Você está na página 1de 24

LITERATURA

Ensino Médio / 2022 Professora: Amanda

Série: 3ª Turma:

Modernismo no Brasil – 3ª geração – coletânea de poesia Data:

Nome: Nº

João Cabral de Melo Neto

O hospital da Caatinga

O poema trata a Caatinga de hospital


não porque esterilizado, sendo deserto;
não por essa ponta de símile que liga
deserto e hospital: seu nu asséptico.
(Os areais lençol, o madapolão areal,
os leitos duna, as dunas enfermaria,
que o timol do vento e o sol formol
vivem a desinfetar, de morte e vida.)

O poema trata a Caatinga de hospital


pela ponta oposta do símile ambíguo;
por não deserta e, sim, superpovoada;
por se ligar a um hospital, mas nisso.
Na verdade, superpovoa esse hospital
para bicho, planta e tudo que subviva,
a melhor mostra de estilos de aleijão
que a vida para sobreviver se cria,
assim como dos outros estilos que ela,
a vida, vivida em condições de pouco,
monta, se não cria: com o esquelético
e o atrofiado, com o informe e o torto;
estilos de que a catingueira dá o estilo
com seu aleijão poliforme, imaginoso;
tantos estilos, que se toma o hospital
por uma clínica ortopédica, ele todo.

1
A Educação pela Pedra (trecho)

Uma educação pela pedra: por lições;


Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão


(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

Fábula de um Arquiteto (trecho)

A arquitetura como construir portas,


de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Até que, tantos livres o amedrontando,


renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até fechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

2
O Cão Sem Plumas (trecho)

A cidade é passada pelo rio da água de cântaro,


como uma rua dos peixes de água,
é passada por um cachorro; da brisa na água.
uma fruta
por uma espada. Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão Sabia da lama
ora o ventre triste de um cão, como de uma mucosa.
ora o outro rio Devia saber dos povos.
de aquoso pano sujo Sabia seguramente
dos olhos de um cão. da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio Aquele rio


era como um cão sem plumas. jamais se abre aos peixes,
Nada sabia da chuva azul, ao brilho,
da fonte cor-de-rosa, à inquietação de faca
da água do copo de água, que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Uma Faca só Lâmina (trecho)

Assim como uma bala relógio que tivesse


enterrada no corpo, o gume de uma faca
fazendo mais espesso e toda a impiedade
um dos lados do morto; de lâmina azulada;

assim como uma bala assim como uma faca


do chumbo mais pesado, que sem bolso ou bainha
no músculo de um homem se transformasse em parte
pesando-o mais de um lado; de vossa anatomia;

qual bala que tivesse um qual uma faca íntima


vivo mecanismo, ou faca de uso interno,
bala que possuísse habitando num corpo
um coração ativo como o próprio esqueleto

igual ao de um relógio de um homem que o tivesse,


submerso em algum corpo, e sempre, doloroso
ao de um relógio vivo de homem que se ferisse
e também revoltoso, contra seus próprios ossos.

3
Num Monumento à Aspirina (trecho)

Claramente: o mais prático dos sóis,


o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos


da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

Difícil Ser Funcionário (trecho)

Difícil ser funcionário Carlos, há uma máquina


Nesta segunda-feira. Que nunca escreve cartas;
Eu te telefono, Carlos Há uma garrafa de tinta
Pedindo conselho. Que nunca bebeu álcool.

Não é lá fora o dia E os arquivos, Carlos,


Que me deixa assim, As caixas de papéis:
Cinemas, avenidas, Túmulos para todos
E outros não-fazeres. Os tamanhos de meu corpo.

É a dor das coisas, Não me sinto correto


O luto desta mesa; De gravata de cor,
É o regimento proibindo E na cabeça uma moça
Assovios, versos, flores. Em forma de lembrança

Eu nunca suspeitara Não encontro a palavra


Tanta roupa preta; Que diga a esses móveis.
Tão pouco essas palavras — Se os pudesse encarar…
Funcionárias, sem amor. Fazer seu nojo meu…

4
Os Três Mal-Amados (1943)

“João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria
que amava Joaquim que amava Lili...”

(Carlos Drummond de Andrade)

JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos
quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em
que a vejo neste momento?

RAIMUNDO: Maria era a praia que eu frequentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a
um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de
extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.

JOAQUIM: O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.

JOÃO: Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como
se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira
tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.

RAIMUNDO: Maria era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e nítido como uma pedra - meu particular,
minha fuga, meu excesso imediatamente evaporados. Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem
profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor ou poeira.

JOAQUIM: O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O
amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

JOÃO: Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do
gás do sonho, senti pegada a mim?

RAIMUNDO: Maria era também uma fonte. O líquido que começaria a jorrar num momento que eu previa, num
ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar com os
olhos o crescimento de um arbusto, o surgimento de um jorro de água.

JOAQUIM: O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

JOÃO: Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe,
posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que
ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?

RAIMUNDO: Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes do seu corpo, que
poderia reconstituir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil
arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha anatômica.

JOAQUIM: O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações
em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

5
JOÃO: Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha
cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar
enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio
úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são
como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).

RAIMUNDO: Maria era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu atravessava para chegar em algum
lugar. Sozinho sobre a terra e sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem.

JOAQUIM: Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unha,
canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no
banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

JOÃO: Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos
fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?

RAIMUNDO: Maria era também uma árvore. Um desses organismos sólidos e práticos, presos à terra com raízes
que a exploram e devassam seus segredos. E ao mesmo tempo lançados para o céu, com quem permutam seus
gases, seus pássaros, seus movimentos.

JOAQUIM: O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão
de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

JOÃO: O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa.
Penso que, no meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma
colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...

RAIMUNDO: Maria era também a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido dessa forma correta e explorável e
percebo o rumor e os movimentos de sonhos possíveis, ainda em sua matéria líquida, sonhos de que disporei,
que submeterei a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a mão.

JOAQUIM: O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

JOÃO: Talvez Teresa... Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?

RAIMUNDO: Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente.

JOAQUIM: O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca
engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na
rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam
sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

JOÃO: Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo
adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua
poesia?

RAIMUNDO: Maria era também um livro susto de que estamos certos, susto que praticar, com que fazer os
exercícios que nos permitirão entender a voz de uma cadeira, de uma cômoda; susto cuidadosamente oculto,
como qualquer animal venenoso entre folhas claras e organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos
explicativos: poesia, poemas, versos.

JOAQUIM: O amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu
os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares,

6
cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o
cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava não saber falar delas em verso.

JOÃO: O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando?
Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas,
essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos,
peixes de um mesmo mar?

RAIMUNDO: Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de
alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me
definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado - presenças precisas e inalteráveis,
opostas a minha fuga.

JOAQUIM: O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
meu relógio, os anos que as linhas de minha mão me asseguram. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande
poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

JOÃO: Donde me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha
lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir
os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem
mesmo Teresa.

RAIMUNDO: Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim aonde chegar. Era a lucidez, que, ela
só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso.

JOAQUIM: O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu
meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

7
Menino de Engenho

A cana cortada é uma foice.


Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana


cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;


o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.


Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

8
Rios sem discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez O curso de um rio, seu discurso-rio,


o discurso-rio de água que ele fazia; chega raramente a se reatar de vez;
cortado, a água se quebra em pedaços, um rio precisa de muito fio de água
em poços de água, em água paralítica. para refazer o fio antigo que o fez.
Em situação de poço, a água equivale Salvo a grandiloquência de uma cheia
a uma palavra em situação dicionária: lhe impondo interina outra linguagem,
isolada, estanque no poço dela mesma, um rio precisa de muita água em fios
e porque assim estanque, estancada; para que todos os poços se enfrasem:
e mais: porque assim estancada, muda se reatando, de um para outro poço,
e muda porque com nenhuma comunica, em frases curtas, então frase e frase,
porque cortou-se a sintaxe desse rio, até a sentença-rio do discurso único
o fio de água por que ele discorria. em que se tem voz a seca ele combate.

Os vazios do homem

Os vazios do homem não sentem ao nada


do vazio qualquer: do do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de uma coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca: todavia, não qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; nem têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.

Os vazios do homem, ainda que sintam


a uma plenitude (gora mas presença)
contêm nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dela copiam certamente a estrutura:
toda em grutas ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolhas, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios de homem ou o vazio inchado:
ou o vazio que inchou por estar vazio.

9
O Sertanejo Falando

A fala a nível do sertanejo engana:


as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2.

Daí porque o sertanejo fala pouco:


as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

As frutas de Pernambuco

Pernambuco, tão masculino,


que agrediu tudo, de menino,

é capaz das frutas mais fêmeas


e da femeeza mais sedenta.

São ninfomaníacas, quase,


no dissolver-se, no entregar-se,

sem nada guardar-se, de puta.


Mesmo nas ácidas, o açúcar,

é tão carnal, grosso, de corpo,


de corpo para o corpo, o coito,

que mais na cama que na mesa


seria cômodo querê-las.

10
Graciliano Ramos:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:


do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,


cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:


por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes


de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:


quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,


a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos

11
Morte e Vida Severina (trecho)

— O meu nome é Severino,


como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
12
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

O Relógio

1. 2.

Ao redor da vida do homem O que eles cantam, se pássaros,


há certas caixas de vidro, é diferente de todos:
dentro das quais, como em jaula, cantam numa linha baixa,
se ouve palpitar um bicho. com voz de pássaro rouco;

Se são jaulas não é certo; desconhecem as variantes


mais perto estão das gaiolas e o estilo numeroso
ao menos, pelo tamanho dos pássaros que sabemos,
e quadradiço de forma. estejam presos ou soltos;

Uma vezes, tais gaiolas têm sempre o mesmo compasso


vão penduradas nos muros; horizontal e monótono,
outras vezes, mais privadas, e nunca, em nenhum momento,
vão num bolso, num dos pulsos. variam de repertório:

Mas onde esteja: a gaiola dir-se-ia que não importa


será de pássaro ou pássara: a nenhum ser escutado.
é alada a palpitação, Assim, que não são artistas
a saltação que ela guarda; nem artesãos, mas operários

e de pássaro cantor, para quem tudo o que cantam


não pássaro de plumagem: é simplesmente trabalho,
pois delas se emite um canto trabalho rotina, em série,
de uma tal continuidade impessoal, não assinado,

que continua cantando de operário que executa


se deixa de ouvi-lo a gente: seu martelo regular
como a gente às vezes canta proibido (ou sem querer)
para sentir-se existente. do mínimo variar.

13
3. 4.

A mão daquele martelo Quando por algum motivo


nunca muda de compasso. a roda de água se rompe,
Mas tão igual sem fadiga, outra máquina se escuta:
mal deve ser de operário; agora, de dentro do homem;

ela é por demais precisa outra máquina de dentro,


para não ser mão de máquina, imediata, a reveza,
a máquina independente soando nas veias, no fundo
de operação operária. de poça no corpo, imersa.

De máquina, mas movida Então se sente que o som


por uma força qualquer da máquina, ora interior,
que a move passando nela, nada possui de passivo,
regular, sem decrescer: de roda de água: é motor;

quem sabe se algum monjolo se descobre nele o afogo


ou antiga roda de água de quem, ao fazer, se esforça,
que vai rodando, passiva, e que ele, dentro, afinal,
graçar a um fluido que a passa; revela vontade própria,

que fluido é ninguém vê: incapaz, agora, dentro,


da água não mostra os senões: de ainda disfarçar que nasce
além de igual, é contínuo, daquela bomba motor
sem marés, sem estações. (coração, noutra linguagem)

E porque tampouco cabe, que, sem nenhum coração,


por isso, pensar que é o vento, vive a esgotar, gota a gota,
há de ser um outro fluido o que o homem, de reserva,
que a move: quem sabe, o tempo. possa ter na íntima poça.

14
Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Ferreira Gullar

Poema sujo (trecho)

turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de
porco aberta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
15
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre
entre irmãos e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário
diante de garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de
erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
Como se perdeu o que eles falavam ali
mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa janela
tão reais que
se apagaram para sempre
Ou não?

Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem


que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
16
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais
de casas cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema
nas aparições do sonho
- E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca, O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no
inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da
casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto
nas conversas da esquina
no coito em pé na calçada escura do Quartel
no adultério
no roubo
a decifração do enigma
- Que faço entre coisas?
- De que me defendo?
Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
(como pode o perfume
nascer assim?)

Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam


pés de tomate

Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins


mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)

Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade


sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os
comunistas o repórter esso a discussão na quitanda a querosene o sabão de andiroba o mercado negro o
racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João Lisboa o cheiro de
pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada
17
de Ferro, por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava tiquira com mel de abelha
e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais

Mas a poesia não existia ainda.


Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela? Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana,
voz de gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
18
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
dos céus da cidade estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode – por um descuido – esvair-se por meu
pulso
aberto

Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa
deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo


meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre

corpo-facho corpo-fátuo corpo-fato


atravessado de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho
de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato
brilhantina anel barato
19
língua no cu na boceta cavalo-de-crista chato
nos pentelhos
com meu corpo-falo
insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes
de Cézanne
matéria-sonho de Volpi

Mas sobretudo meu


corpo
nordestino
Mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,

combatente clandestino aliado da classe operária


meu coração de menino

20
Poema Brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças que nascem


78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade


antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

(1962)

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
21
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Inseto

Um inseto é mais complexo que um poema


Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo


que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.

22
O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café


nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio


da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana


e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

(...)

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Poema obsceno

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira

Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
23
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
– e espreitam.

24

Você também pode gostar