de mitos, quanto mais não seja
para os destruir. Um dos mitos mais fortemente enraizados é o do
psiquiatra. É preciso mostrar que o psiquiatra não é uma figura mítica,
omnipotente e securizante. Na fantasia das pessoas é alguém que as
ouve e ajuda a viver um pouco melhor. Mas a realidade, essa, é bem
diversa. São normalmente pessoas frágeis que se formam em
psiquiatria para esconjurar a sua própria doença mental. Isso só
não é evidente porque ele se faz rodear de um certo ritual.
(LETRIA, 1980, apud ARNAUT, 2008, p.33. Grifos meus).

Ora, tendo tal opinião a respeito da especialidade médica que escolheu seguir,
entendemos melhor o porquê o autor constrói uma personagem que, apesar de representar
a razão, demonstra estar, ela mesma, transtornada. Entendemos também a falência
cognitivo-racional que presenciamos no desenvolvimento formal da narrativa que,
circular e fragmentada, instaura um “um universo predominantemente mágico186”, apesar
de estar intrinsicamente ligada ao mundo real que lhe deu origem.
Por fim, cabe aludirmos a experiência de retorno do autor a Portugal, depois da
guerra, que como já mencionado na dissertação187, ele associa, no romance e nas
entrevistas, ao retorno dos pacientes à realidade fora do hospital. Quando interpelado
sobre a viagem que tematiza pelo interior de Lisboa, em Memória de elefante (1980), o
autor diz algo sobre os lugares que povoam a sua memória, sobretudo infantil, que parece
ser aplicável ao que notamos no narrador, retornado de guerra, quando ele chega à Praia
das Maçãs no fim de Conhecimento do inferno (1980):
Entre o passado e o presente, é a dificuldade, a <<décalage>> enorme
que a gente encontra entre o continuar a viver no espaço da infância e a
dificuldade de viver no espaço actual. Isso é muito patente, por
exemplo, nos retornados, que eu vejo no Hospital Miguel
Bombarda. Continuam a viver num espaço diferente do nosso e daí
toda uma problemática que é extremamente difícil de apreender se
a gente não tiver em conta a <<décalage>> entre o nosso passado e
o nosso presente e a dificuldade que temos de conciliar. O tempo em
África tem uma textura completamente diferente daqui e o tempo da
infância também. Quando a gente diz que a cidade se torna
inabitável, às vezes pergunto-me a mim próprio até que ponto é que
não somos nós que nos sentimos inabitáveis, até que ponto nos não
estaremos a identificar com a cidade. O que não quer dizer que a
cidade não esteja a ficar muito feia, não haja prédios horrosos e gaiolas
horríveis e muita gente. Mas dá-me a sensação que tem muito [a] ver
conosco e com nossa indisponibilidade interior, com o
desaparecimento de uma certa inocência e da capacidade de olhar

186
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.75.
187
Página 78 da dissertação.

110
as coisas com olhos virgens. (...) Ficamos demasiado sábios,
demasiado calculistas, em certo sentido, sobretudo demasiado cínicos.
Mas como ainda não perdemos totalmente a inocência, daí vem
uma <<décalage>> que traz um rasgamento interior e uma divisão
interna que nos faz constantemente sofrer muito. É como se a gente
estivesse, constantemente, a balouçar entre duas situações, com toda a
dificuldade e toda a angústia que isso traz consigo. (SILVA, 1979 apud
ARNAUT, 2008, p.12-13. Grifos meus).
Ora, a “indisponibilidade interior” a que o autor se refere, parece reverberar na
atitude do narrador de Conhecimento do inferno quando ele chega à casa em que passara
a infância na Praia das Maçãs. O estranhamento em relação à casa paterna, bastante
simbólico, demonstra o mal-estar do protagonista que está dividido entre o passado e o
presente, a inocência da infância e o cinismo aprendido. Mais adiante, o narrador chega
a culpar a viagem e o cansaço por sua desordem interior:
É a viagem, pensei eu, andei quilómetros a mais, sozinho demais, ao
longo deste dia, é o vodka do bar de Lisboa a trabalhar-me na
cabeça, são os meus ouvidos que zumbem de cansaço, é o protesto,
o gemido, a zanga, a revolta do meu corpo. É o vento do Algarve, o
murmúrio dos campos do Alentejo, o rumor das folhas e do mar que se
confundem, se combinam, se mesclam, num chamamento semelhante a
um apelo ciciado, e que cuido ouvir aqui, deitado no colchão, semi-
adormecido na manhã que cresce, sob a forma de uma voz que me
desperta. (ANTUNES, 2004, p.248. Grifos meus).

Contudo, encontramos na narrativa inúmeros sentidos ao seu transtorno, sendo um


deles o ofício a que o protagonista se dedica quando não está no hospital e sobre o qual
também reflete ao longo do trajeto que percorre: o de escritor. Analisemos mais
atentamente as observações que, assim como o narrador garrettiano, o viajante de
Conhecimento do inferno faz acerca do ato de escrever.
3.2.2. O escritor, a literatura e a loucura
Sendo a metaliterariedade de uma obra reconhecida pelo grau de reflexão que
apresenta sobre a literatura e o próprio fazer literário 188, e uma das características dos
romances pós-modernos, que continuamente expõem-se como ficção189, é interessante

188
No volume II do Dicionário da obra de António Lobo Antunes (2008), considerando a importância do
tema da metaliterariedade/ metaficção na obra antuniana, diz-nos Seixo: “Nos romances, a metaficção liga-
se muitas vezes à convocação da literatura, em circunstância ou em intertextualidade, e à reflexão sobre a
escrita.” (SEIXO, 2008, p.387).
189
“Se tivermos em mente, como já registámos em outro momento, que à estética post- modernista
correspondem dois modos ou dois impulsos essenciais- um, mais moderado, outro mais celebratório-, então
parecem não restar dúvidas sobre o facto de os romances de Lobo Antunes caminharem no sentido de
crescentes afinidades com o segundo. Este, largamente criativo, tenta avaliar o mundo sem, contudo, lhe
impor uma ordem pré-estabelecida, caracterizando-se por longas e imbricadas frases, verbalizações
delirantes, repetições, montagens e colagens; o impulso anterior, através de vários exercícios
metaficcionais, leva a que a obra continuamente se exponha como ficção.” (ARNAUT, 2009, p.24-25.
Grifos meus).

111
que em Conhecimento do inferno (1980) encontremos rastros do que António Lobo
Antunes diz sentir falta: “Sinto a falta de livros sobre escritores e sobre literatura, livros
que me ajudem a compreender um autor. (BLANCO, 2002, p.188). E isto porque, desde
os primeiros capítulos do romance, a escrita é evocada como atividade dura, ingrata, à
qual o narrador se dedica sem ter esperança de ser bem-sucedido:
Cruzou uma ou duas aldeias com nomes estranhos, uma capela solitária
num cabeço, magros campos estéreis de cultura, e lembrou-se da casa
sem água nem electricidade perto da Lagoa, a casa da Bia Grade, com
o balde do poço constantemente assaltado pejo zumbido macio das
abelhas, onde, no Verão anterior, passara três semanas com a Isabel
para acabar a Memória de Elefante, que arrastava atrás de si havia
meses num desprazer de maçada, construindo capítulo a capítulo
na lentidão penosa do costume, à espera da chegada das palavras
como um mártir de revelações improváveis. (...) Eu escrevia o dia
inteiro, cá fora, junto ao tanque, nas traseiras da casa, recuando ou
avançando a cadeira consoante a posição do sol, o papel enrolava-se a
crepitar sob a caneta como se ardesse, e ao levantar a cabeça, de vez em
quando, via a terra pobre e sem grandeza, a terra feia do Algarve curvar-
se, humilhada, sob a sumptuosa cintilação do céu, cuja pele transparente
luzia à maneira de uma lantejoula sem limites. (ANTUNES, 2004, p.52-
53. Grifos meus).

Além do “desprazer de maçada” que envolve a atividade de escrever, bem como


“à espera da chegada das palavras como um mártir de revelações improváveis”,
declarações que em muito nos fazem lembrar de respostas dadas por Lobo Antunes
quando interpelado acerca de como se sente escrevendo190, o narrador nos diz o nome da
obra em que trabalhava no passado, Memória de elefante (1979), reforçando, dessa forma,
textualmente, a sua identidade extratextual.
O trabalho difícil, que dura o dia inteiro e que tem de ser concebido em total
solitude, como a do pombo de Tomar, de acordo com o que nos é dito pelo narrador, nem
sempre é publicado, mas mais do que isso, envolve uma certa áurea de mistério:
(...) pensei na agonia do pombo em Tomar, sozinho no telhado fronteiro
à messe, que todas as tardes, ao instalar-me à mesa do quarto para
escrever o longo romance que não publicaria nunca, que não
publicarei e do qual todos os meus livros se alimentam, me parecia
mais magro, mais amarrotado, mais exausto, arrepiado pelo bafo de
Junho e pela febre, pensei que fui chamar o chefe dos empregados, lhe
mostrei o pombo (...)” ( ANTUNES, 2004, p. 72. Grifos meus).

190
Seguem duas declarações de Lobo Antunes: “Escrever é uma droga dura. O problema é quando não se
escreve, quando não se trabalha tudo o que se quer.” (BLANCO, 2002, p.118).
“É uma razão de ser e uma servidão. Nos dias felizes, a mão pensa, a mão escreve, a mão decide. Mas as
primeiras duas ou três horas são perdidas, sou muito crítico. Tenho que me cansar primeiro. É preciso
cansarmo-nos, trabalhar muito para haver dias felizes.” (COELHO, 2002 apud ARNAUT, 2011, p.259).

112
Será o longo romance nunca publicado de que todos os seus livros se alimentam
a própria vida do narrador? A resposta não nos é dada. Mas é fato que o narrador viajante
ao qual acompanhamos já é reconhecido como escritor, seja pela menção à Memória de
elefante e à publicação de outros livros, seja pelo tratamento que recebe de Zé Manuel no
capítulo terceiro.
Além disso, duas concepções de literatura parecem vigorar na obra. Uma é
exposta, justamente, quando o narrador discorre sobre a figura do escritor Luiz Pacheco
no bar de Zé Manuel. Além de fazer despontar na obra certa intertextualidade ao evocar
o nome de um autor real, quando o escritor entra cena, sendo motivo de deboche entre as
demais pessoas do bar por estar bêbado, o narrador antuniano intervém em sua defesa,
atestando que Luís Pacheco é superior aos que dele troçam:
(...) o escritor Luiz Pacheco entrou, com dois sacos de plástico repletos
de jornais nos punhos, um boné à Lenine na cabeça, os olhos
protuberantes de tartaruga magra atrás dos óculos que os impediam de
tombar no chão num ruidozinho de louça. Vinha perdido de bêbado e
as mulheres e os homens frustrados e azedos da Cervejaria
Trindade, as mulheres e os homens sem talento da Cervejaria
Trindade troçavam dele, remexiam-lhe nos sacos, tiravam-lhe o boné,
puxavam-lhe as abas da gabardina enodoada, riam-se-lhe nas costas o
azedume de leite podre da inveja ou apertavam-lhe a mão como se
aperta a mão aos augustos no circo, num misto estranho de
condescendência e desprezo.
–Caralho- pedi eu ao Zé Manuel-, pela tua saúde tira o velho das
unhas destes cornos. São os netos dos cabrões que jogavam pedras
no Rato ao Gomes Leal, são os impotentes que se queixam de que
neste país só se faz merda e que quando aparece alguém que não
faz merda desatam a rosnar de fúria e de ciúme diante da tesão
alheia por sentirem o trapo murcho nas ceroulas, por não serem
capazes, por não serem definitivamente capazes de enconar a vida.
(...) O escritor Luiz Pacheco oscilou ligeiramente nas pernas
inseguras: o seu orgulho pungente, a sua insuportável ironia,
reduziam os pénis dos impotentes a engelhadas coisinhas moles de
mijar, enroladas nas calças numa vergonha de lombrigas. Uma
farripa descolorida oscilava como uma pluma contra os azulejos da
parede. Deitou a gabardine para trás, desembaraçou-se dos sacos e
esbofeteou-me a cara, com ambas as palmas, num júbilo divertido:
-Ah rapazinho.
E éramos os três únicos sujeitos vivos naquele cemitério de
tremoços. (ANTUNES, 2004, p.65. Grifos meus).

Muitos aspectos chamam a atenção no trecho supracitado. Luiz Pacheco é tratado


pelo narrador, que sabemos irreverente, como “escritor Luiz Pacheco” pelo menos duas
vezes e tal repetição não nos parece gratuita. Desde a aparição da personagem no bar, o
narrador caracteriza aqueles que dele troçavam como “homens frustrados e azedos”,
“mulheres e homens sem talento”, concebendo o autor que contempla como investido de

113
superioridade em relação a todos eles. A crítica aos homens que fazem do escritor motivo
de piada continua: “São os netos dos cabrões que jogavam pedras no Rato ao Gomes Leal,
são os impotentes que se queixam de que neste país só se faz merda e que quando aparece
alguém que não faz merda desatam a rosnar de fúria e de ciúme”. Ora, além de evocar
outra figura literária, o narrador reforça que o mau comportamento das pessoas do bar
indica o ciúme que nutrem por saberem-se inferiores ao homem de quem debocham.
Homem que o narrador descreverá, logo em seguida, como portador de um “orgulho
pungente” e “insuportável ironia” capaz de reduzir “os pénis dos impotentes a engelhadas
coisinhas moles de mijar”.
É conveniente que perguntemos, diante da análise de tal trecho, o porquê o escritor
Luiz Pacheco é considerado superior aos que estão no bar pelo narrador. Uma pista à
resposta é dada pelo próprio protagonista adiante: “E éramos os três únicos sujeitos vivos
naquele cemitério de tremoços.” Ora, Luiz Pacheco é superior aos que estão no bar,
porque assim como o narrador, vive para além da superficialidade tão criticada desde o
começo da obra, e escreve, assim como o mesmo, a partir de suas experiências. Zé
Manuel, incluso no “roll” de superioridade exposto pelo narrador, o é por ser capaz de,
como evidenciado em trechos anteriores, falar da “tristeza” e da “perplexidade da vida191”
assim como parece convir, pelo menos a partir do que foi evidenciado até então, aos que
se ocupam de literatura. A literatura aparece, nesse momento, como fruto de talento e
sensibilidade exacerbada. Talento e sensibilidade que o narrador, apesar dos pesares,
reconhece em si mesmo e que o diferencia dos demais junto a Pacheco.
Contudo, como mencionado, outra concepção de literatura parece ser
problematizada no romance. E isto porque, encontramos, na voz de um dos médicos
canibais presentes no restaurante Canal Caveira, um discurso bastante depreciativo do
fazer literário:
Vocês já pensaram no perigo de um médico desestruturado, de um
médico esquizofrénico? Um psicótico não pode passar, quando muito,
de varredor da Câmara. Costura, escultura, pintura, coisas assim, muito
bem. Actividades artísticas, óptimo: para ser artista não é necessário
uma cabeça sólida. Palavra de honra que tenho tratado vários e
visto o que eles são por dentro: tão frágeis que por dá cá aquela
palha se suicidam, se alcoolizam, se drogam. Há qualquer coisa de
feminino neles, qualquer coisa de louco e feminino, de profundamente
mórbido. O próprio facto de escrever, se examinarem de perto, é
caricato: pessoas adultas, hã, a torturarem-se para compor

191
“Eu estava encostado ao balcão com o Zé Manel, a ouvi-lo falar da tristeza, da solidão, da perplexidade
da sua vida, no interior daquela enorme piscina de azulejos povoada de vozes (...)” (ANTUNES, 2004,
p.64).

114
redacções de escola, enredos imaginários, entrechos inúteis. Os
romances servem para se ler na cama antes de adormecer: dobra-
se o canto da página, apaga-se a luz, e na manhã seguinte recomeça-
se a pensar na vida. (ANTUNES, 2004, p.149. Grifos meus).

Ora, discutindo sobre a reabilitação de doentes mentais e a sua inserção social, o


chefe da equipe de médicos da qual o narrador, alucinatoriamente, se aproxima no
restaurante Canal Caveira, discorre sobre as profissões que poderiam exercer na
sociedade. A psiquiatria não é uma delas já que, segundo o doutor, seria muito perigoso
que existisse um médico esquizofrênico, contudo, ele afirma que, para exercer quaisquer
atividades artísticas, os doentes estariam habilitados à medida que “para ser artista não é
necessário uma cabeça sólida.” Além de atestar que todo artista possui uma interioridade
frágil e “qualquer coisa de louco e feminino”, o doutor, porta-voz de uma certa elite
intelectual, torna-se mais específico e discorre sobre a infantilidade de se escrever enredos
imaginários, concluindo a sua reflexão ao dizer que os romances não “servem senão para
se ler na cama antes de adormecer”. No trecho mencionado, o discurso do chefe da equipe
médica não atribui qualquer superioridade ao artista das palavras, antes vê em sua
sensibilidade, potencial doentio, considerando-a inútil e totalmente desconectada às
demandas da vida real.
Tendo em conta a biografia do autor e o fato de seus pais não terem aceitado bem
o desejo que demonstrara, desde menino, de ser escritor, conduzindo-o obrigatoriamente
à medicina192, é interessante que notemos a presença de discursos que neguem a
importância do fazer literário dentro de um romance que, se desde a epígrafe apresenta-
se como ficção inútil193, pronuncia críticas duríssimas aos representantes da razão que
leem o mundo a partir de lentes utilitaristas. Tal qual em Viagens na minha terra (1846)
também podemos notar no cenário e discursos presentes em Conhecimento do inferno
(1980) o embate entre Espiritualismo e Materialismo. Do lado do espiritualismo, da

192
“Entrei na Faculdade de Medicina aos dezasseis anos. Foi uma decisão muito democrática. O meu pai
perguntou-me o que queria estudar, o que queria ser na vida, e eu respondi-lhe que queria ser escritor e que,
portanto, devia matricular-me na Faculdade de Letras. Ele disse-me: <<Muito bem, de acordo.>> E no dia
seguinte comunicou-me que era melhor matricular-me em Medicina. Muito democrático.” (BLANCO,
2002, p.48).
193
“We do not believe any good end is to be effected by fictions which fill the mind with details of
imaginary vice and distress and crime, or which teach it...instead of endeavoring after the fulfillment of
simple and ordinary duty... to aim at the assurance of superiority by creating for itself fanciful and
incomprehensible perplexities. Rather we belive that the effect of such fictions tends to render those who
fall under their influence unfit for practical exertion... by intruding on minds which ought to be guarded
from impurity the unnecessary knowledge of hell.” The Quarterly Review, 1860. Da crítica ao romance de
GEORGE ELIOT. The Mill on the Floss.

115
sensibilidade, da pulsão de vida: a literatura; do lado do materialismo, da razão, da morte
em vida: a psiquiatria.
Dessa forma, atestamos que, como já dito por dito Seixo (2002), a escrita é um
dos temas centrais da narrativa antuniana. Tema que entrelaçado ao material
autobiográfico ardilosamente ficcionalizado pelo autor, faz-nos entender o porquê de
Conhecimento do inferno propor uma viagem diferente das constantemente representadas
na tradição portuguesa: uma viagem ao avesso da personagem, ao avesso da realidade, ao
avesso do texto.

116
4. Da queda edênica ao inferno: dimensão histórico-crítica das viagens
Separados por mais de um século, Almeida Garrett e António Lobo Antunes são
personalidades históricas e, consequentemente, autores muito distintos. Almeida Garrett,
homem religioso e liberal convicto no início do século XIX, sempre demonstrou, seja por
meio de seus textos na imprensa, seja no prefácio de suas obras ou mesmo pelo conteúdo
delas, cumprir um projeto literário didático-nacionalista. Projeto este que explicita, por
exemplo, na Memória ao Conservatório Real (1843), texto importantíssimo à
compreensão não só da peça Frei Luís de Sousa (1843), mas de toda a produção
garrettiana:
Coligir os factos do homem, emprego para o sábio; compará-los, achar
a lei de suas séries, ocupação para o filósofo, o político, revesti-los das
formas mais populares, e derramar assim pelas nações um ensino
fácil, uma instrução intelectual e moral que, sem aparato de sermão
ou prelecção, surpreenda os ânimos e os corações da multidão, no
meio de seus próprios passatempos- a missão do literato, do poeta.
Eis aqui porque esta época literária é a época do drama e do romance,
porque o romance e o drama são, ou devem ser, isto. (GARRETT, 1999,
p.36. Grifos meus).

A missão de instruir intelectual e moralmente uma nação cindida por uma grande
crise financeira, pela fuga de seus representantes a uma das colônias, pelo domínio
estrangeiro e uma forte guerra civil, foi encarada com muita seriedade pelo autor que,
segundo Eduardo Lourenço (1977), foi o primeiro a questionar a imagem mitológico-
falseada que Portugal tinha sobre si mesmo. Junto a autores como Alexandre Herculano,
Almeida Garrett refundou o imaginário português, construindo o primeiro teatro nacional,
organizando programas de incentivos a autores e militando por uma literatura que fosse,
segundo ele mesmo, um espelho em que o povo mirasse a si próprio e o seu tempo.194
Em contrapartida, António Lobo Antunes não combateu, tal qual Garrett na guerra
civil, por convicção. Totalmente avesso às motivações da guerra colonial e às imposições
da ditadura salazarista, Lobo Antunes se por um tempo pendeu ao partido comunista,
acabou por desligar-se e criticar fortemente a organização que, segundo ele, por vezes
mostrava-se tão doutrinária e antidemocrática como o próprio regime contra o qual
combatia195. Além disso, diferentemente do autor oitocentista, Lobo Antunes, em várias

194
GARRETT, Almeida. “Memória ao Conservatório Real”. In: Frei Luís de Sousa. Porto: Livraria
Civilização Editora, 1999, p.36-37.
195
Interrogado a respeito de possíveis discussões políticas em família, Lobo Antunes responde: “- Não se
fala (de política) porque temos ideias diferentes, mas predomina a esquerda. Pedro e Miguel tiveram
atividades políticas durante o fascismo. Eu não, nada; jogava xadrex. Mas todos os meus amigos são de
esquerda. Fiz campanha. Fui candidato pelo Partido Comunista quando começava a ser conhecido. Depois
deixei de gostar. O diálogo era sempre vertical, não havia nenhuma horizontalidade. É uma igreja, com a

117
de suas entrevistas, afirma que a motivação que tem ao escrever deriva-se , sobretudo, de
uma necessidade pessoal, quase infernal, e de uma preocupação mais estética do que ética,
visto que, segundo ele “A literatura de resistência, a literatura social, foi sempre muito
má” (BLANCO, 2002, p.117) e que o que sempre pretendeu foi “ transformar a arte do
romance” (BLANCO, 2002, p.125) , sendo a história, ou conteúdo do livro, menos
importante do que as palavras escolhidas, do que a disposição dos significantes na obra.
Contudo, derivando-se isso de um projeto autoral ou não, é fato que tanto Viagens
na minha terra (1846) quanto Conhecimento do inferno (1980) veiculam fortes críticas
sociais à realidade portuguesa oitocentista e pós-colonial. Garrett, segundo Lourenço
(1999, p.32), tentou reescrever o passado português com a finalidade de encontrar,
viajando pela terra nacional e suas tradições, uma mensagem ao futuro da nação, enquanto
a obra de Lobo Antunes, segundo o mesmo autor, seria “a verdadeira psicanálise visceral,
não mítica, de Portugal.” (LOURENÇO apud COELHO, 2002, p.258).
Cabe a nós, nessa altura da dissertação, considerando as particularidades e pontos
de contato entre as obras de ambos os autores, discorrermos sobre a dimensão histórico-
crítica que a viagem empreendida pelos narradores de Viagens na minha terra (1846) e
Conhecimento do inferno (1980) assume. Dimensão prevista na obra de Almeida Garrett
e não fortuita na antuniana, que nos permite compreender a importância de ambos os
romances ao imaginário cultural da nação que “deu a volta ao mundo para tomar a medida
de sua maravilhosa imperfeição” (LOURENÇO, 1999, p.83).
4.1. Viagens pela terra dos barões
A obra Viagens na minha terra foi produzida e publicada entre 1843 e 1846. Nessa
altura, Almeida Garrett já havia presenciado as consequências do liberalismo, sistema
político pelo qual lutara, com convicção, durante a Guerra Civil (1828-1834). Os ideais
que os liberais apregoavam, de liberdade e de nivelamento social, foram desmentidos pela
prática e, apesar de julgar que a Revolução de Setembro (1836), encabeçada por Costa
Cabral, pudesse aparar algumas arestas, Garrett novamente se decepciona com os rumos
tomados pela nação pós-vitória (1836-1851).
Como dito por Neto (1996), o liberalismo, “tendo assumido um papel histórico
subversivo acabou por se revelar conservador196”, demonstrando a distância entre os

sua fé, as suas tradições e a sua hierarquia autoritária. Não mudou.” (BLANCO, 2002, p.191 Acréscimo
meu em negrito).
196
NETO, Vitor Manuel Parreira. O Estado, a igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911). Universidade
de Coimbra, 1996, p. 26-27.

118
ideais e a realidade ao trazer consigo não só “o cortejo da miséria social e a opressão dos
burgueses sobre o proletariado197”, como também o totalitarismo ideológico ao qual antes
de opusera. Viagens na minha terra (1846) surge, portanto, como uma espécie de obra
confessional do autor que, tendo contribuído braçal e ideologicamente à imposição do
liberalismo em Portugal, nota que a classe média que antes apoiara198 não lutaria à
diminuição das desigualdades, antes à manutenção delas e que o imaginário da nação
corria perigo diante do materialismo que se impunha na nação. Materialismo danoso aos
direitos do homem enquanto ser livre e à imaginação, à capacidade de um povo de auto
representar-se culturalmente.
Cabe a nós, notarmos as críticas ao oportunismo e materialismo resultantes do
regime dos barões (liberalismo) na obra, bem como o retrato que Viagens pinta da
realidade pré-vitória dos liberais, isto é, das esperanças nutridas por um combatente que,
corrompido pela sociedade, torna-se o oposto daquilo que sonhara para si mesmo.
4.1.1. O oportunismo e o materialismo

Desde o início da obra, o oportunismo dos representantes do estado e a falta de


comprometimento com a melhoria da qualidade de vida da população são destacados pelo
narrador que, a caminho de Azambuja, nota o descuido das autoridades com a estrada
pela qual passa:
Dizia um secretário d’ Estado meu amigo que para se repartir com
igualdade o melhoramento das ruas por toda Lisboa, deviam ser
obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os três meses.
Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as kalendas
gregas, eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por
este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a
desobriga. (GARRETT, 2010, p.104. Grifos meus).

No trecho destacado, o narrador insinua, ironicamente, que os ministros não estão


preocupados senão com o próprio conforto e que Portugal padece com isso. Além disso,
o comportamento antiético dos ministros e a ausência de uma preocupação real com o
estado do País são posturas coerentes com os valores de uma geração de “vapor e de pó
de pedra” que o narrador acusa de materialista e injusta mais adiante:

(...) plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai


estradas, fazei caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para
andar, a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda
material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu

197
NETO, Vitor Manuel Parreira. O Estado, a igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911). Universidade
de Coimbra, 1996, p.25.
198
MONTEIRO, Ofélia Milheiro Caldas Paiva. “Do <<lisonjeiro engano>> à <<experiência fatal>>”. In:
A formação de Almeida Garrett: Experiência e criação. Coimbra, 1971. Volume II, p.85-146.

119
tão diferente do que a hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai;
reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações
de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai.- No fim de tudo isto,
o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de
homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas,
se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à
miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à
ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para
produzir um rico? - Que lho digam no Parlamento inglês , onde,
depois de tantas comissões de inquérito, já deve andar orçado o
número de almas que é preciso vender ao diabo, o número de
corpos que se tem de intregar antes do tempo ao cemitério para
fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro,
um banqueiro, um granjeeiro- seja o que for: cada homem rico,
abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.(GARRETT, 2010,
p.108-109. Grifos meus).
A geração que o narrador critica é a derivada da Revolução Industrial (1820-
1840), que ao invés de garantir a melhoria na qualidade de vida das pessoas como um
todo, sustentou-se, sobretudo, na exploração do trabalho de homens, mulheres e crianças.
O parlamento inglês e Sir Roberto Peel, pertencente a uma família de fabricantes têxtil,
são mencionados pelo narrador em sua fala, dado o fato da Inglaterra ter sido o berço de
todo processo atinente à revolução, e também com a finalidade de reforçar a redução da
vida humana à produção, bem como a desigualdade social que permite que “cada homem
rico abastardo custe centos de infelizes e miseráveis”. Além de dizer que “uma vida toda
material, maçuda e grossa” opõe-se à idealizada por Deus a todos os homens, o narrador,
na maioria das vezes, é bastante específico nas críticas que tece. Isto é, o materialismo
gestado na Inglaterra, como vimos, serve de pano de fundo as considerações que o
narrador faz acerca de sua própria terra, tardiamente influenciada pela revolução.
Como consequência dessa influência progressista, os frades, representantes do
Antigo Regime Português, figuras problemáticas, mas poéticas199, segundo o narrador,
foram substituídos pelos barões, Sanchos Pança sem graça alguma. Jumentas de Balaão,
profeta mercenário do antigo testamento bíblico, zebrados de riscas monárquico-
democráticas200, os barões tornaram-se tão ou mais danosos à nação do que os frades que

199
“No ponto de vista artístico porém o frade faz muita falta. Nas cidades, aquelas figuras graves e sérias
com os seus hábitos, quási todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e
bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha raça europea- cortavam
a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população. Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles
caracterizavam a paisagem, poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale: e tão necessárias,
tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel não é já o mesmo. (...) O que
não sabem nem poder fazer os agiotas barões que os substituíram. É muito mais poético o frade que o
barão.” (GARRETT,2010, p. 179-180).
200
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010, p.180-
181.

120
se posicionaram contra a liberdade de forma despótica201 e que, por isso, foram
combatidos e vencidos. A desilusão do narrador é tal que ele alude à história do Castelo
de Chucherumelo, demonstrando que o poder corrompe todos aqueles que o detêm,
fazendo com que o ciclo de corrupção e desigualdade social nunca seja quebrado:
O barão mordeu no frade, devorou-o ... e escouceou-nos a nós
depois. Com que havemos nós agora de matar o barão? Porque este
mundo e a sua história é a história do ‘castelo de Chucherumelo’. Aqui
está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda etc.
etc.: vai sempre assim seguindo. Mas o frade não nos compreendeu a
nós, por isso morreu, e nós não compreendemos o frade, por isso
fizemos os barões de que havemos de morrer. São a moléstia deste
século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbus da sociedade
actual, os barões. (GARRETT, 2010, p.181. Grifos meus).
O materialismo, oriundo da influência tardia da revolução industrial em Portugal,
e o triunfo do liberalismo, sistema político-econômico que acabou por potencializar as
desigualdades sociais ao invés de saná-las, fazem com o narrador, confessadamente leitor
de Bentham202 e combatente da guerra civil, demonstre certa incredulidade quanto ao que
o futuro reserva à nação:
Porque, desinganem-se, o mundo sempre assim foi e há-de ser. Por
mais belas teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com
que se comece, o status in statu forma-se logo: ou com frades ou com
barões ou com pedreiros-livres se vai pouco a pouco organizando uma
influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e
aparentes do grande corpo social. (GARRETT, 2010, p.182. Grifos
meus).

Convém ainda dizer que, além de oportunistas, preocupando-se só com o próprio


deleite ao invés de nutrirem preocupações legítimas com o estado da nação e com a
qualidade de vida “(d)o grande corpo social”, as autoridades portuguesas, em nome do
progresso tecnológico e do futuro de Portugal, tornaram-se, segundo o narrador,
responsáveis pela deterioração do imaginário cultural do país, diagnosticado, sobretudo,
quando passeia por Santarém, visitando o que resta de seus monumentos. Seja notando a
degradação de lugares que deveriam ser preservados pela nação, seja fazendo observações

201
“Ora o frade foi quem errou primeiro em não nos compreender, a nós, ao nosso século, às nossas
inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma
necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas que
o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro
modo não lhe servia nem o servia.” (GARRETT, 2010, p.182).
202
Considerado um dos precursores da filosofia utilitarista.
“Mas aqui tem o que me sucedeu o outro dia. Tinha estado às voltas com o meu Bentham, que é um grande
homem por fim de contas o tal quaker, e são grandes livros os que ele escreveu: cansou-me a cabeça, peguei
no Camões e fui para a janela.” (Idem, p. 305. Grifos meus).

121
tristes como as que se referem ao total descrédito que sofreram às ordens religiosas203 ou
cômicas como as que dizem respeito ao vinho204, o narrador demonstra estar preocupado
com o imaginário do povo português, à medida que aqueles que o representam não se
ocupam senão com os próprios interesses e em imitar o que se faz em outros países. O
materialismo que rege o sistema político-econômico e que se infiltra nas relações
humanas e na representação que a nação portuguesa faz de si mesma, coloca em perigo
sua unidade identitária, fortemente simbólica, à medida que fundamentada, sobretudo, no
catolicismo, do qual o materialismo sequer deixa a sombra:
Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa
sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo
estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua
hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que
elevava o espírito... Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e
esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida
d’alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação piquena, é
impossível; há-de morrer. Mais dez anos de barões e de regímen da
matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de
Portugal o derradeiro suspiro do espírito. Creio isto firmemente.
(GARRETT, 2010, p.409-410. Grifos meus).

Responsáveis pela degradação simbólica de Portugal e pelo fato de, na nação, não
haver religião de nenhuma espécie, os barões, que ascenderam ao poder graças a vitória
dos liberais, não produzem conhecimento, nem arte:
(...) onde estão as universidades, e o que faz essa que há senão dar o seu
grauzito de bacharel em leis e em medicina? O que escreve ela, o que
discute, que princípios tem, que doutrinas professa, quem sabe ou
ouve dela senão algum eco tímido e acanhado do que noutra parte
se faz ou diz? Onde estão as academias? Que palavra poderosa retine
nos púlpitos? Onde está a força da tribuna? Que poeta canta tão alto
que o oiçam as pedras brutas e os robres duros desta selva
203
Almeida Garrett sempre se posicionou contra a violência física e simbólica que os liberais exerciam para
com as ordens religiosas e o narrador de Viagens, seja através da descrição da personagem de Frei Dinis,
seja por meio de discursos diretos, defende a legitimidade das instituições religiosas portuguesas: “Quando
houver em Portugal um governo que saiba ser governo, há-de regular e consolidar a existência das freiras,
há de aproveitá-la para as piedosas instituições do insino da mocidade, da cura dos infermos, e do amparo
dos inválidos. Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam às pobres das freiras.
Mal do governo que deixar comer mais aos barões!” (GARRETT, 2010, p. 400).
204
Quando interroga o Marquês de Pombal acerca das vinícolas, o narrador dá-se conta de que os
portugueses não consomem tanto vinho como antigamente. Sendo o vinho, sobretudo do Porto, fortemente
tradicional, tal tema não é fortuito: a nação tem perdido a sua identidade cultural.
“A mim é que ele já me viu. – ‘Que diz? Ah!... Sim senhor, sou português; e venho fazer uma pergunta a
V. Ex.ª, esclarecer-me sobre um ponto importante’.
Deitou-me a tremenda luneta.
- ‘Para que mandou V. Ex.ª arrancar as vinhas do Ribatejo?’
Apertou a luneta no sobrolho e sorriu-se
- ‘Elas aí estão centuplicadas, que até já invadiram o pinhal de Azambuja. Fez V. Ex.ª um despotismo inútil,
e agora...
- ‘Agora quem bebe por lá todo esse vinho?’
Não sabia o que lhe havia de responder.” (Idem, p.132).

122
materialista a que os utilitários nos reduziram? Se exceptuarmos o
débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia, não
se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando
contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um anfiguri!
Cinco mil contos para as estradas dos areonautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!
Não tardam a contar por centenas de milhares.
Contar a eles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel- a terra e
a indústria. (GARRETT, 2010, p.183-184. Grifos meus).
A imprensa, meio em que Viagens foi primeira e parcialmente publicada, parece
ser, segundo o narrador, a única manifestação de opinião legítima da pátria, o único meio
em que se propaga conhecimento e que sugere debates sobre questões importantes da
realidade portuguesa oitocentista, sofrendo, justamente por isso, represálias do regime
cabralino. Não existe nenhum poeta que clame contra o utilitarismo que domina a nação
e que seja ouvido. A única coisa que se ouve são os barões gritando contos de réis. Todas
as questões pertinentes à qualidade de vida do povo português ou ao imaginário cultural
da nação foram substituídas pela disputa por privilégios e pela preocupação exacerbada
com o dinheiro. Ora, segundo o narrador garrettiano, a pátria supostamente fundada a
partir de um mandato de Cristo205, não se afiguraria, em meio ao domínio dos barões e do
regime da matéria, senão como decepção ao nazareno:
Jesu Cristo, que foi o modelo da paciência, da tolerância, o
verdadeiro e único fundador da liberdade e da igualdade entre os
homens, Jesu Cristo sofreu com resignação e humildade quantas
injustiças, quantos insultos lhe fizeram a ele e à sua missão divina;
perdoou ao matador, à adúltera, ao blasfemo, ao ímpio. Mas, quando
viu os barões a agiotar dentro do templo, não de pôde conter, pegou
num azorrague e zurziu-os sem dor. (GARRETT, 2010, p.411. Grifos
meus).

Dominada por barões que agiotam fora do templo, a nação que Garrett retrata ganha,
para além de uma representação do presente, uma que remete ao seu passado recente.

205
Segundo a tradição, Cristo teria aparecido a Afonso Henriques encorajando-o a lutar contra os mouros
em Ourique (Baixo Alentejo), fato pelo qual aclamou-se a si mesmo como rei de Portugal (1139). Segue as
estrofes 45 e 46 do Canto III de Os Lusíadas, momento em que o eu-lírico camoninano discorre sobre tal
aparição e aclamação: “ A matutina luz, serena e fria, / As Estrelas do Polo já apartava, / Quando na Cruz
o Filho de Maria,/ Amostrando-se a Afonso, o animava./ Ele, adorando Quem lhe aparecia,/ Na Fé todo
inflamado assi gritava:/ Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,/ E não a mi, que creio o que podeis!/’ Com tal
milagre os ânimos da gente/ Portuguesa inflamados, levantavam/ Por seu Rei natural este excelente/
Príncipe, que do peito tanto amavam;/ E diante do exército potente/ Dos immigos, gritando, o céu tocavam,/
Dizendo em alta voz: ‘Real , real/ Por Afonso, alto Rei de Portugal!’”( CAMÕES, 2010, p. 76. Grifos do
editor).

123
Passado de guerra do qual o narrador participou e demonstra estar arrependido, sobretudo
a partir do que nos revela acerca da novela da Menina dos Rouxinóis.

4.1.2. A maldição de Caim: a guerra civil portuguesa e os seus efeitos


Tanto o Almeida Garrett histórico quanto o ficcionalizado em Viagens na minha
terra (1846) vivenciaram a guerra civil portuguesa, conhecida também como a dos Dois
irmãos. No romance sobre o qual discorremos, a guerra é rememorada de duas maneiras:
pela observação de determinadas paisagens que fazem o narrador refletir acerca do que a
guerra representou à nação e pelo enredo da novela da Menina dos Rouxinóis.
O narrador, ao rememorar a guerra pela observação de paisagens, discorre com
clareza acerca dos sentimentos e reflexões que lhe ocorrem, como quando, por exemplo,
está na charneca entre Cartaxo e Santarém:
Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e
desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta
geração, Deus sabe para quê - Deus sabe se para expiar as faltas de
nossos passados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros
... O certo é que ali com efeito passara o imperador D. Pedro a sua
última revista ao exército liberal. Foi depois da batalha de Almoster,
uma das mais lidadas e das mais ensanguentadas daquela triste guerra.
Toda a guerra civil é triste. E é difícil dizer para quem mais triste,
se para o vencedor ou para o vencido. Ponham de parte questões
individuais, e examinem de boa fé: verão que, na totalidade de cada
facção em que a nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem
venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e
menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro (...) Por que será que
aqui não sinto senão tristeza? Porque lutas fraticidas não podem inspirar
outro sentimento e porque ... Eu moía comigo só estas amargas
reflexões, e toda a beleza da charneca desapareceu diante de mim.
(GARRETT, 2010, p.145-147. Grifos meus).
No trecho em destaque, ao dar-se conta de que naquele lugar “passara o imperador
D. Pedro a sua última revista ao exército liberal”, o narrador se entristece. A tristeza se
justifica não só pelo fato de lembrar-se das batalhas ensanguentadas da guerra, mas
também por, de forma racional, fazer um balanceamento entre perdas e ganhos e não ter
certeza se a guerra valeu a pena. A falta de sentido à guerra faz com que o viajante não
sinta senão tristeza. Tristeza pelo passado e por anos depois da guerra ter findado, notar
que os esforços, que ele mesmo empregara nos combates, não foram de todo bem-
sucedidos. Via novela, a guerra é ainda mais problematizada em suas motivações e
consequências. Em um primeiro momento, estando a casa de Dona Francisca a serviço da
tropa dos Miguelistas, o narrador discorre a respeito da banalização da barbárie que os
combates armados promoveriam:

124
E, pouco a pouco, os combates, as escaramuças, o som e a vista do fogo,
o aspecto do sangue, os ais dos feridos, o semblante desfigurado dos
mortos - a guerra enfim em todas as suas formas, com todo o seu
palpitante interesse, com todos os terrores, com todas as esperanças
que a acompanham, se lhes tornou uma coisa familiar, ordinária ...
A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por
mais extranha, que o tempo e a repetição dos actos lhe não faça natural.
(GARRETT, 2010, p.238 Grifos meus).

Além disso, no mesmo capítulo, o narrador descreve a rotina a que os soldados,


de ambos os lados, estavam submetidos, destacando que, apesar de representarem
interesses distintos à nação, não se viam mais com ódio. Não combatiam senão porque o
Estado assim queria, discorrendo, vez ou outra, acerca das altas questões que os faziam
arriscar as próprias vidas:
A guerra parecia cansada, o furor dos combatentes quebrado;
rumores de intentadas transações giravam por toda a parte. No nosso
vale as sentinelas dos dous campos opostos, costumadas já a ver-se
todos os dias, começavam a ver-se sem ódio; principiaram por se dizer
dos pesados gracejos de guerra, acabaram por conversar quási
amigavelmente. Muita vez foi curioso ouvi-los, os soldados,
discorrer sobre as altas questões d’Estado que dividiam o reino e o
traziam revolto há tantos anos. Se as tratavam melhor os do
conselho em seus gabinetes! (GARRETT, 2010, p.238-239. Grifos
meus).

Segundo o narrador, os combatentes não se viam mais com ódio, porque, como
salienta mais adiante, discorrendo sobre o carinho que os combatentes nutriam pela
menina dos rouxinóis, no “ânimo do soldado há mais sentimentos delicados” do que se
imagina e a guerra já perdera o sentido para eles:
Os costumes de guerra são menos soltos do que se cuida; no ânimo
do soldado há mais sentimentos delicados, nas suas formas há
menos rudeza do que se pensa. A farda é sim vaidosa e presumida, crê
muito nos seus poderes de sedução, mas não é brutal senão no primeiro
ímpeto. (GARRETT, 2010, p.240. Grifos meus).

O fato dos soldados disporem de sentimentos delicados torna a guerra ainda mais
cruel. Pessoas inocentes e que não se odeiam matam-se em nome de ideais que, postos
em prática, como demonstrado pelo narrador ao longo de todas as suas reflexões no
romance, em nada contribuem à melhoria efetiva das condições do povo. Ora, ainda nos
apresentando cenas da novela, o narrador discorre sobre a triste despedida dos dois primos
no campo de batalha, que representa, de certa forma, a falência do amor em tempos de
guerra:
Estremeceram involuntariamente ambos com o som repentino de guerra
e de alarma que os chamava à esquecida realidade do sítio, da hora, das
circunstâncias em que se achavam... Daquele sonho encantado que os

125
transportara ao Éden querido de sua infância, acordaram
sobressaltados ... viram-se na terra erma e bruta, viram a espada
flamejante da guerra civil que os perseguia, que os desunia, que os
expulsava para sempre do paraíso de delícias em que tinham
nascido ... Oh! que imagem não eram esses dois, no meio daquele vale
nu e aberto, à luz das estrelas cintilantes, entre duas linhas de vultos
negros, aqui ali dispersos e luzindo acaso do transiente reflexo que fazia
brilhar uma baioneta, um fuzil ... que imagem não eram dos
verdadeiros e mais santos sentimentos da natureza expostos e
sacrificados sempre no meio das lutas bárbaras e estúpidas, no
conflito de falsos princípios em que se estorce continuamente o que
os homens chamaram sociedade! (GARRETT, 2010, p.254. Grifos
meus).

A crítica do narrador é muito clara. A sociedade promove lutas bárbaras e


estúpidas, como a guerra civil da qual participou, expulsando os homens do paraíso
terrestre do qual deveriam desfrutar, a partir de sentimentos como o amor. Há ainda, na
novela, outro quadro familiar que remete ao histórico. Frei Dinis, enquanto religioso,
representa o Antigo Regime e Carlos, jovem idealista, os liberais:
Trata-se, pois, de considerar de novo o conflito Carlos/ Fr. Dinis à luz
de um contexto histórico-político dominado pelas fracturas que dividem
liberais e anti-liberais. Recordemos o seguinte: na novela, quando do
desenlace, Carlos apercebe-se de que o homem com quem estava em
conflito insolúvel era, afinal, seu pai; do mesmo modo, o drama da
guerra civil em que o mesmo Carlos se encontra envolvido, é
também esse: o drama de uma luta que divide duas gerações
históricas que se sucedem no tempo e que, no ardor da guerra,
parecem momentaneamente esquecidas dessa sua condição de
membros da mesma família nacional. (REIS, 1993, p.105. Grifos
meus).

Carlos opõe-se, durante toda a novela, ao próprio pai sem o saber, enquanto este
não se predispõe a ouvir e a entender as causas pelas quais o filho, representante de uma
nova geração, decidiu lutar. No fim, a vitória dos liberais acontece no mesmo momento
em que é revelado o grande segredo a Carlos. O protagonista abraça o pai, mas não pode
conviver com ele. A família da novela é cindida pela guerra, assim como a família
nacional, que se enfraquece por ideais que, transformados em realidade, só
decepcionaram os que por eles lutaram. No romance, passa-se um tempo e, então, o
narrador descobre numa conversa que tem com Frei Dinis que Carlos, antes idealista,
tornou-se barão, representante máximo do regime da matéria:
– ‘Mas Carlos?’
- ‘Carlos é barão. Não lho disse já?’
- ‘Mas por ser barão?...’
- ‘Não sabe o que é ser barão?’
- ‘Oh! Se sei! Tão poucos temos nós?’
- ‘Pois barão é o sucedâneo dos ...

126
- ‘Dos frades ... Ruim substituição!’
- ‘Vi um dos tais papeis liberais em que isso vinha; e é a única coisa
que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.’
- ‘E que lhe pareceu?’
- ‘Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os
liberais não tiveram menos.’
- ‘Errámos ambos’
- ‘Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode
tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é. O
que há de ser, não sei. Deus proverá.’
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A
velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos
alguns segundos. Nenhum me deu mais atenção nem pareceu cônscio
da minha estada ali. Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
(GARRETT, 2010, p.458-460. Grifos meus).

O trecho em destaque evidencia que, tal qual dito por Monteiro (2010), o narrador,
antigo combatente liberal, anos depois da guerra, reconheceu estar tão errado quanto os
absolutistas, representados por Frei Dinis. Na verdade, ambos os lados da guerra se
reconheceram equivocados206, como bem sintetizado por Frei Dinis que, diante de uma
espécie de duplo de Carlos, (duplo que aprendeu com o tempo e assumiu a culpa que lhe
cabia207), afirma: “Erramos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar
a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus
proverá.” (GARRETT, 2010, p.459). Ora, essa posição aparentemente fatídica do frei,
mas que ainda evoca a provisão de Deus e que, por isso, não pode ser tida como cética,
parece ser compartilhada pelo narrador que, tendo descoberto o materialismo gestado
pelos barões como uma espécie de endemia portuguesa, também entrevê “tesouros com
que a Nação poderia retemperar a alma.” (MONTEIRO, 2010, p.165). No subcapítulo
seguinte discorremos sobre de onde o narrador garrettiano demonstra acreditar que pode
vir a salvação da nação.

4.1.3. A luz no fim do túnel: a natureza e o povo

Ofélia Paiva Monteiro, pesquisadora que se tornou referência ao estudo da vida e


obra de Almeida Garrett, cita um pronunciamento do autor na Câmara dos Deputados no

206
Diz Monteiro (2010, p.182): “ Particularmente relevante é, nesta cena carregada de sentidos simbólicos,
que o absolutista Frei Dinis e o Narrador liberal ( que se dá por antigo companheiro de Carlos) confluam,
escarmentados ambos pelo tempo e pela experiência, na opinião de que erraram ambos os naipes a que
tinham pertencido, ao oporem-se radicalmente.” (Grifos da autora).
207
Como dito por Macedo (2007, p.22): “Com efeito, se Frei Dinis já havia reconhecido o seu erro e se
espiritualizara pelo remorso; e se Carlos apenas procura justificar o erro em que permanece na carta que
escreveu a Joaninha e sobre a qual Frei Dinis chorou como se trouxesse a notícia da morte do filho; é como
conclusão evidente de tudo quanto viu, ouviu, sentiu, pensou e, finalmente, aprendeu na sua vida que
Garrett, como um duplo de Carlos- o Carlos que aprendeu a tempo-, pode assumir a porção de culpa que
lhe cabe.”

127
Porto, em 1842. Pronunciamento este que, de certa forma, sintetiza a decepção do autor
com os rumos que o regime liberal, o qual ajudou a implantar, dava à nação:
Vós desuniste-nos, dilaceraste-nos [...]; contastes-nos como rezes
para nos vender, cabeça a cabeça, no mercado da agiotagem. [...]
Esta pobre terra já não é senão um pedaço de terra como qualquer outra,
uma província para um reino- reino, nação, país, não torna a ser. Não
vos iludais; acabou, e acabou às vossas mãos. E se o fizesse a ambição,
este desbarato fatal, era ao menos um nobre motivo. Mas não, fê-lo a
cobiça, a vulgar e sórdida cobiça. Tanto gastar, tanto esperdiçar,
tanto entesourar de uns, tanto jogar de outros, aqui nos trouxeram.
Portugal está pobre, desanimado, sem fé, e na frase da Escritura,
‘sem pão, nem palavra.’ (AMORIM, 1884, p.657 apud MONTEIRO,
2010, p.158. Grifos meus).

Como evidenciado no discurso citado e demonstrado tanto por meio dos


comentários do narrador em Viagens na minha terra (1846), quanto pelo enredo da novela
que o romance engendra, Almeida Garrett abandonou o “otimismo dos verdes anos208”,
que atribuía todos os males da nação ao absolutismo defendido por D. Miguel209, ao notar
que todo ideal, por mais belo que fosse, corrompia-se ao ser posto em prática. A
agiotagem dos barões, responsável pela exploração dos pobres e o materialismo do regime
que se impunha na nação, destituindo-a de valores imateriais, denunciados pelo autor em
Viagens e em outras obras do período, fez com que contemporâneos o acusassem de cético
e que, até hoje, a viagem do autor a Santarém seja erroneamente lida como uma crítica
mordaz à nação que não lhe oferece nenhuma espécie de saída ou solução aos seus
problemas.
Apesar de retratar o homem e, de maneira mais ampla, a nação portuguesa, em
queda, no sentido edênico que essa palavra comporta, podemos entender que o viajante

208
Segundo Monteiro ( 2010, p.160) “O que desaparece no seu avatar adulto é, como dissemos, o otimismo
confiante dos verdes anos, que julgava viável na terra a plenitude almejada; na maturidade do Escritor, esta
é tão só uma tenaz saudade do Céu na precariedade necessária do mundo, geradora dessa fundamental ironia
que perpassa nas suas obras-mestras; a experiência mostrara-lhe as sinuosidades e inconsequências da
realidade, sempre complexa e conjuntural, o peso modelador do tempo, o efetivo poder do imperecível Mal,
de que falava o Bispo de Angra.”
209
Em Portugal na balança da Europa (1830), Garrett parece acreditar que o único grande problema da
nação portuguesa seja D. Miguel e o regime absolutista: “Dessa fatal corrupção das sociedades nasce o
maior inimigo da liberdade, o indiferentismo. Quando uma nação pervertida e podre chega a cair neste
estado paralítico, nem há que esperar para a liberdade nem que recear para o despotismo... Mas a
Providência que rege este Universo, e que para sua eterna ordem equilibrou em todas as partes dele os males
com os bens, para que sendo diversas suas relações, resultasse o bem geral a divisão e repartição de uns e
outros,- a Providência permite que, quando nesse apático estado lentamente agoniza um povo, apareça, para
dele o tirar, um agente poderoso que lhe sirva de castigo e remédio (...) foi D. Miguel que te veio castigar
de sua criminosa indiferença e cedo te restituirá ao estado de vigor e energia que só pode comportar o
alimento são, sólido e nutriente da liberdade.” (GARRETT, 1830, p.18-19).

128
garrettiano, aponta, em meio às próprias críticas que tece, uma espécie de caminho de
retorno que o homem/nação tem de fazer para salvar-se:
Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a
formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem- não o
homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito,
apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que
no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade - o homem, assim
aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais
disparatado e incongruente que habita na terra.(GARRETT, 2010, p.
279).
A queda do homem, causada, segundo o próprio narrador garrettiano, pela
“indigestão da ciência”, se deu porque ele afastou-se do paraíso de delícias, da Natureza,
passando a viver e lutar pela Sociedade. Dessa forma, fica implícito o possível caminho
de retorno que o homem tem de fazer para redimir-se do mal social, apesar do narrador
não se mostrar otimista quanto ao percurso:
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo
de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza
e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e
o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo
doloroso de suas formas. Ou há-de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
(GARRETT, 2010, p.281).

Como retornar à Natureza, representada tanto pelo Vale de Santarém, quanto pela
personagem de Joaninha na obra? Como resistir a sociedade armada de suas barras de
ferro? Segundo o narrador, aliando-se àqueles que se mantêm mais próximos dela,
aliando-se ao povo. Depois de ter afirmado que Portugal sucumbiria se dominado mais
dez anos pelo regime da matéria, o viajante afirma:
Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está
são: os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos
tudo. Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não intendemos a poesia
do povo; nós, que só compreendemos o tangível dos sentidos, nós
somos estranhos às aspirações sublimes do senso-íntimo que
despreza as nossas teorias presunçosas, porque todas vêm de uma
acanhada análise que procede curta e mesquinha dos dados
materiais, insignificantes e imperfeitos;- enquanto ele, aquele
senso-íntimo do povo, vem da Razão Divina, e procede da síntese
transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas
verdades que se não demonstram porque se sentem.
E eu que escrevo isto serei eu demagogo? Não sou.
Serei fanático, jesuíta, hipócrita? Não sou.
Que sou eu então?
Quem não intender o que eu sou, não vale a pena que lho diga...
(GARRETT, 2010, p.410. Grifos meus).

Ora, notamos, então, que o narrador acredita que o povo detém as respostas
necessárias ao desenvolvimento mais são da nação. E isto porque, distante de teorias

129
presunçosas, o povo vive mais conectado à realidade terrena e espiritual. Absolutamente
contra o que Macedo (2007) chama de abstração ou de recusa do concreto, o narrador
garrettiano, alinhado com o pensamento do autor, defende que os representantes da nação
não vivam no mundo das ideias ( Dom Quixote) e muito menos no mundo meramente
material (Sancho Pança), mas que entendam o mundo material, apesar de suas
imperfeições, como “ estrada para o céu210”. O narrador acredita que a nação progredirá
a partir do equilíbrio dessas duas forças, a material e a espiritual, de forma a não se perder
em grandes ideais, filosofemas, nem a se esquecer de que “nem só de pão viverá o
homem211”, não desistindo de cultivar o seu espírito:
Assim, o autor das Viagens mantém-se fiel à crença iluminística no
Progresso, embora sabendo que o Progresso se não efectiva linearmente
e não conduz os homens a um estado de perfeição absoluta. Como se
depreende da acção pública de Garrett e das suas intervenções
parlamentares, até ao fim da vida, apesar dos desenganos, foi um
homem de esperança, não um céptico ou um desistente. Não abandonou
o campo da luta.” (COELHO, 1977, p.80).

“Homem de esperança”, sobretudo religiosa, Garrett, até o fim de sua vida, ocupou
cargos de proeminência social e lutou pelo que acreditava ser o melhor do país. Sua
esperança, contudo, não o impediu de tecer críticas vorazes à nação, como as veiculadas
em Viagens na minha terra. Obra que retrata, sobretudo, o processo de amadurecimento
do autor, que na viagem de sua vida, como a realizada até Santarém, decepcionou-se e
precisou reelaborar-se muitas e muitas vezes. Tal qual dito por Macedo (2007, p.22):
“Como em toda a épica, o viajante alcançou, no fim da jornada, um nível de conhecimento
superior ao que era o seu quando a iniciou.” Conhecimento que o leva a defender o
equilíbrio entre forças opostas e a evitar todo e qualquer radicalismo.

4.2. Alice, Dante e Virgílio: viagens pelo inferno colonial e pós-colonial


Conhecimento do inferno (1980), como já dito, é o terceiro romance publicado
por António Lobo Antunes, sendo precedido por Memória de elefante (1979) e Os cus de
judas (1979). Em Memória de elefante, a temática central é a do divórcio do protagonista
e a sua solidão pós-guerra, enquanto em Os cus de judas (1979), possivelmente a obra
mais comentada da trilogia, a guerra colonial é o centro em torno do qual gira o romance.

210
Como dito por Monteiro ( 1971, p.131): “A <<prudência>> de Garrett -a da sagesse cristã, onde o
racionalismo se transforma num servidor do Ideal- faz do mundo, feio e belo pela sua condição mesma de
universo criado, necessariamente im-perfeito mas cheio de revérberos do Criador, uma <<estrada para o
Céu>>.” (Grifos da autora).
211
Texto dos Evangelhos ( Mateus 4.1-11; Marcos 1.12-13; Lucas 4.1-13) , situado no episódio da tentação
de Cristo que, apesar de estar quarenta dias sem comer, respondeu ao diabo que lhe tentava a transformar a
pedra em pão, que suas necessidades físicas não eram superiores às espirituais.

130
Conhecimento do inferno, em contrapartida, nos apresenta a um narrador solitário que
procura estabelecer pontes entre o seu passado e presente. Narrador que, apesar de não
estar num diálogo real como em Os cus de judas (1979), também sente a necessidade de
evocar as lembranças que traz da guerra, sobretudo ao refletir acerca do cotidiano a que
está submetido, enquanto psiquiatra, pós- 25 de Abril, no Hospital Miguel Bombarda.
Se em Memória do elefante o narrador procura terapia grupal ao perceber-se
adoecido pelas lembranças que traz consigo, e em Os cus de judas, experimenta uma
espécie de tentativa de cura pela fala, dialogando com uma mulher que conheceu no bar,
em Conhecimento do inferno, também terapeuticamente, viaja ao interior de si mesmo,
refletindo, por consequência, na realidade antes e pós 25 de abril e o quanto ela
influenciou em seu comportamento, ora de combatente, ora de psiquiatra. Apesar de o
autor afirmar constantemente que a guerra não poderia servir de tema a romances212, dada
a sua falta de sentido, e que a psiquiatria em nada contribuiu à sua compreensão da
natureza humana e consequentemente à sua escrita213, é fato que ambas as experiências
se entrecruzam na obra em questão, demonstrando não só a inovação formal que o autor
reclama a si mesmo, como também, segundo Seixo ( 2008), o questionamento do devir
governamental e dos particularismos nacionais.
A alternância entre a primeira e a terceira pessoas discursivas, por exemplo, além
de um recurso moderno de que se valem alguns romances a partir do século XX, faz-se
presente em Conhecimento do inferno, sobretudo porque, tal qual dito por Cardoso
(2011), dessa forma, o leitor consegue apreender mais de uma visão possível da realidade,
algo necessário quando a narrativa tematiza, como é o caso, a violência ao Outro
dessubjetivado seja pelo contexto bélico, seja pelo de internamento hospitalar.
Obrigado a combater por uma causa da qual abertamente discordava, a seguir
numa carreira que não escolhera e a especializar-se em psiquiatria por mera
conveniência214, António Lobo Antunes, por meio do narrador de Conhecimento do
inferno, discorre sobre a absurdidade da vida e da morte, mas também, por meio de tal
protagonista, qual dito por Lourenço ( 2002), como uma espécie de náufrago, luta contra

212
“Não é possível fazer um romance sobre a guerra porque é demasiado horrível, só se podem contar
aspectos laterais porque não é matéria de ficção, era tudo demasiado violento.” (BLANCO, 2002, p.152).
213
“- A psiquiatria serviu-lhe para compreender melhor a natureza humana ou não acredita nela? Não, creio
que não serve.” (Idem, p.198).
214
“– E porque se decidiu pela psiquiatria? / (...) Voltei da guerra a querer ser cirurgião, mas essa
especialização era muito competitiva e requeria todo o tempo para estudar, tempo que tinha de roubar à
escrita. Assim, pensei que devia escolher uma especialidade que me proporcionasse esse tempo para
escrever. A minha dúvida pairava entre dermatologia e psiquiatria. Naquele tempo, como veterano de
guerra, podia escolher qualquer das duas.” (Idem, p.49).

131
as ondas do presente de uma nação que, segundo Boaventura de Sousa Santos( 1992),
não se reinventou pós-guerra e pós-ditadura, antes negou por muito tempo o seu passado,
sem questionar as estruturas políticas, sociais e culturais do antigo regime215.
Dito isso, convém-nos notar como, no romance estudado, pelo poder da memória,
o narrador antuniano questiona os poderes nacionais216, direta, pela rememoração da
guerra, e indiretamente, pela evocação do cotidiano do Hospital Miguel Bombarda,
representando a história do “sinistro desenlace da odisseia de Portugal enquanto nação
imperial” (CARVALHO, 2014, p.90).

4.2.1. A ditadura salazarista e as guerras coloniais


O regime ditatorial encabeçado por António Oliveira Salazar, entre 1933 e 1974,
promoveu, para além de uma forte repressão política em Portugal, a difusão de uma
ideologia nacionalista-imperial, que sustentou, por treze anos (1961-1974), as guerras
coloniais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O salazarismo aliado ao catolicismo
proselitista e a lemas facciosos como o de que Portugal era um país de brandos costumes,
acobertou, por muitos anos, as mortes causadas pelos combates sediados em África.
Combates dos quais António Lobo Antunes participou por dois anos em Angola.
Conhecimento do inferno, assim como outras obras do autor, surge como uma
espécie de desmascaramento da realidade ditatorial e bélica, que era vista e representada
sob ótica épica e justificada, como tal, pela crença na superioridade da nação portuguesa,
enquanto exemplo de civilização e fé. Vejamos um dos trechos em que o narrador, durante
a inspeção militar em Elvas, de forma irônica, questiona os argumentos de que se valia o
regime ao incentivo da guerra:
Era em junho ou julho (ou no fim de maio?) e o calor insuportável do
Alentejo, onde chegara na véspera à noite, de comboio, a cabecear de
sono contra as trevas da paisagem, torcia as casas como velas de anos,
consumidas pelas furiosas labaredas do verão. O céu branco, as

215
“O colapso do regime em 25 de Abril de 1974 não implicou o colapso generalizado do Estado. A ruptura
deu-se ao nível das características fascistas do velho regime: o partido único, a polícia política, as milícias
para militares, o tribunal plenário (para julgamento dos crimes políticos), os presos políticos, a repressão
da liberdade de expressão e a associação. Para além disso, o processo de reconstrução normativa e
institucional foi relativamente lento e muito desigual. O sistema administrativo manteve-se intacto
em suas estruturas de decisão e o <<saneamento>> a que se procedeu limitou-se ao afastamento de
pessoas ( e não de processos) e fez-se muitas vezes segundo critérios eivados de oportunismo e
sectarismo; as forças policiais e militarizadas, depois de aderirem ao novo regime, mantiveram as
suas estruturas, o mesmo acontecendo com a administração da justiça e o sistema penitenciário; as
políticas de segurança social não sofreram grandes alterações; um dos mais importantes pilares
ideológicos do Estado Novo, a Igreja Católica, foi poupada à contestação social e resguardou-se de
qualquer processo de transformação interna.” (SANTOS, 1992, p.27. Grifos meus).
216
CARDOSO, Norberto do Vale. A mão-de-judas: Representações da guerra colonial em António Lobo
Antunes. Lisboa: Texto, 2011, p.225.

132
muralhas de pedra que amoleciam de desmaio, o horizonte circular
turvado pela distância de uma espécie de bruma roxa, imaterial como
um hálito ou um suspiro, crestavam as flores do quartel, as flores que o
comandante, maternal, amparava a caniços junto ao ginásio, no interior
do qual, de galões nos ombros, eu via desfilarem diante de mim os
rapazes de Elvas que o Exército convocara, chamara,
arregimentara para defenderem em África os fazendeiros do café,
as prostitutas e os negociantes de explosivos, os que mandavam no
País em nome de ideais confusos de opressão. Eu aguardava o meu
próprio embarque contando os dias, as horas de prazer que me restavam
decorando à pressa o teu corpo como um livro desconhecido antes do
exame, e via, sentado à secretária, desfilarem diante de mim os rapazes
de Elvas no ginásio fechado, que o fedor das virilhas, do excesso de
pessoas e das roupas abandonadas no chão, empestava como o de um
curro trágico e triste. (...) Estive alguns momentos, de mãos nos
bolsos, a observar os exercícios da companhia, erguendo e baixando
as espingardas na poeira amarela do claustro, a pensar que me
haviam mandado a Elvas não para salvar pessoas da guerra mas
para as enviar para a mata, mesmo os coxos, mesmo os marrecos,
mesmo os surdos porque o dever patriótico não excluía ninguém,
porque as Parcelas Sagradas do Ultramar necessitavam do
sacrifício de todos, porque O Exército É O Espelho Da Nação,
porque O Soldado Português É Tão Bom Como Os Melhores,
porque o caralho da cona do minete do cabrão do broche da puta
que os pariu, estive a ver, encostado a uma coluna de pedra rugosa
como as árvores antigas, os futuros heróis, os futuros mutilados, os
futuros cadáveres, o comandante, desvelado, debruçava-se para as
suas flores moribundas de regador em punho, voltei para o ginásio,
sentei-me à secretária, levantei a cabeça e o meu nariz encontrava-se à
altura de dezenas de pénis que rodeavam a mesa aguardando que os
observasse, os medisse, os aprovasse para a morte.(...) Não eram
homens, eram pénis que me perseguiam, me acuavam, oscilavam
diante de mim na sua inércia cega, fechei as pálpebras com força e
apeteceu-me gritar de nojo e de pavor, gritar de nojo e de pavor
como, em criança, no decurso de um pesadelo insuportável.
(ANTUNES, 2004, p.37-38. Grifos meus).
Ao rememorar o exame físico a que tinham de ser submetidos os homens que
entrariam em combate, o narrador questiona a legitimidade da guerra ao dizer que os
soldados eram convocados “para defenderem em África os fazendeiros do café, as
prostitutas e os negociantes dos explosivos, os que mandavam no País em nome de ideais
confusos de opressão.” Tal qual o narrador garrettiano quando discorre sobre a guerra
civil, o que essa declaração evidencia é que os combatentes não lutavam pelos próprios
interesses, mas por razões que, além de não lhes dizerem respeito, eram ilegítimas à
medida que motivadas, sobretudo, pela exploração e ganância dos que “mandavam no
país.” O narrador, médico de formação, também entra em conflito ao perceber que fora
convocado não para salvar vidas, mas para enviá-las à matança em nome do dever
patriótico e das Parcelas Sagradas do Ultramar. A evocação da noção de dever e da

133
suposta sacralidade de combates sangrentos ironiza os discursos veiculados pelo regime
salazarista assim como a frase em destaque “o Exército É O Espelho Da Nação, porque
O Soldado Português É Tão Bom Como os Melhores”.
Ora, a crítica do narrador é, de certa forma, gradativa, ao ponto de ao descrever
os soldados que esperavam a revista, referir-se a eles, primeiramente, como “os futuros
heróis” da nação, depois como “os futuros mutilados” e, por fim, como “os futuros
cadáveres”. Expondo a ilegitimidade da guerra, a hipocrisia dos discursos veiculados,
bem como a desvalorização da vida dos combatentes, a noção de que é honroso ao soldado
morrer em campo de batalha é descontruída. Além disso, o narrador critica a
dessubjetivação a que os soldados são submetidos antes mesmo de entrar em combate, ao
descrever o horror que lhe acomete quando se dá conta de que não está diante de pessoas,
mas de dezenas de pênis a serem analisados ao abate.
Em outro momento da narrativa, a falaciosidade do regime, enquanto incentivador
da guerra, é explicitada quando o narrador se refere a amigos angolanos, contratados pela
PIDE para lutar contra os seus conterrâneos:
Nesse país de pequeninos rios estreitos como pregas na pele,
minúsculos como cicatrizes ou como vincos de sorrisos, encontrei
amigos entre os pobres negros da PIDE, Chinóia Camanga, Machai,
Miúdo Malassa, os chefes da tropa laica que a PIDE arregimentara para
combater os guerrilheiros, e que saíam para a mata ao alvorecer a fim
de lutar contra o MPLA e a UNITA, silenciosos e rápidos como animais
de sombra. Eram homens corajosos e altivos enganados por uma
propaganda perversa, pelas garantias cruéis, pelas promessas
mentirosas do regime, e eu costumava conversar com eles, à tarde,
nas suas casas de adobe, acocorados num tronco, olhando a mancha
branca do quartel no alto, onde os faróis dos jipes produziam uma
indecifrável dança de sinais. Cães esqueléticos latiam das moitas
gemidos aflitos de menino, as galinhas procuravam abrigo nas esteiras,
Machai, o irmão da professora, trazia uma cadeira para mim, dizia:
- Tumama tchituamo, Muata
e ficava ao meu lado a contemplar o seu país em guerra, as
queimadas do cacimbo, a chegada das trevas com o seu cortejo de
fantasmas, ficava a contemplar o seu país com a expressão
impassível dos luchazes, ou ensinava-me pacientemente a sua
língua estranha com um brilho divertido nos olhos. (ANTUNES,
2004, p.22-23. Grifos meus).
Ora, no trecho em destaque, o narrador contrapõe a inocência dos “pobres negros”
arregimentados pela PIDE à crueldade das autoridades portuguesas que os conquistavam
a partir de propagandas perversas, garantias cruéis e promessas mentirosas. O tema da
exploração do colonizado, da hipocrisia e crueldade portuguesas durante a guerra, é

134
trazido à tona, em diversos momentos, pelo narrador que, patriofóbico217, continua
representando, por mais que não queira, a identidade e os interesses do colonizador:
Estes caraças desconfiam de nós como o diabo, pensava eu, o nosso
coração não se contrai ao mesmo ritmo, não conhecemos o que os
preocupa, o que os interessa, o que os assusta. Viemos de
metralhadora em riste, partimos de metralhadora em riste, e
chamamos-lhes irmãos enquanto lhes comemos as mulheres nas
esteiras deles, e os tipos esperam lá fora, encostados às estacas das
lavras, a esconderem na mão o cigarro de liamba. A gente sai para o
luar a apertar a breguilha e ouve contra a nuca
-Boa noite, nosso tropa
sem zanga nem revolta, tranquilamente, ouve
-Boa noite, nosso tropa
e uma forma oblíqua some-se no escuro a assustar as galinhas e os
cabíris à medida que nós nos afastamos, a tropeçar nas raízes como
nadadores com barbatanas, a caminho do arame do quartel.
(ANTUNES, 2004, p.165. Grifos meus).

O fato de o narrador afirmar que o coração dos portugueses não se contrai no


mesmo ritmo que o dos angolanos reforça a outridade deles. Bem como, ao dizer que os
portugueses chegaram de metralhadora e riste em África, mantendo relações sexuais com
as mulheres dos parceiros de batalha angolanos, apesar de chamá-los de irmãos, destaca
a hipocrisia do colonizador que ultrapassa barreiras físicas e morais, autodenominando-
se, ainda assim, superior. Mais adiante, ao nos depararmos com a descrição de uma
relação sexual que o narrador mantém com uma mulher angolana, notamos, mais uma
vez, a caracterização do português como pretenso dominador e do colonizado como
prisioneiro de certa passividade que tem de manter diante dos que dele se assenhoreiam:
Boa noite, nosso tropa - segredou-me o negro. Eu mijava contra uns
caniços nas traseiras da cubata (mijar depois de foder é a primeira
condição para prevenir doenças venéreas) debaixo de um imenso
rebanho de desconhecidas estrelas, incrustadas em veludo negro como
diamantes pontiagudos, minúsculos. Sentia ainda nas mãos, no pescoço,
no peito, um aroma passivo, um aroma obediente de mulher.
Cabelos como lã e uma boca que fugia constantemente da minha, não
brusca, não agressiva, obstinada apenas. Uma boca que fugia e um
corpo inerte, de pernas abertas na esteira, como o bebé a gemer ao lado
no seu sonho. (ANTUNES, 2004, p.168. Grifos meus).

O verbo “foder” não é empregado ocasionalmente no trecho destacado. Sendo


uma denotação pejorativa do ato sexual, é interessante que o narrador empregue o verbo
num trecho em que, ainda tratando da temática de chamar de companheiro o homem a
quem não é leal, o protagonista retrate a relação sexual com uma mulher que, com aroma

217
CARDOSO, Norberto do Vale. A mão-de-judas: Representações da guerra colonial em António Lobo
Antunes. Lisboa: Texto, 2011, p.173.

135
obediente, boca fugidia e corpo inerte, torna-se objeto de prazer ao invasor não só de seu
corpo, mas da sua terra.
Ora, o episódio do massacre dos três negros em marimba, já comentado em outros
momentos da dissertação218, sendo uma das descrições mais sinistras sobre o colonialismo
em Lobo Antunes219, também retrata a relação problemática entre colonizador e
colonizado, sobretudo pelo comportamento do representante da PIDE que diz,
abertamente, que a vida dos negros não importa220. Evidencia-se, nesse momento, não só
o racismo estrutural que motivou a guerra, mas a banalização da violência em contexto
bélico. Violência física e simbólica que vitimava tanto os negros, os Outros, como os
combatentes portugueses. O episódio do combatente português que se suicida em
Mangando, sobre o qual a dissertação, de certa forma, também já se deteve221, reforça
não só o desespero do soldado que tirou a própria vida por não ver sentido na guerra da
qual participava, mas a morte interior dos combatentes que sobreviviam à morte física:
Estávamos no quartel de Mangando, sentados à mesa, o alferes, o
furriel enfermeiro e eu, de garrafa de cerveja na mão, e os nossos
rostos traduziam em cada ruga, em cada traço, em cada vinco das
sobrancelhas ou da boca, meses e meses de perplexidade e
sofrimento. (....) As viaturas lá fora adquiriam a configuração
fantasmagórica dos sonhos, e a sombra das palmeiras, da casa do chefe
do posto, da mata em volta, possuía a profundidade sem limites da
tristeza. O olhar do suicida, cheio de indiferença e de rancor, perfurava
o tabique da parede e poisava em nós como o passo leve, oblíquo,
atento, de um gato. Talvez que tivéssemos bebido demais (havia
várias garrafas vazias ao alcance do braço), talvez que a demorada
agonia do soldado e o seu trágico acompanhamento de estertores e
de vómitos acendesse em nós a secreta, febril angústia que
diariamente escondíamos, talvez que tantos meses de guerra nos
transformassem em criaturas indecisas e inúteis, em pobres
bêbados sem préstimo aguardando a palidez da manhã, para depois
aguardarem a tarde e a noite na mesma renúncia desinteressada.
(...) - Porque é que as pessoas se matam? – perguntou o alferes, com um
bigode de espuma de cerveja a esbranquiçar-lhe o lábio.
- Os animais presos - disse eu - preferem muitas vezes morrer e nós não
passamos de animais presos: nunca nos deixarão sair daqui. Têm medo,
em Luanda, que a gente saia daqui: com que cara os tipos bem fardados,
bem alimentados, bem dormidos nos enfrentariam? Somos o remorso
deles. (...) O alferes levantou-se (a cadeira tombou para trás e o
pide, aflito, estremeceu no seu sono), retirou um espelho oval do
prego da parede, um desses pequenos espelhos de barba com
cercadura metálica, e examinou-se passando a mão desiludida nas
bochechas moles: - Já estou morto - disse ele. – Morri no Mussuma,
no Leste, quando encostei à cabeça o indicador direito e disparei.

218
Página 107 da dissertação.
219
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.85.
220
Nota 184 da dissertação.
221
Página 106 da dissertação.

136
Vocês não calculam o estampido de um dedo ao disparar.
(ANTUNES, 2004, p.204-206. Grifos meus).

As marcas dos meses de “perplexidade e sofrimento”, a transformação dos


soldados em “criaturas indecisas e inúteis” que aguardam os dias passarem com “uma
renúncia desinteressada”, à medida que presos por um sistema cruel, indicam a morte que
o alferes diz que já experimentou: “Morri no Mussuma, no Leste, quando encostei à
cabeça o indicador direito e disparei. Vocês não calculam o estampido de um dedo ao
disparar”. O disparo na própria cabeça é metafórico, tendo em vista que ele está vivo e
compartilhando a experiência com os demais que também estão. O disparo em si próprio,
na verdade, diz respeito aos disparos que o alferes efetuou à matança de terceiros. O
argumento em questão, portanto, é o de que a obrigação de matar o Outro, que apesar de
diferente, é semelhante, ocasiona a morte daquele que mata, minando sua consciência
humana e seu ânimo de viver. Mais adiante, o alferes testifica, valendo-se de uma imagem
poderosíssima ao imaginário cultural português:
- Nós já somos espectros - informou o alferes. - Somos os mais
nojentos, os mais rascas, os mais miseráveis dos espectros. O barco
que nos levar para Lisboa leva uma pilha de cadáveres de tal modo
bem embalsamados que as famílias não vão notar a diferença.
(ANTUNES, 2004, p.220. Grifos meus).

O retorno dos barcos que outrora partiram de Portugal, associado ao longo da


tradição com a alegria da vitória dos conquistadores, é evocado, na fala do alferes, como
testemunha da morte de todos os que combateram. Mortos em combate, seja pelos tiros
que os atingiram ou pelos que disparam contra outros, os soldados portugueses não
voltam como heróis à sua terra. São “os mais nojentos”, “os mais rascas” e “os mais
miseráveis dos espectros” que, embalsamados, têm de fingir que a vida não se lhes esvaiu
em nome do regime que lhes arregimentou à morte.
Ora, também é conveniente dizer que a imagem do mar, do barco e dos navegantes
é subvertida em toda a obra. A artificialidade do mar222, indicada desde o primeiro

222
Em vários trechos da narrativa, a artificialidade do mar é indicada, seja na descrição do Algarve:” O
mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem (...).”
(ANTUNES, 2004, p.13. Grifos meus), seja em Albufeira quando o narrador se recorda de seus sonhos
infantis: “Tenho saudades do mar, pensou, não deste mar mas de todos os mares que conheci antes deste
pequeno, inofensivo, domesticado mar de cartolina (...). (Idem, p.30. Grifos meus), seja ao descrever o
cheiro do mar nos alimentos em conservas da guerra: “O cheiro do mar, o cheiro das conservas de atum
e de sardinha, aproximava-se e afastava-se ritmicamente de mim como a respiração de um corpo
abandonado. Era um mar de brinquedo contido no azeite amarelo e verde das latas, um mar sem
ondas, sem gaivotas, sem barcos, reduzido à salgada doçura do perfume que se escapava dos caixotes
como o eco do vento das orelhas concêntricas dos búzios.” (Idem, p.212. Grifos meus).

137
capítulo à descrição do Algarve, soma-se à monstruosidade223 que, por vezes, assume,
bem como a descrições fétidas de águas encanadas ou enlatadas224 e a sátiras de leituras
psicanalizantes do mar225. Tudo isso indica que, como bem dito por D’Angelo (2014), o
narrador antuniano relê o Império Português de forma amarga e desconstrutora. Longe de
exaltar as virtudes da pátria colonizadora, que se pretendeu, até 1974, imperial, a
experiência da guerra ao narrador de Conhecimento do inferno foi decisiva para que ele
visse Portugal como realmente era. País pequeno, alimentado por mitos e cheio de terrores
sepultos que sobreviveriam, como veremos, ao fim da ditadura e da guerra. Convém-nos,

223
O mar, não raras vezes, é personificado de forma um tanto quanto monstruosa na narrativa, como
podemos notar nas passagens que se seguem:
“(...) e o odor do mar trepava a parede numa espiral de glicínia e empoleirava-se, azul, no parapeito,
sentado nas patas traseiras, mirando-me com as grandes pupilas humildes de cavalo, molhadas das
lágrimas da espuma. Puxava o lençol sobre a cabeça para fugir à curiosidade do mar, à triste timidez do
seu soslaio inquieto de homem ferido, buscando-me entre as almofadas numa pressa ansiosa, voltava-me
de barriga para baixo, dobrava as mãos na nuca, encolhia as pernas, diminuía a barriga e o peito até reduzir
o meu corpo às dimensões de um embrião, de um insecto, de uma crisálida insignificante perdida num
refego de roupa, mas o cheiro açucarado, suave e brando, do mar, verrumava as fronhas para fitar-me,
silencioso como um queixume tocante de mulher. (ANTUNES, 2004, p. 46. Grifos meus).
“Porque a carne do mar é como a carne dos seus estranhos bichos, dos seus crustáceos, dos seus
moluscos, dos seus inimagináveis animais, que conversam conosco, através das espirais dos búzios, a
linguagem musical de um bafo oco e rombo idêntico à fala dos operados da garganta que nos chamam por
um tubinho metálico engastado no pescoço, de pálpebras arregaladas por um indizível terror.” (Idem, p.235.
Grifos meus).
“A Praia das Maçãs, a seguir ao Banzão, é um aglomerado de vivendas leprosas empoleiradas sobre o mar
furibundo, raivoso de dor de dentes e de azia, a bater em vão contra a muralha como a uma porta
para sempre fechada. (Idem, p.240. Grifos meus).
224
Dois trechos devem ser destacados, um em que o narrador descreve o sistema hidráulico do Hospital
Miguel Bombarda, e outro em que discorre sobre o aroma de mar enlatado misturado ao de morte,
proveniente do soldado que jazia no cubículo vizinho ao seu em Angola.
“De pé no meio das mesas aspirava o relento do urinol vizinho, em que se mijava contra placas de pedra ao
longo das quais escorria, por intermédio de um sistema ferrugento de tubos, uma baba musgosa de
água que arrastava molemente os cagalhões por um veio de cimento, na direcção de um ralo
improvável: e pareceu-me, fitando as fezes que boiavam devagar, que elas giravam interminavelmente em
círculo no asilo, através dos quatro ou cinco andares do asilo, da horta, da farmácia, da cozinha, do salão
nobre, da capela, giravam em círculo empestando tudo do seu odor podre, exalando um grosso aroma
de cárie envenenada, idêntico ao dos mortos em África, nos caixões de chumbo, a decomporem-se na
arrecadação como alimentos estragados. (Idem, p.142. Grifos meus).
“O suicida acabara de morrer e jazia, tapado com um lençol, num cubículo vizinho, entre grades de cervejas
vazias e caixotes de latas de conservas que prolongavam, se as cheirávamos, um estranho, denso,
concentrado aroma de mar. Eram latas de sardinhas e de anchovas, latas de atum e de cavala, e o
odor rodeava o morto como a água os corpos de pau dos afogados, que adquirem a pouco e pouco a
consistência torturada e porosa das raízes. (Idem, p.204. Grifos meus).
225
No capítulo oitavo, dedicado, sobretudo, à crítica da psicanálise, encontramos uma sátira do narrador
quanto às leituras psicanalíticas do mar: “Ontem à tarde estive três horas em Carcavelos - disse o
psicanalista aos outros médicos durante a pausa matinal do café. (...) - Sentia-me sequioso de um contacto
com a mãe e então fui à praia, despi-me, e as ondas eram um grande seio materno que me inundou
de leite.
- Os banhos de mar devolvem-nos a pré–genitalidade - completou um sujeito vestido como para um
baile de província (...).
-Um leite cheio de alcatrão - sugeri eu -, um leite de merda. Vocês já repararam na quantidade de
cagalhões que a mãe traz a boiar?
E pensava:
- Estes gajos estão doidos, estes gajos é que são mesmo os doidos. (Idem, p.161-162. Grifos meus).

138
portanto, atentarmo-nos ao mapa da realidade portuguesa contemporânea que o autor
elabora226 em Conhecimento do inferno, a partir dos olhares, um pouco turvos, do
narrador da obra, sobretudo, pós 25 de abril de 1974.
4.2.2. A não-inscrição histórica do passado e a permanência ditatorial do medo: a
realidade do Hospital Miguel Bombarda
Segundo dito por José Gil em Portugal, Hoje: O medo de existir (2004), livro que
se tornou uma espécie de “best seller” no país, Portugal é um país que falha, sobretudo,
pela não-inscrição histórico-filosófica de seus traumas227. Discorrendo principalmente
sobre a realidade pós-25 de abril, isto é, pós-término da ditadura e das guerras coloniais
(ou de independência, a depender do ponto de vista), o autor disserta sobre a recusa de
todas as forças responsáveis pela Revolução dos Cravos, à reflexão sobre os quarenta e
oito anos em que Portugal vivera como país não democrático:
O 25 de Abril recusou-se, de um modo completamente diferente, a
inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve
julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo
contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade
repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a
exaltação afirmativa da <<Revolução>> pudesse varrer, de uma
penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da
vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e
da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se
constrói um <<branco>> (psíquico ou histórico), não se elimina o
real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os
mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar
e que insiste em permanecer. Quando o luto não vem inscrever no
real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte
virão assombrar os vivos sem descanso. (GIL, 2004, p.16. Grifos
meus).

A falta de reflexão sobre “a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do


medo”, segundo o autor, permitiram que estruturas danosas à democracia e à liberdade
permanecessem de pé, seja na política e nas instituições, seja no imaginário cultural da
nação. Como dito por Gil, o processo de luto é necessário à inscrição da perda e ao
recomeço, ao passo que o luto não vivido, a realidade negada, configura-se como uma
espécie de porta-aberta aos mortos que “virão assombrar os vivos sem descanso.” Ora,
Conhecimento do inferno, como o próprio título indica, apresenta-nos a um narrador que,

226
Como dito por Lourenço (2002): “Se as gerações futuras quiserem saber que país é este podem ler os
livros de Lobo Antunes. Não apenas porque nos fazem ver a vida como um combate feroz, sem fim, sem
saída, mas porque nos fazem ver tudo o que não veríamos se a sua obra não existisse. (...) Razão e irrazão,
sol e treva, esse é o mundo de António Lobo Antunes, e o mapa da realidade contemporânea que
possuímos.” (COELHO, 2002, In: ARNAUT, 2010, p. 258).
227
GIL, José. Portugal, Hoje: O medo de existir. Lisboa: Relógio d’água, 2004, p. 38.

139
como Dante, apesar de vivo, está cercado pelos cadáveres e espectros que, em contexto
nacional, não foram devidamente enlutados.
Tendo experimentado a guerra outrora, o viajante que nos guia numa viagem de
carro do Algarve até Lisboa discorre, em primeiro plano, sobre as suas vivências do
presente enquanto psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda. Presente e passado, contudo,
entrecruzam-se pela crueldade que engendram, fazendo com que enxerguemos a
realidade pós-25 de abril muito pior do que a que o narrador enfrentara durante o regime
salazarista e a guerra.
O ambiente concentracionário do Hospital Miguel Bombarda, sendo, de acordo
com as palavras do próprio autor, uma espécie de arquétipo do país, configura-se como
um retrato do Portugal, pretensamente pacífico, instaurado com a Revolução dos
Cravos228:
Depois do 25 de abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas.
Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia,
por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a
simples proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por
medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo
do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da Revolução, até 76,
fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o
tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos
atenciosamente com as famílias, preocupámo-nos com os
internados, protestámos contra a alimentação, os percevejos, a
humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas, Joana,
por cobardia, pensou ele vendo um bando de rolas poisar num olival,
agitar a tranquilidade do olival com o rebuliço do seu voo, tínhamos
pânico de que nos acusassem como os pides, nos prendessem, nos
apontassem na rua, pusessem os nossos nomes no jornal. E demorámos
a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam
a respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuavam
a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos.
E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E
sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra
democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque
haviam abolido a guilhotina. (ANTUNES, 2004, p.107-108. Grifos
meus).

Segundo o narrador, no trecho em destaque, os médicos, enquanto representantes


de uma elite econômica e intelectual, se por um tempo temeram as mudanças que o 25 de
abril prometia, enquanto data de instauração da equidade e da democracia, logo
entenderam que, apesar do discurso democrático da nação, nada mudaria no cotidiano dos
hospitais. Não só a crítica à permanência de estruturas ditatoriais e conservadoras, pós-

228
GOMES, Álvaro Cardoso. “Entrevista com Antônio Lobo Antunes”. In: A voz itinerante: ensaio sobre
o romance português contemporâneo. São Paulo: Edusp, 1993, p.138.

140
revolução, fica evidente na obra, como também a divisão que, segundo Gil, se
intensificara durante o regime e não fora abolida depois do 25 de abril: a divisão entre
instruídos e sem instrução:
Porque o 25 de Abril não conseguiu abolir a divisão instruído/ sem
instrução que correspondia mais ou menos ao par poder-saber/
pobreza- ignorância do tempo do salazarismo. Porque na sociedade
portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a
passividade perante as instituições e os homens supostos deterem e
dispensarem o poder-saber não foram ainda quebrados por novas
forças de expressão da liberdade. Numa palavra, o Portugal
democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que
impede a crítica. Vivemos numa sociedade sem espírito crítico – que só
nasce quando o interesse da comunidade prevalece sobre o dos grupos
e das pessoas privadas. (GIL, 2004, p.36-37. Grifos meus).

Estando primeiramente do lado dos colonizadores e, depois, dos instruídos,


mestres da razão, conservadores que carregam no sovaco “jornais de direita” e são
tratados, pelos simples, como “abades nas aldeias”, o narrador antuniano, assim como o
Garrett de papel depois do fim da guerra civil, afirma que, apesar das figuras de poder
terem sido alteradas pós 25 de abril, a mudança não foi estrutural, de forma que o país
continuou injusto e violento. Tão danosos quanto os barões em Viagens, os médicos,
retratados pelo viajante antuniano, ajudam a sustentar um sistema de medo, herdado do
regime ditatorial, à medida que, além de permitirem que desigualdades e abusos se
perpetuem, privarem os pacientes de consciência crítica, tornando-os semelhantes a
cadáveres castrados que “não soluçam, não protestam, não choram”:
Os doentes do Hospital Miguel Bombarda, pensou olhando em volta
a multidão de camisas de dormir sentadas em silêncio nas cadeiras
de fórmica, não soluçam, não protestam, não choram: são
cadáveres cinzentos, pobres cadáveres castrados que respiram de
leve, entontecidos de calmantes, gordurosos de comprimidos e
cápsulas, movendo-se em lentos acenos de algas de compartimento em
compartimento, a arrastar as alpercatas nas tábuas, côncavas de uso, do
soalho. (ANTUNES, 2004, p.83. Grifos meus).

Apesar de representar a minoria no hospital, o narrador, por estar entre os


instruídos, tem total autoridade sobre os seus pacientes. Autoridade questionada em sua
legitimidade, a todo momento, ora quando o narrador confessa o remorso que sente pelo
descaso com que trata os internados:
E no entanto crescia em mim uma espécie de vergonha, ou de
aflição, ou de remorso, sempre que preenchia um boletim de
internamento e aferrolhava no manicómio as íris surpreendidas e
tímidas que me fitavam. Ninguém tem culpa e eu preciso de comer,
obtive este emprego do Estado, procedi a exames, concursos, testes de
cruzinhas, provas públicas, pago renda de casa, electricidade, gás,

141
aluguer de telefone, gasolina, e justifico os vinte contos que ganho
aprisionando pessoas no asilo, escutando desatento as suas
inquietações e as suas queixas, chegando tarde ao dispensário para
consultas apressadas (Que mal faz se os doentes esperam por mim das
nove ao meio-dia, que mal faz se em cinco minutos os oiço e os
despacho, que mal faz se me preocupam mais as pernas cruzadas da
estagiária do que a angústia dos que me procuram?), entrando e saindo
no asilo numa pressa de cuco de relógio. Os gajos matam-se porque
se matam, porque o delírio, porque a epilepsia, porque a psicose,
declaram-me Não sei que volta hei-de dar à minha vida, e eu penso
E à minha vida que volta darei eu, que volta darei à minha vida na
noite plana, imensa, sem limites do Alentejo, que parece anunciar-
me constantemente, no zunir dos insectos e no setembro das
árvores, o segredo de uma mensagem indecifrável. (ANTUNES,
2004, p.118. Grifos meus).

Ora, ao caracterizar-se, a si mesmo, como um SS em Auschitwitz, ironizando a


frase que é repetida, inúmeras vezes, de que “a Psiquiatria é a mais nobre das
especialidades médicas”:
Estou em Auschwitz, pensou, estou em Auschwitz, fardado de SS, a
escutar o discurso de boas-vindas do comandante do campo
enquanto os judeus rodam lá fora no arame a tropeçarem na
própria miséria e na própria fome, estou bem barbeado, bem
engraxado, bem alimentado, bem vestido, pronto a aprender a
cumprir o meu ofício de guarda, pertenço à raça superior dos
carcereiros, dos capadores, dos polícias, dos prefeitos de colégio e
das madrastas das histórias de crianças, e em vez de se revoltarem
contra mim as pessoas aceitam-me com consideração porque a
Psiquiatria é a mais nobre das especialidades médicas e é necessário
que existam prisões a fim de se possuir a ilusão imbecil de ser livre, de
poder circular na praça da Albufeira esporeado por uma esposa
autoritária, apavorado com o sábado depois do jantar em que ela me
devorará, na cama, como as gigantescas mandíbulas da vagina,
obrigando-me a suar sobre a geleia do seu corpo a ginástica do
desânimo conformado. (ANTUNES, 2004, p.42-43. Grifos meus).
A dessubjetivação a que são expostos os pacientes, destituídos de pertences
pessoais, de lembranças e de dignidade, encontra semelhanças com os testemunhos de
judeus acerca das condições dos campos de concentração. Mas, mais uma vez, apesar de
estar na posição do que tortura e não do torturado, o narrador se sente, assim como se
sentia na guerra, vitimado pelo mal que causa a terceiros. A confusão identitária que o
domina inúmeras vezes na narrativa, derivada do fato de ser um SS com crise de
consciência229, é o seu próprio inferno, bem com a angústia, medo interiorizado e, por
vezes, inconsciente, é um sentimento que o assalta inúmeras vezes:

229
Como evidenciado no trecho: “O assistente olhava-o de baixo para cima à espera da resposta, e ele
pensou Sou um SS com dúvidas, sou um seminarista em crise da consciência, Hitler é grande, Deus é
bom e a Psiquiatria a mais nobre das etc, etc, pensou Não se pode ser um carrasco piedoso, pensou Não
se pode ser um tirano enternecido, de modo que puxei uma cadeira para o pé da secretária, me aboborei no

142
Alguém começou a gritar na enfermaria: era um gemido rouco,
persistente, monótono, semelhante ao do mar nas fendas das grutas
ou ao do vento nas cristas aguçadas dos penedos, biséis de granito
para os beiços das nuvens, e o seu corpo estendeu-se, tenso, na direcção
do som, à maneira de uma corda de arco que o dedo do gemido
arrepiava. Escutava esse som nocturno na manhã do hospital,
carregado das misteriosas ressonâncias e dos impalpáveis ecos das
trevas, essa amêndoa de sombra na luz poeirenta, excessiva, da
manhã, com a mesma expectativa dolorosa, o mesmo indizível
pavor com que sentia aproximarem-se de si as trovoadas de África,
pesadas de uma angústia insuportável. (...) -Vou morrer
quando as trovoadas chegavam e ténues faíscas subiam dos cabelos na
humidade saturada da sala, para rodopiarem, soltas, de pessoa a pessoa,
como estranhas enguias de magnésio. Imaginava sempre
-Vou morrer
como imaginava, a caminho de Messines, através da paisagem de
pedra-pomes amarela do interior do Algarve, tornada dura e ácida
pela ausência de rios, uma paisagem inquieta e humilhada , que não
alcançaria nunca Lisboa e que permaneceria, anos e anos, dentro
do carro, à deriva por estradas que conhecia mal, a escutar a voz
de Paul Simon ou de Gal Costa no leitor de cassetes
Meu amor
tudo em volta está deserto
tudo certo
tudo certo
como dois e dois são cinco (...). (ANTUNES, 2004, p.51-52. Grifos
meus).

No trecho supracitado, os gritos na enfermaria fazem-no lembrar das tempestades


de África, que o traumatizaram, e o levam a ter uma sensação de morte, imotivada, a
caminho de Messines, enquanto faz a viagem de retorno ao seu cotidiano. Ora, este é o
medo a que se refere Gil no título de seu livro e que explicita na citação que se segue:
O medo entranhado, o medo incorporado, o medo sem objecto
(contrariamente à definição de Freud , que lhe dá um objeto,
diferentemente da angústia) e, no entanto, ubíquo, companheiro de
todos os instantes, doença que se agarra à pele do espírito e por isso
não se vê, podendo-se mesmo não sentir como se em nós não
estivesse inscrito. Este foi indubitavelmente o medo produzido pela
sociedade salazarista. Falo do homem comum, não do oposicionista,
sempre claramente ameaçado pelo poder. O medo exsudado pelo
salazarismo é um exemplo típico do nevoeiro ou sombra branca. O
medo herda-se. Porque interiorizado, mais inconsciente do que
consciente, acaba por fazer parte do << carácter dos portugueses>> (....)
A sociedade portuguesa, os portugueses não perderam o medo, ainda
que (ou talvez por isso) as novas gerações pouco saibam do passado
salazarista. Ora, uma das características desse medo, é a de,
aparentemente, não se inscrever. Ou de se inscrever

assento como um príncipe herdeiro no seu trono, nenhum homem voava nas janelas, à entrada da 1ª
enfermaria os meus súbditos jaziam imóveis estendidos ao sol à maneira das vítimas de uma catástrofe
ferroviária nos carris, verifiquei o nó da gravata com os dedos, abotoei o casaco, e recebi a papelada do
primeiro doente tal como, anos antes, aceitara uma espingarda em Mafra, na carreira de tiro, para aprender
eficientemente a matar.” (ANTUNES, 2004, p.58. Grifos meus).

143
metamorfoseando-se de tal maneira que se torna irreconhecível.
Para tanto contribuiu, mais uma vez, o modo como o 25 de Abril (e
o processo que se lhe seguiu) varreu das consciências o regime
anterior. (GIL, 2004, p.68. Grifos meus).

O “medo entranhado” e, por vezes, “sem objeto”, é o companheiro de viagem do


protagonista que, tendo vivido a guerra, não experimentou, até esse momento da
narrativa, o luto de tudo o que ela representou a ele e ao país. O medo metamorfoseado,
quase “irreconhecível”, é objeto de reflexão do viajante durante todo o trajeto que realiza,
sendo necessário que recorramos a um trecho já citado anteriormente, à compreensão do
campo semântico da representação, sobretudo teatral e cinematográfica, a que o narrador
tantas vezes se refere à descrição das paisagens nacionais que contempla de seu
automóvel:
- A noite em Lisboa é uma noite inventada- disse eu-, uma noite a fingir.
Em Portugal quase tudo, de resto, é a fingir, a gente, as avenidas,
as casas, os restaurantes, as lojas, a amizade, o desinteresse, e a
raiva. Só o medo e a miséria são autênticos, o medo e a miséria dos
homens e dos cães. Os eucaliptos da missão deserta não se distinguiam
já para além do edifício cúbico da administração e do quintal da PIDE
que os prisioneiros meios nus sachavam. As lâmpadas do quartel eram
como que uma grinalda de feira triste, de feira de província abandonada,
e na messe de oficiais o comandante devia sentar-se à mesa no suspiro
de câmara-de-ar que se esvazia do costume, o corpo flutuando no
exagero mole da farda. Uma criança morta passou rente a nós sem
nos ver, com as órbitas fosforescentes de apreciação idênticas às das
gazelas ou dos mochos feridos. - Tenho receio das crianças mortas
- disse eu baixinho agarrando com força o braço do Muata. – Tenho
receio das crianças mortas, tenho medo da maldade perversa das
crianças mortas. António Miúdo Catolo deslizou o polegar pelo
bigode imenso: -Os brancos são loucos - declarou ele-, os brancos
são mais loucos que os meninos. E só em 1973, quando cheguei ao
Hospital Miguel Bombarda para iniciar a longa travessia do inferno,
verifiquei que a noite desaparece de facto da cidade, das praças, das
ruas, dos jardins e dos cemitérios da cidade, para se refugiar nos
ângulos das enfermarias, como os morcegos, nos globos do tecto das
enfermarias e nos velhos e esbeiçados armários de medicamentos,
nos aparelhos de electrochoques, nos baldes de pensos nas caixas de
seringas, até os internados regressarem em silêncio do refeitório e
ocuparem as camas de ferro por pintar, o servente rodar o comutador da
luz e ela desdobrar o feltro nojento das asas, o feltro nojento e pegajoso
das asas sobre os homens deitados que a fitam de entre os lençóis numa
irreprimível náusea. (ANTUNES, 2004, p.25-26. Grifos meus).

A eterna diurnidade de Lisboa, cidade em que a noite não existe, assim como a
democracia instaurada a partir do 25 de abril, são falsas ao narrador, porque tudo no
Portugal contemporâneo é fingimento, exceto “o medo e a miséria dos homens e dos
cães”. Medo e miséria que o narrador experimenta durante todo o seu itinerário. Uma

144
nação que patrocinou a morte de crianças, como a que assombrou o narrador no quartel
em Angola, não pode ignorar o seu passado, afirmando uma utópica democracia que não
gestou e que não foi instaurada senão no plano das ideias230. À medida que ignora o seu
passado, tudo o que havia de podre nele continua presente na nação, nem que seja de
forma camuflada, como em instituições semelhantes ao Hospital Miguel Bombarda. A
noite que Portugal viveu durante o período da guerra esconde-se “nas enfermarias”, “nos
aparelhos de electrochoque”, “nos baldes de pensos nas caixas de seringas”, mas continua
presente, fazendo com que o narrador chegue a dizer que preferia estar na guerra, lutando
por sua sobrevivência, do que envolto numa realidade artificial, aparentemente pacífica,
mas ardilosamente cruel:
Angola, pensou ele no restaurante da serra diante de uma cerveja morna,
a sentir a quase imperceptível presença do escuro no dia ainda intacto,
o escuro que se mirava nas manchas da sombra do dia como um rosto
ao espelho, tenho quase saudades da guerra porque na guerra, ao
menos, as coisas são simples: trata-se de tentar não morrer, de
tentar durar, e achamo-nos de tal modo ocupados por essa enorme,
desesperante, trágica tarefa, que nos não sobra tempo para
perversidades e pulhices. (ANTUNES, 2004, p.80-81. Grifos meus).

Ora, as “perversidades e pulhices” retratadas pelo narrador no hospital são


inúmeras: o descaso com a real situação dos pacientes, a animalização dos internados,
bem como a hipocrisia dos médicos que discorrem sobre teorias fabulosas que em nada
alteram sua prática profissional231. Por fim, vale a pena destacar que a insensibilidade

230
Sobre tal fenômeno, discorre Lourenço (2016, p.73): “A distorção consistiu em tentar impor uma nova
imagem de Portugal, logo após o 25 de Abril, na aparência oposta à do antigo regime, mas cuja estrutura e
função eram exactamente as mesmas: instalar o país no lisonjeiro papel de país revolucionário exemplar ,
dotado de Forças Armadas essencialmente democráticas, considerando os cinquenta anos precedentes
como um parêntesis lamentável, uma conta errada que se apagava no quadro histórico para recomeçar
uma gesta perpétua na qual o salazarismo tinha sido uma nódoa indelével. (...) Para que esta versão mítica
sumária pudesse ter futuro teria sido necessário que na realidade todas as estruturas políticas, sociais,
económicas e culturais do antigo regime tivessem sido submetidas a uma revisão implacável acompanhada
de uma explicação sistemática, justa, equilibrada, em suma, a uma desmontagem do mecanismo político,
ideológico, económico, jurídico, militar e policial do anterior sistema.” (Grifos do autor).
231
“As portas abrem-se com chaves de palmo, a miséria é evidente, lamentosa, trágica, os gabinetes dos
enfermeiros desconfortáveis e tristes. Havia asilados que se mantinham ali há trinta ou quarenta anos, que
se manteriam ali até morrer, que morreriam ali naqueles cubículos abjectos e gelados, que uma cama
desconjuntada ocupava quase por inteiro, tossindo nos lençóis rotos a sua humilde condição de bichos. Um
odor indefinível de podre e de sujo, o odor dos defuntos e dos cachorros escorraçados, flutuava como uma
nuvem sobre o mar lamacento dos rostos. -Sim, tem de se acabar com isso- diziam solenemente os médicos,
tem de se dar melhores condições de vida a estas pessoas. E esquecíamos no momento seguinte das nossas
promessas para continuarmos a discutir generosas e hábeis teorias importadas de França, de
Inglaterra, de Itália, da Alemanha, dos Estados Unidos, acerca da Psiquiatria Social, das intervenções
na comunidade, das oficinas protegidas, dos lares pós-cura, e das sinistras maravilhas
concentracionárias que os clínicos inventam para prolongar a loucura, a transformar em massacres
aceitáveis em nome de irrisórios, de obscuros, de profundamente discutíveis padrões de saúde. ”
(ANTUNES, 2004, p.167-168. Grifos meus).

145
humana, promovida, de certa forma, pela banalização da violência presente na guerra, é
atualizada no hospital, que, assim como o quartel em Elvas, é descrito a partir da
imagística de flores (de plástico) pelo narrador:
Procurou o dinheiro nos bolsos como procurara os cigarros no pátio do
hospital , no trémulo poço verde das árvores atravessado, de quando em
quando, por enguias oblíquas de pardais, pequenas enguias cinzentas
rebolando-se no ar numa atrapalhação de asas, e começou a subir as
escadas que conduziam ao gabinete do director do internato, onde os
médicos novos se juntavam, perto de uma secretária com uma flor
de plástico no tampo, em pequenos grupos tímidos de caloiros. Eis-
me no reino das flores de plástico, verificou acariciando com o
polegar as orgulhosas pétalas postiças, no meio dos sentimentos de
plástico, das emoções de plástico, da piedade de plástico, do afecto
de plástico dos médicos, porque nos médicos quase só o horror é
genuíno, o horror e o pânico do sofrimento, da amargura, da morte.
Quase só o horror sangra nos que se debruçam para a angústia alheia
com os seus instrumentos complicados, os seus livros, os seus
diagnósticos cabalísticos, como em pequeno eu me inclinava para os
moluscos na praia, virando-os com um pauzinho para espiar, curioso, o
outro lado. No andar de baixo, no imenso corredor de lajes no andar
de baixo, um homem invisível gritava a aflição dos porcos na
matança, de pescoço golpeado pela grossa lâmina das facas. Talvez
seja por isso, calculou, que põem flores de plástico nas jarras,
porque as flores de plástico são como os bichos empalhados:
assistem numa indiferença absoluta ao espectáculo da dor: nunca
conheci nenhuma flor de plástico que se comovesse diante de um
cadáver. (ANTUNES, 2004, p.39-40. Grifos meus).

Não só a insensibilidade dos médicos é destacada, já que semelhantes a flor de


plástico “assistem numa indiferença absoluta ao espetáculo da dor”, mas também à sua
alienação, visto que, como bem dito por Seixo (2010) , as flores de enfeite representam a
tentativa deles de permanecerem incólumes, através de expedientes e artifícios, diante da
realidade da degenerescência e da morte de seus pacientes.
Notamos que tanto as críticas que o narrador faz ao regime salazarista e às guerras
coloniais, quanto as que faz à nação pós-25 de abril, são bastante ácidas e profundas. Cabe
a nós nos perguntarmos, nesse momento, se tal qual Garrett, que espera da natureza, do
povo e de Deus uma solução à nação, o narrador antuniano vê, no fundo do poço em que
se encontra232, alguma luz, esperança, à sua existência e à da nação.

232
A imagem do poço é evocada pelo próprio narrador e, segundo Seixo (2010, p.73-74), representa um
espaço de descida desamparada e destruidora, que ao invés de providenciar à vida, pelo fornecimento de
água, provoca “submersão com agonia” e “afundamento sem apelo” numa “escuridão irreversível”:
“Empurrou a porta e sentiu-se como quando Alice cai no poço no princípio da história: a súbita transição
da claridade excessiva, densa, quase palpável, do exterior, para a cova de sombra, vertiginosamente oca,
em que tinha a sensação de haver tombado, produziu nele um redemoinho de tontura semelhante ao de anos
atrás, ao chegar ao Hospital de Miguel Bombarda a fim de iniciar a travessia do inferno.” (ANTUNES,
2004, p.32).

146
4.2.3. O luto e o voo: o reconhecimento da perda e o renascimento
Como visto, apesar de não contar com um projeto literário “didático-nacionalista”,
como o de Garrett, António Lobo Antunes, por meio de Conhecimento do inferno, tece
um retrato crítico da nação portuguesa antes e pós 25 de abril de 1974. O retrato é denso
e, como o próprio título do romance indica, infernal, sendo talvez por isso que intelectuais
como António Quadros criticaram (e ainda criticam) veementemente toda a obra do autor:
(...) o que Lobo Antunes nos dá é um romance cor-de-rosa de pernas
para o ar, um romance negro-cor-de-rosa, em que, de página para
página, de personagem para personagem, de situação para situação,
tudo vai sempre pelo pior, tudo vai apodrecendo ainda mais do que
o era à partida, e à sordidez, à mediocridade, à corrupção, à
amoralidade, ao grotesco com que o autor vê os cenários
ultramarinos anteriores ao 25 de Abril, seguem-se a sordidez, a
mediocridade, a corrupção, a amoralidade e o grotesco da paz
podre revolucionária, democrática e pequeno-burguesa posterior
ao 25 de Abril. É afinal o retrato simbólico de um Portugal abjecto,
que o autor nos pinta; abjectos eram os colonizadores-colonialistas
e seus exércitos que em vez de civilizar corrompiam; abjectos são
os que ficaram aqui; abjecta é afinal esta pátria desamada de
António Lobo Antunes. Numa escrita fácil, desenvolta, coloquial,
descarada, imbricando as histórias umas nas outras sem transição e
formando assim uma espécie de labirinto obsessivo, quase todo o texto
em diálogos onde o palavrão e a vulgaridade são de regra, Lobo
Antunes apresenta-nos dir-se-ia que voluptuosamente um
verdadeiro museu de horrores (...). (QUADROS, 1989, p.208. Grifos
meus).

Ora, segundo o estudioso, o Portugal que António Lobo Antunes pinta é “abjecto”,
um “museu de horrores”, à medida que a realidade anterior ao 25 de abril é representada
como repleta de “sordidez”, “mediocridade”, “corrupção”, “amoralidade” e o cotidiano
pós-25 de abril como sórdido, medíocre, corrupto, amoral e atravessado por uma “ paz
podre.” Os argumentos do pesquisador à comprovação de sua hipótese são os de que o
autor segue uma veia materialista, ateia, agnóstica e insensível aos valores do espírito,
conduzindo os leitores, pelas tramas que fabula, a becos sem saída. Quadros conclui seu
raciocínio com a seguinte afirmação: “Fazer literatura de cisão sem transcendência acaba
por ser um mero exercício, quando não uma projecção de fantasmas pessoais (...) sem
aquela força de objectividade necessária que é a essência de toda a arte verdadeira.”
(QUADROS, 1989, p.209).
É fato que a cisão humana, sobretudo derivada de experiências como a guerra,
realmente se apresenta como tema e uma pista à compreensão da estrutura dos romances
antunianos, mas afirmar que as suas narrativas não fazem qualquer tipo de apelo à
transcendência talvez seja um equívoco. Ao contrário do que Quadros (1989) disse,

147
Conhecimento do inferno não é um “romance negro-cor-de-rosa”, mas assim como o
garrettiano, ao tecer críticas mordazes à realidade portuguesa, o narrador apresenta, junto
a elas, antídotos à crueza de uma vida sem sentido. Contudo, ao contrário do que vimos
em Viagens na minha terra, a natureza não se afigura como um refúgio ao narrador,
sendo, por vezes, a motivação de seus delírios, bem como o povo português também não
é retratado de forma idealizada e Deus não parece sequer ser uma questão ao viajante. A
saída do beco em que o protagonista se encontra parece estar ligada à capacidade que ele,
em sua humanidade, pode adquirir ou não de voar.
Assim como à menção ao mar e a afogamentos é bastante comum na obra, o voo
de pássaros, insetos e dos pacientes do narrador, também o é. As pessoas doentes, por
vezes tratadas como “pássaros feridos233”, a representação do hospital como gaiola234 e o
próprio desfecho da narrativa, anunciado pela aparição de um melro, indicam o fato de
que o alçar voo é bastante simbólico no romance. Como podemos notar no trecho
seguinte:
Era um sujeito calvo, de óculos, digno e sério, um antigo internado cujas
lentes chispavam reflexos ácidos de professor, e que me perguntou um
dia, numa voz lenta, cautelosa, vagamente irónica, voz de mestre-
escola, de explicador, de conferencista desiludido, se eu não notara já
que no asilo não existem nem crianças nem animais, que as crianças e
os animais se afastam do asilo como se afastam da morte
empurrados por um misterioso receio, a recusa da agonia, da
putrefacção, dos sentimentos fúnebres e mórbidos que os habitam.
(...) e acrescentei que nem sequer os pássaros pousavam nas árvores
do pátio, vazias de asas como as pálpebras dos albinos de pestanas
arrepiadas pelo brando vento oco do verão. - Nem mesmo os
pardais - disse o sujeito - querem nada com o manicómio, já vê.
Nem pardais, nem pombos, nem melros. Nenhuma casta deles. E
confidencial, a acotovelar: - Estamos debaixo da terra, sabe? Isto aqui
é o purgatório dos vivos, cheio de gente a arder. - Quando não há
pássaros - disse eu - é como se faltasse o ar, como se nos estivéssemos
a afogar no ar, de barriga para cima, como os peixes de boca rosada
na espuma verde dos aquários. O homenzinho inclinou-se para ajeitar
melhor a horrorosa travessa de estanho com o escudo nacional ao centro
(...). Um riso esquisito torcia-lhe a boca em redemoinhos de saliva:

233
“(...) a solidão são as pessoas de pé à minha frente e os seus gestos de pássaros feridos, os seus gestos
húmidos e meigos que parecem arrastar-se, como animais moribundos, à procura de uma ajuda impossível.”
(ANTUNES, 2004, p.70. Grifos meus).
234
“Angola, pensou ele no restaurante da serra, diante de uma cerveja morna que sabia a baba de caracol e
a espuma de banho, talvez que a guerra continue, de uma outra forma, dentro de nós, talvez que eu prossiga
unicamente ocupado com a enorme, desesperante, trágica tarefa de durar, de durar sem protestos, sem
revolta, de durar a medo como as doentes da 5ª enfermaria do Hospital Miguel Bombarda, fitando os
psiquiatras num estranho misto de esperança e de terror: quem se portar bem, minhas meninas, tem direito
de fim-de-semana em casa, quem não se portar bem recebe um pronto castigo de injecções, olarila, e dorme
sonos químicos rodeados de absolutas trevas, de um negro tão completo como os das noites dos cegos, sujas
órbitas se assemelham a pássaros defuntos estendidos nas gaiolas das pestanas.” (Idem, p.81.Grifos
meus).

148
-Talvez que um de nós aprenda a voar, senhor doutor. Talvez que
um de nós se pendure nos plátanos do pátio. E desatou a correr,
manquejando, pelos ladrilhos do vestíbulo, a agitar as mangas de
estanho do casaco e a gritar – Tchip tchip tchip em crocitos agudos de
morcego. (ANTUNES, 2004, p. 71-72. Grifos meus).

No trecho supracitado, o narrador conversa com um paciente que reflete sobre o


fato de as crianças e os animais afastarem-se do hospital. O próprio psiquiatra é quem faz
a observação de que não só as crianças se afastam do hospital, como toda espécie de
pássaros, acrescentando em seguida “- Quando não há pássaros- disse eu- é como se
faltasse o ar, como se nós estivéssemos a afogar no ar, de barriga para cima, como os
peixes de boca rosada na espuma verde dos aquários.” Ora, notamos que o inferno ou
“purgatório dos vivos” é definido, sobretudo, pela incapacidade dos que ali estão de
poderem voar e/ou observar seres que voam, simbolicamente sonham (crianças), ao passo
que o paciente, de forma inocente, afirma que talvez um deles possa aprender a voar um
dia: “Talvez que um de nós aprenda a voar, senhor doutor. Talvez que um de nós se
pendure nos plátanos do pátio.” Voar, no sentido literal, implica manter distância da terra
e, num sentido metafórico, transcender, ter uma existência que ultrapasse a ordinariedade
de uma vida presa a convenções e fingimentos. É por isso que o protagonista demonstra,
durante a narrativa, sentir-se frustrado por não conseguir fazê-lo:
Acho que nunca tinha voado, pensou ele no silêncio do Alentejo a
caminho de Aljustrel. Via-se Ourique ao longe, no fim da estrada, o
amontoado de casas de Ourique que o calor refractava, e ele pensou Até
que na minha vida só voei no dia em que o noivo chegou ao hospital
com uma mala, afogado em rendas, pensou Se calhar até morrer
nunca mais tornarei a voar, fico palmípede, pato de capoeira, avestruz
triste, fico peru-psiquiatra a arrastar as penas inchadas na alcatifa
soluçando glu glu para os clientes, fico peru-tecnocrata, peru-chefe
da família, peru-escritor, peru-pateta, peru-maluco sem graça,
peru-doutor, no meio dos perus-amigos, dos perus-colegas, dos perus-
parentes, todos a soluçamos glu-glu no decurso de aborrecidos jantares
melancólicos como velórios. (ANTUNES, 2004, p. 106. Grifos meus).

No episódio do noivo, único em que o narrador sentiu que voara, notamos que o
narrador o faz ao observar o voo de seus pacientes235. A loucura dos pacientes parece ser

235
“(...) e os doentes que voavam no pátio flutuavam agora ao acaso no corredor do asilo, pedalando
os joanetes magros na luz coada pelos plátanos da tarde. E não só os doentes: os meus fantasmas também,
os apavorantes fantasmas dos esquizofrénicos, cheios de gengivas e de unhas e caretas e cabelos, gritando
insultos, ameaças, súplicas, pedidos, riscos, os animais viscosos e peludos das alucinações dos alcoólicos a
rastejarem no chão em reputações nojentas, os cicios conspiratórios e as gargalhadinhas invisíveis que
atormentam os paranoicos, as mirabolantes visões coloridas dos drogados, discos, círculos, pirâmides,
volumes que se fazem e desfazem, se concentram, diminuem, explodem: tudo flutuava no corredor do asilo.
(...) Os meus próprios ossos adquiriram uma textura de espuma, a carne tornava-se fibrosa e leve
como a madeira dos barcos. Qualquer coisa de quitinoso, de cartilagíneo, de vibrátil, me formigava nas

149
relativizada e lida sob outra ótica nesse episódio: não seriam os pacientes tidos como
loucos porque, ao contrário dos sãos, contam com a habilidade de voar para longe de uma
realidade sem sentido? O narrador, na viagem que realiza, percebe que talvez nunca mais
torne a voar, porque está preso num sistema de conformismo, burocracia e medo, sendo
“peru-psiquiatra, “peru-chefe de família”, “peru-escritor”. Talvez seja por isso que, no
episódio em que encontra Valdemiro, paciente fujão, à beira do Montijo, o narrador
confesse sentir ciúmes do internado que, ao contrário dele, teve a coragem de “voar” para
longe do hospital:
Tinha ciúmes, na tarde pantanosa do Montijo, da alegria do
Valdemiro, do seu riso sem manchas, do cabelo comprido, da barba
por fazer, da miséria triunfal. Tinha nojo de me achar exausto e
pálido, roído por uma profissão que me destruía, me dissolvia os ossos,
me transformava numa figurinha de caixa de música condenada a dois
ou três movimentos, sempre os mesmos, ao ritmo de baladas hesitantes
e esquemáticas. Não tinha coragem de me pirar por meu turno do
Bombarda, de me despir rua abaixo do cheviote psiquiátrico que
me vestia por fora e por dentro, para passear, na cara estupefacta
dos cisnes do Campo de Santana, tão silenciosos, tão educados, tão
estúpidos, tão de baquelite na pele verde do lago, os trinta e dois
dentes de um urro formidável. Não tinha coragem de me mandar à
merda para não me mandar à merda, de mandar à merda a medicina, a
psicanálise, os tranquilizantes, os antidepressivos, a psicoterapia, o
psicodrama, a puta que os pariu. Fingia acreditar na insulina, nas curas
de sono, na terapêutica ocupacional, fingia acreditar nos psiquiatras
e instalava-me atrás da secretária no edifício da Caixa do Montijo,
perto da escola e das amoreiras antigas do largo, a fim de receitar
pílulas que ajudassem os chacineiros, as operárias da cortiça, os
camponeses que aravam em vão o nevoeiro e a humidade, imersos
no odor putrefacto, enjoativo, do rio, a durarem sem sonhos até à
madrugada seguinte, pálida e gelada como o olhar de vidro cego
dos defuntos. De modo que uma voz desconhecida, uma voz que não
era a minha, uma voz hirsuta de carrasco, se me soltava da boca num
sopro azedo de inveja e de raiva: - Vais voltar comigo para o hospital,
Valdemiro. (ANTUNES, 2004, p.136. Grifos meus).

O narrador, ao contrário de alguns de seus pacientes, como Valdemiro, não pode


voar porque tem de fingir, por conveniência, que acredita num sistema falido. Ora, faz-se
necessário dizer que não é porque o narrador não consiga transcender, durante a maior
parte da narrativa, que a obra negue a possibilidade de transcendência. Na verdade, as
duras críticas que a obra dirige, sobretudo, à permanência de estruturas que privam as

costas. Uma bolha de gás escapou-se-me do ânus. Deixei de sentir o chão nos sapatos. O corpo inclinou-
se a pouco e pouco até se tornar horizontal, e desatei a remar na luz, piando desesperadamente na
direcção dos outros.” (ANTUNES, 2004, p.105-106. Grifos meus).

150
pessoas da liberdade, por vezes, vem acompanhadas de uma sugestão de protesto, como
é o caso da seguinte:
(...) As pessoas afirmavam
- É preciso fazer qualquer coisa
e não percebiam que a única coisa a fazer era destruir o hospital,
destruir fisicamente o hospital, os muros leprosos, os claustros, os
clubes, a horta, a sinistra organização concentracionária da loucura, a
pesada e hedionda burocratização da angústia, e começar do princípio,
noutro local, de uma outra forma, a combater o sofrimento, a
ansiedade, a depressão, a mania. (ANTUNES, 2004, p.185. Grifos
meus).
Ao refletir sobre os natais no Hospital Miguel Bombarda, bem como acerca das
reuniões da equipe médica, o narrador ressalta que a maioria dos profissionais reconhecia
que mudanças no sistema da instituição faziam-se necessárias, mas o viajante é radical:
“a única coisa a fazer era destruir o hospital”, destruir fisicamente “a organização
concentracionária da loucura”. Ora, levando em consideração a metáfora dos espelhos,
também presente na obra236, o que a atitude de destruir o hospital nos diz sobre o próprio
narrador e os rumos que a nação portuguesa deveria tomar para deixar de ser um país de
cadáveres pseudo-livres? O fim da narrativa nos dá a resposta, presente nas entrelinhas
de todo o trajeto do protagonista.
Antes de ir a Lisboa para retornar ao seu cotidiano de “peru-psiquiatra”, o narrador
passa na casa paterna da Praia das Maçãs para pegar livros necessários ao seu ofício237.
Como já mencionado, o fato de retornar à casa paterna, numa cidade que remete
diretamente ao Éden, não é gratuito. Ele volta a um lugar ao qual não sente mais pertencer,
porque provou do fruto do conhecimento. Conhecimento da crueza da vida e da morte.
Mas mesmo assim volta, e volta para reconciliar-se consigo mesmo. Sendo durante todo
o caminho atormentado pelas lembranças da guerra, entrelaçadas ao cotidiano do Hospital
Miguel Bombarda, o que ele faz ao retornar à casa do pai é consumar o processo de luto,
que teve início em Memória de elefante, avançou em Os cus de judas e em Conhecimento
do inferno chega ao fim ( vale a pena lembrar que a obra realmente encerra um ciclo da
produção antuniana).

236
A exposição aos espelhos era um dos métodos de tratamento utilizados com as pacientes do Hospital
Miguel Bombarda: “Os médicos haviam decidido que os espelhos reconduziam as doentes a um
necessário contacto com a realidade exterior, de modo que as cercavam de uma abracadabrante galeria
de reflexos, de cintilações, de metálicos brilhos verticais, à superfície da qual os gestos adquiriam esquisitas
texturas de bailado, de estranha dança imaterial, de adeus de serpentinas, de espirais de fumo que se diluíam
e espessavam, no ritmo sem ritmo de uma brisa obnóxia.” (ANTUNES, 2004, p.86. Grifos meus).
237
“Entrava em Lisboa vindo do Algarve e o corpo doía-me como nessa aurora de Mangando, cheia de
raiva e de azedume. Devia ir à Praia das Maçãs buscar os meus livros, a minha roupa, os meus papéis, e
regressar no dia seguinte ao hospital e a meu trabalho de carcereiro, monótono e inútil.” (Idem, p.210).

151
A narrativa de Memória do elefante termina com o narrador negando a sua dor,
dizendo que não sente falta da esposa (do que perdeu pós-guerra) e comprometendo-se,
ironicamente, a ser “o adulto sério” que a mãe desejava, depois de cobrir o corpo da
mulher com quem dormiu “até o pescoço à laia de um sudário238.” Ele nega o luto de
realidades que lhe dizem respeito e o impõe a terceiros. Já em Os cus de Judas, em
contrapartida, ele constata que não se tornou “mais homem” depois da guerra, como as
tias desejavam, e tenciona única e exclusivamente cumprir rituais domésticos, desejando
voltar à cama e puxar o lençol pra cima de sua cabeça ao fechar os olhos 239. Ele assume
as perdas da guerra e deseja enlutar-se. Em Conhecimento do inferno ele se encontra com
o fantasma do pai e este o cobre com um lençol, para cima da cabeça, como um sudário,
ao passo que, finalmente, depois de um longo trajeto evidentemente intertextual, o
narrador divorciado, ex-combatente das guerras coloniais e decepcionado com um
passado que insiste em se repetir em estruturas do presente, experimenta o luto e , mais
uma vez, a experiência do voo:
(...) sentia-me a pouco e pouco liberto do cansaço, do coração
opresso, dos pulmões aflitos, do sujo casulo da roupa, como se as
solas dos sapatos deixassem de pisar o chão e eu flutuasse, sem peso,
na atmosfera livre e abstracta dos sonhos, de tal forma que mal me
dei conta de o meu pai se levantar, apagar a luz, dizer
- O melro
na sua voz tranquila em que cada sílaba constituía um elemento (um
lago, um rio, um moinho, montes distantes) de uma dessas paisagens
italianas ou holandesas que são o fundo dos retratos a óleo dos nobres,
dos dignatários da Igreja, das mulheres e dos homens anónimos que
cruzam os séculos para nos fitarem, das suas pesadas molduras de talha,
com uma altiva indiferença intemporal e triste, e me puxar o lençol,
para cima da cabeça, como um sudário. (ANTUNES, 2004, p. 250.
Grifos meus).
A simbologia da morte, apesar de constantemente associada a certo pessimismo
ou derrotismo, a considerar os fantasmas de mortos não enlutados que assombram o
narrador durante toda a narrativa, é positiva. É a única chance que ele tem de recomeçar,

238
“(...) enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o
cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda
arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre,
livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da
cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. (...) Amanhã recomeçarei a vida pelo
princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a
tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu
vocabulário de obscenidades pontiagudas.” (ANTUNES, 2019, p.155-156. Grifos meus).
239
“- Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a
fazer. (....) Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros, lavar os copos, dar um
arranjo à sala, olhar o rio. Talvez volte para a cama desfeita, puxe os lençóis para cima e feche os olhos.
Nunca se sabe, não é?, mas pode bem acontecer que a tia Teresa me visite.” (Idem, p.196. Grifos meus).

152
de flutuar sem peso “na atmosfera livre e abstracta os sonhos”. Sendo possível a nós, a
partir de tal leitura, entender a convicção que Lobo Antunes demonstra ao dizer que os
seus livros não são tristes240, afirmando que em suas obras a morte, como tal, não é
explorada em sua finitude, mas como uma espécie de renascimento:
Quando se diz que a morte está muito presente na minha obra, eu
penso que é porque não se compreenderam bem os meus romances.
Neles, a morte é uma espécie de renascimento. Talvez seja porque
me é insuportável a ideia de que as pessoas que amei estejam mortas
para sempre. (BLANCO, 2002, p.233. Grifos meus).

Ainda pensando na cena final do romance, Seixo, depois de desenvolver uma


longa teia argumentativa em que ressalta o diálogo que Conhecimento do inferno
estabelece com A divina comédia de Dante, afirma:
A própria estrutura em <<comédia>> de final feliz, encontra no
regresso à casa paterna de Conhecimento do inferno a sua
correspondência, com a bênção tácita do pai e o canto do melro em
escapadela musical de alegria. A bênção do Pai é dada em
correspondência com a sugestão de pinturas holandesas e italianas
clássicas, de índole apaziguadora, que se contrapõem neste final às
anteriores menções do horrível em Goya, e, no início, aos surrealismos
fantasistas, aos delicados de Delvaux, Chagall e Magritte. (SEIXO,
2010, p.95. Grifos meus).

A morte literal ou simbólica do protagonista da trilogia é anunciada pela presença


de um pássaro, isto é, pela possibilidade de transcendência e configura-se como um alívio,
em sua “índole apaziguadora”, ao homem perturbado que acompanhamos durante todo o
trajeto à Praia das Maçãs e que não podia voar. Um pouco antes de ser coberto para cima
da cabeça, com um sudário, ele já se sente voando, distante do “sujo casulo da roupa” e
“sem peso” (ANTUNES, 2004, p.250). De tal forma que, como dito por Seixo (2010), o
fim do romance não é trágico, mas cômico, em termos aristotélicos.
Além disso, o luto aplicado à personagem, às suas memórias dolorosas, aponta a
outro luto que tem de ser vivido. O luto da ideologia nacional-imperialista portuguesa,
que segundo Lourenço (2016), não foi realizado241. Assim como em Viagens na minha

240
“- Será, dada a protagonista, um romance mais risonho ou menos atormentado que os anteriores? /- Isso
que diz deixa-me perplexo porque, para mim, os meus livros não são tristes.” (BLANCO, 2002, p.65).
241
“Quinhentos anos de existência imperial, mesmo com o desmazelo metropolitano ou o abuso colonialista
que era inerente ao privilégio de colonizadores, tinham fatalmente de contaminar e mesmo de transformar
radicalmente a imagem dos Portugueses não só no espelho do mundo mas no nosso próprio espelho. Pelo
império devimos outros, mas de tão singular maneira que na hora em que fomos amputados à força ( mas
nós vivemos a amputação como ‘voluntária’) dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu
passar-se como se jamais tivéssemos tido essa famigerada existência ‘imperial’ e em nada nos afectasse o
regresso aos estreitos e morenos muros da ‘pequena casa lusitana’.” (LOURENÇO, 2016, p.49-50. Grifos
do autor).

153
terra, na obra antuniana, seja pela presença constante do mar e de elementos marítimos,
apesar da viagem do narrador se dar por terra; seja pela crítica direta à guerra ou indireta
à nação pós-25 de abril: passado e presente portugueses enfrentam-se. Na obra
garrretiana, o confronto é evidenciado, sobretudo, pelas personagens de Frei Dinis e
Carlos, ao passo que na antuniana é representado, principalmente, na cena final da
narrativa em que o pai (fantasma do passado) tem de enlutar o filho (representante do
presente). Assim como em Viagens, nem os representantes do Antigo Regime ( Ditadura
e Guerra), nem do Novo (pós-25 de abril), tomaram decisões acertadas que levassem a
mudanças efetivas no quadro negativo da nação, à medida que em Conhecimento do
inferno, o presente , por ser escravo de estruturas passadistas, tem de morrer para que o
futuro seja diferente e não mais atravessado pelo medo, alienação ou hipocrisia.
O voo se realiza quando há um distanciamento em relação à terra e,
metaforicamente, em relação à realidade, ao passo que o narrador de Conhecimento do
inferno enxerga como duas forças incentivadoras ao voo, a loucura, como negação das
convenções sociais, e a escrita. A loucura é experimentada por ele em todo o trajeto que
realiza à Praia das Maçãs, visto que, constantemente, assume o lugar de seus pacientes,
mas a escrita do passado só é possível quando, como bem dito por Pessoa (1932), a dor
sentida outrora pelo poeta já foi superada242, e Conhecimento do inferno retrata o processo
de superação desse narrador que, tendo escrito Memória de elefante e Os cus de judas,
precisa por fim num ciclo de dor que se retroalimenta, assumindo o luto por perdas
irreparáveis e o renascimento que esse processo possibilita.

242
Referência à poesia “Autopsicografia” (1932) de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor/Finge tão
completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente./ E os que lêem o que escreve,/
Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm./ E assim nas calhas de roda/
Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda/ Que se chama coração.” Disponível em:
<http://arquivopessoa.net/textos/4234>. Acesso em 07 de janeiro de 2020 às 14h45.

154
5. Conclusão: o destino a que se chega
Viagens na minha terra (1843) de Almeida Garrett e Conhecimento do inferno
(1980) de António Lobo Antunes, apesar de separadas por mais de um século e, por
conseguinte, de terem sido produzidas por autores e em contextos muito distintos,
tematizam, igualmente, a viagem de seus narradores-protagonistas pelo interior de
Portugal. Dialogando com a tradição literária ocidental que representou, ao longo da
história, viajantes que, no decorrer de suas jornadas, em todas as dificuldades que tiveram
de enfrentar, amadureceram, os protagonistas a que somos apresentados nessas duas obras
também adquirem conhecimento no trajeto que trilham. Trajeto que, não por acaso, dá-se
não só pelo interior do país que ambos precisam (re)conhecer, mas pelo interior de si
mesmos.
Seja apreciando as paisagens com o olhar de arqueólogo, como é o caso do
narrador garrettiano, seja tecendo descrições muitíssimos subjetivas e, por vezes,
absurdas , do que contempla ao longo do trajeto, como é caso do narrador antuniano, as
viagens que ambos os narradores empreendem fazem-nos refletir, em suas
particularidades estruturais, sobre a relação frutuosa entre a ficção e a realidade, o lugar
e a paisagem, a literatura e a vida, a aparência e a essência, o amor e a incapacidade de
amar, a guerra e a paz, a vida e a morte. Isto é, abordam, como toda obra de arte perene,
questões humanas universais. Mas, além disso, as obras em questão, longe de nos
apresentarem a narradores alienados em relação à realidade histórica que os engendram,
tecem uma forte crítica à nação portuguesa. Crítica que se faz notória desde a escolha da
temática da viagem por território nacional que vai de encontro às viagens que a tradição
portuguesa concebera como motivo de orgulho, (as grandes navegações), até a
comentários diretos (Viagens) sobre a realidade lusitana ou a representação de realidades
simbólico-nacionais perturbadoras, como é o caso do Hospital Miguel Bombarda em
Conhecimento do inferno.
Ambos os autores, valendo-se de experiências autobiográficas, constroem
romances de viagem que exploram não só o trajeto dos narradores ao destino que
objetivam, mas as dificuldades que a Literatura, enquanto arte de representação, enfrenta,
assim como o embate entre presente e passado, que atravessa todo indivíduo que reclama
a si mesmo o direito a uma história. A história dos indivíduos, que se apresentam como
narradores-protagonistas, entrecruza-se à história de Portugal e as motivações e efeitos
de duas guerras portuguesas, separadas por um século, são questionados diante de uma
realidade indiferente a todo e qualquer sacrifício feito por ideais que, supostamente postos
155
em prática, não ocasionaram mudanças efetivas a um sistema injusto e cruel, alterando
apenas a roupagem de seus antigos problemas.
Segundo Evelyn Blaut Fernandes (2002) a apreciação de Conhecimento do inferno
é em muito favorecida com uma leitura atenta de Viagens na minha terra, à medida que
a obra garrettiana também privilegia o viajante do mar interior em contraponto àquele que
peregrinava além-mar243. Podemos dizer mais, podemos dizer que a leitura de Viagens na
minha terra também é enriquecida depois de lermos Conhecimento do inferno. É
enriquecida porque a inovação formal que Garrett efetuou no século XIX encontra
semelhanças à que Lobo Antunes promoveu no XX e também porque, apesar de
personalidades históricas muito diferentes, ambos os autores debateram sobre e
questionaram o imaginário coletivo da nação, a partir da arte literária que tanto no mundo
oitocentista quanto no pós-colonial via-se convocada a promover a reflexão que, por
vezes, a história factual, atravessada por interesses de diversas naturezas, se abstinha.

243
“Nesse sentido, Conhecimento do inferno, ofereceu-nos outra face do conhecimento: faz parte de um
novo imaginário, aquele que tem na metáfora do mar interior o contraponto do tradicional ‘mar português.’
Partindo de uma das imagens fundacionais da cultura portuguesa, o romance ensina, ou ratifica a lição
garrettiana, que o homem moderno não mais navega no oceano aberto, mas interioriza-se nas terras do país
e de si mesmo. A história recente privilegia, portanto, os viajantes do mar interior, complementando a saga
memorial da peregrinação além-mar. (FERNANDES, 2008, p.104-105).

156
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